patologias gastrenterologicas frequentes na criança, na
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patologias gastrenterologicas frequentes na criança, na
PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 1 NÚCLEO DE GASTRENTEROLOGIA DOS HOSPITAIS DISTRITAIS PATOLOGIAS GASTRENTEROLOGICAS FREQUENTES NA CRIANÇA, NA GRÁVIDA E NO IDOSO ANTÓNIO CURADO Editor Convidado PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 3 FICHA TÉCNICA Design Gráfico: Cristina Martinho / Wise Target Com o patrocínio exclusivo de: Astra Zeneca - Produtos Farmacêuticos Lda. Impressão: Centro Gráfico dos Restauradores Tiragem: 5000 exemplares Depósito Legal 218441/04 3 PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 5 PATOLOGIAS GASTRENTEROLOGICAS FREQUENTES NA CRIANÇA, NA GRÁVIDA E NO IDOSO EDITOR CONVIDADO António Curado Assistente Graduado de Gastrenterologia Centro Hospitalar das Caldas da Rainha – Caldas da Rainha, Serviço de Gastrenterologia AUTORES Ana Luísa Alves Assistente de Gastrenterologia Hospital de S. Bernardo – Setúbal, Serviço de Gastrenterologia António Curado Assistente Graduado de Gastrenterologia Centro Hospitalar das Caldas da Rainha – Caldas da Rainha, Serviço de Gastrenterologia Eduardo Pereira Assistente de Gastrenterologia Hospital Amato Lusitano – Castelo Branco, Serviço de Gastrenterologia Fernando Pereira Chefe de Serviço de Gastrenterologia Hospital Maria Pia – Porto, Serviço de Gastrenterologia Francisco Martin Interno de Gastrenterologia Hospital Amato Lusitano – Castelo Branco, Serviço de Gastrenterologia João Baranda Assistente de Gastrenterologia Centro Hospitalar do Médio Tejo – Torres Novas, Serviço de Gastrenterologia José Renato Pereira Assistente de Gastrenterologia Hospital do Divino Espírito Santo – Ponta Delgada, Serviço de Gastrenterologia Laura Carvalho Assistente de Gastrenterologia Hospital de S. Pedro – Vila Real, Serviço de Gastrenterologia Luísa Glória Assistente de Gastrenterologia Hospital Distrital de Santarém – Santarém, Serviço de Gastrenterologia 5 PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 7 AUTORES (Cont.) Nuno Paz Assistente de Gastrenterologia Hospital do Divino Espírito Santo – Ponta Delgada, Serviço de Gastrenterologia Raquel Gonçalves Assistente de Gastrenterologia Hospital de S. Marcos – Braga, Serviço de Gastrenterologia Rosário Vidal Assistente Graduada de Gastrenterologia Hospital Distrital de Santarém – Santarém, Serviço de Gastrenterologia Rui Loureiro Assistente de Gastrenterologia Hospital Garcia da Orta – Almada, Serviço de Gastrenterologia Vítor Fernandes Assistente de Gastrenterologia Hospital Garcia da Orta – Almada, Serviço de Gastrenterologia 7 PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 9 ÍNDICE Prefácio Isabelle Cremers Tavares 13 Introdução António Curado 15 I. PATOLOGIAS GASTRENTEROLÓGICAS FREQUENTES NA CRIANÇA Dispepsia na criança : «da dor abdominal recorrente à patologia péptica» 17 Laura Carvalho Perturbações criança João Baranda funcionais da defecação na 29 Doença inflamatória intestinal em crianças e adolescentes 49 Raquel Gonçalves Hepatite vírica na criança Fernando Pereira 71 II. PATOLOGIAS GASTRENTEROLÓGICAS FREQUENTES NA GRÁVIDA Doença ulcerosa péptica na grávida Nuno Paz 95 Patologia proctológica durante a gravidez e puerpério Vítor Fernandes, Rui Loureiro 115 Doença hepática na gravidez Ana Luísa Alves 125 9 PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 11 A realização de endoscopias durante a gravidez José Renato Pereira 133 III. PATOLOGIAS GASTRENTEROLÓGICAS FREQUENTES NO IDOSO Profilaxia da hemorragia digestiva alta no idoso: AINE’s, Coxibs e IBP’s 147 António Curado Obstipação funcional no idoso Eduardo Pereira 161 Colites não infecciosas no idoso 191 Rosário Vidal Colite isquémica 191 Doença inflamatória do intestino 196 Diverticulite 203 Colite rádica 208 Colites microscópicas 212 Colite de derivação 214 Colites de origem medicamentosa e química e cólon dos catárticos 216 Colites infecciosas no idoso 221 Luísa Glória 11 PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 13 PREFÁCIO Face ao sucesso dos 3 livros editados pelo Núcleo de Gastrenterologia dos Hospitais Distritais, com os temas “Hepatites Víricas”, “Doença do Refluxo Gastro-esofágico” e “Controvérsias em Gastrenterologia”, a actual Direcção decidiu dar continuidade a este trabalho, através da edição de uma 4ª publicação, intitulada “Patologias gastrenterológicas frequentes na criança, na grávida e no idoso”. O editor desta obra é o Dr. António Curado, a quem desde já agradeço o empenhamento na sua realização, assim como a todos os colegas que nela colaboram, contribuindo com a sua experiência clínica para uma actualização de conhecimentos que, seguramente, a todos será útil. Dirigidos a médicos gastrenterologistas e hepatologistas, bem como a médicos de outras especia lidades, particularmente, aos médicos de Medicina Geral e Familiar, estes livros editados pelo NGHD têm merecido uma grande aceitação e procura, o que levou à assinatura de um protocolo entre o NGHD e a Escola de Ciência da Saúde da Universidade do Minho e a Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior. Não tenho dúvidas que este livro, que aborda temas que por vezes nos levantam dificuldades na prática clínica, virá a conhecer o êxito dos anteriores e constituirá um instrumento de trabalho precioso para quem tiver a oportunidade de o ler e estudar. Setúbal, Julho de 2005 ISABELLE CREMERS (Presidente da Direcção do Núcleo de Gastrenterologia dos Hospitais Distritais) 13 PagsIniciais.qxp 21-11-2005 15:57 Page 15 INTRODUÇÃO Pretendeu-se com esta publicação abordar temáticas menos facilmente encontradas nos manuais e tratados de Gastrenterologia (até por serem temas que cruzam conhecimentos de especialidades diferentes) juntando gastrenterologistas disponíveis para uma pesquisa multi-disciplinar. Falar da patologia gastrenterológica de estratos populacionais específicos com problemáticas próprias e muito diferenciadas (crianças, grávidas e idosos) foi um desafio de enfrentámos com gosto, mas conscientes de que não seria fácil trazer a esta publicação homogeneidade ao longo dos diferentes capítulos. Também não era crível que, numa publicação deste tipo, pudéssemos ser exaustivos e esgotar os temas possíveis dentro da temática geral do livro. Abordámos, por isso, algumas das temáticas que nos pareceram mais prementes e frequentes em termos de prática clínica e pensamos ter conseguido reunir um conjunto de textos interessantes, que poderão vir a ser úteis a clínicos de várias especialidades e formações. O livro divide-se em três partes (patologia da criança, da grávida e do idoso), sub-dividindo-se cada uma delas em 4 capítulos/temas, todos de colaboradores diferentes e com bibliografia vasta, o que nos apraz registar. Caldas da Rainha, 11 de Julho de 05 ANTÓNIO CURADO (Editor convidado) 15 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 1 DISPEPSIA NA CRIANÇA «DA DOR ABDOMINAL RECORRENTE À PATOLOGIA PÉPTICA» LAURA CARVALHO Dor abdominal recorrente (D.A.R.) é uma terminologia frequentemente usada na semiologia pediátrica. Corresponde a uma entidade mal definida mas descrita há várias décadas, por Apley, como três ou mais episódios de dor abdominal, em crianças entre os 4 e os 16 anos, por um período de pelo menos 3 meses, suficientemente severos para alterar a actividade habitual da criança. Afecta cerca de 10 a 15% das crianças em idade escolar. DOR ABDOMINAL RECORRENTE A criança com D.A.R. surge com frequência quer nos cuidados primários de saúde, quer aos pediatras e gastrenterologistas pediátricos, sendo responsável por 2 a 4% das consultas pediátricas(1). A sua prevalência não está bem estabelecida, mas vários estudos apontam para que afecte 10 a 15% das crianças em idade escolar(2), aumentando na adolescência(3,4), sendo nesse grupo etário mais frequente no sexo feminino. Num estudo recente(5), em crianças de 10 e 11 anos de uma população rural finlandesa, das 404 crianças questionadas, 27% tinham queixas do tubo digestivo e 16 % preenchiam os critérios de D.A.R. Apley e Naish(2) definiram D.A.R. como 3 ou mais episódios de dor abdominal suficientemente severa para afectar as actividades habituais da criança, que ocorram num período não inferior a 3 meses. Esta designação é apenas uma descrição e não constitui um diagnóstico, englobando um grupo heterogéneo de patologias(6). Alguns autores dividem a D.A.R. em anatómica, infecciosa, inflamatória, metabólica e funcional(7). Esta última é a mais comum, já que na prática clínica, a maioria das crianças e adolescentes que se apresentam com estes sintomas não têm evidência de doença orgânica (5 a 10%). Esta percentagem tende a aumentar à medida que mais meios de diagnóstico se vão usando na investigação (5,8). Com alguma frequência, a designação D.A.R. é usada incorrecta- Como a causa mais frequente de D.A.R. é funcional, com menos de 5% das crianças a apresentar patologia orgânica, este termo é por vezes usado (erradamente) como sinónimo de dor abdominal funcional. Na tentativa de melhor caracterizar estes distúrbios ou perturbações funcionais do aparelho digestivo, quer na criança quer no adulto, foram definidos critérios, em Roma, para sistematizar os diferentes grupos de sintomas. Assim, pelos critérios de Roma II a dor abdominal de causa funcional, nas crianças, é dividida em: dispepsia funcional; síndrome de cólon irritável; migraine abdominal; síndrome de dor abdominal funcional e aerofagia. Neste capítulo iremos apenas abordar a dispepsia funcional e a sua possível associação com a infecção gástrica por Helicobacter pylori (HP), já que a síndrome de dor abdominal funcional vai ser matéria de outro capítulo e a patologia péptica é rara na criança. 17 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 2 DISPEPSIA NA CRIANÇA DA DOR ABDOMINAL RECORRENTE À PATOLOGIA PÉPTICA mente com o significado de Abdominal Funcional (D.A.F.). Dor funcionais do tubo digestivo. DOR ABDOMINAL FUNCIONAL FISIOPATOLOGIA Na tentativa de agrupar e caracterizar os diversos sintomas, um grupo de gastrenterologistas e pediatras gastrenterologistas reuniu-se em Roma, em Setembro de 1997, e sugeriu uma nova classificação das alterações funcionais do tubo digestivo, no adulto e na criança, conhecida actualmente como critérios de Roma II (9) (quadro I). Segundo estes critérios a dor abdominal funcional na criança está dividida, de acordo com os sintomas, em dispepsia funcional, síndrome de cólon irritável, síndrome de dor abdominal funcional, migraine abdominal e aerofagia. Não está ainda claro se estas correspondem a patologias diferentes ou são expressões variáveis da mesma patologia. A associação frequente de queixas digestivas altas e baixas no mesmo doente (associação dispepsia e cólon irritável) (10) faz pensar numa fisiopatologia comum. Alguns destes diagnósticos necessitam que a criança tenha maturidade suficiente para caracterizar as queixas com algum rigor. Estão neste grupo a dispepsia funcional e a síndrome do cólon irritável. A American Academy of Pediatrics, North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition criaram um sub - comissão para estudo da dor abdominal crónica na criança, na tentativa de uniformizar a avaliação e o tratamento desta situação (1,11) . O grande problema com que depararam, e que também encontrámos, foi a falta de rigor e a diversidade de interpretação do conceito de D.A.R. A maioria dos trabalhos publicados a que tivemos acesso utiliza esta designação. Esta comissão é da opinião que o termo deve ser abandonado e adoptados os critérios de Roma II para as doenças Apesar de várias décadas de estudos e observações clínicas, a fisiopatologia da D.A.F. não está completamente esclarecida. Estudos recentes apontam para alterações do plexo nervoso entérico e das suas interacções com sistema nervoso central. Mais do que alterações na motilidade do tubo digestivo (12) , parece existir uma reactividade anormal aos diversos estímulos (hipersensibilidade visceral) (13) , sejam eles psicológicos (stress, ansiedade), fisiológicos (refeições, distensão abdominal), hormonais ou patológicos (infecções víricas ou bacterianas) (6,9) . A hipersensibilidade visceral poderá ser causada por: alterações das terminações nervosas aferentes do sistema nervoso entérico; aumento da excitabilidade dos neurónios da medula espinal; ou por alteração da modulação central ou percepção dos estímulos (14) . Pode também ser induzida por hiperactividade motora intestinal, por infecções gastrointestinais (HP na dispepsia funcional e infecções entéricas na síndrome do cólon irritável), que levam ao aumento de libertação de citoquinas a nível da mucosa (15) . Alguns estudos têm mostrado maiores níveis de ansiedade e sintomas de depressão neste grupo de crianças comparativamente com crianças sem D.A.F. (9,16) . Comportamentos aprendidos precocemente dos familiares próximos e reforço positivo perante as queixas por parte dos pais ou da pessoa que cuida da criança, podem perpetuar as queixas. Walker e colaboradores (17) encontraram um aumento de atenção e privilégios especiais por parte dos pais para com crianças com D.A.F. 18 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 3 Laura Carvalho Embora os factores psicossociais não definam nem sejam necessários para o diagnóstico de D.A.F. eles modelam ou influem no comportamento e atitude perante os sintomas e a procura dos cuidados médicos (18) . Assim, a fisiopatologia da D.A.F. deve ser vista segundo um modelo biopsicossocial em que para além dos aspectos fisiológicos (sistema nervoso central e sistema nervoso entérico e suas interrelações) há influência de aspectos psicossociais. cação terapêutica: tipo úlcera, tipo dismotilidade e, quando não se enquadra em nenhum dos dois anteriores, inespecífica (quadro IV). A dispepsia funcional é uma forma de apresentação da D.A.F. na criança (10) , segundo os critérios de Roma II (9) . Esta por sua vez é a causa mais frequente de D.A.R., designação muito utilizada, mas a abandonar, como atrás referido, dado que não representa uma entidade clínica. DISPEPSIA DISPEPSIA, D.A.R. E INFECÇÃO POR HP Dispepsia é, por definição, dor ou desconforto localizado à região epigástrica. Este desconforto pode ser referido como plenitude gástrica, enfartamento, náuseas. A dispepsia pode estar relacionada com patologia orgânica, nomeadamente úlcera péptica, refluxo gastro-esofágico, etc. (quadro II). A úlcera péptica é rara na criança. Existem poucos estudos, mas em grandes centros pediátricos são apenas feitos 5 a 7 diagnósticos de úlcera péptica por ano; 1 por cada 2500 admissões. A úlcera duodenal é rara abaixo dos 10 anos de idade, aumentando a sua incidência na adolescência, e está quase sempre associada a infecção gástrica por HP. A úlcera gástrica primária é ainda mais rara, se é que existe, na criança (19) . Fala-se em dispepsia funcional quando não é encontrada nenhuma lesão orgânica que explique os sintomas, nomeadamente após endoscopia digestiva alta (quadro III). A dispepsia funcional é muitas vezes referida como dispepsia não ulcerosa, designação pouco correcta, pois úlcera não é o único diagnóstico de exclusão, nem os sintomas de dispepsia são sempre tipo ulceroso. Tal como nos adultos, é ainda possível subdividir a dispepsia em três subgrupos, que poderão ter alguma impli- A infecção por HP adquire-se essencialmente na infância, geralmente antes dos dez anos de idade e, se não tratada, mantém-se durante toda a vida (20) . A sua prevalência é elevada, chegando aos 100% nos países subdesenvolvidos (21) , mas tem vindo a diminuir nos países desenvolvidos da Europa. Nos EUA, a prevalência é da ordem dos 30 a 50% (21) . Está bem estabelecida a relação da infecção por HP com úlcera péptica e gastrite crónica, quer nos adultos quer nas crianças (22, 23, 24) . A erradicação de HP está claramente associada à cura da úlcera péptica e à resolução da gastrite crónica (22, 23, 25) . Menos clara é a relação da infecção por HP e a dispepsia não associada a úlcera, quer na criança (26,27) quer no adulto (28) . Nos adultos, estudos randomizados e controlados têm mostrado resultados contraditórios quanto ao benefício da erradicação de HP na melhoria dos sintomas dispépticos(29,30,31). Um estudo randomizado, duplamente cego, publicado recentemente por Malfertheiner (32) , sugere que a infecção por HP causa sintomas dispépticos num subgrupo de doentes com dispepsia funcional e que este grupo de doentes poderá beneficiar 19 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 4 DISPEPSIA NA CRIANÇA DA DOR ABDOMINAL RECORRENTE À PATOLOGIA PÉPTICA a longo prazo com a erradicação. Em suma, dos diversos estudos publicados sobre o tema, fica-se com a ideia que, se algum benefício existe na melhoria da dispepsia funcional com a erradicação de HP nos adultos, este será extremamente pequeno (33) . Tudo de pende de quanto se está disposto a pagar para erradicar os sintomas, pois é necessário tratar quinze doentes para curar um (34) . Na criança, a realização de estudos torna-se mais complicada. Em primeiro lugar, a colheita da história clínica é mais subjectiva e a caracterização de sintomas de dispepsia e D.A.R. é muitas vezes imprecisa, tornando os estudos difíceis de analisar e comparar. Estes trabalhos além de incluírem um grupo heterogéneo de patologias, têm um número de doentes muito pequeno e, neste grupo etário, é eticamente mais complicado o uso de placebos. Dos vários estudos publicados em populações infantis (35,36,37) , a maioria não mostra relação entre infecção por HP e a dispepsia funcional. Hyams. (10) encontrou uma “incidência” baixa de infecção por HP (aproximadamente 10%) em crianças submetidas a endoscopia por sintomas dispépticos. Este estudo envolveu 257 doentes referidos à consulta de especialidade por dor abdominal, 127 dos quais preenchiam os critérios de dispepsia. Bode (38) realizou um estudo populacional em que participaram 945 crianças em idade pré-escolar. Após questionário sobre sintomas digestivos foi efectuada pesquisa de HP por teste respiratório com ureia marcada com C13. Um total de 127 crianças (13,4%) apresentavam infecção por HP. A infecção por HP não se correlacionou positivamente com sintomatologia gastrointestinal. Este estudo mostrou ainda que a infecção por HP nas crianças é predominantemente assintomática. Giacomo (39) , também num estudo populacional que envolveu 808 crianças entre os 6 e os 19 anos de idade, verificou que os sintomas dispépticos eram comuns na população pediátrica (presentes em 45%) e que a infecção por HP não se associou positivamente com D.A.R. (infecção em 11,8% dos quais 49,5% não apresentavam sintomas). No entanto, as crianças com dor epigástrica severa e dor nocturna (dispepsia tipo úlcera) apresentavam mais frequentemente infecção por HP. Este estudo sugere que possivelmente um grupo seleccionado de crianças com dispepsia poderá beneficiar, tal como parece acontecer nos adultos (32,40) , com a erradicação de HP. Kalach (41) realizou recentemente um estudo prospectivo com dupla ocultação com o objectivo de avaliar os sintomas associados à infecção por HP, em crianças com dispepsia sem úlcera. Todas as 100 crianças seleccionadas realizaram endoscopia digestiva alta com biopsia, para histologia e cultura, e só 26 eram positivas para HP. Não se observaram diferenças significativas nos sintomas entre os dois grupos de crianças (infectadas e não infectadas), excepto para a dor epigástrica durante as refeições que era mais frequente nas crianças não infectadas. Para além de estudos populacionais, estão publicados trabalhos em que se avalia o efeito da erradicação na sintomatologia dispéptica na criança. Entre estes, é frequentemente citado um trabalho publicado por Alice UC e Sony Chong (42) , que mostrou associação entre a erradicação de HP e a melhoria dos sintomas dispépticos na criança. Trata-se de um estudo clínico com um pequeno número de doentes (apenas dezasseis), não randomizado e sem dupla ocultação. Pelo contrário, nem Gottran (43) nem Levine (44) encontraram diferenças na evolução dos sin20 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 5 Laura Carvalho tomas entre o grupo de crianças em que a erradicação do HP foi conseguida e o grupo que se manteve positivo para o HP. Os autores sugerem que talvez seja necessário, tal como nos adultos, mais tempo de follow-up para que tais diferenças possam ser verificadas. Sobre este tema, foram efectuados dois trabalhos com um follow-up superior a um ano. Merja Ashorn (45) mostrou que o facto de ser alcançada a erradicação e a cura da inflamação gástrica não leva necessariamente à regressão da sintomatologia. Este estudo randomizado e duplamente cego peca por incluir um número muito pequeno de doentes. AVALIAÇÃO DA CRIANÇA COM DISPEPSIA Apesar da contínua investigação e da melhoria dos meios de diagnóstico, a avaliação das crianças e adolescentes com D.A.F. continua a representar um desafio para o médico. Não há marcadores específicos para esta patologia e, não raramente, a D.A.F. é um diagnóstico de exclusão. Deve ser salientada a importância da realização de uma história clínica cuidada que inclua as características da dor (tipo, localização, frequência, duração), os sintomas acompanhantes (náuseas, vómitos, sintomas vagais, alteração do trânsito intestinal) e a existência ou não de factores precipitantes (infecção vírica recente, relação com as refeições ou com o ciclo menstrual, ingestão de medicamentos). Há que excluir sinais e sintomas de alarme (quadro V) nomeadamente perda de peso involuntário, atraso de crescimento, febre, diarreia, vómitos frequentes, dores articulares, perdas de sangue (melenas, hematemeses, hematoquésias), lesões peri-anais e outras alterações no exame físico, história familiar de doença inflamatória intestinal. Estes, quando presentes, indicam com grande probabilidade a existência de doença orgânica. Devemos estar atentos à história psicossocial da criança. Como atrás referido, há evidência que a criança com D.A.F. apresenta mais sintomas de ansiedade e depressão do que crianças sem esta patologia (4, 16) . Há também estudos que mostram que os pais das crianças com D.A.F. apresentam mais sintomas de ansiedade, depressão e somatização (47) . Apesar disso, a existência de situações stressantes ou alterações emocionais, por si só, não permitam excluir patologia orgânica. O exame físico deve ser completo e O trabalho conduzido por Oderda(46), também randomizado e duplamente cego, com follow-up de 2 anos, incluiu 43 crianças sintomáticas com gastrite por HP e mostrou que, aos 6 meses, independentemente de se ter conseguido ou não a erradicação os sintomas dispépticos melhoraram ou desapareceram. No entanto, ao fim de 2 anos a maioria das crianças infectadas voltou a apresentar queixas. Em suma, são necessários mais estudos randomizados, duplamente cegos, com grupo placebo, com maiores séries de doentes e follow-up prolongados para, com alguma segurança, se poder aconselhar a erradicação de HP em crianças com dispepsia funcional. O grupo europeu de consenso para o estudo do HP na criança (23) aconselha que a pesquisa de HP seja feita por endoscopia digestiva alta com biopsia apenas em crianças com sintomas severos sugestivos de doença orgânica. No entanto, afirma também que o HP não está associado a nenhum sintoma característico e não está provado que a erradicação melhore os sintomas dispépticos na ausência de úlcera. 21 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 6 DISPEPSIA NA CRIANÇA DA DOR ABDOMINAL RECORRENTE À PATOLOGIA PÉPTICA não dirigido apenas para o abdómen. Nas alterações funcionais do tubo digestivo não são encontradas quaisquer alterações. A investigação da dispepsia na criança é diferente do adulto, dado que o risco de malignidade é negligenciável. Assim, na criança com dispepsia, sem sinais ou sintomas de alarme e com exame físico normal não se justifica qualquer tipo de investigação. Não está provado o valor preditivo de doença orgânica dos exames laboratoriais (hemograma, VS, bioquímica, análise de urina, exame parasitológico de fezes), na ausência de sinais ou sintomas de alarme (1) . A realização de ecografia, um exame não invasivo, barato e indolor, quando realizado na ausência de sinais e sintomas de alarme encontra alterações em menos de 1% das crianças. Esta percentagem aumenta para 10%, quando na presença de sintomas atípicos (icterícia, queixas urinárias) ou alterações no exame físico (48) . A pesquisa de HP por meios não invasivos, nomeadamente serologia e testes respiratórios com ureia marcada com C13, não deve ser efectuada (23) , porque os testes serológicos têm baixa sensibilidade na criança e porque, como atrás referido, não está definitivamente provada a associação de infecção por HP e dispepsia/D.A.R. A endoscopia digestiva alta, deve ser realizada de imediato se existirem sinais ou sintomas de alarme sugestivos de doença orgânica ou se não houver melhoria clínica ou em caso de recidiva da sintomatologia, após terapêutica empírica. A subcomissão para o estudo da dor abdominal crónica na criança (1) sugere que só na presença de sinais ou sintomas de alarme tem indicação a realização de endoscopia e só nesta situação se deve proceder à pesquisa de HP por histologia e tratar quando positivo. Um estudo realizado por Olson (49) , que compara cinco estratégias de tratamento em crianças com dispepsia (endoscopia digestiva alta com biópsia para pesquisa de HP, endoscopia digestiva alta sem biópsia, pesquisa de HP por serologia e tratamento se positiva, tera-pêutica empírica com anti-secretores, terapêutica empírica de HP com anti-secretores e antibióticos), conclui que a opção com melhor relação custo/benefício é a terapêutica empírica com inibidores da secreção gástrica. Esta opção é válida nos EUA, onde a endos-copia digestiva alta é cara. Se o preço da endoscopia for mais baixo a opção pela sua realização passa a ser a que apresenta uma melhor relação custo/benefício. Em conclusão, apesar de haver indicações precisas para a realização de endoscopia digestiva alta na criança com dor abdominal (só quando estão presentes sinais ou sintomas de alarme), no contexto do nosso país, onde o acesso à endoscopia alta é fácil e relativamente barato, é tentador o recurso mais precoce a este exame. Para além de diagnóstica, a endoscopia é, frequentemente, também terapêutica, já que tranquiliza o doente, os pais e muitas vezes o médico, ao excluir patologia orgânica. TERAPÊUTICA DA DISPEPSIA NA CRIANÇA Há poucos trabalhos publicados sobre a terapêutica da dispepsia funcional e D.A.R. na criança. Uma revisão sistemática dos trabalhos publicados sobre terapêutica farmacológica da D.A.R. feita pela Cochrane encontrou apenas um trabalho possível de incluir(50). Este estudo mostra alguma utilidade do pizotifeno na migraine abdominal. Este fármaco foi retirado do mercado português há alguns anos. Weydert (51) , também numa revisão 22 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 7 Laura Carvalho bibliográfica de estudos controlados e randomizados sobre terapêutica na D.A.R. encontraram, entre artigos e abstracts, 57 publicações. Destes, apenas 10 preencheram os critérios de inclusão. As razões mais frequentes para a não admissão foram a existência de outras patologias que não a D.A.R., estudos comparativos com outras terapêuticas, falta de randomização e de grupo controle. Só dois estudos terapêuticos farmacológicos foram encontrados: o já atrás referido (pizotifeno na profilaxia da migraine abdominal) e outro sobre o efeito da famotidina na D.A.R. com sintomas dispépticos. Este trabalho sugere que a famotidina pode ser eficaz na cria-nça com D.A.R., cujo principal sintoma seja a dispepsia. Foram também analisados quatro trabalhos sobre intervenção na dieta (aumento da ingestão de fibras e dieta sem lactose). Pouco ou nenhum benefício foi demonstrado no alívio dos sintomas da D.A.R. Os quatro estudos encontrados, sobre o papel da psicoterapia, demonstraram que esta pode ajudar as crianças com D.A.R. Como foi dito atrás os doentes com D.A.R., constituem um grupo muito heterogéneo, pelo que não se pode inferir grandes conclusões sobre os benefícios terapêuticos dos estudos realizados. O uso dos critérios de Roma para as alterações funcionais do tubo digestivo permitirá avaliar a terapêutica nos vários “fenótipos” da D.A.F. (cólon irritável, dispepsia funcional, dor abdominal funcional, etc.). Na prática, o tratamento da criança com dispepsia funcional passa por uma boa relação de empatia entre o médico, a criança e os pais. Deve ser explicado, em termos adequados à idade do doente, o que é uma doença funcional e assegurar que não existe patologia grave. Há que ensinar a criança ou adolescente a lidar com os sintomas e sobretudo tentar que os pais não sobrevalorizem as queixas, dando excessiva atenção ou privilégios, nomeadamente permitindo o absentismo escolar, incentivando assim o “estatuto de doente” (11,52) . A intervenção a nível da dieta não parece ser muito útil, mas se forem identificados alimentos que agravem a sintomatologia devem ser retirados, como por exemplo bebidas gasificadas e/ou com cafeína. A terapêutica com inibidores da secreção ácida (inibidores H2, inibidores da bomba de protões) e/ou prócinéticos pode ser útil. O recurso a anti-depressivos tricíclicos em baixas doses pode ser necessário. No entanto, a maioria das crianças melhora independentemente da terapêutica (10) . A terapia psicológica deve ser tomada em conta, se necessário com recurso a Pedopsiquiatra, já que as crianças e adolescentes com D.A.R., parecem apresentar níveis elevados de ansiedade, depressão e sintomas de somatização (47) . Alguns autores apontam para que estas crianças serão no futuro jovens adultos com maior tendência a desenvolver alterações emocionais, sintomas depressivos, maior consumo de medicação, recurso mais assíduo aos cuidados médicos, embora não apresentem com maior frequência doença orgânica do que o grupo de controle(47,53). CONSIDERAÇÕES FINAIS O termo D.A.R. deve ser abandonado, já que engloba um grupo heterogéneo de patologias. Na maioria dos casos a D.A.R. é de causa funcional. A patofisiologia da D.A.F. é multifactorial, incluindo factores fisiológicos (alteração da relação sistema nervoso central / sistema nervoso entérico, hipersensibilidade visceral), sociais e psicológicos, devendo ser encarada 23 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 8 DISPEPSIA NA CRIANÇA DA DOR ABDOMINAL RECORRENTE À PATOLOGIA PÉPTICA QUADRO II - DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DA DISPEPSIA NA CRIANÇA segundo o modelo biopsicossocial. As crianças e adolescentes com D.A.F., bem como os seus pais, apresentam mais vezes sintomas de ansiedade e depressão. A D.A.F. na criança apresenta diferentes fenótipos, segundo os critérios de Roma II: síndrome do cólon irritável, dispepsia funcional, dor abdominal funcional, migraine abdominal e aerofagia. A gastrite por HP não parece ter relação com a dispepsia funcional ou D.A.R. na criança. A criança com dispepsia, na ausência de sinais e sintomas de alarme, pode ser tratada sintomaticamente, sem necessidade de mais investigação. Quando existirem sintomas ou sinais de alarme, há que investigar no sentido de excluir doença orgânica. Na D.A.F. é importante tranquilizar a criança e os seus familiares. Deve-se investir na educação dos pais, tendo em vista não reforçar com excesso de atenção ou de privilégios o papel de doente. Há poucos estudos quanto à terapêutica farmacológica. Esta deve ser dirigida aos sintomas: inibidores da secreção ácida ou procinéticos nas queixas dispépticas; anti-espasmódicos na síndrome do cólon irritável. Os antidepressivos em baixas doses também podem ser úteis. A maioria das crianças e adolescentes com D.A.F. melhora independentemente da terapêutica efectuada. Os adultos com história de D.A.F. na infância têm com maior frequência sintomas de ansiedade e de depressão. - Dispepsia Funcional - Doença Péptica - Úlcera por AINEs - Doença de Crohn - Doença de Refluxo Gastroesofágico - Gastroenterite Eosinofílica - Doença Celíaca - Alergia às Proteìnas do Leite de Vaca - Gastrite por Helicobacter Pylory (?) QUADRO III - DISPEPSIA FUNCIONAL (Definição) Em crianças com maturidade suficiente para descrever as características da dor, durante pelo menos 12 semanas (que podem não ser consecutivas) nos 12 meses precedentes: - Dor ou desconforto persistente ou recorrente centrados na parte superior do abdómen (acima do umbigo); e - Sem evidência (incluindo endoscopia digestiva alta normal) de doença orgânica que explique os sintomas; e - Sem evidência de alívio das queixas com a defecacão e sem relação com alterações do trânsito intestinal QUADRO IV a) - DISPEPSIA TIPO ÚLCERA - Dor centrada na parte superior do abdómen como sintoma predominante QUADRO IV b)- DISPEPSIA TIPO DISMOTILIDADE - Sensação de desconforto centrado na parte superior do abdómen como sintoma predominante; esta sensação pode ser caracterizada ou estar associada com enfartamento, saciedade precoce, plenitude gástrica ou náusea QUADRO I - DOR ABDOMINAL FUNCIONAL NA CRIANÇA (ROMA II) - Dispepsia Funcional - Síndrome de Cólon Irritável - Dor Abdominal Funcional - Migraine Abdominal - Aerofagia QUADRO IV C)- DISPEPSIA INESPECÍFICA - Doentes sintomáticos cujos sintomas não preenchem os critérios quer da dispepsia tipo úlcera quer da tipo dismotilidade 24 Cap01Dispepsia.qxp 21-11-2005 15:58 Page 9 Laura Carvalho QUADRO V- SINAIS E SINTOMAS DE ALARME - Emagrecimento involuntário - Alterações na curva de crescimento - Febre - Diarreia - Vómitos frequentes - Hematemeses, melenas ou hematoquésias - Atraso da puberdade - Alterações perianais - Dores articulares - História familiar de Doença Inflamatória Intestinal BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 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INTRODUÇÃO As perturbações funcionais da defecação na criança constituem um conjunto de quatro entidades nosológicas, que são o resultado duma tentativa de sistematização da patologia gastrenterológica funcional em pediatria. Compreendem a disquésia infantil, a obstipação funcional, a retenção fecal funcional e a encopresis não associada a retenção fecal. Tabela 1 - Patologia gastrenterológica funcional(1) A. Patologia esofágica G. PATOLOGIA PEDIÁTRICA FUNCIONAL G1. Associada ao vómito G1a. Regurgitação infantil G1b. Síndrome da ruminação infantil G1c. Síndrome dos vómitos cíclicos G2. Associada a dor abdominal G2a. Dispepsia funcional G2b. Síndrome do intestino irritável G2c. Dor abdominal funcional G2d. Migraine abdominal G2e. Aerofagia G3. Diarreia funcional (“toddler’s diarrhea”) G4. PERTURBAÇÕES DA DEFECAÇÃO G4a. Disquésia infantil G4b. Obstipação funcional G4c. Retenção fecal funcional G4d. Encopresis não associada a retenção fecal B. Patologia gastroduodenal C. Patologia intestinal D. Dor abdominal funcional E. Patologia biliar F. Patologia ano-rectal Da simples observação da tabela pode-se constatar que enquanto no adulto (coluna da esquerda) a classificação é feita com base nos órgãos alvo, na criança a patologia funcional é sistematizada de acordo com a queixa predominante (vómito, dor, diarreia ou perturbação da defecação). Na realidade o diagnóstico de algumas patologias gastrointestinais 29 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 2 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA funcionais na criança depende da capacidade da mesma em referir as suas queixas; como por vezes não é possível obter um detalhe semiológico tão grande como no adulto o painel optou por uma classificação com base no sintoma e/ou sinal predominante. Acresce também que determinadas situações patológicas são específicas da criança não havendo a correspondente entidade equivalente no adulto. Há que considerar que durante o processo de desenvolvimento da criança existem fases críticas, sem paralelo no adulto, que podem gerar os ingredientes suficientes para o aparecimento de perturbações, como é o caso da retenção fecal funcional e/ou obstipação. Na criança estas duas situações podem ser condicionadas por dejecções dolorosas ou por um treino defecatório coercivo e por vezes precoce demais. O treino defecatório na sanita (ou mesmo no bacio) representa, por vezes, uma das mais difíceis experiências para a criança e para os pais, frequentemente dificultada, entre outros factores, por excessiva ansiedade e pressão parental para a aquisição precoce de competências.(2) criança de 4 ou mais anos de idade, pelo menos uma vez por mês, durante 3 ou mais meses.(4,5,6,7) A encopresis coexiste frequentemente com a obstipação durante a idade pediátrica sendo consequência da retenção fecal funcional.(5) A obstipação e a retenção fecal são as causas mais frequentes de encopresis.(8) Escorrência fecal (“fecal soiling”) - saída involuntária de pequena quantidade de fezes, habitualmente líquidas ou semi-líquidas, tendo como resultado o sujar da roupa interior.(7) Usualmente esta escorrência tem uma consistência argilosa.(9) Frequentemente os termos encopresis e escorrência fecal são usados com o mesmo significado. Disquésia infantil - (critérios diagnósticos de Roma II) definida como pelo menos 10 minutos de esforço defecatório acompanhado de choro, antes da ocorrência de uma dejecção de fezes moles, num lactente saudável com menos de 6 meses.(1) Especula-se que a perturbação resulte duma falha da coordenação entre o aumento da pressão abdominal e o relaxamento do pavimento pélvico, necessária para a defecação. Resolve espontaneamente com a aquisição da coordenação pelo que os pais deverão ser tranquilizados e evitadas manobras de estimulação rectal que produzem experiências sensórias potencialmente nocivas e que podem perpetuar a disquésia.(1) A obstipação e a retenção fecal funcional (cujo traço distintivo é a postura de retenção fecal i.e., um conjunto de atitudes e gestos visando evitar a defecação) aparecem frequentemente associadas pelo que autores, como Vera Loening-Baucke, preferem o termo obstipação pediátrica para englobar as duas entidades. São os chamados critérios clássicos de Iowa concebidos para definição da obstipação e da encopresis na criança.(3) Obstipação funcional (critérios diagnósticos de Roma II) - definida como a ocorrência, durante pelo menos 2 semanas, em crianças de 1 mês a 6 anos de idade de: 1) fezes muito duras, tipo cíbala, na maior parte das dejecções ou 2) dejecções de fezes moldadas duas ou menos vezes por semana e 3) na ausência de doença orgânica, endócrina ou metabólica.(1, 10) CONCEITOS E DEFINIÇÕES Antes de prosseguirmos, e para melhor clarificação, parece importante a definição de alguns conceitos e a explanação de algumas classificações. Encopresis - dejecção fecal involuntária (por vezes voluntária) em locais inapropriados (ex. na roupa interior, no chão) por uma Retenção fecal funcional (critérios diagnósticos de Roma II) - definida como a ocor30 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 3 João Baranda rência em crianças (desde a infância até aos 16 anos) de uma história de pelo menos 12 semanas de: 1) emissão de fezes de grosso calibre menos que 2 vezes por semana e 2) postura de retenção fecal evitando a defecação através da contracção do pavimento pélvico. Logo que a musculatura do pavimento pélvico entra em fadiga a criança passa a usar os músculos glúteos, apertando as coxas firmemente com o objectivo de evitar a dejecção.(1) - Menos de 3 dejecções por semana - Dois ou mais episódios de encopresis por semana - Passagem periódica de grandes quantidades de fezes (suficientes para quase obstruírem a sanita) cada 7 a 30 dias - Presença de massa abdominal ou rectal ao exame físico Para além dos critérios atrás expostos, a postura de retenção fecal e as dejecções difíceis e dolorosas são por outros autores consideradas suficientes para o diagnóstico de obstipação na criança.(13) Recentemente a Sociedade Norte-Americana de Gastrenterologia Pediátrica e Nutrição definiu obstipação como um atraso ou dificuldade nas dejecções, presente por 2 ou mais semanas, suficiente para causar angústia significativa para o doente.(14) Encopresis funcional não associada a retenção (critérios diagnósticos de Roma II) é definida, em crianças com > 4 anos de idade, como uma história de: 1) dejecções em locais e momentos inapropriados, 2) na ausência de doença orgânica e 3) na ausência de sinais de retenção fecal funcional, ocorrendo pelo menos uma vez por semana nas 12 semanas precedentes.(1) Encopresis solitária - (critérios clássicos de Iowa) – numa criança > 4 anos de idade, a existência de : - Dois ou mais episódios de encopresis por semana, - Três ou mais dejecções por semana, - Ausência de passagem de grandes quantidades de fezes, e - Ausência de massas abdominais ou rectais ao exame físico Assumiu-se os 4 anos como a idade em que a quase totalidade das crianças assume o controlo voluntário das defecações. As quatro entidades nosológicas atrás referidas (encopresis, disquésia infantil, obstipação funcional e retenção fecal funcional) foram definidas de acordo com os critérios de Roma II para as perturbações funcionais da defecação na criança. As duas entidades nosológicas que passaremos a definir de seguida terão como base os critérios clássicos de Iowa para o mesmo tipo de patologias.(10, 3) Há obviamente uma certo grau de equivalência entre as duas classificações propostas mas a correspondência não é linear. Este facto, acrescido da circunstância dos critérios clássicos serem usados há mais tempo e se terem revelado muito úteis na avaliação de vários regimes de tratamento,(11,12) leva-nos obrigatoriamente a incluilos aqui. Postura de retenção (fecal) - conjunto de gestos e atitudes que uma criança adopta perante um estímulo defecatório visando evitá-lo. Os pais descrevem-no frequentemente dum modo minucioso, como uma criança que subitamente fica muito ansiosa, com o corpo rígido, a face pálida, que se põe em bicos de pés e se baloiça para trás e para a frente, enquanto vai cruzando as pernas e contraindo as nádegas numa tentativa desesperada de evitar a defecação. A criança é por vezes levada a esconder-se atrás duma esquina ou a assumir posturas pouco usuais.(5,14) A maioria dos pais confundem esta rotina como uma tentativa para defecar quando na realidade ela traduz o oposto.(9) Obstipação na criança - (critérios clássicos de Iowa) – pelo menos dois dos seguintes critérios: 31 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 4 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA IMPORTÂNCIA DO TEMA PARA A GASTRENTEROLOGIA Em hospitais da dimensão daquele em que trabalhamos é um motivo frequente de troca de impressões entre gastrenterologistas e pediatras. A obstipação na criança difere em alguns pontos do quadro equivalente no adulto, pelo que este capítulo se justifica em pleno. A tabela seguinte (tabela 2) destaca as principais diferenças entre a criança e o adulto. A obstipação com ou sem encopresis ou escorrência fecal representa um problema comum nas crianças e é responsável por cerca de 3% das consultas em alguns departamentos de Pediatria(15) e cerca de 25% das referências aos gastrenterologistas pediátricos.(16) Tabela 2 - Obstipação - diferenças entre adultos e crianças(5) CARACTERÍSTICA - Mais comum em (M/F) - Altura de início - Comportamento perante a urgência defecatória - Encopresis - Secundária a medicações ou doença sistémica - Utilidade do clister opaco - Efeito da dieta rica em fibras - Papel do biofeedback - Papel da cirurgia CRIANÇAS ADULTOS - Rapazes - Treino defecatório - Entrada na escola - Postura de retenção fecal (“encolher”) - Comum - Raramente - Mulheres - Adolescência - Jovens adultos - Esforço defecatório prolongado e intenso (“straining”) - Rara - Frequentemente - Para excluir doença de Hirschsprung - Raramente útil - Controverso - Não é nenhum, nas perturbações funcionais da defecação - Para excluir lesão endoluminal - Útil - Útil na dissinergia do pavimento pélvico - Pode ajudar na obstipação por trânsito lento Em 90 a 95% dos casos de obstipação na criança não se encontra qualquer causa orgânica e o pico de incidência situa-se entre os 2 e 4 anos, na altura do treino defecatório. Os rapazes são mais afectados que as meninas (relação 3-4 : 1).(3) O factor precipitante mais comum é a ocorrência duma dejecção dolorosa que leva a que a criança comece a evitar ou retardar futuras evacuações.(5) Entre as causas orgânicas mais frequentes contam-se a doença de Hirschsprung, a fibrose quística, as anomalias ano-rectais, o hipotiroidismo, a doença celíaca e o uso de fármacos obstipantes.(17) fisiologia da defecação. Existem vários padrões de actividade muscular lisa responsáveis pelo movimento do conteúdo cólico: 1) contracções segmentares não propulsivas com finalidades de mistura, 2) contracções propulsivas de grande amplitude (HAPC – high-amplitude propagated contractions) responsáveis pela deslocação das fezes distalmente e 3) variações do tónus cólico.(5) O tónus e motilidade cólica aumentam após as refeições (reflexo gastrocólico) e após o acordar, o que move as fezes para a região rectossigmoideia. Quando o recto é distendido ocorre uma contracção reflexa da parede rectal e um relaxamento do esfíncter anal interno (reflexo recto-anal inibitório), o que empurra as fezes de encontro ao canal anal, ficando em posição de expulsão. Os receptores sensoriais na anoderme captam os sinais PATOFISIOLOGIA Antes de nos debruçarmos sobre os mecanismos fisiopatológicos da obstipação convém relembrar algumas noções básicas da 32 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 5 João Baranda da presença de fezes e é tomada a decisão de expelir o conteúdo fecal ou diferir a defecação. Se a defecação é diferida uma contracção voluntária dos músculos abdominais e simultâneo relaxamento do pavimento pélvico é posteriormente necessária para ocorrer uma dejecção. Os mecanismos básicos de controlo da defecação estão presentes no recém-nascido; a capacidade de contrair ou relaxar os músculos esqueléticos (esfíncter anal externo, músculo pubo-rectal e músculos abdominais) é desenvolvida na altura da aquisição do controlo voluntário da defecação. Qualquer desregulação nesta sequência de eventos pode levar à obstipação.(5) defecação.(2) O resultado do atrás exposto é sempre o mesmo: a ocorrência de defecações desagradáveis e/ou dolorosas. A existência de infecções perianais ou fissuras, a tentativa de chamada de atenção aquando do nascimento de um irmão podem também levar a posturas de retenção. Uma dieta pobre em fibras tem sido associada com uma maior prevalência de obstipação provavelmente devido à maior consistência das fezes.(18) O recurso a laxantes de volume à base de fibras é no entanto controverso nas crianças.(19) Independentemente do factor precipitante, é criado um ciclo vicioso em que a criança aprende a ignorar o estímulo defecatório com receio da ocorrência de dejecções dolorosas (Figura 1).(2) Há três períodos críticos na vida duma criança para o desenvolvimento de obstipação: 1) a introdução dos cereais e alimentos sólidos na dieta do lactente, 2) o período do treino defecatório e 3) o início da escolaridade.(2) Todos estes momentos têm em comum a capacidade de tornar a defecação uma experiência desagradável. Durante o período do treino defecatório a pressão parental, por vezes excessiva e coerciva, para a aprendizagem ser feita o mais cedo possível, pode originar ansiedade na criança e um medir de forças com os pais. O resultado poderá ser o de a criança iniciar o desenvolvimento duma postura de retenção fecal levando à obstipação. A insistência em colocar, logo desde o início do treino, a criança na sanita pode levar a postura de retenção pois o simples facto da mesma não tocar com os pés no chão pode dificultar o aumento de pressão abdominal (“a criança não consegue fazer força contra o chão”). Na escola as crianças são pressionadas a não abandonar a sala de aula para defecar e o desconforto, e por vezes a falta de higiene das casas de banho nos estabelecimentos de ensino, também pode contribuir para a supressão da vontade de defecar. Em casa a televisão e outras actividades recreativas podem distrair a criança e levá-la a retardar novamente a As fezes vão-se acumulando no recto, que se vai distendendo cronicamente, o que prejudica os estímulos sensórios provocados pela chegada de fezes a esta zona do intestino grosso. O recto vai-se acomodando ao conteúdo e a vontade de defecar desaparece gradualmente. À medida que a água e os electrólitos vão sendo reabsorvidos, quantidades cada vez maiores de fezes, duras em consistência e de grande diâmetro, vão sendo acumuladas e evacuadas com mais dor. A criança após uma dejecção dolorosa vai passar os próximos dias a usar todas as suas capacidades para evitar nova defecação; surge a postura de retenção fecal (já atrás caracterizada). A acumulação crescente de fezes no recto causa diminuição da motilidade no intestino proximal com a consequente distensão abdominal, perda do apetite e irritabilidade.(20) A criança obstipada pode decidir não comer para evitar o aumento da motilidade cólica associada ao reflexo gastrocólico, que por vezes condiciona dor abdominal. A criança vai continuando a reter até a sua vontade, a sua capacidade muscular e a capacitância do recto o permitirem. Após vários dias de luta, por vezes semanas, a retenção é interrompida pela passagem de 33 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 6 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA uma quantidade enorme de fezes, muito formadas e de grande diâmetro. O volume da dejecção é tão grande que obstrui por comple- to a sanita. Frequentemente uma descarga simples do autoclismo não é suficiente para limpar o sanitário.(2) Figura 1 - Factores importantes na patofisiologia da obstipação na criança Experiências desagradáveis relacionadas com a defecação (programas de televisão fantasiosos, treino defecatório coercivo ...) Fobia à sanita Distracção com brincadeiras Desconforto das casas de banho Treino defecatório coercivo MEDO DE DEFECAR RETENÇÃO FECAL DEJECÇÕES DOLOROSAS ACUMULAÇÃO DE MASSA FECAL NO RECTO Colites infecciosas ou alérgicas Abusos sexuais Traumas Infecções perianais (ex. estreptocócicas) Fissura anal Deficiente ingestão de fibras Desidratação Dejecções pouco frequentes Fezes tipo cíbala Dor abdominal Diminuição do apetite Irritabilidade Escorrência fecal por “overflow” Na presença duma volumosa massa fecal, qualquer relaxamento subsequente do esfíncter anal pode levar à escorrência fecal. preendida pelos pais (que atribuem erroneamente o facto à preguiça da criança, achando que o acto é voluntário), humilha a criança (nomeadamente quando ocorre fora de casa, por exemplo na escola) e leva à perda da auto-estima. Isto pode ocorrer aquando da chegada de mais fezes ao recto, quando a criança tenta expulsar gases ou quando os músculos esqueléticos usados para reter as fezes são usados noutras actividades físicas. A escorrência fecal é por vezes mal com- Incontinência urinária e infecções urinárias recorrentes podem ocorrer concomitantemente nas crianças obstipadas (sobretu34 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 7 João Baranda do nas meninas). A resolução do problema da obstipação leva ao desaparecimento dos sintomas urinários(21,22) excepto num subgrupo de doentes com doença motora da bexiga e intestino.(23) criança unicamente referirá um vago desconforto.(3) A existência de encopresis ou escorrência fecal, por vezes com anos de evolução, é a queixa que mais frequentemente leva os pais a procurarem ajuda médica.(25) O cenário mais habitual na prática clínica é o de um casal de pais extremamente ansioso, relatando a história ao médico e o de uma criança envergonhada e retraída escondendo-se a um canto do gabinete. A criança frequentemente nega a existência de qualquer problema relacionado com os hábitos intestinais e fica embaraçada com a simples menção do assunto.(5) Crianças hiperactivas e com dificuldade de concentração estão em maior risco de desenvolverem obstipação e escorrência fecal provavelmente devido à incapacidade de se focalizarem nos estímulos sensoriais ano-rectais.(2) DIAGNÓSTICO Uma anamnese e exame físico cuidadosos permitirão na maioria das crianças a distinção entre perturbações funcionais (obstipação funcional, retenção fecal funcional) e obstipação devido a doença orgânica (ex. doença de Hirschsprung).(3) A obstipação funcional na criança é um diagnóstico clínico que pode ser feito na maior parte das vezes com base numa história típica e num exame físico essencialmente normal.(2) A encopresis, em regra o sintoma de consequências mais devastadoras para o agregado familiar, pode ocorrer diariamente ou dum modo intermitente. É comum a ocorrência dum período livre de encopresis ou escorrências após uma dejecção de grande volume que esvazia totalmente o recto e a parte distal da sigmóide; nestes casos a encopresis só reaparecerá após vários dias de retenção fecal. A encopresis / escorrência fecal é quase sempre diurna, sendo típica a sua ocorrência depois do almoço, durante o exercício ou no regresso da escola para casa.(9) Exames complementares de diagnóstico raramente serão necessários ou consistirão somente numa investigação mínima (análises de sangue, urocultura e radiografia simples do abdómen.(24) Sintomatologia urinária como enurese e incontinência existem em um quarto dos casos e pensa-se serem provocadas pela compressão da bexiga por um recto dilatado. Em 10% das meninas ocorrem infecções urinárias de repetição que são particularmente frequentes quando existe escorrência fecal. ANAMNESE A tabela 3 apresenta os aspectos mais importantes a reter do interrogatório. Uma história cuidadosa focando os intervalos, tamanho e consistência das dejecções permitirá detectar a presença da obstipação. Algumas crianças têm dejecções diárias mas evacuam dum modo incompleto, como evidenciado pela passagem periódica de grandes quantidades de fezes suficientes para obstruir a sanita. Crises fortes de dor abdominal podem ocorrer imediatamente antes duma dejecção ou mesmo nos dias anteriores; noutros casos a A subida da flora fecal através duma uretra curta parece ser o mecanismo patogénico.(3,5) Um treino defecatório coercivo, tratamentos envolvendo manipulações anais e defecações dolorosas são factores que podem contribuir para o aparecimento de retenção fecal funcional e/ou obstipação.(26) 35 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 8 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA Tabela 3 - Dados importantes da história clínica em crianças com obstipação(14) CLÍNICA - Frequência, volume e consistência das dejecções - Dor ou saída de sangue durante a defecação - Dor abdominal - Idade de início - Treino defecatório - Escorrência fecal (“fecal soiling”) - Postura de retenção fecal - Perda de apetite - Náuseas ou vómitos - Perda de peso - Fissuras eczemas, abcessos ou fístulas perianais TRATAMENTO ACTUAL TRATAMENTOS PRÉVIOS - Dieta - Medicamentos - Educação - Aderência ao tratamento ANTECEDENTES FAMILIARES ANTECEDENTES PESSOAIS - Altura da eliminação do mecónio - Sintomatologia urinária - Atraso de crescimento ou desenvolvimento - História psico-social Uma outra situação que pode ocorrer durante a altura do treino defecatório é a criança usar a sanita ou o bacio para urinar durante o dia mas recusar terminantemente dejecções nesse local (“stool toileting refusal”).(27, 28) Esta situação resolve em regra espontaneamente desde que os pais não insistam em forçar a criança a defecar na sanita. De facto a mera colocação duma fralda na criança faz com que esta defeque imediatamente nos momentos seguintes.(29) para consulta posterior desde que a história e o restante exame físico apontem para obstipação funcional ou retenção fecal funcional. Permite-se deste modo o desenvolvimento duma maior empatia e aliança entre a criança e o médico.(5) Outros autores (quiçá a maioria) defendem que o toque rectal deverá ser feito pois permitirá descartar causas orgânicas de obstipação e optimizar o tratamento a fazer.(24) A Sociedade Norte-Americana de Gastrenterologia Pediátrica aconselha que o toque rectal seja efectuado pelo menos uma vez no decurso da avaliação clínica.(14) EXAME FÍSICO A palpação abdominal pode revelar uma massa fecal (habitualmente na fossa ilíaca esquerda ou hipogastro). Em situações extremas a massa pode estender-se por todo o abdómen.(5,9) O toque rectal permitirá avaliar o tónus anal, a presença de fezes e a sua consistência, o tamanho do recto e a eventual presença de sangue. A inspecção da região sagrada é importante para detecção de pequenas depressões ou irregularidades e tufos de cabelo que podem sugerir alterações como a espinha bífida. A inspecção perianal pode mostrar escorrência fecal, mau posicionamento do ânus (ex. deslocação anterior do orifício anal, o que ao exagerar o ângulo recto-anal torna a passagem das fezes mais difícil), eczemas perianais (frequentemente de natureza bacteriana), pregas sentinelas ou fissuras que podem tornar as dejecções dolorosas.(3,5,17) Um exame neurológico sumário deverá incluir a pesquisa de reflexos tendinosos dos membros inferiores e a determinação da sensibilidade perianal.(2, 5) A necessidade de realização do toque rectal é controversa.(24) Alguns autores pensam que a sua realização deverá ser evitada,(30) ou então diferida Sumariamos na tabela 4 os aspectos mais importantes do exame físico na criança com obstipação. 36 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 9 João Baranda Tabela 4 - O exame físico na criança obstipada - aspectos mais importantes(14) ASPECTO GERAL EXAME ABDOMINAL - Distensão - Massa fecal INSPECÇÃO ANAL - Posição do ânus - Presença de fezes na região perianal ou na roupa - Eczema perianal - Mariscas - Fissuras anais TOQUE RECTAL - Tónus anal - Presença de fezes e sua consistência - Massas anómalas - Saída brusca de fezes após retirada do dedo (sugere doença de Hirschsprung) - Sangue na luva INSPECÇÃO DA REGIÃO SAGRADA - Depressões, tufos de cabelo EXAME NEUROLÓGICO Na ausência de sinais de alarme como aqueles especificados na tabela 5, nenhuma investigação adicional será necessária e um diagnóstico de perturbação funcional da defecação poderá ser feito. Tabela 5 - Sinais de alarme na criança obstipada(2) - Início antes dos 12 meses de idade - Passagem tardia de mecónio (> 24 horas de vida) - Ausência de postura de retenção fecal - Ausência de encopresis / escorrência fecal - Atraso de crescimento - Ampola rectal vazia - Pigmentações anormais - Presença de sangue nas fezes - Presença de sintomatologia extra-intestinal - Doença da bexiga - Ausência de resposta ao tratamento médico convencional A presença dos sinais de alarme apontados na coluna da esquerda levar-nos-à a pensar em doença de Hirschsprung, o que poderá justificar a realização de testes adicionais (manometria, clister opaco, biópsia rectal). Será assim possível, só com base numa anamnese e exame físico cuidadosos, apontar para uma obstipação funcional (90 a 95% casos) ou para uma situação orgânica. A tabela 6 sumaria as causas mais importantes de obstipação na criança de acordo com um estudo clássico de Vera Loening-Baucke.(3) Tabela 6 - Causas de obstipação na criança OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL (90 - 95% casos) SECUNDÁRIA A LESÕES ANAIS - Fissuras anais - Deslocação anterior do ânus - Estenose ou atrésia anal SECUNDÁRIA A DOENÇAS NEUROLÓGICAS - Doença de Hirschsprung - Doenças da espinal medula (ex. mielomeningocelo) - Paralisia cerebral - Pseudo-obstrução intestinal crónica (ex. displasia neu- SECUNDÁRIA A ALTERAÇÕES METABÓLICAS E ENDÓCRINAS - Hipotiroidismo - Diabetes insípida - Hipercalcémia - Acidose renal INDUZIDA POR FÁRMACOS - Anticonvulsivos (ex. fenitoína, carbamazepina) - Antidepressivos tricíclicos - Antitússicos contendo codeína - Anti-histamínicos (anti-H1) (ex. hidroxizina) ronal intestinal) 37 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 10 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA EXAMES COMPLEMENTARES DE DIAGNÓSTICO Nesta situação em particular o clister opaco poderá ser normal.(5) Como já anteriormente afirmado a investigação laboratorial não será necessária na maioria dos casos ou consistirá em exames simples (RX simples do abdómen, análises de urina e sangue).(24) Nalguns casos, para exclusão de doença orgânica haverá necessidade de exames mais específicos como clister opaco, manometria ou biópsia rectal. Estudos manométricos A manometria ano-rectal não é necessária na avaliação de casos leves de obstipação. Está indicada em crianças com história de obstipação severa, com início muito precoce, com uma ampola rectal vazia ao toque, nos quais se suspeita de doença de Hirschsprung, ou quando a obstipação persiste não obstante o cumprimento dum adequado programa terapêutico.(9) Na doença de Hirschsprung a manometria ano-rectal revela ausência do reflexo rectoanal inibitório, ie., ausência de relaxamento do esfíncter anal interno em resposta à distensão da ampola rectal com um balão. A presença de reflexo recto-anal inibitório permite assim excluir de imediato doença de Hirschsprung(2); a sua ausência é muito sugestiva da doença mas não permite afirmar o diagnóstico com toda a certeza devido à ocorrência de resultados falsos positivos do teste manométrico (ex. prematuros; insuflação insuficiente do balão em crianças com ampola rectal muito dilatada).(5) Numerosas alterações manométricas têm sido identificadas em crianças com obstipação funcional como diminuição da sensibilidade à distensão rectal, diminuição da contractilidade rectal (com incapacidade, por exemplo, para evacuar um balão cheio de água) ou a incapacidade de relaxamento do esfíncter anal externo e do pavimento pélvico durante a defecação (dissinergia defecatória).(2,9) Esta dinâmica defecatória anormal é aliás o fundamento para o uso de técnicas de biofeedback em casos de obstipação refractários ao tratamento convencional.(31) A manometria cólica é normal na maior parte dos casos de obstipação funcional. A sua principal indicação é o estudo de casos intratáveis de obstipação nos quais se suspeita de doença neurológica ou muscular. Nestas situações as contracções cólicas podem estar ausentes ou serem muito fracas e desorganizadas, não permitindo a peristalse.(5) Radiografia simples do abdómen Um RX simples do abdómen numa criança obstipada pode ser útil nas seguintes situações: para determinar a presença e a extensão da retenção fecal (particularmente quando no exame abdominal e toque rectal não se detecte qualquer massa fecal), para avaliar a coluna lombossagrada (espinha bífida?), e quando a criança recusa terminantemente o toque rectal. É importante ter-se uma ideia do grau de retenção fecal de modo a programar-se o tratamento adequado.(24) Clister opaco A realização de um clister opaco não é necessária na maioria dos casos de perturbações funcionais da defecação na criança mas poderá ser útil na avaliação de casos suspeitos de doença de Hirschsprung.(3) Nesta situação particular a realização de um clister opaco simples, num cólon não preparado, poderá mostrar a junção do segmento agangliónico (zona estreita) com a parte proximal do cólon são (zona dilatada).(2) O clister opaco está contra-indicado quando se suspeita de doença de Hirschsprung complicada por enterocolite.(5) A enterocolite é a principal causa de morbilidade e mortalidade nesta doença e deverá suspeitar-se dela perante um quadro de diarreia com febre de início súbito, com eliminação de fezes fétidas e por vezes sanguinolentas.(2,9) O clister opaco não identificará a zona de transição nos casos de doença de Hirschsprung com segmento ultra-curto. 38 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 11 Nuno Nunes cabo o plano de tratamento delineado em conjunto com o médico; estas famílias necessitam de ser identificadas de modo a optimizarem-se os esforços de educação. Poderá ser necessário repetir os processos de desmitificação e educação várias vezes durante o curso do tratamento.(9,14) Biópsia rectal Em caso de suspeição de doença de Hirschsprung, a realização de biópsias rectais suficientemente profundas para abranger a submucosa permite o diagnóstico definitivo. As biópsias poderão ser feitas cirurgicamente ou com recurso a um dispositivo especial que permite uma biópsia aspirativa. A ausência de células ganglionares nos plexos submucosos é diagnóstico de doença de Hirschsprung. A confirmação histológica cabal é contudo obtida quando a coloração pela acetilcolinesterase mostra nervos hipertróficos sem células ganglionares. A ausência de células ganglionares numa biópsia em que a acetilcolinesterase não mostra nervos hipertróficos sugere aganglionose cólica total.(2, 5) Desimpactação A impactação fecal é definida como uma massa dura detectada ao exame físico nos quadrantes inferiores do abdómen, como um recto dilatado e cheio de fezes ao toque rectal ou como uma quantidade excessiva de fezes identificada num RX simples do abdómen.(14) Sempre que se verifique a existência de fezes impactadas é necessário avançar com a desimpactação. A mesma pode ser conseguida através da via rectal ou oral. Ambas se mostram eficazes. A via oral é menos invasiva, reforça o envolvimento da criança no tratamento e deverá ser usada nas crianças que mostram relutância marcada a manipulações anais. A via rectal provoca uma desimpactação mais rápida mas é mais invasiva. A escolha do método deverá ser feita após uma discussão das opções com a família e a criança.(14) TRATAMENTO A maioria das crianças com obstipação (com ou sem encopresis associada) beneficiará dum esquema de abordagem preciso e bem organizado. O tratamento envolverá os pais, a criança e o médico e consistirá de 4 fases: 1) educação; 2) desimpactação (se presente); 3) prevenção da reacumulação de fezes (tratamento de manutenção) e 4) promoção da aquisição de hábitos intestinais normais através da ida regular aos sanitários.(3) Doses altas de parafina líquida (Parafinina®) ou de líquidos de limpeza à base de polietileno-glicol (Klean-Prep®, Selg®, Endofalk®, soluções habitualmente usadas para preparação do cólon para exames endoscópicos) revelam-se eficazes quando a via oral é a escolhida. Apesar de não haver estudos controlados mostrando a eficácia da lactulose (Duphalac®, Laevolac®, Colsanac®), do hidróxido de magnésio (Leite de Magnésia Philips®) e do bisacodil (Dulcolax®) em altas doses na desimpactação por via oral, estes fármacos têm sido usados com sucesso.(14) Educação A educação da família e a desmitificação de algumas ideias acerca da obstipação como a de que esta é consequência dum distúrbio psicológico da criança ou de que se trata duma falha dos pais são os primeiros passos no tratamento da obstipação. É fundamental que se explique a patogénese da obstipação na criança. Se existe encopresis ou escorrência fecal deverá ser tentada a remoção de associações negativas relacionadas com o facto. É especialmente importante salientar que a encopresis não é um acto voluntário da criança e que muitas vezes esta ocorre sem que a mesma se dê conta disso. Alguns pais terão dificuldades em levar a A desimpactação por via rectal pode ser efectuada com recurso a enemas hipertónicos de sais de fosfato, clisteres de soro fisiológico (pouco eficazes) ou enemas de parafina líquida em soro fisiológico. Deverão ser evitados 39 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 12 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA clisteres simples de água devido ao risco de intoxicação por água (os mesmos podem originar hipervolémia e diluição de electrólitos, com o desencadear de convulsões e risco de morte em casos extremos).(9) Um método também prático para a desimpactação via rectal será o uso de supositórios de glicerina (na criança com menos de 2 anos) ou de bisacodil (crianças > 2 anos). Naturalmente que todos estes métodos (orais e rectais) podem ser usados isoladamente ou em associação.(14) No nosso país, pelo que pudemos apurar, não existem comercializados clisteres hipertónicos de sais de fosfato pelo que a alternativa será o uso de enemas de docusato de sódio (Clyss-Go®) ou microclisteres de citrato de sódio (Microlax®). A tabela 7 resume os métodos disponíveis para a desimpactação com algumas notas acerca de cada um deles.(5,14,24) Tabela 7 - Métodos, fármacos e doses para a desimpactação VIA ORAL DOSES NOTAS - Solução de polietileno-glicol (PEG) (ex. Klean-Prep®, Selg®, Endofalk®) - 25 cc/Kg/h, por via oral ou por sonda até à eliminação de líquido claro. Pode requerer internamento hospitalar. - 15-30 cc/ano de idade - Não usar no 1º ano de vida devido a risco de aspiração - Recomendada a toma de 5-10 mg de metoclopramida, 15 minutos antes, para evitar as náuseas e os vómitos. Difícil de tomar. - Riscos: pneumonia lipóide se aspiração; granulomas de corpo estranho na mucosa intestinal >> 3 cc/Kg/d, em várias tomas >> 3 cc/Kg/d, em várias tomas > 10 a 15 mg (toma única) - Muita flatulência, cólicas - Mais económico que a lactulose - Em > 2 anos (frequente a associação com laxantes osmóticos) - 6 cc/Kg peso, até a um máximo de 135 cc - 200-600 cc (parar a instilação quando ocorrer desconforto) - 30-45 cc por litro de soro - Um miniclister (67,5 cc) - Contra-indicado antes dos 2 anos - Não disponível em Portugal - Pouco eficazes > 3 anos: um a dois microclisteres < 3 anos: um microclister bebé > 2 anos: 0,5 a 1 supositório de 10 mg/d - Para < 2 anos: um a dois - Muito divulgado - Laxante de contacto, estimulante - Evitar em menores de 2 anos - Laxante de contacto, estimulante - Sem efeitos secundários - Parafina líquida (laxante amaciador, emoliente) - Lactulose - Hidróxido de magnésio - Bisacodil VIA RECTAL - Enemas de fosfato de sódio - Clisteres de solução isotónica (ex. soro fisiológico) - Clisteres de parafina líquida - Miniclisteres de docusato de Na (Clyss-Go®) - Microclisteres de citrato de Na (Microlax® e Microlax bebé®) - Bisacodil (supositórios) (Dulcolax®) - Glicerina (supositórios) O uso de laxantes osmóticos em altas doses para a desimpactação (como a lactulose ou o hidróxido de magnésio) numa criança que recusa manipulações anais, pode ter como consequência o aumento do número de episódios de encopresis e de crises dolorosas abdominais até que a impactação seja elimi- - Parar instilação se desconforto - Laxante amaciador, emoliente nada. O uso de laxantes de contacto (como o bisacodil) em conjugação com laxantes osmóticos pode revelar-se eficaz em apressar a resolução da impactação, pois vai estimular a eliminação das grandes quantidades de líquido que entretanto se foram acumulando no abdómen distendido da criança.(9) 40 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 13 João Baranda TRATAMENTO DE MANUTENÇÃO (prevenção da reacumulação das fezes) recto e da parte distal da sigmóide, o que previne os episódios de encopresis e dor abdominal.(9) Uma vez estabelecida a dosagem adequada esta deve ser mantida pelo menos 3 meses de modo a permitir que o cólon (cronicamente distendido) recupere alguma da sua função. É sensivelmente este também o tempo que a criança demora a adquirir hábitos intestinais regulares e normais. A partir de então a dose de laxantes pode ser reduzida, dum modo lento e tendo como objectivo uma dejecção diária. Não é raro a terapêutica ter de continuar por muitos meses ou mesmo anos.(3) A paragem muito precoce dos laxantes é a causa mais frequente de recidiva.(24) A tabela 8 enumera alguns dos laxantes mais utilizados na prática clínica. Nos lactentes com menos de 6 meses é preferível usar outros laxantes que não a lactulose ou o leite de magnésia. Uma vez resolvido o problema da impactação há que prevenir a sua recorrência. Este tratamento consistirá em modificações dietéticas e no uso de laxantes.(14) Modificações dietéticas Aconselha-se o aumento da ingestão de líquidos e o consumo frequente de sumos de pêra, ameixa ou maçã, ricos em hidratos de carbono não absorvíveis(3) O efeito laxante dos sumos é particularmente útil nos primeiros 6 meses de vida, altura em que a maioria dos laxantes disponíveis no mercado não estão aconselhados.(5) Uma dieta equilibrada que inclua alimentos ricos em fibra como os cereais, a fruta e os vegetais (sopa!), é também classicamente recomendada(3), isto apesar de só recentemente um estudo controlado(19) ter demonstrado o benefício do reforço do teor de fibras da dieta. O mecanismo pelo qual as fibras tornam as fezes mais moles e aumentam o número de dejecções parece prender-se com o aumento do teor de água e de proliferação bacteriana da massa fecal.(19) Em crianças com obstipação que não respondam aos laxantes e às medidas dietéticas atrás referidas deverá ponderar-se a elimi-nação do leite de vaca da dieta.(32) De facto apesar do sintoma mais comum de intolerância às proteínas do leite de vaca ser a diarreia, a obstipação pode também ocorrer. (33,34) Apesar da importância duma dieta equilibrada é de todo indesejável uma modificação forçada e coerciva da alimentação.(14) Na América de Norte usam-se nestes casos extractos de malte de cevada dissolvidos em sumos (nos lactentes que são amamentados) ou misturados no biberão juntamente com o leite. As doses habituais são de 5-10 cc, duas vezes por dia, sendo necessárias doses maiores nas crianças não amamentadas.(3) O uso prolongado de laxantes de contacto não é recomendável. Estes laxantes podem contudo ser usados de modo intermitente para evitar a recorrência da impactação, nomeadamente quando a criança está 2 a 3 dias sem defecar. Deve ser considerada uma terapêutica de recurso.(5, 14) A utilidade dos laxantes estimulantes é também notória naqueles casos em que a criança retém grandes quantidades de fezes líquidas produzidas por acção de laxantes osmóticos.(9) A ingestão diária de doses baixas de soluções PEG têm sido usada para o tratamento da obstipação em adultos.(37,38) Trabalhos recentes têm contudo demonstrado que a administração destes laxantes em baixas doses podem levar à absorção quase completa do componente salino da solução podendo ocasionar problemas em doentes Laxantes Na maioria das crianças obstipadas a manutenção de dejecções diárias é conseguida através do recurso a laxantes. A escolha do laxante não parece tão importante quanto a aderência ao tratamento por parte da criança e dos pais. As doses dos laxantes devem ser individualizadas de modo a obter-se uma a duas dejecções diárias de fezes moles. Consegue-se deste modo o esvaziamento do 41 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 14 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA Tabela 8 - Tratamento de manutenção – laxantes de uso mais comum(9,14) LAXANTES OSMÓTICOS Lactulose Hidróxido de Magnésio DOSES EFEITOS SECUNDÁRIOS/NOTAS - 1-3 cc/Kg/dia em duas tomas - 1-3 cc/Kg/dia em duas tomas Soluções de polietileno-glicol - Variável com a molécula PEG (soluções PEG)35, 36 (ex. Movicol®, - Habitualmente, 5-10 cc/Kg/dia ou 0,5Forlax®) 1g/ Kg/dia; usar preferencialmente em > LUBRIFICANTES Parafina líquida ESTIMULANTES (de contacto) Bisacodil Sene (à base de sene) - Flatulência, cólicas; bem tolerada a longo prazo - Usar com cuidado se doença renal - Risco de hipermagnesiémia - Náuseas, vómitos, cólicas. - Poucos estudos acerca da sua segurança durante períodos prolongados 8 anos de idade - 1-3 cc/kg/dia à noite (de evitar antes do 1º ano de vida devido a > risco de aspiração) - Risco de pneumonia lipóide se aspiração. Contra-indicado se doença neurológica. - 1 a 2 cp de 5 mg à noite ou de manhã - Variável segundo o fármaco - Útil por vezes em associação com um laxante osmótico (ex. Xarope de Maçãs Rainetas®) motivo está contra-indicado o seu uso em crianças com doenças neurológicas e perturbações da deglutição.(42) O risco teórico de efeitos carcinogénicos e de perturbação da absorção de vitaminas lipossolúveis não se tem confirmado na prática clínica. A possibilidade de ocorrência de granulomas de corpo estranho na mucosa intestinal permanece uma hipótese em aberto, segundo alguns trabalhos.(43,44) No nosso país a lactulose e o hidróxido de magnésio são os laxantes mais difundidos na prática clínica pediátrica. A escolha do laxan-te (que como vimos não é tão importante como a aderência ao tratamento) deverá ser baseada na segurança, custo e facilidade de administração do laxante bem como na preferência da criança e experiência do médico.(14) com patologia renal e cardíaca.(39,40) Por esse motivo foi desenvolvida nos inícios dos anos 90 uma solução PEG 3350 sem electrólitos associados (Miralax®, Braintree Laboratories, MA, EUA) que foi testada com algum sucesso em adultos.(41) Pelo menos dois estudos demonstraram a eficácia e segurança destes compostos quando usados em crianças com obstipação.(35,36) No nosso país, pelo que pudemos apurar, há pelo menos um macrogol 4000 (pó para solução) sem electrólitos associados que pode ser usado no tratamento da obstipação em crianças (Forlax®, Lab. Azevedos). A parafina líquida é largamente usada como laxante de primeira linha na América do Norte e Austrália mas muito pouco usada na Europa.(42) Actua principalmente como um lubrificante que amolece as fezes e por conseguinte não causa flatulência, cólicas ou mesmo o aparecimento de tolerância, que é possível com os laxantes osmóticos ou de contacto. Não é recomendado o seu uso no 1º ano de vida porque o refluxo gastro-esofágico e os problemas de coordenação da deglutição são mais frequentes nessas idades o que pode agravar o risco de aspiração e consequente desenvolvimento de pneumonia lipóide (o efeito secundário mais temível). Pelo mesmo PROMOÇÃO DA AQUISIÇÃO DE HÁBITOS INTESTINAIS NORMAIS ATRAVÉS DA IDA REGULAR AOS SANITÁRIOS O componente mais importante do tratamento é a modificação de algumas condutas e comportamentos, nomeadamente aqueles que se prendem com o uso regular dos sanitários.(24) O treino defecatório não deve ser forçado em crianças com menos de 2,5 anos que se mostrem relutantes em se sentarem no 42 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 15 João Baranda bacio. Estas crianças devem continuar a usar fraldas (permanentemente ou quando queiram defecar). Primeiro é importante a criança adquirir o seu próprio padrão defecatório. Uma vez que este seja adquirido pela criança, o treino das evacuações na sanita ou no bacio pode ser iniciado ou reiniciado.(3) de estar sentada no bacio ou na sanita. Nas primeiras ocasiões a permanência nos sanitários poderá ser mais breve que os cinco minutos convencionados.(45) Uma vez adquirido o hábito de se sentar no bacio ou sanita os pais poderão ensinar a criança a arquejar e a fazer manobras de Valsava.(45) Por vezes é importante o desenvolvimento dum sistema de recompensas sempre que a criança defeque nos sanitários. Este mecanismo de reforço pode-se traduzir em minutos de jogos de computador, de televisão ou pequenos presentes. No início a criança será recompensada sempre que defeque nos sani-tários; posteriormente poderá sê-lo somente por cada três dejecções. Rapidamente a criança estará treinada e o sistema de recompensas poderá ser abandonado.(45) A criança com mais de 2 anos e meio deverá ser estimulada a sentar-se no bacio ou na sanita, durante cerca de 5 minutos, 3 a 4 vezes por dia, a seguir às refeições de modo a poder aproveitar o efeito do reflexo gastrocólico.(9) Deve ser elaborado um diário para registo do nº de dejecções, do volume e consistência das fezes, do nº de episódios de encopresis e da medicação em uso.(3) É importante tornar a casa de banho um local agradável para a criança e não um local de tortura ou punição. Os pais deverão conversar, brincar ou ler um livro à criança enquanto esta se habitua à ideia A figura 2 pretende resumir, num algoritmo, a abordagem da obstipação na criança. Figura 2 - Abordagem da criança com obstipação(5) ANAMNESE E EXAME FÍSICO AUSÊNCIA DE POSTURA DE RETENÇÃO FECAL AMPOLA RECTAL VAZIA PERTUBAÇÃO FUNCIONAL DE DEFECAÇÃO Postura de retenção fecal Massa Fecal ao ex. físico DESIMPACTAÇÃO POR VIA ORAL OU RECTAL MANOMETRIA ANAL CLISTER OPACO BIÓPSIA RECTAL RMN COLUNA VERTEBRAL História de fezes duras < 3 dejectoções/semana Ausência de massa fecal ao ex. físico pos neg CONSIDERAR OPÇÕES CIRÚRGICAS TERAPÊUTICA DE MANUTENÇÃO COM LAXANTES EDUCAÇÃO MODIFICAÇÃO DE HÁBITOS SEGUIMENTO REFRACTÁRIA AO TRATAMENTO ASSEGURAR ADERÊNCIA E EDUCAÇÃO falha SUCESSO TRATAR A CAUSA SUBJACENTE 43 pos sim e continua a falhar TSH, T4, Teste do suor, Lítio, Ca, Mg, P, Pb, Anticorpos para dça celíaca neg Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 16 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA O tratamento bem sucedido da obstipação requer um trabalho de equipa entre os doentes, os pais (e outros membros da família como os avós) e os profissionais de saúde. A cooperação da criança é o dado mais importante para o sucesso do tratamento. É o comportamento de retenção perante uma urgência defecatória que necessita de ser modificado. É fundamental um seguimento apertado em consultas e a disponibilização à família dum contacto telefónico onde possam esclarecer dúvidas. As famílias têm de ser preparadas para melhorias graduais e lentas e mesmo para retrocessos episódicos. controlo dos esfíncteres também deve ser abordada com os pais, pois existem por vezes falhas a este nível (criança não educada neste aspecto pelos pais, pais muito rigorosos ou treino defecatório com início muito cedo).(46) A psicoterapia tem sido classicamente referida como útil na encopresis não associada à retenção fecal(1,2) mas existe controvérsia a este respeito.(24) Técnicas de biofeedback A manometria anal nos doentes obstipados tem mostrado numerosas alterações como uma dinâmica anormal durante a defecação com incapacidade para relaxar o esfíncter anal externo e os músculos do pavimento pélvico na altura da urgência defecatória. Esta incapacidade de relaxamento do esfíncter anal externo está presente em cerca de metade dos obstipados e é tida como um factor susceptível de ser corrigido por técnicas de biofeedback.(31) As técnicas de biofeedback parecem eficazes no tratamento da incontinência fecal no adulto(47) e o seu uso no tratamento da obstipação despertou algum interesse. A falha do tratamento, não obstante a boa aderência, sugere a necessidade de se rever o componente educacional e a modificação dos hábitos.A persistência do insucesso obriga a rever os diagnósticos diferenciais com outras entidades e a ponderar mais investigações.(5) TRATAMENTOS CONTROVERSOS Psicoterapia A presença de problemas comportamentais está frequentemente associada a fracos resultados da terapêutica.(9) Se os problemas de natureza comportamental são secundários à encopresis ou escorrência fecal, então a situação melhora com o tratamento. Naquelas situações em que persiste o distúrbio comportamental um apoio de natureza psicológica é importante.(24) A intervenção psicológica é focalizada na mudança de comportamentos quer da criança, quer dos pais. É importante o estabelecimento da autoridade paterna na maior parte dos casos, pois existe frequentemente uma ausência de regras, decidindo a criança quando come, quando dorme, etc...). Isto é consequência do papel periférico que o pai desempenha em alguns casos. O pai é habitualmente a figura que representa a autoridade; a sua ausência leva a que seja a mãe a ter de desempenhar esse papel, o que nem sempre é conseguido com sucesso.(46) A questão do As técnicas de biofeedback para as perturbações da defecação usam os instrumentos da manometria ano-rectal para amplificar determinados processos fisiológicos e para tornar essa informação fisiológica acessível ao doente.(31) Vários estudos não controlados tem mostrado alguma eficácia das técnicas de biofeedback no tratamento da obstipação pediátrica com ou sem encopresis associada, referindo nomeadamente um encurtamento do tratamento.(24) Estes dados não foram confirmados em estudos bem delineados. De facto, nenhum benefício do biofeedback foi observado em pelo menos cinco estudos controlados e randomizados.(48, 49, 50) Estes tratamentos permanecem, assim, controversos e atendendo ao seu elevado custo e fraca acessibilidade têm unicamente 44 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 17 João Baranda utilidade num pequeno subgrupo de doentes.(31, 50, 51) solitária e definida como numa criança > 4 anos de idade, a existência de : Acupunctura Num estudo pioneiro Broide et al(52) administraram dez sessões de acupunctura real após 5 sessões de acupunctura-placebo (realizada com as agulhas inseridas unicamente no estrato córneo em vez de na camada subdérmica conforme os princípios da medicina tradicional chinesa) num grupo de 17 crianças obstipadas. O nº de dejecções aumentou significativamente nos rapazes após receberem acupunctura verdadeira. O mesmo aconteceu com as raparigas. Os autores concluem que esta modalidade de tratamento pode ser um adjuvante da terapêutica nalguns casos. As medicinas alternativas são contudo controversas no seio da comunidade científica e deste modo o hipotético benefício da acupunctura precisa de ser confirmado por outros autores.(24) - Dois ou mais episódios de encopresis por semana, - Três ou mais dejecções por semana, - Ausência de passagem de grandes quantidades de fezes, e - Ausência de massas abdominais ou rectais ao exame físico Este tipo de encopresis representa menos de 20% dos casos de encopresis funcional na criança.53) A vasta maioria dos casos de encopresis na criança está associada à existência de obstipação.(24) A encopresis não associada a retenção é frequentemente a manifestação dum distúrbio emocional numa criança em idade escolar, embora o assunto seja algo controverso. É habitual os episódios de encopresis estarem relacionados com determinadas situações ou com a presença de certas pessoas (ex. visitas a um pai divorciado). Afecta cerca de 2% das crianças com mais de 4 anos, com uma relação rapaz/rapariga de 4:1.(2) Estas crianças têm um exame físico normal e não apresentam sinais de acumulação excessiva de fezes (quer ao toque rectal, quer no RX). O tempo de trânsito oro-anal é normal.(2) Em cerca de 24% dos casos o problema não é ultrapassado durante a puberdade e transita para a idade adulta.(54) O tratamento envolve frequentemente profissionais de saúde mental (psiquiatras, psicólogos).(2) Não há benefício algum da terapêutica com laxantes ou das técnicas de biofeedback.(55) O tratamento estará focalizado na educação da família com desmitificação de algumas ideias e com a promoção do uso regular dos sanitários (do mesmo modo que para a obstipação). Se necessário usar um esquema de recompensas.(55) Há referência na literatura a um caso de tratamento bem sucedido com a administração de supositórios de loperamida. Aparentemente a eficácia do fármaco não parece ter sido devida ao seu efeito anti-diarreico.(53) ENCOPRESIS FUNCIONAL NÃO ASSOCIADA A RETENÇÃO FECAL Porque esta entidade, também englobada nas perturbações funcionais da defecação na criança segundo os critérios de Roma II, difere significativamente da obstipação funcional / retenção fecal funcional e porque este capítulo esteve focalizado essencialmente na abordagem destas duas situações que se interpenetram, pareceu-nos importante para finalizar tecer algumas considerações a propósito da encopresis não associada a retenção. Como já vimos, a encopresis funcional não associada a retenção é definida, em crianças com > 4 anos de idade, como uma história de: 1) dejecções em locais e momentos inapropriados, 2) na ausência de doença orgânica e 3) na ausência de sinais de retenção fecal funcional, ocorrendo pelo menos uma vez por semana nas 12 semanas precedentes (critérios de Roma II).(1) Pelos critérios clássicos de Iowa, este tipo de encopresis é denominado de encopresis 45 Cap02Perturbacoes.qxp 21-11-2005 15:59 Page 18 PERTURBAÇÕES FUNCIONAIS DA DEFECAÇÃO NA CRIANÇA BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. Rasquin-Weber A, Hyman PE, Cucchiara S, Fleisher DR, Hyams JS, Milla PJ et al. Childhood functional gastrointestinal disorders. Gut 1999; 45(Suppl II): II60-II-68. Di Lorenzo C. Disorders of the anorectum. Pediatric anorectal disorders. Gastroenterol Clin North Am 2001; 30: 269-87. Loening-Baucke V. Chronic constipation in children. 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Muitos aspectos relativos à etiopatogenia, manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento são comuns às idades pediátrica e adulta. No entanto, existem aspectos específicos deste grupo etário que devem ser tomados em consideração, no sentido de se oferecer um tratamento correcto e de se evitarem complicações, por vezes irreversíveis, que podem comprometer o futuro destas crianças. Revemos alguns dados relevantes relativos à etiopatogénese, epidemiologia, clínica, diagnóstico e tratamento da DII infantil. A Doença Inflamatória Intestinal - DII (Doença de Crohn, Colite Ulcerosa e Colite Indeterminada) é uma patologia crónica, com manifestações major no aparelho digestivo, mas com atingimento sistémico importante, que afecta, sobretudo, adultos jovens. Em cerca de 15-25% dos casos, a primeira manifestação ocorre na infância ou adolescência, ou seja antes dos 18 anos.(1,2) É, portanto, uma entidade clínica bem estabelecida na prática QUADRO I - COMPARAÇÃO ENTRE DII COM INÍCIO NA IDADE ADULTA VS PEDIÁTRICA Semelhanças Manifestações clínicas major Distribuição anatómica da Doença de Crohn (DC) Resposta ao tratamento Recorrência pós-operatória da DC ETIPATOGÉNESE A DII parece ser o resultado de uma activação inapropriada do sistema imune da mucosa pela flora bacteriana intestinal.(3) Embora permaneça grande controvérsia relativamente à etiologia, vários estudos clínicos e laboratoriais indicam como fundamentais, os factores genéticos e ambientais. O papel dos factores genéticos na DII foi sugerido, inicialmente, por estudos epidemiológicos que mostravam agregação familiar e concordância de doença em gémeos.(4,5) Estudos de genética molecular foram realizados na última década e, em 2001, 3 grupos independentes relataram a existência do primeiro gene de susceptibilidade à DC, no cromossoma 16, que foi inicialmente denominado Diferenças DC mais frequente que Colite Ulcerosa (CU) em cri anças Doença extensa (pancolite) comum em crianças com CU Atraso de crescimento e pubertário - aspectos únicos na DII infantil Desconhecido (não completamente estudado) Etiologia ( genética, ambiente e outros) Patogénese 49 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 2 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES EPIDEMIOLOGIA NOD2 e, posteriormente, CARD15.(6,7,8) A noção de que determinados genes podem influenciar e determinar a progressão da doença é um conceito muito importante para desenvolvimentos futuros na compreensão e tratamento da DII. A DII existe em todo o mundo, mas com maior incidência nos países do Norte, sendo muito rara na África e América do Sul. Desde os primeiros relatos nos finais de séc. XIX e até 1970, nota-se aumento de incidência e prevalência da DII. Se se conseguir demonstrar que um gene provoca um efeito fenotípico (manifestação clínica, resposta a determinados drogas), isso permitirá personalizar o tratamento com base no conhecimento do código genético, evitando tratamentos ineficazes e efeitos secundários de determinados medicamentos. Parece haver tendência de estabilização ou crescimento mais lento nos países desenvolvidos, desde os anos 80 e um aumento acentuado de incidência nos países em desenvolvimento.(14,15) A prevalência da DC é de aproximadamente 130/100 000 indivíduos e da CU de 100 /100 000, segundo estudos da Clínica Mayo, nos EUA1,(16,17) Estes números são semelhantes aos descritos noutras áreas, nomeadamente Europa e Canadá. A relação genótipo/fenótipo é, provavelmente, a base que explica a heterogeneidade da DII, sugerindo que existem muitos genes diferentes que influenciam o aparecimento e o desenvolvimento da DII de forma tão diversa, tanto nas manifestações clínicas como na resposta à terapêutica.(9,10,11,12,13) As taxas de incidência e prevalência variam entre os diferentes países, sendo as mais elevadas provenientes de estudos dos EUA, Canadá e Suécia.(1,2,18) Têm sido propostos vários factores como possíveis desencadeantes ou modificadores da DII, tais como: tabaco, dietas ricas em açúcar e gorduras, contraceptivos orais, agentes infecciosos (vírus do sarampo, mycobacterium paratuberculosis, entre outros), mas o seu papel permanece pouco definido. Estudos epidemiológicos pediátricos dos EUA, Reino Unido e Escandinávia mostram um aumento de incidência e prevalência da DII nos últimos 40 anos, tanto da CU como da DC. Uma área de interesse crescente, em termos de investigação, é a flora intestinal normal, onde se pensa que reside o(s) agente(s) responsável(s) pela inflamação intestinal da DII, seja por patogenicidade directa ou por desencadear resposta imunológica inadequada que inicia e perpetua o processo inflamatório. Globalmente, a taxa de incidência de DII pediátrica é de 4-7 casos por 100 000 habitantes. A maioria dos estudos mostra um aumento relativo de DC versus CU,(23,25, 28,29) embora esta tendência não seja universal; um estudo pediátrico efectuado na Suécia entre 1984 e 1998, revelou um aumento de 3 vezes na incidência de CU, enquanto a incidência de DC se manteve estável. (19) Actualmente, a hipótese etiológica mais consensual para a DII é que, em doentes com predisposição genética, os antigénios (atgs) da flora intestinal normal poderão induzir resposta imunológica inadequada, com consequente inflamação, enquanto os indivíduos sem doença têm tolerância imunológica aos atgs habituais do lúmen intestinal. O Quadro 2 sumaria alguns estudos de incidência de DII pediátrica. 50 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 3 Raquel Gonçalves QUADRO II20 - INCIDÊNCIA DE DII PEDIÁTRICA ESTUDO REGIÃO GEOGRÁFICA DC (por 100 000) CU (por 100 000) Kugathasan et al21 (2000-2002) Lindberg et al19 (1993-1995) Hassan et al22 (1995-1997) Armitage et al23 (1981- 1995) Phavichitr et al24 (1991-2001) EUA (Wisconsin) 4.56 2.14 Suécia 1.3 3.2 Reino Unido (Inglaterra) 1.36 0.75 Reino Unido (Escócia) 2.5 1.3 Austrália 2.0 Não relatado de apresentação mais subtil, nomeadamente através de um atraso de crescimento, na DC, que pode levantar problemas de diagnóstico e fazer protelar o início do tratamento. As manifestações clínicas podem ser gastrointestinais e sistémicas. As chamadas manifestações extraintestinais surgem num número significativo de casos. A distribuição etária da DII é bimodal, com o primeiro pico de incidência nas 2ª e 3ª décadas de vida e um 2º pico entre a 5ª e 7ª décadas. Cerca de 15-25% dos casos de DII têm a sua primeira manifestação antes dos 18 anos.(1, 2) Numa série publicada por Heyman,(26) entre 1370 doentes diagnosticados antes dos 18 anos, 6,4% foram diagnosticados antes dos 2 anos, 15,4% antes dos 6 anos, 47,7% entre 6 e 12 anos e 36,9% entre os 13 e os 18 anos. Isto significa que, no grupo estudado, 63% foram diagnosticados antes dos 12 anos. No mesmo estudo verificou-se que a DC e a CU ocorrem com igual frequência em crianças com menos de 8 anos, mas a partir desta idade a DC torna-se muito mais frequente. Relativamente à distribuição por sexos, não se verifica diferença significativa na maioria das séries relatadas, tanto na CU como na DC. A maioria dos estudos epidemiológicos pediátricos mostra uma história familiar positiva para DII em 10 a 25 % das crianças afectadas.(25,27) MANIFESTAÇÕES GASTROINTESTINAIS A CU manifesta-se, habitualmente, através de diarreia com muco/sangue e dores abdominais. Estas localizam-se no flanco e fossa ilíaca esquerda ou em todo o abdómen, podendo ter carácter contínuo ou em cólica e acompanhar-se de algum grau de distensão abdominal. A DC apresenta uma heterogeneidade de manifestações que têm a ver com a localização, extensão e gravidade da doença. A doença gastroduodenal pode manifestar-se com enfartamento, náuseas, vómitos, epigastralgias e disfagia, entre outras, o que condiciona emagrecimento, porque o doente evita comer para não agravar os sintomas. Quando há um atingimento extenso do intestino delgado, a dor abdominal difusa, anorexia, diarreia e emagrecimento são aspectos constantes na apresentação da doença. A malabsorção, nomeadamente de lactose, pode CLÍNICA A apresentação clínica da DII na infância e adolescência tem aspectos semelhantes à doença nos adultos, mas pode ter uma forma 51 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 4 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES ser uma consequência desta situação. O envolvimento ileocólico habitualmente dá origem a queixas dolorosas abdominais, que são habitualmente periumbilicais, nas crianças. Ao exame abdominal, há aumento da sensibilidade à palpação na fossa ilíaca direita e, ocasionalmente, pode ser notado empastamento ou massa inflamatória a esse nível. A DC do cólon pode mimetizar a CU, com diarreia que pode conter muco e sangue e dores abdominais que podem ser aliviadas com a defecação. Na DC as manifestações perianais estão presentes em cerca de 40% dos doentes e consistem em fissuras, fístulas e abcessos. (>2anos inferior à idade real da criança). Este é, por vezes, o primeiro sinal, em crianças com doença de início precoce e reflecte doença severa ou mal controlada.(31,32,33) Ocorre em mais de 35% das crianças com DC e em 6 a 10% na CU, podendo preceder em vários anos o diagnóstico. O acompanhamento do desenvolvimento estato-ponderal através de mapas de crescimento (tabelas de registo de peso e altura, com determinação do percentil correspondente), pode fazer suspeitar do diagnóstico de DII (sobretudo DC) e, em crianças já com diagnóstico prévio, monitorizar a eficácia do tratamento ou identificar um surto de actividade da doença. Um estudo de 2002, em crianças com DII e menos de 5 anos, mostra que o atraso de crescimento estava presente na altura do diagnóstico em 44% dos doentes com DC e 11% dos doentes com CU. Este atraso persistia em 1/3 dos doentes com DC.(34) A etiologia destes sintomas e sinais (anorexia, emagrecimento, malnutrição, atraso de crescimento e maturação sexual) é multifactorial, sendo os factores mais estudados o aporte inadequado, malabsorção e perdas fecais de proteínas e elementos essenciais como o zinco e a terapêutica a longo prazo com corticóides.(31,33) Algumas anomalias imunológicas e endócrinas também contribuem para o atraso de crescimento. Kirschner e Sutton descreveram pela primeira vez a associação de atraso de crescimento com baixos níveis de somatomedina-C (ou factor de crescimento insulina-like, IGF-1) em jovens com DC.(35) Observaram também uma subida dos níveis de IGF-1 com a melhoria clínica associada a melhor aporte energético. Depois deste, muitos estudos se seguiram, na tentativa de explicar qual o mecanismo pelo qual a DII interfere com os factores endócrinos e imunológicos. Sabe-se que a integridade do eixo hormona de crescimento / factor de crescimento insulinalike 1 (GH / IGF 1) é essencial para um crescimento normal e que a malnutrição e a inflamação interferem com essa integridade.(36,37) MANIFESTAÇÕES SISTEMÁTICAS Febre Está presente em 40% das crianças com DII, na altura do diagnóstico. Pode ser elevada, em picos mas, mais frequentemente, é baixa e pode mesmo não ser notada ou valorizada pela criança e pelos pais. Anorexia/emagrecimento Esta é a manifestação sistémica mais frequente, afectando cerca de 70% das crianças com DII, sobretudo na DC. As causas de emagrecimento são múltiplas, desde a diminuição do aporte alimentar devido à anorexia e mal estar abdominal à perda de nutrientes, condicionada pela malabsorção e diarreia. O emagrecimento, nas crianças, está intimamente ligado a um grave problema que é o atraso de crescimento. Atraso de crescimento e de maturação sexual Uma das consequências mais temidas da DII na infância e adolescência é o atraso de crescimento que pode ocorrer, sobretudo se houver um diagnóstico e, consequentemente, um tratamento tardios. Define-se por uma diminuição da velocidade de crescimento em cm/ano, para a idade, uma quebra no percentil de altura a partir do nível prévio duma criança e/ou uma idade óssea anormal 52 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 5 Raquel Gonçalves A GH estimula a produção hepática de IGF-1, o que aumenta a concentração sérica e a produção localizada a nível dos condrócitos, da IGF-1, com consequente estimulação do crescimento.(33) Doentes jovens com DII têm secreção espontânea e estimulada de GH, normal, mas redução dos níveis séricos de IGF-1, o que indica insensibilidade hepática à estimulação pela GH.(38,39) O mesmo perfil endócrino existe também noutras doenças crónicas associadas a atraso de crescimento. Esta perturbação no eixo GH / IGF-1 é iniciada pela malnutrição e inflamação, na DII. O papel das citoquinas pró-inflamatórias, que se encontram aumentadas nos doentes com inflamação activa, nomeadamente a IL6, é considerado crucial na mediação do atraso de crescimento, provavelmente por interferir negativamente na produção de IGF-1 estimulada pela GH.(40,41,42) A figura 1 representa esquematicamente os mecanismos propostos para associação entre inflamação e atraso de crescimento. Outros factores que podem afectar o crescimento dos doentes com DII são a deficiência em zinco(43) e o aumento dos níveis de factor de necrose tumoral (TNFa).(44) O atraso de maturação sexual pode acompanhar o atraso de crescimento. Algumas jovens apresentam amenorreia secundária a emagrecimento ou doença activa. O conhecimento da etiopatogénese do atraso de crescimento pode dar pistas no sentido de direccionar o tratamento contra os alvos adequados, o que, em conjunto com um suporte nutricional correcto, poderá evitar ou reverter as consequências sobre o desenvolvimento normal das crianças com DII. FIGURA 1 - DII E ATRASO DE CRESCIMENTOA Anorexia Dor Abdominal Redução Ingestão calorias Citoquinas pró-inflamatórias Malnutrição Resistência Hepática à GH -VO -VO mRNA IGF - 1 IGF-1 Plasmática Proliferação e maturação condrócitos ATRASO DE CRESCIMENTO 53 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 6 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES MANIFESTAÇÕES EXTRA-INTESTINAIS Desmineralização óssea / Osteopenia A osteopenia (redução de massa óssea) é um problema que afecta os doentes com DII, com particular incidência e gravidade na idade pediátrica, já que mais de 90% da massa óssea é atingida durante a infância e adolescência.(44) Está presente em > 30 % dos doentes com DC e 10% com CU. Os factores mais importantes na sua origem são: nutrição inadequada (défice de vitamina D e cálcio), terapêutica crónica com corticóides e diminuição da actividade física. A deficiência de vitamina D é mais grave na DC e é condicionada pelo baixo consumo de leite e derivados, atingimento do tubo digestivo superior pela doença, tratamento com corticóides e diminuição da exposição solar.(44, 45, 46) Os corticóides provocam desmineralização óssea através da inibição dos osteoblastos, diminuição da absorção de cálcio e antagonismo da actividade da GH. No sentido de prevenir a desmineralização óssea, são preconizadas algumas medidas quando se trata uma criança com DC: O carácter sistémico da DII é bem demonstrado na existência de múltiplas manifestações que acompanham tanto a CU como a DC, podendo mesmo sobrepôr-se, em termos de gravidade clínica, à doença intestinal. Nas crianças, ocorre em 40% na DC e em menor número na CU. Artralgias e artrite Ocorrem frequentemente e podem preceder o diagnóstico de DII. Habitualmente, acompanham a actividade da doença intestinal e melhoram com o tratamento da doença de base. Existem duas formas: periférica (joelhos, tornozelos, cotovelos, punhos) e axial (espondilite anquilosante e sacroileíte). Lesões mucocutâneas As úlceras aftóides orais são frequentes na DII e, habitualmente, acompanham exacerbações da doença. Estomatite aftosa, gengivite e queílite granulomatosa podem, raramente, associar-se a DII, sobretudo DC. O eritema nodoso (EN) e o pioderma gangrenoso (PG) têm etiologia vascular e correlacionam-se com a actividade da doença intestinal e com envolvimento articular.(47) O EN associa-se principalmente à DC e o PG à CU, sendo o tratamento o mesmo da doença intestinal. O PG pode ser de difícil controlo, exigindo o recurso aos corticóides e dapsona. - Osteodensitometria óssea na altura do diagnóstico e repetição ao fim de um ano - Análises anuais : cálcio, fósforo e fosfatase alcalina - Suplementação de cálcio e vitamina D, segundo doses recomendadas para a idade. Recomendações de ingestão de cálcio diária (mg)(51) 0-6 meses: 210 6 m – 2 anos: 270 1 – 3 anos: 500 4 - 8 anos: 800 9 – 18 anos: 1300 Complicações oftalmológicas São muito raras na idade pediátrica. As mais frequentes são a episclerite, irite e uveíte. A episclerite costuma acompanhar surtos de agudização da doença de base e melhora com o tratamento desta. A irite e a uveíte são independentes da actividade da doença intestinal. No decurso da DII podem surgir cataratas ou glaucoma associados ao tratamento crónico com corticóides. - Controlo rigoroso da doença (evitar, sempre que possível os corticóides) - O uso de bifosfonados não está ainda estabelecido na idade pediátrica, não podendo, portanto, ser recomendado nesta situação. Doença hepatobiliar A colangite esclerosante primária é uma 54 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 7 Raquel Gonçalves doença hepática colestática crónica, usualmente associada a CU nos adultos, mas muito rara na idade pediátrica.(48) O tratamento baseia-se no acido ursodesoxicólico (UDCA) e transplante hepático. - Náuseas, vómitos - Enfartamento, saciedade precoce - Ulcerações orais - Icterícia 3 - Manifestações extra-intestinais - Articulares - Mucocutâneas - Oftalmológicas - Pancreáticas - Hepatobiliares - Urológicas - Tromboembólicas Complicações pancreáticas Existem alguns relatos de complicações pancreáticas em crianças e adolescentes com DII.(49) A causa pode ser a doença de base e/ou os medicamentos usados no seu tratamento, nomeadamente a azatioprina, que pode originar pancreatite aguda. DIAGNÓSTICO Complicações urológicas Ocasionalmente pode verificar-se obstrução do tracto urinário por conglomerado de ansas intestinais inflamadas ou formação de fístulas entre o intestino e estruturas do aparelho urogenital. Estão também descritos casos de nefrite intersticial associados ao uso de 5- ASA e sulfasalazina e nefro-litíase, com predomínio de cálculos de ácido úrico na CU e de oxalato na DC. O diagnóstico da DII, particularmente da DC, pode ser difícil, porque as manifestações clínicas são inespecíficas, heterogéneas e, por vezes, não valorizadas pelo doente, pelos pais e mesmo pelo médico assistente, até fases avançadas da doença. A CU é, normalmente, diagnosticada com maior celeridade, dada a objectividade dos sintomas (diarreia com sangue e muco), na esmagadora maioria dos doentes. Complicações tromboembólicas Esta complicação potencialmente grave é relativamente frequente nos adultos, havendo apenas algumas descrições na idade pediátrica.(50) O processo de diagnóstico deve ser iniciado imediatamente após a suspeita de DII, para evitar sequelas graves da doença (anemia, complicações sépticas, atraso de crescimento, entre outras). Há alguns dados na história clínica que devem fazer pensar na possibilidade deste diagnóstico: Em resumo, podemos sintetizar a apresentação clínica da DII nas crianças e adolescentes da seguinte forma: - Dor abdominal - Diarreia (com ou sem sangue) - Emagrecimento ou má progressão ponderal - Redução da actividade normal da criança - Atraso de crescimento - Atraso de maturação sexual / puberdade - Carácter crónico dos sintomas ou sinais 1. Manifestações sistémicas - Febre - Anorexia; emagrecimento - Atraso de crescimento - Endócrinas: - Atraso de maturação sexual - Osteopenia / osteoporose - Anemia Perante uma suspeita de DII, que exames devemos fazer e com que sequência? Aqui, devemos pensar que, tratando-se de uma criança, a preocupação de ser menos invasivo e de evitar trauma físico ou psicológico deve 2. Manifestações gastrointestinais - Dor abdominal - Diarreia (com ou sem sangue ou muco-pús) - Hemorragia digestiva 55 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 8 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES estar sempre presente, não prejudicando, obviamente, a progressão do diagnóstico e consequente terapêutica. O quadro 3 mostra os exames subsidiários a serem considerados na abordagem das crianças e adolescentes com suspeita de DII(20) EXAMES LABORATORAIS Os exames laboratoriais têm por finalidade detectar a presença de inflamação (VS, PCR), determinar o estado nutricional (albumina, fosfatase alcalina), a presença de infecção (exame bacteriológico / parasitológico de fezes, detecção da toxina do Clostridium) e de complicações associadas à doença (hemograma, para excluir anemia, leucocitose, trombocitose ; TGO, TGP, GGT, bilirrubina, para excluir doença hepática associada), entre outros. Os testes serológicos pANCA (perinuclear antineutrophil cytoplasmatic antibodies) e ASCA (anti-Saccharomyces cerevisiae antibodies) podem ser efectuados quando há dúvida de diagnóstico, nomeadamente entre situações infecciosas e DII, ou CU vs DC. Foi estudada a acuidade destes testes no diagnóstico diferencial entre CU e DC em população pediátrica e os resultados mostram que o aumento dos títulos de ASCA é altamente específico para DC (95%, se IgA ou IgG positivos, 100% se os dois positivos), enquanto o aumento de pANCA é mais específico para CU (92%) ou DC com atingimento do cólon. A sensibilidade (taxa de falsos positivos) destes testes serológicos é menor que a especificidade (taxa de falsos negativos). Esta baixa sensibilidade não permite que os testes serológicos sejam aconselhados como método de rastreio, mas, como já referido, na dúvida de diagnóstico de DII e no diagnóstico diferencial CU/DC.(53,54) Um estudo retrospectivo recente sobre sensibilidade e especificidade dos testes serológicos versus parâmetros laboratoriais habituais (hemograma e VS) mostra algum benefício com a introdução dos testes serológicos, mas mostra também que a grande maioria das crianças com DII foi identificada apenas pela história clínica e pelos testes laboratoriais de rotina, sendo o diagnóstico confirmado por exames endoscópicos com biópsias. Daqui concluíram que houve pouco benefício com a introdução dos testes serológicos no diagnóstico da DII, nas cri- QUADRO III - AVALIAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM SUSPEITA DE DII TESTES LABORATORAIS - Marcadores inflamatórios: VS, PCR - Marcadores do estado nutricional: albumina, proteínas totais, perfil do ferro, cálcio, zinco, fosfatase alcalina, ácido fólico, vitamina B12 - Outros parâmetros séricos: Hemograma com plaquetas; enzimas hepáticas (AST, ALT); bilirrubina total, GGT; amílase; lípase - Exame de fezes: leucócitos fecais, ovos e parasitas, culturas de rotina; toxina do Clostridium difficile - Testes serológicos: pANCA; ASCA; OmpC ESTUDOS ENDOSCÓPICOS - Colonoscopia - Endoscopia Digestiva Alta ESTUDOS IMAGIOLÓGICOS - Ecografia abdominal - Radiografia abdominal simples - Trânsito do intestino delgado / enteroclise - TAC ; RMN - Cintilograma - Densitometria óssea VS - velocidade de sedimentação; PCR - proteína C reactiva; ALT - alanina aminotransferase; AST - aspartato-aminotransferase; GGT - gama-glutamiltransferase; pANCA - perinuclear antineutrophil cytoplasmatic antibodies; ASCA - anti-Saccaromyces cerevisiae antibodies; OmpC - anticorpo para porin C da membrana externa da Escherichia coli. TAC - Tomografia axial computorizada; RMN - Ressonância magnética nuclear. 56 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 9 Raquel Gonçalves Doença de Crohn Deve ser efectuada colonoscopia total, sob anestesia e, segundo alguns autores, sempre acompanhada de EDA com biópsias, para verificar se há envolvimento do tracto digestivo superior pela doença e para diagnóstico diferencial com CU. O atingimento da mucosa é descontínuo, com aspecto semelhante, em termos endoscópicos e histológicos, à DC do adulto. Existem algumas diferenças, nomeadamente no atingimento exclusivo do cólon, que ocorre em cerca de 33% dos casos, o que é uma percentagem superior à observada nos adultos e à presença de granulomas nas biópsias, também em maior número na idade pediátrica (50 versus 15%). anças.(55) Se a suspeita clínica é forte ou há alterações nos exames laboratoriais, deve-se avançar para exames endoscópicos e/ou imagiológicos. EXAMES ENDOSCÓPICOS A colonoscopia acompanhada de biópsias e a endoscopia digestiva alta (EDA) em determinadas situações, são os exames fundamentais para o diagnóstico de DII em crianças e adultos. Colite Ulcerosa A colonoscopia total sob anestesia é aconselhada para o diagnóstico e para avaliação da extensão e gravidade da doença. Os achados endoscópicos e histológicos são semelhantes aos da CU em adultos, mas a frequência de atingimento de todo o cólon (pancolite) é muito superior nas crianças. Em situações de dúvida diagnóstica DC vs CU, o que acontece quando há atingimento apenas do cólon, deve ser efectuada EDA com biópsias do antro. O aspecto histológico (inflamação descontínua ou focal e a presença de granulomas) pode sugerir o diagnóstico de DC nestas situações.(56,57) No quadro 4 vemos os diagnósticos diferenciais que devem ser considerados, perante uma criança com inflamação da mucosa do cólon . EXAMES IMAGIOLÓGICOS Ecografia abdominal Os exames não invasivos são uma preocupação sempre presente na abordagem de uma doença pediátrica. A ultrasonografia, pela sua comodidade, facilidade de execução e ausência de efeitos adversos é um exame a considerar no diagnóstico e, sobretudo, no seguimento de crianças com DII. A visualização e medição da espessura da parede intestinal por ecografia correlaciona-se com a clínica e a histologia, na avaliação do processo inflamatório intestinal na DC.(58) É, portanto, um exame que pode ser usado nas crianças como marcador de actividade da doença, bem como na monitorização da eficácia do tratamento. Permite também observar a presença de abcessos ou outras colecções líquidas intra-abdominais. QUADRO IV - DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAL DE COLITE INFANTIL - DII - Colite infecciosa - Colite amebiana - Colite alérgica (leite de vaca) - Colite autoimune - Doença granulomatosa crónica - Imunodeficiência - Colite microscópica - Doença de Behcet - Enterocolite de Hirschsprung - Colite inespecífica com hiperplasia nodular linfóide - Enterocolite intratável da infância - Doenças metabólicas Estudo radiológico do intestino delgado O estudo radiológico do intestino delgado é fundamental para avaliar o envolvimento deste segmento do tubo digestivo, ajudando assim ao diagnóstico diferencial CU/DC, numa fase de avaliação inicial. Permite, no caso de DC ileal, determinar a localização e extensão da doença. Os aspectos mais frequentemente observados são estenose, rigidez 57 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 10 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES e fístulas. É desejável que estes exames sejam efectuados por técnicos com experiência em radiologia pediátrica. Deve evitar-se o uso repetido de estudos radiográficos, para diminuir a exposição das crianças a radiações. detecter áreas localizadas de inflamação ou infecção. Os mais usados são a cintilografia com leucócitos marcados com tecnécio 99mhexametilpropileneamina oxime (HMPAO) ou Indium.(62) Quando comparado com ecografia e RX contrastado, a cintilografia (HMPAO) mostrou acuidade diagnóstica superior.(63) Estudo radiológico do cólon O clister opaco tem uma utilidade muito limitada no grupo pediátrico, sendo substituído, na maioria dos casos, pela colonoscopia. Enteroscopia por videocápsula A videocápsula é um novo e precioso instrumento no estudo do intestino delgado, com interesse crescente na DII. Os estudos realizados na idade pediátrica são já bastante significativos, embora ainda não permitam indicar esta técnica para uso sistemático na abordagem da DII. As vantagens sobre outros métodos de estudo do intestino delgado são a não invasividade, ausência de radiações e maior sensibilidade para detectar pequenas lesões da mucosa, não aparentes em estudos radiográficos.(64) Num estudo pediátrico controlado, foi analisada a utilidade e segurança da videocápsula num grupo etário entre os 10 e 18 anos. Em 31 doentes, havia 20 com suspeita de DC. Observaram-se lesões compatíveis com DC em 50% dos casos e excluiu-se a mesma em 8 doentes. Concluiu-se também que o exame foi bem tolerado e seguro em todos os doentes.(65) Outro estudo foi efectuado em 12 doentes, com idades entre 12 e 16 anos, todos com suspeita clínica de DC, mas em que os exames convencionais não demonstraram lesões que permitissem o diagnóstico. A videocápsula identificou lesões sugestivas de DC em 7 dos 12 doentes (58%), sendo a maioria das lesões no íleo. Concluíram que, nestes doentes, a técnica foi segura e com elevada acuidade diagnóstica para a DC.(66) Radiografia abdominal simples Tal como nos adultos, este exame é útil em situações de DII activa, grave, permitindo o diagnóstico de oclusão, perfuração e megacólon tóxico. Tomografia axial computorizada A TAC é um exame normalmente bem tolerado pelas crianças e que tem utilidade confirmada na identificação de doença extraluminal, envolvimento de outros órgãos e avaliação do estado da parede intestinal e mesentério. Recentes avanços na técnica imagiológica, nomeadamente a enteroclise por TAC(59) e TAC multidetector(60), aplicados à idade pediátrica, permitem melhorar a acuidade diagnóstica e são uma alternativa aos estudos radiográficos convencionais. Ressonância magnética nuclear A RMN tem sido usada como complemento de diagnóstico, em situações seleccionadas de DII, nos adultos e, com menor frequência, nas crianças. Está descrita a vantagem da G-MRI (gadolinium - enhanced MRI) em pediatria, no diagnóstico de DII, devido a melhor resolução da mucosa intestinal e utilidade no diagnóstico diferencial CU/DC. Parece também ser útil no diagnóstico de DC com atingimento do intestino delgado proximal.(61) TRATAMENTO Cintilografia Os estudos de medicina nuclear, na DII infantil, são usados como exames complementares e não, habitualmente, como exames de primeira linha no diagnóstico. Servem para O tratamento da DII tem evoluído consideravelmente, nos últimos anos, permitindo um maior leque de opções, sobretudo na última década. Os objectivos do tratamento são, 58 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 11 Raquel Gonçalves a curto prazo, induzir e manter remissão, melhorar a qualidade de vida e, a longo prazo, prevenir recidivas, optimizar o crescimento e a maturação sexual, prevenir a desmineralização óssea e limitar a necessidade de recurso a cirurgias. Para que estes objectivos possam ser concretizados, deve existir uma abordagem multidisciplinar em que estejam presentes médicos de medicina geral e familiar, gastrenterologistas, pediatras, cirurgiões, psicólogos, nutricionistas, psiquiatras e assistentes sociais. Pode ser necessário o recurso a subespecialidades pediátricas, nomeadamente dermatologia, reumatologia, oftalmologia e endocrinologia, para tratamento das manifestações extra-intestinais. A avaliação da actividade e gravidade da DC, bem como a resposta ao tratamento são avaliadas pelo PCDAI (Pediatric Crohn´s Disease Activity Índex)(98) e outros índices de avaliação da qualidade de vida. O PCDAI permite o cálculo de um score numérico entre 1 e 100, com base em vários parâmetros: bemestar geral da criança, grau de dor abdominal, número de dejecções, alterações no peso, crescimento linear, exame físico e alterações laboratoriais (hemograma, VS e albumina sérica). Um score de 0 a 10 indica doença inactiva, 10 a 30, doença ligeira a moderada e superior a 30, doença com actividade severa. Não existe nenhum índice semelhante para a CU. Um questionário com 35 perguntas, validado para a idade pediátrica (questionário IMPACT 35)(99), permite avaliar a qualidade de vida em crianças com mais de 10 anos com DC e CU. O tratamento farmacológico é a base essencial de suporte destes doentes, mas a terapêutica nutricional, a psicoterapia e a cirurgia também têm um papel importante, como veremos a seguir. infantil. Por isso, as estratégias são baseadas na experiência do tratamento de adultos, variando apenas as doses dos fármacos e alguns aspectos específicos da idade pediátrica, nomeadamente a particular atenção ao atraso de crescimento e desmineralização óssea e a aspectos nutricionais. As drogas usadas são o 5-ASA ou a sulfasalazina, glucocorticóides e/ou budesonido, antibióticos (metronidazol), imunosupressores ou imunomoduladores como a azatioprina, 6-mercaptopurina, metotrexato, ciclosporina A e, mais recentemente, infliximab. O tratamento pode ser sistémico ou local, este último, no caso de doença confinada aos segmentos distais do cólon. Neste caso, o uso de supositórios, enemas ou espumas de 5-ASA ou corticóides pode ser suficiente para controlar a doença. As opções terapêuticas na Doença de Crohn e Colite Ulcerosa estão sumarizadas nos quadros 5 e 6, respectivamente.(90) O 5-ASA ou a sulfasalazina têm eficácia semelhante, mas o 5-ASA tem menos efeitos secundários, pelo que deve ser preferido. A dose para o 5-ASA é 50-60 mg/kg/dia, com um máximo de 4,5 g/dia e para a sulfasalazina, 25-30 mg/kg/dia. Têm eficácia provada no tratamento da CU ligeira a moderada, sendo a droga de primeira linha nesta situação. A sua eficácia na DC é controversa. É normalmente bem tolerada, sendo os efeitos secundários mais frequentes as cefaleias e rash cutâneo. Raramente, pode induzir reacções de hipersensibilidade com hepatite, pancreatite, colite e, nos homens, diminuição do número de espermatozóides. Os corticosteróides são o grupo farmacológico usado na DII quando o 5-ASA não é suficiente ou apropriado, quando há envolvimento do tracto digestivo superior (esófago, estômago, duodeno, jejuno) e/ou manifestações extra intestinais. Dado que nas crianças, a DII tem uma gravidade relativa maior, o uso de corticosteróides é muito frequente e o número de doentes cortico-depen- Tratamento farmacológico O tratamento da DII pediátrica tem, basicamente, as mesmas indicações e procedimentos que o dos adultos. Existem poucos estudos controlados a provar a eficácia ou a comparar diferentes tratamentos na DII 59 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 12 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES dentes, no decurso da doença é muito significativo. Além de todos os efeitos secundários que se verificam nos adultos, o impacto no crescimento e maturação óssea fazem com que o uso destes fármacos deva ser reduzido ao mínimo possível, em dose e duração. Os glucocorticóides, sobretudo a prednisolona, são os mais usados, na dose de 1mg/kg/dia. O budesonido é um esteróide de acção tópica, que é metabolizado em cerca de 90% na primeira passagem através do fígado, tendo, por isso, um perfil de efeitos secundários muito inferior ao dos glucocorticóides. Está indicado na DC moderada, com localização no íleo e cólon ascendente, na dose de 9 mg/dia, com redução posterior. Estudos comparativos entre o budesonido e prednisolona na DC, mostram eficácia semelhante para os dois fármacos, sendo os efeitos secundários significativamente menores no grupo tratado com budesonido.(67,68) Sempre que possível, na DC, este deve ser preferido na indução da remissão. perspectiva de evitar os corticosteróides.(69) Isto é válido sobretudo para a DC, mas o princípio é válido também para a CU. Markowitz J, autor americano com experiência e vários trabalhos publicados sobre tratamento de DII pediátrica, recomenda o uso de imunosupressores (azatioprina ou 6-MP) no tratamento inicial de DC moderada a grave, com base num estudo efectuado pelo seu grupo, com 55 crianças. Neste trabalho, concluíram que a adição de 6-MP a um regime de corticoterapia diminui significativamente a necessidade de corticosteróides e melhora a manutenção da remissão.(73) Também um trabalho italiano sobre o uso da azatioprina na DII pediátrica mostra que em 123 doentes tratados com este fármaco, ele foi eficaz em 70%, ineficaz em 20% e com toxicidade severa em 7%. Este grupo conseguiu parar ou reduzir marcadamente as doses da corticoterapia em 62% dos doentes.(72) A azatioprina e a 6-MP têm início de acção lento, de cerca de 2-4 meses, pelo que não podem ser usados isoladamente em situações graves. Nestes casos, associam-se, inicialmente, aos corticosteróides e/ou à ciclosporina.(70) A dose recomendada para a azatioprina é de 2,5 mg/kg/dia e para a 6-MP, de 1,5 mg/kg. Há alguns autores que recomendam doses mais elevadas (3 mg/kg/dia de azatioprina). Um trabalho de Fuentes D, de Londres, mostra que em 107 crianças tratadas com essa dose, o tratamento foi seguro e bem tolerado e que a prevalência de cirurgia e de atraso de crescimento nos doentes com DII mais severa, parece ser menor que o previsto.(71) Os efeitos secundários da azatioprina incluem reacção idiossincrásica, de tipo alérgico (pancreatite), febre e mialgias e um efeito dose-dependente que provoca mielossupressão, infecções e alteração das transaminases. Devido à relativa frequência e à gravidade dos efeitos secundários, estes doentes necessitam de monitorização clínica e analítica frequentes, sobretudo nas fases iniciais de tratamento. Os corticosteróides não devem ser usados com terapêutica de manutenção, a longo prazo. Os antibióticos não têm eficácia demonstrada em estudos controlados na DII pediátrica, mas são usados habitualmente na prática clínica. Devem ser utilizados para tratamento de complicações como abcessos abdominais ou perianais, sobretudo o metronidazol. Os imunosupressores devem ser usados, nas crianças, em fases precoces da doença (moderada a severa), para evitar o recurso a doses elevadas ou por períodos prolongados, dos corticosteróides. Os análogos da purina (Azatioprina e 6-mercaptopurina) são os mais usados, sendo as indicações principais o atraso de crescimento, DC fistulizante e perianal e nos doentes corticodependentes com DC ou CU. A tendência actual é o uso cada vez mais precoce, por vezes mesmo na abordagem inicial, como tratamento de primeira linha, na 60 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 13 Raquel Gonçalves A ciclosporina não é eficaz no tratamento a longo prazo na DII refractária, nomeadamente na CU grave e refractária, colite crónica activa e DC fistulizante. A sua utilidade na DII pediátrica, tal como nos adultos, é o tratamento nas situações de CU grave ou fulminante, como terapêutica inicial, em conjunto com os corticosteróides e azatioprina, enquanto esta não está com a sua actividade plena, fazendo assim, a ponte de transição para o tratamento de manutenção com a azatioprina. Esta abordagem pode evitar a colectomia urgente.(74) tratamento.(80) Todos os doentes responderam ao tratamento e 50% atingiram remissão clínica. Estudos posteriores mostraram que doentes pediátricos com doença recente (< 1-2 anos) respondem melhor ao tratamento com infliximab, a longo prazo (> 18 semanas) que os doentes com doença de longa duração.(81,82) Vários trabalhos têm sido publicados com resultados globalmente positivos, no tratamento da DC refractária ou fistulizante, com uma ou múltiplas infusões. A taxa de efeitos secundários ou reacções infusionais é baixa e sem gravidade relevante. No entanto, são necessários estudos a longo prazo para determinar a eficácia e segurança e também, para determinar qual a modalidade ideal para tratamentos de manutenção.(83,84) O metotrexato não tem sido muito usado na DII infantil, mas existe vasta experiência do seu uso, a longo prazo, na artrite reumatóide juvenil. Num pequeno estudo efectuado em crianças com DC resistente à 6-MP, a taxa de resposta ao tratamento foi de 50%.(75) Não se conhece a eficácia a longo prazo. A dose nas crianças é de 15 mg/m2/semana, inicialmente, com aumento gradual até 25 mg/m2/semana, se bem tolerado. Os efeitos secundários incluem mielossupressão, mucosite (úlceras orais), infecções, pneumonite e hepatite. Relativamente à CU, a experiência é limitada, mas pode ter alguma utilidade na doença activa, segundo alguns autores.(85,86) Não há , actualmente, base credível para se poder recomendar o uso de infliximab na CU pediátrica, devido à escassa experiência com um número muito reduzido de estudos publicados.(87) O infliximab é um anticorpo monoclonal, anti-TNFa, cuja acção se baseia na neutralização da citoquina pró-inflamatória TNFa, com consequente redução da inflamação. Vários estudos demonstraram a sua utilidade na DC dos adultos, sobretudo na DC fistulizante e/ou refractária ao tratamento convencional (corticosteróides e imunosupressores).(76,77) A experiência no grupo pediátrico é actualmente muito extensa, com vários estudos publicados a demonstrar excelentes resultados no tratamento de crianças com DC refractária.(78,79) Os efeitos secundários e complicações mais frequentemente associados ao infliximab são: reacção de hipersensibilidade durante a infusão EV, desenvolvimento de infecções bacterianas graves (nomeadamente, tuberculose) e desenvolvimento potencial de doenças malignas (linfoma), no uso crónico.(76) Uma revisão retrospectiva de tratamento de crianças com infliximab mostra uma taxa de reacções infusionais comparável à dos adultos (5-9% vs 4-15%)(79), embora um outro estudo mostre maior incidência desse tipo de reacções, nas crianças (39 vs 17-25%).(88) O primeiro estudo multicêntrico investigou o tratamento com uma infusão única de infliximab com 3 doses diferentes (1, 5 e 10 mg/kg) e mediu a eficácia com o PCDAI e vários parâmetros laboratoriais, antes e após O tratamento farmacológico da DC e CU está sumarizado nos quadros 5 e 6.(89) 61 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 14 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES QUADRO V - TRATAMENTO FARMACOLÓGICO DA DOENÇA DE CROHN(89) DOSE INDICAÇÃO COMENTÁRIOS 1mg/kg/dia (40mg, máximo) Desmame gradual Dça moderada/grave Início acção rápido baixa tolerância em crianças Muitos ef secundários longo prazo Budesonido 9mg/dia DC ileocecal Infliximab 5mg/kg às 0, 2 a 6 semanas Doença refractária, corticode- Podem ocorrer reacções infusionais pendente, doença fistulizante Não requer administração diária TRATAMENTO Indução de remissão Prednisolona Manutenção da remissão 6-mercaptopurina 1-1,5 mg/kg/dia Azatioprina 2-3 mg/kg/dia Metotrexato Aminosalicilados 5-ASA Infliximab Ideal em d. intolerantes prednisolona e com doença localizada ileocecal Doença moderada a severa Início de acção lento (3-4 meses) Bem tolerada; ef sec. mielossupressores pancreatite, hepatite 12-25 mg/m2 ou oral/semana Doença moderada a severa Efeitos sec. dos mielossupressores, úlceras orais, hepatite 50-100 mg/kg/dia Doença ligeira a moderada Eficácia mínima, r.g. bem tolerado Muitos comprimidos/dia Periodicidade: 4-8 semanas ou “on demand” Doença refractária, corticode- Reacções infusionais pendente, doença fistulizante Não requer administração diária QUADRO VI - TRATAMENTO FARMACOLÓGICO DA DOENÇA ULCEROSA(89) TRATAMENTO Indução de remissão Prednisolona DOSE INDICAÇÃO COMENTÁRIOS 1mg/kg/dia (40mg, máximo) Desmame gradual Dça moderada/grave Início acção rápido baixa tolerância em crianças Muitos ef secundários longo prazo Doença ligeira a moderada Eficácia mínima, r.g. bem tolerado Muitos comprimidos/dia Aminosalicilados 5-ASA 50-100mg/kg/dia Ciclosporina EV 100-200mg/kg/dia Doença severa e refractária Início de acção rápido, tx de salvamento hepatotóxica, nefrotóxica risco infecções oportunistas 6-mercaptopurina Azatioprina 1-1,5 mg/kg/dia 2-3 mg/kg/dia Doença moderada a severa Metotrexato 15-25 mg/m2 ou oral/semana Doença moderada a severa Aminosalicilados 5-ASA 50-100 mg/kg/dia Doença ligeira a moderada Ciclosporina 4-10 mg/kg/dia Manutenção da remissão Início de acção lento (3-4 meses). Bem tolerada; ef sec. mielossupressores, pancreatite, hepatite Efeitos sec. dos mielossupressores, úlceras orais, hepatite Eficácia mínima, r.g. bem tolerado Muitos comprimidos/dia Tipicamente usada após ciclosporina EV, Doença severa e refractária hepatotóxica, nefrotóxica, risco infecções oportunistas 62 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 15 Raquel Gonçalves ram bem o incómodo de uma SNG, diariamente, por períodos prolongados. Nos EUA é uma prática pouco implementada, havendo uma maior aderência na Europa, particularmente no Reino Unido.(91) Relativamente à eficácia da NE versus corticoterapia, vários estudos foram efectuados. O primeiro foi publicado em 1984 e conclui que a NE é tão eficaz como a corticoterapia na indução de remissão da DC grave.(92) Vários estudos se seguiram, com resultados semelhantes.(93,94) Os defensores da terapêutica nutricional primária defendem que além da eficácia sobre o processo inflamatório, com consequente controlo da doença, esta abordagem tem a virtude de, simultaneamente, corrigir a malnutrição e evitar atraso de crescimento, bem como evitar os efeitos secundários das drogas habitualmente usadas, principalmente os corticosteróides. A NE seria, nesta perspectiva, uma abordagem “ideal” para a DC pediátrica aguda. No entanto, estudos de meta-análise mostram maior eficácia dos corticosteróides relativamente à NE, nesta situação.(95) Permanece, actualmente, o debate sobre qual o lugar apropriado da terapêutica nutricional no tratamento da DC e esperam-se trabalhos com grande número de doentes, que possam responder às questões que subsistem: como actua a NE, quando deve ser usada, se há diferença entre as várias fórmulas (elementar e não elementar), se tem algum papel no tratamento de manutenção, entre outras. Relativamente ao uso da NE como terapêutica suplementar, é universalmente aceite que tem vantagem na manutenção ou melhoria do estado nutricional e que pode impedir o atraso de crescimento, sobretudo na DC. Pontualmente, é necessário proceder à reposição de nutrientes ou elementos em falta, nomeadamente ferro (oral ou EV), vitamina B12, ác. Fólico e zinco. Tratamento Nutricional A terapêutica nutricional na DII tem 3 vertentes fundamentais: 1. Terapêutica primária, para induzir remissão da inflamação intestinal, na DC com atingimento do delgado 2. Terapêutica suplementar, para prevenir ou melhorar o emagrecimento e promover um crescimento adequado. 3. Tratamento de substituição de micronutrientes A terapêutica nutricional pode ser administrada por via entérica ou parentérica. A nutrição entérica (NE) é definida como uma dieta líquida, com fórmula específica, que pode ser administrada por via oral, por sonda nasogástrica (SNG) ou por gastrostomia. Pode ser usada como terapêutica primária ou suplementar, em casos de desnutrição grave, em que a criança não é capaz de ingerir a quantidade necessária de calorias e nutrientes. Pode ter fórmula elementar (aminoácidos livres), oligomérica (proteínas hidrolisadas) ou polimérica (proteínas inteiras).(90) Sempre que possível, se for bem tolerada, é preferível a NE relativamente à nutrição parentérica total (NPT), por várias razões:(90) - Eficácia semelhante NE/NPT em termos de fornecimento de calorias e nutrientes - NE é menos invasiva - Evitar complicações associadas ao cateter venoso central, como infecção e hemorragia - NE tem melhor relação custo/benefício, diminui o tempo de internamento e tem menor iatrogenia. O papel da NE como terapêutica primária, ou seja, como indutor de remissão, por diminuir a inflamação intestinal, é controverso. O seu uso não se generalizou, sobretudo pela não aderência dos gastrenterologistas de adultos e dos próprios doentes, que não tole- Tratamento Cirúrgico A decisão cirúrgica tem de ser cuidadosamente ponderada, tendo em conta aspectos relacionados com a qualidade de vida, o 63 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 16 DOENÇA INFLAMATÓRIA INTESTINAL EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES crescimento e a longevidade provável destes doentes. Para se poder decidir sobre o timing e o tipo de cirurgia, é fundamental um conhecimento profundo da doença, das complicações e do prognóstico a longo prazo. É fundamental também que haja certeza relativamente ao diagnóstico de DII e ao diagnóstico diferencial DC / CU, uma vez que a abordagem cirúrgica é diferente. As indicações cirúrgicas na DC incluem doença refractária ao tratamento médico, atraso de crescimento e complicações. Estas podem ser de tipo obstrutivo, perfuração, abcesso, fístula ou hemorragia. Nas situações de doença mal controlada com um tratamento médico optimizado, em que há efeitos secundários importantes da medicação, qualidade de vida muito afectada e repercussão a nível do normal desenvolvimento da criança, a perspectiva de cirurgia deve ser seriamente equacionada, em tempo útil. Uma vez que a doença não tem cura conhecida, as ressecções devem ser limitadas, retirando apenas os segmentos mais afectados (estenoses e fístulas), tentando preservar ao máximo o intestino saudável. Sempre que possível, em casos de estenoses curtas e múltiplas, a estricturoplastia é uma opção sensata. Na DC do cólon, pode ser efectuada ressecção segmentar ou colectomia total com ileostomia. A recorrência de doença após cirurgia é elevada, da ordem dos 17% no fim de 1 ano, 38% aos 3 anos, e 60% aos 5 anos, segundo uma série pediátrica.(100) Na CU, a cirurgia é menos frequente e está indicada nas situações de refractariedade ao tratamento médico (incluindo os casos de atraso de crescimento, má qualidade de vida e efeitos secundários importantes da medicação), nas situações de displasia diagnosticadas em colonoscopia com biopsias e nas complicações. Estas incluem: hemorragia, perfuração, colite fulminante e megacólon tóxico. A cirurgia urgente por complicações é mais frequente na população pediátrica que nos adultos e, habitualmente consiste em proctocolectomia com ileostomia e posterior reconstrução com anastomose ileoanal. A ressecção de todo o cólon é curativa para a CU. A cirurgia de eleição é a proctocolectomia com reconstrução ileoanal através de anastomose ileoanal directa ou criação de uma bolsa em J.(101) A criação deste reservatório permite diminuir o número de dejecções diárias, após cirurgia. Para preservar a função do esfíncter e evitar lesão dos nervos responsáveis pela função sexual, a opção de preservar os últimos 4-5 cm de camada muscular do recto, com remoção apenas da mucosa, é frequentemente utilizada. Os resultados funcionais são bons a longo prazo, quando efectuada por cirurgiões experientes, com continência fecal em 90-98% dos doentes e 4-6 dejecções/dia após o primeiro ano.(102) Tratamento do Atraso de Crescimento e da Maturação Sexual O tratamento óptimo do atraso na maturação sexual em adolescentes com DII envolve redução na inflamação intestinal e suplementos calóricos para corrigir a subnutrição. Sabe-se que os corticosteróides causam efeito adverso sobre o crescimento, mas não se sabe se as doses usadas no tratamento da DII também influenciam o atraso pubertal. O esforço para manter o doente em remissão clínica durante os períodos de crescimento rápido, é fundamental. Neste sentido, está indicado o recurso aos imunomoduladores e tratamentos biológicos, quando apropriado. A falência destes, com persistência do atraso de crescimento e/ou maturação sexual são indicação relativa para tratamento cirúrgico. O tratamento com esteróides sexuais com a testosterona, tem sido efectuado noutras doenças crónicas como a fibrose cística e artrite reumatóide, para induzir a puberdade, mas não existem estudos controlados na DII. Parece existir uma resistência à testosterona induzida pelas citoquinas inflamatórias, que pode ser contornada pela administração exógena de testosterona. Há alguns relatos sobre o uso da testosterona em rapazes com DC, na dose de 100-125 mg/mês, durante 3 a 6 meses, 64 Cap03DoencasInflam.qxp 21-11-2005 15:59 Page 17 Raquel Gonçalves em que se verificou indução de virilização, aceleração do crescimento e melhoria do estado psicológico.(96) Para o sexo feminino, o tratamento pode ser feito com etinilestradiol, na dose de 2 µg/dia, no mesmo período de tempo. várias vertentes: médico assistente de medicina geral e familiar, gastrenterologista, apoio de enfermagem em determinadas situações, psicólogo, psiquiatra, assistente social e professores. Além deste apoio profissional, os próprios doentes e famílias têm vindo a agrupar-se em associações que promovem encontros, grupos de suporte, campos de férias (nos EUA) e “chats online”, para adolescentes, com o intuito de desdramatizar e ajudar a criança a aceitar e a lidar de forma saudável com a sua doença. ASPECTOS PSICOLÓGICOS A DII é uma doença crónica, que interfere na qualidade de vida das crianças afectadas, bem como dos pais e irmãos, necessitando, por vezes, de apoio psicológico especializado. PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS FUTURAS Apesar dos avanços registados no tratamento da DII, a terapêutica ideal (eficaz na fase aguda, que impeça recorrências, previna complicações e tenha toxicidade mínima) ainda não foi descoberta. As pesquisas vão no sentido de diminuir a resposta inflamatória, através da diminuição dos níveis de antigénios luminais (probióticos e pré-bióticos)(103) ou do bloqueio selectivo da resposta imune na mucosa intestinal. Este último objectivo poderá ser atingido através de agentes que interferem a vários níveis da resposta imunológica, nomeadamente a produção de citoquinas, moléculas de adesão e modulação da arquitectura tecidular.(89) Seguindo o modelo da esclerose múltipla, a ablacção de medula óssea e o transplante de stem-cells na DC severa, está em investigação, esperando-se a análise dos resultados.(89) O desafio para o futuro é o desenvolvimento de drogas eficazes e seguras, dirigidas para alvos específicos e que possam, no final, alterar a história natural da doença. O facto de se tratar de uma doença crónica, que obriga a consultas médicas frequentes, idas ao hospital, toma de medicamentos, alteração da autoimagem devido a efeito secundário de drogas (corticosteróides) e cirurgias, o uso de SNG para alimentação, entre outros factores, levam a que a criança se sinta diferente e inferiorizada. O atraso de crescimento e de maturação sexual agravam esse sentimento. Os reflexos desse mal-estar manifestam-se em conflitos consigo próprio e com os outros. Esses conflitos podem culminar em depressão ou deterioração das relações com os pais, irmãos, professores e colegas. Está demonstrado que crianças com DII têm maior prevalência de doenças psíquicas, sobretudo depressão, quando comparadas com crianças saudáveis e, mesmo, com outras doenças crónicas (ex. diabetes).(97) O comportamento é muitas vezes de isolamento e o absentismo escolar é uma constante. Para combater de modo eficaz este conjunto de alterações, é necessária mais uma vez, uma abordagem glo-bal, multidisciplinar, com BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. Sandler RE, Elsen GM. Epidemiology of Inflammatory Bowel Disease. In: Kirsner JB, ed. Inflammatory Bowel Disease (5 th edition). Philadelfia;Saunders;2000: 89-112. Sashidar H, integlia MJ, Grand RJ. Clinical manifestations of paediatric Inflammatory Bowel Disease ( 5 th edition) Philadelfia;Saunders;2000: 326-334. Podolsky DK. 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HEPATIE VÍRICA NO PERÍODO NEO E PERINATAL A criança, desde o nascimento até ao final da adolescência, pode ser atingida por infecções víricas diversas e nomeadamente algumas que lhe podem provocar hepatites agudas. No caso de alguns vírus a infecção pode, por sua vez, como adiante veremos, evoluir para formas crónicas de doença hepática, hepatite crónica ou cirrose hepática (ou para o estado de portador assintomático do vírus). Com a persistência no tempo do contacto entre o genoma vírico e o hepatócito, pode ocorrer a integração do vírus no genoma da célula hepática, criando assim condições para o desenvolvimento neoplásico (hepatocarcinoma). A maior parte das crianças que desenvolvem hepatite aguda curam a doença, sem sequelas. É uma regra, para a maior parte das doenças hepáticas por vírus na criança, o serem assintomaticas ou acompanhadas de sintomas pouco intensos e apenas um reduzido número de doentes evoluem de forma rápida para doença fulminante, obrigando a tratamentos intensivos e por vezes ao recurso urgente à transplantação do fígado. Neste período da vida ocorrem situações de colestase que podem ser causadas por processos patológicos das vias biliares extrahepáticas (dos quais o mais frequente e mais grave é a Atrésia das Vias Biliares); ou podem ser consequência de um processo inflamatório intrahepático, habitualmente designado por Hepatite Neonatal. Esta hepatite Neonatal pode ter várias etiologias e pode ser provocada por infecções víricas diversas. O termo Hepatite Neonatal é usado para designar um grupo muito heterogénio de situações que provocam alterações morfológicas muito semelhantes no fígado das crianças com menos de três meses de vida. Nela se incluem, como referimos, todas as situações de colestase não extra-hepatica. Parece tratar-se de uma forma de reacção do órgão para vários estímulos, própria deste período do desenvolvimento. Na maior parte das crianças com hepatite neonatal não é possível fazer qualquer diagnóstico etiológico. Noutras, infecções várias e doenças metabólicas ou defeitos genéticos são responsáveis pelo quadro. As infecções víricas do fígado têm uma maior incidência neste grupo etário nas crianças do sexo masculino, ao contrário do que se verifica com a atrésia das vias biliares. A hepatite neonatal caracteriza-se histologicamente pela perda da arquitectura lobular, com preservação do espaço porta e da região centrolobular; verifica-se balonização Tendo em conta que existem algumas diferenças de comportamento das crianças em face da infecção, segundo o grupo etário, vamos começar por analizar o que se passa quando a infecção é adquirida no período perinatal, e depois debruçar-nos-emos mais aprofundadamente sobre as crianças e adolescentes em geral. 71 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 2 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA dos hepatócitos, fusão das membranas celulares entre si, provocando a fusão de diversas células dando origem ao aparecimento de células gigantes polinucleadas – consideradas como inespecíficas, uma vez que constituem uma forma de reacção dos hepatócitos jovens a vários tipos de agressores. A estas alterações associa-se grau variável de infiltrado inflamatório, colestase e fenómenos de hematopoiese extramedular. A presença de inclusões citoplasmáticas ou nucleares, a esteatose ou depósitos de material diverso podem orientar-nos para o diagnóstico etiológico.(1) efectuar, uma colongiorressonância ou um cintilograma com HIDA ou um dos seus derivados, que nos poderão confirmar o diagnóstico da atrésia. Se as dúvidas persistirem o doente deve ser submetido a colangiografia pré-operatória, em serviço de cirurgia pediátrica que esteja habilitado a proceder de imediato à intervenção cirúrgica de correcção, a porto-enterostomia de tipo Kasai. Quando a colangiografia permite excluir o diagnóstico da atrésia estamos então perante uma hepatite neonatal e o momento deve ser aproveitado para proceder à realização de uma biópsia hepática com colheita de material para histologia convencional e um fragmento a seco para congelação (para, se necessário, poder proceder-se posteriormente ao estudo enzimático).(2 e 3) Posta de parte esta entidade cuja importância justifica, a meu ver, esta referência mais extensa, vejamos agora quais as infecções víricas mais frequentes neste grupo etário que podem ser causas de hepatite. O recém-nascido pode ser infectado durante a gravidez, em especial durante o terceiro trimestre (CMV, vírus da rubéola e VHB), durante o parto (CMV, vírus herpes, VHB, VHC) ou depois do nascimento, pelo contacto com secreções ou através do aleitamento. A hepatite por vírus pode ocorrer como manifestação isolada, quando provocada por vírus especialmente hepatotropo, como é o caso dos vírus da hepatite A, B e C, ou pode aparecer integrada ou como uma das manifestações de uma doença vírica sistémica como se verifica com a infecção pelo CMV ou o vírus da Rubéola. Vejamos, de forma sucinta mas um pouco mais específica, cada um deles. DIAGNÓSTICO Perante um lactente com colestase é muito importante fazer o mais rapidamente possível o diagnóstico etiológico da situação, ou talvez melhor dizendo, é urgente excluir a atrésia das vias biliares, já que esta entidade necessita de tratamento cirúrgico o mais brevemente possível. Assim para o conseguirmos deveremos proceder a uma colheita cuidada da história clínica, que nos permitirá saber se existe ou não história familiar de doença transmissível, nomeadamente infecções pelos vírus hepatotropos e saber se o doente tem ou não fezes persistentemente acólicas. Se efectivamente a história é negativa, a colestase é progressiva e as fezes sistematicamente acólicas, a probabilidade de estarmos perante uma atrésia das vias biliares é elevada. Feito o estudo analítico de rotina que confirma a elevação das transaminases (ALT), Y-GT e fosfatase alcalina, se são negativos os marcadores serológicos para os vírus mais comuns (VHA, VHB, VHC, CMV, VEB), se não há alterações do ferro e da ferritina séricos, se a alfa-1antitripsina e a ceruloplasmina têm valores normais e se o estudo metabólico (cromatografia dos aminoácidos séricos e urinários, ácidos orgânicos e amónia sérica) é negativo, se a ecografia não esclarece o quadro, deixando dúvidas sobre a patência das vias biliares extra-hepáticas, devemos Infecção pelo CMV A infecção pelo CMV pode acontecer por via transplacentária, no momento do parto ou depois deste pelo contacto com secreções infectadas (saliva ou leite), em mãe geralmente sem sintomas e ainda pela transfusão de sangue ou derivados.(4) Só um reduzido número de recém nascidos infectados desen72 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 3 Fernando Pereira volve doença (5-10%), aparecendo com icterícia, hapatoesplenomegalia, e enzimas elevadas(5). São mais susceptíveis os recém nascidos de baixo peso e aqueles que apresentam malformações diversas (quadros sindromaticos). O diagnóstico é feito pela serologia para o CMV, (anticorpos IgM – CMV) ou pela cultura do vírus nas secreções faríngeas, saliva ou urina; também é possível a sua identificação no soro por PCR (reacção em cadeia pela polimerase). No caso de ter sido efectuada biópsia, uma vez que não é fundamental para o diagnóstico, ela mostra habitualmente transformação em células gigantes, inclusões intranucleares no epitélio dos canalículos biliares e inclusões intracitoplasmáticas nos hepatócitos, a par de colestase, inflamação, fibrose e grau variável de proliferação ductular(6, 7 e 8). O tratamento é feito com Ganciclovir e imunoglobulina específica para o CMV. Tem sido igualmente recomendado o uso do Foscarnet nos doentes resistentes ao Ganciclovir. Nas infecções graves que ocorrem especialmente em recém nascidos de baixo peso e com diversas malformações o prognóstico é mau. Por razões ainda não esclarecidas, alguns doentes, após a resolução do quadro de hepatomegalia, desenvolvem tardiamente hipertensão portal (fibrose perisinusoidal?) sem haver cirrose estabelecida. lesões cutâneas e mucosas e pela identificação do vírus nas mesmas, quer por flurescência directa quer pela detecção enzimática dos antigénios para o vírus herpes. A cultura de células e a PCR podem também ser utilizados. O estudo serológico não tem muito inte resse.(10) O exame histológico do fígado quando efectuado revela necrose focal ou generalizada com as características inclusões acidófilas intranucleares nos hepatócitos. O estudo imunocitoquímico com anticorpos monoclonais ou a cultura podem ser usados para a identificação do vírus quando há dúvidas de diagnóstico.(11) O tratamento é feito com Ganciclovir e deve ser instituído o mais rapidamente possível atendendo à elevada mortalidade da infecção. A transplantação pode vir a ser um tratamento de recurso. Vírus da Rubéola A infecção pelo vírus da rubéola neste grupo etário é cada vez menos freqüente como consequência da vacinação generalizada e do rastreio serológico das grávidas não vacinadas.(12) A transmissão pode ocorrer por via transplacentar ou após o nascimento, pelo contacto com secreções nasofaríngeas. O envolvimento do fígado é freqüente e associa-se a manifestações noutros órgãos, como o coração, pulmão, o sistema nervoso (surdez neurosensorial) globos oculares e lesões purpúricas da pele. Tem sido descrita maior incidência de atrésia das vias biliares nestes doentes. O diagnóstico é feito através da pesquisa serológica dos anticorpos IgM e IgG específicos, por PCR ou isolamento do vírus em culturas celulares. O tratamento é de suporte e a hepatite resolve geralmente bem e sem seqüelas. São mais graves as seqüelas resultantes das lesões neurológicas, nomeadamente as oculares e auditivas, que ocorrem mais freqüentemente quando a infecção se verifica no primeiro Vírus Herpes A infecção pelo vírus herpes tipo II ocorre geralmente por contacto durante o parto com lesões herpéticas vaginais assintomáticas existentes. A hepatite aparece integrada em quadro de doença sistémica, com lesões da pele e mucosas características, a que se associam a hepatoesplenomegalia e alterações da coagulação. A sintomatologia aparece pelo 4º-8º dia e nos casos mais graves pode ocorrer com convulsões devidas a encefalite e com hemorragia digestiva.(9) O diagnóstico é feito pelo aspecto das 73 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 4 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA Geral de Saúde (que recomendam o estudo serológico, rastreio de todas as grávidas e a utilização de imunoglobulina específica e vacinação dos recém nascidos após o parto), a doença poderá mesmo ser erradicada. trimestre da gravidez.(13) HEPATITE POR VÍRUS A É uma forma de hepatite raras vezes observada nos lactentes; não está demonstrada a transmissão vertical. Quando ocorre a doença é geralmente bem tolerada. O diagnóstico é feito pela determinação sérica dos anticorpos específicos da classe IgM. Nas enfermarias de lactentes a infecção assintomática pode disseminar-se e ser transmitida ao pessoal de saúde. Veremos detalhadamente esta infecção mais adiante quando analisarmos a situação das crianças de todos os grupos etários. HEPATITE POR VÍRUS C Está demonstrada a transmissão perinatal da infecção pelo vírus da Hepatite C, embora ela seja rara (não está comprovada a sua transmissão pelo leite materno). A coinfecção da mãe pelo virus da imunodeficiência humana (VIH) associa-se a maior risco de transmissão vertical da infecção pelo VHC. O diagnóstico é feito pela detecção dos anticorpos específicos (que, no entanto, durante os primeiros 6 meses de vida podem ser anticorpos transmitidos pela mãe, pelo que neste grupo etário são pouco úteis ao diagnóstico) e do ARN por PCR. Não está demonstrado que a utilização da imunoglobulina humana seja eficaz na prevenção da infecção. HEPATITE POR VÍRUS B Pode ocorrer nos lactentes, quando a mãe é portadora crónica do VHB ou tem infecção aguda no terceiro trimestre. A probabilidade é maior se a mãe é HBeAg positiva ou seja quando apresenta ADN do vírus em circulação. A criança pode ser infectada no momento do parto ou mesmo posteriormente. No caso da transmissão vertical o HBsAg pode ser detectado entre as 4 e as 16 semanas de vida e estas crianças tornam-se freqüentemente portadores assintomáticos do vírus dada a sua tolerância imunológica. A infecção tem, geralmente, um curso benigno, podendo todavia em alguns doentes evoluir para formas fulminantes muito graves. Posteriormente estas crianças infectadas e portadoras do vírus, podem desenvolver hepatite crónica, cirrose hepática ou hepatocarcinoma. Pode haver coinfecção com o vírus da hepatite D, embora no nosso país sejam raras as infecções por este vírus. O diagnóstico é feito pela determinação serológica dos antigénios e anticorpos específicos do vírus e quando necessário com recurso à determinação do ADN por PCR. Adiante veremos mais detalhadamente o diagnóstico desta infecção na criança. Trata-se de uma infecção que hoje já poucas vezes ocorre entre nós, e que, a serem cumpridas as determinações da Direcção HEPATITE G (VHG) Trata-se de uma forma de hepatite inicialmente identificada em doentes submetidos a transfusões de sangue, em que os outros virus conhecidos foram excluídos. É provocada na Europa e Estados Unidos por um vírus de ARN do grupo Flaviviridae, tendo já sido documentada a infecção de crianças transfundidas.(14,15) A transmissão materno-fetal também foi já diagnosticada. As crianças infectadas são geralmente assintomaticas e têm geralmente ALTs normais. Quando se verifica coinfecção na mãe pelo VIH ou pelo VHC o risco de transmissão é maior. Não existe ainda qualquer teste serológico para o diagnóstico deste vírus pelo que apenas a pesquisa do ADN por PCR permitirá a identificação.(16,17) VÍRUS DA HEPATITE TRANSMITIDA POR TRANSFUSÃO (Vírus TT) Não existem presentemente dados quanto à transmissão materno-fetal deste virus.(18) 74 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 5 Fernando Pereira e baixos (1,6% aos 5 anos e 3,9% aos 8 anos)(20 a 25), consoante se trate de regiões rurais ou urbanas. A diminuição foi mais significativa nas grandes áreas urbanas. A introdução da vacina no mercado em 1990 veio também contribuir de forma importante para a diminuição da prevalência da doença. A maior parte dos novos casos continua a verificar-se nas crianças em idade escolar, adolescentes e adultos jovens.(26 e 27) Hepatite por outros vírus Outros vírus podem ser causa de hepatite nas crianças no período perinatal, como os enterovirus (coxackie e echovirus), que provocam habitualmente hepatites raras de evolução geralmente benigna e autolimitada. O diagnóstico é feito pela identificação do vírus nas secreções da orofaringe ou nas fezes. O tratamento é de suporte. II. HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA EM GERAL Características do VHA O VHA é classificado no grupo dos hepatovirus e na família dos Picornaviridae. É relativamente resistente ao calor (resiste cerca de um mês no meio ambiente) e é totalmente inactivado pelo formol. Tem forma icosahédrica não capsulada e replica-se no citoplasma dos hepatócitos. O seu genoma é constituído por uma cadeia simples de ARN que codifica onze proteínas diferentes, umas estruturais (VP1,VP2 e VP3), e ainda proteases e uma polimerase. Há apenas um serótipo principal, embora outros três sejam conhecidos e possam provocar doença. Os vírus da hepatite A B, e C e menos frequentemente o vírus da epatite D, E e G, são os principais responsáveis pelas hepatites na criança. A sua incidência, prognóstico e terapêutica são diferentes pelo que passaremos a analisar individualmente cada um deles. HEPATITE PELO VÍRUS A (VHA) Epidemiologia A infecção por este vírus é muito frequente em todo o mundo estimando-se cerca de 1,5 milhões de novos casos/ano. A prevalência da infecção por este vírus, avaliada pela pesquisa dos anticorpos séricos, é muito variável de país para país, entre 15 e 100% da população, sendo maior nos países menos desenvolvidos da África e da Ásia e tendo uma prevalência intermédia nos países da América e Europa do centro e sul e a mais baixa nos Países do norte da Europa (19). É uma infecção cuja prevalência acompanha o nível de desenvolvimento dos países e que vai diminuindo progressivamente à medida que os países vão evoluindo do ponto de vista higiênico e de organização sanitária. Alguns estudos efectuados em Portugal entre 1981 e 2002 demonstraram que a melhoria das condições de vida da nossa população conduziu a uma significativa diminuição da prevalência desta infecção, passando de uma situação classificada como de alta endemia (93% abaixo dos 19 anos), para uma de valores médios (30% para o mesmo grupo etário) Patogénese A infecção pelo VHA ocorre pela ingestão de partículas víricas, que podem sofrer replicação em pleno tubo digestivo. O vírus passa depois para o fígado, órgão alvo por excelência. No pólo sinusoidal do hepatócito o vírus liga-se a um receptor da membrana, seguindo-se a sua passagem para o citoplasma, onde se replicam o ARN e as diferentes proteínas, que no pólo biliar se associam em novas partículas víricas completas e que são excretadas pela bile e eliminadas pelas fezes. Um curto período de viremia precede o aparecimento do vírus na bile e nas fezes. A concentração de partículas víricas nas fezes é maior nas 2 semanas que antecedem o aparecimento do quadro clínico, diminuindo depois progressivamente.(28) O período de incubação varia entre 15 e 40 dias. 75 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 6 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA A agressão ao fígado parece não resultar de efeito citopático directo mas sim com consequência da resposta imunológica à presença do vírus nas células do fígado. Logo que surgem sintomas começam a ser detectados no soro os anticorpos específicos (IgM e IgG anti - VHA). Quadro Clínico Em cerca de setenta por cento (70%) das crianças infectadas com menos de 6 anos, a infecção é assintomática e conduz a um estado de imunidade duradoura. Nas crianças mais velhas e nos adolescentes à semelhança do que acontece com os adultos, desenvolvese um quadro clínico de hepatite aguda em cerca de 75% dos infectados. Os hepatócitos infectados são agredidos pelo sistema imunitário, envolvendo células CD8 específicas, bem como diversas citoquinas como sejam, interferão gama, interleucina alfa, interleucina beta 1, interleucina 6 e factor de necrose tumoral. A melhoria da hepatite A associa-se a um aumento relativo das células CD4+ específicas do vírus.(29) A correlação inversa que se verifica entre a idade e a gravidade da doença pode estar relacionada com a imaturidade do sistema imunológico dos indivíduos jovens, conduzindo a uma resposta ligeira a moderada. Após a infecção (ingestão de partículas do vírus), há um período de incubação médio de 28 dias, que pode variar entre 15 e 50 dias(33), a que se segue o aparecimento abrupto do quadro clínico constituído por astenia, anorexia, náuseas por vezes associadas a vômitos, febre, dor abdominal, diarreia, icterícia e colúria. Este quadro normaliza ao fim de 2 a 4 semanas na maioria dos doentes. Em situações raras, o quadro de colestase pode arrastar-se por mais tempo (meses), com prurido intenso, o que pode levar à realização do estudo ecográfico abdominal para diagnóstico diferencial da colestase e ao recurso ao tratamento com corticoides. Estão igualmente descritas recidivas do quadro clínico (em cerca de 10%, nas grandes séries) semanas ou meses(34) após a melhoria inicial, geralmente com recuperação total.(35) Não estão descritas recidivas múltiplas. São raras as situações de evolução da hepatite A para formas fulminantes( 0,01 a 0,1% abaixo dos 40 anos), nas crianças acima dos 3 anos e adolescentes, especialmente quando portadores de doença hepática crónica(34) e sobretudo de hepatite C crónica.(36) Estas formas de hepatite fulminante recuperam sem necessidade de transplantação do fígado em 40-70 por cento dos doentes afectados.(37,38 e 39) Têm sido também descritos quadros de hepatite autoimune após a recuperação de episódios de hepatite A, que assim seria o desencadeante da lesão imunológica.(40,41 e 42) Não há referência na literatura a formas crónicas de hepatite por este vírus. Estão descritas manifestações extrahepáticas da doença, rash cutâneo e artralgias transitórias (14-19%), acrodermatite papular, vas- Transmissão O vírus da hepatite A é transmitido pela via fecal oral e excepcionalmente pela transfusão de sangue ou derivados. A água, os alimentos contaminados, as mãos mal lavadas, a promiscuidade e o contacto sexual anal, são as vias de transmissão das partículas víricas entre os humanos. As crianças são uma das principais fontes de infecção uma vez que têm menos cuidado com a sua higiene e também porque podem manter-se assintomaticas apesar de infectadas e excretar vírus através das fezes, o que pode ocorrer durante alguns meses após a infecção em algumas crianças.(30,31 e 32) São considerados grupos de risco para esta infecção, as crianças que vivem em más condições de higiene, crianças que vivem em zonas de alta endemicidade, vítimas de maustratos sexuais, adolescentes toxicodependentes, crianças que viajam para zonas endêmicas e crianças institucionalizadas. Os trabalhadores de creches, infantários ou serviços de saúde que têm contacto com crianças infectadas. 76 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 7 Fernando Pereira culite cutânea, crioglobulinemia e sindroma de Guillain-Barré.(43,44) A prevenção começa com a melhoria geral das condições de higiene e saúde ambiental, passa pela cuidada limpeza das mãos e manipulação dos alimentos e boa qualidade da água da rede de abastecimento público. Pode fazer-se imunização passiva imediatamente após a exposição com imunoglobulina humana, que deve ser aplicada por via intramuscular no deltóide ou na face anterolateral da coxa nas crianças pequenas e na dose de 0,02ml ou 0,05ml/Kg(32) conferindo protecção respectivamente para 3 e 6 meses. Quando administrada nas duas primeiras semanas após exposição é eficaz em 85% dos casos. Nas crianças e grávidas devem ser preferidas as formas sem timerosal. A gravidez ou amamentação não são contraindicações para o uso da imunoglobulina. A administração da imunoglobulina pode interferir com a imunogenicidade de vacinas por agentes atenuados como sejam as do sarampo, rubéola e parotidite, pelo que estas só devem ser aplicadas 3 a 6 meses após o uso da imunoglobulina. A imunoglobulina deve ser aplicada às crianças com menos de 2 anos que viajam para áreas endémicas, uma vez que a vacina existente no mercado não está recomendada para este grupo etário. A imunoglobulina deve ser utilizada nas instituições que albergam crianças, sempre que surge um caso de hepatite A, para imunização das outras crianças e dos trabalhadores, de forma a evitar a propagação da doença.(46) Diagnóstico O diagnóstico é feito pela identificação no soro dos anticorpos específicos da classe IgM (Anti-VHA IgM), pelos métodos de Elisa (teste imunoenzimatico) ou RIA (teste de radioimunoensaio), 5 a 10 dias após o início dos sintomas clínicos. Este anticorpo pode persistir até seis meses após o início da infecção. O anticorpo da série IgG aparece no soro cerca de duas semanas após o da série IgM, traduz imunidade para a infecção e persiste durante toda a vida.(45) O vírus pode também ser detectado nas fezes 2 a 7 semanas após a infecção. A bilirrubinas total e directa, as transaminases e a gamaglutamiltranspeptidase (Y-GT) estão elevadas durante 2 a 4 semanas, com valores habitualmente muito elevados e que não permitem qualquer diagnóstico específico. O diagnóstico diferencial é feito com as outras formas de hepatite aguda vírica da criança e com todas as formas de hepatite colestatica na criança que já anteriormente indicamos. Tratamento A hepatite aguda pelo vírus A não tem qualquer tratamento específico. Deve recomendar-se repouso de acordo com a necessidade manifestada pelo doente e não são aconselhadas medidas alimentares restritivas. Deve ser feita abstinência de fármacos ou bebidas com toxicidade hepática e devem ser ajustadas as doses dos medicamentos com metabolização no fígado e não dispensáveis. Podem necessitar de hospitalização as crianças desidratadas em consequência de vómitos intensos e prolongados e as que apresentem evolução para formas fulminantes. Existe, desde há alguns anos, uma vacina de vírus inactivados para a hepatite A, que permite fazer a imunização activa e que deve ser aplicada a todas as crianças com mais de dois anos, e, caso isso não seja economicamente possível, àquelas que constituem grupos de risco (e que em seguida indicamos) e aos contactos das crianças infectadas. A vacina é aplicada por via intramuscular no deltóide, em duas tomas separadas de 6 a 12 meses e na dose de 0,5ml dos dois aos dezoito anos e 1ml acima dos 18 anos. A vacina deve, preferencialmente, ser administrada antes da exposição e confere uma imunidade dura- Prevenção A hepatite A é hoje uma doença que pode ser evitada desde que sejam tomadas as adequadas medidas de prevenção para cada situação. 77 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 8 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA doura para mais de 20 anos. Deve também ser aplicada imediatamente após a exposição em crianças não imunizadas naturalmente. A vacina é muito eficaz, produzindo anticorpos protectores ao fim de um mês em 95 a 100% dos vacinados, mesmo nas crianças deficientes e portadoras de doenças hepáticas crónicas. Não é necessário efectuar qualquer teste pos-vacinal. Não é conhecido o título mínimo de anticorpos protectores. A capacidade imunogénica diminui com a idade. Nas crianças que necessitam de viajar para áreas endémicas deve ser feita simultaneamente a vacinação para o vírus da Hepatite B, já que são coincidentes do ponto de vista geográfico as áreas de elevada endemicidade dos dois vírus, podendo para esse efeito recorrer, nas crianças com mais de 10 anos, a uma vacina combinada existente no mercado (Twinrix 1ml IM) aplicada aos 0,1 e 6 meses ou de forma mais rápida aos 0, 7 e 21 dias e depois uma quarta dose aos 12 meses.(47) As vacinas são bem toleradas, podendo, no entanto, surgir dor ligeira no local da injecção (20%), cefaléias (10%) e ainda diarreia, fadiga e náuseas em menos de 10% dos vacinados.(48,49 e 50) ca, cirrose e hepatocarcinoma) resultante da infecção aguda pelo virus B. Podemos dizer que diminuiu na última década, de forma progressiva, o número de doentes com hepatite B aguda e crónica observados no nosso hospital. As estatísticas da Direcção Geral de Saúde, baseadas no registo das doenças de declaração obrigatória, apontam para uma diminuição dos casos de Hepatite B aguda, tendo sido referidos apenas 12 casos abaixo dos 14 anos, em 2003. Biologia do vírus O virus da Hepatite B (VHB) é um hepadnavirus ou seja um vírus de ADN hepatotrópico. No soro dos indivíduos infectados é possível identificar por imunoelectromicroscopia, três tipos de partículas viricas, uma filamentar, uma esférica pequena e uma esférica maior. Esta última é designada partícula de Dane, nome do seu descobridor, e é a única que representa o vírus completo, com a sua dupla cadeia de ADN no interior, envolvida pela nucleocapside proteica, responsável pela presença no soro do antigénio HBe (HBeAg) e pela detecção no tecido hepático do antigénio HBc (HBcAg), tudo isto revestido por uma estrutura lipoproteica que contem três proteinas de tamanho diferente que determinam a presença no soro do antigénio de superfície ou antigénio HBs (HBsAg), que permitiu a descoberta do vírus. As particulas filamentosa e esférica pequena, também designadas por subvíricas, são constituídas apenas por revestimento lipoproteico, são altamente imunogénicas, estimulando a produção e fixando os anticorpos neutralizantes antiHBs, protegendo o vírus intacto da agressão imunológica.(51 e 52) O genoma do VHB é constituido por uma dupla cadeia de ADN não simétrica com quatro genes diferentes, o gene S para o antigénio de superfície, o gene P para a polimerase do ADN, o gene C para as proteinas do core(HBeAg e HBcAg) e o gene X, cuja função não é muito bem conhecida mas que parece estar envolvido na transcrição reversa HEPATITE PELO VÍRUS B A hepatite B tem vindo a diminuir a sua incidência nas crianças desde que o rastreio da infecção nas grávidas se tem vindo a fazer de forma quase sistemática e é acompanhado da utilização da imunoglobulina específica e da vacina para impedir a transmissão vertical quando as grávidas são portadoras do vírus. A introdução do estudo sistemático dos dadores de sangue, no sentido da exclusão das colheitas positivas, contribuiu de forma decisiva para a diminuição geral desta infecção na população, incluindo as crianças. A vacinação sistemática das crianças e dos principais grupos de risco poderá, dentro de alguns anos, reduzir acentuadamente o número de novos casos de infecção pelo VHB e, dessa forma, o número de doentes com evolução para doença hepática crónica (hepatite cróni78 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 9 Fernando Pereira durante o processo de replicação intracelular do vírus. O gene S é responsável pela produção das três proteinas de superfície e é constituido por três epitopos, pré-S1, pré-S2 e S. Estão identificados quatro serotipos do vírus B, adw, adr, ayw e ayr, que têm diferente distribuição geográfica e permitem identificar a proveniência do vírus infectante em cada doente. O determinante a, presente em todos estes serotipos, é o alvo dos anticorpos neutralizantes. Estão descritos sete genotipos diferentes, designados pelas letras de A a G e que podem ser identificados por reacção de polimerisação em cadeia (PCR). O genótipo D é o mais frequente nos países mediterrânicos.(53) Têm sido identificadas diversas mutações no genoma do VHB, sendo mais frequentes as que envolvem a região pré-core ou pré-C e que resultam na ausência no soro do HBeAg, mesmo na presença de infecção vírica activa e replicação viral. São os casos habitualmente designados por VHBe-menos. Estes doentes têm, por regra, valores elevados de ADNVHB e a doença hepática pode ser grave e respondem pior ao tratamento com interferão. Alguns casos de doença fulminante têm sido associados a esta mutação.(54 e 55) Outra mutação também identificada situa-se na região S e pré-S, e aparece em individudos infectados após vacinação ou que receberam anticorpos monoclonais para o VHB após transplantação do fígado. Esta mutação causa uma infecção em que o HBsAg não é detectado no soro mas estão presentes o HBeAg o ADNVHB em contraste com o padrão serológico mais habitual.(56 a 60) deficitária unindo-se as duas e formando o cccADN (covalent circular closed ADN). É com base neste ADN depois do seu transporte para o núcleo da célula, que são produzidos os diferentes ARNm que, uma vez libertados agora para o citoplasma, vão levar à produção das diferentes estruturas proteicas do vírus, ou seja aos produtos dos genes P,S C e X. O ARN pré-genómico não capsulado é libertado para o citoplasma juntamente com a polimerase e por transcrição inversa dá origem a novas cadeias de ADN vírico, seguindo-se a sua degradação. Reconstitui-se então o conjunto ADN+core que se aproxima da membrana celular onde é envolvido pelas proteinas de superfície, entretanto sintetizadas e aderentes à face interna da membrana, constituindo-se assim o vírus completo que é lançado para o exterior da célula por um processo de transporte vesicular. Algumas partículas, uma vez formadas, não são “excretadas”, mas, pelo contrário, iniciam um novo processo replicativo, perpetuando a presença do vírus.(61 e 62) O vírus só se replica no fígado, embora possa ser identificado noutros órgãos. Este mecanismo de multiplicação vírica não é citopático para as células do fígado. Imunopatogénese Como já referimos o vírus não é citopático e por isso é a variabilidade da reacção imunológica do hospedeiro para com os hepatócitos infectados que condiciona a maior ou menor intensidade da resposta clínica e a evolução da infecção. A resposta do hospedeiro à infecção pelo VHB e a probabilidade de desenvolver um quadro de hepatite crónica dependem essencialmente da idade em que ocorre a infecção e da imunocompetência do hospedeiro. Noventa por cento (90%) das crianças que adquirem a infecção na altura do nascimento, quando as mães são HBeAg positivas, ficam cronicamente infectadas, contra apenas 5% quando a infecção é adquirida na adolescência ou na idade adulta.(63) As crianças que se infectam no período Ciclo do vírus Após a infecção, o vírus liga-se à membrana dos hepatócitos, utilizando as suas proteinas de superfície e um receptor de membrana que não está ainda claramente identificado.(52) Em seguida a nucleocapside e o ADN são libertados para o citoplasma onde se separam e completa a cadeia de ADN 79 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 10 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA perinatal têm, como vimos, elevada probabilidade de evoluir para doença crónica, com elevados teores de ADN-VHB circulante mas com baixa actividade da sua doença hepática, pela fraca resposta imunológica que desenvolvem. Pode dizer-se que, em regra, o desenvolvimento de um quadro de doença crónica resulta da falência da resposta imunológica do hospedeiro.(64) A replicação do vírus leva a que as suas proteínas (antigénios virais) sejam apresentados na superfície da célula, onde provocam a activação dos linfócitos T citotóxicos numa reacção em que participam diversas citoquinas que, por sua vez, provocam a necrose dos hepatócitos.(65 e 66) imunoglobulina específica e da vacina pode evitar em 90% dos casos esta transmissão. Embora o vírus tenha sido detectado no leite materno este não parece ser responsável pela transmissão da infecção.(74) A mordedura humana pode também ser responsável pela transmissão. Diagnóstico A infecção pelo VHB tem um período de incubação de 4 a 6 semanas, após o que surge o quadro clínico mais ou menos exuberante e semelhante ao das hepatites agudas pelos outros vírus: náuseas, anorexia, mal-estar no hipocôndrio direito e, sobretudo, icterícia. Pode haver manifestações extra-hepáticas como artralgias, nefropatias ou vasculites, que são mais frequentes nos adolescentes e adultos.(75 e 76) Analiticamente, estão elevadas as transaminases e de forma mais moderada a YGT. Nessa altura o HBsAg está já presente no soro e logo de seguida surge o anti-HBc IgM e o HBeAg a traduzir a replicação viral. O diagnóstico da hepatite aguda pelo VHB assenta na presença no soro do antigénio HBs e do anticorpo HBc da classe IgM. Quando a evolução é favorável poucas semanas depois deixa de estar presente o HBeAg sendo detectável o respectivo anticorpo (anti-HBe). Depois desaparece o HBsAg e é substituido pelo anti-HBs e cerca de 4 meses depois apenas este último anticorpo está presente no soro, representando a resolução do quadro agudo e a aquisição de imunidade definitiva. O anti-HBc IgM foi nesta altura já substituido pelo mesmo anticorpo da classe IgG. A icterícia desaparece ao fim de 4 semanas e as transaminases podem persistir elevadas durante 6 a 8 semanas. Deve ficar claro que esta é a descrição do quadro clássico, já que muitos doentes infectados, e muito especialmente as crianças mais pequenas, desenvolvem um quadro clínico muito mais fruste e silencioso, muitas vezes sem icterícia clínica, e resolvem o processo ou evoluem para formas crónicas da doença. A infecção crónica pelo VHB define-se como a persistência do HBsAg no soro para Epidemiologia A infecção pelo VHB ocorre em todo o mundo com variações geográficas acentuadas. Estima-se em cerca de 356 milhões o número de indivíduos infectados em todo o mundo prevendo-se que 55 a 90 milhões morram pelos 45-50 anos em consequência da evolução crónica da infecção.(67) Definem-se regiões de alta, média e baixa endemicidade, consoante a percentagem de população infectada é, respectivamente, superior a 8%, entre 2 e 7% ou inferior a 2 por cento. Os países de Europa ocidental têm baixa endemicidade.(68) Nos países de baixa endemicidade a infecção ocorre mais frequentemente na idade adulta evoluindo menos vezes para formas crónicas (5%). A transmissão pode ser vertical (mãe-filho no período perinatal), horizontal (entre as crianças e grupos de alta endemicidade e contactos familiares dos doentes), parentérica ou sexual, especialmente nos adolescentes e adultos jovens, toxicómanos, ou por contacto com sangue ou derivados ou equipamentos contaminados.(68,69 e 70) Na transmissão vertical, se a mãe é HBeAg e HBsAg positiva, o risco de transmissão da infecção à criança é de 85 a 90%.(71,72 e 73) A correcta utilização da 80 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 11 Fernando Pereira além dos 6 meses e mantem-se geralmente anos. Nestes doentes está também geralmente presente o anti-HBc IgG e o HBeAg, traduzindo a replicação que poderá também ser comprovada pela detecção do ADN-VHB no soro por PCR ou hibridização molecular, determinação esta que é sobretudo útil na monitorização dos doentes em tratamento. Durante a evolução da doença crónica pode desaparecer o HBeAg do soro, traduzindo a integração do vírus no genoma do hepatócito, aparecendo o Anti-HBe.(77) crónica deve incluir a realização de uma biopsia, porque nem sempre existe uma boa correlação clínico-patológica. História Natural As crianças que são infectadas muito pequenas, e em especial no período neonatal, permanecem HBsAg positivas com elevados níveis de replicação viral e com doença hepática mínima. Estas crianças, nos países ocidentais, fazem progressivamente a seroconversão HBeAg para anti-HBe e HBsAg para Anti-HBs, de forma progressiva e espontânea, nas duas primeiras décadas de vida. Abaixo dos 3 anos a seroconversão é inferior a 2% ao ano; nas crianças com mais de 6 anos a seroconversão tem uma taxa de 14 a 35% ao ano, consoantes os estudos.(81) As crianças mais velhas e adolescentes, quando infectados, têm uma evolução semelhante à dos adultos, ou seja, evoluem para doença crónica em cerca de 5% dos casos. Este risco é mais elevado quando a infecção ocorre em portadores de doenças crónicas, como sejam insuficientes renais em hemodiálise ou infectados pelo VIH. O carcinoma hepatocelular é uma sequela da infecção crónica pelo VHB, infecção que é responsável pelo maior número de casos deste tumor. O risco de desenvolver hepatocarcinoma ao longo da vida num portador crónico estima-se em 40-50%. Histopatologia A infecção aguda do fígado pelo VHB traduz-se histologicamente em infiltrado inflamatório linfoplasmocitário, desorganização lobular, degenerescência e necrose hepatocitaria (balonização e degenerescência acidófila) e áreas de regeneração celular. Na fase de doença crónica encontramos graus variáveis de hepatite de interface (também designada por piecemeal necrosis), fibrose e desorganização estrutural, tendo como fase mais avançada a cirrose. Os hepatócitos contêm HBsAg e assumem, caracteristicamente, no citoplasma, o aspecto em vidro fosco. Para efeitos práticos, tendo por objectivo avaliar a evolução da doença, com ou sem tratamento, foi desenvolvida uma classificação histológica ou sistema de graduação designado por classificação de Knodell-IshaK, que inclui os seguintes parâmetros: necrose peri-portal com ou sem pontes, necrose focal e degenerescência lobular, inflamação portal e fibrose.(78,79 e 80) Na infecção aguda não está indicada a realização de biopsia, uma vez que não acrescenta qualquer informação útil para o tratamento ou prognóstico da situação. Pelo contrário, na doença crónica, a biopsia é útil na quantificação das lesões e na avaliação da sua evolução, com ou sem tratamento. Nas crianças tem sido muito discutido o interesse da biópsia quando se decide efectuar tratamento, reservando alguns autores a sua realização apenas para os ensaios clínicos. Em minha opinião, a avaliação do doente com hapatite O mecanismo de carcinogénese causada pelo VHB não é muito bem conhecido. A interacção da agressão do hepatócito causada pela infecção do vírus, associada ao esforço de regeneração para manter a função do órgão, cria condições para a ocorrência de mutações genéticas sucessivas e eventual desenvolvimento tumoral. A prevenção da infecção e o tratamento da doença crónica são as melhores formas de prevenir o desenvolvimento neoplásico. Estudos efectuados em países asiáticos parecem demonstrar já o efeito da vacinação, que tem já duas décadas, na diminuição da incidência do cancro do fígado.(82 e 83) 81 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 12 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA -se haver resposta parcial quando desaparece o ADN-VHB, há seroconversão HBeAg e diminuição das transaminases. Os diferentes estudos publicados apresentam taxas de resposta ao tratamento com interferão nas crianças, variável entre 20 e 58%, claramente superiores à seroconversão espontânea. A resposta é melhor nos doentes com baixo nível de replicação vírica (teores baixos de ADN-VHB) e com transaminases elevadas. As crianças que adquirem a infecção por transmissão vertical respondem mal ao tratamento e as que apresentam níveis muito baixos de ADN devem ser alvo de atitude de expectativa quanto à sua evolução. Este tratamento é geralmente bem tolerado nas crianças, não sendo, por regra, necessário interromper o tratamento pelo aparecimento de efeitos laterais. O sindroma gripal, a depressão medular e alterações do comportamento (irritabilidade e alterações da personalidade) são os efeitos laterais que mais vezes podem ocorrer. Está contraindicado em doentes com insuficiência renal, doença cardíaca, doença autoimune e doentes neurológicos em geral. Os critérios que utilizamos para incluir no tratamento os nossos doentes em idade pediátrica são: hepatite B crónica confirmada em criança com mais de 2 anos, com transaminases elevadas (> 2xN), ADN-VHB positivo e HBeAg positivo. Realizamos biopsia hepática antes do início do tratamento.(88) Não há experiência com o interferão peguilado nas crianças. A Lamivudina é um análogo dos nucleósidos, antivírico muito utilizado no tratamento da infecção VIH, sobre o qual existe ainda pouca experiência no tratamento da infecção VHB na criança. É um medicamento bem tolerado, que tem a vantagem de ser administrado por via oral (na dose de 3mg/Kg/dia até aos 12 anos e depois 100mg/dia) e que tem sido indicado para os doentes que não respondem ou têm contra-indicações para o uso do Interferão. Um dos inconvenientes apontados à utilização da Lamivudina é o aparecimento de mutantes resistentes.(89,90 e 91) O trata- Tratamento A infecção aguda pelo VHB, à semelhança do que já dissemos para o VHA, tem apenas tratamento de suporte e a maior parte dos doentes recupera totalmente. A hepatite crónica pode ser tratada com o objectivo de erradicar o vírus e diminuir a gravidade da doença hepática e prevenir a evolução para formas mais graves. Dito de outra forma, pretende-se diminuir a replicação viral, obter a seroconversão do HBeAg e, se possível, do HBsAg, normalizar as transaminases e a histologia hepática. Tem sido muito discutida, na literatura, a indicação para tratamento da hepatite B crónica nas crianças e os resultados de vários trabalhos efectuados não são concordantes quanto aos benefícios do tratamento, quando comparados com a seroconversão espontânea conhecida das crianças e que já referimos. Há dois fármacos aprovados para o tratamento desta doença na criança, o Interferão alfa 2a e 2b e a Lamivudina. Outros medicamentos já utilizados nos adultos como o adefovir, ainda não estão aprovados para uso pediátrico.(84,85,86 e 87) O interferão tem efeito antivírico directo inibindo a replicação viral e estimula a destruição do hepatócitos infectados pelos linfócitos T citotóxicos (CD8+). Deve ser utilizado na dose de 6 milhões de unidades/m2 de superfície corporal, três vezes por semana, por via subcutânea. Na primeira semana poderá fazer-se apenas metade da dose. A aplicação do interferão deverá ser associada à toma de paracetamol, 30 minutos antes e 4 horas depois, para prevenir os sintomas tipo sindroma gripal. A dose do interferão terá que ser ajustada em função de trombocitopenia ou leucopenia ou ainda devido ao aparecimento de outros efeitos secundários. O tratamento deverá ser feito durante 12 semanas, podendo ser continuado até 1 ano em caso de resposta parcial às 12 semanas. A resposta ao tratamento considera-se completa se ocorre o desaparecimento do ADN-VHB, seroconversão HBeAg, seroconversão HBsAg e normalização das transaminases. Considera82 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 13 Fernando Pereira mento com a Lamivudina deve ser prolongado para além do ano sempre que há resposta; no entanto, não existe ainda unanimidade quanto ao tempo total que deve durar o tratamento. Alguns autores têm preconizado tratamento com interferão associado à Lamivudina em crianças resistentes ao interferão e com resultados muito aceitáveis.(92 e 93) Outros fármacos têm sido já utilizados em adultos, um deles o Adefovir, que também é administrado por via oral e parece dar bons resultados, mas não há ainda experiencia nas crianças.(94) As vacinas actualmente utilizadas são produzidas por recombinação genética, utilizam o HBsAg e vieram substituir as vacinas obtidas do plasma. Despertam no receptor o aparecimento do anticorpo HBs. Existem duas vacinas no mercado português: a Recombivax e a Engerix B. As vacinas são, em regra, aplicadas em três doses, para produzirem uma imunidade duradoura. São aplicadas por via intramuscular, geralmente no deltoide ou na face anterolateral da coxa, nas crianças mais pequenas. Nas crianças induzem resposta protectora em cerca de 95% dos vacinados. A aplicação da vacina associada à administração da Imunoglobulina aos recém nascidos de mães infectadas, nas primeiras 12 horas após o parto, protege 90% das crianças e deve ser feito também nos prematuros. Nesta situação deverá proceder-se à determinação do HBsAg e do Anti-HBs aos 12 a 15 meses de idade. As crianças filhas de mãe com situação serológica desconhecida deverão efectuar vacinação nas primeiras 12 horas e fazer colheita para estudo serológico, que no caso de ser positivo obriga à administração da imunoglobulina específica, como referido para as mães positivas, o mais brevemente possível e sempre na primeira semana de vida.(99) Devem ser também vacinados os grupos de risco até que a imunização de rotina das crianças crie uma população adulta imunizada; os principais grupos são as profissões de risco, doentes em hemodiálise, doentes em tratamento com factores da coagulação, contactos familiares ou sexuais de doentes, toxicómanos, adultos e crianças ou adolescentes institucionalizados. Os doentes crónicos têm por vezes necessidade de fazer vacinação com dose dupla para responderem. Salvo situações especiais como a que referimos para os recém nascidos filhos de mães infectadas, não se justifica efectuar de rotina estudo serológico de controlo após a realização do esquema completo de vacinação. Discute-se ao fim de quantos anos deve ser feito o reforço da vacina, alguns autores apontam para 5 outros para 12 anos, mas out- Imunoprofilaxia É um dos armas mais importantes no combate à infecção pelo VHB, disponível à pouco mais de uma década e já com resultados muito positivos na prevenção da doença e naturalmente das suas complicações resultantes da evolução para a cronicidade, com especial realce para a baixa da incidência de carcinoma hepatocelular. Uma correcta estratégia de prevenção inclui o rastreio pré-natal de todas as grávidas para saber quais os recém nascidos que necessitam de profilaxia e os contactos familiares que devem ser vacinados, a vacinação de rotina de todos os recém nascidos, a vacinação de todas as crianças e adolescentes e a vacinação dos adultos de risco elevado.(95,96 e 97) No quadro seguinte apresentamos o esquema de imunoprofilaxia aconselhável. - Filhos de mãe HBsAg negativa Vacinação aos 0, 1 e 6 meses com 0,5ml de Recombivax ou Engerix B - Filhos de mãe HBsAg positiva IGHB, 0,5ml IM nas primeiras 12 h Vacina nas primeiras 12 h seguida, de mais 2 doses aos 1 ou 2 e 6 meses * - Crianças e adolescentes Vacina aos 0,1 e 6 meses, 0,5ml a 1ml. - Adultos Vacina 1ml aos 0,1 e 6 meses * O mesmo esquema deve ser usado nos prematuros.(98) 83 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 14 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA ros ainda, afirmam mesmo que não há de momento qualquer indicação sólida para propor revacinação e que mesmo as crianças que não apresentam título protector (> 10mUI/ml) quando infectadas não ficam HBsAg positivas.(100,101 e 102) Nos indivíduos infectados o VHC circula numa mistura de genomas distintos, mutações, que se designam por quasiespecies, que parecem facilitar a replicação do vírus e dificultar a resposta imunológica do hospedeiro. Os mecanismos de interacção entre o VHC e o hepatócito e de replicação viral não são ainda bem conhecidos. As vacinas são bem toleradas. Para terminar, não poderemos deixar de salientar que a prevenção da infecção começa com a adopção de atitudes correctas de higiene no dia à dia, quer no domicílio, não partilhando objectos de uso pessoal que possam conter restos de sangue ou derivados, manipulando com todo o cuidado secreções ou produtos biológicos, quer nas instituições para detidos ou deficientes, assumindo as mesmas atitudes de higiene já referidas, quer nas instituições de saúde, manipulando de forma correcta todos os produtos biológicos e instrumentos que perfuram ou cortam a pele e tecidos. Embora sejam detectados no soro anticorpos para as várias proteinas do VHC 7 a 30 semanas após a infecção, as elevadas taxas de evolução para a cronicidade e a viremia persistente levam a pensar que o VHC não desencadeia uma reacção neutralizante efectiva por parte do sistema imunológico da maior parte dos doentes. Têm sido descritos casos de recuperação de infecções pelo VHC na ausência de anticorpos séricos específicos.(106) Nos indivíduos infectados aparecem, no soro e no tecido hepático, linfócitos T helper e supressores, 3 a 4 semanas após a infecção, e nos casos em que se desenvolve infecção aguda clínica com resolução do processo esta resposta é vigorosa.(107) Não está esclarecida, de forma clara, a razão da elevada percentagem de doentes que, uma vez infectados, evoluem para formas crónicas de hepatite. HEPATITE C O virus da Hepatite C (VHC) foi descoberto em 1990, logo se verificando ser o principal responsável pelo que até então se designava por Hepatite não A não B. Trata-se de um vírus ARN, do grupo Flaviviridae. O estudo epidemiológico desde então realizado permitiu saber que este vírus é o principal responsável pela maior parte dos quadros de hepatite crónica, cirrose e falência hepatica. Epidemiologia Estima-se que 3% da população mundial esteja infectada pelo VHC, sendo esta infecção a causa mais frequente de hepatite não A não B. O uso de drogas endovenosas, o contacto sexual, familiar ou profissional com indivíduos infectados são as formas de transmissão mais comuns. Nas crianças americanas a seroprevalência é de 0,2% até aos 12 anos e 0,4% dos 12 aos 19 anos. Em Portugal os números da Direcção Geral de Saúde apresentam a notificação de dois novos casos ano abaixo dos 14 anos em 1999, 2000 e 2001 um caso em 2002 e nenhum em 2003.(108 e 109) O genoma do VHC é constituído por uma cadeia simples de ARN que codifica proteinas estruturantes (core e revestimento de superfície) e não estruturantes (proteiases, helicase e polimerase do ARN). Este vírus tem uma grande heterogeneidade genética sendo conhecidos seis genótipos (1-6) e mais de 100 subtipos. Os vários genótipos têm uma distribuição geográfica diferente e respondem também de forma diferente ao tratamento actualmente disponível. Na Europa são mais frequentes os genótipos 1(a e b), 2(a e b) e 3.(103,104 e 105) 84 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 15 Fernando Pereira As crianças em risco para infecção pelo VHC são: A transmissão horizontal entre crianças parece ser igualmente rara pelo que não se recomenda o afastamento da escola, nem das actividades desportivas de grupo, nem tão pouco se justifica a notificação escolar da infecção.(116, 117,118 e 119) - Crianças transfundidas com sangue ou derivados - Doenças hematológicas - Hemodiálise - Crianças tranfundidas antes de 1992 - Doenças malignas - Cirurgias - Prematuridade - Adolescentes com comportamentos de risco - Uso de drogas endovenosas - Inalação de estupefacientes - Tatuagem e piercing - Filhos de mães infectadas pelo VHC Diagnóstico Para o diagnóstico da infecção pelo VHC dispomos de testes que nos permitem determinar no soro a presença de anticorpos para o vírus e testes que possibilitam a identificação e quantificação do ARN-VHC. Não existem métodos para identificação de antigénios do vírus. Em relação aos testes para identificação de anticorpos temos os testes de Elisa (reacção imunoenzimatica) e os testes RIBA (imunoblot). Os primeiros são menos sensíveis e menos específicos e quando estão ausentes permitem excluir a doença mas quando estão presentes necessitam de ser confirmados pelo teste de RIBA, mais sensíveis e específicos, ou pela pesquiza do ARN do vírus. Este último é muito útil na monitorização da resposta ao tratamento.(120 e 121) Quando suspeitamos de uma infecção aguda devemos proceder à determinação qualitativa do ARN, uma vez que o anti-VHC só aparece no soro cerca de dois meses depois da infecção. O diagnóstico correcto da doença, da sua gravidade e do prognóstico obriga à realização de uma biópsia do fígado e respectivo estudo. Os aspectos histológicos habitualmente descritos na infecção pelo VHC são: inflamação portal com folículos linfoides, necrose marginal, esteatose, agressão inflamatória do canal biliar e fibrose em maior ou menor grau. Nas crianças tem também sido descrita fibrose pericelular junto das veias centrolobulares.(122 a 126) Na infecção pelo VHC há uma má correlação clinico patológica pelo que a biópsia é indispensável à correcta avaliação do doente. A evolução dos achados histológicos é muito lenta. A transmissão vertical é possível, verificando-se seropositividade anti-VHC nos recém nascidos de mães infectadas em 14% dos casos. No entanto, estes números são desvalorizáveis, uma vez que em alguns desses casos os anticorpos são passados de forma passiva da mãe ao filho e, por isso, só a detecção do ARN-VHC por PCR permite diagnosticar, com certeza, a transmissão vertical. Utilizando este marcador os valores da transmissão materno fetal são de 5-6%, subindo até 10% no caso da mãe ter virémia positiva no momento do parto. A coinfecção materna pelo VIH aumenta a taxa de infecção perinatal. É de salientar o contraste, neste aspecto, entre a infecção pelo VHB e o VHC: no primeiro a taxa de transmissão é de cerca de 90% e no segundo apenas 5 a 6%.(110,111 e 112) Não parece haver grandes diferenças em relação à transmissão vertical quer o parto seja por cesariana (6%) quer seja por via vaginal (4%). Quanto à possibilidade de transmissão pelo leite materno a situação não é pacífica e os dados disponíveis não contraindicam a amamentação. A transmissão por contacto familiar é possível, mas parece ser também pouco frequente, pelo que são recomendadas apenas as medidas de higiéne normais e já referidas para a infecção pelo VHB.(113,114 e 115) 85 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 16 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA cada na criança pelo estudo do achado ocasional de transaminases elevadas ou no contexto de uma situação de risco pode ser alvo de tratamento. Na criança estão habitualmente reunidas algumas condições que favorecem a resposta terapêutica, como sejam, a infecção recente, a ausência de outras patologias, nomeadamente da infecção pelo VIH, a ausência de consumo de álcool ou outras substâncias hepatotóxicas e de doenças autoimunes. São todavia poucos os estudos publicados sobre tratamento da hepatite crónica pelo VHC na criança e geralmente com casuísticas pequenas. Não existem estudos multicêntricos randomizados que nos permitam tirar conclusões definitivas quanto ao tratamento das crianças.(134 a 139) A maior parte dos estudos publicados usam o Interferão alfa 2b isolado, na dose de 3 a 5 milhões de unidades por metro quadrado de superfície corporal, por via subcutânea, três vezes por semana durante 12 meses, em crianças com mais de três anos e obtiveram respostas favoraveis em 35-45% dos casos, com melhoria ou normalização enzimática, virológica e histológica. Deve referir-se a elevada percentagem de recidivas após o tratamento. Considera-se resposta virulógica sustentada a ausência de ARN-VHC no soro por PCR, seis meses após o fim do tratamento. Esta resposta é mais frequente nos doentes infectados pelos genótipos 2 e 3, do sexo feminino e com menos de 40 anos, com baixa replicação viral e sem fibrose portal. O Interferão é geralmente bem tolerado. Não existe experiência de utilização do interferão peguilado nas crianças. Quadro Clínico Nas crianças não há registo de manifestações agudas pelo VHC, quer quando há transmissão perinatal quer quando a via é pos-transfusional. Também não são conhecidos casos de hepatite C fulminante na criança.(127,128 e 129) Os sintomas da doença crónica são inespecíficos: anorexia, astenia ligeira malestar abdominal. O diagnóstico inicia-se, em regra, pelo facto de se encontrar em estudo de rotina uma elevação das transaminases, o que leva, por sua vez, ao estudo serológico e diagnóstico da infecção; ou então, nas crianças de risco, a realização de rastreio conduz ao diagnóstico. Têm sido encontrados auto-anticorpos (ANA, ASMA, LKM) no soro de crianças com infecção pelo VHC, mas são raras as situações de doença auto-imune.(130) A história natural da doença na criança não é muito bem conhecida, sabendo-se, no entanto, que crianças com doenças hematológicas e sujeitas a múltiplas transfusões e crianças com aquisição perinatal da infecção, evoluem, em elevada percentagem, para formas crónicas que têm um curso silencioso sob o ponto de vista clínico, nas 2 primeiras décadas de vida. Alguns estudos apontam para o desenvolvimento nestes doentes de formas de doença hepatica mais graves na idade adulta.(131) A seroconversão espontânea parece ocorrer em cerca de 10% dos casos em 5 anos.(132) Nos doentes do foro hematológico a presença de hemocromatose secundária agrava a evolução da doença hepatica e afecta negativamente a resposta ao tratamento.(133) Existe apenas um estudo em crianças no qual o tratamento consistiu na associação do Interferão alfa 2b (3milhões de unidades por metro quadrado 3xs) com a Ribavirina (15mg/kg/dia oral) durante 12 meses, obtendo nesse caso uma resposta virulógica sustentada em 41,7%. Pelos seus efeitos hematológicos, teratogénicos e mutagénicos a ribavirina não está ainda aprovada para tratamento das crianças, fora de ensaios clínicos.(140) Tratamento Como já vimos, a infecção aguda pelo VHC raras vezes é diagnosticada tendo em conta o seu curso assintomatico e incaracterístico, pelo que não há referência a esquemas de tratamento. A infecção crónica pelo VHC, diagnosti86 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 17 Fernando Pereira decurso da hepatite B aguda ou crónica e falase então de uma superinfecção. As vias de transmissão são as mesmas do VHB e a transmissão perinatal pode ocorrer mas é pouco frequente uma vez que as mães portadoras infectadas pelo VHD são geralmente AntiHBe+, e por isso pouco infectantes. Nas zonas de alta endemicidade, como são algumas regiões da Grécia e Itália, a transmissão intra-familiar tem significado.(143) Prevenção Não existe uma vacina nem uma imunoglobulina específica para o VHC pelo que a prevenção se baseia nas medidas de higiene para redução do risco de transmissão. No caso especial da transmissão perinatal podem ser tomadas algumas medidas, como sejam: - Rastrear as mulheres grávidas com factores de risco - Tratar agressivamente a infecção VIH nas mulheres com coinfecção - Testar os recém nascidos de mães infec tadas pelos 12-15 meses - Evitar monitorização fetal no escalpe durante o parto - Fazer nascer a criança nas 6 horas seguintes à rotura de membranas. O HDAg apenas se identifica no soro e no tecido hepático e o seu mecanismo patogénico é desconhecido, embora se pense que tem efeito citopático directo. O diagnóstico da infecção pelo VHD é feito pela detecção do Anti-HD IgM e IgG e pelo ARN-VHD por PCR, no soro ou no tecido hepático.(144) A coinfecção apresenta evolução clínica semelhante à já descrita para o VHB e não aumenta o risco de evolução para doença crónica. A superinfecção conduz em 90% dos casos à infecção crónica e com evolução rápida para a cirrose. Não é recomendado o rastreio geral das mulheres grávidas, o parto por cesariana, a interrupção do aleitamento materno nem a administração de imunoglobulina aos recém nascidos. A evolução da infecção pelo VHD na criança é semelhante à descrita para o adulto. Deve suspeitar-se desta infecção quando uma criança apresenta um quadro de hepatite crónica pelo VHB muito agressivo ou quando ocorre uma exacerbação aguda de uma doença em evolução crónica estável.(145) O interferão é o único tratamento conhecido com acção sobre o VHD. Não existem recomendações para o tratamento desta infecção na criança. Não existe vacina para o VHD e a prevenção da infecção pelo VHB é a forma mais eficaz de combater a infecção pelo VHD. HEPATITE D A hepatite D (Delta) é provocada por um vírus de ARN incompleto (VHD), que necessita da presença do VHB para produzir infecção.(141) Tem uma forma esférica, um genoma constituido por uma cadeia simples e circular de ARN, envolvido por uma nucleocapside. Utiliza o VHB para obter o seu revestimento exterior (HBsAg) que lhe permite tornar-se infectante. Existem três genotipos diferentes, sendo mais frequente na Europa o tipo 1. Há grande variabilidade na distribuição geográfica do vírus, mesmo na Europa que tem uma baixa endemicidade, 3-9% dos portadores assintomaticos do VHB e 10-25% dos portadores com doença crónica.(142) A infecção por este vírus pode ser contraída simultâneamente com a do VHB e trata-se de uma coinfecção ou pode ser adquirida no HEPATITE E O virus da hepatite E (VHE) do grupo sapovirus, é responsável por surtos de hepatite na Ásia, África e America latina. É um vírus de ARN transmitido pela via fecal-oral, parecendo ter como reservatórios animais o 87 Cap04HepatiteVirica.qxp 21-11-2005 16:02 Page 18 HEPATITE VÍRICA NA CRIANÇA porco e alguns roedores. A água contaminada parece ser a principal fonte de transmissão da doença. Não se conhecem casos de transmissão entre humanos.(146,147 e 148) A infecção ocorre mais frequentemente depois da primeira década de vida tem uma mortalidade de 0,5 a 3% na população geral e de 20 a 25% nas grávidas. Estudos efectuados no norte de Portugal apresentam seroprevalências de 2,1% em adultos jovens e 2,5% em população de hemodadores.(20 e 146) Após a infecção seguese um período de incubação de cerca de 40 dias, aparecendo depois o quadro clínico, inespecífico e que se acompanha da excreção fecal do agente durante duas semanas. A doença evolui na maior parte dos doentes para a cura e aquisição de imunidade. Não se conhecem formas crónicas. O diagnóstico é feito pela pesquisa, no soro ou nas fezes, do anti-VHE IgM ou ARNVHE por PCR. Não existe tratamento ou vacina específica. A imunoglobulina obtida a partir de indivíduos de áreas endémicas parecer proteger da infecção. BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 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Por último, as te-rapêuticas médica e cirúrgica devem ser fortemente condicionadas pelos seus possíveis efeitos teratogénicos fetais, assim como pelos possíveis riscos maternos. A estimativa da incidência da D.U.P. na gravidez é feita com base em estudos retrospectivos, a maioria dos quais não controlados, e em casos clínicos. Não há estudos endoscópicos controlados e os estudos radiológicos existentes incluem úlceras diagnosticadas antes ou depois da gravidez. Assim, é provável que a D.U.P. na gravidez esteja subdiagnosticada uma vez que muitos pacientes se auto-medicam sem recorrer ao médico assistente, quando os sintomas são leves ou moderados. Além disso, a maioria dos clínicos atribuem os sintomas de dor abdominal, pirose, náuseas e vómitos à doença do refluxo gastro-esofágico (D.R.G.E.) ou a entidades clínicas específicas da gravidez.(1) Apesar de tudo, a maioria dos estudos epidemiológicos existentes apontam para uma diminuição da incidência da D.U.P. durante a gravidez.(2-6) Um estudo retrospectivo realizado nos E.U.A. em Milwaukee, durante uma década, mostrou apenas 6 casos de D.U.P. em 149.500 grávidas.(7) Uma revisão da literatura envolvendo 233.550 partos revelou apenas 11 grávidas com úlcera péptica.(8) Um outro estudo multicêntrico levado a cabo nos E.U.A. mostrou uma taxa de sintomas gastrointestinais severos de 0.19% (56 em 29.317 grávidas admitidas em 3 hospitais). Vinte grávidas foram submetidas a esofagogastroduodenoscopia (E.G.D.) e apenas 2 tinham D.U.P.(9) Um outro estudo multicêntrico no Reino Unido envolveu 17.032 grávidas e demonstrou uma clara diminuição da Os dados da literatura no que respeita à D.U.P. durante a gravidez são muito escassos. Baseiam-se essencialmente em casos clínicos, em alguns estudos não controlados e em estudos em animais de laboratório. Há igualmente estudos muito limitados com comprovação endoscópica da úlcera péptica. Neste capítulo serão inicialmente apresentados os dados epidemiológicos disponíveis, assim como os aspectos patogénicos e clínicos mais relevantes. De seguida, será feita uma abordagem à história natural, diagnóstico, diagnóstico diferencial e terapêutica, com especial destaque para os aspectos que diferenciam a D.U.P. na gravidez e na população em geral. 95 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 2 DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA NA GRÁVIDA incidência de úlcera péptica na gravidez (0.026%) comparada com a incidência na população em geral (0.07%). Esta diferença não foi, no entanto, estatisticamente significativa.(10) Os factores de risco para D.U.P. na gravidez são sobreponíveis aos da população em geral e incluem os hábitos tabágicos, a idade avançada, o uso de anti-inflamatórios não esteróides (A.I.N.E.s), o alcoolismo, a pré-disposição genética e a infecção activa pelo Helicobacter pylori (H. pylori).(11-13) Assim, outros factores têm sido apontados como coadjuvantes do aumento do refluxo: a ineficácia da motilidade esofágica(29), o atraso do trânsito intestinal(30) e uma anomalia no esvaziamento gástrico.(31) A diminuição da incidência e dos sintomas da D.U.P. durante a gravidez, tem sido explicada por várias teorias, todas especulativas, embora algumas sejam mais consensuais do que outras (Quadro 1): 1º - O aumento dos níveis de histaminase sérica durante a gravidez resultante de uma maior síntese placentária.(32) A histaminase é uma enzima que pode metabolizar a histamina materna com consequente diminuição da secreção ácida gástrica.(33) 2º - As hormonas sexuais femininas produzidas durante a gestação podem causar uma supressão da secreção ácida com consequente redução da incidência de D.U.P.(34) A hipótese de que os estrogéneos pareciam diminuir a acidez gástrica já tinha sido sugerida por Johnson e colaboradores, ao demonstrarem que a úlcera péptica era mais frequente no sexo masculino do que no feminino.(35,36) Hunt e Murray(37) demonstraram uma ligeira diminuição da secreção ácida nas primeiras 30 semanas de gravidez e Rooney e colaboradores(38) mostraram que os níveis de gastrina sérica estavam diminuídos durante o mesmo período, com consequente hipocloridria gástrica. Há, no entanto, alguns trabalhos publicados com resultados contraditórios.(39-43) Todos eles apontam para uma diferença estatisticamente não significativa dos níveis basais de secreção ácida nas mulheres grávidas e não grávidas. Além disso, duas possíveis causas de hipocloridria (supressão da gastrina sérica e dos níveis de pepsinogénio tipo I), normalmente não ocorrem durante a gravidez. Estes dados conflituosos sugerem que, mesmo que na gravidez haja uma hipocloridria gástrica, esta alteração deva ser pequena e insuficiente para, por si só, justificar a diminuição da incidência de úlcera péptica durante a gravidez. 3º - As hormonas sexuais femininas gestacionais poderão causar uma diminuição da PATOGENIA Várias teorias tentam explicar a aparente diminuição da D.U.P. durante a gravidez; a maioria delas são especulativas e não estão cientificamente demonstradas (Quadro 1). Apesar das várias teorias existentes, alguns investigadores consideram que a diminuição da incidência da úlcera péptica na gravidez não é real e resulta de uma sobrevalorização da D.R.G.E., uma vez que a maioria dos diagnósticos são feitos sem confirmação endoscópica.(14,15) Além disso, a D.U.P. pode apresentar como única manifestação, a pirose, e a D.R.G.E. pode apresentar-se como um síndrome dispéptico. Acrescenta-se ainda o facto de os sintomas das duas doenças melhorarem com a mesma terapêutica médica. No entanto, os poucos trabalhos endoscópicos publicados parecem confirmar que, durante a gravidez, a D.R.G.E. está aumentada e a D.U.P. está diminuída.(16-20) O aumento da incidência da D.R.G.E. na gravidez parece ser devido, por um lado, à diminuição da pressão de repouso do esfíncter esofágico inferior (E.E.I.) resultante do aumento dos níveis dos estrogéneos e da progesterona(21-25) e por outro lado a factores mecânicos resultantes do aumento da pressão intra-abdominal secundária ao aumento do tamanho do útero grávido.(26) Este último aspecto patogénico tem sido, no entanto, mais controverso, dado que o aumento da pressão intra-abdominal também pode induzir um aumento da pressão do E.E.I.(27,28) 96 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 3 Nuno Paz D.U.P. aumentando a síntese de muco gástrico.(44,45) Estudos feitos em animais de laboratório sugerem que a progesterona gestacional possa, de facto, aumentar a síntese do muco gástrico. 4º - A teoria da tolerância imunológica adquirida durante a gravidez, para o livre crescimento do feto, sugere a possibilidade de o H. pylori colonizar o estômago sem desencadear uma resposta imunológica, com consequente redução da inflamação da mucosa gástrica e dos sintomas.(46) Esta teoria não está de forma alguma demonstrada, sendo por isso totalmente especulativa. 5º - O aumento dos níveis do factor de crescimento epitelial (F.C.E.), durante a gestação, demonstrado em animais de laboratório, foi considerado como possível potenciador da cicatrização ulcerosa.(47) Neste estudo, os animais submetidos a sialo-adenec- tomia, cirurgia que inibe a produção do F.C.E., apresentaram atraso na cicatrização da úlcera péptica. 6º - A diminuição do consumo materno de vários factores ulcerogénicos como o tabaco, o álcool e os A.I.N.E.s, parecem contribuir para a diminuição da incidência de D.U.P. durante a gravidez.(48,49) O consumo de tabaco durante a gravidez está correlacionado com o nascimento de recém-nascidos de baixo peso.(50) O consumo do álcool está associado ao síndrome alcoólico fetal(51) e o uso de A.I.N.E.s, tende a ser evitado pelas mães, pelo conhecimento dos seus possíveis efeitos abortivos e teratogénicos. 7º - A redução da incidência de úlcera péptica também tem sido associada à redução do “stress”, ao aumento do repouso e à melhoria dos cuidados alimentares, geralmente adoptados pelas grávidas.(4) QUADRO I - HIPÓTESES QUE EXPLICAM A DIMINUIÇÃO DA INCIDÊNCIA DA D.U.P. NA GRAVIDEZ REFERÊNCIA TEORIA Aumentos dos níveis plasmáticos de histaminase Hipocloridria causada pela hiperestrogenia gestacional Aumento da camada de muco gástrico devido à hiperestrogenémia gestacional Teoria da tolerância imunológica Aumento dos níveis plasmáticos de factor de crescimento epitelial Redução no consumo de factores ulcerogénicos Melhoria dos hábitos de vida com redução do stress 32, 33 34-38 44,45 46 47 48,49 4 Todas estas teorias estão por provar. CLÍNICA E HISTÓRIA NATURAL uso de A.I.N.E.s e a utilização recente de fármacos anti-ulcerosos estão associados à ausência de sintomas.(53) Durante a gravidez, os sintomas atribuíveis à úlcera péptica, tendem a ser mais suaves.(54) Os sintomas tendem a reaparecer nos 3 meses após o parto, em cerca de 50% das grávidas.(55,56) Os sintomas da D.U.P. na gravidez são semelhantes aos da população em geral. A dor característica da úlcera duodenal descrita como uma “moínha”ou “sensação de fome”, por vezes tipo ardor, ocorre classicamente algumas horas após a refeição, durante a noite, e é aliviada pela ingestão de alimentos ou substâncias alcalinas.(52) No entanto, a úlcera gástrica pode manifestar-se de uma forma menos exuberante podendo em alguns casos ser assintomática. A idade avançada, o DIAGNÓSTICO A avaliação de um doente com suspeita de úlcera péptica começa com uma cuidadosa colheita da história clínica e uma apreciação 97 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 4 DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA NA GRÁVIDA rigorosa do exame físico sempre com o intuito de excluir outros diagnósticos e avaliar a possibilidade de complicações. Os testes bioquímicos plasmáticos e urinários assim como o electrocardiograma e a ultrassonografia abdominal são úteis no diagnóstico diferencial de outras entidades clínicas. Os exames radiológicos com ou sem contraste estão geralmente contra-indicados na gravidez devendo ser utilizados apenas em alguns casos raros como na suspeita de perfuração de víscera oca. A E.G.D. é, sem dúvida alguma, considerada o exame “gold standard” no diagnóstico de D.U.P. na população em geral. Para além de ter uma maior sensibilidade e especificidade do que os exames radiológicos, permite a colheita de material histológico para a exclusão de neoplasia ou confirmação da infecção pelo H. pylori. Se não existem dúvidas quanto à toxicidade fetal da radiação durante a organogénese no 1º trimestre da gravidez(57,58), em relação ao recurso à E.G.D., na mulher grávida, não parece existir consenso. Alguns trabalhos publicados sugerem que a endoscopia está longe de ser considerada um exame inócuo e totalmente seguro para a mãe e para o feto. Complicações fetais associadas à teratogenicidade da medicação(59,60), trauma fetal durante a entubação endoscópica(61), arritmias cardíacas(62,63), hipertensão ou hipotensão sistémica(64) e hipoxémia transitória(65,66), têm sido alguns dos efeitos deletérios descritos da E.G.D., dos quais, a hipotensão e a hipoxémia materna podem ser particularmente prejudiciais para o feto.(67,68) Em contrapartida, muitos outros trabalhos sugerem a inoquidade desta técnica.(16-20) Salienta-se, pela sua dimensão, um estudo multicêntrico realizado nos E.U.A. e publicado em 1996 que comparou 83 grávidas submetidas a endoscopia com um grupo de controlo de 48 grávidas com indicação para realizar E.G.D. e que não a realizaram por estarem grávidas. Este estudo concluiu que a endoscopia durante a gravidez era, no mínimo, tão segura como a não realização deste exame em mulheres grávidas com forte indi- cação para tal procedimento. Em conclusão, a realização de E.G.D. está recomendada durante a gravidez, sempre que os sintomas sejam severos ou refractários à terapêutica medicamentosa, na suspeita de estenose péptica, na hemorragia digestiva alta ou na forte suspeita de patologia maligna. Para melhorar a segurança deste exame complementar de diagnóstico, durante a gravidez, estão preconizadas algumas medidas: 1º - Evitar o uso de diazepam como prémedicação endoscópica devido aos seus possíveis efeitos teratogénicos.(69,70) 2º - Utilizar preferencialmente a meperidina e restringir a dose para um máximo de 50mg uma vez que a sedação do feto parece ser dose dependente.(71,72) 3º - Utilizar sistematicamente oxigénio por sonda nasal, para evitar a hipoxémia.(65,73) 4º - Proceder à monitorização materna com oximetria de pulso e esfigmomanometria intermitente.(67,74) 5º - Proceder à monitorização cardíaca fetal, no final da gravidez, para detectar precocemente sinais de sofrimento fetal.(16) DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Dado que a D.U.P. pode, muitas vezes, ter uma forma de apresentação pouco específica, torna-se importante fazer o diagnóstico diferencial com outras patologias como a D.R.G.E., a pancreatite aguda, a colecistite aguda, a hepatite aguda viral e a apendicite aguda, entre outras, assim como com algumas patologias específicas da gravidez que incluem as náuseas e vómitos da gravidez, a hiperemesis gravídica, o fígado gordo agudo da gravidez e a síndrome de HELLP. PATOLOGIA ESPECÍFICA DA GRAVIDEZ 1 - Náuseas e vómitos da gravidez Cerca de 50% das mulheres grávidas apre98 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 5 Nuno Paz sentam, no 1º trimestre da gravidez, náuseas, por vezes acompanhadas por vómitos.(75,76) Ao contrário da úlcera péptica, em que os sintomas são predominantemente nocturnos ou algumas horas após as refeições, as náuseas e vómitos da gravidez predominam no período matinal. São mais frequentes na 1ª gravidez, em mulheres jovens, não fumadoras, obesas e em gravidezes gemelares.(77) uma anemia hemolítica com níveis elevados de aminotransferases (Fosfatase alcalina e bilirrubinas normais), com diminuição marcada dos níveis plaquetários. Pode surgir como uma complicação da pré-eclâmpsia(82) e surge quase sempre no 3º trimestre da gravidez. O parto deve ser imediatamente provocado e futuras gravidezes devem ser desaconselhadas. O fígado gordo agudo da gravidez é uma entidade clínica grave do 3º trimestre da gravidez que pode culminar num quadro de hepatite fulminante.(83) Os sintomas iniciais são variáveis mas, geralmente, incluem náuseas e vómitos por vezes acompanhados de icterícia e prurido. Antes do aparecimento da icterícia, o diagnóstico precoce pode ser difícil. Parâmetros laboratoriais de insuficiência hepática e renal, subida moderada das transaminases, hipoglicémia e leucocitose são as alterações bioquímicas mais frequentes. O sucesso terapêutico depende do diagnóstico precoce com indução imediata do parto. O transplante hepático, deve ser equacionado, em casos de hepatite fulminante. 2 - Hiperemesis gravídica Quando os vómitos se tornam incoercíveis, podem acompanhar-se por perturbações hidro-electrolíticas graves, com desidratação e perda de peso; estamos perante um distúrbio da gravidez chamado hiperemesis gravídica. Trata-se de uma entidade clínica que se pensa estar associada ao aumento dos níveis séricos dos estrogénios com consequente alteração da função dos neuropéptideos e das células neuronais do sistema nervoso central e entérico.(78) A hiperemesis gravídica tipicamente tem início na 1ª metade da gravidez e ocorre com maior frequência na gestação múltipla(79), nas doenças trofoblásticas gestacionais (mola hidatiforme, mola invasiva e coriocarcinoma) e em algumas anomalias fetais (triploidia, trisomia 21 e hidrópsia fetal).(80) Doentes com hiperemesis podem apresentar outras doenças não obstétricas subjacentes, como a pré-eclâmpsia/eclâmpsia, síndrome de HELLP e fígado gordo agudo da gravidez. A pré-eclâmpsia é uma patologia de causa idiopática que afecta 3 a 10% das mulheres grávidas, tendo uma maior incidência nas primíperas.(81) Manifesta-se quase sempre na 2ª metade da gravidez e caracteriza-se por um quadro de náuseas, vómitos, dor epigástrica, cefaleias e diplopia. Quando a este quadro se associam as convulsões estamos perante uma eclâmpsia. O diagnóstico confirma-se pelos níveis de proteinúria> 500mg/l na urina das 24h e pela presença de uma hipertensão arterial sustentada> 140/90mmHg, numa mulher previamente normotensa. A síndrome de HELLP caracteriza-se por PATOLOGIA NÃO ESPECÍFICA DA GRAVIDEZ A D.R.G.E. é a entidade clínica que poderá mais vezes pôr problemas no diagnóstico diferencial de D.U.P., não só pela sua frequência como pela sobreposição da sintomatologia nas 2 doenças. A D.R.G.E. na gravidez e na população em geral têm um quadro clínico semelhante. Os sintomas dominantes são a pirose, a azia e a regurgitação e têm tendência a sofrer um agravamento com o avanço da gestação. Ao contrário da úlcera péptica, os sintomas acentuam-se com a ingestão dos alimentos e com o decúbito.(84) A frequência das manifestações extra-esofágicas do refluxo como, a disfonia, a asma nocturna, a tosse crónica e a laringite, não foram ainda estudada na gravidez. A pancreatite aguda é mais rara na gravidez do que na população em geral.(85) Ao contrário da D.U.P. a dor da pancreatite 99 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 6 DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA NA GRÁVIDA agrava-se com a ingestão dos alimentos e quase sempre irradia ao dorso, em cinturão. Níveis de amilase sérica> 3x o normal, fazem um diagnóstico seguro dado que este parâmetro bioquímico não se altera significativamente pela gestação.(86) O diagnóstico de colecistite aguda é sugerido pelo quadro clínico caracterizado por dor no hipocôndrio direito, febre e sinal de Murphy vesicular ao exame físico. A ultrassonografia é fundamental para confirmar o diagnóstico. A hepatite aguda viral, ao contrário da úlcera péptica, apresenta um quadro de dor no hipocôndrio direito com hepatomegália e elevação marcada das aminotransferases. O diagnóstico é confirmado pela determinação serológica dos vírus das hepatites. A apendicite aguda ocorre com uma frequência de 1 em cada 1500 gravidezes.(87) A dor da apendicite aguda pode confundir-se com a dor da úlcera péptica, localizando-se por vezes no epigastro ou hipocôndrio direito, sobretudo no 3º trimestre da gravidez devido ao aumento do volume do útero grávido com consequente deslocação do apêndice para uma localização atípica.(88) A história curta dos sintomas assim como a severidade dos mesmos e a presença de sinais físicos de irritação peritoneal, devem alertar o clínico para este diagnóstico. Raramente, a D.U.P. pode ter como 1ª manifestação a hemorragia digestiva alta. O dignóstico diferencial de hematemeses durante a gravidez inclui a D.R.G.E., a síndrome de Mallory-Weiss, as náuseas e vómitos da gravidez e a úlcera péptica.(89) É uma das indicações formais para a realização de E.G.D. TERAPÊUTICA MÉDICA Apesar da sobreposição da sintomatologia da úlcera péptica e da D.R.G.E., o risco inerente aos meios complementares de diagnóstico, torna-os muitas vezes prescindíveis dado que a terapêutica das duas doenças é semelhante. Assim, parece razoável tratar empiricamente com medidas dietéticas, alteração do estilo de vida e fármacos seguros, todas as grávidas com dor epigástrica, pirose ou sintomas dispépticos. Após a ineficácia destas medidas a execução de uma E.G.D. deve ser ponderada e a prescrição de inibidores da bomba de protões deve ser instituída (Figura 1). FIGURA 1 - Algoritmo de tratamento da doença péptica na grávidaz Dor epigástrica, pirose ou síndrome dispéptico sugestivo de D.U.P. ou D.R.G.E., na gravidez Ausência de sinais de alarme Sinais de alarme* Alterações dietéticas e modificação do estilo de vida EGD *Sinais de alarme – Hemorragia digestiva, suspeita de estenose ou neoplasia Sem resposta Anti-ácidos ou sucralfato Antagonistas dos receptores H2 Sem resposta EGD DRGE com ou sem H.P ou DUP 100 Inibidores da bomba de protões Não irradicar o H.P Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 7 Nuno Paz Iremos de seguida analisar a segurança individual da maioria dos fármacos utilizados na terapêutica da úlcera péptica. comprovada quando administrado por via parentérica(98,99), mas, a sua utilização por via oral, revela níveis de absorção negligenciáveis (100) o que torna o sucralfato um medicamento seguro sem efeitos teratogénicos para o feto.(71, 100,101,102) A Food and Drug Administration (FDA) classifica o sucralfato como fármaco de categoria B para utilização na gravidez(103) (Quadro 2). Anti-ácidos Os anti-ácidos são os inibidores da secreção ácida mais utilizados na população em geral sem prescrição médica.(90) A taxa de cicatrização da úlcera duodenal é de cerca de 70% após 4 semanas de terapêutica com altas doses de anti-ácidos.(91,92) A sua interacção com a absorção do ferro, obriga à administração dos 2 fármacos em horários separados.(93) Os anti-ácidos que contêm na sua composição bicabornato devem ser evitados durante a gravidez porque, em altas doses, podem induzir alcalose metabólica na mãe e no feto.(91) O hidróxido de magnésio deve ser evitado no final da gravidez devido ao risco teórico de provocar tocólise e distocia.(71) O hidróxido de alumínio tem uma absorção sistémica mínima o que o torna seguro, em especial, no 2º e 3º trimestres da gravidez. A prescrição de anti-ácidos durante a gravidez, sobretudo os que contêm magnésio, no 2º e início do 3º trimestres e os que contêm alumínio no 2º e 3º trimestres, é considerada uma prática segura e isenta de efeitos adversos.(50,71) Mais de metade das mulheres grávidas tomam, por sua iniciativa anti-ácidos, em especial nos últimos meses da gravidez, para alívio da dispepsia e pirose.(94) No entanto, tal como na população em geral, na gravidez outros inibidores da secreção ácida mais potentes conseguem aliviar os sintomas com maior eficácia.(95) Antagonistas dos receptores da histamina H2 (AH2) Antes da descoberta dos inibidores da bomba de protões (IBP) e do H. pylori os AH2 eram considerados fármacos de 1ª linha para a terapêutica da D.U.P. Cerca de 80% das úlceras duodenais cicatrizam após 4 semanas de tratamento com AH2.(104) A sua segurança durante a gravidez não está convenientemente comprovada. Todas as moléculas comercializadas - cimetidina, ranitidina, famotidina e nizatidina - atravessam a barreira placentária, por provável transporte passivo.(105,106) Cimetidina O 1º AH2, a cimetidina, possui um bom perfil de segurança, quando utilizado na população em geral. Embora a maioria dos estudos em animais de laboratório não tenham revelado teratogenicidade fetal(103, 107,108), os seus efeitos anti-androgénicos, têm sido apontados como uma limitação para a sua utilização na gravidez devido à provável inibição do desenvolvimento sexual dos fetos masculinos.(109-112) Um estudo controlado de fármaco-vigilância realizado nos E.U.A.(71) não revelou diferenças estatísticamente significativas em relação ao desenvolvimento de malformações congénitas nos recém-nascidos do grupo exposto à cimetidina (4.4%) e do grupo de controlo (4.3%). Outros trabalhos de relevo(113-115) obtiveram resultados semelhantes. A cimetidina está contra-indicada em crianças com hipertensão pulmonar medicadas com tolazolina, devido à interacção dos 2 Sucralfato O sucralfato é um complexo polissacarídeo sulfatado associado ao óxido de alumínio. Exerce a sua acção aderindo à superfície proteica da mucosa lesionada protegendo-a da agressão cloridro-péptica e dos sais biliares.(96) Parece ter, igualmente, um efeito supressor contra a infecção pelo H. pylori.(97) A taxa de cicatrização às 4 semanas, da úlcera duodenal, é de cerca de 75%.(96) O alumínio tem uma fetotoxicidade 101 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 8 DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA NA GRÁVIDA Omeprazol O omeprazol atravessa a barreira placentária em animais de laboratório(129) e em humanos.(130) Estudos em ratos não mostraram qualquer efeito teratogénico do omeprazol, no entanto foi descrita em alguns casos a letalidade para o embrião com reabsorção do feto e interrupção da gravidez.(71,103) químicos.(116) A FDA classifica a cimetidina como fármaco de categoria B para a utilização na gravidez(103) (Quadro 2). Ranitidina Ao contrário da cimetidina, a ranitidina não possui qualquer actividade antiandrogénica em animais de laboratório e em humanos. A ranitidina não inibe o desenvolvimento sexual dos ratos adultos após exposição “in útero”.(117) O mesmo estudo referido atrás(71) não mostrou qualquer efeito teratogénico da ranitidina, no 1º trimestre da gravidez. Outros trabalhos europeus(113,114,119,120,121) levaram a conclusões sobreponíveis sobre a segurança da ranitidina para o uso durante a gravidez. A FDA classifica a ranitidina com fármaco de categoria B para o uso na gravidez(103) (Quadro 2). A maioria dos estudos em humanos não revelou teratogenicidade na utilização do omeprazol, por via oral, para a prevenção da aspiração do suco gástrico durante o parto.(130-133) Alguns estudos controlados mais recentes não mostraram diferenças estatisticamente significativas em relação à percentagem de anomalias congénitas nos grupos que fizeram omeprazol no 1º trimestre da gravidez quando comparados com os grupos de controlo.(134-141) No entanto, foram comunicados à FDA 11 casos de anomalias congénitas, incluindo anencefalia em 4 crianças após exposição “in útero” ao omeprazol.(71) Uma mulher interrompeu por 2 vezes a gravidez devido a malformações congénitas após o uso de omeprazol.(142) Famotidina e Nizatidina Tanto a famotidina como a nizatidina não parecem ter efeitos anti-androgénicos em animais de laboratório ou humanos.(122,123) Embora hajam menos estudos disponíveis em relação à segurança destes 2 fármacos na gravidez, todos parecem apontar no mesmo sentido: os efeitos teratogénicos induzidos em animais de laboratório não são estatisticamente significativos.(124-126) Ambos estão classificados como fármacos de categoria B pela FDA(103) (Quadro 2). Em conclusão, a conjugação de todos os dados existentes apontam para a ausência de teratogenicidade do omeprazol quando administrado no final da gravidez, mas a segurança fetal do mesmo no 1º trimestre não está convenientemente comprovada.(143) O omeprazol está classificado como fármaco do grupo C pela FDA para o uso na gravidez(103) (Quadro 2). Inibidores da bomba de protões (IBP) Os I.B.P. actuam ao nível da célula parietal do estômago inibindo a bomba H+,K+ ATPase. Actualmente, encontram-se disponíveis no mercado 5 I.B.P.: o omeprazol, o lanzoprazol, o pantoprazol, o rabeprazol e o esomeprazol. São fármacos muito eficazes no tratamento da D.R.G.E e da D.U.P.(127) e fazem parte da maioria dos esquemas de terapêutica para a erradicação do H. pylori.(128) Embora seja provável a segurança destes medicamentos para o uso durante a gravidez, não há dados suficientes na literatura que a possam comprovar. Lanzoprazol Estudos em animais de laboratório não revelaram efeitos nefastos do lanzoprazol sobre o feto.(103,144) Os poucos estudos existentes em humanos não parecem revelar qualquer efeito teratogénico do lanzoprazol sobre o feto.(137,138) A FDA classifica-o como fármaco de categoria B para o uso na gravidez(103) (Quadro 2). 102 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 9 Nuno Paz claritromicina durante a gravidez. Este fármaco é classificado pela FDA como de categoria C para o uso na gravidez(103) (Quadro 2). Rabeprazol, Pantoprazol e Esomeprazol Não estão descritos efeitos teratogénicos para o feto após exposição a qualquer um destes I.B.P., em animais de laboratório (103). No entanto, uma revisão da literatura não descreve nenhum estudo realizado em humanos.(71) Mesmo assim, a FDA classificaos como fármacos de categoria B para o uso durante a gravidez(103) (Quadro 2). Subsalicilato de bismuto coloidal O subsalicilato de bismuto coloidal é hidrolisado no aparelho digestivo em sais de bismuto inorgânico e salicilato. A absorção sistémica do bismuto parece negligenciável; um estudo que envolveu 144 crianças expostas “in útero” ao subsalicilato de bismuto, não mostrou qualquer efeito teratogénico, excepto um ligeiro aumento do número de hérnias inguinais.(147) Fármacos utilizados na erradicação do H. pylori A erradicação do H. pylori veio alterar de forma significativa a história natural da úlcera péptica, com especial destaque para a diminuição da recidiva da úlcera duodenal.(145) No entanto, os efeitos adversos sobre o feto da maioria dos antibióticos utilizados na erradicação desta bactéria desaconselham o tratamento da mesma, durante a gravidez. No entanto, o outro componente do fármaco é absorvido quase totalmente e atravessa a barreira placentária.(149) A “aspirina”, que pertence ao grupo dos salicilatos, pode provocar hemorragia intracranêana quando administrada no pré-termo, pela sua acção anti-agregante plaquetária.(150) Pode, do mesmo modo, provocar o encerramento prematuro do canal arterial, através da inibição da prostaglandina sintetase.(151) Assim, o subsalicilato de bismuto coloidal é catalogado pela FDA como fármaco do grupo C para o uso durante a gravidez(103) (Quadro 2). Amoxicilina A amoxicilina é um derivado da penicilina que tem sido largamente utilizado no tratamento de infecções urinárias durante a gravidez sem qualquer efeito adverso para o feto.(146,147) O mesmo estudo de fármacovigilância(71) apenas detectou 3,7% de malformações em 8538 crianças expostas à ampicilina, uma taxa inferior ao grupo de controlo. A amoxicilina parece ser um antibiótico seguro durante a gravidez e está classificada pela FDA como fármaco de categoria B(103) (Quadro 2). Tetraciclina A tetraciclina atravessa a placenta e a sua utilização na 2ª metade da gravidez provoca pigmentação amarelo-acastanhada nos dentes dos recém-nascidos, resultante da sua acção quelante sobre o ortofosfato de cálcio durante o crescimento ósseo e dentário.(152) Pode também ser responsável por um quadro de esteatose hepática com icterícia.(153) A tetraciclina não está associada ao aumento da incidência de malformações congénitas major, no entanto o possível aumento de hérnias inguinais tem sido referido.(147) Claritromicina A claritromicina é um antibiótico que pertence ao grupo dos macrólidos. Alguns estudos em animais de laboratório demonstraram aumento de anomalias cardio-vasculares e atraso de crescimento intra-uterino.(103) Num estudo prospectivo multicêntrico foram detectados 22 abortos espontâneos e 3 malformações congénitas major em 122 mulheres expostas à claritromicina (no grupo de controlo - 11 abortos e 2 malformações).(148) Foram comunicados à FDA 6 casos isolados de malformações congénitas após exposição à Quatro casos de catarata congénita foram comunicados à FDA associados ao uso de tetraciclina na gravidez e aleitamento.(154) Este antibiótico está classificado pela FDA como fár103 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 10 DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA NA GRÁVIDA maco de grupo D para o uso durante a gravidez(103) (Quadro 2). Análogos das prostaglandinas O misoprostol é um análogo sintético da prostaglandina E1 que possui propriedades citoprotectoras e anti-secretoras e está aprovado pela FDA como fármaco de 1ª linha na prevenção da úlcera gástrica em doentes de risco que utilizam A.I.N.E.s. No entanto, o seu efeito abortivo documentado em humanos, torna-o um medicamento de categoria X para uso na gravidez(94,103) (Quadro 2). A capacidade do misoprostol provocar contracções uterinas com hemorragia e indução do aborto foi comprovada em humanos em vários estudos controlados.(162-165) Metronidazol Apesar do metronidazol atravessar a barreira placentária, a maioria dos estudos publicados, alguns deles controlados, em humanos, sugerem que este antibiótico não é teratogénico.(155-159) Dois estudos, porém, vieram levantar algumas dúvidas em relação à inocuidade deste medicamento: o 1º, realizado na Hungria, fez a associação da exposição ao metronidazole no 1º trimestre da gravidez com o aumento da incidência da fenda palatina e do lábio leporino(158); o 2º, realizado nos E.U.A., no Tennessee, refere um aumento estatisticamente significativo do risco relativo de desenvolvimento de neuroblastoma após exposição ao metronidazole.(160) O efeito teratogénico do misoprostol também parece incontestável. Foram descritas 20% de anomalias cardíacas congénitas em mulheres grávidas expostas ao misoprostol durante a gravidez.(71) Outros estudos controlados comprovaram um aumento da incidência de defeitos nos membros (síndrome de Mobyus), em mulheres expostas a este fármaco no 1º trimestre da gravidez.(166-169) Os análogos das prostaglandinas estão absolutamente contraindicados durante a gravidez, devido aos seus efeitos abortivos e teratogénicos. Este fármaco está classificado pela FDA como pertencente ao grupo B para o uso na gravidez(103) (Quadro 2). No entanto, a sua utilização no 1º trimestre deve ser desencorajada devido à possível associação com o aparecimento das malformações referidas atrás.(161) Outros fármacos Mulheres em idade fértil que tomam este fármaco com regularidade devem ser aconselhadas a usar métodos de contracepção eficazes ou suspenderam o mesmo sempre que desejam engravidar. Simeticone O simeticone é uma substância química que se encontra incorporada em muitas fórmulas comerciais de anti-ácidos e que possui um efeito anti-flatulento, actuando na dissolução do gás intestinal. Um estudo de fármaco-vigilância realizado em 248 crianças expostas ao simeticone no 1º trimestre da gravidez detectou 14 malformações congénitas major (5.5%).(71) Este medicamento pertence ao grupo C da tabela da FDA para o uso na gravidez(103) (Quadro 2). Embora a sua utilização seja provavelmente segura, é aconselhável o uso de anti-ácidos sem simeticone durante o 1º trimestre da gravidez. Terapêutica cirúrgica As indicações para a cirurgia na D.U.P. são usualmente as mesmas na gravidez e na população em geral. Perfuração A perfuração de úlcera péptica continua a ser uma indicação clara para cirurgia urgente apesar da gravidez. Becker-Andersen e Husfeldt(170) mostraram uma evolução favorável para a mãe e para o feto, nas grávidas 104 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 11 Nuno Paz operadas a úlcera péptica perfurada, quando comparadas às submetidas a terapêutica médica. Na mulher grávida, as recomendações terapêuticas devem ser alteradas em função das preocupações relacionadas com a segurança fetal dos vários medicamentos disponíveis (figura 1). Após as medidas dietéticas adequadas e das alterações recomendadas ao estilo de vida, a dispepsia na grávida deve ser tratada em 1º lugar com anti-ácidos ou sucralfato. Hemorragia Os riscos da hemostase endoscópica da úlcera péptica sangrante, durante a gravidez, não estão estabelecidos. Actualmente é considerado um procedimento experimental que, apesar de tudo, pode vir a ser justificável quando a única alternativa é a cirurgia. As indicações cirúrgicas da hemorragia por úlcera péptica, durante a gravidez, são a hemorragia persistente após transfusão de 6 ou mais unidades de concentrado eritrocitário, hemorragia macissa não controlada e, recidiva hemorrágica precoce com instabilidade hemodinâmica.(170) Os anti-ácidos contendo magnésio devem ser evitados no final da gestação. Se os sintomas permanecem, a utilização de A.H.2 está indicada. Os efeitos anti-androgénicos da cimetidina e o perfil de segurança melhor documentado da ranitidina em relação à famotidina e nizatidina, fazem da ranitidina o A.H.2 de eleição. A persistência da sintomatologia deve, nesta fase, recomendar a realização de uma E.G.D. após a qual deve ser ponderada a terapêutica com I.B.P.s. O lanzoprazol, é actualmente, o I.B.P. de eleição uma vez que, altas doses de omeprazol podem ser letais para o embrião em animais de laboratório e não há estudos clínicos disponíveis em relação à segurança dos inibidores mais recentes. Estenose A estenose péptica deve ser tratada cirurgicamente quando a terapêutica médica intensiva não é eficaz.(170) Não há qualquer referência na literatura em relação à eficácia da dilatação endoscópica com balão, da estenose péptica. Embora alguns estudos menos recentes mostrem uma mortalidade fetal significativa após laparotomia durante a gravidez, outros trabalhos mais actuais parecem ser mais favoráveis em relação ao prognóstico do feto. Apesar de tudo, a laparotomia é considerada uma causa importante de parto prematuro e de recém-nascido de baixo peso, factores que estão normalmente associados a complicações neo-natais. A terapêutica de erradicação do H. pylori é geralmente desencorajada durante a gravidez e deverá ser diferida para o período pósparto devido ao potencial risco fetal da maioria dos antibióticos. O linfoma de MALT é a única excepção para o tratamento do H.Pylori.(170) O esquema de irradicação preconizado inclui a amoxicilina e a claritromicina/metronidazol. O uso da tetraciclina e do misoprostol está absolutamente contra-indicado na gravidez. CONCLUSÃO Na população em geral, os I.B.P.s. são considerados fármacos de 1ª linha para o tratamento da esofagite de refluxo e da úlcera péptica, devido à sua elevada eficácia e segurança. Os A.H.2 são medicamentos de 2ª escolha e os anti-ácidos e o sucralfato são quase sempre utilizados nas formas menos graves de doença, para alívio sintomático. As indicações para a cirurgia incluem a perfuração de úlcera, a hemorragia persistente, macissa ou recidivante com instabilidade hemodinâmica, a estenose refractária à terapêutica médica e a úlcera gástrica maligna. 105 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 12 DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA NA GRÁVIDA QUADRO II - SEGURANÇA FETAL DOS MEDICAMENTOS USADOS NO TRATAMENTO DA ÚLCERA PÉPTICA. CATEGORIA DA FDA COMENTÁRIOS Anti-ácidos Simeticone Sucralfato C B Geralmente seguro Antagonistas dos receptores H2 Cimetidina Ranitidina Famotidina Nizatidina B B B B Inibidores da bomba de protões Omeprazol Lanzoprazol Rabeprazol Pantoprazol Esomeprazol C B B B B Misoprostol X Fármacos utilizados na terapêutica de irradicaçãp do H.Pylori Amoxicilina Claritromicina Subsalicilato de bismuto Tetraciclina B C C D Metronidazol B* FÁRMACO Abortivo e teratogénicoa Causa pigmentação amarelo-acastanhada nos dentes dos recém-nascidos D - Há uma evidência positiva de risco para o feto (só deve ser utilizado em situações graves para as quais não hajam outros fármacos seguros e eficazes). Definições das categorias da FDA(118) B - Estudos em animais de reprodução não demonstraram risco fetal mas não há estudos controlados em mulheres grávidas ou animais de reprodução que tenham mostrado efeitos adversos (além da redução da fertilidade) e os mesmos não foram confirmados em estudos controlados em grávidas no 1º trimestre (e não há evidencia de risco nos últimos trimestres). X - Estudos em animais ou humanos demonstraram anomalias fetais ou há evidência de risco para o feto baseada na experiência em humanos e o risco do uso do fármaco na mulher grávida ultrapassa qualquer possível benefício. Está absolutamente contraindicado o seu uso na gravidez. C - Estudos em animais de laboratório revelaram efeitos adversos no feto e não há estudos controlados em mulheres grávidas ou estudos em mulheres ou animais não estão disponíveis. Os fármacos devem ser administrados apenas se os benefícios justificarem o potencial risco para o feto. ª Causa malformações congénitas - síndrome de Mobyus ou encurtamento dos membros. * O Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia desencoraja o uso do fármaco no 1º trimestre da gravidez. 106 Cap05UlcerosaPeptica.qxp 21-11-2005 16:03 Page 13 Nuno Paz BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. Singer AJ, Brandt LJ. Pathophisiology os the gastrointestinal tract during pregnancy.Am J Gastroenterol 1991;86:1695-1711. Cuningham FG, Gant NF, Leveno KJ, et al. Gastrointestinal disorders. In: William’s obstet rics.21st edition.New York:McGraw-Hill;2001.p.1273-1306. Hess LW, Morrison JC, Hess DB. General medical disorders during pregnancy. In:DeCherney AH, Pernoll ML, editors. Current obstetric and gynecologic diagnosis and treatment. 8th edition Norwalk (CT): Appletom & Lange; 1994. Jones PF, McEwan AB, Bernard RM. 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Abordaremos neste capítulo: 1. as alterações fisiológicas na gravidez que predispõem à ocorrência de obstipação e o tratamento da obstipação, parte importante da terapêutica médica da patologia proctológica; 2. a doença hemorroidária; 3. a fissura anal; 4. a incontinência anal relacionada com o trabalho de parto. Devemos estar aptos a informar a mulher dos prós e contras dos métodos operatórios e não operatórios, da margem de latitude da abordagem conservadora, dos benefícios do alívio imediato e do risco de aborto. Durante a gravidez, a obstipação pode surgir de novo ou haver agravamento da obstipação crónica pré-existente(1). Ocorre por alterações fisiológicas e condições associadas à gravidez (quadro 1). O trânsito intestinal não foi estudado nas mulheres grávidas muito provavelmente por razões de ordem ética. Os dados que derivam de estudos animais sugerem que as hormonas sexuais femininas, nomeadamente o aumento da progesterona e a diminuição da motilina, diminuem a contractilidade do músculo liso e aumentam o tempo de trânsito intestinal, motivando obstipação(2). Os estudos publicados, poucos e nenhum recente, referem uma incidência de obstipação de aproximadamente um terço no terceiro trimestre(3,4). Num trabalho Israelita a incidência é de apenas 11%(5). Contudo, na maioria dos casos, as mulheres grávidas não têm alterações significativas do trânsito intestinal, e quando existe obstipação não são necessários estudos especiais para investigação(6). QUADRO I - FACTORES QUE CONTRIBUEM PARA A OBSTIPAÇÃO DURANTE A GRAVIDEZ Dieta - Náuseas e vómitos com diminuição da ingestão de líquidos Comportamental- Diminuição da actividade física Stress psicológico Alterações hormonais (trânsito gastrointestinal lento)Aumento da progesterona Outros - 115 Aumento dos estrogéneos Diminuição da motilina Útero grávido aumentado Hemorróidas dolorosas Fármaco (por ex. ferro oral) Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 2 PATOLOGIA PROCTOLÓGICA DURANTE A GRAVIDEZ E PUERPÉRIO TRATAMENTO DA OBSTIPAÇÃO DURANTE A GRAVIDEZ Estes ácidos estimulam a acumulação de fluidos no cólon por efeito osmótico, produzindo fezes moles. Como efeito secundário causam flatulência e meteorismo que limitam o seu uso. A lactulose contem lactose e galactose, e deve ser usada com precaução nos diabéticos. As náuseas da grávida podem agravar com a lactulose(8). O polietilenoglicol (PEG) foi aprovado como laxante osmótico na dose diária de 8 a 25 gramas, em pó para dissolução em água.9 A distensão abdominal e a flatulência não são problemáticos como com as fibras e os açúcares pouco absorvidos, pois as bactérias cólicas não hidrolisam o PEG. A absorção de sal e água não é um problema porque a solução não contém electrólitos. Embora não esteja estabelecida a segurança durante a gravidez, o PEG é inerte, a absorção mínima e a toxicidade improvável. Os docusatos amolecem as fezes por diminuírem a tensão de superfície, permitindo que o líquido intestinal penetre nas fezes. Contudo, têm eficácia questionável no tratamento da obstipação crónica, estando registado um caso de hipomagnesémia neonatal associado à toma oral pela mãe de docusato de sódio(10). Os óleos minerais têm acção emoliente e são eficazes, particularmente em enemas, para os fecalomas impactados. A administração oral tem riscos, nomeadamente a pneumonia lipóide, nas doentes com dificuldade na deglutição. O uso repetido está associado à diminuição da absorção das vitaminas lipossolúveis, hipoproteinémia neonatal e hemorragia(11). Os laxantes irritantes reservam-se para as doentes que não responderam aos laxantes de volume e osmóticos. Estes agentes actuam afectando a motilidade intestinal e o transporte de electrólitos e líquidos. Podem provocar cólicas abdominais, habituação e tolerância, sendo necessário aumentar a dose com o decorrer do tempo. O sene e a cascara são antraquinonas e podem ser administrados, com segurança, 2 a 3 vezes por semana, de preferência ao deitar com muita água, e se A obstipação é um sintoma e pertence, portanto, ao domínio do subjectivo. Devemos tranquilizar e informar a doente acerca do que são os hábitos intestinais normais, da importância da dieta rica em fibra, da ingestão de líquidos e do exercício físico moderado. O aumento da motilidade cólica no período pós-prandial, deve servir de estimulo para defecar de manhã e após as refeições. A dieta rica em fibra e os laxantes de volume como o psyllium, a metilcelulose ou policarbofil, com ingestão adequada de líquidos, são a terapêutica mais fisiológica da obstipação na grávida. Os laxantes estimulantes devem ser reservados para os casos que não respondem a estas medidas iniciais.(7) A fibra é a porção dos alimentos que escapa ao processo de digestão. É composta por componentes solúveis e insolúveis. Em geral, as fibras cereais retêm água na sua estrutura celular, resistente à digestão, enquanto as fibras dos frutos e legumes estimulam o crescimento da flora cólica. O farelo de trigo é uma fibra laxante altamente eficaz, com um efeito dose-dependente na massa fecal. O tamanho das partículas pode ser importante, pois os cereais com maiores partículas parecem estimular mais o trânsito cólico(7). As doentes com dieta pobre em fibra devem ingerir 2 a 6 colheres de sopa de farelo a cada refeição e líquidos em quantidade adequada. O efeito laxante pode demorar 3 a 5 dias e o alívio da obstipação algumas semanas. Os vegetais e frutos contêm fibra solúvel mas nem sempre são substitutos adequados do farelo. O farelo pode causar distensão abdominal e flatulência, e deve ser ingerido com muitos líquidos. Estes sintomas podem ser aliviados iniciando com pequena quantidade e aumentando gradualmente, conforme tolerado para o efeito desejado(1). O sorbitol e a lactulose, açúcares pouco absorvidos, são hidrolisados pelas bactérias cólicas em ácidos láctico, acético e fórmico. 116 Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 3 Vítor Fernandes, Rui Loureiro esponjosa. Finalmente, forma um revestimento compressível, permitindo o encerramento completo do ânus(13,14). Muitos factores foram implicados no desenvolvimento da doença hemorroidária incluindo o esforço defecatório excessivo, a pressão intra-abdominal aumentada, a ausência de valvas nos vasos hemorroidários, a posição vertical da espécie humana, a obstipação crónica e os factores genéticos(13). Como anteriormente mencionado, durante a gravidez é mais frequente a obstipação, e o volume de sangue circulante aumenta 25 a 40%, o que aumenta a dilatação, ingurgitamento e estase venosa(13). Estes factores associados ao útero grávido aumentado, à lassidão do pavimento pélvico e ao ambiente hormonal, favorecem a ocorrência de doença hemorroidária em 8 a 24% das grávidas(15). O esforço e traumatismo associado com o trabalho de parto contribuem para a manifestação de hemorróidas sintomáticas em 12 a 34% das parturientes(15). A doença hemorroidária externa manifesta-se por tumefacção peri-anal dolorosa, na trombose aguda. Raramente sangram, a não ser quando a trombose causa necrose e ulceração da pele sobrejacente(16). Em contraste, as hemorróidas internas revelam-se, habitualmente, por hemorragia de sangue vermelho vivo, indolor, que pinga na sanita ou suja o papel, no fim do esforço defecatório. Quando são grandes e prolapsam, pode ocorrer desconforto e prurido associados a escorrência de muco e pequenas partículas de fezes.(16) A limpeza frequente, na tentativa de aliviar o prurido, pode agravar o problema. Contudo, a causa mais frequente de prurido anal “idiopático” é o relaxamento transitório do esfíncter anal interno, com a saída de fezes líquidas, levando a lesões de coceira que agravam ainda mais o prurido(16). Uma complicação muito dolorosa das hemorróidas internas é o prolapso com encarceração e trombose(16). As hemorróidas internas são classificadas por graus: as hemorróidas de primeiro grau sangram mas não prolapsam e podem ver-se possível associados a fibra(7). O aloé produz mais cólicas e foi associado a malformações congénitas(12). Com a retirada do mercado da fenolftalaina, o bisacodil é o único laxante difenilmetano disponível. Somente 5% é absorvido e excretado na urina. O bisacodil embora seguro na grávida produz mais cólicas que as antraquinonas, especialmente quando administrado por via oral(7). Também é eficaz sob a forma de supositórios. Os laxantes a evitar na gravidez são o óleo de castor, por causar contracções uterinas, e os agentes hiperosmóticos salinos, como os laxantes à base de magnésio e fosfosoda, por provocarem retenção hidrossalina(12). Os fecalomas impactados no recto, causa de obstrução intestinal e falsa diarreia por passagem de fezes líquidas entre as fezes duras, são raros na gravidez. As fezes duras devem ser fragmentadas digitalmente, seguindo-se a administração de enemas de água com óleo mineral para amolecer as fezes. HEMORRÓIDAS NA GRAVIDEZ As hemorróidas sintomáticas são frequentes na população adulta. Estima-se que afectam aproximadamente 50% da população nalguma altura da vida(1). É frequente surgirem queixas pela primeira vez durante a gravidez, nomeadamente a tumefacção anal, a hemorragia, a dor e o prurido(13). As hemorróidas externas surgem do plexo hemorroidário inferior e estão cobertas por epitélio estratificado da anoderme. As hemorróidas internas localizam-se acima da linha dentada ou pectínea, surgem do plexo hemorroidário superior, estão cobertas por epitélio colunar e são compostas por convolutos de artérias e veias, tecido conjuntivo e músculo liso(13). O tecido hemorroidário tem três funções principais. Primeiro, mantém a continência anal, pois o preenchimento vascular constitui 15 a 20% da pressão anal em repouso. Segundo, protege o mecanismo esfincteriano durante a evacuação ao formar uma almofada 117 Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 4 PATOLOGIA PROCTOLÓGICA DURANTE A GRAVIDEZ E PUERPÉRIO apenas com o anuscópio; as hemorróidas de segundo grau prolapsam durante a defecação ou com o esforço, mas voltam à posição interna quando o esforço pára; as hemorróidas de terceiro grau estão continuamente prolapsadas mas reduzem-se manualmente com pouco esforço; as hemorróidas de grau quatro são caracterizadas por prolapso irredutível(1,16). das anti-obstipantes, como a dieta rica em fibra, suplementos de fibra e líquidos(1). As mulheres grávidas, a tomar suplementos de ferro, devem mudar para uma fórmula de libertação lenta, menos obstipante(1). Os sintomas minor, como o prurido e desconforto anal, podem ser controlados com tópicos como os protectores da pele (creme gordo) após a defecação, anestésicos contendo benzocaina, dibucaina ou pamoxina(1). Os produtos contendo epinefrina ou fenilefrina, que provocam vasoconstrição, diminuindo o edema hemorroidário, devem ser usados com precaução durante a gravidez, especialmente nas mulheres hipertensas, diabéticas ou com sobrecarga de líquidos(19). Pomadas com hidrocortisona são seguras e podem aliviar o prurido(1). Os venotrópicos como a diosmina micronizada em altas doses (2 a 3 g/dia) e os derivados da ginkgo biloba podem ser utilizados por curtos períodos no tratamento das manifestações da doença hemorroidária interna (hemorragia, prolapso e dor)(17). A sua utilização não se justifica por longos períodos. Não têm efeitos secundários de destaque, mesmo na grávida, excepto casos isolados de colite linfocítica, associados à utilização de diosmina(17). Não existem estudos a validar a utilização dos venotrópicos nas hemorróidas externas trombosadas. Os anti-inflamatórios esteróides sistémicos podem ser utilizados nas hemorróidas dolorosas na grávida, por curtos períodos, associados ou não a analgésicos (paracetamol) e venotrópicos (hidroxietilrutosido e diosmina). Os anti-inflamatórios não esteróides, apesar de eficazes na dor e inflamação das hemorróidas internas e externas trombosadas, estão contra-indicados na gravidez. A aspirina é desaconselhada na doença hemorroidária(17). Os procedimentos invasivos, instrumentais ou cirúrgicos, justificam-se apenas quando o feto ou a mãe correm riscos caso não se intervenha. Assim, as indicações para intervenção na grávida são a hemorragia abundante ou activa e a dor intensa, refractária ao tratamento médico(17). A segurança e a eficácia não estão bem TRATAMENTO DAS HEMORRÓIDAS DURANTE A GRAVIDEZ Um princípio básico é tratar apenas as hemorróidas sintomáticas. As hemorróidas externas não requerem tratamento, a não ser na trombose aguda. Se a doente é observada numa fase sub-aguda, com a dor em fase de alívio, a trombose em resolução, sendo o edema sobrejacente preponderante, o tratamento conservador é recomendado e suficiente(1). Este consiste em amolecer as fezes, analgesia, frio local e banhos de assento com água morna. Tendo em conta o seu modo de acção, os tratamentos locais contendo corticóides ou incluindo um excipiente lubrificante ou protector mecânico, podem ser propostos por curtos períodos(17). Se a dor é intensa e o coágulo está sob tensão, a excisão sob anestesia local é segura e efectiva durante a gravidez. Procede-se à incisão, drenagem do coágulo e excisão do saco vascular(18, 19). A parturiente e a viabilidade fetal não são afectadas. A maioria das mulheres não necessita de outra intervenção no pós-parto. Ao contrário, a incisão e a remoção apenas do coágulo é uma terapêutica inadequada porque habitualmente há recorrência da trombose. A ferida dolorosa na margem do ânus que resulta da excisão, responsável por dor e hemorragia ligeira a moderada, cicatriza entre uma a duas semanas. Os analgésicos como o paracetamol e os cuidados locais (desinfecção e aplicação tópica de cicatrizante) são suficientes. As hemorróidas internas são geralmente tratadas de maneira conservadora com medi118 Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 5 Vítor Fernandes, Rui Loureiro avaliadas, nem há estudos controlados a comparar as diversas técnicas. O consentimento informado deve incluir os possíveis riscos para o feto e para a mãe(1,17). A base fisiopatológica do tratamento instrumental consiste em provocar fibrose cicatricial que fixe a mucosa aos planos profundos e reduza a vascularização e prolapso(17,20). A trombose hemorroidária interna ou externa, a fissura anal, a supuração ano-perineal, a proctocolite hemorrágica activa, a doença de Cröhn e a imunodepressão grave são contra indicações ao tratamento instrumental das hemorróidas(17,20). injectados na base das hemorróidas internas grau um e dois. Contudo, a sua utilização na grávida não é consensual(17). A laqueação elástica é eficaz no tratamento das hemorróidas internas de primeiro e segundo grau, devendo os elásticos ser colocados 1 cm acima da linha pectínea(1,17,20). A aplicação de 3 elásticos numa sessão permite obter resultados comparáveis a 3 sessões, sem aumentar as complicações. Podem aplicar-se 2 elásticos no mesmo pedículo ou combinar-se a técnica da laqueação com a da injecção da hemorróida laqueada, para evitar a saída do elástico. As sessões devem ser espaçadas de 4 semanas(17). No caso de hemorragia e prolapso moderado, a laqueação elástica combinada com a esclerose têm uma eficácia de aproximadamente 80%, devendo ser a primeira escolha(17). As hemorróidas internas com sintomas refractários, na população não grávida, devem ser tratadas com procedimentos instrumentais simples realizados em regime ambulatório, como a laqueação elástica, a injecção de esclerosante, a fotocoagulação, a electrocoagulação com corrente monopolar, bipolar ou o árgon(17, 20). A crioterapia é menos eficaz e mais dolorosa e, portanto, não deve ser usada(17, 20). O laser é caro e não tem vantagens em relação às outras técnicas(17,20). A fotocoagulação com infravermelhos e a fulguração com árgon é segura e eficaz nas hemorróidas de grau um e dois em doentes não grávidas e, teoricamente, é seguro nas grávidas(1). Provocam uma queimadura superficial nos pedículos hemorroidários, sendo teoricamente menos eficazes que a laqueação, reservando-se para as hemorróidas pequenas sangrantes e doentes com discrasia hemorrágica, pelo menor risco de hemorragia tardia(17,20). Na electrocoagulação monopolar e bipolar é frequente a dor intensa e as perdas hemáticas importantes nos dias seguintes ao tratamento, não tendo vantagens em relação à laqueação elástica(17,20). A injecção de esclerosantes, usando o óleo de fenol a 5%, a quinina, o morruato de sódio, o oleato de etanolamina ou o polidocanol a 2%, parece ser segura e eficaz durante a gravidez(1). Estes agentes esclerosantes são As complicações minor, comuns a todas as técnicas instrumentais, são a dor e as rectorragias. A dor é frequente e, na maioria das vezes, referida como um simples desconforto, mas pode ser intensa e persistir alguns dias. Surge em 5 a 85% dos doentes após a esclerose e a laqueação(17). As rectorragias podem ocorrer até ao 15º dia associadas à necrose da mucosa. São observadas em 2 a 10% após a injecção de esclerosante, 1 a 15% após a laqueação elástica e 5 a 25% após a fotocoagulação(17). Complicações mais significativas podem ocorrer em 1 a 5% dos casos, após laqueação das hemorróidas, como a trombose das hemorróidas externas/internas, disúria, retenção urinária e dor intensa(17,20). As rectorragias abundantes, necessitando de hemostase cirúrgica ou transfusões, estão descritas em 0,5 a 2% dos casos(17,20). Devem-se à queda da escara entre o 5º e 15º dia. Embora raras, a supuração e a celulite pélvica, são complicações que podem ocorrer(17,20). Devemos alertar os doentes para o caso de dor persistente, queixas urinárias ou supuração, após o 3º dia. Não é consensual o uso de antibioterapia profilática após a laqueação e a esclerose, embora alguns autores a recomendem(17,20). 119 Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 6 PATOLOGIA PROCTOLÓGICA DURANTE A GRAVIDEZ E PUERPÉRIO As hemorróidas internas de terceiro e quarto grau são, habitualmente, tratadas cirurgicamente sob anestesia geral em regime de internamento. A laqueação elástica, nesta situação, é pouco eficaz e são frequentes as complicações, nomeadamente a trombose do prolapso hemorroidário(17,20). A cirurgia proctológica na grávida está reservada para as complicações graves da doença hemorroidária (politrombose hiperálgica e anemia aguda), após o insucesso do tratamento médico e instumental(1,17). sempre que possível, para evitar a compressão da veia cava e aorta; confirmar a presença dos sons fetais antes e depois da intervenção; ter suporte obstétrico(22). São necessários mais estudos controlados para clarificar a segurança da escleroterapia, da laqueação elástica e da cirurgia. Por tudo isto devemos dar preferência ao tratamento médico, sendo o tratamento instrumental e cirúrgico o último recurso. A hemorroidectomia aberta com laqueação do pedículo (Milligan e Morgan), fechada usando sutura absorvível (Ferguson) e a hemorroidectomia sub-mucosa (Parks), são as técnicas cirúrgicas convencionais, muito dolorosas no pós-operatório(20,21). A hemorroidectomia com stapler (mucosectomia circunferencial de Longo), que consiste na remoção de um anel de mucosa rectal redundante acima dos pedículos hemorroidários, é uma técnica menos dolorosa(20,21). O stapler descartável acresce aos custos da cirurgia, que apresenta como complicações, entre outras, as falsas vontades e a estenose anal. A hemorroidectomia com anestesia local é segura e eficaz na grávida e na puerpera(1,17). Por fissura anal (FA) entende-se uma úlcera de forma oval, de localização bem definida e com perda local de substância. Na população não grávida, aproximadamente 90% das FA idiopáticas são posteriores e 10% anteriores, locais de menor elasticidade e irrigação sanguínea. A hipertonia é tida como factor perpetuador da fissura(15). Contudo, na parturiente, 40% das FA são anteriores e a hipertonia não é relevante. Corby e col. efectuaram manometria ano-rectal e não constataram aumento da pressão de repouso, contrariamente às doentes com FA fora do pós-parto(15). Estes dados sugerem uma fisiopatologia diferente da FA na parturiente. Os riscos da cirurgia incluem: hipoxia fetal, resultante da hipoxia e hipotensão materna; diminuição do fluxo sanguíneo uterino resultante da sedação excessiva ou do posicionamento, causado pela compressão da veia cava inferior ou da aorta pelo útero grávido; teratogenecidade pela medicação(17,22). A FA ocorre preferencialmente nas semanas seguintes ao parto, com uma incidência que varia de 9 a 15%(15). No estudo de Corby e col.(23), a obstipação ocorre em 62% das mulheres no puerpério com FA versus 29% das mulheres sem FA. Para este autor nenhum factor obstétrico parece afectar a incidência desta patologia. Para Abramowitz e col.(24), além da obstipação terminal, factor primordial, a discinésia resultante do parto traumático parece ser um factor de risco para a FA. FISSURA ANAL NA GRÁVIDA Os princípios básicos que devem guiar os tratamentos instrumentais ou cirúrgicos na grávida são: ter sempre uma forte indicação; sempre que possível diferir a intervenção para o pós-parto; usar a menor dose efectiva de sedação e anestesia, e fármacos da categoria A ou B de preferência aos da categoria C e D da “Food and Drug Administration”; posicionar a mãe na posição lateral esquerda, O tratamento da FA na grávida consiste na regularização do trânsito intestinal e de tópicos locais cicatrizantes, analgésicos e lubrificantes do canal anal. Em caso de insucesso, após 6 semanas de tratamento 120 Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 7 Vítor Fernandes, Rui Loureiro médico, o que é raro na parturiente, coloca-se a indicação cirúrgica. Realiza-se então uma fissurectomia, que pode associar-se a uma anoplastia (somente nas fissuras anais posteriores), sem realização de esfincterotomia(15). Os principais mecanismos de desenvolvimento de incontinência anal após o parto são a lesão mecânica do aparelho esfincteriano e/ou o compromisso da sua enervação em consequência do trauma obstétrico, influenciados por outros factores (quadro 3)(15). O nervo pudendo é um nervo sensitivomotor, responsável pela enervação do esfíncter anal externo e musculo pubo-rectal. Este nervo é susceptível de sofrer estiramento durante o período expulsivo do trabalho de parto, sendo notado um prolongamento do tempo de latência do nervo após um parto vaginal “normal”, e que aumenta com a paridade. Assim, partos múltiplos podem ser responsáveis por danos progressivos e, por vezes, irreversíveis no mecanismo de continência(15). A lesão do aparelho esfincteriano é uma causa major de incontinência anal após o parto, facto ilustrado pela existência de rotura esfincteriana em até 96% das parturientes com incontinência fecal. Por definição ocorre nas lacerações perineais de grau = 3, podendo, em grande número de casos, ser reconhecida apenas após realização de ecografia endo-anal. A lesão interessa mais frequentemente o esfíncter anal externo, na sua porção antero-direita. No entanto, nem todas as mulheres com lesão esfincteriana sofrem de incontinência(15). Como a incontinência anal é considerada um assunto embaraçoso pela doente, é necessário que o médico adopte uma abordagem cuidada e empática de modo a promover uma discussão aberta e confortável. INCONTINÊNCIA ANAL A incontinência anal, quer para fezes quer para gases, é uma condição social e psicologicamente debilitante, de incidência certamente subestimada, face à relutância em procurar assistência médica por este problema. O parto por via vaginal é considerado o factor predisponente mais comum para a incontinência anal nas mulheres, que apresentam uma incidência de incontinência fecal 8 vezes superior à dos homens. A incidência da incontinência anal de novo no pós-parto por via vaginal, em primíparas e multíparas, cifra-se nos 13% e 20,6%, respectivamente. Os dois primeiros partos são considerados os mais susceptíveis de provocar lesões anais e de induzir incontinência(15,25). No entanto, partos vaginais sucessivos aumentam o risco do desenvolvimento de lesões potencialmente irreversíveis e incontinência anal no futuro(15,25,26). Durante o primeiro mês após o parto verifica-se, habitualmente, uma melhoria da sintomatologia. Estes factos são ilustrados por uma incidência de incontinência anal de 21% e 7% um mês e um ano, respectivamente, após o parto, numa coorte de mulheres com lacerações do períneo de estádio = 3 (quadro 2)(25). QUADRO III - FACTORES DE RISCO PARA INCONTINÊNCIA ANAL NO PÓSPARTO QUADRO II - CLASSIFICAÇÃO DAS LACERAÇÕES PERINEAIS Utilização de fórceps Episiotomia mediana Lacerações perineais Duração prolongada do trabalho de parto (período expulsivo) Epidural Peso ao nascer> 4kg Paridade Antecedentes de incontinência anal no pós-parto Grau 1: laceração que envolve a mucosa vaginal e a pele perineal Grau 2: laceração que atinge os músculos perineais Grau 3: laceração que atinge o esfíncter anal externo Grau 4: laceração que atinge o esfíncter anal externo e mucosa ano-rectal 121 Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 8 PATOLOGIA PROCTOLÓGICA DURANTE A GRAVIDEZ E PUERPÉRIO É essencial a obtenção cuidada da história clínica, dando especial ênfase à duração e tipo de incontinência, a sua frequência, a característica das fezes perdidas e o impacto na qualidade de vida. massa e inibidores da motilidade intestinal(27). Os agentes formadores de massa, como a metilcelulose e o psyllium, associados ou não a restrição hídrica, podem tornar as fezes mais formadas, o que possibilita um melhor controlo da incontinência(15,27). É fundamental a revisão por órgão e sistemas para despiste de eventual doença sistémica, bem como os antecedentes traumáticos ou cirúrgicos, dando especial importância à história obstétrica, nomeadamente o número e o tipo de parto (instrumental ou não), a existência de lacerações e/ou episiotomia. Deve também ser realizada uma revisão dos hábitos dietéticos e medicamentosos. Fármacos como a loperamida podem ser utilizados com o intuito de, ao reduzir a motilidade intestinal, originarem fezes de maior consistência(27). As técnicas de reeducação perineal no pós-parto (biofeedback) são utilizadas com a intenção de restabelecer o normal funcionamento do pavimento pélvico. A sua utilização possibilita uma redução de 90% nos episódios de incontinência em mais de 60% dos casos(27).Quando associada a estimulação eléctrica do esfíncter anal, os resultados são ainda mais encorajadores(27). Quando as queixas de incontinência anal são major e persistem, apesar da terapêutica médica, poderá estar indicado o tratamento cirúrgico(15,27). Um exame proctológico cuidado, apesar de ser muito influenciado pela experiência do médico, é o mais útil e informativo componente da avaliação da doente. Pode fornecer informações acerca da posição e mobilidade perineais, bem como indícios de eventuais lesões no aparelho esfincteriano. Um mês após o parto, as queixas de incontinência anal tendem a melhorar ou mesmo desaparecer, pelo que não é recomendada qualquer investigação complementar, a não ser quando as queixas se prolongam para além dos 6 meses(15). No caso de sintomatologia minor persistente (incontinência para gases e/ou incontinência fecal esporádica), poderá ser realizada a manometria anal para o acompanhamento do resultado da terapêutica. No caso de sintomatologia major (incontinência fecal com repercussão evidente no estilo de vida), além da manometria deverá ser realizada uma ecografia endo-anal para eventual caracterização anatómica da lesão face a potencial conduta cirúrgica(15). Existem várias opções cirúrgicas para o tratamento da incontinência anal. A história, o exame clínico e os exames complementares de diagnóstico determinam a abordagem. Habitualmente, na presença de lesões esfincterianas, é realizada a esfincteroplastia anal anterior, associada ou não a outras correcções do pavimento pélvico (colporrafia ou perineorrafia por exemplo)(27). No entanto, a neuropatia do nervo pudendo associa-se a uma elevada taxa de insucesso terapêutico. Em doentes com incontinência anal idiopática ou neurogénica (habitualmente associada a desnervação do pavimento pélvico) alguns cirurgiões adoptam a reparação anal posterior. Estas duas abordagens são benéficas em 70 a 90% dos doentes(27). Após a exclusão de doença sistémica e patologia anal como origem das queixas, pode ser iniciado o tratamento. O tratamento médico da incontinência baseia-se no tipo e gravidade dos sintomas e inclui a utilização de técnicas de biofeedback, agentes formadores de Sob investigação encontram-se esfíncteres anais artificiais, com resultados encorajadores(27). 122 Cap06Patologia.qxp 21-11-2005 16:04 Page 9 Vítor Fernandes, Rui Loureiro BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. Wald A. Constipation, diarrhea, and symptomatic hemorrhoids during pregnancy. Gastroenterol Clin North Am 2003; 32: 309-322. Scott LD, Lester R, Van Thiel DH, Wald A. 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Mas há que, sobretudo, começar por distinguir a doença hepática aguda coincidente com a gravidez, a doença hepática prévia na grávida e a doença hepática exclusiva da gravidez (isto é, a doença hepática que ocorre apenas em grávidas e que resolve com o fim da gravidez). O correcto diagnóstico e a pronta intervenção terapêutica destas situações leva a uma diminuição considerável da morbilidade e mortalidade materna e fetal. Alguns sintomas referidos pela grávida são vagos e inespecíficos e o desconforto abdominal, as náuseas e os vómitos, são tanto sintoma de doença hepática, como apenas manifestações típicas de uma gravidez normal. Por outro lado, sinais como o eritema palmar e o aparecimento de aranhas vasculares ocorrem com alguma frequência na gravidez e desaparecem espontaneamente após o parto, não sendo indicadores de doença hepática(2). Nas mulheres saudáveis, existem poucas ou nenhumas alterações da função hepática durante a gravidez. Ainda assim, os valores da fosfatase alcalina aumentam ao longo de toda a gravidez devido à produção desta enzima pela placenta. Os níveis de colesterol plasmático tendem também a estar elevados, bem como os sais biliares. Por outro lado, o aumento do volume plasmático que ocorre durante toda a gravidez conduz a uma hemodiluição das proteínas plasmáticas, com a consequente diminuição dos valores da albumina. Todos os outros parâmetros analíticos relacionados com a função hepática, como as transaminases, a gGT e a bilirrubina, mantém-se estáveis ao longo dos três trimestres(1,2,3). A observação da grávida está limitada, uma vez que a palpação abdominal se torna difícil, devido à compressão dos órgãos abdominais por um útero em crescimento e que alguns exames imagiológicos estão interditos, pelo seu efeito nefasto sobre o feto. Qualquer doença com envolvimento hepático ou das vias biliares pode ocorrer durante a gravidez. A diminuição da secreção dos sais biliares, aliada ao aumento dos níveis de colesterol, aumenta a probabilidade da formação de cálculos de colesterol e de lamas biliares. Durante a gravidez, a frequência de episódios de cólica biliar em mulheres com litíase está aumentada, existindo igualmente uma maior probabilidade de ocorrência de colecistite aguda e de icterícia obstrutiva. Estes episódios devem ser prontamente tratados, como habitualmente, devendo ter-se em linha de conta o provável efeito nefasto de alguns antibióticos sobre o feto. Se for necessário, poderá ser efectuada colecistectomia (sendo mesmo uma das causas mais frequentes de cirurgia por patologia aguda na grávida), que apresenta pequena mortalidade e morbilidade materna e fetal(4). Contudo, as doenças mais frequentes e que originam maior preocupação, são as he- DOENÇA HEPÁTICA AGUDA COINCIDENTE COM A GRAVIDEZ 125 Cap07DhepaticaGravidez.qxp 21-11-2005 16:04 Page 2 DOENÇA HEPÁTICA NA GRAVIDEZ patites virais agudas, sendo estas a principal causa de icterícia na grávida. A infecção pela maioria dos vírus hepatotrópicos (A, B, C, D) não constitui um risco acrescido, quer para o decurso da gravidez, quer para o parto. Estes vírus não possuem efeitos mutagénicos ou teratogénicos, colocando-se, no entanto, o problema da transmissão de alguns deles, nomeadamente os vírus da hepatite B e C, ao feto. Porém, existem dois outros vírus (E, HSV), que acarretam uma significativa morbilidade e mortalidade materno-fetal(2,5,6). O Vírus da hepatite A (VHA) tem um curso semelhante na grávida e na não grávida, pelo que a infecção por este vírus, não vai afectar negativamente o curso da gravidez, nem do parto. Este vírus não é transmissível ao feto(2,5,6). No caso de ocorrer uma hepatite aguda a vírus B no decurso de uma gravidez, terá de ser considerada a probabilidade de transmissão viral ao feto. Assim, se a infecção for adquirida nos primeiros dois trimestres, existe uma elevada probabilidade de se verificar a clearance do antigénio Hbs (AgHbs) antes do parto, sendo por este motivo praticamente nula a transmissão do vírus ao feto. No entanto, se a infecção aguda ocorrer no último trimestre, a clearance do antigénio não ocorre antes do parto, e a probabilidade de transmissão do vírus ao feto é de cerca de 60 a 100%, se não houver nenhuma actuação em sentido contrário(7). Por este motivo, actualmente, qualquer recém-nascido de mãe que apresente um AgHbs positivo, deve ser imediatamente imunizado passivamente com imunoglobulina específica e iniciar a imunização activa com a vacinação para a hepatite B(7). Existem alguns estudos que demonstram que a administração de lamivudina na dose de 150 mg/dia nas últimas semanas da gravidez, em mulheres com positividade para o antigénio Hbs e que evidenciam replicação viral, poderá diminuir essa replicação, reduzindo assim a transmissão vertical do vírus da hepatite B (VHB), sem consequências nefastas para o feto(7,8,9). No Oriente, é comum a existência de infecção pelo vírus da hepatite E (VHE)(6). Este vírus, que tem um modo de transmissão fecal-oral semelhante ao VHA, é praticamente inofensivo em indivíduos saudáveis. No entanto, nas mulheres grávidas, esta infecção está associada a uma mortalidade elevada, de cerca de 15 a 20%, por falência hepática devido a hepatite fulminante, com rápida evolução do quadro clínico, manifestando-se pela presença de encefalopatia porto-sistémica, edema cerebral e coagulação intravascular disseminada. As causas da letalidade do vírus quando associado à gravidez, não são claras. A mortalidade fetal está também aumentada, mas directamente relacionada com a mortalidade materna. Não se encontra documentada a transmissão deste vírus ao feto(6). Devemos ter em consideração a infecção por VHE em grávidas com evidência de hepatite aguda que sejam oriundas ou que tenham viajado recentemente para países do Oriente. A hepatite por herpes simplex (HSV) é rara no adulto, mas, quando adquirida durante a gravidez, está associada a elevada mortalidade (cerca de 50% das grávidas afectadas). Caracteriza-se por um quadro de febre alta e mal-estar geral, sem icterícia, com valores de transaminases muito elevados (superiores a 1000UI/l), prolongamento do INR e hipoalbuminémia marcada. São habitualmente encontradas as lesões muco-cutâneas típicas da infecção herpética. A biopsia hepática mostra as inclusões virais intracelulares nos hepatocitos. Deve ser iniciada terapêutica com aciclovir o mais precocemente possível. Pode ocorrer transmissão do HSV ao feto, quer in utero, quer durante o parto, pelo que o recém-nascido deve ser vigiado nesse sentido a fim de ser prontamente tratado(2). DOENÇA HEPÁTICA PRÉVIA NA GRÁVIDA A cirrose hepática cursa habitualmente com infertilidade, pelo que a gravidez em doentes cirróticas, especialmente aquelas com cirrose da classe B e C de Child, raramente é 126 Cap07DhepaticaGravidez.qxp 21-11-2005 16:04 Page 3 Ana Luísa Alves um problema a considerar. As doentes com cirrose hepática bem compensada, de qualquer etiologia, e que conseguem ficar grávidas, apresentam maior probabilidade de ocorrência de complicações relacionadas com a gravidez, em especial a partir do segundo trimestre, quando o aumento do volume plasmático se torna significativo, favorecendo o aparecimento de hipertensão portal e, consequentemente, a ocorrência de hemorragia digestiva alta por rotura de varizes esofágicas. A terapêutica destes casos deve ser agressiva e idêntica à terapêutica em não grávidas. Mesmo na cirrose hepática bem compensada, assiste-se geralmente a uma deterioração da função hepática com o decorrer da gravidez. A mortalidade materna e fetal estão aumentadas nestas doentes, havendo ainda o risco de maiores complicações obstétricas e o aumento de abortos espontâneos. As doentes que foram submetidas a transplante hepático recuperam a sua fertilidade e, embora devam ser consideradas grávidas de risco, cerca de 70% têm gravidezes com curso perfeitamente normal(1). Um grupo actualmente muito importante são as mulheres com hepatite crónica viral, mais frequentemente a vírus B e C, que ficam grávidas e levam a gravidez a termo, sem risco acrescido para elas próprias, mas com risco de transmissão viral ao feto. As mulheres com hepatite crónica ao vírus B, que no último trimestre e na altura do parto são AgHbs positivas, com DNA-VHB positivo, traduzindo replicação viral, apresentam um risco de transmissão do vírus ao feto de cerca de 60 a 100%(7). Como já foi referido atrás, os recém-nascidos destas mães devem ser imunizados passiva e activamente o mais precocemente possível a seguir ao parto. Por existir a possibilidade de interromper, de modo seguro e eficaz, a transmissão do vírus B ao feto, todas as grávidas devem fazer a pesquisa de AgHbs. Após o parto, o aleitamento materno não está desaconselhado, a não ser que existam mastites ou soluções de continuidade nos mamilos(7). A infecção crónica pelo vírus da hepatite C (VHC) é, hoje em dia, uma situação frequente, sobretudo nos países ocidentais. Embora esta infecção não acarrete qualquer efeito teratogénico ou consequências nefastas para o decurso da gravidez ou do parto, existe o risco de transmissão do VHC ao feto. Este risco, embora menor que no caso da transmissão do VHB e que em mulheres co-infectadas com o VIH, é de cerca de 4,7%(10,11,12). É mais provável a ocorrência de transmissão viral em mulheres com replicação viral (apresentando RNA-VHC positivo) e com elevada virémia (superior a 10(6)cópias /ml)(1,10,12). O valor das transaminases não é predictivo da transmissão viral, uma vez que, por um efeito imunossupressor da gravidez, estes valores tendem a ser mais baixos durante a gravidez, voltando a elevar-se a seguir ao parto. O genotipo do vírus também não tem qualquer influência na transmissão deste ao feto(10,12). Embora não esteja indicada a pesquisa do VHC antes ou durante a gravidez, por não ser possível actuar no sentido de impedir a transmissão do vírus ao feto, sugere-se que a mulher que saiba estar infectada por este vírus, se submeta a tratamento com Interferon e ribavirina antes de ficar grávida, para obter uma redução ou negativação da carga viral(10). Mulheres com passado de toxicodependência de drogas endovenosas, promiscuidade sexual ou história de transfusões de sangue antes de 1990, poderão ser aconselhadas a fazer um teste para pesquisa de VHC, antes de uma possível gravidez(12). Não deve ser feita terapêutica anti-viral durante a gravidez, devido ao efeito teratogénico da ribavirina(10,12). O modo de transmissão do vírus ao feto pode ocorrer in utero (durante manobras invasivas, como a amniocentese) ou, mais frequentemente, durante o parto(10,11,12,13). Os estudos efectuados não relacionam o tipo de parto com uma maior ou menor transmissão do vírus(10). Embora se tenha detectado vírus no colostro e no leite materno, ele existe em concentrações pequenas e parece ser inactivado no tubo digestivo do feto, pelo que o aleitamento materno não é desaconselhado, ex127 Cap07DhepaticaGravidez.qxp 21-11-2005 16:04 Page 4 DOENÇA HEPÁTICA NA GRAVIDEZ ceptuando nos casos de infecção aguda a VHC durante a gravidez(1,10,12). Os recémnascidos de mãe com infecção crónica a VHC possuem anticorpos maternos adquiridos passivamente, que vão perdendo ao longo do primeiro ano de vida. Por este facto, a positividade para o VHC no recém-nascido não tem significado clínico. O diagnóstico de infecção nas crianças deve ser feito através da determinação do RNA-VHC, a partir dos três meses de idade. Presentemente não existe terapêutica ou imunização para os recém-nascidos de mães VHC positivas(10,12,14). Outras etiologias de doença hepática crónica não viral também não são incompatíveis com a gravidez. Assim, doentes com Hepatite auto-imune ou com Doença de Wilson podem engravidar e levar a sua gravidez a termo, mantendo a terapêutica para a sua doença de base. Aconselha-se a ter em atenção que alguns fármacos imunossupressores poderão ter de ser descontinuados durante a gravidez, por risco de provocar efeitos nefastos sobre o feto. Existe, contudo, um maior risco de aparecimento de complicações da gravidez e de partos prematuros(1). A hemocromatose não se manifesta habitualmente em mulheres durante a idade fértil, devido às perdas hemáticas durante a menstruação, pelo que não costuma colocar problemas em relação à gravidez. Existe ainda uma doença hepática prévia à gravidez que deve ser considerada, por poder sofrer um agravamento com a gravidez: o adenoma hepático. Por susceptibilidade do adenoma hepático aos estrogéneos, cujos níveis se encontram aumentados durante a gravidez, este pode aumentar de tamanho. Se houver um aumento repentino e considerável das dimensões do adenoma, existe o perigo de rotura da lesão, pelo que o parto deve ser desencadeado o mais brevemente possível. Se houver evidência de rotura do adenoma, a correcção é cirúrgica. Embora não esteja indicado fazer o rastreio desta lesão na grávida, se houver conhecimento da sua existência e não for possível a sua remoção antes da gravidez, as suas dimensões devem ser monitorizadas ecograficamente durante toda a gravidez(15). DOENÇA HEPÁTICA EXCLUSIVA DA GRAVIDEZ A hiperemese gravídica, a colestase intra hepática da gravidez (CIH), o fígado gordo agudo da gravidez (FGAG) e a pré-eclampsia e síndrome HELLP, são doenças hepáticas que ocorrem exclusivamente durante a gravidez e resolvem após o parto. É absolutamente necessário ter estas patologias em linha de conta na abordagem da grávida que apresenta alterações da função hepática. HIPEREMESE GRAVÍDICA As náuseas e os vómitos na grávida são tão comuns, que desde sempre foram considerados uma ocorrência vulgar na gravidez. Contudo, existem formas severas, cursando com vómitos incoercíveis e um estado de náusea permanente, que impede uma correcta nutrição e hidratação, sendo nestes casos que se considera estar em presença de hiperemese gravídica(16,17,18). Esta entidade ocorre no primeiro trimestre da gravidez, interrompendo-se habitualmente por volta da 20ª semana de gestação. Está geralmente associada ao sexo feminino do feto, a nuliparidade, gestação gemelar, patologia do trofoblasto, obesidade da grávida e elevado teor em lípidos na dieta. O consumo de tabaco parece diminuir a ocorrência de hiperemese gravídica. A probabilidade de aborto espontâneo em doentes com hiperemese gravídica é menor(16,18). A etiologia da hiperemese gravídica permanece pouco clara e parece ser multifactorial. Doentes com hiperemese gravídica parecem apresentar valores elevados de b HCG(16). Este aumento conduz a uma elevação das hormonas tiroideias, verificando-se que a fracção livre de T4, em cerca de 33% de mulheres afectadas com esta patologia, se encontra acima dos valores normais(16,18). As grávidas com aumento da fracção T4 livre, embora não apresentem clínica sugestiva de hipertiroidismo, são aquelas 128 Cap07DhepaticaGravidez.qxp 21-11-2005 16:04 Page 5 Ana Luísa Alves que manifestam os sintomas característicos de hiperemese gravídica. Ao mesmo tempo, nesta síndrome, observa-se a existência de dismotilidade gástrica, com atraso no esvaziamento gástrico(16). As grávidas afectadas apresentam náuseas e vómitos frequentes, muitas vezes incoercíveis, com incapacidade de hidratação e nutrição adequadas. Analiticamente observa-se apenas um aumento ligeiro das transaminases e da bilirrubina(16,18). As formas severas desta entidade podem levar a encefalopatia de Wernicke, mielinólise pontica, pneumomediastino espontâneo e rotura do esófago(17). O feto pode sofrer atraso do crescimento intrauterino(17). A terapêutica consiste na hidratação com fluidos polielectrolíticos endovenosos, tiamina e dieta zero, para interromper as náuseas e os vómitos. trimestre mas pode ter apenas início no último trimestre(19). Resolve espontaneamente com o parto, mas tende a recorrer em gravidezes posteriores e também com o uso de anticoncepcionais orais 8(19). A etiologia da colestase intra-hepática da gravidez (CIHG) não é clara, parecendo ser causada por uma alteração no metabolismo dos ácidos biliares, potenciada pelo efeito colestático da progesterona(19). É mais frequente em gestações gemelares e manifesta-se por prurido, que habitualmente precede a icterícia. Pode ainda verificar-se , em pouco casos, esteatorreia e deficit de vitamina K(19). Analiticamente observa-se um padrão de colestase, com valores elevados de bilirrubina, que, contudo, não ultrapassa habitualmente os 6 mg/dl e da fosfatase alcalina. A elevação das transaminases é moderada. A interrupção da alimentação por via oral é, habitualmente, de cerca de 48 horas, mas, nalguns casos, pode mesmo ser necessária a instituição de alimentação parentérica total por um tempo mais prolongado. Os antieméticos existentes no mercado podem ter efeitos adversos no feto, como é o caso do ondansetron, pelo que devem ser administrados criteriosamente. Nos casos mais ligeiros, a administração de dicicloverina ou de metoclopramida p.o. é suficiente. Em casos severos, pode ser administrada a prometazina e o droperidol em perfusão(16). Quando estes fármacos não são eficazes no controlo dos vómitos, está indicada a administração de metilprednisolona, na dose de 16 mg p.o., três vezes por dia, com bons resultados(17). Após melhoria dos sintomas, a dieta oral poderá ser retomada, com refeições pequenas e frequentes, com baixo teor de lípidos e alto valor de hidratos de carbono(18). O apoio psicológico é muitas vezes necessário. Os sintomas desaparecem habitualmente cerca de 24 a 48 horas após o parto(19). Quando o prurido é intenso, poderá ser necessária a administração de colestiramina ou de ácido ursodesoxicólico (UDCA). O UDCA, na dose de 10 a 16 mg /kg /dia, tem um efeito hepatoprotector, removendo as ácidos biliares tóxicos das membranas dos hepatocitos e imunomodulador. Verificou-se igualmente que reverte o transporte dos ácidos biliares na placenta, facilitando o seu regresso à circulação materna, observando-se, por isso, uma diminuição da concentração de ácidos biliares na circulação fetal, com a sua administração(19,20,21). Alguns estudos mostram que fetos de mães com CIHG podem apresentar sinais de sofrimento fetal, alterações do ritmo cardíaco durante o parto e mecónio no líquido amniótico(19), pelo que, quando se está perante um caso de CIHG, se deve fazer uma monitorização fetal adequada. Se os sintomas de CIHG ocorrerem antes das 32 semanas, em gravidez gemelar, em grávidas com antecedentes de mortalidade fetal ou se existir icterícia, o parto deverá ocorrer até ás 34 semanas. Caso contrário, a gravidez poderá decorrer até ao seu termo(1,19). COLESTASE INTRA-HEPÁTICA DA GRAVIDEZ Esta entidade é relativamente comum e benigna. Começa habitualmente no segundo 129 Cap07DhepaticaGravidez.qxp 21-11-2005 16:04 Page 6 DOENÇA HEPÁTICA NA GRAVIDEZ FÍGADO GORDO AGUDO DA GRAVIDEZ se atingir a maturação pulmonar fetal com a administração de corticóides(22,23). Se houver evidência de sofrimento fetal ou se se estiver em presença de sinais de falência hepática, o parto deve ser desencadeado de imediato(22,23). De salientar que, em presença de um caso de FGAG, a grávida deve ser transferida para uma unidade de saúde com equipas multidisciplinares, em que seja possível a monitorização contínua da grávida e do feto e, de preferência com ligação a unidades de transplante hepático, uma vez que este poderá ter de ser efectuado, em caso de falência hepática(1,22,23). A mortalidade fetal é de cerca de 8 a 20%, não só devido à descompensação hepática materna, mas ainda a fenómenos de coagulação intravascular, com depósitos de fibrina na placenta, provocando enfartes placentários e anóxia fetal(22). O fígado gordo agudo da gravidez (FGAG) é uma doença rara, que se apresenta habitualmente no último trimestre da gra-videz e, por vezes, até 72 horas após o parto, mas que resolve com o fim da gravidez(1,22,23). É uma doença grave, mais frequente em primíparas e grávidas de fetos do sexo masculino, que acarreta um enorme risco de mortalidade materna e fetal. Caracteriza-se histologicamente por um infiltrado gordo nos hepatocitos(23). Parece ser causada por um deficit genético na oxidação dos ácidos gordos. Na gravidez, existe um aumento do metabolismo dos triglicéridos e dos ácidos gordos. Em mulheres com um deficit genético da oxidação dos ácidos gordos, em que o feto é homozigótico para esse deficit ou que se apresentem em pré-eclanpsia, a sobrecarga hepática de ácidos gordos é suficiente para causar acumulação nos hepatocitos e consequente lesão celular(1,24). Os sintomas precoces são vagos e inespecíficos e incluem malestar epigástrico, náuseas, vómitos, fadiga e prurido(22,23). A progressão do quadro pode levar a manifestações mais severas, com edema, ascite, encefalopatia, hipoglicémia e coagulopatia(1,22,23). Analiticamente, observa-se um aumento moderado das transaminases (até dez vezes o valor normal), marcada hiperbilirrubinémia, hipoglicémia e prolongamento do INR, para além de leucocitose, trombocitopénia ligeira e hipofibrinogenémia(22,23). Um dos sinais laboratoriais mais precoces é a presença de hiperuricémia(22). A hipoglicémia é habitualmente um marcador de agravamento do quadro clínico, traduzindo agravamento da função hepática. Deve ser sempre feito o diagnóstico diferencial com hepatite aguda viral. O FGAG resolve espontaneamente após o parto, que deve, por isso, ser desencadeado o mais rapidamente possível. A função hepática normaliza, sem sequelas. Quando a doença é ligeira e não há evidência de sofrimento fetal, o parto pode ser adiado até 48 horas, a fim de PRÉ-ECLÂMPSIA E SÍNDROME HELLP A pré-eclampsia, é um fenómeno que ocorre no terceiro trimestre e se caracteriza por hipertensão, proteinúria e edemas. Não é uma doença hepática, mas pode ser precursora de uma doença do terceiro trimestre em que existe envolvimento hepático e que é a síndrome HELLP (“hemolysis, elevated liver enzymes, low platelets”)(22). A pré-eclampsia ocorre em cerca de 3 a 10 % das gravidezes e a HELLP ocorre em 20% das grávidas com pré-eclampsia(25). A HELLP é um quadro clínico que se traduz por hemólise, trombocitopénia, e elevação das transaminases(25,26,27). Actualmente pensa-se que o fígado gordo agudo da gravidez, a pré-eclampsia e a síndrome HELLP fazem parte de um espectro de uma mesma doença(26). A patogénese desta síndrome parece estar relacionada com uma implantação anormal da placenta, da qual resulta um processo isquémico placentário, que vai libertar uma substancia tóxica que lesa o endotélio. Esta lesão endotelial provoca fenómenos de vasoconstrição, permeação capilar e formação de agregados plaquetários que vão activar a cascata da coagu130 Cap07DhepaticaGravidez.qxp 21-11-2005 16:04 Page 7 Ana Luísa Alves pática, originando um hematoma sub capsular ou mesmo rotura hepática, da qual resulta uma elevada mortalidade materna e fetal. Estas doentes apresentam-se em shock hipovolémico, com uma elevação extrema das transaminases e com hemoperitoneu, podendo o diagnóstico ser feito imagiologicamente. O tratamento é cirúrgico(26). A HELLP resolve espontaneamente com o parto, podendo, em cerca de 25% dos casos, manifestar-se até 48 horas após o mesmo (o que obriga a efectuar uma revisão para pesquisa de persistência de restos placentários). Tal como para o fígado gordo agudo da gravidez, o parto deve ser desencadeado de imediato, ou, se as condições o permitirem, após maturação pulmonar fetal. Pela mortalidade associada ao síndrome, a grávida deverá ser transferida para uma unidade com monitorização e vigilância contínuas materna e fetal. A mortalidade materna depende das lesões hepáticas e a mortalidade fetal depende das lesões maternas e da extensão da lesão placentária(25,26,27). Após o parto, pode persistir trombocitopénia transitória, quer na mãe (que pode ser corrigida com a administração de corticóides), quer no recém-nascido(27). Posteriormente, os sintomas regridem, não havendo sequelas. O quadro pode recorrer em cerca de 3 % das gravidezes posteriores(25,28). lação(22,25). Histologicamente, caracteriza-se por deposição de fibrina ao longo dos sinusóides hepáticos, necrose isquémica dos hepatocitos, hemorragia portal e peri-portal, com pouca ou nenhuma inflamação(25). Ocorre quer em multíparas, quer em nulíparas, em mulheres de qualquer idade e em gravidezes gemelares(25). Clinicamente, inicia-se com sintomas inespecíficos como cefaleias, náuseas, vómitos, desconforto epigástrico e fadiga. Laboratorialmente, existem anomalias nos eritrocitos (esquizocitose, anisocitose e poiquilocitose), trombocitopénia marcada (valores inferiores a 100 000 /ml), prolongamento do INR e elevação das transaminases. A função renal está sempre alterada devido a acidose tubular renal(23,25,26,27). Mulheres que apresentam níveis elevados de a-fetoproteína ou de HCG no segundo trimestre têm elevada probabilidade de virem a apresentar pré-eclampsia ou síndrome HELLP(22). O melhor marcador laboratorial é, contudo, a haptoglobina sérica, que se encontra precocemente diminuída(25). A mortalidade da HELLP é elevada e associada a insuficiência hepática fulminante, coagulação intravascular disseminada e rotura hepática(26). A presença de hipoglicémia está associada ao agravamento da doença hepática(26). A síndrome HELLP é responsável pela ocorrência de hemorragia sub capsular heBIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. Liver disease in the pregnant patient. Riely,C. Am J Gastroenterol 1999 ; 94 (7) : 1728-1732. Liver disease in pregnancy. Knox,TA. , Olans LB. N Eng J Med 1996 ; 335 (8) : 569-576. Liver function tests in normal pregnancy: a prospective study of 103 pregnant women and 103 matched controls. Bacq Y, Zarka O, Bréchot JF, Mariotte N, Vol S, Tichet J et al Hepatology; 1996 ; 23 (5) : 1030-1034. Pregnancy-related liver diseases. Su LG, van Dyke RW. Curr Treat Opt Gastrenterol 2003;3: 501-508. Incidence and severity of viral hepatitis in pregnancy. Khoroo MS, Teli, MR, Skidmore S, Sofi AM, Khoroo MI. Am J Med 1981 ; 70 : 252 – 255. Aetiology, clinical course and outcome of sporadic acute viral hepatitis in pregnancy. Khoroo MS, Kamili S. J Vir al Hepat, 2003 ;10 : 61-69. Hepatitis B mother-to-child transmission. Rogez SR, Denis F. 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A endoscopia durante a gravidez comporta risco de indução de parto prematuro ou teratogenicidade da medicação utilizada(13-15), descolamento de placenta ou trauma fetal durante a entubação, arritmias cardíacas(16-20), hipotensão ou hipertensão(16) e hipoxia transitória. O feto é particularmente sensível à hipotensão ou hipertensão maternas(11). A endoscopia digestiva alta ou a CPRE podem produzir compromisso respiratório e hipóxia, pelas drogas administradas(21), pelo broncospasmo vagal durante a entubação esofágica(18,21-24) e ainda pela aspiração pulmonar(25-28). A sigmoidoscopia e a colonoscopia podem produzir hipóxia pela medicação endovenosa(22,29) ou pela resposta neuro-humoral à distensão cólica(17). A análise da segurança endoscópica durante a gravidez fornece múltiplos benefícios. Ajuda o gastrenterologista a tomar uma decisão judiciosa sobre a recomendação endoscópica perante determinada situação clínica e permite fornecer elementos para a grávida poder dar o seu consentimento informado. Ajuda o médico a reduzir os riscos fetais da endoscopia ao evitar o uso de medicação potencialmente teratogénica, indica qual a monitorização fetal e materna mais adequada durante a endoscopia e permite efectuar terapêutica apropriada antes e durante os exames endoscópicos(1). O conhecimento actual da segurança A endoscopia tem actualmente um papel bem estabelecido no diagnóstico e assume papel crescente na terapêutica de várias patologias gastrenterológicas como é, por exemplo, o caso da hemorragia digestiva(1). A segurança e a eficácia estão bem estabelecidas na população em geral(2-5), contudo na grávida não foram completamente definidas. Com alguma frequência a grávida sofre de patologia gastrointestinal como a hemorragia digestiva ou a complicação da litíase biliar, que são indicações formais para endoscopia na população em geral(1). Infelizmente não dispomos de estatísticas nacionais sobre o número de endoscopias efectuadas em grávidas. A título de exemplo referem-se dados estatísticos dos Estados Unidos em que mais do que 12.000 grávidas por ano têm indicação formal para endoscopia alta, mais de 6.000 têm indicação segura para fibrosigmoidoscopia ou colonoscopia e cerca de 1.000 grávidas têm indicação para colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE)(6,7). Um gastrenterologista encontrará em média uma grávida por ano com indicação formal para endoscopia. A importância da endoscopia durante a gravidez também se deve ao facto de os exames baritados estarem relativamente contraindicados devido à teratogenicidade da radiação(8,9), a prescrição de medicamentos sem um diagnóstico bem estabelecido ser indesejável, dado o risco da teratogenicidade medicamentosa(10), e a endoscopia poder ser uma 133 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 2 REALIZAÇÃO DE ENDOSCOPIAS NA GRÁVIDA endoscópica durante a gravidez é ainda incompleto. Os estudos publicados são retrospectivos. Um estudo controlado de 83 endoscopias altas não detectou nenhum risco atribuível à endoscopia durante a gravidez(30) sendo este estudo insuficiente para excluir um pequeno, mas clinicamente significativo risco fetal. Apesar das actuais dúvidas, este capítulo pretende fornecer algumas orientações em relação à indicação, contra-indicação, segurança e eficácia dos exames endoscópicos durante a gravidez e avalia, com base nos dados disponíveis, a segurança fetal da medicação endoscópica. animais mostram efeito adverso no feto não se confirmam em estudos controlados na mulher, durante o 1º trimestre ou seguintes. - Classe C: Estudos animais revelam efeitos secundários no feto e não há estudos controlados na mulher, ou não há estudos animais ou na mulher disponíveis. Estas drogas só deverão ser utilizadas se o benefício potencial ultrapassar o eventual risco para o feto. - Classe D: Há evidência positiva de riscos para o feto humano. Só deverá ser utilizada se os benefícios do seu uso na mulher grávida ultrapassarem os riscos (situação de life saving ou de doença grave onde não há possibilidade de usar drogas mais seguras que sejam eficazes). SEGURANÇA DA MEDICAÇÃO ENDOSCÓPICA DURANTE A GRAVIDEZ -Classe X: Estudos em animais ou humanos demonstram risco fetal de anomalias, ou há evidência de risco fetal baseado em experiência humana ou nas duas e o risco do seu uso na mulher grávida claramente ultrapassa algum possível beneficio. A droga está contra-indicada. A segurança do feto é uma consideração major na escolha das drogas a serem utilizadas quando da endoscopia. A teratogenicidade medicamentosa não é totalmente conhecida, a segurança dos modelos animais pode não reproduzir o que se passa no homem dada as especificidades das espécies(31,32). Os médicos são relutantes em conceber e os doentes em aceitar estudos clínicos durante a gravidez. Apesar das contribuições de Briggs e co-autores(33) e das de Heinonen e cols.(34) a teratogenicidade medicamentosa, principalmente durante o primeiro trimestre, é mal conhecida. Nos parágrafos seguintes sumariam-se a categoria e as indicações de algumas drogas por vezes utilizadas antes, durante ou após a endoscopia. PRÉ MEDICAÇÃO ENDOSCÓPICA A F.D.A. (Food and Drug Administration) classifica as drogas quanto à sua segurança durante a gravidez em cinco categorias: Meperidina (Categoria B) Analgésico opiáceo utilizado para sedação e analgesia. Ultrapassa rapidamente a barreira placentária após administração intramuscular(35) ou endovenosa(33). Dois grandes estudos não revelam teratogenicidade durante o primeiro trimestre(33,34). Há uma larga experiência da sua administração durante o trabalho de parto(36-40). Pode causar diminuição da frequência cardíaca fetal durante cerca de uma hora após a sua administração(38). É considerada uma droga de classe B, preferível ao midazolam ou ao diazepam. A dosagem não - Classe A: Estudos controlados na mulher não demonstram risco para o feto durante o primeiro trimestre e não há evidência de risco nos restantes trimestres; a possibilidade de dano fetal parece remota. - Classe B: Estudos animais não mostram risco fetal, mas não há estudos controlados em mulheres grávidas, ou quando os estudos 134 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 3 José Renato Pereira deverá ultrapassar 50 a 75 mg. MEDICAÇÃO USADA DURANTE A ENDOSCOPIA Diazepam (Categoria D) Droga associada no passado a fenda palatina(49-53) mas não demonstrado em estudos controlados posteriores, sendo consensual actualmente não associar a droga a estas malformações(54,55). Altas doses maternas podem produzir síndrome de abstinência fetal(57,58). Provavelmente é preferível o uso de midazolam. Simeticone (Categoria C) Dois estudos demonstraram aumento ligeiro (estatisticamente não significativo) de defeitos congénitos após a sua administração à mulher durante a gravidez(33,64). Deverá ser evitada a sua administração durante a endoscopia. Glucagon (Categoria B) É utilizado para diminuir a motilidade duodenal durante a canulação da via biliar, quando da CPRE(65) e pode ser ocasionalmente usado para relaxar o cólon espástico durante a colonoscopia(66). Não relaxa o músculo uterino(67). Dois pequenos estudos sobre a sua administração durante a gravidez a um total de 34 mulheres não mostraram toxicidade fetal(68,69). Deverá ser evitada a sua utilização, excepto durante a CPRE e nos casos de dificuldade na canulação da via biliar principal nas situações de colangite aguda. Midazolam (Categoria D) A sua administração durante o trabalho de parto pode, transitoriamente, provocar depressão respiratória(60-63). Os seus efeitos farmacológicos assemelham-se aos do diazepam, mas não há casos publicados de fendas orais(1). Poderá ser usada com precaução e em baixas doses durante a gravidez. A maioria dos endoscopistas prefere o seu uso ao do diazepam devido ao início de acção e recuperação mais rápidos, à mais intensa amnésia retrógrada, e ao menor risco de tromboflebite(59). Ampicilina (Categoria B) Existe uma larga experiência na administração deste antibiótico durante a gravidez. Um antigo estudo de pequenas dimensões e retrospectivo mostrou associação com anomalias cardíacas(56), mas estes achados não se confirmaram. Três grandes estudos controlados não demonstraram teratogenicidade(33,34,70). Aparentemente seguro para o feto. Verificar se a grávida não é alérgica. Usar quando a profilaxia antibiótica estiver fortemente indicada. Propofol (Categoria B) Considerada relativamente segura, a sua administração durante a gravidez pode contudo causar depressão respiratória(41). A maioria dos estudos não demonstra toxicidade neonatal aquando da sua administração durante o trabalho de parto(33,44-47). A sua utilização deverá ser feita por Anestesista. Fentanyl (Categoria C) Potente agonista narcótico sintético é por vezes utilizado em alternativa à meperidina dado ter mais rápido início de acção e de recuperação. Gentamicina (Categoria C) À semelhança dos outros aminoglicosideos é ototóxica, contudo a maioria dos estudos não demonstram teratogenicidade na dosagem habitualmente empregue(72-74). A administração materna pode raramente produzir ototoxidade fetal se administrada em altas doses(33). Deverá ser aplicada com precaução apenas quando houver fortes razões Geralmente segura para o feto quando administrada durante o trabalho de parto, não é teratogénica, embora haja raros casos descritos de toxicidade neonatal transitória(42,43). Poderá ser usada em baixas doses. 135 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 4 REALIZAÇÃO DE ENDOSCOPIAS NA GRÁVIDA para a sua utilização, como por exemplo nas situações de sépsis biliar. diminuir o fluxo sanguíneo placentar devido aos efeitos alfa-adrenergicos(82). Os estudos animais são controversos em relação à teratogenicidade(43,48). Num grande estudo registou-se aumento de malformações congénitas em crianças recém-nascidas, particularmente a ocorrência de hérnias inguinais(34). Pensa-se que esta associação possa estar mais relacionada mais com as patologias das grávidas para quem a adrenalina foi prescrita do que com a droga em si(33). Um outro trabalho não registou aumento de malformações congénitas(33). Azul de metileno/Tinta da China (Categoria C) Não existem estudos disponíveis sobre a sua utilização(1). MEDICAÇÃO USADA APÓS A ENDOSCOPIA Naloxona (categoria B) É um antagonista dos opiáceos, utilizado por vezes em endoscopia para reverter o efeito dos narcóticos. Atravessa a placenta dois minutos após a sua administração endovenosa(33,75). Não parece ser teratogénico(43,76). O seu uso está contra-indicado nas mães dependentes de opiáceos porque pode provocar síndrome de abstinência no feto(77,78). Só deverá ser utilizado nas situações de overdose narcótica. Flumazenil (Categoria C) Droga habitualmente utilizada para reverter os efeitos nefastos das benzodiazepinas. Dois casos descritos da sua administração durante o trabalho de parto e ausência de complicações para o feto(79,80). Dado o pouco conhecimento da utilização da droga durante a gravidez, o seu uso deverá ser restrito às situações de intoxicação por benzodiazepinas. Diatrizoato (categoria D) Contraste iodado utilizado em CPRE. Foi empregue em amniografia sem lesões para o feto, excepto a possibilidade de toxicidade tiroideia(83-89). Os riscos do diatrizoato serão menores na colangiografia do que na amniografia devido à menor absorção fetal(34,90). O risco teórico de hipotiroidismo fetal transitório é menor, do que o risco de eventual colangite materna devido a coledocolitíase, sendo por isso aceitável a sua utilização em CPRE terapêutica durante a gravidez(1). Estes riscos serão minimizados se se utilizar uma menor concentração da forma solúvel em água a baixa pressão de injecção, e se evitar a pancreatografia(1). AGENTES UTILIZADOS NA PREPARAÇÃO INTESTINAL Soluções de polietileno glicol (Categoria C) Não existem estudos efectuados durante a gravidez(43) Soluções com fosfato de sódio (Categoria C) Existe um caso na literatura de desmine-ralização óssea de recém-nascido, numa mãe que fazia uso crónico desta solução durante a gravidez(81). O uso isolado para preparação intestinal provavelmente não provocará este efeito, contudo não existem estudos a confirmá-lo. Lidocaína (categoria B) Anestésico local utilizado na endoscopia digestiva alta e em CPRE para diminuir o reflexo do vómito e o desconforto orofaringeo durante a entubação. Em estudos animais não ocorreram lesões fetais com doses 6.6 vezes superiores às equivalentes administradas em humanos(43). A lidocaína rapidamente atravessa a barreira placentária(91). A administração epidural durante o trabalho de parto provoca depressão neurológica transitória nos recém-nascidos em alguns estudos(92) e noutros não(93). O consenso actual é de que a OUTROS AGENTES UTILIZADOS EM ENDOSCOPIA Adrenalina (Categoria C) Teoricamente, em altas doses, poderia 136 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 5 José Renato Pereira lidocaína administrada durante o trabalho de parto é segura para o feto(94,95). Apesar da teratogenicidade potencial desta droga ser diminuta, a sua utilização durante a gravidez poderá ser dispensada na maioria dos casos e nas situações em que for empregue deverá a doente fazer gargarejos não a deglutindo, diminuindo assim a absorção sistémica(1). copia na grávida devem ser criteriosamente estabelecidas; o potencial beneficio deve ultrapassar os prováveis riscos. As situações deverão ser ponderadas caso a caso. As normas seguintes devem ser entendidas como regras gerais. Hemorragia digestiva: Geralmente indicada, nomeadamente nas situações agudas com instabilidade hemodinâmica e que requerem transfusões de glóbulos vermelhos. Náusea e vómitos: Habitualmente desnecessária; estes sintomas geralmente ocorrem devido a alterações fisiológicas da gravidez e não por doença da mucosa gastroduodenal. Propôr apenas nas situações atípicas, refractárias à terapêutica, ou quando acompanhadas de dor abdominal significativa. Pirose: Geralmente desnecessária. Considerar nas situações de apresentação atípica, severa e refractária à adequada terapêutica médica. Deverá ser efectuada quando ocorram complicações, como disfagia, hemorragia digestiva ou quando a hipótese de cirurgia for considerada. Dor abdominal: Geralmente não necessária. Indicada nas situações severas refractárias à terapêutica médica. Aceite nas situações que se complicam de hemorragia digestiva. Disfagia: Pode ser necessária nas situações de causa desconhecida. Deverá ser fortemente considerada quando associada a perda involuntária de peso. Seguimento de úlcera gástrica: O uso de bom senso nesta situação é importante. Diferi-la preferencialmente para depois do parto se o aspecto endoscópico inicial é de benignidade e as biópsias excluem malignidade. Pesquisa de sangue oculto positiva: considerá-la quando associada a anemia por carência de ferro, uma vez excluídas lesões do cólon. Biópsia de massa gastrointestinal / suspeita de neoplasia: Geralmente recomendada. Está contra-indicada nas situações de: parto iminente, rotura de membranas, eclâmpsia incontrolável ou descolamento de placenta. Corrente eléctrica Durante a gravidez a corrente eléctrica atravessa o útero e atinge o feto, uma vez que o líquido amniótico é um excelente condutor(96). É utilizada na hemostase endoscópica, hot biopsy, polipectomia e papilotomia. Apesar de, provavelmente, ser segura a sua utilização na polipectomia e na electrocauterização, é considerado experimental o seu emprego dada a escassez de dados(1). A polipectomia deverá ser diferida para o período pós parto, contudo a papilotomia está indicada nas situações de coledocolitíase dado os riscos que acarreta, não realizá-la. RECOMENDAÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DE ENDOSCOPIA ALTA NA GRÁVIDA(1) A endoscopia alta só deverá ser realizada em doentes relativamente estáveis do ponto de vista obstétrico com monitorização electrocardiográfica e após consulta de obstetrícia. A oximetria de pulso torna este procedimento mais seguro, por permitir nas doentes hipóxicas, identificar as que irão necessitar do oxigénio ou de entubação endotraqueal, antes da endoscopia, ou para alertar o Gastrenterologista da possibilidade de descompensação durante a endoscopia(99,100). A monitorização fetal deverá ser utilizada sempre que disponível. O consentimento informado deverá ser sempre obtido e para tal a doente deverá ser informada dos benefícios e da aparente segurança da endoscopia, mas deverá ser mencionado que os potenciais riscos fetais, não estão totalmente caracterizados. As indicações para realização de endos137 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 6 REALIZAÇÃO DE ENDOSCOPIAS NA GRÁVIDA ENDOSCOPIA DIGESTIVA ALTA TERAPÊUTICA da(114,115), mas a coledocolitíase, geralmente requer terapêutica urgente, devido ao potencial risco de complicações, como a colangite ou a pancreatite biliar. A colecistectomia, é o segundo procedimento cirúrgico não obstétrico, efectuado durante a gravidez. A C.P.R.E. terapêutica, é teoricamente uma alternativa mais atractiva do que a cirurgia biliar, durante a gravidez, porque esta tem um risco acrescido para o feto. Em mãos experientes, a C.P.R.E. terapêutica na população em geral, tem um risco de morbilidade de cerca de 5 a 10% e de mortalidade de 0.5 a 1.0%(116). A C.P.R.E. diagnóstica, durante a gravidez, apresenta teoricamente risco maior para o feto, do que a endoscopia alta, por ser um procedimento mais demorado, requerer entubação duodenal mais prolongada, haver necessidade de utilizar medicação durante a execução da técnica, e ser necessária exposição a radiação. A C.P.R.E. terapêutica adiciona os riscos dos procedimentos terapêuticos. Todas as mulheres com cólica biliar, deverão ser fortemente aconselhadas, a serem submetidas a colecistectomia laparoscópica, antes de engravidarem(121). Doentes grávidas, com dor no hipocôndrio direito, alterações das provas hepáticas, pancreatite inexplicada, ou possível sépsis biliar, deverão realizar ecografia abdominal porque este é considerado, um procedimento seguro durante a gravidez(122,123). Se a ecografia, demonstra a presença de litíase biliar, sem evidência de coledocolitíase, ou dilatação da via biliar, na grande maioria dos casos a colecistectomia poderá ser diferida para o período pósparto(114). A C.P.R.E. deverá ser considerada se se dispõe de pessoal treinado, nas situações de litíase biliar, complicadas por colestase persistente, suspeita de coledocolitíase, pancreatite ou colangite. Deverá ser sempre efectuada, após consulta obstétrica, e quando estejam asseguradas as condições necessárias à terapêutica e de eventuais complicações. Recomenda-se monitorização materna, com electrocardiograma, oximetria de pulso e registo da tensão arterial. A monitorização Hemorragia digestiva A gravidez aumenta o risco de rotura de varizes esofágicas por hipertensão portal, ao aumentar o volume plasmático(101,102). A esclerose endoscópica ou a laqueação elástica de varizes, são particularmente atractivas em contraste com outras modalidades terapêuticas, deletérias para o feto(103,104-108). O conhecimento actual, recomenda a terapêutica endoscópica de varizes esofágicas, em situações de hemorragia activa, após consentimento informado. A terapêutica endoscópica, nas situações de hemorragia de causa não varicosa, é considerada experimental, data a escassez de doentes tratados(30,97,109). Sempre que for considerada, a grávida deverá ser informada dos potenciais riscos, versus os benefícios, e avisada de que os potenciais efeitos secundários para o feto são mal conhecidos. Ecoendoscopia terapêutica Procedimento raramente efectuado durante a gravidez. A rotura de grande pseudoquisto pancreático, pode ocorrer, devido a aumento da pressão intra-abdominal, provocada pelo útero grávido. Nas situações de grandes pseudoquistos, em que a rotura seja iminente, poderá pensar-se na sua drenagem trans-gástrica, com ajuda da ecoendoscopia, desde que haja experiência na sua realização. Na literatura revista, registam-se duas punções trans-gástricas de pseudoquistos pancreáticos(110,111). Deverá ser considerado procedimento experimental. COLANGIOPANCREATOGRAFIA RETRÓGRADA POR VIA ENDOSCÓPICA Aproximadamente 8% das mulheres têm colelitíase durante a gravidez(112,113). A colecistectomia ou a C.P.R.E., podem geralmente ser diferidas para o período pós parto, nas situações de litíase biliar não complica138 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 7 José Renato Pereira fetal, efectua-se durante o terceiro trimestre, nas cirurgias abdominais(124,125); no caso da C.P.R.E., não está definitivamente estabelecido o seu verdadeiro papel, mas poderá eventualmente ajudar a detectar situações de stress fetal, ou de contracções uterinas prematuras, que requeiram terapêutica tocolítica(124). A doente deverá ser hospitalizada durante 24h, porque algumas complicações, como por exemplo a pancreatite, podem surgir tardiamente(70). A esfincteroctomia endoscópica e a passagem de cesto ou balão só deverão ser efectuadas, quando os cálculos estejam demonstrados no colangiograma. A colocação de próteses biliares deverá ser considerada nas estenoses severas da via biliar e bile leaks. Siegel e Cohen(126) recomendam a colocação de prótese por via transpapilar, nas situações de litíase vesicular, quando a colecistectomia, se programa para o período pós parto. A canulação directa com esficterótomo, em vez de canula, evita uma segunda canulação quando está indicado realizar esfincterotomia, diminuindo o tempo de fluoroscopia(117). A colecistite grave ou recorrente, pode requerer colecistectomia laparoscópica durante a gravidez. O procedimento é seguro e eficaz, com poucas complicações maternas e raras perdas fetais(90,118,119,120,121,127). experimental devido à pouca informação disponível sobre a segurança fetal, mas deverá ser considerada em situações que possam pôr em risco a vida da mãe e/ou do feto. SIGMOIDOSCOPIA A ecografia endovaginal, largamente utilizada em situações de alto risco obstétrico, é muito segura para a mãe e para o feto(123,129,130). A segurança deste exame, indirectamente, pode levar-nos a inferir da segurança da sigmoidoscopia durante a gravidez. Os trabalhos publicados, sugerem que a sigmoidoscopia durante a gravidez, não induz o parto nem causa malformações fetais, contudo deverá ser realizada em doentes estáveis, com indicação importante, como sejam, hemorragia digestiva baixa (diferir para pós parto as situações de história prévia de doença hemorroidária e onde ao exame objectivo se confirmem a presença de hemorróidas), suspeita de massa, obstrução do recto-sigmoide, diarreia severa e prolongada. Nas situações de dor abdominal, alteração dos hábitos intestinais, história familiar de neoplasia do cólon, vigilância ou rastreio, deverá ser realizada no período pós parto. Não esquecer as situações em que o parto foi por cesariana, onde a sigmoidoscopia poderá ser particularmente dolorosa, se realizada precocemente após a cirurgia(1). GASTROSTOMIA PERCUTÂNEA POR VIA ENDOSCÓPICA(P.E.G.) COLONOSCOPIA Técnica com vantagens sobre outras para nutrição intensiva de longa duração, durante a gravidez. Não requer confirmação radiológica, como o que acontece com a sonda nasoentérica, ou como no caso de cateter central; não requer anestesia geral, como no caso da gastrostomia cirúrgica. Para evitar a punção uterina, Shaheen e cols., recomendam marcar o bordo superior do útero, com auxílio ecográfico(98). A hiperemese gravídica, a anorexia nervosa ou a esofagite severa, poderão ser indicações para colocação de P.E.G.(98,128). A gastrostomia percutânea por via endoscópica é actualmente considerada Não existem guidelines para a colonoscopia, devido a informação insuficiente. Deverá portanto ser considerada experimental; contudo, deve ser considerada a sua realização quando se suspeita de neoplasia do cólon, massa cólica de causa não esclarecida ou hemorragia digestiva baixa incontrolável e quando necessária antes de cirurgia urgente do cólon. A colonoscopia, não está recomendada durante a gravidez, nas situações de: alteração dos hábitos intestinais, dor abdominal, história familiar de neoplasia do cólon, nem como rastreio ou vigilância de rotina(1). 139 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 8 REALIZAÇÃO DE ENDOSCOPIAS NA GRÁVIDA Deverá ser efectuada depois do parto, nas situações de vigilância de pólipos ou de antecedentes de neoplasia do cólon. Deverá ser realizada, após consulta de obstetrícia e com monitorização electrocardiográfica, da tensão arterial e oximetria de pulso. Deverá ser evitada a posição de decúbito dorsal, devido à compressão da veia cava inferior pelo útero grávido, que ocasiona uma diminuição do retorno venoso e consequente diminuição da perfusão uterina. Deverá ser adoptado o decúbito lateral esquerdo. A compressão extrínseca deverá ser, o mais suave possível e longe do útero, para evitar traumatismo uterino(131). -Evitar a endoscopia, sempre que as indicações sejam relativas. -Terminar os procedimentos endoscópicos, sempre que estejam a ser mal tolerados, o mais rapidamente possível. -Pedir a colaboração da Obstetrícia, para uma melhor decisão. -Obter consentimento informado, onde se inclua discussão sobre os riscos fetais do procedimento. -Sempre que disponível, proceder a monitorização da função cardíaca, oximetria de pulso e tensão arterial. -Evitar a endoscopia, durante o trabalho de parto, aborto em evolução, descolamento da placenta ou outras complicações obstétricas graves. -Optar pelos exames menos invasivos, sempre que seja possível a sua substituição (colonoscopia pela sigmoidoscopia, C.P.R.E. pela C.P.R.M). -Ser o menos invasivo possível (evitar biópsias desnecessárias, ou a observação da porção distal do duodeno). -Evitar polipectomias, Hot biopsy, ou electrocoagulação. -Preferir Endoscopista experiente. -Evitar fluoroscopia, durante a endoscopia alta ou colonoscopia e minimizar durante a C.P.R.E.. -Referenciar grávidas com doença biliar complicada, para Centros especializados. ALTERNATIVAS À ENDOSCOPIA GASTRO-INTESTINAL A Ecografia abdominal deverá ser considerada exame de primeira linha no esclarecimento de patologia abdominal, uma vez que não são conhecidos riscos fetais(1). Em relação à Ressonância magnética, desconhecem-se riscos para o feto dada a experiência ser limitada, pelo que deverá ser usada com a aprovação do Radiologista, para situações com indicação formal e quando outros exames com segurança bem estabelecida, não tenham permitido obter um diagnóstico(1). A Angiografia, Estudos Cintigráficos, T.A.C. e Colonoscopia virtual, devem ser evitados. Os Exames baritados estão contra-indicados, devido á teratogenicidade da radiação(1). A Radiografia simples do abdómen poderá ser usada, quando imperativa, como no caso de suspeita de perfuração de víscera oca. A quantidade de radiação é pequena, quando se faz uma ou duas radiografias(1). Em relação às drogas potencialmente utilizadas, durante a endoscopia na Grávida, deverá: -Usar-se a menor dose, que seja eficaz -Envolver os doentes na decisão do seu uso, informando-os dos potenciais efeitos tóxicos no feto. -Quando a alternativa seja possível, usar sempre a droga mais segura. -Evitar drogas de classe D. -Não usar drogas de classe X. -Evitar drogas não essenciais. -Contactar Farmacêutico ou consultar a literatura, sempre que haja dúvidas quanto à teratogenicidade. -Pedir a colaboração da Anestesiologia, sempre que seja necessário sedação ou anestesia. RECOMENDAÇÕES FINAIS/REGRAS GERAIS(1) -Diferir a endoscopia sempre que seja possível, para depois do 1º trimestre ou preferencialmente para depois do parto. 140 Cap08EndoscopiaGravida.qxp 21-11-2005 16:10 Page 9 José Renato Pereira BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. Cappell MS. The safety and clinical efficacy of gastrointestinal endoscopy during pregnancy. 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INCIDÊNCIA ETIOLOGIA A incidência da hemorragia digestiva alta tem-se mantido, nos últimos anos, em valores relativamente estáveis, variando de 67 a 172/100.000 habitantes/ano(1), segundo alguns registos americanos(2), e ainda que os esparsos dados epidemiológicos europeus apontem para valores mais baixos(3) (45/100.000 habitantes/ano), não deixam de evidenciar a avançada idade média dos doentes vítimas de hemorragia digestiva alta (71 anos). Efectivamente, a incidência de úlceras gástricas e duodenais (e as respectivas complicações hemorrágicas) está a aumentar na população idosa, em todo o mundo(4). Nalgumas casuísticas cerca de 27% dos doentes com hemorragia digestiva alta aguda têm mais de 80 anos(5). O aumento de incidência da hemorragia digestiva com a idade e o facto da população idosa ser uma fracção populacional em expansão, contribuirá certamente para justificar a manutenção de valores elevados de incidência de hemorragia digestiva alta. Por outro lado, a considerável comorbilidade neste grupo de doentes explica a persistência, nos últimos 30 a 60 anos, de elevados índices de mortalidade da hemorragia digestiva (aproxi- Cerca de 90% das causas de hemorragia digestiva alta no idoso são pépticas(8), principalmente devido ao aumento da incidência da esofagite e da doença ulcerosa péptica(9). A esofagite erosiva no idoso manifesta-se habitualmente por anemia ou perda de sangue oculto nas fezes, sendo raro manifestar-se por hemorragia franca, com hematemeses. Nestes casos podem observar-se úlceras distais da mucosa esofágica. Efectivamente, em doentes com doença de refluxo gastroesofágico (DRGE), a probabilidade de existirem lesões da mucosa esofágica aumenta com a idade. Collen et al. evidenciaram, numa casuística de 228 doentes consecutivos, que os doentes com idade igual ou superior a 60 anos apresentavam significativamente mais lesões da mucosa esofágica (esofagite erosiva, esófago de Barrett) que os doentes com idade inferior a 60 anos, numa proporção de 81% para 47%, necessitando até de inibição da secreção mais agressiva (neste estudo de 1995 - actualmente não seria essa, certamente, a opção - usando doses elevadas de ranitidina: 2400 mg/dia)(10). 147 Cap09Profilaxia.qxp 21-11-2005 16:16 Page 2 PROFILAXIA DA HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA NO IDOSO: AINE’S, COXIBS E INBP’S Os doentes idosos ingerem frequentemente medicações potencialmente implicadas na etiologia de ulcerações esofágicas, como por exemplo, cloreto de potássio, alendronato, tetraciclinas e anti-inflamatórios não esteróides (AINE’s)(5), podendo associadamente haver insuficiente ingestão de líquidos e deficiente produção de saliva. O risco aumentado dos doentes idosos sofrerem de doença ulcerosa péptica está directamente relacionado com a elevada prevalência de positividade para o Helicobacter pylori e com o consumo aumentado de AINE’s. A incidência de complicações da doença ulcerosa péptica, como a hemorragia, aumenta progressivamente com a idade, tal como comprova Solomon et al.(11), ainda que esta não pareça ser um factor de risco independente. A co-morbilidade, a polimedicação e a história pregressa são factores mais predizentes de toxicidade induzida por AINE’s do que a própria idade. do claritromicina, amoxicilina e/ou nitroimidazóis ser altamente eficaz e bem tolerada pelos doentes idosos, particularmente se de curta duração e com uso de baixas doses de IBP (inibidor da bomba de protões) e claritromicina(17). No entanto, cerca de 40% das úlceras gástricas e 25% das úlceras duodenais, nos doentes idosos, estão associadas ao uso de AINE’s ou aspirina(18) (nalguns estudos recentes(19) apenas 1,6% das úlceras duodenais e 4,1% das úlceras gástricas não estão associadas ou com a infecção pelo Helicobacter pylori ou com o consumo de AINE’s). ANTI-INFLAMATÓRIOS NÃO ESTERÓIDES O papel da infecção pelo Helicobacter pylori nos doentes com hemorragia digestiva e úlceras relacionáveis com o consumo de AINE’s é controverso(20,21) mas o que não oferece dúvidas é que o consumo de AINE’s aumenta o risco de hemorragia digestiva, sendo estes dois factores (Helicobacter e AINE’s) variáveis independentes(22). Desde há décadas que é conhecida a toxicidade dos AINE’s (indometacina(23), naproxeno(24), piroxicam(25), diclofenac(26), etc.) sobre a mucosa do tubo digestivo, particularmente do tubo digestivo superior(27,28), o que levou até à procura de formas de apresentação com menor toxicidade(29, 30). HELICOBACTER PYLORI É sabido que a característica mais clara das curvas de prevalência do Helicobacter pylori é o aumento com a idade(12), ainda que, nalgumas delas, possa haver um acentuar de crescimento de prevalência entre os 40 e os 60 anos e depois uma estabilização ou mesmo decréscimo(13). A prevalência encontrada em doentes idosos debilitados internados em meio hospitalar, de cerca de 47%(14), talvez seja inferior à esperada, mas poderá ser explicada pela elevada frequência de prévia ou corrente antibioterapia neste grupo de doentes (por vezes também associada a consumo de inibidores da secreção ácida)(15). Nalguns estudos a prevalência da infecção pelo Helicobacter pylori em doentes com doença ulcerosa péptica com idade superior a 65 anos varia entre 58 a 78%(16). Sabe-se que a erradicação da infecção pelo H. pylori é de comprovado benefício nos doentes idosos com doença ulcerosa péptica associada ao H. pylori, podendo a terapêutica tripla baseada em inibidores da bomba de protões e incluin- O consumo de AINE’s é, de facto, o alvo principal quando se pretende falar de profilaxia da hemorragia digestiva no idoso. O consumo de AINE’s(31) constitui um importante problema de saúde pública, dado que são largamente utilizados em todo o mundo em diversas patologias, nomeadamente em doenças osteo-musculares (mais de 30 milhões de pessoas no mundo tomam regularmente AINE’s, segundo J.J.Ares(32); haverá cerca de 100 milhões de prescrições/ano nos Estados Unidos(33); e C. Florent refere como consumidores regulares 1,5% da população mundial, dos quais a maior parte pes148 Cap09Profilaxia.qxp 21-11-2005 16:16 Page 3 António Curado frequência da doença osteo-articular degenerativa). A mortalidade atribuída ao uso de AINE’s nos Estados Unidos e no Reino Unido é elevadíssima: 5000 a 16500/ ano e 200 a 3500/ano, respectivamente. soas idosas(34)). Uma larga percentagem delas desenvolverá úlceras gástricas e gastrites erosivas, ou gastropatias ulcero-erosivas, englobando uma entidade que se poderia designar por “gastropatia dos AINE’s”. A úlcera duodenal, em termos patogénicos, é menos frequentemente relacionada com o consumo de AINE’s, ainda que estes possam ser responsáveis pela sua dificuldade de cicatrização(35), pelo aumento do seu tamanho ou por complicações relacionadas. Os AINE’s poderão também ser responsáveis por lesões do intestino delgado(36) e até por casos de colite microscópica(37). Os efeitos deletérios dos AINE’s sobre o intestino delgado, menos diagnosticados porque menos acessíveis aos exames complementares (a enteroscopia e a videocápsula podem ser úteis(38)), poderão variar desde estenoses causadoras de quadros de obstrução intestinal do delgado e hemorragias severas até uma enteropatia de menor gravidade, compreendendo alterações da permeabilidade intestinal e alterações inflamatórias ligeiras responsáveis por perda de sangue e de proteínas, contribuindo, por exemplo, para anemia ferropénica e hipoalbuminémia em doentes do foro da reumatologia(39). O perfil de segurança difere de um antiinflamatório para outro (desde o ibuprofeno ao diclofenac ou à indometacina) e, dentro do mesmo princípio activo o risco é dependente da dose. Como já referimos, houve também tentativas de diminuir a toxicidade dos AINE’s pela apresentação de novas formulações, de libertação intestinal, ou a associação na mesma fórmula galénica com citoprotectores como o misoprostol(41). No final dos anos 90 surgiram os primeiros trabalhos(42) divulgando o aparecimento de anti-inflamatórios potencialmente desprovidos de toxicidade gástrica, nos quais se depositou uma enorme esperança(43): os agora tão divulgados coxibs ou inibidores selectivos da ciclo-oxigenase-2 (COX-2). A descoberta de duas iso-enzimas ciclooxigenase (COX), uma constitutiva, a COX1, responsável pela síntese prostanoide homeostática e outra indutível, a COX-2, responsável pela produção prostanoide próinflamatória, levou ao desenvolvimento destes novos anti-inflamatórios, os inibidores selectivos da COX-2, dos quais se esperou menor toxicidade e manutenção da eficácia anti-inflamatória(44). Tanto o ensaio CLASS (Celecoxib Longterm Arthritis Safety Study), publicado em 2000 na JAMA(45) - que comparou o celecoxib 400 mg 2 id com o diclofenac 75 mg 2 id e com o ibuprofeno 800 mg 3 id em 8059 doentes, como o ensaio VIGOR (Vioxx in Gastrointestinal Outcomes Research), publicado também em 2000 na NEJM(46) - que comparou o rofecoxib 50 mg id com o naproxeno 500 mg 2 id em 8076 doentes, parecem ter demonstrado redução do risco relativo de efeitos secundários gastrointestinais. A gastropatia dos AINE’s é assintomática em cerca de 50% dos casos, mesmo quando existe uma grande úlcera. Esta parece ser uma característica típica da gastropatia dos AINE’s(40), sendo essa falta de sintomatologia devida, talvez, ao seu próprio efeito analgésico. Por isso, uma hemorragia severa ou uma perfuração gástrica podem ocorrer na ausência de sintomas prévios. Mas, por outro lado, doentes com sintomas epigástricos durante o tratamento com AINE’s podem apresentar endoscopia normal em 50% dos casos. Há muitas moléculas e formas de apresentação de AINE’s no mercado e a sua prescrição, sendo muito prevalente, aumenta significativamente com a idade (provavelmente em relação com o aumento concomitante da 149 Cap09Profilaxia.qxp 21-11-2005 16:16 Page 4 PROFILAXIA DA HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA NO IDOSO: AINE’S, COXIBS E INBP’S O uso dos coxibs vulgarizou-se rapidamente (nos primeiros 3 meses o celecoxib tornou-se a droga de vendas mais rápidas da história(47)) e ganharam o estatuto de terapêutica anti-inflamatória standard(48), apesar do seu elevado custo em comparação com os anti-inflamatórios não selectivos. De seguida novas moléculas surgiram, como o valdecoxib(49) – aprovado pela FDA em Novembro de 2001, o parecoxib(50), o etoricoxib(51) e o lumiracoxib(52). Os estudos divulgados comprovaram o melhor perfil de segurança dos coxibs(53), em termos de tolerância gastro-intestinal mas o seu perfil geral de segurança passou mais recentemente a ser questionado pelo facto de haver indícios de que, pelo menos um deles, poderia aumentar o risco de acidentes cardiovasculares (riscos trombóticos e aumento da tensão arterial(54)), levando inclusivamente a empresa produtora a retirar do mercado mundial o rofecoxib(55, 56), tal como noticiava a FDA (U.S. Food and Drug Administration) em finais de Setembro de 2004. Há quem reclame que estes riscos trombo-embólicos poderão não ser um efeito de classe(57) (ou serão?(58)) mas, resumidamente, alguns AA, em termos conciliadores, apontam para o uso de um inibidor selectivo da COX-2 se o doente apresenta riscos gastrointestinais e para o uso de um anti-inflamatório não selectivo se o risco cardio-vascular é maior(59). Já em 2005 (Maio) um coxib de segunda geração, o valdecoxib, foi retirado do mercado, pelo menos na África do Sul(60) (para além do risco de acidentes cardio-vasculares foram-lhe atribuídos riscos de reacções cutâneas graves: síndrome de StevensJohnson(61)). Por outro lado, e além do mais, convém lembrar que, no mínimo, os coxibs também não serão completamente desprovidos de efeitos nocivos gastro-intestinais(62,63). O parecoxib, uma pró-droga do valdecoxib, apresenta-se apenas sob a forma injectável e tem sido usado com sucesso no alívio da dor per-operatória(64). Com os inibidores selectivos de segunda geração, como o etoricoxib, conseguiu-se uma cada vez maior selectividade para inibir a COX-2(65). Os dados publicados, em termos de riscos/benefícios, poder-se-ão considerar ainda insuficientes(66). O lumiracoxib, um outro inibidor selectivo da COX-2 de segunda geração(67), parece ter eficácia anti-inflamatória semelhante aos restantes AINE’s e com tolerância gástrica semelhante ao celecoxib, mas subsistem, no entanto, algumas dúvidas sobre a possibilidade de aumento de toxicidade hepática. Nalguns trabalhos (TARGET - Therapeutic Arthritis Research and Gastrointestinal Event Trial) demonstrou-se que o lumiracoxib reduz as complicações ulcerosas para um terço ou para a quarta parte das que se observam com a administração de naproxeno ou de ibuprofeno, e que o efeito gastrointestinal positivo desta evolução não aparece relacionado com incrementos da percentagem de episódios cardiovasculares severos(68,69). Os AA, a partir desta publicação, concluem que a selecção do fármaco mais adequado em cada caso para o tratamento dos pacientes com artrite dependerá dos juízos clínicos que cada médico formule, e da sua interpretação pessoal da evidência agora disponível. Em Junho de 2005, altura em que este capítulo está a ser ultimado, poder-se-á dizer que a retirada do mercado de alguns coxibs, para além de sequelas legais e comerciais, induziu algum grau de incerteza e insegurança a médicos e a doentes. De acordo com os mecanismos de acção que lhes são atribuídos, e nomeadamente com os efeitos conhecidos dos inibidores selectivos da COX-2 na fisiopatologia vascular e no balanço entre a prostaglandina I-2 (PGI-2 ou prostaciclina) e o tromboxano A-2 (TxA-2), é altamente provável que o risco de fenómenos trombóticos seja, de facto, um efeito de classe inerente aos coxibs(70). Uma palavra apenas para os anti-inflamatórios com radicais de óxido nítrico, referi150 Cap09Profilaxia.qxp 21-11-2005 16:16 Page 5 António Curado dos na literatura inglesa como (*)NONSAID(71), que poderão vir a representar uma nova abordagem na terapêutica antiinflamatória com redução de riscos de patogenicidade gastro-intestinal. De facto, o uso de AINE’s com radical NO (óxido nítrico) parece estar associado a menor efeito ulcerogénico(72), como acontece com o nitrofenac(73) (derivado do diclofenac) e o NOflurbiprofen(74). Não estão, no entanto, disponíveis no mercado. Refira-se também que alguns anti-inflamatórios já clássicos revelaram possuir alguma selectividade de inibição da COX-2, como o etodolac(75), meloxicam(76) ou nimesulide. de complicações e, considerando até a grandeza da população alvo, clarificar as indicações para o tratamento preventivo. Em França, por exemplo, propôs-se(77) como população de elevado risco os pacientes idosos, com patologia multi-orgânica (respiratória, cardíaca, hepática ou urinária) e/ou usando dois ou mais anti-inflamatórios. Mas, antes de mais, perante um doente candidato a terapêutica anti-inflamatória, devemos começar por reconsiderar a sua necessidade e depois optar pelo uso de um antiinflamatório na menor dose eficaz (o uso de baixas doses pode ser suficiente(78)), com o melhor perfil de segurança (Quadro 1). ESTRATÉGIAS DE PREVENÇÃO De entre toda a população consumidora de AINE’s será necessário tentar identificar quais são os estratos mais propensos ao aparecimento das úlceras gastro-duodenais que estes provocam (estas têm uma fisiopatologia própria, dado que os AINE’s são ulcerogénicos por diminuírem a capacidade da mucosa gástrica para produzir prostaglandinas e enfraquecerem a barreira mucosa gástrica), porque serão esses os principais candidatos às estratégias de profilaxia. As principais vítimas são principalmente os doentes - idosos - com história prévia de doença ulcerosa - consumidores de doses elevadas de AINE’s - com factores de risco múltiplos (uso concomitante de corticóides ou anticoagulantes) QUADRO I - QUAIS AS ESTRATÉGIAS POSSÍVEIS PARA PREVENIR AS ÚLCERAS DOS AINE’S? 1. Prescrever os AINE’s - na menor dose eficaz - com o melhor perfil de segurança - associados à prescrição de inibidores da bomba de protões (IBP) ou misoprostol 2. Prescrever inibidores selectivos da COX2 (celecoxib ou etoricoxib) 3. Prescrever outros inibidores COX2 relativamente selectivos (etodalac, meloxicam ou nimesulide) 4. Prescrever AINE’s com radical NO (óxido nítrico): NO-fluorbiprofen e nitrofenac (não existentes ainda no mercado) 5. Erradicar o Helicobacter pylori? A escolha do anti-inflamatório, seja não selectivo (ibuprofeno, diclofenac, indometacina, piroxicam, etc.) seja inibidor COX-2 relativamente selectivo (etodolac, meloxicam ou nimesulide), seja um coxib (celecoxib, etoricoxib, lumiracoxib) deve ser baseada em diversas particularidades: a idade do doente, a existência de patologia associada (nomeadamente gastro-duodenal ou cardio-vascular), a eficácia e a toxicidade da substância, o uso concomitante de outras drogas (nomeadamente a necessidade do uso de aspirina) e o seu custo. O seu uso generalizado e continuado pelos De facto, o uso concomitante de outras drogas, como os corticóides, os anti-agregantes plaquetares e os anticoagulantes agravam o potencial risco hemorrágico associados aos AINE’s. E a aspirina e a warfarina, por exemplo, têm um uso cada vez mais comum na profilaxia das doenças cardio-vascular e cerebro-vascular. O problema actual é então determinar quais os grupos de doentes que estão em risco 151 Cap09Profilaxia.qxp 21-11-2005 16:16 Page 6 PROFILAXIA DA HEMORRAGIA DIGESTIVA ALTA NO IDOSO: AINE’S, COXIBS E INBP’S idosos, bem como a elevada frequência de auto-tratamento neste grupo etário, deve ser tido em conta pelos clínicos(79). Para além de mais susceptíveis à gastropatia dos AINE’s, os idosos são também mais susceptíveis aos acidentes isquémicos e trombóticos. Deve ser tido em conta também que os riscos cardio-vasculares dos coxibs aumentam com o aumento da dose, sendo que as doses mínimas efectivas são, para o celecoxib de 100-200 mg, para o valdecoxib de 10 mg e para o etoricoxib de 60 mg. Em doentes idosos, de elevado risco de enfarte do miocárdio ou de acidente vascular cerebral, os coxibs estão contra-indicados(80). A associação à prescrição de AINE’s de anti-ulcerosos (sucralfate(81,82), sub-citrato de bismuto coloidal(83), ranitidina(84), misoprostol(85)) para a protecção gastro-duodenal é uma estratégia já conhecida, actualmente reforçada pela maior eficácia dos IBP’s(86,87) neste campo. Alguns estudos já clássicos (ASTRONAUT(88) e OMNIUM(89)), comprovaram a eficácia do omeprazole (o inibidor usado nesses ensaios quando ainda não estavam disponíveis outros IBP’s): o omeprazole revelou-se superior à ranitidina (e equivalente ao misoprostrol) na cura de úlceras pépticas nos consumidores crónicos de AINE’s. A eficácia dos antagonistas H2 na prevenção das úlceras gástricas provocadas por AINE’s é questionável. mente anti-agregantes plaquetares(97)) está associado a maior frequência de lesões da mucosa gastro-duodenal e a aumento do risco de hemorragia do tracto gastrintestinal superior, estando comprovada a eficácia dos IBP’s na prevenção desses riscos. No entanto, trabalhos recentes(98), revelaram que o uso de aspirina 80 mg/dia associada a esomeprazole 20 mg/dia oferece mais segurança, em termos de riscos de hemorragia digestiva, que o uso do clopidrogel 75 mg/dia(99,100). É, portanto, recomendável, prescrever um IBP aos doentes consumidores de AINE’s, com idade superior a 60 anos (especialmente 75), com história de sintomas gastro-intestinais ou uso prévio de anti-ulcerosos, ou de doença ulcerosa ou cirurgia gástrica prévia, ou de hemorragia digestiva (Quadro 2). QUADRO II - QUEM DEVE FAZER PREVENÇÃO? - Doentes com idade > 60A (especialmente 75) - Doentes com história de sintomas gastro-intestinais ou uso prévio de anti-ulcerosos - Doentes com história de doença ulcerosa ou cirurgia gástrica prévia - Doentes com história de hemorragia digestiva Spiegel et al.(101) compararam, em termos de custo-eficácia, 3 estratégias terapêuticas: o uso de um anti-inflamatório genérico em monoterapia, um anti-inflamatório genérico associado a um inibidor da bomba de protões e o uso isolado dum coxib e concluíram que, nos doentes de baixo risco, a melhor relação custo-benefício correspondia ao uso isolado do anti-inflamatório mas, nos doentes tomando aspirina ou de alto risco, a melhor estratégia em termos de custo-benefício correspondia a associar um IBP ao anti-inflamatório. Em doentes de muito alto risco gastroduodenal a co-prescrição de um coxib com um IBP poderia até ser recomendável(102,103). O misoprostol, apesar de dispor de eficácia semelhante ao omeprazole na prevenção da gastropatia dos AINE’s, vê o seu uso clínico limitado pela ocorrência de alguns efeitos secundários (nomeadamente de diarreia), nas doses recomendadas de 200 mg 4 vezes por dia. Os IBP’s são, neste caso, as drogas de escolha(90), surgindo trabalhos confirmando a eficácia dos diferentes IBP’s: esomeprazole(91, 92,93), rabeprazole(94), lansoprazole(95) e pantoprazole(96). É importante recordar que mesmo o uso de baixas doses de aspirina (ao contrário de outras drogas cardio-vasculares, nomeada- O papel da infecção pelo Helicobacterpylori nos doentes consumidores de AINE’s, e 152 Cap09Profilaxia.qxp 21-11-2005 16:16 Page 7 António Curado a sua associação com o aumento da frequência da hemorragia digestiva alta(104), é, como já dissemos, controverso(105). Não são, por isso, consensuais as indicações para a terapêutica de erradicação do Helicobacter pylori neste contexto(106). Há alguns estudos(107) que apontam para que o ‘screening’ e o tratamento da infecção pelo Helicobacter pylori em doentes que vão iniciar terapêuticas prolongadas com AINE’s podem reduzir significativamente o risco de úlceras pépticas. CONCLUSÃO Em conclusão, a hemorragia digestiva é particularmente frequente no idoso e tem relação muito significativa com o consumo de AINE’s. A profilaxia da hemorragia digestiva alta no idoso passa pelo uso criterioso dos AINE’s nas suas indicações, na dose e no perfil de segurança. O uso de inibidores selectivos da COX-2 pode diminuir os riscos de hemorragia relacionada com o consumo de AINE’s. O seu perfil geral de segurança tem vindo a ser questionado. Nos doentes de alto risco de patologia gastro-duodenal necessitando de terapêutica anti-inflamatória, está indicada a co-prescrição de inibidores da bomba de protões. Não há, no entanto, evidências que suportem a necessidade de terapêutica de erradicação do H. 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Também nos idosos, diferentes situações podem constituir a sua etiologia, tal como a obstrução anatómica, redução do trânsito no intestino grosso, alterações do pavimento pélvico, o síndrome do intestino irritável, o efeito de muitos medicamentos, a presença de doenças metabólicas, neurológicas e miopáticas ou, mesmo, problemas psiquiátricos. Estas podem ser catalogadas como causas estruturais, sistémicas, neurológicas, relacionadas com a utilização de medicamentos e funcionais. No cólon, um número de diferentes processos patofisiológicos são responsáveis pelo desenvolvimento da obstipação funcional. Neste grupo etário a obstipação é tipicamente categorizada como sendo de trânsito intestinal normal, trânsito lento, obstrução de saída por disfunção do pavimento pélvico ou fazendo parte do síndrome do intestino irritável. A obstipação do tipo trânsito normal ou idiopática é, a maioria das vezes, uma entidade controversa, dada a diferente valoriza- A obstipação deve ser encarada como um problema de saúde com implicações na qualidade de vida dos doentes. A sua definição apoia-se, em grande parte, na percepção subjectiva do hábito defecatório, tornando-se, desta forma, controversa entre médicos e doentes. A grande variabilidade das características do hábito intestinal é outro factor que contribui para a dificuldade em estabelecer o diagnóstico, caso não se opte por aplicar critérios previamente estabelecidos. A obstipação pressupõe uma alteração do hábito intestinal, função corporal que engloba dife-rentes componentes como a frequência defecatória, forma e volume das fezes, esforço defecatório e grau de satisfação pós-evacuação. A percepção destas últimas variáveis tem implícita factores culturais, psicológicos e dietéticos. Sendo considerada, fundamentalmente, como um sintoma, pode ter uma origem orgânica mas é, na maioria dos casos, de causa funcional. A obstipação funcional é mais frequente no sexo feminino e está dividida em dois tipos principais: a que resulta da diminuição da actividade cólica ou a que é consequência de anormalidades morfofuncionais do recto e ânus. No primeiro caso é possível identificar dois subtipos com suporte fisiopatológico, a inércia cólica e o trânsito lento do cólon. Estas alterações podem envolver todo o cólon ou apenas determinados segmentos. O segundo tipo, também denominado por obstrução de saída ou dis161 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 2 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO ção dos conceitos da normalidade dos hábitos de defecação. Estes doentes queixam-se de obstipação por terem dejecções infrequentes, distensão abdominal ou aumento da pressão abdominal na ausência de obstrução mecânica. Quando verificadas por métodos de estudo dirigidos ao trânsito do cólon e à função do pavimento pélvico, estes têm características dentro da normalidade(1). Na ausência de uma patologia subjacente ou alguma medicação que constitua o factor causal da obstipação, assim denominada secundária, poderemos afirmar que se trata de uma patologia mais frequentemente primária da função defecatória, assim denominada obstipação funcional. Neste caso a obstipação não é apenas um sintoma mas sim uma entidade nosológica que pertence ao grupo dos distúrbios funcionais do intestino - Quadro I. monstrado que, em idosos com obstipação e impacto fecal há uma redução da sensibilidade rectal, pelo que necessitam de maiores volumes de distensão rectal para estimular a defecação(2). Relativamente à fisiologia do cólon e anorectal em pessoas idosas é comum aceitar que esta está significativamente alterada apenas neste último segmento. O tempo total de trânsito intestinal está conservado em pessoas saudáveis, sem obstipação, deste grupo etário(3,4). Quando, pelo contrário, a obstipação está associada a um tempo de trânsito aumentado, está também presente uma maior dificuldade na defecação, dado que ocorre maior absorção de água das fezes e estas tornam-se mais secas e duras. A pressão média do canal anal é mais baixa nos idosos relativamente aos jovens e de forma mais significativa nas mulheres, o que favorece o desencadear de incontinência(5,6). A crença na auto-intoxicação por estase intestinal no cólon, como consequência da presença nas fezes de substâncias tóxicas para o organismo, remonta aos antigos egípcios. No papiro Anónimo Londinense encontra-se o seguinte texto: “se qualquer alimento ingerido que não é absorvido pelo organismo permanece nos órgãos, o calor do corpo gera resíduos que sofrem putrefacção e causam enfermidades”(7). QUADRO I - DISTÚRBIOS FUNCIONAIS DO INTESTINO - CLASSIFICAÇÃO ROMA II Síndrome do Intestino Irritável Distensão Abdominal Funcional Obstipação Funcional Diarreia Funcional Alterações Intestinais Funcionais Inespecíficas Adaptado de Thompson WG. Os médicos egípcios atribuíam a essas substâncias tóxicas muitas doenças e explicavam o próprio envelhecimento como consequência da sua contínua absorção. Como tratamento e profilaxia das doenças prescreviam frequentemente purgativos, eméticos e clisteres, visando a expulsão dessas substâncias tóxicas do organismo. Heródoto deixou-nos, a propósito dessas práticas, o seguinte depoimento relativamente aos egípcios: “E sua maneira de viver têm o costume de purgar-se todos os meses do ano, por três dias consecutivos, procurando viver com saúde à custa de eméticos e clisteres”(8). Apesar da inexistência de suporte científi- Nos últimos anos e paralelamente ao maior conhecimento da patofisiologia destas patologias foi feito um esforço de uniformização da sua definição, que resultou na elaboração dos critérios de Roma. A obstipação pode levar a complicações com implicações digestivas mas também sistémicas. Uma das possíveis consequências da obstipação não tratada é a impactação fecal, particularmente em idosos debilitados e confusos. Considera-se que esta complicação resulta da inadequada percepção ano-rectal. Convém ter presente que em casos de obstipação crónica complicada de impactação fecal, a queixa do doente pode ser a diarreia ou mesmo incontinência. Estudos têm de162 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 3 Eduardo Pereira, Francisco Martin co para a teoria da auto-intoxicação, razão do seu abandono pela comunidade científica, ainda hoje é frequente a prática de hidroterapia do cólon em indivíduos sem obstipação, não sendo de desvalorizar os possíveis riscos inerentes a esta técnica. Tendo em conta que a obstipação é especialmente frequente nos países ocidentais, onde 10% da população está medicada com laxantes, este grupo farmacológico é um dos mais solicitados pelo universo dos adultos com mais de 65 anos. Acresce, ainda, que grande parte desta prescrição é fruto da automedicação prolongada e não explicitada por pessoas que não consideram este grupo farmacológico como verdadeiros fármacos(9,10). Este tipo de atitude pode ocultar uma obstipação durante longos períodos e o abuso ou mesmo dependência de laxantes pode levar à redução da complexa função defecatória e até cronificar a obstipação. Ao contrário, constitui objectivo fundamental do tratamento da obstipação funcional estabelecer o trânsito intestinal normal sem o recurso a laxantes ou enemas. cabe ao médico, interpretar o seu significado fisiológico Por consenso actual, a obstipação funcional compreende um grupo de alterações funcionais que condicionam, contínua e persistentemente, defecações difíceis, infrequentes ou sentidas como incompletas. Apesar de previamente definida por três métodos nenhum deles foi aceite como inteiramente satisfatório. O primeiro, baseado em sintomas, inclui segundo ordem decrescente de frequência, a dificuldade de evacuação, fezes duras ou cíbalas, falsas vontades, dejecções infrequentes e evacuação incompleta. O segundo tem em conta parâmetros quantitativos estabelecidos sobre a defecação, tal como uma frequência inferior a 3 dejecções por semana, peso das fezes inferior a 35 gr por dia ou dificuldade e evacuação em mais de 25% das dejecções. O terceiro método considera aspectos de avaliação fisiológica tal como o tempo de trânsito intestinal ou cólico determinado por marcadores radiopacos. Esta avaliação não é fácil de obter além de que podem ocorrer sintomas de obstipação sem anormalidades fisiológicas. A definição de obstipação que mais frequentemente é referida na literatura é baseada na frequência das dejecções, considerando como critério objectivo o número inferior a 3 vezes por semana. Contudo, esta definição ignora muitos dos sintomas mais considerados pelos doentes, tal como a dificuldade de evacuação, fezes duras e outros sintomas. Ao ter em conta que a função defecatória normal é a que se produz pelo menos três vezes por semana, de forma indolor, sem excessivo esforço e que atinge uma sensação final de ausência de conteúdo no recto, devemos definir a obstipação ao analisarmos, em cada doente, cada uma das características da função defecatória: DEFINIÇÃO Frequentemente, profissionais de saúde e doentes definem obstipação de forma diferente, tendo em conta a ampla variabilidade da normalidade na frequência do hábito defecatório, sendo os limites entre três vezes por dia e três vezes por semana, a que acrescem as outras variáveis relacionadas com o processo de evacuação fecal. Os primeiros tendem a considerar como critério fundamental os dados objectivos, tal como a frequência das dejecções. Na óptica dos doentes a valorização está relacionada com aspectos subjectivos, tal como as características das fezes e as sensações relacionadas com o processo da defecação. Assim, os diagnósticos e as estratégias terapêuticas estão, obrigatoriamente, condicionados por esta diferente interpretação dos hábitos intestinais. O que mais importa é compreender, em detalhe, o significado que a obstipação tem para o doente e, a) frequência das dejecções; b) volume e forma das fezes; c) esforço requerido para defecar. Por necessidade de clarificar estas significativas discrepâncias na definição de obsti163 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 4 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO pação foi, nos últimos anos, estabelecida uma definição exacta e operativa com base em estudos epidemiológicos e clínicos. Está, por isso, hoje recomendada a aplicação de critérios diagnósticos, sendo o mais actual o de Roma II – Quadro II. perda de sangue pelas fezes ou alterações das características da defecação. EPIDEMIOLOGIA E HISTÓRIA NATURAL A obstipação constitui um sintoma presente em 10% da população em geral e é uma das alterações digestivas mais frequentes nas pessoas idosas, aumentando significativamente em adultos com mais de 65 anos de idade(13). Associa-se à elevada prevalência a redução da qualidade de vida quando comparada com pessoas sem obstipação(14). QUADRO II - CRITÉRIOS DE OBSTIPAÇÃO ROMA II(11) Dois ou mais dos seguintes sintomas por mais de 3 meses* e em pelo menos 25% das dejecções: - esforço defecatório excessivo - emissão de fezes duras - sensação de evacuação incompleta - sensação de obstrução ano-rectal - manobras manuais para facilitar a defecação** e/ou - menos de 3 dejecções por semana Critérios de SII não preenchidos * sem a obrigatoriedade de serem consecutivos **evacuação digital ou apoio do pavimento pélvico Na comunidade, cerca de 34% das mulheres e 26% dos homens com idades superiores a 65 anos autodefinem-se como obstipados e, quase uma terça parte dos idosos, utilizam laxantes de forma regular(15,16). Apesar disso, quando se realiza uma avaliação objectiva, apenas 3 a 5% de pessoas deste grupo etário tem menos de 3 dejecções por semana(17). Thompson et al.(12) Estes critérios não podem ser aplicados quando o doente está medicado com laxantes. Relativamente à sensação ano-rectal de obstrução e às manobras manuais para facilitar a evacuação, estas foram introduzidas em 1992 dado que ocorrem em doentes obstipados e, desta forma, passou a incluir os doentes com perturbações da defecação. Esta aparente discrepância entre a prevalência referida e a objectivada explica-se pelo facto de que os doentes se queixam mais do esforço e dificuldade defecatória, ou de fezes excessivamente duras, do que de dejecções infrequentes. Em pessoas idosas internadas ou a residir em instituições geriátricas a prevalência pode atingir mais de 50%(18). Admite-se que factores como a inibição do estímulo defecatório devido condicionalismos de falta de privacidade ou dificuldades no acesso às casas de banho contribuam para esse agravamento. Alterações da dieta e actividade física, muitas vezes directamente associadas à gravidade da doença ou estado funcional e cognitivo, podem constituir, outros factores. De uma forma sintética define-se a obstipação como uma evacuação retardada e infrequente, menos de 3 vezes por semana, de fezes excessivamente secas ou com sensação de evacuação incompleta. A obstipação pode apresentar duas formas evolutivas, a aguda e a crónica. O intervalo de tempo estimado para considerar a obstipação crónica é de seis meses. Perante a evidência de obstipação importa definir o tempo de evolução do problema, detectar se é secundária, por exemplo a fármacos e, identificar eventuais sinais de alarme, tais como o seu início recente, anemia, perda ponderal, A prevalência de impactação fecal pode atingir valores superiores a 40% em situações de doentes idosos muito debilitados e confusos. 164 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 5 Eduardo Pereira, Francisco Martin FISIOLOGIA DO CÓLON E ANORECTAL MÉTODOS DE ESTUDO alteração da fisiologia deste sistema ou das células pacemaker do cólon, denominadas células intersticiais de Cajal, levam à diminuição da motilidade, peristalse anormal e obstipação. Ao sistema nervoso extrínseco simpático ou parassimpático e ao plexo pélvico cabe o papel crítico do processo de defecação. O parassimpático transporta aferentes sensitivos do cólon e tem um papel estimulante da motilidade ao contrário do efeito inibitório do simpático que só é excitatório quanto aos esfíncteres. Qualquer alteração estrutural do plexo pélvico como resultado de uma cirurgia pélvica, mesmo não complicada, como no caso de uma cesariana ou histerectomia, de um traumatismo obstétrico ou pélvico, pode resultar numa perturbação da defecação. O cólon é muitas vezes considerado apenas um canal para passagem de material do intestino delgado para o recto, esquecendo-se as várias e diferentes funções características deste importante segmento do tubo digestivo. A sua capacidade de absorção de água e electrólitos, a responsabilidade pela fermentação de certos hidratos de carbono e a função de reservatório, resultam de características particulares da motilidade deste órgão. Assim, esta é responsável pela mistura do conteúdo líquido vindo do ileon e pela propagação do conteúdo do cólon direito para o cólon sigmóide e recto, onde é depositado e devidamente evacuado. Neste conjunto de mecanismos e funções, que determinam os hábitos de defecação normal, tem papel essencial a combinação de funções nervosas autónomas e voluntárias. O trânsito normal do conteúdo do cólon é de cerca de 36 horas, sendo este tempo igualmente repartido entre o cólon directo, transverso e cólon esquerdo. A motilidade cólica é um complexo e incompletamente compreendido processo que envolve o sistema nervoso extrínseco, também denominado sistema nervoso autónomo, o sistema nervoso intrínseco ou entérico e a normalidade funcional da musculatura lisa da parede intestinal ou estriada do pavimento pélvico. Uma grande variedade de neurotransmissores participam nesta função tal como a acetilcolina, óxido nítrico, péptido vasoactivo intestinal e a substância P. Factores hormonais como estrogénios, progesterona e hormonas com origem em células endócrinas do próprio tubo digestivo também participam activamente no controlo da motilidade, algumas delas com funções muitas vezes contraditórias. Os movimentos peristálticos do cólon envolvem dois padrões distintos. Contracções de baixa amplitude, com 5 a 40 mm Hg de pressão, responsáveis pela mistura dos conteúdos endoluminais e sua progressão a curtas distâncias, predominantemente existentes no cólon direito. Acontecem mais frequentemente após as refeições, numa média de 60 vezes por dia. O outro padrão de movimentos denomina-se de alta amplitude, atingem pressões superiores a 100 mmHg e são mais frequentes de manhã ou após as refeições. Por assumirem o papel de fazer progredir o conteúdo intestinal a longas distâncias também são denominados de movimentos de massa e iniciam-se mais tipicamente no cólon transverso. As contracções segmentares, caracteristicamente não peristálticas, que não induzem outro movimento do conteúdo local além daquele que resulta da própria compressão, são promotoras da absorção de água no cólon ascendente e condicionam a formação das haustras. Os métodos de estudo que avaliam o trânsito intestinal são a manometria, o uso de marcadores radiopacos ou cintigráficos mas, também, os próprios dados clínicos. Estes devem incluir aspectos relativos à Mas é ao sistema nervoso entérico que cabe o papel principal nos mecanismos que levam à normalidade do trânsito intestinal. A 165 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 6 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO frequência e esforço da defecação mas também sobre a forma e quantidade de fezes produzidas. A frequência não é um indicador do trânsito cólico tão significativo como a forma das fezes(19). A manometria, que permite o estudo da motilidade, tem numerosas dificuldades técnicas, pelo que tem pouca aplicação clínica. Pode realizar-se mediante registos de pressões intraluminais e associando-se o registo da actividade. Os tempos de trânsito do cólon podem ser avaliados pelo método de Sitzmark, sem medicação concomitante de laxantes e sob dieta habitual. Este consiste na administração de um número conhecido de marcadores radiopacos por via oral e observação da sua progressão ao longo do cólon, sob controlo radiológico. Tipicamente os doentes tomam a cápsula, que tem 24 marcadores radiopacos, no dia 0 e submetem-se ao estudo radiológico simples do abdómen nos dias 1, 3 e 5, sendo considerado normal se menos de 20% dos marcadores permanecem no cólon ao 5º dia. Se persistem mais de 20% dos marcadores é a favor do diagnóstico de inércia cólica e de obstrução de saída se houver concentração na área recto-sigmoideia. Os marcadores podem contabilizar-se em cada segmento do cólon direito, esquerdo e recto-sigma, colhendo resultados do tempo de trânsito cólico segmentar e total. Este exame permite distinguir os doentes com trânsito normal dos que têm um trânsito lento. Neste caso mostra se é por alteração de todo o cólon ou de um segmento particular. A distensão do recto é o estímulo que inicia o reflexo de evacuação / defecação. Quando as fezes distendem o recto os receptores sensitivos são estimulados e condicionam o relaxamento de esfíncter anal interno. Na ausência de contracção voluntária do esfíncter anal externo as fezes podem ser expelidas. A evacuação de fezes do recto é um processo complexo, adquirido sob aprendizagem e altamente influenciado por normas sociais, que também requerem uma imprescindível participação do sistema nervoso e da função muscular. Para que a defecação ocorra são necessários uma sequência de passos. As fezes são inicialmente transferidas do cólon sigmóide para o recto que sofre uma distensão e desencadeia a sua percepção. Caso seja socialmente oportuno o esfíncter interno relaxa-se reflexamente por estimulação rectal e o esfíncter externo relaxa-se voluntariamente. Uma manobra de Valsalva é empregue para aumentar a pressão intra-abdominal e intrarectal facilitando a evacuação. Os métodos de estudo mais usados na avaliação da função ano-rectal são a manometria, a defecografia, a electromiografia e o teste de expulsão do balão rectal. A manometria ano-rectal é uma exploração muito útil no estudo da obstipação crónica primária por obstrução da saída e nos casos de doença neurológica ou muscular. A técnica manométrica varia entre os laboratórios. Basicamente combina um sistema de cateteres perfundidos e de balões insufláveis que estão conectados a sensores de pressão. Desta forma regista-se o perfil de pressões do canal anal e determina-se a integridade dos reflexos ano-rectais. Este exame permite, também, estudar outros parâmetros como a sensibilidade rectal ao preenchimento e à sua distensibilidade. A defecografia é um dos estudos dinâmicos da defecação que se realiza introduzindo no recto uma solução com contraste de consistência pastosa, similar à das fezes, observando-se através de vídeo as fases de repouso e durante a intenção de defecar. Com esta técnica valorizam-se os mesmos parâmetros do proctograma e, ainda, a abertura do canal anal e o esvaziamento do recto. A electromiografia do pavimento pélvico estuda a actividade eléctrica dos músculos do pavimento pélvico. Para este efeito utilizam-se eléctrodos que recolhem a actividade do esfíncter anal e do músculo pubo-rectal tanto em repouso como durante a contracção voluntária e a de-fecação. Esta técnica é útil para o estudo da obstipação por contracção paradoxal do esfíncter anal. Nestes casos, 166 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 7 Eduardo Pereira, Francisco Martin a intenção de defecar, regista-se um aumento da actividade eléctrica da musculatura esfincteriana e pubo-rectal que traduz uma contracção errónea. hidrogénio, amónia e substâncias aromáticas tais como a skatol, metilin-dol, fenol e creosol. A colonização com diversas bactérias é necessária ao desenvolvimento das importantes defesas intestinais. O tempo de trânsito intestinal está relacionado com as características das fezes. A forma das fezes pode servir como um importante marcador do trânsito intestinal. Colaboram para as características das fezes não só as capacidades de absorção de água pelas fibras resi duais mas também a sua digestão e produção de gás e ácidos gordos de cadeia curta(20). A fi-gura 1 representa uma escala que classifica a forma das fezes, anteriormente referida como consistência, em sete tipos. Outras técnicas para o estudo dinâmico da defecação incluem o teste da expulsão do balão introduzido no recto, que pode estar preenchido de contraste, denominando-se de proctograma. Neste caso são efectuadas radiografias com o doente sentado e em repouso ou durante o acto defecatório. Com este exame é possível valorizar o ângulo anorectal, o nível de descida do períneo durante a defecação e a capacidade de expulsão do balão. Além disso permite identificar possíveis alterações da parede rectal tal como o rectocelo, enterocelo e sigmoidocelo. FIGURA 1 - ESCALA / TIPOS DE FEZES SEGUNDO A FORMA A obstipação não pode ser bem compreendida sem o conhecimento sobre a constituição natural das fezes. O hábito defecatório é de-pendente do volume de fezes e dos processos motores do cólon e rectoânus. As fezes são constituídas principalmente por bactérias, água e gás, além dos resíduos de hidratos de carbono resistentes aos enzimas do intestino delgado e sujeitos à sua degradação pela flora bacteriana do cólon e, ainda, da absorção de água e electrólitos no cólon direito. A flora intestinal, que permanece inalterada durante toda a vida, determina a extensão e natureza da degradação dos produtos que atravessam o ileon até ao cólon, denominado quilo, pelo que são determinantes no seu volume e composição, na produção de gás intestinal e no próprio hábito defecatório. As bactérias em equilíbrio com o ecosistema do cólon têm dois tipos de acção. A fermentação a que corres-ponde a sua acção sobre os resíduos de hidratos de carbono dando origem à produção dos gases metano, hidrogénio e dióxido de carbono ou de ácidos orgânicos como o butírico, acético e láctico. O segundo tipo de acção é a putrefacção, que resulta da digestão das proteínas pelas bactérias dando origem aos gases sulfito de 167 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 8 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO almente após o pequeno-almoço, resultante dos processos hormonais e da estimulação colinérgica. Este reflexo é acentuado após as refeições ricas em lípidos ou que contenham cafeína. Quanto à posição de defecação a que tem melhor justificação anatomofisiológica é a de cócoras, dado que rectifica o ângulo entre o canal anal e recto, facilitando a passagem das fezes. Relativamente às condições adequadas para que tenha êxito o processo de evacuação há aspectos de fisiologia que devem estar presentes, tornando-se importantes como elementos práticos da vertente terapêutica. Assim, deve informar-se o doente da importância de aproveitar o reflexo gastrocólico que acontece após as refeições, habitu- FIGURA 2 - REPOUSO: ÂNGULO ANO-RECTAL 180 A 100 GRAUS DURANTE A DEFECAÇÃO: AUMENTO DO ÂNGULO ANO-RECTAL EM 15 GRAUS, ABAIXA MENTO DO PERÍNEO EM 1.0 A 3.5 CM ALTERAÇÕES MORFOFUNCIONAIS COM O ENVELHECIMENTO processo biológico do envelhecimento. Contudo, algumas publicações afirmam que à evolução da idade estão associadas a alterações na estrutura e função do cólon, resultante de uma progressiva alteração nas propriedades mecânicas da parede, dos mecanismos defecatórios e da continência anal. Os achados apontam para uma menor sensibilidade das células musculares do cólon à acetilcolina e estímulos eléctricos. O aumento da idade está associado com uma redução no número de neurónios nos gânglios do plexo mientérico. Estudos usando marcadores radiopacos têm identificado um significativo aumento do trânsito cólico, enquanto “the intestines tend to become sluggish with age” HIPÓCRATES Intestino Grosso Na generalidade é aceite que a motilidade cólica não está profundamente afectada em idosos saudáveis e que o tempo de trânsito prolongado nas pessoas idosas com obstipação reflectem apenas factores associados à idade, tal como a co-morbilidade, imobilização ou toma de medicamentos, mais do que pelo 168 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 9 Eduardo Pereira, Francisco Martin outros não encontram diferenças entre jovens e idosos. Contudo, não está esclarecido se esta alteração reflecte um problema primário da motilidade cólica ou se resulta de uma evacuação inadequada. da motilidade directamente relacionada com a idade. Estas alterações fisiológicas também predispõem os indivíduos deste grupo etário a um maior número de complicações, por parte de outras situações clínicas sobrepostas, que condicionam a transmissão colinérgica ou como resultado de anormalidades metabólicas. Quando a obstipação se instala insidiosamente pode-se estar perante uma alteração da função tiroideia, hipercalcémia, hipomagnesiémia e outras situações metabólicas. A utilização de medicamentos neste grupo etário é uma causa frequente de início de obstipação. Alguns problemas podem estar associados a modificações estruturais e funcionais do aparelho digestivo, tendo em conta a evolução dos componentes endócrino, imune e, sobretudo, neuronal. Tal como é reconhecido para o sistema nervoso central também os sistemas nervoso periférico e entérico sofrem alterações morfofuncionais. São exemplo a redução da libertação de neurotransmissores e da resposta dos receptores sensitivos, diminuindo a eficácia dos circuitos neuronais e das respostas neuroendócrinas, secretoras e motoras. De entre as alterações estruturais destacam-se a deposição de lipofuscina relacionada com o envelhecimento biológico, alterações degenerativas que atingem primeiro os prolongamentos axonais e dendríticos, as junções axonais e finalmente a apoptose ou necrose celular com redução maciça do património neuronal. Essa depleção justifica os transtornos da motilidade, secreção e absorção intestinal. Também, com a evolução da idade, ocorre um aumento de ambas as camadas longitudinal e circular do músculo liso associado ao aumento do tecido elástico e conjuntivo(21). Independentemente da idade, quer as contracções segmentares quer os movimentos de massa aumentam após as refeições, embora apenas se manifestam propulsivos em idosos que se mantêm fisicamente activos. Estudos anatómicos têm revelado uma redução no número de neurónios do plexo mientérico, com alguma substituição por tecido fibroso, mas é provável que estas alterações não sejam acompanhadas de significativas alterações funcionais(22). Continua por justificar como algumas destas alterações dimi-nuem os potenciais inibitórios do músculo circular do cólon. Desconhece-se, nos humanos, se a função absortiva da mucosa cólica ou a actividade metabólica da flora do cólon pode-rão estar alteradas neste grupo etário, dado que não têm sido avaliadas. A pressão intracólica aumenta possivelmente como resultado de uma mudança das características dos movimentos intestinais, que passam de peristálticos a não peristálticos. A libertação de cálcio dos reservatórios intracelulares do músculo liso está diminuída tal como a sua recaptação alterada, levando ao prolongamento de contracções cólicas de baixa amplitude. Pode ocorrer, também, um ligeiro atraso no esvaziamento de cego e cólon ascendente com redução da actividade peristáltica resultante da neuropatia autonómica. Apesar de todos estes dados, nos estudos manométricos do cólon no idoso sem obstipação não se identifica qualquer diminuição Segmento ano-rectal Está confirmado que a motilidade da região ano-rectal se altera com a idade. Há uma alteração da elasticidade rectal e dos volumes do conteúdo rectal que levam à redução reflexa do tónus esfincteriano, que passam a ser maiores, mantendo-se a percepção subjectiva das sensações de volume rectal(24). As alterações anatómicas que ocorrem com a idade incluem o espessamento do esfíncter anal interno, o que se comprova facilmente tendo em conta o aumento da ecogeni169 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 10 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO cidade à ultrassonografia anal, pelo que a sua elasticidade fica reduzida. Esta alteração é devida, em grande parte, à fibrose que se instala, possivelmente como mecanismo compensatório da redução na espessura do esfíncter anal externo. As mulheres têm um risco acrescido de disfunção esfincteriana, devido à combinação de vários factores, tal como laxidez do pavimento pélvico, pressão rectal diminuída e latência aumentada do nervo pudendo. Estas alterações anatómicas são acompanhadas por uma diminuição na pressão de repouso e de esforço do canal anal e uma redução na função de reservatório rectal. No caso da obstipação crónica funcional as alterações são de três tipos, embora seja frequente a sua concomitância, como apresentado na figura 3. FIGURA 3 - MECANISMOS PATOGÉNICOS Alterações neurológicas têm sido descritas e incluem uma diminuição na electrosensibilidade da mucosa tal como da distensão rectal e um aumento na latência do nervo motor(23). A investigação da função ano-rectal por manometria, com vista ao estudo do esfíncter anal interno, evidencia significativa redução da pressão de repouso do canal anal. 1.Hipomotilidade cólica – trânsito lento do cólon 2.Percepção rectal anómala 3.Obstrução de saída - disfunções da defecação Mais do que um determinado mecanismo etiopatogénico da obstipação é importante compreender a sua origem multifactorial. Num estudo para avaliação dos mecanismos patogénicos da obstipação crónica, em 59% dos casos não se detectou qualquer alteração, sendo o trânsito intestinal do cólon normal. As disfunções da defecação apareceram em 25 % dos doentes, apenas 13% tinham trânsito intestinal lento e 3% apresentavam a concomitância destes dois mecanismos(26). Podem instalar-se alterações da defecação por lesão do nervo pudendo. Esta, pode levar a um abaixamento anormal do períneo e consequente prolapso parcial da mucosa rectal através do canal anal(25). A ocorrência de anorexia e carências nutricionais globais ou selectivas, como a deficiência na absorção de cálcio, ferro, vitamina B12 e folatos, estão relacionadas com as modificações descritas mas, também, por estarem esbatidos os sentidos orexígénicos, sendo em simultâneo causa das alterações anátomofuncionais. O grupo de doentes mais numeroso é identificado como sofrendo de obstipação crónica “idiopática”. Estes indivíduos, apesar de terem hábitos de defecação considerados dentro da normalidade, ainda assim se consi deram como obstipados, sobretudo pela percepção de dificuldades de evacuação ou presença de fezes duras. MECANISMOS PATOGÉNICOS O reconhecimento de diferentes doenças funcionais do intestino e o desenvolvimento de técnicas de avaliação da motilidade e sensibilidade intestinal têm proporcionado um maior conhecimento sobre os possíveis mecanismos subjacentes. Neste grupo, são frequentes situações de stress psicossocial e, alguns deles, podem revelar alterações da sensibilidade rectal(27,28). 170 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 11 Eduardo Pereira, Francisco Martin mientérico com acção excitatória através dos neurotrasmissores substância P, peptídeo intestinal vasoactivo e óxido nítrico. A redução no número de células intersticiais de Cajal é outro achado com efeito patogénico na hipomotilidade. Trânsito intestinal lento A obstipação que se associa a esta alteração é mais comum na mulher jovem, sintoma que se inicia, muitas vezes, na puberdade. Como queixas associadas estão presentes uma redução do número de dejecções, meteorismo, dor e desconforto abdominal. Nas situações de obstipação ligeira as dietas com fibras podem diminuir o tempo de trânsito mas, em situações de maior gravidade, este tipo de resposta é previsivelmente ineficaz. Estão definidos diferentes potenciais mecanismos fisiopatológicos neste grupo. A diminuição do reflexo gastro-cólico, a alteração da produção de óxido nítrico e modificações na regulação do sistema nervoso entérico, são alguns exemplos referidos na literatura. Estes doentes têm um atraso no esvaziamento do cólon proximal e poucas contracções peristálticas de alta amplitude após as refeições. O trânsito intestinal lento tanto se pode manifestar em toda a extensão como estar limitado ao cólon descendente ou sigmóide. A inércia cólica, uma condição relacionada, é caracterizada por um trânsito lento do cólon e falta de resposta da actividade motora após as refeições, depois da administração de bisacodil e de agentes colinérgicos. Disfunções da defecação Estes mecanismos são frequentes na população idosa, especialmente, do sexo feminino. Eles são caracterizadas por anormalidades detectáveis na manometria e defecografia. A patogénese não está bem compreendida e é, provavelmente, multifactorial. A função de esvaziamento do recto envolve o relaxamento coordenado dos músculos pubo-rectal, levantador do ânus e esfíncter anal externo, associado ao aumento da pressão abdominal e inibição da actividade da motilidade cólica segmentar. A ineficácia da defecação está associada à falta de relaxamento ou contracção inapropriada da musculatura que participa no processo de evacuação. Consideram-se factores de risco para a instalação de obstipação por obstrução de saída, na mulher idosa, a reduzida abertura do ângulo ano-rectal e a excessiva descida do períneo. As bases fisiológicas que melhor explicam os mecanismos da disfunção do pavimento pélvico ou do esfíncter anal são a ausência de reflexo recto-anal de relaxamento do esfíncter anal interno e a contracção inapropriada do esfíncter anal externo e músculo puborectal durante a defecação. Várias denominações têm sido dadas a esta entidade, tal como anismus, discinésia do pavimento pélvico ou rectoesfincteriana, contracção paradoxal do pavimento pélvico, obstrução funcional rectosigmóide e síndrome espástico do pavimento pélvico. Esta obstrução funcional acontece por contracção do esfíncter anal externo e dos músculos do pavimento pélvico durante o período que corresponde à intenção de defecar. Esta descoordenação do mecanismo de contracção - relaxamento pode ter um componente relacionado com a aprendizagem, sendo mais do que a uma perturbação muscular ou neurológica, razão que justifica a possi- O mecanismo desta perturbação da motilidade não está bem esclarecido. Em alguns indivíduos a base do trânsito intestinal lento pode ser dietético ou mesmo cultural(29-32). Noutros, a verdadeira razão patofisiológica é a anormalidade da motilidade cólica. Têm sido sugeridos dois subtipos deste grupo. A hipomotilidade, possivelmente relacionada com o reduzido número de contracções de altaamplitude e a actividade motora aumentada e descoordenada no cólon distal, que oferece resistência funcional ao trânsito intestinal normal(33,34). Esta distinção requer o estudo por manometria cólica e alguns autores propõem, como causa, alterações de regulação neurológica. Estudos histológicos têm identificado alterações no número de neurónios do plexo 171 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 12 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO bilidade terapêutica com técnicas de reeducação. Uma inibição repetitiva e prolongada do desejo de defecar, para evitar a passagem dolorosa das fezes na presença de fissura anal ou hemorróidas, pode levar a alterações definitivas de obstrução de saída. Anormalidades estruturais, tais como o rectocelo, sigmoidocelo ou excessiva descida do períneo são causas menos frequentes. Alguns doentes referem uma história de abuso sexual ou físico. Estas disfunções podem resultar de um deficiente abaixamento do períneo (menos de 1 cm) e da reduzida alteração do ângulo anorectal (menos de 15 graus) durante o processo de evacuação. Ignorar ou suprimir a necessidade de defecar, por motivos de ordem social ou disposição individual, pode contribuir para o desenvolvimento de obstipação, mais frequentemente de uma forma ligeira(35). Em condições normais ocorre o desejo de defecação sempre que as fezes chegam ao recto, coincidindo com o relaxamento reflexo do esfíncter anal interno, o denominado reflexo recto-anal. Este acompanha-se voluntariamente, do relaxamento do esfíncter anal externo e da musculatura do pavimento pélvico, assim como da compressão da parede abdominal, com vista à expulsão das fezes. Na disfunção do pavimento pélvico há uma permanência prolongada do resíduo fecal no recto(36-40). Neste caso a causa principal é uma inabilidade em evacuar adequadamente o conteúdo rectal apesar da sua percepção. COMPLICAÇÕES A obstipação crónica pode levar ao aparecimento de complicações tais como a impactação fecal, incontinência, síndrome da úlcera solitária do recto, diverticulose, disfunção do pavimento pélvico e desenvolvimento de rectocelo, enterocelo, prolapso rectal ou intuscepção. Apesar de existirem muitos idosos obstipados há aqueles que se consideram sem o serem, pois é comum existir uma particular preocupação com o intestino neste grupo etário. Além do desconforto que a obstipação provoca ela pode ter várias complicações.(42) A principal é o aparecimento da impactação fecal. A retenção fecal e a absorção de água no intestino grosso leva ao endurecimento das fezes que se agrupam pelas ondas peristálticas, lubrificadas pela secreção de muco. O fecaloma distende habitualmente o recto, mas pode ocorrer, ocasionalmente, em segmentos superiores enquanto o recto permanece vazio. Pode por vezes adquirir grandes dimensões, formando fecalomas de grandes massas de fezes em doentes enfraquecidos. Na impactação o doente pode apresentar sintomas similares aos da obstipação ou não relacionados com o sistema digestivo. Se o fecaloma exerce pressão sobre os nervos sagrados o doente pode referir dor lombar, mas se comprimir os ureteres, a bexiga ou a uretra, então podem ocorrer sintomas urinários, na forma de incontinência ou retenção. Quando ocorre distensão abdominal que afecta os movimentos diafragmáticos pode surgir hipóxia ou disfunção ventricular esquerda, taquicardia ou angor. Caso haja estimulação vasovagal pode surgir náusea e hipotensão arterial. A passagem de fezes líquidas ao redor do fecaloma pode levar a uma situação de diarreia ou incontinência no decurso de actividades que aumentam a pressão abdominal. Esta fuga fecal pode ser concomitante com vómitos, dor abdominal e mesmo desidratação. Nesta situação estamos perante uma complicação da obstipação que pode ameaçar a vida do doente e manifestar-se por estado agudo de Percepção rectal anómala Existe um grupo de doentes que apresentam uma percepção rectal anómala pelo que não sentem a chegada das fezes ao recto, não percepcionando o desejo de defecar(41). Este mecanismo pode ser desencadeado pelas inibições sucessivas e prolongadas do reflexo de defecação, desejo voluntariamente reprimido durante anos e justificados por condicionalismos pessoais e sociais. Em outras ocasiões pode ser identificada uma perturbação com base neurológica ou pode mesmo representar uma desconhecida expressão de neuropatia do sistema nervoso entérico do cólon. 172 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 13 Eduardo Pereira, Francisco Martin confusão mental, sinais de taquicardia, diaforese, febre e dor abdominal. A impactação pode ser causa de patologia ano-rectal tal como fissura anal, hemorróidas e úlcera estercoral(43). Alguns autores afirmam que a obstipação do idoso pode levar ao aparecimento de perturbações mentais acompanhadas de agitação e confusão. A hemorragia rectal pode aparecer em consequência de ulcerações da mucosa. O esforço defecatório pode causar alterações da circulação coronária, cerebral e periférica, que pode resultar em angina pectoris, acidentes isquémicos transitórios ou síncope. Tendo em conta estas complicações mais graves é necessário estar atento, para que seja adequado o tratamento, evitando tais consequências. O abuso de laxantes por tempo indefinido pode levar a um ciclo vicioso, sem evacuações expontâneas satisfatórias, o que pode piorar a própria obstipação. Nesta situação o cólon pode estar completamente vazio pelo uso de laxantes, o que irá prejudicar o tónus e o peristaltismo, podendo levar à instalação de megacólon(44). O conjunto de alterações secundárias ao uso de laxantes é classicamente denominado de “cólon catártico”. Neste caso há perda da inervação intrínseca e hipotrofia do músculo liso, melanose do cólon, além de alterações hidroelectrolíticas que causam depleção de electrólitos, principalmente do potássio. identificar uma causa orgânica. Para a maioria dos idosos há, provavelmente, múltiplos “factores de risco” que contribuem para a obstipação, tendo em conta que as pessoas com mais de 65 anos de idade têm uma probabilidade de sofrer deste sintoma cinco vezes mais do que a população em geral (OMGE Practice Guideline). Incluem-se nestes factores de risco aspectos dietéticos e funcionais, embora de valor etiopatogénico controverso. Entre os factores dietéticos podem ser incluídos a ingestão calórica e de líquidos inadequada, pobre em fibras e rica em gorduras, fruto do maior consumo de alimentos industrializados. Associam-se um déficit natural do paladar e gosto, dentição em más condições e problemas de deglutição. Este conjunto de circunstâncias pode constituir a razão de uma baixa ingestão de alimentos e consequentemente da falta de estímulo ao adequado funcionamento intestinal. A alimentação com alto teor de fibra vegetal, denominada fibra alimentar, apresenta propriedades hidrofílicas que contribui para a retenção de água no bolo fecal. Também a colonização bacteriana e sua acção sobre a celulose contribui para o aumento do volume fecal, além da síntese de ácidos gordos de cadeia curta, um estímulo à peristalse e secreção da parede intestinal. Relativamente a factores funcionais podem estar implicados a imobilidade da pessoa idosa por sedentarismo ou a utilização de sanitários inadequados para um dejecção em posição funcionalmente favorável. O sedentarismo e a falta de exercícios físicos contribuem para a ineficácia dos movimentos peristálticos ou para o enfraquecimento dos músculos da parede abdominal essenciais à força evacuadora. ETIOLOGIA FACTORES PREDISPONENTES “FACTORES DE RISCO” Do ponto de vista etiológico a obstipação engloba diferentes formas clínicas repartidas entre lesões estruturais do cólon e canal anal, secundários a processos sistémicos metabólicos, endócrinos, doenças neurológicas e toma de alguns medicamentos. A forma clínica mais frequente, sobretudo a de longa evolução, é a obstipação crónica, hoje denominada funcional, não sendo possível, neste caso, Outras variáveis que têm sido implicadas no desenvolvimento da obstipação são a ansiedade, estados depressivos e alterações da função cognitiva, todos eles de alta prevalên173 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 14 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO cia neste grupo etário. O uso de medicamentos obstipantes, tais como antidepressivos com efeitos anticolinérgicos, analgésicos opióides ou AINEs, incluindo em particular a aspirina, entre outros, são factores predisponentes (Quadro III). A obstipação está associada à depressão e ao abuso sexual(47). O uso crónico de laxantes pode contribuir para o desenvolvimento da obstipação e impactação. Doses repetidas de laxantes diminuem a sensibilidade do cólon e os seus reflexos intrínsecos que são estimulados pela distensão(45). QUADRO III - MEDICAMENTOS ASSOCIADOS À OBSTIPAÇÃO ANÁLGÉSICOS ANTITÚSSICOS CARDIOVASCULARES Grupo de AINE’S Ácido acetilsalicílico Naproxeno Ibuprofeno Codeína Dextrometorfano Bloqueadores de Cálcio Verapamil Nifedipina Diltiazina Grupo de opióides Morfina Codeína Meperidina Metadona ANTIÁCIDOS Carbonato de cálcio Hidróxido de alumínio Fosfato de alumínio Sucralfato Antihipertensivos Diuréticos Simpaticolíticos Bloqueadores ganglionares Outros: antidepressivos tricíclicos, suplementos de cálcio e ferro, antidiarreicos, antiparkinsónicos, antihistamínicos, anticolinérgicos (Librax) e simpaticomiméticos. Adaptado de Lozano 2000 (46) posição postural para facilitar a expulsão das fezes, se há necessidade de suportar o períneo ou efectuar digitação do recto ou vagina no momento de eliminação. Ainda, se ocorre com frequência a retenção da água dos enemas ou se a obstipação se iniciou após uma colectomia subtotal. Relativamente aos antecedentes pessoais e familiares deve ser investigada a presença de poliposes e neoplasias do cólon. Dever ser feito o despiste de doenças conhecidas como causa de obstipação e a uma cuidadosa história sobre a administração de fármacos. A exploração física inclui a palpação abdominal, a exploração visual da zona anorectal tanto em repouso como sob manobra de Valsalva, assim como avaliar a competência do esfíncter anal sob toque rectal. Um cuidadoso exame proctológico deve incluir a observação da área peri-anal o que permite identificar fístulas, fissuras e hemorróidas. Segue-se a observação do períneo em repouso AVALIAÇÃO CLÍNICA E DIAGNÓSTICA A obstipação funcional é diagnosticada pela presença de sintomas de obstipação na ausência de causas conhecidas. História e Exame Físico Para se chegar ao diagnóstico de obstipação funcional deve ser realizada uma adequada anamnese e um exame físico de forma a despistar eventuais causas secundárias ou doenças graves no contexto deste sintoma. Assim, deve ser feita uma história clínica completa que inclua queixas actuais, onde importa saber sobre o tempo de evolução da obstipação, a frequência das dejecções, o volume e forma das fezes ou inquirir sobre sintomatologia concomitante que inclua sinais de alarme. Deve ser percebido se existem evacuações difíceis e prolongadas, alguma 174 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 15 Eduardo Pereira, Francisco Martin e ao esforço defecatório para determinar a extensão da sua descida, o que normalmente oscila entre 1 e 3.5 cm. Uma descida reduzida pode indicar uma incapacidade de relaxar os músculos do pavimento pélvico. Uma descida excessiva, abaixo do plano que é limitado pela linha entre as tuberosidades isquiáticas, pode indicar uma flacidez do períneo, resultando em evacuação incompleta, o que é habitualmente consequência de trabalho de parto ou esforço defecatório durante vários anos. Finalmente, o toque rectal deve ser efectuado para determinar o tónus do esfíncter anal em repouso ou durante a contracção voluntária, uma possível presença de estenose, impactação fecal, ou massa rectal. A palpação do músculo pubo-rectal pode ser doloroso o que pode ser avaliado pelo toque da parede posterior do recto. O toque rectal também permite sentir um eventual prolapso mucoso durante o movimento de defecação ou um defeito da parede anterior sugestivo de rectocelo. electrólitos e glicose, um hemograma completo e estudo da urina. Uma radiografia simples do abdómen deve ser efectuada para identificar eventual impactação ou obstipação grave. Na presença de sinais de alarme ou algum contexto clínico suspeito justifica-se a realização de colonoscopia. Os estudos funcionais são necessários apenas nos doentes com sintomas refractários, sem eficácia terapêutica de dieta rica em fibras ou laxante e que não apresentam sinais de uma causa orgânica. Se os sintomas são claramente distais e a frequência defecatória normal, contexto que sugere uma alteração da evacuação, a prova inicial deve ser a manometria ano-rectal ou o teste de expulsão do balão. Se os resultados destes forem inconclusivos ou se houver uma suspeita clínica de anormalidade estrutural do recto que dificulte a defecação, deve ser efectuada a defecografia. Em doentes sem suspeita clínica de obstrução de saída, com frequência defecatória anormal, o teste inicial deve ser o tempo de trânsito do cólon para distinguir entre as duas entidades patofisiológicas de trânsito normal ou lento. A manometria anorectal e o teste de expulsão do balão rectal podem ser necessários se estes doentes não respondem à terapêutica médica com fibras e laxantes. Nos casos em que não é identificada qualquer alteração funcional, deve ser proposta uma avaliação psicoemocional, pois podemos estar perante doentes com incorrecta percepção dos hábitos defecatórios. Estudos Laboratoriais e Funcionais A alta prevalência e as características relativas dos factores etiológicos levam a considerar a obstipação como situação comum e um problema médico trivial, pelo que não é adequado efectuar exames complementares na maioria dos doentes. Justifica-se, para esclarecer a sua patogenia em doentes com obstipação funcional e nos casos que não respondem às medidas e tratamentos médicos mais habituais. Com este diagnóstico deve iniciar-se terapêutica com fibras dietéticas, sem necessidade de outros exames, caso ocorra resposta terapêutica. Nos casos de não haver resposta após 4 a 6 semanas, deve realizar-se um estudo funcional que pode ser precedido pela utilização de laxante suave do tipo lactulose. A primeira exploração funcional deve ser seleccionada segundo as manifestações clínicas predominantes. Exames analíticos durante a avaliação inicial podem incluir testes da função tiroideia, doseamentos do cálcio, fósforo, magnésio, DIAGNÓSTICO O diagnóstico de obstipação funcional do adulto tem por base uma boa história clínica. O primeiro passo é uma cuidadosa revisão sobre os hábitos dietéticos com ênfase para o consumo calórico, fibras e líquidos. Adicionar fibras à dieta é benéfica apenas quando se está perante uma baixa utilização, ou seja, inferior a 25 -30 gramas por dia. Também deve ser esclarecido o nível de actividade física, patologias concomitantes e administração de medicamentos. 175 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 16 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO A avaliação diagnóstica padronizada diferencia entre a obstipação por alterações do trânsito do cólon e a causada por obstrução de saída. Alterações morfológicas do cólon, recto ou pavimento pélvico, devem ser separadas das perturbações funcionais. É importante valorizar as consequências da retenção fecal intensa e prolongada, nomeadamente a impactação fecal, que pode manifestar-se por dor abdominal crónica e diarreia. Esta situação é especialmente importante em doentes debilitados e acamados, pois pode acabar por causar úlceras na parede rectal que cursam com dor surda e rectorragias, ocasionalmente graves. Outra consequência é a oclusão mecânica do cólon. Medidas sanitárias e comportamentais É muito importante contribuir para uma educação sanitária eficiente. Deve ser explicado, de forma clara e adaptada a cada caso, os mecanismos da doença, os sinais de risco e factores agravantes ou possíveis complicações, aumentando desta forma a tranquilidade e qualidade de vida do doente ou do seu acompanhante. Considera-se importante o fortalecimento da musculatura abdominal e o ensino da postura mais adequada ao complexo processo da evacuação. Sugere-se a colocação de duas alças aos lados da sanita (ocidental) para conseguir uma elevação dos pés de 15-20 em relativamente ao plano do chão. Desta forma modifica-se a disposição da musculatura pélvica facilitando a saída das fezes, tanto mais importante nos casos de dificuldades relacionadas com a obstrução de saída. PREVENÇÃO E TRATAMENTO Medidas gerais Uma boa anamnese e um exame físico completo são pilares fundamentais na orientação terapêutica inicial desta e de qualquer outra entidade nosológica deste tipo. Inúmeras doenças estão associadas à obstipação crónica e a sua presença altera, obviamente, o esquema de manuseamento e terapêutico, que passa a ser electivo. Deve haver rigor no conhecimento da medicação habitual e dos seus efeitos secundários. Será desejável, neste contexto, a substituição, dentro do possível, dos medicamentos com potenciais efeitos adversos por outros, dos mesmos grupos, sem os referidos efeitos secundários. Este capítulo está orientado para o tratamento da obstipação funcional crónica no doente idoso. Na história clínica deve ser investigada a presença de factores de risco e dos denominados sinais de alarme. Não deve ser esquecido que nos idosos a sintomatologia torna-se mais difícil de valorizar e que qualquer alteração pode querer significar a existência de uma patologia orgânica, susceptível de tratamento etiológico. Os tratamentos da obstipação são geralmente baseados na severidade dos sintomas e, se possível, tendo em conta o subtipo fisiológico. Deve ser explicada a importância e os limites do hábito intestinal normal ou dos horários associados à maior actividade cólica, o que acontece após as refeições. Igualmente, devem ficar esclarecidas quais as alterações na dieta ou hábitos diários como a actividade física e a ingesta de líquidos, que podem alterar a frequência do trânsito intestinal. Estas medidas são habitualmente insuficientes mas, apesar disso, são consideradas como o início do esquema terapêutico. Todas elas, aplicadas de forma racional e adequadas a cada doente, estão associadas a uma forma de vida mais saudável, melhorando a sua qualidade, o que ocorre sobretudo a médio e longo prazo. Medidas preventivo-dietéticas Reforço de fibra na alimentação diária. Considera-se consensual a necessidade de aumentar a ingestão de fibra diária até uma quantidade equivalente a 20 ou 30 gramas. Este princípio, aplicável a adultos e idosos deve ser realizado a partir de fibras naturais como vegetais e frutas ou preparados comerciais. A dor abdominal, a distensão e a flatulência, são efeitos secundários que habitual176 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 17 Eduardo Pereira, Francisco Martin mente limitam a eficácia deste regime alimentar. O aumento progressivo da quantidade de fibras na dieta limita a aparição de efeitos indesejáveis. capacidades de cada doente. Tratamento farmacológico Expansores do volume fecal Farmacofibras Este grupo inclui substâncias só parcialmente digeríveis em que a porção não digerida é hidrofílica. São substâncias que provocam o aumento de resíduo não absorvível e com capacidade de absorção de água nas fezes. Incrementam o volume e peso das mesmas, acelerando a motilidade gastrointestinal e diminuindo o tempo de trânsito no cólon. Múltiplos estudos demonstram a sua eficácia quando comparados com placebo(48,51,52). São especialmente úteis nos doentes cuja alimentação não contem quantidade de fibras suficiente. Têm efeito terapêutico moderado, dose dependente e são consideradas, na actualidade, de utilidade limitada no protocolo terapêutico da obstipação funcional crónica. Devem ser apresentadas ao doente como parte de um esquema terapêutico e, não como medicação de recurso rápido, dada a sua moderada eficácia. As seguintes substâncias fazem parte deste grupo. Aumento de ingestão de líquidos A desidratação é aceite, unanimemente, como factor agravante da obstipação. Há alguns estudos observacionais, com valor científico limitado, que relacionam a desidratação com a lentificação do trânsito cólico(48,49). O reforço hídrico deverá ser realizado de forma controlada e unicamente nos doentes com sinais de desidratação. Patologias como a insuficiência renal ou cardíaca podem limitar a necessidade de hidratação, tendo em conta os riscos específicos deste universo de doentes. Exercício físico Os dados publicados sobre este aspecto são limitados, de pouco rigor científico e inespecíficos para o universo dos idosos. Alguns estudos sugerem que a actividade física pode actuar como um factor preventivo da obstipação, acelerando o trânsito do cólon e aumentando o número de dejecções. Vários estudos que avaliam a influência da actividade física no tempo de trânsito do cólon, na população em geral, apresentam resultados opostos, chegando alguns deles a relacionar a actividade física com o trânsito intestinal lento. Em Novembro de 1998 foi publicado um estudo com 8 indivíduos, 3 deles com mais de 65 anos, que não evidenciava alterações no tempo de trânsito intestinal após implementação de um programa de actividade física de 4 semanas de duração(50). De facto, não há evidência científica que obrigue à implementação da actividade física no tratamento da obstipação crónica. Todavia, baseado nos resultados dos estudos observacionais e nos benefícios que a manutenção da actividade física exerce na população em geral, especialmente nos idosos, sugere-se que seja fortemente recomendada, dentro das 1. Derivados de fibra da casca do trigo (INFIBRAN) farelo de trigo Existem alguns produtos preparados a partir da casca do trigo, moída e sem sabor, com alto teor em fibra, que podem ser adicionados aos alimentos convencionais, aumentando dessa forma a quantidade de fibra diária ingerida. 2. Preparados de Ispagula (psyllium) e Plantago (AGIOCUR) Ispagula tegumento + Ispagula semente (AGIOLAX) Cassia angustifolia fruto + Ispagula mucilagem + Plantago ovata sementes (MUCOFALK) Plantago ovata + Plantago afra 177 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 18 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO Com elevada capacidade de absor-ção de líquidos são fermentados pela flora bacteriana do cólon aumentando a sua massa. Apresentam-se comercialmente em granulado e devem ser ingeridos com abundantes líquidos. Têm demonstrado actividade similar aos preparados à base de metilcelulose(53). São substâncias potencialmente alergénicas, Ig-E mediadas, motivo pelo qual podem dar lugar a eritema facial e dispneia. vo, estes medicamentos não são considerados de primeira linha nos doentes em que uma sobrecarga hídrica pode induzir ou agravar uma patologia de base(54). À excepção deste subgrupo de doentes é consensual considerar estes laxantes como de primeira linha no doente idoso com tempo de trânsito intestinal normal ou com hipomotilidade do cólon(35). Laxantes Osmóticos - salinos e hiperos molares 3. Sterculia 1. Macrogols –polietilenoglicol (PEGs) É uma substância pouco solúvel que em contacto com a água tem a capacidade de aumentar o seu volume, transformando-se numa espécie de gel viscoso. Também, conhecida por Karaya, apresenta-se comercialmente em microgranulados cobertos, devendo ser ingerida depois das refeições e com abundantes líquidos. (FORLAX) Macrogol (MOVICOL) Macrogol + Bicarbonato de potássio + Bicarbonato de sódio + Cloreto de sódio (FORTRANS - KLEAN PREP) Macrogol + Sulfato de sódio e outras associações Constituídos por polímeros inertes e de peso molecular entre 30.000 e 40.000 KDa, não absorvíveis, eliminados de forma inalterada e cujo poder osmótico impede a reabsorção de água nas fezes do cólon, dão lugar ao aumento de volume e amolecimento da massa fecal(55). Esta capacidade de retenção de líquidos pode dar lugar a desidratação e alterações iónicas severas, pelo que, mesmo que administrados em doses inferiores a 30 g, algumas formas comerciais são complementados electroliticamente, evitando desequilíbrios hidroelectrolíticos. Inicialmente foram concebidos para serem utilizados na preparação intestinal de técnicas endoscópicas e tratamentos cirúrgicos. Nos últimos anos grande quantidade de estudos evidenciam, de forma significativa, a sua utilidade no contexto da obstipação crónica e da impactação fecal(56,57) quando comparados com placebo e outros laxantes(55, 58-62). A dose recomendada oscila entre 17-36 g, uma ou duas vezes por dia. 4. Metilcelulose Apresentada em líquido ou comprimidos de 500 mg, é um composto sintético que reduz a degradação bacteriana a nível do cólon, dando lugar, segundo alguns estudos, ao aumento do número de dejecções, sem alteração significativa nas características das fezes(53). A Bassorina + Amieiro negro (NORMACOL PLUS) é outro produto disponível deste grupo. Os efeitos colaterais deste grupo de fármacos variam entre os diferentes preparados. Estão descritas a distensão abdominal, aerocolia e cólicas, com intensidade suficiente para induzirem abandono do tratamento. Como regra geral, a introdução de fibra na dieta duma forma progressiva pode reduzir o aparecimento e intensidade destas manifestações indesejadas. Associado ao incremento de fibra na dieta recomenda-se o aumento da ingestão dos líquidos. Há alguns trabalhos que consideram um factor de risco para a instalação da impactação fecal o aumento de fibras na dieta sem o devido aumento da ingestão de líquidos. Por este moti- 2. Laxantes salinos Fazem parte deste grupo o hidróxido, sulfato e citrato de magnésio e, ainda, o sulfa178 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 19 Eduardo Pereira, Francisco Martin to de sódio. São iões pouco absorvidos a nível intestinal, exercendo a sua actividade, principalmente, por mecanismo osmótico, possivelmente associado a outros mecanismos(63). Aumentam a motilidade e a secreção de água e electrólitos a nível do cólon. São mais eficazes que os laxantes formadores de massa e, possivelmente, dentro dos laxantes osmóticos, os mais antigos e baratos. No entanto, os seus efeitos colaterais limitam o seu uso, pois podem provocar distensão e cólicas abdominais, hipermagnesiemia e interacção na absorção de outros medicamentos como digoxina, tetraciclinas e isoniazida. Estes efeitos secundários podem provocar intoxicações graves quando utilizados em doses altas, de forma crónica e em doentes com insuficiência renal(64,65). As doses recomendadas para o hidróxido de magnésio variam entre 15-30 ml uma ou 2 vezes dia, para o citrato de magnésio entre 150-300 ml e no caso do sulfato de magnésio 5-10 gramas dissolvidos em água morna. absorvíveis, possivelmente com menor custo e efeitos colaterais similares. Exerce o seu efeito pela redução da absorção de fructose livre sendo o seu efeito potenciado quando associado à ingestão de frutas. A dose recomendada é de 15-30 ml uma ou duas vezes/dia. - Lactitol (IMPORTAL) Dissacarídeo derivado da galactose e do sorbitol. O seu efeito no cólon é similar ao da lactulose. Como não aumenta os níveis de açúcar no sangue pode ser administrado em doentes com diabetes mellitus. Relativamente aos laxantes osmóticos, vários estudos não especificamente em idosos, demonstram de forma significativa, a sua capacidade para aumentar o numero de dejecções e consequente sensação de bem estar quando comparados com o placebo(60). Os macrogols, ainda que com pesos moleculares e características diferentes, têm demonstrado alta eficácia no tratamento da obstipação crónica e impacto fecal(56,72). Habitualmente são bem tolerados e o principal efeito secundário é a diarreia. Ficam algumas dúvidas quanto à possível relação entre a toma de macrogols e a diminuição nos níveis séricos de folato, motivo pelo qual devem ser prescritos com precaução nos doentes malnutridos(62). Deve ser feita uma referência ao risco de edema agudo do pulmão como potencial complicação dos PEGs, quando utilizados para limpeza intestinal em doentes com dificuldade de deglutição. Sugere-se que este efeito pode ser produzido pelo elevado poder osmótico exercido a nível pulmonar após aspiração dos mesmos(73-75). Embora os PEGs aparentem ser uma opção terapêutica de elevado custo, um estudo realizado em 115 doentes demonstrou uma melhor relação custo-benefício quando comparado com a lactulose(76). Apesar de não existirem trabalhos com elevado nível de evidência, especificamente para a população deste grupo etário, os laxantes osmóticos são, também, considerados pela maioria dos grupos como uma boa e 3. Açúcares não absorvíveis - Lactulose (COLSANAC-DUPHALACLAEVOLAC) Dissacarídeo sintético, associação de galactose e fructose na forma de 1,4-B-galactasidofructose, não absorvível, é metabolizado pelas bactérias intestinais. Administrado em doses de 15-30 ml uma ou 2 vezes/dia, exerce o seu efeito a partir das 48-72h, aumentando a motilidade do cólon e podendo produzir distensão abdominal, cólicas e hipocaliemia(66-68). Alguns doentes referem uma discreta atenuação do efeito terapêutico associada à sua ingestão crónica, que tem sido atribuída à alteração da flora do cólon(69). A sua utilidade na obstipação do idoso é sugerida em 2 estudos, ambos duplamente cegos, que estabeleceram a sua eficácia quando comparados com placebo(70-71). - Sorbitol (FIBRA LIGHT) Pertence também aos açúcares não 179 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 20 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO eficaz opção de tratamento na abordagem inicial do doente idoso com obstipação funcional crónica. Dentro deste grupo os PEGs podem ser a primeira opção, dada a sua eficácia e o seu muito favorável perfil de segurança. laxantes quando administrado de forma crónica, com a possibilidade de produzir alterações a nível do plexo mientérico e no mecanismo defecatório. Estudos em animais não conseguiram demonstrar este efeito(77-78). Existe um trabalho baseado no estudo histológico de biópsias obtidas em indivíduos medicados e não medicados de forma crónica, até um ano, com este tipo de laxantes, em que não foram identificadas alterações histológicas significativas em qualquer dos grupos. O que está descrito é que este tipo de laxantes facilita a apoptose das células epiteliais a nível da mucosa do colon. Estas células serão posteriormente fagocitadas pelos macrófagos loco-regionais adquirindo a pigmentação característica evidenciada de forma sensível na histologia e, habitualmente, ainda que com menor sensibilidade, na endoscopia convencional (melanosis coli)(70). Esta pigmentação acastanhada, manifesta-se mais intensamente no cólon distal que no proximal e desaparece com o abandono da medicação. Não há estudos que demonstrem o seu potencial lesivo(80). Laxantes de Contacto – Irritação Os seus efeitos parecem resultar de acção inespecífica, "efeito detergente", sobre as membranas celulares dos colonócitos. Os dois subtipos de substâncias têm uma dupla acção, antiabsortivo e secretagogo ou efeito procinético. 1. Derivados conjugados da antroquinona (PURSENIDE) sene (X-PREP) Senosido A + Senosido B (CAROID) cáscara + fenolftalaína (MUCINUM) cáscara + sene São glicosidos inertes e não absorvíveis derivados do Sene, Aloe, Cascara sagrada e Fragula, todos de origem vegetal e muito similares. Inalterados a nível do intestino delgado são hidrolisados pelas bactérias do cólon dando lugar, a este nível, ao seu princípio activo. Os glicosidos são, portanto, pró-moléculas inactivas no I. delgado, transformadas em activas no cólon. Existem, também, antraquinonas sintéticas (Dantron) que foram retiradas do mercado pela FDA pelos seus efeitos oncogénicos evidenciados a partir de estudos realizados em animais. Ao contrário dos produtos naturais, estas não precisam de ser hidrolisadas, motivo pelo que exercem o seu efeito também a nível do I. delgado. Aparentemente, conseguem coordenar e aumentar a intensidade da motilidade cólica, melhorando a sua capacidade propulsiva. Exercem o seu efeito através de mecanismos motores e secretores. Estudos realizados em animais sugerem que a sua actividade é baseada, principalmente, no efeito motor. Devem ser administrados, em toma única, ao deitar. Desde sempre que houve controvérsia sobre o potencial efeito nocivo deste tipo de 2. Derivados do difenilmetano polifenólicos (DULCOLAX - MODERLAX) bisacodilo (BEKUNIS) Bisacodilo + Sene (GUTTALAX) Picossulfato de sódio Incluídos neste grupo, o bisacodilo o picossulfato sódico (bisacodilo conjugado com sulfato) e a fenolftalaína, são transformados no mesmo princípio activo para realizar o seu efeito. Enquanto o bisacodilo é hidrolisado no intestino delgado exercendo o seu efeito já a esse nível, o picossulfato sódico é hidrolisado pelas bactérias do cólon, sendo portanto flora-dependente, e activo, unicamente, a esse nível. Os seus efeitos e mecanismos de acção parecem similares aos das antroquinonas. Quando em contacto com a mucosa cólica, o bisacodilo produz o aumento da motilidade e da sua capacidade propulsiva quer em indivíduos normais quer em indivíduos com obstipação(81). Da mesma forma que as antroquinonas, estes fármacos 180 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 21 Eduardo Pereira, Francisco Martin induzem a apoptose de células epiteliais da mucosa do cólon, sendo os seus detritos fagocitados pelos macrófagos loco-regionais, neste caso sem dar lugar à alteração pigmentar previamente descrita. Aparentemente o seu uso prolongado não tem efeitos colaterais significativos(77). Pela sua fácil administração, posologia e rapidez de acção em cerca de 8 a12h, discretamente superior nos idosos, são considerados uma boa escolha no contexto da obstipação de curta duração. Os preparados comercias do bisacodilo apresentam-se em cápsulas de 5mg, com dose diária recomendada de 5-10 mg ao deitar. O picosulfato sódico, em xarope, administra-se, nos adultos, numa dose de 5-10 ml ao deitar. Como efeitos indesejáveis mais frequentes aparecem cólicas abdominais e diarreia. Neste grupo são ainda incluídos o óleo de rícino e derivados da fenolftaleína (DOCE ALÍVIO) Beladona + Fenolftaleína e outras associações. Para aplicação rectal está disponível o (MICROLAX) Citrato de sódio + Laurilsulfoacetato de sódio; o (CLYSSGO) Docusato de sódio + Sorbitol; (DAGRAGEL-BEBEGEL)Gelatina + Glicerol e (VEROLAX-MICROCEL) Glicerol. rências na literatura sobre os procinéticos no contexto da obstipação crónica. Até à presente data não se identificaram estudos, com suficiente rigor científico, orientados para os idosos. Laxantes emolientes - amolecedores das fezes (PARAFININA) Parafina líquida São óleos de origem vegetal e mineral que lubrificam, hidratam e amolecem o conteúdo fecal diminuindo a sua consistência. O glicerol, dioctilsulfosuccinato e o docusato de sódio são substâncias pertencentes a este grupo em que a evidência científica, no contexto da obstipação crónica no doente idoso, não está estabelecida. É controversa a sua utilização de forma crónica devido a alguns efeitos secundários descritos, nomeadamente inibição da secreção dos sais biliares, alte-rações a nível da mucosa gástrica, náuseas e vómitos. O azeite de parafina, usado no passado, tem sido associado a má absorção de vitaminas hidrossoluveis A, D, E e K, prolongamento do tempo de protrombina, pneumonia por aspiração, reacção de corpo estra-nho, tendo o doente alterações a nível da mucosa do cólon e incontinência anal. O conjunto destas substâncias têm efeitos sobre a mucosa semelhantes aos dos laxantes de contacto. Procinéticos Este grupo de fármacos aumenta a motilidade e coordenação dos movimentos do sistema gastrointestinal através da estimulação dos receptores serotoninérgicos 5-HT4 da via intrínseca, melhorando a capacidade de contracção muscular da parede intestinal. A doença de refluxo gastro-esofágico, dispepsia e gastroparésia, fazem parte das indicações destes medicamentos. Nos últimos anos aponta-se, também, para a sua utilização no tratamento da obstipação crónica, especialmente após a introdução de novas moléculas como o tegaserod (6mg 12/12h) e prucalopride(82). Outros fármacos deste grupo como o cisapride (10-20 mg 4 vezes/dia) foram retirados do mercado pela sua associação a incidentes cardiovasculares, tal como arritmias com prolongamento do QT, quando associados a outros medicamentos. Estão a aumentar as refe- Enemas e supositórios Facilitam o trânsito por estimulação mecânica através da distensão do recto e cólon. Podem ser utilizados como profilaxia de impacto fecal em idosos acamados com abrandamento marcado do trânsito intestinal e obstipação crónica refractária a outros métodos. Existem preparados para enemas, com capacidade osmótica, muito eficazes. Os enemas à base de fosfatos podem dar lugar a hiperfosfatemia e hipocalcemia em caso de retenção, motivo pelo que sua administração em doentes com insuficiência renal deve ser bem ponderada. Os supositórios de glicerol produzem o seu 181 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 22 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO efeito desencadeando o reflexo defecatório pela sua capacidade osmótica, induzindo a secreção rectal. O seu uso crónico pode desencadear irritação ano-rectal. intestinais(92,93). Alguns autores defendem que o seu uso de forma crónica pode diminuir o risco de cancro(94). Tratamentos não farmacológicos Outros Tratamentos farmacológicos Fazendo uma revisão da bibliografia é possível encontrar uma série interessante de estudos realizados com outros fármacos, habitualmente não aplicados na terapêutica dirigida à obstipação. Massoterapia A massoterapia é outra das técnicas não habituais para o tratamento da obstipação crónica que, tradicionalmente, tem sido considerada com alguma eficácia no contexto da obstipação crónica. Um trabalho com validade científica está divulgado num artigo de revisão publicado em Junho de 1999 na revista Forsch Komplementarmed, cuja conclusão não acrescenta valor terapêutico(95). Recentemente, uma outra série de artigos foi publicada, voltando novamente a insistir na utilidade das massagens isoladamente ou associadas à aromoterapia(96-97). Não existe, na actualidade, evidência científica suficiente para sugerir a sua introdução formal no esquema de tratamento da população idosa com obstipação funcional. Em geral, os trabalhos realizados com estas substâncias não têm como objectivo o estudo da população de idosos e, as conclusões obtidas, não são aplicáveis a este grupo numa perspectiva científica. A colchicina na dose de 0.6mg de 8-8h(83-84), a neurotrofina-3 NT3(85-87) e o misoprostol na dose de 600-2400 microgramas/dia(88-89), são algumas destas substâncias em que o tempo e estudos posteriores dirão qual o lugar que merecem no protocolo terapêutico da obstipação funcional crónica no adulto ou no idoso. Acupunctura A acupunctura ou electro-acupunctura é outra das técnicas consideradas pela medicina convencional como alternativa para o tratamento da obstipação. Os resultados dos trabalhos publicados sobre a sua utilidade não são conclusivos(98-99). Outros trabalhos de menor rigor científico fazem referência a diferentes agentes que, de forma menos habitual, têm sido usados no contexto da obstipação crónica. A Vit. B5 ou ácido pantoténico, que aparece naturalmente nos amendoins e nas sementes do sésamo, em doses de 2-3gramas, em jejum, parece aumentar a motilidade intestinal. O rábano negro (black radish) com alto teor em fibra e água facilita o trânsito intestinal aumentando o peristaltismo(90-91). Vários produtos do âmbito da medicina natural como a alfafa, a semente de linho, o gengibre, o licorice (substância produzida através do licopódio), o dandelion e ruibarbo têm sido, tradicionalmente, utilizados para diminuir os sintomas produzidos pela obstipação. A semente de linho, por exemplo, com a sua combinação de fibras e de ácidos omega-3, amolece as fezes facilitando os movimentos Biofeedback A obstipação por obstrução de saída ca-racteriza-se pela dificuldade ou incapacidade para expulsar as fezes situadas na região recto-sigmoideia. A disfunção da musculatura pélvica e do canal anal tem sido identificada como causa importante e frequente de obstipação. Neste tipo de doentes o biofeedback é considerado, na actualidade, como uma hipótese terapêutica de primeira linha. Esta nova tendência de tratamento consiste em reeducar a coordenação da musculatura recto-anal, o relaxamento do esfíncter anal e aumentar a percepção sensitiva da área recto-sigmoideia, baseando-se em material de apoio visual, verbal e auditivo. 182 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 23 Eduardo Pereira, Francisco Martin O biofeedback é realizado em ambulatório e necessita da total colaboração do doente, orientado por uma equipa multidisciplinar e dividido em várias etapas. A primeira inclui a avaliação do doente e a realização de exames diagnósticos de imagem ou dinâmicos. Habitualmente, esta fase precisa de uma ou duas visitas ao hospital e inclui uma primeira sessão de educação de 90 minutos na qual se explicam quais os objectivos e os métodos da técnica, a fisiologia e anatomia do recto e da defecação. Ainda, nesta primeira abordagem, realizam-se pequenos ensaios mediante a introdução de uma sonda de manometria rectal para permitir ao doente a realização de exercícios de coordenação recto-anal enquanto a sessão está a decorrer. Solicita-se ao doente o registo alimentar durante uma semana para se realizar, posteriormente, com o apoio do nutricionista, as alterações nos hábitos dietéticos que facilitem o aumento do trânsito intestinal. Ensinam-se uma série de exercícios físicos e respiratórios para fortalecer e tonificar a musculatura da parede abdominal que ajudarão a melhorar a eficácia dos mecanismos da defecação. Fundamentalmente, esta fase inicial tem como objectivo o primeiro contacto do doente com a técnica, com o material habitualmente utilizado, assim como o ensino inicial da fisiologia da defecação. Na segunda fase o paciente recorre ao laboratório uma vez por semana, durante 4-6 semanas, variando em função de cada doente e da severidade da patologia de base, até conseguir os objectivos propostos. Cada sessão demora entre uma e duas horas. Uma sonda rígida dotada de vários microtransductores e de um balão de látex com capacidade para registar a actividade e as pressões exercidas pela musculatura do pavimento pélvico, é introduzida no recto. Desta forma, as pressões detectadas serão registadas num monitor para que o doente seja capaz de interpretar e corrigir os seus próprios movimentos mediante feedback, com apoio e estímulo verbal do técnico. A terceira fase consiste em sessões de reforço, habitualmente agendadas ás 6 semanas, 3 meses e 1 ano após o fim do tratamento. Consegue-se com isso uma maior aderência dos doentes ao tratamento e, segundo sugerem alguns trabalhos, melhores resultados a longo prazo. Considera-se que o treino pode ser suspenso, com sucesso, quando o doente consegue, em duas sessões consecutivas e sem apoio do material de feedback, mais de metade dos padrões de defecação normais. Até 70-80% dos doentes com obstipação obstrutiva alcançam uma melhoria subjectiva, sintomática e objectiva da função ano-rectal, após o tratamento de biofeedback(100). Botox Umas das causas de obstipação crónica no idoso, especialmente no idoso de sexo feminino ou em doentes obstipados com doença de Parkinson, são as associadas a alterações do momento da eliminação das fezes(101). Resultados de estudos preliminares sugerem que a injecção de botox tipo A, a nível do músculo puborectalis, pode ser útil no tratamento da obstipação, produzida por alterações espásticas da musculatura envolvida nos mecanismos da defecação(102). De qualquer modo e, dado que o biofeeback é um método com maior experiência e evidência cientifica até à data, continua a ser de primeira escolha relativamente ao Botox, na abordagem deste tipo de situações. Tratamento Cirúrgico A colectomia total com ileostomia deve ser considerada uma hipótese de tratamento, unicamente nos doentes com obstipação associada à inércia do cólon e refractária a tratamento médico ou biofeedback(35). Numa revisão de 32 estudos, publicada há 6 anos, evidencia-se que entre 39-100% dos doentes melhoraram dos seus sintomas após colectomia(103). As complicações mais habituais foram síndromes obstrutivas do I. delgado, diarreia e incontinência, os dois últimos com melhoria durante o primeiro ano pós-cirur183 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 24 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO dade de 20 a 30 gramas /dia, num período entre 1 a 2 semanas, chegando nalguns estudos até às 4 semanas. Esta forma gradual de administração diminui a ocorrência de efeitos secundários como flatulência ou dor abdominal e diminui o abandono do tratamento. O reforço hídrico nos doentes com determinadas patologias pode alterar o equilíbrio hidroelectrolitico. Se o risco de descompensação é grande deve--se optar por outras hipóteses de tratamento. Há alguns autores que defendem que o aumento da quantidade de fibra na dieta não associado a uma correcta hidratação, pode aumentar a obstipação e o risco de impacto fecal. Recomenda-se, também, a realização de exercício físico regular com nível de intensidade adequado ás capacidades do nosso doente. Se o doente se mantém obstipado apesar destas medidas inicia-se um tratamento farmacológico com agentes formadores de massa, caso haja capacidade para ingerir líquidos suficientes. Há estudos que evidenciam a sua eficácia neste contexto, especialmente melhorando a consistência das fezes e diminuindo a necessidade de outros laxantes.(66, 70-71, 106-112) Se a resposta, ainda assim, for insuficiente, adiciona-se um laxante osmótico como o hidróxido de magnésio, lactulose ou o Macrogol. Não há evidência científica suficiente para recomendar uma determinada substância deste grupo. A lactulose está contra-indicada nos doentes com restrição de galactose e o sorbitol não deve ser prescrito nos doentes em anúria. O uso de ambos, especialmente quando realizado de forma crónica, deve ser vigiado, especialmente nos doentes diabéticos, pelo risco de desequilíbrios metabólicos. gia(104). Os resultados não parecem tão favoráveis nos doentes com patologia psicofuncional ou com alterações na motilidade gastrointestinal, gastroparesias ou pseudoobstruções(105). Em relação a este tipo de tratamento a bibliografia não é baseada no grupo dos doentes idosos, com natural e considerável risco cirúrgico, tendo uma esperança de vida menor que a da população adulta. Estes motivos levam a que as opções por esta terapêutica devem ser especialmente ponderadas pela equipa médico-cirúrgica e sempre respeitando o principio cirúrgico que dita “primum non nocere”. ALGORITMO DIAGNÓSTICO E TERAPÊUTICO (Quadro IV) O algoritmo terapêutico parte da confirmação duma patologia funcional e crónica. Deve-se orientar a avaliação para identificar factores de risco e a patologia orgânica susceptível de tratamento etiológico. Igualmente, é importante confirmar que se trata de um doente realmente obstipado baseado em critérios diagnósticos estabelecidos e a necessitar de tratamento crónico. A optimização do tratamento e a estabilização das patologias potencialmente obstipantes de que o doente é portador fazem parte da abordagem inicial, não farmacológica, do tratamento do doente idoso com obstipação crónica. Trata-se de um grupo de doentes muitas vezes polimedicado, motivo pelo qual é importante uma revisão terapêutica e a subs- tituição, quanto possível, de medicamentos sem efeitos colaterais obstipantes. Confirmada a necessidade de tratamento, optimizado o controle da patologia e tratamentos de base, e excluídos os factores de risco, ficam criadas as condições para a instauração das medidas higiéno-dietéticas fundamentais. Aumento do conteúdo de fibra alimentar, que pode ser à base de fibras naturais ou de farmacofibras. Esta medida deve ser realizada de forma gradual até à quanti- O passo seguinte será acrescentar um laxante do grupo dos estimulantes como o bisacodilo ou uma antraquinona. O seu uso de forma crónica não foi estudada nos idosos. Parece existir consenso quanto à sua utilização intermitente, ou como coadjuvante, como parecem indicar alguns estudos. A 184 Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 25 Eduardo Pereira, Francisco Martin associação entre agentes formadores de massa e laxantes estimulantes, quando comparados com agentes osmóticos isolados, mostrou melhores resultados no aumento do número de dejecções e melhoria na sua consistência(111). restantes tratamentos parece uma hipótese terapêutica com possibilidade de sucesso. Ainda faltam estudos para saber qual o papel dos procineticos e das outras drogas menos habitualmente usadas. O tegaserod, por exemplo, tem demonstrado ser um fármaco seguro, ainda que a sua utilidade nesta população fique, ainda, por estabelecer. A Colchicina, útil em episódios agudos de obstipação refractaria, pode produzir neuropatia quanto utilizada de forma crónica, motivo pelo qual o seu uso, neste contexto, fica muito limitado. Nem a Colchicina nem o misoprostol têm sido estudados na população idosa, pelo que a recomendação para o seu uso é controversa. Se a resposta é ainda inadequada, sugere-se a combinação dos tratamentos anteriores com enemas, de forma cíclica, apesar da falta de trabalhos com significado estatístico que apoiem esta atitude terapêutica. De qualquer modo, os enemas são considerados seguros e exercem o seu efeito por estimulação mecânica do recto, distensão do cólon e a presença de substâncias que amolecem e lubrificam as fezes, motivo pelo que a sua associação com os QUADRO IV - OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL CRÓNICA NO DOENTE IDOSO Medidas não farmacológicas: 1. Revisão e alteração de medicação crônica potencialmente obstipante. 2. Aumento da ingestão de líquidos (com reservas nos doentes com ICC, DHC...) 3. Aumento da actividade física (em função da patologia basal) 4. Aumento da ingestão de frutas, verduras, vegetais e ou suplementos comerciais de fibras (ensaio terapêutico). - sem resposta ao ensaio terapêutico - deterioro cognitivo - padrão de transito normal ou enlentecido - sem resposta ao ensaio terapêutico - capacidades cognitivas mantidas Boa resposta Estudos Funcionais: 1. Tempo de transito das fezes no cólon Padrão de trânsito normal ou elentecido 2. Manometria ano-rectal 3. Teste de expulsão do balão 4. Defecografia Padrão obstrutivo ou discinérgico Sem Biofeedback Enemas Supositórios Ensino de posicionamento Botox Fármacos não habituais s o resp ot rup te g es ta a tico êu erap Medidas Farmacológicas: Bulk-forming Amolecedores de fezes Laxantes osmóticos Laxantes estimulantes Associação com enemas Outras hipóteses terapêuticas Tratamentos não habituais 185 Avaliar tratamento cirúrgico se critérios e condições Cap10obstipa aoIdoso.qxp 22-11-2005 11:07 Page 26 OBSTIPAÇÃO FUNCIONAL NO IDOSO BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. Brian EL, Matthew SC. Constipation in the Older Adult. Clinical Geriatrics 2004; 12/11: 44-54. Read NW, Abouzekry L, Read MG, e tal. Anorectal function in eldery patients with fecal impaction. Gastroenterology 1985; 89:959-966. Melkersson M, Andersson H, Bosaeus I, Falkhenden I. Intestinal transit time in constipated and non-constipated geriatric patients. Scand J Gastroenterol 1983; 18:593-597. 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A oclusão aguda ou hipoperfusão de um vaso mesentérico de grande calibre provoca isquémia transmural e gangrena. A oclusão de vasos intramurais origina isquémia intramural não gangrenosa. A mucosa é a camada da parede cólica com maior actividade metabólica, pelo que é a primeira a apresentar sinais de isquémia.(6) A resposta intestinal inicial à isquémia leva a um estado de hipermotilidade(7) que é responsável pela dor. À medida que a isquémia progride, cessa a actividade motora e aumenta a permeabilidade da mucosa, facilitando a translocação bacteriana.(8) O vasoespasmo(9) é responsável pelo agravamento da isquémia, quer nas formas oclusivas quer nas não oclusivas. O mecanismo responsável pelo vasoespasmo não está bem estabelecido mas a endotelina, um potente vasoconstritor, pode estar envolvido.(10) O vasoespasmo prolongado pode persistir durante horas depois do restabelecimento da perfusão sanguínea. A reperfusão pode ser 1. Colite isquémica 2. Doença Inflamatória do Intestino 3. Diverticulite 4. Colite rádica 5. Colites microscópicas 6. Colite de derivação 7. Colites de origem medicamentosa e química e cólon dos catárticos 1. COLITE ISQUÉMICA Em 1963 Boley e al(1,2) descreveram pela primeira vez a oclusão vascular reversível do cólon causada por isquémia. Marston e al(3) em 1966 designaram-na como colite isquémica. A doença ocorre predominantemente no idoso com patologias associadas. Aproximadamente 90% dos doentes têm mais de 60 anos. É a forma mais frequente de isquémia gastro intestinal (50 a 60%).(4,5) A verdadeira incidência da doença permanece desconhecida. A maioria dos doentes tem doença auto-limitada, que responde à terapêutica conservadora. 191 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 2 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO responsável pelo agravamento da isquémia. O mecanismo responsável parece estar relacionado com radicais livres de oxigénio libertados pela adesão dos leucócitos polimorfonucleares. Na colite isquémica do ângulo esplénico, foram implicadas deficiências na vascularização do cólon. Na região do ângulo esplénico, a arcada de Riolan e a artéria marginal de Drummond juntam-se à artéria mesentérica superior e inferior vasos que conectam com a artéria cólica média e a artéria cólica esquerda. A circulação colateral protege da isquémia, contudo não existe em 30% da população, ou apresenta baixo débito condicionando isquémia no ângulo esplénico. A irregularidade das artérias cólicas, que se tornam tortuosas(11) no idoso, pode ser responsável pelo aumento da resistência vascular predispondo à isquémia. frequentemente causada por um êmbolo ou um trombo. Raramente pode ser causada por traumatismo, ou nas reconstruções cirúrgicas da aorta, ocorre em 2% a 7%(12) consequência da laqueação da artéria mesentérica inferior na ausência de boa circulação colateral. A doença isquémica não oclusiva é hoje aceite e reconhecida mas a sua etiopatogenia não está completamente esclarecida. A causa da doença é uma diminuição do fluxo por vasoconstrição inexplicada. Em alguns doentes a doença aparece espontaneamente sem factores desencadeantes. Noutros, o factor desencadeante é a hipotensão ou choque como na falência cardíaca, hemorragia, sepsis ou desidratação. Medicamentos vasoconstritores podem ser implicados - digitálicos, diuréticos, estrogenios e anti-inflamatórios não esteróides (AINE's). Doentes diabéticos e hemodializados têm risco aumentado de isquémia não oclusiva. Raramente a distensão cólica associada ao cancro ou à obstipação severa pode provocar colite isquémica proximal à obstrução. CLASSIFICAÇÃO Frequentemente a colite isquémica é classificada em doença oclusiva ou doença não oclusiva. Na doença oclusiva existe um mecanismo obstrutivo do suprimento arterial do cólon ou raramente do venoso. A obstrução arterial é LOCALIZAÇÃO DAS LESÕES As lesões são mais frequentes no ângulo QUADRO I - CAUSAS DE COLITE ISQUÉMICA DOENÇA OCULSIVA DOENÇA NÃO OCULSIVA ARTERIAL Trombose Embolia Post cirurgia reconstrutiva da aorta Traumatismo Doença de pequenos vasos Diabetes Amiloidose Lesão de radiações Vasculites Lúpus eritematoso sistémico Poliarterite nodosa Esclerodermia Sindroma de Behcet Doença de Buerger Tromboangeite obliterante VENOSAS Estado de hipercoagulabilidade Pancreatite Hipertensão portal IDIOPÁTICA Choque / Cardiogénico / Hemorrágico Hipovolémico / Séptico / Anafilático MEDICAMENTOS Digitálicos / Danazol Diuréticos / Sais de ouro Catecolaminas / Estrogenios AINE's OBSTRUÇÃO CÓLICA Cancro cólico / Fecaloma Volvo / Hérnia estrangulada DOENÇAS HEMATOLÓGICAS Deficiência de proteína C Deficiência de proteína S Deficiência de antitrombina III INFECÇÕES Cytomegalovirus / Hepatite B OUTRAS Cocaína / Viagens de longa distância Colonoscopia e clister opaco 192 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 3 Rosário Vidal esplénico, cólon descendente e sigmoideia, embora qualquer segmento do cólon possa estar afectado. O recto, geralmente bem irrigado, raramente está envolvido. A isquémia não oclusiva envolve, geralmente, o ângulo esplénico e a junção rectosigmoideia. A embolia, causa rara, provoca em geral lesão de segmentos curtos e as lesões não oclusivas geralmente envolvem porções mais extensas de cólon. Laboratorial Os testes laboratoriais são inespecíficos, com leucocitose moderada. Dos marcadores serológicos testados a Dlactato sérica(15) demonstrou ser um marcador precoce da isquémia intestinal com sensibilidade e especificidade elevados. É produzida só por bactérias, especialmente no cólon como produto de fermentação bacteriana. Endoscópico A colonoscopia é o exame de eleição, pois é o mais sensível e específico na avaliação das lesões.(16) Deve ser realizado com cuidado, não insuflando muito o cólon.(16) Permite realizar biópsias que, embora não específicas, sugerem o diagnóstico. Na maioria dos doentes a mucosa está poupada até aos 12-15 cm. Numa fase inicial a mucosa está pálida, edemaciada com áreas de hiperémia.(17) Se a isquémia progride surge edema da sub-mucosa e hemorragia.(18) As lesões aparecem mais frequentemente nos primeiros dois a três dias e resolvem rapidamente. A colonoscopia deve ser efectuada precocemente nos primeiros dois a três dias.(4,18) DIAGNÓSTICO Clínico O diagnóstico é estabelecido pelo auto grau de suspeita clínica. Frequentemente surge no doente idoso com factores de risco associados, tais como a doença vascular aterosclerótica, cardiopatia isquémica, insuficiência cardíaca congestiva, episódio recente de hipotensão ou ingestão de medicamentos vasoconstritores. Uma história clínica cuidadosa permite identificar os potenciais factores de risco. A maioria dos doentes apresenta dor abdominal tipo cólica, localizada nos quadrantes inferiores, classicamente na fossa ilíaca esquerda.(13) Se a doença se localiza no cólon direito a dor localiza-se centralmente. A dor resulta em parte do aumento da tensão secundária à hipermobilidade intestinal e à contracção espasmódica. Diarreia, distensão abdominal, náuseas e vómitos(14) são frequentes. Podem surgir hematoquézias, geralmente moderadas, autolimitadas e que não exigem transfusões. Se a isquémia se torna transmural pode evoluir para peritonite. A doença pode manifestar-se de forma sub-clínica, por sintomas oclusivos, alguns meses mais tarde que resultam da estenose isquémica. No exame objectivo o doente pode apresentar febre não muito elevada e taquicárdia. A palpação desperta dor mais frequentemente na fossa ilíaca esquerda. O toque rectal revela sangue. Radiológico O clister opaco com duplo contraste pode demonstrar uma lesão inflamatória com distribuição segmentar. Como a distensão do cólon com ar pode comprometer o fluxo sanguíneo intramural e diminuir o fluxo sanguíneo, e não permite o diagnóstico diferencial com outras colites, raramente é utilizado. A tomografia axial computorizada permite avaliar o espessamento segmentar da parede do cólon, que pode ser graduado.(19,20) A ultrassonografia - doppler a cores aumentou a especificidade do diagnóstico. A angiografia mesentérica geralmente não é utilizada. A ressonância magnética (M.R.I.)(21) e a cintigrafia com leucócitos marcados(22) têm sido utilizadas com algum sucesso, mas a sua indicação para o diagnóstico permanece incerta. 193 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 4 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO topos intestinais ou em alternativa a criação de bolsas de Hartman. As anastomoses primárias não devem ser utilizadas, excepto se a isquémia se localiza no cólon direito. Diagnóstico Diferencial O diagnóstico diferencial da colite isquémica inclui a colite infecciosa, a doença inflamatória intestinal, a colite pseudo membranosa, a diverticulite e o cancro do cólon. A colite isquémica aguda severa pode ser difícil de distinguir da isquémia mesentérica aguda. Prognóstico A maioria dos doentes apresenta episódio único de doença. Só 5% têm episódios recorrentes. Aproximadamente metade a dois terços dos doentes com colite isquémica resolve com terapêutica conservadora.(26,27) Os doentes melhoram nos primeiros dias e os sintomas desaparecem em uma ou duas semanas. A mortalidade é baixa. Em 10% dos doentes surgem sintomas oclusivos alguns meses mais tarde que resultam da estenose isquémica. O diagnóstico é confirmado pela colonoscopia e tem indicação cirúrgica.(3,27) Os doentes com formas mais graves de colites isquémicas gangrenosas podem necessitar de cirurgia de urgência. Nestes doentes a mortalidade permanece elevada (50%) pois tem frequentemente patologias associa-das.(28) Em 20% dos doentes com colite isquémica pode surgir colite crónica causada pela isquémia irreversível.(29) Devemos pensar neste diagnóstico num doente com diarreia persistente, perda de sangue rectal e perda de peso. Terapêutica A maioria dos doentes apenas necessita de vigilância dos sinais vitais e terapêutica de suporte.(23) O tratamento inicial consiste na estabilização hemodinâmica, administrando solutos endovenosos se existe desidratação ou hipovolemia, manutenção de bom estado cardiovascular, suspensão de medicamentos susceptíveis de induzir isquémia mesentérica. Devem ser administrados antibióticos de largo espectro que cubram bactérias cólicas aeróbicas e anaeróbicas. O seu benefício é controverso, mas a permeabilidade da mucosa aumentada favorece a translocação bacteriana.(24,25) As indicações cirúrgicas são: a peritonite franca, a sépsis, a hemorragia por úlceras profundas e mais tarde a obstrução. A técnica cirúrgica consiste na remoção do segmento cólico isquémico e exteriorização dos BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. American Gastroenterological Association Medical Position Statement: Guidelines on intesti nal ischemia. Gastroenterology 2000;118:951. 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Aproximadamente 15% dos doentes com doença inflamatória do intestino apresentam os primeiros sintomas na sexta e sétima décadas da vida. Como o número dos idosos continua a aumentar, o seu diagnóstico e terapêutica são de grande importância. Estudos epidemiológicos Europeus(1,2,3,4) e Americanos (Olmsted Country, Minnesota(5,6) continuam a observar um segundo pico de incidência da doença no idoso. A doença inflamatória do idoso é, frequentemente, menos extensa, moderada e o prognóstico melhor.(7,8,9,10) Estes doentes são tratados com os mesmos medicamentos que os jovens contudo o risco de toxicidade é grande sobretudo com os corticoides. As doenças associadas têm um impacto significativo na terapêutica médica e cirurgia destes doentes. CLÍNICA Colite Ulcerosa O quadro clínico depende da extensão das lesões e da actividade inflamatória e é semelhante à forma de apresentação nos jovens. O sintoma dominante é a diarreia com sangue, de pequeno volume. Geralmente existe dor abdominal tipo cólica. Pode surgir febre, mal estar e emagrecimento. No idoso a diarreia e o emagrecimento são mais frequentes do que a dor abdominal.(13) Os doentes com proctite podem ter obstipação que ocorre em 1/3 dos casos, tenesmo e falsas vontades. A doença pode apresentar-se por manifestações sistémicas, sendo as mais frequentes a artrite e as anomalias das provas hepáticas, enquanto as lesões cutâneas e as ulcerações orais ocorrem menos frequentemente.(14) Os doentes idosos apresentam mais frequentemente colites esquerdas, proctosigmoidites ou proctites do que os jovens.(15,16,10) Apesar de doença menos extensa o episódio inicial é geralmente mais grave no idoso. O megacolon toxico é mais frequente e com maior mortalidade.(17) O prognóstico da doença no idoso tende a ser favorável(18). Depois do episódio inicial, as recidivas são menos frequentes que no grupo jovem. Na maioria dos doentes o início dos sintomas é incidioso com dor abdominal vaga, desconforto e alteração gradual na frequência e características das fezes. Noutros, o início é ETIOPATOGÉNICA A etiologia da doença permanece desconhecida. Vários factores interagem, promovendo o desenvolvimento de uma doença inflamatória crónica do intestino, incluindo predisposição genética, factores ambienciais, e alterações imunológicas. A investigação tem focado a desregulação da resposta das células T helper, com consequente aumento da produção de citoquinas e inflamação. O idoso está particularmente susceptível a infecções gastrointestinais sugerindo um possível compromisso do sistema imunológico da mucosa com o envelhecimento. O efeito negativo do envelhecimento(11,12) na imunocompetência, há muito que é reco196 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 7 Rosário Vidal fulminante, com dor abdominal e diarreia com sangue, que progride em dias ou semanas. A classificação de Truelove e Witts(19), baseada na clínica, exame objectivo e parâmetros laboratoriais, permite avaliar a gravidade da doença, fundamental para uma orientação terapêutica correcta. Assim, na doença ligeira, a diarreia é de menos de quatro dejecções por dia com sangue em pequena quantidade, sem febre ou taquicardia, podendo existir anemia discreta e VS inferior a 30 unidades SI. Estamos perante uma doença moderada se a diarreia é de cinco ou seis dejecções por dia com sangue, se os doentes referem dor abdominal, cansaço e febre não elevada. Na doença grave a diarreia é de seis ou mais dejecções por dia com abundante quantidade de sangue, febre elevada, taquicardia, anemia grave, Hg £7,5 g/dl, VS superior a 30 na 1ª hora, perda de peso e hipoalbuminémia. irite, eritema nodoso, pioderma gangrenoso e alterações das provas hepáticas são mais frequentes que na colite ulcerosa. Nos doentes com envolvimento do ileon terminal ou ressecção ileal pode surgir nefrolitiase de ácido úrico ou oxalato de cálcio. A taxa de complicações é semelhante nos jovens e idosos embora com menor incidência de oclusão intestinal no grupo dos idosos.(20,27) DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Como os sintomas da D.I.I. não são específicos e têm início incidioso é necessário um alto grau de suspeita clínica para obter um diagnóstico correcto. Um atraso no diagnóstico, pode resultar num tratamento inadequado, com risco elevado de complicações(27) e alta mortalidade.(28) A doença inflamatória do intestino no idoso, pode confundir-se com colite isquémica, colite infecciosa, diverticulite, colite colagénica, colite linfocítica, linfoma intestinal, carcinoma ileo-cecal, colite radiogena, tuberculose intestinal ou a colite dos AINE's. DOENÇA DE CROHN A doença de Cröhn é sub-diagnosticada ou incorrectamente diagnosticada no idoso, embora a sintomatologia seja semelhante à dos jovens. Os sintomas típicos são a diarreia, a dor abdominal, a perda de peso e menos frequentemente febre, hematoquézias e a obstipação. A dor abdominal e as cólicas são menos frequentes no idoso do que nos jovens(20,21). A percepção sensorial está alterada quer pela medicação, quer pela coexistência de doenças sistémicas. A distribuição da doença no idoso tem maior incidência no cólon(22), especialmente no cólon distal(10). Os jovens apresentam doença ileo-cólica com maior frequência(21, 23,24). Nos doentes com doença cólica distal, 80% vão desenvolver doença peri-anal, incluindo fístulas. Na doença ileal pode surgir obstrução ou perfuração.(25,26) As manifestações extra-intestinais, incluindo a artrite periférica, a espondilite, TERAPÊUTICA Os princípios básicos da terapêutica médica e cirúrgica da D.I.I. são os mesmos no idoso e nos jovens. No idoso existem, frequentemente, doenças associadas que devem ser tomadas em consideração quando se utilizam terapêuticas específicas. Frequentemente o idoso está polimedicado e a possibilidade de interacções medicamentosas deve ser equacionada. Alguns indivíduos idosos podem tolerar pior as acções acessórias da medicação pelo que é recomendado uma monotorização apertada da toxicidade. TERAPÊUTICA MÉDICA Na colite ulcerosa e na doença de Crohn do cólon ligeira e moderada, a sulfasalazina e 197 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 8 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO os aminosalicilatos (5 ASA) são a terapêutica de primeira linha. As principais acções acessórias da sulfasalazina são náuseas, anorexia, cefaleias, febre, mialgias e alterações das provas hepáticas. A mesalazina é eficaz e bem tolerada embora possam surgir potenciais complicações: pleuropericardites, insuficiência renal e toxicidade pulmonar.(29) A mesalazina é utilizada para manter a remissão da doença tanto na colite ulcerosa como na doença de Crohn.(30,31) Na doença distal, os clisteres de mesalazina e o supositórios são a terapêutica de eleição. Na doença de Cröhn com actividade ligeira a moderada os antibióticos são uma alternativa terapêutica de primeira linha. O metronidazole é eficaz na doença do ileon terminal(32), do cólon(33) e na doença perianal(34), com eficácia semelhante aos corticoides. A neuropatia periférica é a principal acção acessória. A ciprofloxacina é melhor tolerada do que o metronidazole e a eficácia é semelhante ao 5-ASA. O metronidazole associado à ciprofloxacina tem eficácia semelhante aos corticoides particularmente no cólon. Induz remissão em 70% dos doentes. Quando os amino-salicilatos não são eficazes utilizam-se os corticoides. São eficazes para a terapêutica da doença activa, mas ineficazes na terapêutica de manutenção. As complicações da terapêutica com corticoides a longo prazo são: diabetes, hipertensão, osteoporose, miopatias, cataratas, glaucoma, psicoses, sindromas depressivos, alterações electrolíticas, infecções. Thomas e al(21) avaliaram retrospectivamente as complicações da terapêutica a longo prazo dos corticoides em 100 doentes com mais de 69 anos. Os efeitos secundários mais frequentes foram fracturas por compressão em 16% dos casos e hipertensão em 12%. Os doentes cortico-resistentes, os doentes cortico-dependentes, ou os que tem acções acessórias intoleráveis com os corticoides têm indicação para iniciar imunossupressão, com azatioprina / 6-mercaptopurina ou metotrexato (na doença de Crohn)(35, 36) ou azatioprina / 6-mercaptopurina e ciclosporina (na col- ite ulcerosa)(37,38). Os principais efeitos acessórios da azatioprina / 6-mercaptopurina são a pancreatite, que ocorre em 3%, tipicamente no primeiro mês de terapêutica(39) e a leucopenia, em 2%. É necessário uma monotorização frequente dos leucócitos principalmente na indução ou quando se procede à aumento da dose. Assim no primeiro mês, os leucócitos devem ser avaliados semanalmente, depois de duas em duas semanas no segundo mês e mensalmente a partir daí. O alopurinol inibe o metabolismo da 6mercaptopurina / azatioprina podendo originar altas concentrações e leucopenia grave. Na doença grave devem ser instituídas medidas de ordem geral: dieta 0, solutos endovenosos, correcção da anemia, equilíbrio hidro electrolítico, antibióticos de largo espectro, se existe infecção sistémica ou sinais de irritação peritoneal. Os corticoides devem ser administrados por via endovenosa: prednisolona, hidrocortisona ou metilprednisolona. Se não se observar melhoria clínica entre 7 a 10 dias deve ser equacionada a ciclosporina endovenosa, na colite ulcerosa, ou a cirurgia. Se não há melhoria com a ciclosporina ao fim de 7 a 10 dias o doente tem indicação cirúrgica. As limitações da ciclosporina são a toxicidade renal, pelo que devem ser monitorizados os níveis séricos - 200 a 400 mg/dia, a função renal, e o risco de infecções oportunistas, sendo uma das mais frequentes a pneumonia, a Pneumocystys carinii. As acções acessórias são convulsões, parestesias e cefaleias. Na doença de Cröhn poderão ter indicação a azatioprina, o metotrexato e o infliximab. O metotrexato induz remissão num terço dos doentes e permite reduzir os corticoides. Tem como principais acções acessórias: náuseas, alteração das provas hepáticas, fibrose hepática, leucopenia, pneumonite. O infliximab, anticorpo monoclonal antiTNF-alfa de perfil quimérico, está indicado na doença de Cröhn, resistente à terapêutica médica convencional e na doença fistulizante. Induz resposta em 81% dos doentes às quatro semanas. Os efeitos adversos são: cefaleias, náuseas, infecções respiratórias, tuberculose, 198 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 9 Rosário Vidal reacções anafiláticas graves durante ou logo após a administração e acções de hipersensibilidade retardada após a 12ª semana. A proctocolectomia total com a criação da bolsa ileal é considerada a terapêutica standart(45,46). A complicação mais frequente é a "pochite"; o seu aparecimento não tem relação com a idade em que foi efectuada(46,47,48). A probabilidade do seu aparecimento aumenta com o tempo decorrido após a cirurgia.(49) A obstrução e a estenose são outras possíveis complicações a longo prazo(49). Na doença de Cröhn a cirurgia não é curativa. As indicações para a cirurgia são: a não resposta e as complicações da terapêutica médica, a doença fibro-estenótica com episódios recorrentes de obstrução e as complicações da doença (abcessos, fístulas, megacolon, hemorragia e perfuração). OSTEOPOROSE Os doentes com D.I.I. têm risco aumentado de desenvolverem osteopenia, osteoporo-se(40) e consequentes fracturas.(41) A doença inflamatória predispõe à perda de massa óssea. O sexo feminino, a idade avançada, a inactividade física e os corticoides são factores predisponentes. Deve ser realizada uma osteodensitometria da anca e coluna antes de se iniciar a terapêutica com corticoides. As mulheres pós-menopausicas com D.I.I. têm risco acrescido de desenvolver osteoporose(42). Devem ser medicadas com carbonato de cálcio (650 mg 3x/dia), suplemento de vitamina D (400 UI, per os, 2x/dia) e a terapêutica hormonal de substituição deve ser equacionada na ausência de contra-indicações. Se a duração da terapêutica com corticoides for superior a 3 meses a terapêutica com bifosfonatos deve ser considerada, o alendronato (10 mg/dia) tem sido eficaz. VIGILÂNCIA DO CANCRO COLORECTAL Recomendações para a prevenção do cancro colo-rectal nos doentes com colite ulcerosa - American College of Gastroenterology. Os doentes com colite ulcerosa têm risco aumentado de desenvolver cancro colo-rectal. A magnitude do risco depende principalmente da extensão da lesão e da duração da lesão mas também da idade de início da doença, da existência de parentes do primeiro grau com carcinoma colo-rectal diagnosticado antes dos 50 anos e da existência de colangite esclerosante. De acordo com as guidelines recomendadas os doentes com pancolite com mais de 8 anos de evolução e os doentes com colite esquerda com mais de 12 anos de evolução devem ser submetidos a colonoscopia total anual ou de dois em dois anos, com biópsias múltiplas. Não é necessário vigilância para a proctite e para a proctosigmoidite. O carcinoma do cólon nos doentes com colite ulcerosa inicia-se muitas vezes em lesões planas, não polipoides. Os tumores são muitas vezes infiltrativos e podem ser múltiplos. Podem não ser detectados em programas de vigilância. Apesar da falta de especifici- TERAPÊUTICA CIRÚRGICA A idade só por si, não está associada a aumento da mortalidade cirúrgica no idoso com doença inflamatória do intestino. As doenças associadas, a gravidade da doença e a necessidade de cirurgia emergente influenciam o post-operatório(43,44). Em geral a cirurgia abdominal no idoso com doença inflamatória é segura, mas o pré e o pós-operatório devem ser abordados cuidadosamente, sobretudo nos doentes com patologias associadas. A cirurgia de emergência está indicada na colite ulcerosa grave ou no megacolon que não respondem a terapêutica médica, na perfuração e na hemorragia grave. A cirurgia electiva está indicada quando existe falência da terapêutica médica e na displasia / neoplasia. 199 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 10 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO dade a displasia é o melhor marcador para avaliar o potencial maligno. Sabemos que nem todos os doentes com displasia evoluem para cancro. Assim na displasia de alto grau, na displasia associada a lesão ou massa (DALM) de alto ou baixo grau e na displasia em lesões planas está indicada a colectomia. A idade avançada está associada com o aumento do risco dos pólipos adenomatosos. A terapêutica dos pólipos nos doentes com colite ulcerosa é controversa. Se se desenvolve um adenoma próximo da área afectada pela colite está indicada a polipectomia e o follow-up(50,51). Nos pólipos em áreas de colite activa ou quiescente, pediculados, deve ser realizada a polipectomia e biópsias múltiplas na mucosa circundante. Se não se encontrar displasia está recomendada vigilância. Se se encontrar displasia na base do pólipo está recomendada a colectomia. Nos pólipos sésseis é mais controverso porque a displasia numa lesão plana está associada com alto risco de cancro colorectal. Diferenciar se a lesão séssil é uma dis- plasia associada a lesão ou massa (DALM) ou um simples adenoma, pode ser difícil. A colectomia está recomendada quando se encontra lesão plana. A displasia na "pochite" é rara, pelo que não tem indicação para vigilância.(52) Recomendações para prevenção de can cro colo-rectal na Doença de Cröhn American College of Gastroenterology Os doentes com doença de Cröhn extensa do cólon com mais de 8 anos de evolução devem fazer colonoscopias de vigilância como na colite ulcerosa, pois têm risco idêntico aos doentes com colite ulcerosa de desenvolveram cancro colo-rectal. Os doentes com doença de Cröhn do delgado não têm risco aumentado de carcinoma colo-rectal. Existe risco aumentado de adenocarcinoma do delgado nos doentes com doença de Cröhn mas, como este cancro é extraordinariamente raro, não está recomendada a vigilância para o cancro do intestino delgado na doença de Cröhn. BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. Ekbom A, Helmick C, Zack M. The epidemiology of inflammatory bowel disease: a large pop ulation-based study in Sweden. Gastroenterology 1991;100:350-351. Kyle J: Crohn's disease in the northeastern and northern Isles of Scotland: an epidemiologi cal review, Gastroenterology 1992;103:392-399. Lapidus A, Bernell O, Hellers G: incidence of Crohn's disease in Stockholm Country 19551989.Gut 1997;41:480-486. Rose JD, Roberts GM, Williams G. Cardiff Crohn's disease jubilee: the incidence over 50 years. Gut;1988;29:346-351. Loftus EV Jr, Silverstein MD, Sandborn WJ. Crohn's disease in Olmsted County, Minnesota 1940-1993: Incidence, prevalence, and survical. Gastroenterology 1998;114:1161-1168. 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Inicialmente existe uma microperfuração que dá origem a uma peridiverticulite e/ou fleimão. A perfuração pode resultar de uma persistente pressão cólica elevada ou ser precedida de fenómeno inflamatório que diminui a resistência da parede diverticular. A classificação de Hinchey e al(5) é frequentemente usada para descrever o grau de perfuração e prever a gravidade da doença. DIAGNÓSTICO CLÍNICO Os doentes frequentemente apresentam dor abdominal nos quadrantes inferiores esquerdos, de início agudo, e podem surgir sinal de irritação peritoneal, defesa e rigidez. A dor é intensa, constante e pode ser acompanhada de exacerbações intermitentes por espasmos do cólon. Podem surgir náuseas, vómitos, anorexia, febre, calafrios, alterações do trânsito intestinal variando de obstipação a diarreia. Devemos ter em atenção que alguns doentes idosos podem apresentar sintomas discretos, com dor abdominal vaga, sem febre. Deve ser pesquisada história de doença diverticular. No indivíduo idoso a doença pode ser extensa e grave apesar do quadro clínico ser fruste. Deve ser dada particular atenção aos doentes idosos medicados com corticoides ou antibióticos. Estes doentes devem ser observados durante vários dias para detectar sinais precoces de deterioração. Podem surgir infecções urinárias de repetição e pneumatúria, nas fístulas colovesicais e emissão de fezes pela vagina nas fístulas colovaginais. QUADRO II - CLASSIFICAÇÃO DE HINCHEY ESTÁDIO I II III IV DESCRIÇÃO - Abcesso pericólico. - Abcesso à distância (retroperitoneu, pélvico). - Peritonite generalizada causada pela rotura de abcesso pericólico ou pélvico não comunicando com o lúmen intestinal devido à obstrução do colo do divertículo pela inflamação. - Peritonite fecal provocada pela perfuração livre de um divertículo. Outras complicações da diverticulite são a formação de fístulas e a oclusão intestinal.(6) As fístulas formam-se pela extensão directa ou pela rotura de abcessos peridiverticulares para órgãos adjacentes, como a bexiga, vagina ou pele. A oclusão pode ocorrer de forma aguda, pelo edema da parede do cólon durante a NO EXAME OBJECTIVO Na auscultação abdominal os ruídos hidroaereos podem estar aumentados, diminuídos ou ausentes. Pode surgir tumor palpável. RADIOLOGIA Deve ser realizado um Rx do tórax (PA e 203 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 14 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO perfil) para despiste de eventual pneumoperitoneu, que ocorre em 12% dos casos, e avaliar o estado cardiopulmonar do doente. O Rx simples do abdómen de pé mostra alterações em 30% a 50% dos doentes: dilatação ou ileus do intestino delgado ou cólon e oclusão intestinal. O ar retro peritoneal pode difundir-se ao longo do psoas e provocar apagamento da linha do psoas. Os exames contrastados estão praticamente abandonados. A diverticulite é uma contra-indicação relativa para realização dos exame contrastados porque pode precipitar ou exacerbar a perfuração. A tomografia computorizada (TAC) é considerada o exame de eleição no idoso(1), com sensibilidade de 70% a 95% e especificidade de 75% a 100%.(8, 9) Geralmente é rea-lizado o exame abdominal e pélvico. Os critérios sugestivos de diverticulite são a presença de divertículos com infiltração pericólica, espessamento da parede cólica e abcessos. Em doentes graves com dúvidas da existência de peritonite a TAC pode ser o primeiro exame de investigação. Uma TAC negativa não excluí o diagnóstico completamente. O uso da ultrassonografia, devido ao seu baixo custo e por ser um exame não invasivo, foi preconizado no idoso, por alguns autores. Os achados são uma parede cólica espessada hipoecogénica, a presença de divertículos ou abcessos e hiperecogenicidade à volta da parede cólica. A sensibilidade do método é de 84% a 98% e a especificidade 80% a 98%.(10,11,12) no leito, instituída dieta líquida, antibióticos de largo espectro durante 7 a 10 dias, e mesalazina. A mesalazina, com ou sem antibióticos, tem mostrado melhoria significativa dos sintomas e previne as recorrências.(13) Os doentes com sinais francos de inflamação, os doentes inicialmente tratados em casa que deixaram de tolerar a dieta oral, os doentes com mais de 85 anos, os doentes imunodeprimidos ou os doentes com doenças associadas graves, devem ser hospitalizados. Deve ser instituída dieta 0, administração de solutos endovenosos, antibióticos de largo espectro endovenosos. Devem ser dados antibióticos que cubram anaeróbios e gram negativos. Os anti-inflamatórios, por serem factor de risco de episódios graves de diverticulite, não devem ser administrados.(15) Se for necessário um analgésico, a meperidina pode ser utilizada. A morfina deve ser evitada pois aumenta a pressão intracólica. Observa-se habitualmente melhoria em 48 a 72 horas. A maioria dos doentes hospitalizados por diverticulite aguda respondem ao tratamento médico conservador, mas 15% a 30% requerem cirurgia.(1) Se o doente apresenta 2º episódio de diverticulite requerendo terapêutica anti-biótica deve ser tratado como do 1º episódio contudo a cirurgia electiva está indicada quatro a seis semanas após a resolução da inflamação, pois os episódios subsequentes respondem mal à terapêutica médica e tem mortalidade elevada.(16) Devem ser ponderados os factores de risco/benefício e considerar que a morbilidade cirúrgica está a diminuir com a generalização das técnicas laparoscópicas.(17,18,19,20) Na cirurgia da doença diverticular toda a sigmoideia deve ser ressecada e a anastomose deve ser efectuada com o recto.(21,22) Se a margem distal é a sigmoideia existe taxa elevada de recorrência. Se o doente não responde à terapêutica médica ou piora devemos pensar estar peran-te uma complicação da diverticulite: fleimão, abcesso, perfuração livre, peritonite purulenta, peritonite fecal. Deve ser recomendada dieta rica em fibra COLONOSCOPIA Deve ser evitada nas fases iniciais pelo risco de perfuração pelo endoscópio ou pela insuflação de ar. TERAPÊUTICA A terapêutica depende da gravidade da inflamação e do processo infeccioso. Doente com sintomas ligeiros e sem sinais de irritação peritoneal devem fazer repouso 204 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 15 Rosário Vidal após a resolução do episódio agudo. leucocitose, apesar de uma cobertura antibiótica correcta ou um tumor palpável doloroso, devemos pensar num abcesso. Dor localizada nos quadrantes esquerdos e sinais de peritonite podem surgir. HEMORRAGIA A hemorragia é uma complicação tardia da doença diverticular e aparece em média entre os 67,7 e 74,2 anos. É a causa mais frequente de hemorragia gastrointestinal baixa no idoso.(23,24) Aproximadamente 10 à 25% dos doentes com doença diverticular conhecida tiveram perda de sangue rectal, oculta ou maciça, enquanto em 16% dos doentes a hemorragia rectal é a primeira manifestação da doença. Os AINE's têm sido implicados na hemorragia diverticular. Assim, os doentes com diverticulose devem evitar os AINE's se neces-sários devem ser administrados inibidores da cyclooxygenase 2, pois reduzem o risco de hemorragia diverticular. A hemorragia da doença diverticular inicia-se subitamente e é indolor. O doente pode referir dor abdominal moderada, urgência na evacuação seguida de emissão de volumosa quantidade de sangue vivo ou vermelho escuro por vezes com coá-gulos. Aproximadamente 3 a 5% dos doentes apresenta hemorragia grave, necessitando do transfusão sanguínea. A taxa de recidiva é de 22% e a taxa de hemorragia recorrente depois do 2º episódio é de 50% . A resolução expontânea é frequente, razão pela qual os doentes devem ser tratados conservadoramente. Em dois terços dos casos a causa da hemorragia é um divertículo do cólon direito. DIAGNÓSTICO A tomografia computorizada é o melhor método de diagnóstico e permite a drenagem percutânea.(25,26) TERAPÊUTICA Os abcessos pericólicos de pequenas dimensões são tratados com terapêutica conservadora, dieta e antibióticos de largo espectro. Os abcessos à distância ou que não resolvem com terapêutica conservadora devem ser drenados. A drenagem percutânea guiada por tomografia computorizada assume papel preponderante em relação à cirurgia, permitindo rápido controle da sépsis e estabilização do doente. A cirurgia electiva deve ser equacionada para prevenir episódios recorrentes de divericulite.(27) FÍSTULA Os abcessos peridiverticulares podem progredir e formar uma fístula entre o cólon e as estruturas vizinhas. Ocorre em 10% dos doentes com doença diverticular. As fístulas colovesicais são as mais frequentes.(28) São mais frequentes no homem porque o útero fica localizado entre o cólon e a bexiga. Podem formar-se fístulas para qualquer estrutura em contacto com os divertículos incluindo a vagina(29), pele, intestino delgado, outros divertículos e menos frequentemente o ureter. ABCESSO Forma-se quando ocorre perfuração de um divertículo e os tecidos peri-cólicos impedem que o processo inflamatório progrida. Se o processo inflamatório aumenta, pode formar-se um abcesso local de grandes dimensões ou à distância. É a complicação mais frequente da diverticulite da sigmoideia. CLÍNICA Os sintomas associados com fístulas colovesicais são infecções urinárias de repetição, disúria, piúria, pneumatúria e fecalúria. CLÍNICA Se persiste febre elevada, taquicárdia, 205 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 16 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO DIAGNÓSTICO DIAGNÓSTICO A tomografia computorizada é o método de eleição.(30) A colonoscopia com biópsias é o método de eleição. TERAPÊUTICA TERAPÊUTICA Nos casos em que persiste dúvida da natureza da estenose, apesar da colonoscopia e dos exames radiológicos, está indicada a cirurgia. Nas estenoses benignas deve ser utilizada terapêutica endoscopica com dilatação com velas, com balões, electrocoagulação ou laser.(31) A cirurgia consiste no encerramento da fístula e a anastomose primária. No doente idoso uma terapêutica espectante pode ser boa alternativa. OCLUSÃO PERITONITE GENERALIZADA Complicação pouco frequente, ocorre em 2% dos casos. A oclusão intestinal do delgado ocorre quando uma ansa fica retida nas aderencias peri-diverticulares que resultam dos processos inflamatórios recorrentes. No processo agudo pode resultar da diminuição do lúmen pelo processo inflamatório ou pela compressão por um abcesso. A obstrução cólica é rara, mas episódios recorrentes de diverticulite podem levar a formação de fibrose progressiva e estenoses. Resulta da perfuração livre de um divertículo na cavidade peritoneal. Não é frequente e a cirurgia tem mortalidade elevada (6,1% a 25,7%).(32) A peritonite ocorre por vezes por rotura de um abcesso diverticular e apresenta-se como abdómen agudo. A frequência da perfuração diverticular aumenta com administração de corticoides(33) que podem mascarar os sintomas de perfuração cólica. BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. Ferzoco LB, Raptopoulos V, Silen W: Acute diverticulites N Engl J Med 1998;338:1121-1526. Young-Fadok TM, Roberts PL, Spencer MP & Wolff BG Colonic diverticular disease. Current Problems in Surgery 2000;37:457-514. P D R Higgins; KJ Davis, L Laire. The epidemiology of ischaemic colitis. 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A lesão é mais grave com as partículas alfa, de gravidade intermédia com as beta e menos intensa com as radiações gama incluindo o Rx(9,10) Os electrões são responsáveis pela maioria dos efeitos biológicos das radiações. Podem danificar o ADN, o que ocorre em 30% dos casos, quer directamente ou indirectamente. O electrão interage com outros constituintes celulares água, gerando radicais livres de oxigénio que indirectamente interferem com o ADN. Numerosos factores ambientais contribuem para os efeitos biológicos das radiações sobre as células saudáveis ou cancerígenas. Um dos mais importantes é a pressão parcial do oxigénio no momento da irradiação. As células que são irradiadas em hipoxémia são resistentes à radiação por fotões. A sensibilidade à radiação depende da fase do ciclo celular. As células que estão a entrar em mitose na fase S, parecem ser mais sensíveis do que as células que estão no meio da fase S.(13) É elevada a percentagem de doentes com o diagnostico de cancro que faz radioterapia.(1) A toxicidade gastro-intestinal é problemática e pode limitar a dose total administrada. Embora o cólon seja relativamente radioresistente, a incidência de colite rádica é elevada, devido à alta dose de radiação utilizada, bem como à fixação pélvica do recto e cólon sigmoide. Os tumores mais frequentemente associados com a colite rádica são o carcinoma de células de transição da bexiga, carcinoma pavimento celular do colo do útero, carcinoma do endométrio, o adenocarcinoma da próstata e do recto e o tumor do testículo.(2,3) Nalgumas estatísticas, a radioterapia no tumor do testículo está associada a 16% de casos de colite do transverso quando utilizados 3.000 cGy e em 37% quando a dose passa para 6.000 cGy.(4) Os feixes de radiação externos produzem(4,5) lesões mais graves que a radiação por implante. A combinação das duas técnicas produz lesões graves e é frequentemente usada nos tumores do endocolo e próstata pois são mais eficazes. A proctosigmoidite é a forma de apresentação mais frequente após a irradiação pélvica, responsável por 75% dos casos em algumas séries.(6,7,8) COLITE RÁDICA PRECOCE Ocorre em metade dos doentes sujeitos a radioterapia, durante o tratamento ou até seis semanas após a sua conclusão.(7,8) CLÍNICA Os sintomas dominantes são a diarreia e o tenesmo. Pode surgir exsudado mucoso e hemorragia.(14) FISIOPATOLOGIA O principal efeito da radiação resulta da sua interacção com o ADN nuclear das células em divisão, interrompendo as mitoses, causando mutações ou morte das células(9,10). Estes efeitos são potenciados pela quimioterapia adjuvante com bleomicina,(11,12) doxorrubicina ou fluoro-uracilo.(22) A lesão do cólon depende do volume irradiado, do tipo de radiação, da dose total e do ENDOSCOPIA Em 50% dos casos a endoscopia não mostra lesões. Nos restantes surge edema, apagamento da rede vascular, friabilidade(15), úlceras superficiais, semelhantes às encontradas na colite ulcerosa. Mas as lesões não são contínuas e são muitas vezes localizadas no ponto 208 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 19 Rosário Vidal de aplicação da radiação. podem surgir tenesmo, dor rectal, exsudado e hematoquézia. A inflamação progressiva e a fibrose podem formar estenoses com consequente quadro de oclusão intestinal parcial ou completa. HISTOLOGIA As alterações descritas são proliferação e maturação anómalas das células epiteliais, abcessos eosinofílicos das criptas com diminuição da celularidade, infiltrado inflamatório agudo da lâmina própria e ulcerações dispersas ou localizadas dependendo da extensão da exposição. ENDOSCOPIA Observa-se palidez da mucosa, friabilidade e múltiplas telangiectasias. Raramente, surgem úlceras discretas na parede anterior do recto localizadas entre 4 a 8 cm acima da linha pectínea. RADIOLOGIA As alterações radiológicas são caracterizadas por perda das haustras com aspecto em "tubo rígido " e estreitamento do lúmen. HISTOLOGIA As alterações histológicas são semelhantes às observadas nas colites isquémicas com fibrose sub-mucosa, telangiectasias dos pequenos vasos e hialinização do endotélio dos vasos de maior calibre.(18,19) Alguns autores consideram que os fibroblastos atípicos, irregulares e volumosos são características da lesão vascular das radiações. As lesões da isquémia ocorrem primeiro no epitélio e na sub-mucosa enquanto a serosa é envolvida tardiamente. Podem formar-se aderencias entre as ansas intestinais. TRATAMENTO A redução da dose total de radiação reduz significativamente a intensidade dos sintomas. Os sintomas podem ser tratados com dieta pobre em fibra, com anti-espasmódicos, antidiarreicos (loperamida) e anestésicos tópicos. Os clisteres de corticoides e o 5ASA são pouco eficazes.(16,17) Clisteres de sucralfate e de ácidos gordos de cadeias curtas tiveram bons resultados a curto prazo.(16,17) Um estudo recente randomizado mostrou que supositórios de misoprostol prévios às radiações reduzem os sintomas agudos e crónicos. TRATAMENTO O tratamento da colite rádica tardia é difícil. Os clisteres de corticoides e mesalasina têm efeitos mínimos. A terapêutica endoscópica, que consiste na cauterização de vasos anómalos com eletrocoagulação bipolar,(20) YaG laser ou árgon plasma(21,22) tem-se revelado eficaz. O árgon plasma tem menos riscos de lesão transmural do cólon que o YaG laser.(21,22) As estenoses sintomáticas podem ser tratadas com dilatações com balões de Savary-Gillard ou dilatações pneumáticas.(23) Múltiplas sessões de oxigénio hiperbárico foram eficazes na paragem da hemorragia.(24) A cirurgia deve ser considerada como último recurso, pois apresenta taxa de complicações elevadas. As principais complicações são a deiscência das suturas, infecções locais, estenoses, COLITE RÁDICA TARDIA Os sintomas podem aparecer três ou mais meses após a radiação. O pico de incidência são os nove meses mas os sintomas podem aparecer vários anos após a terapêutica. Aparecem principalmente em doentes irradiados por tumores genitourinários (em 95% dos casos).(18) A dose total de radiação está relacionada linearmente com as lesões. CLÍNICA Os sintomas são insidiosos e por vezes progressivos. A diarreia é o mais frequente mas 209 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 20 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO obstruções e fístulas.(25,26,27) doentes.(18,28) Embora a gravidade dos sintomas precoces correlaciona-se mal com o risco de complicações tardias, o aparecimento dos sintomas precoces alerta para o risco de eventuais lesões tardias. Uma potencial complicação tardia é o aparecimento do cancro colorectal.(29,30) A curta sobrevida destes doentes com cancro secundário ao cancro primário limita o potencial carcinogénico. Os tumores do colo do útero, próstata e testículos são excepção. Pensa-se que 3% dos tumores do tubo digestivo são secundários à radioterapia. A radiação apenas pode ser considerada como factor etiológico se ocorre a mais de 10 anos.(31) PROGNÓSTICO Os doentes com hemorragia discreta, não necessitando de transfusões e com sintomas intestinais ligeiros têm taxa de remissão espontânea elevada (70%), e só 5% necessitam de cirurgia. Por outro lado os doentes que requerem transfusões, ou têm sintomas graves, têm taxas de remissão baixas de 0% a 20%, necessitando de cirurgia em 50% dos casos e têm uma taxa de mortalidade elevada (60%).(18) As complicações genitourinárias associadas como a estenose uretral, fístulas rectovaginais e cistites estão presentes em 55% dos casos e são responsáveis pela alta mortalidade destes BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. Kinsella TJ, Bloommer WP, Tolerance of the intestine to radiation therapy. Surg Gynecol Obstet 1980;151:273. Cosset JM, Henry - Amar JMV, Burgers E.M.Late Radiation effects after therapy for Hodgkin's disease. Radiother Oncol 1988;13:61. Schmitz RM, Chao JH, Bartolome JS, Intestinal injuries from irradiation of carcinoma of the uterus and cervix. Surg Gynecol Obtet 1984;138:29. Friedman M. 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A possibilidade de existir susceptibilidade genética foi sugerida pelo aparecimento da doença em membros da mesma família.(14) A eventual possibilidade dos ácidos biliares lesarem o epitélio cólico foi sugerida pela melhoria de alguns doentes tratados com colestiramina.(15) São caracterizadas por diarreias crónicas, por vezes abundantes, com endoscopia normal, mas com histologia de inflamação crónica. Histológicamente as colites microscópicas(1) dividem-se em colites colagénicas e colites linfocíticas. Estas duas entidades com alterações histológicas distintas podem ser o extremo do espectro das colites microscópicas. A colite colagénica foi originalmente descrita por Lindstrom em 1976.(2) As colites microscópicas foram referidas pela primeira vez por Real e al(3) em 1980. A colite linfocítica foi proposta por Lazerbay e al.(4) A idade média de aparecimento da doença é os 60 - 65 anos. A colite colagénica predomina no sexo feminino. Na colite linfocítica a relação mulher / homem é praticamente igual.(5) Estão associadas a doenças auto-imunes em 20% dos casos, incluindo a artrite reumatóide, esclerodermia, sindroma sica, hepatite crónica activa, cirrose biliar primária, fibrose pulmonar idiopática, tiroidite auto-imune, diabetes, anemia perniciosa.(6,7) Embora a colite microscópica diminua a qualidade de vida dos doentes, não está associada a aumento do risco do carcinoma colorectal e a sobrevida não está diminuída.(8) DIAGNÓSTICO Clínico A diarreia crónica, aquosa, sem sangue, de grande volume, diurna ou nocturna, que diminui de volume com o jejum é o sintoma dominante. Caracteristicamente o doente tem cinco a dez dejecções por dia. O início da diarreia é geralmente insidioso embora alguns doentes tenham início abrupto. A diarreia é persistente entre dois meses a vinte anos com flutuações do quadro clínico, marcado por períodos de melhoria e de agravamento. Podem surgir dor abdominal tipo cólica, náuseas, vómitos, perda de peso, distensão abdominal e flatulência. As colites microscópicas são causa frequente de diarreia crónica.(16,17) O exame objectivo é geralmente normal. ETIOPATOGENIA A etiologia é desconhecida, mas a autoimunidade e toxinas não identificadas podem ser responsáveis pelas lesões da mucosa. Alguns autores julgam existir uma resposta imunológica cólica a uma toxina da dieta. As alterações histológicas das colites microscópicas assemelham-se às observadas na doença celíaca.(9) Aproximadamente 20 a 30 % dos doentes com doença celíaca tem evidencia de colite linfocítica nas biopsias.(10,11) Por outro lado 4 a 10% dos doentes com colite colagénica têm biópsias compatíveis com doença celíaca.(12) Laboratorial Os testes de rotina são normais, embora alguns doentes possam apresentar anemia ligeira, hipoalbuminémia e VS elevada. Endoscópico A colonoscopia é normal. Devem ser colhidas biópsias múltiplas dos diferentes segmentos do cólon. A biópsia rectal é positiva em apenas 27% dos doentes com colite 212 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:17 Page 23 Rosário Vidal colagénica. A fiabilidade aumenta para 82% se as biópsias forem realizadas no cólon descendente, sigmoideia e recto.(18, 19) Deve ser realizada uma colonoscopia total para excluir outras patologias. depositadas a seguir a lesão intestinal ou inflamatória. Na colite linfocítica existe um excesso de linfocitos intra epiteliais, bem como inflamação na lâmina própria, caracterizada por células plasmáticas e eosinofilos. As alterações histológicas podem ser dispersas, poupando o recto, podendo ser limitadas ao cólon direito. Histológico Ambas as doenças são caracterizadas por infiltração moderada da mucosa por células mononucleares, com lesão das células epiteliais e preservação da arquitectura das criptas. Os linfocitos intra-epiteliais estão aumentados cinco a dez vezes(4). Existe diminuição no número das células caliciformes, hiperplasia das células de Paneth e aumento do número das mitoses superficiais. Na colite colagénica existe uma camada colagénica, linear sub-epitelial. A espessura normal da membrana basal é inferior a 4 mm, formada sobretudo por colagénio tipo IV. Na colite colagénica pode variar de 4 a 100 mm.(18) A camada de colagénio é formada por colagénio tipo I, III e fibronectina, substâncias normalmente TRATAMENTO A diarreia tende a ser crónica e intermitente mas tem evolução benigna. Não existe medicamento eficaz. Assim a terapêutica inicial é dirigida aos sintomas. Os AINE'S devem ser suspensos se possível. A loperamida pode controlar a diarreia. A colestiramina pode ser eficaz em alguns doentes. A terapêutica com 5 aminosalicilato (5 ASA), corticoides(20) (especialmente o budesonido) e o subcitrato de bismuto mostrou-se eficaz na maioria dos doentes, diminuindo a diarreia e melhorando as alterações histológicas.(21,22) BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. Giardiello FM, Lazenby AJ. The atypical colitides. Gastroenterol Clin North Am 1999;28:479-490. Lindstrom CG. Collagenous colitis with watery diarrhea. A new entiy. Pathol Eur 1976;11:87. Real N W, Krejs GJ, Real MG. Chronic diarrhea of unknown origin. Gastroenterology 1980;68:264. Lazenby AJ, Yardley JH, Giardiello FM. Lymphocytic microscopic colitis: a comparative histopathologic study with particular reference to collagenous colitis. Hum Pathol 1989;20:18. Pardis DS. Microscopic colitis. Mayo Clin Proc. 2003 May;78(5):614-6; quiz 616-7. Stampfl DA, Friedman LS. Collagenous colitis pathophysiologic consideration. Dig Dis Sci 1991;36:705. 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O butirato fornece 70% de energia para o epitélio rectal.(12,13) Uma alternativa aos AGCC, completamente especulativa, são os factores de crescimento do lúmen constituintes da dieta, ou outros produtos metabólicos necessários para manter um bom funcionamento do colonocito. Foram observadas alterações do perfil bacteriológico depois da exclusão.(7,3) A colite de derivação também conhecida por colite de "bypass"ou colite de exclusão, é caracterizada por inflamação idiopática de um segmento do cólon previamente normal, depois da derivação cirúrgica do conteúdo fecal. A reanastomose resolve completamente a colite. Desenvolve-se nas bolsas de Hartman ou nas fístulas mucosas. A maioria dos doentes com colostomias proximais ou ileostomias não apresenta colite de derivação. O sindroma foi observado por Morson em 1972(2) e designada em 1981 por Glotzer e al(3). CLÍNICA PATOGÉNESE Os sintomas aparecem, em média, um a nove meses após a derivação, mas podem aparecer até três anos depois(4). São mais prevalentes nos doentes operados por doença inflamatória do intestino A deficiência nutricional do lúmen tem sido incriminada como a causa da colite de derivação. Os ácidos gordos de cadeia curta 214 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:18 Page 25 Rosário Vidal (89%) do que nos tumores (23%) ou outras patologias (50%)(5). Os doentes apresentam exsudado que progride para sangramento rectal,(6) dor pélvica ou irritação anal. Muitos doentes com colite de derivação são assintomáticos. Existe um espectro histológico de inflamação desde moderada hiperplasia folicular e infiltrado linfoplasmocitário a inflamação severa. As alterações inflamatórias precoces consistem em infiltração mucosa por linfocitos, células plasmáticas, neutrófilos, úlceras aftoides sobre os agregados linfoides e células epiteliais reactivas. As lesões mais avançadas consistem em abcessos das criptas, alterações moderadas da arquitectura das criptas e metaplasia das células de Paneth. Nas formas graves surge nodularidade difusa e úlceras com exsudado. ENDOSCOPIA Endoscopicamente existe inflamação em 60% a 80% dos casos.(4,7) Os achados endoscópicos incluem edema, eritema difuso, granularidade, friabilidade, úlceras aftoides, exsudado. Nos estadios mais avançados aparecem nódulos e ulceração difusa. TRATAMENTO A terapêutica curativa é a reanastomose do segmento cólico derivado.(14) A maioria dos doentes é assintomática ou têm uma descarga de muco moderada, não sendo necessário terapêutica. Nos doentes sintomáticos que não possam ser operados, os clisteres de(15,16) AGCC, duas vezes / dia, induzem remissão em alguns doentes ao fim de seis semanas. Os clisteres de corticoides-hidrocortisona(10,17) ou de 5-ASA não se têm mostrado eficazes. Clisteres de butirato, diariamente ou em dias(11) alternados tem sido eficazes. HISTOLOGIA As alterações histológicas observam-se em 90% a 100% dos casos(2,8). A hiperplasia dos folículos linfoides é um dado universal, neutrófilos e inflamação das criptas aparecem em 60% dos doentes. Pode surgir depleção de mucinas, edema da mucosa, diminuição do número e profundidade das criptas, úlceras superficiais. A clínica, os aspectos endoscópicos e as alterações histológicas parecem progredir com lesões moderadas aos 3 meses e mais severas aos 6 e 9 meses.(4,9,10) BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. Edwards CM, George B, Warren B. Diversion colitis-new light through old windows. Histopathology 1999 Jan;34(1):1-5. Morson BC, Dawson IMP. Gastrointestinal Pathology 1 st ed. London. Blackwell Scientific 1972:485. Glotzer DJ, Glick ME, Goldman H. Proctitis and colitis following diversion of the fecal stream. Gastroenterology 1981;80:438. Ma Ck, Gottlieb C, Haas PA. Diversion colitis: a clinicopathologic study of 21 cases. Hum Pathol 1990;21:429. Haas PA, Fox TA, Szilag EJ. Endoscopic examination of the colon and rectum distal to a colosto my. 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COLITES DE ORIGEM MEDICAMENTOSA QUÍMICA E CÓLON DOS CATÁRTICOS e a inflamação.( 2,4) A perda das prostaglandinas vasodilatadoras, a produção de leucotrienos vasoconstritores e radicais livres associados com a activação da lipoxigenase, podem interferir com o fluxo mesentérico. A lesão epitelial e o aumento da permeabilidade da mucosa provocada pelos A.I.N.E. podem aumentar a susceptibilidade das toxinas do lúmen.(1,2) COLITE DOS ANTI-INFLAMATÓRIOS Tem sido associada a numerosos AINE (diclofenac, indometacina, aspirina de libertação entérica, ibuprofeno, fenilbutazona, naproxeno, piroxicam)(1,2,3). É um problema potencial em doentes idosos, sem factores de risco, com mais de 65 anos. CLÍNICA A diarreia e a perda de sangue, microscópica ou macroscópica, são os sintomas dominantes. Pode surgir perda de peso e febre. A perfuração espontânea do cólon e a hemorragia podem ocorrer em maior percenta-gem nos doentes com ingestão de AINE's(1,2). PATOGÉNESE A patogénese permanece incerta, mas provavelmente a toxicidade é mediada pelos efeitos de inibição da ciclooxigenase. A perda da citoproteção da mucosa e imunosupressão, proporcionada pelas prostaglandinas, conjugada com a mudança dos metabolitos do ácido araquidonico em lipoxigenases (próinflamatórios) podem induzir a lesão do cólon LABORATÓRIO Em geral surge anemia, VS aumentada e leucocitose. 216 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:18 Page 27 Rosário Vidal medicação. A pesquisa da toxina do C. difficile é negativa.(6,7) ENDOSCOPIA Os aspectos endoscópicos variam de proctite discreta a pancolite com úlceras e lesões inflamatórias em qualquer ponto do cólon. As lesões podem ser localizadas ou dispersas. CITOSTÁTICOS A rápida divisão das células do epitélio gastro intestinal são particularmente susceptíveis aos efeitos tóxicos dos citostáticos. Múltiplas drogas causam lesão do cólon: citosino-arabinosido, metotrexato, ciclosporina, 5-fluorouracilo. O quadro clínico varia de uma colite segmentar moderada à colite fulminante com megacólon.(8,9) COMPLICAÇÕES Os AINE's estão associados com um aumento da incidência de perfuração de divertículos do cólon, segundo alguns estudos controlados.(1,4) Outras complicações são, por exemplo, as proctites relacionadas com o uso de supositórios(1,4). A patogénese é multifactorial e inclui a lesão directa do epitélio cólico por estas drogas, invasão da mucosa pelos patogénicos intestinais e isquémia cólica.(8,10) TRATAMENTO SINDROMAS ASSOCIADAS AO USO DE ENEMAS A primeira medida é a suspensão dos AINE's. Pode ser necessário recorrer aos corticoides ou à sulfalazina. A cirurgia pode estar indicada nas complicações hemorrágicas ou perfuração. Constituem grupos de risco os doentes que se auto-medicam para a obstipação, os doentes que foram tratados com enemas de sabão ou nos quais foi usado contraste solúvel (gastrografina, hypaque, renografina).(5) São administrados para opacificar colons obstruídos e evitar as complicações do bário. As lesões aparecem em situação proximal à obstrução, principalmente no cego e cólon ascendente.(5,11,12) A patogénese da colite do sabão centra-se no seu efeito detergente na mucosa do cólon. OUTROS MEDICAMENTOS E QUÍMICOS QUE INDUZEM COLITES Medicamentos e químicos podem provocar colites químicas, quando admi-nistrados por via oral ou rectal. ANTIBIÓTICOS CLÍNICA Colites hemorrágicas têm sido associadas com a ampicilina, amoxicilina e a eritromicina. A patogénese é desconhecida. Diferem da colite típica da toxina do Clostridium difficile pois os doentes apresentam diarreia com sangue, geralmente não se apresenta com pseudo-membranas e há um predomínio de lesões nos segmentos direitos. Melhorando com a suspensão da Geralmente o doente apresenta dor abdominal, diarreia com ou sem sangue, tenesmo e febre. A colite induzida pelo sabão pode manifestar-se por uma inflamação moderada com aumento do número das dejecções ou um quadro de colite aguda grave, com diarreia com sangue.(13) Podem surgir sinal de irritação peritoneal. 217 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:18 Page 28 COLITES NÃO INFECCIOSAS NO IDOSO transformados no típico pigmento, semelhante à lipofoscina.(18) A doença é benigna. Não existe risco de cancro do cólon nos doentes com melanose.(15) LABORATÓRIO Frequentemente existe leucocitose. ENDOSCOPIA Os achados endoscópicos não são específicos e variam de mucosa friável, granitada a úlceras com ou sem pseudo-membranas. ENDOSCOPICAMENTE Caracteriza-se por aspecto reticular com estriações e manchas semelhantes à "pele de crocodilo".(16,17) As lesões aparecem sobretudo no cego e no recto embora possam envolver todo o cólon. TRATAMENTO De suporte, com solutos parentéricos, paragem alimentar e quando justificado antibióticos de largo espectro. A cirurgia pode ser necessária em alguns casos.(12,5,14) HISTOLOGIA A melanose pode ser detectada em biópsias nos casos pouco evidentes macroscopicamente. Histologicamente é caracterizada pelo depósito de um pigmento granular castanho nos macrofagos da lâmina própria. SINDROMAS ASSOCIADOS AO USO DE LAXANTES Os laxantes são dos produtos farmacêuticos mais vulgarmente utilizados por vezes por conselho de um amigo, sem critério científico. CÓLON DOS CATÁRTICOS MELANOSE CÓLICA Foi descrito pela primeira vez por Heilbrum em 1943.(19) A maioria dos doentes são mulheres que manifestamente ou subreticiamente tomaram laxantes durante anos,(20) frequentemente com distúrbios emocionais associados.(21) A melanose cólica é uma pigmentação escura da mucosa do cólon observada em doentes 73% que tomam laxantes (glucosidos do antraceno, cascara sagrada, aloé, sene)(15). A melanose pode aparecer quatro a nove meses após o início da terapêutica. Com a paragem da medicação a pigmentação desaparece em nove meses.(16) Predomina no sexo feminino.(17) A pigmentação escura do cólon foi descrita pela primeira vez por Billiarnd e foi designada de melanose cólica por Rudolph Virchow em 1857. PATOGENESE Em princípio as alterações cessam ao fim de 4 meses após a suspensão da terapêutica.(22) Estão descritos na toma crónica de laxantes irritantes, principalmente antraceno. O mecanismo preciso da sua acção é desconhecido. Pensa-se que seja pelo efeito tóxico do antraceno nos nervos dos plexos mioentéricos.(23) PATOGENIA A proveniência do pigmento na melanose cólica é desconhecida. A patogenese resulta de uma apoptose transitória das células do epitélio cólico. Os resíduos são fagocitados pelos macrofagos e transportados para a lâmina própria onde são CLÍNICA Os consumidores habituais de laxantes referem distensão abdominal, enfartamento, dor abdominal vaga nos quadrantes inferiores 218 Cap11ColitesNao.qxp 21-11-2005 16:18 Page 29 Rosário Vidal e sintomas de evacuação incompleta, sem laxantes. Usam laxantes frequentemente para ter trânsito intestinal que consideram ideal. Progressivamente aumentam a dose até deixarem de evacuar sem o seu uso.(20) pseudo-estenoses são transitórias. Estas alterações são semelhantes às da colite ulcerosa de longa duração. As alterações radiológicas no cólon dos catárticos podem atingir o cólon descendente, mas a região recto-sigmoideia geralmente está poupada. DIAGNÓSTICO TRATAMENTO As alterações mais evidentes são observadas nos exames contrastados. Nos casos moderados têm alterações limitadas ao cego com perda do aspecto típico da válvula ileocecal. Os casos mais graves são caracterizados por cólon tubular dilatado, distal ao cego, com perda das haustras.(20) Segmentos do cólon podem aparecer estenosados mas as Consiste na suspensão dos laxantes com antraceno. Deve ser instituída dieta rica em fibra, educação do treino da defecação e laxantes de volume (fibra e psyllium). Nos casos extremos pode ser necessário recorrer à cirurgia - colectomia total ou subtotal.(24) BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. Bjarnason I, Hayllar J, Mac Pherson AJ, Russel AS. Side effects of monsteroidal anti-inflamma tory drugs on the small and large intestine in humans. Gastroenterology 1993;104:1832. Carratu R, Parisi P, Agozzino A. Segmental ischemic colitis associated eith nonsteroidal antiinflammatory drugs. J Clin Gastroenterol 1993;16:31. Gibson GR, Whitacre EB, Ricotti CA. Colitis induced by nonsteroidal anti-inflammatory drugs: report of four cases and review of the literature. Arch Intern Med 1992;152:625. 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Pelas características próprias do envelhecimento e pela patologia associada, nomeadamente a aterosclerose generalizada, as complicações da diarreia aguda são mais frequentes no idoso(1). Apesar de se reconhecer que a diarreia infecciosa no idoso constitui uma importante causa de morbilidade e mortalidade, a literatura científica é escassa nesta área. Lew e cols.(2), numa revisão de 28538 casos de morte por diarreia ocorridos entre 1979 e 1987, mostraram que 51% dos casos ocorreram em doentes com mais de 74 anos em comparação com 27% de doentes com 55-74 anos e de 11% em crianças com menos de 5 anos. Num outro estudo, referente à incidência e complicações da gastroenterite, Gangarosa e cols. mostraram que a idade avançada era o mais importante factor de risco de morte consequente a uma hospitalização por gastroenterite(3). O fenómeno da imunosenescência, ou seja, um declínio global da função imune em consequência do envelhecimento, é suportado por várias observações. Vários estudos de experimentação animal e em humanos têm mostrado alterações do sistema imunitário relacionadas com a idade(4,6) de que salientamos as seguintes: diminuição das células T helper; declínio da função das células T (secundária à redução do cálcio intracelular); as membranas das mucosas dos indivíduos idosos apresentam maior susceptibilidade a infecções (possivelmente devido à diminuição da IgA); diminuição da formação de anticorpos; alteração na flora intestinal e aumento da taxa de incidência de infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. Por outro lado, sabemos que o pH ácido do estômago constitui uma barreira que impede a entrada de microorganismos no tracto gastrointestinal. Acreditou-se durante algum tempo que a redução da secreção ácida acompanhava o envelhecimento; no entanto sabemos que a secreção ácida se mantém intacta com a idade(7,8). Alguns idosos apresentam hipocloridria ou acloridria relacionada com outras causas, nomeadamente a gastrite crónica atrófica, as alterações pós cirurgia gástrica e a medicação com inibidores potentes da secreção ácida. Estes factores, associados ao facto de actualmente um número crescente de idosos residir em lares, são certamente responsáveis pela importância das diarreias infecciosas neste grupo populacional. Os microorganismos mais frequentemente implicados na etiologia das infecções do cólon estão enumerados no quadro I. As infecções por Shigella, Campylobacter e Escherichia coli produzem um quadro de disenteria bacilar caracterizado por cólicas abdominais e diarreia com muco e sangue. O Clostridium difficile é o agente etiológico da colite associada aos antibióticos. As infecções por Yersinia enterocolitica, Mycobacterium tuberculosis e Entamoeba histolytica constituem também causas de colites infecciosas, condicionando, com alguma frequência, quadros arrastados 221 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 2 COLITES INFECCIOSAS NO IDOSO de diarreia. As doenças de transmissão sexual, mais frequentes nos indivíduos homossexuais do sexo masculino, causam uma proctite aguda, caracterizada por dor anal e emissão de sangue e pús. Os estudos epidemiológicos sobre diarreia infecciosa aguda baseiam-se na definição clínica de diarreia independentemente da identificação do agente etiológico. Por definição, considera-se diarreia desde que haja 3 ou mais dejecções de fezes moles ou liquidas num período de 24 horas ou qualquer número de dejecções com sangue(9). Por outro lado, define-se como diarreia aguda se os sintomas duram menos de 14 dias. A maioria dos autores considera que a diarreia é crónica quando se prolonga por mais de 1 mês(10). A colite infecciosa aguda apresenta um quadro clínico diferente da enterite aguda, embora haja sobreposição de sintomas. Diarreia de pequeno volume (< 1 litro/dia), tenesmo e dor nos quadrantes inferiores do abdómen são sugestivos de colite. Diarreia profusa (> 1 litro/dia), ausência de tenesmo e dor mais centralizada no abdómen sugerem um quadro de enterite. A diarreia com sangue é também mais frequente nas infecções do cólon, aparecendo raramente nas infecções do intestino delgado. As infecções do cólon cursam com alterações inflamatórias que podem ser visualizadas por sigmoidoscopia ou colonoscopia. A presença de leucócitos nas fezes é também sugestiva de colite infecciosa, embora se tenha que fazer o diagnóstico diferencial com colite ulcerosa e doença de Crohn do cólon. O diagnóstico etiológico das colites infecciosas pode ser difícil, especialmente nas fases iniciais da doença. Exames culturais das fezes, pesquisa de parasitas e colonoscopia ou rectosigmoidoscopia com biópsia podem ajudar no diagnóstico diferencial com doença inflamatória do intestino e colite isquémica. 15000 casos/ano, tendo sido sugerido que a verdadeira incidência se aproximará dos 300000 casos/ano(11). A transmissão faz-se através do contacto fecal-oral ou de água contaminada e tem particular importância em instituições de acolhimento de idosos ou em asilos. As espécies de Shigella são altamente contagiosas e requerem apenas um pequeno inóculo. Etiologia e patogenia - As espécies de Shigella são bactérias aeróbias gram-negativas. O género Shigella é dividido em 4 grupos A, B, C e D com base em características bioquímicas e antigénicas. O grupo A contém a Shigella dysenteriae (10 tipos) e o grupo B contém a Shigella flexneri (6 tipos). O grupo C contém 15 serotipos de Shigella boydii e o grupo D contem a Shigella sonnei, que é responsável pela maioria dos casos de shigelose nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Clínica - A maioria dos doentes apresenta um quadro de diarreia aguda com muco e sangue, dor abdominal, tenesmo, febre e malestar geral. A infecção pode apresentar um padrão em 2 fases, a fase do intestino delgado com diarreia aquosa profusa e a fase cólica, por invasão do cólon 48 a 72 horas depois, com um quadro de disenteria com várias dejecções de pequena quantidade, com sangue e muco(12). A maioria dos casos resolvem dentro de 1 semana embora possam persistir sintomas durante 1 mês. Objectivamente, para além dos sinais de desidratação, pode haver hipersensibilidade nos quadrantes inferiores do abdómen e não há sinais de irritação peritoneal. Alguns casos complicam-se de bacteriémia com insuficiência renal, hemólise, trombocitopénia, hemorragia intestinal e choque. A idade superior a 65 anos foi identificada como um factor de risco para o desenvolvimento de bacteriémia, com uma mortalidade superior à descrita para a infecção intestinal não complicada(13). A síndroma de Reiter (artrite, uretrite e conjuntivite) apresenta predilecção por indivíduos INFECÇÃO POR SHIGELLA Incidência e epidemiologia - Nos Estados Unidos da América registam-se cerca de 222 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 3 Luísa Glória com o fenotipo HLA-B27 e é mais frequente no sexo masculino(14). A síndroma hemolítico-urémico, caracterizada por hemólise aguda, insuficiência renal, urémia e coagulação intravascular disseminada, está associado às infecções por Shigella e Escherichia coli e cursa com uma mortalidade superior a 50%(15). Etiologia e Patogenia - As espécies de Campylobacter são bacilos gram-negativos. As 2 espécies responsáveis pela maioria das infecções humanas são o Campylobacter jejuni e o Campylobacter coli(18). O Campylobacter invade e destrói as células epiteliais de maneira muito semelhante à Shigella; algumas estirpes produzem uma citotoxina e uma enterotoxina termolábil que estimula a secreção. Diagnóstico - Laboratorialmente pode haver evidência de depleção de volume com elevação do hematócrito e da ureia, embora seja rara a presença de leucocitose. O exame microscópico das fezes revela a presença de leucócitos e eritrócitos e a identificação da espécie faz-se através da cultura de fezes. Clínica - O espectro da doença vai desde portadores assintomáticos até colite severa com megacólon tóxico(17,19). Habitualmente surge um quadro de fadiga e mialgias, 1 a 6 dias após a exposição, seguido de anorexia, tenesmo e diarreia, que pode ser aquosa ou sanguinolenta. Habitualmente a sintomatologia regride em cerca de 1 semana, embora alguns doentes possam apresentar um quadro de doença recidivante semelhante à doença inflamatória do intestino(17). Ao exame objectivo pode haver dor abdominal com sinais de irritação peritoneal, pelo que o quadro se pode confundir com apendicite aguda. Cerca de 80% dos casos apresentam alterações inflamatórias na rectosigmoidoscopia. Como complicações da infecção por Campylobacter têm sido descritas a bacteriémia, o megacólon tóxico, a síndroma hemolítico-urémico e a síndroma de Reiter(20,21). Nos doentes com imunodeficiência adquirida pode haver infecção recidivante pela presença da bactéria na vesícula biliar(22). Tratamento e Prognóstico - A antibioterapia reduz a duração e a gravidade da sintomatologia bem como o tempo de excreção fecal da bactéria pelo que é particularmente recomendada em doentes idosos ou com patologia associada. A escolha do antibiótico deve basear-se no antibiograma; no entanto, devido ao curso agudo da doença habitualmente inicia-se a antibioterapia antes de estar disponível o antibiograma. Os antibióticos mais eficazes são a ciprofloxacina (500 mg, 12/12 horas), a tetraciclina (500 mg, 6/6 horas), a ampicilina (500 mg 6/6 horas) e o cotrimoxazol (trimetoprim 160 mg / sulfametoxazol 800 mg, 12/12 horas) durante 5 dias. Deve prestar-se particular atenção à hidratação oral ou endovenosa. Os antidiarreicos estão contra-indicados. INFECÇÃO POR CAMPYLOBACTER Diagnóstico - Aumento do hematócrito e da ureia acompanham a depleção de volume, sendo a leucocitose frequentemente observada nestas infecções. O exame coprológico revela leucócitos e eritrócitos. O diagnóstico é confirmado pelo exame cultural das fezes. Incidência e Epidemiologia - Nas últimas 2 décadas a infecção por Campylobacter tem surgido como uma das principais causas de disenteria bacteriana, representando cerca de 20% das culturas positivas em doentes com diarreia aguda de etiologia bacteriana(16). Transmite-se através da ingestão de carne de aves, leite, ovos e também de água contaminada(17). Tratamento e Prognóstico - O tratamento é fundamentalmente de suporte com adequada reposição do equilíbrio hidro-electrolítico. A eritromicina (500 mg, 6/6horas, durante 5 dias) é o antibiótico mais recomen223 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 4 COLITES INFECCIOSAS NO IDOSO dado, embora não haja evidência clínica que suporte que a antibioterapia altere o curso da doença(23). A ciprofloxacina (500 mg 12/12 horas) é uma alternativa razoável com a vantagem de ser eficaz noutras disenterias bacterianas, nomeadamente as causadas por Escherichia coli, Salmonella e Shigella(24) embora haja estirpes resistentes às quinolonas. Tem sido sugerido que os doentes mais debilitados ou imunocomprometidos possam beneficiar de antibioterapia a longo prazo(17, 25). dos controlados que provem o benefício da antibioterapia na infecção por EIEC. No entanto, a antibioterapia recomendada é semelhante à da infecção por Shigella(23). Assim, enquanto se aguardam as culturas e antibiograma, é recomendado iniciar tratamento empírico com trimetoprim/ sulfametoxazol (160 mg / 800 mg, 12/12 horas), ampicilina (500 mg, 6/6 horas) ou ciprofloxacina (500 mg, 12/12 horas). A doença tem habitualmente um curso auto-limitado e habitualmente não apresenta complicações severas. INFECÇÃO POR ESCHERICHIA COLI ESCHERICHIACOLI ENTEROHEMORRÁGICA (EHEC) Existem 5 estirpes conhecidas de Escherichia coli (E. coli) que causam infecções intestinais - E. coli enterotóxica, E. coli enteropatogénica, E. coli enteroaderente, E. coli enteroinvasiva e E. coli enterohemorrágica(26). Apenas a E. coli enteroinvasiva e a E. coli enterohemorrágica afectam predominantemente o cólon, pelo que serão descritas adiante. Diagnóstico - À semelhança de outras disenterias bacterianas existe leucócitos e eritrócitos nas fezes. A cultura desta estirpe requer a identificação serológica dos antigénios O e H. Etiologia e Patogenia - Em 1982 foi identificada a Escherichia coli O157:H7 (Escherichia coli enterohemorrágica) como o agente etiológico de surtos de colite hemorrágica(28). Desde a sua identificação tem sido reconhecido um número crescente de casos esporádicos mas também surtos importantes, especialmente em idosos residentes em lares, bem como a sua associação ao desenvolvimento da síndroma hemolítico-urémico. Esta bactéria pode encontrar-se em carne mal cozinhada, em produtos lácteos não pasteurizados ou em água contaminada por fezes mas também através do contacto pessoa a pessoa(29-32). O mecanismo através do qual a E. coli O157:H7 causa diarreia e síndroma hemolíco-urémico não está bem definido. A bactéria não invade o epitélio do cólon mas produz toxinas do tipo Shiga que são enterotóxicas e citotóxicas. Estas toxinas levam a lesão dos vasos intestinais, resultando num aumento da translocação de lipopolissacáridos a partir do lúmen intestinal para a circulação sistémica(33). A toxémia tem sido implicada como o evento patogénico desencadeante do espectro de doença associada à E. coli O157:H7 (diarreia, colite hemorrágica e síndrome hemolítico-urémico)(33). Tratamento e Prognóstico - Não há estu- Clínica - Existe um largo espectro de ma- ESCHERICHIA COLI ENTEROINVASIVA (EIEC) Etiologia e Patogenia - A E. coli enteroinvasiva constitui uma causa importante de diarreia dos viajantes e é transmitida pelos alimentos, tendo sido descrita por DuPont em 1971(27). Esta estirpe de E. coli invade os colonócitos e prolifera no seu interior. Clínica - A infecção aguda manifesta-se por febre, mal-estar geral, anorexia, cólicas abdominais, diarreia aquosa seguida de diarreia com sangue. 224 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 5 Luísa Glória nifestações clínicas que vão desde o doente assintomático, a presença de diarreia aquosa ou sanguinolenta até ao aparecimento da síndroma hemolítico-urémico, púrpura trombocitopénica e eventual morte. Caracteristicamente os doentes idosos apresentam diarreia aquosa que passa a sanguinolenta dentro de horas ou poucos dias do início do quadro. Náuseas e vómitos são observados em cerca de 50% dos doentes e a febre não é relevante nesta infecção. Nos idosos, cerca de 22% desenvolvem a síndroma hemolítico-urémico a que se associa uma mortalidade de 88%(30). Para além da idade avançada, outros factores como a presença de diarreia com sangue, febre, leucocitose e o uso de agentes inibidores da motilidade têm sido considerados como factores de risco para o desenvolvimento da síndroma hemolítico-urémico(33). agente etiológico da diarreia associada aos antibióticos. Incindência e Epidemiologia - A diarreia e a colite causadas pelo C. difficile são, com maior frequência, adquiridos em meio hospitalar. Cerca de 7-21% dos doentes internados são portadores de C. difficile e a diarreia manifesta-se em cerca de 1/3 dos casos. Os idosos estão provavelmente em maior risco de contrair a infecção nosocomial uma vez que estão mais frequentemente internados em Hospitais ou a residir em lares, comparativamente com os indivíduos mais novos. Karlstrom e cols. verificaram que em doentes internados com idade compreendida entre 60 a 98 anos a incidência era cerca de 10 vezes superior à verificada em indivíduos mais jovens(36). Por outro lado, a incidência de diarreia associada à infecção por C. difficile foi significativamente superior nas enfermarias geriátricas e naquelas destinadas a cuidados de reabilitação(36). Diagnóstico - O diagnóstico é feito pela cultura das fezes em meio apropriado (meio de MacConkey com sorbitol) pelo que é importante a suspeita clínica. O exame das fezes revela habitualmente a presença de leucócitos e eritrocitos. Etiologia e Patogenia - O C. difficile é um micro-organismo anaeróbio gram-negativo que coloniza o tubo digestivo se a microflora endógena bacteriana for alterada por antibióticos, citostáticos ou na presença de outro agente patogénico como a Salmonella ou a Shigella. O C. difficile produz 2 toxinas que causam diarreia por mecanismos diferentes: a toxina A (enterotoxina) induz a secreção intestinal e inflamação que leva à lesão da mucosa, em modelos animais; a toxina B (citotoxina) induz a disrupção do citoesqueleto da actina. Tratamento e Prognóstico - A terapêutica consiste fundamentalmente no reequilíbrio hidro-electrolítico. O curso clínico é habitualmente favorá vel, embora os doentes que desenvolveram as complicações atrás citadas possam apresentar insuficiência renal prolongada ou alterações neurológicas. INFECÇÃO POR CLOSTRIDIUM DIFFICILE Clínica - Para além de existir o estado de portador assintomático, a infecção por C. difficile associa-se a um espectro de doença, de gravidade decrescente, que vai desde a colite pseudo-membranosa, à colite relacionada com antibióticos sem pseudomembranas até à diarreia relacionada com antibióticos. Na colite pseudo-membranosa, pode haver um quadro clínico caracterizado por diarreia e cólicas abdominais que pode iniciar- O Clostridium difficile (C. difficile) foi descoberto em 1935(34), em recém-nascidos saudáveis, mas apenas em 1978 foi identificado como o agente implicado na produção de citotoxinas nas fezes dos doentes com colite pseudo-membranosa associada a antibióticos(35). Actualmente é implicado frequentemente nas infecções nosocomiais e constitui o 225 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 6 COLITES INFECCIOSAS NO IDOSO -se logo na 1ª semana após o início da antibioterapia ou até à 6ª semana. Náuseas, vómitos, tenesmo, desidratação e febre fazem parte do quadro embora a presença de diarreia com sangue não seja frequente. Megacólon tóxico, perfuração e peritonite fazem parte das manifestações da doença severa. O quadro clínico da colite relacionada com antibióticos sem pseudomembranas, é habitualmente menos severo, com o aparecimento mais insidioso de dor abdominal, diarreia aquosa, mal-estar geral e febre. A diarreia relacionada com antibióticos sem colite, caracteriza-se pela presença de diarreia aquosa que resolve com a suspensão dos antibióticos. A infecção por C. difficile pode complicar a evolução da doença inflamatória do intestino. Assim, é pertinente despistar a infecção por este microorganismo nos casos de agudização da doença inflamatória, especialmente se há história de exposição recente a antibióticos. oral, serão os antibióticos de escolha. Nas recidivas, parece haver algum benefício do uso de probióticos(37). Admite-se que a teicoplanina seja mais eficaz que a vancomicina na colite pseudo-membranosa(38). Ramaswamy e cols.(39) identificaram os seguintes factores de mau prognóstico nos idosos a que se associou um aumento da mortalidade: albumina sérica < 2,5 gr/dl na admissão, diminuição da albumina sérica > 1,1 gr/dl desde o início dos sintomas, o uso de 3 ou mais antibióticos e a persistência da toxina nas fezes após 7 dias de terapêutica. Apesar desta infecção ser mais frequente nos idosos não parece haver mortalidade superior nestes indivíduos quando comparados com doentes mais jovens(40). INFECÇÃO POR YERSINIA ENTEROCOLITICA Etiologia e Patogenia - A Yersinia enterocolitica é um microorganismo gram-negativo, que é classificada pelos antigénios somáticos (O) e flagelares (H). A infecção é transmitida pela água ou leite contaminado. O ileon terminal é mais frequentemente atingido sendo o envolvimento do cólon mais raro(41). A patogénese da doença relaciona-se com a adesão do microorganismo ao epitélio e subsequente invasão. Diagnóstico - O exame das fezes revela leucócitos em cerca de 50% dos casos de colite pseudo-membranosa. O diagnóstico faz-se habitualmente através da pesquisa das toxinas do C. difficile nas fezes. Não é necessário a realização de rectosigmoidoscopia para o diagnóstico de colite pseudo-membranosa. No entanto, a presença de pseudomembranas sugere o diagnóstico, o que pode ser muito importante enquanto se esperam os resultados das análises das fezes, especialmente nos doentes com doença severa. As pseudomembranas são placas de cor esbranquiçada, com 2-5 mm de diâmetro, que tendem a ser confluentes nos casos mais graves. A biópsia de uma pseudomembrana revela uma lesão acuminada com exsudado de fibrina, muco e células inflamatórias que fazem erupção a partir de uma micro-úlcera epitelial. Clínica - Diarreia e dor abdominal que duram de 1 a 3 semanas são as manifestações mais frequentes. Febre, diarreia com sangue, náuseas, vómitos, úlceras da mucosa oral, sintomas articulares e exantema cutâneo são manifestações menos frequentes. Diagnóstico - O diagnóstico faz-se habitualmente através da cultura das fezes. Endoscopicamente pode haver aspectos do cólon e ileon terminal que sugiram doença inflamatória do intestino mas a maioria dos casos apresentam integridade da mucosa(42,43). Tratamento - O tratamento é principalmente de suporte. Não existe evidência de que a antibioterapia altere a evolução clínica Tratamento e Prognóstico - A terapêutica nos idosos é baseada nos mesmos princípios que nos outros grupos etários. Deve prestar-se particular atenção à hidratação e a antibioterapia deve ser suspensa, se possível. Metronidazol, ou se necessário vancomicina 226 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 7 Luísa Glória da doença, embora seja de considerar em casos severos. INFECÇÕES DO RECTO E ÂNUS DE TRANSMISSÃO SEXUAL INFECÇÃO POR MYCOBACTERIUM TUBERCULOSIS O envolvimento ano-rectal por doenças de transmissão sexual não mostra particularidades relevantes no idoso. Aborda-se de forma sucinta as principais infecções de transmissão sexual, mais frequentes nos homossexuais do sexo masculino. Etiologia e Patogenia - O Mycobacterium tuberculosis (M. tuberculosis) é o agente etiológico da maioria dos casos de tuberculose intestinal, uma infecção pouco frequente nos países desenvolvidos. Co-existe tuberculose pulmonar em menos de metade dos casos(44, 45). O microorganismo atinge o intestino por via hematogénea (a partir de tuberculose pulmonar), através da deglutição de secreções brônquicas, pela ingestão de leite ou comida contaminada ou através da disseminação contígua de outros órgãos. As áreas mais frequentemente envolvidas são o ileon terminal e cego, colocando-se frequentemente o diagnóstico diferencial com doença de Crohn. Há invasão da sub-mucosa com reacção inflamatória e formação de granulomas, o que pode levar a fibrose e ulceração da mucosa intestinal. INFECÇÃO POR NEISSERIA GONORRHOEAE Nos indivíduos homossexuais do sexo masculino é frequente a infecção rectal, assintomática, por Neisseria gonorrhoeae(46). A infecção rectal aguda caracteriza-se por emissão de pús, rectorragias e dor anal. Abcessos peri-rectais, fistulas e sépsis têm sido descritos como complicações desta infecção. Endoscopicamente observa-se eritema e friabilidade da mucosa rectal. Tratamento e Prognóstico - O tratamento de eleição, com cura em mais de 95% dos casos, consiste na administração I.M. de penicilina G procaínica (4 800 000 U), probenecid oral (1.0 gr) ou espectinomicina I.M. (2,0 gr). As cefalosporinas de 3ª geração são eficazes nos casos de resistência à penicilina(47). Clínica - O quadro clínico mais frequente caracteriza-se por dor abdominal, sudação nocturna, anorexia, emagrecimento e diarreia, havendo massa palpável na fossa ilíaca direita em cerca de 25% dos casos(44, 45). INFECÇÃO POR CHLAMYDIA TRACHOMATIS Diagnóstico - Elevação da velocidade de sedimentação ocorre em cerca de 90% dos doentes. Os estudos radiológicos do cólon são pouco específicos. O diagnóstico é confirmado habitualmente pela histologia e por cultura. A infecção por Chlamydia trachomatis, o agente etiológico do granuloma venéreo, representa cerca de 20% dos casos de proctite em homossexuais do sexo masculino(46). Diarreia com sangue, emissão de muco e pús e, com menor frequência, dor peri-anal, tenesmo e fístulas, fazem parte da sintomatologia da infecção aguda. Ao exame físico é comum o aparecimento de adenomegálias inguinais dolorosas. Histologicamente, a biópsia rectal mostra processo inflamatório com formação de granulomas de células gigantes, abcessos de cripta e os microorganismos podem ser visualizados através da co- Tratamento e Prognóstico - O tratamento é médico, com terapêutica tripla recomendada durante 12 meses. O tratamento convencional é feito com isoniazida (300 mg/dia), rifampicina (600 mg/dia) e pirazinamida (2000 mg/dia). A intervenção cirúrgica está indicada nos casos de perfuração, obstrução ou hemorragia severa(45). 227 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 8 COLITES INFECCIOSAS NO IDOSO Entamoeba histolytica, Balantidium coli e Trypanosoma cruzi enquanto que os outros protozoários mencionados cursam com envolvimento preferencial do intestino delgado. loração de Giemsa(48). O diagnóstico definitivo realiza-se através da cultura das biópsias rectais. O tratamento mais adequado consiste na administração de tetraciclina (500 mg de 6/6horas) durante 3 semanas. INFECÇÃO POR ENTAMOEBA HISTOLYTICA INFECÇÃO POR HERPES SIMPLEX Etiologia e Patogenia - A Entamoeba histolytica (E. histolytica) é um protozoário que se transmite por via fecal-oral. A infecção inicia-se pela ingestão de quistos a partir de produtos contaminados com fezes. Os quistos são resistentes à acidez gástrica e atingem o intestino delgado e o cólon intactos. A divisão celular começa no cólon com a formação de trofozoitos. Numa minoria de pessoas infectadas há invasão do epitélio cólico com amebiase intestinal e extra-intestinal. Os primatas e os seres humanos são os únicos reservatórios conhecidos deste protozoário, que é mais frequente na América Central e do Sul, África e Índia. A doença é mais agressiva em indivíduos malnutridos, imunodeprimidos, nas grávidas e nos idosos. Os grupos populacionais em maior risco nos países desenvolvidos são os emigrantes de zonas endémicas, os homossexuais do sexo masculino, os doentes com síndrome de imunodeficiência adquirida e as pessoas residentes em lares ou asilos(50). Recentemente foi identificado o genoma da E. histolytica(51). A proctite causada pelo vírus herpes simplex manifesta-se por dor anal intensa, tenesmo, emissão de muco e pús(49). Endoscopicamente, durante a infecção aguda, pode haver úlceras e vesículas da mucosa rectal. O exame histológico das biópsias rectais revela alterações inflamatórias, micro-abcessos e ulcerações superficiais. O diagnóstico definitivo faz-se mediante isolamento do vírus nas biópsias rectais. O tratamento com aciclovir parece acelerar a recuperação clínica. SÍFILIS ANO-RECTAL Dor anal, tenesmo, emissão de muco e pús fazem parte do quadro clínico da proctite causada por Treponema pallidum(49). A sífilis primária pode manifestar-se por cancroides anais cujo exsudado mostra espiroquetas ao exame microscópico. A sífilis secundária caracteriza-se por lesões aplanadas semelhantes a verrugas, da região peri-anal e do pénis (condilomatose plana). O diagnóstico de sífilis é feito mediante testes serológicos. O tratamento da sífilis ano-rectal consiste na administração I. M. de dose única de penicilina benzatínica (2 400 000 U) ou tetraciclina (500 mg 6/6 horas) durante 2 semanas. Clínica - As manifestações clínicas(52) da infecção por E. histolytica estão representadas no quadro II. A maioria das pessoas infectadas não desenvolve colite mas apenas diarreia ligeira e dores abdominais. A colonização intestinal não invasiva caracteriza-se pela ausência de sangue nas fezes e de trofozoítos contendo eritrocitos, sendo a mucosa cólica endoscopicamente normal. A maioria destes indivíduos infectados permanecem assintomáticos e só uma pequena percentagem vem posteriormente a desenvolver doença invasiva. A infecção por E. histolytica é uma doença de transmissão sexual nos homossexuais do sexo masculino. A infecção amebiana está INFECÇÕES DO CÓLON CAUSADAS POR PROTOZOÁRIOS Os principais protozoários que infectam o tracto gastrintestinal são a Entamoeba histolytica, a Giardia lamblia, o Cryptosporidium, a Cyclospora, a Isospora belli, o Blastocystis hominis, o Microsporidia, o Balantidium coli e o Trypanosoma cruzi. O envolvimento do cólon é particularmente relevante na infecção por 228 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 9 Luísa Glória associada ao contacto oral-anal e à existência de múltiplos parceiros sexuais. Os doentes com proctocolite amebiana aguda apresentam habitualmente uma história de 1-3 semanas de diarreia com sangue. A mortalidade da colite amebiana aguda não complicada é inferior a 1%, embora possa ser superior nos doentes malnutridos(53,54). A amebiase intestinal crónica caracteriza-se por dor abdominal de longa evolução (por vezes superior a 5 anos), diarreia com muco e emagrecimento. Endoscopicamente observam-se úlceras da mucosa cólica. Designa-se como ameboma a presença de massa abdominal dolorosa que se origina no cego e cólon ascendente e que corresponde a tecido de granulação. No clister opaco o ameboma traduz-se por uma ou várias áreas "em caroço de maçã". O diagnóstico estabelece-se através da colonoscopia com biópsia. O megacólon tóxico e a peritonite são complicações graves da infecção amebiana que podem desenvolver-se de forma insidiosa. Zonas de estenose cólica, causadas pela infecção por E. histolytica são observadas em menos de 1% dos doentes com disenteria amebiana. Os abcessos amebianos aparecem em cerca de 10% dos doentes com amebiase invasiva, mas apenas uma minoria dos doentes apresenta diarreia ou microorganismos nas fezes na altura do diagnóstico. Manifestações raras de amebiase extraintestinal incluem o envolvimento cutâneo (zona peri-anal ou fistula entero-cutânea), abcessos cerebrais e ulceração amebiana do colo uterino ou pénis. e úlceras, por vezes de bordos elevados. As biópsias devem ser colhidas dos bordos das úlceras e através da coloração com PAS é possível identificar as amibas. O diagnóstico serológico é importante porque pode não ser possível fazer o diagnóstico de outra forma. A pesquisa de anticorpos através do método de hemaglutinação indirecta é positivo em cerca de 88% dos doentes com disenteria amebiana e em 99% dos doentes com abcessos hepáticos. No entanto, este teste mantém-se positivo durante anos após a infecção, pelo que não permite o diagnóstico diferencial entre infecção aguda e infecção passada. O clister opaco não permite o diagnóstico diferencial entre colite amebiana e colite ulcerosa e, por outro lado, interfere com a identificação da E. histolytica nas fezes. Tratamento e Prevenção - Os indivíduos assintomáticos devem ser tratados com o objectivo de eliminar o potencial risco de doença invasiva e também para prevenir a disseminação da infecção. Os agentes com pouca absorção sistémica, como o iodoquinol ou a paramomicina, maximizam a libertação da droga no lúmen cólico com reduzidos efeitos secundários. O metronidazol oral necessita de pelo menos 10 dias de tratamento para ser eficaz na eliminação da colonização do cólon. O metronidazol é a droga de eleição no tratamento da doença invasiva do cólon e dos abcessos. A infecção por E. histolytica representa uma causa importante de morbilidade e de mortalidade, sobretudo em determinadas áreas geográficas, pelo que a sua prevenção é de primordial importância. A prevenção requer a interrupção da transmissão fecaloral. As pessoas devem ser prevenidas dos riscos de infecção ao viajarem para áreas endémicas e também da possibilidade de transmissão por via sexual. Diagnóstico - O diagnóstico diferencial de diarreia com sangue, especialmente nos idosos, faz-se com colite isquémica, doença inflamatória do intestino e as causas infecciosas de colite atrás referidas. O diagnóstico de colite amebiana faz-se através da identificação de trofozoítos e quistos nas fezes. Relativamente aos exames endoscópicos, a colonoscopia é preferível em relação à rectosigmoidoscopia uma vez que pode haver doença isolada no cego e no cólon ascendente. A mucosa apresenta friabilidade INFECÇÃO POR BALANTIDIUM COLI A infecção por Balantidium coli é uma causa rara de diarreia. O Balantidium coli é um 229 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 10 COLITES INFECCIOSAS NO IDOSO protozoário ciliado que causa ulceração do recto e da sigmoideia, podendo condicionar um quadro de disenteria(52). nos doentes com SIDA, é mais provável que estas infecções produzam bacteriémia e infecções mais prolongadas ou recorrentes. Por outro lado, a necessidade frequente de antibióticos nestes doentes aumenta a predisposição pela infecção por Clostridium difficile(64). Relativamente às infecções oportunistas, são múltiplos os agentes infecciosos que atingem o cólon e abordaremos apenas os mais frequentes. A infecção por Cytomegalovirus (CMV) pode envolver qualquer órgão do tubo digestivo e é a causa mais frequente de diarreia viral nos doentes com SIDA(65). A colite focal ou difusa é uma complicação tardia e severa da doença. O CMV é o agente viral mais comum nos doentes com SIDA que se apresentam com hematoquézia. O aspecto endoscópico vai desde o eritema focal ou difuso da mucosa cólica até úlceras profundas. O CMV apresenta aspectos morfológicos característicos, nucleomegália, inclusões nucleares e grânulos eosinofílicos no citoplasma, que facilitam o seu reconhecimento nas biópsias(41). O vírus herpes simplex, já abordado anteriormente, pode causar diarreia, embora geralmente atinja o recto com queixas de tenesmo, emissão de muco e pús e dor anal intensa. A infecção por adenovirus cursa com quadro de enterocolite e é também uma das causas de diarreia nestes doentes. Admite-se que a infecção por adenovirus seja mais frequente do que se julga, uma vez que os aspectos morfológicos são difíceis de reconhecer e muitos patologistas podem não estar familiarizados com os critérios de diagnóstico(66). O Cryptosporidium parvum é um protozoário responsável por 5 a 10% dos casos de diarreia em indivíduos imunocompetentes e uma das causas mais frequentes de diarreia nos doentes com SIDA(67). Existem portadores assintomáticos e vários mamíferos actuam como hospedeiros deste protozoário, sendo a infecção humana por via fecaloral(67-68). Os quistos deste parasita são muito resistentes e os esporozoítos infectam o pólo apical dos enterócitos dando o aspecto microscópico de um parasita extra-celular aderente(68). Nos INFECÇÃO POR TRYPANOSOMA CRUZI A infecção por Trypanosoma cruzi, adquirido pela mordedura de insectos, é o agente etiológico da doença de Chagas. Estudos epidemiológicos revelam que a infecção é frequente na América Latina e na América Central, sendo responsável por milhares de mortes anualmente(55). A infecção aguda pode ser assintomática mas alguns doentes apresentam edema peri-orbitário unilateral, febre, hepatoesplenomegália ou miocardite. A doença crónica, que se manifesta alguns anos depois, caracteriza-se por manifestações cardíacas ou gastrintestinais. A perda de enervação visceral, sobretudo do esófago e do cólon, leva a um quadro de mega-esófago e megacólon, não havendo um quadro de colite propriamente dito. COLITES INFECCIOSAS E O VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA A diarreia infecciosa, aguda e crónica, constitui uma causa importante de morbilidade e mortalidade nos doentes infectados com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) e síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA)(56-58). No entanto, com a introdução da terapêutica anti-retroviral e de inibidores da protease, reduziu-se significativamente a incidência de infecções oportunistas do tracto gastrintestinal(59-63). Por outro lado, com o aumento da sobrevivência destes doentes é também maior a prevalência de doentes idosos com SIDA. Os indivíduos infectados pelo HIV apresentam com maior frequência, para além das infecções oportunistas, infecções por Salmonella, Shigella flexneri e Campylobacter. Estes últimos microorganismos representam as causas mais comuns de colites bacterianas, como foi descrito anteriormente. No entanto, 230 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 11 Luísa Glória indivíduos imunocompetentes a infecção é ligeira. Os doentes imuno-deficientes apresentam diarreia aquosa, dor abdominal, anorexia, náuseas e vómitos. O ileon e o jejuno são as localizações mais frequentemente atingidas embora o cólon também possa estar envolvido(69). O diagnóstico é feito por biópsia jejunal se a infecção é severa, mas se o protozoário está presente em pequena quantidade é mais fácil a sua identificação através do exame das fezes. A infecção por Mycobacterium avium Complex é a infecção bacteriana oportunista mais frequente nos doentes infectados por VIH e relaciona-se com o grau de imunosupressão(70). Diarreia, dor abdominal, anorexia, febre, emagrecimento e sudação nocturna fazem parte do quadro clínico. Endoscopicamente, no intestino delgado aparecem pequenas áreas esbranquiçadas e granitadas com 2-4mm, com halo de eritema e no cólon a mucosa apresenta eritema, friabilidade ou mesmo ulceração(71). O diagnóstico é habitualmente feito por biópsias do intestino delgado ou do cólon com o reconhecimento dos bacilos ácido-resistentes dentro dos macrófagos(71). É importante o exame cultural das fezes ou das biópsias para permitir a identificação da bactéria e a realização do teste de sensibilidade aos antibióticos. A infecção cólica por Mycobacterium tuberculosis, cursa com quadro clínico e endoscópico semelhante, embora seja uma causa rara de colite nos doentes com SIDA. Em relação aos exames endoscópicos necessários na avaliação dos doentes com SIDA e diarreia tem sido sugerido que estes se realizem após vários patamares na investigação etiológica(72,73). Deve obterse a história clínica detalhada dando particular ênfase ao uso de anti-retrovirais e à relação temporal entre o seu início e o início da diarreia, uma vez que a diarreia é um efeito secundário frequente destes fármacos. Se não existe qualquer relação temporal entre o aparecimento da diarreia e o início da terapêutica devem ser pedidas coproculturas e pesquisa de ovos, quistos e parasitas. Se não for encontrado qualquer microorganismo deve realizar-se então a colonoscopia total. A rectosigmoidoscopia flexível não permite identificar cerca de 40% dos casos de colite a citomegalovirus. A colonoscopia total com ileoscopia e colheita de biópsias do ileon terminal permite diagnosticar frequentemente a infecção por Microsporidium, o que poderá eliminar a necessidade de realizar endoscopia digestiva alta com colheita de biópsias jejunais. O tratamento das infecções cólicas, nos doentes infectados pelo VIH, causadas por microorganismos usuais ou oportunistas é semelhante nos vários grupos etários e não tem particularidades no doente idoso, só por si. QUADRO I - AGENTES ETIOLÓGICOS MAIS FRE QUENTES NAS COLITES INFECCIOSAS QUADRO II - MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA INFECÇÃO POR Entamoeba histolytica(52) Doença intestinal Colonização intestinal não invasiva Diarreia em doentes com SIDA Proctocolite amebiana aguda Amebiase intestinal crónica Ameboma Megacólon tóxico Peritonite amebiana secundária a perfuração Estenoses amebianas Doença extra-intestinal Abcesso hepático (raramente com extensão ao tórax, pericárdio e peritoneu) Abcesso cerebral Amebíase cutânea Infecção venérea Infecção por Shigella Infecção por Campylobacter Infecção por Escherichia Coli Infecção por Clostridium difficile Infecção por Yersinia enterocolitica Infecção por Mycobacterium tuberculosis Infecção por Entamoeba histolytica Infecções de transmissão sexual Proctite associada a Neisseria gonorrhoeae Proctite associada a Chlamydia trachomatis Proctite associada a Herpes simplex Infecção ano-rectal por Treponema pallidum 231 Cap12Colites.qxp 21-11-2005 16:18 Page 12 COLITES INFECCIOSAS NO IDOSO BIBLIOGRAFIA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 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