A recepção da ética epicurista na Utopia de Thomas Morus
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A recepção da ética epicurista na Utopia de Thomas Morus
Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia de Thomas Morus1 Sandra Schwartz Universidade de Bonn Traduzido por Julia Ciasca Brandão Tradução dos trechos latinos da Utopia e revisão geral por Ana Cláudia Romano Ribeiro, com colaboração de Isabella Tardin Cardoso Revisão da tradução do alemão por Matheus Clemente De Pietro e Bruno Mendes dos Santos Resumo Este artigo analisa a recepção do epicurismo na Utopia, de Thomas Morus. Em uma primeira parte, discute a ética dos utopianos, sua ideia de sumo bem (summum bonum), seus critérios para discernir os prazeres verdadeiros dos falsos, bem como a especificidade de cada um deles. Em seguida, investiga as possíveis relações entre a ilha de Utopia e o jardim de Epicuro. Por fim, identifica alguns elementos antiepicuristas e conclui o trabalho com um balanço a respeito da transmissão do epicurismo e sua reelaboração por Morus. Palavras-chave Thomas Morus, Utopia, epicurismo 1 Neste artigo, apresento uma versão sintetizada e revisada de minha monografia, escrita para o exame estatal (Staatsexamen). Agradeço especialmente o professor Dr. R. F. Glei pela assistência profissional, como também pelo acolhimento e publicação de meu texto neste volume. [Observação dos editores da revista Morus e da tradutora: o artigo, traduzido com a gentil autorização da autora, a quem agradecemos, foi publicado pela primeira vez em 2003 no quinto volume da revista Neulateinisches Jahrbuch. Journal of Neo-Latin Language and Literature, v. 5. Hildensheim/ Zürich/ New York: Georg Olms Verlag, 2003. p. 245-295]. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Are the Utopians Epicureans? The reception of Utopian ethics in Morus’ Utopia* Sandra Schwartz University of Bonn Translated by Julia Ciasca Brandão Translation of Utopia’s Latin excepts and general revision by Ana Cláudia Romano Ribeiro, with the collaboration of Isabella Tardin Cardoso Revision of German translation by Matheus Clemente De Pietro and Bruno Mendes dos Santos Abstract This article analyses the reception of epicureanism in Thomas Morus’ Utopia. Firstly, it discusses the Utopian ethics, its idea of the highest good (summum bonum), its parameters for discerning the true from the false pleasures as well as the specificity of each one of them. Next, it investigates the possible relations between the Utopian island and the gardens of Epicure. Finally, it identifies some antiepicurean elements and concludes with an account about the transmission of epicureanism and its reelaboration by Morus. Key words Thomas More, Utopia, epicureanism * In this article, I present an abridged version of my monography, written for the State exam (Staatsexamen). I am especially grateful to professor Dr. R. F. Glei for his professional assistance, as well as by the reception and publication of my text in this volume. [Observation of Morus’ editors and the translator: the article, translated after the kind permission of the author, to whom we thank, was firstly published in 2003, in the fifth volume of Neulateinisches Jahrbuch. Journal of Neo-Latin Language and Literature, v. 5. Hildensheim/ Zürich/ New York: Georg Olms Verlag, 2003. p. 245-295]. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia 1. Introdução Desde a sua publicação em 1516, a Utopia de Thomas Morus é texto que ocupa pesquisadores dos mais diversos ramos do conhecimento. Nos últimos tempos, a observação de pontos de vista políticos deste projeto de Estado2 deram espaço à questão do significado do texto para a literatura moderna3, bem como para o homem moderno4. Não há consenso no entendimento do projeto da ilha de Utopia ou acerca dos propósitos do autor. Morus poderia ter desejado criar um Estado “bom” ou “ruim” para os utopianos, e a concepção de seu aparato utópico é avaliada em uma escala que varia do ideal ao totalitário5, em relação ao significado do projeto. Também são divergentes as opiniões a respeito do grau de seriedade com que Morus teria tratado seu projeto de Estado6. O fato é que Morus, com a obra Utopia, não apenas inventou uma palavra7, como fundou um novo gênero literário8. Também é certo que o autor, para apresentar a sociedade da ilha de Utopia, fez uso massivo de fontes da Antiguidade Clássica, representando o espírito renascentista de sua época. Contudo, faltam análises filológicas que observem detalhadamente as passagens da obra e analisem sua correspondência com as fontes antigas. 2 Célebre é a afirmação de Kautsky - do ano de 1887! - que atribui a Thomas Morus o título de pai do socialismo utópico (Kautsky, 1922, p. 320). No dia 18 de outubro de 1961 (XXII Parteitag do KPdSU), Nikita Chratsschow afirmou em seu discurso que Thomas Morus era um grande socialista utópico (Petermann, 1986, p. 14). 3 A respeito da definição do termo “utopia” e das características deste gênero literário, ver Schulte, 1960, p. 3-15; Erzgräber, 1980, p. 13-18; Morson, 1981, p. 69-106; Glaser, 1996, p. 9-15; Gnüg, 1999, p.7-19; e também a antologia de Claeys / Sargent, 1999. 4 A análise histórico-social tem conjuntura. Ver Schaer, 2000. Até mesmo a medicina acolhe temas da Utopia. A respeito disso, ver Timmermann, 1993. 5 Hexter descreve a ilha de Utopia como um estado ideal: “(...) the Utopian commonwealth as he had formed it was the Best Society” (Hexter, 1952, p. 57). Para Bejezy (p. 25), ao contrário, “o mal” estaria sempre presente: “Evil lies in wait everywhere in Utopia and can reveal itself in all persons alike” (Bejezy, 1995, p.17-30). 6 Vale a pena conferir um elenco de pesquisas mais detalhado, como as súmulas de pesquisa de Kreyssig, 1988, p. 8-62 e Glei, 2000, p. 39-55. Recomendo também os comentários ordenados alfabeticamente a respeito das pesquisas sobre Utopia. In: Thomas More. An Annotated Bibliography of Citicien1935-1997, 1998, p. 215-309. 7 A respeito do termo “utopia” - ού-τόπος - ver Mölk, 1964, p. 309-320; em versão mais recente, p. 313315; Morisch, 2001, p. 119-130. Recomendo também Herbrüggen, 1960, p. 3-6. 8 Conhecida como “utopia” ou “romance utópico”, podemos apenas nos referir livremente a um novo território, em que são observados os signos de um mundo estranho e fantástico. Podemos pensar na Cidade do Sol, em Jâmbulo e nos seus diversos paralelos traçados com a Utopia (ver Süssmut, 1967, p. 61-67). 257 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz Quando a sociedade ideal é assinalada na Utopia, como já sugere o título DE OPTIMO REIPVBLICAE STATV DEQVE NOVA INSVLA VTOPIA (...)9, podemos esperar que os habitantes deste Estado sejam felizes e plenos. Portanto, não é espantoso que a ética dos utopianos, tratada no segundo livro em considerável extensão (160/13178/9)10, mesmo que contemplada superficialmente, evoque forte lembrança da ética de Epicuro11. As escolas filosóficas do Helenismo, sendo a escolade Epicuro uma das mais significativas, buscavam indicar o caminho do beate vivere [“viver de modo feliz”] e da felicidade individual. A mesma função é atribuída a Epicuro na descrição de Torquato, seu defensor, no diálogo de Cícero De finibus bonorum et malorum como sendo um inventore veritatis et architetus beatae vitae [“descobridor da verdade e como que arquiteto da vida feliz”]12 (Cíc., De fin. 1, 32). Budaeus, amigo de Morus, escreve uma carta endereçada a Lupsetus, na qual declara que Thomas Morus concebeu o Estado utopiano como um beatae uitae exemplar [“modelo de vida feliz”]13, um beatae uitae argumentum [“demonstração de uma vida feliz”]14. Como para Epicuro a eudaimonia consistia na voluptas [“prazer”], o mais elevado bem da vida, e os epicuristas representavam a única escola que negava o exercício de um poder divino nas relações humanas, a doutrina do prazer (Lustlehre) foi desaprovada no período da cristianizaçãoe na Idade Média15. No entanto, com o uso das fontes da Antiguidade Clássica no Humanismo, também Epicuro experimentou um “Renascimento”16 e, por esta razão, 9 Sylvester foi o primeiro a observar a ambiguidade do título: o primeiro livro trata do estado ideal e o segundo livro da ilha de Utopia, ou o título deve ser entendido de modo exegético e a ilha de Utopia representando o Estado ideal? Ver Sylvester, 1977, p. 290-302; ver também Glei, 2000, p. 54. 10 Todas as citações e referências remetem ao texto de E. Surtz e J. H. Hexter em edição latino-inglesa comentada: Surtz/Hexter, 1965. Ao longo do texto, serão fornecidas as respectivas páginas e linhas. 11 Ver H. Oncken e sua introdução à tradução de G. Ritter (In. Morus. Utopia, 1922, p. 28): “(...) ein Leben, das von einer eudäimonistischen, von Plato weit abweichend, wohl aber an Epikur erinnernden Philosophie getragen wird (...)” [“(...) uma vida carregada de eudaimonia, distanciada de Platão, e também carregada de uma filosofia que lembra Epicuro (...)”]. 12 Todas as traduções do De finibus são de autoria de Sidney C. Lima e foram extraídas de sua tese de doutorado, Aspectos do gênero dialógico no De finibus, de Cícero (Campinas: IEL/UNICAMP, 2009), traduzidas do texto estabelecido por L. D. Reynolds (Oxford: Oxford University Press, 1998). [Nota da Revisora] 13 As traduções dos trechos da Utopia, de Thomas Morus e de outros textos latinos – salvo quando informado o uso de traduções já existentes – foram realizadas por Ana Cláudia Romano Ribeiro e revisadas por Isabella Tardin Cardoso, a quem as tradutoras vivamente agradecem. [N. da R.] 14 Eius igitur insulae cognitionem THOMAE MORO debemus, qui beatae uitae exemplar, ac uiuendi praescriptum aetate nostra promulgauit, (...) id est beatae uitae argumentum (...) (12/12-16) [“Portanto, devemos a Thomas Morus o conhecimento dessa ilha, que em nosso tempo deu a conhecer um modelo de vida feliz e uma prescrição para se viver, (...) isto é, a demonstração de uma vida feliz (...)”]. A carta completa consta em Surtz/Hexter, 1965, p. 4-14. 15 Ver, por exemplo, Forschner, 1993, p. 41. 16 Ver Surtz, 1957, p. 12-26; Zinsen, 2000, p. 252-272. Para uma análise básica da relação entre o Ocidente cristão e o Ocidente pagão e suas fontes antigas, ver Buck, 1998, p. 18-22. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 258 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia não é surpreendente que Morus, cuja Utopia foi alimentada com diversas fontes da Antiguidade, tenha acolhido também Epicuro. Além disso, Morus foi possivelmente influenciado pelos relatos de viagem de Américo Vespúcio, que descreve os primeiros povos indígenas descobertos no “Novo Mundo”como epicuristas17. Como a última análise minuciosa a respeito da ética dos utopianos data de quase cinquenta anos18, este artigo pretende apresentar um estudo detalhado sobre a recepção da ética de Epicuro na Utopia, baseando-se nas fontes da Antiguidade Clássica disponíveis para Thomas Morus. Ao final, também serão observados outros aspectos da sociedade utópica, que tratam da recepção da ética de Epicuro, e também de sua recusa. Neste contexto, associado aos importantes resultados das pesquisas sobre a Utopia, deverá ser desenvolvida, baseada nos estudos literários, uma abordagem fundamental que poderá fornecer um modelo básico para esta interpretação da Utopia. 2. A Ética dos Utopianos Antes de descrever as instituições, a moral e a ética utopiana, Hitlodeu assinala a inclinação dos utopianos para os conhecimentos da Antiguidade no que concerne à filosofia da natureza (partim eadem quae ueteres philosophi nostri disserunt; 160/10 [“em parte o mesmo que os nossos filósofos antigos discutiram”]). Em seguida, o viajante trata da ética: ea philosophiae parte qua de moribus agitur (160/13-14) [“aquela parte da filosofia que trata da moral”]. É inevitável que o leitor instruído e familiarizado com o Humanismo considere os campos estabelecidos pela filosofia da Anguidade Clássica: a ética, a física e a lógica. 2.1. O summum bonum [“sumo bem”] dos Utopianos Em um primeiro momento, Hitlodeu informa os elementos principais da discussão ética dos utopianos. Existem três tipos de bens: corporais, espirituais e bens exteriores (de bonis animi quaerunt & corporis, & externis; 160/16 [“investigam os bens da alma, do corpo e os externos”]19, além da virtus e da voluptas (160/17-18), já 17 horum vitam (quae omnino voluptuosa est) Epycuream existimo [“Considero a vida deles (que em tudo é prazeirosa) epicurista”] (Vespucci, 1907, liii; citado por Surtz, 1957, p. 23 e p. 205). 18 É necessário pensar no trabalho de Surtz, 1957 (rever nota 16) e Logan, 1983, p. 144-218. 19 Este sistema tricategorial é apresentado por Aristóteles (Aristóletes, Ética a Nicômaco, 1098b; Aristóteles, Política, 1323a; Cícero, De fin. 2, 68.) Hitlodeu destaca que os utopianos discutem as mesmas questões quae nobis (160/14) [“que nós”], e isto se explica pelo fato de diversos escritos filosóficos publicados neste período discutirem questões da Antiguidade (ver Surtz/Hexter, 160/14). 259 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz referidas por três das quatro mais importantes escolas filosóficas da Antiguidade, a Peripatética, Estoica e Epicurista, cuja questão principal (prima est ac princeps controversia; 160/18-19 [“é a primeira e principal controvérsia”] é a dependência da felicidade (felicitas) humana de um ou mais destes bens20. Hitlodeu não utiliza o termo finis ou τέλος. Contudo, o leitor familiarizado com a filosofia antiga identifica de modo imediato a aqui chamada felicitas com a eudaimonia, objetivo da vida humana21, consensual entre as escolas filosóficas. Neste ponto todas as escolas estavam de acordo. Divergente era apenas a resposta em relação à composição do summum bonum [“sumo bem”]22. Como Morus tinha este conhecimento, sabia que seus leitores poderiam fazer esta associação, e fez com que Hitlodeu descrevesse suas personagens utópicas inclinadas para a posição defendida pelos epicuristas: At hac in re propensiores aequo uidentur in factionem voluptatis assertricem, ut qua uel totam, uel potissimam felicitatis humanae partem definiant (160/20-23) [“E nisso parecem ser propensos demais à corrente que defende o prazer, no qual colocam se não toda, a principal parte da felicidade humana”]. Ao mesmo tempo, esta inclinação é relativizada por duas limitações (propensiores aequo uidentur [...] uel totam, uel potissimam partem). Deste modo, os leitores são advertidos a não contemplarem os utopianos como “puros” epicuristas. Hitlodeu descreve este posicionamento como sententiae tam delicatae (160/25) [“pontos de vista tão delicados”], pois a ética favorável ao prazer era alvo de muita desconfiança desde a Antiguidade23. Por esta razão, o viajante considera surpreendente (et quo magis mireris, 160/23-24) [“e o que pode te surpreender ainda mais”] que os utopianos justifiquem sua posição hedonista com auxílio da religião (ab religione [...] petunt [...] patrocinum; 160/24-25) [“na religião [...] buscam [...] apoio”], uma religião considerada grauis & severa [...] est fereque tristis & rigida (160/24-25) [“grave e severa [...] e mesmo triste e rígida”] e, portanto, a correspondência entre voluptas e summum bonum não pareceria correta. Podemos supor que o termo religio represente perfeitamente uma religião no sentido cristão delimitada pela filosofia, que lhe fornece reflexões racionais e estabelece o complemento necessário: Neque enim de felicitate disceptant unquam, quin principia quaedam ex religione deprompta, cum philosophia quae rationibus utitur coniungant (160/26-29) [“Pois nunca discutem 20 Segundo Aristóteles, a eudaimonia se encontra em todas as três linhas (ver Pol. 1323a). A falta desta expressão é suprida pelo comentário marginal: fines bonorum (160) [“os fins dos bens”]. 22 Hossenfelder, 1995, p. 23-24. 23 Cíc., De fin. 2, 68: multa sunt audienda etiam de obscenis voluptatibus, de quibus ab Epicuro saepissime dicitur [“há que se ouvir muitas coisas até mesmo sobre prazeres obscenos, sobre os quais muitíssimo amiúde fala Epicuro”]. 21 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 260 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia acerca da felicidade sem que conjuguem alguns princípios extraídos da religião à filosofia, de cujos raciocínios se serve ”]24. É surpreendente que os utopianos, povo que define sua comunidade pela razão, considerem a razão insuficiente para a conquista da verdadeira felicidade: sine quibus [i.e. principia ex religione deprompta] ad uerae felicitatis inuestigationem mancam, atque imbecillam per se rationem putant (160/2930) [“sem os quais (i.e. sem os princípios extraídos da religião) pensam que a razão é, em si, claudicante e fraca para a investigação da verdadeira felicidade”]. Os princípios desta religião são: 1. A imortalidade da alma (animam esse imortalem; 160/31-32) [“a alma ser imortal”], 2. A admissão da vontade de Deus na destinação da alma humana à felicidade (dei beneficentia ad felicitatem natam; 160/32-162/1) [“pela bondade de Deus, nascida para a felicidade”], 3. A crença na recompensa e na punição dos atos terrenos após a morte (uirtutibus ac bene factis nostris praemia post hanc uitam, flagitijs destinata supplicia; 162/1-2) [“depois desta vida, recompensas nos são destinadas por nossas virtudes e boas ações, e suplícios por nossas más ações”]. Os princípios 1 e 3 referem-se ao Cristianismo, ainda que Platão já houvesse admitido a imortalidade da alma25. De qualquer modo, ambos os princípios são certamente antiepicuristas. Aos fundamentos epicuristas pertence a ideia do fim da sensação humana após a morte26 e, assim, suspende-se o medo da punição após a morte pelos deuses que, segundo Epicuro, não se preocupavam com os homens27. Esses princípios tomados da religião e previamente desligados de modo explícito das bases da filosofia racional são, então, explicados pela razão: Haec (i.e. principia) tametsi religionis sint, ratione tamen censent ad ea credenda, & concedenda perduci, (...) (162/3-5) [“Embora estes (i.e. princípios) sejam religiosos, eles (i.e. os utopianos) supõem que a razão os leve a acreditar neles e a admiti-los”]. Surtz/Hexter explicam esta ligação entre razão e fé, questão que parece ter muita importância para Morus28. Esses três princípios são considerados pelos utopianos os mais importantes e corretos fundamentos que assistem o homem no caminho da uoluptas. Sem eles, o homem desejaria buscar a uoluptas “a qualquer custo” (quibus e medio sublatis, sine 24 Entendo cum philosophia no lugar de tum philosophia. A respeito de 160/28, ver Surtz/Hexter, 1965. Ver também o comentário marginal: Animorum immortalitas de qua hodie non pauci etiam Christiani dubitant (162) [“Imortalidade da alma, da qual não poucos cristãos chegam a duvidar nos dias de hoje”]. A questão da imortalidade da alma era, de fato, problema importante do século XVI. Por esta razão, Pietro Pomponazzi publicou no ano de 1516 o livro sob o título Tractatus de immortalitate animae (Pomponazzi, 1990). Ver Burke, 1968, p. 126. 26 Ver KD 2; ver também Diog. Laert. 10, 124. 27 Ver KD 1; vertambém Cíc. De nat. deor. 1, 45. 28 Ver Surtz/Hexter, 1965, 162/1-2 e 162/3. 25 261 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz ulla cunctatione pronunciant neminem esse tam stupidum, qui non sentiat petendam sibi per fas ac nefas voluptatem; 162/5-7) [“uma vez (tais princípios) retirados da vida comum, declaram (os utopianos) sem nenhuma hesitação que ninguém seria tão estúpido para não buscar, por fastos ou nefastos meios, o prazer desejado”]. A consideração de uma prestação de contas póstuma e o peso das consequências das ações humanas promovem, ao final, a conquista do prazer maior: hoc tantum caueret ne minor uoluptas obstet maiori, aut eam persequatur quam inuicem retaliet dolor, (162/7-10) [“por isso, ele deve cuidar para que um prazer menor não obste um maior, nem persiga um que, por sua vez, retalie com dor”]. Esta acareação e esta prestação de contas correspondem justamente ao cálculo epicurista do prazer, que inclui a cuidadosa escolha do que, ao final, promete prazer, mesmo que haja antes a aceitação da dor29. No epicurismo, o imediato contraste entre uoluptas e dolor é par antitético decisivo30. O caminho estóico opõe-se ao epicurismo no que concerne à conquista da eudaimonia, ou seja, uirtutem asperam, ac difficilem sequi (162/10-11) [“seguir a áspera e difícil virtude”], e em sua rejeição ao prazer (abigere suavitatem vitae; 162/11-12) [“repudiar a suavidade da vida”], considerado absurdo (id vero dementissimum ferunt; 162/15) [“isso de fato consideram extremamente insensato”] se não houver crença na (futura) recompensa dos atos terrenos (cuius nullum expectes frutum;162/12-13) [“de onde não se deve esperar nenhum fruto”]. Contudo, os utopianos consideram que nem todo prazer da eudaimonia seja proveitoso, e valorizam apenas as uoluptates que são bona atque honesta (ver 162/15-16) [“boas e honestas”]. Também Epicuro nunca defendeu a prática de hedonismos egoístas e radicais, apenas as práticas de qualidades morais, como virtude e justiça, referidas em KD 5: “Uma vida de prazeres não é possível, se não for uma vida de juízo, moral e justiça; e uma vida de juízo, moral e justiça não é possível sem prazeres (...)”31. Também para os utopianos, a uoluptas não se separa em nenhum momento da uirtus, (vislumbrada sozinha pelo “partido oposto” como o summum bonum – oposição que existe na concepção estoica), pelo contrário, está ligada a ela: ad 29 Ver Cíc., De fin. 1, 32-36; Diog. Laert. 10, 129; Hossenfelder, 1965, p. 116; Müller, 1991, p. 46-47. Em Cícero, as “sabedorias” epicuristas são resumidas, e ele as trata como ut aut reiciendis voluptatibus maiores alias consequatur aut perferendis doloribus asperiores repellat (Cíc., De fin. 1, 33) [“que, rejeitando os prazeres, outros maiores ele alcance ou, suportando até o fim as dores, repila as mais ásperas”]. 30 Ver Cíc., De fin. 1, 29: hoc Epicurus in voluptae ponit, quod summum bonum esse vult, summumque malum dolorem (...) [“Esse, Epicuro o faz consistir no prazer, o que ele pretende que seja o sumo bem, e o sumo mal, a dor”]. 31 “Ein lustvolles Leben ist nicht möglich ohne ein einsichtvoles und sittliches und gerechtes Leben, und ein einsichtvolles, sittliches und gerechtiges Leben nicht ohne ein lustvolles (...)”. Tradução para o alemão de O. Apelt, 1990. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 262 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia eam (i.e. uoluptatem) enim uelut ad summum bonum, naturam nostram ab ipsa uirtute pertrahi, cui sola aduersa factio felicitatem tribuit. (162/16-18) [“em direção a ele (i.e. ao prazer), como sendo o sumo bem, a nossa natureza é puxada por essa mesma virtude, a única à quala corrente oposta atribui a felicidade”]. Portanto, para os utopianos existe uma união entre os dois caminhos de ambas as escolas concorrentes da Antiguidade: enquanto para os epicuristas é a virtude que fornece a conquista da uoluptas32, e apenas as uirtutes são os meios pelos quais se alcança a uoluptas33, para os estoicos, a virtude é a própria eudaimonia34. Para os utopianos, o bem maior parece ser a correspondência entre uoluptas e uirtus, mesmo que a união direta entre ambas as categorias seja obscurecida pelo argumento circular35. Também a definição de virtude como secundum naturam vivere (162/19-20.) [“viver segundo a natureza”] é estoica36, e um poder divino destina o homem à virtude: ad id siquidem a deo institutos esse nos (162/20-21) [“visto que para isso fomos criados por Deus”]. Comparar com o segundo princípio dos principia ex religione deprompta [já referido, “princípios extraídos da religião”]). Viver de acordo com a natureza significa saber o que se deve fazer e o que se deve deixar de fazer (in appentendis fugiendisque rebus;162/21-22) [“quanto às coisas a serem desejadas e àquelas de que se deve fugir”]37, e esta diferenciação apenas pode ser 32 Em Cíc., De fin 1, 42-b-53, Torquato tenta provar, baseando-se em diferentes exemplos, que cada uma das virtudes, como sapientia, temperantia, fortitudo e iustitia, culmina em uoluptas. (Ver Müller, 1991, p. 78-80, cap. “Der instrumentale Charakter der Tugenden”). A discussão e a relação de dependência entre uirtus e uoluptas são frequentes e paradoxais. (Ver Gigon/Staume-Zimmermann, 1988, p. 421; e Cíc., De fin. 1, 25. A quinta carta de Kyriai Doxai (op. cit.), referida na carta a Meneceu (Diog. Laert. 10, 132b), também trata do tema. O caráter instrumental da virtude é claro: “Um der Lust willen befreunde man sich auch mit der Tugend, nicht um ihr selbst willen (...).”[“Devido à força do prazer, filiamo-nos à virtude, e não devido à própria vontade”], Dio. Laert. 10, 138. 33 Ver Cíc., De fin. 1, 54: Quodsi ne ipsarum quidem virtutum laus, in qua maxime ceterorum philosophorum exultat oratio, reperire exitum potest, nisi derigatur ad voluptatem (...). [“E se nem mesmo o louvor às próprias virtudes, em que o discurso dos filósofos corre a rédeas soltas (especialmente o dos demais filósofos), pode encontrar êxito, caso não seja dirigido ao prazer (...)”] 34 Para os estoicos, há a “identidade objetiva entre felicidade e virtude” [“sachlichen Identität von Glück und Tugend”] (Hossenfelder, 1995, p. 56) e, ao mesmo tempo, “apenas a felicidade é o maior objetivo e objetivo em si” [“höchster Zweck und damit Selbszweck (...) nur die Glückseligkeit”] (Hossenfelder, 1995, p. 54). Embora os estoicos e os epicuristas busquem a ataraxia, a virtude é, para os primeiros, o único e verdadeiro bem. (“For the Stoics also, tranquillity is based on the knowledge that one has all the goods one could desire, or rather, the only real good, namely virtue; (…)”, Striker, 1990, p. 100). 35 Ver Surtz, 1957, p. 20. 36 A respeito da definição estoica: Cíc., De fin. 3, 31: relinquitur ut summum bonum sit vivere scientiam adhibentem earum rerum, quae natura eveniant, seligentem quae secundum naturam et quae contra naturam sint reicientem, id est convenienter congruerque naturae vivere. [“resta que o sumo bem seja aplicar à vida um conhecimento das coisas que ocorrem por natureza, escolhendo as que são segundo a natureza e, as contrárias à natureza, rejeitando, isto é, viver em concordância e em conformidade com a natureza.”] 37 Conferir a síntese do cálculo de prazer segundo Cíc., De fin. 1, 36 (constituto, ut aut voluptates omittantur maiorum voluptatum adipiscendarum causa aut dolores suscipiantur maiorum dolorum effugiendorum gratia) [“que se deixem prazeres de lado com vistas a adquirir prazeres maiores, ou que se 263 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz estabelecida pela razão: Eum uero naturae ductum sequi quisquis... obtemperat rationi (162/21-22) [“De certo seguir o comando da natureza (...) quem quer que obedece à razão”]. Também este aspecto é consensual entre as escolas filosóficas da Antiguidade38. Logo em seguida, os principais pontos da ética utópica são sintetizados: Vitam ergo incundam inquiunt, id est uoluptatem tanquam operationum omnium finem, ipsa nobis natura praescribit, ex cuius praescripto uiuere, uirtutem definiunt (164/1013) [“Dizem, portanto, que a própria natureza nos prescreve uma vida feliz, ou seja, o prazer como fim de toda atividade, e viver conforme o preceito da natureza é como definem virtude”]. Mais uma vez, a definição de uoluptas como τέλος (finem omnium) repete-se claramente como elemento epicurista, assim como a condução da vida de acordo com a natureza (reminiscência estoica), vida essa colocada em correspondência com a uirtus, de modo que parece finalmente chegar a uma identificação entre uoluptas e uirtus (uitam iucundam [...] uirtutem definiunt) [“definem virtude (...) como sendo uma vida feliz”]. A mesma razão que, em primeiro momento, guia os homens a seguirem os três princípios religiosos citados, em seguida, leva-os a honrar a Deus (in amorem, ac uenerationem diuinae maiestatis; 162/23) [“com amor e veneração da majestade divina”], a quem o homem deve sua existência, em um terceiro momento, encoraja-os a conduzir uma vida sem medos e com a maior quantidade possível de alegrias (excitat nos ut uitam quam licet minime anxiam, ac maxime laetam ducamus ipsi; 162/25-26) [“nos incita a conduzir a vida com o mínimo de ansiedade e o máximo de alegria possível”]; e, em um quarto momento, leva-os a ajudarem-se uns aos outros, conforme a suportem dores com o fim de evitar dores maiores”] e a definição estoica segundo Cíc., De fin. 3, 31 (rever nota 36). 38 Os epicuristas, assim como os estoicos (ver Hossenfelder, 1995, p. 54), atribuem o termo phronesis (Φρόνησιη) a tudo o que é correto e valoroso. Ver Diog. Laert. 10,132: “Für alles dies ist Anfang und wichtigstes Gut die vernünftige Einsicht, daher steht die Einsicht an Wert auch noch über Philosophie. Aus ihr entspringen alle Tugenden“ [“Para tudo isto, o juízo sensato está em primeiro lugar e é o mais importante bem, por esta razão, o juízo de valores recai também sobre a filosofia. Desta nascem todas as virtudes”]; ver Cíc., De fin. 1, 32: nemo enim ipsam voluptatem, quia voluptas sit, aspernatur aut odit aut fugit, sed quia conquuntur magni dolores eos, qui ratione voluptatem sequi nesciunt. [“Ninguém, de fato, recusa, abomina ou evita o próprio prazer porque seja prazer, mas porque resultam grandes dores àqueles que não sabem perseguir o prazer com cálculo”]. A diferença entre os estoicos e os epicuristas é que Epicuro reconhece a percepção de prazer e desprazer como imediata e natural, e não como uma sensação influenciada por nossa razão; ver Hossenfelder, 1995, p. 102. Como consta em Diog. Laert. 10, 34, a imediata sensação de prazer e dor dos seres humanos revela “quais experiências, atividades e coisas são de natureza medida (oikeion) ou desmedida (allotrion)“ [“(...) welche Widerfahrnisse, Tätigkeiten, Dinge seiner besonderen Natur angemessen (oikeion) und unangemessen (allotrion) sind”] (Forschner, 1993, p. 32-33). Epicuro explicava a voluptas como summum bonum, o ímpeto de um recém-nascido que ainda não foi influenciado pela cultura (depravada). Ver Diog. Laert., 10, 137; Cíc., De fin. 1, 30; Ver também Cíc., De fin. 1, 55: nullus in ipsis error finibus bonorum et malorum, id est in voluptate aut in dolore (...) [“Não há nenhum erro nos fins dos bens e dos males em si mesmos, isto é, no prazer ou na dor (...)”]. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 264 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia natureza da comunidade (caeterisque omnibus ad idem obtinendum adiutores nos pro naturae societate praebeamus; 162/27-28) [“e para que todos os demais obtenham o mesmo, que nos mostremos apoiadores, por nossa afinidade natural”]. A ueneratio dei também é identificada como um elemento cristão, embora os deuses, no epicurismo, ainda que não exercessem papel relevante na vida dos homens, não fossem negados, e sim saudados devido à sua perfeição divina em relação à felicidade, conforme descreve Vellenius em De natura deorum39. A formulação minime anxiam ac maxime laetam se refere claramente a Epicuro40, que enxerga a eudaimonia41 como sendo realizada na liberdade do espírito dos (perturbadores) afetos (ἀταραξία) e na liberdade do corpo da dor (ἀπονία), o que está em conformidade com uma vida de elevados prazeres. O quarto ponto é ainda mais desenvolvido (até 164/10). Tanto a ratio, como a uirtus humanitatis42 e a natureza43 abandonam a vida dos prazeres individuais e exigem que se ajude o outro a fazer o mesmo, por exemplo: hominem homini saluti ac solatio esse, (...) aliorum mitigare molestiam, & sublata tristitia uitae iucunditati, hoc est uoluptati reddere (162/32-35) [“um homem ser para outro homem ventura e conforto, (...) mitigar o sofrimento dos outros e, removidas as tristezas da vida, restaurar o contentamento, isto é, o prazer”]44; At quum natura mortales inuitet ad hilarioris uitae 39 Si nihil aliud quareremus, nisi ut deos pie coleremus et ut supertitione liberaremur, satis erat dictum; nam et praestans deorum natura hominum pietate coleretur, cum et aeterna esset et beatissima (habet enim venerationem iustam, quicquid excellit) (...) (Cíc., De nat. deo. 1, 45) [“Se nenhuma outra coisa procurávamos senão que honrássemos piamente os deuses e que nos desprendêssemos da superstição, então basta o que foi dito, pois não só a natureza superior dos deuses, sendo eterna e felicíssima, seria venerada pela piedade dos homens (ora, tudo o que sobressai tem justa veneração) (...)”. Todas as traduções de trechos do De nat. deo. são de autoria de Leandro A. Vendemiatti e foram extraídas de seu trabalho de mestrado Sobre a natureza dos deuses de Cícero, Campinas: Unicamp, 2003. (N. da R.)] 40 Epicuro define uoluptas como estado de libertação da dor; não haveria avanço para além desta condição: maximam uoluptatem illam habemus, quae percipitur omni dolore detracto (...) doloris omnis privatio recte nominate est voluptas (Cíc., De fin., 1, 37) [“o máximo prazer reputamos ser aquele que é percebido quando toda dor é subtraída (...) a privação de toda dor foi corretamente denominada prazer”]. 41 “For Epicurus, (...) tranquillity is itself a pleasure, and it consists in being free from all troubles or anxiety“, Striker, 1990, p. 100. “Wenn wir also die Lust als das Endziel hinstellen, so meinen wir (…) das Freisein von körperlichen Schmerz und von Störung der Seelenruhe” [“Se então definirmos o prazer como objetivo final, estamos nos referindo à liberdade corporal da dor e das perturbações da alma”], Diog. Laert.10, 131.Ver também Diog.Laert. 10, 128 e a síntese de Sêneca: apud Epicurum duo bona sunt, ex quibus summum illud beantumque componitur, ut corpus sine dolore sit, animus sine perturbatione (Sen. Ep. 66, 45 = fr. 434 Us.) Ver também Erler, 1997, p. 1136. 42 si humanum est maxime (quae uirtute nulla est homini magis propria); Surtz/Hexter, 162/33-34 [“se é particularmente humana (pois nenhuma virtude é mais própria ao homem do que essa)”]. 43 Ver Surtz/Hexter, 1965, 162/36; 164/9; 164/13. 44 A respeito de 152/35, Surtz/Hexter (1965) destacam a expressão uita iucunda, id est, uoluptaria [“vida alegre, ou seja, prazerosa”]: “The Utopians here begin to juggle the synonyms of uoluptas with results advantageous to their position”. Contudo, ver Cíc., De fin. 1, 67: quod quia nullo modo sine amicitia firmam et perpetuam incunditatem vitae tenere possumus (...) [“uma vez que de nenhum modo podemos, sem a amizade, manter de forma sólida e duradoura uma vida agradável (...)” e Cíc., De fin. 1, 42: (...) 265 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz mutuum subsidium (164/13-14) [“Mas, uma vez que a natureza convida os mortais à mútua colaboração para uma vida mais alegre”]. A exigência de uma uita iucunda se justifica, entre outros fatores, porque o que é bom para o outro e a ele deve ser oferecido também para si mesmo deve ser bom e passível de aprovação: neque enim quum te natura moneat uti in alios bonus sis, eadem te rursus iubet, in temet saeuum atque inclementem esse (164/8) [“Isso porque, quando a natureza te exorta a ser bom para com os outros, não te ordena, com isso, que sejas cruel e inclemente contigo mesmo”]. Esta “assistência” prestada ao outro e o cuidado consigo mesmo (aut si conciliare alijs eam, ut bonam non licet modo, sed etiam debes, cur non tibi in primis ipsi?; 164/6-8) [“ou, se a ti não apenas é lícito, como também um dever procurar obtê-la (i.e., uma vida prazerosa) para os outros, por que não também para ti mesmo, em primeiro lugar?”] são explicados pelo mandamento cristão de amor ao próximo (e a si mesmo). Por outro lado, a teoria epicurista da amizade, inserida na ética, também exerce importante papel e poderia servir como fonte de influência45, pois também Epicuro recomenda à ratio travar amizade com os outros (ratio ipsa monet amicitias comparare; Cíc., De fin. 1, 66 [“a própria razão nos adverte a granjear amizades”]), porque a amizade é parte fundamental da eudaimonia: “De tudo o que a sabedoria da felicidade fornece ao homem, a amizade é, de longe, a maior conquista” (KD 27)46. O ponto de conflito na teoria da amizade de Epicuro é, no entanto, a hipótese de que a exigência da amizade poderia significar a promoção do egoísmo na doutrina do prazer (Lustlehre)47. Grosso modo, existem a respeito do epicurismo opiniões que defendem sua posição altruísta e fatendum est summum esse bonum incude vivere [“(...) deve-se reconhecer que o sumo bem é viver agradavelmente”]. 45 Na literatura secundária quase não são encontradas referências da relação entre a “assistência” dos utopianos para os seus companheiros e a teoria epicurista da amizade. Apenas Grace faz referência a esta correspondência: “Like Epicureanism, Utopian ethies place friendship high on the listo of true pleasures (…)” (Grace, 1989, p. 279). Contudo, Grace não segue com o desenvolvimento da ideia. 46 “Von allem, was die Weisheit für die Glückselligkeit des ganzen Lebens bereitstellt, ist bei weitem das Größte die Gewinnung der Freundschaft”. Na exposição de Torquato se encontram diferentes variantes da fórmula “o amigo como você mesmo”: quod quia nullo modo sine amicitia firmam et perpetuam incunditatem vitae tenere possumus neque vero ipsam amicitiam tueri, nisi aeque amicos et nosmet ipsos diligamus, idcirco et hoc ipsum efficitur in amicitia, et amicitia cum voluptate conectitur (Cíc., De fin., 1, 67) [“E uma vez que de nenhum modo podemos, sem a amizade, manter de forma sólida e duradoura uma vida agradável, é certo, nem mesmo guardar a própria amizade a não ser que estimemos nossos amigos assim como a nós mesmos, por essa mesma razão, também isso se produz na amizade, e a amizade está atada ao prazer.”]; também relacionado ao epicurismo: quocirca eodem modo sapiens erit affectus erga amicum, quo in se ipsum (Cíc., De fin. 1, 68) [“Por causa disso, o sábio será afetado com relação ao amigo do mesmo modo que para consigo próprio”]. 47 Ver Müller: “Welcher Weg konnte von dieser radikalen Subjektivität und Egozentrik zum epikureischen Kult der Freundschaft führen (...)?” [“Qual caminho poderia guiar esta radical subjetividade e egocentrismo para o culto da amizade epicurista (...)?”], Müller, 1991, p. 113. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 266 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia outras que defendem sua posição puramente egoísta48. As fontes são contraditórias, embora a maioria dos documentos pareça pressupor uma motivação claramente utilitária: [dicit Epicurus] nullam esse societatem humanam; sibi quemque consulere; neminem esse, qui alterum diligat nisi sua causa;49 [“(diz Epicuro) que não existe a sociedade humana, qualquer que seja a que se considere, e que não existe ninguém que não estime o outro exceto em causa própria”]. Também Cícero trata do problema50: na primeira apresentação da teoria da amizade (Cíc., De fin. 1, 65-70), Torquato se refere a três diferentes opiniões matizadas da Escola que espelham esta questão, e a crítica de Cícero em De fin. 2, 78-85 retoma a mesma acusação da possível conduta egoístautilitária51. Na ética utópica, a assistência recíproca prestada aos indivíduos está relacionada à uoluptas (hominem homini... uoluptati reddere) e este cuidado se reverte de modo positivo em direção ao indivíduo (quod ipsum numquam tantum aufert commodi, quantum refert; 164/28-30 [“pois o dever nunca aufere tantas vantagens para si quanto as que oferta”], consequência que pode ser explicada por três princípios. (Os dois primeiros adotam interpretações divergentes a respeito da amizade no epicurismo): 1. A expectativa de uma futura recompensação é legítima (Nam & beneficiorum uicissitudine pensatur; 164/30) [“Pois também é compensada com o retorno dos benefícios”], aspecto que corresponde claramente à posição utilitária e egoísta. 2. É a própria consciência limpa, além da consideração pelo outro, que tem o poder de promover a uoluptas nos indivíduos (& ipsa benefacti conscientia, ac recordatio charitatis eorum & beneuolentiae quibus benefeceris, plus uoluptatis affert animo, 164/30-32) [“e a própria consciência das boas ações, a recordação da afeição e benevolência por parte daqueles a quem tiveres feito um bemconferemmais prazer ao espírito”]. Consequentemente, promove um modo bem sutil de ganho de uoluptas que se pode obter do relacionamento “amigável” entre as pessoas52. 3. Baseando-se completamente na religião, o terceiro princípio afirma a insuficiência dos anteriores: 48 Ver Müller 1991, especialmente p. 112 e p. 114. Fr. 540 Us.; exposto por Lactantius, Divinae institutiones 3, 17 e, por esta razão, acessível a Morus. 50 Ver Müller 1991, p. 113-116 e Mitsis, 1987, p. 139-144. 51 Müller, após cuidadosa análise de diferentes fontes, conclui: “(...) die Freundschaft [erscheint] im Idealbild als ein Selbstwert, jenseits aller Utilität“ [“(...) a amizade (aparece) em sua imagem ideal como um valor próprio, a par de toda utilidade”] (Müller, 1991, p. 125). Ao contrário, Mitsis considera que a contradição entre as motivações egoístas e as motivações altruístas se mantém: “We have seen the various tensions in Epicurus’ ethical thinking which force him into insconsistencies” (Mitsis, 1987, p. 153). 52 Surtz traz à questão um fragmento de Plutarco atribuído a Epicuro (1957, p. 40): ϰαίτοι Επίκουρος (...) τοῠ εὺ πάοχειν τὀ εὺ ποιείν οὺ μόνον κάλλιον άλλά ἣδιον εῖναί ϕησι (mor. 778c), que explica esta “sutil conquista de prazer” (Lustgewinn). Müller estabelece a conquista de prazer do próprio eu como sucessão da conquista de prazer do amigo, que é uma “extensão do próprio eu” [“erweiterung des eigenen Ich”], Müller, 1991, p. 114. 49 267 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz Postremo (quod facile persuadetanimo libenter assetienti religio) breuis & exiguae uoluptatis uicem, ingenti ac nunquam interituro gaudio rependit deus (166/1-3) [“Por fim (porque a religião facilmente persuade o espírito disposto a assentir), Deus recompensa com, ao invés de um breve e exíguo prazer, ingente e imperecível gáudio”]. Por estas razões, é estabelecida uma relação entre o cálculo hedonista do prazer e a esperança religiosa na recompensa divina. Para os utopianos também existe a ligação entre o amor ao próximo, especificamente a amizade, e a utilidade53, que coincide, mesmo com sutis diferenças, com o núcleo fundamental do epicurismo, mesmo que o termo amizade (ou seja, amicitia ou amicus, etc) não seja encontrado no texto. Também as justificativas quanto a isso diferem das dos epicuristas, que justificama exigência da amizade com a ratio, associada à humanitas e à natura, sendo que o termo humanitas designa uma qualidade humana, que pode ser descrita como “consideração filantrópica” e de “inclinação natural para a união entre os homens”54 e que é aqui muito bem utilizada com esse sentido. A natureza, por sua vez, leva os utopianos ad hilarioris vitae mutuum subsidium (164/13-14)55 [“à mútua colaboração para uma vida mais alegre”], visto que o homem só pode existir como membro de uma comunidade56 e, por esta razão, sente-se obrigado a obedecer ao princípio da proteção de todos os indivíduos, o que corresponde a uma vantagem para ele mesmo: eadem [i.e. natura] te nimirum iubet etiam atque etiam obseruare, ne sic tuis commodis obsecundes: ut aliorum procures incommoda (164/17-18) [“a mesma (i.e. natureza) certamente te ordena repetidas vezes observar que não cedas às tuas comodidades a ponto de provocar incômodos aos outros”]. A isto conflui o estabelecimento do “contrato social” pelos utopianos e, neste caso, misturamse conceitos estoicos com epicuristas, no que concerne à defesa estoica da vida em 53 Ver Logan: “For them, the first and most obvious fact about that nature is that man is completely selfinterested” (Logan, 1983, p. 148). 54 Storch, 1897, p. 752. Storch nos dá outras nuances de compreensão. O significado de “humanitas [no sentido] de comunhão de todos os homens (...)” [“Humanitas als (Sinn für) Gemeinschaftlichkeit aller Menschen (...)”] já havia sido utilizado por Cícero em seus escritos filosóficos, como Cíc., De fin. 3,6265; De off. 1, 50-56; Storch, 1897, p. 753; e também por Sêneca (ep. 5, 4; 95; 52). A respeito da societas generis humani no sentido estoico, ver nota 55. 55 Ver a versão epicurista: scientia (...) perspexit in hoc ipso vitae spatio amicitiae praesidium esse firmissimum (Cíc., De fin. 1, 68) [“Pois Epicuro, brilhantemente, com estas palavras, mais ou menos, diz: ‘O mesmo pensamento que deu firmeza à alma para que não temesse algum mal eterno ou duradouro, percebeu que, neste curso mesmo da vida, a mais firme fortaleza é a amizade’”]. 56 neque enim tam supra generis humani sortem quisquam est, ut solus naturae curae sit, quae uniuersus ex aequo fouet, quos eiusdem formae communione complectitur (164/14-17) [“ninguém está tão acima do destino do gênero humano que, sozinho, seja a preocupação da natureza, a qual favorece igualmente aqueles a quem abarca em comunhão da mesma forma”]. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 268 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia comunidade sem prejuízo simultâneo da lei natural57, e à exigência epicurista (na opinião da maioria dos pesquisadores)58 do contrato de direitos. Assim, a ideia da “assistência mútua”, que tem bases na natureza, é uma reminiscência estoica, ainda que para os estoicos a societas naturae (162/27-28) [“sociedade natural”] ou ainda a amicitia não tenham sido colocadas em relação com a uoluptas como para utopianos e epicuristas. Portanto, não é coincidência que em relação a essa discussão a respeito da assistência mútua sejam mencionados os contratos privados e sociais dos utopianos: Seruanda igitur censent non inita solum inter priuatos pacta, sed publicas etiam leges (164/19-21)59 [“Por conseguinte, recomendam que sejam observados não só contratos assumidos entre privados, mas também as leis públicas”]. Os últimos existem precisamente no princípio do bem comum determinado para a comunidade utópica: [publicas leges] de partiendis uitae commodis (164/22-23) [“(leis públicas) sobre a distribuição de bens vitais”], que em seguida é definido como materia uoluptatis (164/23) [“matéria dos prazeres”] e, assim, coloca a filosofia moral dos utopianos em relação direta com o seu sistema econômico. Este sistema se baseia justamente no consenso (publicas leges/communi consenso), relativamente independente da estrutura 57 Como para Aristóteles o homem é um ϐώον πολιτικόν, assim também é o homem para os estoicos. O homem é, em todas as circunstâncias, um ser que vive em comunidade: itaque natura sumus apti ad coetus, concilia civitates (Cíc., De fin. 3, 63) [“Dessa forma, somos por natureza dispostos a agrupamentos, assembléias e cidades”]; ex quo illud natura consequi, ut communem utilitatem nostrae anteponamus (Cíc., De fin. 3, 64) [“donde se segue, por natureza, que o interesse comum nós anteponhamos ao nosso”]; sic inter nos natura ad civilem communitatem coniuncti et consociati sumus (Cíc., De fin.,3, 66) [“assim, por natureza, fomos reunidos e associados para formar uma comunidade civil”]. Ver Hossenfelder, 1995, p. 66. 58 Por exemplo, Müller, 1972 e 1988; e Sprute, 1989. Contrária é a afirmação de Mitsis: “(...) Epicurus, since we know that he does not hold a contractual theory” (Mitsis, 1987, p. 141). Hossenfelder estabelece uma síntese de ambas as posições: “Nach neuerer Diferenzierung könnte man vielleicht sagen, daß Epikur, was die Geltung des Rechts betrifft, Positivist ist, was aber den Inhalt angeht, Naturrechtler” [“Segundo nova diferenciação, seria possível talvez dizer que Epicuro, no que se refere à validade do direito, é positivista, no que se refere ao conteúdo, seguidor da lei na natureza”], Hossenfeder, 1995, p. 122. Até onde posso julgar, os documentos (especialmente KD 6, 31-33; 35; 39-40 e Lucrécio, De rer. nat. 5, 1019-1027: tunc et amicitiem coeperunt iungere auentes / finitimi inter se nec laedete nec violari, [...] nec tamen omnimodis poterat concordia gigni, / sed bona magnaque pars servabat foedera caste; / aut genus humanum iam tum foret omne peremptum / nec potuisset adhuc perducere saecle propago) [Na tradução de Agostinho da Silva: “Foi também por esta altura que a amizade começou a juntar os vizinhos entre si, pelo desejo que tinham de não se prejudicar nem de usar de violência uns contra os outros [...] Não é que a concórdia pudesse nascer em todos os casos, mas uma boa e grande parte conservava fielmente os seus tratados; caso contrário, já todo o gênero humano teria desaparecido nem poderia a descendência ter-se propagado até hoje.”] estabelecem uma teoria do contrato certamente próxima à abordagem positivista do direito. 59 A menção aos contratos privados parece aqui um pouco inesperada, como também notam Surtz/Hexter (1965): “Why the emphasis on privat contracts?”. A adoção do contrato pelos utopianos talvez possa ser explicada pela relação construída entre a amizade epicurista e a teoria do contrato, se considerarmos que o terceiro grupo da escola epicurista de Torquato concebe a amicitia como contrato: Stunt autem, qui sicant foedus esse quoddam sapientium, us ne minus amicos quam se ipsos diligant (Cíc., De fin. 1, 70) [“Há, porém, quem diga haver entre os sábios um pacto: não estimar os amigos menos do que a si próprios”]. 269 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz social, dos membros da comunidade, que se declaram peças livres dentro dela: aut bonus princeps iuste promulgauit, aut populus, nec oppresus tyrannide, nec dolo circumscriptus (164/21-22)60 [“ou um bom príncipe promulgou justamente, ou o povo, nem oprimido pela tirania, nem obrigado por um engano, sancionou”], o que neste contexto corresponde a um fechamento de contrato. O problema que reside em uma doutrina dos prazeres radicalmente egoístas, a saber, provenientes do prejuízo de outrem em busca do benefício ou do prazer próprio, os utopianos solucionam, de um lado, com o conceito de contrato: se suas leis não são violadas, prevalece o uso da sabedoria de se proporcionar o benefício próprio (Hijs inoffensis legibus tuum curare commodum, prudentia est; 164/24)61 [“é inteligente cuidar do teu interesse desde que essas leis não sejam violadas”]; de outro, o conceito da pietas62, que promove o pensamento do bem estar coletivo: publicum [commodum curare] praeterea pietatis: (...) (164/25) [“além disso, é lealdade (cuidar do interesse) público”], que estabelece, deste modo, uma qualidade que está além de um pensamento egoísta do benefício próprio, quenão encontra lugar no sistema epicurista63. Além disso, recorre-se aos termos iniuria e officium, centrais em toda a filosofia ética e a filosofia de Estado. Aqui, no entanto, para justificarmais uma vez a mesma ideia (em detrimento dos interesses próprios em benefício do funcionamento da comunidade): 1. Sed alienam uoluptatem praereptum ire, dum consequare tuam: ea uero iniuria est (164/25-26) [“Mas dispor-se a roubar o prazer a outrem para alcançar o próprio, isso é certamente injustiça”]. Ver o ensinamento epicurista em Cíc., De fin. 1, 53: quae enim cupiditates a natura proficiscuntur, facile explentur sine ulla iniura [“Pois os desejos que provêm 60 Surtz/Hexter (1965) observam corretamente: “Utopus was such a legislator” (Surtz/Hexter, 1965, 164/21). 61 Ver Cíc., De off. 3, 63: (...) sapientis esse nihil contra mores, leges, instituta facientem habere rationem rei familiaris. 62 Hijs inoffensis legibus tuum curare commodum, prudentia est: publicum praeterea, pietatis. O termo pietas é de difícil tradução para línguas modernas, especialmente considerando-se o conceito antigo. G. C. Richards, na versão inglesa publicada nas Complete Works (Yale), optou por “devotion”; Aires Nascimento (Morvs, 2009, p. 333), por “solidariedade”, lembrando, em nota, que o conceito de pietas “envolve na cultura tradicional o respeito e a dedicação do homem nas suas relações para com todas as instâncias da existência – divinas, humanas, naturais”; na versão de Luiz de Andrade (Moore, 1937, p. 117), que se afasta bastante do original, o termo parece ter sido entendido como “religião”: “A religião é trabalhar pelo bem geral”; Clarence Miller (More, 2001, p. 83) optou por “pious”; Dominic Baker-Smith More, 2012, p. 81), por “a high sense of duty”. Sidney Calheiros, em sua tradução do De fin., traduz pietas por “piedade” em passagem citada adiante. (N. da R.) 63 Epicuro desenvolve a teoria do contrato (e também a teoria da amizade) com o objetivo de conquistar a tranquilidade e suprimir o medo, perturbações e danos prejudiciais. Ver Hossenfelder, 1965, p. 121: “Da man aber unter Menschen bleibt, ist es nötig sich noch auf andere Weise vor Übergriffen und Schaden zu bewahren. Dem dient im engeren Kreise die Freundschaft und im größeren die staatliche Organisation“ [“Visto que, caso se permaneça entre os homens, faz-se necessário preservar-se de usurpações e danos. A amizade está a serviço disso em um círculo pequeno, e em círculo grande está a organização estatal”]. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 270 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia da natureza são facilmente satisfeitos sem qualquer injustiça”], onde é claramente enfatizado que apenas os desejos corretos e naturais devem ser satisfeitos, e estes são identificados como aqueles que não prejudicam o próximo (...)64. 2. Um sentimento humano de responsabilidade: contra tibi aliquid ipsi demere, quod addas alijis id demum est humanitatis ac benignitatis officium (...) (164/26-28)65 [“subtrair algo de si mesmo para dá-lo aos outros, isso é tão-somente um dever da natureza humana e da gentileza”]. Toda esta discussão teve o objetivo de esclarecer que não se trata da busca ilimitada de prazeres (per fas ac nefas [“por fastos ou nefastos meios”]), mas de uma busca por prazeres “bem-medidos”, que não tem a intenção de prejudicar o próximo, que deve também participar e ser assistido: a comunidade não pode, sob nenhuma circunstância, sofrer em decorrência de interesses individuais. Os utopianos claramente reconheceram e dissolveram os conflitos de interesse entre comunidade e indivíduo tanto em sua filosofia, como em seu sistema econômico. A evidência de que a uoluptas é o mais elevado bem para a conquista da felicidade é clara: Itaque (...) censent, (...) omnes actiones nostras, atque in his uirtutes etiam ipsas, uoluptatem tandem uelut finem, felicitatemque respicere (166/3-6)66 [“Assim (...) concluem, (...) cada uma de nossas ações e,quanto a isso, mesmo as próprias virtudes, visam afinal o prazer como sendo fim e felicidade”]. 2.2. Critérios dos Verdadeiros e dos Falsos Prazeres Depois de evidenciar que a uoluptas corresponde ao summum bonum especificaremos, como é usual nas discussões filosóficas, mais detalhadamente a uoluptas, que consiste na felicitas67. Acima, foi determinado que ela deveria ser bona 64 Certamente não podemos nos esquecer de que Epicuro, em todos os âmbitos, como iustitiam, aequitatem, fidem (Cíc., De fin. 1, 52) [“Convida, pois, o raciocínio verdadeiro, os muito sensatos à justiça, à equidade e à boa-fé”], não busca nas boas ações atingir um objetivo moral, mas a imperturbação da ataraxia individual. 65 Surtz/Hexter (1965) referem-se justamente a Cíc., De off. 3, 21: Detrahere igitur alteri aliquid et hominem hominis incommodo suum commodum augere magis est contra naturam quam mors, quam paupertas, quam dolor, quam cetera, quae possunt aut corpori accidere aut rebus externis. Nam principio tollit convictum humanum et societatem. Si enim sic erimus adecti, ut propter suum quisque emolumentum spoliet aut violet alterum, disrumpi necesse est eam, quae maxime est secundum naturam, humani generis societatem. 66 Ver Cíc., De fin. 1, 41: quodsi vita doloribus referta maxime fugienda est, summum profecto malum est vivere cum dolore, cui sententiae consentaneum est ultimum esse bonorum cum voluptate vivere. [“E se a vida repleta de dores é a que mais se deve evitar, o sumo mal, com certeza, é viver com dor. É conseqüente com esse modo de pensar que o último dos bens seja viver com prazer”]. 67 Ver, por exemplo, Cíc., De fin. 1, 37: nunc autem explicabo, voluptas ipsa quae qualisque sit (...) [“Agora, porém, tornarei explícito o que em si próprio e de que tipo é o prazer (...)”]. 271 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz atque honesta, a fim de impedir de chofre qualquer busca desenfreada pelo prazer. Os utopianos determinam como prazer omnem corporis animiue motum statumque (166/78) [“todo movimento e estado do corpo ou do espírito”]. Em decorrência disso, são referidas, de modo superficialmente conciso, quatro categorias principais da uoluptas no sentido epicurista, ainda que não desenvolvidas neste momento. Em primeiro lugar, há a diferenciação entre os prazeres sensório-corporais (ἡδονὴ έντῆ οαρκί) e os prazeres anímico-espirituais (ἡδονὴ τῆϛδιανοίαϛ)68, como entre a dor/sofrimento sensóriocorporal e a anímica-espiritual. As sensações anímico-espirituais, segundo Epicuro, têm maior significado para a felicidade humana69. Em segundo lugar, há diferenciação entre “prazer em movimento” e prazer “da circunstância”, que remetem claramente, para o leitor familiarizado com a filosofia Antiga, à diferenciação entre o prazer catastemático (ἡδονὴ καταστηματική) e o prazer cinético (ἡδονὴ ἐν κινήσει)70. A diferenciação destes dois tipos de prazer aparece pela primeira vez na passagem que trata dos verdadeiros prazeres (127/7-174/29). Aqui se menciona rapidamente que as sensações devem ser naturais (natura duce; natura iucundum est; 166/9-10) [“sendo a natureza a condutora;agradável por natureza”], e que um impulso natural leva os homens a desejá- 68 Ver KD 18. Esta conclusão é tirada de Diog. Laert. 10, 137 (“Diese [i.e. Kyrenaiker] halten körperliche Schmerzen für schlimmer als seelische [...], er [i.e. Epikur] dagegen die seelischen“ [“Estes (os cirenaicos) consideram as dores corporais piores que as espirituais, ele (i.e. Epicuro), as espirituais”]) e de Cíc., De fin. 1, 56: Iam illud quidem perspicuum est, maximam animi aut voluptatem aut molestiam plus aut ad beatam aut ad miseram vitam afferre momenti quam eorum utrumuis, si aeque diu sit in corpore. [“Torna-se evidente, então, que o maior prazer ou a maior inquietação da alma tem mais peso para uma vida feliz ou infeliz do que qualquer um dentre esses dois que esteja no corpo durante um mesmo tempo”].Contudo, a relação entre as sensações corporais e espirituais parecem não ser explicadas até o final por Epicuro; ver Müller, 1991, p.71-78; Ver nota 96. Incorreta é a afirmação de Logan: “Uoluptas (...) normally means bodily pleasure [thought, to be sure, Epicurus also stressed mental pleasures]”, Logan, p. 145. Ver Cíc., De fin. 2, 13: huic verbo (i.e. uoluptatis) omnes, qui ubique sunt, qui Latine sciunt, duas res subiciunt, laetitiam in animo commotionem suavem iucunditatis in corpore [“A essa palavra, todos, venham eles de qualquer parte, que sabem falar latim fazem subjazer duas coisas, alegria na alma, doce agitação de deleite no corpo”]. 70 Ver Diog. Laert. 10, 136 (= ft. 1. Us.). Epicuro desenvolve estes termos inclinando-se para Aristóteles, Ét. a Nic.. 1154b27-28 Diog. Laert. cita Epicuro em 10, 136: “Die Seelenruhe und die Schmerzlosigkeit sing ruhige Lustempfindungen; für Freude dagegen und Fröhlichkeit ist Bewegung das charakteristische Kennzeichen” [“A tranquilidade da alma e a ausência de dor são percepções calmas de prazer. A alegria e o contentamento têm como característica o movimento”]. Torquato refere-se a esta diferenciação: Non placet autem detracte voluptate aegritudinem statim consequi, nisi in voluptatis locum dolor forte successerit, at contra gaudere nosmet omittendis doloribus, etiamsi voluptas ea, quae sensum moueat, nulla successerit (Cíc., De fin., 1, 56) [“Não pensamos, no entanto, que, subtraído o prazer, a aflição segue-se imediatamente, a não ser que em lugar do prazer suceda talvez a dor, mas, pelo contrário, que nós próprios gozamos, quando as dores são deixadas de lado, ainda que aquele prazer, que move o sentido, não suceda, e por isso pode-se entender quão grande prazer seja o não-sofrer”]; a clara determinação de ambas as significações de prazer permanece aberta em Cícero (ver Gigon/StraumeZimmermann, 1988, p. 435-436), que tratam de Cíc., De fin. 1, 56) e o incitavam a fazer grandes críticas (ver Cíc., De fin.2, 28-30). 69 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 272 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia las (appetitionem naturae; 166/971) [“tendência natural”]. Como Surtz nota devidamente, da definição daquilo que é agradável por natureza (natura incundum est, ad quod [...]) [“é agradável por natureza, conquanto que (...)”] decorrem três critérios negativos:72 1. (...) neque per iniuriam tenditur [“nem se inclina mediante injustiça”]; 2. (...) nec incundius aliud amittitur [“nem algo mais agradável é perdido”]; 3. (...) nec labor succedit (166/10-12) [“nem é seguido por sofrimento”]. O primeiro critério retoma a já aludida relação entre o indivíduo e sua contraparte, i.e., a comunidade73; os dois últimos são entendidos como a concretização do referido cálculo hedonista do prazer: hoc tantum caueret ne minor uoluptas obstet maiori, auteam persequatur quam inuicent retaliet dolor (162/2-10)74 [“por isso, ele deve cuidar para que um prazer menor não obste um maior, nem persiga um que, por sua vez, retalie com dor”]. Portanto, prazeres também são percepções sensoriais (motum statumque corporis; sensus) [“o movimento e estado do corpo; os sentidos”], a satisfaçãodestas percepções sensoriais, entretanto, só pode ocorrer dentro dos limites de três fronteiras prenunciadas pela razão: non sensus modo, sed recta quoque ratio persequitur (166/12-13) [“segue não apenas os sentidos, mas também a reta razão”]. Indiretamente, podemos concluir que apenas as uoluptates em harmonia com os três critérios são qualificadas como uerae uoluptates. Assim, a seguir são mencionadas aquelas coisas que se situam praeter naturam [“além da natureza”], portanto, exteriores aos limites definidos; sua apreciação se baseia em falsa valorização (dulcia sibi mortales uanissima conspiratione confingunt) [“que, por mui vão consenso, os mortais têm para si como doçuras”], pois na verdade não acrescentam nada à eudaimonia: ea omnia statuunt adeo nihil ad felicitatem facere75 [“estabelecem inclusive que todas essas coisas em nada contribuem para a felicidade”]. Também Epicuro classifica o “entendimento racional” dos verdadeiros valores como a 71 Surtz/Hexter (1965) referem-se a Cíc., De fin.: appetitio animi, quae όρμή Graece vocatur (De fin., 3, 23) [“a tendência da alma, que em grego se chama όρμή”]; Naturalem enim appetitionem, quam vocant όρμήν (De fin. 4, 39) [“a tendência natural, que eles chamam όρμή”]; Voluptatis alii primum appetitum putant et primam depulsionem doloris (De fin. 5, 17) [“Em direção ao prazer alguns pensam ser a primeira tendência; a primeira repulsa, da dor”]. 72 Ver Surtz, 1957, p. 36. Surtz define como o quarto critério – e único critério positivo – a uoluptas como bona atque honesta. No entanto, esta definição é menos que um quarto critério, e mais que uma síntese do entendimento dos três critérios anteriores. Todos são significativamente concretos e definem bona atque honesta. 73 Ver Surtz: “The third negative norm is social in character” (1959, p. 38; nesta afirmação, o estudioso se refere ao primeiro critério). Surtz entende que esse critério está “directed with special force againsed the masters of England and Europe: (...)” (Surtz, 1959, p. 38). 74 Surtz/Hexter (1965, 166/10) se referem ao cálculo do prazer e acrescentam que também Erasmus, no texto De contempto mundi e no diálogo Epicurus, tratou do tema. 75 Toda a passagem: 166/13-16. 273 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz mais importante virtude para conquista daeudaimonia76. Falsas classificações estão relacionadas ao falso entendimento ou, como Torquato expressa, às doenças da alma (Cíc., De fin. 1, 59; ver abaixo). Os utopianos imaginam que os falsos julgamentos, por assim dizer, “ocupariam” a alma e não deixariam mais espaço para os julgamentos corretos: quibus semel insederunt, ne ueris ac genuinis oblectamentis usquam uacet locus, totum prorsus animum falsa uoluptatis opinione praeccupant (166/17-19) [“uma vez infiltrados, não deixam lugar algum para verdadeiros e genuínos deleites, ocupam completamente todo o espírito com falsa opinião acerca do prazer”]. Segundo eles, existem muitas coisas que em sua própria natureza não promovem prazer 77 e, apenas devido a “falsas seduções” são consideradas de modo incorreto: peruersa tum improbarum cupiditatum illecebra (166/21) [“perversos encantosdos desejos ímprobos”]. De modo semelhante formula Torquato: animi autem morbi sunt eupiditates inmensae et inanes (Cíc., De fin. 1, 59) [“as doenças da alma são os desejos desmesurados e vãos”]. Ao final desta passagem, são mencionadas ainda as razões deste falso julgamento, como uma peruersa consuetudo [“hábito perverso”] ou uma doença (morbus)78 da pessoa em questão, pois o “erro” pode estar apenas no indivíduo, mais especificamente no seu julgamento, e não na natureza própria das coisas: non enim ipsius rei natura, sed ipsorum peruersa consuentudo in causa est. (...) Nec cuiusquam tamen aut morbo, aut consuentudine deprauatum iudicium, mutare naturam, ut non aliarum rerum, ita nec uoluptatis potest (172/1-2; 5-7) [“pois está em causa não a natureza da própria coisa, mas o perverso hábito deles. (...) E o juízo de alguém, pervertido por doença ou hábito, não pode mudar a natureza do prazer, nem de outras coisas”]. Este falso julgamento é ilustrado (de modo exagerado) no exemplo das mulheres grávidas, cujas papilas gustativas durante a gravidez funcionam de modo 76 Ver Diog. Laert. 10, 132 (rever nota 34) e Cíc., De fin.,1, 43: sapientia est adhibenda, quae et terroribus cupiditatibuque detractis et amnium falsarum opinionum temeritate derepta certissimam se nobis ducem praebeast ad voluptatem [“deve-se acolher a sabedoria, pois que, tendo sido subtraídos os terrores e os desejos, e tolhido o desatino das falsas opiniões, ela se nos apresenta como a mais segura condutora ao prazer”]. 77 Sunt enim perquam multa, quae quum suapte natura nihil contineant suauitatis, imo bona pars amaritudinis etiam plurimum (...) (166/19-21) [“Pois há, em abundância, muitas coisas que, por sua natureza, nada contêm de suave, mas sim, e em grande parte, muito de amargor”]. Também ao final da passagem: Haec igitur & quicquid est eiusmodi (sint enim innumera) quamquam pro uoluptatibus mortalium uulgus habeat, illi tamem quum natura nihil insit suaue (...) (170/28-30) [“Portanto, essas coisas e quaisquer semelhantes (pois são inúmeras), ainda que a massa dos mortais as tenha por prazeres, a olhos deles [os utopianos] nada de suave, por natureza, nelas reside”]. 78 Também Aristóteles considera os “defeitos” do corpo, os hábitos e as (más) inclinações naturais como possíveis causas para as inclinações não naturais. (Ver Ética a Nic. 148b15-18). No entanto, afirma em seguida (Ética a Nic. 1149a) a existência de comportamentos completamente diferentes dos adotados posteriormente pelos utopianos. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 274 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia diferente: (...) uitio fit, ut amara pro dulcibus amplectantur. Non aliter ac mulieres grauidae picem & seuum, corrupto gustu, melle mellitius arbitrantur (172/2-5) [“(...) o vício faz com que coisas amargas sejam tomadas por doces. Não diferentemente, as mulheres grávidas, por causa de seu paladar corrompido, julgam que a pez e o sebo sejam mais doces que o mel”]. O leitor instruído também se lembrará da postulação de Epicuro sobre a verdade das percepções sensoriais79 que, neste exemplo, é conduzida ad absurdum. Mesmo que Hitlodeu não relate nada concreto a respeito das reflexões dos utopianos sobre as percepções sensoriais e sua apropriação do mundo (como nos cânones de Epicuro80), é evidente o paralelo entre a premissa de uma natureza genuína das coisas (ou seja, do mundo), pela sua perceptibilidade inalterada81 e por uma falsa percepção decorrente das falhas da razão. 2.3. Falsos Prazeres Enquanto Torquato descreve as “doenças da alma” como cupidatis (...) divitiarum, gloriae, dominationis, libidinosarum etiam voluptatum (isto é, falsos desejos) (Cíc., De fin. 1, 59) [“os desejos desmesurados e vãos de riquezas, de glória, de poder, e ainda, de prazeres libidinosos”], e a isso adiciona accedunt aegritudines molestiae maerores (... ) [“Vêm acrescentar-se as aflições, as inquietações, as tristezas”] bem como acceditetiam mors (...) tum superstitio (...) (Cíc., De fin. 1, 60)82 [“Vem ainda se acrescentar a morte (...) e também a superstição”], os utopianos definem as seguintes adulterinae uoluptates (166/23) [“prazeres adulterados”]: 1. Valorização da vestimenta custosa como fonte de reputação (ver 166/26-33); 2. Orgulho por títulos e reputação, principalmente de nobreza, dentro da qual se nasce por acaso (ver 166/33168/12); 3.1. Deleite causado por pedras preciosas (verdadeiras) (ver 168/13-168/27) e 3.2. Deleite causado por artigos de ouro (que também são inúteis quando são apenas acumulados) (168/27 – 170/5); 4. Perda de tempo com atividades inúteis, como 4.1. 79 Ver Hossenfelder, 1995, p. 127. Justamente porque o texto não estabelece referência clara com o cânone epicurista, não é possível desenvolver estes aspectos. Ver, por exemplo: Diog. Laert. 10, 32-34, 46-53, Cíc., De nat. deor. 1, 43-44.; Hossenfelder, 1995, p. 124-133. 81 Assim afirma Torquato, no que se refere à evidenciação do impulso natural em busca da uoluptas: idque facere nondum depravatum ipsa natura incorrupte atque integre iudicante (Cíc., De fin. 1, 30) [“o faz enquanto ainda não foi pervertido e estando sua própria natureza a julgar de maneira não corrompida e íntegra”]. Isto implica que o juízo pode ser corrompido, o que também ocorre com os utopianos. 82 Como em Cíc., De fin. 1, 60 é mais extensamente desenvolvido, o fator decisivo de ambos os últimos é o (infundado) medo da morte, não a própria morte como também o (infundado) medo de uma penalização divina, e da não realização dos desejos (cupiditates) de glória, riquezas, etc: cum sero sentiunt frustra se aut pecuniae studuisse aut imperiis aut opibus aut gloriae (Cíc., De fin. 1, 60) [“atormentam-se quando, já tarde, percebem que em vão ao dinheiro aspiraram, ou ao poder, ou às riquezas, ou à glória”]. 80 275 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz Jogos de dado, 4.2. Caça (ver 170/5-28). Na terminologia dos antigos, estes tópicos se referem aos bens superficiais (bona externa), para os estoicos, adiaphora, e para os epicuristas, bens irrelevantes para a conquista da uoluptas no sentido de libertação das dores e das perturbações da alma. Epicuro estabelece a divisão dos desejos em duas ou três classes: 1. Diferencia os desejos em naturais e não-naturais; 2. Diferencia os bens naturais em necessários e não-necessários83. Também no sistema epicurista, as referidas adulterinae uoluptates seriam enquadradas nos desejos não-naturais. Já a justificativa utilizada pelos utopianos para a rejeição de certas características e ocupações não corresponde à justificativa das escolas da Antiguidade84. Como Surtz nota, por exemplo, os utopianos rejeitam a valorização das roupas custosas, “because honor should be paid to personal merit, not to external appearance”85. Toda a passagem é essencialmente mais forte que a anterior e está diretamente relacionada aos temas contemporâneos ao Humanismo86. Um paralelo ao pensamento epicurista consiste, no entanto, na avaliação das coisas, considerando, em primeiro lugar, a sua utilidade, como é possível apreender no trecho a respeito da vestimenta: Cur enim si uestis usum spectes, tenuioris fili lana praestet crassiori? (166/28-29)87 [“Por que, se considerarmos o uso das vestimentas, os fios de lã mais finos seriam preferíveis aos mais grossos?”]. Todos os pontos aqui mencionados reaparecem, contudo, em outros momentos do relato sobre a ilha de Utopia88 que o próprio Hitlodeu89 indica e com que demonstra que as considerações 83 Diog. Laert. 10, 127b, KD 29 e Cíc., De fin. 45-46 definem que estes não são desejos necessários e naturais, mas são “produtos da verdadeira insanidade” [“Erzeugnisse richtigen Wahnes”]. Nisto acentuam-se este (e outros) sinais de diferentes maneiras. Ver Müller, 1991, p. 83-84. 84 Todo o pensamento da ética epicurista trata, principalmente, da desvalorização de tudo o que é indisponível (“Entwertung aller Unverfügbaren”, Hossenfelder, 1965, p. 102) e da rejeição da apatia individualista e sua busca da riqueza, fama, doença (ver morbi animi em Cíc., De fin. 1, 59-60 [op. cit.]) e não comprometimento com a ataraxia. 85 Surtz, 1957, p. 44. Por exemplo, na passagem sobre a escolha dos sifograntes e dos protofilarcas: (...) quem maxime censent utilem, suffragijs occultis renunciant principem (...) (122/14-15) [“após votação secreta anunciam como príncipe, aquele que julgam útil ao máximo”]. 86 No capítulo “False Pleasures in Europe” (Surtz, 1957, p.44-60), Surtz trata deste complexo e o põe de forma clara, estabelecendo diversos paralelos com outros textos, fontes e outros escritos de Morus. Por exemplo: “Many contemporary references reveal that gambling, whether by dice or by cards, was a serious evil of the time” (Surtz, 1957, p. 56). 87 É oportuna a observação de Epicuro no sentido de que a alimentação simples gera tanto prazer quanto uma alimentação luxuosa (ver Diog. Laert. 10, 130). Os documentos a respeito do posicionamento de Epicuro (formulados pontualmente) sobre o ascetismo e o luxo não são completamente claros (ver Müller, 1991, p. 84-91), pois Epicuro parece não rejeitar fundamentalmente todo o “luxo”, embora a independência do indivíduo seja sua maior máxima (ver Hossenfelder, 1965, p. 120). Os utopianos, de qualquer modo, rejeitam completamente todas as desmedidas e excessos. Para ambos os textos, vigora a ideia de que “autossuficiência” [“Selbstgenügsamkeit (αὺτάρκεια)”] leva a “um valor ético fundamental” [“(...) einem wesenlichen ethischen Wert“] (Hossenfelder, 1965, p. 120). 88 A respeito da simplicidade da vestimenta: ver 126/2-7; o desprezo das vaidades e das joias é explícito nos distintivos dos escravos: 152/27-156/10. A respeito dos jogos (128/16-17): Aleam atque id genus MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 276 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia éticas dos utopianos encontram sua concretização na instituição de sua sociedade e da sua vida coletiva. 2.4. Verdadeiros Prazeres Diferente dos falsos prazeres, os verdadeiros prazeres são mais essencialmente orientados para a teoria epicurista. Como Epicuro, os utopianos diferenciam explicitamente as uoluptates, categoricamente, entre espirituais e corporais90. Como o leitor saberá em seguida, os utopianos dão mais valor aos prazeres espirituais (Amplectuntur ergo in primis animi uoluptates, [eas enim primas omnium principesque ducunt]; 174/29-30) [“Estimam, portanto, os prazeres do espírito em primeiro lugar (porquanto os consideram os primeiros de todos e os principais)”]. Portanto, é de se esperar que estes prazeres sejam tratados mais profundamente pelo autor. No entanto, ocorre o inverso: das 102 linhas que tratam das uerae uoluptates (127/7-178/9) [“verdadeiros prazeres”], apenas 5,5 tratam das uoluptates animi91 [“prazeres do espírito”] e reúnem: 1. intellectum [“inteligência”]; 2. dulcedinem quam uericontemplatio pepererit [“a doçura que nasce da contemplação da verdade”]; 3. suauis [...] bene actae uitae memoria [“a suave memória de uma vida bem vivida”]; 4. spes non dubia futuri boni (172/10-12) [“a esperança não duvidosa nos bens por vir”]; 5. conscientia bonae uitae [“a consciência de uma vida boa”]. O último elemento corresponde à mais elevada uoluptas para os utopianos92. Como sugerido por Surtz, os últimos três se deixam resumir no chamado exercitium uirtutum93 [“exercício das virtudes”], que corresponde à posição estoica94. Erzgräber considera que “a noção de ineptos ac perniciosos ludos ne cognoscunt quidem, (...) etc. [“não conhecem dados, nem este gênero de jogos frívolos e perniciosos, (...) ”] 89 His adnumerant eos qui gemmis ac lapillis (ut dixi) capiuntur, (...). (168/12-13) [“Entre esses, como eu disse, constam também os que se deixam levar por gemas ou pedras preciosas (...)”] 90 Voluptatum quas ueras fatentur, species diuersas faciunt. Siquidem alias animo, corpori alias tribuunt (172/7-9) [“Dentre os prazeres que eles admitem como verdadeiros, identificam espécies diversas. Alguns eles designamcomo próprios do espírito, outros, como próprios do corpo”]. 91 Um fato também notado por Surtz, mas que não parece tê-lo surpreendido muito: “(...) for in spite of the repeated emphasis laid upon these as the supreme pleasures, they merit no systematic and detailed development as do the pleasures of the body” (Surtz, 1957, p. 62). “But, in his report of the Utopian views on pleasure as the end of man, Hythloday has few words to say on the delights of the soul” (Surtz, 1957, p.63). 92 Amplectuntur ergo in primis animi uoluptates, (...) quarum potissimam partem censent ab exercitio uirtutum bonaeque uitae conscientia proficisci (174/29-32) [“Estimam, portanto, os prazeres do espírito em primeiro lugar (...), cuja parte principal pensam decorrer do exercício das virtudes e da consciência de uma vida boa”]. 93 Rever nota anterior. 94 “More (...) echoes the views of the Roman Stoics in regarding the highest mental pleasure as deriving from virtuous action rather than from philosophic contemplation (…)” (Logan, 1983, p. 180). 277 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz que também a esperança de uma futura salvação (no sentido transcendental), pertence ao momento de prazer do tipo espiritual”, é uma prova de que “nós não podemos relacionar a doutrina moral dos utopianos com uma ética absolutamente autônoma e humanista, mas com uma ética que tem bases religiosas”95, e classifica as fontes espirituais da uoluptas96 “em motivos filosófico-teorico, ético-prático e claramente religioso”97. As spes futuri boni [“esperanças nos bens por vir”] podem ser entendidas neste sentido. Entretanto, é necessário pensar que não são estabelecidas relações com uma inclinação divina, como acontece em outros pontos. Em vez disso, chama atenção a dissociação do prazer estar em uma uita bene acta [“vida bem vivida”], ou seja, uita bona [“vida boa”] no passado (3. memoria); no presente (4. conscientia) e no futuro (5. spes futuri boni), estabelecendo claro paralelo com a ética epicurista. Justamente este aspecto é levantado por Epicuro, em relação à preferência pelo prazer espiritual. Seu benefício especifico98 é resultado da extensão da percepção, que tem o objetivo de reduzir dores passadas e futuras e elevar o prazer99, como descreve Torquato em Cíc., De fin. 1, 55: nec ob eam causam non multo maiores esse et voluptates et dolores animi quam corporis, nam corpore nihil nisi praesens et quod adest sentire possumus, animo autem et praeterita et futura, ut enim aeque doleamus animo, cum corpore dolemus, fieri tamem permagna accessio potest, si aliquod aeternum et infinitum impendere malum nobis opinemur.quod idem licet transferre in voluptatem, ut ea maior sit, si nihil tale metuamus. [“nem, por causa disso, deixam de ser muito maiores os prazeres e dores da alma do que os do corpo. Pois com o corpo, nada podemos sentir senão o presente e o que está próximo, já com a alma, tanto o que passou, quanto o que virá. Pois ainda que, ao 95 Erzgräber (1980) nota “daß zu den Lustmomenten seelischer Art auch die Hoffnung auf ein zukünftiges Heil (im transzendenten Sinne) gehöre“, como uma prova “daß wir es bei der Sittenlehre der Utopier nicht mit einer absolut autonomen, humanistischen Ethik zu tun haben, sondern mit einer Ethik, die auf einer religiösen Basis ruht” (Erzgräber, 1980, p. 38). 96 Erzgräber observa aqui a presença dos seguintes componentes: “Die Quellen seelischen Wohlbefindens sind nach ihrer Auffassung der kontemplative Schau des Wahren, das Bewußtseins stets ein gutes Leben geführt zu haben, und die feste Hoffnung auf ein zukünftiges Heil” [“As fontes do bem estar espiritual são, segundo o entendimento dos utopianos, a observação contemplativa da verdade, a consciência de se ter levado uma boa vida e a esperança segura em uma savação futura”] (Erzgräber, 1980, p. 38). 97 “(...) philosophisch-theoretische, ethisch-praktische und eindeutig religiöse Motive” (Erzgräber, 1980, p. 38). 98 Ver Müller, 1991, p. 76-77. 99 Por esta razão, Hossenfelder faz a distinção entre qualidade e quantidade de percepção: “[Der] Vorzug [der geistigen Lust] besteht nicht darin, daß sie ein qualitativ höherwertiges Gefühl darstellte, sondern er ist quantitativ begründet, denn der Geist ist, anders als die Sinnlichkeit, nicht auf die unmittelbar gegenwärtigen Empfindungen eingeschränkt...“ [“A preferência (pelo prazer espiritual) não acontece devido à produção de um sentimento qualitativamente maior, mas se justifica de modo quantitativo, pois a alma não é, diferentemente da sensibilidade, limitada às sensações do presente”] (Hossenfelder, 1965, p. 109). MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 278 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia sofrermos com o corpo, igualmente sintamos dor na alma, pode, contudo, ocorrer um acréscimo muito grande, caso algum mal eterno e infinito consideremos pairar sobre nós. O que igualmente se pode transferir ao prazer: que tanto maior seja, caso não temamos nada desse tipo.”] As duas primeiras uoluptates animi referem-se à valorização que os utopianos atribuem ao conhecimento adquirido a partir dos estudos do intelecto e sobre o ganho do prazer (dulcedo) [“doçura”] que pode ser adquirido a partir deles. O conhecimento da “verdade” também é, para Epicuro, meio eficiente para conquistar a eudaimonia100. Por esta razão, os utopianos e epicuristas propõem a instrumentalização do saber 101. A ausência de maior desenvolvimento desta ideia pode ser justificada pelo frequente destaque da estima dos estudos do intelecto e da conquista de prazer (por exemplo, 128/2-12), mas o texto carece de explicações argumentativas, ao contrário daquelas a respeito dos prazeres corporais. Também as uoluptates corporis são divididas pelos utopianos em dois grupos: 1. Uma sensação agradável que flui pelos sentidos (prima sit ea, quae sensum perspicua suauitate perfundit, 172/13-14) [“primeiramente há este (prazer), que inunda os sentidos com uma nítida suavidade”]; 2. Um estado do corpo marcado pela tranquilidade e pela estabilidade (Alteram corporae uoluptatis formam, eam uolunt esse, quae in quieto, atque aequabili corporis statu consistat; 172/23-25) [“Outra forma de prazer corporal querem que seja esta, que consiste em um estado de quietude e tranquilidade docorpo”] e, em decorrência disso, chamado simplesmente de“saúde”102 (id est nimirum sua cuiusque nullo interpellata malo sanitas; 172/25-26) [“é certamente isso: a saúde de cada um por nada de ruim prejudicada”]. Em seguida, a saúde será considerada o mais elevado prazer corporal (Earum uoluptatum quas corpus suggerit palmam sanitati deferunt, 174/32-176/1) [“Dentre os prazeres que o corpo proporciona, conferem a palma à saúde”]. Podemos perceber que os utopianos constroem uma hierarquia em todos os âmbitos relevantes de sua filosofia. Como nota Logan, é encontrada uma hierarquia semelhante na Ética a Nicômaco103 de Aristóteles, que também concorda 100 Ver Diog. Laert. 10, 132 e Cíc., De fin.1, 43. Rever notas 34 e 76. Que o saber, segundo Epicuro, não seja um valor, mas esteja em função de uma vida sem medo e de uma vida livre, é conclusão tirada de KD 11 e 18, e também de GV 27. “(...) Bei der Philosophie dagegen ist die Erkenntnis unmittelbar von Freude begleitet. Denn der Genuß folgt nicht erst nach dem Lernen, sondern Lernen und Genuß gleichzeitig” [“Na filosofia, ao contrário, a descoberta é iminente à alegria. Pois o prazer não sucede o estudo, mas estudo e prazer são simultâneos”] (Müller, 1991, p. 76). 102 “This second, of course, is nothing else than physical health” (Surtz, 1957, 63). 103 “Finally, More derives from Plato and Aristotle the important idea that the various pleasures can be ranked; (…)”, Logan, 1983, p. 170; “Aristotle constructs a similar hierarchy of pleasures” (Logan, 1983, p. 172; ver Arist., Ét. a Nic. 1175b-1177a). 101 279 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz claramente com a avaliação de Epicuro na valorização maior dos prazeres espirituais. Uma hierarquização dos bens corporais precisa estar associada à classificação dos prazeres nas categorias catastemática e cinética, o que ainda será explicado. O primeiro tipo de percepção do prazer se baseia na sensibilidade sensorial especificamente na provisão de matérias elementares, como alimento e água (quod alias earum instauratione partium fit, quas insitus nobis calor exhauserit. Nam hae cibo potuque redduntur, [...] [172/14-16]) [“que muitas vezes age no revigoramento daquelas partes que o calor em nós sediado exauriu. Pois são restauradas pela comida e pela bebida (...)”] ou na eliminação de matérias igualmente elementares, como excrementos, fluidos seminais ou escamas superficiais e cutâneas ([...] alias dum egeruntur illa, quorum copia corpus exuberat. haec suggeritur, dum excrementis intestina purgamus, aut opera liberis datur, aut ullius prurigo partis frictu scalptuue lenitur, 172/16-19) [“outras vezes quando são expelidas aquelas coisas que o corpo produz em abundância, ele (o prazer) é produzido quando purgamos do intestino os excrementos, ou quando se fazem filhos, ou ainda se alivia, friccionando ou coçando, um comichão em qualquer parte”], ou ainda, no estímulo sensorial, sem que haja necessidade vital como, por exemplo, ouvir música (caeterumquae sensus nostros tamen ui quadam occulta, sed illustri motu titillet afficiatque, & in se conuertat, qualis ex musica nascitur, 172/21-23) [“porém algo que titila, afeta e atrai os nossos sentidos por uma força oculta, mas perceptível pela comoção que provoca – tal como o que brota da música”]. A fim de prevenir a ideia de que os (profanos) “prazeres” trazem mais benefícios, e sejam, portanto, melhores104, os utopianos acentuam que os verdadeiros prazeres não devem ser apenas por si só desejáveis, mas devem ser valorizados, porque beneficiam a saúde: Nam edendi, bibendique suauitatem, & quicquid eandem oblectamenti rationem habet, appetenda quidem, sed non nisi sanitatis gratia statuunt. Neque enim per se iucunda esse talia, sed quatenus aduersae ualitudini clanculum surrepenti resistunt (176/1-4) [“Pois estatuem ser mesmo desejável a delícia de comer e beber, ou algum deleite de mesmo teor, mas tão somente por motivo de saúde. Tais coisas não são por si agradáveis, mas enquanto resistem secretamente ao avanço da má 104 (…) ita hoc quoque uoluptatis genere non egere quam deliniri praestiterit, quo uoluptatis genere si quisquam se beatum putet, is necesse est fateatur, se tum demum fore felicissimum, si ea uita contigerit, quae in perpetua fame, siti, pruritu, esu, potatione, scalptu, frictuque, traducatur: quae quam non foeda solum, sed misera etiam sit, quis non uidet? (176/7-12) [“(...) assim, seria preferível não carecer desse gênero de prazeres, mas ser por ele abrandado. Se alguém se imagina feliz devido a esse gênero de prazeres, é preciso que admita que, se consideraria completamente feliz somente caso vivesse essa vida, a transcorrida em perpétua fome, sede, comichão, comendo, bebendo, se coçando e esfregando: essas coisas, quem não as vê como não só indignas, mas também deploráveis?”]. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 280 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia saúde”]. A saúde (sanitas ou ualetudo) é, para maioria dos utopistas, base para uma vida feliz (nihilo tamen secius multi eam statuunt uoluptatum maximam, omnes fere Vtopienses magnam & uelut fundamentum omnium ac basim fatentur, [...] [172/29-31]) [“muitos, entretanto, consideram-na o maior dos prazeres. Quase todos os utopianos têm-na por mais importante e como que fundamento e base de tudo”], mesmo sem a excitação de prazeres sensoriais exteriores: Haec siquidem, (...), per se ipsa delectat, etiam si nulla extrinsecus adhibita uoluptate moueatur. Quamquam enim sese minus effert, minusque offert sensui, quam tumida illa edendi bibendique libido,(...) (172/2629) [“Ela (a saúde) deleita por si mesma, ainda que o prazer não seja motivado por nada vindo de fora, mesmo queapareça menos e transpareça menos aos sentidos do que a inflamada vontade de comer e beber.”]. Aqui, um prazer da circunstância (corporeae uoluptatis formam (...), corporis statu consistat [“forma de prazer corporal (...) que consiste em um estado do corpo”]) é evidente, caracterizado pela tranquilidade (in quieto, atque aequalibi [“na quietude e tranquilidade”]) e delimitado pela indução por movimento de um prazer (sensorial) (nulla (...) uoluptate moueatur [“o prazer não seja motivado por nada”]). Ao mesmo tempo, é acentuado que um “prazer em movimento” não é necessário para a percepção do prazer circunstancial (per se ipsa delectat [“deleita por si mesma”]). Em decorrência disso, concluímos que há uma menor valorização dos prazeres sensoriais (em toda a hierarquia, estes prazeres se encontram na posição mais baixa) perante a valorização do estado de saúde do corpo e de sua necessária ligação com a “dor”105: Infimae profecto omnium hae uoluptates sunt, ut minime syncerae, neque enim unquam subeunt, nisi contrarijs coniunctae doloribus. Nempe cum edendi uoluptate copulatur esuries (...) (176/12-15) [“Esses prazeres são, sem dúvida, os mais ínfimos de todos, pois são minimamente puros, já que nunca ocorrem, a não ser na conjunção com as dores que lhes são contrárias. De fato, o prazer de comer se conjuga à fome (...)”]. Além disso, a fome termina justamente após a ingestão de alimentos, e prolonga-se por mais tempo, visto que ela começa antes ainda do prazer da ingestão de alimentos: ita longior quoque dolor est. quippe & ante uoluptatem nascitur (176/16) [“do mesmo modo, também a dor é mais duradoura, uma vez que também ela nasce antes do prazer”]. Portanto, o procedimento, por exemplo, da alimentação (como também da ingestão de bebida e recebimento de calor) envolve dois movimentos simultâneos: 1. A redução da dor, antes causada pela fome; 2. O crescimento do 105 Logan (1983, p.171-172) reconduz esta definição diretamente a Platão, Philebos 46c-d. De fato, em Philebos 46d também é desenvolvido o exemplo do comichão, utilizado também por Morus. 281 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz sentimento de prazer através da ingestão do alimento. Os utopianos comparam este procedimento à imagem da luta106: Praeterea dum uescimur, inquiunt, quid aliud quam sanitas quae labefactari coeperat, aduersus esuriem (cibo commilitone) depugnat, in qua dum paulatim inualescit, ille ipse profectus ad solitum uigorem suggerit illam, qua sic reficimur, uoluptatem (174/17-20) [“Além do mais, que é comer a não ser, dizem, o momento em que a saúde começa a enfraquecer-se, lutar contra a fome (a comida por companheira de batalha)? Enquanto paulatinamente a pessoa se fortalece e, recuperado o consueto vigor, aquele prazer, que assim restauramos, ressurge.”]. No instante da sensação de saciedade, extingue-se a dor e também a vontade de ingerir alimentos: dolor (...) nisi uoluptate una commoriente, non extinguitur. (176/16-17) [“a dor (...) não é extinta a não ser que o prazer morra com ela.”]. O estado então atingido é, contudo, definido como uoluptas, e os utopianos parecem diferenciar o prazer advindo da ingestão do alimento do prazer decorrente do estado de saúde do corpo. Esta diferenciação só pode ser entendida, se contempladas as distinções feitas na Antiguidade entre o prazer catastemático e o prazer cinético107. Portando, poderíamos identificar o prazer da ingestão de alimentos dos utopianos com o prazer cinético, que após a satisfação da fome, transforma-se em prazer catastemático108. Essa diferença só pode ser compreendida caso se tenha em mente a distinção, encontrada nos antigos, entre “prazer do estado” e “prazer em movimento”. Só seria possível dizer que o prazer da ingestão de alimentos, entre os utopianos, deve ser identificado com o prazer cinético, que após a eliminação da fome se converte em prazer catastemático. A diferenciação (não apenas devido à ausência da terminologia) não é exposta no texto de 106 Uma simbolização da luta é encontrada também em outros momentos: os utopianos conhecem apenas dois jogos, dentre eles, a luta dos vícios contra as virtudes: duos habent in usu ludos, (...). Alterum in quo collata acie cum uirtutibus uitia confligunt (128/18-21) [“praticam dois jogos, (...). O outro, no qual os vícios lutam dispondo-se em batalha contra as virtudes” ]. 107 Ver comentário de Müller a respeito do “prazer estático”epicurista: “Die physischen Grundbedürfnisse entstehen durch den Substanzverlust, den der Körper durch den natürlichen Lebensprozeß erleidet. Durch die Nahrungsaufnahme wird der durch Mangel bedingte körperliche Schmerz beseitigt und der Normalzustand wiederhergestellt. Denn dann entstehenden Status körperlicher Intaktheit nennt Epikur ‘katastematische‘ Lust, d.h. Lust des Zustands” [“As necessidades fisiológicas básicas são consequência da perda de substâncias que o corpo sofre pelo processo natural da vida. Através da ingestão de alimentos, a necessidade de um corpo é suprida, a dor é eliminada e o estado normal é reestabelecido. O então status estabelecido de intatilidade corporal é chamado por Epicuro de prazer ‘catastemático’, ou seja, prazer do estado”] (Müller 1991, p. 64-65). Naturalmente, o prazer catastemático preserva a condição do espírito, que deve ser livre de perturbações e tumulto (ver Forschner, 1993, p. 37). 108 Ver Müller, 1991, p.66. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 282 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia modo claro, mas possivelmente devido à falta de transparência já presente na origem antiga desta diferenciação109. Neste contexto, podemos entender a argumentação dos utopianos que considera o estado de saúde conquistado um prazer: Sanitas ergo quae in conflictu laetatur, eadem non gaudebit adepta uictoriam? Sed pristinum robur, quod solum toto conflictu petiuerat, tandem feliciter assecuta, protinus obstupescet? nec bona sua cognoscet atque amplexabitur? (174/20-24) [“A saúde, portanto, que se alegra com o embate, não folgaria igualmente por ter obtido a vitória? Mas a robustez, outrora único objeto de todo o embate, por fim felizmente adquirida, agora entorpecerá? Não a reconhecerá e aceitará como um bem seu?”]. Esta apologia da imagem da luta só adquire sentido, quando pensamos também no seu contra-argumento, ou seja, o fato de que o prazer só vale quando intrínseco ao “movimento”110. Esta questão é discutida pelos utopianos, como relata Hitlodeu, e a conclusão é favorável à opinião dominante já referida: Iamdudum explosum est apud eos decretum illorum, qui stabilem & tranquillam sanitatem (nam haec quoque quaestio gnauiter apud eos agitata est) ideo non habendam pro uoluptate censebant, quod praesentem non posse dicerent, nisi motu 109 Os documentos a respeito dos dois tipos diferentes de prazer não são completamente claros, as inclinações diversas propagaram o prazer catastemático da alimentação identificando-o com o prazer cinético (ver Müller, 1991, p. 66). Assim parece também definir Forschner, que define o prazer cinético como “processo da suspensão de um estado de necessidade-dolorosa, que ocorre devido ao cumprimento das necessidades referidas“ [“Prozeβ der Aufhebung eines bedürftig-schmerzhaften Zustandes begleitet und das mit der Erfüllung des entsprechenden Begehrens endet”], Forschner, 1993, p. 38. De modo semelhante define Hossenfelder: “Lust ist demnach der Übergang vom Zustand der Unlust in den der Unlustfreiheit, sie ist eine Kinesis, eine Bewegung oder Veränderung” [“Prazer é, portanto, a passagem do estado de dor para o estado de liberdade da dor, é uma cinesia, um movimento ou mudança”], Hossenfelder, 1965, p. 106. KD 18 e Cíc., De fin. 1, 38 parecem, contudo, sugerir que o prazer cinético é uma variação do prazer catastemático, e que aquele se apresenta após a ocorrência deste, e deste modo deve ser entendido. Também a representação de Lucrécio em De rer nat. 4, 615-25 não traz conclusões claras, pois trata de um caso especial (ver Müller, 1991, p. 67-69). O fato de se tratar de uma questão complicada já havia sido notado na Antiguidade. Prova disso é a crítica de Cícero in De fin. 2, 10 e 2, 75 (também referida por Rosenbaum, 1992, p. 24-25). Por esta razão, é necessário analisar como Morus desejou interpretar o problema. Obviamente permanece, contudo, a oposição entre um “prazer estático” e um “prazer cinético”. A orientação para ambas as categorias tem significado central na ética de Epicuro. 110 Logan nota que Platão, em Philebos,“several times denies the mere absence of pain can be regarded as a pleasure, on the ground that pleasure must involve motion. (32E-22B; 24C-44B; 51A; 54B-55Am; …)” (Logan, 1983, p. 169). Esta também era a opinião de Aristipo e Diógenes Laércio 2, 89: “Denn die Bedingung für beide sei Bewegung” [“Pois a condição de ambos é o movimento”]. Logan introduz a possibilidade de que as opiniões opostas dos utopianos possam se referir ao ensinamento epicurista. Contudo, esta é apenas uma suposição, pois a afirmação é apresentada como uma vaga possibilidade. (Ver Logan, 1983, p. 170; rever nota 42). Seu argumento “Cicero himself refuses to grant that freedom from pain is a pleasure” não é concreto, pois Logan reconhece que Cícero, em De fin. 2, 9-10, faz crítica ao ensinamento de Epicuro. Epicuro afirma que a liberdade da dor é o mais alto prazer possível de ser alcançado (KD 3 e Cíc., De fin. 1, 38: cum omni dolore careret, non modo voluptatem esse,verum etiam summam voluptatem), assim como Platão e a escola hedonista de Aristipo (ver Diog. Laert. v.a. 2,86b93a). 283 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz quopiam extrario sentiri. Verum contra nunc in hoc prope uniuersi conspirant, sanitatem uel in primis uoluptati esse (174/5-9). [“Há muito foi rejeitado entre eles o decreto daqueles que pensavam que uma saúde estável e tranquila (pois essa questão também foi diligentemente discutida entre eles) por essa razão não seria tida por um prazer, porque sua presença não pode, diziam, ser sentida a não ser por um movimento vindo de fora. Mas agora, na verdade, contrariamente, quase concordam por unanimidade:a saúde, de fato, é a principal causa do prazer.”] O fato de que a saúde é equivalente ao prazer baseia-se na seguinte argumentação: o contrário da saúde é a doença (morbus), inseparável da dor; dor é, por sua vez, o contrário do prazer; e, por conseguinte, a libertação da dor corresponde ao prazer e à saúde: Etenim quum in morbo, inquiunt, dolor sit, qui uoluptati inplacabilis hostis est, non aliter, ac sanitati morbus, quid ni uicissim insit sanitatis tranquillitati uoluptas? (174/9-11)111 (...) efficitur, ut quibus immota sanitas adest his uoluptas abesse non possit. (174/15-16) [“Porquanto como na doença, dizem, há dor, que é o inimigo implacável do prazer não menos que a doença o é para a saúde – por que o prazer não residiria, por sua vez, na tranquilidade da saúde? (...) resulta que àqueles a quem a saúde se apresenta imutável, o prazer não pode ausentar-se”]. A argumentação se conclui em si mesma e corresponde à máxima epicurista que identifica a libertação da dor com o prazer circunstancial112. Uma circunstância intermediária, ou seja, uma mistura de dor e prazer113, não parece estar prevista no sistema utópico ou no sistema epicurista114. Epicuro é acusado de ter definido o bem maior, precisamente a libertação da dor, de modo exclusivamente negativo115. Os utopianos parecem combater exatamente esta acusação, pois consideram absurda (id uero (...) procul a uero [174/24-25] [“isso, na verdade (...) está longe da verdade”]) a ideia que a saúde não possa ser algo diretamente sentido: Nam quod non sentiri sanitas dicta est (...) (174/24-25) [“Pois o que se diz a respeito de a saúde não ser sentida (...)”]. Em decorrência disso, há a recusa, por um lado, da afirmação de que somente pudesse ser sentido o prazer em conexão com o movimento como tal116. Por outro lado, contudo, a até então considerada 111 Ver Surtz, 1957, 67. Ver KD 3; Cíc., De fin 1, 38 (rever nota 110). 113 É específico do ensinamento epicurista, em oposição aos cirenaicos (ver Diog. Laert. 2, 90) ou Platão (ver. v.a. Philebos 46a-48c), que não existe a condição mediana (ver Müller, 1991, p. 55-56) 114 Ver Surtz, 1957, p. 66-67. 115 Como também o peripatético Hieronymus von Rhodos: cf. fr. 8 (et passim) Wehrli; ver Müller 1991, p. 56; Hossenfelder, 1995, p. 105-106; Rosenbaum, 1992, p.22. 116 Ver também Surtz, 1967, p. 66. 112 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 284 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia identificação entre saúde e libertação da dor, bem como a afirmação de que a libertação da dor significa, em si, prazer, é suspensa: Nam dolore prorsusuacare, nisi adsit sanitas, stuporem certe non uoluptatem uocant. (174/1-3)117 [“Pois ao fato de estar completamente livre de dor sem que haja saúde, eles chamam estupor, certamente não prazer.”]. A ideia de que a pura ausência da dor não pode ser equiparada ao prazer, mas corresponde a um tipo de “estado de semiconsciência”, é ponto de vista de Aristipo, segundo Diógenes Laércio: “Pois a condição para ambos é o movimento, uma condição que não se refere à ausência de dor ou à ausência de prazer, pois a ausência de dor é condição da suspensão da percepção, como ocorre no sono”118. Também para os utopianos não é a mera ausência de dor que significa o estado de completa saúde e, assim sendo, tampouco corresponde ao prazer, mas ao “estado de semiconsciência” (stupor) e, por assim dizer, negativo. Considerando a imagem do sono de Aristipo, podemos entender melhor a identificação dos utopianos entre saúde e prazer: Quis enim uigilans, inquiunt sanum esse se non sentit, nisi qui non est? quemne tantus, aut stupor, aut lethargus adstringit, ut sanitatem non iucundam sibi fateatur ac delectabilem? at delectatio quid aliud quam alio nomine uoluptas est? (174/25-29). [“Quem, acordado, perguntam, não sente que está são, a não ser quem não está? Quem, constrangido por tamanho estupor ou letargia, não admitiria para si que a saúde é prazerosa e deleitável? Por outra parte, o deleite, que outra coisa é senão um outro nome para o prazer?”] Contudo, para Epicuro, a completa libertação da dor é o mais elevado prazer e não pode ser superado na hierarquia119. Os utopianos parecem, então, desviar-se um pouco disso, embora fique indeterminado como a sanitas realmente se caracteriza em oposição à libertação da dor120. A seguinte passagem da ética sublinha a demanda ditada pela natureza das já referidas necessidades, cujas satisfações também são fornecidas aos homens pela natureza: 117 Que a saúde não se caracteriza pela ausência de dor já havia sido constatado anteriormente: id est nimirum sua cuiusque nullo interpellata malo sanitas. Haec siquidem, si nihil eam doloris oppugnet, per se ipsa delectat, (...) (172/25-27) [“isto é, cuja saúde não é prejudicada por nada de ruim, visto que ela, se nenhuma dor a ataca, deleita por si mesma, (...)”]. 118 “Denn die Bedingung für beide sei Bewegung, eine Bedingung, die weder auf die Schmerzlosigkeit noch auf die Lustlosigkeit zutreffe, denn die Schmerzlosigkeit sei ein Zustand der Empfindungslosigkeit wie im Schlafe.”(Diógenes Laércio 2, 89) . 119 Cíc., De fin.1, 38 (rever nota 110). 120 Embora a saúde tenha sido definida anteriormente como quietus atque aequabilis status corporis, não é explícita a sua pura libertação da dor. Esta falta de clareza inserida no sistema filosófico permanece. Surtz e Logan tratam intensivamente da ética epicurista e preterem este problema. 285 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz Gaudent tamen etiam his, gratique agnoscunt naturae parentis indulgentiam, quae foetus suos ad id quod necessitatis causa tam assidue faciundum erat, etiam blandissima suauitate pelliceat. (176/19-22) [“Gozam até mesmo destes (prazeres), e reconhecem com gratidão a bondade da mãe natureza, que induz seus filhos com brandíssima suavidade àquilo que, por causa da necessidade, tão assiduamente deve ser feito.”] Também Platão, n’A República (558d-559b), registra a diferenciação estabelecida por Sócrates entre os desejos necessários e os não-necessários, e destaca o apetite por alimentos fundamentais, como o pão, para a sobrevivência, como necessidade indispensável e útil. A relação entre naturalidade e necessidade se encontra em Epicuro, para quem ela é a categoria central, a partir da qual se dividem as necessidades: Genus possuit earum cupiditatum, quae essent et naturales et necessariae, alterum, quae naturales essent nec tamen necessariae, tertium, quae nec naturales nec necessariae (Cíc., De fin. 1,45). [“Que propôs um gênero de desejos que seriam naturais e necessários; outro, os que seriam naturais, mas não necessários; e um terceiro, os que não seriam nem naturais, nem necessários.”] Que a satisfação de necessidades elementares, isto é, naturais e necessárias, como alimento, água e calor, está ligada ao prazer, é, para Epicuro, uma condição fundamental121. Estes desejos elementares são descritos pelos utopianos como cotidiani morbi [“aflições do cotidiano”], que precisam ser continuamente satisfeitos, todos os dias. Se não estivessem ligados ao prazer, o comer e beber diários se tornariam uma medicina amarga que, diariamente, o homem teria que suportar. (Quanto enim in tedio uiuendum erat, si ut caeterae aegritudines quae nos infestant rarius, ita hij quoque cotidiani famis ac sitis morbi, uenenis ac pharmacis amaris essent abigendi? 176/22-24) [“Com quanto desconforto viveríamos se, assim como as doenças que mais raramente nos acometem, a fome e a sede, essas aflições de cada dia, também precisarem ser aplacadas com drogas e fármacos amargos?]. Em decorrência disso, a percepção do prazer nestas elementares 121 Surtz constrói relações entre textos exteriores à Antiguidade Clássica: “The truth that nature has surrounded man’s necessary vital functions with pleasure in order to induce him to perform them has often found expression in philosophical literature” (Surtz, 1957, p. 71). O autor, por exemplo, analisa De civitate Dei de Santo Agostinho e De voluptate de Ficino, e constata: “The similarity of the doctrine in these selections to that in the Utopia is so evident as to need no comment” (Surtz, 1957, p. 72). MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 286 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia satisfações das necessidades é justificada122; e a satisfação além da necessária é rejeitada pelos utopianos: Huiusmodi ergo uoluptates, nisi quatenus expetit necessitas, haud magni habendas putant. (176/17-19) [“Pensam que deste modo, portanto, os prazeres, a não ser caso a necessidade urja, não devem ser tidos em alta conta.”] A afirmação também pode ser entendida no sentido epicurista, pois se esforça na demarcação de sua doutrina contrariamente a outras doutrinas hedonistas: “Ao colocarmos o prazer como objetivo final, não nos referimos aos prazeres de um glutão (...). Pois a vida de prazeres não se caracteriza pelas sessões de bebidas, pelos desfiles divertidos, pelo relacionamento entre belos moços e belas moças, nem pelo gozo por peixes e outras maravilhas disponíveis num faustoso cardápio” (Diog. Laert. 10, 131-132)123. Epicuro viu satisfeito o maior prazer na supressão da dor (no caso, da fome). A respeito da saúde e dos meios para mantê-la, os utopianos consideram a beleza corporal, a força corporal e a mobilidade como presentes dados ao homem pela natureza e que são, ao mesmo tempo, agradáveis: At formam, uires, agilitatem, haec ut propria, incundaque naturae dona libenter fouent. (176/24-26) [“Mas a forma, a força, a agilidade, eles cultivam de bom grado, como sendo dons agradáveis e próprios da natureza.”] A eles acrescentam ainda os estímulos visuais, olfativos e auditivos da percepção sensorial (Quineas quoque uoluptates, quae per aures, oculos, ac nares admittuntur; 176/26-27) [“E também estes prazeres que entram pelos ouvidos, olhos e narinas”], como a beleza do meio ambiente, cheiros agradáveis ou música124. Estes elementos destacam-se portanto, em sua qualidade, das outras necessidades (baixas), pois são, por natureza, própiros somente ao ser humano (quas natura proprias ac 122 A valorização da refeição e sua consideração como prazer (mesmo que pequeno) se refere ao significado que a alimentação tem na vida social dos utopianos, que é uma cerimônia: o toque de uma trombeta os chama para comer (aeneae tubae clangore commonefacta; 140/18) [“(os sifograntes são) convocados pelo toque de uma trombeta de bronze”]; a posição ordenada à mesa e a sequência da distribuição dos alimentos segue regras rigorosas e pré-estabelecidas (ver 140/26-144/14); as refeições são ricas (lautum atque opiparum praesto apud aulam [140/25]) [“lauta e suntuosa (refeição) está à disposição no salão”]; e também é servida sobremesa (nec ullis caret secunda mensa bellarijs [144/1718]) [“nem a sobremesa carece de quaisquer guloseimas” ]. 123 “Wenn wir also die Lust als das Endziel hinstellen, so meinen wir damit nicht die Lüste der Schlemmer, (...). Denn nicht Trinkgelage mit daran sich anschlieβenden tollen Umzügen machen das lustvolle Leben aus, auch nicht der Umgang mit schönen Knaben und Weibern, auch nicht der Genuβ von Fischen und sonstigen Herrlichkeiten, die eine prunkvolle Tafel bietet (...)“. O procedimento é finalizado com uma variação do cálculo do prazer: “(...) eine nüchterne Verständigkeit, die sorgfältig den Gründen für Wählen und Meiden in jedem Falle nachgeht(...)“ [(...) uma sensatez sóbria, que segue cuidadosamente as bases da escolha e do evitamento (...)]. Diog. Laert. 10,132. Também o Sócrates platônico recusa a vontade que vai além das simples refeições; vontade submetida à educação adequada. (Ver Platão, A República 559b). 124 mundi formam pulchritudinemque (...); aut odorum (...); consonas inter se discordesque sonorum distantias internoscit (176/29-32) [“a forma e a beleza do mundo (...); e dos odores (...); distingue intervalos harmônicos e desarmônicos dos sons”]. 287 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz peculiares esse homini uoluit; 176/27-28) [“(prazeres) cuja natureza quer ser própria e peculiar ao homem”], e o caracteriza em oposição aos animais (neque enim aliud animantium genus; 176/28) [“nenhum outro gênero de seres vivos”] Os prazeres olfativos e auditivos mencionados neste capítulo aparecem em diferentes âmbitos da vida dos utopianos: durante suas refeições soa música (Nulla coena sine musica transigitur; 144/16-17) [“Nenhum jantar transcorre sem música”], e sentem-se perfumes agradáveis (odores incendunt, & unguenta spargunt, 144/18-19) [“queimam incensos e espargem perfumes”], a fim de promover o summum bonum, a uoluptas: nihilque non faciunt quod exhilarare convivas possit (144/19-20) [“e não deixam de fazer nada que possa alegrar os convivas”]. Também aqui se encontra referência ao princípio do cálculo hedonista do prazer: sunt enim hanc in partem aliquanto procliuiores, ut nullum uoluptatis genus (ex quo nihil sequatur incommodi) censeat interdictum (144/20-23) [“quanto a isso são em grande parte mais inclinados a pensar que nenhum gênero de prazer (do qual nenhum prejuízo decorra) está proibido”]. As uoluptates aqui mencionadas são bonae atque honestae, pois promovem prazer aos indivíduos, mas em nenhum momento prejudicam ao próximo, correspondendo, deste modo, à máxima epicurista. Estes prazeres sensoriais também estão presentes nas cerimônias religiosas: Thus incendunt & alia item odoramenta, ad haec cereos numerosos praeferunt (...) hijs odoribus luminibusque (...) sentiunt homines erigi (...) (234/10-15); tum laudes deo canunt, quas musicis instrumentis inserstringunt (234/3031) [“Queimam incenso e outras substâncias odoríferas, e oferecem numerosas velas (...) por meio dos odores e luzes (...) os homens sentem-se elevados (...); então cantam louvores a Deus, os quais acompanham com instrumentos musicais”]. A seguinte hierarquia dos prazeres corporais dos utopianos é estabelecida por Surtz125: 1. Saúde (sanitas) 2. Beleza (forma), força (uis), agilidade (agilis) 3. Prazeres sensoriais visuais, olfativos e auditivos 4. Ingestão de alimentos, excreção, alívio do prurido, sexualidade. Ao final desta passagem, Hitlodeu formula novamente o princípio fundamental dos utopianos: todas as referidas percepções de prazer dos indivíduos devem garantir o 125 Ver Surtz, 1957, p. 73. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 288 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia bom funcionamento da comunidade: In omnibus autem hunc habent modum ne maiorem minor impediat, neu dolorem aliquando uoluptas pariat, quod necessario sequi censent, si inhonesta sit. (176/32-35) [“Em tudo, porém, têm este limite: que o menor não impeça o maior, nem, em nenhum momento, do prazer nasça dor, a qual julgam necessariamente seguir-se, caso seja desonesto o prazer.”] Esta ideia corresponde claramente ao cálculo epicurista do prazer, que (como vimos)126 foi formulado diversas vezes na apresentação da ética utópica. Como os utopianos defendem como ética o que é orientado pela vantagem, eles consideram banais os comportamentos que se opõem aos já referidos prazeres corporais: At certe formae decus contemnere: uires deterere, agilitatem in pigritiam uertere, corpus exhaurire ieiunijs, sanitati iniuriam facere: & caetera naturae blandimenta respuere: (...) hoc uero putant esse dementissimum, (...) (176/35-178/7) [“Mas desprezar a beleza da forma, minar as forças, transformar agilidade em preguiça, exaurir o corpo com jejuns, fazer mal à saúde e rejeitar outros favores da natureza: (...) isso, pensam ser de fato muito insensato, (...)”], e “virtude vazia” (alioquin ob inanem uirtutis umbram nullius bono; 178/4-5) [“por outro lado,em vista de uma inane sombra de virtude nada é bom”], quando de tal comportamento não se possa resultar qualquer utilidade para a comunidade ou para seus membros (nisi quis haec sua commoda negligat, dum aliorum publicamue ardentius procurat; 178/2-3) [“a não ser que alguém negligencie essas suas vantagens, enquanto cuida com mais empenho dos outros ou do público”] ou esperar uma recompensa de Deus, que através de um prazer maior compense o desgosto e privação (cuius laboris uice maiorem a deo uoluptatem expectet; 178/4)127 [“em troca desses sofrimentos, espera de Deus um prazer maior”]. Isso implica que eles estariam em tal caso permitindo uma abdicação do próprio prazer 128 . Em contrapartida, todo o restante é compreendido como “crueldade 126 Ver Logan (1983): “But since the Utopians prove that officia equal utilia equal [true] pleasures, the Epicurean criteria for choosing between competing pleasures become the general principles needed for the solution of Cicero’s problems” (Logan, 1983, p. 180). Logan deseja se referir à discussão do utile e dos officia presente em De officiis de Cícero. 127 A passagem lembra fortemente a declarada rejeição dos caminhos que negam os prazeres e o início da ética: Nam uirtutem asperam, ac difficilem sequi, ac non abigere modo suauitatem uitae, sed dolorem etiam sponte perpeti, cuius nullum expectes fructum (...) id uero dementissimum ferunt. (162/10-15) [“Pois seguir a áspera e difícil virtude e não apenas abandonar a brandura da vida, mas até mesmo voluntariamente padecer de dor, da qual nenhum recompensa se possa esperar (…), isso com toda certeza consideram muita insensatez.”] 128 Ver Surtz (1957): “If the man neglects his own interests in order to look after the interests of his neighbors and his country with a view to receiving greater pleasure (uoluptas) from God in compensation for his pains, he acts reasonably – and all is well” (Surtz, 1957, p. 74). 289 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz em relação à própria pessoa” e “ingratidão para com a natureza”129. O sentimento de gratidão à natureza é de grande importância para os utopianos e se encontra também no pensamento de Epicuro130. A gratidão nasce da segura consciência de que a natureza satisfaz os anseios naturais e necessários do homem131 e, deste modo, exerce importante contribuição para conquista da eudaimonia. Todo o capítulo sobre a ética é constituído partindo-se do princípio de que o homem deve ser agradecido à natureza: (...) naturam (...): cui tanquam debere quicquam dedignetur; omnibus eius beneficijs renunciat (178/8-9)132 [“(...) aquele que não não reconhece dever algo à natureza renuncia a todos os seus benefícios”]. Naturalmente, a consideração da sanidade do corpo como um elevado bem não é apenas epicurista, mas se encontra também, por exemplo, em Platão133. Segundo Epicuro, no entanto, a integridade do corpo é um bem fundamental para a conquista da eudaimonia134, embora a sabedoria epicurista resida em, pela força do seu espírito, fazer-se tão independente de um estado corporal que as dores corporais não exerçam influência sobre seu prazer135. Os estoicos, por outro lado, valorizam exclusivamente os prazeres espirituais, considerando os interesses corporais adiáforas136. O fato de a ética dos utopianos ceder tanto espaço para discutir os interesses corporais (elementares) somente pode ser explicado por sua fundamentação em Epicuro. 129 animique & in se crudelis: & erga naturam ingratissimi (…) (178/7-8) [“e um espírito não apenas cruel para consigo mesmo como também muito ingrato para com a natureza”]. 130 Ver Fr. 469 Us.: publicado por Stobaeus, Florilegium 17, 23. 131 Ver Diog. Laert. 10, 130. 132 A ideia de que a natureza prepara tudo o que é necessário também é apresentada em outro momento: quin contra, uelut parens [i.e. natura] indulgentissima optima quaeque in propatulo posuerit, ut aerem, aquam, ac tellurem ipsam, longissime uero uana ac nihil profutura semouerit. (150/23-26) [“Por outro lado, tal como a mais indulgente e boa mãe, ela colocou à vista ar, água e a própria terra, mas afastou para muito longe as coisas vãs e em nada avantajosas.”] 133 Ver Surtz, 1957, p. 64; e em oposição, ver Logan (1983): “As for bodily pleasures, the Utopians disagree with Plato in that ‘they give the palm to health’” (Logan, 1983, p. 171). 134 Ver Diog. Laert. 10, 128: 10, 131 e a síntese de Sen., Ep. 66, 45 (rever nota 43). 135 Ver Cíc., De fin.1, 62. 136 “But the main reason for the Stoic sage’s imperturbability lies in his complete indifference to everything bodily or external (…)”, Striker, 1990, p. 101; “Daraus ergab sich, daß (…) weder (…) noch die körperlichen Güters wie Leben, Gesundheit, Kraft, usw. als echte Werte, die Glückseligkeit verschaffen, begehrt werden durften. Das wahrhaft Wertvolle war allein in der Seele zu finden (...)” [“Disso resultou que (...) nem (...) os bens corporais como vida, saúde, força, etc são reais valores que devem ser buscados para se conquistar a felicidade. O verdadeiramente valioso deve ser apenas buscado na alma”] (Hossenfelder, 1995, p. 53). “Er [der Stoiker] nimmt das Körpergeschehen zwar wahr, jedoch läßt es ihn gleichgültig, es löst keinerlei wertende Gefühle bei ihm aus” [“Ele (o estoico) toma os acontecimentos corporais como verdadeiros, mas mantém-se indiferente a estes, visto que não resultam em nenhum sentimento valioso”], Hossenfelder, 1995, p. 52. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 290 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia Hitlodeu conclui a questão ao nomear, mais uma vez, os dois principais termos da discussão ética dos utopianos: Haec est eorum de uirtute ac uoluptate sententia (178/9-11) [“Esse é o pensamento deles acerca da virtude e do prazer”]. A ética dos utopianos, com a qual a maioria dos habitantes da ilha concorda, a despeito de controvérsias (e os leitores devem compreender deste modo), é a melhor solução possível da pura razão humana (nullam inuestigari credunt humana ratione ueriorem, 178/12) [“acreditam quenada mais verdadeiro (que a religião) poderia ser alcançado pela razão humana”] – “More than any other statement, this passage furnishes the foundation for the interpretation that Utopia represents the highest form of commonwealth that can be created by the reason of the philosopher”137. Contudo, os próprios utopianos crêem abertamente na incompletude da razão humana, uma vez que agregam não somente alguns argumentos tirados da religião, conforme vimos138, como também fica explicito que “the Utopians believe in the possibility and in the actuality of divine revelation”139 ([...] sententia: qua nisi sanctius aliquid inspiret homini: caelitus immissa religio [...]178/11-12) [“(…) pensamento (deles): que nada de mais santo inspira o homem senão a religião enviada dos céus (...)”]. Neste momento é dado o mais bem marcado confronto entre uma fé carregada pela doutrina cristã da revelação e a dimensão real da filosofia140. Muitos pesquisadores afirmaram que Morus desejava mostrar, através do Estado dos utopianos, quão boa uma sociedade poderia ser se baseada na pura razão, e não no fundamento da fé cristã – boa, mas não excelente141. Nesta passagem, Hitlodeu parece se afastar, pela primeira e única vez, dos utopianos142: 137 Surtz/Hexter, 1965, 178/11-12. “As noted earlier (160/23-162/5), even philosophy borrows certain corroboratory principles from religion and in turn lends support to it”, Surtz/Hexter, 1965, 178/11-12. 139 Surtz, 1957, p. 76. 140 Ver Surtz/Hexter, 1965, 178/11-12: “The difference between a religion revealed by God and a hedonistic philosophy reached by reason is the difference between holiness and human prudence (…)”. 141 Ver Adams (1941): “(…) in Utopia every free citizen is a philosopher whose life perfectly exemplifies his conceptions that, for uncorrupted men, the good life can be only that led strictly ‘according to nature’ or ‘reason’, even if the aid of divine revelation be lacking.” (Adams, 1941, p. 50). Ver Jäckel, para quem Morus foi “um perfeito humanista cristão, que nunca estabeleceu um valor absoluto para a razão humana, apenas um valor relativo” [“ein solcher durchaus christlicher Humanist gewesen ist, für den die menschliche Vernunft nie einen absoluten, sondern immer nur einen relativen Wert darstellte; (...)”] (Jäckel, 1955, p. 99). Também para Hexter, a religião e a filosofia dos utopianos são “the best possible ones within the limits that his literary problem imposed on him” (Hexter, 1952, p. 57); “More’s reconstruction of a philosophy and a religion for his Utopians based on natural reasons, and attaining what was probably to his mind highest perfection that natural reason could reach (…)” (Hexter, 1952, p. 51). 142 “(…) at the end of the discussion (…) he [Hythlodaeus] refuses, for the only time in the Discourse, to defend the Utopians.” (Johnson, 1969, p. 92) Johnson prossegue e afirma que Hitlodeu diz falsidades: “This is patently untrue. Raphael undertook the narrative to defend, and not simply to defend but to praise, Utopian institutions.” (Johnson, 1969, p. 93). Johnson explica que esta discrepância ocorre, pois 138 291 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz qua in re rectene an secus sentiant, excutere nos, neque tempus patitur, neque necesse est. quippe qui narranda eorum instituta, non etiam tuenda suscepimus. 178/12-15) [“que, quanto a essas coisas, para examinar se pensam corretamente ou ao contrário, nem o tempo nos permite, nem é necessário. Pusemo-nos a descrever as instituições deles, não a defendê-las” ]. 2.5. Síntese Concluímos, com esta análise, que a ética dos utopianos, tanto em relação aos seus termos como às suas categorias e métodos, inspira-se no modelo da Antiguidade. Quase todos os elementos permitem que se estabeleçam claras relações (mesmo na ausência de correspondências literais) com os textos correspondentes da Antiguidade. Como princípios definidores ressaltam-se as inalduteradas ratio e natura143 humanas. Também não deve ser desconsiderado que através da assimilação de argumentos expressamente retirados do campo da religião utopiana, (como vimos), “a busca pela felicidade dos utopianos alcança uma dignidade religiosa”144 que, apesar da ausência dos fundamentos cristãos, coloca-se em completa harmonia com ele, tal como formula Bruce: “faith and reason walk hand in hand”145. Hitlodeu fala na primeira pessoa do plural (suscepimus) e deve-se estar preparado para uma “quebra da perspectiva da narração”. Então, Morus se revela o autor: “Thus, while Hythlodaeus using the ‘we’ to dissociate himself from the ethical theory of the Utopians in favor of their rationalized institutionalism, the author may be using the ‘we’ to suggest that it is here, with the Utopian means for ordering their lifes, that he wishes to begin his true defense of Utopia” (Johnson, 1969, p. 92; rever nota 10). 143 Ver Adams (1941): “The ruling ideas in this philosophy [are] the essential concepts, concerning ‘nature’ of ‘reason’, from which all important aspects of Utopian life appear to have been developed.” (Adams, 1941, p. 51). Em determinados momentos, ao utilizar a palavra natura, Adams demonstra a tentativa de especificar as perspectivas de significado desta palavra (“Several senses of ‘nature’ seem to be used” [Adams, 1941, p. 53; rever nota 22). Bruce (1996): “Utopia, it has frequently been claimed, defines itself by and through the category of reason” (Bruce, 1996, p. 267). 144 “das Glückstreben der Utopier eine religiöse Dignität erlangt“ (Erzgräber, 1980, p. 39). 145 Bruce, 1996, p. 278. Ver Erzgräber, 1980, p. 39: “Da Morus bei der Schilderung des Staates eines (weithin) heidnischen Volkes und insbesondere der utopischen Ethik nicht mit dem Begriff Gnade operieren konnte, stützte er sich auf Sätze, die sowohl mit seinem orthodoxen Glauben gegeben waren, aber auch in der antiken Philosophie (etwa bei Platon) angetroffen werden konnten” [“Como Morus não podia operar com o termo graça ao descrever o estado de um povo (inteiramente) pagão e especialmente a sua ética utópica, ele se apoiou em frases dadas por sua crença ortodoxa, e que também podem ser encontradas na filosofia antiga (por exemplo, Platão)”]. Do mesmo modo, Surtz, 1957, p. 35: “The author of Utopia borrows from religion the fundamental truths which Erasmus had used to correct Epicurus, and then the whole question of happiness and pleasure, independently of revelation and Christianity, on the basis of pure reason (…) In the final analysis, More’s Epicureanism thus becomes as noble in theory and fruitful in practice as Stoicism or Platonism. Far from being radical, subversive, and corrupting, the Utopian philosophy is revealed underneath to be conservative, beneficial, moral and salutary – a triumphant tribute to More’s powers of rhetoric”. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 292 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia Enquanto Logan evidencia a dependência de Platão e Aristóteles, e aborda as relações com o epicurismo apenas marginalmente, devemos destacar que a relação com o epicurismo é fundamentalmente mais forte. A doutrina do prazer utopiano consiste em elementos típicos do epicurismo: a valorização da integridade corporal como um bem; a “qualificação adicional” da saúde como tranquilidade e equilíbrio (quae in quieto, atque aequabili corporis statu consistat; insit sanitatis tranquillitati uoluptas, stabilem & tranquillam sanitatem146 [“que consiste em um estado de quietude e tranquilidade do corpo; o prazer reside na tranquilidade da saúde, saúde estável e tranquila”]); a diferenciação entre o prazer catastemático e o prazer cinético; a maior valorização do prazer estático147; a recusa da ideia de existência de um estado intermediário; a gratidão à natureza pelo fato de que ela garante a satisfação dos anseios necessários e naturais; a orientação pelo cálculo epicurista do prazer como medida de todas as trocas”148. Apesar de todos esses importantes consensos, um epicurismo “puro” não foi estabelecido, o que no entanto também não era de se esperar, dada a evidência atenuante no início da passagem já referida: os utopianos apenas “parecem se inclinar para este partido” (como vimos no início)149. Se os utopianos aderem a uma ética orientada pelo epicurismo, como o texto claramente revela, e mais intensamente do que em relação às outras escolas filosóficas 146 Ao lado da libertação da dor corporal, a tranquillitas animi é apresentadacomo a mais importante qualificação da eudaimonia epicurista (“Epicurus was probably the first philosopher who tried to bring tranquility into the framework of an eudaimonist theory” [Striker, 1990, p. 99]). Os utopistas confundem aqui as categorias, e afirmam que o estado de tranquilidade se refere apenas ao corpo. 147 Como Müller nota, “antigos observadores (...) teriam constatado que Epicuro tem relação ambivalente em relação ao prazer cinético. Nós observamos uma tendência clara para avaliar o prazer cinético como mera ‘excitação dos sentidos’ e oposta ao prazer catastemático, que seria uma atitude elementar da vida” [“antike Beobachter (...) konstatiert daß Epikur zur kinetischen Lust des Körpers ein ambivalentes Verhätnis hat. Wir beobachten eine ausgesprochene Tendenz, die kinetische Lust als bloßen ‘Sinnenkitzel‘ gegenüber der katastemathischen als einer elementaren Lebensgrundhaltung abzuwerten”], (Müller, 1991, p. 70). Esta “tendência” se deixa explicar pela revogação do prazer catastemático em Epicuro, que poderia estar a serviço da revogação do prazer cinético (ver Diog. Laert.10,136; e Müller, 1991, p. 70, ver nota 192) e, por esta razão, poderia ser relativizada. Rosenbaum, ao contrário, vê em Epicuro maior valorização do prazer catastemático: “Epicurus somehow subordinates kinetic pleasure to the ‘pleasure’ of natural human functioning, without disturbing needs or desires” (Rosenbaum, 1992, p. 24); “The highest good, for Epicurus, is static pleasure (...)” (Rosenbaum, 1992, p. 25). 148 Ver Logan (1983): “More is keenly aware, like Cicero and unlike Plato and Aristotle, of the potential for conflict between goods (pleasures) that are in themselves legitimated, an awareness that is reflected in the heavy emphasis he places on the importance of the Epicurean calculus as a means of determining which of competing pleasures should be chosen.” (Logan, 1983, p.180-181). 149 Aqui também se deixam reconhecer reminiscências de Cícero, referidas ao final de De nat. deor.: Haec cum essent dicta, ita discessimus, ut Velleio Cottae disputatio verior, mihi Balbi ad veritatis similitudinem videretur esse propensior (De nat. deor. 3, 95). 293 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz da Antiguidade, podemos aceitar que seria possível encontrar outros traços de epicurismo na ilha de Utopia. 3. A Ilha de Utopos – um Jardim de Epicuro? Antes do relato a respeito da ética dos utopianos, o texto já sinaliza que os utopianos têm algo em comum com os antigos epicuristas. No relato sobre suas cidades é mencionado que os utopianos, apesar de não possuírem direito de propriedade sobre suas casas e serem obrigados a deixá-las a cada dez anos (ver 120/12-13), valorizam o cuidado com os seus jardins, cujas plantas não apenas têm utilidade, mas também trazem alegria devido a sua beleza150. Não há uma única casa na cidade que não possua um jardim (ver 120/9-10), mais ainda, a área do jardim ocupa todo o quarteirão das casas (ver 120/6-9). A Utopos, o fundador da ilha, é atribuído o arranjo da cidade e também, por conseguinte, dos jardins: Nam totam hanc urbis figuram, iam inde ab initio descriptam ab ipso Vtopo ferunt. (120/23-24) [“Pois todo este traçado da cidade, contam, foi, desde o início, desenhado pelo próprio Utopos”]. Ele teria dedicado cuidados especiais ao arranjo dos jardins: eoque nullius rei, quam huiusmodi hortorum, maiorem habuisse curam uidetur isqui condidit. (120/21-23) [“com nenhuma outra coisa quanto como com estes jardins ele, que os criou, parece ter tido mais cuidado”]. Também Epicuro ficou conhecido como fundador de um jardim, que ele havia alugado junto com sua casa na cidade de Atenas. Ali se relacionava amigavelmente com seus primeiros seguidores. Sua escola ficou conhecida como κῆπος (jardim)151. O jardim está tão inseparavelmente ligado ao pensamento acerca da escola de Epicuro, que os jardins dos utopianos precisam ser entendidos como clara alusão à inclinação para o ensinamento epicurista. Não se deve chegar ao ponto de querer identificar Utopus com Epicuro, porém, é evidente que há um certo paralelismo: desde a instituição da ordem social na ilha de Utopia (que, se seguirmos a lógica da ficção, calculamos ter acontecido, segundo o calendário europeu, entre os anos de 245 e 255 a.C.152), não 150 Ver 120/13-19. Aqui também é explícita a relação entre a utilidade e o prazer: & certe non aliud quicquam temere urbe tota reperias, siue ad usum ciuium, siue ad uoluptatem commodius. (120/19-21) [“e certamente não se encontra facilmente nada mais vantajoso, em toda a cidade, seja visando à utilidade dos cidadãos, seja visando ao prazer”]., Também os jardins utopianos são, então, (como a obra Utopia) salutares et festivi [“salutares e divertidos”] (Ver o título da Utopia: De optimo(...) libellus uere aureus, nec minus salutaris quam festivus (...) [“Sobre a melhor (...) livrinho realmente de ouro, não menos salutar que divertido (...)”]). Ambas concordam com o sentido horaciano de delectare et prodesse [“deleitar e ser útil”]. 151 Ver Dorandi, 1997, p. 1126; Erler, 1997, p. 1130. 152 Pôde-se concluir, a partir de registros dos anais (ver 120/26-28), que Utopos fundoua ilha há 1170 anos. Assume-se que Hitlodeu tenha vivido entre os anos de 1505 e 1515 na ilha de Utopia, devido à data MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 294 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia ocorreu mudança fundamental em seus princípios ou estruturas153. Tudo permaneceu como estabelecido por Utopus. Também Epicuro foi honrado como “mestre”154 por seus seguidores, e suas doutrinas seguiram inalteradas por muito tempo155. Na Antiguidade, apenas os epicuristas eram caracterizados pela afeição dos seguidores da escola pela figura fundadora156. Também na Utopia, Utopus se torna figura superpoderosa. Evidência disso é o fato de ser o único morador da ilha chamado pelo nome157. Grace traça paralelos que colocam toda a sociedade da ilha de Utopia em analogia com o jardim de Epicuro: “Hythlodaeus’ utopianism is wholly consonant with Epicurean ideals. It posits a largely apolitical life of tranquility, with limited needs, and as few changes as are necessary to the conduct of the community. The Utopians are mencionada. O cálculo de Schoeck (1956) chega à bela conclusão de que o ano de formação da ilha, 244 a.C., corresponde coincidentemente ao ano de nomeação do rei espartano Agis. No entanto, esta sincronia é falsa, mesmo se a operação não tivesse como objetivo o período em que Hitlodeu se encontrasse na ilha, pois Schoeck realiza a operação a partir de 1516. No período em que o diálogo é travado, nós nos encontraríamos no ano de 1515 em Flandres. Além disso, o único argumento sustentável é o fato de que Morus escreveu o relato a respeito da ilha no ano de 1515 (ver Surtz/Hexter, 1965, p. xx-xxi). O cálculo de Schoeck e suas conclusões são, por esta razão, insustentáveis. 153 Os desenvolvimentos não englobam mudanças estruturais, mas apenas variam a ordem já existente. Deste modo, a estrutura da cidade não sofre alteração, apenas a qualidade dos materiais da sua construção (ver 120/24-122/7). Mudam as formas de designação atribuídas aos funcionários, não as suas funções (Triginta quaeque familiae magistratum sibi quotannis eligunt, quem sua prisca lingua Syphograntum uocant, recentiore phylarchum, (...); 122/9-11) [“Cada trinta famílias elegem anualmente um magistrado, que chamam, em sua antiga língua, de sifogrante, e, na língua mais recente, de filarca (..)”]; também na discussão filosófica as diferenças são limitadas (ver parte 2). 154 “Die Epikureer betrachten die Einführung neuer Elemente in die Grundstrukturen 6der Lehre des Meisters (...) als Pietätslosigkeit (...)” [“Os epicuristas consideram a introdução de novos elementos nas estruturas fundamentais do ensimaneto do mestre (...) como falta de respeito (...)”] (Dorandi, 1997, p. 1128). 155 Isto se refere à elaboração da representação de pensamentos em teoremas tão úteis como aqueles que descrevem a Kyriai Doxai: “Diesem Dogmatismus verdankt die Schule eine relative Geschlossenheit. Obwohl es auch unter Epikureern Streitfragen gegeben hat, ist doch die Lehre über die ganze Zeit ihres Bestehens im wesentlichen unverändert tradiert worden, so daß sich im Epikureismus, anders als in der Stoa, keine Epochen unterscheiden lassen” [“Este dogmatismo se deve à relativa coesãoda escola. Mesmo que também houvesse pontos de controvérsia entre os epicuristas, o ensinamento se manteve todo o tempo de sua existência fundamentalmente inalterado, de modo que os epicuristas, ao contrário dos estoicos, não se deixam diferenciar entre as épocas”] (Hossenfelder, 1995, p.101). Dorandi (1997, p. 1126-1129) aponta, ainda desenvolvimentos muito diferentes dentro da escola após a morte de Epicuro: “Von einer Einheit des Gedankenguts kann man nur zu Beginn des Epikureismus (von Epikur bis Hermachos) sprechen” [“pode-se apenas falar de unidade na filosofia no início do epicurismo (de Epicuro até Hermaco)”] (Dorandi, 1997, p. 1128). 156 Die Schulmitglieder schwören, Epikur zu gehorchen und nach seinen Vorschriften zu leben” [“Os membros da escola juram obedecer a epicuro e viver segundo seus princípios”] (Hossenfelder, 1995, p. 101); “Als geistiges Zentrum seiner Schule erfuhr E. nach seinem Tode beinahe göttliche Verehrung” [“Como centro espiritual de sua escola, E. experimenta quase veneração divina após sua morte”] (Erler, 1997, p. 1131); Celebrava-se anualmente não apenas Epicuro, mas o nascimento de seus irmãos e de seus amigos mais próximos (ver Dorandi, 1997, p. 1130); essa “supervalorização” do fundador da escola é expressa também nas exposições epicuristas de Cícero (De fin. e De nat. deor.) 157 Ver Herbrüggen, 1960, p. 21: “Es ist beachtenswert, daß der utopische Staat außer König Utopus, der zu Anfang des Berichtes einmal schemenhaft im Dunkel der Vorzeit auftaucht, keine weiteren Figuren kennt” [É importante notar que o estado utópico, com excessão do rei Utopos, que aparece ao início do relato uma vez e nebulosamente na escuridão do primórdio, não conhece outras figuras”]. 295 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz isolated from their neighbors – almost in an Epicurean garden with large – removed from influence which could foster irrational passions, and being similar mind (despite the provision for pluralistic beliefs) support each other in their spiritual journey”158. Os elementos aqui referidos (apoliptical life/ tranquility/ limited needs/ isolation) exigem especificação. É evidente a segregação utopiana do mundo externo através da estrutura insular. No entanto, não se pode falar de um isolamento rigoroso uma vez que os utopianos de modo algum vivem completamente separados do mundo à sua volta: fazem contatos de teor econômico e político regularmente com outros povos – isto é comprovado com a existência da embaixada dos anemolianos na ilha (ver 152/27156/18) – travam guerras159 e fundam colônias em terra firme (ver 136/3-22). Os utopianos são colocados a todo o tempo em contato com a influência de outras culturas e, contudo, permanecem completamente intocados. É justamente esta fronteira com os outros povos que eleva a sua consciênciade de que são uma comunidade ideal160, e os utopianos tomam todas as providências para protegerem-na do exterior. A delimitação do seu território é documentada logo ao início do relato de Hitlodeu no ato simbólico de “separação” da terra firme, e sua transformação na ilha de Utopia: Caeterum uti fertur, utique ipsa loci facies prae se fert, ea tellus olim non ambiebatur mari. Sed Vtopus cuius utpote uictoris nomen refert insula, (...) passuum milia quindecim, qua parte tellus continenti adhaesit, excindendum curauit, acmare circum terram duxit. (110/29-112/9) [“Além disso, como é referido, e a que refere por si o próprio aspecto da região, essa terra, em outros tempos, não era cincundada por mar. Mas Utopos, porquanto vencedor, cujo nome a ilha leva, (...) ordenou que aquela parte do continente à qual a terra se ligava fosse separada por quinze mil passos e levou o mar a circundá-la”]. Antes da vitória de Utopus, o país se chamava Abraxa e sua terra era rude e inculta – semelhante a um estado de bellum omnium contra omnes161 [“guerra de todos contra todos”]. 158 Grace, 1989, p. 280. A política de guerra é apresentada na seguinte passagem: 195/29-216-5. 160 Ver Bejezy, 1995, p. 21: “The separation of Utopian civilization in space is equally ineffective. The Utopians cannot escape their barbarous neighbors, since their cultural self-esteem relies upon the contrast with the uncivilized outer world”. 161 Segundo Müller (1972, p. 38), uma questão importante e muito discutida é se “os epicuristas pressupõem um bellum omnium contra omnes no sentido da teoria de Hobbes” [“die Epikureer ein bellum omnium contra omnes im Sinne der Hobbeschen Theorie voraussetzen”]. Müller segue adiante, e afirma que a “descrição de Lucrécio não dá nenhuma resposta direta a isso” [“Darstellung des Lukrez (...) darauf keine direkte Antwort”], mas conclui que “o estado anterior era pensado como um estado de violência” [“der fruhe Zustand als ein Zustand der Gewalttätigkeit gedacht war”] (Müller, 1972, p. 38). Ver Lucrécio, Rer. nat. 5, 1019-1027; rever nota 58). 159 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 296 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia Apenas com Utopus é instituída a civilização: Nam ante id temporis Abraxa dicebatur, quique rudem atque agrestem turbam ad id quo nunc caeteros prope mortales antecellit cultus, humanitatisque perduxit (112/2-5) [“– pois, antes daquele tempo, era chamada Abraxa – e que elevou a rude e agreste turba a esse grau de civilização, por meio de que sua cultura supera praticamente a todos os mortais”]. Então, os utopianos se isolam conscientemente do mundo à sua volta, constroem uma espécie de exclave, para o qual está garantido um máximo de segurança contra ataques externos por causa da configuração natural da forma de ilha e, especialmente, do porto da enseada162. Seria possível fazer uma correlação com o Epicurismo, na medida em que, para os epicuristas, a proteção do indivíduo contra prejuízos vindos de fora é considerada um bem importante163, que deve ser garantido, por um lado, pelo estabelecimento do direito positivo (as leis) e, por outro, pelos laços de amizade164. Diferente dos estóicos, que tinham o homem por “cidadão do mundo”, os epicuristas formavam um círculo elitista 162 fauces hinc uadis, inde saxis formidolosae. (...) Canales solis ipsis noti, atque ideo non temere accidit, uti exterus quisquam hunc in sinum, nisi Vtopiano duce, penetret, (...) His in diuersa translatis loca, hostium quamlibet numerosam classem facile in perniciem traherent. (110/17-26) [“Seus acessos são perigosos, ora por causa dos bancos de areia, ora dos escolhos. (...) Os canais são conhecidos apenas pelos próprios (utopianos) e por este motivo não acontece facilmente que algum estrangeiro penetre nessa baía a não ser guiado por um utopiano, (...) Esses sinais nas margens, se movidos para locais diversos, levariam ao aniquilamento de uma frota de inimigos, ainda que numerosa]. 163 Apesar do objetivo dos epicuristas, similar ao objetivo dos estoicos, ser o afastamento das perturbações da alma, a “segurança exterior” [“äussere Sicherheit”] é uma “condição essencial para possibilitar a ataraxia” [“notwendige Bedingung für die Möglichkeit der Ataraxie”] (Sprute, p. 79). “Dennoch braucht auch er [der Weise] die Gesetze, weil sie als gesellschaftliche allgemeinverbindliche Regeln seine Sicherheit garantieren” [“No entanto, ele (o sábio) precisa também de leis, pois estas, enquanto regras comuns, obrigatórias para todos, garantem sua segurança”] (Müller, 1988, p. 120). 164 “Die größtmögliche Sicherheit wird nach Epikur jedoch nicht allein durch den Schutz der Gesetze erreicht, sondern darüber hinaus durch das Leben in einem nach außen relativ abgeschlossenen Kreis von epikureischen Freunden, die, falls erforderlich, einander Beistand leisten” [“A maior segurança possível é, segundo Epicuro, não apenas garantida com a proteção das leis, mas principalmente por uma vida relativamente fechada no círculo de amigos epicuristas que, se necessário, prestam auxílio uns aos outros”] (Sprute, p. 80). A informação é tirada de KD 28 e 40: “Wer aber die Möglichkeit hat, sich Sicherheit an erster Stelle durch die Beziehungen zu seinen Nachbarn zu verschaffen, der lebt in Gemeinschaft mit ihnen in heiterster Stimmung unter der sichersten Bürgerschaft (...)”[“Aquele que tem a possibilidade de providenciar em primeiro lugar segurança do seu relacionamento com seus vizinhos, aquele vive em comunidade com estes em ambiente feliz e na mais segura cidadania (...)”]. Müller, 1988, p. 115: “Epikur hatte die Frage zu beantworten: Wie kann sich das der alten Polisbildungen beraubte Individuum so verhalten, daß ihm die Erlangung des zentralen Wettes der Eudaimnie, (...) möglich wird? In der Tat lautet die Antwort: erstens durch Einordnung in das vorhandene Gefüge von Staat und Recht, das nach epikureischer Auffassung auf der Basis des Gesellschaftsvertrags beruhte; zweitens die Gewinnung neuer, haltbarer Bindungen, fundiert in der philosophischen Lebensform der Schule, die als Freundschaft charakterisiert wird” [“Epicuro tinha de responder a seguinte questão: como é possível conquistar os principais objetivos da eudaimonia em uma formação antiga de polis na qual os indivíduos se comportam de modo depravado? De fato, esta é a resposta: primeiro, através da organização da estrutura existente de estado e direito que, segundo a visão epicurista se baseia no contrato social; em segundo, na conquista de novos e duradouros vínculos defendidos pelaforma de vida filosófica da escola e caracterizados como a amizade”]. 297 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz (“[...] we are to think of Epicurus’s garden, [...] as enclosed and exclusive”165 – os epicuristas assumiam uma “rigorosa separação entre o “interior” e o “exterior”) 166, que eles interpretavam como uma comunidade de amigos e cuja proteção eles promoviam. Os utopianos também vivem em um círculo relativamente fechado (embora a relação entre o Estado da Utopia e os Estados vizinhos não estabeleça completa analogia com o comportamento da comunidade de amigos epicuristas e a polis), e entendem-se como uma comunidade homogênea – Respublica nihil aliud quam magna quaedam familia est167 [“A república não é outra coisa a não ser uma espécie de grande família”]. Esta pode ser compreendida como uma comunidade de direito no sentido teórico contractual do direito positivo, (como vimos), como também defendia Epicuro. Os utopianos não apenas se protegem internamente, mas também da parte exterior de seu território, por meio das relações de amizade168. Os ideais da amizade, da pietas e da humanitas valem tanto internamente quanto para os povos que se misturam com eles (como no caso da formação de colônias)169 ou com os quais estabelecem aliança170. Segundo Epicuro, o direito (e deste modo, também a justiça) 171 apenas tem vigência onde foi estabelecido o contrato, e enquanto ambas as partes o mantiverem172. Os utopianos parecem representar uma ideia semelhante, pois são extremamente intransigentes e indiferentes em relação aos povos que não querem optar por suas leis: Renuentes ipsorum legibus uiuere, propellunt his finibus quos sibi ipsi describunt. Aduersus repugnantes, bello confligunt. (136/12-13) [“Os que se recusam a viver 165 Earle, 1988, p.93. Müller, 1991, p. 127. 167 O texto ao lado da nota marginal é o seguinte: Ita tota insula uelut una família est (148/2-3) [“Assim, a ilha inteira é como uma família”]. Esse elemento é importante. Por esta razão, seu registro na nota marginal. 168 Uma congruência entre o amor ao próximo utopiano e a teoria da amizade epicurista já foi construída na parte 2. A ausência do termo amicus, que desfine tipo de relação na comunidade, diferente das relações públicas, encontra sua equivalência na designação do termo familia (rever nota 166). 169 Cum uolentibus coniuncti in idem uitae institutum: eosdemque mores, facile coalescunt idque utriusque populi bono (136/8-10) [“Quando de bom grado convivem e se estabelecem em uma vida em comum, e com os mesmos costumes, facilmente tornam-se unidos, e isso é bom para ambos os povos”]. 170 Aqui se diferenciam ainda entre socii e amici: Hos Vtopiani populos, quibus qui imperent ab ipsis petuntur, appellant socios, caeteros quos beneficijs auxerunt amicos uocant. (196/12-14) [“Os utopianos chamam de aliados os povos entre os quais os que comandam são desejados por eles mesmos; aos restantes, a quem tenham favorecido com benefícios, chamam de amigos”]. Ver também 200/4-9 e 202/13. 171 Esta é a frequente interpretação atribuída a KD 32 e KD 33: “Der Gerechtigkeit kommt an sich kein Sein zu, vielmehr ist sie nur ein im gegenseitigen Verkehr in beliebigen Erdgegenden getroffenes Abkommen zur Verhütung gegenseitiger Schädigung” [“A justiça não traz para si outra existência, mas é muito mais um acordo feito em regiões da terra que preferem encontrar um contrato a fim de evitar danos mútuos ”] (ver Müller, 1988, p. 117-118; Sprute, 1989, p. 77). Diferente é a interpretação de Armstrong (1997) em sua redação “Epicurean Justice” que defende a tese de que para Epicuro haveria “justice (...) independent of law” (Armstrong, 1997, p. 324). 172 A informação pode ser encontrada em KD 31-33 e 36-38. Ver Müller, 1988, p. 116-120. 166 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 298 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia segundo as suas leis eles expulsam para longe das fronteiras que eles mesmos delimitam para si. Contra os oponentes, declaram guerra.”] A proteção concedida às partes concordantes não é de forma alguma fornecida aos indivíduos externos a essa comunidade – “Apparently the Utopians wish to maintain their cultural purity outside the borders of their island (...)”173. Com certa arrogância, que parece fazer com que se esqueçam os prezados valores da pietas e da humanitas, os utopianos diferenciam muito bem os seus concidadãos dos outros homens, potissimum quo milites externos (quos libentius quam suos ciues obijciunt discrimini) (148/31-33) [“principalmente soldados externos (preferem colocá-los em perigo, ao invés dos seus cidadãos)”], e consideram a eliminação (aos seus olhos) de homens inferiores um favor prestado à humanidade, como veio a ser expresso na passagem sobre o recrutamento dos zapoletas para o serviço bélico: Neque enim pensi quicquam habent, quam multus ex eis perdant. rati de genere humano maximam merituros gratiam se, si tota illa colluuie populi tam tetri, ac nepharij orbem terrarum purgare possent. (208/10-23)174 [“Nem são pagos, pois perdem muitos dentre eles. Acreditam serem merecedores da maior gratidão do gênero humano se puderem purgar o orbe da terra de toda essa decadência desse povo tão abominável e perverso.”] Evidente é a prioridade do benefício “de todas as uniões para alianças sociais e Estados, que, segundo a concepção epicurista, consiste essencialmente na proteção de algumas pessoas contra outras”175, ainda que ela não seja expressa de forma tão clara por utopianos e epicuristas. Além disso, o epicurista não desejaria imiscuir-se nas relações com o exterior para não ameaçar sua ataraxia176. Análoga é, entretanto, a concepção da própria comunidade (em seu espaço fechado), como círculo de amizade e conceito de salvaguarda mediante as relações de amizade, que em Epicuro estava 173 Bejecty, 1995, p. 21. A respeito da política de guerra peculiar dos utopianos há ainda muito a dizer: a interpretação abstrusa de Onckens trata do tema de maneira aprofundada (ver Onckens, 1922). 175 “(...) aller Vereinigungen zu gesellschaftlichen Verbünden und Staaten, (die) nach epikureischer Auffassung in erster Linie im Schutz der Menschen voreinander (...)” (Sprute, 1989, p. 81); “The security of the community conduces to the security of the individual” (Armstrong, 1997, p. 329). 176 KD 14: “Wenn auch die Sicherheit vor den Menschen bis zu einem gewissen Grade erreicht wird durch die Macht, andere zu vertreiben, sowie durch Benutzung der durch den Reichtum gebotenen Mittel, so erwächst doch die echteste Sicherheit daraus, daß man ein stilles und der großen Menge ausweichendes Dasein führt” [“Se a segurança em relação à humanidade atinge, em certa medida, o poder de afastamento de outros, também pelo uso dos meios de abundância disponíveis, então cresce a verdadeira segurança, que leva ao afastamento das grandes massas e à existência tranquila”]. 174 299 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz relacionada a cada indivíduo177 e que, para os utopianos, é estabelecida em uma escala muito maior. Um dos mais importantes resultados da ordem econômica utópica é que o sustento elementar da vida, isto é, o fornecimento de alimentos à população, é garantido mediante uma quantidade relativamente baixa de trabalho. Os utopianos buscam não o aumento da produção ou a obtenção de lucro, mas apenas o “necessário”, o fornecimento de alimentos com o menor custo possível de tempo para todos: (...) ut id temporis ad omnium rerum copiam quae quidem ad uitae uel necessitatem requirantur uel commoditatem non sufficiat modo, sed supersit etiam, (...) (128/31-33) [“pois este tempo, para a abundância de todas as coisas requeridas tanto pelas necessidades da vida quanto ao conforto, não apenas basta, mas também sobra, (...)”]. Também o fato de que o consumo necessário de alimentos está ligado ao prazer é muitas vezes indicado no texto: (...) facile animaduertis: quantulum temporis ad suppeditanta omnia: quae uel necessitatis ratio: uel commoditatis efflagitet (adde uoluptatis etiam quae quidem uera sit ac naturalis) abunde satis superque foret. (130/22-25) [“perceberias facilmente quão pouco tempo seria suficiente para suprir, com abundância e mais ainda, com todas as coisas que a razão, por necessidade ou conforto, vivamente solicite (acrescente-se também por prazer, desde que verdadeiro e natural).”] Mais uma vez, as categorias referidas na Ética são assinaladas: consumo de alimento como “verdadeiro” (em contraposição ao “falso”) e “natural”. Seu sistema econômico tem como primeiro objetivo assegurar o fornecimento de necessidades básicas e, em segundo lugar, poupar tempo que será, então, dedicado às atividades de elevação do espírito: quandoquidem eius reipublicae institutio hunc unum scopum in primis respicit: ut quoad per publicas necessitates licet: quam plurimum temporis ab seruitio corporis ad animi libertatem cultumque ciuibus uniuersis asseratur. In eo enim sitam vitae felicitatem putant (134/16-26) [“considerando que os princípios de sua república zelam em primeiro lugar por este único escopo: enquanto as necessidades públicas permitirem, que a maior parte do tempo seja dispensada dos serviços físicos, em proveito da liberdade e cultura do espírito, para todos os cidadãos. Julgam que nisso reside a felicidade da vida”]. O trecho 177 Poderíamos perguntar se Epicuro buscava ampliar seu círculo, visando o número máximo possível de pessoas. Müller afirma: “Ihre Illusionslosigkeit hält die Epikureer davon ab, ein Reformprogramm zu entwickeln, das darauf abzielt, für eine ganze Polis neue Normen und Regeln des Zusammenlebens zu begründen, geschweige denn eine Utopie, die eine Neuorientierung im gesamtmenschheitlichen Rahmen proklamiert” [“A sua falta de ilusão faz com que Epicuro não desenvolva um programa de reformas que tenha como objetivo fundar novas normas e regras da vida em conjunto para toda a polis, ainda mais uma utopia, que proclama uma nova orientação no quadro inteiro da humanidade”] (Müller, 1991, p. 127). MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 300 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia antecipa o que será discutido no trecho sobre a ética: para os utopianos, o objetivo mais elevado é a felicitas, que se encontra preferencialmente na edificação do espírito. Relacionando a ordem econômica dos utopianos à hierarquia de bens descrita no capítulo a respeito da ética (rever capítulo 2), o cálculo hedonista do prazer se aplica, em maior dimensão, a toda concepção do Estado: o aparato estatal dos utopianos é regido pelo conceito de propriedade comum e pelo sistema econômico a ele relacionado, base para uma vida que garante um máximo possível de tempo livre para as atividades espirituais, com um mínimo de trabalho. Surtz também observa a relação direta entre o princípio do bem comum e o ensinamento epicurista: “Communism, not private property, therefore, is the answer of the Utopians to the division of goods among their citizens – so that all might attain a maximum of pleasure and a minimum of pain during their earthly life”178. Além disso, o cidadão utópico pode viver com a certeza de que seu sustento não está ameaçado, pois é garantido pela produção e divisão regradas dos alimentos e pelo estabelecimento de estoques: At postquam satis prouisum ipsis est, (quod non antea factum censent, quam in biennium propter anni sequentis euentum prospexerint) (...) (148/3-6) [“Mas, depois de terem feito provisões suficientes para si mesmos (que não estimam feitas antes que tenham abastecido para dois anos para o caso de uma eventualidade)”]. Apenas o medo de uma futura escassez motivam no homem (como em qualquer ser vivo) a ganância e o comportamento predatório: Nam cur superuacua petiturus putetur is, qui certum habeat, nihil sibi unquam defuturum? Nempe auidum ac rapacem aut timor carendi facit, in omni animantuum genere, (...) (138/3-6) [“Pois por que se acreditaria que alguém, que tem a certeza de que nada nunca lhe faltará, iria atrás de algo de supérfluo? Em todo o gênero das criaturas vivas, sem dúvida, o que torna alguém ávido e rapaz é o receio da carestia, (...)”]. Como para os utopianos o timor carendi não é fundado em seu sistema econômico, as formas negativas de comportamento ligados a ele também são suspensas. Novamente pode ser traçado um paralelo com a filosofia epicurista, pois, segundo Epicuro, não apenas o presente deve ser considerado, mas também as expectativas para o futuro, “pois a segurança em relação ao futuro é indispensável à felicidade”179. Assim como, por exemplo, a amizade promove a garantia de futura segurança180; também a certeza de que 178 Surtz, 1957, p. 155. “denn die Sicherheit der Zukunft ist das Glück unabdingbar” (Hossenfelder, 1995, p. 113). 180 Ver Cíc., De fin. 1,67; e Müller, 1991, p. 122-123. 179 301 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz “as riquezas naturais (...) [são] limitadas e fáceis de serem alcançadas” 181 elimina o medo do não suprimento das necessidades no presente e no futuro. A organização do Estado utópico garante a satisfação das necessidades elementares, como a ingestão dos alimentos (no sentido epicurista da exigência mínima de satisfação dos desejos naturais e necessários), e deste modo elimina o medo da escassez futura. No capítulo que trata da ética, é insistentemente enfatizado que um estado de tranquilidade – certamente em relação ao corpo –, é considerado o bem mais desejável pelos utopianos. Um estado de absoluta paz de espírito, que Epicuro expressava como o termo ataraxia, não é mencionado em momento algum no texto. Características que constituem o Estado utópico são “ordem” e uniformidade182, que precisam ser preservadas constantemente. À mesa, no salão público de refeições, observa-se que as mulheres grávidas podem se levantar e deixar a comunidade no salão, sem que isto perturbe a ordem durante a refeição: Viri ad parietem, foeminae exterius collocantur, ut si quid his subiti oboriatur mali, quod uterum gerentibus interdum solet accidere, imperturbatis ordinibus exurgant, atque inde ad nutrices abeant. (140/31-142/2) [“Os homens são colocados junto à parede, as mulheres, na parte voltada para fora, para que, se acometidas por algum mal súbito, como é por vezes comum acontecer com as que se encontram grávidas, possam se levantare dirigir-se às amas sem que a ordem seja perturbada.”] Além disso, é notável que Hitlodeu discorra sobre um utopiano, tão impressionado com a nova fé (cristã), que tentou apaixonadamente impressionar seus concidadãos, e foi rigorosamente punido com o exílio. O motivo da penalização não foi o embate por causa da religião, seu crime foi tentar excitar o povo e causar agitação: Talia diu concionantem comprehendunt, ac reum non spretae religionis, sed excitati in populo tumultus agunt, peraguntque, damnatum, exilio mulctant, (...) (218/25-29)183 [“Tendo ele expressado publicamente, por muito tempo, tais opiniões, prenderam-no e julgaram-no culpado não de menosprezo da religião, mas de ter causado tumulto entre o povo; condenado, foi punido com o exílio, (...)”]. Mesmo que não possa ser feita nenhuma relação direta com o epicurismo, tumultus e turbatio surgem como estados indesejados na sociedade utópica. Para Epicuro, uma turbatio animi valia como a 181 “der naturgemäße Reichtum (...) begrenzt und leicht zu gewinnen [ist]”.KD 15. Ver também KD 21; Diog. Laert. 10,131,133; e Hossenfelder, 1995, p. 113-114. 182 Exemplo célebre é a uniformidade das vestimentas (ver 126/2-6). 183 Com efeito, Surtz/Hexter (1995) notam em 218/25-30 que “the Utopian view is curiously similar to that taken by Elizabeth and her advisers”, e referem-se à literatura que analisa o desenvolvimento da tolerância religiosa na Inglaterra. No entanto, trata-se de desenvolvimentos tardios, que podem aqui ser pensados, mas não são elementos principais. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 302 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia condição que mais intensamente ameaçava a eudaimonia, que se manifesta na procura pela ataraxia e aponia184. Segundo Grace, a tranquillitas utópica se caracteriza por sua posição apolítica. Apesar da instituição do Estado utópico e de um sistema jurídico e administrativo, os utopianos a) apresentam poucas leis (Leges habent perquam paucas. sufficiunt enim sic institutis paucissimae; 194/6-7)185 [“Têm extremamente poucas leis, já que, deste modo instituídas, bastam pouquíssimas”] e b) não deixam transparecer qualquer indício de que a ação política teria um grande papel na vida dos indivíduos, embora figuras autoritárias, como os filarcas e os sifograntes, sejam tidas em alto prestígio. Frequentemente se vislumbra a valorização do tempo destinado a estudos espirituais, isto é, a atividades científicas que ocupam alto grau na hierarquia dos bens desejáveis – essa é também a principal motivação da rigorosa divisão do trabalho na ilha. No mundo antigo, a participação dos indivíduos na política da comunidade era característica constitutiva desta, algo de que os epicuristas afastavam-se fortemente, na medida em que procuravam evitar ao máximo a atividade política. Não pela razão de serem inimigos do Estado, mas devido ao “posicionamento de Epicuro, que tinha como impossível a união entre política e ataraxia186, pois a exigência mais alta, a tranquillitas animi [“tranquilidade do espírito”], era mais fácil de ser alcançada sem um envolvimento no cotidiano. Os epicuristas sintetizavam seu afastamento de tais atividades na fórmula λάθε βιώσαϛ (fr.551 Us.). Em Atenas, eles se “escondiam” em seu jardim187 e deixavam para os outros a tarefa de proteger a comunidade estatal . O engajamento político era considerado por Epicuro “correto apenas em algumas exceções”188. Neste ponto, a situação da escola de Epicuro em relação à polis ateniense não é completamente análoga à situação dos utopianos, mas o objetivo de vida dos três 184 Na teoria epicurista, tudo o que está ligado ao termo turbatio é considerado ameaça à tranquilidade da alma: ut enim mortis metu omnis quietae vitae status perturbatur (...) (Cíc., De fin. 1, 49) [“Pois assim como, pelo medo da morte, perturba-se todo repouso de uma vida de quietude, (...)”]; <Et>quem ad modum temeritas et libido et ignavia semper animum axcruciant et semper sollicitant turbulentaeque sint, sic<improbitas si>cuius in mente consedit, hoc ipso, quod adest, turbulenta est; si vero molita quippiam est, quamvis occulte fecerit, numquam tamen id confidet fore semper occultum (Cíc., De fin.1, 50) [“E do mesmo modo que tanto a temeridade quanto o desejo frívolo e a covardia sempre torturam a alma e sempre a atormentam e são tempestuosos, da mesma forma a improbidade, se se assenta na alma de alguém, precisamente por isto, porque lá se encontra, é tempestuosa. Se, com efeito, ela maquinou algo, por mais que tenha agido às ocultas, jamais, contudo, confiará que isso ficará para sempre oculto.”] 185 Também o comentário nota isto: Leges paucae (194) [“Poucas leis”]. 186 “Epikurs Ansicht von der Unvereinbarkeit der Politik mit der Ataraxie” (Sprute, 1989, p. 86). 187 “This enclosure, exclusivity, and – what isalso implied – abstentionof its inmates from participation in the affairs of state are given apopgthegmatic expression in ‘Live hidden’” (Earle, 1988, p. 93). 188 “in Ausnahmefällen (...) für richtig gehalten” (ver Sprute, 1989, p. 86; v.a. idem; ver nota 265). 303 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz – atingir a eudaimonia – é idêntico, e este objetivo não depende do engajamento político, pois encontra realização no engajamento espiritual. Das escolas relevantes da Antiguidade, apenas os epicuristas respondiam com um “não” categórico189 à pergunta que indagava se um homem instruído na filosofia deveria se ocupar dos negócios do Estado. A questão é elemento central do Primeiro Livro da Utopia. Quando Hitlodeu é requisitado por Morus e Gil a colocar sua formação filosófica e experiência com outras culturas a serviço de um monarca, Hitlodeu se recusa (ver 54/13-58/15). A própia persona Morus190 admite que a atuação nos negócios políticos faz com que parte do sentimento pessoal de bem-estar seja perdido (ut uel cum aliquo priuatim incommodo; 56/10)191 [“Ainda que com algum incômodo na vida privada”]. No entanto, commoditas, mais especificamente commodum, é qualidade que ocupa uma posição privilegiada no sistema dos utopianos (ver Cap. 2.1), que é na medida do possível conforme ao (sistema) de Hitlodeu. Pouco antes, Gil pede que Hitlodeu ofereça seus serviços a um monarca (inquit Petrus, [...] non ut servias regibus, sed ut inseruias; 54/27-28) [“(...) disse Pieter. O que vislumbro em relação aos reis não seria servidão, mas serviço”] com a justificativa de que Hitlodeu poderia não somente favorecer a outrem, mas também beneficiar a si mesmo: eam tamen ipsam esse viam, qua non alijs modo & privatim, & publice possis conducere, sed tuam quoque ipsius conditionem reddere feliciorem. (54/30-32) [“ela é, contudo, o próprio caminho pelo qual poderias conquistar benefícios não apenas para os outros, na vida privada e na vida pública, mas também tornar tua própria condição mais feliz.”]. Porém, justamente, essa escolha não é o que Hitlodeu caracterizaria como felix, pelo contrário: Felicioremne inquit Raphaël, ea via facere, a qua abhorret animus? (54/32-56/1) [“Acaso seria mais feliz, disse Rafael, percorrer esse caminho, que meu espírito abomina?”]. Ele recusa trocar seu otium por este negotium, pois considera inútil fazê-lo dentro da realidade política da época (ver 56/19-28). Como os epicuristas, Hitlodeu realiza sua felicitas 189 Observação dos editores da revista Morus e da tradutora: os cínicos também se posicionavam contra a atuação política, e de modo ainda mais radical. 190 Desde Sylvester, a figura ficcional de Thomas Morus, que encontramos no texto, é designada como “persona Morus” para que possamos diferenciá-la claramente do autor Thomas Morus. (Ver Sylvester, 1977, p. 293; Erzgräber, 1980, p. 49; Gnüg, 1999, p. 31; Bejczy, 1995, p. 18, etc.). 191 Assim parece ter concebido o próprio Morus (ao menos parcialmente): em dezembro do ano de 1516, Morus escreve a Erasmus que sonhou ter sido eleito regente da Utopia: “For in my daydreams I have been marked out by my Utopiens to be their king forever; (...) I was going to continue with this fascinating vision, but the rising Dawn has shattered my dream – poor me! – and shaken me off my throne and summons me back to the drudgery of the courts” (in Rogers, 1961, p. 85). MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 304 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia pessoal em uma vida livre dos negotia192, pelo menos na Europa de seu tempo. No entanto, caracterizar Hitlodeu como seguidor do epicurismo seria desmedido. Além disso, Hitlodeu destaca, ao tratar da ética dos utopianos, que na ilha de Utopia encontrase o Estado mais feliz: nusquam neque praestantiorem populum, neque feliciorem esse rempublicam (178/16-18) [“em nenhum lugar há povo mais excelente, nem república mais feliz”], o que permite compreender que, aos olhos de Hitlodeu, em Utopia, a eudaimonia concretizou-se. Ao término de seu relato sobre a ilha de Utopia, segue a definição da melhor vida possível, que claramente representa o entendimento epicurista do beate uiuere [“viver feliz”]: Nam quid ditius esse potest, quam adempta prorsus omni solicitudine, laeto ac tranquilo animo uiuere? (238/11-12) [“Pois o que pode ser mais precioso que, subtraídos completamente todas as preocupações, viver com o espírito alegre e tranquilo?]. Ao final, Hitlodeu menciona novamente a segurança social193, base para a tranquillitas animi [“tranquilidade de espírito”], que assim é garantida no Estado utópico. Mesmo que, segundo Epicuro, a segurança social seja um entre outros aspectos da eudaimonia194, Hitlodeu e os utopianos concordam evidentemente com a exigência de uma vida minime anxiam, ac maxime laetam e laeto ac tranquilo animo, como Cícero prova ser também exigência de Epicuro: (...) ut omnes bene sanos in viam placatae, tranquillae, quietae, beatae vitae deduceret? (Cíc., De fin. 1, 71) [“(...) que todos os sensatos trouxesse para o caminho plácido, tranquilo,quieto da vida feliz?” ]; [iustitia], quae non modo numquam nocet cuiquam, sed contra semper afficit cum vi sua atque natura, quod tranquillitas animos, tum (...) (Cíc., De fin. 1, 50) [“(justiça) a qual não apenas nunca causa dano a ninguém, mas, pelo contrário, sempre, por sua força e natureza própria, proporciona algo que tranquiliza as almas, (...)”]. No Estado da Utopia Hitlodeu vê concretizar o ideal de uma vida feliz. Por esta razão, 192 Cícero traduz o termo negotia pelo termo grego πράγματα, que Epicuro em KD 1 define como prejudicial à eudaimonia divina: τὀ μακάριον καὶ ᾂϕθαρτον οὒτε αὐτὀ πράγματα ἒχει οὒτε ᾶλλῳ παρἑχει ὣστε οὒτε ὀργαῖς οὒτε χάρισι συνἑχεται ἑν άσθενεῖ γἀρ πᾶν τὀ τοιοὒτν (KD 1); (…) vere exposita illa sententia est ab Epicuro, quod beatum aeternumque sit, id nec habere ipsum negotii quicquam nec exhibere alteri (…) (Cíc., De nat. deor. 1, 45). [“(...) foi verdadeiramente exposta por Epicuro aquela famosa ideia: aquilo que é feliz e eterno não tem ele mesmo nenhuma preocupação, nem a causa a outro (...)”] 193 non de suo uictu trepidum, non uxoris querula flagitatione uexatum, non paupertatem filio metuentem, non de filiae dote anxium, sed de suo, suorumque omnium, uxoris, filiorum, nepotum, pronepotum, abnepotum, & quam longam posterorum seriem suorum, generosi praesumunt, uictu esse, ac felicitate securum. (238/12-17) [“Não ser preocupado com seu sustento, não ser aborrecido pelas importunas reclamações da esposa, não temer a pobreza para seu filho, não ficar ansioso com o dote da filha, mas seguro quanto ao sustento e à felicidade seus e de todos os seus – das esposas, dos filhos, dos netos, bisnetos, trinetos e toda a lon ga série de seus descendentes, que serão, presume-se, pessoas bem nascidas.”] 194 As fontes sobre epicurismo tratam amplamente da supressão da sensibilidade corporal para dor, assim como da supressão do medo da morte e da não intervenção divina. 305 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz Grace pôde julgar que “Hythlodaeuus’ upianism is wholly consonant with Epicurean ideals”. 4. Antiepicuristas Apesar dos diversos paralelos traçados até aqui entre a Utopia e o epicurismo, há na sociedade utópica alguns momentos que não apenas não se relacionam ao ensinamento epicurista, como são claramente contrários a este. Tais elementos se referem primeiramente aos fundamentos religiosos dos utopianos referidos no capítulo sobre a ética. Utopos, que permitiu algumas liberdades na construção da religião utópica também estabeleceu três fundamentos: 1. A imortalidade da alma; 2. A providência divina; 3. A avaliação dos atos terrenos de cada indivíduo pela recompensa ou punição após a morte. Aquele que recusa estes três importantes princípios não pode ser considerado um homem ou um cidadão na Utopia. Nisi quod sancte ac seuere uetuit [i.e. Vtopus], ne quis usque adeo ab humanae naturae dignitate degeneret, ut animas quoque interire cumcorpore, aut mundum temere ferri, sublata prouidentia putet. atque ideo post hanc uitam supplicia uitijs decreta, uirtuti praemia constituta credunt. contra sentientem, ne in hominum quidem ducunt numero, ut qui sublimem animae suae naturam, ad pecuini corpusculi utilitatem deiecerit, tantum abest ut inter ciues ponant (...) (220/21-28). [“A não ser o que santa eseveramente ele (Utopos) proíbe, para que ninguém degenerare tanto em dignidade da natureza humana a ponto de acreditar que a alma pereça junto com o corpo, e que o mundo tenha surgido acidentalmente, tendo sido removida a divina providência. E por isso, após esta vida, creem que aos vícios se decretem castigos e às virtudes sejam atribuídas recompensas. Quem pensa ao contrário, de sorte que rebaixa a natureza sublime de sua alma à vileza dos corpúsculos dos animais, nem mesmo o contam entre os homens. Está longe de que o ponham entre os cidadãos (...)”] Por esta razão, todos os utopianos, apesar de diferenças em determinadas particularidades de sua prática religiosa, a) possuem uma concepção de fé monoteísta e b) acreditam em que o poder divino criou o mundo e segue guiando e os destinos: Quin caeteris quoque omnibus, quamquam diuersa credentibus, hoc tamen cum istis conuenit, quod esse quidem unum censent summum, cui & uniuersitatis opificium, &prouidentia debeatur, (...) (216/17-20) [“Quanto ao restante, todos, ainda que de credos diversos, também concordam com isso, porque estimam haver de fato um ser supremo, a quem é devida a criação do mundo e a providência”]. Surtz observa com razão que os utopianos, assim como Epicuro, para cuja ética eles se orientam em outros MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 306 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia casos, só poderiam podem punir com o desprezo195. Que a percepção espititual se extingue com a morte e que os deuses não intervêm nos acontecimentos temporais são condições prévias do ensinamento epicurista196. De ambos resulta a impossibilidade de punição ou recompensa após a morte. Para Epicuro, estes pressupostos básicos estão a serviço da luta contra o medo, como também contra uma sensação dolorosa da morte e de uma punição pelos deuses. O medo é, no sistema epicurista, uma das três fontes (ao lado dos desejos irrealizáveis e da dor) do “desprazer”197 e, portanto, um dos mais importantes sentimentos negativos que deve ser domado para que não ameace a tranquilidade da alma. Para os utopianos, contudo, é exatamente o medo de uma punição, não apenas temporal, mas também de uma força divina198, que deve garantir o bom funcionamento da comunidade: (...) quorum instituta, moresque (si per metum liceat) omnes, floccifacturus sit. Cui enim dubium esse potest, quin is publicas patriae leges, aut arte clam eludere, aut ui nitatur infringere, dum suae priuatim cupiditati seruiat, cui nullus ultra leges metus, nihil ultra corpus spei superest amplius. (220/28-222/3). [“todas as leis e costumes deles, caso se avalie pelo medo [que poderiam provocar], seriam consideradas sem importância. Quem poderia duvidar que alguém fraudaria às escondidas, por artifícios, as leis públicas da pátria ou, pela força, procuraria infringilas, conquanto que atendesse aos seus desejos particulares, alguém que não teme nada além das leis, a quem nenhuma esperança maior resta além do corpo?”] Este aspecto, que seria inconcebível no capítulo sobre a ética, apresenta-se aqui com o significado elementar da lealdade predominante dos utopianos às suas leis. Glaser afirma: “a ordem social na ilha de Utopia baseia-se portanto menos no juízo que no medo da penalização pelo ser supremo”199 – um argumento incompatível com o de Schulte Herbruggen, que observa que os utopianos “[obedecem] às normas do Estado devido à vontade interior e, por esta razão, não se faz necessária uma autoridade exterior que os obrigue a isto”200. Surtz/Hexter buscam uma síntese do ser maior e da autoridade 195 Ver Surtz, 1957, p. 26. Ver KD 2, Diog. Laert. 10,124; KD 1; Cíc., De nat. deor. 1, 45. 197 Ver Hossenfelder, 1995, p. 111 e p.114-116. 198 Para os epicuristas, seguir rigorosamente as leis é resultado do medo da punição pelo poder estatal (ver Sprute, 1989, p. 85). Isso se deixa concluir do discurso de Torquato, quando este trata do comportamento desordeiro (isto é, de um comportamento contrário à lei vigente) hoc ipso, quod adest, turbulenta est (Cic De fin.1,50). A respeito, ver Armstrong, 1997, p. 330: “The Epicurean wants no part of this troubled life, and so neither commits injustice nor hatches plots to commit it”. 199 “Die gesellschaftliche Ordnung auf der Insel Utopia beruht also weniger auf Einsicht denn auf der Furcht vor Strafe durch das höchste Wesen” (Glaser, 1996, p. 47). 200 “(...) von innen her die Normen des Staates [erfüllen], der sie ihnen deshalb nicht mit äußere Gewalt aufzwingen muß” (Herbrüggen, 1960, p. 26). 196 307 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz maior: “The Utopians evidently believe in a natural connection between religious faith and public morality”201. Como é possível que aquele filósofo, cujo ensinamento pode ter sido colocado como base em muitas áreas da vida utópica, fosse considerado na própria ilha como desumano? Esta contradição pode ser facilmente enfraquecida quando pensamos que os utopianos de forma alguma se orientavam por uma pessoa chamada Epicuro, a respeito do qual nada sabiam antes da chegada de Hitlodeu202, e que todas as suas concepções filosóficas são genuinamente utópicas. E chegamos mais uma vez à ambiguidade utópica: a filosofia e a religião dos utopianos são 1. Utópicas, como adjetivo do Estado da Utopia; 2. Utópicas, no sentido de exteriores à realidade. O mesmo pode ser atribuído à extinção da propriedade privada, princípio fundamental para o sistema econômico utópico. Sabe-se que Epicuro não era defensor da propriedade comum, apesar de que a concepção da sua escola filosófica e do culto à amizade o poderia supor: “E Epicuro, disse ele, não queria saber nada a respeito da união entre os bens individuais e o bem coletivo, como exigia Pitágoras com seu mote ‘os bens do amigo são bens coletivos’ pois isso sinalizaria desconfiança, e desconfiança e amizade não poderiam tolerar-se”203. Assim sendo, dois princípios básicos da Utopia, a eliminação 201 Ver Surtz/Hexter, 1995, 220/28-29. Esta reflexão também é feita por Cícero: cum qua [i.e. pietate] simul sanctitatem et religionem tolli necesse est, quibus sublatis perturbatio vitae sequitur et magna confusio; atque haut scio, na pietate adversus deos sublata fides etiam et societas generis humani et uma excellentissuma virtus iustitia tollatur. (Cíc., De nat. deor.,1, 3-4) [“com ela (a piedade) juntamente, é necessário que se destruam a santidade e a religião; e com a destruição desssas, seguem-se desordem e grande confusão na vida civil e, talvez, desaparecida a piedade para com os deuses, também se acabem a boa-fé, a sociedade do gênero humano e, ao mesmo tempo, a justiça, a mais eminente virtude.”] Reflexão similar também é feita por Platão: Nomoi 612b-614a. 202 Ex omnibus his philosophis, quorum nomina sunt in hoc noto nobis orbe celebria, ante nostrum aduentum ne fama quidem cuiusquam eo peruenerat, & tamen in musica, dialecticaque, ac numerandi & metiendi scientia, eadem fere quae nostri illi ueteres inuenere. (158/15-20) [“De todos esses filósofos, cujos nomes são célebres neste mundo que nos é conhecido, nem sua fama chegara até eles antes da nossa chegada, e, no entanto, em música, dialética, nas ciências dos números e das medições, descobriram praticamente o mesmo que aqueles nossos antigos”]. A suposição que os utopianos não tenham ouvido nada dos antigos se opõe ao relato de Hitlodeu sobre o seu encontro com os romanos e com os egípcios (ver 108/5-6), dos quais os utopianos fizeram bom proveito: Nihil artis erat intra Romanum imperium, unde possit aliquis esse usus, quod non illi aut ab expositis hospitibus didicerint, aud acceptis quaerendi seminibus adinuenerint. (108/7-10) [“Não havia arte do império romano da qual pudessem tirar alguma utilidade que eles não tenham aprendido com os náufragos estrangeiros, ou, recebidas as sementes, não tenham procurado descobrir”]. A lógica do texto estabelece, devido a poucas informações, uma cronologia (naturalmente fictícia), de que o encontro ocorreu em torno do ano 315 d.C. (ver 108/3), ou seja, tempo em que os visitantes muito bem poderiam ter transmitido todo o conhecimento da Antiguidade. É notória a ausência dos gregos, povo muito valorizado por Hitlodeu (ver 48/32-50/3). A Antiguidade Grega é apresentada aos utopianos pela visita (em torno de 1505) de Hitlodeu (ver p. 180182). 203 “Und Epikur, sagt er, wollte nichts wissen von Vereinigung des Einzelvermögens zum Gesamtbesitz, wie es Pythagoras verlangte nach seinem Spruch: ‘Freundesgut ist gemeinsam’; denn das sei ein Zeichen von Mißtrauen; Mißtrauen aber und Freundschaft vertrügen sich nicht miteinander” (Diog. Laert. 10, 11). MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 308 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia da propriedade privada e os fundamentos religiosos, são antiepicuristas. Portanto, o Estado utópico pode ser assinalado como 1. Uma fusão entre o mote pitagórico 204 e a comunidade de amigos praticada na escola de Epicuro e 2. Correspondente a uma unificação da teoria com contraditórios princípios cristãos, o que seria inconcebível na Antiguidade, mas possível na Utopia205. Conclusão e incorporação dos resultados em uma abordagem ampla e interpretativa Sobretudo no âmbito da ética, a inclinação dos utopianos para a escola filosófica epicurista da antiguidade é tão forte que é quase inconcebível o fato de este aspecto ter sido ignorado até o momento na história da crítica. Além disso, é evidente que Morus empenhou-se em uma adequada compreensão do Epicuro “hedonista”, que de fato não desenvolveu uma teoria da maximização do prazer objetivando luxúria ou gula desmedidas. Evidências claras disso são o destaque às ações equilibradas que expressam diversas variações do cálculo epicurista do prazer, e a adoção dos valores da pietas e da humanitas. Semelhante a Lorenzo Valla206, podemos notar na Utopia a tentativa de tornar profícuo o cálculo epicurista do prazer como princípio das ações humanas, caso se entenda realmente assim, como apresentado na Utopia. Os utopianos são epicuristas? O segundo capítulo tratou de claras influências da teoria do prazer epicurista, e o terceiro capítulo traçou paralelos (um pouco menos claros) com o epicurismo, enquanto o quarto capítulo, por outro lado, explicitou elementos antiepicuristas, e evidenciou a mistura de pensamentos filosóficos de outras escolas, sobretudo estoicas. Por essas razões, a resposta não pode ser um “sim” definitivo. Este balanço não deve ser tido de modo algum como insatisfatório; muito pelo contrário, a pesquisa aqui conduzida pretende exemplificar os relacionamentos de Morus com os padrões literários. 204 Ver a interpretação de Olin, 1994, p. 57-69. O fato de ambos os componentes constarem no Livro X de Diógenes Laércio fortalece a impressão de que Morus tenha adotadoa síntese de dois conceitos inconciliáveis da Antiguidade de modo intencional. 206 No texto De vero falsoque bono, também em De voluptate (ca. 1490), Valla tentou conciliar o antigo epicurismo com a religião cristã, e fazer do termo Voluptas um meio útil de medição para as ações terrenas (ver Blum, 1999, p. 35-36). Uma comparação entre a De Voluptate de Valla e a ética dos utopianos é realizada por Logan (ver Logan, 1983, p. 157-163). Este chega à conclusão que existem tanto elementos comuns (ver Logan, 1983, p.161-162.), como elementos díspares: “The closeness of the relationship between Valla’s arguments and those of the Utopians is obvious, both where the Utopian’s conclusions agree with his and where they do not.” Logan, 1983, p.160-161. 205 309 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz Por um lado, não é surpreendente que encontremos em textos do Renascimento idéias evidentes da Antiguidade, contudo também descobrimos inconsistências e mesmo e contradições em relação aos conceitos antigos originais. Rüdiger prega a este processo de incorporação da Antiguidade o termo Recepção, que consegue descrever “da melhor maneira a relação entre a tradição e a criação contemporânea”207. Nesse processo não se trata somente de conservação passiva, mas de deformação criativa208. Por esta razão, Burke caracteriza a época com o termo “recepção criativa”209, que deve expressar “que tudo o que é transferido se modifica no processo da transmissão (...). Do ponto de vista dos teóricos da recepção, o Renascimento criou a Antiguidade tanto quanto a Antiguidade gerou o Renascimento. Artistas e escritores não buscavam imitar, mas reformular.”210 Tudo o que era recebido ou reformulado é descrito pelos estudos literários como “folie”. Se contemplarmos o antigo epicurismo como uma folie, como acontece neste ensaio, então esse processo de reformulação, de nova criação, tendo em vista a Utopia, deve ser caracterizado como “filtragem” 211 de elementos particulares de uma folie. Morus filtra, primeiro, elementos da folie do epicurismo e os une a elementos das folies de outras escolas filosóficas. Em segundo lugar, ele relaciona o paganismo antigo (isto é, as considerações dilosoficas dos utopianos baseadas na razão) aos elementos de uma folie religiosa cristã, em que argumentos religiosos são englobados no sistema ético de valores (rever capítulo 2) e na qual dois fundamentos da fé cristã (capítulo 4) são representados. Por esta razão, na Utopia não estão apenas reunidas a razão e a fé, mas também duas folies diferentes e que não poderiam ser mais antitéticas, quando se pensa 207 “(...) das Verhältnis von Tradition und schöpferische Gegenwart am besten” (Rüdiger, 2001, p. 576). “Wir verstehen darunter nicht die passive Bewahrung, sondern die tätig-umgestaltene Aufnahme überlieferten Kulturgutes in die eigene geistige Welt. (...) Die große Leistung seiner Blütezeit aber ist eine echte Rezeption: das Umschaffen des Geschaffenen, (...)”[“Nós não entendemos isso como a passiva preservação, mas como uma deformação-ativa da recepção de bens culturais reentregues para o próprio mundo intelectual. (...) A maior realização deste tempo de apogeu é a verdadeira recepção: a deformação da criação, (...)”] (Rüdiger, 2001, p.576). 209 “ kreativen Rezeption” (Burke, 1998, p. 21). 210 “daß sich alles, was auch immer übergeben wird, durch den Prozeß der Übermittlung verändert. (...) Vom Standpunkt der Rezeptionstheoretiker betrachtet, schuf die Renaissance genausosehr die Antike wie die Renaissance hervorbrachte. Künstler und Schriftsteller ahmten nicht so sehr nach, sondern formten um (...)” (Burke, 1998, p. 19-20). 211 Ver aqui também o termo “filtro” utilizado por Burke (1998, p. 22), que tem em vista todo o processo humanista da recepção: “Eine der zentralen Ideen oder Metaphern in modernen Untersuchungen über die Rezeption ist die Vorstellung von einem ‘Sieb‘ oder ‘Filter‘ das manches, aber nich alles durchläßt. Was ausgewählt wird, muß der Kultur ‘kongruent’ sein, in die das Ausgewählte eingebracht wird” [“Uma das ideias centrais ou metáfora nas análises modernas sobre a recepção é a imagem de uma ‘peneira’ ou ‘filtro’, que deixa passar algo, mas não tudo. O que é escolhido, precisa ser ‘congruente’ com a cultura, na qual o escolhido será introduzido”]. 208 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 310 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia que, de todas as escolas da Antiguidade, somente as epicuristas contestavam crenças fundamentais como a imortalidade da alma e a intervenção divina na vida humana. Em terceiro lugar, pode-se falar de uma relação entre uma folie e os elementos exatamente contrários a esta mesma folie, praticamente “antielementos”. Não é a única vez na Utopia que conceitos aparentemente inconciliáveis são ainda integrados em um todo. Se observarmos outras folies, reiteradamente tratadas na pesquisa, resulta então do processamento dessas folies um esquema de (+) folie e (-) folie, que podem ser representados da seguinte forma em uma tabela: Religião cristã Comunismo A República platônica212 (+) folie (-) folie (+) Cristão (-) Cristão Crença em Deus e na imortalidade da alma, casamento único, punição da relação extraconjugal Possibilidade de separação dos cônjuges, certa liberdade de crença, Eutanásia (+) Comunismo (-) Comunismo Fim da propriedade privada, trabalho obrigatório, extinção do dinheiro Religiosidade obrigatória, obrigação de crer em um único Deus. (+) A República (-) A República Propriedade comum, rigorosa vigilância dos cidadãos Propriedade comum para todos, casamento único 212 Muitas vezes é apresentada a comparação entre a A Repúblicae a Utopia. Ver, por exemplo, Mölk, p. 310-312; Logan, 1983, p. 133-138; Starnes, 1990. p. 86/16, 102/13-15 e 104/4, nas quais constam referências diretas a Platão. 311 MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 Sandra Schwartz Idealidade Luciano214 A cidade do sol de Jâmbulos215 Descrição de Vespúcio Epicurismo (+) Ideal (-) Ideal Excedência de víveres, seguridade social, etc. Ausência de individualidade e de liberdade pessoal213 (+) Luciano (-) Luciano O estilo da sátira [conteúdos específicos] (+) Cidade do Sol (-) Cidade do Sol [elementos variados] O chamado princípio da necessidade e da razão (+) Vespúcio (-) Vespúcio Ausência de propriedade privada, desprezo pelo ouro216 O chamado princípio da necessidade e da razão (+) Epicurismo (-) Epicurismo Voluptas como o maior bem, orientação pelo cálculo do prazer (para detalhes, ver Süssmut, 1967, p. 276). Crença na imortalidade da alma, Crença na influência dos deuses na vida humana Na descrição da ilha de Utopia, Morus unifica os modelos mais distintos, principalmente da Antiguidade e, ao fazer isso, os reformula de modo tão criativo, que não encontramos dificuldades em relacioná-los a outros elementos e também a antielementos de mesmas folies. Morus filtra apenas os elementos das folies que harmonizam com o todo, e os reúne em uma mistura única. Diante do fato que o autor aplica este princípio em relação a seus modelos de modo integrado, pode-se falar de um princípio estrutural especifico de (+) folie e (-) folie214 da Utopia. As discrepâncias observadas se aplicarmos “regras” da realidade não são importantes na ficção Utopia. Justamente porque a ilha de Utopia é fictícia, ela pode ultrapassar as fronteiras que lhe são estipuladas através da sua realidade histórico-cultural e do conhecimento dos que 213 Como a crítica aos “distopistas” (Glei, 1998, p. 44). Ver Glaser, 1996, p. 38-48 e Berger, 1988, p. 229248). O último caracteriza os utopistas como “walking statues” (Berger, 1988, p. 237). 214 Ver Dorsch, 1970, p. 16-35; Branham, 1985, p. 23-43. 215 Ver Süssmut, 1967, p. 61-67. 216 Ver Vespucci, 1916, p. 6-8. Ver também Süssmut, 1967, p. 37-43; Surtz, 1989, p. 22-24; Adams, 1941, p. 48. MORUS – Utopia e Renascimento, 9, 2013 312 Os utopianos são epicuristas? A recepção da ética epicurista na Utopia fazem a sua recepção, e nela pode ser esboçada uma sociedade, na qual podem ser unificados os modelos da Antiguidade, amados pelo aplicado e culto humanista. Portanto, os utopianos não podem ser indiscriminadamente coarctados a cristãos, comunistas ou epicuristas, e nem devem ser, pois eles são, precisamente, utopianos. Referências Bibliográficas ADAMS, R. P. “The Philosophic Unity of More’s Utopia.” In. Studies in Philology, v. 38, 1941, p. 45-65. APELT, O. (trad). Diogenes, Laktions, Leben und Meinungen berühmter Philosophen. Hamburg: 1990. 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