Revista Brasileira de Direito Civil Revista Brasileira de Direito Civil

Transcrição

Revista Brasileira de Direito Civil Revista Brasileira de Direito Civil
Revista
Brasileira
de Direito
Civil
ISSN 2358-6974
VOLUME 1
JUL / SET 2014
Doutrina Nacional / Gustavo Tepedino / Luiz Edson Fachin / Paulo
Lôbo / Anderson Schreiber / Paulo Nalin / Rodrigo Toscano de Brito
Doutrina Estrangeira / Gerardo Villanacci
Jurisprudência Comentada / Marília Pedroso Xavier
Pareceres / Judith Martins-Costa
Atualidades / Bruno Lewicki
Resenha / Carlos Nelson Konder
Vídeos e Áudios / Caio Mário da Silva Pereira
APRESENTAÇÃO
A Revista Brasileira de Direito Civil
que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.
A RBDCivil é composta das seguintes seções:

Editorial;

Doutrina:
(i)
doutrina nacional;
(ii)
doutrina estrangeira;
(iii)
jurisprudência comentada; e
(iv)
pareceres;

Atualidades;

Vídeos e áudios.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
2
EXPEDIENTE
Diretor
Gustavo Tepedino
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz
Gustavo Tepedino
Luiz Edson Fachin
Paulo Lôbo
Pietro Perlingieri
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Fabiano Pinto de Magalhães
Louise Vago Matieli
Paula Moura Francesconi de Lemos
Tatiana Quintela Bastos
Vivianne da Silveira Abílio
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
3
SUMÁRIO
Editorial
Um novo Instituto de Direito Civil? – Gustavo Tepedino
6
Doutrina nacional
Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos – Gustavo Tepedino
8
O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem
cirurgia de redesignação – Luiz Edson Fachin
39
Direitos e conflitos de vizinhança - Paulo Lôbo
66
Contratos eletrônicos e consumo - Anderson Schreiber
95
A força obrigatória dos contratos no brasil: uma visão contemporânea e
aplicada à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos
princípios sociais dos contratos - Paulo Nalin
120
O ambiente da nova contratualidade e a tendência da jurisprudência do STJ
em matéria contratual - Rodrigo Toscano de Brito
145
Doutrina estrangeira
L‟
ambientale - Gerardo Villanacci
172
Jurisprudência Comentada
AGRG NO RESP 827.143/DF: PRECEDENTE OU DECISÃO JUDICIAL? Marília Pedroso Xavier
223
Pareceres
Contrato de de seguro. Suicídio do segurado. Art. 798, código civil.
Interpretação. Diretrizes e princípios do código civil. Proteção ao
consumidor. - Judith Martins-Costa
Atualidades
Metodologia do direito civil constitucional: futuros possíveis e armadilhas Bruno Lewicki
Resenhas
O segundo passo: do consumidor à pessoa humana - Carlos Nelson Konder
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
237
288
294
4
SUMÁRIO
Submissão de artigos
Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de
Direito Civil - RBDCivil
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
299
5
EDITORIAL
Um novo Instituto de Direito Civil?
O surgimento do Instituto Brasileiro de Direito Civil –IBDCivil coincide com
cenário paradoxal. De um lado, proliferam-se nas últimas décadas organizações
não governamentais, em movimento associativo que, desde o retorno ao regime
democrático, parece se espraiar por todos os domínios, de norte a sul do Brasil.
Por outro lado, contudo, talvez como sequela renitente de nossas raízes
históricas, a agenda associativa revela-se, as mais das vezes, corporativista,
expressão ampliada de individualismo coronelista que contraria a função
primordial da organização coletiva da sociedade.
No caso do Direito, em que acentuado individualismo tem sido justificado,
tradicionalmente, pela atividade solitária do profissional ou do estudioso,
algumas importantíssimas associações, como o nosso fraterno IBDFAM –
Instituto Brasileiro de Direito de Família, o Brasilcon – Instituto Brasileiro de
Direito e Política do Consumidor, e o Conpedi - Conselho Nacional de Pesquisa
e Pós-graduação em Direito, revelaram-se experiências estimulantes e
vitoriosas, exemplos a serem seguidos. O caminho associativo, contudo,
encontra resistências cuja superação depende de alteração cultural significativa,
destinada a rejeitar modelos organizacionais em que a pauta de reivindicações
não é acompanhada de compromisso para com as próprias instituições e com a
sociedade. Há que se cultivar o voluntariado, o altruísmo e a preocupação a
longo prazo com as estruturas institucionais. Nos últimos anos, usou-se e
abusou-se de entidades com propósitos desviantes de suas finalidades
institucionais, banalizando, maculando e por vezes estigmatizando o conceito de
organização social.
Daí a necessidade de se revisitar a prática associativa, tendo-se em mente não
somente os propósitos estatutários imediatos, mas o repensar do papel e do
comportamento de cada associado, com vistas a, extrapolando os confins
internos de cada organismo, impregnar os centros de pesquisa e as Instituições
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
6
Universitárias, com seu potente efeito multiplicador, em busca de verdadeira e
renovada cultura associativa.
Nessa esteira, pretende-se com o IBDCivil congregar os estudiosos do direito
civil contemporâneo, promovendo espaço, até então inexistente, de diálogo e
construção coletiva da dogmática e da pesquisa jurídica. Ao lado e além,
portanto, de indispensável fórum de discussão e difusão do conhecimento, papel
desempenhado por essa Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, e da rede
de professores e profissionais que poderão interagir positivamente no panorama
editorial e acadêmico brasileiros, há em nosso novo IBDCivil o propósito de
semear consciência organizacional ainda não sedimentada na sociedade
brasileira. A vida institucional sólida substitui, assim, o individualismo em
todos os níveis, afastando-se as exageradas pressões corporativas voltadas a
privilégios setoriais abençoados pelo Poder Público.
Na área jurídica, onde a carência de pesquisa coletiva ainda predomina, deve-se
apostar urgentemente na vida institucional e na construção de modelos de
convivência social participativos, democráticos e igualitários. No âmbito do
direito civil, especialmente, pela amplitude de seu campo de conhecimento, o
impacto dessa mudança de paradigma há de repercutir de maneira decisiva nas
profissões jurídicas, contribuindo para aproximar as construções teóricas da
práxis judiciária e do direito vivo.
Alexis de Tocqueville, em seu clássico De la démocratie en Amérique, escrito em
1835, assinalou que o sucesso da democracia americana decorreria, mais do que
da organização do próprio Estado, da habilidade, herdada dos ingleses, da arte
de se associar. Esse predicado talvez seja a carência lancinante de nossa
sociedade, e seu desenvolvimento se mostra impostergável para a construção de
instituições democráticas. Trata-se de consolidar a percepção de que o
fortalecimento institucional é indispensável ao crescimento civilizatório,
permitindo o aperfeiçoamento da democracia, da solidariedade social e da
igualdade de oportunidades no exercício das liberdades fundamentais.
GT
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
7
SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Nacional
Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos*
Gustavo Tepedino**
RESUMO: A alteração da noção de autonomia repercute profundamente na teoria
da interpretação. Na medida em que o espectro e os limites (das categorias e
institutos jurídicos, e especialmente) da autonomia atribuída aos particulares
não são mais uniformes e abstratos (vontade individual submetida unicamente
ao limite negativo da ilicitude), mas dependem dos valores que lhes servem de
fundamento (para promoção de interesses socialmente relevantes), verifica-se a
funcionalização dos institutos de direito civil. Nessa direção, propõem-se a
classificação dos atos e negócios jurídicos a partir de sua análise funcional,
tendo-se me conta a atividade concretamente desenvolvida e os limites positivos
impostos pelos valores e princípios constitucionais (legalidade constitucional).
PALAVRAS-CHAVE: 1. Autonomia privada; 2. Ato jurídico; 3. Negócio jurídico; 4.
Atividade contratual sem negócio.
ABSTRACT: The mutation of the notion of private autonomy has deep
repercussions in the theory of interpretation. As the range and the limits (of
juridical categories and institutions, and specially) of private autonomy
attributed to individuals are no longer uniform and abstract (individual will
submitted solely to the negative limit of the illicit), but also depend on the
values that serve as their foundation (for the promotion of socially relevant
interests), one can verify the functionalization of private law institutions. Thus,
O presente trabalho decorre de pesquisa realizada na extraordinária biblioteca do Instituto
Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, Hamburgo, Alemanha, que
gentilmente recebeu o autor como Visiting Fellow nos meses de julho de 2009 e de 2011.
** Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
*
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
8
this article proposes the classification of juridical acts based on their functional
analysis, taking into account the activity that has been concretely developed and
the
positive
limits
imposed
by
constitutional
values
and
principles
(constitutional legality).
KEYWORDS: 1. Private autonomy; 2. Juridical act; 3. Juridical transaction; 4.
Contractual activity without juridical act.
SUMÁRIO: 1. Autonomia privada e perspectiva funcional da atividade jurídica
(fatos, atos e negócios); 2. Fato social e fato jurídico: superação da distinção; 3.
Classificação dos fatos jurídicos: fato, ato e negócio jurídico – os chamados atosfatos; 4. A noção de negócio jurídico; 5. Ato jurídico stricto sensu, ato-fato e
negócio jurídico em uma perspectiva funcional; 6. Negócio jurídico no Código
Civil e seus três planos de análise: elementos, requisitos, fatores de eficácia; 7.
Classificação dos negócios jurídicos; 8. Atividade contratual sem negócio
jurídico.
1. Autonomia privada e perspectiva funcional da atividade jurídica
(fatos, atos e negócios)
As liberdades fundamentais, asseguradas pela ordem constitucional,
permitem a livre atuação das pessoas na sociedade. Expressão de tais liberdades
no âmbito das relações privadas é a autonomia privada, como poder de autoregulamentação e de auto-gestão conferido aos particulares em suas atividades.
Tal poder constitui-se em princípio fundamental do direito civil, com particular
inserção tanto no plano das relações patrimoniais, na teoria contratual, por
legitimar a regulamentação da iniciativa econômica pelos próprios interessados,
quanto no campo das relações existenciais, por coroar a livre afirmação dos
valores da personalidade inerentes à pessoa humana.
O principio da autonomia privada, entretanto, não é absoluto, inserindose no tecido axiológico do ordenamento, no âmbito do qual se pode extrair seu
verdadeiro significado.1 Encontra-se informado pelo valor social da livre
Conforme leciona JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, não há antecedência cronológica da relação
çã
í
;
é “ D
é
forma da vida social. Ele vive nas
relações sociais, que muitas vezes seriam inteiramente impensáveis sem a norma que as unifica
(...). A
z çã
” (Direito Civil – Teoria
Geral. Volume III. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 42). A liberdade e, especificamente, a
1
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
9
iniciativa, que se constitui em fundamento da República (art. 1º, IV, C.R.), 2
corroborado por numerosas garantias fundamentais às liberdades, que têm sede
constitucional em diversos preceitos, com conteúdo negativo e positivo. Assume
conteúdo negativo no princípio da legalidade, que reserva ao legislador o poder
de restrição a liberdades, tornando lícito tudo o que não for legalmente
proibido. Assim o art. 5º, II, da Constituição da República, em cuja linguagem
:“
é
z
ou deixar de fazer alguma coisa senão em
”.
Na mesma direção, dotado de conteúdo meramente negativo, situa-se o
art. 170, parágrafo único, do Texto Maior, o qual, ao fixar os princípios gerais da
ô
õ : “É
a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos,
”.
Tal conteúdo não esgota o sentido constitucional do princípio da
autonomia privada, que corporifica as liberdades nas relações jurídicas de
direito privado. Segundo o Texto Constitucional, a liberdade de agir, objeto das
garantias fundamentais insculpidas no art. 5º, associa-se intimamente aos
princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1, III), fundamento da
República, da solidariedade social (art. 3º, I) e da igualdade substancial (art. 3º,
III), objetivos fundamentais da República. Significa dizer que a livre iniciativa,
além dos limites fixados por lei, para reprimir atuação ilícita, deve perseguir a
justiça social, com a diminuição das desigualdades sociais e regionais e com a
promoção da dignidade humana.3 A autonomia privada adquire assim conteúdo
positivo, impondo deveres à autoregulamentação dos interesses individuais, de
autonomia privada, assim, não correspondem a noções anteriores ao Direito, mas são
construídas juridicamente, no âmbito da axiologia do ordenamento.
2 Destaca a proteção constitucional da livre iniciativa como princípio informador da autonomia
privada, FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introdução, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 359:
“A
ô
é
constitucional, como princípio básico da ordem econômica e social. São conceitos correlatos,
mas não coincidentes, na medida em que a primeira focaliza o aspecto econômico, e a segunda,
í
ô
h
çã
”. N
sentido, ORLANDO GOMES, Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 240.
3 Na lição de PIETRO PERLINGIERI, “A C
çã
q
quantitativa na ordem normativa. Os chamados limites à autonomia, postos à tutela dos
contratantes vulneráveis, não são mais externos e excepcionais, mas, sim, internos, enquanto
ã
” (O Direito Civil na Legalidade
Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358).
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
10
tal
modo
a
vincular,
já
em
sua
definição
conceitual,
liberdade
à
responsabilidade.4
Essa perspectiva caracteriza o princípio da autonomia privada no direito
contemporâneo, desde a promulgação, em diversos países da Europa
Continental, ao longo do Século XX, de Constituições intervencionistas, como o
Texto Constitucional brasileiro de 1988, que estabeleceram metas a serem
alcançadas pelos particulares ao lado da liberdade de contratar e circular
riquezas. Anteriormente, por conta de conhecido processo histórico que serve de
moldura para as construções dogmáticas dos Séculos XVIII e XIX, o poder dos
particulares de gerir seus interesses era designado como autonomia da vontade,
a enfatizar, já em sua definição, o viés voluntarista mediante a qual se pretendia
afastar a ingerência dos Estados nos espaços jurídicos privados.5 Essa
concepção, embora ainda presente na manualística, não se mostra consentânea
com o sistema civil-constitucional. A ordem pública constitucional valoriza a
liberdade na solidariedade, impondo que a autonomia privada seja vista como
poder de regulamentação não necessariamente vinculada à vontade subjetiva, já
que o interesse público sobrepõe ao poder de agir dos particulares a tutela de
valores socialmente relevantes. Alude-se, nesta direção, à autonomia negocial,
como noção substitutiva do conceito de autonomia privada, por melhor traduzir
o
poder
conferido
aos
particulares
para
deflagrarem
negócios,
não
necessariamente definindo os próprios regulamentos de interesse, dependendo
dos interesses em jogo.6 A autonomia privada, assim analisada, embora
assegurada constitucionalmente, se reduz, em algumas hipóteses normativas, à
mera liberdade de iniciativa.
Nesta direção, leciona FEDERICO CASTRO Y BRAVO, El Negocio Juridico, Instituto Nacional de
Estudios Politicos, Madrid, 1967, p. 29, segundo o qual, na dinâmica dos negócios jurídicos, a
çã
ç
“no sopone disminuir el alcance
de la autonomía de la volontad, sino pó el contrario tenerla em cuenta em su doble aspecto de
libertad y de responsabilitad”.
5 Assim define a autonomia da vontade FRANCISCO AMARAL, diferenciando-a da autonomia
: “A
çã
direito, e autonomia privada, como poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, vale
dizer, o poder de alguém dar a si próprio um ordenamento jurídico e, objetivamente, o caráter
próprio desse ordenamento, constituído pelo agente, diversa mas complementarmente ao
” (Direito Civil: Introdução, cit., p. 347).
6 O conceito de autonomia negocial é desenvolvido por PIETRO PERLINGIERI, O Direito Civil na
Legalidade Constitucional, cit., p. 338.
4
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
11
Nessa vertente, de acordo com o setor da economia, há maior ou menor
compressão do espaço de autonomia em favor de fontes heterônomas de
integração dos modelos de regulamentação do direito civil. 7 Basta pensar nos
contratos de locação residencial ou nas relações de consumo para verificar que a
debacle do império da vontade, ostensivamente conduzida pelo legislador,
permite compatibilizar interesses patrimoniais com valores existenciais em
potencial colisão. A autonomia privada convive, assim, com a intervenção
legislativa destinada a promover o direito à moradia, a solidariedade, a
dignidade da pessoa humana e a igualdade substancial, reduzindo-se situações
de vulnerabilidade.
A alteração da noção de autonomia repercute profundamente na teoria
da interpretação. Tradicionalmente, a dogmática se restringia ao aspecto
estrutural das categorias jurídicas, ou seja, seus elementos constitutivos e os
poderes atribuídos aos titulares. Na medida em que o espectro e os limites (das
categorias e institutos jurídicos, e especialmente) da autonomia atribuída aos
particulares não são mais uniformes e abstratos (vontade individual submetida
unicamente ao limite negativo da ilicitude), mas dependem dos valores que lhes
servem de fundamento (para promoção de interesses socialmente relevantes),
alude-se à funcionalização dos institutos de direito civil. Assim, as relações
jurídicas estruturadas para a proteção de interesses patrimoniais e individuais
tornam-se vetores de interesses existenciais. Em última análise, o espaço de
autonomia privada (a estrutura dos poderes conferidos para exercício de
direitos dela decorrentes) é determinado pela função que desempenha na
relação jurídica.8
Tal reflexão interfere diretamente na teoria dos atos e negócios jurídicos,
no sentido de superar a abordagem meramente estática de seus elementos
estruturais – forma e conteúdo –, para se alcançar a função – o porquê e para
Sobre a referida intervenção heterônoma nos contratos, afirma STEFANO RODOTÀ que o
contrato, embora decorrente da vontade das partes, uma vez formado, sujeita-se à intervenção
h
: “è evidente, allora, che le diverse fonti si
ispirano ciascuna a peculiari valutazioni: ma qui interessa rilevare soltanto che tutte
convergono nella finalità comune della costruzione del regolamento contrattuale; rispetto a
quest‟ultimo la particolare ratio delle singole fonti non viene in questione, riguardando
esclusivamente il modo in cui ciascuna di esse, in sé considerata, opera” (Le fonti di
integrazione del contrato, Milano, Giuffrè, 2004, p. 87).
8 A respeito do conceito de função, cf. NORBERTO BOBBIO, Em direção a uma teoria funcionalista
do direito. Da estrutura à função. São Paulo, Manole, 2007, p. 53.
7
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
12
quê –, em modo a se identificar a legitimidade objetiva da alteração propiciada
pela autonomia privada nas relações jurídicas pré-existentes.9
2.
Fato social e fato jurídico: superação da distinção
Se a atuação do direito depende visceralmente dos fatos, em recíproco
condicionamento, a conceituação analítica das diversas espécies de fatos
(jurídicos) mostra-se indispensável para a definição da disciplina normativa
correspondente. Fato social é o acontecimento que, submetido à incidência do
direito, torna-se, tecnicamente, fato jurídico. Afirma-se, por isso mesmo, que
um fato qualquer – pré-jurídico –, a partir do momento em que deixa de ser
indiferente ao direito, adquire aptidão para gerar efeitos jurídicos. Em
consequência, segundo lição clássica, fatos jurídicos são os eventos mediante o
quais as relações jurídicas nascem, se modificam e se extinguem.10 Ou, em
í
“
q
relevância jurídica no
sentido de alterar as situações a eles pré-existentes, e de configurar situações
q
q
çõ
í
”.11
A construção, contudo, deve ser analisada com reservas, por duas razões
fundamentais. Em primeiro lugar, se é verdade que o dado social – como
elemento da realidade fática – não se confunde com o dado normativo – a
norma jurídica –, parece arbitrário considerar alguns fatos simplesmente
alheios ao direito, ou despidos de relevância ou pressupostos de eficácia, já que
Sobre o ponto, magistralmente, EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, Torino,
UTET, 1952, 2a ed., p. 170 e ss.
10 Assim o afirma, citando SAVIGNY, CLOVIS BEVILAQUA. Teoria geral do direito civil. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1976, p. 210. No mesmo sentido: ROBERTO DE RUGGIERO, Instituições
de direito civil, vol. 1, Campinas, Bookseller, 2005, p. 310; MIGUEL REALE, Lições preliminares
de direito, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 203. Do mesmo modo, afirma FRANCISCO AMARAL,
Direito Civil: Introdução, cit., p. 379. Conforme lembra, oportunamente, ALBERTO TRABUCCHI:
“A
‟
z
èq
q
z
h
confermare una situazione esistente eliminando dubbi sulla sua consistenza concreta. Si parla in
tal caso di negozio di accertamento
q
‟è
h
í q
z
” (Istituzioni di diritto
civile, Padova, CEDAM, 1993, p. 124).
11 EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 3. No original, o texto em sua
: “F
q
z
giuridica nel senso di mutare le situazioni ad essi preesistenti e di configurare situazioni nuove,
cui corrispondono nuove qualificazioni giuridiche. Lo schema logico del fatto giuridico, ridotto
alla espressione più semplice, si ottiene prospettandolo come un fatto dotato di certi requisiti
presupposti dalla norma, i il quale incide in una situazione preesistente (iniziale) e la trasforma
in una situazione nuova (finale), per modo da costituire, da modificare o da estinguere poteri e
q
h
z
h ”.
9
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
13
a experiência normativa alcança integralmente a vida social, mesmo os espaços
de liberdade que o direito, valorando-os, preserva deliberadamente contra
qualquer tipo de regulamentação. Diante de tal circunstância, afirma-se que
todo fato social interessa ao direito, já que potencialmente interfere na
convivência social e, portanto, ingressa no espectro de incidência do
ordenamento jurídico.12 Na doutrina brasileira, argutamente assinalou- : “ ã
há fato indiferente ao Direito, pois é o próprio Direito, através da norma
positiva que, não regulando uma conduta ou uma circunstância, chancela tal
”.13
Em segundo lugar, qualquer fato social é percebido de acordo com a
compreensão cultural da sociedade em determinado momento histórico, e assim
também é valorado pelo direito. Imagine-se o interesse pelo meio ambiente
equilibrado; as interferências consideradas normais de vizinhança; ou a
crescente exposição da imagem das pessoas (como comparar a repercussão de
alguém na praia, há 50 anos, em sucintos trajes de banho e nos dias de hoje).14
O direito traduz a realidade fática, a qual, em contrapartida, reflete a valoração
da ordem jurídica (como apreendida pelo grupo social).15 Há, portanto, íntima
comunicação entre fato e norma, de tal modo que não se pode conceber um
desses elementos sem o outro. Supera-se, desse modo, a distinção entre fato
‟ ã é
ú
: „
‟
ã é „
‟
(
)
para a qual o fato é todo evento que invoque a ideia de convivência (ou do caráte
)” (O
direito civil na legalidade constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2009, p. 640).
13 LUIZ EDSON FACHIN, Novo Conceito de Ato e Negócio Jurídico: consequências práticas,
Curitiba, PUC/PR, 1988, p. 1. Com efeito, a afirmativa de que toda liberdade humana é
juridicamente relevante (porque garantida pelo Direito) não implica a negação de que existam
liberdades não regulamentadas por lei, como registra STEFANO RODOTÀ: “Ora ci troviamo di
fronte a situazioni in cui l‟indicare il fatto e dire il diritto appartengono alla stessa persona, nel
senso almeno che esiste un potere di scelta tra risposte giuridiche diversificate o, più
radicalmente, di entrata in uno spazio vuoto di diritto. Si può, dunque, uscire dal diritto e
rientrare nella vita” (La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006, p.
62). Para uma perspectiva civil-constitucional da questão, v. também SAMIR NAMUR, A
inexistência de espaços de não direito e o princípio da liberdade, Revista Trimestral de Direito
Civil, Vol. 42, abr.-jun./2010; PAULA GRECO BANDEIRA, Espaços de não direito e as liberdades
privadas, Revista Trimestral de Direito Civil, Volume 52, out.-dez./2012.
14 O exemplo é configurado por Eros Grau, Técnica Legislativa e Hermenêutica Contemporânea,
in Gustavo Tepedino (org.), Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade
constitucional, São Paulo, Atlas, 2008, p. 286.
15 A conclusão de LUIZ EDSON FACHIN, ob. loc cit., é
:“
í
fatos valorados pela norma. Tais são os fatos jurídicos, que assim se constituem sem deixar o
campo fático, uma vez que este e aquele (o normativo) se interpenetram. Esse agasalho da
norma é a guardiã ao suporte fático, sem suprimi-lo. Exsurge, aí, a juridicidade que é por
conseguinte um componente do binômio fato”.
12
Afirma PIETRO PERLINGIERI: “„F
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
14
social e fato jurídico. Todo fato social – porque potencialmente relevante para o
direito, e porque moldado pela valoração (social decorrente) do elemento
normativo (o qual, ao mesmo tempo, é construído na historicidade evolutiva da
sociedade), é fato jurídico.
Compreende-se, assim, o vetusto brocardo latino ex facto oritur ius. Do
fato provém o direito. Vale dizer, sem se confundirem norma e fato, estes
reciprocamente se condicionam.16 A hipótese fática de incidência da norma
(suporte fático, que equivaleria à expressão italiana fattispecie ou à alemã
Tatbestand) identifica-se com a descrição normativa, ou seja, é construída pela
valoração que lhe atribui o direito. Tenha-se como exemplo um contrato de
locação. As regras sobre ele incidentes dependerão das circunstâncias fáticas –
valor do aluguel, estado do imóvel, pontualidade no cumprimento das
obrigações –, todas elas capazes de produzir efeitos modificativos da relação
jurídica, gerando novos fatos jurídicos, que alteram o direito pré-existente e se
amoldam, contemporaneamente, à previsão normativa pré-existente. Por isso
mesmo, considera-
“
q í
fattispecie como qualquer coisa
de puro fato, despida de qualificações jurídicas, ou como qualquer coisa
materialmente separada ou cronologicamente destacada da nova situação
jurídica correspondente. Em realidade, esta não é senão um desenvolvimento
daquela, uma situação nova na qual se converte a situação preexistente com a
í
”.17
Em definitivo e afinal, como registrado em (esquecida) lição introdutória
q
“
D
-se,
portanto, não no momento em que estes ocorrem, senão já antes, quando aquele
EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 5, sobre a máxima romana
: “si vuol dire con essa che la legge di per sé sola non dà mais vita a nuove situazioni
giuridiche se non si avverano taluni fatti da essa previsti: non già che il fatto si trasformi in
diritto, bensì una situazione giuridiche nuova”. Em direção análoga, MIGUEL REALE, Lições
preliminares de direito
. . 200: “D
q
D
ina do fato,
porque, sem que haja um acontecimento ou evento, não há base para que se estabeleça um
vínculo de significação jurídica. Isto, porém, não implica a redução do Direito ao fato, tampouco
em pensar que o fato seja mero fato bruto, pois os fatos, dos quais se origina o Direito, são fatos
h
çõ h
”.
17 EMILIO BETTI,
.
. .N
1950: “Appare già dalla proposta definizione
del fatto giuridico che sarebbe un errore concepire la fattispecie come qualcosa di puro fatto,
scevra di qualificazioni giuridiche, o come qualcosa di materialmente separato o di
cronologicamente staccato dalla nuova situazione giuridica che vi corrisponde. In verità
questa non è che uno svolgimento di quella, una situazione nuova in c si converte la situazione
preesistente col sopravvenire del fatto giuridico”.
16
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
15
lhes infunde potencialidade jusgenética. Logo, o fato e o fato jurídico não são
categorias ontológicas distintas, mas atitudes axiologicamente diversas diante
”.18
3. Classificação dos fatos jurídicos: fato, ato e negócio jurídico – os
chamados atos-fatos
Afirma-se que os fatos (jurídicos) podem provir espontaneamente da
natureza (fatos naturais) ou da atuação humana (fatos humanos). Os primeiros
são também chamados de fatos jurídicos stricto sensu. Distinguem-se os fatos
naturais em ordinários (o nascimento, a morte, o curso dos rios) e
extraordinários (fortuitos, imprevisíveis ou inevitáveis). Já os fatos humanos,
atribuíveis ao homem, traduzem-se em fatos lícitos (valorados positivamente
pela ordem jurídica) e fatos ilícitos lato sensu (reprovados pelo direito), que, a
seu turno, se distinguem em atos ilícitos (stricto sensu), dos quais decorrem o
dever de reparar, e atos antijurídicos, contrários ao direito e com eficácia
distinta da reparação.19
Os fatos lícitos, ou seja, atribuídos à atividade humana e não reprovados
pelo direito, compreendem os negócios jurídicos, os atos jurídicos stricto sensu,
também designados atos lícitos de conduta, e os chamados atos-fatos,
reconhecidos por parte da doutrina.20
JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio: em busca da precisão conceitual, in Estudos em
Homenagem ao Professor Washington de Barros Monteiro, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 256. O
z: “
ã é
í
propriedade que o Direito lhes acrescenta, com base em puras razões de conveniência ou
oportunidade. Logo é equivocado pretender-se fundar uma tipologia dos fatos jurídicos a partir
de uma angulação estática. Não há fatos jurídicos a priori. É no dinamismo da sua apropriação
axiológica que os fatos adquirem ou não o atributo, eminentemente extrínseco, de serem
í
”.
19 A classificação é adotada por ROSE VENCELAU MEIRELES. O negócio jurídico e suas
modalidades, in Gustavo Tepedino (coord.), A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos na
perspectiva civilR
J
:R
2003 . 183: “O
í
e
distinguem dos atos ilícitos (art. 186), sendo atos que, por estarem em desconformidade com a
í
ã ã
”.
20 A
çã “
í
stricto sensu”
CAIO MÁRIO DA
SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil: Volume I, Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 397 e
MIGUEL REALE, Lições Preliminares de Direito, cit., p. 209. Designando o ato jurídico stricto
sensu como ato lícito de conduta, SAN TIAGO DANTAS, Programa de Direito Civil: Teoria Geral,
Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 211. No que tange à classe dos atos-fatos jurídicos, seu maior
é
P
M
q
: “O
atos-fatos são fatos humanos, em que não houve vontade, ou dos quais se não leva em conta o
ú
ã
í
” (Tratado de
18
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
16
Em imagem gráfica pode-se melhor perceber a classificação:
Fatos naturais
(fatos jurídicos
stricto sensu)
Fatos
jurídicos
lato sensu
i) Ato ilícito
Fatos humanos
(atos jurídicos
lato sensu)
Fatos ilícitos
ii) Ato antijurídico
i) Negócio jurídico
ii) Ato-fato jurídico
iii) Ato jurídico stricto sensu
Fatos lícitos
Muito se disputa acerca da terminologia empregada, especialmente no
que concerne à inclusão dos atos ilícitos no âmbito dos atos jurídicos. Como
bem destacado em doutrina, embora terminologicamente fosse preferível
afastar a ilicitude da qualidade jurídica, consolidou-se, na linguagem corrente, a
qualificação de jurídico não como atributo de legitimidade, senão como gênero,
a traduzir simplesmente a eficácia jurígena independentemente de valoração
: “q
í
q
em vista é a
relevância do acontecimento para o Direito, não a sua conformidade ao
D
”.21
4. A noção de negócio jurídico
A categoria dos atos jurídicos associa-se ao agir humano e suas
consequências – e divergências – decorrem do papel atribuído, nessa atuação, à
vontade humana, em maior ou menor grau, daí decorrendo consequências
diversas.
Chama-se negócio jurídico o regulamento de interesses estipulado pela
autonomia privada, ou autoregulamento ou ato jurídico apto a regular
Direito Privado, Parte Geral, Tomo I: Pessoas Físicas e Jurídicas, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 2012, p. 158).
21 JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio: em busca da precisão conceitual, cit., p. 259, o
q
: “E
ó é
çã
í
D
(...) A bem da estabilidade terminológica conviria, pois, não insistir no outro uso, cuja correção,
entretanto, não pode ser contestada. Ocorre que a língua não é apenas um fato da razão, mas
é
”.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
17
interesses. Constitui-se no principal instrumento engendrado pelo direito civil
para o exercício da autonomia privada. Formulação teórica do final do Século
XVIII, a noção de negócio traduz o esplendor do voluntarismo, procurando
assegurar o mais amplo espaço para a autonomia privada regular seus
interesses.22
“
Daí
sua
definição
çã
tradicionalmente
estabelecida
como
q
constituição, modificação ou extinção de uma situação juridicamente
”.23
Por ter sido concebido como instrumento de consagração da vontade
individual, a noção de negócio jurídico avoca acirradas disputas ideológicas a
partir do final do Século XIX e por todo o Século XX, ao longo das diversas fases
e graus de intervenção do Estado na economia de países de tradição romanogermânica. Os reflexos dessa controvérsia ainda se fazem sentir nos dias de
hoje, com significativas consequências práticas na aferição do papel da vontade
em tema de invalidade dos negócios.
Em síntese estreita, podem-se dividir as diversas posições doutrinárias
em dois grupos conhecidos como teorias subjetivista e objetivista. Pela primeira,
o negócio jurídico é definido como ato de vontade dirigido à produção de efeitos
jurídicos. Concebida pelos fautores do modelo voluntarista, tal concepção, em
suas múltipas vertentes, a partir da construção de Savigny, encontra-se
amplamente divulgada na doutrina brasileira.24 A partir de tal formulação,
cumpre ao intérprete buscar a intenção do agente para aferir a legitimidade do
negócio, já que é o vetor volitivo, isto é, a vontade real, o elemento essencial
dessa categoria jurídica.
Em contrapartida, posicionaram-se os fautores da teoria objetivista, para
os quais a essência do negócio jurídico é a declaração como tal percebida,
reconhecida e considerada legítima pelo ordenamento, independentemente da
Assim destaca FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: . . 389: “A
ó
í
surge, assim, como produto de uma filosofia político-jurídica que, a partir de uma teoria do
sujeito, com base na liberdade e igualdade formal, constrói uma figura unitária capaz de
englobar, reunir, todos os fenômenos jurídicos decorrentes das manifestações de vontade dos
sujeitos no campo da sua atividade jurídico”.
23 ALBERTO TRABUCCHI, Istituzioni di diritto civile, Padova, CEDAM, 1993, p. 124.
24 V. SAVIGNY, Traité de Droit Romain, Tome 3ème, Paris, Firmin Didot Frères, 1856, p. 3 e ss.
Sobre as diversas correntes, ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico: Existência,
Validade e Eficácia, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 4 e ss.
22
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
18
intenção que possa ter tido o emissor. O negócio, portanto, embora resulte de
manifestação de vontade, desprende-se dela, produzindo os efeitos autorizados
pela ordem jurídica sem que se deva, portanto, por irrelevante, perquirir a
intenção do agente emissor da vontade.
Ambas as posições doutrinárias refletem períodos históricos antagônicos,
de coroamento do voluntarismo (individualismo iluminista que perdura do
Século XVIII ao XIX), e de sua rejeição (perspectiva socializante e
intervencionista do final do Século XIX e primeira metade do Século XX).
25
Levadas aos extremos, tais teorias não logram resolver a preocupação, de ordem
eminentemente prática, de conciliar o respeito ao alvedrio individual com a
segurança atribuída à manifestação de vontade, tal qual declarada.
Nesta linha de preocupação, desenvolveram-se, no âmbito das
construções objetivas, posições menos radicais e mais sofisticadas, admitindo a
importância da vontade, embora considerada como anterior ao negócio, em
relação ao qual é a declaração, como manifestação exterior, e não o ato volitivo
em si considerado, elemento essencial. A vontade, por sua vez, não decorre do
simples querer individual, senão da autonomia privada como poder autorizado e
temperado, por balizas valorativas, pelo ordenamento jurídico. 26 O principal
artífice de tais posições é Emilio Betti, formulador da teoria preceptiva. Segundo
tal orientação, o reconhecimento social da vontade tem por referência não
elementos subjetivos internos ao agente, senão a declaração, na forma como
exteriorizada, que se constitui, assim, em preceito vinculativo.
A vinculação do sujeito emissor da vontade à declaração é corroborada
por
ulteriores
elaborações
doutrinárias,
em
especial
as
teorias
da
autoresponsabilidade e da confiança. Pela primeira, embora o elemento
subjetivo seja o vetor do ato de vontade, a vinculação à declaração decorre da
responsabilidade pessoal do seu emissor pela respectiva exteriorização. Pela
teoria da confiança, o preceito emanado pelo negócio, em virtude da declaração,
vincula o seu emissor em virtude da expectativa despertada no corpo social
Abordando essa passagem do Estado liberal do Século XIX para o Estado intervencionista, v.
FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introdução, cit., p. 363.
26 Tratando da limitação da autonomia privada pelas balizas do ordenamento jurídico, expõe
ORLANDO GOMES, Introdução ao Direito Civil . . 242: “M
í
çã
decorre, precisamente, do ordenamento jurídico que lhe reconhece o poder de regular, pela
”.
25
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
19
quanto à correpondência entre a manifestação de vontade e a intenção do
agente. Cabe ao direito, portanto, prestigiar quem confiou na higidez da
declaração volitiva.
A teoria da confiança ganha destaque no direito positivo pátrio, com
intensa repercussão em diversos dispositivos, pelos quais se considera o emissor
responsável por suas declarações, na forma como exteriorizadas, mesmo em
situações de invalidade de negócios, em face de terceiros de boa-fé, ou seja, que
desconheciam a causa da invalidade e que, por isso mesmo, confiaram e agiram
em conformidade com a expectativa gerada pela declaração.27
Com a redução do papel da vontade no direito contemporâneo
(paralela ao crescimento do papel do Estado na relações econômicas) e a
consequente remodelação do conceito de autonomia privada (como poder
atribuído aos particulares associados a deveres negativos e positivos),
funcionalizada a valores constitucionalmente tutelados, mostra-se mais
consentânea com o sistema a definição de negócio jurídico como regulamento
de interesses que agrega fontes heterônomas ao autoregulamento.
Com efeito, pareceria ingênuo reduzir o autoregulamento
preceptivo, em que se constitui o negócio, em ato de vontade, pressuposto nem
sempre íntegro da declaração. Como melhor se verá adiante, a vontade, em si
mesma considerada, não é elemento do negócio jurídico, senão a declaração de
vontade, conforme é manifestada e percebida no mundo social.28
5. Ato jurídico stricto sensu, ato-fato e negócio jurídico em uma
perspectiva funcional
Percebe-se, assim, como a noção subjetiva de boa-fé pode influenciar a figura da boa-fé
objetiva, embora se trate de noções diferentes, conforme explica JUDITH MARTINS-COSTA: “
fé subjetiva tem o sentido de uma condição psicológica que normalmente se concretiza no
convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar lesando direito alheio, ou na
çã „
í ‟
.D
mente, ao conceito de boa-fé objetiva estão
subjacentes as ideias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de
conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração
para com os interesses do alter, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente
” (A boa-fé no direito privado, São Paulo: RT. 1999, p. 412).
28 Nesse sentido, ensina ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico
. . 82: “A
ver, a vontade não é elemento do negócio jurídico; o negócio é somente a declaração de
vontade. Cronologicamente, ele surge, nasce, por ocasião da declaração; sua existência começa
nesse momento; todo o processo volitivo anterior não faz parte dele; o negócio todo consiste na
çã ”.
27
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
20
Ao lado dos negócios jurídicos, situam-se os atos jurídicos stricto sensu,
assim considerados os atos jurídicos que não se destinam a regulamentar,
autonomamente,
interesses
privados.
Limitam-se
a
executar
preceitos
previamente estabelecidos por lei ou por negócio jurídico antecedente,
reduzindo-se, portanto, em sua ontologia, o espaço de atuação (e de controle) da
autonomia privada.
Afirma-se, por isso mesmo, que nos atos jurídicos stricto sensu ou atos
lícitos de conduta, a vontade tem papel menos relevante, já que se limita a dar
eficácia a interesses jurídicos previamente regulados por lei ou por negócio
jurídico anterior. O agente, ao praticá-los, submete-se às consequências
jurídicas que lhes estão previamente reservadas.29
Como acima destacado, a aptidão a regular interesses confere ao negócio
jurídico atributo objetivo de produção de efeitos, independentemente da
intencionalidade subjetiva, voltando-se o ordenamento para o controle da
higidez da declaração da vontade. Já os atos lícitos de conduta, posto
decorrentes da atividade humana, não contêm germe criador de preceitos, já
que a atuação se dá aqui em conformidade com disposição normativa
antecedente.
Em face de tal distinção, afirma-se que, se os efeitos produzidos
decorrem do regulamento definido pelo próprio ato, tem-se negócio jurídico,
como na celebração de um contrato de compra e venda. Se, ao reverso, a eficácia
(finalidade) independe do ato do agente, ainda que a escolha do meio
empregado lhe seja assegurada, está-se diante de ato lícito em sentido estrito,
para qual se exige tão somente consciência de sua prática, 30 não sendo decisivo
ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
ó
“
ato cercado de circunstâncias que fazem com que socialmente ele seja visto como destinado a
z
í
”. S
“
entre os efeitos
atribuídos pelo direito (efeitos jurídicos) e os efeitos manifestados como queridos (efeitos
manifestados), existe, porque a regra jurídica de atribuição procura seguir a visão social e liga
efeitos ao negócio em virtude da existência de
çã
” (Negócio
Jurídico: existência, validade e eficácia, cit., p. 19).
30 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, O Negócio Jurídico no Anteprojeto de Código Civil Brasileiro,
Arquivos do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro, vol. 13, p. 3, set. 1974. V., também, em
perspectiva crítica, JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio, cit., p. 263, que procura
distinguir as noções de negócio e de ato jurídico stricto sensu
“q
”
vontade emitida. No primeiro caso, ter-se-ia liberdade criadora de regulamento. No segundo,
comportamento adstrito a regulamento imposto ao agente.
29
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
21
o papel da vontade31 – é o que ocorre, por exemplo, na fixação de domicílio ou
no reconhecimento de paternidade, cujo exercício deflagra consequências
atribuídas por lei, e no pagamento ou na quitação, que importam a incidência
das regras fixadas por negócio jurídico antecedente.
O Código Civil, no art. 185, prevê a figura dos atos jurídicos lícitos,
distintos do negócio jurídico, determinando-lhes a incidência, no que couber,
das normas atinentes aos atos negociais.32 Procurou o legislador, desta forma,
abranger as duas espécies de atos atribuíveis à vontade humana, sem regular,
por considerar provavelmente desnecessário, a terceira categoria de atos,
designados como atos-fatos. Adotados de maneira bissexta pela doutrina
brasileira, são imputáveis ao agir humano embora desprovidos de elemento
volitivo, associando-se à atuação subjetiva tão somente por relação de
causalidade, despida de qualquer exigência de intencionalidade ou mesmo
consciência de sua prática.33
Os atos-fatos foram concebidos por juristas alemães na primeira metade
do Século passado, adotados por parte da doutrina italiana e desenvolvida no
Brasil por Pontes de Miranda, que os divide em: (i) atos reais; (ii) indenização
sem culpa; (iii) caducidades.34
Segundo PONTES DE MIRANDA, o ato jurídico em sentido estrito pode, residualmente,
apresentar algum elemento volitivo, mas este não constitui requisito seu, nem se volta à
çã
í
í
:“
ú
q
h
ã é
fático do fato jurídico e, pois, não alcança a eficácia jurídica como eficácia do que o fato jurídico
manteve de tal conteúdo. (...) Quem interpelou não precisa ter querido determinado efeito, e só
é
q
çã ” (Tratado de Direito Privado, Parte Geral, cit.,
p. 159).
32 “A . 185. A
í
í
q
ã
ó
í
-se, no que
çõ
Tí
”.
33 SANTORO-PASSARELLI, FRANCESCO, Dottrine generali del diritto civile, Napoli, Jovene, 1966, p.
106-107
: “S
fatti della natura extraumani, ma anche quei fatti che sono, ma potrebbero non essere,
‟
h
”. N
h
‟
z
gente.
Non se ne può dedurre che essi siano da considerare atti in senso stretto, perché il riferimento
soggettivo degli effetti non discende dalla natura di quei fatti, ma dal nesso di causalità fra gli
”.
“S
osi come rientrino in questa categoria, ad esempio, non solo le accessioni
h q
h
‟
q
‟
z
ì
z
„
z
ose
‟
‟
(articoli 927 ss., 934 ss). Dire che si tratta di fatti in senso stretto significa dire che non viene in
q
é
‟
é ‟
h
z
‟ z
”.
34 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. 2, Rio de Janeiro, Borsoi, 1954, p. 372 e
ss. A conclusão é confirmada por JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, A Parte Geral do Projeto de
31
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
22
Por meio dos atos-fatos procura-se explicar a produção de efeitos
jurídicos
decorrentes
de
atos
humanos,
materialmente
considerados,
independentemente de controle quanto à formação da vontade que o originou –
e por isso chamado de atos-fatos – como ocorre na responsabilidade por dano
causado por incapaz (art. 932, I e II, do Código Civil), em que o dever de reparar
deriva do dano causado por alguém independentemente de ter tido este sequer
consciência de sua prática.
O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, admite regime diferenciado
para os atos atribuíveis ao agir humano. Prevê explicitamente a categoria dos
atos jurídicos, em sentido lato, compreendendo os negócios jurídicos e os atos
jurídicos stricto sensu. A partir daí, impõe controle rigoroso ao negócio jurídico,
submetendo-o à extensa disciplina do Título I do Livro III (arts. 104 a 184, do
Código Civil), além das regras incidentes em cada espécie negocial, quando
tipificada (pensa-se no contrato de empreitada, que avocará os dispositivos dos
arts. 610 e ss., do Código Civil). Menos rigoroso, por não importar
autoregulamento de interesses, mostra-se o controle dos atos não negociais, já
que o art. 185 se limita a autorizar a aplicação, no que couber, dos dispositivos
atinentes ao negócio jurídico, cabendo ao intérprete definir o espectro de
abrangência da remissão e o critério de incidência.
Finalmente, no que tange aos atos-fatos, sua disciplina não se encontra
prevista na Parte Geral do Código Civil, que regula difusamente sua incidência
nos eventos humanos específicos dos quais decorrem efeitos jurídicos para cuja
produção não se cogita de qualquer elemento volitivo na conduta do agente.
A classificação, contudo, a despeito de sua importância didática, mostrase estabelecida por critérios abstratos e estruturais (maior ou menor vinculação
da conduta à vontade humana, daí decorrendo gradação qualitativa da atuação
humana), revelando-se insuficiente para as finalidade propostas. Por isso,
provavelmente, apresenta-se tão controvertida a matéria, já que não soluciona
Código Civil Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2003, 2ª ed. atualizada, p. 103, que assim justifica o
dispositivo do art. 185 do C.C., inspirado em disposição semelhante do art. 295º do Código civil
:“
ções humanas que, por força do direito
objetivo, produzem efeitos jurídicos em consideração à vontade do agente, e não simplesmente
çã ”. “Q
ú
h ó
ã
q
ato jurídico, mas sim – e é dessa forma que o considera o direito – em fato jurídico em sentido
estrito (são os atosí
)”.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
23
com nitidez, na dinâmica das relações jurídicas, a disciplina a ser aplicada. 35
Somente a interpretação funcional, ao fotografar o regulamento de interesses
em seu todo, de modo a compreender o ato e suas circunstâncias, inserido na
atividade a ser analisada, permitirá qualificá-lo e estabelecer a disciplina
aplicável.
No âmbito dos atos jurídicos não negociais, por exemplo, ex vi do art.
185, a entrega de coisa determinável em uma compra e venda (art. 487, do
Código Civil) invoca a incidência das normas do negócio jurídico que lhe serve
de título, incluindo o controle quanto à validade do ato de entrega (nulidade ou
anulabilidade do pagamento). Não se poderia tolerar o pagamento praticado sob
coação, por exemplo, ou a quebra da boa-fé objetiva no cumprimento da
prestação. Assim também deve-se exigir de quem reconheceu o filho (não
capacidade mas) a plena consciência do ato praticado. Por outro lado,
reduzidíssima importância terá o papel da construção da declaração de vontade
na hipótese prescrita pelo art. 1.280 do Código Civil, em que o proprietário ou
possuidor exige do vizinho demolição ou reparação diante de iminente ruína
(ato jurídico stricto sensu mandamental, para Pontes de Miranda).36 Nesse
caso, pouco importa a consciência da declaração, fixando o legislador no fato
objetivo suscitado pelo possuidor.
Em posição contraposta, a consciência do comportamento mostra-se
prudentemente exigida para atos materiais classificados como atos-fatos, como
na ocupação de coisa sem dono (res nullius ou res derelicta), na lavragem de
pedaço de madeira alheio por parte do escultor ou no apossamento pelo
exercício possessório. Dispensa-se nestas hipóteses a capacidade de fato, mas
não se poderia deixar de exigir a consciência do próprio comportamento por
parte de quem ocupa, especifica ou adquire a posse.37 Tal discrepância serve de
Sobre o ponto, observa ORLANDO GOMES, Introdução
. . 289: “O
í
„
‟ ã
egoria homogênea. Da dificuldade de sistematizá-los, resulta
hesitação quanto à possibilidade de submetêçã
”.
36 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. 2, cit., p. 461 e ss. A classificação é
minuciosamente resumida por MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do fato jurídico, São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 200-201.
37 Conforme relatado por MOREIRA ALVES, trata“
q
çã
seja, o Besitzbegründungswille ou, mais simplificadamente, Besitzwille”. E
:“
não precisar essa vontade de ser determinada, torna-se alguém possuidor daquilo a que se
destina a receber sua caixa postal ou sua máquina automática de venda (não, porém das cartas
que não lhe são endereçadas ou das coisas para os quais o receptáculo não se destina), e, por não
35
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
24
arrimo para a designação de tais eventos como atos jurídicos stricto sensu e a
rejeição da categoria dos atos-fatos por grande parte dos autores brasileiros.38
Aduza-se, ainda, que a sucessão de atos que compõem a atividade
humana pode ser heterogênea, ou por vezes desprovida de negócio inaugural,
devendo ser examinada a atividade em sua integralidade para a definição da
disciplina aplicável. Neste caso, a função desempenhada pela atividade
determinará a disciplina aplicável, o que terá grande serventia nas chamadas
relações contratuais de fato.
Além disso, embora o negócio jurídico ofereça espaço exuberante de
atuação para a autonomia privada, é errôneo concluir que o ato jurídico não
negocial deva escapar ao controle de merecimento de tutela, por ausência de
liberdade para autoregulamento do próprio interesse. Mesmo circunscritos a
regras cogentes, esses atos traduzem também atuação humana e, por isso,
submetem-se, por conta do art. 185, ao crivo do direito.39
Imagine-se a fixação do domicílio, considerado ato jurídico stricto sensu.
Não se pode afirmar que haja déficit de liberdade no momento da escolha, que
muitas vezes abrange uma série de decisões pessoais e profissionais, as quais,
por outro lado, se tomadas ao longo do tempo, na sucessão de atos que definem
a atividade profissional e pessoal, por vez com repercussão em toda a família,
devem ser examinadas e valoradas em seu todo, e não como eventos
isoladamente considerados.
ser ela juridicamente qualificada, pode o incapaz adquirir a posse desde que tenha consciência
do que quer, como o que, tendo sido curado de doença mental, ainda não deixou de estar
interditado, ou criança com alguns anos de vida (não, todavia, o recém-nascido, o louco, o que
)” (O
ó
Revista do Tribunal Regional Federal, vol. 8,
out-dez/1996, p. 22).
38 Dentre muitos outros, não reconhecem a categoria do ato-fato: CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA,
Instituições de direito civil, vol. I, Rio de Janeiro, GEN, 2009, p. 408; ARNOLDO WALD, Direito
Civil: Introdução e Parte Geral São Paulo: Saraiva, 2009, p. 217; SILVIO RODRIGUES, Direito
Civil: Parte Geral, Volume I, São Paulo, Saraiva, 2006, 158; SAN TIAGO DANTAS, Programa de
Direito Civil, cit., p. 211.
39 Esta parece ser a posição de JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio, cit., p. 264, para
q
“
ó
q
q
é
çã
çã
”.
O
: “P
-se fazer ou não a doação de um bem, ainda ciente do mau uso que
terá, emitir ou não disposições testamentárias, pactuar este ou aquele regime de bens no
casamento etc., mas não se pode deixar de restituir a soma mutuada, de recolher os alugueres
convencionados, de despachar um processo ou proferir uma sentença. Praticadas as ações, já no
primeiro grupo de casos, negócios. No segundo, atos. Nos negócios pergunta-se pelo quod
placet. Nos atos, pelo quod oportet”.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
25
A percepção do conjunto dessas circunstâncias auxilia a compreensão da
disciplina aplicável aos atos não negociais e aos atos-fatos, e do âmbito de
incidência do art. 185 do Código Civil. O dispositivo permite superar a discussão
doutrinária, levada a cabo alhures, acerca da aplicação analógica das normas do
negócio jurídico. No caso brasileiro, o Código Civil autoriza a utilização direta,
no que couber, dos dispositivos pertinentes contidos em todo o Título II. A
pertinência de tal utilização dependerá da função concreta que desempenha a
atividade no âmbito da qual se situam os atos considerados.
Por outro lado, o afastamento de qualquer relevância subjetiva para
certos atos humanos, justificando a invocação dos atos-fatos, mostra-se útil, no
direito brasileiro, não por peculiaridade ontológica da noção, importada do
direito alienígena, mas tão somente nas hipóteses em que os efeitos atribuídos
pelo legislador pátrio independam do comportamento do agente, como parece
ser exemplo típico a conduta do incapaz que causa dano indenizável (art. 932,
II, do Código Civil).
6. Negócio jurídico no Código Civil e seus três planos de análise:
elementos de existência, requisitos de validade, fatores de eficácia
O Código Civil, na esteira das codificações dos países de tradição romanogermânica, dedica ao negócio jurídico, significativamente, 80 artigos (arts. 104 a
184), que compõem o Título I do Livro III, do Código Civil. A doutrina separa a
análise do negócio jurídico em três planos, de modo a verificar, em etapas
sucessivas, os pressupostos de existência (plano de existência), os requisitos de
validade (plano de validade) e as condições para produção de efeitos (plano de
eficácia).40 Significa dizer que negócio há de ser, antes de mais nada, existente,
ou seja, conter os pressupostos para o seu surgimento do mundo jurídico. 41 Em
seguida, uma vez estabelecida a existência jurídica do negócio, examinam-se
seus requisitos de validade, isto é, os atributos considerados essenciais, sem os
A difusão dos três planos de análise do negócio jurídico no Brasil costuma ser atribuída
sobretudo à obra de PONTES DE MIRANDA. A respeito, v. Tratado de direito privado, t. 4. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1970, pp. 6 e ss.
41 Explica ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO: “Q
do acontece, no mundo real, aquilo que estava
previsto na norma, esta cai sobre o fato, qualificando-o como jurídico; tem ele, então, existência
í
” (Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 23).
40
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
26
quais o negócio será considerado nulo ou se sujeitará à anulação.42 Se os dois
primeiros planos forem superados pelo intérprete, ou seja, estabelecidas a
existência e a validade do negócio, passa-se à última etapa, a saber, investiga-se
se o negócio, plenamente válido, mostra-se apto à produção de efeitos
jurídicos.43 Em resumo, pode-se afirmar que os elementos do negócio jurídico
são as partes integrantes do ato, ao passo que os requisitos do negócio são as
suas qualidades e os pressupostos são os fatos jurídicos que lhe são anteriores.
Reputa-se, assim, existente o negócio que contém os seus elementos
essenciais. Com efeito, faz-se alusão na doutrina a ao menos três espécies de
elementos:
a) elementos essenciais (essencialia negotti): são os elementos
fundamentais para o ingresso do ato no mundo jurídico. Trata-se da vontade
declarada, do objeto, da forma e da causa do negócio;44
b) naturais (naturalia negotti): são os elementos que, fixados
supletivamente pela lei para o negócio, por isso mesmo, comporão o
regulamento de interesses se não forem afastados pela autonomia privada.45
Pense-se, por exemplo, no lugar do pagamento, quando não convencionado (art.
327 do Código Civil).46
Não se confunde a invalidade com a simples ineficácia, conforme assevera EMILIO BETTI: “A
invalidade é o tratamento que corresponde a uma carência intrínseca do negócio, no seu
conteúdo preceptivo; a ineficácia, pelo contrário, apresenta-se como a resposta mais adequada a
um impedimento do caráter extrínseco, que incida sobre o projetado regulamento de interesses,
z çã
” (Teoria geral do negócio jurídico, cit., pp. 655-656).
43 Conforme explica CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “
stricto sensu, é a recusa de efeitos
quando, observados embora os requisitos legais, intercorre obstáculo extrínseco, que impede se
complete o ciclo de perfeição do ato. Pode ser originária ou superveniente, conforme o fato
impeditivo de produção de efeitos, seja simultâneo à constituição do ato ou ocorra
” (Instituições de direito civil, vol. I, cit., p.
539).
44 Segundo ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, os elementos essenciais podem ser gerais
(subdividindo-se entre intrínsecos ou constitutivos – forma, objeto e circunstâncias negociais –
e extrínsecos ou pressupostos – agente, lugar e tempo do negócio) ou, ainda, categoriais
(referentes a determinados tipos negociais, sendo que os elementos categoriais inderrogáveis
seriam espécies de essencialia negotii e os derrogáveis, de naturalia negotii) (Negócio jurídico,
cit., p. 40).
45 Afirma ROBERTO DE RUGGIERO: “N
ã
[
]q
z
típica do negócio, os que são conforme com a sua índole, os que o próprio ordenamento refere e
exige, ainda quando as partes não os tenham incluído, como, por exemplo na venda, a garantia
da evicção, pela qual responde qualquer vendedor. Permite-se, porém, às partes excluir ou
modificar à vontade esse elemento, visto não ser requisito nem da existência, nem da validade
ó ” (Instituições de direito civil, cit., p. 321).
46 Có
C : “A . 327. E
-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes
convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das
42
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
27
c) acidentais (accidentalia negotti): podem figurar no negócio desde que
expressamente previstos pelas partes. São responsáveis por modificar apenas a
eficácia do ato, constituindo, principalmente, as chamadas modalidades dos
negócios: condição, termo e encargo.47
Embora a doutrina brasileira nem sempre o admita, a causa é elemento
essencial do negócio jurídico, ao lado dos elementos subjetivo, objetivo e formal.
Não se confunda causa com motivo, de natureza subjetiva ou psicológica. Do
ponto de vista técnico, a causa consiste na mínima unidade de efeitos essenciais
que caracteriza determinado negócio, sua função jurídica, diferenciando-o dos
demais. Somente a identificação da causa pode determinar a qualificação
contratual, a invalidade ou ineficácia de certas relações jurídicas para as quais o
exame dos demais elementos mostra-se insuficiente. Bastaria lembrar os
contratos, como a compra e venda de coisa futura e a empreitada, que se
diferenciam exclusivamente em virtude da função ou causa que lhes é peculiar;
ou a compra e venda de objeto lícito (uma arma, por exemplo), mas cuja
invalidade decorre da ilicitude do objeto no contexto causal (a arma destinada à
prática de certo crime).48
Existente o negócio jurídico, parte-se para a análise de sua validade, vale
dizer, para a verificação do cumprimento dos requisitos negociais previstos pelo
art. 104 do Código Civil. Trata-se das qualidades exigidas para os elementos
essenciais: capacidade do agente que declara a vontade, licitude do objeto
negocial e legalidade da forma escolhida para o ato (ou seja a sua
correspondência à previsão ou não vedação legal).
Superadas as duas primeiras etapas, a produção de efeitos pelo negócio
jurídico depende ainda da análise de sua eficácia propriamente dita, que pode
ser obstada pela aposição de cláusula acessória ao negócio jurídico. A hipótese, a
circunstâncias. Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor escolher entre
”.
47 Segundo ROBERTO DE RUGGIERO, “A
ã q
[
] q
ã
z
pela vontade das partes (visto o negócio ser suscetível disso) e que tendem a modificar o tipo
abstrato na espécie concreta a que se dá vida. São em número infinito, mas há três que têm
[...]:
çã
”
(Instituições de direito civil, cit., p. 321).
48 GUSTAVO TEPEDINO. A responsabilidade civil nos contratos de turismo. Temas de Direito Civil.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 254-255.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
28
que se costuma denominar modalidade do negócio, será objeto de capítulo
específico.
7. Classificação dos negócios jurídicos
Classificam-se usualmente os negócios jurídicos em diversas categorias, cuja
identificação tem por escopo permitir ao intérprete a determinação de certos aspectos
de sua disciplina legal.
Uma primeira classificação divide os negócios jurídicos entre unilaterais,
bilaterais ou plurilaterais, conforme o número de partes que deles
participem.49 Vale notar que não se trata de classificação meramente
quantitativa, mas também qualitativa, uma vez que o mesmo centro de
interesses na relação negocial pode ser ocupado por inúmeros indivíduos e,
ú
“
”
q
classificação.50 Contam-se, assim, a rigor não propriamente os sujeitos que
tomam parte do negócio, mas o número de centro de interesses contrapostos, o
que permite tanto cogitar de negócios unilaterais (como o testamento, reputado
válido pela simples emissão de vontade do testador e antes que qualquer outra
pessoa tome conhecimento de seu conteúdo, ou o ato de renúncia a um direito),
quanto de negócios bilaterais (talvez a modalidade mais comum, como em um
contrato simples de compra e venda) ou mesmo plurilaterais (pense-se em atos
mais complexos, como o contrato de sociedade).
Os negócios jurídicos reputam-se ainda típicos ou atípicos, conforme sua
estrutura elementar tenha sido ou não prevista, junto à respectiva disciplina,
pelo legislador. A doação e a empreitada constituem negócios jurídicos típicos,
ORLANDO GOMES, Introdução ao direito civil, cit., p. 277.
Assim observa PIETRO PERLINGIERI a respeito das relações jurídicas (inclusive aquelas de
): “
çã
é q
interesses. O sujeito é somente um elemento externo à relação jurídica porque externo à
situação: é somente o titular, às vezes ocasional, de uma ou de ambas as situações que compõem
a relação jurídica; de maneira que não é indispensável referir-se à noção de sujeito para
individuar o núcleo da relação jurídica. O que é essencial é a ligação entre um interesse e um
çã
” (O direito civil na
legalidade constitucional, cit., p. 734). No mesmo sentido, ORLANDO GOMES: “
que constituem uma parte agem em bloco unificadas pelo mesmo interesse. Por isso, a relação
jurídica constituída não se desdobra em tantas relações quantas sejam as pessoas componentes
” (Introdução ao direito civil, cit., p. 277). V., ainda, CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA: “ onceito exato de parte pode-se dizer direcional, e traduz o sentido da declaração de
” (Instituições de direito civil, vol. I, cit., p. 427).
49
50
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
29
uma vez que sua qualificação remete ao modelo legal desses contratos previsto
pelo Código Civil. No que tange aos negócios atípicos, trata-se, não raro, de
contratos complexos que combinam elementos de diversos tipos legais;
ilustrativamente, o contrato celebrado entre um viajante a agência de turismo, a
envolver serviços de transporte, hospedagem e diversos outros. Alude-se por
z
“
ó
”
h ó
q
congregam elementos de diversos tipos legais – terminologia de todo criticável,
vez que pressupõe a possibilidade de um meio termo entre a tipicidade e a
atipicidade, o que, ao menos à luz da doutrina causalista, resultaria impossível. 51
Dizem-se gratuitos os negócios que envolvem sacrifício patrimonial de
apenas uma das partes, ao passo que onerosos são os negócios que importam
em diminuição patrimonial para ambas.52 Tal conceituação, amplamente
difundida pela doutrina, exige certa cautela; de fato, não é propriamente o
decréscimo patrimonial que caracteriza a onerosidade, pois pode acontecer que
a equação econômica do negócio não pressuponha o sacrifício do patrimônio da
parte onerada.53 Melhor, assim, compreender que será gratuito o negócio que
importe a obtenção de vantagem por apenas uma das partes, reputando-se
oneroso o negócio em que ambas as partes buscam obter vantagens
patrimoniais.54
Conforme já se afirmou em outra sede, os negócios atípicos não se confundem com os
contratos coligados, n
çã “
ó
”: “O q
z
contrato atípico é precisamente sua autonomia causal em relação aos tipos contratuais prédispostos pelo legislador. Nos contratos coligados, ao contrário, malgrado a interdependência
negocial que os vincula, normalmente com caráter de acessoriedade, cada qual mantém sua
própria função técnico-jurídica. Já os chamados contratos mistos, a doutrina os caracteriza pela
presença de elementos peculiares a dois tipos contratuais (com a predominância de um deles, de
modo que se possa defini-lo ou classifica-lo em um ou outro tipo legal). A conceituação,
contudo, parece suscetível de objeção evidente, ao menos para os fautores de doutrinas
causalistas, já que a síntese dos efeitos essenciais fará de cada contrato – lógica e
ontologicamente –, ou bem típicos ou simplesmente atípicos, esvaecendo o valor dessa categoria
” (GUSTAVO TEPEDINO, A responsabilidade civil nos contratos de turismo, cit., p. 258).
52 Cf., por exemplo, uma das definições citadas por ORLANDO GOMES: “N
ó
í
é
o que implica mútua transmissão de bens. Gratuito, o que se realiza com vantagem exclusiva
çã
ô
” (Introdução ao direito civil, cit.,
p. 311).
53 Registra ORLANDO GOMES que a busca de um nexo causal entre duas atribuições patrimoniais
contrapostas acabaria por equiparar o negócio oneroso ao negócio bilateral sinalagmático,
tornando inútil a primeira classificação (Introdução ao direito civil, cit., p. 312).
54 Assim, por exemplo, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: “É
q
uma vantagem econômica, à qual corresponde uma prestação correspectiva, e gratuito aquele no
qual uma pessoa proporciona a outra um enriquecimento, sem contraprestação por parte do
” (Instituições de direito civil, vol. I, cit., p. 426).
51
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
30
São inter vivos os negócios cuja eficácia se inicia durante a vida dos
negociantes, e causa mortis os que têm seus efeitos dependentes da morte de ao
menos uma das partes, sendo o exemplo clássico deste último tipo o
testamento.55 Consideram-se solenes ou formais os negócios que apresentam
exigências de forma previstas em lei (tais como os negócios envolvendo imóveis
cujo valor supere o piso estabelecido pelo art. 108 do Código Civil), 56 por
oposição aos negócios não solenes ou consensuais, que têm forma livre. Faz-se
alusão, ainda, aos negócios jurídicos puros e aos negócios com modalidades,
conforme os negócios apresentem ou não os elementos acidentais do termo, da
condição ou do encargo.
8. Atividade contratual sem negócio jurídico
A despeito da prevalência, até os dias de hoje, da dogmática voluntarista,
a evolução política e econômica da sociedade, desde o final do Século XIX,
exigiu a interferência do Estado nas relações privadas, mitigando-se a força
vinculante da vontade negocial. Especialmente diante de situações específicas
de vulnerabilidade, arrefeceu-se a tutela concedida ao interesse individual em
favor de outros interesses jurídicos socialmente protegidos. Por conta da eclosão
de movimentos sociais, no Brasil e alhures, a intervenção nas atividades
contratuais incidiu primeiramente nas relações laborais, tendo sido o direito do
trabalho precursor do que se convencionou chamar de dirigismo contratual,
destinado a proteger a parte mais desfavorecida – técnica e economicamente –
do contrato de trabalho. O desconforto do direito privado clássico com a
intervenção heteronímica57 na deliberação das partes levou à autonomia do
direito do trabalho, afastando-se do direito civil tudo o que se considerava
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de direito civil, vol. I, cit., p. 426.
Có
C : “A . 108. Nã
ú
é sencial à
validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia
de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente
P í ”.
57 Sobre a referida intervenção heterônoma nos contratos, afirma STEFANO RODOTÀ que o
contrato, embora decorrente da vontade das partes, uma vez formado, sujeita-se à intervenção
h
: “è
h
ispirano ciascuna a peculiari valutazioni: ma qui interessa rilevare soltanto che tutte convergono
z
;
q
‟
particolare ratio delle singole fonti non viene in questione, riguardando esclusivamente il modo
é
” (Le fonti di integrazione del contrato, Giuffrè,
Milano, 2004, p. 87).
55
56
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
31
destinado a reduzir o papel da vontade como fonte soberana de vínculos
obrigacionais.58
Esse processo de intervenção legislativa, que muitos julgavam
contingências momentâneas de crises econômicas, mostrou-se inevitável e
irreversível, acirrando-se na primeira metade do Século XX como mecanismo de
equilíbrio do mercado e do próprio regime capitalista. Nessa esteira, as locações
também foram objeto de forte intervenção legislativa, com o intuito de gerir a
escassez de imóveis e as crescentes demandas locatícias. Ao longo do tempo,
tem-se tutelado de modo imperativo tanto o direito à moradia quanto o fundo
de comércio, assegurando-se desde os anos 30 do Século passado a renovação
do contrato de locação para fins comerciais (Decreto 24.150, de 20 de abril de
1934). O legislador interveio também intensamente na economia popular,
combatendo os juros extorsivos, o curso de moeda estrangeira e assim por
diante.59
O incremento da intervenção estatal, que se acirrou na Europa a partir da
Segunda Grande Guerra, destinado à tutela de direitos fundamentais alcançados
pela iniciativa econômica privada e que, no Brasil, culminou com a Constituição
da República de 1988, acaba por colocar em crise a noção de autonomia privada
e a teoria do negócio jurídico, incapazes de abranger a variedade de modelos e
interesses mediante os quais a atividade privada se estabelece e é socialmente
reconhecida.
C
: “C
movimento teórico de sustentação do direito de trabalho com construções antiformalistas
surgidas no final dos anos 60 do século passado, que se opunham aos princípios dogmáticos do
direito privado, inflexíveis no assegurar a vontade do proprietário e do contratante. Em certa
medida, o crescimento do direito do trabalho, na segunda metade do século XX, coincide com a
legitimação política do Welfare State e se aproxima a formulações teóricas que, na tentativa de
romperem com a lógica da igualdade formal, notabilizaram-se como o uso alternativo do
direito. A afirmação de direitos subjetivos extraproprietários, capazes de vergar as forças
hegemônicas e de fazer prevalecer direitos sociais, afigurava-se sediciosa, sendo significativa a
alusão, por parte de conceituado teórico do direito francês, à criação de contradireitos”
(GUSTAVO TEPEDINO, “D
h :
” I G
Tepedino et al. (coords.), Diálogos entre o direito civil e o direito do trabalho, São Paulo: RT,
2013, pp. 14-15). S
ã “
”
-se MICHEL MIAILLE: “T
políticas e sociais dos séculos XIX e XX se desenrolaram sob esta palavra de ordem; todas as leis
liberais que foram, assim, arrancadas à ordem burguesa se justificam pelos direitos subjetivos,
do direito à instrução ao direito de defesa, passando pelo direito de associação. Neste sentido,
como toda a ideologia de combate, a afirmação dos direitos subjetivos faz parte de uma luta viva,
z
[...] É „
‟” (Uma introducao critica ao direito, Lisboa:
Moraes, 1919, p. 143‑144).
59 Cfr., dentre outras normas, o Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933; Lei nº 1.521, de 26 de
dezembro de 1951.
58
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
32
Anotem-se, nesse longo itinerário histórico, ao menos duas relevantes
consequências para a teoria dos contratos. De um lado, o aparecimento de
princípios mitigadores da obrigatoriedade e da relatividade dos pactos,
notadamente a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e a função social, que
desde o início do Século XX foram incorporados gradualmente às legislações
nacionais, dando margem ao surgimento de numerosos instrumentos de
controle da justiça contratual (como a lesão, a revisão e a resolução por
excessiva onerosidade, o adimplemento substancial, a vinculação a deveres
anexos, o dever de mitigar danos, a proibição de comportamento contraditório,
o abuso de direito). Essas e tantas outras figuras, na experiência brasileira,
foram absorvidas pela doutrina, legislação e jurisprudência somente no final do
Século XX, especialmente a partir da Constituição da República de 1988 e do
Código de Defesa do Consumidor, de 1990. De outra parte, como espécie de
válvula de escape para o rigor técnico imposto pelo excessivo controle de
validade dos negócios jurídicos, desenvolveu-se, a partir do final da primeira
metade do Século XX, a teoria das relações contratuais de fato, a qual, ao
confrontar a realidade jurídica à realidade fática, teve o mérito de alargar a
admissibilidade, pelo direito, de relações admitidas socialmente embora sem a
proteção conferida pelo Direito ao negócio. De maneira geral, os países da
família romano-germânica que adotam, de forma direta ou indireta, a doutrina
do negócio jurídico, encontram dificuldade semelhante: o excessivo controle de
validade do negócio acaba por excluir de seu espectro de incidência certas
atividades que, em sua substância, despidas do aparato negocial, são admitidas
como socialmente úteis e legítimas pelo corpo social.
Diante do contraste entre a legitimidade da atividade desenvolvida e a
invalidação do ato negocial que a constitui, autores de renome sustentaram a
preservação dos efeitos de tais atos a despeito de sua invalidade. No início do
Século XX, Haupt construiu teoria pioneira nesta direção. 60 Com resultados
semelhantes, Larenz produziu trabalho importantíssimo no qual concebeu a
categoria dos comportamentos socialmente típicos.61 De outra parte, na
GÜNTHER HAUPT, Über faktische Vertragsverhältnisse, 1941.
KARL LARENZ, O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de comportamento
social típico (1956), in Revista Direito GV, vol. 2, n. 1, jan-jun/2006.
60
61
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
33
doutrina italiana, Ascarelli62 e inúmeros outros conceituados autores
desenvolveram, em diversos campos da autonomia privada, o que seria a teoria
das relações jurídicas de fato, a qual atingiu o seu apogeu nos anos 60 e 70, com
o seu reconhecimento pela Corte Suprema Alemã – BGH (Bundesgerichtshof).63
Paradoxalmente, o principal motor da teoria do comportamento
socialmente típico, consubstanciado na crítica à exasperação da vontade
negocial como fonte primordial das obrigações, transformou-se em sua maior
vulnerabilidade. Associada ao processo histórico de crítica ao poder impositivo
das forças econômicas nos regulamentos contratuais, no âmbito da massificação
da economia e do fortalecimento dos mercados consumidores, a teoria do
comportamento típico passa a ser admitida a prescindir do elemento volitivo.
Buscava-se proteger a vontade do vulnerável, estigmatizando-se o poder da
vontade como inevitável imposição das forças econômicos na celebração dos
negócios jurídicos. Em última análise, da crítica ao voluntarismo opressor
decorreu a hostilidade à vontade e a rejeição de seu papel como motor da livre
iniciativa. Tal perspectiva não resistiria à retomada dos movimentos liberais
que, ao lado do declínio do Welfare State, acabaram por sepultar a doutrina do
comportamento socialmente típico.
Com efeito, a partir dos anos 70 do Século passado, assistiu-se, tanto na
Alemanha quanto na Itália e em Portugal, à progressiva substituição dessa
Ao propósito, a obra de TULLIO ASCARELLI mostra-se particularmente importante. Cfr. Lezioni
di diritto commerciale - Introduzione,1955, Milano, Giuffrè, pp. 102 a 108, onde se lê:
“L‟
è
z
singoli atti, singolarmente considerati. Indipendentemente dalla disciplina dei singoli atti può
essere illecito (o sottopo
) ‟
z
‟
” ( . 103). S
v. também o verbete fundamental de Giuseppe Auletta (Attività (dir. priv.), in Enciclopedia del
diritto
. III M
G
è 1958 . 982) q
“q
me di atti di diritto
z
”.
63 Na doutrina italiana, CARLO ANGELICI analisa o caso julgado em 28 de Janeiro de 1976 pelo
Bundesgerichtshof em que uma criança se acidentou no supermercado enquanto a mãe
comprava, e estava pagando no caixa. Discutiu-se se a responsabilidade era contratual ou
extracontratual e se haveria responsabilidade pré-contratual. Exclui-se a responsabilidade préconratual já que a autora, sendo criança, não efetuaria compra alguma, ou seja, não teria nada a
comprar, o que a impediria de intentar a ação contra o supermercado (Responsabilità
precontrattuale e protezioine dei terzi in uma recente sentenza del Bundesgerichtshof, in
Rivista del diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, I, ano LXXV, 1977, pp.
23-30). Segundo observa o autor, o dever de boa-fé serve de fundamento para a relação de
proteção em face de terceiros, aplicando-se a teoria designada como Vertrag mit Schutzwirkung
sugunsten Dritter, de modo a proteger terceiros alcancados pela atividade contratual
q q
í
: “ Bundesgerischtshof accentua il profilo del
rapporto di protezione che deve intercorrere tra il contraente ed il terzo danneggiato e riconduce
z
‟
” ( . 25).
62
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
34
construção por uma ampliação da categoria do negócio jurídico, cuja
abrangência o tornaria apto a compreender numerosas atividades socialmente
típicas, ora mediante a invocação de vontade presumida dos seus agentes (a
ampliar o conceito de negócio jurídico), ora por meio da ratificação de atos
inválidos, ora mediante a mera admissão de efeitos patrimoniais ressarcitórios
decorrentes de negócios inválidos – cuja fonte, portanto, seria o ato ilícito, não
já o contrato.
Do ponto de vista dogmático, não parece convincente a legitimação de
efeitos obrigacionais com base na técnica da vontade presumida ou, por outro
lado, como mera liquidação de danos. Basta lembrar a hipótese do incapaz que
compra e vende artigos de suas necessidades pessoais, faz-se transportar e
assim por diante. Não seria razoável admitir como válidos tais negócios com
fundamento em suposta vontade presumida de seus responsáveis, já que, por
vez, as atividades desenvolvidas são levadas a cabo contra a vontade expressa de
quem deveria autorizá-las. Também em outras hipóteses de atividades
desenvolvidas por pessoas capazes, mostra-se insustentável cogitar-se de
vontade presumida pelo simples fato de que o agente se recusa a celebrar o
negócio. E tampouco se sustentaria a explicação circunscrita à liquidação de
danos quando se pensa na execução específica de certos contratos fundados em
negócio nulo, na esteira de tendência progressiva do direito obrigacional.
Daí ser plausível a suspeita de que a rejeição à doutrina do
comportamento social típico se associe mais ao contexto histórico e ideológico
em que se insere do que aos seus fundamentos teóricos. Por ter sido germinada
em oposição à Teoria do Negócio Jurídico, aquela doutrina acabou sendo
desenvolvida como construção crítica ao papel da vontade na teoria contratual,
associando-se a orientações que, por diversos matizes, enalteceram, ao longo do
Século XX, o papel do Estado intervencionista, seja em regimes autoritários de
diversos países, seja no dirigismo contratual.64
Bastaria, para comprovar tal percepção, a crítica de DIETER MEDICUS à expressão
“
í
” (Il ruolo centrale delle disposizioni relative al negozio
giuridico, in I Cento anni del codice civile tedesco in Germania e nella cultura giuridica
italiana – Atti del convegno di Ferrara, 26-28 settembre 1996, Padova, Cedam, 2002, pp. 155 a
176). O autor critica (p.165) especialmente a decisão da Corte alemã (sentenza de 1966,
Landgericht di Brema, in NJW 1966, p. 2360) que obrigou o pagamento de bilhete de trem em
face de um menino de 8 anos que havia realizado o trajeto, imputando-lhe também a multa.
Invoca o festejadíssimo Flume (civilista liberal que se transformou em uma lenda viva na
64
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
35
As duas últimas décadas do Século passado, por outro lado, coincidem,
em diversos países europeus e da América Latina, com a densificação do
neoliberalismo e, especificamente na esfera jurídica, com a retomada
entusiasmada do prestígio da autonomia privada, reduzindo-se, em diversos
setores – mercado de locação, relações de trabalho, setores da economia
privatizados – o grau de intervenção do Estado, que adquire feição
regulamentar, com suas agências e instrumentos que enaltecem o papel da livre
contratação, ainda que sob rígido controle do Estado.
A Europa, neste particular, diferencia-se da América Latina, onde, talvez
pelas contradições sociais ainda muito evidentes, e por não se terem alcançado
níveis médios satisfatórios na promoção dos direitos sociais, é compreensível
que se propugne por um grau de intervenção e de promoção de políticas
públicas maior, capaz de favorecer a distribuição de rendas e diminuir a
desigualdade social. Tal diferença, superficialmente percebida, explica, em certa
medida, intensificação mais visível, na doutrina europeia, da retomada do papel
da vontade nas atividades privadas.
A preocupação com a preservação da vontade como elemento relevante
da iniciativa privada, associada à reação liberal ao dirigismo contratual,
mostram-se eloquentes para a compreensão do alargamento das doutrinas do
negócio jurídico e da rejeição da doutrina do comportamento social típico.
Entretanto, a análise dos comportamentos socialmente típicos, especialmente
na perspectiva ascarelliana de atividade contratual sem negócio, não renega o
papel da vontade, limitando-se a considerar secundária, para determinadas
atividades socialmente típicas, a vontade negocial, ou seja, a existência de
negócio jurídico que inaugure a atividade já existente de fato. Considerando-se a
insuficiência do negócio jurídico – e da vontade presumida – para justificar a
Alemanha, por sua posição de resistência ao regime nazista, quando se exonerou da Cátedra),
que reduz a construção à retroatividade de efeitos para relações obrigacionais inválidas. Afirma
. 166: “I
„
‟h
periodo in cui era stata ad essi data esecuzione, contratti di lavoro subordinato e contratti di
società conclusi sulla base di
(…). I
h
‟
‟
ex
tunc (Rücktritt), con una causa di scioglimento del rapporto non pienamente retroattiva,
assimilabile al recesso operante ex nunc (Kündigung)”. E
: “I
conclusione, si può dire che, nel complesso, il diritto classico dei contratti, imperniato sulla
volontà negoziale, ha saputo difendersi dagli attacchi che gli sono stati portati: i tentativi operati
q
q
h F
h
„giurisprudenza della corsa in
tram‟
(Jurisprudenz der Straßenbahnfahrt)”.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
36
presença de atividades admitidas pelo grupo social, que produzem efeitos
jurídicos carecedores de qualificação, ainda que desprovidas de negócio
fundante, torna-se oportuno revisitar a doutrina dos comportamentos
socialmente típicos.
Do ponto de vista metodológico, a atividade contratual sem negócio exige
qualificação da concreta relação jurídica a partir da sucessão de atos
funcionalmente interligados, sem prévia tipificação e reconhecimento jurídico
do negócio. Corrobora-se o ocaso da subsunção, como técnica hermenêutica a
reclamar
premissa
legal
abstrata,
correspondente
a
suporte
negocial
determinado, em favor da verificação em concreto da disciplina aplicável ao
conjunto de atos de natureza diversa. Amplia-se, dessa forma, o controle da
atividade privada, permitindo-se proteger efeitos socialmente relevantes
decorrentes de negócios nulos ou inexistentes, sem que a presença de negócio
válido seja um pressuposto para a tutela jurídica.
O que se pretende propor, para a reflexão contemporânea, é a
necessidade de se reler a doutrina dos comportamentos socialmente típicos, a
partir, não já do afastamento do elemento volitivo como motor da livre
iniciativa, mas da distinção entre a vontade negocial e a vontade contratual. O
negócio jurídico mantém-se vinculado ao controle estabelecido pelo Código
Civil. Ao seu lado, contudo, uma série de atividades socialmente típicas,
decorrentes de atos não negociais, é valorada positivamente e a ordem jurídica
reconhece, como jurígenos, seus efeitos. Enquanto no negócio jurídico a
declaração de vontade hígida é um prius para a sua validade (elemento
essencial), nas atividades socialmente típicas a vontade suscita verificação in
posterius, a partir dos efeitos por elas produzidos, independentemente de
declaração destinada à instauração do vínculo, conferindo-se juridicidade a
situações jurídicas que, de outra forma, não poderiam ser admitidas.
A rigor, a admissão da relação contratual sem negócio permite atribuir
juridicidade a efeitos socialmente reconhecidos, a partir de qualificação a
posteriori da função da atividade realizada, estabelecendo-se, dessa forma,
controle de merecimento de tutela, à luz da legalidade constitucional, acerca de
atos praticados sem negócio jurídico de instauração (mas que, nem por isso,
podem ser considerados fora da lei), cuja eficácia, de ordinário, é mais restrita
do que a gama de efeitos almejados pelo negócio. Basta lembrar as hipóteses do
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
37
funcionário público cujo acesso à carreira não se deu por concurso público;65 ou
do vínculo empregatício do apontador de jogo do bicho;66 ou do policial militar
em empresa de segurança privada, a despeito de vedação legal expressa; 67 ou do
menor que adquire, por si mesmo, produtos ou serviços; ou ainda o exemplo dos
sócios de sociedade irregular ou da pessoa que integra modalidade de família
inadmitida pelo direito.68
Em todos esses casos, a invalidade dos negócios não exclui a
admissibilidade, para certos fins, de eficácia jurídica à atividade desenvolvida. E
somente graças a artificialismo retórico se poderia afirmar que se pretendeu, em
tais hipóteses, celebrar ou extinguir uma série de negócios, alçando-se o mesmo
efeito rejeitado ora pela vontade expressa do declarante, ora pela lei. Torna-se,
assim, incongruente, nesses casos, falar-se em negócio jurídico, cuja admissão
colidiria com matéria de ordem pública, que pauta a teoria das capacidades, das
formas ad substantiam e da licitude dos bens passíveis de circulação.
A
. E
º 363
Sú
TST: “C
. Efeitos (nova redação) Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem
prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente
lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de
horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos
ó
FGTS”.
66 A respeito, v. a O.J. nº 199 da SDI-1: “J
h .C
h .N
.O
ilícito (título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010. É nulo o
contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do
bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato
í
”.
67 A hipótese é disciplinada pelo art. 22 do Decreto.º 667/1969: “A . 22. A
Polícias Militares, em serviço ativo, é vedado fazer parte de firmas comerciais de empresas
industriais de qualque
z
çã
”.
68 Em interessante precedente, o Superior Tribunal de Justiça, baseado no princípio da
monogamia (compreendido pela Egrégia Corte como essencial ao regime das famílias no
ordenamento brasileiro), decidiu, ao analisar pretensões sucessórias das partes, pela
impossibilidade de reconhecimento de duas uniões estáveis simultâneas do de cuius – que, após
se divorciar, manteve união estável com a própria ex-esposa, bem como com segunda mulher. In
casu, foi privilegiada a união estável com a companheira com a qual não foi casado, em
detrimento da união com a ex-esposa (iniciada após o divórcio), reputada concubinato diante da
pré-existência da outra união (STJ, REsp. 1.157.273, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg.
18.5.2010).
65
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
38
O CORPO DO REGISTRO NO REGISTRO DO CORPO; MUDANÇA DE
NOME E SEXO SEM CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO
Luiz Edson Fachin69
Resumo: Os direitos de personalidade se apresentam como essenciais para o
paradigma do Estado Democrático de Direito. Dentre eles, o direito ao nome e o
direito ao próprio corpo assumem importante papel na criação da identidade do
ser humano e em sua autodeterminação. Na temática das pessoas transexuais, a
garantia do livre exercício do direito ao nome e ao corpo se torna ainda mais
fulcral. Cada vez mais a jurisprudência vem admitindo a possibilidade de
alteração de prenome e sexo no registro civil de transexuais após a cirurgia de
transgenitalização. Quando não há a cirurgia, contudo, a jurisprudência torna a
não permitir a alteração. Considerando-se que a categoria de gênero ultrapassa
a ideia de sexo biológico, e levando-se em conta o princípio da dignidade da
pessoa humana, torna-se essencial a defesa da possibilidade de alteração do
registro civil mesmo sem a cirurgia de redesignação sexual, como forma de
garantia da dignidade.
Palavras-chave: Direito ao nome; direito ao corpo; dignidade da pessoa
humana; identidade de gênero; transexuais; cirurgia de transgenitalização.
Abstract: Personality rights are presented as essential to the paradigm of the
Democratic State of Right. Among them, the right to a name and the right to
own body play an important function in creating the identity of human beings
and their self-determination. In the theme of the transgender people, the
guarantee to free exercise of the right to the name and the body becomes even
more crucial. Incrisingly, the jurisprudence has acknowledged the possibility of
change of the first name and sex in the civil registry of the transgender person
y. Wh
h
‟
h
y
however, the
Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
Pós-Doutor. Pesquisador convidado do Instituto Max Planck, de Hamburg (DE). Professor
V
K ‟ C
L
. A
;
r agradece a percuciente pesquisa
acadêmica sobre o tema de Mauricio Wosniaki Serenato.
69
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
39
jurisprudence returns to not allow de changing. Considering that the gender
category beyond the idea of biological sex, and taking into account the principle
of human dignity, it is essential defense the possibility of changing in the civil
registry, even without reassignment surgery, as a way to guarantee the dignity.
Key-words: Right to a name; right to the body, human being dignity; gender
identity; transgender; reassignment surgery
Sumário: 1. Introdução – 2. Direitos da Personalidade em passant – 2.1 Direito
fundamental ao nome – 2.2 Direito fundamental ao corpo – 3. Transexualidade
– 3.1 O Direito à mudança de nome e sexo no Registro Civil – 3.2 O direito à
mudança de nome e sexo sem a cirurgia de redesignação sexual – 4. Ação Direta
de Inconstitucionalidade 4275 – 5. Conclusões.
1.
Introdução
Há íngremes desafios nas relações sociais contemporâneas; ao Direito
Civil
brasileiro
prospectivo,
à
luz
da
dimensão
substancial
da
constitucionalização dos direitos, impende arrostar as questões que demandam
novas respostas, em homenagem ao Direito, à segurança jurídica material e à
liberdade. Uma hermenêutica de respeito à sociedade plural70 se impõe.
A
autodeterminação
das
pessoas
configura-se
como
elemento
fundamental para a garantia de qualidade de vida. Autodeterminar-se não
significa agir irresponsavelmente, mas sim, exercer as liberdades pessoais do
modo mais amplo possível, seja produzindo escolhas, seja criando uma
identidade própria ou mesmo tomando decisões quanto ao próprio corpo. Essas
temáticas todas serão tratadas no decorrer desse artigo, cujas reflexões
principiam elementos para embrenhar-se, mais adiante, nesse debate, e
intentam contribuir nessa vereda.
Exemplo lúcido dessa perspectiva encontra assento na importante obra Código Civil
Interpretação conforme a Constituição da República: “(...) N
, portanto,
í
çã
E
ã
í
” (In:
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Vol. IV.
Rio de Janeiro : Renovar, 2014. p. 4).
70
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
40
Principiemos pela instalação do tema, pretendendo guiar-se pela
sensibilidade que tal horizonte suscita, sem negligenciar do mandatório
baldrame da dogmática jurídica. Justiça é conceito que em sua concretude não
se aparta da segurança jurídica.
A questão posta à controvérsia beneplacita tema central na vida do
Direito, qual seja, o da identidade. A identidade pessoal, isto é, o direito ao ser,
bem como o direito ao corpo, se encapsulam como direitos de personalidade. A
identidade, em termos gerais e na cronologia da biografia jurídica do sujeito,
tem como função a individualização e a identificação da pessoa na sociedade71,
de modo que o nome ganha especial relevo na construção identitária. Mesmo
diante da importância que o nome assume, a identidade vai além da mera
nomeação, encontrando eco nas experiências sociais, culturais, políticas e
ideológicas das quais a pessoa toma parte. Identidade, portanto, parte do
pressuposto de como o indivíduo se reconhece e como é reconhecido pela
sociedade, e esse reconhecimento é muito mais complexo que os rótulos
simplistas que costumam se apresentar no campo das relações sociais. Tal
reconhecimento logo se deu no Direito Civil com os apelidos, no sentido menos
técnicos da palavra, ou alcunhas.
Ao mesmo tempo, o direito ao corpo é também prerrogativa da
personalidade, na medida em que não é apenas a exteriorização da essência
humana, pelo contrário, é também parte integrante dela. Nele se apresentam,
no palco da existência, o ser e o estar.
A transexualidade tem o condão de relacionar de modo imbricado o
direito à identidade com o direito ao corpo, de modo que a efetividade do direito
à identidade só é possível com o livre exercício do direito ao corpo. A relação de
transgêneros72 com seu corpo é essencial para a constituição de sua identidade,
isto é, na forma em que se reconhecem e são distinguidos. Nesse sentido,
portanto, o direito ao corpo como formador de identidade deve ser exercido em
liberdade, por parte do transexual, de modo que a há que se questionar a
CHOERI, Raul Cleber da Silva. O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2010, p. 226.
72 Existe discussão científica acerca de diferenciação entre transexuais, travestis e
transgêneros. Neste trabalho, adotar-se-á, apenas para este fim, a corrente que trata as
expressões como unívocas.
71
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
41
essencialidade da cirurgia de redesignação sexual para a mudança de nome civil
e de sexo.
O presente trabalho, portanto, procurará explorar essa temática, ciente
de que não sustentará verdades absolutas ou dogmas. De início serão
explorados os pressupostos dos direitos da personalidade, em especial atenção
ao direito fundamental ao nome e ao corpo como conformadores de um direito à
identidade; aqui será apenas uma retomada sucinta de conceitos já espraiados
na teoria jurídica, a fim de sistematizá-los. Em seguida, procurar-se-á
perscrutar as novas concepções acerca da transexualidade e os debates jurídicos
que se aderem à temática, como o direito à mudança de nome civil e sexo. Neste
ponto entrará o questionamento fundamental da necessidade da cirurgia de
redesignação sexual como pressuposto para a alteração de nome e sexo no
registro civil. Além da análise doutrinária da área jurídica e das modernas
teorias de gênero e sexualidade, será esquadrinhada a jurisprudência pátria
concernente ao assunto, bem como a proposta de ADI impetrada pelo
Ministério Público Federal que procura justamente afastar o requisito da
cirurgia.
Em suma, para arrematar esta nota introdutória: parece-nos, que a
busca da felicidade não pode ser barrada por preconceitos. Aqui não se
subscreve, nem de longe, o desvario individualista do consumo de tudo e a
própria reificação do ser. Dignidade e responsabilidade se conjugam com a
liberdade. O coevo trabalho, portanto, arreia a felicidade dos transexuais à sua
realização pessoal no que tange a suas identidades e corpos, de modo que nas
páginas no decorrer deste artigo se elucidará essa relação fundamental. É no
respeito que se funda este caminhar.
2.
Direitos da Personalidade en passant
A fim de prosseguir, cumpre, por ora, apenas de forma sumário,
reincorporar aqui conceitos e elementos já debatidos, úteis ao desenvolvimento
da temática em exame.
Os direitos da personalidade, como se sabe, surgem em sua dimensão
substancial como corolários daquilo que se denominou Estado Democrático de
Direito. Com base teórica jusnaturalista, os direitos da personalidade se
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
42
estruturam a partir da ideia de essencialidade e inerência à própria condição
humana. Logo após a Segunda Guerra Mundial, procurou-se proteger o
indivíduo contra os arbítrios provenientes do Estado, entrelaçando os direitos
da personalidade à ideia de dignidade da pessoa humana, e os alçando à
proteção constitucional e internacional. Anderson Schreiber bem versa sobre os
“
h
q
proteção no campo das relações privadas, ou seja, na interação entre
particulares, sem embargo de encontrarem também fundamento constitucional
çã
.”73
Os direitos da personalidade, portanto, dizem respeito aos mais
essencial do sujeito e seus prolongamentos ou projeções, de maneira que
merecem especial atenção do ordenamento jurídico, e, não por acaso,
encontram eco na Constituição Federal. Na definição de Euclides de Oliveira,
“
-se por personalidade o conjunto de caracteres físicos, psíquicos e
morais que compõem o ser humano. Daí decorrem os direitos concernentes à
h
q
ã
çõ
.” 74 Desta
definição já se percebe a amplitude dessa categoria de direitos, ao mesmo tempo
em que se dá conta de sua essencialidade.
Nesta senda, para a análise que se pretende fazer no presente trabalho,
uma reflexão mais detida acerca do direito ao nome e do direito ao corpo será
feita, de modo a conformar uma ideia de direito à identidade. É o que segue.
2.1.
Direito fundamental ao nome
O direito ao nome é um dos direitos de personalidade positivados no
Código Civil de 2002. Exerce função essencial na individualização do sujeito e
em seu reconhecimento, de modo que recebe ampla proteção jurídica. Versando
sobre a temática do nome, José Roberto Neves Amorim apresenta uma
definição para o instituto:
A melhor doutrina atribui ao nome a natureza jurídica de direito de
personalidade, na medida em que, como sinal verbal ou mesmo marca
do indivíduo, o identifica dentro da sociedade e da própria família e é
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 13
OLIVEIRA, Euclides de. Direito ao nome. In: DELGADO, M. L; ALVES, J. F. Questões
controvertidas no novo Código Civil, Vol. 2. São Paulo: Método, 2004.
73
74
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
43
capaz de ser tutelado erga omnes. A lei assegura o direito ao nome,
assim como seu registro em local adequado, obedecidas as
formalidades, criando a particularização da pessoa, no mundo
jurídico. Ele faz, pois, parte integrante da personalidade.75
Sendo um direito da personalidade, a doutrina apresenta características
inerentes ao direito ao nome, pelo que se segue a classificação feita por José
Roberto Neves Amorim76, entre as quais se podem citar a obrigatoriedade, a
indisponibilidade, a exclusividade, a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a
não-cessibilidade,
a
extracomercialidade,
a
inexpropriabilidade,
a
intransmissibilidade , a irrenunciabilidade e a imutabilidade, neste caso,
relativa.
Sem adentrar a esse âmago, impende singelo rememorar de tais
atributos.
A obrigatoriedade diz respeito, como sugere o qualificação, a obrigação
de se ter um nome e de registrá-lo oficialmente perante Cartório de Registro
Civil. Também se entende a obrigatoriedade como a obrigação de usar o nome,
sem embargo de eventuais alcunhas. A indisponibilidade, por sua vez, diz
respeito a incapacidade de dispor do nome, aqui se tendo disposição em uma
acepção ampla, como o poder de determinar o destino do direito subjetivo. A
exclusividade se baseia na ideia do nome pertencer a uma única pessoa. Por
evidente que se admite a existência de homônimos, de modo que a exclusividade
resta relativizada, sob tais limites e sentidos.
A imprescritibilidade se refere ao fato de o titular desse direito da
personalidade jamais perder o direito ao nome por ação ou inação. A
inalienabilidade, por seu turno, abrange a ideia que o nome, pelo menos da
pessoa física, não pode ser alienado, trocado por dinheiro, ou por qualquer
outro mecanismo. De forma semelhante, a característica de incessibilidade aduz
que o nome não pode ser cedido, visto que impossibilitaria de exercer a
individualização que é sua função primordial. Ainda nesse sentido, a
extracomercialidade indica que o nome não é comerciável, sendo essa
característica corolário da incessibilidade e da inalienabilidade. O nome é
também inexpropriável. Embora o termo ensaie a equivocada ideia de que seria
o direito ao nome um direito patrimonial, a essência dessa característica é, em
75
8.
76
AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
Ibidem.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
44
verdade, proteger o nome do indivíduo contra sua mudança arbitrária, ainda
que por parte do Estado em alegado interesse público.
Também é
intransmissível; não pode ser transferido, justamente porque, sendo um direito
da personalidade, deriva da ideia de inerência ao ser humano, como outrora
apontado. Ainda, há que se ponderar a irrenunciabilidade: o titular do nome
não pode dele renunciar, em função da própria de ideia de indisponibilidade
sobre os direitos da personalidade.
Por fim, entretanto não menos importante, há a imutabilidade, que, em
verdade, é predicado de máximo interesse para a presente análise. A
imutabilidade, a rigor, é mesmo relativa, como se reconhece em doutrina, pois
“
é
consideradas as exceções legais, retirando-se o caráter absoluto desse
princípio.”77
Muito
mais
que
uma
limitação
por
meio
de
critérios
hermenêuticos, a imutabilidade do nome já se encontra relativizada na própria
legislação, haja vista o próprio Código Civil, na matéria de direito de família, ou
ainda a Lei de Registros Públicos, que prevê possibilidade de mudança de nome
nas hipóteses de prenome ridículo, ou de integração de apelido notório, por
exemplo.
A grande ingente questão que se coloca, portanto, é o fato do nome ser
elemento constitutivo de magna importância para a formação da identidade
pessoal. Isso significa dizer que ao ser individualizado por um nome, a pessoa
deve se sentir confortável em relação a isso, e, a nomenclatura deve refletir a
forma como a pessoa se sente sobre si mesma e como é reconhecida pela
comunidade. Direito fundamental ao nome, dessa forma, deve levar em conta
não apenas a existência de um nome em si, mas a sua função social na criação
da identidade do ser humano.
Cada vez mais se admite, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a
possibilidade de alteração do registro civil no caso de transexuais. O tema será
mais bem versado adiante, contudo, a título de se dar concretude ao argumento
supra, a mudança de nome no caso de transexuais é vital para a configuração de
uma identidade que, de fato, represente o imo do indivíduo. Negar essa
possibilidade ao transexual é violar um direito fundamental, visto que o nome,
77
Idem, p. 38.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
45
conforme já defendido, não se resume a uma nomenclatura, apresenta uma
função social importantíssima na construção identitária do ser humano e
mesmo em sua qualidade de vida. Nesse sentido, comunga-se com a teorização
de Patrícia Corrêa Sanches:
Isso porque uma pessoa com aspecto representativo social do gênero
feminino e que contenha documento de identificação com prenome
masculino sofre enorme constrangimento em suas relações sociais,
haja vista o nome não corresponder à identidade da pessoa, assim
como a própria sociedade passa a não conseguir êxito na identificação
do sujeito.78
Sendo um direito fundamental de tamanha importância, é impensável
que o nome possa trazer sofrimento à pessoa. Se assim se sucede, por evidente,
que tal direito não cumpre função e é incoerente com a sistemática
constitucional vigente a impossibilidade a alteração do prenome. Adiante
haverá maior aprofundamento nesta temática.
2.2.
Direito fundamental ao corpo
O ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio da autonomia
privada em vários campos do direito privado, desde a autonomia para contratar,
até a autonomia sobre a própria vida. É dentro desse contexto de autonomia e
liberdade que se insere a discussão do direito ao corpo. Por certo que a tutela
jurídica que se destina a autonomia privada no campo dos contratos em muito
diverge da autonomia privada que se traduz no campo dos direitos da
personalidade. No entanto, cabe resgatar a nova concepção de autonomia
privada, que ultrapassou um modelo altamente liberal de autonomia da
vontade, para encontrar dentro do âmbito do ordenamento limites e restrições.
Isso significa dizer que se assegura aos indivíduos ampla margem de liberdade,
contudo, restrita a uma ideia de funcionalização do direito e, igualmente, dos
parâmetros constitucionais de proteção à dignidade humana. Na ambiência do
direito ao corpo, portanto, o paradigma da autonomia privada deve ser
analisada em sua essencialidade, isto é, respeitando-se a liberdade que se deve
SANCHES, Patrícia Corrêa. Mudança de nome e da identidade de gênero. In: DIAS, M. B.
(Coord.). Diversidade sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2011, p. 426-427.
78
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
46
conferir ao indivíduos, ao mesmo tempo em que se emprega atenção, e no caso
do direito ao corpo, especial atenção, aos limites provenientes do ordenamento
jurídico.
Os limites de que tratamos são os limites do ordenamento, vale dizer,
campo e o horizonte das limitações decorrem objetivamente da racionalidade
sistemática do Direito, logo não se confundem com limites de cunho moral e
religioso. Pleno há de ser, por certo, a liberdade de crença e de vivenciar a
respectiva religiosidade numa sociedade democrática e plural; por igual, pleno
há de ser, no espaço social regulado pelo Estado democrático, o respeito à
diversidade. Nesse sentido, Anderson Schreiber apresenta uma elucidativa
síntese:
O tratamento jurídico reservado ao corpo humano sofreu, ao longo da
história, profunda influência do pensamento religioso. Visto, por
muitos séculos, como uma dádiva divina, o corpo humano era
considerado como merecedor de uma proteção superior aos desígnios
individuais. O pensamento moderno rompeu com essa perspectiva,
recolocando gradativamente a integridade corporal no campo da
autonomia do sujeito. Nesse sentido, passou„
ó
‟
ã q
z q
rpo deve
atender à realização da própria pessoa, e não aos interesses de
qualquer entidade abstrata, como a Igreja, a família ou o Estado.79
Tal como na discussão do direito ao nome, portanto, o corpo também
cumpre uma função social importante na conformação de uma identidade do
sujeito e mesmo de sua própria felicidade. Incontestável que no mundo
contemporâneo há uma supervalorização da estética, e, por conseguinte, do
corpo humano, de modo que constitui elemento relevante na qualidade de vida
dos indivíduos.
Sem embargo da proteção jurídica que deve se destinar ao corpo, é
fulcral que seja garantido ao sujeito a autodeterminação sobre si mesmo, não
sendo lícito que a guarida que se procure dar a esse direito de personalidade
configure restrição desmedida e arbitrária da liberdade de dispor sobre a
. “A
çã
h
çã
ú
.”80
O direito ao corpo encontra-se positivado no artigo 13 do Código Civil
de 2002; ali, se proíbe a disposição sobre o corpo quando importar em
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. Op. cit., p. 32.
CORRÊA, Adriana Espíndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações
jurídicas. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 77.
79
80
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
47
diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes,
salvo por exigência médica. A dicção da lei quando analisada sob exegese literal
lógico-dedutiva importaria em se proibir cirurgias de natureza meramente
estética, ou mesmo aplicações de tatuagens ou piercings no corpo humano.
Entende-se que o objetivo do legislador era vedar atos de violência contra o
próprio corpo, sendo outro o campo da liberdade e da autodeterminação
oriundas da autonomia corporal. Atente-se ainda para o relevante vocábulo
“
”
í
q
para as mais infundadas restrições.
No caso que pretende se analisar, ou seja, a transexualidade, o artigo 13
poderia, ser, como já foi, utilizado para barrar a disposição dos transexuais ao
seu próprio corpo e a formação de sua identidade e dignidade, na medida em
que se veda(va) a possibilidade de realização de cirurgia para redesignação de
sexo. Atualmente, tendo em vista que a transexualidade ainda vem sendo
considerada no rol de doenças psíquicas, admite-se a cirurgia sob o argumento
da recomendação médica. Se por um lado é interessante que a cirurgia se afaste
do campo da estrita ilegalidade, por outro, tal discurso encontra eco em um
tradicionalismo por tratar uma dissonância entre identidade de gênero e sexo
biológico como uma doença. Não se está a defender que a/o transexual não
tenha o devido acompanhamento psicológico e médico, contudo, soa como um
anacronismo histórico assentar que discussões de gênero e sexualidade ainda
sejam tratadas no rol de doenças. Schreiber, mais uma vez, apresenta ideia
luminosa sobre a temática:
Examinando a Resolução CFM 1.955/2010 em conjunto com o artigo
13 do Código Civil, o leitor poderá facilmente perceber que a cirurgia
de mudança de sexo é lícita no Brasil, desde que um médico ateste o
estado patológico do seu paciente. Com isso, atende-se ao requisito da
exigência médica, pois, nas palavras do Conselho Federal de Medicina,
a cirurgia de mudança de sexo consiste em tratamento idôneo aos
casos de transexualismo. O resultado pode parecer progressista, já que
se permite, ao menos nessas circunstâncias, a realização da cirurgia. A
abordagem, contudo, é a mais retrógrada possível. A opção sexual (sic)
vem tratada como doença. E o promissor debate jurídico e ético em
torno da autonomia corporal fica reduzido a uma discussão
supostamente técnica, em que o elemento determinante passa a ser
um atestado médico.81
81
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. Op. cit., p. 44
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
48
A autonomia corporal em relação ao desejo do transexual realizar a
cirurgia de redesignação sexual, ou de não realizá-la, será ferida em breve. Por
ora, resta frisar que o direito fundamental ao próprio corpo, assim como todos
os direitos, admite restrições atinentes à própria Constituição. No caso dos
transexuais, agressão à dignidade está em não permitir que o indivíduo
modifique seu corpo para se adaptar a sua identidade de gênero. Constitui igual
agressão determinar que o transexual realize a cirurgia de redesignação sexual
para que só então possa ter sua identidade de gênero reconhecida. De todo o
modo, impende em preservar o poder de autodeterminação sobre o próprio
corpo em qualquer das situações.
3.
Transexualidade; alguns apontamentos relevantes para o tema
em desate jurídico
Para que se possa adentrar na discussão da mudança de nome e sexo no
registro civil, com ou sem a cirurgia de redesignação sexual, faz-se mister
analisar, ainda que brevemente e de modo não aprofundado, o fenômeno da
transexualidade. Aqui serão descortinados apenas alguns elementos que à guisa
de apontamentos preambulares auxiliam no exame jurídico da matéria.
Antes mesmo de perquirir a transexualidade, contudo, impende realizar
uma sintética definição de alguns conceitos fundamentais na temática dos
estudos de gênero e sexualidade, quais sejam, sexo biológico, gênero,
orientação sexual e identidade de gênero.
Sexo biológico pode ser definido como o conjunto de características
fisiológicas, nas quais se encontram as informações cromossômicas, os órgãos
genitais e os caracteres secundários capazes de diferenciar machos e fêmeas.
Sexo, portanto, teria essa matriz biológica. Sem embargo disso, muitos autores
questionam essa pré-determinação que o sexo biológico impõe. Judith Butler
questiona o lugar pré-discursivo que se dá ao sexo biológico, colocando-o como
uma verdade imutável e conformadora de um modo de ser e agir82.
Juridicamente, há a determinação legal de designação de um sexo (masculino
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
82
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
49
ou feminino) ao indivíduo quando de seu nascimento, de modo que tal
classificação toma como base apenas o sexo biológico, por meio da observância
da genitália.
O conceito de gênero, por sua vez, visa a suplantar as limitações do sexo
biológico, levando em consideração que não apenas características biológicas e
anatômicas determinam a identidade de cada sujeito. Trata-se de um conceito
deveras complexo. O conceito de gênero é formulado, numa certa perspectiva, a
partir de discussões dos movimentos feministas, justamente para contrapor a
noção de sexo biológico. Não se trata de negar totalmente a biologia dos corpos,
mas enfatizar que existe uma construção social e histórica sobre as
características biológicas. Sendo assim, a categoria de homem e a categoria de
mulher se dariam em decorrência de uma construção da realidade social e não
meramente de uma diferenciação anatômica. Interessante analisar a definição
da historiadora norte-americana Joan Scott sobre essa terminologia:
Ademais, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações
sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as explicações
biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para
várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e
que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna,
aliás, uma maneira de indicar as construções sociais: a criação
inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às
mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais
das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é,
segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo
sexuado.83
Percebe-se, portanto, que a categoria gênero é muito mais ampla que a
ideia de sexo biológico. Mais uma vez ressalta-se que não se desconsidera os
elementos biológicos do corpo, pelo contrário, tal qual os elementos sociais,
culturais, históricos e psicológicos, os elementos anatômicos também são
constitutivos do gênero, mas não há uma decorrência lógica entre sexo e gênero.
Importante fazer menção que as modernas teorias de gênero, principalmente
aquelas ligadas à Teoria Queer84 não restringem o gênero ao binarismo
masculino/feminino, admitindo, dessa forma, um gênero neutro.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórico. Educação e
Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99.
84 A Teoria Queer tem base sociológica no pós-estruturalismo, principalmente a partir das
teorizações de Michel Foucault. A ideia dessa corrente sociológica é desconstruir a classificação
dos sujeitos prela aparência de seus corpos, bem como problematiza comportamentos
atribuídos a cada um dos gêneros. A Teoria Queer também questiona a classificação dos gêneros
83
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
50
Orientação sexual, ao seu turno, pode se referir ao sexo das pessoas que
o sujeito elege para se relacionar afetivamente e sexualmente. Importante frisar
que não se trata de uma opção sexual, visto que o indivíduo não escolhe
deliberadamente por qual sexo sentirá atração afetiva e sexual. Os estudos
atuais sobre a temática, portanto, apontam para o inatismo da orientação
q
irresponsável
e
Tradicionalmente
ã
“
”
preconceituosamente
alguns
se
tipos
conformam
três
setores
de
da
orientação
sociedade.
sexual,
a
heterossexualidade, que se trata do desejo afetivo e sexual por pessoas do sexo
oposto, a homossexualidade, que se refere à atração afetiva e sexual por pessoas
do mesmo sexo, e a bissexualidade, que é a atração afetiva e sexual por pessoas
de ambos os sexos. A orientação sexual independe do gênero e da identidade de
gênero do sujeito, conforme se verá a seguir.
A identidade de gênero figura como conceito fundamental para
compreender a transexualidade. Trata-se da forma como o sujeito se sente e se
apresenta para si e para a comunidade na condição de homem ou de mulher, ou
de ambos, sem que haja uma relação direta com o sexo biológico. A identidade
de gênero, portanto, diz respeito ao gênero com o qual o sujeito se identifica,
retomando a ideia de gênero como uma categoria ampla que vai além da mera
determinação biológica. Dessa forma é então, nessa linha, possível que o sujeito
que tenha nascido com órgãos genitais masculinos se identifique com o gênero
masculino, ao mesmo tempo em que também é totalmente possível que se
identifique com o gênero feminino. Para Judith Butler, identidade de gênero é
um processo de se fazer o corpo feminino ou masculino, de acordo com
características que são tidas como diferenças e sobre as quais se atribuem
significados culturais85.
Impende ainda notar que a identidade de gênero
independe da orientação sexual, de modo que o sujeito pode ter nascido com
em apenas masculino ou feminino, defendendo padrões de gênero que não se enquadram nesse
. “A
queer aposta na superação dos binarismos (masculino/feminino,
heterossexual/homossexual) por meio de uma desconstrução crítica, desafiando os
conhecimentos que se constroem os sujeitos como sexuados e marcados pelo gênero, e que
assumem a heterossexualidade ou a homossexualidade como categorias que definiriam a
.” . . GORSDORF L
F
k .D
LGBT
constitucional: um caminho para além do arco-íris. In: CLÈVE, C. M. (coord.). Direito
Constitucional Brasileiro: teoria da constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2014, p. 691.
85 BUTLER, Judith. Op. cit.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
51
órgãos genitais masculinos, se identificar com o gênero feminino, e apresentar
orientação sexual heterossexual, homossexual ou bissexual. Não há, portanto,
qualquer decorrência lógica necessária entre a identidade de gênero e a
orientação sexual.
Compreendidos esses pressupostos teóricos, o entendimento da
transexualidade torna-se mais simples. Transexual, dessa forma, é o sujeito que
possui uma identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento,
ou seja, há discrepância entre os atributos físicos do sexo biológico e a forma
como o indivíduo se reconhece em questão de gênero. Trata-se do sujeito que
nasce com genitálias correspondentes ao sexo masculino ou feminino, mas que
se identifica com o gênero oposto. Nas palavras de Paulo Roberto Iotti
Vecchiatti, “
é
q
h
çã
biológico e sua identidade de gênero (ou seja, entre o seu sexo físico e seu sexo
psíquico).”86 A pessoa transexual pode externar o desejo de passar por cirurgias
para adequar seu corpo ao gênero com a qual se identifica, inclusive buscando a
cirurgia de redesignação sexual. Importante ressaltar, contudo, e conforme se
verá adiante, que o transexual pode não desejar a cirurgia de readequação
sexual e isso não significa que não haja dissociação entre seu sexo biológico e
sua identidade de gênero.
O
“
”
q
1923 sob tal perspectiva; registros históricos já demonstravam a ocorrência do
fenômeno. A partir da medicalização da vida e da própria existência social, no
século XX especialmente o campo médico busca uma definição para a
transexualidade, no rol de patologias. Essa visão da transexualidade permanece
até hoje no campo médico, a que se comprova pela Resolução nº 1.955/10 do
C
h
F
M
q
: “desvio psicológico
permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à
automutilação e/ou autoex
í
.” T
z
R
V
z
aponta para o fato de existirem correntes que pregam pela despatologização da
transexualidade, conforme se observa:
VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do
casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2 ed. Rio de Janeiro,
Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 88.
86
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
52
Há uma corrente que prega a não exigência do Diagnóstico
psiquiátrico como condição de acesso ao tratamento, visto que a
certeza quanto ao pertencimento ao gênero oposto, a qual às vezes se
expressa pela crença numa identidade fixa, se repete no cotidiano do
atendimento a pacientes transexuais. Porém, afirmam que a
transexualidade não necessariamente fixa uma posição subjetiva, e
destacam a importância de deslocar a manifestação social da
transexualidade da necessidade de traduzi-la imediatamente numa
patologia, numa estrutura ou num modo de funcionamento específico,
o que nos permitiria escapar da sua psiquiatrização. A experiência
transexual, neste sentido, comportaria várias formas singulares de
subjetivização. Além disso, discute-se também que não existe um
processo específico de construção das identidades de gênero nos
transexuais, e desta forma não se deve esperar de transexuais um
comportamento fixo, rígido, adequado às normas da feminilidade ou
de masculinidade.87
Parece-nos coerente que a transexualidade também deixe de constar
entre o rol de doenças, por todo o estigma que isso acarreta aos transexuais. Isso
não significa dizer que não se deve destinar todo o apoio psicológico e mesmo
médico aos transexuais, no entanto, busca-se apenas tratar esse fenômeno de
gênero de forma mais humanizada, em um âmbito social, e não exclusivamente
patológico.
Em qualquer situação, no entanto, o transexual deve ser tratado com
dignidade e com respeito. Isso significa que deve-se coibir qualquer forma de
violência aos transexuais, seja violência explícita, aqui considerando os altos
índices de homicídios contra pessoas transexuais, em virtude de um preconceito
irracional, chamado transfobia, seja violência simbólica. Neste sentido, é o que
deflui quando se nega ao transexual o direito de mudança de nome e mudança
de sexo no Registro Civil. Da mesma forma, estabelecer a cirurgia de
redesignação sexual para que haja a mudança no registro Civil exige uma
mutilação para o reconhecimento de um direito. Esses temas serão versados a
seguir.
3.1.
O direito à mudança de nome e sexo no Registro Civil
Conforme já repassado, o direito ao nome é essencial na instauração da
identidade do sujeito, aqui se observando a identidade como a necessidade de
afirmar a própria individualidade, tendo, pois, o nome um lugar privilegiado em
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidadade. In: DIAS, M. B. (Coord.). Diversidade sexual
e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 413.
87
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
53
tal função88. Ao lado do nome, o direito à devida designação sexual também
cumpre papel salutar na criação da identidade própria. Muito embora se
compreenda que seria mais adequado falar em identidade de gênero,
q
“
”
z -se-á a
nomenclatura oficial, ainda que em desacordo com a linguagem acadêmica.
Conforme se verá, a mudança de nome sem a mudança de sexo é incompleta,
ainda não dirime os constrangimentos pelos quais a pessoa transexual é
exposta, configurando ainda inconteste violência simbólica. Para fins didáticos,
no entanto, tratar-se-á primeiramente da mudança de nome e depois da
transição de sexo.
Retomando: a característica da imutabilidade do nome é relativa, na
medida em que tanto na legislação, quanto na jurisprudência se admite a
mudança de nome em casos específicos. Uma das hipóteses que dá ensejo à
mudança do registro civil trata da situação de prenome que exponha a pessoa ao
ridículo, haja vista o parágrafo único do artigo 55 da Lei de Registros Públicos
(Lei nº 6.015/73). Infraconstitucionalmente é justamente nesse ponto que se
ampara a possibilidade de mudança de nome de pessoas transexuais. O fato é
que o nome, mesmo que adequado à identidade de gênero que ele representa,
torna-se vexatório quando atribuído a uma identidade de gênero diversa
daquela que busca indicar. Tal situação gera inquestionável constrangimento à
pessoa transexual, que é obrigada a tornar evidente o descompasso entre sua
ó
. “A é
-se a
pessoa que se submeteu à cirurgia para redesignação sexual com características
físicas femininas, obrigá-la a se identificar com documentos que contêm um
prenome masculino é exposição certa ao ridículo e a execração pública, como há
.”89
Para além das justificativas infraconstitucionais que ensejam a alteração
de nome para transexuais, a fundamentação encontra eco na Constituição,
sobretudo, por meio dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
solidariedade. Em verdade, a dignidade da pessoa em muito está atrelada com a
DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Tradução de Adriano Vera Jardim e
Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Moraes, 1961.
89 LUZ, Antônio Fernandes da. Transexualismo: o direito ao nome e ao sexo. In: Bastos, E. F;
Sousa, A. H. (Coord.). Família e Jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
88
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
54
configuração de sua própria identidade. Uma vida digna, portanto, pressupõe o
autorreconhecimento e o reconhecimento da comunidade em consonância com
o reconhecimento de si mesmo. Impende notar, conforme aponta o Carlos
Eduardo Pianovski Ruzyk, que a dignidade da pessoa humana não se vincula ao
“
ã
realidade de sua intersubjetividade, como ente que não prescinde da alteridade,
encontrando nesta o lugar privilegiado em que a dignidade da pessoa humana
q
ú
.”90 Eis que daí surge a ligação com o princípio da
solidariedade constitucional, que se funda na ideia de alteridade. A
solidariedade se engendra na ideia de sociedade, vez que pressupõe a existência
do outro, tendo em vista seu embasamento na alteridade. O princípio da
solidariedade constitucional, portanto, se configura como essencial ao bemestar social e se faz imprescindível na proteção de minorias e grupos
vulneráveis. Pois bem, garantir o direito ao nome à pessoa transexual é dar
efetividade a esse princípio, na medida em que garante ao transexual uma maior
possibilidade de bem-estar e proteção, de que tanto necessitam.
Dar a possibilidade ao transexual de modificar o nome (rectius:
prenome), portanto, configura elemento fundamental para assegurar sua
dignidade e sua identidade. Antônio Fernandes da Luz desenvolve bem essa
relação, prontamente inserindo a essencialidade de mudança de sexo que será
explorado adiante:
O pedido de alteração do nome e do sexo no assentamento do registro
civil, formulado por aquela pessoa que se submeteu a cirurgia para a
redesignação sexual, tem por objeto o direito de expor o seu novo
estado, sob pena de ver o seu direito de personalidade violado, fato
este que constitui mais uma condenação à clandestinidade.
(...)
Portanto, a alteração do sexo e do nome encontra fundamento na
própria Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, e a
sua não permissão constitui flagrante violação aos direitos de
personalidade da pessoa que se submeteu à cirurgia para redesignação
sexual que, aliás, há muito vem sofrendo constrangimentos e
agressões no meio social em que vive e por parte de agentes públicos.
91
Ao lado da transformação de nome, a mudança da identidade de gênero,
ou, vulgarmente, sexo, também se faz essencial na construção da identidade do
PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Dignidade da pessoa humana. In: CLÈVE, C. M.
(coord.). Direito Constitucional Brasileiro: teoria da constituição e direitos fundamentais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 171.
91 LUZ, Antônio Fernandes da. Op. cit.
90
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
55
sujeito e na garantia de sua dignidade e qualidade de vida. Tal qual o direito de
mudança de nome, a mutação de sexo também encontra respaldo nos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social. Da
mesma forma que configuraria imenso constrangimento a constância de nome
diverso da identidade de gênero que o sujeito proclama, a mudança de nome
sem a substituição do sexo em si também traduz compressão contra o
transexual, que continuará sendo estigmatizado e discriminado no âmbito
social. Anderson Schreiber é judicioso em sua análise:
A função do registro civil é dar segurança à vida em sociedade. Um
registro civil que atribua a uma pessoa um sexo que ela não ostenta na
vida social é um registro falso, errado, que exige retificação. Tal qual o
nome, o sexo deve ser visto não como um estado registral imutável ou
como uma verdade superior ao seu titular, mas como um espaço
essencial de realização da pessoa humana. Já se viu que o direito
contemporâneo vem se abrindo a uma certa autonomia da pessoa na
alteração do seu nome, sempre que não haja risco a um interesse
coletivo (como no caso do devedor contumaz ou do suspeito de
investigação criminal, que pretende dificultar sua identificação). A
mesma abordagem deve ser reservada ao sexo, para reconhecê-lo
como uma esfera de livre atuação e desenvolvimento da pessoa. A
ciência caminha nesse sentido e aqui convém que o direito não fique
para trás.92
Reconhecer o direito a mudança do sexo no registro civil, portanto,
coloca o direito em consonância com as modernas teorias sociais de gênero, que
não se subsumem apenas a um normativismo proveniente da anatomia, todavia
considera os elementos sociais, culturais e históricos da definição de gênero, e,
acima de tudo, apontam uma função social para o gênero, qual seja, a garantia
da felicidade e qualidade de vida do indivíduo. Há que se frisar, dessa forma,
que não cabe ao Estado ou mesmo à sociedade fazer ponderação sobre a
possibilidade de mudança de nome e sexo dos transexuais. Sendo um direito
deve apenas ser reconhecido e declarado. Isso não significa dizer que não se
deva prestar toda a assistência necessária aos transexuais, e mesmo que se deva
obstar as discussões jurídicas e sociológicas sobre o fenômeno, no entanto, em
se tratando de direitos fundamentais, nada disso deve significar barreira ao seu
livre exercício.
92
SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 208.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
56
Conveniente realçar que a alteração do registro civil depende de
sentença que a consume, e a jurisprudência vem se pacificando no sentido de
reconhecer o direito à mudança do nome e do sexo. Nada obstante isso, veja-se:
“RETIFICAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. MUDANÇA DE NOME E DE
SEXO. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA.
O homem que almeja transmudar-se em mulher, submetendo-se a
cirurgia plástica reparadora, extirpando os órgãos genitais, adquire
„
‟
ó ã
ã
z
retificação de nome e de sexo porque não é a medicina que decide o
sexo e sim a natureza. Se o requerente ostenta aparência feminina,
incompatível com a sua condição de homem, haverá de assumir as
consequências, porque a opção foi dele. O Judiciário, ainda que em
procedimento de jurisdição voluntária, não pode acolher tal pretensão,
eis que a extração do pênis e a abertura de uma cavidade similar a
uma neovagina não tem o condão de fazer do homem, mulher. Quem
nasce homem ou mulher, morre como nasceu. Genitália similar não é
autêntica. Autêntico é o homem ser do sexo masculino e a mulher do
feminino, a toda evidência.
(TJRJ, Ap. Cível 1993.001.06617, Rel. Des. Geraldo Batista, DJ
18/03/1997)
Observam-se aí argumentos de caráter eminentemente naturalístico e
sem observância à realidade social; anote-se que se trata de julgado anoso do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nada obstante ainda haja, em todo o
Brasil, argumentos dessa monta; também há julgados que caminham no sentido
de indeferir o pedido de alteração do sexo no registro civil:
RETIFICACAO NO REGISTRO CIVIL - CONVERSÃO DE SEXO
MASCULINO PARA O FEMININO - INADMISSIBILIDADE
TRANSEXUALISMO - CIRURGIA PARA MUDANCA DE SEXO PROCRIACAO - IMPOSSIBILIDADE - ESTADO CIVIL CAPACIDADE - CASAMENTO - REQUISITOS DIFERENCA
DESEXO - AUSENCIA LEI DE REGISTROS PUBLICOS - VEDACAO.
APELACAO PROVIDA. Ação que visa retificação no registro civil e
conversão de sexo masculino para o feminino. Mesmo tendo o apelado
se submetido à cirurgia de mudança de sexo o pedido de retificação no
assento de nascimento não pode prosperar - Caracteriza-se o
transexualismo quando os genitais afiguram-se como de um sexo, mas
a personalidade atende a outro - Porém os transexuais, mesmo após a
intervenção cirúrgica não se enquadram perfeitamente neste ou
naquele sexo, acarretando-se problemas graves com tal intervenção.
Não se constitui, ademais o apelado como sendo do sexo feminino
uma vez que ha impossibilidade de procriação porquanto não possui o
mesmo os órgãos internos femininos. Ao se deferir o pedido do
apelado estar-se-ia outorgando a este uma capacidade que
efetivamente não possui. Por outro lado ao permitir-se a retificação do
nome e sexo do apelado em possível casamento que venha a se realizar
estaria contrariando frontalmente o ordenamento jurídico vigente,
ademais estaria ausente um dos requisitos para o casamento, qual seja
a diferença de sexos. A Lei de Registros Públicos veda a alteração
pretendida, tutelando interesses de ordem pública.
(TJPR, AC 300198 PR Apelação Cível - 0030019-8, DES. REL. Osíris
Fontoura, DJ 08/11/1994)
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
57
Para além de uma matriz biologicista, o julgado leva em consideração
para sua definição de sexo feminino a capacidade de procriação. Atualmente o
prognóstico assim vem:
APELAÇÃO
CÍVEL
REGISTRO
CIVIL
ALTERAÇÃO NOME E SEXO - AVERBAÇÃO Á MARGEM DO
REGISTRO: OBRIGATÓRIA - CERTIDÃO DE REGISTRO DE
NASCIMENTO: RESUMO DAS INFORMAÇÕES CONSTANTES NO
REGISTRO. 1. As alterações no nome e sexo do registrado devem ser
averbadas à margem do registro civil, em decorrência da Lei no 6.015
/1973, não podendo haver omissões. 2. A certidão de nascimento é um
resumo das informações contidas no registro. 3. Para evitar
constrangimentos ao registrado, que alterou nome e sexo, nas
certidões a serem expedidas deve constar apenas que há averbações
realizadas em virtude de decisão judicial, sem menção à natureza ou
conteúdo delas.
(TJMG, AC 10024082645136001 MG, DES. REL Oliveira Firmo, DJ
21/05/2013)
APELAÇÃO CÍVEL - RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE REGISTRO
CIVIL - MUDANÇA DE NOME E SEXO - TRANSEXUAL POSSIBILIDADE - REALIZAÇÃO DE CIRURGIA ABLATIVA DANDO
CONFORMIDADE
DO
ESTADO
PSICOLÓGICO
AO
NOVO SEXO COMO
MEIO
CURATIVO
DE
DOENÇA
DIAGNOSTICADA - APLICAÇÃO DO PRINCÍCIO DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA E DA IDENTIDADA SEXUAL - RELEITURA
DA LEI DE REGISTROS PUBLICOS AO MANDAMENTO
CONSTITUCIONAL - MUTABILIDADE DO NOME - ALTERAÇÃO
PARA CONSTAR ALCUNHA - POSSIBILIDADE - PROTEÇÃO
ALBERGADA PELO NOVO CÓDIGO CIVIL - APELO PROVIDO. "A
mudança de nome, em razão da realização de cirurgia de
transgenitalização, adequando o estado psicológico ao seu novo sexo,
no caso de transexuais, é possível pelo ordenamento jurídico pátrio,
como corolário interpretativo a partir do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana e do respeito à identidade sexual do
indivíduo, trazendo com isso, releitura hodierna aos dispositivos
normativos insertos na Lei de Registros Públicos , evitando a
exposição dos mesmos à situações de chacota social diante da
desconformidade entre seus documentos pessoais e a nova condição
morfológico-social."
(TJPR, AC 3509695 PR 0350969-5, Des. Rel. Rafael Augusto
Cassetari, DJ 04/07/2007)
Muitos outros julgados poderiam constar neste trabalho, no entanto, os
ambos acima já dão conta de demonstrar a mudança de tônica da jurisprudência
no sentido de reconhecer o direito das pessoas transexuais de alterarem nome e
sexo em seus registros. Esse compreensão é tributária de uma aplicação
constitucionalizada do direito, na medida em que garante efetividade a
princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana. Também há
de se levar em conta que cada vez mais, ainda que tardiamente, o direito tem se
aberto às contribuições das demais ciências sociais, ampliando seu rol de
intérpretes, como defende Peter Häberle. Faz-se mister abandonar noções de
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
58
completude e infalibilidade do direito, ultrapassando de vez a visão kelseniana
(aquela do normativismo positivista), para atentar ao fato de que o direito
positivado, por si só, merece hermenêutica atualizadora capaz de dar justas
soluções aos meandros da vida. Os desafios, contudo, ainda são muitos, como se
analisará a seguir.
3.2.
O direito a mudança de nome e sexo sem a cirurgia de
redesignação sexual
O direito ao próprio corpo deve ser tomado em uma ampla acepção, de
modo que envolve tanto ações quanto omissões, ou melhor dizendo, trata-se de
poder fazer ou deixar de fazer algo com o próprio corpo, sem que haja qualquer
punição pela escolha deliberada.
Conforme já referido, o gênero exerce um lugar social notabilíssimo
que está acoplado a busca por uma vida de qualidade e a instituição de uma
identidade própria. Ademais, consoante aqui se adotou na linha da presente
exposição, sem descurar de pontos de vista distintos, gênero e sexo biológico são
conceitos diversos, de modo que, muito embora a criação de uma identidade de
gênero leve em conta o fator biológico este não é causa determinante para a
compreensão do próprio gênero. Dessa forma, é totalmente compreensível que
uma pessoa transexual queira manter seu órgão biológico, tendo em vista não
ser decisivo para a configuração de sua identidade de gênero. Há também que se
considerar que a manutenção da genitália pode ser fator essencial para a
qualidade de vida do transexual.
Pelo exposto, configura-se como infração ao direito ao próprio corpo
que se exija da pessoa transexual a cirurgia de redesignação sexual, para que só
então tenha direito à mudança de nome e sexo em seu registro civil. De fato,
ordenar a outrem a mutilação do próprio corpo, o uso de medicamentos
necessários
para
que
se
reconheça
um
direito
apresenta-se
como
constrangimento. Nesta senda, salutares são as ponderações de Patrícia Corrêa
Sanches:
Mas será que se faz necessária a mudança no corpo de uma pessoa a
ensejar a mudança do sexo? Atualmente delineia-se o gênero sexual
por sua função social, mais como um fenótipo comportamental do que
o aspecto da genitália. Assim o indivíduo teria deferido o pedido de
mudança do gênero sexual desde que demonstrasse que possui o sexo
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
59
que socialmente representa, invertido daquele fisicamente suportado.
A temática aqui discutida tem por objetivo pautar as discussões sobre
a mudança de sexo, principalmente no tocante à função social da
determinação do gênero sexual na sociedade, demonstrando assim
que, para sua alteração, não há necessidade de uma intervenção
cirúrgica de modificação das características físicas, estas sim restritas
a um ambiente de privacidade.93
Compete atinar que a cirurgia de redesignação sexual, como toda e
qualquer cirurgia, apresenta inegáveis riscos aos indivíduos, além de, por si só,
ser uma cirurgia demasiadamente agressiva e invasiva. Nos dizeres de Patrícia
S
h
“
transgenitalização,
í
ç
demonstra-se
absolutamente
agressiva,
além
de
.”94 Não parece adequado, dentro do ponto de vista constitucional da
dignidade da pessoa humana, tornar a cirurgia condição sine qua non para a
mudança de nome e sexo, pois, se assim fosse, de algum modo o sujeito sofreria
uma violação a um direito. Se não aceitar realizar a cirurgia terá seu direito ao
nome e identidade negados, se fizer a cirurgia para que então possa ter
reconhecido seu direito ao nome e sexo, terá seu direito ao corpo agredido. Uma
análise sistemática da Constituição de 1988 dá conta de demonstrar que esse
escambo entre direitos não parece ser a tônica que o constituinte pretendeu dar
a lei fundamental. A Constituição de 1988 surgiu como uma luz ao final de um
sombrio túnel; sua essência está na garantia de todos os direitos previstos em
seu texto, de modo que se faz inadmissível impor a uma parcela da sociedade
que tenham que fazer uma opção entre direitos fundamentais.
Note-se ainda que, em algumas situações, para além da autonomia
privada do indivíduo, que por si só já seria suficiente para garantir a
possibilidade de mudança de nome e sexo sem a cirurgia de transgenitalização,
há outros empecilhos. Não é fato raro que as pessoas se reconheçam como
transexuais após idade mais avançada. Nesses casos não é incomum que a
cirurgia de redesignação sexual seja desaconselhada por médicos, haja vista a
probabilidade de complicação. Em situação como essa estaria o sujeito fadado
ao constrangimento público, sem nunca poder alterar nome e sexo sem seu
registro civil? Por certo que se trataria de solução deveras cruel e
desproporcional. Não pode o indivíduo ser penalizado por não querer se
93
94
SANCHES, Patrícia Corrêa. Op. cit.
Idem.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
60
submeter aos riscos que a operação pode trazer. Argumentos poderiam destacar
que se trata de um ônus da escolha do sujeito, no entanto, como bem se sabe, a
transexualidade não é uma escolha pessoal, diversos são os fatores que
produzem no indivíduo uma identidade de gênero diversa do sexo biológico. Em
todo caso, não há que se arrazoar em ônus quando, vez que o direito
fundamental à identidade do sujeito pode, sem qualquer problema, ser
assegurado.
Outra situação que merece análise é o fato de que, por todo preconceito
existente na sociedade, as pessoas transexuais são discriminadas, excluídas,
jogadas ao degredo. De acordo com índices divulgados e conhecidos, a evasão
escolar entre transexuais beira aos 73%. Inúmeras são as causas, desde o
preconceito dos demais colegas, pais e professores, até mesmo da instituição
que não assegura o nome social, por exemplo. De toda sorte, fato é que número
expressivo
da
população
de
transexuais
no
Brasil
encontra-se
em
vulnerabilidade social. Muito embora o SUS realize as cirurgias de
transgenitalização, a realidade da saúde pública brasileira ainda é bastante
conhecida. Nesse contexto, poucas são as pessoas transexuais capazes de arcar
economicamente com a cirurgia em instituições de saúde privadas. Não faz
qualquer sentido que em todo esse período de aguardo o transexual seja
obrigado a permanecer com um registro que não o representa. Não se pode
admitir um critério censitário para o reconhecimento de um direito.
Fica evidente, portanto, que a exigência da cirurgia de redesignação
sexual vai de encontra à eleição da pessoa transexual, de modo que cabe
exclusivamente a ela, compreendendo todas as suas implicações, realizá-la ou
não. Impor um pré-requisito a um direito fundamental mutila, em nosso ver, a
própria definição de direitos fundamentais e direitos de personalidade, que se
baseiam na ideia de inerência ao ser humano. Uma vez se tratando de direitos
inerentes ao sujeito, impor condições se transmuta em genuíno autoritarismo,
contra sujeitos que tem a prerrogativa de viverem a vida exercendo suas
potencialidades e suas liberdades: é o que o direito deve garantir.
Há julgados na direção do reconhecimento de mudança de nome e sexo
após a cirurgia de transgenitalização. A jurisprudência nessa temática, sem
embargo, se encontra segmentada; colhe-se em Sérgio Carrara reflexão
importante sobre a atuação jurisdicional:
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
61
A justiça também tem concedido, em muitos casos de cirurgia, o
direito de mudança de nome e redesignação do sexo em documento de
identidade, mas a decisão ainda depende do arbítrio dos juízes. O fato
de a mudança documental depender na maioria dos casos da
realização da cirurgia de transgenitalização tanto consagra a distância
entre os diferentes saberes autorizados (médicos, psicológicos e
operadores do direito) e as experiências concretas dos sujeitos sociais,
quanto marca, sob a justificativa de sanar a inadequação entre sexo e
gênero, a reinstauração de um perverso binarismo. Àqueles que não
conseguem ou não desejam a operação, como é o caso de muitas
travestis, é em geral negado um direito fundamental intrinsecamente
relacionado à sua identidade.95
Observe-se agora os julgados que caminham no entendimento da
impossibilidade de mudança de sexo sem a realização da cirurgia de
redesignação sexual:
RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - Pedido de alteração
de nome e sexo- Possibilidade apenas em relação ao nome - Pessoa
que apesar de não submetida à cirurgia de transgenitalização, se
apresenta na sociedade como do sexo feminino -Nome masculino que
lhe acarreta constrangimentos e aborrecimentos - Admitida a
alteração do nome, negada a alteração para constar ser do sexo oposto
- Observância do princípio de veracidade do registro público - Recurso
parcialmente provido.
(TJSP, APL 320109120108260602 SP 0032010-91.2010.8.26.0602,
Des. Rel. Mendes Pereira, DJ 28/11/2012)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.
SENTENÇA QUE EXTINGUIU O FEITO SEM RESOLUÇÃO DO
MÉRITO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. INTERESSADO
QUE
AINDA
NÃO
REALIZOU
A
CIRURGIA
DE
NEOVAGINOPLASTIA. IMPOSSIBILIDADE. CARÊNCIA DE AÇÃO.
SENTENÇA QUE DEVE SER MANTIDA. O Apelante pleiteia alteração
do nome e de sexo no registro civil, afirmando que desde tenra idade,
apesar da conformação genital masculina, psicologicamente se sente
mulher, fazendo-se tornar conhecido pelo prenome de Milena.
Todavia, o recorrente ainda não se submeteu à cirurgia de
mudança de sexo, o que não permite alteração do nome e do sexo em
seu registro civil. Precedentes jurisprudenciais. SENTENÇA
MANTIDA. Recurso NÃO provido.
(TJBA,
APL
03683226420128050001
BA
036832264.2012.8.05.0001, Des. Rel. José Olegário Monção Caldas, DJ
15/10/2013)
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE
NASCIMENTO QUANTO AO NOME E SEXO DO AUTOR.
TRANSEXUALISMO.
AUSÊNCIA
DE
CIRURGIA
DE
REDESIGNAÇÃO SEXUAL. INVIABILIDADE DA ALTERAÇÃO DO
REGISTRO, UMA VEZ NÃO PREVISTA CIRURGIA PARA
MUDANÇA DE SEXO, NEM MESMO PROVA ROBUSTA ACERCA DA
ABRANGÊNCIA
DO
TRANSTORNO
SEXUAL. APELAÇÃO
DESPROVIDA.
CARRARA, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Revista Bagoas:
revista de estudos gays. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, n. 5, Natal: UFRN, 2010, p.
137.
95
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
62
(TJRS, Apelação Cível Nº 70056132376, Sétima Câmara Cível,
Relator: Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em 13/11/2013)
Os julgados acima sucintamente referidos demonstram, no conteúdo
que explicita a ementa, que o Poder Judiciário ainda reluta em reconhecer o
direito dos transexuais de mudarem nome e sexo em seus registros, sem a
realização da operação. Cumpre respeitar o posicionamento, mas parece-nos,
salvo melhor juízo, que tal bússola limita o exercício de um direito fundamental;
julgados há, contudo, que não se eclipsaram diante dessa necessidade:
APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.
TRANSGENÊRO.MUDANÇA DE NOME E DE SEXO. AUSÊNCIA DE
CIRURGIA DE TRANGENITALIZAÇÃO. Constatada e provada a
condição de transgênero da autora, é dispensável a cirurgia de
transgenitalização para efeitos de alteração de seu nome e designativo
de gênero no seu registro civil de nascimento. A condição de
transgênero, por si só, já evidencia que a pessoa não se enquadra no
gênero de nascimento, sendo de rigor, que a sua real condição seja
descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta socialmente
DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
(Apelação Cível Nº 70057414971, Oitava Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 05/06/2014)
RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. ALTERAÇÃO
DO NOME E DO SEXO. TRANSEXUAL. INTERESSADO NÃO
SUBMETIDO
À
CIRURGIA
DE
TRANSGENITALIZAÇÃO.
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. CONDIÇÕES DA AÇÃO. PRESENÇA. INSTRUÇÃO
PROBATÓRIA.
AUSÊNCIA.
SENTENÇA
CASSADA.
O
reconhecimento judicial do direito dos transexuais à alteração de seu
prenome conforme o sentimento que eles têm de si mesmos, ainda que
não tenham se submetido à cirurgia de transgenitalização, é medida
que se revela em consonância com o princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana. Presentes as condições da ação e
afigurando-se indispensável o regular processamento do feito, com
instrução probatória exauriente, para a correta solução da presente
controvérsia, impõe-se a cassação da sentença.
(TJMG, AC 10521130104792001 MG, Des. Rel. Edilson Fernandes, DJ
07/05/2014)
Os entendimentos acima expostos demonstram uma tendência no
Judiciário brasileiro. Decisões que levam em conta as peculiaridades do caso
concreto, as informações advindas das demais ciências e a uma interpretação
constitucionalizada do direito se mostram essenciais para a construção de uma
boa cultura judiciária no país, com justiça e segurança.
Passemos nessa toada aos termos da ADI que iremos, então, expor e
examinar quantum satis.
4.
Ação Direita de Inconstitucionalidade 4275
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
63
Em julho de 2009, o Ministério Público Federal, por meio da
Procuradoria Geral da República, em peça firmada pela Doutora Deborah
Macedo
Duprat
de
Britto
Pereira,
ingressou
com
Ação
Direta
de
Inconstitucionalidade no STF buscando dar ao artigo 58 da Lei nº 6.015/73
interpretação conforme a Constituição, de modo a reconhecer aos transexuais,
independentemente da cirurgia de transgenitalização, o direito a substituição do
prenome e sexo no registro civil. A ADI, ao tempo da feitura deste tempo, em
agosto de 2014, aguarda julgamento.
A petição inicial da referida ADI apresenta os pressupostos teóricos da
discussão, conceitos essenciais tais quais os tratados neste trabalho, bem como
analisa os pressupostos jurídicos que dão ensejo ao pedido, nomeadamente, o
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Trata da ADI da
essencialidade da mudança de nome e sexo, de modo que não basta apenas
mudar o nome e manter o sexo biológico, pois a situação de constrangimento se
manteria, conforme se observa no seguinte trecho:
De resto, se a alteração de nome corresponde a uma mudança de
gênero, a consequência lógica, em seu sentido filosófico mesmo, é a
alteração do sexo no registro civil. Do contrário preserva-se a
incongruência entre a identidade da pessoa e os dados do registro
civil.
Segue a petição inicial defendendo o direito das pessoas transexuais à
cirurgia de transgenitalização e de modo conexo, também defende a
possibilidade de alteração de prenome e sexo sem a realização da referida
cirurgia. Ponto que se apoia no seguinte trecho:
(...) Não é a cirurgia que concede ao indivíduo a condição transexual.
Portanto, o direito fundamental à identidade de gênero justifica
igualmente o direito à troca de prenome, independentemente da
realização da cirurgia, sempre que o gênero reivindicado (masculino
ou feminino) não esteja apoiado no sexo biológico respectivo.
Trata-se ali de uma chance de autodeterminação. Ao fim da petição
inicial apresentam-se requisitos, tal qual propõe a jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal Alemão, a serem fixados no caso de não realização da
cirurgia. São eles: a maioridade civil, a convicção do transexual, há pelo menos
três anos, de pertencer ao gênero oposto ao biológico, a presunção, com alta
probabilidade, de não mais modificação de gênero, requisitos a serem atestados
por um grupo de especialistas que avaliarão aspectos médicos, psicológicos e
sociais.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
64
Muito embora se subscreva aqui a necessidade de despatologização da
transexualidade e a possibilidade cada vez maior de autodeterminação dos
transexuais, os critérios elencados pelo MPF desempenham papel de relevo na
destinação de assistência médica e psicológica à pessoa transexual, na proteção
e promoção dos direitos das pessoas transexuais, e não sirvam de arbítrio para
maior sofrimento dos transexuais.
5.
Conclusões
O exposto no presente trabalho requer, antes de tudo, pedir vênia à
exposição sucinta diante de questões tão sensíveis e de impacto na dogmática
jurídica do Direito Civil contemporâneo. Além disso, permite, ainda assim,
concluir que a dignidade das pessoas transexuais passa por sua capacidade de
autodeterminação e pela possibilidade de criação de uma identidade própria.
Para tanto, é necessário que haja reconhecimento de direitos fundamentais de
personalidade, quais sejam, o direito ao nome e o direito ao próprio corpo.
O reconhecimento do direito a mudança de nome e sexo por parte dos
transexuais é demanda que deve alcançar proteção. Não cabe ao Estado optar
pela realização da cirurgia de redesignação sexual ou não.
Segundo considerado ao longo deste estudo e trabalho modestos,
conceitos de identidade de gênero e sexo biológico se diferem, nada obstante
este possa ser elemento de construção daquele. A relação do sujeito com seu
próprio corpo é elemento fundamental da intimidade, não cabendo maiores
questionamentos, mas sim o devido respeito. O transexual pode se realizar
mantendo o órgão genital biológico ou retirando. Em qualquer situação,
contudo, deve lhe ser assegurado o direito à felicidade e a realização própria.
Para tanto, é necessário tanto uma atividade institucional, no sentido de
garantir os direitos a essa parcela da situação, quanto uma atividade social e
comunitária no sentido de integrar essa parcela e lhes tratar com o devido
respeito, sem preconceitos infundados. O caminho ainda é longo.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
65
DIREITOS E CONFLITOS DE VIZINHANÇA
Paulo Lôbo1
Resumo: Estudo da ordenação jurídica brasileira dos direitos de vizinhança, sob
a ótica preferencial do direito civil contemporâneo. Apreciação das mútuas
interferências com o direito público, principalmente o direito urbanístico e o
direito ambiental. Deveres de vizinhança, interesse coletivo e a função social da
propriedade e da posse.
Palavras-chaves: direitos de vizinhança; vizinhança; direito de construir
Abstract: Study of the Brazilian legal ordering of neighborhood rights under the
preferred viewpoint of contemporary civil law. Consideration of the interference
with the public law, especially the urban law and environmental law.
Neighborhood duties, collective interest and the social function of property and
possession.
Keywords: neighborhood rights; neighborhood; right to build
Sumário: 1. Conteúdo e abrangência - 2. Uso anormal da propriedade - 3.
Árvores limítrofes - 4. Passagem forçada - 5. Passagem de cabos e tubulações 7. Limites entre prédios e direito de cercar ou murar - 8. Direito de construir.
1. Conteúdo e abrangência
Os direitos de vizinhança compreendem o conjunto de normas de
convivência entre os titulares de direito de propriedade ou de posse de imóveis
localizados próximos uns aos outros. Para efeitos legais, vizinhos não são
Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE, Professor Emérito da
UFAL. Doutor em Direito Civil (USP). Advogado. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de
Direito Civil.
1
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
66
necessariamente os contíguos, mas todos os que possam ser afetados pelo uso
do imóvel. As normas de regência dos direitos de vizinhança são
preferentemente cogentes, porque os conflitos nessa matéria tendem ao litígio e
ao aguçamento de ânimos. Na dimensão positiva, vizinhos são os devem viver
harmonicamente no mesmo espaço, respeitando reciprocamente os direitos e os
deveres comuns. Vizinhos são não apenas os que estão ao lado, mas os que
habitam imóveis acima ou abaixo, daí porque as normas dos direitos de
vizinhança aplicam-se conjugadamente com as do condomínio edilício.
Para o direito brasileiro, os direitos de vizinhança são autônomos e
concebidos como limitações ao direito de propriedade. Algumas legislações
inserem os conflitos de vizinhança nas servidões legais, como direito real de
servidão. Os direitos de vizinhança constituem as mais antigas limitações ao
direito de propriedade individual, no mundo luso-brasileiro. As limitações são
de natureza majoritariamente negativa e preventiva. Mas há, igualmente,
limitações positivas, das quais emergem deveres positivos aos que se qualificam
juridicamente como vizinhos.
As situações em que se classificam os direitos de vizinhança são as mais
comuns na vida social, a merecerem maior atenção do legislador. Segundo
Pontes de Miranda2, a técnica legislativa, a esse respeito, representa a
elaboração de alguns séculos, na qual muito se deve aos costumes. Para Orlando
Gomes3, o critério regulador das relações de vizinhança é dado por três teorias
principais: (1) a da proibição dos atos de emulação (utilidade ou inutilidade do
ato do proprietário); (2) a do uso normal da coisa própria; (3) a do uso
necessário (os atos do proprietário são lícitos, se motivados pela necessidade). O
Código Civil de 2002 perfilhou a teoria do uso normal da coisa própria,
preconizada por Ihering, que procura estabelecer a linha demarcatória entre as
interferências lícitas e ilícitas, com apoio na ideia de que o exercício do direito
de propriedade não deve exceder as necessidades normais da vida cotidiana.
O Código Civil reformulou os tópicos cuja disciplina anterior era
considerada insuficiente, pela doutrina. Destacam-se as alterações e inovações
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 449.
3 GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 221.
2
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
67
relativas ao uso anormal da propriedade, à passagem forçada, à passagem de
cabos e tubulações, às águas e ao direito de construir, que procuraram resolver
demandas contemporâneas.
Os direitos de vizinhança atêm-se às relações jurídicas intersubjetivas
que emergem da convivência em determinado espaço territorial. Paralelamente,
incidem as normas de direito administrativo, notadamente as de caráter
urbanístico, emanadas do legislador federal (Estatuto das Cidades, Lei nº
10.257, de 2001) e do legislador municipal, relativamente às edificações e aos
limites de tolerância entre vizinhos. São igualmente incidentes as normas de
direito ambiental. Os limites ao uso dos imóveis, entre vizinhos, são tanto de
direito privado, onde recebem a denominação de direitos de vizinhança, quanto
de direito público. Há outras normas de direito privado correlatas que regulam
a convivência entre vizinhos, em determinadas circunstâncias, como a Lei do
Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766, de 1979), a Lei do Inquilinato (Lei
nº 8.245, de 1991) e as normas do Código Civil sobre condomínio edilício.
Quando em conflito, os interesses coletivos prevalecem sobre os
interesses particulares. De acordo com San Tiago Dantas4, há casos em que os
conflitos entre vizinhos se compõem pela atribuição de um dever e de um direito
fundados no princípio da coexistência. Há outros em que se compõem pela
atribuição de um dever e um direito fundados no princípio da supremacia do
interesse público. Os direitos de vizinhança, relacionados ao primeiro princípio,
são gratuitos, e os ônus do proprietário são encargos ordinários da propriedade.
Os relacionados ao segundo princípio são onerosos e quem o suporta tem direito
de ser indenizado.
2. Uso anormal da propriedade
O uso anormal da propriedade, ou da posse, é o que colide com os
padrões comuns de conduta, adotado na comunidade onde ela se insere, ou com
as normas legais cogentes. O parâmetro a ser observado nessa matéria é o da
razoabilidade, ou da conduta razoável. Conduta normal ou razoável é a que
DANTAS, F. C. de San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. Rio de Janeiro:
Forense, 1972, p. 264.
4
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
68
corresponde ao tipo médio de uso do imóvel, de acordo com o consenso da
comunidade (cidade, bairro, vila, rua), que permite convivência harmônica, sem
prejuízos ou incômodos evitáveis para o outro ou os outros. O conceito é
indeterminado, a reclamar a análise de cada caso, mas segundo os parâmetros
de razoabilidade. No regime da propriedade privada, o seu titular é responsável
pelas atividades de seu direito e pelos atos que se propagam para outros objetos
de apropriação5.
As expressões utilizadas na legislação
“
”
“
”
-se inadequadas, porque restritivas,
tendendo-se ao abuso do direito da propriedade. Segundo Ebert Chamoun6, a
parte geral do direito de vizinhança sofreu total remodelação, no anteprojeto (e
no Código Civil, que dele resultou). Impunha-se a reforma, por causa da falta de
critérios firmes de solução dos variados e graves conflitos de vizinhança, que
têm ensejado grandes dificuldades para os juízes. Louva-se na teoria
desenvolvida por San Tiago Dantas que conjuga a teoria do uso normal e a da
necessidade, que é o estatuto da vizinhança comum, e o princípio da supremacia
do interesse público. Devem sempre cessar as interferências anormais que
podem ser evitadas ou comprometem a habitação dos imóveis adjacentes.
O uso da coisa é anormal quando repercute no uso normal da outra, em
relação às pessoas que a habitam. Inclui-se no conceito legal de uso anormal, o
não uso, quando provoca interferências no vizinho (por exemplo, em casa
fechada, água não tratada de piscina na qual proliferam mosquitos
transmissores de doença). Não se confunde com o abuso do direito (CC, art.
187), que pode também decorrer dos conflitos de vizinhança. O uso anormal não
é apenas de imóvel, mas de coisas móveis, que possam provocar tais
interferências em quem habita um imóvel. Por exemplo, o barulho excessivo de
escapes abertos de veículos automotores. Os que sofrem são os que habitam o
imóvel; e, por ser imóvel, não podem deslocá-lo para distanciá-lo dessas
interferências prejudiciais.
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5.
CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito
das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de
Janeiro: TJRJ, v. 23, 1970, p. 22.
5
6
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
69
As interferências são as que causam ou podem causar prejuízos à saúde,
ao sossego ou à segurança dessas pessoas, provocadas pelo uso de propriedade
vizinha. Não há necessidade se provar que o prejuízo já ocorreu, pois basta a
ameaça ou o risco de ofensa à saúde, ao sossego ou à segurança.
O vizinho prejudicado legitima-se às pretensões para prestação tanto
negativa, principalmente para cessação dos fatores de perturbação dos direitos
de vizinhança, quanto positivas, para prevenir a interferência ou o dano.
Legitima-se, igualmente e cumulativamente, à pretensão à indenização por
danos materiais ou danos morais. Estes últimos são pressupostos, in re ipsa,
pois violam direitos da personalidade, principalmente a integridade psíquica, a
intimidade e a vida privada do vizinho prejudicado pela interferência.
Não se exige a cessação de todas as interferências, razão porque a lei
“
z h
ç ”. A
leva em conta certa tolerância indispensável para a viabilidade da vida
contemporânea, especialmente nos espaços urbanos. Os limites ordinários de
tolerância são os que resultam do uso normal da propriedade, segundo o tipo
médio e razoável, além dos quais o prejuízo não deve ser suportado. Por
exemplo, a realização de uma festa eventual ou episódica, com grande
movimentação de pessoas no imóvel, animadores e músicas está dentro dos
limites ordinários de tolerância; mas estes são excedidos quando feitas com
muita frequência ou quando prejudicam o descanso noturno dos vizinhos. É
normal que, eventualmente, sejam modificadas as posições dos móveis, porque
os moradores desejam alterar a ambientação do apartamento; mas é anormal
que todos os dias sejam arrastados móveis, repercutindo o barulho nos vizinhos
contíguos. Não há uso anormal da propriedade se a interferência resultar de fato
natural, não imputável ao titular do imóvel.
Não se inclui nos limites ordinários de tolerância a existência anterior
do uso anormal; no direito brasileiro não prevalece o modo de uso anterior ou
da pré-ocupação, porque tal conduta não configura direito adquirido. Assim, as
atividades poluentes, que existiam antes de a urbanização delas se aproximar ou
cercá-las (por exemplo, depósito de cal e cimento), não servem como óbice a que
os direitos de vizinhança a elas não se apliquem, uma vez que passaram a causar
interferências na saúde, na segurança e no sossego dos que habitam em suas
proximidades. O STJ decidiu que determinado Município se abstivesse de
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
70
utilizar antiga pedreira co
ó
“
” (RE
ã
º 163.483). P
novo proprietário ou possuidor é responsável pelo uso anormal praticado pelo
anterior, pois os direitos de vizinhança constituem obrigações propter rem,
vinculando-se ao imóvel e responsabilizando quem detenha sua titularidade.
O fato de permitirem as leis de direito público que se instalem
indústrias ou serviços em lugar em que não os havia, ou eram proibidos, de
modo nenhum basta para se entender que cessou o direito de vizinhança, pois a
permissão somente pode entender-se para eficácia no plano do direito público.
Por essa razão, o art. 1.278 do Código Civil estabelece que, se as interferências
forem justificadas pelo interesse público, o causador delas terá de pagar ao
vizinho, ou vizinhos, indenização cabal.
A tolerância às interferências, imposta por decisão judicial, não suprime
do vizinho afetado a totalidade do exercício dos direitos de vizinhança. Se o juiz
se convencer que a situação é de interferência que deva ser tolerada,
considerando que o prejuízo à saúde, ou ao sossego, ou à segurança é fato, o
vizinho afetado tem direito de exigir sua redução ou eliminação, quando estas se
tornarem possíveis, a qualquer tempo. Cabe-lhe o ônus de provar tal
possibilidade, o que demonstra que a decisão judicial não é definitiva, mas sim
alterável rebus sic stantibus, de acordo com as circunstâncias supervenientes.
É imensa a casuística dos tribunais sobre o que se considera uso
anormal da propriedade: a fumaça que invade os imóveis vizinhos, a queima de
material inflamável, o badalar de sinos de igrejas sem necessidade de culto, a
poluição das águas, os odores fortes, o canto alto de aves, as águas não tratadas
que facilitam a proliferação de mosquitos transmissores de doenças, a
pulverização com inseticidas, a manutenção de fossa junto ao prédio de outrem,
o barulho excessivo em bares, festas e cultos religiosos, a prostituição em
imóveis residenciais, a guarda e manuseio de explosivos, produtos químicos e
agrotóxicos. No caso dos cultos religiosos, a liberdade de religião há de se
harmonizar com os direitos de vizinhança.
Saúde é direito fundamental, constitucionalmente tutelado, abrangente
do físico ou da mente. A saúde psicofísica não pode ser prejudicada, por conduta
de terceiro vizinho, quando a conduta é evitável. A saúde é de quem habita ou
tem de frequentar o imóvel. Segurança é material e moral, tanto do imóvel
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
71
quanto de quem o habita. Sossego é a tranquilidade normal que a pessoa tem
como legítima expectativa de usufruir em sua habitação. Sossego não é ausência
de barulho, mas convivência com barulho por todos tolerável. O barulho que se
tolera de dia não é tolerável à noite. O sossego é comprometido não apenas pelo
som insuportável, mas também pela luz, pelos odores e por outros motivos de
inquietação.
O barulho é, certamente, o maior problema decorrente dos crescentes
adensamentos populacionais em áreas urbanas. Os prédios, cada vez mais altos
e próximos, e os apartamentos cada vez menores, desafiam os limites da
suportação dos sons provocados pela utilização das propriedades vizinhas. O
barulho adoece e compromete a qualidade de vida. De acordo com estudos
referidos pela revista de saúde The Lancet (v. 383, p. 1.270, abr. 2014), o
barulho pode provocar irritação e perturbação do sono, aumentando a
prevalência de estresse, doença cardiovascular e mortalidade nos grupos
expostos. Em crianças, o ruído ambiental também pode afetar negativamente os
resultados de aprendizagem e o desempenho cognitivo. Segundo os estudos,
mesmo quando não é forte, o ruído pode perturbar o sono, desencadeando
reações no organismo, como aceleração dos batimentos cardíacos.
O Código Civil assegura ao proprietário ou possuidor direto do imóvel o
direito e a pretensão a que o dono do imóvel vizinho promova a demolição ou a
reparação necessária deste, quando haja ameaça de ruína. Pode, conjuntamente,
exigir caução pelo dano que julga iminente, também conhecida como caução de
dano infecto. A caução tem como pressupostos a grande probabilidade do dano
e antecipação da indenização. O vizinho, a quem cabe demolir ou reparar, não
pode definir quais as medidas que julgar adequadas.
Também pode o proprietário ou possuidor do imóvel exigir do vizinho,
que esteja a promover construção nova em terreno deste, garantias contra
prejuízo eventual, em caso de dano iminente ou provável. Pouco importa que a
obra tenha recebido autorização da administração pública competente, ou
alvará de construção, ou que o vizinho comprove que observa o projeto assim
aprovado, ou que não teve culpa. Se ficar constatada a probabilidade de dano
iminente, é lícito ao vizinho, sob risco, exigir garantias, que podem ser fiança
pessoal, caução em dinheiro, penhor, hipoteca, seguro ou fiança bancária. Não
se obsta a obra, mas a garantia tem por fito prevenir sua segurança. No caso de
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
72
recusa à prestação de garantia, cabe ação judicial para sua obtenção. Enquanto
não se constrói a obra, o direito do vizinho pode ser exercido para que se
abstenha. Se já construiu, constatado o dano iminente, a pretensão é para a
demolição ou reparação necessária antes de qualquer dano.
A pretensão ou exigibilidade, no âmbito extrajudicial, e a ação judicial
pelo uso anormal da propriedade, podem ser dirigidas contra o proprietário do
imóvel, fonte das interferências prejudiciais, ainda que o causador seja locatário
ou outro possuidor direto (por exemplo, usufrutuário, usuário, comodatário).
Do mesmo modo, a pretensão e a ação judicial podem ser dirigidas ao possuidor
direto, pois a obrigação de não causar interferências não é apenas do
proprietário, mas de quem esteja na qualidade de vizinho. A legitimidade
passiva expandida, na ação judicial, tem sido admitida pelos tribunais (STJ,
REsp 480.621 e REsp 622.203).
O uso é também anormal quando viola princípios fundamentais da
Constituição, tais como a garantia da vida privada, da intimidade, da
inviolabilidade da moradia e da proteção do meio ambiente. O Código Florestal
(Lei nº 12.651, de 2012) considera que, na utilização e exploração da vegetação,
as ações ou omissões contrárias às suas disposições são consideradas uso
irregular da propriedade, conceito análogo ao do uso anormal, passíveis, além
de responsabilidade civil, de sanções de caráter administrativo, civil e penal. As
obrigações previstas na Lei nº 12.651 têm natureza real e são transmitidas ao
sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse
do imóvel rural, ou seja, não podem ser afastadas por ato de autonomia privada.
3. Árvores limítrofes
As árvores integram o imóvel, quando localizadas dentro de seus
limites. O direito distribui as titularidades, quando as árvores têm seu tronco na
linha divisória, quando as raízes e galhos de árvores ultrapassam os limites e
alcançam o imóvel vizinho e quando os frutos estão pendentes ou caídos no
imóvel vizinho, que são fontes permanentes de conflitos. Essa matéria não diz
respeito apenas ao conflito entre particulares, mas também à proteção do meio
ambiente, que sobre aquele prevalece.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
73
Há presunção legal de pertencimento da árvore a ambos os titulares de
imóveis vizinhos, quando o tronco situa-se na linha divisória entre eles, tendo
em vista sua função de marco divisório. Pouco importa que o tronco esteja mais
em um imóvel que em outro. O tronco, para ser considerado comum, deve estar
na linha divisória em sua parte mais próxima da raiz. Cada vizinho é dono de
metade, em parte indivisível. Não é comum a árvore se o tronco enraíza-se
inteiramente em um imóvel e inclina-se sobre o outro. A lei (CC, art. 1.282)
alude a tronco de árvore, mas há plantas que não são árvores, como as
palmeiras, principalmente os coqueiros, cujas plantações são comuns no litoral
tropical brasileiro. Não são consideradas árvore porque estas se caracterizam
pelo crescimento do diâmetro do seu caule para a formação do tronco, que
produz a madeira e tal não acontece com as palmeiras. Para os fins da lei, no
entanto, as palmeiras se enquadram no conceito genérico de árvore. Quando a
árvore cresce, pode vergar-se para um dos lados, podendo, inclusive, ultrapassar
a linha divisória, no espaço aéreo; ainda assim, pertence exclusivamente ao
titular do imóvel onde estão suas raízes. Quando a árvore inclina seu tronco
sobre o imóvel vizinho, causando-lhe prejuízos (por exemplo, quedas dos frutos
ou palhas do coqueiro sobre telhado), o titular prejudicado tem pretensão à
indenização. A pretensão ao corte da árvore depende de parecer favorável das
autoridades ambientais, quanto ao risco de tombar, causando prejuízo aos que
forem por ela alcançados, ou de decisão judicial.
O Código Civil mantém antiga regra, anterior ao advento do direito
ambiental, autorizativa do corte das raízes e ramos de árvores que ultrapassem
o limite do imóvel, pressupondo-se a existência de dano ou risco de dano para o
imóvel vizinho. O corte da raiz ou das raízes, que assim ultrapassam os limites,
pelo titular do terreno invadido, pode acarretar a morte do vegetal, mas essa é
uma possível consequência que a lei desconsidera. A norma legal alude a ramos
e raízes, não se admitindo o corte do tronco ou parte do tronco. O vizinho tem
direito de se apropriar dos galhos e raízes que cortar, sem necessidade de
justificar ou alegar dano. Tem sido decidido ser dispensável o pedido de
autorização judicial para fazer o corte, que já é dada por lei. O direito ao corte
dos galhos e raízes não é admitido por algumas legislações estrangeiras e outras
o condicionam à prova de que são prejudiciais.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
74
Com relação aos frutos, os que estão pendentes não podem ser colhidos
pelo titular do terreno sobre o qual parte da árvore se projeta; o dono da árvore
pode colhê-los, se for possível fazê-lo a partir de seu próprio imóvel. Porém, os
frutos que caírem sobre o terreno vizinho passam a pertencer ao titular deste,
que livremente os pode recolher e dar o destino que pretender. O fato do
pertencimento é a queda sobre o terreno do vizinho. Nesse sentido, Pontes de
Miranda7: o direito de propriedade, no caso dos frutos caídos, não é oriundo do
direito de apropriação, mas de fato jurídico stricto sensu, tal como acontece com
a propriedade dos frutos da árvore que caem. A queda dos frutos é natural, não
pode ser provocada, tal como sacudir os galhos ou a árvore.
Para Serpa Lopes8, a solução do direito brasileiro é contrária à doutrina
romanista, consistente em manter no dono da árvore a propriedade dos frutos,
mesmo quando caídos além dos limites de sua propriedade. Os romanos
entendiam que o dono da árvore tinha o direito de colher e recolher os frutos
que se encontrassem no terreno do vizinho. O Código Civil português prevê,
igualmente, o direito à apanha dos frutos, que pode ser exigível contra o vizinho,
sendo responsável pelo prejuízo que causar. A norma do Código Civil brasileiro
alude apenas ao vizinho particular; assim, se os frutos caírem em terreno
pertencente ao domínio público, eles continuam na titularidade do dono da
árvore, que os pode recolher.
4. Passagem forçada
Todo aquele que é titular de imóvel encravado em outro ou que tenha
necessariamente de passar por outro imóvel para alcançar as vias públicas de
circulação ou os espaços públicos, ou para se chegar à fonte de água, tem direito
à passagem forçada. Esse direito não se confunde com a servidão de passagem,
pois esta pode ser instituída ainda que não seja caminho necessário. A passagem
forçada, típico direito de vizinhança, é limitação ao direito de propriedade.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 485.
8 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 526.
7
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
75
Funda-se, segundo Caio Mário da Silva Pereira9, no princípio da solidariedade
social, com origem no direito medieval. A pretensão a que o vizinho suporte a
passagem é imprescritível.
O direito de passagem existe por força de lei, não necessitando de
registro para que produza seus efeitos. Os requisitos são: (1) Falta ou perda de
acesso a via pública, nascente de água ou porto; (2) constrangimento ao vizinho
para que assegure a passagem; (3) pagamento de indenização ao vizinho.
A passagem forçada é suportada pelo imóvel, através do qual o caminho
necessariamente se dá, de acordo com condições e cultura do lugar. Ainda que o
imóvel beneficiado com a passagem forçada seja circundado por outro ou por
outros imóveis, o titular do imóvel que a suporta não pode se valer dessa
circunstância para negá-la, pois o critério é o que a lei determina: sofre o
constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à
passagem. É o critério da utilidade e do menor custo para ambas as partes. Se o
caminho ainda não existir, terá seu rumo fixado pelo juiz, que se valerá, se
preciso for, de perícia. A oposição ou a dificuldade postas pelo vizinho
caracterizam ilícito, qualificado como abuso do direito, fazendo nascer a ação.
Por ser limitação legal ao direito de propriedade, mister se faz a prova de sua
necessidade.
Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção
de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela
motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do
interesse público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios
terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra
a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será
indenizado pela só limitação do domínio (STJ, REsp 316.336). O Código Civil de
2002 abandonou o requisito do imóvel encravado no outro, optando pela
inexistência ou perda de acesso a via pública, nascente ou porto.
Esclarece o enunciado 88 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ: o
direito de passagem forçada também é garantido nos casos em que o acesso à
via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Revista e atualizada por Carlos
Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. IV, p. 186.
9
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
76
necessidades de exploração econômica. Na mesma direção, tem sido decidido
que cabe a passagem forçada quando o acesso à via pública seja perigoso ou
insuficiente. Essa interpretação extensiva da norma legal é a que melhor realiza
a função social da propriedade. Porém, se o proprietário ou possuidor tem
servidão de caminho por outro imóvel, presume-se não precisar do acesso
forçado. Tampouco basta, para se reconhecer o direito de passagem forçada, a
comodidade em se encurtar a distância entre o imóvel e a via pública, ou a mera
tolerância do vizinho; a necessidade há de ser provada.
Se a perda de acesso resultar de alienação parcial e divisão de um
imóvel, se constrangerá à passagem uma das suas partes, sem agravamento para
a situação de terceiros. O titular da parte que ficou com o acesso, será
constrangido a permitir a passagem ao titular ou possuidor da parte que o
perdeu. Essa situação ocorre, com frequência, quando se extingue condomínio
comum, pela divisão entre os ex-condôminos; nem sempre é possível divisão
cômoda que permita o acesso a via pública a todas as partes resultantes. Se não
houver explicitação da passagem, esta será determinada judicialmente.
O imóvel (primeiro), cuja parte foi alienada a terceiro, poderia já utilizar
passagem forçada sobre terreno do vizinho (segundo). A alienação da parte do
primeiro imóvel não pode agravar a situação do segundo imóvel, que já
suportava a passagem forçada. O titular do segundo imóvel não está obrigado a
tolerar nova passagem forçada. O rumo permanecerá o mesmo, ainda que o
adquirente tenha de passar, também, pela parte restante do primeiro imóvel.
É admissível que o caminho tradicionalmente utilizado pelo titular do
imóvel como passagem forçada possa ser modificado, se não causar prejuízo ou
agravar a passagem. Tal ocorre quando o titular do imóvel que suporta a
passagem forçada necessita ocupar o rumo utilizado, ou parte dele, para
construção de obras ou para expansão de suas atividades. A mudança do rumo
deve contemplar idênticas condições de passagem para se alcançar a via pública.
O direito à passagem forçada pode ser acidental e temporário, quando o
acesso a via pública é obstruído, sem culpa do titular do imóvel. Exemplifique-se
com inundação de rio ou queda de barreira, impedindo o acesso
tradicionalmente utilizado. O direito de passagem perdurará até que o acesso
originário possa ser reutilizado, em condições normais.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
77
O direito à passagem forçada não é gratuito. O que a obtiver deverá
indenizar o titular do imóvel que tiver de suportá-la. Não é indenização para
expropriação, pois o trecho utilizado não se transfere para a titularidade de
quem a utiliza. É indenização pela limitação da propriedade. A hipótese é de
responsabilidade pela indenização do uso. A indenização será fixada por acordo
mútuo ou pelo juiz, podendo ser paga de uma só vez, ou em parcelas ou
mediante renda. Ainda que a perda do acesso tenha causa que possa ser
imputável ao titular do próprio imóvel, persiste o direito à passagem forçada. O
Código Civil de 2002 não reproduziu norma da legislação anterior, que previa o
pagamento em dobro da indenização, se a perda fosse por culpa do interessado.
O exercício da pretensão à passagem forçada não depende de prévia oferta do
valor da indenização, pois esta é um direito do vizinho que suporta a limitação,
podendo exercê-lo ou não.
5. Passagem de cabos e tubulações
Além do trânsito ou passagem forçada de pessoas, a lei prevê tipo
específico de passagem permanente de cabos, tubulações e outros condutos
subterrâneos por imóveis, para fins de transmissão de energia, gás ou meios de
comunicação. As relações jurídicas decorrentes não são exclusivamente de
direito civil, pois há interferências do direito público administrativo. São
requisitos: (1) Dever de tolerância da passagem das instalações pelos imóveis
particulares; (2) Utilidade pública dos serviços que os utilizam; (3)
Demonstração de que a transmissão fora do imóvel é impossível ou
excessivamente onerosa; (4) Indenização.
Superada a fase da concepção absolutista da propriedade, tem-se como
indeclinável o dever de tolerar que sobre o imóvel passem meios de transmissão
de fontes e serviços essenciais à vida contemporânea. As instalações podem
passar pelo espaço aéreo, ou sobre o solo ou pelo subterrâneo do imóvel, não se
contendo nas instalações subterrâneas, pois a alusão a estas feita pelo Código
Civil não as restringe.
Trata-se de limitação à propriedade, que não se confunde com
desapropriação. O imóvel permanece sob a titularidade do proprietário, mas
sujeito a restrição de uso, que é o de suportar a passagem das instalações e de
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
78
não criar dificuldades ou riscos a suas finalidades. Algumas, como os cabos
aéreos de transmissão de energia, não impedem que atividades agrícolas
continuem sob eles; outros trazem potencial de risco maior, com vedação de
edificações, como os condutos de gás.
As empresas titulares dos meios de transmissão, ainda que regidas pelo
direito privado, prestam serviços públicos autorizados, fiscalizados ou
concedidos pela administração pública. Os trajetos pelos imóveis são definidos
pela administração pública competente, ou pela própria empresa, quando
recebe delegação de competência para isso. Não pode o proprietário contestálos ou indicar outros rumos, que julgue mais convenientes. Pode, no entanto,
demonstrar em juízo que a passagem fora de seu imóvel se faz possível e menos
onerosa, pois a lei (CC, art. 1.286) abriu essa possibilidade, quando alude que o
é
excessivamente oneros ”. P
í
“q
í
q
çã
modo menos gravoso no imóvel, se possível for e assim demonstrar. Depois de
feitas as instalações, pode exigir que sejam removidas para outro local do
imóvel, ficando sob seu encargo as despesas correspondentes. Pode, por fim,
exigir obras de segurança, se as instalações oferecerem grave risco, tais como
cercados, redes de proteção, construção de coberturas.
Embora não haja desapropriação da área a ser utilizada, o dever de
utilizar a passagem das instalações e a restrição ao uso correspondente do
imóvel importam o pagamento de indenização compatível. O valor da
indenização deve levar em conta a desvalorização que sofrerá o imóvel, como
um todo, as limitações e restrições ao uso e o dano emergente no local da
passagem. As instalações apenas poderão ser feitas após o pagamento da
indenização, fixada amigável ou judicialmente, segundo os critérios adotados
para desapropriação.
6. Águas e vizinhança
As águas, potáveis ou servidas, que atravessam imóveis vizinhos
impõem disciplina que previnam ou resolvam conflitos entre os respectivos
titulares, proprietários ou possuidores. Não se trata de servidão, mas sim de
direito de vizinhança, direito dependente, contido no direito de propriedade,
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
79
correspondente à limitação que sofre, em seu conteúdo, o direito de propriedade
do imóvel vizinho. A lei (CC, art. 1.288) pressupõe a existência de desníveis de
solos, porque as águas seguem a gravidade, qualificando-se os imóveis vizinhos
em superiores e inferiores. Interessa saber até que ponto os titulares dos
imóveis inferiores e, eventualmente, superiores têm de suportar o curso dessas
águas ou, ante a crescente escassez, a falta ou redução delas, por fatos
imputáveis aos titulares dos demais imóveis. O dever de não impedir o curso
natural é dever de vizinhança.
Em matéria de águas, as intercessões entre o direito privado e o direito
público são intensas. As águas públicas integram o domínio da União ou dos
Estados membros (CF, arts. 20 e 26), não sendo reguladas pelo direito civil. A
Constituição deixou pouco para o domínio privado das águas, pois o art. 26
E
“
subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na
forma da lei, as
U ã ”. A
çã
particulares ou das águas públicas pelos particulares, além das normas de
direito civil, compreende o que dispõe o Código de Águas (Decreto nº 24.643, de
1934, com força de lei) e a Lei nº 9.433, de 1997, sobre a outorga de uso dos
recursos hídricos. Esta última lei estabelece (art. 1º) que a água é um bem
público de uso comum, sem qualquer ressalva, o que importa dizer que ninguém
pode se apropriar de águas nascentes, correntes ou subterrâneas para seu uso
exclusivo e privativo, sem outorga pública.
O titular do imóvel superior não pode realizar obras ou serviços que
impeçam ou reduzam, injustificadamente, o fluxo das águas, em prejuízo do
titular do imóvel inferior, que delas também necessita. Se fizer obras para
facilitar o escoamento, deverá proceder de modo que não piore a condição
anterior do outro. Não pode o titular do imóvel superior desviar as águas que
corriam para dois ou mais imóveis e as deixar correr para um ou alguns, nem
mudar a direção agravando a situação do imóvel inferior.
O
titular
do
imóvel
inferior
não
pode
impedir
ou
reduzir,
injustificadamente, o fluxo natural das águas que descem do imóvel superior,
sejam elas pluviais ou de nascentes. Não pode construir obras que façam com
que as águas retornem ao imóvel superior, tais como barragens com esse
propósito, ou fazê-las voltar para a parte mais baixa do imóvel superior, além de
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
80
estar obrigado a permitir que o titular do imóvel superior entre em seu imóvel
para executar serviços de conservação e manutenção, de modo a que o fluxo
natural não seja comprometido. Este é o dever legal de escoamento.
Só há dever de escoamento das águas do fluxo natural; não assim se as
águas que descerem forem acumuladas artificialmente pelo titular do imóvel
superior, como as provenientes de poços, ou encanadas, ou decorrentes de obras
de irrigação, ainda que tenham sido utilizadas para suas atividades ou lazer. O
titular do imóvel inferior poderá exigir que essas águas sejam desviadas, além
de indenização pelos danos causados. Porém, se este tiver obtido algum
beneficiamento das águas assim recebidas, a indenização será reduzida nessa
exata medida.
As águas pluviais, ou seja, as que procedem imediatamente das chuvas,
de acordo com o Código de Águas, pertencem ao dono do imóvel onde caírem
diretamente, mas não lhe é permitido desperdiçá-las em prejuízo dos outros
imóveis que delas possam aproveitar, sob pena de indenização aos respectivos
proprietários, ou desviá-las de seu curso natural, sem consentimento expresso
dos que esperam recebê-las. O direito ao uso das águas pluviais é imprescritível.
Ninguém pode poluir as águas que não consome, com prejuízo de
terceiros,
máxime
quando
estes
forem
possuidores
de
imóveis
inferiores. Segundo o Código de Águas (art. 110), os trabalhos para a
salubridade das águas serão executados à custa dos infratores, que, além da
responsabilidade criminal, se houver, responderão pelas perdas e danos que
causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos
administrativos. Regra conexa do Código Civil (art. 1.291) estabelece que as
“q
”
ó
ã
ressarcindo os danos sofridos pelos titulares dos imóveis inferiores, se não for
possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas. Não há direito a
poluir, em desafio ao art. 225 da Constituição. As duas regras hão de ser
interpretadas conjugadamente, ou seja, ninguém pode poluir as águas e se o
fizer responde pelos deveres de indenização dos danos materiais e morais
causados aos prejudicados, de recuperação das águas e de desvio do curso
artificial das águas, além de responder administrativa e criminalmente.
É assegurado ao titular de qualquer imóvel (superior ou inferior) o
direito de construir barragens e açudes. As obras podem ter a finalidade de
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
81
represamento de águas pluviais ou particulares correntes. As barragens e açudes
devem conter as águas nos limites do imóvel do titular. Se os ultrapassar, deverá
indenizar os danos sofridos pelos vizinhos, deduzindo-se os que estes passaram
a ter de efetivo proveito, em homenagem ao princípio da vedação do
enriquecimento sem causa. A dedução leva em conta apenas o benefício sob a
ótica do titular cujo imóvel foi invadido pelas águas, e não de quem fez o
represamento. As águas podem não provocar qualquer benefício, se destruir,
por exemplo, plantações. A invasão das águas é fato objetivo, que independe de
demonstração de culpa.
A
“ q
q
q
”
aqueduto através de imóveis alheios, para receber águas, observados os
seguintes requisitos: (1) pagamento de prévia indenização; (2) finalidades de
atendimento das primeiras necessidades da vida, ou de escoamento de águas
supérfluas, ou de drenagem de
seu terreno; (3) não causar prejuízos
consideráveis à agricultura ou a indústria dos titulares dos imóveis onde deva
passar o canal.
Sem a prévia indenização ao ou aos proprietários prejudicados, não
pode iniciar a construção do canal. A indenização deve ser ajustada entre as
partes; se não houver acordo, decidirá o juiz sobre o valor. O pagamento da
indenização não tem finalidade expropriatória, mas sim de compensação pela
limitação da propriedade; a faixa do imóvel por onde passar o canal continuará
sob titularidade do dono respectivo. Para Pontes de Miranda, rigorosamente
não é de indenização que se trata, mas sim de composição de interesses, diante
da inevitabilidade do entrechoque dos direitos10. Primeiras necessidades dizem
respeito ao consumo humano dos que vivem e trabalham no imóvel interessado
e à manutenção básica das atividades pecuárias ou agrícolas. As águas
supérfluas são as de captação natural que excedem as necessidades das
atividades desenvolvidas no imóvel; não são assim consideradas as águas
servidas, que devem ser absorvidas no próprio terreno ou canalizadas para a
rede pública de coleta e saneamento, quando houver. A drenagem do terreno
pantanoso ou alagadiço só autoriza a canalização pelo terreno vizinho se não for
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 517.
10
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
82
possível ser feita e absorvida a água no mesmo terreno, ou não forem viáveis
processos de enxugo, além de estar em conformidade com a legislação
ambiental. O proprietário de uma nascente não pode desviar-lhe o curso, se esta
servir para abastecimento da população (Código de Águas, art. 94). O usuário do
canal ou aqueduto tem o direito e o dever de conservá-los e mantê-los em
condições adequadas, para suas finalidades e para evitar riscos de danos aos
proprietários em cujos imóveis atravessem.
O prejuízo do proprietário em cujo imóvel atravessa o canal é objetivo e
. “I
ã
çã
ó
corresponde, isto sim, à possibilidade de superação dos meandros subjetivos
”11.
Ao proprietário prejudicado com o canal ou aqueduto cabe, além da
indenização prévia: (1) direito ao ressarcimento pelos danos futuros, em virtude
infiltração ou irrupção das águas, independentemente da conservação da obra,
ou de sua deterioração; (2) direito de exigir do proprietário beneficiário que a
canalização seja subterrânea, quando atravessar áreas edificadas, pátios, hortas,
jardins e quintais. Pode, por exclusão, ser superficial quando atravessar áreas
agrícolas; (3) direito de compensação pela desvalorização da área remanescente,
notadamente quando se tornar inaproveitável; (4) direito de exigir que a
canalização seja feita de modo menos gravoso no imóvel onde deva atravessar;
(5) direito de remoção da canalização para outro lugar, assumindo as despesas
decorrentes; (6) direito de exigir obras de segurança, se a canalização oferecer
grave risco.
O direito ao canal ou aqueduto, em virtude de sua natureza de limitação
à propriedade para satisfação de interesses particulares, apenas existe para as
finalidades explicitadas na lei, não sendo admissível para outras, inclusive para
fins de expansão de atividades. A lei (CC, art. 1.293) não alude às finalidades de
agricultura ou indústria. Há entendimento, todavia, estampado no enunciado
245 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ, de que a norma legal não exclui
a possibilidade de canalização forçada pelo vizinho, com prévia indenização aos
proprietários prejudicados.
11
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 116.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
83
Terceiros podem se utilizar das águas canalizadas, que sejam
consideradas supérfluas, ou seja, não necessárias às finalidades do beneficiário.
Nessa hipótese, será devida indenização a ser compartilhada pelo proprietário
beneficiário e o proprietário prejudicado. Estabeleceu a lei, como parâmetro, a
importância equivalente às despesas que seriam necessárias para condução das
águas retiradas por terceiros, se elas chegassem ao destino. A preferência para
utilização das águas supérfluas é a do proprietário ou possuidor prejudicado
pela canalização.
7. Limites entre prédios e direito de cercar ou murar
O proprietário ou possuidor pode demarcar e cercar o imóvel, nos seus
limites com os dos vizinhos confinantes. O fim social da norma legal é prevenir
os conflitos que as incertezas dos limites provocam e de estabelecer critérios
para a solução desses conflitos. Cerca é conceito amplo, abrangente de outros
termos utilizados pela lei, como muro, vala, valado, tapagem, sebe, intervalos,
banquetas, além de outras expressões regionais. O Código Civil alude a
“
”
í
q
significava exatamente cerca. Nas Ordenações Filipinas (Liv. II, Tít. 48, § 4º) há
“
h
”
.O
de cercar assenta-se na necessidade, não sendo cabível para fins de maior
comodidade ou de estética.
A demarcação tem por finalidade evitar a confusão de limites, ou por
fim à confusão já ocorrida. São legitimados a promover e a responder a ação,
que é declaratória, o proprietário, ou o possuidor, ou o titular de direito real
limitado, pois a lei (CC, art. 1.297) alude a confinante.
O direito à demarcação importa o de constrangimento aos vizinhos
confinantes de procedê-la amigável ou judicialmente, quando os rumos ou
marcos estejam destruídos, apagados ou confusos. Intenta-se, com a
demarcação, aviventar e tornar indiscutíveis os marcos e rumos. As despesas da
demarcação amigável ou judicial, inclusive com os serviços de técnicos ou
peritos, são repartidas entre os vizinhos confrontantes. O direito de cercar é
dependente da definição precisa dos limites, operada pela demarcação. A lei
(CC, art. 1.298) estabelece três critérios sucessivos para a demarcação, quando
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
84
os limites estiverem confusos e os marcos indefinidos ou desaparecidos: (1)
Prevalecimento da posse justa (não violenta, precária ou clandestina) do
confinante que a tenha; (2) Se ambos os confinantes forem titulares de posses
justas, a parte contestada será dividida por igual entre os confinantes, passando
a linha divisória no meio dela; (3) Se a divisão pelo meio não puder ser feita, a
parte contestada será adjudicada a um dos confinantes, que deverá indenizar o
outro.
As cercas já existentes, em qualquer de suas modalidades (muros de
alvenaria ou concreto, sebes vivas, cercas de arame ou madeira, valas) têm a
presunção legal de pertencerem em comum aos vizinhos confinantes. A
presunção de condomínio é relativa (juris tantum), pois podem ter sido feitas
por um dos vizinhos dentro dos limites de seu imóvel, pertencendo-lhe
inteiramente. Podem ter sido feitas sobre a precisa linha divisória por um dos
vizinhos, com seus próprios recursos; nesta hipótese, pode cobrar do outro
vizinho a meação das despesas, uma vez que a cerca passa à titularidade de
ambos. Cercar é direito e não obrigação, disse Darci Bessone12 “ zã
pode o proprietário abster-
ó
q
”. P é
obrigação do confinante de concorrer com as despesas de construção e
conservação das divisórias resulta diretamente da lei, não se condicionando a
que haja prévio consentimento; cumpre a quem as realize demonstrar que se
faziam necessárias, no momento em que foram efetuadas. É direito e dever de
vizinhança decorrente da limitação ao conteúdo do direito de propriedade: cada
confinante é obrigado a concorrer em partes iguais para as despesas de
construção e conservação. Essa obrigação, de natureza objetiva, prevaleceu nos
tribunais, antes mesmo do Código Civil de 2002, a exemplo do STJ (REsp
20.315 e REsp 238.559). Qual o meio que vai ser empregado (tipo de cerca,
muro, sebe) depende dos usos locais, ou da natureza da construção limítrofe.
A demarcação é cabível, mesmo quando definidos os limites divisórios,
quando ainda restem dúvidas sobre sua precisão, notadamente havendo
divergência entre o título de propriedade e as divisas. Nesse sentido, decidiu o
STJ (REsp 759.018) que havendo divergência entre a verdadeira linha de
confrontação dos imóveis e os correspondentes limites fixados no título
12
BESSONE, Darci. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 254.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
85
dominial, é cabível a ação demarcatória para eventual estabelecimento de novos
limites.
Em áreas rurais, é comum constar em escrituras públicas e registros
imobiliários determinadas plantas, especialmente árvores e sebes vivas, como
marcos naturais divisórios dos imóveis, quando não há cerca, ou quando o rumo
desta é questionado. Cada uma dessas plantas não pode ser cortada ou
arrancada, salvo se houver acordo de ambos os confinantes. Se for arrancada
por um deles, o outro poderá provar em juízo sua exata localização,
prevalecendo esta contra a que indicar o que arrancou a planta, por pesar-lhe a
ilicitude da conduta.
Excepcionalmente, há dever e obrigação de cercar do proprietário de
animais. Não está obrigado a concorrer com as despesas o proprietário vizinho,
que exigir a realização de cerca especial para impedir a passagem de animais ao
seu imóvel. A cerca é especial em razão dos tipos de animais. Assim, a cerca para
animais de maior porte, como gado vacum, é distinta da que se exige para
animais de pequeno porte, como os galináceos. As despesas são de
responsabilidade do proprietário desses animais, os quais provocaram a
necessidade de cerca especial.
8. Direito de construir
S
í
“
”
-se a regulação do direito do
possuidor e do proprietário de edificar em seu terreno, observados os limites em
relação aos vizinhos, que também estão a ela sujeitos, e as normas instituídas
pela administração pública, principalmente o plano diretor, nas áreas urbanas.
O direito de construir diz respeito não apenas à edificação nova, como a reforma
ou reconstrução de edificações antigas.
O direito de construir não se confina ao direito civil, sendo matéria com
incidência transversal não apenas do direito urbanístico, como do direito
ambiental, do direito de defesa do patrimônio histórico, artístico, paisagístico,
turístico e cultural, do direito aeronáutico e outros direitos assemelhados, de
ordem pública. Exemplo de limitação administrativa ao direito de construir
encontra-se na Súmula 142 do antigo Tribunal Federal de Recursos, segundo a
qual a faixa non aedificandi imposta aos terrenos marginais das estradas de
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
86
rodagem, em zona rural, não afeta o domínio do proprietário, nem obriga a
qualquer indenização. Com efeito, o proprietário pode plantar nessa faixa, mas
não pode edificar, em razão da segurança das pessoas nessas vias. Para além das
normas de direito público, interessam ao direito civil as interferências do direito
de construir nas relações de vizinhança.
Seguindo a tradição arquitetônica portuguesa, as casas e sobrados
construídos em áreas centrais das cidades brasileiras eram contíguos ou com
recuos estreitos. Daí que se justifique a permanência da regra do art. 1.300 do
Código Civil, segundo a qual o proprietário construirá de maneira que o seu
prédio não despeje águas diretamente no imóvel vizinho, que se incluía na actio
de effusis et dejectis dos romanos. Ou do Código de Águas (art. 105), de que o
proprietário edificará de maneira que o beiral de seu telhado não despeje sobre
o prédio vizinho, deixando entre este e o beiral, quando por outro modo não o
possa evitar, um intervalo de 10 centímetros, quando menos, de modo que as
águas se escoem. Quando a legislação municipal admitir que a edificação possa
ir até o limite do terreno, terá de ser feita de modo a que as águas pluviais,
correntes ou servidas não vertam ou sejam despejadas no imóvel vizinho.
As janelas, os terraços cobertos ou descobertos, as sacadas, as varandas,
as portas devem distar, ao menos, um metro e meio da linha divisória dos
terrenos. Essa regra tem por fito a preservação mínima do direito à privacidade
do vizinho, que é constitucionalmente garantida (CF, art. 5º, X) e alcança
qualquer abertura superior a dez por vinte centímetros. Admite-se que as
janelas ou terraços que não se abram com visão direta do imóvel vizinho, mas
sim para dentro do próprio imóvel, possam ser feitos com a distância de setenta
e cinco centímetros da linha divisória dos terrenos, o que corresponde à metade
da distância anterior, tendo o Código Civil tornado sem efeito a Súmula 414 do
STF que não distinguia a visão direta da indireta ou oblíqua. Estima-se que essa
redução não prejudicará a privacidade do vizinho, pois a linha de visão não é
direta. Na zona rural, amplia-se a distância para três metros, até a linha
divisória. O conceito adotado pelo Código Civil é o de zona (urbana ou rural), e
não o de destinação, que é preferido pelo direito agrário; assim, ao imóvel com
destinação agrícola ou pecuária, mas situado dentro do perímetro urbano fixado
pelo Município, aplica-se o recuo menor de metro e meio.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
87
O vizinho tem o prazo de um ano e dia, após a conclusão da obra, para
exigir que se desfaça a janela, ou o terraço, ou a varanda, ou a sacada,
construídos com distância menor que um metro e meio da linha divisória, se
tiverem visão direta sobre seu imóvel, ou de três metros se na zona rural, ou de
setenta e cinco centímetros da linha divisória, se não tiverem visão direta sobre
seu imóvel, ou do despejo de águas sobre seu imóvel. No âmbito processual,
esse embargo é denominado nunciação de obra nova. Esse prazo é preclusivo
ou decadencial, não podendo ser interrompido ou suspenso. Considera-se
conclusão da obra, para fins de contagem do prazo, a data do habite-se
concedido pelo Município, salvo se o vizinho construtor tiver como provar a
data efetiva da conclusão e sua ciência pelo vizinho. Conta-se a partir da
conclusão de toda a obra e não da construção da janela ou outra abertura. Não
se exige a comprovação do devassamento, bastando a construção da janela –
terraço, sacada ou varanda - com distância menor que a legal.
Se o prazo se escoar, sem ajuizamento da ação pelo vizinho prejudicado,
este terá de suportar a obra invasiva, não podendo mais impedir ou dificultar o
uso do prédio beneficiado, inclusive o escoamento das águas. O vizinho
prejudicado terá, por sua vez, de recuar sua construção nova, de modo a que se
mantenha o recuo de um metro e meio (ou três metros); supondo-se que a
janela foi aberta com a distância de cinquenta centímetros da linha divisória, na
zona urbana, o vizinho prejudicado terá que recuar a parede da edificação nova
até um metro dentro de seu próprio terreno, na largura da janela, de modo a
que esta mantenha um metro e meio de espaço aberto. O recuo calcula-se a
partir da janela ou outra abertura e não da linha divisória. Essa orientação legal
foi introduzida na segunda parte do art. 1.302 do Código Civil, contrariando o
entendimento jurisprudencial que antes se tinha consolidado, no sentido de o
proprietário prejudicado não poder exigir o fechamento, após o escoamento do
prazo, mas não estando impedido de construir edificação vedando a abertura. A
norma do Código Civil contempla a função social da propriedade, ao contrário
do entendimento jurisprudencial anterior, que fazia prevalecer o interesse
individual.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
88
A distância de três metros, ou de metro e meio, ou de setenta e cinco
centímetros é contada a partir da construção irregular, e não da linha divisória.
Segundo orientação doutrinária13, constituiria servidão específica ou direito real
sobre coisa alheia; constituída a servidão, alcança-se esse objetivo, em
detrimento
do
imóvel
serviente,
cujo
dono,
não
tendo
embargado
oportunamente a construção irregular e não pretendendo, no prazo legal, que se
desfizesse, teria de recuar sua própria edificação. Entendemos, todavia, não se
tratar de servidão, mas sim de limitação à propriedade, que é o fundamento dos
direitos de vizinhança, que independem, inclusive, de registro imobiliário.
Também assim entende Pontes de Miranda14, para quem os direitos de construir
nascem de limitação ao conteúdo do direito de propriedade; não nasce, com
isso, servidão, pois o vizinho apenas perdeu a pretensão ao desfazimento da
obra e o dono desta foi beneficiado pela inércia do titular da pretensão contrária
a ela.
Permite-se que sejam feitas aberturas para luz ou ventilação, com
dimensões pequenas, sem respeitar qualquer distância com a linha divisória dos
terrenos. Diferentemente das janelas, terraços e varandas que facultam devassar
o imóvel vizinho, essas pequenas aberturas não comprometeriam a privacidade
dos que o habitam. Permite-se, assim, a iluminação ou a ventilação e, ao mesmo
tempo, preserva-se o vizinho do devassamento. A metragem admitida para a
abertura é de, no máximo, dez centímetros por vinte centímetros, desde que seja
construída a partir da altura de dois metros do chão de cada piso, que supera a
altura da quase totalidade das pessoas humanas e impede a visão sobre o
vizinho. Não há impedimento para que sejam várias aberturas, para o lado ou
para cima. A tecnologia da construção desenvolveu o que denomina de
elementos vasados, de cerâmica, concreto, vidro ou madeira, alguns com visão
indireta ou impedida, o que melhor contempla os fins sociais da lei. A Súmula
120 do STF já previa que os tijolos de vidro translúcido podiam ser levantados a
menos de metro e meio do imóvel vizinho. Também não há impedimento para
CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito
das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de
Janeiro: TJRJ, v. 23, 1970, p. 23.
14 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 546 e 569.
13
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
89
que as aberturas sejam construídas em paredes limítrofes, o que tem sido objeto
de conflitos.
As aberturas de luz ou ventilação, contudo, não geram limitação
permanente ao direito de propriedade do vizinho, ao contrário da construção de
janelas, varandas e terraços. Ainda que tais aberturas existam por muito tempo,
para além de ano e dia, pode o vizinho levantar edificação que as vede, uma vez
que não há previsão legal de prazo preclusivo. Não pode o vizinho pretender a
demolição ou fechamento de aberturas ou vãos de luz em parede limítrofe, mas
ele não está impedido de construir parede que as vedes, sempre que desejar,
sem justificação. Escola mantida por instituição considerada de utilidade
pública abriu em parede limítrofe vãos de luz e ventilação, em duas salas de
aula, utilizando elementos vasados, sem objeção dos vizinhos. Estes, após dez
anos, resolveram edificar parede vedando os vãos, tendo a escola ingressado em
juízo para impedi-los. Em grau de recurso extraordinário, decidiu o STF (RE
211.385-9) que a garantia da função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII)
não afeta as normas de composição do conflito de vizinhança previstas no
Có
C
“ ã
ingerência de outro particular em seu poder de uso, pela circunstância de
ú
h
ú
”.
Parece-nos, no entanto, que a regra permissiva do art. 1.302, parágrafo
único do Código Civil, da desconsideração das aberturas de luz e ventilação, há
de ser interpretada em harmonia com o art. 1.278 do Código Civil, o qual
estabelece que, se as interferências prejudiciais ao vizinho forem justificadas por
interesse público o causador pagar-lhe-á indenização cabal; essa prescrição é
geral, não estando adstrita às situações específicas do uso anormal da
propriedade. Assim, justificando-se o interesse público, que é o caso da escola
referida na decisão do STF - anterior ao início da vigência do atual Código Civil não pode prevalecer o interesse particular do vizinho. Interesse público, para os
fins da norma legal, não é o estatal, mas o social, expressado no direito dos
alunos de utilizar adequadamente as salas de aula. Para compensar o dever de
suportar a interferência, confere-se ao titular do imóvel o direito, a pretensão e a
ação da indenização cabal, harmonizando-se direito de propriedade e função
social.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
90
O Código Civil de 2002 manteve as regras advindas da legislação
anterior sobre o uso pelos vizinhos da mesma parede divisória, ou o condomínio
da parede-meia, em homenagem às edificações de casas conjugadas, vindas das
tradições coloniais, ainda existentes em muitas cidades brasileiras, de acordo
com as respectivas legislações urbanísticas. A matéria retomou sua importância
com a proliferação dos condomínios edilícios, em cujos pisos ou andares as
paredes divisórias são comuns das unidades imobiliárias. As regras podem ser
assim ordenadas:
(1) O proprietário ou possuidor tem direito de utilizar a parede
divisória, se ela suportar a nova edificação ou reforma,
reembolsando ao vizinho metade do valor da parede e do chão
correspondente. O vizinho pode travejar na parede-meia, cuja
metade foi edificada em seu imóvel, pois, por metade é sua, mas
antes há de pagar o meio valor dela. Se o proprietário faz a sua
parede só no seu terreno, toda ela é sua. Para Orlando Gomes15,
o direito de madeirar ou travejar condiciona-se à conjugação
dos seguintes requisitos: a) que o prédio seja urbano; b) que
esteja sujeito a alinhamento; c) que a parede divisória pertença
ao vizinho; d) que aguente a nova construção; e) que o dono do
terreno vago pague meio valor da parede divisória.
(2) Quem primeiro construir a parede divisória tem direito de
fazê-la por sobre a linha que divide os dois imóveis, ocupando
meia espessura do terreno contíguo. O vizinho não perde a
titularidade sobre a parte ocupada pela parede, mas, se também
a utilizar em edificação sua, terá de pagar a metade do valor da
parede ao que a construiu.
(3) O vizinho apenas poderá utilizar a parede se ela suportar a
nova edificação; se dúvida ou risco houver, poderá quem a
construiu exigir do outro que preste garantia;
(4) Qualquer dos dois condôminos da parede-meia tem o dever
de informar ao outro das obras que desejar fazer, e o dever de
GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio
de Janeiro: Forense, 2004, p. 232.
15
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
91
segurança, de modo a não por em risco a parede, com tais
obras;
(5) Qualquer dos condôminos de parede-meia não pode, sem o
consentimento do outro, utilizar a parede para armários ou
assemelhados, ou encostar chaminés, fogões (salvo os fogões de
cozinha, desde que não sejam prejudiciais ao vizinho), fornos ou
aparelhos que possam produzir infiltrações ou interferências
prejudiciais. O consentimento não necessita de ser expresso,
bastando a aquiescência duradoura ou renúncia do direito. A
infiltração ou interferência gera dever de indenizar sem culpa,
podendo o prejudicado, ainda, exigir a demolição. Se o dano é
provável e iminente, cabe caução de dano infecto;
(6) O condômino pode alterar a parede divisória, desde que não
prejudique o vizinho e assuma as despesas correspondentes,
salvo se o vizinho adquirir meação, com utilização da parte
acrescida.
Não há condomínio de parede-meia quando a parede é própria do
confinante, que a levantou justaposta à do vizinho. Nessa hipótese, salienta Hely
Lopes Meyrelles16, não há limitação ao seu uso e nela podem ser embutidos ou
encostados quaisquer aparelhos que o proprietário desejar, sem possibilidade
de embargo ou caução prévia para prosseguimento das obras. Somente a
posteriori poderá o confrontante obter a demolição e a reparação dos danos que
tais obras lhe venham a causar, como resultado do uso anormal da propriedade.
Com relação às águas de poço e de nascente, proíbe-se que a construção
seja causa de sua poluição, se (CC, art. 1.309) forem a ela preexistentes.
Esclareça-se que não se extrai dessa norma que haja um bill of indemnity, um
poder para poluir, se o poço ou a fonte do vizinho forem posteriores à
construção, pois, de acordo com o § 3º do art. 225 da Constituição, as condutas
e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, em qualquer dimensão,
sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas, independentemente
da obrigação de reparar os danos causados, cuja responsabilidade civil é
16
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 49.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
92
objetiva. Além da indenização pelos danos, o causador tem o dever legal de
demolir a edificação ou a parte dela que os tiver provocado.
Igualmente, são proibidas as obras que tirem ao poço ou à nascente a
água indispensável às suas necessidades normais. O direito de vizinhança, por
parte do que tem a água para suas necessidades, consiste em que ela não seja
tirada ou reduzida, de modo a torná-la insuficiente para o uso normal. Vizinho
não é necessariamente o contíguo, pois se há o mesmo lençol de água em vários
imóveis, todos são legitimados. Note-se, todavia, que o particular tem, apenas, o
direito de exploração das águas subterrâneas mediante autorização do Poder
Público, cobrada a devida contraprestação, na forma da Lei nº 9.433, de 1997;
se não houver autorização, não terá direito contra quem a tenha obtido. Como
lembrou o STJ (REsp 1.276.689), a necessidade de outorga para a extração da
água do subterrâneo é justificada pela problemática mundial de escassez da
água e se coaduna com o advento da Constituição, que passou a considerar a
água um recurso limitado, de domínio público.
São proibidas as obras que possam provocar desmoronamento ou
deslocação de terra, ou que comprometam a segurança dos imóveis vizinhos.
Nesses casos, a construção depende da realização de obras acautelatórias, que
possam reduzir ou impedir, substancialmente, os riscos de danos. Se, apesar das
obras acautelatórias, os danos ocorrerem, o vizinho prejudicado poderá exigir
indenização correspondente. A responsabilidade do dono da edificação é
objetiva,
independentemente
de
culpa,
não
sendo
atenuantes
ou
compensatórias as providências que tiver adotado para evitar os danos. É ainda
responsável pela demolição da construção, naquilo que tiver provocado os
danos. Até à conclusão da obra, cabe a nunciação de obra nova; após a
conclusão, é cabível a ação demolitória, dentro do prazo de um ano e dia.
A responsabilidade do direito de vizinhança não decorre da ilicitude do
ato de construir, e sim da lesividade da construção. Em consequência, investe-se
no direito de regresso contra o empreiteiro, projetista, construtor que tenha
contratado para execução da obra. Nesse sentido, decidiu o STJ (AgRg no REsp
473.107) que o contrato firmado entre o proprietário da obra e o empreiteiro,
quanto à responsabilidade por eventuais danos, não produz efeitos contra
terceiros, entretanto assegura o direito de regresso contra o empreiteiro.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
93
O possuidor ou o proprietário tem o dever de tolerância do ingresso em
seu imóvel do vizinho, quando este, após comunicação prévia, necessitar
reparar, manter, limpar ou reconstruir o prédio, ou instalações deste, ou cerca
divisória de qualquer espécie. O ingresso é devido quando for indispensável
para tais providências, que não poderão ser executadas a partir do próprio
imóvel, salvo com custos muito elevados. Nos condomínios edilícios, por
exemplo, as instalações hidrossanitárias, situadas por baixo do piso, apenas
podem ser consertadas a partir do teto da unidade inferior. O direito de ingresso
é também assegurado quando o proprietário ou possuidor necessitar retirar
suas coisas, inclusive animais, que eventualmente tenham ido ou caído no
imóvel vizinho. O direito de ingresso não é indiscriminado e deve ser exercido
de modo mais cômodo possível, preferentemente em horários combinados, ou
fora dos horários de repouso e alimentação habituais. O direito de ingresso pode
ser impedido se o vizinho tomar a iniciativa de entregar as coisas buscadas, pois
não se admite o abuso do direito subjetivo. Em qualquer hipótese, se o exercício
do direito de ingresso causar danos ao vizinho, este tem pretensão à indenização
correspondente.
O direito de ingresso, em qualquer circunstância, é dependente de
consentimento de quem habite o imóvel onde as obras devam ser feitas ou onde
as coisas devam ser retiradas. Se houver recusa, o ingresso dependerá de
decisão j
. A
é
q
C
çã (
. 5º XI)
q
“
casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou
para prestar socorro, ou, durante o di
çã
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
”.
94
CONTRATOS ELETRÔNICOS E CONSUMO
Anderson Schreiber1
Resumo: O artigo analisa o tratamento jurídico dos contratos eletrônicos, à luz
do ordenamento brasileiro, em especial nas relações de consumo. Examina
controvérsias
relacionados
à
formação
dos
contratos,
ao
direito
de
arrependimento e à publicidade eletrônica, colhendo parâmetros também na
experiência jurídica estrangeira.
Palavras-chave: Contratos Eletrônicos; Direito do Consumidor; Direito de
Arrependimento;
Formação
dos
Contratos;
Publicidade
Eletrônica;
Consumismo na Internet
Abstract: The article provides a legal analysis of electronic contracts, under
Brazilian law, with special emphasis on business-to-consumer relationships.
Contract formation, right of withdrawal and electronic marketing are some of
the issues examined on the article, also in light of the standards used on foreign
legal experience.
Key-Words: Electronic Contracts; Consumer Law; Right of Withdrawal;
Contract Formation; Electronic Marketing; Consumism on the Internet
Sumário: 1. O comércio eletrônico no Brasil. – 2. Os chamados contratos
eletrônicos e os desafios trazidos pela contratação via internet. – 2.1. Quem
contrata. Semianonimato virtual e o dever de identificação do fornecedor
eletrônico. – 2.2. Onde contrata. A transnacionalidade do contrato eletrônico e
o problema da lei aplicável. Stream of commerce e as normas de ordem pública.
– 2.3. Quando contrata. Momento de formação do contrato eletrônico e o dever
de confirmação de recebimento da aceitação à oferta. – 2.4. Como contrata. A
Professor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em
Direito Privado Comparado pela Università degli studi del Molise (Itália). Mestre em Direito
Civil pela UERJ. Autor dos livros Direito Civil e Constituição e Novos Paradigmas da
Responsabilidade Civil, entre outros.
1
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
95
informalidade do contrato eletrônico e sua prova. – 2.5. O quê contrata. A
paradoxal insuficiência da informação no ambiente eletrônico. Publicidade na
internet e outras técnicas de incentivo ao consumo. – 3. Direito de
arrependimento. Tratamento da matéria no direito brasileiro: Lei 8.078/1990 e
Decreto 7.962/2013. Experiência estrangeira: Diretiva 2011/83/CE. Análise
comparativa. – 4. Conclusão.
“There is no spoon”
(Matrix, 1999)
1. O comércio eletrônico no Brasil2
O comércio eletrônico ou e-commerce movimenta bilhões de reais por
ano no Brasil. Embora sua parcela mais significativa, sob o prisma econômico,
ainda seja representada por operações comerciais realizadas entre os próprios
fornecedores, também chamadas relações B2B (sigla em inglês para a expressão
business to business), o faturamento do varejo eletrônico ou B2C (business to
consumer) tem crescido exponencialmente entre nós.3 Um número cada vez
maior de consumidores brasileiros adquire produtos e serviços por meio da
internet. O Brasil representa, segundo diversas pesquisas, o maior e mais
promissor mercado de e-commerce da América Latina, seguido por México e
Chile.4
Teoricamente, o consumidor brasileiro deveria ter mais facilidade de
exercer seus direitos no ambiente eletrônico. Sua comunicação com o
fornecedor deveria ser mais ágil e célere, por força das tecnologias de
comunicação à distância (e-mail) e interativa (chat). As informações sobre o
O autor registra seu agradecimento ao acadêmico de Direito Robson Guimarães Filho, pelo
imprescindível auxílio nas pesquisas relativas ao comércio eletrônico e ao tratamento
atualmente dispensado à matéria pelos tribunais brasileiros.
3 Segundo dados da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico, o setor B2C foi responsável por
um faturamento de 22,5 bilhões de reais no ano de 2012, alcançando um total de 66,7 milhões
de pedidos (www.camara-e.net, 20.3.2013).
4 Além disso, o Brasil possui, segundo estudo realizado em 2010, o melhor índice de e-readiness
da América Latina. Tal índice procura refletir, por meio da combinação de uma série de
variáveis (potencial de demanda, infraestrutura tecnológica, penetração dos diferentes meios de
pagamento etc.), a capacidade de cada país para a conversão da internet em um meio efetivo de
comércio (relatório da América Economia Intelligence, disponível em www.ecommerceday.mx).
2
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
96
produto ou serviço contratado deveriam ser, em tese, mais amplas e mais
acessíveis, já que, ao contrário do que ocorre no comércio tradicional, não há
limite físico-espacial para a exposição de dados sobre o objeto da compra. O
mesmo vale para os termos contratuais, que podem ser disponibilizados na
internet sem a necessidade de um suporte físico em papel e com o auxílio de
realces visuais ou de simples mecanismos de busca que facilitem a identificação
da informação específica buscada pelo consumidor. Em teoria, portanto, o
consumidor deveria enfrentar menos percalços no comércio eletrônico que no
comércio tradicional.
Na prática, todavia, o que se verifica é que os direitos do consumidor
brasileiro têm sido frequentemente desrespeitados no e-commerce, cujos
índices de reclamação chegam a superar, proporcionalmente, aqueles do
comércio tradicional em algumas regiões do Brasil. Notícias recentes têm
revelado um quadro de violações sistemáticas à legislação brasileira por parte de
grandes fornecedores eletrônicos de produtos ou serviços. Tome-se como
exemplo pesquisa recente realizada pelo Procon do Rio de Janeiro 5 que,
analisando os sites de 25 fornecedores de produtos e serviços, em diferentes
setores da economia, concluiu que nenhum deles respeitava integralmente a
legislação brasileira em matéria de direitos do consumidor eletrônico.6
Fazer valer a legislação brasileira no e-commerce não é tarefa simples. A
contratação virtual traz uma série de dificuldades e desafios no campo jurídico.
2. Os chamados contratos eletrônicos e os desafios trazidos pela
contratação via internet.
Nos manuais de direito civil e empresarial publicados no Brasil nos
últimos anos, tornouô
”
“
“
”
q
direito contratual pátrio, constituindo uma espécie de setor de exceção ou de
No sistema brasileiro, os Procons são órgãos ou entidades estaduais ou municipais
responsáveis pela proteção dos direitos e interesses do consumidor.
6 Procon Carioca notifica 25 sites de comércio eletrônico, reportagem de Luiza Xavier,
publicada no O Globo Online, em 7.8.2013. O relatório do Procon revela, por exemplo, que
nenhuma das 25 empresas notificada exibia de forma clara o instrumento contratual.
5
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
97
capítulo à parte dentro do direito privado, a exigir uma legislação própria. 7 Em
oposição a esta abordagem, há quem sustente que os chamados contratos
eletrônicos podem e devem ser tratados exatamente como qualquer outro
contrato, afirmando que toda a celeuma criada em torno do tema reduz-se ao
problema da validade do documento eletrônico como meio de prova perante o
Poder Judiciário.8
A razão, contudo, não se situa em nenhum dos dois extremos. Por um
q
h
“
ô
”
ã
q
contratos formados por meios eletrônicos de comunicação à distância,
especialmente a internet, de tal modo que o mais correto talvez fosse se referir a
contratação eletrônica ou contratação via internet, sem sugerir o surgimento de
um novo gênero contratual. Por outro lado, parece hoje evidente que os desafios
da matéria não se restringem à validade da prova da contratação por meio
eletrônico – que, de resto, consiste em ponto superado no direito brasileiro –,
mas envolvem diversos aspectos da teoria geral dos contratos que vêm sendo
colocados em xeque por essa significativa transformação no modo de celebração
dos contratos e no próprio desenvolvimento da relação jurídica entre os
contratantes.
Com efeito, a contratação eletrônica veio abalar, de um só golpe, cinco
referências fundamentais utilizadas pela disciplina jurídica do contrato: quem
contrata, onde contrata, quando contrata, como contrata e o quê contrata. Essas
cinco questões eram respondidas de maneira relativamente segura nas
CiteG
T
C
: “A
está mudando. As transações de bens materiais continuam importantes, mas as transações de
bens intangíveis, em um meio dessa mesma natureza, são os elementos centrais da dinâmica
comercial contemporânea, do comércio eletrônico. A legislação deverá abraçar um novo
entendimento: o de que as mudanças fundamentais resultantes de um novo tipo de transação
requererão regras comerciais compatíveis com o comércio de bens via computadores e
.” (Aspectos Jurídicos da Internet, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 38).
8 É
çã
C
G
V
D
q
“
z
to que está
sendo feito por intermédio de uma nova forma de comunicação não traz nenhuma novidade,
sendo, pois, um contrato já regulado. A verdadeira questão dos contratos eletrônicos será a
P
J
.” (Do Contrato – Teoria Geral, Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, pp. 119-120). Ver, em sentido semelhante, Erica Aoki, para quem
“
é
é
q
q
ç
é
ã
difere de qualquer outro contrato. Ele apenas é firmado em um meio que não foi previsto
q
çã
.” (Comércio Eletrônico –
Modalidades Contratuais, Anais do 10º Seminário Internacional de Direito de Informática e
Telecomunicações, Associação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicações, 1996, p.
4).
7
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
98
contratações tradicionais e, por isso mesmo, eram tomadas como parâmetros
pelo legislador e pelos tribunais para a determinação da solução jurídica
aplicável. No campo dos contratos eletrônicos, responder essas cinco perguntas
básicas tornou-se um verdadeiro calvário, como se passa a demonstrar.
2.1.
Quem
contrata.
Semianonimato
virtual
e
o
dever
de
identificação do fornecedor eletrônico.
Na contratação presencial entre pessoas naturais, há uma pronta
identificação dos sujeitos contratantes. Essa identificação não é tão imediata
quando a celebração do contrato envolve pessoa jurídica, já que, nessa hipótese,
entram em jogo questões atinentes à legitimidade da representação (rectius:
presentação). Ainda assim, há mecanismos jurídicos para a verificação da
identidade dos contratantes e, mesmo na ausência de sua utilização, o direito
prestigia, por meio da teoria da aparência e de outras construções doutrinárias e
jurisprudenciais, a confiança depositada na identidade do contratante a partir
dos dados físicos que compõem a situação aparente. 9 No comércio eletrônico, o
problema da identificação do contratante é mais complexo.
São numerosos os sites de fornecedores de produtos ou serviços que
sequer exibem o nome empresarial da pessoa jurídica responsável pelo
fornecimento, limitando-se a exibir um nome fantasia. Muitos sites não trazem
informações acerca de endereço físico ou mesmo de número telefônico para
contato. O próprio domínio utilizado para hospedar o site (endereço do site)
pouco revela, na medida em que seu registro pode ser feito sem a plena
identificação do requerente e a consulta pública ao sistema brasileiro de
domínios não exibe o nome do titular, mas apenas o servidor DNS.10
O problema se torna ainda mais dramático quando o domínio não é
brasileiro (.br), já que cada país possui regras distintas para o procedimento de
registro de domínios e a imensa maioria deles não revela publicamente quem
Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, A Representação no Novo Código Civil, in
Direito Civil e Constituição, São Paulo: Atlas, 2013, pp. 61-78.
10 O sistema de nome de domínio (DNS – Domain Name System) é um sistema que nomeia
computadores e serviços de rede e é organizado de acordo com uma hierarquia de domínios.
Para maiores detalhes, ver Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR – NIC.BR
(https://registro.br).
9
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
99
são seus titulares. A figura do sujeito de direito se dissipa por completo na
. O
“
”
z
”
çã
“
ô
surgimento de defeitos posteriores, passa a buscar a identidade jurídica do
fornecedor, que acaba, em muitos casos, por permanecer oculta. Tal
circunstância compromete a efetividade das normas protetivas, na medida em
que a ausência de um sujeito passivo plenamente identificado dificulta as
comunicações formais entre as partes e impede a adoção de medidas judiciais
ou extrajudiciais (notificações etc.) por parte do consumidor lesado.
Com o propósito de combater essa e outras dificuldades inerentes ao
comércio eletrônico, a Presidente Dilma Rousseff fez publicar, em 15 de março
de 2013, o Decreto 7.962, cujo art. 2o determina:
Art. 2o Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados
para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem
disponibilizar, em local de destaque e de fácil visualização, as
seguintes informações:
I - nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando
houver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro
Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda;
II - endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias
para sua localização e contato; (...)11
Como revelou, todavia, a já citada pesquisa do Procon do Rio de
Janeiro, numerosos fornecedores continuam descumprindo tais deveres,
mantendo-se um cenário de semianonimato eletrônico no Brasil. Tal omissão
está a exigir ulterior esforço de controle por parte dos órgãos brasileiros, com a
aplicação de sanções mais severas, uma vez que a identificação do fornecedor é
imprescindível para a tutela adequada do consumidor no ambiente eletrônico e
para a efetiva aplicação das normas de direito contratual.
Referido esforço não pode prescindir, contudo, de acordos e convênios
internacionais que permitam e imponham a identificação fácil e precisa das
sociedades empresárias por trás dos sites de vendas. Mesmo nos países que não
contam com normas cogentes nesse sentido, é preciso que se desenvolvam
“
”
q
q
õ
í
O texto do Decreto foi fortemente influenciado pelo Projeto de Lei nº 439 de 2011 (Senado
Federal), dedicado à atualização do Código de Defesa do Consumidor em matéria de comércio
eletrônico.
11
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
100
internacionalmente aceitos, facilitando o acesso do consumidor à pessoa
jurídica estrangeira com quem contrata. Nesse passo, assume relevância um
segundo aspecto da atividade contratual fortemente atingido pelo comércio
eletrônico: o lugar da contratação.
2.2. Onde contrata. A transnacionalidade do contrato eletrônico e o
problema da lei aplicável. Stream of commerce e as normas de
ordem pública.
A internet suprimiu a referência física, geográfica, ao lugar da
contratação, noção que era tão cara ao raciocínio do direito civil e do direito
internacional privado. Um consumidor brasileiro, em viagem pela Europa, pode
visitar o site de uma livraria de Nova Iorque, hospedado em um provedor da
Califórnia, para adquirir um livro escrito por um autor francês, produzido por
uma editora do Canadá, que lhe será expedido por um distribuidor situado no
México ou na Argentina. Tais contratos, como se vê, não são meramente
internacionais, no sentido tradicional do termo, mas são verdadeiramente
transnacionais, já que transcendem qualquer nacionalidade. A nacionalidade
perde, em larga medida, sua importância. O “
çã ”
comércio eletrônico, a ser uma espécie de abstração, 12 uma ficção que os juristas
lutam com unhas e dentes para preservar, mas que se revela cada vez mais
artificiosa e irreal.
Tamanha transformação – talvez a mais significativa dentre todas
aquelas trazidas pelo advento da internet – causa profundas consequências no
modo de aplicação do Direito, vinculado, desde a formação dos Estados
Nacionais, ao território (locus) de exercício da soberania estatal. A comunidade
jurídica brasileira parece não ter ainda despertado para a amplitude dessas
consequências, que prometem afetar, em última análise, a própria metodologia
de produção das normas jurídicas e suas formas tradicionais de aplicação. Em
um plano mais específico e mais imediato, porém, a jurisprudência brasileira
Pense-se, por exemplo, na possibilidade, hoje cada vez mais freqüente, de que o contrato
eletrônico seja celebrado por meio de um dispositivo móvel, como telefone celular, tablet ou
leitor digital, por um usuário em trânsito.
12
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
101
tem revelado sensibilidade ao examinar ao menos um subproduto dessa
mudança: a discussão sobre a lei aplicável ao contrato.
A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto-lei n.
4.657, de 4 de setembro de 1942) determina, em seu art. 9o, que as obrigações
ã
“
í
q
í
”.13 A regra é de fácil
aplicação nos contratos celebrados entre presentes, em que a própria situação
física dos contratantes já revela o país em que o contrato é celebrado e,
portanto, a lei que se destina a regê-lo. Em relação aos contratos celebrados
entre ausentes, tal critério afigura-se, porém, inaplicável, tendo o legislador
brasileiro recorrido aí a um artifício legal, segundo o qual, na contratação entre
“a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em
q
.”14
A aplicação literal destas regras ao comércio eletrônico resultaria em
constante reenvio à lei do país do fornecedor, na medida em que os sites de
varejo exibem propostas permanentes ao público que o consumidor
“
”
ã
mouse.15 Dois problemas relevantes surgiriam. Primeiro, em um cenário em
que, conforme já destacado, os sites muitas vezes omitem a própria identidade
do fornecedor e também o seu endereço físico, o consumidor brasileiro acabaria
por se sujeitar à legislação de um país que, no ato da contratação, sequer sabe
precisamente qual é, gerando uma situação de inequívoco desequilíbrio em seu
desfavor. Segundo, haveria forte estímulo para que fornecedores de produtos ou
serviços online transferissem suas sedes para países com baixo grau de proteção
é
“
çã ”
pelo mercado global em relação à legislação trabalhista, o que geraria prejuízos
evidentes à economia brasileira.16
“A . 9º. P
q
çõ
-se-á a lei do país em que se
í
.”
14 Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, art. 9 o, §2o.
15 E
ã
: “A
que a oferta feita via Web site é, em regra, ad incertas personas, não havendo como prever em
que localidade poderá ser acessada. Portanto, o usuário que acessa o site deve ter em mente que
está negociando sob as regras do local onde está o proponente, como esse estivesse negociando
” (E
B
B
Contratos Eletrônicos, São Paulo: Saraiva,
2001, p. 72).
16 O Brasil, convém lembrar, é considerado um país de forte legislação consumerista.
13
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
102
Por essas e outras razões, a jurisprudência brasileira tem caminhado no
sentido de afirmar que o Código de Defesa do Consumidor se aplica às relações
de consumo estabelecidas entre fornecedores eletrônicos estrangeiros e o
consumidor brasileiro. Diferentes fundamentos têm sido utilizados para tanto.
Invoca-se, de modo geral, a imperatividade do respeito às normas de ordem
pública, ao lado de argumentos ligados à transnacionalidade das marcas
comerciais em uma economia globalizada ou a uma importação algo abrangente
da teoria do stream of commerce, segundo a qual quem direciona seu comércio
aos consumidores de certos países assume o ônus de ter sua atividade
disciplinada pelas respectivas leis nacionais.17
Tais soluções não exprimem, como se pode notar, um retorno ou um
“
çã ”. M
:
exprimem novas formas de identificação da lei aplicável às relações contratuais,
que deixam de estar atreladas à geografia da celebração para passarem a
exprimir critérios ratione personae, fundados na pessoa do contratante (no
caso, o consumidor brasileiro), ou critérios teleológicos, como aqueles fundados
na finalidade de proteção do consumidor frente às práticas de mercado, sejam
elas nacionais, internacionais ou transnacionais. Parece inegável que o
“
comércio
”
eletrônico,
z çã
servido
preponderantemente
ô
ao
interesse
dos
fornecedores, que parecem pretender escapar no mundo virtual dos custos e
ônus inerentes não apenas ao processo econômico de disponibilização dos
produtos e serviços, mas também às normas jurídicas que regulamentam sua
relação com os consumidores. Impõe-se aqui a resistência do direito às
conveniências do mercado, resistência que não deve repousar sobre conceitos
“
çã ”
q
ratio
fundamental neste campo: a proteção mais efetiva ao consumidor.
Sob o prisma estritamente jurídico, faz-se importante registrar que um
dos pilares mais tradicionais do direito dos contratos – aquele que estabelecia
çã q
“
”
çã
Ver Superior Tribunal de Justiça, Ação Rescisória 2.931/SP, 4.9.2003. Sobre a teoria do
stream of commerce, ver A. Kimberley Dayton, Personal Jurisdiction and the Stream of
Commerce, 7 Review of Litigation 239 (1987-88), William Mitchell College of Law.
17
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
103
contrato – foi definitivamente rompido pelo comércio eletrônico, com uma série
de consequências ainda não totalmente exploradas, quer no âmbito da teoria
geral dos contratos, quer no âmbito do direito internacional privado.
2.3. Quando contrata. Momento de formação do contrato eletrônico
e o dever de confirmação de recebimento da aceitação à oferta.
A terceira referência basilar da disciplina contratual afetada pela
contratação eletrônica diz respeito ao momento da contratação. Quando se
reputa firmado o contrato? Exatamente como ocorre em relação ao lugar da
contratação, inexiste, no direito brasileiro, uma regra específica que trate do
tempo de formação dos contratos celebrados eletronicamente. Aplica-se, a rigor,
a norma geral estabelecida no art. 434 do Código Civil, segundo a qual o
contrato entre ausentes se forma, em regra, no momento em que a aceitação é
expedida18.
Trata-se da chamada teoria da expedição mitigada, de longa tradição no
direito civil brasileiro. Em um cenário de contratação física, a teoria da
expedição traz certa segurança ao aceitante, o qual, no momento em que envia a
aceitação, sabe já formado o vínculo contratual, sem que se faça necessária nova
manifestação do proponente – o que, em um contexto epistolar, exigiria maior
dispêndio de tempo e custo. O envio da aceitação deixa, ademais, vestígios
físicos (registro do encaminhamento por correio) que, em uma eventual dúvida
quanto à formação ou não do contrato, favorecem o aceitante. No ambiente
eletrônico, todavia, essas vantagens desaparecem. O envio da aceitação ocorre,
z
“
q
”
ã
q
q
indício de que a operação foi concluída.
Para evitar insegurança quanto à realização ou não do negócio virtual,
deixando o consumidor ao sabor da conveniência do fornecedor em cumprir ou
não a ordem expedida, muitos autores têm defendido o afastamento da teoria da
expedição mitigada no campo dos contratos eletrônicos. Nessa direção, o
“A . 434. O
-se perfeitos desde que a aceitação é expedida,
exceto: I - no caso do artigo antecedente (art. 432); II - se o proponente se houver
comprometido a esperar resposta; III ã h
z
.” O
. 433
z
“
çã
h
çã
”.
18
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
104
Enunciado 173 da Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça
Federal, chega a afirmar:
A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio
eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente.
Tal enunciado, a nosso ver, merece reforma. A uma, porque contraria
frontalmente a letra do art. 434, transcendendo o escopo interpretativo dos
enunciados para instituir uma orientação antagônica ao texto legal. A duas,
porque a adoção da teoria da recepção não resolve o problema da formação dos
contratos eletrônicos, na medida em que o consumidor eletrônico continua sem
saber se o seu pedido de compra foi recebido, questão que permanece
inteiramente na esfera de poder do fornecedor. Em outras palavras, condicionar
a formação do contrato ao recebimento da aceitação não diminui em nada a
insegurança negocial no ambiente eletrônico.
Melhor rumo seguiu o Decreto 7.962, de 15 de março de 2013, que, em
seu art. 4o, inciso I, instituiu o dever de confirmação para garantir o
atendimento facilitado ao consumidor no comércio eletrônico. Não se trata, a
rigor, de uma mudança no momento de formação do contrato, já que o contrato
continua se formando independentemente da confirmação, mas sim de um
dever legal: passa a incorrer em infração o fornecedor que deixa, nos termos do
D
“
çã
”.19
Com isso, a legislação brasileira passa a se alinhar, nesse particular, ao direito
europeu, que, desde a Diretiva Européia 2000/31/CE, já instituía o dever de
confirmação no comércio eletrônico (art. 11).20
Embora não se trate de uma alteração da teoria aplicável à formação dos
contratos, a verdade é que a instituição do dever de confirmar o recebimento da
aceitação sujeita o fornecedor, ao menos em teoria, a sanções bem mais severas
(multa, suspensão da atividade etc.)21 que a simples indiferença jurídica ao
vínculo formado – o que, de resto, poderia acabar prejudicando o próprio
“Art. 4o Para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio eletrônico, o
fornecedor deverá: III –
çã
(...)”.
20 O mesmo caminho é seguido no Projeto de Lei nº 439 de 2011, que se propõe a atualizar o
Código de Defesa do Consumidor com vistas à proteção do consumidor no âmbito do comércio
eletrônico (art. 45-D, I).
21 O art. 7o
D
q “
”
enseja a aplicação das sanções previstas no art. 56 do Código de Defesa do Consumidor, que traz
o rol genérico de sanções administrativas aplicáveis às infrações da legislação consumerista,
como multa, proibição de fabricação do produto, suspensão temporária da atividade etc.
19
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
105
consumidor. Ainda, portanto, que não se tenha ressalvado a aplicação do art.
434 no caso das contratações eletrônicas, a instituição do dever de confirmação
modifica a própria abordagem jurídica do tempo de formação do contrato,
transcendendo o clássico binômio proposta-aceitação e revelando a passagem
de uma lógica puramente estrutural a uma lógica mais funcional e
decididamente protetiva.
2.4. Como contrata. A informalidade do contrato eletrônico e sua
prova.
A forma do contrato desempenha historicamente uma dupla função: por
um lado, alerta os contratantes para a seriedade do vínculo contratual, fazendoos refletir sobre a contratação antes de conclui-la em definitivo.22 Por outro
lado, serve, perante os próprios contratantes e a sociedade, como meio de prova
da formação do contrato e do seu conteúdo. Ambas as funções se dissipam na
internet, onde a contratação é absolutamente informal, desprovida mesmo de
qualquer suporte físico.
Em contraposição aos instrumentos escritos e assinados da contratação
tradicional, a forma da contratação eletrônica resume-se frequentemente à
exibição de uma tela ou página virtual que o consumidor pode, se cuidadoso, se
dar ao trabalho de imprimir ou copiar para o seu próprio computador ou
dispositivo móvel. Pode ainda dispor de um e-mail ou outra forma de aviso
eletrônico, como uma breve mensagem ao seu aparelho de telefonia celular
(SMS, sigla de Short Message Service).23 Em um passado recente, os juristas
brasileiros (como, de resto, os juristas de todo o mundo) discutiam se tais
impressões, cópias ou documentos digitais tinham ou não validade como meio
de prova, constituíam ou não meros indícios e outras questões que o avanço
Daí as complexas solenidades (fórmulas verbais, atos simbólicos etc.) exigidas no âmbito do
direito antigo para a celebração de contratos, algumas das quais deixaram vestígios no hábito
dos povos europeus, como a entrega de uma moeda de baixo valor (denier à Dieu) ou a aplicação
de uma palmada na face do vendedor, costume ainda utilizado em alguns mercados de gado na
Europa central (emptio non valet sine palmata). Ver, sobre o tema, John Gilissen, Introdução
Histórica ao Direito, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, 3a ed., p. 734.
23 Embora seja possível a utilização de assinaturas eletrônicas e certificações digitais, seu
emprego para fins de aquisição de produtos ou serviços pelo consumidor é muito raro. Sobre o
tema das assinaturas eletrônicas e certificações digitais, ver Jorge José Lawand, Teoria Geral
dos Contratos Eletrônicos, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, pp. 141-146.
22
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
106
maciço da cultura digital parece ter tornado um tanto folclóricas. Em que pesem
as dificuldades do sistema judiciário em lidar com documentos puramente
eletrônicos e a suspeita quase instintiva que recaía, até pouco tempo, sobre
cópias impressas de páginas virtuais e e-mails, não parece haver dúvida,
atualmente, de que todos esses instrumentos devem ser admitidos como meios
probatórios dos direitos discutidos em juízo. O Código Civil brasileiro, de 2002,
posicionou-se claramente nesse sentido:
Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros
fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou
eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte,
contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.
O Enunciado 398 da IV Jornada de Direito Civil, realizada em outubro
2006
z
arquivos eletrônicos incluem-
q
„
çõ
“
ô
‟ do art. 225 do Código Civil, aos quais deve ser aplicado o regime
í
.” E
çã
tribunais brasileiros têm acolhido como meio válido de prova os arquivos
digitais.24 Em caso de impugnação da sua veracidade, exige-se perícia, o que, de
resto, pode ocorrer também com documentos físicos. A questão meramente
probatória parece, portanto, equacionada.25
O mesmo não se pode dizer em relação àquele outra função da forma
contratual: a de alertar as partes para a importância e seriedade do vínculo. A
contratação via internet realiza-se de modo cada vez mais veloz, sem a adequada
Ver, por exemplo, acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em que se
conclu q : “
ção de serviços não conter a assinatura da
requerida, tal fato não é apto a invalidar o referido ajuste, tendo em vista que o contrato de
prestação de serviços educacionais é informal e não exige forma prescrita em lei, podendo até
ser firmado verbalmente. O contrato de prestação de serviços, juntado aos autos, ainda que
desprovido de assinatura da ré, é suficiente para provar a realização do ajuste, visto que os
documentos eletrônicos gozam de valor probante e o documento de fls. 06-09 demonstra que a
requ
.” (TJMG, Apelação Cível
1.0024.06.986334-8/001, 17ª Câmara Cível, Rel. Des. Lucas Pereira, DJ 12.7.2007). No mesmo
sentido, ver TJSP, Apelação Cível 0018518-77.2010.8.26.0005, 20ª Câmara de Direito Privado,
Rel. Des. Maria Lucia Pizzotti, j. 27.8.2012; e TJMG, Apelação Cível 1.0024.07.691106-4/001,
17ª Câmara Cível, Rel. Des. Marcia de Paoli Balbino, j. 19.2.2009, entre outros.
25 O mesmo vale para o cenário internacional em que um número cada vez maior de acordos,
convenções e modelos normativos reconhecem expressamente a validade jurídica dos
documentos eletrônicos. Cite-se, a título ilustrativo, o art. 5º da Lei Modelo da UNCITRAL
C é
E
ô
: “Nã
ã
í
dade ou eficácia à informação
q
ô
” (O
z çã
N çõ U
N
Iorque, 1997).
24
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
107
pesquisa sobre as características do produto ou serviço contratado, sobre a
qualidade do fornecedor ou sobre as próprias condições do contrato firmado por
meio eletrônico. Por mais alarmante que possa parecer essa constatação, o fato
é que o consumidor eletrônico não sabe muitas vezes o quê está contratando.
2.5. O quê contrata. A paradoxal insuficiência da informação no
ambiente eletrônico. Publicidade na internet e outras técnicas de
incentivo ao consumo.
Na contratação tradicional, o consumidor tem frequentemente a chance
de manusear o produto, de verificar a sua embalagem, de testar seu
funcionamento ou ainda de esclarecer dúvidas com um preposto do fabricante
ou do comerciante no próprio estabelecimento comercial. Nos sites da internet,
ao contrário, as informações são pré-dispostas; o produto é descrito por meio de
imagens ou descrições técnicas padronizadas, aplicáveis muitas vezes ao gênero
do produto, e não àquela espécie que está sendo efetivamente adquirida. O
consumidor eletrônico não tem acesso físico ao bem.26 É certo que poderia
buscar, em outros sites da internet, informações, avaliações e depoimentos
sobre a qualidade do produto e do fornecedor – alguns sites de compras,
inclusive, já fornecem avaliações como parte da sua estratégia comercial –, mas
tal conduta é, na prática, rara, seja porque tais informações, potencialmente
infinitas, não se encontram ordenadas de modo a facilitar a pesquisa do
consumidor, seja porque não são tidas como inteiramente confiáveis, diante das
suspeitas de que se prolifera na internet a manipulação das ferramentas de
avaliação por meio da contratação remunerada de usuários para que se
manifestem sobre certos produtos e serviços (em uma forma oculta e deturpada
de marketing, típica do ambiente virtual). O consumidor eletrônico acaba,
assim, dispondo paradoxalmente de pouca informação sobre o objeto da sua
contratação.
q
“
h
”
á vir a ser suprida em alguma medida pelo próprio
“
ó
(
3D)” (A
G
J
Jú
Aspectos da Formação
e Interpretação dos Contratos Eletrônicos, in Revista do Advogado, ano 32, n. 115, 2012, p. 17).
26
A
ç
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
108
Quase sempre o consumidor eletrônico desconhece, também, os termos
do contrato, ou seja, as condições contratuais, que são usualmente apresentados
pelos fornecedores em um formato que desestimula a leitura, por meio de
páginas inteiras de letras miúdas, que contrastam flagrantemente com os
elevados investimentos em programação visual realizados nas páginas
dedicadas à oferta de produtos. Na maioria dos sites, a passagem da página de
ofertas à página que exibe os termos contratuais configura uma mudança
abrupta de formatação, que salta aos olhos do usuário da internet, cada vez mais
acostumado com gráficos e imagens de alta resolução. Muitos fornecedores
sequer se dão ao trabalho de dividir os termos contratuais em tópicos, o que
dificulta a localização pelo consumidor das informações consideradas relevantes
para a celebração do contrato.
Por todas essas razões, embora, em tese, o consumidor pudesse dispor
no ambiente eletrônico de maior tempo de reflexão e de mais instrumentos de
busca para obter informações sobre o objeto e os termos da contratação, o certo
é que, atualmente, a contratação via internet se faz de modo muito mais
desinformado que a contratação física. Tentado pela facilidade de um clique, o
consumidor eletrônico compra muitas vezes por mero impulso, sem a necessária
reflexão. Técnicas de oferta de produtos impelem o usuário à aquisição, como
q
”
q
z
çã
“
h
q
vê prontamente provocado pelo site a adquirir produtos acessórios àquele que
foi selecionado, ou outros produtos daquele mesmo fabricante, ou, ainda,
produtos adquiridos por outras pessoas que adquiriram aquele mesmo
produto,27 em um ciclo interminável de estímulos ao consumo imediato.
A publicidade também desempenha aí um papel relevante. Ao contrário
do que ocorre no mundo físico – em que a publicidade se restringe a espaços e
momentos relativamente delimitados –, no mundo virtual, a publicidade ocorre
em uma espécie de fluxo permanente, que acompanha o usuário em qualquer
momento da navegação. Banners surgem nos rodapés e cabeçalhos de páginas
que aparentemente não tinham conteúdo comercial; pop-ups pipocam diante do
Técnica que explora nitidamente os sentimentos humanos de identificação com o próximo e
de pertencimento a grupos sociais, em estratégia que, embora não seja inédita no mundo
comercial, assume no ambiente eletrônico dimensões nunca antes imaginadas.
27
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
109
usuário, impedindo-o de prosseguir navegando; spams abarrotam caixas de
entrada de e-mails. Em sites de busca, links patrocinados se misturam a
resultados relevantes, quando muito com uma sutil diferenciação em relação à
cor das letras ou do pano de fundo. Vídeos aparentemente reais são postados
em redes sociais, sem nenhum alerta acerca de seu cunho comercial, para
servirem de teasers de futuras campanhas publicitárias.28 Diversamente do
espectador televisivo, que ainda tem a alternativa de mudar de canal durante o
intervalo comercial, o usuário da internet sujeita-se todo o tempo ao
bombardeamento publicitário, em um continuado e permanente incentivo ao
consumo.
Resistir a tal incentivo torna-se tarefa ainda mais árdua na medida em
que a publicidade eletrônica vai ganhando, a cada dia, um perfil mais e mais
personalizado. A coleta de dados do usuário – por meio de cookies e outras
técnicas de transparência reduzida e legalidade duvidosa – tem permitido o
desenvolvimento de perfis de usuários que são utilizados pelos fornecedores
para direcionar o conteúdo da mensagem publicitária e da oferta de produtos na
internet. Se a personalização da oferta, por um lado, poupa tempo ao
consumidor eletrônico (livrando-o do oferecimento de produtos que seriam,
“
”)
tarefa de refletir sobre a contratação, na medida em que dados pessoais obtidos
sem autorização do usuário são usados para estimular de modo praticamente
irresistível a aquisição dos produtos ou serviços de que supostamente
necessitaria. A manobra associa-se não raro a ofertas de financiamentos, com
disponibilidade imediata dos recursos econômicos exigidos para a aquisição,
completandoq
ã
ã “
h
q
ã
”.
Todo esse novo arsenal de técnicas de marketing eletrônico exige
posturas mais definidas por parte do sistema jurídico brasileiro, pouco
preparado para lidar com essas questões. Em primeiro lugar, impõe-se a
Exemplo recente foi o vídeo Perdi meu amor na balada, postado por um rapaz que pedia
ajuda para encontrar o número de telefone de uma moça que conhecera na noite paulistana.
Revelou-se mais tarde que o vídeo havia sido produzido por certa fabricante de celulares e
integrava uma campanha publicitária que somente veio a público semanas depois. O caso
rendeu procedimentos no Procon de São Paulo e no CONAR (Conselho de Autorregulamentação
Publicitária).
28
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
110
aprovação imediata de uma legislação que proteja efetivamente os dados
pessoais. O Brasil não conta com um marco normativo claro nessa matéria,
encontrando-se, já há alguns anos, no Ministério da Justiça um projeto de lei de
proteção de dados pessoais, que, após um período de debate público, parece
aprisionado
em
um
processo
excessivamente
lento
de
produção
e
aperfeiçoamento dentro do próprio Ministério – prisão da qual não foi capaz de
se libertar nem mesmo na esteira do recente furor provocado pela descoberta de
monitoramento da agência de segurança dos Estados Unidos sobre as
comunicações da Presidente Dilma Rousseff.29
Além de uma política pública de proteção de dados pessoais impõe-se
uma regulamentação mais efetiva da atividade publicitária no Brasil, ainda
disciplinada de modo bastante lacônico pelo Código de Defesa do Consumidor,
é
(
“
”
do art. 37, §2o),30 cuja aplicação acaba sendo controlada quase que
exclusivamente pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária. Em que
pese o esforço do referido Conselho, suas decisões acabam sendo guiadas pelo
subjetivismo inerente à aplicação daqueles conceitos abertos, sem a formulação
de standards de comportamento, resultando em um conjunto de precedentes
que não dão maior segurança nem ao consumidor, nem ao mercado publicitário.
Por fim, cumpre amparar e desenvolver, no campo das contratações
ô
“ í
”
ã
reflexão do consumidor no ambiente virtual. Esse é o ponto que tem maior
relação com a temática geral desse estudo e aqui o ordenamento brasileiro já
h
”. C
é
“
.
Uma das muitas repercussões do chamado caso Edward Snowden, a revelação do
monitoramento gerou a exigência de explicações por parte do Governo brasileiro, respondidas
pela administração Barack Obama com o argumento de que a legislação interna brasileira não
veda as condutas adotadas. Ver, entre outras notícias, reportagem de Glenn Greenwald, Roberto
Kaz e José Casado, EUA espionaram milhões de e-mails e ligações de brasileiros, publicada no
jornal O Globo Online em 6.7.2013.
30 O Código de Defesa do Consumidor, a rigor, não define a publicidade abusiva, mas apenas a
exemplifica,
çã
: “A . 37. (...) §2 o. É abusiva,
dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência,
explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da
criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se
ú
ç .”
29
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
111
3. Direito de arrependimento. Tratamento da matéria no Direito
Brasileiro: Lei 8.078/1990 e Decreto 7.962/2013. Experiência
estrangeira: Diretiva 2011/83/CE. Análise comparativa.
O direito de arrependimento, também chamado direito de reflexão, foi
instituído pelo art. 49 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990),
em que se lê:
Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a
contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou
serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e
serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por
telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de
arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos,
a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de
imediato, monetariamente atualizados.
A norma já se aplicava, a toda evidência, às contratações eletrônicas,
z
“
”.31 Para afastar,
porém, qualquer dúvida quanto ao ponto, o Decreto 7.962/2013 tratou
expressamente do direito de arrependimento ao cuidar do comércio eletrônico:
Art. 5o. O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os
meios adequados e eficazes para o exercício do direito de
arrependimento pelo consumidor.
§ 1o O consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela
mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de
outros meios disponibilizados.
§ 2o O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos
contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor.
§ 3o O exercício do direito de arrependimento será comunicado
imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à
administradora do cartão de crédito ou similar, para que:
I – a transação não seja lançada na fatura do consumidor; ou
II – seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura já
tenha sido realizado.
§ 4o O fornecedor deve enviar ao consumidor confirmação imediata do
recebimento da manifestação de arrependimento.
Como registrava Ruy Rosado de Aguiar Júnior, ao afirmar, em 2000, que o direito de
( . 49 CDC) “é
ó
z
é
” (Ministro do STJ alerta para a fragilidade jurídica dos
contratos eletrônicos, 26.9.2000, disponível em www.stj.gov.br). Em sentido contrário,
doutrina minoritária invoca o conceito de estabelecimento comercial virtual para sustentar que
a compra realizada via internet não se dá fora do estabelecimento comercial. Acrescenta que o
consumidor eletrônico é quem tem a iniciativa da compra, razão pela qual teria tempo de sobra
para reflexão. Sobre o tema, com detalhes sobre os dois posicionamentos, ver Caio Rogério da
Costa Brandão, O Direito de Arrependimento nos Contratos Eletrônicos, in Juris Plenum, ano
III, n. 13, 2007, pp. 16-17.
31
a
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
112
O decreto presidencial vai, como se vê, além do que já dispunha o art.
49 do código consumerista, contemplando alguns aspectos adicionais do tema,
como a facilitação da comunicação do exercício do direito de arrependimento
pelo
consumidor
eletrônico
e o
dever
do
fornecedor
de
confirmar
imediatamente o recebimento da manifestação de arrependimento, além dos
efeitos do arrependimento sobre contratos acessórios. O Projeto de Lei
439/2011, que trata do comércio eletrônico e se encontra atualmente em
tramitação no Congresso Nacional, dispõe sobre o tema no mesmo sentido. Sua
aprovação continua a se fazer necessária para evitar qualquer discussão jurídica
quanto à possibilidade de regulamentação do tema por meio de decreto.
O art. 5o do Decreto 7.962 representa, sem dúvida, um avanço, na
medida em que, para além de reiterar a aplicabilidade do direito de
arrependimento ao comércio eletrônico, aborda mais dois ou três aspectos do
tema. Nada obstante, é certo que a legislação brasileira poderia ter ido muito
além. Uma incursão pelo cenário europeu revela não apenas níveis de proteção
mais elevados nessa matéria, mas também uma abordagem de natureza distinta,
que contribui para a efetividade do direito de arrependimento no comércio
eletrônico daquele continente.
Com efeito, a Diretiva 2011/83/CE ocupa-se de modo bastante
h
q
çã ” (
ã
í
“
).32 O artigo 9o da referida
Diretiva institui o prazo de 14 dias para a retratação do contrato celebrado à
distância ou fora do estabelecimento comercial – o dobro, portanto, do prazo
previsto
na
legislação
brasileira.
Registra,
ainda,
expressamente
a
desnecessidade de indicação de qualquer motivo para o exercício da retratação.
O artigo 10 determina que, se o fornecedor deixar de informar ao consumidor
sobre a possibilidade, as condições, o prazo e o procedimento de retratação, 33 o
prazo se estende adicionalmente por 12 meses após o término do prazo original
de 14 dias. Ao contrário, portanto, da legislação brasileira, que impõe o dever de
Em inglês, right of withdrawal e, em espanhol, derecho de desistimiento.
Conforme impõe o artigo 6o, item 1, alínea h, da mesma Diretiva, que prevê ainda a
disponibilização de um modelo de formulário para o exercício do direito de retratação, sem
prejuízo da possibilidade de outros meios de comunicação do referido exercício (artigo 11, item
1, alínea b).
32
33
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
113
informação sobre o direito de arrependimento sem uma sanção específica, 34 a
Diretiva europeia estabelece uma significativa extensão do prazo aplicável em
caso de descumprimento.
A Diretiva 2011/83/CE regula, ainda, minuciosamente nos inúmeros
subitens dos seus artigos 13 e 14 os custos envolvidos no procedimento de
retratação – diferentemente da legislação brasileira que não traz quaisquer
considerações específicas sobre o assunto. De acordo com a Diretiva, o
consumidor europeu está, em regra, isento de custos e tem direito ao reembolso
de suas despesas, mas o artigo 13 prevê algumas situações de imunidade do
fornecedor, como na hipótese em que o consumidor opta livremente por uma
modalidade mais onerosa de envio que a modalidade padrão (artigo 13, item 2).
A Diretiva assegura, ainda, ao consumidor o direito de receber o reembolso das
“
çã
”
q
ã
q
entre nós, numerosos abusos no momento de exercício do direito de
arrependimento, como a famigerada prática de substituir o reembolso efetivo do
“ é
”
.
A Diretiva europeia enfrenta, ainda, os dois principais aspectos que têm
sido invocados pelos fornecedores brasileiros em oposição ao direito de
arrependimento. São eles: (i) a questão da depreciação do produto já entregue
ao consumidor; e (ii) a inaplicabilidade do direito de arrependimento em casos
envolvendo o fornecimento de produtos e serviços de fruição imediata,
especialmente conteúdo digital oferecido via internet. Quanto ao primeiro
aspecto, a Diretiva 2011/83/CE atribui ao consumidor responsabilidade pela
çã
“q
çã
q
necessário para verificar a natureza, as características e o funcionamento dos
O art. 5o
D
7.962
õ
“
”
adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento, mas não contém qualquer
sanção específica para o descumprimento desse dever. O art. 7 o do mesmo Decreto determina
q “
”
çã
çõ
art. 56 do Código de Defesa do Consumidor, que traz o rol genérico de sanções administrativas
aplicáveis às infrações da legislação consumerista, como multa, suspensão da atividade etc. Não
há, todavia, menção à extensão de prazo, o que afasta tal possibilidade no ordenamento
brasileiro, diante do princípio da prévia estipulação legal da pena.
34
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
114
”(
14
2).35 O consumidor europeu não é, como se vê, isento de
responsabilidade, devendo ter cautela no recebimento do produto adquirido à
distância. A instituição de norma semelhante é possível e recomendável no
direito brasileiro, pois, além do desestímulo a eventuais abusos episódicos,
“
z çã ”
do consumidor brasileiro e à instituição de ônus insuportáveis sobre os
fornecedores no cenário nacional.
Em relação ao segundo aspecto, que diz respeito aos casos de
inaplicabilidade do direito de arrependimento, a Diretiva europeia trata do tema
no seu artigo 16. Em treze alíneas prevê exceções à incidência do direito de
“
ú
”
“
h
í
z ”
ç
“
ç
depende de flutuações do mercado financeiro que o profissional não possa
q
“
z
çõ
çã ”
í
que tenha sido retirado o selo após a
”
“
ú
digitais que não sejam fornecidos num suporte material, se a execução tiver
início com o consentimento prévio e expresso do consumidor e o seu
h
q
çã ”
utros.
Ao contrário do que poderia parecer em uma primeira leitura, tais
exceções não representam um decréscimo no nível de proteção ao consumidor
europeu. A incidência do direito de arrependimento já não seria reconhecida
pelos tribunais dos países europeus na imensa maioria dessas situações, muitas
delas de clareza intuitiva. A previsão explícita de tais situações traz, contudo, a
necessária segurança ao mercado e contribui para a instituição de cuidados
recíprocos, como a obtenção do expresso reconhecimento pelo consumidor da
perda do direito de arrependimento como etapa prévia do início da fruição de
conteúdos digitais. Previne, ademais, o prolongamento de discussões
Também aqui a falta de informação sobre o direito de arrependimento sujeita o fornecedor a
ô
2 q “o consumidor não é, em caso
algum, responsável pela depreciação dos bens quando o profissional não o tiver informado do
çã ”.
35
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
115
tautológicas – às vezes, puramente acadêmicas – que têm servido de entrave,
entre nós, para uma tutela mais efetiva do direito de arrependimento.
De modo geral, pode-se dizer que o movimento consumerista brasileiro,
após um momento inaugural altamente profícuo e feliz – representado pela
edição da Lei 8.078, em 1990, e pela sua consolidação na jurisprudência
nacional ao longo da década seguinte –, tornou-se cauteloso, talvez
excessivamente cauteloso. Os Projetos de Lei apresentados no âmbito da
chamada atualização do Código de Defesa do Consumidor trazem inovações
importantes (cujos efeitos transcendem, aliás, a própria esfera do direito do
consumidor), mas se restringem, essencialmente, a consagrar cláusulas gerais
ou normas abertas. Receosos talvez de retrocessos na proteção do consumidor e
cuidadosamente elaborados com vistas à facilitação da chancela do Congresso
Nacional, tais projetos evitaram o detalhamento e a especificação procedimental
que poderiam afastar perigos imaginários e contribuir para a elevação do nível
do debate desses temas no espaço público brasileiro.
Se a postura adotada afigura-se adequada ou não só o tempo dirá. O que
parece insólito é que uma norma infralegal, como o Decreto 7.962, tenha se
limitado ao mesmo formato, disciplinando em termos vagos e genéricos aquilo
que poderia ter disciplinado em termos mais específicos, como é o caso do
direito de arrependimento. Ao lado da Diretiva europeia – que já é bem mais
genérica que as leis nacionais dos países europeus –, o Decreto 7.962 soa como
norma programática, sem embargo das melhorias gerais que trouxe ao campo
da contratação eletrônica.
O que mais assusta, nesse exemplo recente, é a olímpica indiferença à
experiência estrangeira, especialmente a experiência europeia que, nesse
campo, guarda íntima proximidade com as bases do consumerismo brasileiro.36
Não se trata apenas de observar a Diretiva 2011/83/CE; o comércio eletrônico
europeu não é, obviamente, regulado por uma norma única, mas por um
complexo tecido normativo, composto de diferentes Diretivas (Diretivas
Para muitos autores, a abordagem norte-americana, especialmente em relação ao consumo
via internet, é considerada mais próxima de uma ótica de laissez faire ou de autorregulação,
refletindo talvez um maior entusiasmo norte-americano pelas novas tecnologias, em oposição a
uma postura mais ambivalente e cautelosa da União Européia (Jane Kaufman Winn e Jens
Haubold, Electronic Promises: Contract Law Reform and E-Commerce in a Comparative
Perspective, disponível em www.law.washington.edu, p. 3).
36
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
116
2000/31/CE, 2002/65/CE, 2008/48/CE, entre outras), às quais se somam
diferentes leis nacionais que procuram incorporar as orientações contidas nas
Diretivas, mas não raro vão além, instituindo normas tipicamente locais. Há
nesse rico arcabouço uma série de normas que poderiam ter servido de
inspiração ao legislador brasileiro, mas que acabaram não refletidas nem no
D
7.962
í
”
P
L
439/2011
h
ô
“
çã
ú
ç
envolvidos na contratação à distância (sendo certo que, no Brasil, tais preços
são mal informados ao consumidor eletrônico, surpreendido, não raro, com o
acréscimo de fretes, comissões, taxas privadas e tributos para cuja existência
não é alertado no momento oportuno).
Essas e outras questões vêm sendo deixadas para o futuro pelo Poder
Legislativo brasileiro, prolongando um desnecessário desnível entre o
tratamento dispensado pelos mesmos conglomerados transnacionais aos
consumidores brasileiros e europeus, em flagrante desfavor dos primeiros e em
assimetria injustificável num mercado que se pretende global.
4. Conclusão.
Os chamados contratos eletrônicos não representam um mundo à parte,
estranho ao direito dos contratos ou governado por regras próprias. Não se trata
de uma dimensão paralela que somente aparenta similaridade com a realidade
tradicional, como uma espécie de Matrix, lembrada na epígrafe a este artigo.37 A
contratação eletrônica traz inúmeras questões novas, mas se insere no
tratamento sistemático dos contratos no direito brasileiro. Seus pontos de
dissonância com a teoria geral tradicional representam frequentemente
oportunidades para rever dogmas rígidos que já não se justificam mais, nem
mesmo fora do ambiente eletrônico (como se viu na discussão pertinente à
prova do contrato). Noutros casos, trata-se de instituir novos mecanismos
Matrix foi uma produção cinematográfica de 1999, dirigida pelos irmãos Wachowski. Relata a
história de um mundo simulado criado por máquinas inteligentes para manter os seres
humanos conectados a uma rede de geração de bioenergia. Foi considerada, ainda em 1999, uma
típica produção de estética pós-moderna, por promover uma espécie de bricolagem de
elementos de ficção científica, histórias em quadrinho, animes, religião messiânica, ecologia e
filosofia.
37
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
117
jurídicos de proteção contra novos riscos que surgem especialmente – mas nem
sempre de modo exclusivo – no ambiente eletrônico.
Foi o que se viu no tocante ao direito de arrependimento. A importância
da sua efetividade cresce exponencialmente com a ampliação do comércio
eletrônico e da contratação de produtos e serviços via internet. Nem por isso se
trata de um instituto exclusivamente eletrônico. Sua aplicação estende-se a toda
contratação celebrada à distância ou fora do estabelecimento comercial. Sua
inspiração radica na ideia da falta de reflexão adequada do consumidor sobre a
contratação do produto ou serviço. Se é certo, por um lado, que essa falta de
reflexão se torna especialmente perceptível no ambiente eletrônico, devido às
notáveis técnicas de impulsão ao consumo virtual, situação muito semelhante
verifica-se com quem contrata por telefone ou por correspondência. Nem se
deve excluir sua aplicabilidade a contratações realizadas em determinadas
circunstâncias dentro do próprio estabelecimento comercial.
Embora essa última hipótese não seja reconhecida pela legislação
brasileira (nem pelas diretivas europeias, registre-se), pode-se defender a
aplicação do direito de arrependimento por analogia àquelas situações em que o
contratante, embora dentro do estabelecimento, é conduzido à contratação por
circunstâncias que o impedem de refletir. É o que ocorre diante de algumas
estratégias agressivas de marketing, voltadas a produzir artificialmente um
cenário de contratação inevitável, como nos casos de fornecedores que, para
obter a venda de unidades imobiliárias em grandes complexos residenciais,
oferecem passeios a toda a família do consumidor para, logo em seguida,
conduzir todo o grupo ao estabelecimento para fins de assinatura do
instrumento contratual. Veja-se ainda o caso dos estabelecimentos comerciais
multifuncionais, em que não raro se misturam ofertas de serviços de lazer com a
possibilidade
de
contratações
imediatas,
calcadas
justamente
na
impossibilidade de reflexão prolongada pelo consumidor (como no exemplo do
restaurante que contém loja de vinhos ou no clube noturno que, próximo ao
balcão de bebidas e coquetéis, oferece a venda de passagens aéreas last minute
para destinos exóticos).
Como se vê, o tema do direito de arrependimento – como tantos outros
aspectos que são discutidos sob a rubrica geral da contratação eletrônica – não
consiste em exclusividade do ambiente virtual. A contratação eletrônica
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
118
representa, antes, uma oportunidade para identificar o problema bem mais
profundo da contratação irrefletida e do estímulo ao consumo compulsivo. Um
tratamento jurídico adequado não pode, portanto, estar restrito ao locus onde a
questão se coloca com maior frequência, mas deve se inserir no sistema jurídico
como um todo. Regras específicas podem e devem ser editadas para o comércio
eletrônico (como, por exemplo, as que dizem respeito à identificação clara e
precisa do fornecedor nos sites de ofertas), mas isso não faz da contratação
virtual um mundo apartado do sistema jurídico, sujeito a conclusões de ocasião.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
119
A FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS NO BRASIL: UMA
VISÃO CONTEMPORÂNEA E APLICADA À LUZ DA
JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM
VISTA DOS PRINCÍPIOS SOCIAIS DOS CONTRATOS1
Paulo Nalin2
Resumo: O presente texto busca estabelecer um diálogo entre o clássico
princípio contratual do pacta sunt servanda e os princípios sociais da moderna
teoria dos contratos. Pretende responder em que medida e alcance pode se
entender como obrigatório um contrato diante de princípios ou valores sociais
como a dignidade da pessoa human, a função social do contrato e a boa-fé.
Como critério de pesquisa, lançou-se mão da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, inclusive para demonstrar como a Corte responde a tal
diálogo e se dos seus julgados pode-se extrair uma linha jurisprudencial
uniforme.
Palavras-chave: contrato; princípios contratuais; pacta sunt servanda; função
social do contrato; dignidade da pessoa humana; boa-fé; jurisprudência;
Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Abstract: This paper seeks to establish a dialogue between the classical
contractual principle of pacta sunt servanda and social principles of the modern
theory of contracts. Aims to answer to how the contract can bind the parties and
to what extent and scope it can be understood as mandatory before a contract
principles or social values such as human dignity, the social function of the
contract and good faith. As the search criteria, it employed the jurisprudence of
O presente trabalho foi pensado e desenhado para operadores do direito do common law,
contando com uma versão em inglês.
2 Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná. Pós-doutor pela
Universität Basel (Universidade da Basiléia-Suíça). Doutor e Mestre em Direito das Relações
Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Integrante e Coordenador de Eixo do Projeto de
Pesquisa Virada de Copérnico (UFPR/UERJ). Associado: Instituto de Direito Privado (IDP),
Instituto dos Advogados do Paraná (IAP), Instituto de Direito Civil (IDC), Instituto de Direito
Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB). Advogado e árbitro ().
1
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
120
the Superior Tribunal de Justiça (STJ), including to demonstrate how the Court
responds to this dialogue and if one can extract a uniform line of jurisprudence.
Key-words: contract; contractual principles; pacta sunt servanda; social
function of the contract; human dignity; good faith; jurisprudence; Superior
Tribunal de Justiça (STJ).
Sumário: 1. Introdução – 2. A força obrigatória dos contratos como princípio
clássico e estruturante do sistema contratual brasileiro – 3. Os princípios sociais
da Constituição de 1988 – 4. O impacto do Código de Defesa do Consumidor e a
lógica contratual do final do séc. XX – 5. A força obrigatória e a sua relativização
à luz do CC de 2002: ponto e contraponto – 6. O entendimento do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) sobre a obrigatoriedade dos contratos e os princípios
sociais do Código Civil brasileiro – 7. Notas conclusivas.
1.
Introdução
O presente trabalho é destinado ao conhecimento essencial e
panorâmico do princípio da força obrigatória dos contratos, também
conhecido como princípio da intangibilidade dos contratos e no
ambiente do civil law europeu continental como pacta sunt servanda.
A análise será contextualizada no Brasil ao longo de aproximados 110
anos, entre o Século XX e início do corrente Século XXI. E apesar de o trabalho
não ter uma proposta histórica, utilizar-se-á uma cronologia identificada com
quatro marcos legislativos de substancial importância para a compreensão do
versado princípio: o Código Civil de 1916 (CC-16), a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 (CR), o Código de Defesa do Consumidor de 1990
(CDC) e o Código Civil de 2002 (CC-02), em vigor.
A opção por relacionar o desenvolvimento do princípio em questão a
marcos legislativos contempla em si um paradoxo, qual seja, nenhum dos textos
legais mencionados, notadamente aqueles de natureza essencial privada (CC-16,
CDC e CC-02), estabilizou o princípio em suas bases estruturais, embora seja ele
indispensável para a operacionalização do direito contratual brasileiro. Em
outros termos, o direito infraconstitucional Brasileiro não regulamentou, na sua
fonte positiva, o princípio da força obrigatória dos contratos, sendo, portanto,
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
121
princípio abstrato, embora isso não lhe subtraia força ou minimize a sua eficácia
nas relações contratuais.
De outro giro, o pacta sunt servanda é corolário lógico da autonomia
privada e da liberdade contratual, que também compõem a constelação
principiológica brasileira, sendo a autonomia privada assentada no próprio
texto constitucional (arts. 170, caput, CR3) e a liberdade contratual (na dição da
“
”)
CC-02 (art. 421 CC-02).
Também serão apresentadas algumas perspectivas elementares sobre tais
princípios, já que constituem premissas ideológicas e dogmáticas sobre a
obrigatoriedade dos contratos.
Após percorrer as sendas do Direito positivo e da doutrina brasileira
mais refinada, será analisada a recepção do princípio na sua forma
contemporânea pelo Superior Tribunal de Justiça, que por atribuição de
competência constitucional oferece a última palavra sobre o tema, quando posto
a julgamento.
2.
A força obrigatória dos contratos como princípio clássico e
estruturante do sistema contratual brasileiro
A força obrigatória dos contratos encontra nas premissas ideológicas da
Revolução Francesa a sua base dogmática, já que o Código Civil Francês de 1804
(Code) incorporou liberdade, igualdade4 e solidariedade em sua estrutura. Por
sua vez, servindo o Code de grande referencial teórico para a Modernidade
contratual5, não poderia ele deixar de lançar luzes para todos os povos do
cenário europeu-continental sob influência politica, militar, econômica e
cultural da França liberal.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios:
4 ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 32.
5 Entendo que a modernidade contractual iniciou com a Revolução Francesa, pois com ela
consolida-se a ruputura com o modelo contractual do medievo, a qual o iluminismo-racionalista
tratou de modificar. Sob o ponto de vista estrutural, o contrato é o mesmo desde o Code (acordo
de vontades destinado a produzir efeitos jurídicos). Com a pós-modernidade (que se inicial no
espaço Europeu do entre Guerras) o contrato passa a ser observado não só a partir da sua
estrutura, mas também em vista da sua função (Vide, sobre o tema, o nosso O conceito pósmoderno de contrato: em busca da sua formulação da perspectiva civil-constitucional. 2 ed.
Curitiba: Juruá, 2006).
3
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
122
Com efeito, o Brasil colonial recebeu as influências da onda liberal que
emanavam da metrópole portuguesa que, não obstante uma inegável aliança
britânica, especialmente ao longo do Sec. XIX, jamais se afastou das linhas
jurídico-culturais francesas. Tanto é assim que precedeu ao Código Civil de
Seabra (1867) a ideia de ser adotado, simplesmente, o próprio Code, em solo
português6.
Não obstante a originalidade dos códigos civis do séc. XIX, dentre os
quais o próprio Código Civil de Seabra e dentre todos, o mais notável, o Código
Civil alemão (BGB), nenhum deles teve a capacidade de romper com a ideologia
liberal que justificava a própria concepção de um modelo legal codificado, aos
moldes do código civil francês. Paradoxalmente, a ideologia que subjaz da
concepção de código, único e totalizante (uma síntese legal que se propõe a
esgotar o fato social), é o reflexo do espírito liberal que contemporaneamente
não mais se apresenta nos Estados que adotaram e segurem empregando o
próprio modelo codificado, tal qual o Brasil.
Retomando a linha da formação do Direito Civil brasileiro, fruto de
amplos estudos, sucessivas comissões e codificadores do Séc. XIX, vem a tona o
Código Civil Brasileiro de 1916 (5/1/1916), por força do trabalho codificador de
Clóvis Beviláqua que em 1899 foi contrato pela jovem República Brasileira para
codificar o Direito Civil nacional.
Naturalmente, por se tratar de um Código Civil que encerrava o Séc.
XIX, antes de ser um trampolim para o Séc. XX, acabou por reproduzir toda a
carga ideológica liberal daquele século, nele se encontrando as premissas da
igualdade e da liberdade, tal qual no Code.
Na corriqueira esteira do envelhecimento de todos os códigos, observase o fenômeno da descodificação e da recodificação do Direito Civil Brasileiro,
culminando tal processo no Projeto de Código Civil de 1975, o qual acabou por
ser promulgado em 10 de janeiro de 2002, com vacatio legis de doze meses. É
nesse momento que nos encontramos na base infraconstitucional e cujo texto
legal será o objeto central destas breves páginas.
MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil português. 3 ed. Coimbra:
Almedina, 2005, t. 1, p. 123.
6
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
123
Embora sejam legítimas e firmes as críticas que se levantaram contra a
recodificação do Direito Civil brasileiro, ao menos por meio de um modelo do
tipo francês, em verdade a orientação metodológica do CC-02 se baseia nas
premissas da socialidade e da concreção, abrindo campo para a atividade
construtiva da jurisprudência7, a justificar a metodologia aqui eleita.
Ademais, a proposta do codificador era a de substituir a concepção
individualista do sujeito de direito pelo conceito de pessoa humana, além de
compreender o CC-02 como lei básica, mas não global8 do Direito Privado
brasileiro.
A rotação do atual CC-02 em favor da socialidade, da pessoa humana e
h
çã
“
ã
”
z
consequência diretas para a reconstrução do princípio da liberdade contratual e
da força obrigatória dos contratos, pois a vontade negocial, antes dogmática e
intangível mesmo ao juiz que se submetia à vontade da partes, sede espaço à
alteridade negocial e ao valor maior da pessoa humana: mitiga-se o papel da
vontade negocial para ganhar em dimensão o valor da pessoa humana, na figura
do contratante e dos seus interesses patrimonial e existencial. A relação
obrigacional, nesta toada, passa a ser uma situação jurídica complexa 9
(patrimonial e existencial) fundada na cooperação entre contratantes. Essa é a
mensagem que nos é transmitida pela função social (art. 42110 CC-02) do
contrato e pela boa-fé objetiva (arts. 11311 e 42212 CC-02).
A questão central é saber em que medida o contrato ainda é obrigatório,
em vista da reconfiguração da liberdade contratual e do seu princípio
consequente, a força obrigatória do contrato, por conta desse novo modelo
social do contrato brasileiro. E mais, do ponto de vista metodológico, o CC-02
inovou ao incorporar o Direito de Empresas em seu texto (arts. 966 a 1195) e
Exposição de motivos do supervisor e da comissão revisora e elaboradora do código civil, p.
29-30.
8 Idem, p. 27.
9 NALIN, Paulo; XAVIER, Marilia Pedros; XAVIER, Luciana Pedroso. A obrigação como
processo: releitura essencial trinta anos após. Dialogos sobre o Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, v. 2, p. 299-322.
10 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato.
11 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar
da sua celebração.
12 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em
sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
7
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
124
por extensão os contrato então ditos comerciais (empresariais) também foram
inseridos no novo código. Consequentemente, uma segunda provocação se
apresenta: os contratos empresariais recebem do legislador brasileiro a mesma
valoração que os contratos civis, de modo a serem eles interpretados,
qualificados e integrados à luz de valores e princípios sociais, ou teriam eles
uma lógica própria?
Todavia, antes de se investigar tais questões, e uma vez rapidamente
percorrida a história da codificação civil brasileira, há de se concluir que a força
obrigatória dos contratos figura como um dos princípios clássicos do Direito
Brasileiro, ao lado do princípios do consensualismo e da relatividade dos efeitos
do contrato, todas figuras decorrentes da liberdade contratual e antes dela,
numa escala hierarquizada e abstrata de valores, da vontade dogmática e, por
fim, da liberdade política enquanto direito subjetivo constitucional ou
fundamental (art. 5, caput, CR13).
Na fonte do CC-16 não se localizava um artigo expresso de lei a
consagrar a força obrigatória dos contratos, uma vez que a própria concepção de
obrigação contratual ou de contrato com efeitos intangíveis era uma das bases
essenciais daquele código. À luz das codificações civis do séc. XIX, dentre as
quais a brasileira, liberdade de contratar significava o exercício da autonomia da
vontade contratual para definir quando, como e com quem contratar e, por
extensão, o direito de por fim ao contrato, na hipótese de inadimplemento e da
verificação do termo final do negócio. Por consequência, exercitada livremente a
vontade negocial, o contrato se tornava obrigatório, intangível às partes que
poderiam, no entanto, modificá-lo somente por meio de um outro acordo, por
meio de um renovado novo exercício de autonomia privada. O contrato poderia
ser distratado bilateralmente, portanto, mais uma vez, emergindo a sua
resolução da vontade contratual. Por consequência desse viés voluntarista, o
juiz não poderia interferir na vontade negocial e nos efeitos jurídicos extraídos
do querer das partes, a não ser se a vontade tivesse sido manifestada de modo
viciado, sendo esta a gênese da teoria dos vícios de consentimento (erro, dolo,
coação).
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
13
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
125
Assim sendo, a intangibilidade contratual seguia uma linha dogmática e
absoluta, por força da qual nem as partes, unilateralmente, nem o Estado (na
figura do juiz), poderiam alterar os efeitos contratuais que vinham a constituir,
modificar ou extinguir situações jurídicas patrimoniais: pacta sunt servanda!
Similar metodologia legislativa foi empregada pelo CC-02. Com efeito,
atual Código Civil brasileiro não versa sobre a força obrigatória dos contratos de
modo expresso, porque se espera que o contrato cumpra o seu papel sócioeconômico de circulação atributiva de riquezas em exercício de liberdade
contratual. Portanto, o contrato (rectius, seu efeito) continua sendo obrigatório
no Brasil, a despeito dos novos valores e princípios sociais que o submetem,
com os quais se estabelece o diálogo entre o velho e o novo direito contratual.
Tais princípios assim denominados de sociais têm em vista a negociação
pré-contratual, o fechamento do contrato e seu cumprimento de modo
equânime, sendo esta a grande diretiva que apresenta a boa-fé contratual (CC
art. 422). O contrato no Brasil deve ser um instrumento cooperativo e não de
exploração e destruição da outra parte, em vista do seu cumprimento a qualquer
preço. A boa-fé atua conjuntamente e não contrariamente ao cumprimento
contratual, sendo esta uma mensagem desenvolvida inclusive no sistema do
common law, tal qual observa R. SUMMERS: “[...] good faith (among other
things) helps to particularise it meaning and thus enforce what may be the
unspecified „inner logic‟ of the transaction or arrangement.”14.
Brevemente, pode-se correlacionar a boa-fé brasileira com a teoria de
FARNSWORTH, uma vez que este autor teoriza o princípio como um “[...]
standard that has honesty and fairness at its core and that is impose on every
party contract.”15 Ou seja, a boa-fé como um standard ético contratual que
impõe deveres de cooperação é a definição mais sintética possível para o
princípio em tratamento, perspectiva esta compartilhada entre os sistemas
jurídicos do civil law e do common law.
A modificação apresentada pelo CC-02 em face do CC-16 está no
reconhecimento de que o contrato poderá ter seus efeitos econômicos mitigados
SUMMERS, Robert S. The conceptualisation of good faith in American contract law: a general
account. In: ZIMMERMANN, Reinhard e WHITTAKER, Simon. Good faith in european
contract law. Cambridge: Cambridge, 2000, p. 136.
15 FARNSWORTH, E. Allan. Farnsworth on contracts. Boston: Little, Brown and Company,
1990, v 2, p. 335.
14
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
126
pelo juiz, perdendo a liberdade contratual o seu caráter dogmático e absoluto.
Tal modificação operacionalizada pelo juiz ocorrerá por meio da revisão do
preço ou por meio da resolução do contrato, por causa da excessiva onerosidade
que atinge a prestação ou a base contratual. Retomando o quadro da boa-fé, ela
também serve de fundamento para tais modificações da base econômica do
contrato, pois somente será justo o contrato equânime.
Estruturalmente posto, o CC-02 trabalha somente com as exceções à
força obrigatória dos contratos o que em si é um reconhecimento do princípio
enquanto regra. É um princípio abstrato de caráter deontológico, portanto.
Evidentemente que o juiz também poderá extinguir o contrato quando
constatada a invalidade do negócio como um todo e não puder ser ele
parcialmente preservado, mas tal aspecto foge da presente abordagem.
De modo transverso, e sempre em vista da atribuição do juiz, o contrato
poderá ter seus efeitos modificados, quando nulo for o arranjo negocial e puder
o juiz da causa modificar a sua natureza, no sentido de preservá-lo (art. 170 CC0216), o que também vem a ser uma consequência da mitigação do princípio em
análise, pois as partes obterão efeito diverso do pretendido, de certa forma
compreendido como um ato de autonomia privada, contudo, do juiz. Trata-se,
neste artigo de lei, da incorporação do princípio da conversão essencial do
negócio jurídico ou do princípio da conservação dos negócios jurídicos, por
força do qual será a discricionariedade do juiz que ditará os efeitos do contrato,
que serão necessariamente diversos do contrato que se evitou invalidar.
Observe-se, entretanto, que se um lado o juiz brasileiro pode alterar os
efeitos do contrato, com base em ruptura da sua base econômica e numa
tentativa de preservar o contrato, mesmo que posto em outra roupagem
negocial, sob outro viés a força obrigatória se mantém tal qual na sua remota
origem clássica, ou seja, em relação aos contratantes, os quais não podem
alterar o negócios contratual por vontade unilateral.
3.
Os princípios sociais da Constituição Brasileira de 1988
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este
quando o fim a que visavam as parter permitir supor que o teriam querido, se houvessem
previsto a nulidade.
16
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
127
Pouco sentido faria passar os olhos no CC-02 sem compreender a lógica
da nova contratualística brasileira, fundada em valores sociais que dialogam
com princípios da ordem econômica. A dinâmica que se apresenta ao debate
tem como fundamento a Constituição da República de 198817, a qual serve de
fonte normativa ao Direito Privado nacional. Diversamente de outros modelos
constitucionais que se destinam à regulação das políticas e das práticas do
Estado, a Constituição brasileira também regula uma extensão fatia do Direito
Privado brasileiro, dentre eles o direito proprietário, sucessório e contratual,
embora o faça de modo princípiologico. Por consequência, percorrer o diálogo
normativo brasileiro civil-consititucional é um pressuposto para se entender a
sistemática contratual brasileira.
Os movimentos econômicos, sociais e políticos que marcaram o Séc.
XX18, sobretudo no cenário europeu, produziram forte impacto no Brasil,
repercutindo no sistema legal interno.
Se fosse possível localizar em um ou dois eventos de complexas
naturezas as mutações que provocaram a descodificação e a recodificação civil
brasileira, arriscar-se-ia afirmar que a discreta mas sempre crescente presença
da mão invisível do mercado e os extremos dos regimes de esquerda e direita
produziram uma síntese social-política-econômica brasileira que festeja a
superação do racionalismo absoluto19, compreendendo um homem relativo ao
seu tempo e espaço, inserido em um contexto meta-individual, sem contudo
desconsiderar a sua personalidade.
Talvez esse pequeno recorte opinativo traduza o sentido e o alcance que
a vigente Constituição brasileira pretende com os arts. 1, III e IV, e 3, I e III, na
sua base republicada:
I – Dos Princípios Fundamentais
Art. 1º. A Replica Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e dos Distrito Federal,
constitui-se em Estado democrático de direito e tem coo fundamentos:
III- a dignidade da pessoa humana;
Sobre o tema o nosso Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na
perspectiva civil-constitucional). 2 ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 213-240.
18 ITURRASPE, Jorge Mosset. Interpretation economica de los contratos. Buenos Aires:
Rubinzal-Culzoni, [sd], p 13-30.
19 A vontade dogmática é o símbolo acabado do racionalismo: a vontade determinante da vida do
homem permite-lhe correr os próprios riscos.
17
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
128
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais.
Uma vez adotada a concepção de sistema jurídico e absolutamente
superado qualquer espirito dicotômico entre o Direito Público e o Direito
Privado, por força do qual a Constituição encontra papel central e unificador no
diálogo das fontes jurídicas, compreende-se que o valor da sociabilidade
constitucional implica a função social do contrato e o princípio da dignidade da
pessoa humana e, dentre outras consequência, a boa-fé contratual, na sua
vertente objetiva, a qual impõe condutas contatuais conforme a boa-fé e de
modo probo20.
A contratualidade privada passa a ter uma perspectiva que compartilha
o sistema de livre iniciativa com valores sociais da justiça social e do pleno
emprego, além do respeito à função social da propriedade (art. 170 CR). No
campo dos contratos, o mesmo artigo constitucional enaltece que a ordem
econômica está fundada na defesa do consumidor e na redução das
desigualdades regionais e sociais.
Em síntese, encontra-se no Brasil um necessário diálogo entre a livre
iniciativa de mercado e os valores sociais. Por consequência, sustentar posições
radicais e extremas, seja em favor dos interesses do mercado, seja em favor dos
anseios sociais, é iniciativa fadada ao fracasso, já que assim procedendo o
intérprete terá uma visão parcial do complexo sistema jurídico nacional.
Para o presente trabalho importa destacar o grande esforço que o
constituinte de 1998 teve em alinhar as forças sociais e de mercado, mesmo que
o texto final da Constituição possa ser tecnicamente criticado pela sua
assimetria legislativa e extensão exagerada. E apesar de um pleno equilíbrio
entre os operadores de mercado ser um projeto ideológico do passado,
soterrado desde a queda do Muro de Berlim, não escapa a um Estado Brasileiro
NALIN, Paulo. Princípios do direito contractual: função social, boa-fé objetiva, equilíbrio,
justice contratual, igualdade. In LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore [coord.]. Teoria
geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 97-144.
20
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
129
que se autoproclama Social de Direito obrar no sentido de repersonalizar o
Direito Privado e isto se faz através da mutação da função do contrato.
Assim sendo, não surpreende que o a Constituição de 1988 lance as
bases para a proteção do consumidor, já que até 1988 não havia no Brasil
qualquer tutela para o operador vulnerável do mercado. Até a edição do CDC,
todos os contratos era interpretados à luz do CC-16, o que importava em
julgamentos contaminados pelo princípio da igualdade formal dos contratantes
e no exercício livre da vontade. E assim se operando o Direito, a lei socorria
invariavelmente ao predisponente das cláusulas contratuais, livre que se
encontrava para fixar os mais abusivos conteúdos negociais.
Por isso, deu-se grande passo na busca por um novo paradigma
contratual quando a Constituição de 1988 determinou que em cento e vinte dias
da sua promulgação seria elaborado o Código de Defesa do Consumidor, cuja
importância operacional do mercado será adiante abordada.
4.
O impacto do Código de Defesa do Consumidor e a lógica contratual
do final do séc. XX
Quid dit contractuel dit just! Exaltavam os tratadistas franceses desde o
Código Napoleônico, já que somente o homem livre (o cidadão nascido da
Revolução) pode contratar: livre para concretizar a circulação atributiva
proprietária e constituir em favor do burguês emergente um direito proprietário
que antes da Revolução era privilégio da aristocracia e das concessões da
Monarquia.
Uma vez livre e igual o homem (que passou a ser cidadão) realizava o
exercício contratual que superava os próprios efeitos do negócio, que seria a
constituição de uma nova situação jurídica em sua esfera individual; ia além
pois contratar tinha os ares do poder político consagrador dos princípios
revolucionários.
Toda essa lógica, ao mesmo tempo privada e política, encontrava um
espaço (Europa Liberal) e um tempo (Séc. XIX) adequados aos seus propósitos e
ao desenho de uma economia agropastorial, um momento no qual as relações
contratuais eram de fato e de direito interprivadas (vis a vis), anterior à lógica
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
130
massificada de mercado. É claro que todo esse quadro cedeu com a Revolução
Industrial, embora o modelo liberal de contrato tenha servido à la carte aos
novos detentores do poder econômico (os burgueses do fin de siecle XIX), que
usavam o mesmo instrumento que os alçou à condição de detentores do
mercado para dar vazão aos produtos industrializados em grande escala. O
contrato liberal, que passou a ser revestido da forma de adesão, se utilizava da
premissa, agora superada, da igualdade formal entre contratantes, para
consagrar a liberdade de contratar e proclamar: só contrata porque quer; por
querer livremente, o contrato e obrigatório ... pacta sunt servanda.
No Brasil, tal fenômeno somente foi percebido após a Década de 30
(Séc. XX) e a tentativa governamental de equalização das relações de trabalho.
Para atingir tal fim, e sem poder modificar o CC-16 em sua estrutura, sob pena
de torná-lo uma consolidação, produziu-se a primeira grande fratura do CC-16,
dele se retirando uma parte contratual especial, destinada à locação de mão
obra, para se erigir a Consolidação das Lei do Trabalho, a regulamentar o
contrato de trabalho e com ela uma jurisdição especial do trabalho. Em que pese
o tema das relações laborais não ser aplicável ao presente estudo, deseja-se com
ele marcar o tempo em que já se fazia necessária a revisão dos pilares da
igualdade formal e da liberdade plena encampados pelo Código de Civil de 1916,
razão do início mais evidente da descodificação do CC-16.
O segundo marco legislativo que feriu de morte a lógica contratual
liberal, a qual era muito bem representada pelo CC-16, veio com o CDC, em
1990.
Além de o CDC reconhecer uma nova categoria contratual (o contrato de
consumo), seja para produtos, seja para serviços; além de o novo código
consumerista ter adotado uma metodologia sincrética de regras materiais e
processuais, arranjadas em técnica de cláusulas gerais; e, por último, ter
incorporado
princípios
regentes
da
nova
contratualista
brasileira
(transparência, confiança, equidade), nucleados na boa-fé objetiva, o que mais
impressiona no CDC é o reconhecimento legal da vulnerabilidade de uma das
partes do contrato e a adoção de instrumentos materiais e processuais para a
equalização da relação jurídica contratual concretamente analisada.
Com efeito, ideologicamente, rompeu-se com a premissa da igualdade
formal das partes, implementando o CDC um sistema de igualdade material. E
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
131
do ponto de vista da teoria contratual, o novo código do consumidor lançou as
bases para um novo conceito de justiça contratual, baseado na equidade
negocial.
Nesse ponto, destaca-se a mutação do conceito de justiça contratual, o
qual, à luz do então ainda vigente CC-16 era o pacta sunt servanda (contrato
justo, é contrato cumprido), para a justiça fundada na equidade, ou seja no
equilíbrio das parcelas e obrigações do contrato, pois só o contrato equilibrado é
justo. De outro vértice, em nenhum momento o CDC afasta do cenário
principiológico Brasileiro o pacta sunt servanda, mas estabelece que
obrigatório será o contrato equilibrado, sob pena de revisão dos seus termos, ex
vi do art. 6º, V:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos
supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Inaugurava-se na fonte legislativa nacional um novo capítulo da
contratualística privada, tanto que logo após a vigência do CDC 21 observou-se
uma ampla tentativa de migração dos sujeitos de direito não alcançados pela
nova lei, conquanto partes em relações contratuais civis e comerciais 22, para o
seio do CDC. Em termos mais singelos, os sujeitos não consumidores (s.s.) e por
consequência excluídos do alcance do CDC buscaram ser judicialmente por ele
tutelados, pois a justiça contratual proposta pelo novo código era muitos mais
moderada e adequada ao final do Séc. XX do que aquela do CC-16, similar a do
Código Comercial brasileiro (1850).
5.
A força obrigatória e a sua relativização à luz do CC de 2002: ponto e
contraponto
Desde 1975 agitava-se a civilistiva nacional em torno de um novo Código
Civil, sendo o Projeto de Código Civil uma peça jurídica fruto do acúmulo do
saber jurídicos civil-comercial-filosófico até os anos 60, do Séc. XX. Retomado o
Projeto, e sob a batuta do Supervisor da Comissão de Codificação, o jus-filosofo
Miguel Reale, passou ele por intensos debates e modificações no Senado e na
21
22
Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, com vacatio legis de 180 dias.
O Código Comercial Brasileiro ainda estava em vigor na sua parte contratual em 1990.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
132
Câmara dos Deputados, sob a coordenação do Senador Josafá Marinho e do
Deputado Ricardo Fiuza, respectivamente, culminando com o vigente texto, Lei
10.406, de 10 de janeiro de 2002.
No que concerne ao Livro dos Direito das Obrigações (art. 233 usque
1.195), estruturalmente ele é o maior dentre os demais Livros do Código Civil,
até mesmo porque incorporou praticamente todo o Direito de Empresas e todos
os contratos típicos comerciais (agora empresariais) na sua fonte positiva. Em
grande linhas, o Direito Privada Brasileiro hoje se encontra unificado. Ainda no
contexto da sua estrutura, o CC não se distanciou substancialmente do CC-16,
em que pese a introdução pontual de alguns temas, tal qual a assunção de
dívida, cujo instituto, entretanto, já era conhecido e estudado por meio da
cessão de crédito.
Mas, então, o que se apresenta de novo no atual Código Civil Brasileiro,
em particular no Livro das Obrigações? Três pontos merecem destaque: (i) o
emprego de cláusulas gerais em campos nevrálgicos da codificação, enquanto
nova técnica legislativa; (ii) a funcionalização social da propriedade e do
contrato; (iii) a consagração do princípio da boa-fé como princípio concreto e
geral dos negócios jurídicos e, logo, dos contratos.
O emprego das cláusulas gerais é crucial para compreender o novo
Direito Civil nacional, pois a técnica pressupõe uma redação de artigo de lei
dotada de um ou mais conceitos indeterminados e a ausência de sugestão
sancionatória. Compete ao juiz, diante do caso concreto, preencher tal moldura,
conceituando o instituto jurídico e definindo a sanção à hipótese, que será
negativa ou positiva (premial, segundo N. Bobbio). Afasta-se da técnica da
casuística do dado A, deve ser B, cuja descrição da hipótese e da sanção (sempre
negativa ou de censura) era obra do legislador. Exemplifica-se com um dos
artigos mais emblemáticos do CC-02:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites
da função social do contrato. (grifei)
Rapidamente esmiuçando o artigo em comento, surgem as
seguintes indagações:
i.
Qual é o atual conceito de liberdade contratual, uma vez que
historicamente este princípio implicava a escolha, livre e igual, do
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
133
objeto do contrato, do parceiro contratual e do próprio interesse em
celebrar o contrato?
ii.
Qual é a racionalidade que se obtém da função social do contrato,
já que o legislador do CC-02 em nenhum momento alude à razão
(função) econômica do contrato, ao regular a sua função social?
iii. Quais seriam os limites impostos pela função social do contrato à
liberdade contratual?
iv. Qual é o sentido e o alcance de tal funcionalização social diante
de contratos com funções econômicas distintas, como os de consumo,
civis e empresariais?
v.
Por fim, mas não menos relevante, qual é a sanção ao operador
do contrato que desafia a função social do contrato?
A tentativa de se responder a essas indagações pressupõe uma escolha
metodológica que neste trabalho se pautará pelas decisões do Superior Tribunal
de Justiça, mais adiante investigadas, e que laboram com a função social do
contrato em cotejo com a obrigatoriedade contratual.
Um necessário alerta, contudo, se mostra necessário ao leitor, relativo
ao papel desenvolvido pela jurisprudência no Brasil. Sabe-se que o Brasil é um
pais do sistema civil law, cujo ápice da pirâmide normativa é, desde 1988,
ocupado
pela
Constituição
da
Republica
Federativa
do
Brasil
e,
hierarquicamente posto, em nível inferior ou infraconstitucional, o Código Civil
de 2002.
Assim, é necessário entender que a jurisprudência no Brasil, e que
explica as categorias jurídicas versadas neste texto, não tem força obrigatória
perante as partes de um contrato e sequer perante juízes de primeiro grau de
jurisdição, muito embora sejam acórdãos extraídos do acervo jurisprudencial do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual constitucionalmente detém a última
palavra sobre o Direito Civil. Portanto, o papel exercido pela jurisprudência
brasileira é de unificação do entendimento interpretativo da lei, mesmo que dela
não se obtenha uma força imperativa, tal qual a lei. Por outro lado, a
jurisprudência brasileira do STJ vem ganhando cada vez mais espaço e força
como instrumento de decisão em cortes inferiores, sendo, de fato, indispensável
a sua análise.
Retomando as questões supra, arrisca-se alguma explicação.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
134
Inicialmente, o juiz, ao se deparar com um conceito indeterminado
procurará esclarecimento e preenchimento da moldura legal de formar interna
ao próprio CC-02 ou fora dele, observando-se nesta metodologia a razão de ser
da ideia de sistema jurídico. O caminho recomendado ao magistrado é que na
sua pesquisa observe os valores e princípios constitucionais, já que a
funcionalização social de institutos privado não é matéria a ser resolvida
somente à luz da estrutura do código. Além do mais, em se tratando de cláusulas
gerais, não existem soluções prontas, sendo necessário lançar um olhar muito
particular para cada caso concreto.
Outro aspecto, a função social do contrato não desqualifica a função
econômica do contrato, em que pese exigir das partes um respeito a efeitos
jurídicos do contrato que serão internos à própria relação jurídica negocial (o
respeito ao outro contratante, em seus planos material e existencial, por força
da boa-fé e de seus sub-princípios) e externos à relação, pois, via de regra,
poder-se-á observar terceiros atingidos pelos efeitos do contrato, sobretudo em
contratos corporativos, empresariais ou que atinjam o mercado relevante.
Em terceiro plano, qual é sanção prevista pelo CC-02 na hipótese de
violação da função social do contrato? A resposta mais adequada, ainda que
sujeita a reparos, uma vez abstrata, extrai-se do sistema sancionatório do
Código Civil, que se pauta pelas regras de invalidade (nulidade, anulabilidade,
ineficácia), embora no caso ela seja de nulidade virtual, pela redução do negócio
jurídico (preserva-se uma parte dele, ao se invalidar outra ilegal – art. 184 CC) e
através das perdas e danos. Abstratamente, não se tem como apontar a melhor
solução decisória, já que se está diante de uma cláusula geral dirigida ao juiz e
ao caso concreto. Caberá a parte atingida e ao seu advogado endereçar ao juiz o
pedido (remedy) mais adequado à patologia do contrato.
Evidentemente que qualquer dessas consequências poderá aniquilar ou
mitigar a força obrigatória do contrato, devendo estar muito atento o operador
jurídico para os efeitos sociais do contrato, no Brasil. Isso porque, não seria
equivocado impor, como condição da eficácia patrimonial pretendida pelos
contratantes, a observância a interesses sociais das próprias partes e de
terceiros e tal perspectiva é absolutamente pitoresca do Direito brasileiro.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
135
O princípio da boa-fé também merece um recorte a parte no novo
Código Civil brasileiro, pois ela estabeleceu uma nova lógica operacional às
relações obrigacionais, fundada na cooperação. O CC-02, diversamente do CC16, positivou o princípio da boa-fé em seu texto, como regra geral das relações
contratuais, nos termos do art. 422:
Art. 422. Os contratantes obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.
Com a brevidade que este texto permite, cumpre destacar as funções23
da boa-fé em linha de reequilíbrio entre as partes, o que impõe limites à livre
iniciativa e a adequação das bases econômicas do contrato em circunstâncias
imprevisíveis e de excepcional onerosidade24. A função em comento se
apresenta retratada pelo no CC-02 em dois artigos:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção
manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua
execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que
assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução ou diferida, se a prestação de uma
das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem
para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e
imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os
efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Da leitura comprada dos dois artigos de lei, algumas conclusão
simétricas e outra assimétricas são observadas:
i.
Os artigos em comento têm finalidades distintas, quais sejam, o
art. 317 de destina somente à revisão do preço, para a manutenção do
contrato de longa duração; de outro lado, o art. 478 se destina à
resolução do contrato.
ii.
A imprevisibilidade é um componente comum em ambos os
artigos, mas não se pode deixar enganar que o sistema obrigacional
brasileiro estaria apoiado numa visão subjetivista do contrato, até
Dentre as possíveis funções da boa-fé destacam-se: a função interpretativa dos negócios
jurídicos (contratos, inclusive); a função de criação de deveres jurídicos anexos, laterais ou
correlatos; a função corretiva da base econômica do contrato; a função revisional ou extintivas
de cláusulas consideradas iniquas.
24 Comparativamente, a leitura do art. 437º do Código Civil português 24 não deixa dúvida de que
a pretensão revisional encontra a sua base no princípio da boa-fé, muito embora no Direito
Brasileiro tal princípio não esteja expressamente associado. Vejamos: “1. Se as circunstâncias
em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal,
tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de
equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente ou
princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”
23
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
136
mesmo porque o art. 422 CC-02 impõem dos contratantes condutas
probas, o que em ultima ratio significa posturas prudentes e
ajuizadas. A imprevisibilidade é um requisito revisional ou resolutório
sem real prestígio na atual lógica do sistema, refletindo uma cultura
francesa subjetiva do contrato que nem mesmo em França é mais
empregada.
iii.
O art. 478 CC-02 deveria ser a regra jurídica nuclear do equilíbrio
contratual. Inclusive ele é dotado de um integral Seção (Seção IV), do
Capítulo II, da Extinção do Contrato. Por sua vez, o art. 317 CC-02 foi
projetado para ter menor alcance, uma vez inserido nas regras de
pagamento, somente. Contudo, até mesmo por força da larga
experiência do CDC, que antecede o vigente Código Civil em mais de
uma década, a revisão contratual passou a ser mais bem aceita pela
jurisprudência nacional, sendo excepcionalíssima a resolução do
contrato, por ônus excessivo. Com efeito, o art. 317 CC-02 passou a
ocupar o papel projetado para o art. 478 CC-02, preferindo-se a
revisão à resolução do contrato.
iv.
Os requisitos do art. 478 CC-02, que são absolutamente
simulares ao art. 1.467 do Código Civil Italiano25, se mostram quase
intransponíveis de serem demonstrados em juízo, sobretudo porque
impõe ao demandante a investigação e a prova de elementos
subjetivos, a prova de fatos extraordinário e imprevisíveis (para
ambos os contratantes) e, por fim, demonstrar a vantagem econômica
do credor em desfavor do devedor.
v.
O art. 317 CC-02 passou a ser a chave da revisão obrigacional
brasileira, embora a proposta do legislador tenha sido de menor
alcance, também em homenagem ao princípio da conservação do
contratos e, por consequência, da sua função social.
vi.
De qualquer sorte, a revisão ou a resolução do contrato têm como
filtro a jurisprudência brasileira, a qual impõe maior rigor de
Art. 1.467. Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se
la prestazione di una delle parti divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di
avvenimenti straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione pu domandare la
risoluzione del contratto, con gli effetti stabiliti dall‟Articolo 1458 (att. 168).
La risoluzione non pu essere domandata se la sopravvenuta onerosit rientra nell‟alea normale
del contratto.
La parte contro la quale domandata la risoluzione pu evitarla offrendo di modificare
equamente le condizioni del contratto (962, 1623, 1664, 1923).
25
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
137
aplicação nas relações empresariais e, por consequência, maior
eficácia à autonomia privada dos contratantes.
Observa-se, sob outro giro, que o Código Civil não adotou
expressamente a possibilidade de a boa-fé determinar e conduzir a revisão
contratual como um todo (não só de cláusulas econômicas, por exemplo) e,
tampouco, permite que o juiz invalidade cláusulas contratuais iniquas, a não ser
que ela estipule a renúncia antecipada do contratante aderente a direito
resultante da natureza do contrato26. Portanto, nas relações formadas por
contratos de adesão, nulas serão as cláusulas contrária à causa do contrato27.
Entretanto, tais efeitos podem ser extraídos do citado art. 422 do CC02, por meio de decisão judicial, a qual, ao invalidar uma cláusula de conteúdo
econômico, por exemplo, que estabeleça um índice de correção monetária
reputado ilegal pelos tribunais brasileiros28, acaba esta mesma decisão por
eleger um outro índice ou critério de atualização monetária. Assim, observa-se
uma revisão contratual indireta, posto que o legislador nacional não previu tal
hipótese de modo expresso no CC-02.
Em contraponto, é relevante salientar que o Código Civil segue sendo a
lei dos contratantes com equivalência de poder de barganha, tanto que é regra
geral em face de leis especiais, como o CDC que pressupõem a desigualdade
entre os contratantes. Assim sendo, o CC-02 mantém em sua base ideológica a
igualdade formal entre partes, embora relativizada pelos demais princípios que
o ilustram, como a boa-fé.
6.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a
obrigatoriedade dos contratos e os princípios sociais do Código Civil
brasileiro
Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada
do aderente a direito resultante da natureza do negócio.
27 A título de exemplo, a súmula 61 do Superior Tribunal de Justiça (STJ): O seguro de vida
cobre o suicídio não premeditado.
28 STJ Súmula nº 176 (23/10/1996 - DJ 06.11.1996): É nula a cláusula contratual que sujeita
o devedor à taxa de juros divulgada pela ANBID-CETIP.
26
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
138
Tendo em vista os fins a que se destina este breve trabalho, o
qual objetiva realizar um sobrevoo pelo direito contratual privado brasileiro,
especialmente traçando um paralelo entre princípios sociais da contratualista
nacional face ao princípio da obrigatoriedade dos contratos, optou-se pela
análise jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça como critério de
çã
“
”.
Outra metodologia de aferição deste novo sistema contratual
Brasileiro poderia ter sido empregada, como a evolução positiva do Direito
Privado, desde a Constituição de 1988 ou a comparação doutrinária nacional
sobre a função social do contrato, numa linha temporal. Porém, o olhar
jurisprudencial sobre o tema parece despertar maior curiosidade a projetar
alguma segurança ao operador do mercado a partir da previsibilidade das
decisões, embora o Brasil não se vincule ao sistema jurídico da stare decisis.
Naturalmente não se pretende esgotar toda a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça na presente análise, mas sim apesentar uma
amostragem das 3ª, 4ª e 1ª Turmas do STJ, que vem a ser o tribunal superior
competente para julgar o tema sob enfoque.
Para tanto, elegeram-se cinco acórdãos, num recorte temporal de 2007
até 2012, visando, como isto, cobrir a linha de pensamento jurisprudencial do
STJ sobre a obrigatoriedade contratual em paralelo com os princípios sociais
apresentados pelo Código Civil e também pela Constituição da República.
“A
çã
ã
r seu
papel primário e natural, que é o econômico. Ao assegurar a venda de
sua colheita futura, é de se esperar que o produtor inclua nos seus
cálculos todos os custos em que poderá incorrer, tanto os decorrentes
dos próprios termos do contrato, como aqueles derivados das
çõ
.” (REsp. 783404-GO – Min. Nancy Andrighi – 3
Turma - 28/06/07)
Salvo melhor análise, este foi o primeiro acórdão do STJ que apreciou a
material da revisão contratual e da onerosidade excessiva em vista do princípio
da função social do contrato.
No presente caso, discutiu-se a pretensão revisional do preço de venda
do soja em negócio aleatório, formalizado por meio de compra e venda futura
(art. 459 do CC-02). O vendedor pretendia a elevação do preço pago no passado,
pois quando da entrega presente do soja, o mercado se lhe mostrava mais
favorável.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
139
O STJ negou a pretensão revisional, em síntese, sob o argumento da
previsibilidade do preço futuro do soja. Além disso, externou posicionamento no
sentido de que a função primária do contrato seria a econômica e não a social,
mormente em se tratando de relação jurídica empresarial.
“O
çã
é
P
Judiciário, para que ele construa soluções justas, rente à realidade da
vida, prestigiando prestações jurisdicionais intermediárias, razoáveis,
harmonizadoras e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a
aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento
jurídico, como a autonomia da vontade.
“Nã
q
ção social do contrato, princípio aberto
que é, seja utilizada como pretexto para manter duas sociedades
empresárias ligadas por vínculo contratual durante um longo e
indefinido período. Na hipótese vertente a medida liminar foi deferida
aos 18.08.2003, e, por isto, há mais de 5 anos as partes estão
obrigadas a estarem contratadas." (Resp. 972.436-BA – Min. Nancy
Andrighi – 3 Turma - 17/03/09)
No presente caso, sustentou-se que a resilição de um contrato de longa
duração, sem justa causa, mas por força da verificação do termo final do
contrato, confrontaria com a função social do contrato e o princípio da
conservação do negócio.
O STJ julgou a validade e a eficácia do exercício potestativo resolutório,
embora imotivado, confirmando com isso a liberdade de contratar, cujo
princípio também proporciona ao contratante o exercício do direito à ruptura da
avença, verificado o inadimplemento (lato sensu) ou a verificação do termo
final. Com efeito, o argumento da função social do contrato não impede a
ruptura contratual, enaltecendo-se, assim, a liberdade de contratar em linha
negativa (o direito de não contratar ou não se manter na posição de
contratante).
“VII. C
çã
í
Direito Empresarial, com maior força do que em outros setores do
Direito Privado, em face da necessidade de prevalência dos princípios
da livre iniciativa, da livre concorrência e da função social da empresa.
VIII. Reconhecimento da contrariedade aos princípios da
obrigatoriedade do contrato (art. 1056 do CC/16) e da relatividade dos
efeitos dos pactos, especialmente relevantes no plano do Direito
Empresarial, com a determinação de que o cálculo dos prêmios
q
.”
(REsp1158815-RJ – Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO – 3
Turma - 07/02/12)
Trata-se de debate sobre o valor do prêmio em contrato de seguro
coletivo.
Entendeu o STJ que nos contrato empresarias há de prevalecer os
princípios clássicos da contratualidade, sem embargo dos valores sociais do
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
140
contrato, pois a autonomia privada sobrepõe-se, na seara do Direito Privado
empresarial, aos princípios sociais.
"2. A cláusula contratual que estipula o pagamento de multa caso o
contratante empregue um dos ex-funcionários ou representantes da
contratada durante a vigência do acordo ou após decorridos 120
(cento e vinte) dias de sua extinção, não implica em violação ao
princípio da função social do contrato, pois não estabelece
desequilíbrio social e, tampouco, impede o acesso dos indivíduos a ele
vinculados, seja diretamente, seja indiretamente, ao trabalho ou ao
desenvolvimento pessoal." (REsp. 1.127.247-DF – Min. Felipe
Salomão – 4 Turma - 04/03/10)
No corrente acórdão verifica-se uma mudança de entendimento do STJ,
pois, pela primeira vez, o Tribunal estabeleceu uma preocupação social a um
contrato de natureza entre empresários. Observe-se que os efeitos do contrato
sob análise tocavam a terceiros trabalhadores, os quais se encontravam
impedidos de serem contratados, pelo prazo de cento e vinte dias, por conta de
cláusula contratual, sob pena de multa imposta ao empregador.
A cláusula da multa foi julgada válida, já que os trabalhadores (terceiros
à relação contratual) não estavam impedidos de trabalhar, embora o contratante
se submetesse à multa, na hipótese de violação.
É um acórdão de transição ideológica e de compreensão de que o
contrato pode, não raramente, atingir terceiros em seus interesses patrimonial e
existencial, já que o direito ao trabalho é reputado um direito constitucional
(subjetivo) ou fundamental.
“V
q
. 421 422
CC
quais tratam, respectivamente, da função social do contrato e da boafé objetiva. A função social apresenta-se hodiernamente como um dos
pilares da teoria contratual. É um princípio determinante e
fundamental que, tendo origem na valoração da dignidade humana
(art. 1 da CF), deve determinar a ordem econômica e jurídica,
permitindo uma visão mais humanista dos contratos que deixou de ser
apenas um meio para obtenção de
.” (AgRg no REsp 1272995/RS
- AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - 2011/01974207 – Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO – 1 Turma - 07/02/2012)
O acórdão sob análise se encontra ideologicamente e funcionalmente no
outro extremo daquele inicialmente analisado, já que impõe à instituição
financiador da educação a redução de multa (cláusula penal moratória) pelo
atraso no pagamento do financiamento, ao argumento de que a multa de 10%
seria incompatível com a finalidade social do contrato de ensino.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
141
Observe-se, contudo, que o contrato julgado se estabelece entre
fornecedor de crédito e estudante, não sendo, por consequência, um contrato
interempresarial. O contrato em comento não é reputado de consumo, segundo
entendimento consolidado da 1A. Turma do STJ, aplicando-se, porém, os
princípios da dignidade da pessoa humana (CR) e a função social do contrato
(CC-02).
Ainda nesse quadrante, oportuno destacar que o tema foi posto em
julgamento de modo excepcional pela 1ª Turma do STJ, uma vez que a sua
competência de julgamento é a do Direito Público, embora a dignidade da
pessoa humana e a função social do contrato sejam matérias de ordem pública,
conforme as fontes constitucional (art. 1O., inc. III29) e civil (art. 2.035,
parágrafo único30) Brasileiras.
7.
Notas conclusivas
Ante o exposto ao longo do texto, algumas conclusões se apresentam
necessárias.
Inicialmente, mostra-se inegável o giro legal dos princípios contratuais
privados nacionais, sob influência inicial da Constituição da República de 1988,
passando pelo Código de Defesa do Consumidor e por fim pelo novo Código
Civil Brasileiro.
Pode-se afirmar, em grandes linhas, que o direito contratual Brasileiro
se apresenta mais social com o atual Código Civil (2002) do que na vigência do
Código Civil de 1916, importando esta rotação em favor do viés social do
contrato em consequências hermenêuticas, estruturais e funcionais sem
precedentes no Direito Privado.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
30 Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em
vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus
efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se
houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública,
tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos
contratos.
29
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
142
Especialmente no que toca ao princípio da força obrigatória dos
contratos, este sofreu notável mitigação, deixando de ostentar no Brasil a
natureza dogmática e liberal, histórica e ideológica que originariamente o
caracterizou, além de agir em coordenação com demais princípios clássicos e
contemporâneos, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
Em verdade, a mitigação do princípio da força obrigatória não é uma
novidade, nem mesmo para os operadores do Direito Empresarial, afetos que
estão a institutos de revisão negocial como a cláusula hardship. Ou seja, a
mitigação Brasileira da força obrigatória dos contratos não coloca o país numa
condição, por assim dizer, exótica, no cenário dos contratos internacionais e
nacionais, em que pese a originalidade da função social do contrato.
De qualquer modo, o que se revela, a partir do entendimento
jurisprudencial construído pelo Superior Tribunal de Justiça ao longo de mais
de dez anos de codificação civil é a inexistência de uniformidade entre as 1 A., 3A.
e 4A.
Turmas, embora se possa perceber uma linha de pensamentos mais
favorável à liberdade de contratar e por consequência da obrigatoriedade
contratual na 3A. Turma em comparação às demais.
Seguindo na análise dos julgados do STJ, percebe-se a grande
importância que o Tribunal emprega à condição econômica do contratante
(
“
”
), traçando uma linha divisórias entre
contratos empresariais ou de lucro e contratos existenciais, de modo a calibrar
os novos valores sociais do contrato em vista da vulnerabilidade maior ou
menor dos contratantes.
A partir dessa sub-classificação contratual (contratos empresariais ou
existenciais), o STJ julga com ênfase aos princípios da autonomia privada, se
empresariais, ou com maior observância aos princípios sociais se o contrato é
daqueles existências (civil e de consumo). O CC-02 não apresenta essa subclassificação contratual, sendo ela uma construção doutrinária brasileira que
objetiva adaptar a lei ao fenômeno contratual, que se mostra cada vez mais
multifacetado.
A plasticidade do conceito de contrato possivelmente impedirá que o
STJ defina, com precisão e uniformidade, o papel e o alcance da força
obrigatória dos contratos vista à luz de princípios sociais. Sob outro viés, afigura
cada vez mais definida a posição do STJ em divisar contratos empresariais e
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
143
contratos existenciais, aplicando de forma modulada a função social dos
contratos e a boa-fé na medida da maior ou da menor vulnerabilidade dos
contratantes.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
144
O AMBIENTE DA NOVA CONTRATUALIDADE E
A TENDÊNCIA DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ EM MATÉRIA
CONTRATUAL
Rodrigo Toscano de Brito1
Resumo: O presente artigo tem por objetivo estudar a consolidação do cenário
em que estão inseridos os contratos, a partir da globalização e sua influência, e a
dignidade da pessoa humana como contraponto à pressão globalizante. Nesse
sentido, faz-se uma visita à doutrina constitucional e civil, para, ao final, trazer
análises sobre a evolução legislativa e jurisprudencial do Superior Tribunal de
J
ç
“
”. A
-se da análise de alguns
recentes julgados do STJ que tragam, em sua essência, a influência dos
elementos inicialmente citados, levando em conta precedentes que envolvam
contratos civis, empresariais e de consumo.
Palavras-chave: Contratos; Globalização; Dignidade da pessoa humana;
Precedentes judiciais.
Abstract: This article aims to study the consolidation scenario in which
contracts are entered from the globalization and its influence, and the dignity of
the human person, as a counterpoint to globalizing pressure. In this sense, it is a
visit to constitutional and civil doctrine, in the end, bring analyzes of legislative
and jurisprudential evolution of the Superior Court in that "contractual
environment". Thus, some recent sentences is analyzed from the Supreme Court
that carry, in essence, the influence of the elements initially cited, taking into
account precedents involving civil, business and consumer contracts.
Key-words: Contracts; Globalization; Human dignity; Judicial precedents.
Doutor e Mestre em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC-SP. Professor de Direito Civil da Universidade Federal da Paraíba e do UNIPÊ –
Centro Universitário de João Pessoa, nos cursos de graduação e pós-graduação. Advogado.
1
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
145
Sumário: 1. Nota introdutória em torno do atual cenário das contratações – 2.
Globalização: um ambiente consolidado e complexo para as relações contratuais
– 3. A dignidade da pessoa humana como contraponto à pressão globalizante e
como balizamento maior na interpretação contratual – 4. Evolução legislativa e
jurisprudencial e a adaptação da interpretação dos contratos à realidade civil
constitucional: análise de precedentes do Superior Tribunal de Justiça – 5.
Notas conclusivas.
1. Nota introdutória em torno do atual cenário das
contratações
As considerações iniciais que se pretende fazer neste ensaio perpassam
por uma conjuntura já conhecida em profundidade pelos civilistas que passaram
a estudar e discutir o direito civil brasileiro a partir do ângulo constitucional,
mas que algumas vezes ainda passa despercebido pela construção dos
precedentes judiciais.
Na primeira parte deste artigo, pretende-se revisitar a percepção de
como a doutrina, especialmente a constitucionalista e a civilista, que analisaram
o fenômeno da constitucionalização do direto civil, num primeiro momento,
sentiram-se perto do influxo da Constituição de 1988, em matéria de direito
privado. A ideia central é mostrar o cenário da contratualidade na atualidade –
que já não é novo, mas sim consolidado. Para tanto, levar-se-á em conta uma
análise à luz da globalização e sua influência sobre os contratos, e a dignidade
da pessoa humana, como contraponto à pressão globalizante, sobretudo para
revisitar a doutrina que, prospectivamente, viu adiante, iluminando o
horizonte2, esses efeitos, e mostrar como anunciou o que vemos hoje, na
Luiz Edson Fachin explicitava, desde a muito, que “
ç
C
çã é
no tempo presente, a estagnação paralisante do ocaso pretérito. O Brasil constitucional de hoje
N çã ”
ã
C
çã q
“ e vincula a ação permanente e contínua, num sistema jurídico aberto,
poroso e plural, de ressignificar os sentidos dos diversos significantes que compõem o discurso
jurídico normativo, doutrinário e jurisprudencial, especialmente no que concerne a tríplice base
í
çõ
é
í .”
(FACHIN, Luiz Edson. Em defesa da Constituição prospectiva e a nova metódica crítica do
„
z çõ . I . Questões do Direito Civil Brasileiro
Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7).
2
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
146
construção jurisprudencial, de modo avançado, em determinados casos, e, ainda
de modo tímido, em outros, como se mostrará na última parte deste escrito.
Diante de um quadro econômico e social complexo, em que não se pode
mais se ater apenas às relações entre fornecedor e consumidor, que são relações
frágeis e que continuam a merecer especial cuidado, mas que também sofreram
grande evolução nas últimas décadas com a discussão do direito do consumidor,
faz-se necessário uma visão mais abrangente, uma teoria para os contratos que
esteja comprometida com o equilíbrio da contratação na conjuntura em que se
encontra.
Diante dessa realidade, não se pode deixar de desenhar o palco, ou
melhor dizendo, o grande cenário, já consolidado, em que se encontra inserido o
contrato, especialmente quanto à influência da jurisprudência brasileira, o que
se pretende analisar ao final deste ensaio.
Esse cenário tem, pelo menos, dois elementos que influenciam o
contrato e objetivam a busca de seu equilíbrio, num sentido mais amplo de
contraposição de forças. A primeira etapa da nossa caminhada será dedicada a
demonstrar alguns aspectos da globalização, criadora de um complexo ambiente
para as relações contratuais – o grande cenário. Em seguida, buscar-se-á
visualizar o princípio da dignidade da pessoa humana como o ator principal no
grande palco contratual contemporâneo, que serve como o verdadeiro
orientador desse ambiente contratual. Por último, procurar-se-á ressaltar a
atividade legislativa e jurisprudencial, esta buscando se adaptar à nova
contratualidade.
Antes de se passar para o estudo desse cenário em que se encontra o
contrato no Brasil, é importante observar que a nova contratualidade, que está
inserida em todo o cenário que aqui será visto, tem por principal objetivo,
especialmente, na análise da influência da jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça, a busca pelo equilíbrio da contratação, como elemento finalístico,
hoje, ao que nos parece, consolidado na legislação e em consolidação na
jurisprudência daquela Corte Superior de Justiça.
2. Globalização: um ambiente consolidado e complexo para as
relações contratuais
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
147
Apesar da crise econômica enfrentada nos últimos anos, talvez desde
Roma, até os dias atuais, a humanidade não tenha visto um país desejar tanto a
manutenção da hegemonia econômica e, na esteira dela, a cultural, como ocorre
hoje com os Estados Unidos da América, que impõem regras e um modo de vida
semelhante para qualquer parte do mundo.
É esse fator – de relevância para o raciocínio contratual contemporâneo
– conhecido de todos, que nos força a ponderar e tentar entender o fenômeno
da globalização. Aqui, de fato, a intenção não é considerar a globalização como
mero modismo. A necessidade de considerá-la é real. Com efeito, a globalização
é e funciona como o palco principal das contratações contemporâneas. É, a
rigor, o fenômeno macro, maior. Não se pode afirmar ser o principal, uma vez
que aqui se considera sobremaneira a dignidade da pessoa humana como
contrapeso e elemento principal, mas é, sem embargo, o que mais influencia e
requer reflexão.
Para Ronaldo Porto Macedo Júnior, em artigo que procura discutir o
ô
z çã
“
-se-ia
definir provisória e preliminarmente globalização como um processo de
natureza econômica e política marcado pelas seguintes características: a)
ampliação do comércio internacional e formação de um mercado global
assentado numa estrutura de produção pós-fordista (pós-industrial); b)
homogeneização de padrões culturais e de consumo; c) enfraquecimento da
ideia de Estado-nação em benefício dos agentes econômicos do novo mercado
; )
çã
”.3
Numa visão que admite o aspecto político, Cristiano Chaves de Farias
q
“
-se afirmar que é a designação dada ao
conjunto de transformações de ordem política, social e econômica verificadas
nos últimos tempos em quase todos os estados democráticos de direito,
tendentes à integração dos mercados, possibilitando maior circulação de
q
z ”.4
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Globalização e direito do consumidor. In: SUNDFELD,
Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena (Coords.). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 2000. p.
225-239.
4 FARIAS, Cristiano Chaves de. A proteção do consumidor na era da globalização. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo, n. 41, p. 89, jan./mar. 2002.
3
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
148
Como se vê, há um padrão de opiniões diante de uma noção
objetivamente imprecisa. O que se busca, porém, é o delineamento desse
fenômeno mundial que não parece esconder o real objetivo: padronizar
comportamentos, consumo, cultura, ciência, tudo em benefício de interesses
mais fortes. É esse, sim, o principal escopo pretendido, apesar de não se negar
que em alguns casos traga bons frutos.
São inúmeras as variáveis da globalização. Para este ensaio, entretanto,
interessam os efeitos trazidos do ponto de vista econômico5 que afetam de
frente os contratos. Aliás, não se pode olvidar que é o contrato o elemento
principal facilitador de circulação de riquezas e é através dele que se pode
aplicar e padronizar, em diversos níveis de relacionamento, a padronização
almejada pelos timoneiros da ideia globalizante. Essa é uma realidade presente
da atual contratualidade, que vive, talvez, seu auge, não só vislumbrada nas
relações de consumo, mas também nas relações empresariais.
Não é demais ressaltar, como delineado por Ronaldo Porto Macedo
Júnior, que há uma indiscutível intenção de ampliação do comércio
internacional e formação de um mercado global. Ora, é esse comportamento
sem fronteiras que enfraquece as empresas nacionais, gerando, por via de
consequência, um maior enfraquecimento do consumidor doméstico e das
empresas nacionais.
A teoria do contrato, que em momento histórico mais recente se
preocupou mais com a proteção dos envolvidos numa relação de consumo – e
assim deve continuar fazendo – teve de ajustar seu rumo, para viabilizar a
proteção também em outras relações que não contam, necessariamente, em seu
bojo, com a presunção de parte hipossuficiente. Ora, se há um mercado global,
se há a ideia de enfraquecimento do Estado-nação (antes especulado, hoje real),
se há uma tendência de homogeneização de consumo com a presença, em
praticamente todos os países do mundo ocidental, das mesmas empresas, dos
mesmos grandes grupos empresariais, então deve haver um deslocamento do
LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito do Estado federado ante a globalização econômica. Revista
Notícia do Direito Brasileiro, Nova Série, Brasília, Universidade de Brasília, n. 8, p. 202, 2001.
P
“
h
z çã
ô
q
efeitos negativos e destrutivos sobre os direitos nacionais, máxime dos direitos sociais e da
ô
”. (LOBO P
L zN
D
E
z çã
econômica, p. 202).
5
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
149
intervencionismo contratual para além do contrato de consumo. Não se poderá
pensar de forma diversa, se se sabe que o elemento principal da globalização
econômica é o próprio capital financeiro.
Paulo Luiz Netto Lobo, em trabalho publicado há algum tempo,
comentava e alertava para o fa
q
“ é
q
é
da concentração de poder empresarial, em escala planetária impressionante, no
qual os valores hegemônicos são ditados pelos interesses das grandes empresas,
com força econômica e law making power superiores ao da maioria dos
í
”.6
Por seu turno, Paulo Bonavides consegue delinear, em poucas palavras,
toda
a
estrutura
do
fenômeno
z: “A
globalizante.
Quando
comentando
q
o
– e em
alguns casos já o fez – desnacionalizar a ordem econômica, despedaçar o
Estado, abdicar a soberania nos acordos lesivos ao interesse nacional, promover
a recessão, perseguir com emendas constitucionais e medidas provisórias o
corpo burocrático da administração pública, cercear direitos adquiridos,
arruinar o pequeno e médio empresário, esparzir o medo e o sobressalto na
classe média, diminuir o crédito ao produtor rural, elevar à estratosfera a taxa
de juros, esmorecer a reforma agrária, confiscar o bolso do contribuinte com
novos impostos, fazer da reforma tributária um engodo e da reforma
administrativa uma falácia, conduzir o trabalhador ao desespero, praticar
sistematicamente uma política de desemprego que, levando a fome ao lar de
suas vítimas, desestabiliza a ordem social, abater as autonomias estaduais e
municipais, mediante mudanças na Constituição que afetam os entes
federativos e só fortalecem a União, semear a descrença do povo na melhoria de
sua qualidade de vida pela brutal indiferença com que trata a questão social,
estabelecer o retrocesso político nas instituições republicanas com a reeleição
presidencial, desestruturar o ensino público e comprimir com indigência de
LOBO, Paulo Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, cit., p.
203. Cristiano Chaves de Farias
: “O
z çã
capital tende a fomentar o consumo como forma de alcançar o lucro, que é o próprio resultado
almejado. Nesse passo, é imperioso reconhecer como consectários desse fenômeno a hegemonia
do capital financeiro, o crescimento de empresas transnacionais, a internacionalização da
produção, a liberalização do comércio e o maior oferecimento de produtos e serviços, mudança
õ
z
”. (A
ção do
consumidor na era da globalização, cit., p. 89).
6
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
150
meios financeiros a autonomia universitária, abrir sem freios o mercado à
voracidade dos capitais especulativos de procedência externa, que ameaçam de
mexicanização a economia brasileira, descumprir oito artigos da Constituição
que regem interesses fundamentais das Regiões, o que ocorre na medida em que
sua política do Mercosul acelera os desequilíbrios regionais no País e,
finalmente, jungir o Brasil a uma política de sujeição externa vazada na
h
: “A
z çã
z çã
ô
”. M
é
;
disputada sem arbitragem, onde só os gigantes, os grandes quadros da
economia mundial, auferem as maiores vantagens e padecem os menores
í
.”7
Apesar de todas as palavras destacadas merecerem grifo, para o mister
pretendido nestas linhas que, como dito, ressalta o ambiente no qual está
inserida a contratualidade contemporânea algumas devem ter destaque
especial: a ruína do pequeno e médio empresário; a elevação à estratosfera da
taxa de juros e a abertura do mercado à voracidade dos capitais especulativos de
procedência ou com a ajuda externa.
Mas, pode-se ir além. Outros aspectos facilitam sobremaneira a
expansão das ideias e do poder privado aqui já delineado. Trata-se da alta
evolução tecnológica, devida muito pelo desenvolvimento e utilização dos
supercomputadores e da internet. A partir de uma rede mundial de
computadores ou televisão via satélite, é possível difundir, disseminar ideias,
produtos, moda, de forma a incutir na mente de cada cidadão, isoladamente
considerado, a necessidade de busca por determinada marca, produto ou
fornecedor que, na maior parte das vezes, são representantes abertos das tais
BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 282-283.
Sobre o assunto e com referência expressa à influência exercida sobre os contratos, Maria Luiza
Feitosa, coment : “N
q
z çã
rentabilidade, o risco deixou de ser visto como instituto de negação do dano ou de prevenção das
possibilidades de perdas, projetando-se sobre a própria essência das transações, às vezes, como
elemento central do binômio especulação versus investimento. Nesse campo, tornou-se lícito,
possível e determinável, podendo ser analisado, posto em tratativas e pactuado. Vincula-se aos
contratos de maneira cotidiana e regular, compondo uma equação em perfeita sintonia e
simbiose. Mesmo sem detalhar as diferenças encontradas, podem ser extraídas, nesta breve
çã
ç
çã
çã
”
(FEITOSA, Maria Luiza. Globalização financeira: mudanças que afetam o campo jurídicoeconômico dos contratos e os modos de lidar com o risco. In: Liber Amicorum – Homenagem
ao Prof. Doutor Antonio José Avelãs Nunes, 2009. p. 741-770.
7
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
151
grandes empresas que acabam desestabilizando a economia de um país, com
fortes reflexos na própria economia contratual.
Mas, interessa também destacar aqui os principais efeitos do fenômeno
globalizante, de forma a encontrar pontos que interfiram direta ou
indiretamente nos contratos.
Em primeiro lugar, no estágio atual, percebe-se com mais clareza que se
procura afastar o Estado social, em face das garantias por ele promovidas. Como
sabido por todos, o Estado social veio se contrapor ao Estado liberal, da livre
iniciativa, com regras menos intervencionistas, da ampla utilização do
voluntarismo, em que tudo era regido única e exclusivamente a partir da
vontade das partes. Constatado o afastamento da igualdade real em face da
existência de uma igualdade meramente formal, o Estado passou a intervir com
mais intensidade nas relações privadas, com o escopo de procurar manter o
equilíbrio das relações. É exatamente a época que coincide, segundo a tese de
Miguel Reale, com a segunda fase do direito moderno 8. Pois bem, é essa fase
mais intervencionista que a globalização procura afastar, embora do ponto de
vista jurisprudencial, levando-se em conta os precedentes do Superior Tribunal
de Justiça, a tendência parece ser outra, quanto à interpretação dos contratos.
O que procura fazer o fenômeno globalizante é, em poucas palavras,
desconsiderar as regras intervencionistas do Estado social, implantando suas
próprias regras e normas particulares, e aqui vale insistir, de um ponto de vista
mais privado, digamos, não só em relações jurídicas de consumo, como já se
refletiu, mas nas relações empresariais, e que, em face das consequências
econômicas causadas, acabam por influenciar as relações civis puras.
Qual a fonte geradora dessa força? Sem dúvida, a noção de
internacionalização de empresas, em que as opções de consumo e fornecimento
de bens e serviços nas relações empresariais, na medida em que o próprio
fenômeno avança, passam a ser mínimas, centralizadas nas mãos de poucos
grupos empresariais, que tendem a ser os mesmos na América do Sul, na
América do Norte, na Oceania, na Ásia, na Europa, às vezes mudando, outras
aproveitando o nome local de alguns produtos para dessa forma se camuflarem.
8
REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 102-113.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
152
Paulo Luiz Netto Lobo, sempre atento à ideia que se pretende aqui
ç
: “O
çã
é o da utilização massificada de condições gerais dos contratos. Sob a aparência
de contrato, esconde-se um impressionante poder normativo, dificilmente
revelável, que ostenta características assemelhadas às da lei. A lei, no Estado
moderno, ostenta características que distanciam de qualquer ato de particulares
ou de grupos. São eles: a generalidade, a abstração, a uniformidade e a
inalterabilidade. Pois bem, as condições gerais dos contratos apresentam as
í
.”9
Voltando então para o ponto já referido, é dessa forma que a
globalização facilita o poder normativo das grandes empresas transnacionais.
Não há mais fronteira para a utilização de suas regras. Apesar de terem de se
adaptar às normas locais, em cada país, em cada bloco econômico, de uma
forma geral, conduzem para os quatro cantos do mundo a mesma regra,
padronizada, imposta e consequentemente mais barata.
Mas a remoção do Estado social não é o único efeito de relevo do
fenômeno aqui estudado. Como já dito, há um evidente enfraquecimento das
pequenas e médias empresas, senão levadas à ruína total, pelo menos muitas se
encontram em difícil situação financeira, ante a consolidação da abertura da
economia, nesse jogo de regras unilaterais permitidas pelo próprio mercado,
que funciona, de certa forma, como mecanismo autorregulador.
Não há dúvida sobre a diferença do poderio econômico de uma empresa
nacional, seja ela pequena, média ou mesmo grande, e uma superempresa
transnacional que, como já suscitado, impõe suas próprias normas, não só em
relação aos seus consumidores, como também em relação às demais empresas
domésticas. Carlos Alberto Ghersi relata a experiência pela qual passou a
Argentina, dizendo o seguinte: “El mercado, como mecanismo autorregulador,
LOBO, Paulo Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, cit., p.
204-205. O autor faz um cotejo entre a lei e as condições gerais dos contratos. Segundo ele, as
condições gerais dos contratos também são gerais, pois se aplicam a todas os destinatários, sem
individualização. Também são abstratas, uma vez que são predispostas para reger situações
futuras e não situação concreta e determinada. De igual forma, são inalteráveis ou insusceptíveis
de negociação individual com cada interessado. São, igualmente, uniformes, porque
padronizadas para utilização por todos que necessitam dos produtos ou serviços oferecidos e,
por último, são editadas pela parte interessada. Assim, o autor demonstra claramente o law
making power, já referido, indispensável para a interpretação do equilíbrio contratual de hoje.
9
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
153
produjo la quiebra de pequeñas y medianas empresas ante la apertura de la
economía sin restricciones; la desocupación estructural llegó y permanece en
niveles nunca antes existentes en la Argentina, entre algunas de esas
consecuencias disvaliosas.”10
Na mesma ordem de ideias, o fenômeno globalizante acabou trazendo
outra consequência relevante, notadamente para países em desenvolvimento
como o Brasil: a pressão para se realizar as privatizações das empresas que,
segundo a ideia dominante, não devem estar nas mãos estatais. Entre nós, como
amplamente divulgado, esse foi um passo dado, promovendo, como hoje se vê,
após alguns anos da passagem de várias estatais para a iniciativa privada, uma
maior concentração de força econômica por parte de grandes grupos
ô
“
çã ”
contratual de setores importantes da economia, como ocorre, por exemplo, com
a telefonia, apesar da insistente e mais do que necessária interferência estatal,
através do Poder Executivo, a exemplo do CADE (Conselho Administrativo de
Defesa Econômica), do Poder Legislativo, na gênese de novas regras
intervencionistas, e do próprio Poder Judiciário que passou a melhor entender a
necessidade de intervir na economia contratual, promovendo revisões de
cláusula e declarando a sua nulidade, conforme o caso, ainda que a relação não
viesse a ser de consumo, estritamente.
É interessante anotar, como o faz com extrema sensibilidade Carlos
Alberto Ghersi, que, diante desses efeitos, outros da mais alta relevância surgem
em consequência. De fato, para o autor argentino, passa-se a vislumbrar uma
pobreza econômica e social que leva, por via de consequência, a uma pobreza
jurídica, de direito, afastando o indivíduo dos direitos fundamentais. Para ele,
assim como do ponto de vista econômico se impossibilita o acesso do cidadão a
um recurso suficiente que lhe permita exercer seus direitos de trabalhador e de
consumidor, ou do ponto de vista social, com a existência do analfabetismo ou
do
semianalfabetíssimo,
impede-o
de
conhecer
os
seus
direitos,
impossibilitando-o de exercitá-los, do ponto de vista jurídico, isso também
ocorre, em escala ainda pior. C
“en el derecho ello es peor aún,
GHERSI, Carlos Alberto. La pobreza jurídica y el ejercicio de los drechos fundamentales: el
valor de las libertades negativas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 43, p. 16,
jul./set., 2002.
10
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
154
por ejemplo, porque presume el conocimiento de la ley para aquellos (pobres
ignorantes), lo cual los torna peligrosamente impotentes, pues al firmar
„contratos o pseudocontratos‟ se les aplicara aquel criterio (la lei debe ser
conocida por todos, art. 20 CC argentino), colocándolos al margem de la
protección jurídica”.11
Todos esses aspectos são típicos da contemporaneidade econômica que,
de fato, irradia efeitos em diversas direções. Como não poderia ser diferente, o
direito se sente influenciado e, no caso específico da interpretação da teoria
geral dos contratos, todos os pontos aqui discutidos são da mais alta relevância.
A globalização, nos seus primeiros passos, já embalados pelo pleno
vigor da sociedade massificada, fez com que ganhasse força uma legislação
protetiva do consumidor, realçando noções relevantes, como a da solidariedade
social, o valor da livre iniciativa e um real sentido da dignidade da pessoa
humana. Agora, a teoria dos contratos, em mais uma de suas adaptações
evolutivas conta com intervencionismos estatais mais abrangentes, voltando-se,
não só para a realidade dos contratos consumeristas, mas para o contrato como
um todo, em face da influência da própria noção de globalização, que funciona,
conforme demonstrado, como palco que propicia essa mudança de visualização.
Para Antonio Junqueira de Azevedo, na fase moderna, buscou-se a lei
çõ . O
remontarmos
a
épocas
mais
remotas,
: “O
qual
era
o
paradigma
até
aproximadamente a Primeira Grande Guerra Mundial? Era o paradigma da lei.
Vindos dos traumas do absolutismo, os juristas de então viam, na lei, o direito.
Para dar segurança, a norma devia ser clara, precisa nas suas hipóteses de
incidência (fattispecie)
.”12
Para o citado autor, em momento subsequente, e ainda no modernismo,
o paradigma mudou, de forma que o centro das decisões saiu da lei e foi para o
juiz, visto como o representante do Estado, a pessoa capaz de tudo resolver.
N
z
: “I
z
-se, assim, nos textos
normativos, os conceitos jurídicos indeterminados, a serem concretizados pelo
GHERSI, Carlos Alberto, La pobreza jurídica y el ejercicio de los derechos fundamentales: el
valor de las libertades negativas, cit., p. 18.
12 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. Revista de Direito
do Consumidor, São Paulo, n. 33, p. 125, jan./mar. 2000.
11
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
155
julgador no caso a decidir, e as cláusulas gerais, como a da boa-fé (falou-se até
z).”13
Ao que nos parece, não há hoje a continuidade desse fenômeno, a ponto
de se afirmar que se foge do juiz. Ao contrário, o juiz passou a ser o principal
elemento, por assim dizer, na análise do ambiente em que se construiu o
contrato e do seu entorno, na aplicação do direito contratual, levando em conta
especialmente a principiologia do contrato.
Há,
atualmente,
uma
maior
intervenção
estatal
nas
relações
empresariais e mesmo, em alguns casos, nas estritamente civis, como já ocorria
nas relações de consumo, mas com níveis de intensidade, evidentemente,
diferentes, para cada caso.
É esse, em rápidas noções, o ambiente no qual se encontram inseridas
as relações contratuais contemporâneas. Mas, conforme já dito, há um
balizamento maior, capaz de servir de grande contrapeso a toda a pressão
imposta pelo perfil globalizante, capaz mesmo de servir como um dos critérios
maiores do equilíbrio entre as prestações: a necessidade de observância do
princípio da dignidade da pessoa humana.
3.
A dignidade da pessoa humana como contraponto à pressão
globalizante e como balizamento maior na interpretação contratual
Visto o cenário maior, como aqui se idealizou, no qual hoje se inserem
as contratações, passemos ao estudo de um dos seus elementos integrantes que
tem, sem embargo, o escopo de se contrapor ao meio-ambiente em que se
encontra o contrato. Na verdade, talvez fosse desnecessário desenvolver este
tema como ele se encontra proposto. De fato, parece óbvio que o princípio da
dignidade da pessoa humana é, em qualquer hipótese, o orientador nato das
relações jurídicas modernas. Entretanto, apesar da aparente obviedade, não se
pode afastar sua importância num ensaio que se propõe a visitar o atual estágio
da nova contratualidade, com lastro num direito civil que tem seu fundamento
maior e seu principal conteúdo em sede constitucional.
13
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação, cit., p. 126.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
156
Não se pode negar também que a ideia central destas linhas muito deve
à própria noção do princípio da dignidade da pessoa humana. Olvida-se da sua
penetrabilidade na seara privada, porque os próprios civilistas e, porque não
dizer, a doutrina menos avisada, associa com facilidade a noção desse princípio
à dos direitos humanos numa via publicista. No entanto, não se pode negar que
está nele a gênese de novas ideias, de novas fronteiras outrora exclusivamente
privadas, como ocorre com o contrato. Gustavo Tepedino, a partir da noção de
personalidade, demonstra claramente essa linha de pensamento, ao afirmar que
os direitos da personalidade são os direitos humanos, sob o ângulo privado.14
Como se não bastasse estar no princípio da dignidade da pessoa
humana o embrião do estudo aqui desenvolvido, não se pode deixar de dizer, na
esteira do que afirma J. J. Gomes Canotilho, que há uma base antropológica
constitucionalmente estruturante do Estado de direito que, em relação ao que
sustentamos, deve ser considerada como balizamento máximo15. Nesse sentido,
ainda que o direito privado tenha, historicamente, uma feição patrimonialista
por excelência, não pode se afastar do homem, da proteção da pessoa humana.
Aliás, há, entre nós, claramente um deslocamento da tutela meramente
patrimonialista para a da pessoa humana como centro nervoso do direito. A
respeito desse t
E
h C
J
z q
“
-se
contra as concepções que o colocavam como mero protetor de interesses
patrimoniais, para postar-se agora como protetor direto da pessoa humana. Ao
O
: “D í
-se que os direitos
humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade; mas deve-se entender que quando se
fala dos direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao
direito público, quando desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando
examinamos os direitos da personalidade, sem dúvida nos encontramos diante dos mesmos
direitos, porém sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se,
pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pesso ”. (TEPEDINO G
.
Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 33).
15 O princípio da dignidade da pessoa humana, entre nós, está positivado no artigo 1º, III da
Constituição Federal de 1988. José Joaquim Gomes Canotilho, em alusão a dispositivo
z: “A C
çã
R ú
ã
quaisquer dúvidas sobre a indispensabilidade de uma base antropológica constitucionalmente
estruturante do Estado de direito (cfr. CRP, art. 1º: Portugal é uma República soberana baseada
h
)”. (Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina,
1996. p. 362).
14
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
157
proteger (ou regular) o patrimônio, se deve fazê-lo apenas e de acordo com o
q
:
”.16
Além de tudo, é inegável também que não se pode contrapor à ideia
globalizante, que se reflete tão facilmente no mundo dos contratos, apenas com
normas positivadas específicas, ou mesmo com princípios fundamentais de
direito privado. Com arrimo na lição de J. J. Gomes Canotilho, faz-se mister
seguir, como alicerce fundamental, os princípios políticos constitucionalmente
conformadores, como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana.17
Nesse contexto, é preciso, desde já, estabelecer o campo em que se
encontra a temática aqui desenvolvida. Ou seja, o princípio da dignidade da
h
“
”
q
inafastavelmente. O contratante, o julgador, o intérprete da norma de uma
forma geral deve levá-lo sempre em consideração como o balizamento interno, e
isso tem sido verificado, gradativamente na jurisprudência brasileira. De fato,
ã
“
”.
Na nova contratualidade, os contratantes, o magistrado – quando
chamado para resolução do conflito contratual –, o intérprete da norma enfim,
“
”
– a dos princípios sociais dos
contratos –, desde que já tenha respeitado o limite interno, qual seja o da
obediência à dignidade da pessoa humana.
Como se nota, o princípio da dignidade da pessoa humana é orientador
é
.P
G
T
“
escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República,
associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da
marginalização, e de redução das desigualdades sociais, justamente com a
previsão do parágrafo 2º do artigo 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer
direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos
CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da
personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil
brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p 33.
17 O professor da Universidade de Coimbra explica a noção dos princípios políticos
: “D
am-se por princípios
politicamente conformadores os princípios constitucionais que explicitam as valorações
políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções
políticas nucleares e se reflete a ideologia inspiradora
çã ”. (CANOTILHO J é
Joaquim Gomes, Direito constitucional, cit., p. 172).
16
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
158
í
„
h
‟
”.18
É
“
h
”q
grandes linhas, os delineamentos e características da nova contratualidade e
tem sido essencial na evolução dos precedentes judiciais no sentido que já vem
sendo trabalhado pela doutrina desde a Constituição de 1988.
Nesse sentido, importa ter presente ainda que a dignidade da pessoa
humana irradia suas diretrizes não só observando os elementos natos da pessoa,
como dito por Ingo Wolfgang Sarlet19. Não é, em igual sentido, um princípio
apenas da ordem jurídica, de vez que deve influenciar igualmente a ordem
política, social, econômica e cultural, agora nas palavras de José Afonso da
Silva. Para o professor paulista, é desse prisma que se tem a natureza de valor
supremo da dignidade da pessoa humana, que deve ser vista na base de toda a
vida nacional.20
Arrimado nessas lições, é possível compreender o ponto central deste
item, não só como contraponto aos efeitos da globalização sobre os contratos,
como se ressaltou, mas também para demonstrar que devemos estar
submetidos, no trato de matérias privadas, igualmente ao princípio da
dignidade da pessoa humana, como ficou evidenciado.
Para ratificar esse entendimento, não é demais considerar as palavras
G
T
q
: “J
çã
çõ s
jurídicas patrimoniais, ao revés, a dignidade da pessoa humana é o limite
interno capaz de definir com novas bases as funções sociais da propriedade e da
ô
”. E
h
q
q
TEPEDINO, Gustavo, Temas de direito civil, cit., p. 48. Na mesma linha de raciocínio,
F
R
M
q “h
-se perceber que os direitos humanos que
inspiraram o constituinte pátrio de 1988 também compõe-se como cláusula geral para tutela de
q
„
‟
„
‟
q
personalidade não pode ser vista, tão-somente, como capacidade de direitos e obrigações, mas,
é
q
”. (D
h
devedor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 39, p. 148, jul./set. 2001).
19 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 60.
20 J é A
S
é q
“
h
ã é
çã
constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência
ó
h
”. (Poder constituinte e poder popular: estudos
sobre a constituição. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 146-147).
18
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
159
q
q
humana
e
q
ao
: “(...) tais diretrizes [o autor se refere à pessoa
desenvolvimento
da
personalidade],
longe
de
apenas
estabelecerem parâmetros para o legislador ordinário e para os poderes
públicos, protegendo o indivíduo contra a ação do Estado, alcançam também a
atividade privada, informando as relações contratuais no âmbito da iniciativa
ô
.”21
Levando-se em conta a temática aqui considerada, com inegável sede
civil-constitucional, como se fez questão de frisar e explicar, faz-se necessário
parar para algumas reflexões.
Analisando o que se procurou consignar aqui, o princípio da dignidade
da pessoa deve ser observado em pelo menos duas vertentes. Primeiro, não se
pode olvidar que se está diante de um grande cenário, o globalizante, como
demonstrado, em meio ao qual as grandes empresas transnacionais aparecem,
impõem suas regras e criam, em seu favor, um verdadeiro poder de
çã
“
”
q
da globalização sobre os contratos. Nesse contexto, o princípio da dignidade da
pessoa humana deve ser visto como o verdadeiro contrapeso, de forma que o
legislador, o julgador ou qualquer pessoa envolvida na relação jurídica privada
deve nele se guiar como princípio máximo e capaz de evitar os descompassos
impostos por uma ideia, já comprovada, de mão única. Em sede contratual, no
nosso sentir, ninguém pode se sobrepor às diretrizes do princípio fundamental
da dignidade da pessoa humana.
Nesse prisma, vale ressaltar as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet,
quando
: “C
– no âmbito do que se poderia
designar de uma concepção minimalista (nuclear) da dignidade, não há como
deixar de citar a forma desenvolvida por Dürig, na Alemanha, para quem (com
fundamento direto e confesso na concepção kantiana) a dignidade da pessoa
humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o
indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma
O
q “(...)
e dos atos jurídicos, por força da cláusula geral de
tutela da personalidade, está condicionada à adequação aos valores constitucionais e à
z çã
z çã
h
” (TEPEDINO G
Temas de direito civil, cit., p. 52).
21
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
160
coisa – em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e
d
.”22
Essa análise é relevante não só para as relações que envolvem os
contratos meramente civis e de consumo – que por essência têm pessoas
naturais a eles vinculados – mas também aos contratos empresariais, tendo em
vista que por trás da empresa – especialmente as que têm característica
familiar, estão as pessoas como um dos elementos realizador do negócio, aliás,
da sua função social. Dessa sorte, na contratualidade contemporânea, esse
raciocínio não só pode como deve ser levado em conta na interpretação do
contrato de modo geral.
Dessa sorte, está autorizado o magistrado, por exemplo, diante de um
litígio contratual, seja de consumo ou empresarial, a intervir na contratação
para, revisá-la e mantê-la, de forma a fazer com que o princípio maior possa
efetivamente contrapor-se às imposições e aos reflexos maléficos que as
cláusulas contratuais possam gerar.
A segunda vertente veleja na direção de se considerar o princípio da
dignidade da pessoa humana como o balizamento incondicional na
interpretação contratual e na busca pelo seu equilíbrio23. É importante grifar
aqui que o centro nervoso dessa discussão releva não apenas os reflexos
produzidos pelos contratos que têm nascimento na onda globalizante, mas
também toda e qualquer contratação, vale dizer, civil pura, empresarial e de
consumo. Nesse sentido, todos os contratantes, exegetas, julgadores,
legisladores, necessariamente, como já dito, estão obrigados a seguir, como
balizamento estreito, primeiramente o princípio da dignidade da pessoa
h
.N
z
F
P
“
âmbito interno (à luz do direito constitucional ocidental), a dignidade da pessoa
SARLET, Ingo Wolfgang, Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade
da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, cit., p. 211.
23 I
W
S
q
“ ã
h
ntar, não pode ser
desconsiderado, qual seja, o de que a dignidade, ainda que não se a trate como o espelho no qual
todos veem o que desejam, inevitavelmente já esta sujeita a uma relativização (de resto comum a
todos os conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz, legislador,
administrador ou particular) sempre irá decidir qual o conteúdo da dignidade e se houve, ou
ã
çã
” (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988, cit., p. 126).
22
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
161
humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo,
assumin
.”24
Deve-se entender, por fim, que é a dignidade da pessoa humana que
tem permitido o equilíbrio do contrato, independentemente da relação
contratual que se esteja tratando.
Igualmente, vale considerar que o contrato, assim como qualquer
relação jurídica, seja pública ou privada, não pode ultrapassar os limites da
dignidade da pessoa humana. Esta deve servir de orientadora, não só na
elaboração, quanto na interpretação contratual. Deve ser vista, enfim, e como já
grifado por Gustavo Tepedino, como cláusula geral de tutela e promoção da
pessoa humana. Esta tem servido de orientadora na nomogênese legislativa,
historicamente falando, e nos precedentes judicias.
4.
Evolução
legislativa
e
jurisprudencial
e
a
adaptação
da
interpretação dos contratos à realidade civil constitucional: análise
de precedentes do Superior Tribunal de Justiça
Até aqui, a preocupação girou em torno da apresentação de dois
elementos
de
grande
influência
na
delimitação
da
contratualidade
contemporânea. Assim foi que se estudou o fenômeno globalizante como o
grande cenário em que se encontram inseridos os contratos e cujo principal ator
é o princípio da dignidade da pessoa humana que, a um só tempo, funciona
como contrapeso da globalização e como balizamento fundamental na
interpretação do contrato.
A influência do princípio da dignidade humana na seara privada dá-se
notadamente pela mudança de foco que sofreu o direito civil no Brasil, após o
ingresso de um conteúdo civil na Constituição. Cabe agora avançar,
demonstrando como a legislação que daí se seguiu acompanhou a trilha civilconstitucional e, principalmente, como influencia a contratação. É certo que,
antes da Constituição de 1988, já se encontravam normas que caminhavam na
direção esposada no texto constitucional. Entretanto, aqui, procurar-se-á focar
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. In:
LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das
normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 195.
24
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
162
em grandes linhas microssistemas posteriores à Constituição, engendrados a
partir da perspectiva civil-constitucional. Também aqui, ver-se-á, ainda que
rapidamente, que o Código Civil, apesar de arraigado em alguns pontos à
tradição civilista do Code Napoleón, também caminhou em direção semelhante,
principalmente em matéria contratual.
O legislador, nessa esteira civil-constitucional, através dos ditos
microssistemas legislativos, no que diz respeito ao contrato, esteve mais
preocupado, de acordo com a evolução legislativa observada, com a tutela da
parte mais fraca na relação contratual.
A lei de locações de imóveis urbanos é um desses exemplos típicos (Lei
n. 8.245/91). O legislador, com a finalidade de fomentar o mercado de locação
de imóveis urbanos e de proteger melhor o locatário, retirou do Código Civil o
regramento sobre o assunto, e o redirecionou para uma lei especial. O locatário
é considerado a parte fraca da relação locatícia. A busca pelo ponto de equilíbrio
no contrato de locação considera que há uma parte débil que precisa de normas
capazes de conduzi-la a uma situação de igualdade. Vale notar que o pano de
fundo da lei aqui mencionada é, de fato, e como frisado, a proteção de aspectos
habitacionais e de igualdade nas contratações, de sorte que obedece ao princípio
orientador da dignidade da pessoa humana.
A lei de locações urbanas não é o único nem o mais importante
microssistema contratual com fundamento civil-constitucional. Sem embargo,
esse título deve ser outorgado ao Código de Defesa do Consumidor que, melhor
do que qualquer outro, retrata a realidade legislativa dos primeiros anos do
impacto da globalização no Brasil e da absorção de uma cultura privada mais
voltada para a pessoa e mais preocupada com o entrelaçamento de institutos de
direito público e privado, se assim pudéssemos ainda dividir. Apesar de o
Código de Defesa do Consumidor tratar de diversas matérias, tais como
responsabilidade civil, publicidade, normas administrativas, penais, entre
outras, é também ali que se encontra o ponto de referência para a maior virada
de página que assistimos na história do direito contratual brasileiro, nas últimas
décadas: o regramento do contrato de consumo.
Diz-se isso porque foi a partir do Código de Defesa do Consumidor que,
embora leve em consideração apenas a tutela da parte débil da contratação (o
consumidor), começou-se a vislumbrar um novo horizonte contratual – uma
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
163
nova contratualidade – capaz de tirar o contrato do sufoco proporcionado pelas
normas liberais presentes no Código Civil de 1916, já não mais adequadas à
contratualidade que se seguiu nos últimos 20 anos, no Brasil.
Essa questão é de relevo especial e muito se discutiu sobre a
possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos
civis e empresariais acirrando o debate entre os que sustentam a tese finalista e
maximalista do conceito de consumidor. Apesar de sustentarmos que a
discussão perdeu força, pelo menos do ponto de vista principiológico, após a
entrada em vigor do Código Civil de 2002, no nosso sentir, não se pode deixar
de referenciar que vários julgados no Brasil seguiram a orientação de que o
Código de Defesa do Consumidor também se aplicaria a outras relações, que não
as meramente consumeristas, embora não seja essa a posição adotada pela 3ª
Turma de Julgamento do STJ, conforme se infere da análise do Agravo
Regimental no Recurso Especial n. 1.193.293/SP, julgado em 27.11.201225.
A rigor, foi a partir do Código de Defesa do Consumidor que se pode
discutir o real alcance da autonomia privada, relativizada e limitada pelos
princípios sociais. Igualmente, foi a partir dele que se falou em uma nova
contratualidade, que precisou ser revista.
Toda essa tendência é circundada pela observância do princípio
fundamental aqui já bastante referido, qual seja, o da dignidade da pessoa
humana. Vale dizer, foi a partir do microssistema consumerista que se passou a
sentir a influência do valor que tem a pessoa, frente às normas individualistas e
meramente patrimonialistas, da época anterior dos contratos. Leonardo Mattietto
Apesar de se necessitar fazer as ressalvas de natureza processual sobre prequestionamento de
matéria essencial ao recurso especial, é importante observar que o Código Civil abriu igual
possibilidade de revisão e interpretação mais favorável ao aderente, o que inclui os contratos de
franquia (artigos 423 e 424). Talvez por questões processuais, a 3ª Turma do STJ,
especialmente diante da reconhecida aplicação do viés civil-constitucional à interpretação dos
contratos por parte do relator,
çã
CDC: “P
C .
Agravo Regimental. Recurso Especial. Ação de Revisão de Contrato de Financiamento para
Aquisição de Franquia Cumulada Com Repetição De Indébito. Relação de Consumo.
Inexistência. 1 - Conforme entendimento firmado por esta Corte, o critério adotado para
determinação da relação de consumo é o finalista. Desse modo, para caracterizar-se como
consumidora, a parte deve ser destinatária final econômica do bem ou serviço adquirido. 2.- No
caso dos autos, em que se discute a validade das cláusulas de dois contratos de financiamento
em moeda estrangeira visando viabilizar a franquia para exploração de Restaurante "Mc
Donald's", o primeiro no valor de US$ 368.000,00 (trezentos e sessenta e oito mil dólares) e o
segundo de US$ 87.570,00 (oitenta e sete mil, quinhentos e setenta dólares), não há como se
reconhecer a existência de relação de consumo, uma vez que os empréstimos tomados tiveram o
propósito de fomento da atividade empresarial exercida pelo recorrente, não havendo, pois,
çã
”.
25
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
164
z
ã
z
q
“
çã
individualista e voluntarista, cede lugar a um novo modelo deste instituto
jurídico, voltado a obsequiar os valores e princípios constitucionais de dignidade
h
”.26
Pode-se dizer, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor aparece
como um dos microssistemas que mais facilmente evidenciam a influência
constitucional a partir da tutela da pessoa humana. Como observa Eduardo
C
B
B
ú
“é
q
ç
‟ –
ú
L
. 8º; „
ú
ç ‟–
. 10; „ ã
õ
. 8.078/90 („ ú
ç
ç ‟ – art. 9º; „
ç ‟ § 1º
. 12;
outras assemelhadas). Mas, não é sem menos que estas expressões circulam
com facilidade no interior dos artigos, incisos e alíneas, ou ainda encabeçando
títulos e capítulos da Lei, isto porque se trata de âmbito em que a pessoa pode
sofrer atentados de inúmeras naturezas a direitos da personalidade, uma vez
çã
”.27 O levantamento dos dispositivos realizado
por Eduardo Carlos Bianca Bittar desbrava os inúmeros exemplos da influência
civil-constitucional do Código de Defesa do Consumidor.
Sem igual intensidade, mas também preocupado com esse mesmo viés,
o Código Civil de 2002 introduziu de modo claro através do capítulo que se
passou
h
“
”(
421
424)
í
sociais, que fizeram com que se sedimentasse a ideia de que as relações
contratuais civis e empresariais deveriam ter a mesma linha de análise das
relações contratuais consumeristas, com as suas devidas adaptações e
ponderações, especialmente quanto à autonomia privada.
Visto isso, há de se ter presente que a atividade legislativa, conforme
estudado, vem se consolidando na linha de raciocínio da tutela da dignidade da
pessoa humana. A legislação infraconstitucional, não só a que se refere à
O
z
q “
da ampla proteção que, a partir da Constituição, a ordem jurídica confere à pessoa, não pode ser
entendido apenas como estrutura repressiva ou ressarcitória, mas como um instrumento
funcionalizado à tutela da pessoa humana, a serviço do valor constitucionalmente definido de
çã
h
”.
(MATTIETTO, Leonardo. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In:
TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000. 182).
27 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Direitos do consumidor e direitos da personalidade: limites,
intersecções, relações. Revista de direito do consumidor, n. 37, p. 200, jan./mar. 2000.
26
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
165
matéria contratual, mas também a outras áreas, vem buscando delimitar a
atuação, conforme o princípio orientador. Além disso, não se pode perder de
vista que a legislação brasileira das últimas três décadas tem dado margem a
interpretações mais abertas, capazes de fazê-la cumprir com a outra função do
princípio da dignidade da pessoa humana, qual seja, funcionar como
contraponto do fenômeno globalizante.
Aliás, sobre o assunto, e já enveredando pela análise de precedentes do
STJ, há um julgado do STJ que nos parece paradigma, da lavra do Ministro
Sálvio de Figueiredo Teixeira, que traduz, na seara consumerista, o que o tema
aqui colocado pode representar, do ponto de vista prático. O Superior Tribunal
de Justiça determinou que a Panasonic, no Brasil, trocasse produto defeituoso,
da mesma marca, adquirido pelo consumidor no exterior, sob a argumentação
de que se a economia é globalizada, então não há mais fronteiras rígidas, o que
estimula e favorece a livre concorrência, de forma que a lei de proteção ao
consumidor deve ganhar maior expressão em sua exegese, na busca do
equilíbrio que deve reger as relações jurídicas.28
Quando se parte para a análise do entrelaçamento entre o princípio da
dignidade da pessoa humana e questões de natureza contratual, estritamente, o
Superior Tribunal de Justiça tem um precedente que merece destaque. Com
efeito, no Recurso Especial n. 1.025.665/RJ, julgado em 09 de abril de 2010,
Vale conferir a ementa do julgado comentado, para se ter presente o alcance daquilo que foi
sustentado desde as primeiras linhas d
:E
: “D
.F
adquirida no exterior. Defeito da mercadoria. Responsabilidade da empresa nacional da mesma
marca (Panasonic). Economia globalizada. Propaganda. Proteção ao consumidor. Peculiaridades
da espécie. Situações a ponderar nos casos concretos. Nulidade do acórdão estadual rejeitada,
porque suficientemente fundamentado. Recurso conhecido e provido no mérito, por maioria. I Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre
concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão
em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se,
inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis,
sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas,
multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo
tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País; II - O
mercado consumidor, não há como negar, vê- h
„
‟
e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de
procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com
relevo, a respeitabilidade da marca; III - Se empresas nacionais se beneficiam de marcas
mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos
que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências
ó
”. (TEIXEIRA S
F
. A
proteção ao consumidor no sistema jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo, n. 43, p. 78, jul./set. 2002).
28
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
166
ficou ressalvado que a jurisprudência do STJ se alinha à ideia de que o mero
inadimplemento contratual não ocasiona danos morais, mas esse entendimento,
M . N
y A
h
q
“
excepcionado nas hipóteses em que da própria descrição das circunstâncias que
perfazem o ilícito material é possível extrair consequências bastante sérias de
h
ó
q
ã
”.
Para fundamentar a ressalva, a ministra relatora fez consignar no
julgado o fato da recorrente ter celebrado com a recorrida um contrato de
compra e venda de um kit de casa de madeira, cujo valor acordado fora pago a
.A
q
“
ó
data prevista para a entrega da casa, a recorrente foi informada, por terceiros,
q
”. S
ó ã
“
da recorrida violou, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana, pois
o direito de moradia, entre outros direitos sociais, visa à promoção de cada um
dos componentes do Estado, com o insigne propósito instrumental de torná-los
aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade
h
”29.
Por sua vez, na análise de julgados que se voltam aos contratos que não
são estritamente consumeristas, como já vimos em outro precedente que
discutiu um contrato de franquia, a questão ainda merece melhor evolução,
embora o Superior Tribunal de Justiça já tenha sinalizado na direção de se
admitir
uma
interpretação
conforme
a
vulnerabilidade
da
parte,
independentemente da relação ser ou não de consumo, quando aquela for
marcante.
De fato, no Recurso Especial n. 1.299.422/MA, julgado em 06 de agosto
de 2013, cujo voto também é da lavra da Min. Nancy Andrighi, vê-se essa
tendência da 3ª Tur
STJ. O
: “D
Processual Civil. Recurso Especial. Exceção de Incompetência. Ação de
Reparação de Danos. Contrato de Concessão Comercial por Adesão. Cláusula de
Eleição de Foro. Validade. 1. A cláusula que estipula a eleição de foro em
A
çã
F
T
z
proteção da pessoa humana no contrato, pode ser citada a tendência de
possibilidade de reparação por danos morais em dec
E
411
“V J
D
C ”
Flávio. Direito Civil – Teoria geral dos contratos e contratos em espécie.
GEN: 2014, p. 57).
29
: “C
z
reconhecimento da
”. E
CJF.” (TARTUCE
São Paulo: Método
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
167
contrato de adesão é válida, salvo se demonstrada a hipossuficiência ou a
inviabilização do acesso ao Poder Judiciário. 2. A superioridade do porte
empresarial de uma das empresas contratantes não gera, por si só, a
hipossuficiência da outra parte, em especial, nos contratos de concessão
empresarial. 3. As pessoas jurídicas litigantes são suficientemente capazes, sob
o enfoque financeiro, jurídico e técnico, para demandarem em comarca que,
voluntariamente, contrataram. 4. Recurso especial pr
A
”.
“
z çã
P
h
J
”
-nos que dá o tom da
tendência atual de interpretação do contrato. Realmente, resta claro que o fato
de se estar diant
“
ã
”
ã
inviabilizaria a decretação da nulidade da cláusula de eleição de foro, sobretudo
quando se esteja diante de um contrato adesivo.
Ainda na seara dos contratos empresariais, a 3ª Turma do STJ também
ã
“pacta sunt servanda”
em matéria de contrato empresarial, conforme se infere do Recurso Especial n.
1.158.815/RJ, julgado em 07 de fevereiro de 2012.
O
ã
“
ntrato de prestação
ç ”
cláusula, tendo em vista as circunstâncias fáticas de sua formação, constante
nos relatórios analisados. Na ementa do acórdão, da lavra do Min. Paulo de
Tarso Sanseverino, encontra-
: “R
E
. D
Empresarial. Contrato de Prestação de Serviços. Expansão de Shopping Center.
Revisão
do
Contrato.
Quantificação
dos
Prêmios
de
Produtividade
Considerando a Situação dos Fatores de Cálculo em Época Diversa da Pactuada.
Inadmissibilidade. Concreção do Princípio da Autonomia Privada. Necessidade
de Respeito aos Princípios da Obrigatoriedade ("Pacta Sunt Servanda") e da
R
Co
C
L
(„Inter Alios Acta‟). Manutenção Das Cláusulas
P
”.
Houve no julgamento do precedente supra citado, um voto-vista que
caminha na linha de raciocínio disposta nestas linhas que, a rigor, não é
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
168
absoluta30, e não se poderia aplicar ao caso julgado, conforme a análise do fato
ali disposto. Entretanto, mesmo assim, é importante a análise da linha central
de raciocínio do voto-vista. O Min. Massami Uieda, autor do voto vencido,
: “P
q
çã
princípio do ´pacta sunt servanda´, também não assiste razão à recorrente CEI.
Na verdade, não se olvida que a relativização do princípio do "pacta sunt
servanda" – informado pelos princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual –,
com a consequente possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, impõe que
se reconheça abusividade de cláusulas que impliquem em desequilíbrio entre as
partes, sem, entretanto, afastar o princípio da autonomia da vontade, dentro de
uma lógica razoável sobre o mercado, ao tempo, ao modo e ao espaço da
contratação. Em rega, pois, há que se respeitar o que for livremente avençado no
contrato, cabendo a intervenção judicial para revisão de suas cláusulas somente
em situações excepcionais, legalmente prevista, tal como nas relações de
consumo. Da análise dos autos, contudo, observa-se que, embora não haja
efetivamente relação de consumo entre as partes, faz-se necessária a
intervenção do Judiciário no contrato de que cuidam os autos. Na espécie, vejase que, no contrato de prestação de serviços firmado pelas partes, os parâmetros
relativos ao pagamento da parte variável - consistente nos prêmios de
produtividade -, embora livremente ajustados no momento da celebração do
acordo, ocasionaram, de fato, um flagrante desequilíbrio no decorrer da
execução do contrato, uma vez que a base de cálculo, que servia pra
quantificação de valores dos prêmios de produtividade, não se concretizou de
acordo com o inicialmente previsto, seja porque as locações foram pactuadas em
valores superiores aos de mercado, seja em razão do alto grau de inadimplência
”.
Embora, no caso, a tese do voto-vista tenha ficado vencida é importante
tirar como lição que a contratualidade, atualmente, conforme aqui já explanado,
tem permitido ao STJ discussões nesse sentido, para além dos contratos de
consumo. Minimamente, pode-se dizer que o Tribunal tende a avançar nessa
Sobre a questão relacionada à ponderação de níveis de intervenção estatal nos contratos civis,
empresariais e de consumo, cf., BRITO, Rodrigo Toscano de. Equilíbrio e dirigismo contratual e
E
. 21
„I J
D
C
‟
CJF. I . Atualidades Jurídicas. Coord.
DINIZ, Maria Helena. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 213-231.
30
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
169
linha, embora enfrente entraves naturais de impossibilidade de análise fática e
de prova, que, sem embargo, auxiliaria na aplicação do viés aqui estudado.
A análise, ainda que rápida, da evolução legislativa e dos julgados aqui
colacionados, chamam a atenção para um ponto: há uma preocupação com a
tutela da parte mais fraca na relação jurídica, seja ou não de consumo, que é
realmente um elemento marcante da nova contratualidade, em face da
influência e constatação, na construção jurisprudencial, dos dois grandes
elementos que compõem o cenário da contratualidade, conforme aqui estudado.
5. Notas conclusivas
A globalização, nos seus primeiros passos, fez com que surgisse uma
legislação protetiva do consumidor, realçando noções relevantes, como a da
solidariedade social, o valor da livre iniciativa e um real sentido da dignidade da
pessoa humana.
Agora, a teoria dos contratos conta com intervencionismos estatais mais
abrangentes, através da consolidação de normas de natureza principiológicas,
como se reverbera da jurisprudência brasileira, especialmente para as questões
relacionadas aos contratos consumeristas. A jurisprudência do STJ, diante de
uma nova contratualidade, passa, aos poucos, a se dedicar, não só a realidade
dos contratos consumeristas, mas do contrato como um todo, em face da
influência da própria noção de globalização, que funciona, conforme
demonstrado, como palco que propicia essa mudança de visualização.
Considerou-se ao longo deste artigo que o contrato, assim como
qualquer relação jurídica, seja pública ou privada, não pode ultrapassar os
limites da dignidade da pessoa humana, como aliás, já se mostra como tema
consolidado na doutrina brasileira. A dignidade humana tem servido de
orientadora, não só na elaboração, quanto na interpretação contratual, numa
jurisprudência protetiva da parte mais vulnerável na contratação, em sentido
amplo.
Diante da análise dos precedentes julgados pelo Superior Tribunal de
Justiça, vê-se que o Tribunal tem discutido e avançado em questões contratuais
à luz do direito civil-constitucional, embora já fosse possível ter dado um passo
mais adiante, em vista das regras presentes no Código Civil, quando se leva em
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
170
conta os contratos civis puros e empresariais. Essa sensação de que o avanço já
poderia ter sido maior, deve ser seguida da ressalva dos limites de direito
processual a que estão submetidas as partes quanto às questões atinentes ao
prequestionamento de matéria essencial para que seja analisado o recurso
especial. Essa questão sobressaltou-se, inclusive, na análise de precedente que
envolvia contrato de franquia, por exemplo, tendo em vista que a discussão, no
caso concreto, dizia respeito à aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
que de fato não se aplica, quando a questão poderia ter sido discutida pela parte
interessada à luz de regras postas e de viés protetivo do aderente em contrato
não consumerista, como acontece com a franquia.
Também se verificou, diante da análise dos precedentes, que está
aberta, no STJ, no sentido de poder ser aplicada, teses que protejam a parte
mais fraca na relação contratual, ainda que não seja de consumo e que tenha
natureza adesiva, como se viu na análise do julgado que teve por objeto um
contrato de concessão comercial de adesão.
Por último, os precedentes demonstram que o STJ tem considerado a
aplicação de uma interpretação constitucionalizada aos contratos, mas sem
olvidar, quando for o caso, o prestígio da autonomia privada, que deve conviver
com os princípios sociais dos contratos que surgiram em meio a esse grande
cenário globalizado e de consideração à dignidade da pessoa humana.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
171
SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Estrangeira
L’OPACO PROFILO DEL RISARCIMENTO CIVILISITICO NELLA
COMPLESSA DISCIPLINA AMBIENTALE
G
SOMMARIO: 1. L‟
z
:
‟
z
V
31
– 2. L
– 3. P
– 4. A
– 5. L‟
: ‟
'
– 6. I
.
1. L’ambiente: il contesto sovranazionale
L‟
z
h
‟
h
z
hé
z
32.
Professor ordinário de Direito Privado da Università Politecnica delle Marche e professor da
zz z
D
‟U
C
(I
).
32 S. NESPOR (
) Rapporto mondiale sul diritto dell‟ambiente, A World Survey of
Environmental Law M
1996
.G
h
;
‟
M. S. GIANNINI
Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici,
Riv. trim. dir. pubbl., 1973 . 15 .; M.
ARENA L‟Ambiente territorio come bene oggetto di tutela giuridica e la sua proiezione
costituzionale,
Il Foro napoletano, 1981 . 241 .; M. BELLO Principi fondamentali della
tutela dell‟ambiente,
Nuova rass., 1989 . 2193 .; E. CAPACCIOLI - D. DAL PIAZ
Ambiente (tutela dell‟) Parte generale e diritto amministrativo
Noviss. Dig. It. App.
T
1980; M. CECCHETTI Rilevanza costituzionale dell‟ambiente e argomentazioni della
Corte
Riv. giur. ambiente 1994 . 252.; M. CECCHETTI Principi costituzionali per la
tutela dell‟ambiente, M
2000; P. M. CHITI Ambiente e „Costituzione‟ europea: alcuni
nodi problematici,
Riv. it. dir. pub. com. 1998 . 1423 .; G. COCCO Nuovi principi ed
attuazione della tutela ambientale tra diritto comunitario e diritto interno,
S. G
M.
C h
A. A
(
) Ambiente e diritto,
. I F
z 1999
. 147 .; G.
COCCO - A. MARZANATI – R. PUPILELLA – A. RUSSO Ambiente,
M. P. Ch – G. G
Trattato di diritto amministrativo europeo, M
1997; G. CORDINI Principi costituzionali
in tema di ambiente e giurisprudenza della Corte Costituzionale italiana, . . 611 .; S. DE
31
S
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
172
V
‟
z
h
q
. A
z
z
;
ò
zz
z
h
z
z
A
è
33.
“
”
‟
h
z
h
h
‟
34;
‟
35
‟
‟
z
‟ z
36
LAURENTIS L‟evoluzione della disciplina prevista in tema di paesaggio tra modelli di tutela
di fonte costituzionale e onnicomprensività della nozione di ambiente, Riv. giur. edil. 2010
. 756 .; P. DELL‟ANNO La tutela dell‟ambiente come „materia‟ e come valore costituzionale
di solidarietà e di elevata protezione, in Ambiente e sviluppo, 2009, p. 585 ss.; R. FERRARA
La tutela dell‟ambiente fra Stato e regioni: una storia infinita, in Foro it., 2003, I, c. 692 ss.;
I .
Ambiente (dir. amm.),
S. P
(
) Il diritto. Enciclopedia giuridica del
«Sole- 24 Ore»,
.I M
2007; F. FRACCHIA Sulla configurazione giuridica unitaria
dell‟ambiente, 2007 . 187 .; L. FRANCARIO Danni ambientali e tutela civile, N
1990;
M. FRANZONI Il danno all‟ambiente,
Contratto e impresa, 1992 . 1015 .; S. GRASSI
L‟ambiente come problema istituzionale
Lo Stato delle istituzioni. Problemi e prospettive,
M
1994; E. LECCESE Danno all‟ambiente e danno alla persona, M
2011 . 30 .;
P. LOMBARDI I profili giuridici della nozione di ambiente: aspetti problematici,
Foro
amm. 2002 . 764 .; P. MADDALENA Il diritto all‟ambiente ed i diritti dell‟ambiente nella
costruzione della teoria del risarcimento del danno pubblico ambientale,
Riv. giur.
ambiente, 1990 . 469 .; P. MANTINI Per una nozione costituzionalmente rilevante di
ambiente, Riv. giur. ambiente, 2006 . 207 .; M. PATRONO I diritti dell‟uomo nel paese
d‟Europa. Conquiste e nuove minacce nel paesaggio da un millennio all‟altro, P
2000; S.
PATTI La tutela civile dell‟ambiente, Padova, 1979; G. TORREGROSSA- A. CLARIZIA (
) Tutela del paesaggio e vincoli sulla proprietà nella recente L. 8 agosto 1985, n. 431, R
1986.
33 LOMBARDI I profili giuridici della nozione di ambiente: aspetti problematici
.; R.
MONTANARO L‟ambiente e i nuovi istituti di partecipazione A. C
F. F
h (
) Procedimento amministrativo e partecipazione. Problemi, prospettive ed esperienze,
M
2002 . 107 .
34 P. SOAVE Lo sviluppo sostenibile nella prospettiva dell‟Agenda 21. Il programma d‟azione
lanciato dalla Conferenza di Rio de Janeiro, Riv. giur. ambiente 1993; M. JURI The concept
of environmental security and sustainable development - il concetto di sicurezza ambientale e
di sviluppo sostenibile,
La comunità internazionale, 1997 . 438 .; M. ARCARI Tutela
dell‟ambiente e diritti dell‟uomo: il caso Lopez Ostra contro Spagna e la prassi di Commissioni
e Corte Europea dei diritti dell‟uomo, Riv. giur. ambiente 1996 . 745 .
35 S. BATTINI Il sistema istituzionale internazionale dalla frammentazione alla connessione,
Riv. dir. pubb. comun., 2002 . 969 .; E. DE SOMBRE Riduzione della fascia dell‟ozono:
l‟esperienza del protocollo di Montreal, Riv. giur. ambiente 2001 581 .
36 F. RAMMELLA Effetto serra: siamo prudenti, stiamo a guardare,
Riv. dir. fin. e sc. fin.
2004 . 196 .; S. NESPOR Oltre Kyoto: il presente e il futuro degli accordi sul contenimento
del cambiamento climatico, 2004 . 1 .
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
173
z
-
:
q
37
‟
h
N z
h
.
F
‟è
38
‟
39
h
C
z
1948
h
z
z
ù
V
40.
q
è
ù
L
z
z‟
41.
I
T. SCOVAZZI Il riscaldamento atmosferico e gli altri rischi ambientali globali, Riv. giur.
ambiente 1988 . 707 .
38 Si vedano al riguardo i rilievi di M. S. GIANNINI, << Ambiente>>: Saggio sui diversi suoi
aspetti giuridici, cit., p. 16, il quale indica nella legge 26 aprile 1964, n. 310 – “C
z
una Com
‟
zz z
h
” ( . . C
F
h ) - il primo fatto di
rilievo normativo. Il nostro sistema, prima della legge 349/1986 istitutiva del Ministero
‟
‟
z
q
. ‟ . 3.3
T
‟U
E
(ex art. 2 del Trattato istitutivo della Comunità europea) che attribuisce
C
z
‟
;
‟
z
349/1986, è stata istituzionalizzata la funzione di assicurare la “
z
z
il recupero delle condizioni ambientali conformi agli interessi fondamentali della collettività ed
alla qualità della vita, nonché la conservazione e la valorizzazione del patrimonio naturale
z
' q
”. N 2006
‟
h
l‟art. 2 del codice ambientale, “come obiettivo primario della
legislazione in materia, “la promozione dei livelli di qualità della vita umana, da realizzare
attraverso la salvaguardia ed il miglioramento delle condizioni dell‟ambiente e l‟utilizzaione
accorta e razionale delle risorse naturali”. Sul tema, v. anche, V. GUARINO Tutela
dell‟incolumità da inquinamento, aspetti emergenti dell‟interesse sociale nell‟adozione dei
provvedimenti straordinari,
Nuova rass., 1978 . 1942 .; G. DE ROSA Il problema
ecologico in Italia, La Civiltà cattolica, 1988.
39 S. GRASSI Costituzioni e tutela dell‟ambiente,
S. S
zz (
) Costituzione,
razionalità, ambiente, T
1994
. 389 .; G. CORDINI Il diritto ambientale comparato,
G. CORDINI - P. FOIS - S. MARCHISIO Diritto ambientale, Profili internazionali europei e
comparati, G
h
T
2005 . 95 .; R. FERRARA La protezione dell‟ambiente
nella Repubblica Federale Tedesca: tendenze evolutive, Foro it. 1987 V . 22 .
40 A . 117
18
2001 . 3.
41 V. CAPUZZA La tutela dell‟ambiente nell‟ordinamento giuridico internazionale, comunitario
e interno. Origini, principi, funzioni e applicazioni,
Riv. amm., 2009 . 5 .; G. CORDINI
Rilevanza dell‟interesse all‟ambiente, effettività degli obblighi comunitari e inadempimenti
degli Stati nel recepimento delle direttive europee,
Dir. pubbl. comp. ed europeo, 1999 .
1583 .; E. FINAZZER Responsabilità degli Stati membri nei confronti dei cittadini per
inadempimento di Direttive ambientali. Gli orientamenti della Corte di Giustizia., Resp. civ.
e prev., 1999
. 705 .; V. GASPARINI CASARI L‟attuazione in Italia delle direttive
comunitarie in materia ambientale. Introduzione al tema,
Dir. econ. 1993 . 9 .; M.
GASLINI Sul concetto di tutela dell‟ambiente come principio generale dell‟ordinamento
comunitario europeo,
Dir. econ., 1993 . 241 .; E. MELE L‟ambiente, le direttive
comunitarie e l‟ordinamento interno, Foro amm., 1989 . 1655 .
37
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
174
CEE ‟
z
;
q
42
P
Az
43
h
‟
44
q
h
‟
45.
q
F
‟ q
zz
z
z
‟
z
E
S
48
h
h
q
M
47.
46
Q
z
.I
z
q
z
ì
‟
‟
zz
T
CEE
h
‟A
‟
‟
U
100A49
P. FOIS Il diritto ambientale nell‟ordinamento dell‟Unione Europea
G. CORDINI - P.
FOIS - S. MARCHISIO Diritto ambientale, Profili internazionali europei e comparati,
G
h
T
2005 .51 .; O. PORCHIA Le competenze dell‟Unione Europea in
materia ambientale R. F
(
) La tutela dell‟ambiente, T
2006 37 .
43 G. CORDINI Il terzo programma d‟azione della comunità europea in materia di ambiente,
Foro pad., 1983 . 247 .; G. AMATO - E. GRIGLIO - V. MARROCCOLI - S. NAPOLITANO G. VARANI - E. VARANO Il percorso giuridico per la creazione di una comunità sostenibile,
federalismi.it, 2011 . 35 .
44 L P
V
P
1972
P
P
Az
‟
(1973) h
“
”
h
z
z
‟
z
. I P
z
‟
z
P
D h
z
S
1972.
Q
‟AUE
P
‟Az
1973
h
‟
z
h
q
h
;
79/409/CEE
z
;
85/337/CEE
z
‟
( . .
VIA);
75/442/CEE
.
45 S
.
. 114 T.F.U.E.
46 M. CASTELLANETA Lo Stato deve applicare le direttive a tutela dell‟uomo e dell‟ambiente,
Guida al diritto, 2007 . 121 .; L. BARONI Ambiente (rifiuti),
Riv. dir. pubbl. comun.,
2012 1183 .
47 G. CORDINI - P. FOIS - S. MARCHISIO Diritto ambientale, Profili internazionali europei e
comparati, G
h
T
2005; G. STROZZI Diritto dell‟unione europea. Parte
istituzionale: dal trattato di Roma al trattato di Nizza, T
2001; S. CASSESE (
)
Diritto Ambientale comunitario, M
1995; O. PORCHIA Le competenze dell‟Unione
Europea in materia ambientale, R. F
(
) La tutela dell‟ambiente, T
2006
. 37 .
48 L
‟AUE
1986. L‟
z
‟ . 100A TCE (
. 114
42
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
175
‟
T
M
h
130R-T50;
h
è
z
‟
‟
CE51 .
C
L
52
è
C
‟
53
P
. 194 T.F.U.E
q
‟
del ‟
z
‟U
‟
z
z
‟
q
z
solidarietà tra gli Stati Membri54.
N
2
‟
T
P
è
P
h
q
‟
56
‟
‟
.
. 6
T
55
A
P
è
TFUE
)
T
VII
‟
(
.
130R 130S 130T
T
XX
. 191-193 TFUE). T
z
‟
è
C
.
49 C
‟ .100 A
CE
ì
‟ . 18
‟
h
‟ . 114 T.F.U.E
z
.
50 D q
C
h
q
"
q
'
z
'
zz z
z
"
z
' z
zz
h
z
.
51 C
T
M
h
7
1992
‟ . 2 T.C.E ‟
h
‟
;
zz
z
q
z
‟ z
‟
q
.
52 N
h
13
2007
1°
2009.
53 S
.
. 294 T.F.U.E
h
P
h
‟
C
.
54 I
z
z
z
h
q
z
z
z
.
55 A. LÜTTEKEN - K. HAGEDORN Concepts and Issues of Sustainability in Countries in
Transition. An Institutional Concept of Sustainability as a Basis for the Network, H
U
y
B
(
‟
zz :
h ://www. . /
/SEUR/
/
.h ); F. SALVIA Ambiente e sviluppo
sostenibile,
Riv. giur. ambiente 1998
. 235
.; P. FOIS Il diritto ambientale
nell‟ordinamento dell‟Unione Europea
.
56 C
A
2
1997
1°
1999
‟U
z
‟
h
S
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
176
z
z
57
h
z
World Commission on Environment and Development58 h
‟
h
R
z
B
“
z
z
”59. L‟
h
è
h
h
è
q
q
h
. V
‟
z
60
summit
C
z
N z
h
U
(UNCED United Nations Conference on Environment and Development)61
V
I
62.
è
R
h
63;
‟
‟
.2
C
z
h
h
“
zz z
z
z
‟
”. S
.
h R
GARABELLO Le novità del trattato di Amsterdam in materia di politica ambientale
comunitaria, Riv. giur. ambiente 1999 151 .
57 F. FRACCHIA Sviluppo sostenibile e diritti delle generazioni future,
Riv. quadr. dir. amb,
2010 . 41 .; M. ALBERTON – M. MONTINI Le novità introdotte dal Trattato di Lisbona per
la tutela dell‟ambiente, Riv. giur. ambiente 2008 . 505 .; V. PEPE Lo sviluppo sostenibile
tra diritto comunitario e diritto interno, Riv. giur. ambiente 2002 . 209 .
58 Ci si riferisce alle riflessioni scaturite in occasione della Conferenza delle Nazioni Unite per
‟
(UNCED)
1987
C
ò ‟
la quale lo sviluppo è inestricabilmente collegato ad altri fattori di cui si deve tener conto nel
z
‟U
E
.
59 S
1987
C
'
(WCED) h
. I
(Rapporto Brundtland, Il nostro futuro comune, 1987, pubblicato con il titolo Il
futuro di noi tutti, Bompiani, 1988, con prefazione di G. Ruffolo)
G H
B
h
q
'
WCED
.
60 S
‟ q
z
h
z
h
q
h
“
‟
”.
61 L
C
z
N z
U
(UNCED U
N
C
E
D
) è
R
J
1992.
62 S
D h
z
R
‟A
21
D h
z
z
.
63 C
C
z
1993
z
1994.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
177
z
h
z
G
N z
U
z
64.
R
z
65
:
‟
66.
T
C
h
q
;
zz z
‟
;
z
z
z
z
‟
67.
G
'U
E
h
ì h
h
‟
‟
z
‟
z
z
A
h
‟OCSE
68.
z
z
z
S
q
zz z
z
E. CICIGOI – P. FABBRI Mercato delle emissioni e dell'effetto serra. Istituzioni ed imprese
protagoniste dello sviluppo sostenibile, B
2007.
65 C
C
z
J h
2002
zz
N z
U
z
189
195 S
‟ONU
S
O
zz z
h h
h
'
z
.I
D h
z
S
h
h
:
;
z
;
z
. E‟
P
z
h
V
T
q
'
.
66 E. ROZO ACUNA (
) Profili di diritto ambientale da Rio de Janeiro a Johannesburg.
Saggi di diritto internazionale, pubblico comparato, penale ed amministrativo, T
2004;
. ivi
S. MARCHISIO Il diritto internazionale ambientale da Rio a Johannesburg,
. 21 .
G. CORDINI Il diritto ambientale da Rio a Johannesburg,
. 101 .; C.
ROMANO La prima conferenza delle Parti della Convenzione quadro delle Nazioni Unite sul
cambiamento climatico, Da Rio a Kyoto via Berlino
Riv. giur. ambiente 1996 1 . 163 .
67 S
.
191 T.F.U.E
. 174 T.C.E.
z
.
68 L. KRAMER Manuale di diritto comunitario per l'ambiente, M
2002; G. STROZZI
Diritto dell'Unione Europea
.
64
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
178
z
q
z
zz
h
69.
S
ò
q
h
‟U
'
E
z
q
z
'
q
70
z
h
q
h
h
71.
A
h
C
‟
T
200972. L
E
S
M
h
‟U
‟
z
‟ . 191 T.F.U.E
‟U
.
70 Ci si riferisce alla norma adottata in seguito al recepimento della direttiva in materia di danno
ambientale 2004/35/CE. Sui profili evolutivi della direttiva, e per una sintesi delle più rilevanti
iniziative europee, dalla Convenzione di Lugano alla direttiva in materia di responsabilità per
‟
(Convenzione di Lugano sulla responsabilità civile per danni all‟ambiente
derivanti da attività pericolose, 21-22 giugno 1993, in Riv. giur. ambiente, 1994, pp.145-160;
Libro Verde sulla responsabilità per i danni causati all‟ambiente, COM(93) 47, GUCE, 29
maggio 1993, n. C 149/12; Libro Bianco sulla responsabilità per danni all‟ambiente,
COM(2000), 66 def., pp. 2-3; Proposta di direttiva del Parlamento europeo e del Consiglio
sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale
(COM(2002)17 def. 2002/0021[COD]), GUCE, 25 giugno 2002, n. C151E; Direttiva
2004/35/CE del Parlamento europeo e del Consiglio del 21 aprile 2004, sulla responsabilità
ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale, GUCE, L 143, 30
aprile 2004, pp. 56-75) v., B. POZZO, Verso una responsabilità civile per danni all‟ambiente in
Europa: il nuovo libro Bianco della Commissione delle Comunità europee, in Riv. giur.
ambiente” 2000 . 623 .; ID. La Proposta di nuova Direttiva sulla prevenzione e il
risarcimento del danno all‟ambiente, in Danno e resp., 2002, p. 11 ss.; ID., I problemi della
responsabilità per i danni causati dall‟inquinamento: profili di diritto comparato, in La nuova
responsabilità civile per il danno all‟ambiente, a cura di B. Pozzo, Giuffrè, Milano, 2002, p. 23
ss.; L. BUTTI, L‟ordinamento italiano e il principio „chi inquina paga‟, in Contratto e impresa,
1990, p. 561 ss.; F. M. PALOMBINO, Il significato del principio „chi inquina paga‟ nel diritto
internazionale, in Riv. giur. ambiente, 2003, p. 871 ss.; G. TUCCI, Tutela dell‟ambiente e diritto
alla salute nella prospettiva del diritto uniforme europeo, in Contratto e impresa Europa,
2003, p. 1141 e ss.; A. VENCHIARUTTI, Il Libro Bianco sulla responsabilità civile per danni
all‟ambiente, in La nuova responsabilità civile per il danno all‟ambiente, a cura di B. Pozzo,
Giuffrè, Milano, 2002, p. 77 ss.; C. VIVANI, Origini e linee evolutive del principio „chi inquina
paga‟ nell‟ordinamento comunitario, in Resp. civ. e prev., 1992, p. 752 ss.
71 G. RECCHIA La tutela dell‟ambiente in Italia: dai principi comunitari alle discipline
nazionali di settore
Diritto e gestione dell‟ambiente, 2001 . 29 .; G. STROZZI Diritto
dell‟unione europea
.
72 R. BIFULCO M. CARTABIA A. CELOTTO (
) L‟Europa dei diritti. Commento alla
Carta dei diritti fondamentali dell‟Unione Europea, B
2001.
69
E
E
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
179
73;
‟
. 37
standards q
q
è
74
.
2. La nascita del diritto costituzionale dell’ambiente
I
‟
C
z
q
; ‟
. 41 C
z
.
‟
'
h
75
h
76
‟
77.
D‟
C
ò
z
z
z
78
z
-
. 117
z
S
79-
h
P. MADDALENA L‟evoluzione del diritto e della politica per l‟ambiente nell‟Unione Europea.
Il problema dei diritti fondamentali,
Riv. amm. R. it., 2000; U. FANTIGROSSI Debole
sull‟ambiente il progetto di carta fondamentale dell‟Unione,
Riv. amm. R. it., 2000.
74 M. S. GIANNINI Difesa dell‟ambiente e del patrimonio naturale e culturale,
Riv. trim. dir.
pubbl., 1971 .1122 .; P. D‟AMELIO Ambiente (Tutela dell‟), V . II
Enc. Giur., R
1988 1 .; G. MORBIDELLI Il regime amministrativo speciale dell‟ambiente,
Scritti in
onore di Alberto Predieri M
1996
. 1121 .; G. RECCHIA La tutela dell‟ambiente in
Italia: dai principi comunitari alle discipline nazionali di settore, .
75 Cfr. Corte cost., 3 giugno 1998, n. 196, Giur. cost. 1998
q
‟
‟
“
‟
”.
76 F. SABATELLI Diritti economici e solidarietà ambientale. Spunti per una funzionalizzazione
delle disposizioni costituzionali sui rapporti economici a fini ambientali - Economics rights
and environmental solidarity. Ideas for the “functionalization” of constitutional provisions to
economic transactions for environmental purposes.
Dir. econ., 2013 . 211 .; C. SALVI
Libertà economiche, funzione sociale e diritti personali e sociali tra diritto europeo e diritti
nazionali - Economic freedom, personal and social rights and social scope between European
and state law, Eur. dir. priv., 2011 . 437 .
77 M. S. GIANNINI Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici,
.; G. MORBIDELLI Il
regime amministrativo speciale dell'ambiente
.
. 1121 .
78 C
C
z
18
2001 . 3
..
79 G. DE VERGOTTINI La ripartizione dei poteri in materia ambientale, tra comunità, Stato e
Regioni,
C. M
(
) L'ambiente e la sua protezione, M
1991
. 39 .; ID.
La tutela e la valorizzazione del patrimonio storico-artistico fra Unione Europea, Stato e
Regioni,
Riv. giur. urb., 1996. Per una sintesi del confronto sulla configurabilità
‟
“
”
“
”
V
C
z
.
P. DELL‟ANNO La tutela dell‟ambiente come „materia‟ e come valore costituzionale di
solidarietà e di elevata protezione, cit.; R. FERRARA, La tutela dell‟ambiente fra Stato e
regioni: una „storia infinita‟, cit.; M. OLIVETTI, Tutela dell‟ambiente in Costituzione: una
buona occasione da non perdere, in Guida dir., 2004, n. 34, p. 10; N. OLIVETTI RASON,
73
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
180
‟
z
z
C
80.
L‟
. 9 C
-
. h
-
z
z
81
q
(
z
)
z
ù
zz
Tutela dell‟ambiente: il giudice delle leggi rimane fedele a se stesso, in Foro it., 2003, I, c. 696
ss.; C. SARTORETTI, La tutela dell‟ambiente dopo la riforma del titolo V della seconda parte
della Costituzione: valore costituzionalmente protetto o materia in senso tecnico?, in Giur. it.,
2003, p. 417 ss.; Id., La „materia‟ e il „valore‟ ambiente al vaglio della Corte costituzionale: una
dicotomia davvero impossibile?, Giur. it., 2003, p. 1995 ss. La Corte costituzionale, con due
pronunce di fondamentale importanza perché alla base di tutto il filone giurisprudenziale
successivo (Corte cost., 26 luglio 2002, n. 407, in Giur. it., 2003, p. 417; Corte cost., 20
dicembre 2002, n. 536, in Giur. it. 2003 . 1995 .) h
“
”
‟
z
‟
z
h
ò h
z
‟
z
zionale del
‟ .117 2° .
.
.;
C
“l‟evoluzione
legislativa e la giurisprudenza costituzionale portano a escludere che possa identificarsi una
„materia‟ in senso tecnico, qualificabile come „tutela dell‟ambiente‟, dal momento che non
sembra configurabile come sfera di competenza statale rigorosamente circoscritta e
delimitata, giacché, al contrario, essa investe e si intreccia inestricabilmente con altri interessi
e competenze. In particolare, dalla giurisprudenza della Corte antecedente alla nuova
formulazione del titolo V della Costituzione è agevole ricavare una configurazione
dell‟ambiente come „valore‟ costituzionalmente protetto, che, in quanto tale, delinea una sorta
di materia „trasversale‟, in ordine alla quale si manifestano competenze diverse” (C
.
26 luglio 2002, n. 407, cit.). Nella successiva pronuncia (Corte cost., 20 dicembre 2002, n. 536,
..)
h
‟ . 117: “già prima della
riforma del titolo V della parte seconda della Costituzione, la protezione dell‟ambiente aveva
assunto una propria autonoma consistenza (…). La natura di valore trasversale, idoneo a
incidere anche su materie di competenza di altri enti nella forma degli standards minimi di
tutela, già ricavabile dagli artt. 9 e 32 della Costituzione, trova ora conferma nella previsione
contenuta nella lett. s, secondo comma, dell‟art. 117 della Costituzione, che affida allo Stato il
compito di garantire la tutela dell‟ambiente e dell‟ecosistema”. D
z
z
h ‟
è
“
”
ù h
“
”
(C
. 5
o 2006, n. 182, in
Giur. it., 2008, p. 41; Corte cost., 31 marzo 2006, n. 133, in Foro it., 2007, I, c. 1076; Corte cost.,
10 febbraio 2006, n. 49, in Urbanistica e app., 2006, p. 409; Corte cost., 31 maggio 2005, n.
214, in Foro it., 2006, I, c. 1990; Corte cost., 24 marzo 2005, n. 135, in Foro it., 2006, I, c. 1990;
Corte cost., 18 marzo 2005, n. 108, in Urbanistica e app., 2005, p. 535; Corte cost., 22 luglio
2004, n. 259, in Urbanistica e app., 2004, p. 1281; Corte cost., 28 giugno 2004, n. 196, in Riv.
giur. urbanistica, 2005, p. 41).
80 A
. 2 9 32
C
z
z
‟
q
C
F
. S .
E.
GIARDINI La nozione giuridica di ambiente e la sua configurazione nella disciplina
costituzionale, Arch. giur. CCXXV, 2005. . 199 .
81 F. MERUSI Art. 9,
G. B
(
) Commentario della Costituzione. Principi
fondamentali, B
– R
1975; S. LABRIOLA Dal paesaggio all‟ambiente un caso di
interpretazione evolutiva della norma costituzionale
Dir. e soc. 1987 113-129. S .
h
C
C . . 151/1986; C
C . . 417/1995 C
C . . 49/2006.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
181
82
z
.L
è
h
z
z
A
h
z
‟
. 32 C
h
.
z
h
ì
‟
83.
q
z
z
84
‟
z
“
z
h
h
q
‟
” . S. PATTI Ambiente, in N. Irti, (a cura di ),
Dizionario di diritto privato, Milano 1981, p. 32. Per la nozione di paesaggio come forma
‟
‟
cfr: A. PREDIERI, voce Paesaggio, in Enc. dir., XXXI, Milano,
1981 . 503 .
q
: “
...
‟
‟
q
”( . 507);
ù
recentemente, v. M. FRANZONI, Il danno all‟ambiente, cit., p. 1017, in senso contrario, invece,
G. TORREGROSSA, Profili della tutela dell‟ambiente, in Riv. trim. dir. proc. civ., 1980, p.1441;
si segnala al riguardo la pronuncia della Corte cost., 28 giugno 2004, n. 196, in Riv. giur.
urbanistica 2005 . 41
h “non v'è dubbio che gli interessi coinvolti nel
z
q
„
'
‟
q
q
C
„
z
‟( .
z . 151
1986 . 359
. 94
1985)”. I
v.,ancora, P. MANTINI Per una nozione costituzionalmente rilevante di ambiente
. . 207
.; P. CARPENTIERI La nozione giuridica di paesaggio
Riv. trim. dir. pubb., 2004 . 363
.; F. S. MARINI Profili costituzionali della tutela dei beni culturali,
Nuova rass. leg.
dottrina giur., 1999 . 633 .; B. CARAVITA Profili costituzionali della tutela dell‟ambiente in
Italia,
Pol. dir., 1989
. 569
.; A. PREDIERI Urbanistica, tutela del paesaggio,
espropriazione M
1969; A. M. SANDULLI La tutela del paesaggio nella Costituzione
G
è 1967 V . III . 893 .
83 Cfr. Corte cost., 27 giugno 1986, n. 151, in Foro it., 1986, I, c. 2689 ss. e Corte cost., 15
novembre 1998, n. 1029, in Cons. Stato, 1988, II, p.2031 e in Foro Amm., 1988, p. 2739 con nota
di
Barbagallo;
Riv.
giur.
ambiente
1989,
p.
330;
Riv. Amm. della Repubblica Italiana, 1989, p. 230,
è
z
q
zz
h
hé
‟ . 83
. P.R. . 616/ 77
q
‟
ù
‟
. In dottrina per un concetto
di am
“
h
h
” L.
BIGLIAZZI GERI, Divagazioni su tutela dell‟ambiente e uso della proprietà, in Riv. critica dir.
priv., 1987, p. 496 ss. Id., L‟art. 18 della legge 349/1986 in relazione all‟art. 2043 ss. c.c., in Il
danno ambientale con riferimento alla responsabilità civile, a cura di P. Perlingieri, Esi,
Napoli, 1991, p. 75 ss., p. 75 ss.; F. GIAMPIETRO, La valutazione del danno all‟ambiente: i
primi passi dell‟art. 18, legge 349/1986, in Foro amm., 1989, p. 2958; Id., Il danno all‟ambiente
innanzi alla Corte costituzionale, in Foro it., 1988 I, c. 698; P. TRIMARCHI, Istituzioni di
diritto privato G
è M
2007 . 115
q
è “
z
dello spazio in cui si svolge la vita di tutti, con le sue caratteristiche di salubrità, il suo equilibrio
”.
84 R. FERRARA, Salute (diritto alla), in Digesto pubbl., vol. XIII, Torino, 1997; M. LUCIANI, Il
diritto Costituzionale alla salute, in Dir. soc., 1980, pp. 769 ss.; B. CARAVITA, La disciplina
Costituzionale della salute, in Dir. soc., 1984, pp. 21 ss.; V. F. MASTROPAOLO, Il risarcimento
del danno alla salute, Jovene, Napoli, 1983.
82
S
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
182
85
z
z
q
86.
T
z
q
q
z
: Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, in Foro it., 1988, I, cc. 705-706 ss
è
q
z
habitat
q
‟
q
ò
; C
C . S.U. .
5172/1979
q
‟ . 32 C .
‟
‟
z
q
.N
h
‟
z
‟
zz
;
h “
z
z
” (C . S z. . 6
re 1979, n. 5172, cit., c.
2305)
‟
q
salute; appaiono significative al riguardo le riflessioni della dottrina (P. Perlingieri, Il diritto alla
salute quale diritto della personalità, in Rass. dir. civ., 1982, p. 1020 ss., che sottolinea come la
“ z
h
q
” ( . 1022);
è“
ubile da
quello del libero sviluppo della persona e si può atteggiare in forme diverse, assumendo
rilevanza e configurazioni diverse, secondo se inteso come diritto al servizio sanitario, alla
‟
‟
q
” ( . 1025). L‟
S z
‟
iter
giurisprudenziale che solo qualche mese prima aveva portato le stesse Sezioni Unite della
Cassazione (Cass., Sez. un., 9 marzo 1979, n. 1463, in Foro it., 1979, I, c. 939 ss.) a riconoscere in
‟
z
z
z
‟
“
h
‟
e
‟
h
(...) ò
z
q
collegato alla disponibilità esclusiva di un bene, la cui conservazione, nella sua attuale
potenzialità di recare utilità al soggetto, sia inscindibile dalla conservazione delle condizioni
”: C . S z.
. 9
z 1979 . 1463
. . 943. In dottrina, per lo stretto
collegamento tra ambiente e salute, v., oltre alla ricordata posizione di P. Perlingieri, v., anche,
A. CORASANITI, Interessi diffusi, in Dizionario del diritto privato, a cura di Natalino Irti, 1,
Diritto civile, Giuffrè, Milano, 1980, p. 442, per il quale la tutela ambientale è volta alla
z
“
z
‟
( q
) h
co
z
‟
q
è
z
‟
‟
biologico e psichico, sempre secondo le conoscenze (o le valutazioni) di un dato momento
”; R. TOMMASINI Danno ambientale e danno alla salute, in Il danno ambientale con
riferimento alla responsabilità civile, a cura di P. Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 139 ss.) per il
quale il concetto di ambiente comprende necessariamente la salute.
86 S
. C .
. . 5172/1979
Giur. it., 1980 I 1 . 859
h ‟ . 32 C .
‟
z
‟
.I
‟ . 32 ‟ . 2 C .
zz
h
‟
‟
h
z
ò
;
.
h S. GRASSI
Costituzione e tutela dell‟ambiente
. . 389 .; A. ALBAMONTE Il diritto all‟ambiente
salubre: tecniche di tutela,
Giust. civ., 1980 II . 479 .;
.
h G.
TORREGROSSA Profili di tutela dell‟ambiente, .
85
S
‟è ‟
.
‟
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
183
h
h
h
‟ z
z
‟
é
87.
3. Principi di diritto ambientale
U
z
89
z
88
h
q
h
z
è ‟
90
‟
‟
z
q
‟
z
q
ù
q
‟
q
‟
‟
z
Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., cc. 705-706.
C .
: C
C . 30 dicembre 1987, n. 641, cit., cc. 705-706
q
‟
h
q
ò
h
; Corte cost., 28 maggio 1987, n. 210, in Foro it., 1988, I, c. 329 ss; C
C . . 1029/1988; C
C
. 1031/1988; C
C . . 67/1992; C
C . . 318/1994. I
. M.S. GIANNINI Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici
. q
z
h
87
88
.
M. CECCHETTI Principi costituzionali per la tutela dell‟ambiente, . q
z
:
h
‟
(
‟
h
“ h
q
”);
‟
h
z
z
z
(
‟ z
z
hé
‟
z
);
z
‟
(
z
‟ z
ù
).
90 P
h
C
C
z
q
ò
z
‟
z
z
P
1
D h
z
R
A
. S .
V. S. GRASSI Principi costituzionali e comunitari per la
tutela dell'ambiente,
Scritti in onore di Alberto Predieri M
1996; P. DELL‟ANNO
Principi del diritto ambientale europeo e nazionale, M
2004 . 75 . L
z
‟ . 37
C
N zz
z
h
“
”
(‟
z
“
”
;
‟ . 6
T
‟
z
“
”
).
89
S
.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
184
‟
q
q
‟
ò h
I
q
‟
91.
‟
z
ì
z
è
h
‟ q
92.
A
h
‟
zz
;
è
z
h
93
z
94.
h
T
è
z
‟
(
q
.)
‟
95.
z
‟
S
h zz
C
q
S
ò
‟
96
è
h
h
h
‟
‟
91
92
S. GRASSI Costituzioni e tutela dell‟ambiente
S .C
C . 210/1987
.
“
“
.
C
z
‟
‟
. L
‟
.
z
h
z
‟
h
”; C
C
.
z
”
‟
hé
. 641/1987
ù
è
q
q
‟
h
zz
I q
B. CARAVITA Diritto dell‟ambiente B
2005
. 17
.; M.
CATENACCI La tutela penale dell‟ambiente P
1996 . 2 .; L. RAMACCI I reati
ambientali e il principio di offensività
Giur. mer. 4/2003 . 820 .; L. SIRACUSA La tutela
penale dell‟ambiente: bene giuridico e tecniche di incriminazione M
2007 . 8 .
94 C . M. S. M. S. GIANNINI Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici
. . 15 . S
: P. D‟AMELIO Tutela dell‟ambiente
. 1
.; A. GUSTAPANE
Tutela ambiente (diritto interno)
Enc. dir. XLV M
1992 .
413 .; F. FONDERICO La tutela dell‟ambiente
S. C
(
) Trattato di diritto
amministrativo V . V Diritto amministrativo speciale 2003 2015 .; A. MONTAGNA
Ambiente (dir. pen.)
A. C
(
) Dizionario di diritto pubblico M
2006 .
229 .; R. FERRARA
Ambiente
.; F. GIUNTA voce Ambiente (dir. pen.)
S. P
(
) Il diritto
. V . I 280 .
95 A. PREDIERI Paesaggio
. . 511 .
96 “L
'
omo settore d'intervento dei pubblici
poteri, assume il ruolo di momento unificante e finalizzante di distinte tutele giuridiche
h
'
”: C
. Stato, sez. IV, 11
aprile 1991, n 257, in Cons. Stato, 1991, I, p.605; in Foro Amm., 1991, p.1023; in Giut. Civ., 1991,
I, p.2512.
93
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
185
q
q
C
C
z
.
97
I
z
z
h
98
h
ratione temporis,
zz z
‟
99.
L
‟ z
h
q
z
z
z
q
z
:C
h
-
C
.
“
641/1987 . 705
zz
“
zz
z
h
‟
”; C
‟
h
zz
C
101
E
‟
C
hé
z
h
97
z
‟
100
z
z
M
z
z
C . . 800/1988
‟
”; C
C . . 1029/1988
“
”.
C. M. GRILLO Radiazioni elettromagnetiche (nel dubbio difendiamoci), Riv. amb., 2002
. 77 .; M. TALLACCHINI Ambiente e diritto della scienza incerta,
G
C h
A
(
) Ambiente e diritto, V . I
. 57 .; S. GRASSI Prime osservazioni sul
principio di precauzione come norma di diritto positivo, Dir. gest. amb. 2001
. 37 .; E.
D. COSIMO Il principio di precauzione fra Stati membri e Unione Europea,
Dir. pubb.
comp. Europ., 2006
. 1121 .; L. BRUTTI Principio di precauzione, Codice dell'ambiente e
giurisprudenza delle Corti comunitarie e della Corte Costituzionale
Riv. giur. ambiente
2006
. 809 .
99 S
. C
. C . . 142/1972
C
h
98
‟
‟
zz
z
‟
‟
‟
; C
z
z
;C
q
z
C .
‟
C
C
. 72/1977
h
q
. 96/1994
h
ù
‟
h
.
R. BIN Diritti e argomenti: il bilanciamento degli interessi nella giurisprudenza
costituzionale G
è M
1992; G. SCACCIA Controllo di ragionevolezza delle leggi e
applicazione della Costituzione
Nova juris interpretatio R
2007
286 ; G.
ZAGREBELSKY Il diritto mite E
T
1992 . 203 .
101 C . C
C . . 116/2006
OGM
h
:
z
'
–
ò
z
q
z
q
'
.L C
q
z
100
q
. S .
h G. MASTRODONATO I principi di proporzionalità e
precauzione nella giurisprudenza della Corte di giustizia verso l'effettività della tutela del
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
186
z
‟
z
zz
.
S
z
è
zz
102
‟
‟
h
z
ò
ù
status
quo.
S
z
z
zz
è
‟
z
103
z
z
104
hé
h
‟
C
z
‟
q
z
z
105.
cittadino (nota a Corte giust. Ce, sez. IV, 8 luglio 2010 n. C-343/09), Riv. e giur. Agr. 2011
183
.3 .
102 F. SALVIA Ambiente e sviluppo sostenibile
.; V. PEPE Lo sviluppo sostenibile, .
.
209 .; G. GRASSO Solidarietà ambientale e sviluppo sostenibile
Pol. Dir. 2003
. 581
.; A. MARZANATI Lo sviluppo sostenibile,
AA.VV. Studi sulla costituzione europea.
Percorsi e ipotesi, (
) A. L
– A. P
G
N
2004
. 139 .
103 L
z
‟
: . S. GRASSI La carta dei diritti dell‟Unione Europea ed il principio
di integrazione per la tutela dell‟ambiente
Diritti, nuove tecnologie e trasformazioni sociali
Scritti in memoria di Paolo Barile P
2003 . 393 .;
. C
C . 7
2007 . 367
Riv. giur. ambiente
F. DI DIO, Lo Stato protagonista
nella tutela del paesaggio: la Consulta avvia l'ultima riforma del Codice dei beni culturali e del
paesaggio;
Giur. cost., 2007 4075; C .
h C
C . 46/2001
h
C
z
zz
sanità, con riferimento anche alle generazioni
z
‟
q
q
.
104 C . C
C . 127/1990
‟
( q
)
ò
;
.
h R. ROMBOLI Il significato essenziale della motivazione
per le decisioni della Corte costituzionale in tema di diritti di libertà pronunciate a seguito di
bilanciamento tra valori costituzionali contrapposti, V. A
(
), Lib. giur. cost.,
T
1992 . 206 .; A. CERRI Appunti sul concorso conflittuale di diverse norme della
Costituzione
Giur. cost. 1976
. 272 .; N. BOBBIO L‟età dei diritti E
T
1990
. 11 .
105 I
z è
hé
‟
h
‟
‟
;
è
z
‟
è
h
z
ù
;
‟
z
.P
. M. CECCHETTI Principi costituzionali per la tutela dell‟ambiente,
. In
giurisprudenza, cfr. Corte cost., 24 luglio 2009, n. 250, in www.cortecostituzionale.it (sito uff.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
187
A
h
z
q
‟
h
‟
‟ q
‟
h
106
z
z
‟
z
'
.
V
ì
107
'
è
“ h
q
z
”110
z
h
q
108.
2004/35 109
I
q
z
(
)
q
q
h
III.
C
.)
h
‟
‟
h
: “‟
z
l'affidamento dell'impresa circa la stabilità delle condizioni fissate dall'autorizzazione è
‟
mutamento della situazione ambientale, del limite «assoluto e indefettibile rappresentato dalla
tollerabilità per la tutela della salute u
'
'
”(
z . 127
del 1990). Essa, inoltre, non può prevalere sul perseguimento di una più efficace tutela di tali
superiori valori, ove la tecnologia offra soluzioni i cui costi non siano sproporzionati rispetto al
vantaggio ottenibile: un certo grado di flessibilità del regime di esercizio dell'impianto, orientato
verso tale direzione, è dunque connaturato alla particolare rilevanza costituzionale del bene
giuridico che, diversamente, ne potrebbe venire offeso, nonché alla natura inevitabilmente, e
”.
106 S
è h
‟
z
z
z h
ò
non facere
‟
z
z
z
z
‟
. I
q
q
‟extrema ratio
zz
q
.
107 A
q
‟è ‟
h
‟
h
‟ q
‟
hé
h
.
108 C . D
2004/35 CE
P
E
C
21
2004
z
z
'
.
109 B. POZZO La proposta di nuova Direttiva sulla prevenzione e il risarcimento del danno
all‟ambiente
. . 11 ..
110 P
‟ . 174
T
CE
z
z
OECD Recomendation of the
council n. 128, 26 Maggio 1972
16
D h
z
R
J
G
1972.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
188
P
111
'
ò
h
z
h
ò
z
'
112
q
h
z
113.
N
z
‟
.
.
. 152/2006 h
114.
T
h
ù
z
z
z
. Pù
ò
q
115;
h
z
‟
‟
-
z
‟
116
111
S
z
z
z
h
‟
‟ q
‟ q
‟
h
è
zz z
h
h
hé
.
S
112
q
‟
III
T
z
h
q
113
Cò
z
ù
habitat
.
'
C
zz
z
hé
'
h
z
z
'
IV.
114 Non è stata prevista una differenziazione di criteri di imputazione della responsabilità in base
al tipo di operatore, a s
è h
‟
h
‟
è
attività pericolose in difformità alla normativa comunitaria. La mancata introduzione di un
h
‟
III
comunitaria ha formato oggetto di un ricorso di infrazione da parte della Commissione Europea
n. 4679/2007 per inesatta trasposizione della direttiva
‟
‟ .5
. . . 135/2009 (
VI
.
. 152/2006)
responsabilità per colpa ha continuato a costituire il modello su cui poggia la tutela
‟
e attuali modifiche apportate dalla Legge 6 agosto 2013, n. 97 - Legge
europea (sul punto, e per le modifiche al sistema apportate a seguito della procedura di
infrazione, v. §6).
115 Si consideri il titolo III della parte sesta del decreto legislativo che prevedeva, prima delle
modifiche apportate dalla Legge 97/2013, una tutela risarcitoria di tipo civilistico (che va dagli
artt. 311 a 318) che si integrava con un sistema di misure a carattere preventivo e ripristinatorio
disciplinato dal titolo II (che va dagli artt. 304 a 310) ponendo non pochi problemi di
coordinamento fra le due forme di tutela.
116 S
. ‟
311
.
. . 152/2006 h
.
349/1986 sancendo un generale principio di responsabilità per colpa.
'
'
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
189
z
II117 h
z
h
‟
‟
z
z
‟
‟
ì
ò
. 308
z
q
118
‟
z
è
z
z
119.
4. Ambiente paesaggio e governo del territorio
L
è
z
z
120
zz z
h .D
z
‟
h
z
121.
h
‟
A
h
q
L
122.
“
q
C
z
‟
h
R
E
C
h
h
z
I
:R
h
-
R
z
C
VI
C
‟
z
ambientale che recepisce criteri di responsabilità oggettiva così come indicati nella direttiva
comunitaria recepita dal legislatore del 2006 nel codice dell‟
.
118 N
‟
h ‟
‟
prevenzione e messa in sicurezza, intendendosi per operatore colui che esercita o controlla
‟
(
. 313
z )
interesse il comportamento fonte del danno è stato tenuto o che ha tratto obiettivamente
vantaggio dal fatto dannoso.
119 C
‟ . 308
.
. . 152/2006
h
zz z
‟
z
h
‟
‟
zz
rodotto.
120 M. CAMMELLI (
) Il codice dei beni culturali e del paesaggio - Commento al decreto
legislativo 22 gennaio 2004, n. 42 I M
B
2004.
121 M. S. GIANNINI “Ambiente”: saggio sui diversi suoi aspetti giuridici
.
. 15 .
122 S
.C
C
. 183/1983
z
hé
ù
‟
z ;
h C
C . . 536/2002 h
z
‟
‟
R
z
q
.
117
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
190
h
123
z
22
z
2004
è
. 42
“codice Urbani”124.
S
h
q
125.
z
z è
L ratio
vis expansiva
q
‟
h
z
z
126
h
z
z
z
R
.I
'
è
h
127
in peius,
z
z
‟
z
ù
123
h
C
128.
‟
. 1-
. . 27
1985
. 312
8
1985
.
4.
124
q
S
.
. 143
.
. . 42/2004
z
z
z
hé
h
z
zz z
.
S
z
‟ . 117
C
z
“tutela dell‟ambiente,
dell‟ecosistema e dei beni culturali”
z
S
)
“governo del territorio”
z
S
R
.
126 S
.C
C . . 222/2003; C
C . . 407/2002; C
C
. 507/2000; C
C .
. 382/1999
h C
C . 282/2002
h
z
z
“
”
“
z
q
z
z h
z
z
”.
127 P
“
”
. V. MOLASCHI Sulla
“determinazione dei livelli essenziali delle prestazioni”: riflessioni sulla vis espansiva di una
“materia”
San. pubb e priv. 2003 . 523 . G. ARCONZO Le materie trasversali nella
giurisprudenza della Corte costituzionale dopo la riforma del Titolo V, N. Z
A. C
(
) L‟incerto federalismo, M
2005 . 181 .
128 S
C
C . . 222/2003 C
C . . 307/2003:
z
h
S
standards
z
R
ò
h
'
z
q
h
.
125
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
191
P
q
h
‟
129
. 117 C
.
z
S
‟
‟
”
z
“
‟
zz z
z
”
hé
‟
z
h
.L
29
“
. 9 C
è
h
è
1939 . 1497 “sulla protezione delle bellezze naturali”,
z
.
q
zz
130
z
‟
z
h
“recare
pregiudizio a quel suo esteriore aspetto”131
.
L‟
z
‟
. C
8
ex lege
1985
. 431 (legge Galasso)
‟
z
q
h
z
z
è
.L
h
z
h
z
q
z
h
;
22
42 h
2004
.
zz
M. A. CRESCENZI
P. D 'A
Manuale di diritto ambientale, P
1995
. 467 .;
F. CARTEI La disciplina del paesaggio, tra conservazione e fruizione programmata, T
1995.
130 T
“cospicui caratteri di bellezza
naturale” “le ville i giardini e i parchi che si distinguono per la loro non comune bellezza”, “i
complessi di cose immobili che compongono un caratteristico aspetto avente valore estetico e
tradizionale”,
hé “le bellezze panoramiche considerate come quadri naturali e così pure
quei punti di vista o di belvedere accessibili al pubblico, dai quali si gode lo spettacolo di quelle
bellezze”.
131 C
‟ .7
. 1497/1939 h
q
z
zz z
z
S
z .
129
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
192
q
“i valori che esso esprime quali manifestazioni identitarie
percepibili”132.
P
z
z
(
)
h
h
z
ì h
.
D‟
z
:
z
hé
‟
z
zz
133
q
z
134;
135.
L
z
1968
‟
. 1187
z
è
‟
h
136.
L
z
h
è
q
137.
S
ì
h
133
134
S
S
S
‟
.
L
zz
135
I
. 131
.
. 1497/1939
h
h .
. . 42/2004.
z
L
‟
S
.C
C
. . 367/2007
(
138.
1942
. 1150
‟
‟
zz
zz
.
zz
z
q
h
z
‟
P
h
h
z
17
z
431/1985
;
136
19
hé
‟
132
.1
è ‟
‟
z
.9C
;
)
.
z
é
z
z
R
.N
C
C
. 180
. 232
. D. TRAINA Il paesaggio come valore costituzionale assoluto,
. 4108 .
‟
z
zz z
2008. I
Giur. cost., 2007
z
137
I
138
S
è
L
h
h
. 435/1985 h h
8
z
h
‟
.1
L
. 431/1985.
h .
G
G
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
.
193
R
z
z
z
z
139.
‟
‟
h h
L
z
q
.
U
z
h
D.
. . 42
2004
‟
h
zz z
h
q
h
q
q
z
z
z
z
z
140.
I
è
hé
z
z
z
q
141.
I
q
‟
q
ò
zz
139
140
hé
142
P. STELLA RICHTER I principi del diritto urbanistico M
L
G
è 2002.
‟
z
q
z
z
‟
ì
.
‟
141
C
‟
145
143
z
z
U
142
S
P
.7
z. I
ì
. 402/2006.
. 1150/1942
z
156
C
h “
‟
”. C .
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
h T.A.R
194
‟
q
z
.
V
ì
z
h
z
h
h
z
.I
è
h
h
z
h
h
143.
h
I
R
“piani paesaggistici
ovvero piani urbanistico-territoriali con specifica considerazione dei valori
paesaggistici”144.
L
z
z
)
q
è
(
h
z
h
D
h “le previsioni
dei piani paesaggistici sono altresì vincolanti per gli interventi settoriali”145.
E
è
‟
z
‟A
B
146
“piano di bacino”147 h
ò
h
z
h
148
;
'
z
S
' . 15
h “per quanto attiene alla
tutela del paesaggio, le disposizioni dei piani paesaggistici sono comunque prevalenti sulle
disposizioni contenute negli atti di pianificazione”
h
h
z
z
;
h
è
“ricognizione dell'intero territorio”,
z
'
( . 143
)
' . 135
q
“l'intero territorio
regionale”
h
z
.N
‟
z
ì
h
R
ò
h
q
z
zz z
.
144 S
.
‟
135 . . . 42/2004.
145 S
.
. 145
z
. . 42/2004.
146 L‟
è
18
1989 .183 (Norme per il
riassetto organizzativo e funzionale della difesa del suolo)
‟
z
z
z
h
z
.
147 I
h
h
ò
z
z
q
'
.
148 S
‟ . 17
z
II
. 183/1989
zz
z
.
143
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
195
h
z
149.
A
z
C
C
z
h
150
2
'
. 117 C
z
C
q
‟
152
153.
C
.
.
z
151
I
‟
h
h
'
.117
2(
– )
“una esigenza unitaria per ciò che concerne la tutela
dell'ambiente e dell'ecosistema”154
h
q
z
R
z
155.
149
F
150
F. MIRABELLI I G
z-P
R
F
C
‟
T
2002.
C
. A
C
C
E
z
. . 407/2002 h h
.
151
I
z
z
z
z
C
'
h
S
'
VC .
q
z
h
.S .
C
C .
z
multis: C
C . . 507
. 54/2000 C
C
. 382/1999
. 273/1998.
152 S
.
h C
C . . 282/2002
Foro amm. C S. 2002 2791
C.E. GALLO La potestà legislativa regionale concorrente, i diritti fondamentali ed i limiti alla
discrezionalità del legislatore davanti alla Corte costituzionale;
Le Regioni, 2002 1144
R. BIN il nuovo riparto di competenze legislative: un primo, importante chiarimento.
153 I
C
C . . 407/2002
z
h “I lavori
preparatori riguardanti la lettera -s del nuovo art 117 Cost. inducono, d'altra parte, a
considerare che l'intento del legislatore sia stato quello di riservare comunque allo Stato il
potere di fissare standards di tutela uniformi sull'intero territorio nazionale, senza peraltro
escludere in questo settore la competenza regionale alla cura degli interessi funzionalmente
collegati con quelli propriamente ambientali. In definitiva si può ritenere che riguardo alla
protezione dell'ambiente non si sia sostanzialmente inteso eliminare la preesistente pluralità di
titoli di legittimazione per interventi regionali diretti a soddisfare contestualmente,
nell'ambito delle proprie competenze, ulteriori esigenze rispetto a quelle di carattere unitario
definite dallo Stato”
h C
C . . 307/2003.
154 C
C
C . . 536/2002.
155 C .
.C
C . . 407
2002
standards
'
z
h
z
117
C .G
1982
C
z
h
z
‟
“
‟è
z
‟
h
hé
‟
‟ q
‟ q
”: C
. 29
1982 . 239
Foro it. 1983 I . 5 .
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
196
E
h
'
z
:
q
z
z
156
'
z
.
5. L’interesse all'ambiente
P
q
‟
z
‟
z
vis expansiva
z
è
‟
z
z
.
D‟
z
“
h
ì
”158
è
z
z
157
159
'
é
'
z
q
zz
. P
zz
hé
q
160
Si fa riferimento alla legge n. 59/1997, cui si deve la prima applicazione del principio in
questione nella distribuzione delle funzioni amministrative tra i vari livelli di territorio. In tema
di sussidiarietà verticale, principio dirimente in tema di esercizio e allocazione delle funzioni
.
h ‟ . 118
‟ . 120
C
hé
gli artt. 2, 7 e 8 d
. 131/2003. L‟
‟ . 3 quinquies, commi 3 e 4, del d. lgs. n. 152/2006, inserito nel codice
‟
. . . 4/2008.
157 A
‟ . 313
h “resta in ogni
caso fermo il diritto dei soggetti danneggiati dal fatto produttivo di danno all‟ambientale,
nella loro salute o nei beni di loro proprietà, di agire in giudizio nei confronti del responsabile
a tutela dei diritti e degli interessi lesi”.
158 V. CAIANIELLO La tutela degli interessi ambientali e delle formazioni sociali nella materia
ambientale
G. D V
Localizzazione degli impianti energetici e tutela dell‟ambiente
e della salute, R
1988 . 35 .; M.S. GIANNINI Difesa dell‟ambiente e del patrimonio
naturale e culturale
.S
C . S.U. . 440/1989
‟
q
.
159 C . T.A.R. L z
z. I 19
1983 . 47
Foro amm.,1983 1071
h
q
h
.
160 V. CAIANIELLO La tutela degli interessi individuali e delle formazioni sociali nella materia
ambientale,
Foro amm. 1987
. 1318 . L'
z
156
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
197
h
z
q
h
h
è
161
q
.
162
z
zz
163.
I
‟
q
“
”
z
h
'
z
zz
'
161
I
‟
z
z
z
z
h
h
è
z
.
q
zz
‟
h
q
'
h
z
z
q
q
. La
legge 349/1986
z
z
‟ z
S
;
4 5
‟ . 18 . 349/1986
z
esclusivamente il potere di denuncia dei fatti lesivi (potere, ques ‟
h
singolo cittadino) e di intervento nei giudizi per danno ambientale. In virtù delle modifiche
‟ . 4 3º
3
1999 . 265
z
‟ z
16 è
stata estesa anche alle ass
z
‟ . 13
. L‟ . 309
h “le organizzazioni non governative che promuovono la
z
'
'
13
8
1986 . 349” h “sono o che
potrebbero essere colpite dal danno ambientale o che vantino un interesse legittimante la
partecipazione al procedimento relativo all'adozione delle misure di precauzione, di prevenzione
o di ripristino previste dalla parte sesta del presente decreto possono presentare al Ministro
dell'ambiente e della tutela del territorio, depositandole presso le Prefetture - Uffici territoriali
del Governo, denunce e osservazioni, corredate da documenti ed informazioni, concernenti
qualsiasi caso di danno ambientale o di minaccia imminente di danno ambientale e chiedere
'
'
”.
162 A. PROTO PISANI Appunti preliminari per uno studio sulla tutela giurisdizionale degli
interessi collettivi (o più esattamente: superindividuali) innanzi al giudice civile ordinario,
Dir. giur., 1974
.801
. ; C. M. BIANCA Note sugli interessi diffusi,
La tutela
giurisdizionale degli interessi collettivi e diffusi,
L
h T
2003 . 67 .;
M. CAPPELLETTI Appunti sulla tutela giurisdizionale di interessi collettivi o diffusi,
Giur.
it., 1975; A. CARRATTA Profili processuali della tutela degli interessi collettivi e diffusi
La
tutela giurisdizionale degli interessi collettivi e diffusi,
L
h T
2003 . 79
.; R. DONZELLI La tutela giurisdizionale degli interessi collettivi, N
2008; V.
DENTI Le azioni a tutela degli interessi collettivi
Riv. dir. proc. 1975 361
.; G.
COSTANTINO Brevi note sulla tutela giurisdizionale degli interessi collettivi davanti al
giudice civile
Le azioni a tutela di interessi collettivi P
1976
. 223
.; V.
VIGORITI Interessi collettivi e processo M
1979 . 58; A. CORASANITI La tutela degli
interessi diffusi davanti al giudice ordinario,
Riv. dir. civ. 1978 I .196
.; M.S.
GIANNINI La tutela degli interessi collettivi nei procedimenti amministrativi
Le azioni a
tutela di interessi collettivi P
1976 . 23 .; E. GRASSO Gli interessi della collettività e
l'azione collettiva
Riv. dir. proc. 1983 . 24 .
163 M. NIGRO, Le due facce dell‟interesse diffuso: ambiguità di una formula e mediazione della
giurisprudenza in Foro it., 1987, V, p. 7 ss.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
198
164.
I
z
z
z
zz z
hé
z
‟
z
165
z
h
z
q
‟
q
z
z
P
166.
zz è
h
z
167
q
‟
z
168.
L
. 24 C
.170
q
'
164
z
169
q
‟
z
z
(
z
. 13
L.
. 349/1986
M. S. GIANNINI Diritto amministrativo, M
1970
ex ante,
q
.
V. CAIANIELLO La tutela degli interessi individuali e delle formazioni sociali nella materia
ambientale,
.; A. POSTIGLIONE L'azione civile in difesa dell'ambiente,
Riv. trim. dir.
pubb., 1987
'
z
h
'
z
h
z .
166 S
. ‟ . 13
L. 349/1986
‟ . 309
C
‟
( .
. .
152/2006);
.
h B. POZZO Danno ambientale, Riv. dir. civ., 1997 II . 775
.
167 S
: A.C.L.I
A
ANEV ANIS A.S.I A.N.P.AN.A A
z
A
z
I
G
A
z
N z
T
'A
.
168 L'
. 13
1
. 349
1986
q
z
è
M
'A
T
T
q
z
'
z
q
.S
z
:
z
z
q R
z
165
'
169
170
ì
S .
D
'
;
'
q
z
‟
. 18 L. . 349/1986
q
'
.
M
z
‟
.
‟
2697
h
. .
q
.
h
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
.
z
199
)
z
171
z
. 310
152/2006172. E‟
.
.
q
z
z
z
h
h
173
174.
D‟
171
'
P
. 13
L.
h q
172
S
. 18 L. 8
h
“
z
1986 . 349)
.S
z
.
C
z
S
h h
z. IV
. 2151/2006
(ex
z
hé
z
è
'
‟
:
z
”
‟
z
z
I
z
è
h
173
q
z‟
è
.
h
z
z
q
. 349/1986175
z
z
hé
zz
‟
'
z
‟
q
z
.
z
zz z
'
.S
F. DE LEONARDIS Verso un
ampliamento della legittimazione per la tutela delle generazioni future
Cittadinanza e
diritti delle generazioni future (Atti del Convegno di Copanello, 3-4 luglio 2009) F. A
F.
M
A. R
T
F. S
(
) C
z
R
2010 . 51 .;
TIGLIONI L'azione civile di difesa dell'ambiente. La tutela civile del danno ambientale, Riv.
trim. dir. pubb., 1987
. 304
.;
‟
h
z
“
h
”
q
z
z
z
q
M
z
z
h
z
z
.
174 C
'è
z
z
z
z
q
z
;
q
ù
q
vicinitas
h
z
q
z
z
(C
.S.
z IV 13
1998 . 1088
Giur. it., 1990 180 .). S
M. CALABRO' Sui
presupposti della legittimazione ad agire delle associazioni ambientaliste,
Foro amm. TAR,
2003 412.
175 Art.13.
1. Le associazioni di protezione ambientale a carattere nazionale e quelle presenti in almeno
cinque regioni sono individuate con decreto del Ministro dell'ambiente sulla base delle finalità
programmatiche e dell'ordinamento interno democratico previsti dallo statuto, nonché della
continuità dell'azione e della sua rilevanza esterna, previo parere del Consiglio nazionale per
l'ambiente da esprimere entro novanta giorni dalla richiesta. Decorso tale termine senza che il
parere sia stato espresso, il Ministro dell'ambiente decide (1).
2. Il Ministro, al solo fine di ottenere, per la prima composizione del Consiglio nazionale per
l'ambiente, le terne di cui al precedente art. 12, comma 1, lett. c) , effettua, entro trenta giorni
dall'entrata in vigore della presente legge, una prima individuazione delle associazioni a
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
200
h
z
h
: q
è
q
z
.176 N
. 13
‟
zz
178
; ‟
z
18 L. . 349/1986
177
zz
q
(
h
)
z
z
179.
L‟ z
carattere nazionale e di quelle presenti in almeno cinque regioni, secondo i criteri di cui al
precedente comma 1, e ne informa il Parlamento (2).
(1) Così modificato dall'articolo 17 della legge 23 marzo 2001, n. 93.
(2) A norma dell'articolo 4 della legge 3 agosto 1999, n. 265 le associazioni di protezione
ambientale di cui al presente articolo, possono proporre le azioni risarcitorie di competenza
del giudice ordinario che spettino al Comune e alla Provincia, conseguenti a danno
ambientale. L'eventuale risarcimento è liquidato in favore dell'ente sostituito e le spese
processuali sono liquidate in favore o a carico dell'associazione.
176 N. LUGARESI Diritto dell'ambiente, P
2004 . 69;
h T.A.R V
12
1998 . 1414
Riv. giur. ambiente 1999 . 364
h '
z
. 13 18 L. 8
1986 . 349
q
'
q
z
.
177 G. DE MINICO Brevi note sulle associazioni ambientali ex art. 18 della L. n. 349 del 1986,
Riv. giur. edil., 1994
. 23 .
178 E. FASOLI Associazioni ambientaliste e procedimento amministrativo in Italia alla luce
degli obblighi della Convenzione UNECE (United Nations Economic Commission for Europe)
di Aarhus del 1998 – (Environmental associations and administrative procedure in Italy in the
light of the requirements of UNECE Aarthus Convention of 1998), Riv. giur. ambiente 2012
. 331 .; A. MAESTRONI Sussidiarietà orizzontale e vicinitas, criteri complementari o
alternativi in materia di legittimazione ad agire?,
Riv. giur. ambiente 2011 . 528 .; A.
POGGI Autonomie funzionali e sussidiarietà orizzontale,
Giur. it. 2011. P. 1473 .; F.
GIGLIONI Il principio di sussidiarietà orizzontale nel diritto amministrativo e la sua
applicazione,
Foro. amm. CdS., 2009 . 2909 .; M. GRECO Sussidiarietà orizzontale e
legittimazione ad agire,
Non profit, 2008 . 345 .; P. DURET Riflessioni sulla legitimatio
ad causam in materia ambientale tra partecipazione e sussidiarietà, Dir. proc. amm., 2008
. 668 .; A. ALBANESE Il principio di sussidiarietà orizzontale: autonomia sociale e compiti
pubblici,
Dir. pubb., 2002 . 51 .; G. U. RESCIGNO Principio di sussidiarietà verticale e
diritti sociali,
Dir. pubbl., 2002 . 5 .; G. ARENA Il principio di sussidiarietà orizzontale
nell‟art. 118 u.c. della Costituzione,
AA. V . Studi in onore di Giorgio Berti,
.I N
2005; L. GRIMALDI Il principio di sussidiarietà orizzontale tra ordinamento comunitario e
ordinamento interno, B
2006.
179 I
zz
B
è
' .2
265
1999 (
'
' .3
D. L . . 267
2000)
q
“
z
q
S
R
. I
z
h
h
z
z
”. I
z
.2
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
201
è
z
z
180.
I
181
q
ù
z
182
q
z
‟
h
‟
q
‟ z
z
q
183
ò
ì
‟
z
h
184.
18 C
.
hé
ù
C
z
“
ù
S
”. S . F. SALVIA L'inquinamento, profili pubblicistici, P
1984 65; P
A. D'ATENA Il principio di
sussidiarietà nella costituzione italiana,
Riv. dir. pubb. com. 1997
. 603 .; P. DURET
La sussidiarietà «orizzontale»: le radici e le suggestioni di un concetto, Jus, 2000
. 95 .;
G. PASTORI La sussidiarietà «orizzontale» alla prova dei fatti nelle recenti riforme
legislative,
A. R
L. C
R. S
(
) Sussidiarietà e ordinamenti
costituzionali. Esperienze a confronto, C
1999 177 .
180 L' z
è
q
h
z
z
ù
ù
h
z
. C . T.A.R. L
z. I 18
z 2004 . 267
Riv. giur. edil.,2004
1445.
181 G. BRONZINI Le tutele dei diritti fondamentali e la loro effettività: il ruolo della Carta di
Nizza, Riv. giur. lav. prev. soc., 2012 . 53 .
182 L
C
C
.E
è
z
' z
z
'
hé
« h q
».
183 I
2006
C
‟
S
z
z
h
( .
311 D. L . 152/2006)
'
z
' . 18
L.349/86
z
.
184 I
q
q
è
‟
h
‟
.L
z
èq
h
‟
z
. P
. F. CARNELUTTI Teoria generale del diritto, R
1951 . 11 .; A. LEVI Teoria generale del diritto, P
1953 . 264 .
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
202
L
z
h
h
q
I
h
è
z
185.
q
186
z
h
z
z
187.
D‟
‟
z
h
z
188
q
189
z
‟
C ì
F. SANTORO PASSARELLI Dottrine generali del diritto civile, N
1981 . 69 . h
zz z
.
186 A
P. FEMIA Interessi e conflitti culturali nell‟autonomia privata e nella
responsabilità civile, N
1996 . 347 .
187 G. ROMANO Interessi del debitore e adempimento, N
1995 . 44 .
188 A
‟ . 313
7 “resta in ogni caso fermo il diritto dei soggetti danneggiati
dal fatto produttivo di danno ambientale, nella loro salute o nei beni di loro proprietà, di agire
in giudizio nei confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”. Q
z
q
hé
z
z‟
iure proprio
q
q
. S
z
C
z
:
C .
.
z. III .
2010/41015 C .
. z III 14828/2010 C .
. z. III . 36514/2006.
189 S
. C
C . . 210/1987
.
641/1987
.
‟
h
. S
z
.E
:
z
z
z
‟
z
z
h
z
;
.
h P. RESCIGNO Premesse civilistiche, AA. VV. La responsabilità dell‟impresa per i
danni all‟ambiente e ai consumatori, G
è M
. 69 . E‟ a nota tesi di Patti (S. PATTI,
La tutela civile dell‟ambiente, cit.; Id., voce Ambiente (tutela dell‟) nel diritto civile, in Digesto
civ., I, Utet, Torino, 1987, p. 289; Id., Diritto all‟ambiente e tutela della persona, in Giur. it.,
1980, I, 1, p. 868
q
‟
q
situazione soggettiva autonoma rispetto al diritto alla salute da classificarsi tra i diritti
;
q
‟
z “
orrenza di una
situazione giuridica soggettiva qualificabile come diritto soggettivo perché sia possibile il ricorso
agli strumenti di tutela presenti nel sistema – soprattutto alle regole della responsabilità civile –
z
” ( .199); ., però, in senso contrario, G. Alpa, Pubblico e privato nel
danno ambientale, in Contratto e impresa, 1987, p. 701 e Id., La natura giuridica del danno
ambientale, in Il danno ambientale con riferimento alla responsabilità civile, a cura di P.
Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 110 per il quale si tratta di un interesse collettivo
185
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
203
190.
N
191
‟
193.
T
ò h
zz
‟
‟
192
z hé
q
è
‟
ù
z
z
è h
z
h
z
‟
:
194
‟
q
195
z
196
D. MESSINETTI V
“Personalità (diritti della)”
Enc. dir. XXXIII G
è M
355 .; P. PERLINGIERI Il diritto civile nella legalità costituzionale, N
1991; V. SCALISI
Danno alla persona e ingiustizia, Riv. dir. civ., 2007 I . 152 .
191 C
C . S.U. . 26793/2008.
192 L
z
ò
z
neminem laedere q
z
.2C .
z h
190
193
mutatis mutandis
q
‟ . 185 .
”
h
h
q
‟ . 2059 . .
S
“
C
z
L‟
z
z
‟
. C
. S
194
S
z
.
.C
C
h
h
. . 365/2003.
195 S
.
C
C
ò
. . 233/2003
z
.
. S. .
;
z
è
.I
h
: ò h
. S
q
”
h
.
z. III . 12961/2011.
C . . 372/1994
quantum
z
.C
è
ù
zz z
(
ò
q
ò
q
C
è
.
‟
. 30328/2002 h h
“
preponderance of evidence
.
q
.I
z
.
.
h
q
h
z
. 2059 . . h
C
zz
. 233/2003
z
C
584/2008 C
196 C .
é
‟
z
q
.
.
‟
.C
C
.
. S.U.
hé è
z
)
q
C
. 184/1986.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
.
h
204
ì
197
in re ipsa
z
V
z
198.
h
q
‟
199
z
200
q
h
z
h
h
zz
z
z
z
201.
I
z
q
‟
h
‟
z
zz
202
‟ z
z
h
z
z
.
6. Il risarcimento del danno ambientale: l’opaco profilo
197
S
.
C
. S.U. . 9556/2002
‟
. 1223
z
S .
7844/2011
198
‟
z
h
in re ipsa,
z
. .
‟
C
.C .
z
z III . 882/2003
h
h
h
.
C
C
. S.U . 26793/2008
C
C .
h
q
h
ì
z
ù
z. III .
ò
z
. I
h
h
ò
zz
h
z
.I
.
h
C
.
z III . 2228/2012. S
q
z
A.
ASTONE I danni non patrimoniali alla persona: il problema della prova, M
2011 . 41 .
199 M. TARUFFO, Elementi per una definizione di abuso del processo, in AA. VV., L‟abuso del
diritto, Padova, 1998, p. 435 s.; L. P. COMOGLIO, Abuso dei diritti di difesa e durata
ragionevole del processo: un nuovo parametro per i poteri direttivi del giudici?, in Riv. dir.
proc. 2009, p. 1686 s.
200 Ex multis Cass. S. U. n. 23726/2007 in Foro. it, 2008, I, 1514; Cass. sez. I n. 11271 e n.
6900/1997; Cass. sez. III n. 28286/2011 e ancora Cons. di Stato n. 656/2012.
201 S
. ex multis C . S.U . 155/2011
h ‟
z
z
z
zz
q
q
‟
.
202 S
‟
h è
z
h
z
parte, non presentando i requisiti stabiliti dalla legge. Il codice prevede numerose ipotesi di
inammissibil
z
z
‟
impugnazione, ovvero per difformità dal paradigma legislativo. Con riferimento al processo
civile il codice detta singole ipotesi di inammissibilità in materia di impugnazione (artt. 331,
342, 348 bis, 360 bis, 365, 398 c.p.c). Più in generale una valutazione di merito sulla fondatezza
è
‟ . 140
C
C
( . . . 206/2005)
finalità è
z‟
q
gaggini processuali e utilizzi distorti della giustizia.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
205
L‟
‟
z
‟
h
2006
203.
I
h
‟
z
z
z
204
h
z
q
ì
z
.
I
‟
h
z
z
U
h h
direttiva 2004/35/CE
finalizzata ad armonizzare i regimi di responsabilità civile degli Stati membri,
‟
z
h
« h nquina paga», si
“
ambientale,
.
(
z
. . 152/2006
q
'
) h
”
. 18205
‟è
z
‟
L
z
q
‟
L. 349/1986
z
.
fortemente
e dei principi comunitari di
prevenzione, precauzione, correzione e riduzione degli inquinamenti, rimaneva
Legge 6 agosto 2013, n. 97 - Legge Europea. Sui profili evolutivi dei modelli di tutela
‟
‟
. U.
SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente alla luce dei principi europei:
profili sistematici della responsabilità per danno ambientale, in Nuove Leggi Civili, 2013, 4, p.
795 ss .
204 Procedura di infrazione 2007/4679 – Violazione del diritto UE – Non corretta trasposizione
della direttiva 2004/35/CE sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e
riparazione del danno ambientale – L C
h
‟ h
z
procedura il 23 gennaio 2014.
205 U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente, cit., p.795 ss., sottolinea
“
‟
‟
q
‟
lesivo sia
z
: ‟
z
‟
sanzionatorio di diritto penale o amministrativo ad eliminare integralmente il pregiudizio
causato dal comportamento vietato costituisce pertanto la ragione di fondo giustificatrice del
”.
203
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
206
ambigua quanto alle formule di responsabilità civile che avrebbero dovuto dare
z
“ h
q
”.
Il Codice ambientale prevedeva, infatti, differenti criteri di imputazione
(soggettivi, oggettivi) a seconda che si trattasse del sostenimento dei costi delle
attività di prevenzione e ripristino o del risarcimento del danno; in particolare,
la normativa, nel disciplinare in titoli differenti le azioni di prevenzione e
ripristino ambientale (Titolo II) e il risarcimento del danno (Titolo III)
individuava negli operatori professionali i soggetti tenuti a sostenere i costi della
prevenzione e del ripristino ambientale mentre lasciava priva di ogni
specificazione la norma volta ad individuare i soggetti tenuti al risarcimento del
. L‟
. 311206
“ z
q
“ h
”
q
”
‟
z
amministrativo, con negligenza, imperizia, imprudenza o violazione di norme
h
‟
z
‟
. 18
”. L
z
h
ella l. 349/1986, ha sollevato il problema della
responsabilità oggettiva, la cui affermazione di principio rappresenta la
‟
h
vede nel libro Verde, nel Libro Bianco, nella proposta di direttiva e nella
direttiva i punti fondamentali207.
Proprio la questione della responsabilità oggettiva ha dato luogo alla
‟
z
z
2004/35/CE
206 Il testo della norma, prima della modifica appo
‟ . 25
. ) L. 6
2013 .
97 era il seguente:
Art. 311 (Azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente patrimoniale).
1. I M
‟
h
‟ z
sede penale, per il risarcimento del danno ambientale in forma specifica e, se necessario, per
equivalente patrimoniale, oppure procede ai sensi delle disposizioni di cui alla parte sesta del
presente decreto.
2. Chiunque realizzando un fatto illecito, o omettendo attività o comportamenti doverosi, con
violazione di legge, di regolamento, o di provvedimento amministrativo, con negligenza,
imperizia, imp
z
z
h
h
‟
è
‟
della precedente situazione e, in mancanza, al risarcimento per equivalente patrimoniale nei
confronti dello Stato.
3. A q
z
M
‟
in applicazione dei criteri enunciati negli Allegati 3 e 4 della parte sesta del presente decreto.
A ‟
o delle responsabilità risarcitorie e alla riscossione delle somme dovute per
q
M
‟
procedure di cui al titolo III della parte sesta del presente decreto.
207 Per i riferimenti, v. retro, nota 39
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
207
responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno
ambientale.
In particolare, e sotto il profilo in discorso, la Commissione 208 ha
rilevato come la regola generale, stabilita dalla direttiva, della responsabilità
oggettiva degli operatori economici che esercitino le attività professionali
e
‟
‟
z
.A
“l‟art. 311, comma 2, del d. lgs. 152/2006
non si riferisce affatto ad attività professionali di alcun tipo e pone obblighi in
capo a <<chiunque>> anziché in capo ad <<operatori>>, le due disposizioni
riguardano due fattispecie diverse: l‟articolo 3, paragrafo 1, della direttiva
riguarda la responsabilità ambientale degli operatori economici; l‟articolo 311,
comma 2, del d. lgs. 152/2006 riguarda invece la responsabilità ambientale di
qualunque soggetto, a prescindere dal fatto che tale soggetto abbia causato il
danno ambientale nell‟esercizio, o al di fuori dell‟esercizio, di un‟attività
professionale”209.
Tale responsabilità, si ribadisce, deve avere natura oggettiva: in forza
“combinato disposto degli articoli 3 e 6 della direttiva (...) nel caso in cui il
danno ambientale sia stato causato da una delle attività professionali elencate
nell‟allegato III della direttiva, l‟operatore è tenuto ad adottare le necessarie
misure di riparazione anche qualora non vi sia stata colpa o dolo da parte
sua”210; ‟
311
2
.
. 152/2006 – rileva la Commissione –
àncora, invece, la responsabilità per danno ambientale ai requisiti del dolo o
della colpa, anche nel caso in cui il danno ambientale sia stato causato da una
ò ‟
3
A
1
‟
III
‟
6
)
h
‟
(
.8)
.
z
z
– che la direttiva
q
‟
ò
dalla responsabilità oggettiva se soddisfa alcune condizioni (articolo 8, paragrafi
Cfr. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26.
1. 2012
209 V. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26.
1. 2012.
210 V. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26. 1.
2012.
208
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
208
3 e 4) – non è stata correttamente trasposta. La normativa italiana, infatti,
“prevede solo le eccezioni (articolo 308, commi 4 e 5, del d. lgs. 152/2006)
senza aver prima stabilito la regola generale della responsabilità oggettiva,
come risulta dal fatto che il d. lgs. 152/2006 ha omesso del tutto di recepire
l‟articolo 3, paragrafo 1, della direttiva”.
Ulteriore, ed altrettanto importante, addebito mosso dalla Commissione
nel parere motivato riguarda il risarcimento pecuniario in luogo della
z
z
1
7
‟
II
;
riparazione costituisce, infatti, il principale strumento attuativo del principio
“ h
q
”
fortemente depotenziata dalla
previsione relativa alla possibilità di sostituire la riparazione (primaria,
complementare o compensativa) con il risarcimento.
In ottemperanza agli obblighi derivanti dalle violazioni contestate, il
legislatore nazionale ave
166/2009
‟
‟
311
aggiungendo
2
5-bis della legge
3
152/2006
un riferimento alle misure di riparazione complementare e
;
ò
‟
nneggiante al
risarcimento pecuniario in via sostituiva, qualora la riparazione, primaria,
complementare e compensativa, venisse omessa o risultasse impossibile o
eccessivamente onerosa; pertanto – osserva la Commissione – “per quando
riguarda la suddetta modifica dell‟articolo 311, comma 2, del decreto
legislativo 152/2006, (...) il nuovo testo della disposizione, pur migliorando la
normativa italiana in quanto aggiunge il riferimento alle misure di
riparazione complementare e compensativa (laddove il testo originario si
riferiva soltanto alla riparazione primaria),conferma tuttavia che ai sensi
della normativa italiana un operatore che abbia causato un danno ambientale
può essere tenuto al risarcimento pecuniario in luogo della riparazione
primaria,
complementare
e
compensativa.
Pertanto,
a
parere
della
Commissione, tale modifica dell‟articolo 311, comma 2, del decreto legislativo
152/2006 non fa cadere l‟addebito mosso nel parere motivato.”
Con il nuovo testo della disposizione, dunque, il legislatore italiano
confermava la possibilità –
‟
operatore – del risarcimento pecuniario in luogo della riparazione e ciò in
palese contrasto con la direttiva a tenore della quale si può usare il metodo della
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
209
valutazione
monetaria
per
determinare
quali
misure
di
riparazione
complementare e compensativa siano necessarie (Allegato II, punto 1.2.3, della
direttiva), ma non si possono sostituire le misure di riparazione mediante
risarcimenti pecuniari.
Ulteriori addebiti, poi211, i
‟
direttiva che la non corretta trasposizione ad opera del legislatore italiano
avrebbe limitato.
I
‟U
h
E
6
‟
2013
z
. 97 L
‟I
2013
‟
.
25, ha apportato le modifiche alla parte VI del codice ambientale; in particolare,
h
è
q
‟
normativa, la suddivisione tra danno ambientale causato da attività
(
‟
5
)
q
‟
5
caso di comportamento doloso o colposo212. Si è, inoltre, eliminato ogni
riferimento
al
risarcimento
del
danno
per
equivalente
patrimoniale,
concentrandosi invece sulla riparazione e sul ripristino (art. 25, n. 1, lett. c, d, f
,g, h
h
‟
z
‟
. 311
. i e lett. l); in
particolare, la lettera i) h
‟
. 313
precisamente la previsione della possibilità del risarcimento per equivalente
“
‟
. 2058
”. L
C) L‟
‟
303
)
152/2006:
violazione degli articoli 3 e 4 della direttiva. Nel parere motivato la Commissione ha inoltre
r
‟
303
)
152/2006
‟
z
“
z
inquinamento per le quali siano effettivamente avviate le procedure relative alla bonifica, o sia
stata avviata o sia intervenuta bonifica dei siti nel rispetto delle norme vigenti in materia, salvo
h
”
h
è
‟
4
. P hé
‟
z
‟
z
h ‟
303
)
legislativo 152/2006 viola gli articoli 3 e 4 della direttiva. La Commissione osserva che a
tut ‟
A
h
h
‟
‟
303
)
152/2006
rapporto tra la Parte Quarta, Titolo V (Bonifica di siti contaminati), del decreto legislativo
152/2006
P
S
(N
‟
)
dello stesso decreto legislativo.
212 V. ‟
. 298-bis, Principi generali
‟ . 25 . 1
. a, della L. 6 agosto 2013,
. 97
“
”
‟ . 311
. g) del
medesimo art. 25, n. 1, della L. 97/2013.
211
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
210
‟
. 313 h
z
h
qualora il responsabile del fatto che ha provocato danno ambientale non
provveda in tutto in parte al ripristino nel termine ingiunto «o all'adozione
delle misure di riparazione nei termini e modalità prescritti, il Ministro
dell'ambiente e della tutela del territorio e del mare determina i costi delle
attività necessarie a conseguire la completa attuazione delle misure anzidette
secondo i criteri definiti con il decreto di cui al comma 3 dell'articolo 311 e, al
fine di procedere alla realizzazione delle stesse, con ordinanza ingiunge il
pagamento, entro il termine di sessanta giorni dalla notifica, delle somme
corrispondenti». In linea con lo spirito della normativa, la lettera l) sopprime il
3(
h
‟
z
2°)
‟
. 314
q
z
h
;
criteri di quantificazione del danno (da valutare con riferimento al costo
necessario per il ripristino), faceva espresso riferimento al risarcimento per
q
‟
q
z
danno non risarcibile in forma specifica.
L
‟
(L
E
z
vi mossi hanno portato alle modifiche
)
q
‟
h
fisionomia, abbandonando lo schema della tutela aquiliana (art. 2043) nel cui
ambito la corte costituzionale, nel 1987, aveva ricondotto la responsabilità per
‟
213,
circostanza che rispecchia la concezione di ambiente
q
;
“
”214 il cui deterioramento deve essere riparato, data la natura
primaria del bene e la sua appartenenza collettiva, e non risarcito alla stregua
della lesione di un qualsiasi altro bene di appartenenza individuale.
I
‟
ogni riferimento ai profili risarcitori sembrerebbe chiudere per sempre la
possibilità di ingresso ad ogni rivendicazione privata, con ciò ponendosi in
contrasto,
però,
con
‟
quella
h
definizione
C
di
z
ambiente
215
quale
interesse
e lo stesso legislatore
Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit. c. 706.
Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., c. 706.
215 Corte cost., 28 maggio 1987, n. 210, cit.. c. 346.
213
214
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
211
‟
te216 riconoscono e che ha portato la giurisprudenza di legittimità ad
affermarne la triplice dimensione217. A
‟
z
risarcitoria anche del singolo può, però, pervenirsi, abbastanza semplicemente
ma non semplicisticamente, ove si assu
‟
di valore primario del bene ambiente, del suo essere interesse fondamentale
della collettività e al tempo stesso della persona, con la conseguente
pluridimensionalità del danno218.
A conclusioni più coerenti e comprensibili può giungersi, però, solo
‟
‟
‟
z
.
L‟
‟
‟
nte219 e la responsabilità che ne deriva
Sono più di uno i riferimenti allo stretto collegamento tra la qualità della vita umana (art. 1) e
z
‟
z
‟ .2
C
z
(
che di altre
z
T
‟U
: .
. 3-bis)
217 “II
:
q
‟
;
ale quale lesione del
‟
z
q
;
pubblica quale lesione del diritto-dovere pubblico spettante alle istituzioni centrali e
h ”: C .
.
z. III 5
2002 n. 22539, Giur. it., 2003, p. 696; tale ultimo
principio, affermato in precedenza da Cass. pen., sez. III, 1º ottobre 1996, n. 9837, Arch. nuova
proc. pen., 1996, p. 871, è stato successivamente ribadito da Cass. pen., 21 ottobre 2004, sez. III,
n. 46746, Arch. nuova proc. pen., 2005, p. 181; Cass. pen., sez. III, 6 marzo 2007, n. 16575,
Danno e resp., 2008, p. 406 ss. e Cass. pen., sez. II, 25 maggio 2007, n. 20681, CED, 2007;
Cass. pen, sez. III, 11 febbraio, 2010, n. 14828, CED, 2010.
218 Cfr. Cass. pen., sez. III, 11 febbraio 2010, n. 14828, CED 2010: “T
h
dimensioni diversificate: la giurisprudenza di legittimità ha chiarito che il danno in esame
presenta, oltre a quella pubblica, una dimensione personale e sociale quale lesione del diritto
‟
z
q
la personalità: il danno ambientale in quanto lesivo di un bene di rilevanza costituzionale,
quanto meno indiretta, reca una offesa alla persona umana nella sua sfera individuale e sociale.
In tale contesto, è riscontrabile in capo alle associazioni ecologiche un interesse legittimo alla
tutela del territorio ed è stata riconosciuta la loro possibilità di costituirsi parti civili nel
processo alle seguenti condizioni. Le ricordate associazioni non possono costituirsi parte civile al
fine di chiedere la liquidazione del danno ambientale di natura pubblica (a sensi della legge
348/1986, art. 18 e ora del D. lgs. 152/2006), ma possono agire in giudizio – in virtù del
‟ . 2043 . . –
z
”.
219 I C
z
“
”
norme: gli artt. 300
(Danno ambientale) e 311 (Azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente
patrimoniale); tali disposizioni se collocano la nozione in una dimensione comunitaria la
‟
e. Il legislatore del 1986 forniva
‟ . 18
z
tutelati facenti capo al concetto di ambiente (v. R. TOMMASINI, Danno ambientale e danno alla
salute, cit., p. 145; L. BARBIERA, Qualificazione del danno ambientale nella sistematica generale
del danno, in Il danno ambientale con riferimento alla responsabilità civile, a cura di P.
PERLINGIERI, Esi, Napoli, 1991, p. 115); nel nuovo assetto normativo, il danno ambientale è
qualsiasi deterioramento delle risorse naturali e il deterioramento causato alle biodiversità
216
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
212
hanno a lungo oscillato tra disciplina privatistica e disciplina pubblicistica, tra
funzione compensativo-satifattoria e sanzionatorio-riparatoria, per assumere
una connotazione decisamente pubblicistica220
‟
razione di
hé
S
.
D
ò
è
h
C
M
‟
349/1986
‟
‟
z
z
.
z
z
status quo ante
S
z
. 18 L.
q
'
'
‟
221
z
hé
'
z
222.
; ‟ . 300
h
direttiva comunitaria (1. È danno ambientale qualsiasi deterioramento significativo e
‟
q
‟
. 2.
Ai sensi della direttiva 2004/35/CE costituisce danno ambientale...), fornisce, una descrizione
analitica e molto dettagliata di pregiudizi a be
. L‟ . 311
ì
‟
. 18
z
z
z
q
‟
( q
pregiudizi da rite
q
‟ . 300)
ò
q
‟
“
‟
q
sé stante, ontologicamente diverso dai singoli beni che ne formano il subs
” h
nella giurisprudenza di legittimità (Cass., 3 febbraio 1998, n. 1087, in Foro it., 1998, I, c. 1151) e
costituzionale (Corte cost, 30 dicembre 1987, n. 641, cit. e, tra le più recenti Corte cost., 14
novembre 2007, n. 378, in Giur. it., 2007, p. 1628 ss) e che riflettere la complessità, unitarietà e
‟
(C . 17
2008 . 10118
Giur. it., 2008, p. 2708; Cass.
pen., 6 marzo 2007, n. 16575, in Danno e resp., 2008, p.406 ss.; Cass., 3 febbraio 1998, n.1087,
cit.; Cass., 1 Settembre 1995, n. 9211, in Riv. giur. Ambiente, 1996, pp. 472-473; Cass., 9 aprile
1992, n. 4362, in Mass. Giur. it., 1992).
220 V. sul punto U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente alla luce dei
principi europei, cit., p.795 ss.
221 Il primo rimedio è l'azione civile innanzi al giudice ordinario, il secondo concerne l'adozione
di un'ordinanza ex art. 313 d. lgs. n. 152/2006 con cui si dispone il risarcimento del danno e
qualificabile come provvedimento autoritativo. La legittimazione a ricorrere al G.A., in sede
esclusiva, avverso gli atti e i provvedimenti assunti in violazione delle disposizioni del decreto,
nonché contro il silenzio inadempimento del ministro dell'ambiente e per il risarcimento del
danno da ritardo nell'attivazione delle misure di precauzione, prevenzione, o di contenimento
del danno ambientale compete ex art. 310 «alle regioni, le province autonome e gli enti locali,
anche associati, nonché le persone fisiche o giuridiche che sono o potrebbero essere colpite dal
danno ambientale».
222 Cfr. art. 309 d. lgs. n. 152/2006 ove si specifica che le associazioni sono considerate soggetti
M
‟
e osservazioni corredate da documenti, concernenti fattispecie di danno ambientale o di
‟
.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
213
Q
è
è
'
h
h
‟
z
z
‟ z
S
223
‟
h
z
224
‟
z
z
M
è
225.
ù;
226
zz
z
227
hé
q
‟
z
'
L‟
. 18228.
‟
è
q
q
zz
'
ù
z
hé
potestas iudicandi
229.
I
h
z hé
z
230
z
‟
'
ò
h
C
C
-P
S
‟ . 313
. . . 152/2006.
M. ATELLI, Prime note sul danno ambientale nel nuovo codice dell‟ambiente, in resp. civ.,
2006, p. 669s..
225 C .
. 313
2
ì
‟ . 25
. ) L. 6
2013 . 97 (L
europea 2013).
226 C
z
‟ . 313 del d.lgs.
n. 152/2006.
227 L‟
. 313
. . 152/2006
.
228 L‟
18
. 349/1986
expressis verbis la giurisdizione in
‟
n si può dubitare, in base al normale riparto che tale
soluzione sia quella preferibile.
229 Si v. art. 316 del d. lgs. 152/2006 ove si specifica che il ricorso debba essere presentato al
Tribunale amministrativo regionale competente in relazione al luogo nel quale si è prodotto il
danno ambientale.
230 M. LIBERTINI La nuova disciplina del danno ambientale e i problemi generali del diritto
dell'ambiente,
Riv. critica dir. priv., 1987
. 581 .; F. GIAMPIETRO La responsabilità
per danno all‟ambiente in Italia: sintesi di leggi e di giurisprudenza messe a confronto con la
direttiva 2004/35/CE e con il T.U. ambientale
Riv. giur. ambiente 2006
. 1 . 19 .
223
224
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
214
1865
'
h
z
231.
I
è
‟
‟
'
q
q
z
h
è
232.
z
I
q
q
‟è h
z
‟
233.
Cò
q
h
z
h
‟
L
234.
h
h
q
zz
235
z
z
q
.
I
1865
‟
‟ mbito di
un sistema tratteggiato da perfetta omogeneità sul piano della finalità e degli altri profili
disciplinari. Si cfr. sul punto B. ALBANESE,voce Illecito (storia), in Enc .dir., XX, Milano, 1970,
p. 50 s.
232 Sul punto è illuminante la Corte di Cass., S.U., n. 581/2008 con riferimento alla causalità e ai
diversi criteri di accertamento. Si v. anche Cass., S.U., n. 1768/2011 ove si afferma che
z
q
‟ . 652 . . .
z
separazione dei giudizi penale e civile.
233 È questa una considerazione condivisa dalla dottrina; cfr., tra gli altri, C. SALVI, Il danno
extracontrattuale, modelli e funzioni, Napoli, 1985, 85; L. CORSARO, Tutela del danneggiato e
responsabilità civile, Milano, 2003, 2. In giurisprudenza si consideri sul punto Cass. sez. III n.
11755/2006.
234 Questo perché il sistema penale è imperniato su principi come quello della presunzione di
innocenza, personalità della responsabilità, funzione rieducativa della pena che non sono
h
‟
z
. 530 . .
insufficienza o contraddittorietà della prova della colpevolezza. La privazione della libertà del
singolo si concreta solo quando non residui alcun dubbio sulla prova della colpevolezza o della
causalità. Nel sistema civile, al contrario dove questi principi non hanno medesima forza e
soprattutto dove sono pacificamente ammissibili ipotesi di responsabilità oggettiva, è più giusto
che le conseguenze dannose di un rischio vengano traslate in capo al danneggiante, piuttosto
che sul danneggiato incolpevole.
235 C ò
‟ . 2043 . .
‟
18
‟ . 349/1986
h q
q
h
‟ambiente obbligava
‟
S
. S
responsabilità ambientale sotto quella da illecito extracontrattuale si v. G. GRECO, Danno
ambientale e tutela giurisdizionale, in Riv. giur. ambiente 1987, p. 525 s.
231
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
215
L
zz z
h
236
‟
z
237
z
238
h
h
‟
z
h
h
h
‟
‟
z
239
z
è
h
q
L
h
–h
zz
VI
240.
C
‟
h –
‟
“
241
'
ò
q
–
”–
‟
z
z
h
z
h
242
243
L. BIGLIAZZI GERI, Quale futuro dell‟art. 18 legge 8 luglio 1986 n. 349? in Riv. critica dir.
priv., p. 685 s.; C. CASTRONOVO, Il danno all‟ambiente nel sistema di responsabilità civile, in
Riv. critica dir. priv., 1987, p. 512 s. U. NATOLI, Osservazioni sull‟art. 18 legge 349/86, in Riv.
critica dir. priv., 1987, p. 703 s.
237 Cfr. RICCARDO BAJINO, Profili penalistici nella legge istitutiva del Ministero
dell'Ambiente, in Studi parlamentari e di politica costituzionale, n. 71 1986, p.81-86.
238 S. PATTI, La valutazione del danno ambientale, in Riv. dir. civ., 1992, p. 447 ss.
239 L‟
. 311 .
. . 152/2006
h “
ciascuno risponde nei limiti della propria responsabilità p
”
‟
z
ù
‟ . 2055 . .
h
sono tenuti a rispondere in modo solidale nei confronti del soggetto leso. Sulle obbligazioni
solidali si v. A. DI MAJO, voce Obbligazioni solidali (e indivisibili), in Enc. dir., XXIX, Milano,
1979, p. 323 s.
240 Q
z
‟ . 311
secondo, che in quella successiva, conseguente alla riforma del 2009 (art. 5-bis, DL 25
settembre 2009, n. 135) h
q
‟ . 2058 . .
è
q
‟
‟
z
z
‟
z
misure di riparazione complementari e compensative di cui alla direttiva 2004/35/CE. Solo nel
caso in cui ciò sia omesso, attuato in modo incompleto oppure risulti impossibile o
“il danneggiante è obbligato, in via sostitutiva, al risarcimento per
equivalente patrimoniale nei confronti dello Stato”. S
q
z
.
ultimo Cass. n. 6551/2011 in Giur. it., 2012, p. 554 s.
241 V. retro, nota 186.
242 L‟
. 300
.
s. n. 152/2006 qualifica il danno ambientale come “qualsiasi
deterioramento significativo e misurabile, diretto o indiretto, di una risorsa naturale o
dell‟utilità assicurata da quest‟ultima”, facendo poi riferimento, nel secondo comma, a
particolari risorse naturali elencate in modo tassativo che vengono tutelate. Sul concetto di
ambiente delimitato alle fattispecie indicate nella norma si v. U. SALANITRO, Il risarcimento
del danno ambiente: un confronto tra vecchia e nuova disciplina, in Riv. giur. ambiente 2008,
p. 939 s.; F. GIAMPIETRO La nozione di ambiente e di illecito ambientale: la quantificazione
del danno, in Ambiente e sviluppo, 2006, p. 463 s.
236
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
216
‟
h
244
‟
S
.
U
h
245
‟
z
z
q
246
‟
q
‟
248
z
z
‟
‟id quod interest
q
q
z
247.
I
q
249
zz
z
S
‟ . 313 h
alla
q
h “resta in ogni caso fermo il diritto dei soggetti danneggiati
dal fatto produttivo del danno ambientale, nella loro salute o nei beni di loro proprietà, di
agire in giudizio nei confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”, non
considerando ad esempio, il danno esistenziale per perdita della possibilità di svolgere le attività
dinamico-relazioni o il danno morale come sofferenza transeunte, patiti in conseguenza di un
‟
conseguenze pregiudizievoli sulla sfera giuridica di chi assuma
‟
.
244 Sul punto si v. Cass. sez. III n. 4186/98 ove si afferma che la questione da risolvere non è
q
‟
del danno morale, quanto piuttosto la
dimostrazione sul piano probatorio delle conseguenze dannose. Cfr. anche Corte Cass. n.
8827/2003.
245 Nel caso di perdita di una risorsa naturale in seguito alla distruzione di un bosco,
contaminazione del terreno, dell'
‟ q
legislativo che consenta al proprietario dell'immobile che abbia provveduto al ripristino dello
status quo ante di chiedere il rimborso delle spese al danneggiante come accade in Germania;
Sul punto cfr. E. REHBINDER, „A German Source of Inspiration? Locus Standi and
Remediation Duties under the Soil Protection Act, the Environmental Liability Act and the
Draft Environmental Code‟ in Betlem, G. and Brans, E. (eds.), Environmental Liability in the
EU – The Proposed Directives, GMOs and Mineral Resource Extraction (London, Cameron
May, forthcoming 2004). Si potrebbe, inoltre, ipotizzare il riconoscimento della legittimità ad
agire non solo in capo singolo, ma anche a tutte quelle associazioni portatrici di questi interessi
che dal danno ambientale subiscano un pregiudizio non necessariamente legato alla salute o alla
proprietà, qualificabile tuttavia come danno serio e apprezzabile in termini di danno
conseguenza ex artt. 1223 e 1227 c.c.; si veda, però, in senso contrario,U. SALANITRO,
L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente, cit.
246
S. RODOTA‟ Il problema della responsabilità civile, Milano 1964, p. 139 ss.; C.
CASTRONOVO, La nuova responsabilità civile, Milano, 2006, p. 22 s.
247 Sul punto si v. P. RESCIGNO, Introduzione al codice civile, Bari, 1991.
248 Si cfr. Corte Cost. n. 210/1987, cit., ove si afferma che già prima della riforma del titolo V è
C
z
‟
come diritto fondamentale della persona ed interesse fondamentale della collettività; in tal
senso si v. anche Corte Cost. n. 641/1987.
249 F. D. BUSNELLI, Il danno alla persona: un dialogo incompiuto tra giudici e legislatore, in
Danno e resp., 2008, p. 609 s.
243
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
217
z
h q
250
‟
z
252.
L‟
zz
z
z
h
253
z
251
ù
h
h
z
254
255
‟
z
I
256
q
è
q
'
.
ò
z
257
‟
z
h
h
I
. ‟ . 313
.
. . 152/2006 .
proprietà dei singoli.
251 L‟
. 1225 . .
expressis verbis il risarcimento di tutti
quei pregiudizi che siano conseguenza diretta ed immediata o mediata purché normale
‟
.
252 Cfr. M. FRANZONI, Dei fatti illeciti (artt. 2043-2059) in Commentario del codice civile
Scialoja-Branca a cura di F. Galgano, Bologna-Roma, 1993.
253 C
. S.U. . 2515/2002
Giur. it, 2002 1270
h
è
sub specie
h
h
'
z
z
q
.
254 L‟
.2C .è
h
z
‟
z ne dei rapporti
sociali. Sul punto si v. F. GAZZONI, L‟art. 2059 c.c. e la Corte costituzionale: la maledizione
colpisce ancora, in Resp. civ. prev., 2003, p. 1306 s.; E. NAVARRETTA, Diritti inviolabili e
risarcimento del danno, Torino, 1996.
255 Sul punto si veda, anche, la storica sentenza n. 500/1999 delle Sezioni Unite di Cassazione
h
‟
‟
h è
‟
z
z
‟
cedere alla tutela
risarcitoria ex art. 2043 c.c.; cfr. C. M. BIANCA, La responsabilità, Milano, 1994, p. 113 s.
256 Sulla nozione di ingiustizia del danno ampia la letteratura: G. ALPA, La responsabilità civile.
Parte generale, Milano, 2010, p. 358 ss.; R. SACCO, L‟ingiustizia del danno di cui all‟art. 2043,
in Foro pad., 1960, p. 1420 s.; P. SCHLESINGER, La “ingiustizia” del danno nell‟illecito civile,
in Jus, 1960 . 338. .; S. RODOTA‟ Il problema della responsabilità civile, cit., p. 46. s.; G.
CIAN, Antigiuridicità e colpevolezza. Saggio per una teoria dell‟illecito civile, Padova, 1966, p.
154 s.; P. TRIMARCHI, voce Illecito (diritto privato), in Enc. dir., XX, Milano, 1970, p. 90 s.; R.
SCOGNAMIGLIO, Responsabilità civile, in Nuovo Dig. it., Torino, 1962, XV, p. 628; P. G.
MONATERI, La responsabilità civile, in Trattato di diritto civile, diretto da R SACCO, Torino,
1998, p. 567 s; E. NAVARRETTA, Il danno ingiusto, in Diritto civile, diretto da N. LIPARI e P.
RESCIGNO coordinato da A. ZOPPINI, Attuazione e tutela dei diritti, IV, La responsabilità e il
danno, III, Milano, 2009, p. 137 s.; G. VISINTINI, Trattato breve della responsabilità civile.
Fatti illeciti, inadempimento, danno risarcibile, Padova, 2005, p. 38 s.
257 L‟
z
ù
etteva il risarcimento del danno non patrimoniale solo nel
caso di espressa previsione legislativa; nel corso degli ultimi anni si è abbracciato, al contrario,
‟
h
zz
h
250
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
218
.2
C
.
ò
L
‟
z
'
. 2059 . . 258.
q
ò
q
z
z
q
(
259
h
q
h
z
)
h
h
q
h
zz
z
z
z
‟
260
h
'
261.
possibilità di agire in giudizio ogni volta che ad essere leso sia un diritto fondamentale della
persona, anche senza che vi sia una norma specifica che ne ammetta la risarcibilità.
258 P
“
”
ù
puntuali, ma anche tutti
quei precetti costituzionali che garantiscono i diritti inviolabili e ne impongono la piena tutela
‟
ì
z
costituzionalmente qualificata rafforzata dall‟
z
persona. Sul punto illuminante la più recente giurisprudenza della Corte di legittimità: Cass.
Civ. n. 8827 e n. 8828; Cass. Sez. un. 11 novembre n. 2008/26972.
259 Si potrebbe utilizzare il criterio della vicinitas, non solo come riconoscimento della
legittimazione dei singoli che agiscano a tutela del bene ambiente ma anche quale criterio che
evidenzi la stretta correlazione tra soggetto e bene di cui si lamenti la lesione, in modo da
distinguere pretese serie da quelle prive di fondamento. Sul criterio della vicinitas si v. Cons.
Stato Sez. V, 31-03-2011, n. 1979.
260 P. RESCIGNO, Introduzione al codice civile,
. . 159 . ‟
h “
tutela non è solamente il diritto soggettiv
zz
”. N
ciò richiama, tra le più pregnanti novità in tema di fatto illecito, la disciplina del danno
ambientale.
261 Sul danno ambiente come danno ingiusto si cfr. in particolare E. LECCESE Danno
all‟ambiente e danno alla persona, . . 247 . I
‟
è
h
z
C
‟
. L C
Strasburgo (Sentenza della Corte Europea dei Diritti dell'Uomo del 10 gennaio 2012 – Ricorso n
30765/08 – Di Sarno e altri c. Italia) ha ritenuto che il danno ambientale, provocato dal cattivo
funzionamento del sistema di gestione dei rifiuti (e denunciato da diciotto cittadini italiani, con
ricorso proposto contro la Repubblica italiana per violazione dei diritti garantiti dalla
C
z
‟ . 8)
“
” h
h
h
è
z
‟ .8
C
z
ò
lamentato danno morale che, tuttavia, è stato ritenuto sufficientemente riparato con la
z
z
.L C
(
. 104) h
“ h
possono incidere sul benessere delle persone e privarle del godimento del loro domicilio in
”;
:“
ricorrenti sono stati costretti a vivere in un ambiente inquinato dai rifiuti abbandonati per le
strade almeno dalla fine del 2007 al mese di maggio 2008. La Corte ritiene che questa
situazione abbia potuto portare ad un deterioramento della qualità di vita degli interessati e, in
particolare, nuocere al loro diritto al rispetto della vita privata e del domicilio. Pertanto nel caso
di specie è applicabile l'articolo 8 (...). La Corte ritiene che la presente causa verta non su una
ingerenza diretta nell'esercizio del diritto al rispetto della vita privata e del domicilio dei
ricorrenti che si sarebbe materializzata con un atto delle autorità pubbliche, ma sulla lamentata
omissione di queste ultime nell'adottare misure adeguate per assicurare il corretto
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
219
Cò
‟
'
;
ò
h
è
'
h
z
z
q
h
ex officio262.
L ratio
z
‟eventus damni
h
‟
ù h
h
ù
.
L
C
S z
z
q
'
U
h
h
z
h
è
z
h
ò h
263
264
z
è
z
q
265.
L
z
‟
q
266
funzionamento del servizio di raccolta, trattamento e smaltimento dei rifiuti nel comune di
Somma Vesuviana. La Corte ritiene quindi appropriato porsi sul piano degli obblighi positivi
'
8
C
z
”
h “
S
'
di adottare delle misure ragionevoli ed idonee in grado di proteggere i diritti delle persone
interessate al rispetto della loro vita privata e del loro domicilio e, in genere, al godimento di un
”.
262 S. PATTI
La valutazione del danno ambientale,
BUSNELLI-PATTI Danno e
responsabilità civile G
h
T
2003 . 100 .; S. MAZZAMUTO Osservazioni
sulla tutela reintegratoria di cui all‟art. 18 della legge n. 349 del 1986
Riv. critica dir. priv.
1987 . 699 .; M. MORBIDELLI Il danno ambientale nell‟art. 18 L. 349/86. Considerazioni
introduttive
Riv. critica dir. priv. 1987 . 599 .; L. M. DELFINO Ambiente e strumenti di
tutela: la responsabilità per danno ambientale
Resp. civ. e prev. 2002 873.
263 S
‟
C . C . S.U. . 440/1989.
264 Si cfr. C. CASTRONOVO, Il danno all‟ambiente nel sistema della responsabilità civile, cit., p.
517 s, ID., Il risarcimento in forma specifica come risarcimento del danno, in Processo e
tecniche di attuazione dei diritti, a cura di S. Mazzamuto, Napoli 1989, p. 513 s.
265 Basti ricordare i disastri ambientali di Chernobyl (26 aprile 1986), di Seveso (10 luglio 1976)
e, più di recente, la catastrofe in Giappone.
266 G. BONILINI, Il danno non patrimoniale, Milano, 1983, p. 29 ss.; ID., Il danno non
patrimoniale, in La responsabilità civile, V, diretta da G. Alpa e M. Bessone, in Giur. sist. dir.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
220
z
q
.S
267
‟
ò
268
q
269.
E‟
h
q
‟
271
ò
ò
z
q
‟an
D
h
h
‟
è
quantum,
z
270.
status quo ante
z
q
civ. e comm., fondata da W. Bigiavi, Torino, 1987, p. 388; L. BIGLIAZZI GERI, Interessi
emergenti, tutela risarcitoria e nozione di danno, in Riv. critica dir. priv., 1996, p. 54 s.; G.
ALPA, Responsabilità civile e danno. Lineamenti e questioni, Bologna, 1991, p. 463 ss.; C.
SCOGNAMIGLIO, Il danno biologico: una categoria italiana del danno alla persona, in
Europa e dir. priv., 1998, p. 274 s.; V. SCALISI, Danno alla persona e ingiustizia, cit., p. 147 s.
267 Si v. art. 313. del d. lgs. 152/2006 cit.
268 Si v. Cass. n. 8827/2003 in Corriere giur., 2003, p. 1017 ss., con nota di M. FRANZONI, Il
danno non patrimoniale, il danno morale: una svolta per il danno alla persona; in Danno e
resp., 2003, p. 819 s., con note di F. D. BUSINELLI, Chiaroscuri d‟estate. La Corte di
Cassazione e il danno alla persona e G. PONZANELLI, Ricomposizione dell‟universo non
patrimoniale: le scelte della Corte di Cassazione, in Resp. civ. e prev., 2003, p. 675 s.; si v.
anche Cass. n. 8828/2003, in Corr. giur., 2003, p. 1024 s.; in Rass. dir. civ., 2005, p. 1104 s.,
con nota di G. CAIAFFA, L‟art. 2059 c.c. profili riparatori (e risarcitori?) del danno alla
persona; in Danno e resp., 2003, p. 816 s, con nota di M. DI MARZIO, Il danno esistenziale e
le sentenze gemelle; in Giur. it , 2004, p. 29. Cfr. inoltre Corte Cost. n. 233/2003, in Danno e
resp., 2003, p. 939 s. con note di M. BONA, Il danno esistenziale bussa alla porta e la Corte
Costituzionale apre (verso il “nuovo” art. 2059); P. PERLINGIERI, L‟art. 2059 c.c. uno e bino:
una interpretazione che non convince, in Corriere. giur., 2003, p. 1028 s.
269 Si v. Cass. civ. sez. III n. 14402/2011 che afferma la necessaria integralità del risarcimento del
danno esistenziale che non può essere ridotto, neppure indirettamente ad una frazione del
danno biologico, ma deve essere valutato equitativamente in relazione al caso concreto, in
quanto motiva la S.C., occorre verificare quali aspetti relazionali siano stati presi in
considerazione nel caso sottoposto al vaglio del giudice.
270 Cfr. Cass. n. 6572/2006 che ha affermato che il G.L. può far ricorso in via esclusiva alla
z
“purché, secondo le regole di cui all'art. 2727 c.c. venga offerta una serie
concatenata di fatti noti, ossia di tutti gli elementi che puntualmente e nella fattispecie
concreta (e non in astratto) descrivano: durata, gravità, conoscibilità all'interno ed all'esterno
del luogo di lavoro della operata dequalificazione, frustrazione di (precisate e ragionevoli)
aspettative di progressione professionale, eventuali reazioni poste in essere nei confronti del
datore comprovanti la avvenuta lesione dell'interesse relazionale, gli effetti negativi dispiegati
nella abitudini di vita del soggetto; da tutte queste circostanze, il cui artificioso isolamento si
risolverebbe in una lacuna del procedimento logico (tra le tante Cass. n. 13819 del 18 settembre
2003), complessivamente considerate attraverso un prudente apprezzamento, si può
coerentemente risalire al fatto ignoto, ossia all'esistenza del danno, facendo ricorso, ex art. 115
c.p.c., a quelle nozioni generali derivanti dall'esperienza, delle quali ci si serve nel
ragionamento presuntivo e nella valutazione delle prove”.
271 In particolare si v. Cass civ. sez. III n. 16448/2009 ove si a
h ‟
liquidazione, per ogni danno privo delle caratteristiche della patrimonialità, è quella equitativa.
Una precisa quantificazione pecuniaria è solo quando esistano dei parametri normativi fissi di
commutazione, in difetto degli stessi non può mai essere provato il suo preciso ammontare
fermo restando il dovere del giudice di dar conto delle circostanze di fatto e di diritto da lui
apprezzate nel compimento della valutazione equitativa e del percorso logico giuridico che lo ha
condotto a quella soluzione.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
221
. 1226
2056
. .272
z
z
è ‟
z
h
z
P
273.
h
h
q
z
‟
276
‟
q
274
h
275
z
z
‟
q
q
h
q
.
Sulla valutazione equitativa si v. C. CASTRONOVO, Il danno alla persona tra essere e avere,
in Danno e resp., 2003, p. 237 s.; R. SCOGNAMIGLIO, Il danno morale, in Riv. dir. civ., 1957,
p. 597 s.; G. PONZANELLI, Le tre voci di danno non patrimoniale: problemi e prospettive, in
Danno e resp, 2004.
273 Sul punto si v. Corte dei Conti, Sezioni riunite, n. 10/2010.
274 G. PONZANELLI, Il “nuovo” art. 2059, in G. Ponzanelli (a cura di), il “nuovo” danno non
patrimoniale, Cedam, Padova, 2004, p. 66 s.
275 Si v. Cass. n. 3284/2008, in Danno e resp., 2008, p. 445 s. Nel caso in questione la pretesa
risarcitoria avanzata era stata avanzata in ordine alla collocazione di un lampione per
‟
z
z
z
consentire a eventuali
z
‟
. L
S
C
è
‟
h
q
conseguenza di un interesse costituzionalmente protetto, il quale va previamente individuato in
q
“ é
é
zz
z
”.
276 Cfr. in tema di disastro ambientale, Cass. n. 11059/2009 nella quale si fa riferimento
‟
z
q
h
.
In particolare la Corte afferma che è ammissibile il risarcimento del danno non patrimoniale,
derivante dal reato di disastro ambientale, a coloro che si trovano con stabilità in prossimità del
è
‟
h
q
h
‟
zz
‟
h
anni.
272
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
222
SEÇÃO DE DOUTRINA:
Jurisprudência Comentada
AGRG NO RESP 827.143/DF: PRECEDENTE OU DECISÃO
JUDICIAL?
Marília Pedroso Xavier277
Resumo: A partir da análise do acórdão proferido no Agravo Regimental no
Recurso Especial n. 827.143/DF, que aplicou o texto literal do art. 218, §1º, da
Lei 8.112/1990, aos casos em que há concorrência entre dois ou mais
beneficiários de pensão por morte, o presente artigo procura questionar a
possibilidade de se considerar como precedente uma decisão judicial que
deliberadamente deixa de considerar os argumentos levantados pelas partes.
Para tanto, argumenta-se que a definição de um precedente depende dos
requisitos da potencialidade da decisão firmar-se como paradigma e do
enfrentamento de todos os argumentos relacionados ao caso pelo tribunal. Ao
final, observa-se que o tratamento de uma decisão com mero potencial de
aplicação como precedente pode ser extremamente prejudicial ao ordenamento
jurídico.
Palavras-chave: precedente; decisão judicial; fundamentação.
Abstract: From the analysis of the judgment on the Special Appeal no.
827.143/DF, which applied the literal text of art. 218, Paragraph 1, of Statute no.
8112/1990, to cases where there is a concurrence between two or more
beneficiaries to death pension, this article seeks to question the possibility to
consider as a precedent the judicial decision that deliberately fails to consider
the arguments raised by the parties. For this, it is argued that the definition of a
Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora das Faculdades Integradas do
Brasil e do Centro Universitário Curitiba. Advogada.
277
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
223
precedent depends on the requirements of the potentiality of the decision to
establish itself as a paradigm and the confrontation of all arguments related to
the case by the court. At the end, it is observed that the treatment of a decision
with mere potential of application as a precedent can be extremely harmful to
the legal system.
Keywords: precedent; judicial decision; reasoning.
Sumário: 1. Introdução – 2. Breve exposição do REsp 827.143/DF – 3. Ausência
de respeito à segurança jurídica – 4. Respeito ao princípio da autonomia
privada – 5. Respeito ao princípio da boa-fé e vedação do venire contra factum
proprium – 6. Enriquecimento sem causa – 7. Observância do princípio da
distributividade na prestação – 8. Conclusão.
Não se pode trazer, apenas por
força de interpretação literal da lei,
a conclusão de que, com a morte do
segurado, toda a situação de fato se
alterou de um dia para o outro, com
vistas a igualar o percentual de
recebimento de pensão, sob pena de
se retirar de quem necessita do
percentual maior, para atribuir
mais a quem antes não necessitava
de
tanto.
(TRF2,
AC
20025101503923-2/RJ, Rel. Juiz
Federal
Abel
Gomes,
DJU
08/08/2005)
1. Introdução
Luiz Guilherme Marinoni afirma que precedente não é sinônimo de
decisão judicial.278 Para o autor, fundado na melhor doutrina internacional, só
há sentido falar em precedentes quando se observa que uma decisão é dotada de
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais,
2010, p. 215.
278
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
224
í
“
idade de se firmar como
çã
”. 279 Sem
esta pretensão de universalidade, tem-se uma simples decisão judicial. Mas
ã
:
“é
q
decisão enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de
” 280 deste modo conferindo
materialidade ao direito legislado.281
Ainda, convém mencionar que o precedente pode ser formar a partir de
um conjunto de decisões, a que se dá o nome de jurisprudência. É de se notar,
porém, que a jurisprudência pode ou não formar um precedente, pois para
Marinoni esta definição depende dos requisitos da pretensão de universalidade
e da completude do julgado ao analisar os argumentos pertinentes.
E
í
“é
í
z
q
é
ã q
elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a
”.282 Para tanto, a decisão precisa ser contundente ao acolher e rejeitar
argumentos, bem como se mostrar adequada para a orientação dos demais
juízes e cidadãos.
Deve-se ressaltar, porém, que os requisitos estabelecidos por Marinoni
estão em planos distintos, sob uma ótica hartiana: a qualidade da decisão de
acolher e rejeitar argumentos de forma exauriente encontra-se na dimensão
interna, ou seja, está relacionada à possibilidade de completude e
inteligibilidade do discurso jurídico.283
Por outro lado, o requisito da referida potencialidade de se firmar como
um paradigma de orientação está relacionado à dimensão externa, pois sua
constatação depende mais do tribunal que proferiu a decisão e de uma
constatação de eficácia social do que, propriamente, das qualidades da decisão
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais,
2010, p. 215.
280 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais,
2010, p. 216.
281 PUGLIESE, William Soares. Teoria dos Precedentes e Interpretação Legislativa. Dissertação
(Mestrado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 80 e ss.
282 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais,
2010, p. 216.
283 Ver, neste sentido, HART, H. L. A. The concept of Law. 3ª Ed. Oxford: Oxford University
Press, 2012; SHAPIRO, Scott J. What Is the Internal Point of View? 75 Fordham L. Rev. 1157,
2006.
279
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
225
judicial. Em outras palavras, esta característica, quando vista de modo isolado,
significa que pode se tornar um precedente qualquer decisão, desde que
proferida por um tribunal de alta hierarquia e de sua aplicação posterior pelos
demais magistrados.
É justamente esta a hipótese que se pretende apresentar e discutir no
presente artigo: como se classifica e quais são os efeitos de uma decisão
argumentativamente pobre mas com potencial de generalidade? Ou, de modo
ainda mais objetivo, como tratar uma decisão do Superior Tribunal de Justiça
que não apreciou todos os argumentos necessários para concluir a análise da
questão, mas ainda assim passa a ser aplicada pelos demais magistrados e
h
“
”?
Infelizmente, esta hipótese não se verifica apenas na teoria, como se
observa no seguinte julgado:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO.
PENSÃO VITALÍCIA. SERVIDOR PÚBLICO. MAIS DE UM
BENEFICIÁRIO HABILITADO. DIVISÃO EM COTAS-PARTES
IGUAIS. ART. 218, § 1º, DA LEI Nº 8.112/90.
Nos termos dos arts. 217 e 218, § 1º, ambos da Lei nº 8.112/90,
havendo mais de um beneficiário habilitado à percepção do benefício
de pensão por morte de servidor público, o rateio deste será feito em
cotas-partes
iguais.
Agravo regimental desprovido.284
A decisão acima é responsável por um fenômeno pouco conhecido,
inesperado e temerário que pode ser assim sintetizado: após o falecimento do
servidor público, todos os beneficiários da pensão por morte do de cujus
dividem o benefício em partes iguais, sem consideração dos valores percebidos
antes da morte. Na prática, o resultado é o de que um dos beneficiários pode ser
“
”
ã
enquanto outro deverá suportar a dor de perder o companheiro e grande parte
da renda familiar.
O caso julgado não só decidiu uma situação concreta mas também
firmou o entendimento do STJ a respeito do tema, e por consequência
determinou o rumo a seguir de toda a jurisprudência. Apesar disso, de todos os
argumentos e fundamentos que mereciam ser considerados no caso, a corte
utilizou apenas um: a literal aplicação de dispositivo legal.
BRASIL. STJ. AgRg no REsp 827.143/DF, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,
julgado em 21/11/2006, DJ 05/02/2007, p. 358.
284
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
226
Tem-se aqui, lamentavelmente, uma decisão exatamente como a
concebida na hipótese acima firmada, ou seja, destituída de fundamentação mas
com amplo potencial para ser seguida. Aliás, é o que o próprio STJ vem
praticando:
DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR
PÚBLICO FEDERAL. PENSÃO POR MORTE. MAIS DE UM
BENEFICIÁRIO HABILITADO. DIVISÃO EM PARTES IGUAIS. ART.
218, § 1º, DA LEI 8.112/90. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. Nos termos dos arts. 217 e 218 da Lei 8.112/90, havendo a
habilitação de vários titulares à pensão vitalícia (no caso viúva e exesposa separada judicialmente, com percepção de pensão alimentícia),
o valor do benefício deverá ser distribuído em partes iguais entre eles.
Precedentes do STJ. 2. Recurso especial conhecido e provido. 285
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENSÃO POR
MORTE DE MAGISTRADO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI N.º
8.112/90. BENEFICIÁRIAS LEGALMENTE HABILITADAS. RATEIO
EM PARTES IGUAIS. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS
FUNDAMENTOS.
1. A Agravante não trouxe argumento capaz de infirmar as razões
consideradas no julgado agravado, razão pela qual deve ser mantido
por seus próprios fundamentos.
2. Diante da ausência de previsão expressa na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional acerca do presente tema, é cabível a aplicação
analógica do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União
– Lei n.° 8.112/90.
3. Nos termos do art. 217 c.c.o 218, § 1.° da Lei n.º 8.112/90, a divisão
da pensão vitalícia entre as beneficiárias habilitadas deve ser
feita em partes iguais. Precedentes.
4. Agravo regimental desprovido. Petição n.º 204868/07 não
conhecida.286
Uma vez constatado que uma decisão com fundamentação deficitária
alcançou o status de precedente, como mencionado pelas decisões do próprio
STJ, passa a ser imprescindível sua análise.
Destaque-se, porém, que comentar uma decisão judicial não significa
um ataque pessoal ao relator ou ao tribunal responsável pelo julgamento. Pelo
contrário, este é um dos papeis da doutrina,287 que deve se manter atenta às
decisões em busca do constante aprimoramento do Direito.
BRASIL. STJ. REsp 721.665/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA
TURMA, julgado em 08/05/2008, DJe 23/06/2008
286 BRASIL. STJ. AgRg no RMS 24.098/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA,
julgado em 26/06/2008, DJe 04/08/2008.
287 Sobre o tema ver: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência
(ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais. v. 891. São Paulo, 2010, p.
65-106; SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e
eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 33 e ss.
285
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
227
Para cumprir seu objetivo, o artigo apresentará de forma breve as
circunstâncias que deram origem ao caso e às razões que fundamentam o
acórdão. Em seguida, serão considerados outros fundamentos ignorados pelo
Tribunal e sumariamente excluídos do âmbito de conhecimento da decisão. Ao
final, será considerada a validade da definição de precedente diante do caso em
apreço com vistas à necessidade de mudança de postura diante das decisões
judiciais quando precedente não reflete entendimento adequado.
2. Breve exposição do REsp 827.143/DF
No ano de 2006, foi distribuído à Quinta Turma do STJ o recurso
especial 827.143/DF, que teve como relator designado o Min. Felix Fischer. A
recorrente questionava a aplicação literal dos artigos 217 e 218, ambos da Lei
8.112/91, que determina a divisão em partes iguais da pensão por morte do
servidor público. No caso concreto, a recorrente era a companheira do de cujus
que viveu a seu lado até o último dia; do outro lado, encontrava-se a ex-esposa,
que percebia 13% (treze por cento) de seus vencimentos em vida, percentual
definido por decisão judicial.
Monocraticamente, o relator considerou apenas que a ex-esposa do de
cujus recebia pensão alimentícia por conta do divórcio e que, por consequencia,
era titular da pensão vitalícia juntamente com a companheira do servidor
falecido. Por conta disso, aplicou a literalidade da lei ("ocorrendo habilitação de
vários titulares à pensão vitalícia, o seu valor será distribuído em partes iguais
entre os beneficiários habilitados") e decidiu que a pensão fosse rateada entre as
duas beneficiárias, companheira e ex-esposa.
Provocado por agravo regimental a levar o caso para o colegiado, o
Ministro relator apresentou seu voto, fundamentalmente idêntico à decisão
monocrática e com ele votaram os demais ministros. Note-se, portanto, que não
houve qualquer dissidência no julgamento.
Em uma última tentativa, a recorrente opôs embargos de declaração
questionando que o acórdão "teria dado tratamento igual a duas beneficiárias de
pensão que se encontram em situações jurídicas distintas relativamente ao de
cujus". O que a recorrente pretendia, aqui, era demonstrar que uma das
pensionistas teria uma evidente diminuição de seu padrão de vida enquanto a
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
228
outra receberia um aumento da pensão e que estas duas consequências teriam
como origem a morte de um indivíduo.
Ao julgar os embargos de declaração, os argumentos do recurso foram
novamente afastados e não apreciados, sob o exclusivo fundamento de que a
legislação aplicável à espécie regula o tema de forma cogente e impõe a divisão
da pensão em partes iguais.
Esta decisão, que aplicou friamente o texto da lei sem considerar os
argumentos da parte recorrente e sem observar os efeitos produzidos pelo
entendimento tomado, tornou-se o precedente firmado pelo STJ a respeito da
matéria. Neste sentido, passou a ser amplamente aplicado pelos tribunais
brasileiros que reduziram a pensão de uns e ampliaram a de outros, com
fundamento na morte de um servidor público.
O caso narrado suscita ao menos duas questões. A primeira diz respeito
aos riscos de se firmar um precedente sem ampla discussão das questões em
juízo. A segunda volta-se, justamente, aos fundamentos não considerados pela
corte: segurança jurídica, autonomia privada, o enriquecimento a partir da
morte de uma pessoa, dentre outros. Os itens seguintes apresentarão tais
argumentos com a intenção de demonstrar que o caso em análise tem uma
dimensão muito mais ampla e que a ele não é adequado a simples aplicação do
texto legal.
Ao final, retorna-se à primeira pergunta, se os precedentes firmados
sem discussão aprofundada podem ser considerados pelos tribunais e se
vinculam os demais juízes e o jurisdicionado.
3. Ausência de respeito à segurança jurídica
Não foi apenas o julgado, mas é possível afirmar que o próprio artigo
218, §1º da Lei 8.112/1990 desrespeita a garantia de constitucional da segurança
jurídica, especialmente nos planos da coisa julgada e do ato jurídico perfeito.
Neste sentido, a exigência literal da norma não pode prevalecer diante das
decisões proferidas e transitadas em julgado. Afinal, as decisões dos juízos de
família costumam são mais acuradas do que a previsão geral da Lei 8.112/90,
uma vez que para definir o valor dos alimentos leva-se em consideração as
necessidades e possibilidades dos envolvidos.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
229
A legislação previdenciária, ao definir um único critério para a divisão
da pensão por morte, deixa de observar que o caso pode ter sido previamente
analisado pelo Judiciário e ter uma decisão coerente e adequada regulando-o.
Vale destacar, aqui, que a no mesmo período que o precedente do STJ
foi firmado haviam outros entendimentos a respeito da matéria. Dentre as
decisões então proferidas, destaca-se a seguinte:
ADMINISTRATIVO. RATEIO DE PENSÃO POR MORTE ENTRE A
VIÚVA E EX-ESPOSA. PENSÃO ALIMENTÍCIA DEVIDA À EXESPOSA FIXADA POR SENTENÇA DO JUÍZO DE FAMÍLIA.
RESPEITO À COISA JULGADA. INTELIGÊNCIA DOS ART. § 1º ART.
128 DA LEI 8.112/90 e § 2º ART. 76 DA LEI 8.213/91.
Recurso de apelação interposto para reformar a sentença que manteve
a divisão igualitária de pensão por morte de servidor entre a viúva e a
ex-esposa. A interpretação da norma deve ser feita no sentido de
adequá-la à coisa julgada, expressa na sentença proferida pelo Juízo
de Família, que fixou os alimentos devidos à ex-esposa em observância
às necessidades da mesma. Reforma da sentença para que o rateio
respeite os alimentos fixados em ação própria, devendo a viúva
ç .R
.”288.
Além dos casos transitados em julgado, também é importante
considerar que após a Lei 11.441/2007, os divórcios de casais sem filhos
menores de idade podem ser realizados por escritura pública, na qual pode
haver estipulação de pensão alimentícia. O divórcio direto assinado pelas partes
é um caso de ato jurídico perfeito, assim definido o ato realizado e acabado de
acordo com a lei vigente ao tempo em que se efetuou. Se este ato seguiu os
requisitos formais para gerar a plenitude de seus efeitos, ele se torna perfeito. A
este respeito, vale destacar os requisitos legais exigidos pelo art. 1.124-A, do
Código de Processo Civil, incluído pela Lei 11.441/2007:
Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não
havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os
requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por
escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à
descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda,
ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou
à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
§ 1o A escritura não depende de homologação judicial e constitui título
hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
Por outro lado, a Lei 8.112/90 considera todo cônjuge que percebe
alimentos como beneficiário vitalício. Independentemente da origem – se por
decisão judicial ou por escritura –, a sorte dos alimentandos também é alterada
BRASIL. TRF da Segunda Região; Apelação Cível – Processo n. 1999.51.01.059876-0; Oitava
Turma Especializada; Relatora Juíza Maria Alice Paim Lyard; 26/09/2006.
288
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
230
pelo falecimento do servidor público, sendo sempre divididas em partes iguais.
Portanto, pelo entendimento do STJ, nem a coisa julgada nem o ato jurídico
perfeito sobrevivem diante da conversão da pensão alimentícia em pensão por
morte.
Não por acaso, é razoável sustentar que a interpretação da norma
prevista no art. 218, §1º, da Lei 8.112/90 poderia ser interpretada à luz da coisa
julgada e do ato jurídico perfeito, de modo que a divisão em partes iguais fosse
aplicada apenas na hipótese de não haver previsão anterior a respeito da divisão
das quotas da pensão. Nos demais casos, por força do princípio da gravitação
jurídica, a pensão por morte (assessória) segue a sorte da pensão alimentícia
(principal).
4. Respeito ao princípio da autonomia privada
Da mesma forma que a decisão em comento não respeitou a exigência
constitucional de preservação da segurança jurídica, a aplicação irrazoada do
art. 218, §1º, da Lei 8.112/1990, também viola a autonomia privada. Entendida
como o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria
vontade, as relações de que participam289, esta garantia parte do pressuposto
que as normas jurídicas de natureza patrimonial são disponíveis.
Desta forma, na hipótese em que as partes estipulam consensualmente,
mediante acordo judicial ou extrajudicial, os valores da pensão alimentícia, não
cabe à legislação previdenciária impor uma modificação na relação jurídica
previamente consolidada. Também, se o quantum fixado pelo magistrado não
for impugnado, parte-se da premissa que houve concordância de ambas as
partes ou a conformação com o resultado da demanda.
Destaque-se, ainda, que a manutenção da divisão dos valores da pensão
nos moldes fixados ainda em vida não importa em qualquer prejuízo para os
cofres públicos. Trata-se, simplesmente, de uma revisão da interpretação da
legislação,
beneficiando
a
parte
que mais
necessita
com
um valor
proporcionalmente maior.
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
347.
289
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
231
5. Respeito ao princípio da boa-fé e vedação do venire contra factum
proprium
Tem-se como um princípio geral do Direito Civil, mais especificamente
do Direito Obrigacional e da Boa-fé no Direito Privado, a regra de que a
ninguém é dado agir contra um fato previamente praticado – nemo potest
venire contra factum proprium290.
Quer isto dizer que na medida em que a parte eventualmente concorda
com um determinado pensionamento quando da assinatura do divórcio, não
tem o direito de pleitear sua revisão simplesmente porque a parte alimentante
faleceu.
Sabe-se que a matéria de alimentos admite revisão a qualquer tempo.
No entanto, essa revisão deve ser fundamentada em uma mudança de estado
posterior ao momento em que o pensionamento foi fixado, caso contrário,
incide sobre o caso a proteção da coisa julgada ou do ato jurídico perfeito.
Se algum fato tivesse prejudicado a situação econômica de uma das
partes, caberia ajuizar uma ação de revisão de alimentos, medida processual
adequada para rever esse valor. Sendo assim, não se observa qualquer
fundamento para que o valor seja dividido entre dois pensionistas de forma
absolutamente igual.
6. Enriquecimento sem causa
D
. 884
Có
C
“[ ]q
q
causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o
z çã
”. T
-se da
definição de enriquecimento sem causa.
No presente caso, deve ser problematizado o fato de que subitamente
haverá uma alteração radical no quantum da pensão alimentícia justamente no
momento de fragilidade de um parente próximo. Enquanto uma parte verá seus
Nesse sentido, ver SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório:
tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007.
290
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
232
proventos reduzidos, a outra perceberá considerável aumento injustificado. O
fato descrito pode, assim, configurar o enriquecimento sem causa.
Talvez o ponto mais sensível seja que a leitura literal do art. 218, §1º, da
Lei 8.112/1990 conduz ao seguinte resultado paradoxal: para uma das partes,
geralmente a que menos tinha vínculo, a morte do servidor terá natureza
premial.
O que deve pesar para o órgão previdenciário, ao analisar a divisão da
pensão, são os princípios norteadores da família e da dignidade da pessoa
humana. Desta forma, a divisão das cotas de pensão deve ser realizada sem
conferir a nenhum dos beneficiários qualquer tipo de vantagem exagerada.
Neste sentido, apresenta-se outra decisão que apreciou caso semelhante
em que acertadamente se refutou a interpretação literal do art. 218, §1º, da Lei
8.112/1990:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE
SEGURANÇA CONTRA ATO DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
DO E. TRF 2A REGIÃO. PENSÃO POR MORTE. RATEIO DE
PENSÃO ESTATUTÁRIA DE JUIZ FEDERAL. DIVISÃO ENTRE A
EX-ESPOSA, VIÚVA E COMPANHEIRA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO
A DIREITO LÍQUIDO E CERTO DAS IMPETRANTES.
1. Decisão do Conselho de Administração deste E. TRF da 2a Região
concedendo pensão vitalícia por morte de magistrado à ex-esposa e à
viúva, mantendo o percentual já auferido pelas Impetrantes a título de
alimentos, destinando o percentual restante à companheira que
manteve com o falecido entidade familiar até o seu óbito.
2. Ato administrativo que rende homenagem aos princípios
consagrados na Constituição Federal de proteção à família, mormente
considerando a realidade fática. Manutenção por seus próprios
fundamentos.
3. Interpretação funcional e teleológica do art. 218, § 1º da Lei nº
8.112/90, em consonância com os princípios norteadores da ordem
constitucional.
4. Ausência de violência a direito líquido e certo das Impetrantes, que
não tiveram qualquer alteração fática, no que tange à necessidade do
pensionamento, em razão do falecimento do instituidor do benefício.
5. Denegação da Ordem.291
Também merece destaque julgado do ano de 2005, portanto anterior ao
“
”
STJ q
z
ã
para o patamar que orientou o pagamento dos alimentos em vida. Além de
constar na própria epígrafe deste artigo, destaca-se o seguinte trecho:
"O só fato de ser cônjuge não pode fazer com que se majore uma
pensão por ocasião da morte do segurado, além daquilo que
necessitava o outro cônjuge que antes vivia sob dependência
291
BRASIL. TRF2, MS 20030201006967-4/RJ, Rel. Juiz Federal Paulo Barata, DJ 24/11/2006.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
233
econômica dele. Assim como não será o fato de ser companheira, que
acarretará a majoração do percentual que recebia em vida, de
alimentos incidentes na aposentadoria do segurado, se era este o
percentual que cobria a necessidade econômica da referida
h
”.292
Igualmente nesta tônica, desde 1998 já se encontravaM fundamentações
semelhantes ao da decisão acima transcrita. Em caso levado a julgamento
naquele ano, o Poder Judiciário entendeu que não admite à divorciada ter sua
pensão majorada em razão do falecimento do instituidor, até porque não é
viúva. Deveria receber a mesma proporção que recebia, a título de pensão,
quando ainda em vida o alimentante 293.
Ora, causa estranheza que nenhuma dessas decisões tenham sido
mencionadas no julgado selecionado para comento. Ao contrário, o tom
utilizado na decisão monocrática do AgRg no REsp 827.143/DF é de obviedade
na aplicação da letra da lei.
7. Observância do princípio da distributividade na prestação
O princípio da distributividade, próprio do Direito Previdenciário,
refere-se à seleção das pessoas que deverão ser protegidas prioritariamente pela
Seguridade Social. A preocupação relacionada à distributividade é a de atender,
prioritariamente, aqueles indivíduos que estão em maior estado de necessidade.
Em consonância com o princípio da distributividade, o TRF da Quarta
Região já decidiu em sentido diverso do empregado pelo caso paradigma do
STJ, embora a legislação interpretada tenha sido a de pensão de militares:
ADMINISTRATIVO. MILITAR. PENSÃO. ORDEM DE PRIORIDADE.
RATEIO. EX-ESPOSA, VIÚVA E FILHA. LEI 3.765/60. A parcela
deixada à viúva se sujeita a rateio, com a ex-esposa pensionada ou
companheira, eis que o direito de ambas origina-se da relação
conjugal. A cota-parte da pensão devida à ex-esposa deve guardar
proporção com os proventos que auferia quando o de cujus ainda era
vivo, em face de acordo realizado por ocasião do divórcio. Consoante
dispõe a legislação de regência, os filhos oriundos de outro
matrimônio, ou de outro leito, fazem jus à metade da pensão.
BRASIL. TRF2, AC 20025101503923-2/RJ, Rel. Juiz Federal Abel Gomes, DJU 08/08/2005.
BRASIL. TRF4; Apelação Cível – 1996.0446149-4; Terceira Turma; Rel. Juíza Maria de
Fátima Freitas Labarrére; DJU: 25/11/1998.
292
293
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
234
Portanto, a metade da filha não pode ser alcançada para fins de rateio
com a mãe.294
Desta forma, em conformidade com o princípio da distributividade e
por força do direito fundamental à igualdade, parece adequada a interpretação
segundo a qual o pensionamento do ex-cônjuge deve ser proporcional aos
proventos que recebia quando o de cujus era vivo.
No direito brasileiro, à luz do princípio da justiça distributiva, o
princípio da isonomia deve ser lido com vistas ao alcance de uma igualdade
material que leve em conta a situação fática, e não uma mera igualdade formal e
matemática. É o que considerou o TRF2, em decisão que desafiou o precedente
do STJ:
DIREITO ADMINISTRATIVO – PENSÃO ESTATUTÁRIA – DIVISÃO
ENTRE VIÚVA E EX-ESPOSA DIVORCIADA – COTA-PARTE
CALCULADA DE ACORDO COM O PERCENTUAL FIXADO
JUDICIALMENTE NA AÇÃO DE ALIMENTOS.
I
- Trata-se de ação na qual a autora, viúva, objetiva a majoração
do percentual de sua pensão vitalícia de 50% para 85%, tendo em vista
que a segunda ré, ex-esposa divorciada, era beneficiária da pensão
alimentícia de 15% dos vencimentos do falecido instituidor da pensão;
II - Tendo sido fixada pensão alimentícia por sentença judicial para a
ex-esposa, os parâmetros adotados naquela decisão devem ser
respeitados no cálculo da pensão vitalícia, de forma a garantir o
sustento da dependente dentro dos limites da obrigação do ex-marido
çã
. T
z
ó
í
“ ”
I, do art. 217, da Lei 8.112/90, que indica a necessidade de se respeitar
a decisão judicial que estipulou alimentos a favor da ex-esposa.
Precedentes desta Corte;
III - Recursos e remessa a que se nega provimento.295
Como se vê, algumas decisões mais recentes indicam que o art. 218, §1º,
não deve ser interpretado de forma literal. Esta observação reacende a
esperança de que o Poder Judiciário tem condições de examinar criticamente a
sua própria produção, sempre em busca do aprimoramento das interpretações e
do esgotamento dos argumentos das partes.
8. Conclusão
BRASIL. TRF Quarta Região; Apelação Cível n. 2001.04.01.078846-7/RS; Terceira Turma;
Relatora Juíza Taís Schilling Ferraz, 30/02/2002.
295 BRASIL. TRF2. AC 200651020001587. Sexta Turma Especializada. Rel. Juíza Carmen Silvia
Lima De Arruda. J. 08/09/2010.
294
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
235
Após a detida análise do caso selecionado para análise, é chegada a hora
de se retornar à lição de Marinoni: precedente é a decisão judicial com (i)
potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos
jurisdicionados e dos magistrados e que (ii) enfrente todos os principais
argumentos relacionados à questão de direito posta na moldura do caso
concreto. A hipótese suscitada para desenvolvimento do trabalho era a de
investigar a natureza do ato judicial dotado apenas da primeira característica.
Seria a decisão dotada apenas da pretensão de universalidade um precedente?
É pouco mais do que evidente que não. Caso um ato dotado de simples
autoridade e generalidade tivesse, por si só, o condão de ser integrado ao
ordenamento jurídico, qualquer ato normativo aprovado pelo Poder Legislativo
e regularmente sancionado pelo Executivo seria válido, inclusive uma lei que
autorizasse a tortura, outra que regulasse atos de racismo e uma terceira que
conferisse a onze pessoas poder absoluto sobre o Estado. Pior: as três leis
cogitadas poderiam, neste caso, ter validade e eficácia pelo simples fato de
existirem, sem qualquer fundamentação ou justificativa.
O mesmo raciocínio se aplica à formação dos precedentes. Não é
suficiente que uma decisão judicial tenha sido proferida por um dos tribunais
superiores. Para que ela alcance o patamar de um verdadeiro precedente, o
tribunal deve examinar exaustivamente os argumentos, considerar todas as
teses levantadas e todos os possíveis resultados do julgamento. Não basta,
assim, que repita o texto legal.
Afirmar o contrário e chamar de precedente uma decisão destituída de
fundamentação é mais do que se afastar do conceito. Ao decidir de modo
sintético, como fez o STJ, a decisão se mostra em descompasso com os ditames
da legislação processual (seja do Código de 1973, em seu artigo 458, II, bem
como do Código vindouro) como também à Constituição da República de 1988,
especialmente o art. 93, IX.
Na hipótese em que a fundamentação é insatisfatória, as decisões não
podem ser tratadas como precedentes. Insistir nesta tese é condenar o Estado
brasileiro a um ciclo de incertezas e à pobreza argumentativa.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
236
PARECER
CONTRATO DE DE SEGURO. SUICÍDIO DO SEGURADO. ART. 798,
CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO. DIRETRIZES E PRINCÍPIOS DO
CÓDIGO CIVIL. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR.
Judith Martins-Costa1
Sumário.
I. Consulta. II. Parecer. A) D
í
“
”
hipótese do suicídio do segurado (i) Do Seguro como Contrato Comunitário. (ii)
D
í
q
ã
“
”
ã . B) D
çã
matéria no Código Civil de 2002. (i) Do art. 798: a diretriz da operabilidade e o
é
“S
C
”
h
A
e no Projeto de Código Civil. (ii) Da interpretação do art. 798 do Código Civil em
vista do sistema civil e constitucional, e de seus princípios e valores. III. Das
Conclusões sintéticas.
I. Consulta
O
ilustre
Colega,
Doutor
Moulin
Vert,
procurador
da
Seguradora
Pamplemousse, dá-me a honra de formular Consulta acerca da interpretação a
ser conferida ao texto do art. 798 do Código Civil de 2002, versando sobre o
Livre Docente e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Lecionou entre
1992 e 2010 na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado, as disciplinas: Direito Civil (Parte Geral,
Obrigações e Contratos); Fundamentos Culturais do Direito Civil; Direito Comparado e História
do Direito. É atualmente Professora Colaboradora no Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Medicina da UFRGS e profere palestras em Universidades brasileiras e estrangeiras.
Escreveu, entre outros, os livros: A Boa-Fé no Direito Privado (1999); Diretrizes Teóricas do
Novo Código Civil Brasileiro (2002); Comentários ao Novo Código Civil - Do Adimplemento das
Obrigações (2005); Comentários ao Novo Código Civil - Do Indimplemento das Obrigações
(2009); Narração e Normatividade (org., 2012); Modelos do Direito Privado (org., 2014). É
Presidente do Comitê brasileiro da Association Internationale des Sciences Juridiques e Vicepresidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC).Também atua como Árbitra e Parecerista
em litígios civis e comerciais no Brasil e no Exterior.
1
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
237
“
z
”
q
suicídio do segurado. A Consulta vem formulada nos seguintes termos:
"Senhora Professora,
Na qualidade de procurador da Seguradora Pamplemousse, vimos
consultar V. Senhoria acerca da interpretação a ser conferida ao art. 798 do
Código Civil de 2002.
Nesse sentido, pediríamos a atenção de V. Senhoria em especial para os
seguintes tópicos:
a)
A evolução legislativa do CC, tanto omissiva como comissivamente, no
que se refere ao pré-falado artigo 798 do CC, admite a conclusão de presunção
absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
b) A recepção do Substitutivo de lei do Eminente Mestre Fábio Konder
Comparato, municiado da sua indiscutível exposição de motivos, e consagrada,
positivamente, na derradeira exposição de motivos do CC, da lavra do Eminente
Mestre Miguel Reale, admite, no que se refere ao artigo 798 do CC, a conclusão
de presunção absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou
recondução?
c)
A não-recepção do Esboço ou Anteprojeto do CC de 1965, no que se refere
ao artigo 798 do CC, prejudica a aceitação, para fins de norte da doutrina do
Eminente Mestre Caio Mario da Silva Pereira?
d)
As súmulas 105 do STF (que inclusive despreza a carência, reconhecida
nos artigos 797 e 798 do CC) e 61 do STJ, amplamente conhecidas na gestação
CC
q
“
ô
”
í
doravante e durante o hiato do artigo 798 do CC?
e)
O artigo 798 do CC, cuidando do suicídio, sem qualquer indexação,
h
çã
(“
”)
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
çã
238
Código Beviláqua e com o Anteprojeto de 1965, admite a conclusão de
presunção absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou
recondução?
f)
A
çã
E
CC
“
798
”
P
CC
“
”
L
ã
mens legis (não se falando da discricionariedade propiciada pelas cláusulas
abertas), em vertente hermenêutica, pelo Poder Judiciário?
g)
A ruptura legislativa do CC de 2002, lançando idéia inédita na discussão
quanto ao suicídio (artigo 798 do CC), admite a manutenção/utilização do
mesmo universo/desfecho jurisprudencial de outrora, antes do seu nascimento?
h)
A
çã
h
“
ó
”
798
CC
banimento ou o seu endereçamento ao beneficiário?
i) O entendimento de presunção relativa de suicídio premeditado, a partir e com
é
798
CC
“
”
considerando a perpetuação do tormentoso ônus da carga dinâmica das provas?
Esses motes, resumidos, são alguns vetores, sem embargo de outros, para o
pleno exercício e fomento intelectual de V.Exa., preambularmente, apenas no
que se refere à decisão de enfrentamento, formal, da quaestio.
Acompanha esta: (i) cópia do substitutivo de lei do Eminente Mestre Fábio
Konder Comparato; (ii) cópia do acórdão proferido pelo TJRS; (iii) indicações
doutrinárias.
No mais, insistimos no agradecimento pela disponibilidade, cordialidade e,
sobretudo, sinceridade de V.Exa., a quem rendemos, independente do parecer
pretendido, as mais altas homenagens científicas, acadêmicas e profissionais.
No vosso aguardo.
Dr. Moulin Vert
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
239
Passo, em separado, a emitir o meu parecer.
De Porto Alegre para o Rio de Janeiro, em 25 de junho de 2008,
II. Parecer
1. O questionamento proposto pelo ilustre Consulente exige a apreciação
prelim
í
“
”
q
hipótese de suicídio do segurado tal qual regulado no art. 1.440, parágrafo
único, do Código de 1916, origem da orientação sumulada indicativa da
çã
“
í
”
“
í
” (P
A).
Subsequentemente deverei determinar o sentido e o alcance da regra do art. 798
do Código Civil de 2002 para o que se fará necessário buscar as suas raízes,
trazendo à baila os critérios para a sua adequada interpretação (Parte B).
Ultrapassados esses pontos poderei expressar, em modo conclusivo, as razões
de minha convicção, respondendo aos quesitos propostos (Conclusão).
A) Do modelo jurídico do “seguro de pessoa” e da hipótese do
suicídio do segurado
2. O contrato de seg
h
“
”
classificação que pretende por em evidência a sua base transindividual, pois
impensável seria o seguro na relação exclusivamente intersubjetiva (i). Dentre
as hipóteses de seguro de pessoa está a que contempla o suicídio do segurado,
tema a que subjaz à regulação legal uma perspectiva mais ampla, de ordem
meta-jurídica (ii).
(i) O Seguro como Contrato Comunitário.
3. Muito embora apresente peculiaridades relativamente aos seguros de danos,
o seguro de pessoa não foge ao modelo geral do seguro como contrato
tipicamente comunitário. Isto significa dizer que, d
contraposição de interesses individuais
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
- -
240
z
(
çã
í
çã
.C
í
z O í
)
B
S
“um sistema de poupança, ou de economia coletiva, impensável quando
ajustado individualmente2”.
4. Todo e qualquer contrato constitui, nas conhecidas palavras de Enzo Roppo3,
a
veste
“
jurídica
”
de
determinada
í
operação
ã é
econômica.
A
ô
dimensão
í
pelas letras dos textos legais ou dos livros de doutrina, antes refletindo uma
ó
“uma realidade de interesses, de relações, de
situações econômico-sociais, relativamente aos quais cumpre, de diversas
maneiras, uma função instrumental4”. Assim sendo, falar em contrato significa,
“explícita ou implicitamente, direta ou indiretamente, para a
idéia de operação econômica5”.
4.1. A operação econômica que está na base dos diferentes tipos contratuais é
apreendida, no Direito, pela idéia de causa, ao sentido que dá a essa expressão
Emílio Betti6, isto é, determinada função econômico-social que o particulariza
frente aos demais tipos contratuais, refletindo determinado escopo prático
típico que governa a circulação de bens e a prestação dos serviços, conforme
D
.A
é
çã
“razão
prática típica que lhe é imanente (...) um interesse social objetivo e socialmente
verificável” 7, ao qual o negócio deve corresponder.
2BAPTISTA
DA SILVA, Ovídio, Natureza Jurídica do Monte de Previdência, in Anais do II
Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho, Porto Alegre, novembro de 2001, p. 105.
3ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,
Almendina, 1988.
4ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,
Almendina, 1988, p. 7.
5ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,
Almendina, 1988 p. 8.
6BETTI, Emilio, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I, tradução de MIRANDA, Fernando,
Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 333 e ss.
7BETTI, Emilio, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I, tradução de MIRANDA, Fernando,
Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 334.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
241
4.2. Assim sendo, para compreender a causa, ou função social típica do contrato
de seguro, é preciso, como pressuposto iniludível alcançar a idéia que lhe subjaz
orientando teleológicamente a sua função. Essa é, justamente, a idéia de relação
jurídica comunitária expressa pela técnica do mutualismo e revelada pela
obrigação principal do segurador, de garantir risco previamente determinado,
mediante o pagamento de um prêmio, como ora está no texto do art. 757 do
Có
C
(“
çã
”).
5. A noção de comunidade subjaz ao contrato de seguro, em primeiro lugar,
porque este é um mecanismo de diluição de riscos e sempre que há um risco,
seja provocado por acidentes naturais, seja pela vida em sociedade, os homens cuja existência “n‟est que une quête de securité 8” - esperam estar mais bem
protegidos se reagrupando.
5.1. Na impossibilidade de eliminar os riscos, busca-se, pelo seguro, oferecer
paliativos às suas conseqüências, mediante a diluição dos seus efeitos. E diluir
significa, como express V
q
N
“se regrouper pour constituer une
collectivité, repartir sur plusieurs ce que quelques uns ont subi”9.
5.2. Uma coletividade não é formada, todavia, pela mera soma de
individualidades, já tendo percebido a filosofia grega que o todo não é apenas a
mera soma das partes: no todo, há um plus que se agrega, e este é o interesse
comum ao grupo ou a coletividade de interessados. Esse interesse é
inconfundível com cada interesse isoladamente considerado. É justamente a
existência de um interesse comum a todos os membros que conduz à idéia de
é
“
”
a visualização do interesse contratual típico, qualificador do seguro como tipo
contratual. Interesse - ensina a etimologia - é o inter est, o quid que está entre a
8NICOLAS,
Véronique, Essai d‟une nouvelle analyse du contrat d‟assurance, Paris, LGDJ,
1996, p. 11. Em tradução livre : «
é
q
ç ”.
9NICOLAS, Véronique, op. cit., p. 11. Em tradução livre: « reagrupar-se para constituir uma
coletividade, repartir sobre muito q
q
”.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
242
pessoa (o credor) e o bem, tendo em vista a necessidade ou a utilidade que pode
ser proporcionada por aquele bem10.
5.3. Esse modelo contratual não se iguala àqueles outros baseados na
contraposição de interesses individuais. Por isso mesmo, é preciso –
principalmente no plano hermenêutico - compreender o contrato de seguro
como um arranjo jurídico-econômico distinto dos vínculos bilaterais que unem
indivíduos isolados e cujos interesses são contrapostos. É que, no contrato de
seguro a idéia de comunidade reside em sua própria natureza, consistindo,
z C
P
“uma técnica a serviço do interesse geral”11
estruturada sobre a base econômica comunitária apreendida pela técnica
jurídica por meio do mecanismo do mutualismo.
6. O mutualismo é um mecanismo econômico e contábil no qual assentada toda
a técnica do seguro como operação jurídico-econômica. Partindo-se do
pressuposto de que é mais fácil suportar coletivamente as conseqüências
danosas dos riscos individuais do que suportá-las sozinho, distribui-se,
"pulveriza- ”
ã
todos os participantes da operação o prejuízo patrimonial do dano, o que é feito
por meio do mutualismo. Esse mecanismo, afirma STiglitz12 e explicitam
Tz
k
O
“linha mestra da estruturação jurídica da
operação securitária”13. Para esses autores, com efeito, “a função social do
seguro revela-se de forma cristalina: garantir, com o auxílio de muitos, que a
desorganização que atingiu a uns poucos possa ser superada. Satisfaz-se o
interesse de todo o ´sistema´ em questão, uma vez que as relações podem
]é
”
J ã C ã
é“
q
considera útil, isto é, apto a
z
”. (CALVAO DA SILVA J ã .
Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4ª ed. Coimbra, Almedina, 2002, p. 61 e nota
121).
11CALMON DE PASSOS, J. J, A atividade securitária e sua fronteira com os interesses
trasindividuais – responsabilidade da SUSEP e competência da Justiça Federal, RT 763, p. 97.
12STIGLITZ, Rubén S. Derecho de Seguros, T. I, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 3ª edição
atualizada, 2001, p. 27.
13TZIRULNIK, Ernesto, e OCTAVIANI, Alessandro, Fraude contra o seguro, Revista dos
Tribunais v. 722, p. 12.
10
“A
q
G
q
[
q
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
243
continuar a se desenvolver, de tal forma que praticamente não sejam sentidas as
qü
”14.
6.1. Direcionado pelos valores jurídicos do interesse comum e da função social
do contrato, o mutualismo é estruturado consoante modelos matemáticos que
determinam preços, estabelecendo equilíbrio entre as receitas e despesas de um
plano de seguro por um período de cobertura determinado15 (“
”). O
é
custos entre os segurados e patrocinadores dos planos de seguros16. Conforme
se trate de seguro de danos ou de pessoas será diversa a equação, havendo ainda
distinções entre as espécies, pois no seguro para o caso de morte (incluso aos
seguros de pessoas) o risco é a morte do segurado, sendo o prêmio estipulado de
acordo com a taxa de mortalidade de pessoas com condições normais de saúde17
q
“
” 18.
6.1.1. Essa é a equação que subjaz à obrigação de garantia que é a obrigação
(“
çã ”)
contrato de seguro, definindo a sua configuração típica19 e correspondendo
diretamente ao direito de crédito atribuído ao credor (segurado ou beneficiário).
14TZIRULNIK,
Ernesto, e OCTAVIANI, Alessandro, Fraude contra o seguro, Revista dos
Tribunais v 722, p. 12..
15 BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e
acidentes pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004. p.30.
16 SOUZA, Antonio Lober Ferreira de. et. al. In Dicionário de Seguros. RJ: Funenseg, 2000, p.
98.
17 BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e
acidentes pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004. p. 23.
18Assim entendida como o instrumento básico utilizado pelo atuário para medir a
probabilidade de morte. Conforme explica BERTOCHE, em sua forma mais elementar, a tábua
de mortalidade é uma tabela que registra – partindo de um grupo inicial de pessoas de mesma
idade e sexo – o número daquelas que vão atingindo, sucessivamente, as idades subseqüentes,
é
çã
”. BERTOCHE FILHO A
h
. . Seguros de Pessoas:
Vida individual, vida em grupo e acidentes pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004, p. 27.
19 A
çã
ú
“
çã
” (ALMEIDA COSTA
Mário Júlio, Direito das Obrigações, 10ª edição, Coimbra, Almedina, 2006, p.p. 75-80), pois
está voltada a realizar os interesses d
çã (“
çã ”). N
sentido CARNEIRO DA FRADA, Manuel,Contrato e Deveres de Proteção, Coimbra, 1994,
Separata do vol. XXXVIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, p. 37 e o meu: MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil- Do
Adimplemento das Obrigações. Tomo I. Rio de Janeiro, Forense, 2ª edição, p. 45-51.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
244
6.2. A obrigação de garantia, no seguro de pessoas, vincula o segurador a
“
ó
no caso
de morte do contraente, ou de outrem (satisfeitos os pressupostos especiais), ou
çã
”
20.
Todo o equilíbrio do contrato (atingindo a
comunidade segurada e não apenas à relação bipolar segurado-seguradora)
repousa sobre a equação do mutualismo, na medida em que a garantia
(constituinte da obrigação principal da seguradora) é viabilizada pelo fundo de
previdência constituído pela poupança coletiva da comunidade segurada de cujo
quantum “h
ã
z çõ
”21.
7. Do ponto de vista econômico, o mecanismo do mutualismo está assentado
naquilo que no léxico securitário denomina-
“surplus cooperativo”.
7.1. O sistema de Direito Privado requer dos privados – participantes ativos das
dinâmicas do mercado, e, como tal, para tal se valendo do instrumento jurídico
“
” – que levem em conta o resultado global da operação
econômica, e não apenas alguns dos seus aspectos parciais.
7.1.1. Como explicita Alberto Monti, trata-se de considerar o produto do
interesse conjunto das partes contratantes, ainda que em prejuízo de eventuais
vantagens imediatas (oportunistas) de caráter individual22. O surplus
cooperativo explica, portanto, a razão pela qual certas desvantagens (assim
tidas se adotada exclusivamente a ótica de um ou de alguns contratantes,
individual e individualistamente considerada) serão, na verdade - se
considerarmos o conjunto de contratantes - vantagens. Uma vantagem dada
indevidamente a um só, ou a alguns, atingirá o surplus cooperativo,
transmutando-se em desvantagem à comunidade de interesses envolvidos na
relação securitária.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. v. 46, p. 3.
DA SILVA, Ovídio, Natureza Jurídica do Monte de Previdência, in Anais do II
Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho, Porto Alegre, novembro de 2001, pp. 105 e 106.
22 MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 14.
20
21BAPTISTA
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
245
7.2. B
“
çã ” q
çã
23,
tem, na relação contratual securitária, uma valência transindividual. Em outras
palavras: aqui não se trata apenas da cooperação devida por um membro do
conjunto social no interesse típico de outro membro do conjunto social, mas,
igualmente, no interesse típico de um conjunto (o grupo segurado).
8. O mais relevante, para os fins do presente estudo é que esta acepção da idéia
de cooperação, vinculada à causa ou função econômico-social do seguro, terá
reflexos imediatos no plano da hermenêutica contratual, tanto na interpretação
legal quanto na contratual. A interpretação concretizadora postulada pela
unanimidade da doutrina contemporânea24 significa, justamente, a atenção, no
momento aplicativo do Direito, aos dados de realidade normativa e fática
envolvida no caso, evitando que o intérprete utilize os conceitos jurídicos como
mera “
”25, divorciadas da realidade que ao Direito é dado
regular e ordenar.
LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. Tradução espanhola de Jaime Santos Briz. Madrid:
EDERSA, 1958. Tomo I. p. 37-45. Acerca da relação obrigacional como um processo e como
totalidade veja-se, além de COUTO E SILVA, Clóvis. A Obrigação como Processo. . Rio de
Janeiro: FGV, 2006; ANTUNES VARELA, João de Matos. Das Obrigações em Geral. 2. ed.
Coimbra: Almedina, 1973. Vol. I.; CALVÃO DA SILVA, João.Cumprimento e Sanção Pecuniária
Compulsória. Coimbra: Almedina, 4ª. Edição, 2002, p.70-75; a crítica de MENEZES
CORDEIRO, A. M. Direito das Obrigações. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de
Direito de Lisboa, 1980. v. 1; e ALMEIDA COSTA, Mário Júlio. Direito das Obrigações. 10ª ed.
Coimbra: Almedina, 2006. Permito-me ainda referir o meu: Comentários ao Novo Código Civil
- Do Adimplemento das Obrigações. Tomo I. Rio de Janeiro, Forense, 2ª edição, p. 27-60.
24 Exemplificativamente: KAUFMANN, Arthur e HASSEMER, Winifried (org.). Introdução à
Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Gulbenkian, Lisboa, 2002, pp. 381408; CASTANHEIRA NEVES, Antonio. Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais.
Coimbra Editora. Coimbra,1993, p. 15; MULLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique.
Trad. fran. de Olivier Jouanjan. Paris. PUF, 1993, p. 221 e ss;. VIOLA, F., e ZACCARIA, F.
Diritto e Interpretazione – Lineamenti di teoria ermeneutica del diritto. Roma: LATERZA,
1999, p. 428; ESSER, J. ESSER, Precomprensione e scelta del metodo nel processo di
individuazione del diritto. Trad. de: Vorverständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung
por Salvatore Patti e Giuseppe Zaccaria. Camerino : Edizioni Scientifiche Italiane, 1983, p. 4 e
REALE, Miguel. A Teoria da Interpretação Segundo Tullio Ascarelli, in Questões de Direito, Ed.
Sugestões Literárias, São Paulo, 1981, p. 9 e também em Diretrizes de Hermenêutica Contratual,
in Questões de Direito Privado, São Paulo, Saraiva, 1997, pp. 1-19. Ainda GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002,
p.p. 72-73. Permito-me ainda lembrar do meu:MARTINS-COSTA, Judith. O Método da
Concreção e a Interpretação dos Contratos: Primeiras Notas de Uma Leitura Suscitada Pelo
Có
C ”. In: SOTO COAGUILA, Carlos Alberto (org.). Tratado de la interpretación del
Contrato en la América Latina. 1. ed. Lima-Perú: Editora Jurídica Grijley, 2007, v.1. p. 683-719.
25A
ã “
”
COHEN F. S. El método funcional en el Derecho.
Tradução espanhola de Genaro CARRIÒ. Abeledo-Perrot, Buenos Aires,1961, p. 55.
23
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
246
8.1. Para que possamos compreender os conceitos utilizados pelo Código ao
regular a hipótese de suicídio do segurado - assim adotando uma interpretação
concretizadora do art. 798 do Código Civil - é necessário desvendar os
elementos da pré-compreensão que, na vigência do Código de 1916
embrulhavam a hermenêutica das regras legais atinentes ao contrato de seguro
em uma verdadeira teia de considerações meta e extra-jurídicas.
(ii) Do suicídio e da questão de sua “voluntariedade” ou não.
10. Segundo o filósofo e escritor Albert Camus “ ó h
é
:
í
ó
”26. Tema filosófico por excelência – e assim já
discutido por Platão, no Fédon e nas Leis, justificado pelos estóicos, como
Cécero e Sêneca, escolhido por Hume, no séc. XVII e tornando o centro da
filosofia existencialista no séc. XX
27
- o suicídio interessa à religião, à
antropologia, à sociologia, à literatura e à psicologia, cada um desses campos
ó
q
ã
“
ã
”28. Considerado paradoxalmente ato de coragem29 e de covardia30;
glorificado como o resultado de uma mente sábia31 (então sendo tido, inclusive,
como a “
çã
h
"
í
Schopenhauer), ou repudiado como produto de grave perturbação mental,
“
q
”32; reputado pelos
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo,
Record, 2004, p. 17
27 Para uma síntese v. PAGENOTTO, Maria Lígia. Um Absurdo Razoável. Revista Filosofia, ano
1, n. 11, Ed. Escala, São Paulo, 2007, pp. 24 et seq.
28 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo,
Record, 2004, p. 17
29 Catão, o Jovem (95-46 a. C) cometeu suicídio em nome da justiça e da liberdade para se opor
ao Império Romano, assim como no séc. XX os monges vietnamitas se imolavam em protesto
çã
. N R
ç M h
M
q “
hipótese, a morte pode por termo, quando bem nos pareça e cortar as amarras a todos os outros
” (F
é
L . I, Cap. XIX, in: MONTAIGNE, Michel.
Ensaios. Seleção e tradução de J. M. Toledo Malta, Rio de Janeiro, José Olympio, 1961 p.30.
30 Assim Platão em As Leis, embora justifique, com quatro exceções, o cometimento de suicídio.
31 Os estóicos, como Sêneca, ju
í
q “
ã é
” ( V. PAGENOTTO M
Lí . U A
R z
. Revista Filosofia, ano 1, n. 11, Ed.
Escala, São Paulo, 2007, pp. 24 et seq).
32 KAPLAN, B. e SADOCK, V. Compêndio de Psiquiatria. 9ª ed. Porto Alegre, Artmed, 9ª ed,
2007, p. 477.
26
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
247
cristãos ato contra o mandamento divino33 e pela cultura oriental como um
modo honroso de escapar a situações vergonhosas ou desesperadoras (como no
caso do seppuku japonês geralmente usado para limpar o nome da família na
sociedade, ou como na religião hinduísta); ou, ainda, tido como uma resposta
radical ao absurdo da vida34 como querem os filósofos existencialistas, o
suicídio é fonte permanente e interminável de dissenso.
10. Assim sendo, não se poderia esperar consenso na qualificação do suicídio e
de suas causas. O suicida se mata por estar perturbado ou por ser
ú
?O
“
z” (
termos do Código Civil) por ter o seu processo volitivo perturbado, ou seria, por
definição, um ato de livre vontade?
10.1. Se a Filosofia, a Literatura, a Religião e a Antropologia dão a essas
perguntas respostas díspares e paradoxais conforme o credo adotado ou a
cultura em que vive quem julga o ato suicida, nem mesmo nos campos mais
próximos à certeza científica, como a Sociologia, a Psicologia e a Medicina, se
chega a uma resposta minimamente consensual, capaz de oferecer ao Direito
pontos de apoio unívocos e seguros para o delineamento de suas regras.
10.2. Durkheim, em 1897, ao tratar sociologicamente do suicídio, restringia-o
aos casos em que a vítima atentou conscientemente contra a própria vida,
definindo-o como "todo caso de morte provocado direta ou indiretamente por
um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima e que ela sabia que
devia provocar esse resultado"35 O suicídio, portanto, seria sempre um ato
intencional na qual a vítima age com objetivo de provocar sua própria morte,
tendo conhecimento de que tal ato produziria a morte.
(“Nã
”)
q
A
h
H
(354-430): os cristãos não podem cometer
suicídio, pois estariam a infringir o m
„Nã
‟ (Ê
20.13) q
í
a nós mesmos.
34 P
C
“
é
” é
q “
q
ã
” é
“
çã
i
”. (O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São
Paulo, Record, 2004, p. 19).
35 DURKHEIM, Emile - Suicídio: definição do problema, Suicídio Altruísta, Suicídio Egoísta,
Suicídio Anômico. Coleção Grandes Cientistas Sociais, 7ª Edição, Atica, 1995, pp. 103 a 122.
33
O C
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
248
10.3.
Na tradição
psicanalítica,
diferentemente, diz-
”
h
“
ria dos suicídios estando ligada a
transtornos psiquiátricos36. Segundo esse entendimento, raramente um suicídio
h “
ã
ã
ç
í
”
“suicídios
”37.
11. Conquanto essa radical incerteza, atestada por todos os campos do saber, na
vigência do Código de 1916 a doutrina jurídica e a jurisprudência pretenderam
ç
h
ó
“
”
ã
í
”
“
í
.
11.1. A impropriedade da adjetivação (pois do ponto de vista lexical todo o
suicídio é voluntário, podendo, igualmente ser considerado, do ponto de vista
psicanalítico, como não-voluntário!) servia como uma cunha na rigidez da
construção jurídica que, fortemente embasada em percepções morais e
religiosas, condenava o suicídio, considerando a cobertura do risco de suicídio
pelo seguro uma forma de induzimento. Por esta razão, explicava Pedro Alvim,
“
çã
í
”38, o suicídio liberando o segurador na forma do art.
1.440 do Código de 1916 porquanto compreender-se que a exclusão do risco
“
ú
”39. Na voz doutrinária, “
-se
a cobertura seguradora, não raro veríamos indivíduos decididos a cometer
suicídio celebrarem contratos de seguro a fim de garantirem a subsistência dos
seus ou o enriquecimento de amigos, o que é profundamente imoral, ou, o que
se nos afigura mais grave, por sentirem garantida essa subsistência, decidirem
por termo aos seus dias, decisão que de outro modo não tomariam. Assim, a
cobertura de risco de suicídio não só fomenta a fraude, como pode constituir a
razão determinante de um ato que a sociedade tão veementemente reprova,
SERRANO, Alan I. Suicídio: Epidemiologia e Fatores de Risco. In: CATALDO NETO, A, et
allii. Psiquiatria para Estudantes de Medicina. EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003, p. 665.
37 SERRANO, Alan I. Suicídio: Epidemiologia e Fatores de Risco. In: CATALDO NETO, A, et
allii. Psiquiatria para Estudantes de Medicina. EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003, p. 665.
38 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.
39 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.
36
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
249
aviltando o seguro, na medida em que o transforma num instrumento de
çã
” 40.
11.2. A concepção moral subjacente ao Código de Bevilaqua fazendo essa tão
radical vedação à cobertura do risco do suicídio motivou aquela distinção entre
“
”
“
“
“
í
” q
çã ”
”
“
q
í
é
(
“
”. A
q
-gramatical de per si a morte
”)
Có
1916
distanciar do vernáculo e, incorrendo em evidente contradictio in adjectum no
parágrafo único do art. 1.440, adjetivou o suicídio liberatório para o segurador
“
í
”.
12. Foi sobre essa contraditória adjetivação que trabalharam a doutrina e a
jurisprudência. A regra do parágrafo único do art. 1.440 incorria em
contradictio in adjectum porque o suicídio é, per definitionem, a morte
“
é
q
ç
“
çã ”
çã ”
meditação prévia ao ato suicida, e só medita previamente ao suicídio quem
voluntariamente pensa na própria morte. Quem não quer dar a morte a si
mesmo, mas esta acaba acontecendo, não se suicida: ou sofre um acidente, ou
tem morte derivada de outras causas que não o ato voluntário próprio41,
distinção que não está cingida aos dicionários, pois também a doutrina jurídica
anota: “S
í
‟
è
h
ente la própria morte e
q
J.C. MOITINHO DE ALMEIDA, transcrito por ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed.
Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.
41Assim registram os dicionários, vg. S
[
. S
„
‟+ ].S. 2 . 1. Pessoa que se
matou a si próprio, que se suicidou. Adj. 2 g. 2. Que serviu de instrumento de suicídio; arma
suicida. 3. De que se participa com a certeza de morrer, ou como que com essa certeza. Luta
suicida, ação suicida. 4. Que envolve dano ou ruína certa: a oposição do Ministro à decisão
presidencial foi atitude suicida (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª ed. revista e
atualizada. Ed. Positivo, Curitiba, 2004, p.1891. Assim também em outros idiomas, vg: Suicide:
n.m. 1. Action de causer volontairement as propre mort (Micro Robert – Dictionnaire du
Français Primordial, S.N.L.- Le Robert, Paris, 1976, p.1028) ; Suicide. N. 1. the act of killing
oneself deliberately: he tried to commit suicide. 2. a person who kills himself or herself
intentionally. (Collins – Compact English Dictionary. Harper Color Edition 2th ed., reprinted
(1997), Wrothan, 1997, p. 878.
40
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
250
.I
‟
q
z :
senza coscienza non vi è volontà e senza volontà non vi è suicidio. La morte
autocagionatasi per errore (ad. es., chi ingersisce una dose troppo forte di un
fármaco) o per negligenza (ad es.chi si sporge eccessivamente da una finestra),
morte cioè autocagionatasi involontariamente, non è dovuta a suicidio bensì ad
”42.
13. Assim não pensava, porém, o legislador brasileiro de 1916. O Código então
vigorante previa em seu art. 1.440, a possibilidade de a vida ser estimada como
“
ou outros sem h
çã
”
(
h ó
) q
í
z
B
q
h
“
íz ”. E
: “O
í
ro deve ser conscientemente
deliberado porque será, egualmente, um modo de procurar o risco,
desnaturando o contracto. Se, porem, o suicídio resultar de grava ainda que
subtanea perturbação da intelligencia, não anulará o seguro. A morte não se
poderá, neste caso, considerar voluntária; será uma fatalidade; o individuo não
h
q z
ç
í
”43.
E João Luiz Alves, outro
comentarista do então novel Código Civil, também se referindo ao parágrafo
único do art. 1.440, ajuntava: "O caso de duelo não oferece dificuldade; o de
suicídio, porém, na prática, pode oferecê-la. Todavia, a premeditação e a
sanidade de espírito são questões de fato, dependentes da prova. Essa prova
incumbe ao segurador: a presunção é que o suicídio é um ato de desequilíbrio
q
”44.
DONATI, Antígono. Il contrato di Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 18821932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni, 1943, p. 260-265. E
çã
: “S
é
aquele que ocasiona voluntariamente a própria morte e suicídio é o ato com qual um indivíduo
ocasiona voluntariamente a própria morte. O suicídio pressupõe a voluntariedade do ato e sua
consciência: sem consciência não há vontade e sem vontade não há suicídio. A morte autoocasionada por erro (i.e., quem ingere uma dose muito forte de um remédio) ou por negligência
(i.e., quem se pendura excessivamente de uma janela) morte, isto é, auto provocada
involuntariamen
ã é
í
ç ”.
43 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. Vol. V. São
Paulo, Francisco Alves, 1919, p. 192.
44 ALVES, João Luiz. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil Anotado. 5o vol.
3 ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, p. 102.
42
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
251
14. Como se pode perceber, a doutrina então distinguia (ainda que com
terminologia equívoca) entre duas situações de fato: o suicídio de segurado
motivado por dolo contra a comunidade segurada e o suicídio não-doloso
porque resultado de um desequilíbrio mental, de uma ausência de
premeditação, a ser comprovada pela seguradora.
14.1. O h
“
í
”
“
”
q
q
segurado, para fraudar o seguro (e, assim, prejudicar a comunidade de pessoas
segurada) contratava o seguro já com a intenção de por cabo à própria vida,
visando, muitas vezes, proporcionar ao beneficiário meios de fazer frente aos
. O
í
“
”
intencionalidade. Assim, por exemplo, o caso de segurado que, posteriormente à
conclusão do contrato de seguro de vida se via acometido por forte doença
mental que o levava a atentar contra a própria vida.
14.2. Como é facilmente compreensível, a prova da intencionalidade, a cargo da
seguradora, consistia, verdadeiramente, numa prova diabólica e, no mais das
vezes, dolorosa para a família e atentatória à privacidade do de cujus, sabendose que os direitos de personalidade têm projeção para após a morte. Não
raramente, as seguradoras, para comprovar a intencionalidade, que as liberaria,
se viam obrigadas a invadir a esfera de privacidade do suicida, buscando os
indícios da inexistência ou irrelevância de elementos psicológicos capazes de
motivar (psicologicamente) o ato extremo. Paralelamente, os beneficiários do
seguro se viam constrangidos a afirmar a ausência de higidez mental do falecido
(inclusive apresentando em juízo documentos médicos, o que pode ofender a
esfera da privacidade de quem já não mais se pode defender), tudo para
“
”
í
í
.
15. Essas circunstâncias todas subjazem ao entendimento doutrinário expresso
por Bevilaqua e por Alves, entre outros – construído, note-se bem, na primeira
metade do séc. XX sobre a regra do art. 1.440 do Código hoje revogado – que a
jurisprudência reiterou ao sumular a matéria.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
252
15.1. No Supremo Tribunal Federal editou-se em 13 de dezembro de 1963 a
Súmula 105 pela qual se assentou: “S
h
ação, o
suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador
”.
15.2. Na fundamentação dos acórdãos que a ensejaram explicitou-se, ora que o
í
“
-
”45 ora que se equiparava à morte
“
segurado celebrasse o contrato de caso pensado e se
í
”46.
15.3. Quase trinta anos mais tarde o Superior Tribunal de Justiça reiterou a
çã
Sú
ã
”
çã
z
47.
61
: “O seguro de vida cobre o suicídio
A jurisprudência posterior explicitou a extensão da
í
“
”
“
”
exemplificativamente, nos acórdãos cujas ementas são abaixo transcritas48.
STF, AI 30858, in: Publicação: DJ de 5/5/1964.
STF, RExt. n. 50.389 DJ de 5/7/1962. Foram ainda precedentes, além do AI acima citado: RE
31331 embargos, in DJ de 9/7/1959 e RTJ 10/95; RE 47991, in: DJ de 7/8/1961; RE 47991, in:
: DJ de 12/4/1962 e RTJ 22/295.:
47 STJ - S2 - SEGUNDA SEÇÃO. J. em 14/10/1992. In: DJ 20.10.1992 p. 18382.RSTJ vol. 44 p.
81;RT vol. 688 p. 172. Precedentes: REsp 16560 SC 1991/0023696-9, j. em 12/05/1992, in: DJ
de 22/06/1992, p.09765. REsp 6729 MS 1990/0013089-1. J. em 30/04/1991. In: DJ de
03/06/1991, p. 07424. REsp 194 PR 1989/0008427-5, de 29/08/1989, in DJ
de
02/10/1989, p. 15350.
48 STJ, AgRg no Ag 868283 / MG,Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa.
Quarta Turma . J. em
27/11/2007 , in: DJ 10.12.2007 p. 380, in verbis: "(...) Seguro. Suicídio. Não premeditação.
Responsabilidade da Seguradora. Agravo Regimental Improvido. 1. O suicídio não premeditado
ou involuntário, encontra-se abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo que é ônus que
compete à seguradora a prova da premeditação do segurado no evento, pelo que se considerada
abusiva a cláusula excludente de responsabilidade para os referidos casos de suicídio não
premeditado. Súmula 83/STJ. Precedentes. 2. "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do
segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro."
Súmula 105/STF. 3. Agravo regimental improvido". E ainda, no STF, RE 100485 / SP – Rel.
Min. Néri da Silveira. J. em 06/03/1989. Primeira Turma. In: DJ 18-10-1993 PP-14550, EMENT
vol-01638-02 pp-00245, in verbis: Recurso extraordinário. Seguro de vida. Morte do segurado.
Alegação da seguradora de ter ocorrido suicídio do segurado. Divergência do acórdão com
súmula 105 do STF. Premeditação do ato não demonstrada. Código Civil, art. 1.440. Cláusula da
apólice reguladora do seguro não prevalece, quando contrariar disposição legal. Código Civil,
art. 1.435. De acordo com art. 1.440 do Código Civil, considera-se morte voluntária a recebida
em duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo. Não pode se eximir do
pagamento pactuado a seguradora, se não provou que o suicídio foi voluntário ou premeditado.
CPC, art. 333, II. Recurso extraordinário conhecido e provido, para restabelecer a sentença que
rejeitou os embargos da seguradora a execução". Idem, para a distinção (embora julgando a
voluntariedade do suicídio) o RE 79956 / SP – Rel. Min. Aldir Passarinho, Segunda Turma. J.
em 19/11/1982. In: DJ 13-05-1983 PP-06501, EMENT vol 01294-02 pp-00368.
45
46
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
253
15.4. Em suma: doutrina e jurisprudência, com a louvável intenção de dar uma
çã
ó
q
çã
(“
”)
ú
do art. 1440, levaram a uma sindicância no âmbito da formação da vontade do
suicida em relação às eventuais causas patológicas que pudessem ter alterado a
sua livre determinação.
15.5. Essa sindicância, para além de consistir em prova diabólica para a
seguradora, era também de molde a atingir direito de personalidade do suicida
(protegido mesmo post mortem49). É que a investigação sobre a voluntariedade,
ou não, do suicídio, comporta uma avaliação das causas do suicídio para só
então se decidir se estas são de molde (ou não) a retirar do agente a sua plena
capacidade e liberdade de determinação.
16. O Direito Comparado é de extrema valia no exame dessa matéria porque
também em outros sistemas vivenciou-se idêntica problemática.
17. Na vigência do velho Codice Commerciale italiano, de 1882, havia regra por
tudo similar a do parágrafo único do art. 1440 do Código de Bevilaqua, dando
azo às mesmas dificuldades probatórias que aqui se verificavam, como relatam
M
D'A
E
F z
“gravi questioni”
„notevoli
dissensi in dottrina e in giurisprudenza”50 suscitadas pela expressão legal
“suicidio volontario”
. 45051. Por isso mesmo, o Código italiano de
Embora morto não tenha direitos, protege-se, para certos efeitos, a sua personalidade, como o
( .
é
“
A
” STF
RE 112263 / RJ - , Rel. Min. SYDNEY SANCHES. Julgamento: 28/03/1989 - Primeira
Turma.In: DJ DATA-10-08-89 PG-12918 EMENT VOL-01550-03 PG-00458; no Direito alemão
é é
“
M h
”
MENDES G
F
.D
F
Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo, Instituto
Brasileiro de Direito Constitucional, 1998, pp. 87-89).Também se protege, desde a antiguidade
grega (v. Antígona, de Sófocles) o direito a ser dignamente sepultado (v.g, TJRS, 20aC, Civ. Ap.
Civ.n.º 70002434710, Rel. Des. ARMINIO JOSE LIMA DA ROSA, j. em 25 de abril de 2001).
50 AMELIO, M. e FINZI, E. (org.). Codice Civile. Libro delle Obligazioni. Vol. II. Dei Contratti
Speciali, Parte II. Barbera, Florença, 1949, PP. 342-343.
51 Entre as várias causas de sinistro que a seguradora, no caso de morte, contratava sobre a vida
do mesmo estipulante implicavam a liberação da seguradora (condenação judicial, duelo, crime
ou delito cometido pelo segurado dos quais ele poderia prever as conseqüências) o artigo 450 do
ó
“
í
”. A
ó
z
ã
ó
z
í
“
í
ã ”
“
í
”
“
í ” (A
49
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
254
1942 modificou totalmente a orientação, fazendo dispor no seu art. 1927 a
seguinte regra: "1927- Suicidio dell'assicurato. - In caso di suicidio
dell'assicurato, avvenuto prima che siano decorsi due anni dalla stipulazione del
contratto, l'assicuratore non è tenuto al pagamento delle somme assicurate,
salvo patto contrario. L'assicuratore non è nemmeno obbligato se, essendovi
stata sospensione del contratto per mancato pagamento dei premi, non sono
decorsi due anni dal giorno in cui la sospensione è cessata52.
17.1. E
“
”
ada pela doutrina, justamente por tornar
superadas as discussões e dificuldades probatórias suscitadas pelo critério legal
anterior. E
1949 D‟
F z
: " “B
dunque il nuovo codice a parlare sic et simpliciter di suicidio/ (...). La
z
‟
q
‟
si poteva fare sotto il vecchio codice, dato che ad essa si poteva cientificamente
(
h
‟
‟
. 85
.
)
z
suicidio volontario e suicidio involontario non mi sembra possibile invece con il
nuovo codice, il quale, allo scopo di evitare ogni questione al riguardo, non fa
alcuna distinzione, confidando il favor assecurati alla piena obbligazione
‟
17.1.
”53.
A
doutrina
subseqüente
seguiu
idêntica
orientação.
Veja-se,
exemplificativamente, a lição de Renato Miccio para quem o Código italiano de
relata DONATI, Antígono. Il contrato di Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt.
1882-1932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni, 1943, p. 260-265).
52 E
çã
: “E
í
do, ocorrido antes que tenha passado dois
anos da estipulação do contrato de seguro, a seguradora não deve pagar as somas seguradas,
salvo pacto em contrário./A seguradora não é nem mesmo obrigada se, tendo sido suspenso o
contrato por falta de pagamento do prêmio, não tenha se passado dois anos do dia em que a
ã
”.
53 AMELIO, M. e FINZI, E. (org.). Codice Civile. Libro delle Obligazioni. Vol. II. Dei Contratti
S
P
II. B
F
ç 1949 . 344
çã
: “F z
Novo Código
em falar sic et simpliciter do suicídio/ (...) A distinção entre o suicídio do capaz de entender e de
querer daquele do incapaz, se se podia estabelecer sob o velho código, dado que a essa se podia
cientificamente reconduzir (também com o auxílio do art. 85 do código penal) a distinção legal
entre suicídio voluntário e suicídio involuntário não me parece possível fazer com o novo código,
o qual, com o escopo de evitar toda questão sobre o referido [problema], não faz nenhuma
distinção, conferindo o favor assecurati a plena obrigação do segurador [uma vez]passado um
”.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
255
1942 com a sua formulação desprovida de distinção e especificação 54 teve o
mérito de eliminar a fonte principal das graves questões que, sob o rigor do
Código revogado, apareciam sobre hipótese de suicídio no caso de seguro de
.N
z
ó
”
M
450
çã “q
í
h
çã “
z
”
obrigação de pagar a soma segurada no caso de suicídio voluntário, locução
q
ó
”
í
“
“um autêntico quebra-
ç ” 55.
17.2. Foi assim comemorada como positiva a disposição do Código de 1942 que
veio impedir a verificação da motivação do suicídio e das condições psíquicas do
suicida, cortando a discussão sobre o fato de a decisão de tirar a própria vida
implicava, ou não, fraude à seguradora e ilícita vantagem para uma determinada
pessoa. No consenso doutrinário considerou-se dever excluir a hipótese de um
suicida que, com um período de tempo tão longo (dois anos) tivesse não apenas
premeditado a própria morte, mas mantido firmemente a determinação, a
z
ã
“
ç
da
”56.
18. Os elogios à redação do art. 1927 do Codice Civile vinham de ter
proporcionado aos operadores um critério seguro e unívoco, qual seja, o
transcurso do lapso temporal de dois anos, findo o que o dever de garantia, a
cargo da seguradora, é indiscutível. O critério anterior, obrigando à pesquisa
“
/
”
ç
ter que decidir – resguardados os princípios da isonomia e da segurança jurídica
– se era ou não excludente da obrigação da seguradora o reconhecimento de um
estado de insanidade momentânea (por exemplo, suicídio durante um acesso de
febre); ou uma depressão intermitente; ou num período de superexcitação
MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV.
Unione Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 391-394. Alude o autor ainda à doutrina de
BUTTARO, Il suicidio nell‟assicurazione sulla vita di un terzo. Em Assicur. 1955, I, 68; e de
GHERSI, Il rischio suicidio dell‟assicurazione vita, ivi, 1954, I, 145.
55 MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV.
Unione Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 391.
56 MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV.
Unione Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 394.
54
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
256
nervosa devida à paixão ou prostração física derivada de um excesso alcoólico
ou medicamentoso.
18.1. Na ausência do critério objetivo prevaleceria o entendimento (também
expresso, entre nós, nas citadas Súmulas de jurisprudência) de constituir o
suicídio ou um ato não-imputável à vontade do segurado suicida, ou uma
espécie de fraude do segurado em relação à seguradora (pois se trata de um ato
que altera o curso natural dos acontecimentos e provoca à seguradora a
obrigação de cumprir a sua prestação).
19. Foi por conta dessas dificuldades que o Código italiano (tal qual o Código
Civil brasileiro de 2002) mudou o critério, assinalando a doutrina de Antigono
Donati que a distinção entre suicídio voluntário e involuntário, não mais seria
possível com o Código de 1942, pois este objetivou, justamente, evitar as
tormentosas questões a respeito não fazendo nenhuma distinção e confiando o
favor assecurati a plena obrigação da seguradora decorrido um certo tempo57.
20. A invocação à legislação e doutrina italianas justifica-se, no presente caso,
porque foi justamente a regra do art. 1.927 do Codice Civile o modelo adotado
pelo legislador brasileiro ao editar o Código de 2002. Nesta matéria o nosso
Código – tal qual o seu congênere italiano – expurgou totalmente o exame do
pressuposto subjetivo (qual seja, a voluntariedade ou não do ato), atendo-se
exclusivamente ao requisito temporal, de ordem objetiva, na esteira, aliás, de
outras legislações contemporâneas, como a recentíssima Lei Geral dos Seguros
portuguesa (Decreto-Lei n.º 72 de 16 de Abril de 2008) e o Substitutivo do
Projeto de Lei n. 3555/2004, em tramitação no Congresso Nacional. É tempo,
pois, de voltar os olhos a estes pontos.
B) Da regulação da matéria no Código Civil de 2002
21. Vigente uma nova lei é preciso averiguar quais são os seus pressupostos
DONATI, Antígono. Il contrato di Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 18821932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni, 1943, p. 260-265.
57
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
257
teóricos e quais são as suas diretrizes, pois, ao assim não proceder, estaremos
emprestando a força de inércia – ao meramente repetir a tradição – àquilo que
o legislador democraticamente eleito decidiu modificar. Cabe, pois, examinar
essas diretrizes e fundamentos teóricos, tais como expressos nos textos dos
responsáveis pela redação da regra hoje posta no art. 798 (i), alcançando, assim,
a sua adequada interpretação (ii).
(i) Do art. 798: a diretriz da operabilidade e o critério objetivo
adotado no “Substitutivo Comparato” e acolhido no Anteprojeto
e no Projeto de Código Civil.
22. P
ã
”q
é
“
ç
ô
í
é
çã
q
atenção: é preciso um trabalho de arqueologia jurídica para se chegar aos
fundamentos e diretrizes inspiradoras do legislador, assim se iluminando a
tarefa do intérprete que, embora em parte criador, não deve ser traidor àqueles
fundamentos e diretrizes.
22.1. Como é por todos sabido, Miguel Reale, o Presidente da Comissão
Elaboradora do Código Civil, deixou expresso, em numerosas passagens, as
diretrizes que guiaram o trabalho daqueles juristas a quem foi cometida a
responsabilidade de elaborar um novo Código Civil. Entre essas está a diretriz
da operabilidade, explicitada na seguinte forma: "(...) toda vez que tivemos de
examinar uma norma jurídica e havia divergência de caráter teórico sobre a
natureza dessa norma ou sobre a conveniência de ser enunciada de uma forma
ou de outra, pensamos no ensinamento de Jhering, que diz que é da essência do
Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser executado; Direito que
não se executa – já dizia Jhering na sua imaginação criadora – é como chama
que não aquece, luz que não ilumina. O Direito é feito para ser realizado; é para
ser operado. (...) Então, é indispensável que a norma tenha operabilidade, a fim
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
258
de evitar uma série de equívocos e de dificuldades, que hoje entravam a vida do
Código Civil”58.
23. Uma dessas dificuldades que efeti
“
”
Có
1916 estava, justamente, na artificiosa e insegura distinção entre suicídio
voluntário e involuntário.
23.1. Como acima já anotado, do ponto de vista de uma análise gramatical e
semântica, todo o suicídio é, por definição, voluntário. Porém, se partirmos de
uma análise psicanalítica ou cristã, poderíamos chegar a uma conclusão
polarmente oposta, a saber: que todo o suicídio é, por definição, involuntário,
pois para praticar o ato extremo (contra a vida, ou contra
“
D
”)
pessoa humana deveria, necessariamente, estar incapacitada, entendendo-se a
capacidade jurídica como discernimento, como é requerido pelos artigos 3°,
inciso II e 4°, inciso II do Código Civil.
23.2. Ocorre que, conquanto tenha o Código Civil de 2002 muito aprimorado
essa temática em relação ao Código de 1916, ao substituir pelo topos do
“discernimento necessário” (
. 3º q
. 4º)
”
éq
ã
“
(
de todo
)
às formas intermediárias de capacidades. Não se têm ainda bem delimitadas
(nem do ponto de vista médico, nem do jurídico) as conseqüências ligadas a
certas formas de transição entre a capacidade e a incapacidade ou a certos
estados transitórios de inconsciência ou de alienação regular, e nem mesmo a
certas formas de psicopatia que provocam incapacidades para determinados
atos, mas não para outros. A imensa tipologia de deficiências mentais e a
igualmente grande diversidade no grau de discernimento das pessoas atingidas
por um déficit proveniente de suas condições psíquico-sociais ou atribuíveis ao
vício de drogas, por exemplo, torna impossível um tratamento unitário.
Também o discernimento não é uma categoria homogênea, apresentando um
REALE M
“E
çã
M
P
Có
C ”
em O Projeto de
Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 10,
grifei.
58
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
259
extenso leque de variações em sua graduação. Existem (sem que a técnica
í
)
çõ
“
-incapacidades59”;
“
Q
”60.
h
q
í
“
”?
23.3. Justamente pelas incontornáveis dificuldades práticas derivadas dessas
distinções é que o legislador de 2002 fez substituir o critério constante do
Código de 1916 – critério subjetivo, ligado à pesquisa das condições psíquicas do
suicida, critério causador de dificuldades práticas e hermenêuticas – por um
critério temporal objetivo, idêntico ao do Código italiano de 1942, que dispensa
a perquirição sobre a voluntariedade ou não do ato suicida, sendo, assim,
q
“
z
”
é
consonância – como veremos oportunamente – com outras legislações
contemporâneas.
24. O intento do legislador em adotar um critério puramente objetivo,
expurgando a pesquisa sobre a subjetividade e afastando o estabelecimento de
presunções de premeditação (ou de não-premeditação) é indubitável. Para
comprová-lo basta que nos demos ao trabalho de examinar, em ordenada
cronologia, os documentos que levaram à edição do Código Civil de 2002.
ã é
B hõ C
h q
“ çã
z
E
“
z
h
q
ã
”
enfrentar“
ç
çã
í
”.
(BULHÕES DE CARVALHO Francisco Pereira de. Incapacidade Civil e Restrições de Direito.
Tomo II, § 422. Rio de Janeiro, Borsói, 1957.., p. 403. n. 336).
60 Atento a variabilidade das situações de incapacidade e às formas intermédias, o Direito
Comparado aponta aos casos e às soluções que vêm sendo intentadas. Uma autora italiana alude
h
“
”
-se o interesse de
“
”
õ . ( . SERRAVALE P
‟A
.
Questione Biotecnologiche e Soluzione Normative. ESI, 2001. p. 23.); para o Direito DIAS
PEREIRA, André Gonçalo. A Capacidade para Consentir: um novo ramo da capacidade jurídica.
In: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1975. vol. II. A
Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil. Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Coimbra Editora, 2006. No Brasil, referências também em STANCIOLI, Brunello
Souza. Relação Jurídica Médico-Paciente. Belo Horizonte, Del Rey, 2004, pp. 44-48 e, na
Argentina, em português v. KEMELMAJER DE CARLUCCI, Aida. El Derecho del Menor a su
propio Cuerpo, in BORDA, Guillermo. (org.) La Persona Humana. Buenos Aires, La Ley, 2001,
pp. 249-286.
59
A
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
260
24.1. A primitiva redação do que viria a ser o vigente art. 798, apresentada por
Agostinho Alvim aos seus colegas na Comissão Elaboradora do Anteprojeto
ainda continha uma mescla de critérios, o subjetivo e o objetivo, alinhando à
çã
çã
“
í
”
“ ã -
”
critério objetivo temporal:
A . 570/0. “O
z
involuntária.
§ 1°. Considera-se morte voluntária a recebida em duelo bem como o
suicídio premeditado por pessoa em seu juízo.
Nunca se considera premeditado o suicídio que só ocorreu mais de
dois anos depois de firmado o contrato.
§ 2°. Não se tem como voluntária a morte que ocorreu por ter a pessoa
arriscado a vida por fin
í
í
” 61.
24.2. Essa redação era diversa62 daquela constante de outro Anteprojeto que
não fora aprovado, a saber, o Anteprojeto de Código das Obrigações do
Professor Caio Mario da Silva Pereira que em 1963 preparara um Anteprojeto
do Código das Obrigações. Este, em seu artigo 798, dizia:
Art. 798. Depois de emitida a apólice, o segurador não pode recusar o
recebimento do prêmio, nem o pagamento do seguro de vida, salvo se
Conforme manuscrito dos integrantes da Comissão Elaboradora intitulado Código Civil –
Anteprojeto com m/ revisões, correções substitutivas e acréscimos. Biblioteca de Miguel Reale,
p. 85.
62 Nos itens subseqüentes, as fontes de pesquisa foram: Código Civil: anteprojetos. Brasília:
Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1995. 5 v:V. 1. Anteprojeto de Código das
Obrigações - parte geral (1941) / Comissão: Orosimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e
Hahnemann Guimarães. Anteprojeto de lei geral de aplicação das normas jurídicas (1964) /
Haroldo Valladão. --- V. 2. Anteprojeto de Código Civil (1963) / Orlando Gomes. Anteprojeto de
Código Civil - revisto (1964) V. 3. Anteprojeto de Código Civil das Obrigações / Caio Mario da
Silva Pereira (1963), Sylvio Marcondes (1964), Theophilo de Azevedo Santos (1964) --- V. 4.
Projeto do governo Castello Branco: projeto de Cóodigo Civil (PL n. 3.263/65), projeto de
obrigações (PL n. 3.264/65) --- V. 5, Tomo 1. Anteprojeto de Código Civil (1972) / Comissão
elaborada e revisora: Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves; Agostinho de Arruda Alvim,
Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva e Torquato Castro; Tomo 2.
Anteprojeto de Código Civil - revisto (1973)/ Comissão elaboradora e revisora: Miguel Reale,
José Carlos Moreira Alves; Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun,
Clovis do Couto e Silva e Torquato Castro. E ainda: O Projeto de Código Civil no Senado Federal.
Brasília: Senado Federal, 1998. 2 v:V. 1. Projeto de lei da Câmara n. 118, de 1984, n. 634/5 na
Casa de Origem --- V. 2. Opinião do Min. Moreira Alves Sobre as Emendas dos Senadores
Relativas à Parte Geral. Opinião do Prof. Miguel Reale Sobre as Emendas dos Senadores
Relativas à Parte Especial. Sugestões dos Profs. Alvaro Villaça Azevedo e Regina Beatriz Tavares
S. P. dos Santos Sobre o Direito de Família. Estudo e Sugestões do Prof. Mauro Rodrigues
Penteado Sobre Títulos de Crédito. Sugestões do Prof. Luiz Edson Fachin Sobre Direito das
Coisas. Sugestão do Prof. Fabio Konder Comparato e de Marcelo Gazzi Taddei Sobre
Desconsideração da Pessoa Juridica. Contribuição do Prof. José Teixeira Sobre Vários Pontos, e
da Consultoria Legislativa Sobre o Direito de Família e das Sucessões. Também: em
COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Segurado no
Anteprojeto de Código Civil. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e
Financeiro n. 5, p. 144 a 151. Também referências em REALE, Miguel. História do Novo Código
Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 23.
61
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
261
provar a má-fé do segurado, ou que a morte ou incapacidade tenha
resultado de duelo, ou suicídio premeditado, por pessoa em seu juízo
perfeito.
24.3. Como se vê, na proposição original de Caio Mario adotou-se um critério
exclusivamente subjetivista.
24.4. Porém, em 1965, o Anteprojeto Caio Mario foi encaminhando ao então
Presidente Castello Branco, que o reenviou ao Congresso Nacional (Projeto n.
PL 3264/65). Nesse intervalo, foi o Anteprojeto revisado, alterando-se a redação
do artigo 798 e, ainda, se acrescentando um parágrafo único. A redação do
artigo (agora, numerado como 748), ficou com o seguinte texto:
Art. 748. Depois de emitida a apólice, o segurador não pode recusar o
recebimento do prêmio, nem o pagamento do seguro de vida, salvo se
provar a má-fé do segurado, ou que a morte ou incapacidade tenha
resultado de duelo, ou suicídio premeditado.
Parágrafo único. Decorridos dois anos da celebração do contrato, o
suicídio do segurado, qualquer que seja a causa, não obsta ao
pagamento do seguro.
24.5. Repare-se que a expressão 'por pessoa em seu juízo perfeito' foi suprimida
da redação do artigo, adotando-se parágrafo único o critério objetivista,
mesclado, porém, com o subjetivista, constante do seu caput.
24.5. Entretanto, como é por todos sabido, o Projeto Caio Mario, bem como o
Projeto de Código Civil, redigido por Orlando Gomes, apresentados em 1965
pelo Executivo ao Congresso Nacional não vingaram. Foi criada nova Comissão
de Revisão do Código Civil, em 1969, chefiada por Miguel Reale que apresentou
seu primeiro Anteprojeto em 1972.
24.6. Nesse, o capítulo referente ao Contrato de Seguro ficou regulado nos
artigos 784 a 830 (46 artigos).
24.7. Os dispositivos acerca da 'carência e suicídio no contrato de seguro de
‟
çõ
comparação com o Anteprojeto e o Projeto (1963 e 1965) do professor Caio
Mario e mesmo com a primitiva redação apresentada por Agostinho Alvim aos
seus colegas na Comissão Elaboradora. Confira-se:
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
262
Art. 825. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro do qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a
devolver ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 826. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o
segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de vigência inicial
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
28. A alteração radical foi fruto do acolhimento, pela Comissão, em 1969, da
proposta de substitutivo do professor Fabio Konder Comparato em relação ao
capítulo do Contrato de Seguro. Pela simples leitura, percebe-se que a redação
do primeiro Anteprojeto (de 1972) e do Substitutivo Comparato são idênticas.
Assim estava no Substitutivo:
Art. XXXVII - No seguro de vida para o caso de morte, é lícito
estipular-se um prazo de carência, dentro do qual o segurador não
responde pela ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. XXXVIII – O beneficiário não tem direito ao capital segurado
quando o segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de
vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso,
observado o disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único – Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
28.1. Contudo, o primeiro Anteprojeto foi revisado pela Comissão chefiada pelo
professor Miguel Reale, e, novamente publicado para apreciação, críticas e
õ
í
A
P
”
A
1973
: “Q
contraditórias, dever-se-
. N
í
h
“S
(
h
803
las ambíguas ou
çã
.”)
ficou regulamentado nos artigos 773 a 818. Os textos referentes ao tema
'carência e suicídio' eram os 813 e 814. A redação permaneceu inalterada
considerados o Primeiro e o Segundo Anteprojetos). Novamente, confira-se:
Art. 813. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro do qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 814. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o
segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de vigência inicial
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
263
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
28.2. Com esse texto, o Segundo Anteprojeto foi encaminhado ao Congresso
Nacional pelo Poder Executivo. Tramitando inicialmente na Câmara dos
Deputados, recebeu a numeração PL 634/75. Depois de nove anos, foi aprovado
e enviado ao Senado Federal, onde recebeu nova numeração: PLC 118/84.
29. Na forma como o Projeto foi recebido no Senado, o Contrato de Seguro
estava regulado nos artigos 757 a 802, e os referentes à 'carência e suicídio', com
redação idêntica foram numerados como 797 e 798, da seguinte forma:
Art. 797. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro no qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a
devolver ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o
segurado se suicida dentro nos primeiros dois anos de vigência inicial
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
29.1. Após longos 14 anos de tramitação no Senado Federal, em 1998, o PLC
118/84 foi então aprovado e enviado, novamente, para a Câmara dos
Deputados. Na versão final aprovada pelos senadores, o Contrato de Seguro
estava capitulado entre os artigos 756 e 801. Os artigos 797 e 798 tiveram
somente suas numerações alteradas, para 796 e 797, respectivamente, ficando
sua redação incólume. Veja-se:
Art. 796. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, dentro no qual o segurador não responde pela
ocorrência de sinistro.
Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver
ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 797. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o
segurado se suicida dentro nos primeiros dois anos de vigência inicial
do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no artigo anterior, parágrafo único.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
264
29.2. Novamente na Câmara dos Deputados (sob o número - Projeto 634/75),
foi o Projeto reapreciado, sem nenhuma alteração, porém, dos textos ora em
análise. A versão final, aprovada e sancionada pelo então Presidente Fernando
Henrique Cardoso, trouxe o Capítulo de Seguro nos artigos 757 a 802. Com as
redações ainda inalteradas, o tema 'carência e suicídio no contrato de seguro de
‟
L
10.406/2002
:
Art. 797. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se
um prazo de carência, durante o qual o segurador não responde pela
ocorrência do sinistro.
Parágrafo único. No caso deste artigo o segurador é obrigado a
devolver ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.
Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o
segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do
contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o
disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a
cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do
segurado.
30. De tudo resultam cristalinas e insofismáveis certezas que podem assim ser
sumarizadas: a) a proposição do ilustre professor Caio Mario não teve nenhuma
influência na formação da vontade legislativa, sendo inclusive totalmente
distante do texto aprovado; b) o legislador brasileiro rejeitou a solução proposta
pelo insigne professor Caio Mario da Silva Pereira, de modo que as suas lições,
por valiosas que sejam, não servem para aclarar o sentido e o alcance do art.
798; c) durante toda a tramitação do Código Civil, desde o acolhimento do
“S
C
”
ã
h
modificação, afirmando-se e se reafirmando, sem dissensões e na forma prevista
pelo princípio democrático, a vontade legislativa de consagrar-se o critério
objetivista, exclusivamente, na regulação dos efeitos do suicídio do segurado; d)
h
“S
C
”
redação do art. 798 do vigente Código, optou por um critério objetivista,
afastando, explicitamente, o critério subjetivista, bem demonstrando, assim, a
firme, coerente e reiterada intenção legislativa de por uma pá de cal nas
tormentosas discussões acerca da voluntariedade, ou não, do suicídio; e) o art.
798 foi expressamente inspirado no art. 1927 do Código Civil italiano, razão pela
qual os subsídios doutrinários e jurisprudenciais daquele sistema são de valia
para a compreensão da nossa regra.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
265
31. Fábio Konder Comparado adotou a redação que provinha, em linha reta, do
art. 1927 do Código Civil italiano. Explicitando o teor da redação proposta,
correspondente integralmente ao teor dos vigentes arts. 797 e 798, dizia o
Professor, nas Notas Explicativas ao Substitutivo:
“N
. XXXVIII
q
ã
beneficiário ao capital garantido, na hipótese de suicídio do segurado.
O
Có
C
“
í
premeditado (art. 1440, parágrafo único). O Projeto de 1965[n: ref. ao
chamado Projeto Caio Mario], após reproduzir essa disposição,
q
ã
“
suicídio do segurado, qualquer que seja a sua causa, não obsta ao
pagame
”.
Como é sabido, a fim de evitar a probatio diabólica da premeditação
do suicida segurado, as companhias brasileiras sempre inseriram em
suas apólices de seguro de vida a cláusula de exclusão da garantia
quando o suicídio, qualquer que seja o grau de voluntariedade do ato,
ocorre dentro dos primeiros dos anos de vigência do contrato. Essa
cláusula porém, não foi admitida nos tribunais (Súmula do Supremo
Tribunal Federal n. 105).
A orientação do Projeto de 1965, copiada do Código Civil, não parece a
melhor. Ao falar em suicídio premeditado o legislador abre ensejo a
sutis distinções entre a premeditação e a simples voluntariedade do
ato, tornando na prática sempre certo o direito ao capital segurado,
pela impossibilidade material de prova do fato extintivo, o que não
deixa de propiciar a fraude.
Preferimos seguir nesse passo o Código Civil italiano (art. 1927),
excluindo em qualquer hipótese o direito ao capital estipulado se o
segurado se suicida nos primeiros dois anos da vigência inicial do
contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, e proibindo em
contrapartida a estipulação de não pagamento para o caso de o
suicídio ocorrer após esse lapso de tempo. O único fato a ser levado
em consideração é, pois, o tempo decorrido desde a contratação ou
renovação do seguro, atendendo-se que ninguém, em são juízo,
contrata o seguro exclusivamente com o objetivo de se matar dois anos
ó ” 63.
32. De tudo se conclui, com base nos métodos hermenêuticos genético e
histórico, acima desenvolvidos64, que as referências feitas em certas obras
doutrinárias e mesmo em alguns acórdãos às origens do art. 798 (situando-as
no Anteprojeto Caio Mario) não estão conformes ao que indicam os documentos
COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Segurado no
Anteprojeto de Código Civil. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e
Financeiro n. 5, p.p. 150-151, grifei.
64Os argumentos históricos não se confundem com os argumentos genéticos: enquanto os
argumentos históricos fazem referência a textos normativos anteriores, e com semelhante
âmbito de incidência relativamente ao da norma objeto de interpretação, os argumentos
genéticos dizem respeito a textos não-normativos (discussões parlamentares, projetos de lei,
discursos legislativos, exposições de motivos), e se referem à formação do próprio dispositivo
objeto de interpretação. (assim FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In
ANDRADE, Manoel Domingues de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra.
Armênio Amado, 1987, p., p. 143.
63
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
266
relativos à tramitação do Código Civil, conforme atestado, inclusive, pelo jurista
encarregado de presidir a Comissão Elaboradora.
33.
O
método
da
interpretação
genética,
conquanto
relevantíssimo
(principalmente para a análise de uma nova lei) não é, contudo, suficiente,
devendo ser conectado aos demais métodos de interpretação das leis.
34. Já bem assentada a intenção firme e indiscutível do legislador bem como o
processo genético do texto em exame, cabe agora contrastá-lo com os demais
critérios hermenêuticos, a saber, o literal, o lógico-sistemático e o axiológico,
estes últimos exigindo a conjugação entre valores postos na Constituição
Federal, no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor.
(ii) Da interpretação do art. 798 do Código Civil em vista do
sistema civil e constitucional, e de seus princípios e valores.
35. Segundo Larenz, a apreensão do sentido literal das expressões constantes do
texto constitui o ponto de partida da atividade hermenêutica 65. Também assim
Francesco Ferrara, para quem a interpretação literal é o primeiro sentido da
interpretação66.
35.1. Com efeito, o intérprete não pode deixar de considerar o dado lingüístico,
ponto de partida da atividade hermenêutica, sendo permitido o afastamento da
littera só em ocasiões muito excepcionais (quando evidente o erro de redação
por parte do legislador, conforme podem indicar dados históricos e a
interpretação sistemática). Assim refere Friedrich Müller em sua excepcional
obra Juristische Methodik, em que afirma consistir o texto da lei um elemento
“
çã
ç
z çã
”67, porque
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução portuguesa de José Lamego,
Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 3ª edição,1997 , p. 451.
66 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues
de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.139.
67 MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Tradução francesa de Oliver
Jouuanjan. Paris, P.U.F, 1996, p. 240 em que afirma o valor democrático do texto como limite
z çã
(“ '
erreur de rédaction incontestée") que tenha se introduzido no texto.
65
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
267
afeiçoado aos valores democráticos. Num Estado Democrático de Direito o seu
é
ó
q
“
”
para serem superadas antinomias sistemáticas (lógicas e axiológicas) acaso
existentes.
35.2. Por isso a importância de se conjugar a interpretação literal (gramatical)
com a interpretação histórico-genética, a lógico-sistemática e a axiológica (ou
teleológica).
35. 3. A importância da conjugação entre os métodos hermenêuticos resulta da
é
L
z
ó“
”
é
quando considerado certo contexto, fático e normativo. Conquanto o objeto da
interpretação seja o texto, este "nada diz a quem não entenda já alguma coisa
daquilo que ele trata", assim expressando o grande jurista germânico que o
texto só "fala" a quem o interroga corretamente. É, pois, essencial, para
formular corretamente a pergunta, "conhecer a linguagem da lei e o contexto de
regulação em que a norma se encontra”
68,
por isso o contexto (histórico,
lingüístico, lógico, sistemático e axiológico) sendo da maior importância: um
mesmo vocábulo pode ter significações diversas e convém preferir a que se
mostrar mais idônea, dada a sua relação com a conexão 69. Por isso têm os
autores acentuado que os critérios hermenêuticos não constituem categorias
q
“
í
”
q
intérprete, havendo entre eles, como explicam Viola e Zaccaria a existência de
“
35.4. Já
çã ”70.
q
h ó
“
” ã é
q
caso ora examinado. Em face do texto do art. 798 - considerada a sua história
legislativa, as suas declaradas origens italianas e o explícito propósito em acabar
com a prova diabólica e com presunções de difícil averiguação - de erro do
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução portuguesa de José Lamego,
Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 3ª edição,1997, p. 441.
69 RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civil- vol. I. Tradução de Ary dos Santos. São
Paulo: Saraiva, 1957, p. 155.
70VIOLA, Francesco, e ZACCARIA, Giuseppe.Diritto e Interpretazione. Lineamenti di teoria
ermeneutica del diritto. Roma: Laterza,1999, p.221.
68
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
268
legislador não se pode cogitar.
36. Não há, igualmente, nenhuma contradição lógico-sistemática com os demais
artigos do Código Civil. A redação do Capítulo tem, como reiteradamente
assinalado, uma única e mesma proveniência, o Subsídio oferecido à Comissão
Elaboradora pelo Professor Fabio Konder Comparato, havendo total coerência
entre o art. 798 e o que lhe antecede.
36.1. N
é
determ
”
71.
ó
“
q
É a investigação da ratio, q
”
“
í
çã
zF
“
q
q
-o dos fatores racionais que a
”72, por isso sendo conectada à investigação histórica. Autores mais
modernos entendem que o elemento lógico concentra a sua atenção na relação
recíproca entre as partes do enunciado normativo, o que conduz a sólidos
vínculos entre a interpretação lógica e a sistemática bem como entre a lógica e a
gramatical e a lógica e a teleológica73.
36.2. Ora, contrariaria a lógica e ao sistema considerar lícito estipular-se um
z
“
”
q
q
ã
q
ra o caso de morte, como permite o art.
797 do Código Civil e entender-se, no caso de morte por suicídio, estar a
incidência desse prazo de carência dependente da prova da intencionalidade do
suicida. Haveria, na verdade, uma dupla contradição lógica: em caso de morte
por doença ou por acidente (morte incontrolável e não-programável pelo
agente/paciente) no período de carência, nada seria devido ao beneficiário; em
í
(
“
”
/
podendo consistir em ato contra a comunidade segurada e à função social do
contrato) o beneficiário receberia bastando provar não ter sido a morte
RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civil- vol. I. Tradução de Ary dos Santos. São
Paulo: Saraiva, 1957, p. 157.
72FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues
de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.140.
73VIOLA, Francesco, e ZACCARIA, Giuseppe. Diritto e Interpretazione. Lineamenti di teoria
ermeneutica del diritto. Roma: Laterza,1999, p. 227.
71
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
269
“
”. A h ó
(
í
)
q
(qualquer outra causa de morte)!
36.3. A ilogicidade é manifesta, seja ao atribuir-se o onus probandi à
seguradora, seja ao próprio beneficiário. Mas essa última é a interpretação
expressa no Enunciado nº 187 da III Jornada de Direito Civil (com a qual
ã
)
q
“[n]o contrato de seguro
de vida, presume-se, de forma relativa ser premeditado o suicídio cometido nos
dois primeiros anos de vigência da cobertura, ressalvado ao beneficiário o ônus
de demonstrar a ocorrência do chamado "suicídio involuntário"74. Tal qual a
primeira exegese (defendida em alguns julgados do Colendo Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul75), esta outra, para além de divorciada do texto legal,
infringe, ainda, o sistema – e não apenas o do Código Civil, mas, igualmente, o
do Código de Defesa do Consumidor.
36.4. C
“
í
”
. 798
presunção relativa (iuris tantum) no sentido de que o suicídio dentro do prazo
de dois anos é premeditado, afastando o direito à garantia, atribuiu-se ao
benefici
“
q
í
ã
z
”76. Assim, ao beneficiário do seguro (parte
vulnerável na relação de consumo) caberia se desincumbir, no biênio, do ônus
de provar que o segurado não premeditou o suicídio.
36.5. Essa interpretação não pode prevalecer porque prejudica o contratante
que a Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXII) e o Código de Defesa do
Consumidor (art. 6°, inc.VII) visaram favorecer.
37. Desde os monumentais estudos de Savigny, no século XIX, é assente que um
princípio jurídico (ou uma regra) não existe isoladamente, mas está ligado por
Conforme proposição de Guilherme Couto de Castro/ Guilherme Calmon Nogueira da Gama,
Juiz Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro/ Juiz Federal Convocado 5ª Turma - TRF/2ª
Região. In: http://www.consulex.com.br/news.asp?id=2523 (acessado em 14 de junho de 2008)
75 Confira-se, adiante, nota n. 98.
76GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 26ª ed. (atualizada por Antônio
Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino) p. 513.
74
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
270
nexo íntimo com outros princípios e regras, havendo entre as leis conexões inter
e intra-sistemáticas77. Nã
D
“
”
zE
G
78,
assim expressando que o direito objetivo não é um aglomerado de disposições,
“
”
.79 Há portanto
conexões (por relações de geral a particular, deduções ou corolários), das quais
“ da norma particular recebe a sua luz80.
37.1. Consideradas as conexões entre as regras do próprio Código Civil (arts. 797
e 798) e entre este último e o Código de Defesa do Consumidor, anti-sistemática
seria a interpretação pela qual se atribuísse: (i) a possibilidade de ter-se um
prazo de carência fixado contratualmente
(
. 797)
çã
í
çã
çã
q
(
q
q
z
. 798)
çã
z
;( )
ó
.
38. Superados esses pontos resta examinar o art. 798 à luz do critério
axiológico, para saber se a interpretação que ali percebe um critério puramente
objetivo (o transcurso de dois anos), afastando a sindicância sobre a
voluntariedade/involuntariedade do ato suicida, é ou não compatível com os
princípios valorativos expressos no Código Civil e na Constituição da República.
38.1. Já observamos que o art. 798 é plenamente compatível com a diretriz da
operabilidade. E também o é com as diretrizes da eticidade (expressa no
princípio da boa-fé, Código Civil, art. 422) e da socialidade (expressa no
princípio da função social do contrato, Código Civil, art. 421).
Permito-me aludir ao meu: Culturalismo e Experiência no Novo Código Civil. Revista do
Tribunal Regional Federal 1. Região, v. 6, p. 21-34, 2006.
78 GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo:
Malheiros, 2002, XVIII.
79 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues
de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.143.
80 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel
Domingues de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado,
1987, p.143.
77
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
271
39. A
”
ã “
ã
h
- é”
ã
q
q
“q
q
ú
isolado do intérprete. Em sua raiz romana, fides, está a fé como reitora das
condutas comunicativas na ordem social, de modo a suscitar a confiança (cum
fides). Na sua origem está, portanto, uma relação de recíproca fidúcia e está (na
relação de crédito) aquele que acredita (creditor) em algo que possa ser objeto
de crença fundada, pois do seu qualificativo bona vem a noção de uma fé justa
ou virtuosa81.
39.1. Dessas raízes resulta a expressão boa-fé objetiva82 que exprime o standard
de lisura, correção, probidade, lealdade, honestidade – enfim, o civiliter agere
que deve pautar as relações inter-subjetivas regradas pelo Direito sob pena de o
próprio Ordenamento não ser funcional, pois sem um mínimo de lealdade entre
os participantes do tráfego jurídico, permitindo confiar na palavra dada e nas
Assim escrevi em MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do
Inadimplemento das Obrigações. Vol. V, Tomo II, 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2008, p.73 et seq.
82 Permito-me lembrar, entre outros: COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no Direito
brasileiro e português. In: Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: [s.n.],
1986. p. 55 et seq.; NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus princípios
fundamentais: autonomia privada, boa-fé e justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994;
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O princípio da boa-fé nos contratos. Revista do CEJ, Brasília,
vol. 9, 1999, disponível em http://www.cjf.gov.br/Publicacoes/Publicacoes.asp; NEGREIROS,
Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998; MOREIRA ALVES, José Carlos. A boa-fé objetiva no sistema contratual
brasileiro. Revista Roma e América: Diritto Romano Comunne, Roma, vol. 7, p. 187-204, 1999,
p. 192; REALE, Miguel. Um artigo-chave do Código Civil. In: Estudos Preliminares do Código
Civil. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, pp. 75-80; SAMPAIO, Laerte Marrone de Castro.
A Boa-Fé Objetiva na Relação Contratual. Manole – Escola Paulista da Magistratura, 2004; e
os nossos: MARTINS-COSTA, Judith. Princípio da Boa-Fé. Revista AJURIS, Porto Alegre, vol.
50, p. 207-227, 1990; A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões em
torno de uma notícia jornalística. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 4, p. 140172, 1992; A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; O Direito
Privado como um sistema em construção: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil
Brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 753, p. 24-48, julho 1988 (também em Revista
de Informação Legislativa, Brasília, n. 139, p. 5-22, 1998); A Boa-Fé como Modelo: uma
aplicação da Teoria dos Modelos de Miguel Reale. (In: MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO,
Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva,
2002. p. 187-226); Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-fé nas relações de
consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito Privado: reflexos
dos princípios, garantias e direitos constitucionais fundamentais no Direito Privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 611-661; Os campos normativos da boa-fé objetiva: as
três perspectivas do Direito privado brasileiro, publicado in Revista do Consumidor,
Universidade de Coimbra, nº6, Coimbra/ Portugal, 2005, pp 85 – 128 e em Revista Forense vol.
382, Rio de Janeiro, 2005, pp.120-143; Os avatares do Abuso do direito e o rumo indicado pela
Boa-Fé, in Novo Código Civil – Questões Controvertidas. In: NICOLAU, Mário Júnior (org.).
Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 193-232.
81
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
272
“
” predispostas impossível se torna a gestão do risco e a
previsibilidade das ações futuras.
39.2. Justamente por conta desses significados e destas funções, a boa-fé
objetiva, quando apreendida em um princípio jurídico (como está no Código
Civil e no Código de Defesa do Consumidor) tem por função estabelecer um
padrão comportamental. Esse padrão é o da conduta proba, correta, leal, que
considera os legítimos interesses do alter, tendo em vista a natureza, a
ambiência e a função da relação, pois visa, imediatamente, a lograr o correto
processamento da relação e, mediatamente, assegurar a confiança no tráfego
.N
çã
“
segundo a boa- é”
(
o
correção de condutas) no trato dos interesses envolvidos naquela relação a fim
de que esta chegue ao adimplemento satisfativo.
39.3. D
ú
“
;
çã ”
“
“
”
”
“
çã
çã
h
”
especiais cautelas de proteção para que, da relação jurídica em que estão coenvolvidos, não resultem danos injustos à pessoa e ao patrimônio da
contraparte. Estes significados são indiscutíveis em face da tendência
contemporânea em matéria de Teoria dos Contratos (revelada em várias
legislações) de realizar uma revisão crítica dos paradigmas contratuais
“
”
z
çõ
M
(
consumidores) padrões de lealdade ou fairness. Assim registra ALBERTO
MONTI ao perceber o direcionamento das regras concernentes à boa-fé ao
asseguramento da transparência e das expectativas razoáveis dos contraentes83.
E assim está, igualmente, no Código de Defesa do Consumidor em cujo texto se
revela a boa-fé como padrão de conduta dirigido a ambos os contraentes (art.
4°
. III)
“
”q
z
informativa e como regra de limite às condutas contratuais abusivas (art. 51,
inciso IV).
83
MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 20 et seqs.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
273
39.4. Em exaustivo trabalho de Direito Comparado, em que compara os
sistemas norte-americano, inglês, italiano, francês, indiano e chinês, conclui
Alberto Monti que a operacionalidade da boa-fé no contrato de seguro persegue
:
çã
“
smo exasperado que prejudica a
”
“
çã
q
q
surpresa derivado da modalidade de apresentação da garantia securitária oferta
a fim de proceder a um tendencial realinhamento entre os termos reais da
ó
” 84.
39.5. Essa é, com efeito, a tendência mundial, apresentada tanto nos países
super-desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento e também entre nós
verificada, em que a lei acolhe a boa-fé em sua feição objetiva. Especificamente
no que toca ao suicídio do segurado, a adstrição à boa-fé (como regra de
compreensibilidade na comunicação com o contratante vulnerável) está em que
o Código substitui critérios subjetivistas, de difícil averiguação e comprovação,
por critério objetivo que implementa a segurança de ambas as partes
contratantes, eis que cientes, pela mera leitura do texto legal, com razoável dose
de certeza, do que esperar da relação de seguro em que envolvidas.
39.6. Ora, não se pode imaginar hipótese de afronta à boa-fé ou de violação à
legítima expectativa do segurado derivada da incidência do art. 798 e de sua
interpretação como regra fundada exclusivamente em critérios objetivos.
39.6.1. Nã
h
“
”
”)
(“
ã
.O
í
z
é derivado de lei geral (Código Civil) e não de imposição unilateral e abusiva do
(
). Nã h
é
“
”
íz
o
beneficiário do seguro, pois tanto o segurado, ao contratar, quanto o
beneficiário, sabem de antemão que este último só terá direito capital estipulado
passados dois anos da contratação (vigência inicial) ou recondução (depois de
MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 265, em tradução livre.
N
: “(...)
z
h
comprensibilità del linguaggio e la eliminazione di ogni effeto sorpresa derivante dalle modalità
di presentazione della garanzia offerta, al fine di procedere ad umtendenziale riallineamento tra
zz
‟
.”
84
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
274
suspenso), pois ninguém se escusa de não conhecer a lei.
39.6.2. Se o contrato contém idêntica regra, ou a remissão à lei, com o devido
destaque, como exigido pela tutela do contratante vulnerável (Código Civil, art.
424; Código de Defesa do Consumidor, art. 51, inc. I), onde estaria a
?E
q
“
z
”
a receber o capital antes de transcurso o biênio? Onde haveria abusividade
contra o segurado, se a regra é estabelecida com clareza por lei
democraticamente
votada
pelo
Congresso
Nacional,
e
não
imposta
unilateralmente pela contratante seguradora?
40. Do mesmo modo, não vejo afronta – antes, percebo congruência – com o
princípio da função social do contrato. A existência de um critério objetivo,
exclusivamente temporal, que afasta discussões tormentosas, atende à utilidade
social e ao próprio caráter transindividual do seguro, permitindo a melhor
z çã
“
h
“surplus cooperativo”. A
”
.S
é
q
“
. C
é
ӎ
“
”
equação em que se ampara a técnica do mutualismo e, assim, desequilibram as
receitas e despesas de um plano de seguro. Não há como imaginar que essa
regra (que protege o interesse transindividual em causa)
85
viole os interesses
institucionais que, segundo Calixto Salomão Filho são, justamente os interesses
protegidos princípio da função social do contrato.
41. O critério temporal objetivo posto no art. 798 também é congruente com
valores situados constitucionalmente, de modo implícito ou explícito. Assim,
nomeadamente, os princípios da segurança jurídica e da proteção à privacidade,
este também de índole infra-constitucional.
41.1. O princípio da segurança jurídica é atendido quando a lei, clara, genérica e
impessoal, estabelece critérios facilmente compreensíveis e observáveis pelos
SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações. In Revista dos
Tribunais, vol. 823, São Paulo, 2004, p.p. 71-73.
85
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
275
seus destinatários; quando reduza litigiosidade baseada em contorções do
vernáculo ou nas dissensões entre os vários campos de vida meta-jurídicos
envolvidos no problema que se está a regular, como ocorre justamente com o
suicídio - grave pecado para um cristão, gesto nobre e virtuoso para um
hinduísta; e quando, por sua formulação clara, geral e impessoal, reduz a
incerteza e a possibilidade de o beneficiário do seguro deparar-se com
“
”
ã é
é
averiguação basta a prova do decurso do tempo.
42.2. A proteção da intimidade, como Direito Fundamental (CF, art. 5, inc. X) e
bem jurídico integrante da personalidade (CC, art. 21) também será melhor
observada com o critério objetivo. A sindicância sobre o discernimento (ou
ausência de discernimento) do suicida e as dolorosas pesquisas sobre os motivos
que o levaram a tolher a sua própria existência deixam de ser necessárias. Ao
intérprete cabe apenas constatar se o biênio transcorreu, ou não. Não mais
carecerão os advogados das partes digladiarem-se em busca da penosa
comprovação da causa do ato extremo: mera debilidade psíquica? Um
temperamento influenciável pelas alterações dos estados de ânimo? Um coração
partido insuportavelmente pela dor de amor? A iminência de uma revelação
desonrosa? Um estado de pânico? Uma total alienação mental?
42.3. Uma interpretação polarizada pelos vetores constitucionais fundamentais
se inclinará, em caso de dúvida, à interpretação que melhor concretize a
fundamentalidade constitucional dos Direitos de Personalidade, objeto, ao
mesmo tempo, da proteção da Constituição e do Código Civil. A proteção a esses
direitos não se encerra com a morte, como decidiram o Tribunal Supremo
(BGH)
C
C
A
em meados do séc. XX, ao assentar: “R
h
é
“
M
h
”
í
constitucional de la inviolabilidad de la dignidad humana que preside todo
Derecho Fundamental, que el hombre, al que corresponde dicha dignidad por
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
276
ser persona, pudiera quedar desposeído de ella o vejado en su consideración
é
”86.
42.4. Não parece haver dúvidas que a investigação sobre as condições mentais
do suicida; a pesquisa invasiva de sua privacidade ou a exposição de suas mais
íntimas dores –
“
h
ã
“
”
çã ”- pode, efetivamente, levar ao vexame na consideração que,
todavia, lhe é devida mesmo post mortem. Assim, se dúvida houvesse sobre o
teor do art. 798 do Código Civil – e não as há, dada a clareza do texto, graças ao
expresso expurgo do critério subjetivo - melhor andaria o intérprete que
adotasse o caminho ditado pelos vetores constitucionais.
43. Nessa linha anda também parcela da doutrina brasileira que escreveu após
a vigência do Código de 2002 ainda que não motive a interpretação do art. 798
pelo
viés
da
proteção
aos
Direitos
Fundamentais.
Colha-se,
exemplificativamente, a abalizada opinião de Tzirulnik, Cavalcanti e Pimentel:
"Este artigo [n: o art. 798] pretendeu encerrar a discussão acerca da cobertura,
ou não, de suicídio no seguro de pessoas. (...). Ao que tudo indica, o legislador
pretendeu pôr fim ao debate, estabelecendo o critério da carência de dois anos
para a garantia de suicídio. O critério é objetivo: se o suicídio ocorrer nos
primeiros dois anos, não terá cobertura; se sobrevier após este período, nem
mesmo por expressa exclusão contratual, poderá a seguradora eximir-se do
pagamento. Não se discute mais se houve ou não premeditação, se foi ou não
”87.
44. Com igual precisão, e atentos aos elementos genéticos da regra codificada,
anotam Fiúza e Figueiredo Alves: "Agora, porém, a lei veio a estabelecer um
limite temporal, como condição para pagamento do capital segurado, ao
BGH 250, 133; Tribunal Constitucional, 30, 194, s. Conforme comentário e transcrição de
HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentales del Derecho Civil. Tradução de Pablo S.
Coderch. Ariel, Barcelona, 1987, p. 26, grifei. Na doutrina brasileira v. MENDES, Gilmar
Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito
Constitucional. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional – Celso Bastos Editos,
1998, p. 87-90.
87 TZIRULNIK, Ernesto, CAVALCANTI, Flávio Queirós e PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de
Seguro. Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo, IBDS, 2002, p. p.212-213, grifei.
86
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
277
afirmar, categoricamente, que somente após dois anos da vigência inicial do
contrato é que o beneficiário poderá reclamar o seguro devido em razão de
suicídio do segurado. A rigor, é irrelevante, doravante, tenha sido, ou não, o
suicídio premeditado, pois a única restrição trazida pelo NCC é de ordem
temporal. A norma, ao introduzir lapso temporal no efeito da cobertura
securitária em caso de suicídio do segurado, recepciona a doutrina italiana,
onde o prazo de carência especial é referido como spatio deliberandi. Esse prazo
de inseguração protege o caráter aleatório do contrato, diante de eventual
propósito de o segurado suicidar- ” 88.
45. Registrando as posições divergentes, também Venosa observa: "O atual
Código procura solucionar de forma mais prática e objetiva a questão,
estatuindo que o suicídio não gerará indenização, se ocorrido nos primeiros dois
anos de vigência inicial do contrato, ou de sua recondução depois de suspenso,
permitida esta pelo ordenamento (art. 798). Sob tal prisma, afastar-se-á a
discussão acerca da premeditação. Com esse período de dois anos, afasta-se a
possibilidade de eventual fraude de quem faz seguro de vida com a intenção
precípua de suicidar-se. Esse mesmo art. 798 é expresso no parágrafo único,
estatuindo que "ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a cláusula
contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado" 89.
46. Por igual exprime Paulo Nader: "O Código Civil estipula um conjunto de
critérios a ser considerado na hipótese de suicídio do segurado. O legislador
buscou o fiel da balança, a fim de promover a justiça do caso concreto, dando a
César o que é de César. Partiu do pressuposto de que o suicídio, quase sempre, é
ato de desequilíbrio, algumas vezes circunstancial e na maioria dos casos não
comporta uma espera superior a dois anos. O legislador não quis facilitar o
pagamento da indenização, a fim de não incentivar o ato tresloucado, nem
pretendeu impedir a contraprestação em situações justas, que não oferecem
indicativos de má-fé. Em caso de suicídio do segurado, para que o beneficiário
FIUZA, Ricardo e FIGUEIREDO ALVES, Jones. Novo Código Civil comentado. São Paulo:
Saraiva, 2006. 5ª ed. p. 654
89 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos em espécie. São Paulo: Atlas, vol. III, 2004.
4ª ed. p. 408, grifei.
88
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
278
faça jus ao pagamento, é preciso que tenha havido, entre a formação do contrato
e o evento, uma carência mínima de dois anos ou, igual prazo, após o fim da
suspensão do contrato. Não preenchida uma destas exigências, a sociedade
seguradora haverá de pagar ao beneficiário o valor correspondente ao da reserva
técnica formada. É a dicção do art. 798” 90.
47. Com base em cuidadosa pesquisa de Direito Comparado, leciona Kriger
Filho: "Entre nós também não passou desapercebido da atenção do legislador [o
tema do suicídio], tanto que o artigo em comento expressamente exclui o direito
à cobertura securitária se o mesmo ocorrer dentro do lapso de dois anos da
vigência inicial do contrato ou da sua recondução, se seus efeitos restarem
suspensos. Este tempo de "carência", pelo qual se outorga ao segurador
legitimidade para negar o pagamento da indenização em caso de suicídio do
segurado, é conhecido como "regra da indisputabilidade" ou spatio deliberandi
dos italianos, pertencendo inclusive à sistemática legal de vários países, a
exemplo da Alemanha, em que é de dez anos, da Argentina, três anos, da
França,
P
”91.
48. É bem verdade haver interpretações divergentes na doutrina92 e, bem mais
raramente, na jurisprudência93. Porém, não se afiguram como as mais
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Contratos. Rio de Janeiro: Forense, vol. 3, 3ª ed.,
2008, P. 385.
91 KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Seguro no Código Civil. Florianópolis: OAB/SC, 2005,
pp. 246-244-245.
92 A doutrina que sustenta a persistência do critério do Código de 1916 parece hesitar. ConfiraR zz
q
“
ç q
s
Có
1916”
“
ú
çã é
devendo, para ensejar o direito, que não ocorra depois do prazo de carência de dois anos. No
mais, é indiferente tenha ou não ocorrido a premeditação, ou a voluntariedade do ato", em outra
“
çõ
”
(RIZZARDO A
.
Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 6ª ed. p. 874). Outros autores (como TEPEDINO,
Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; e MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil
interpretado conforme a Constituição da Républica. Rio de Janeiro: Renovar, vol. II, 2006, p.
608)
h
ç
z
: “D
se se o dispositivo em questão prevê, na verdade, apenas uma inversão do ônus da prova. Assim,
nos primeiros dois anos, incumbiria ao beneficiário comprovar a não premeditação do suicídio
pelo segurado. Se o beneficiário lograsse comprovar a não premeditação, a seguradora não
poderia se eximir da sua obrigação, ainda que o suicídio ocorra nos primeiros dois anos de
vigência do contrato." Do mesmo modo os atualizadores da obra de Orlando Gomes, Antônio
J q
Az
F
P
C
z M
q
: “H
interpretações possíveis desta regra. De acordo com a primeira, trata-se de espécie de prazo de
carência para a cobertura nos casos de suicídio. A estipulação de prazo de carência será lícita, à
90
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
279
adequadas em face da letra expressa do Código, da expressa motivação do
legislador (revelada nas Notas Explicativas de Comparato, da incolumidade da
regra por todo o período da tramitação legislativa do Projeto) bem como em face
dos vetores constitucionais antes referidos.
48.1. Com todo o respeito aos seus ilustrados autores, parecem-me, na
realidade, conclusões ilógicas, efetivamente contraditórias e anacrônicas. Isto
porque não haveria razão para adotar-se um critério temporal objetivo para, em
seguida, desmanchá-lo com a criação de presunções não previstas e justificáveis
tão somente se tivesse sido considerado pela lei o critério subjetivo, como
ocorria na vigência do Código de 1916.
48.2. Nesse particular – volto a insistir – são de valia a doutrina italiana, que
enfrentou a questão há sessenta anos, respondendo com firmeza e coerência ao
fato de o novo texto expurgar o critério ligado ao sujeito (premeditação, ou não),
substituindo-o pelo critério objetivo bem como a história da tramitação
legislativa, a evidenciar a reiterada vontade democrática. Ademais, é de se
perguntar: porque razão teria o Código de 2002 mudado radicalmente a regra se
fosse para a interpretação continuar a mesma atribuída ao art. 1.440 do Código
revogado? Não se estaria então a repetir o célebre – e cínico - dito de Trancredi
a Don Fabrizio Corbera, Príncipe di Casa Salina,
q
“tudo deve mudar para
continuar no mesmo?” 94.
luz do art. 797 do Código Civil. Consoante outra interpretação, o dispositivo instituiria
presunção relativa (iuris tantum) no sentido de que o suicídio dentro do prazo de dois anos é
premeditado, afastando o direito à garantia. Nesse caso, seria possível ao beneficiário
demonstrar que o suicídio não foi premeditado, fazendo jus ao recebimento do capital segurado.
Esse é o teor do Enunciado nº 187 da III Jornada de Direito Civil." (GOMES, Orlando.
Contratos. R
J
: F
26ª
. 2008 . 513). J
C
“A
é
surpreendente e nada feliz, porque estabeleceu uma espécie de suicídio com prazo de carência,
inovando em uma matéria que já estava muito bem equacionada pela doutrina e pela
.”( CAVALIERI FILHO Sé
. Programa de Responsabilidade Civil. Rio de
Janeiro: Malheiros, 2004. 5ª ed ,p. 443).
93 TJRS Apelação Cível nº 70022770879, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Paulo Sérgio Scarparo, Julgado em 12/03/2008. Idem: Apelação Cível nº
70017404088, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ubirajara Mach de
Oliveira, Julgado em 13/12/2007 e Apelação Cível nº 70020123949, Quinta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 21/11/2007, todas
do mesmo Tribunal.
94A famosa frase é: "Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi!. (v.
LAMPEDUSA, Giuseppe Tommaso di. Il Gattopardo. 90ª ed. Roma: Feltrinelli, 2008.)
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
280
49. Também – como acabamos de anotar - não se afiguram adequadas por uma
interpretação literal, lógico-sistemática e axiológica, à luz dos princípios da
Constituição e do Código Civil.
50. Por fim, não configuram hipóteses de permissão para a livre criação judicial
do sentido do texto.
50.1. Tem a doutrina acentuado, ao longo do séc. XX o abandono do estreito
positivismo legalista que tinha a letra da lei como intocável fetiche. Isto não
obstante, há consenso acerca da existência de espaços e limites para a atividade
do intérprete.
51.
O
“D
J íz ” (Richterrech), ao afirmar a
“
í
95”
concomitantemente, o seu espaço, qual seja, o espaço legislativo lacunoso ou
aquele que, por mudança ponderável na realidade fática somada à inércia do
legislador, transformou o sentido originalmente conferido à disposição legal. É
este o âmbito do Direito jurisp
q
“vive accanto, o
complementarmente, al diritto legale, determinandolo, arrichendolo o
consolidandolo”96 e assim promovendo a permanente adaptação da lei aos fatos.
Há, ademais, técnicas para tanto, seja a interpretação ab-rogante, seja a
analógica, seja a extensiva, não se devendo esquecer que a legitimidade
.É
üí
enfatizar qu
z çã
q
Mü
“
” í
í
97
ã
é
“
e ao
çã ”
ORRU, Giovanni. Richterrech. Il Problema della Libertà e Autorità Gudiziale nella dotrina
tedesca comtemporânea. Milão, Giuffrè, 1988, p. 139. Em traduçã
: “V
complementarmente, ao direito legal, determinando-o, enriquecendo-o ou consolidando- ”. E
similar sentido REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito – para um novo paradigma
hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 29-30.
96 ORRU, Giovanni. Richterrech. Il Problema della Libertà e Autorità Gudiziale nella dotrina
tedesca comtemporânea. Milão, Giuffrè, 1988, p. 139.
97 MULLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Trad. fran. de Olivier Jouanjan. Paris.
PUF, 1993, p.383.
95
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
281
(Nachvollzug) de valorações legislativas, mas integra um processo mais
q
çã é “
52. C
T
”98.
A
A
W
“(...)
z “
”
direito no sentido de poder engendrar soluções para casos que não sejam
q
ã
“
”
(
q
çã
encaixe automaticamente nelas). Mas essas soluções, sob pena de se deixar
definitivame
ç
“
”
elementos constantes no sistema jurídico, somados, combinados, engrenados,
.
ã
53. Nã
q
h
ú
q
ã
ã
“
h
”99.
”
é
é
subjetivo que animara o Código de 1916, sendo claro o expurgo do elemento
“
”
q
çã
A
do Projeto e, finalmente, do Código Civil de 2002. Não podem, portanto,
persistir as interpretações que o tomam em consideração, sob pena de ensejar o
arbítrio, o voluntarismo, contrário ao jogo democrático e aos valores contidos
no Estado e Direito, não se justificando emprestar ao art. 798 o que ele
efetivamente não contém100.
MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. São Paulo, Max
Limonad, 2ª ed. revista, 2000, pp. 66-67.
99 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das Decisões Judiciais por Meio de Recursos de
Estrito Direito e da Ação Rescisória. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 394.
100 A
z
q “ ”
çã .
Exemplificativamente a Ap. Civ. Cível nº 70023566433, Quinta Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 21/05/2008, com a seguinte
: “APELAÇÃO CÍVEL. SEGUROS. AÇÃO DE COBRANÇA. COBERTURA DO RISCO DE
MORTE. SUICÍDIO NÃO PREMEDITADO.ÔNUS DA PROVA. NEGATIVA POR PARTE DA
SEGURADORA. INDENIZAÇÃO DEVIDA. 1. O objeto principal do seguro é a cobertura do risco
contratado, ou seja, o evento futuro e incerto que poderá gerar o dever de indenizar por parte do
segurador. Outro elemento essencial desta espécie contratual é a boa-fé, caracterizada pela
sinceridade e lealdade nas informações prestadas pelo segurado ao garantidor do risco
pactuado, cuja contraprestação daquele é o pagamento do seguro. 2. Consoante entendimento
jurisprudencial assentado nesse Colegiado e no STJ, haverá pagamento do seguro se o
segurado vier a falecer em razão de suicídio não premeditado, mesmo que dentro do
interregno de tempo assinalado pelo art. 798 do Código Civil. 3. A seguradora não logrou êxito
em comprovar a premeditação, ônus que lhe incumbia e do qual não se desincumbiu, a teor do
que estabelece o art. 333, II do CPC, mostrando-se devida a indenização securitária. Por
R
”. (
).
98
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
282
54. O critério temporal objetivo que dispensa a investigação sobre a
voluntariedade ou não do suicídio é também acolhido pelas mais recentes
legislações. A titulo de exemplo veja-se o que diz novíssima Lei Geral dos
Seguros, de Portugal bem como a lei a argentina, e a francesa, e, inclusive, o
Substitutivo do Projeto de Lei n° 3555/2004, em tramitação no Congresso
Nacional.
54.1. Na legislação portuguesa, o Decreto Lei n.72 de 16 de abril de 2008
estabelece em seu artigo 191 que está excluída a cobertura da morte em caso de
suicídio ocorrido até um ano após a celebração do contrato, salvo convenção em
contrário. Na legislação argentina também predomina o critério objetivo, visto
que a Lei de Seguros n.º17.418 de 1967, em seu art. 135, dispensa a investigação
da voluntariedade do suicídio depois de três anos de decurso do contrato101. Na
França outro não é o critério senão o temporal, conforme dispõe o art. L132-7 do
Code des Assurances: “O
suicídio a contar do dé
”102.
55. Posso, assim, com base nesses fundamentos, anunciar as minhas conclusões,
o que o faço ao modo sintético, acompanhando o questionamento proposto
pelos Consulentes.
III. Das Conclusões sintéticas
a) A evolução legislativa do CC, tanto omissiva como comissivamente, no que
se refere ao pré-falado artigo 798 do CC, admite a conclusão de presunção
absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?
R:A evolução legislativa, evidenciada pela pesquisa genética e histórica,
demonstra ter ocorrido, na matéria,
alteração radical passando-se de um
critério baseado na sindicância da premeditação ou não do suicídio, e de
In verbis
. 135: “E
asegurador, salvo que el
h y
102 No original o art. L132-7: “L'
è
é
y
101
ñ .”
.”
é è
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
q
283
presunções de premeditação, para um critério puramente objetivo, de ordem
temporal, exclusivamente, de modo a afastar a pesquisa sobre o estado mental,
as intenções, o dolo ou qualquer outro aspecto concernente à subjetividade do
suicida (conforme itens 21 a 50, supra);
b) A recepção do Substitutivo de lei do Eminente Mestre Fábio Konder
Comparato, municiado da sua indiscutível exposição de motivos, e
consagrada, positivamente, na derradeira exposição de motivos do CC, da
lavra do Eminente Mestre Miguel Reale, admite, no que se refere ao artigo 798
do CC, a conclusão de presunção absoluta de suicídio premeditado no biênio
pós-contratação ou recondução?
R. Como acima registrado, não há que se falar em presunção. O critério é
objetivo, e nada se presume: se ocorrida no biênio pós conclusão do contrato, a
morte, por suicídio, não gera ao segurado o direito ao recebimento do capital; se
ocorrida após esse período, a seguradora deve pagar, qualquer que seja a causa
do suicídio (conforme item 43 supra);
Além do mais, se presunção houvesse (como quer o Enunciado n. 187 da III
Jornada sobre o Código Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal) essa
seria uma presunção violadora do sistema, pois estaria posta contra a parte
vulnerável (beneficiário) do contrato (vide item 36.3 supra).
c) A não-recepção do Esboço ou Anteprojeto do CC de 1965, no que se refere ao
artigo 798 do CC, prejudica a aceitação, para fins de norte da doutrina do
Eminente Mestre Caio Mario da Silva Pereira?
R. Sim. O Anteprojeto elaborado pelo Eminente Caio Mário não foi objeto da
deliberação e aprovação pelo Congresso Nacional e, no particular, sequer
influenciou, minimamente que seja, o teor do vigente art. 798 na medida em, na
redação proposta pelo ilustre Professor, mantinha o critério subjetivista, sequer
o mesclando com o critério objetivista. Como fica claro nas Notas Explicativas
do Professor Fábio Konder Comparato, as soluções propostas tanto no
Anteprojeto de Caio Mário quanto no de Miguel Reale, não foram consideradas
as melhores. Com a humildade intelectual que é própria dos grandes juristas, o
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
284
Professor Miguel Reale reconheceu a superioridade da proposição de
Comparato e a acolheu, apoiando a substituição que, efetivamente, veio a ser
concretizada, sem ter sofrido a menor alteração pelos longos anos em que o
Projeto tramitou no Congresso Nacional. Assim, afirmou-se e reafirmou-se, sem
sombra de dúvidas, a vontade democrática de ver adotado unicamente o critério
objetivista (ver itens 30 a 33, acima).
d) As súmulas 105 do STF (que inclusive despreza a carência, reconhecida nos
artigos 797 e 798 do CC) e 61 do STJ, amplamente conhecidas na gestação do
CC, permanecem efetivas no que se refere ao “fenômeno” do suicídio,
doravante e durante o hiato do artigo 798 do CC?
R. Não. Essas Súmulas, fundadas em Código revogado e em disposições e
presunções que não mais se sustentam em vista da legislação vigente, perderam
a sua razão de ser. (ver item 15, acima)
e)
O artigo 798 do CC, cuidando do suicídio, sem qualquer indexação,
melhor, adjetivação (“voluntário ou involuntário”), em comparação com o
Código Beviláqua e com o Anteprojeto de 1965, admite a conclusão de
presunção absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou
recondução?
R. Prejudicada. Como já registrado acima, não há mais que cogitar de
presunções. O critério é exclusivamente o temporal, pois se seguiu,
expressamente, o modelo do Código Civil italiano (ver itens 41 a 43, acima).
f) A consolidação do CC, em especial do artigo 798 do CC, como “produto” do
poder Executivo e “verdade” do Poder Legislativo, permite a rediscussão da
mens legis (não se falando da discricionariedade propiciada pelas cláusulas
abertas), em vertente hermenêutica, pelo Poder Judiciário?
R. Não. Por mais que a doutrina contemporânea valorize o espaço do
“Richterrech”
“D
J íz ”
-se de um estreito positivismo
legalista, tal não significa que o espaço da decisão judicial possa recair no
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
285
voluntarismo. Ao intérprete é dado afastar o texto legal nos casos permitidos
pelo sistema (vide item 50, supra).
Realizada a exaustiva análise dos métodos hermenêuticos (genético-histórico;
literal; lógico-sistemático e axiológico) constatou-se que todos convergem no
sentido de afastar a interpretação ab-rogante proposta por alguns autores e
exposta em alguns julgados, tendo-se por ab-rogante a interpretação que nega
valor a uma disposição de lei, o que só é admissível quando se verifica a sua
absoluta contraditoriedade e incompatibilidade com outra norma, supraordenada e principal.
Também não se justifica a interpretação restritiva, assim considerada a que
constata que a fórmula textual exprime menos do que o pensamento legislativo
quis (minus scripsit quam voluit) porque a restrição só tem lugar quando o
texto, entendido de modo geral, como está redigido, viria a contradizer outro
texto ou se contivesse uma contradição interna ou se ultrapassasse o fim para a
qual foi ordenada , hipóteses que se não verificam (ver itens 41 a 51, supra).
g) A ruptura legislativa do CC de 2002, lançando idéia inédita na discussão
quanto ao suicídio (artigo 798 do CC), admite a manutenção/utilização do
mesmo
universo/desfecho
jurisprudencial
de
outrora,
antes
do
seu
nascimento?
R. Não. A interpretação é a ponte que une o texto normativo à realidade,
produzindo a norma jurídica. Se alterados os dados do texto normativo – e
radicalmente alterados, pela substituição dos critérios da norma, como na
espécie – não se pode, pena de inconcebível anacronismo, sustentar e privilegiar
interpretação congruente com a realidade normativa já extinta (conforme itens
19 a 28, supra).
h) A destinação da chamada “prova diabólica”, foi, no artigo 798 do CC, o
banimento ou o seu endereçamento ao beneficiário?
R. O
“
ó
”
.F
motivar a proposição resultante no texto aprovado (sem ressalvas) do art. 798
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
286
do Código Civil. Em face do expresso texto legal não mais se justifica a
argumentação que, para um lado (beneficiário) ou para o outro (seguradora)
preserve as discussões probatórias e/ou sindicâncias acerca da motivação do
suicídio no puerpério bienal do artigo 798 do CC. Esgotado esse prazo, há o
dever da seguradora garantir o capital (itens 19 a 28, supra).
i) O entendimento de presunção relativa de suicídio premeditado, a partir e
com vistas ao puerpério estabelecido no artigo 798 do CC, atenderia aos “fins”
da lei, considerando a perpetuação do tormentoso ônus da carga dinâmica das
provas?
R. Não. Entender-se como proposto pelo Enunciado nº 187 da III Jornada de
Direito Civil acarretaria violação aos fins da lei (Código Civil), que pretendeu
pacificar as discussões e onerar o beneficiário/consumidor com a prova
diabólica que foi tout court banida (assim violando também os fins de proteção
do Código de Defesa do Consumidor). Ao contrário desse entendimento penso
estar atendidos os fins de segurança jurídica e proteção ao beneficiário quando a
lei, clara, genérica e impessoal, estabelece critérios facilmente compreensíveis e
observáveis pelos seus destinatários, evitando”
“
mo a litigiosidade baseada em
contorções do vernáculo ou nas inevitáveis dissensões entre a compreensão
dada ao suicídio pelos vários campos de vida meta-jurídicos envolvidos no
problema; se está a proteger bens da personalidade do suicida, nomeadamente,
a sua privacidade, expurgando-se a pesquisa e as discussões sobre a sua
motivação com o que melhor se concretiza a fundamentalidade constitucional
dos Direitos de Personalidade, objeto, ao mesmo tempo, da proteção da
Constituição e do Código Civil; resguarda a técnica do mutualismo, atada à
função social do seguro, pondo-se um freio aos contratos preordenados ao
suicídio; determina, de modo claro, à seguradora, que cumpra a obrigação de
garantia, ultrapassado o biênio; protege-se, ao fim e ao cabo, os próprios
interesses dos consumidores, não adstritos ao interesse meramente individual e
é
“
í
”
-se a função social,
dirigida à implementação do interesse (coletivo) do grupo segurado. (ver itens
37 a 49, supra).
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
287
ATUALIDADES
METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL: FUTUROS
POSSÍVEIS E ARMADILHAS
B
E
é
L w k
103
ç
h
q
q
:
ç
h
q
ç . E
anus mirabilis
q
q
í
z
.
E
h
í
B
ó
:
R
D
.N q
:
P
í
z
q
h q
N q
ç
F
D
q
h
ç
ã
UERJ.
. E
.
H
q
. L
ç
I
. M
ã
í
C
ã
z
q
çã
voltar aos clássicos. A ó
ó
q
P
z
í
: P
P
çã
complexidade do ordenamento.
103
Doutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
288
B
-
h
historicidade
í
q
z
M
é
presente;
h
h
q
çã
h
próprio momento
hoje é
ó
q
í
P
.
é
q
çã .
í
çã
é
í
í
çã
.P
q
z
q
q
futuros possíveis.
O
q
z
çã
é
. C
q
í
z
h :
estilhaçamento
.
Aq
-
í
“
-
õ ”é
-
çõ -
-
.C
ã
é
õ
.I
í
z
çã
é
“
:
”
Common Law
çã .
A
é
. P
. 21
2002
Direito da Privacidade. E
M
C
I
q
M
Có
é
J
çã
ã
ç .P
.O
h
.D
ã ;
h
q
.A
hã
hã
h
ã
q
ã
q
z
.D í
çã
Código da Privacidade
.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
289
O
q
h
q
. A
P
q
“
çã
çã
çõ
í
caos
çã
ó
”. H
q
çõ
ó
é
. U
P
decisões q
ã
:“
çã
çã
í
ã
[...] A
ã
çã
ó
”. O
é
.
B
çã
z
é
. A
teoria geral
ó
-
catedral
-
ã
q
q
z
ã
z
q
õ
.
M
z çã
çã
standards
ó
q
. E
ã
q
h
q
í
é
é
ã
.N
”
P
.é
“q
q
h
. A
çã . O
“
çã
é
(
h
360
)
ã
é
z
ó
q
ã
ã
é
ç
z
çõ
z
q
é
”.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
290
P
q
h
h ç
.M
h
q í
q
:
esquecimento
.I
h
é
í
ç
çã
çã
.
Nã
ignorar
h
q
çã
é
h
Có
C
.P
ressignificar
;
q
h
çã
q
. P
.
M
D
ã
fingir que eles não estão ali. Nã
ignorando o dado normativo. N
çã q
P
ã
T
(
. B
h
q
. S
q
z
ã
ã )
h
q
D
q
q
çõ
q
z
q
.A
ó
z
esgotar as possibilidades
interpretativas da lei vigente. M
ã
ã
h
çã
.
D
q
í
terra arrasada
.A
q
h
ó
O
q
q
z
çõ
C
çã .
: ã
ã
.A
é
.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
291
A
ã
é
h
q
í
z
É
q
q
C
z
D
z
ã
çã
summa divisio ú
1988
-
B
. E
é
h -
q
h
É
.
“
”-
ensimesmamento.
q
. M
é
q
h
ó
ó
q
é
é
q
q
. I
í
q
D
z
E
q
. Nã é
í
çã
q
z
q
q
transformadora da sociedade
çã
q
q
D
z
P
q
ô
. P
q
.N
çã
z
norma fundamental
h ç
é
força
ã
í
“é
ã
h
í
é
ô
-
é
G
C
“
q
çõ
q
é
”. M
“
q
ã
”. O
ó
h
z ã
ã
é
ó
P
q
q
:
entre mercado e direito não há um antes ou um depois, mas uma
inseparabilidade lógica e histórica”. O
q
ã
z
é
é
.
M
q
h
q
é
G
q
h
ó
: “O
”. H
çõ
A
é
í
h
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
z
292
.S
é
ã .T
q
.
E
D
h
ç
. P q
í
.M
í
çã
ã
é
é
q
z
A
ã
ã
R
í
h
q
ã
esquecimento
-
.
q
.
í
q
:
h
estilhaçamento
ensimesmamento.
A çã
P
chefs
é
P
: “A
çã
z
-
q
õ
z çã
h
q
:
z
í
;
ã
í
z
íz
í
z çã
q
é
çõ
;
ç
z çã
çã . M
çõ
z
q
ç
é
çã
çã
”. O
.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
293
RESENHAS
O SEGUNDO PASSO: DO CONSUMIDOR À PESSOA HUMANA
Resenha de SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores hipervulneráveis: a
proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.
Carlos Nelson Konder104
I. Não se pode deixar de reconhecer que algumas das conquistas mais
importantes no âmbito das relações privadas no Brasil, nas últimas décadas,
ocorreram graças à atuação dos juristas dedicados ao direito do consumidor. O
impacto social do advento da Lei 8.078/90 e da jurisprudência que lhe deu
aplicação é dos mais relevantes em termos de efetivação do objetivo
constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Estas vitórias
í
ç
“
”
desde os debates sobre a redação do anteprojeto do CDC até a influência sobre a
consolidação e o desenvolvimento das decisões que efetivaram as conquistas
daquele diploma. Esses juristas assumiram um duplo papel. De um lado,
cientistas do direito, enfrentando a aridez da civilística clássica e superando as
divisões tradicionais da dogmática jurídica (privado x público, substancial x
processual) para desenvolver novas técnicas e instrumentos idôneos à efetivação
da tutela dos consumidores. De outro lado, ativistas sociais, lutando pela
eficácia de tais instrumentos contra gigantescas forças econômicas que,
resistentes à mudança, buscavam interferir nos mais diversos níveis. As
conquistas são inquestionáveis. Ainda que o processo não esteja findo, eis que
sempre se abrem novos fronts de batalha (tenha-se em vista as batalhas pela
reforma do CDC, envolvendo o superendividamento, o comércio eletrônico e a
Doutor e mestre em direito civil pela UERJ. Especialista em direito civil pela Universidade de
Camerino (Itália). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ e do Departamento de
Direito da PUC-Rio.
104
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
294
tutela coletiva), foram vencidos os argumentos ad terrorem de que a proteção
do consumidor levaria à quebra da atividade empresarial e a um retrocesso
econômico.
Por isso, é com enorme satisfação que assistimos alguns daqueles
juristas darem um segundo passo. A conquista da proteção do consumidor,
ainda que em constante expansão, não é suficiente. Embora a categoria do
consumidor seja mais concreta e específica do que a generalidade seca do
“
”
í
é
de alguma abstração,
demandando a persistência no esforço de concretização. O consumidor padrão,
ou ainda mais o consumidor pessoa jurídica, não pode receber o mesmo
tratamento protetivo que o consumidor criança, o consumidor idoso, o
consumidor portador de necessidades especiais. Essa constatação conduziu à
recuperação, entre esses juristas, da categoria da vulnerabilidade. Trazida do
cenário da saúde pública, foi presumida e generalizada nas relações de
consumo, mas a recente doutrina a devolve à sua origem natal, restabelecendo e
aprofundando o vínculo entre esse conceito e a inexorável fragilidade da
condição humana. Nessa toada, diversos estudos foram publicados, dedicandose à construção de mecanismos de tutela diferenciados para esses sujeitos
submetidos, em sua humanidade, a condições ainda mais delicadas e mais
necessitadas de tutela, com fundamento na solidariedade. Ante a insuficiência
da vulnerabilidade consumerista, padronizada para todos os consumidores,
construiu-se a categoria da hipervulnerabilidade, que ganhou ampla difusão a
partir de alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça. A categoria, contudo,
ainda carecia de sistematização doutrinária adequada. Esse é o contexto em que
surge a bem-vinda obra de Cristiano Heineck Schmitt.
II. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de
consumo aborda o dramático problema social dos abusos perpetrados sobre os
idosos no âmbito das relações de consumo. Em uma sociedade em que a
novidade é supervalorizada e o que é antigo é tratado como obsoleto, o idoso é
cada vez mais relegado ao segundo plano no que tange ao adequado acesso a
bens e serviços fundamentais como no que se refere à assistência de saúde e, ao
mesmo tempo, quando titular de patrimônio e, muitas vezes, fonte de renda
estável, decorrente de pensões e aposentadorias, vítima fácil da indústria do
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
295
superendividamento. A previsão constitucional da tutela do idoso, e mesmo sua
regulamentação pelo Estatuto do Idoso, ainda demandam eficácia adequada
para a viabilização de uma proteção real e concreta. Neste sentido, é mais do
que louvável o objetivo de Cristiano Heineck Schmitt de ampliar a efetivação
dessa tutela por meio da categoria da hipervulnerabilidade.
Para tanto, o autor compõe sua bela obra em três capítulos. No
primeiro, busca estabelecer uma ligação entre direitos do consumidor e direitos
fundamentais. Rico na doutrina acerca da chamada eficácia horizontal dos
direitos fundamentais e nas reflexões acerca do impacto do princípio da
dignidade da pessoa humana nas relações privadas, alça o consumidor que for
“
”
“
”. N
í
dedica-se à tutela constitucional do consumidor idoso, com grande manancial
de pesquisas e dados empíricos, além de uma análise minuciosa do
superendividamento de idosos. O terceiro capítulo estabelece a passagem final:
da
vulnerabilidade
do
consumidor
no
mercado
de
consumo
à
hipervulnerabilidade do consumidor idoso. Com fundamento nos princípios da
igualdade e da proporcionalidade, o aut
q
“
vulnerabilidade é uma circunstância inseparável da noção jurídica de
”
ç
z
õ
h
q
“
soma da vulnerabilidade intrínseca à pessoa do consumidor, com a fragilidade
q
í
”. A
dos contratos de planos e de seguros de assistência privada à saúde,
identificando na aplicação do CDC e da Lei n. 9.656/98 formas de redução dos
cenários de espoliação do idoso.
III. A obra de Cristiano Heineck Schmitt é enriquecedora em diversos níveis.
Em primeiro lugar é um alerta. Os dados apresentados pelo autor revelam a
intensidade e a frequência dos mecanismos negociais de exploração de idosos e
a urgência da atuação dos juristas em prol de soluções mais eficazes. Em
segundo lugar, é um diálogo. O autor estabelece ligações entre teorias e
doutrinas que, para prejuízo da sistematicidade do ordenamento, são muitas
vezes tratadas em apartado, como as reflexões constitucionalistas sobre direitos
fundamentais, as informações apresentadas pela sociologia do direito, as
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
296
difundidas técnicas do chamado microssistema consumerista e as tradicionais
estruturas do direito privado. E é, ainda, em terceiro lugar, uma proposta
inovadora. Defende, com simplicidade e clareza, a construção de uma nova
é
ã
“h
”.
Reconhece, portanto, que no mesmo espírito que a categoria dos consumidores
foi criada, para tratar de forma privilegiada uma categoria socialmente
desprivilegiada, é necessário ir além. Tratar todos os consumidores da mesma
forma, desconsiderando suas fragilidades humanas, seria desprestigiar, nesse
segundo momento, o princípio da igualdade. Daí a proposta, no sentido de
construir uma nova categoria, para diferenciar, alguns, dentre os já
diferenciados.
Pode-se destacar como um dos pontos altos do trabalho não apenas o
chamado diálogo entre as fontes, mas o diálogo com os direitos fundamentais de
alçada constitucional que, nesse caso, é menos diálogo e mais monólogo: a
normativa consumerista como forma de efetivação do ditado constitucional.
Pode-se salientar também a passagem da tutela geral do equilíbrio econômico
nas relações de consumo para uma tutela de matiz existencial, fundada na
dignidade humana do sujeito consumidor em concreto. Pode-se questionar a
conveniência da criação de mais uma categoria abstrata para diferenciar a
sempre mais rica e complexa condição humana. Como toda grande obra, suscita
reflexões e gera questões, permitindo ao leitor que, após a imersão no texto,
continue a pensar sobre o assunto, instigado pela qualidade do trabalho. Mais
um ponto está fora de questão: Cristiano Heineck Schmitt deu o segundo passo.
Cabe a nós o acompanharmos no diálogo.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
297
SUBMISSÃO DE ARTIGOS
Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil para publicação devem observar às seguintes normas:
1. Os trabalhos deverão ser inéditos e exclusivos, isto é, sua publicação não deve
estar pendente em outro local.
2.
Os
trabalhos
deverão
ser
enviados
via
e-mail
para
o
endereço [email protected]. O processador de texto recomendado é o
Microsoft Word. É permitido, contudo, utilizar qualquer processador de texto,
desde que os artigos sejam gravados no formato .rtf (Rich Text Format),
formato de leitura comum a todos os processadores de texto.
3. Os arquivos do artigo e folha de rosto deverão ser separados e nominados de
acordo com o título do trabalho. O artigo não deverá ser identificado.
4. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente entre 15
e 35 laudas. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda
escrita. Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes
ou depois. Não se deve utilizar o tabulador <TAB> para determinar os
parágrafos: o próprio <ENTER> já determina este, automaticamente. A fonte
utilizada deve ser Times New Roman, corpo 12. Os parágrafos devem ter
entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo, 2,5cm no lado direito e
2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve ser A4.
5. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do
trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço,
telefone, faz, e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a
principal atividade exercida.
6. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/89
(Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência bibliográfica
básica deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome
do autor em letras minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número
da edição; ponto; palavra edição abreviada; ponto; local; dois pontos; editora
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
298
(suprimindo-se os elementos que designam a natureza comercial da mesma);
vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo: DAVID, René. Os grandes sistemas
do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
7. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe que
não ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e
português e por um Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada
cada divisão da outra por um travessão. Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade
social e ordenamento jurídico – 2. Regras jurídicas e regras sociais – 3. O jurista
e as escolhas legislativas. – 4. O Código Civil – 5. A Constituição – 6. A chamada
descodificação.
8. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve
ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.
9. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor modificações
ou devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os trabalhos
recebidos serão submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual cabe a
decisão final sobre a publicação.
10. A publicação na RBDCivil implica a aceitação das condições da Cessão de
Direitos Autorais de Colaboração Autoral Inédita, e Termo de Responsabilidade,
que serão encaminhados ao(s) autor(es) com o aceite.
11. Como contrapartida pela Cessão de Direitos Autorais, o(s) autor(es)
receberá(ão) um exemplar da RBDCivil.
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014
299