JOELSON LIMA VALE DIREITO E CRISTIANISMO (A contribuição

Transcrição

JOELSON LIMA VALE DIREITO E CRISTIANISMO (A contribuição
JOELSON LIMA VALE
DIREITO E CRISTIANISMO
(A contribuição do cristianismo ao direito, ou
“Notas de rodapé de uma história sonegada”)
Recife
2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
FACVLDADE DE DIREITO DO RECIFE
DIREITO E CRISTIANISMO
(A contribuição do cristianismo ao direito, ou
“Notas de rodapé de uma história sonegada”)
Monografia-final de curso apresentada à
banca examinadora da Faculdade de Direito do
Recife, Universidade Federal de Pernambuco,
como exigência parcial para obtenção do grau de
bacharel em Direito.
Orientando: Joelson Lima Vale
Orientador: Professor José Luiz Delgado
Recife
2009
JOELSON LIMA VALE
DIREITO E CRISTIANISMO
Trabalho monográfico apresentado como
requisito parcial para a obtenção do Grau de
Bacharel em Ciências Jurídicas.
NOTA: ______________
Data de aprovação __________________
Banca Examinadora:
_____________________________________
Professor José Luiz Delgado
_____________________________________
Professor Cláudio César
____________________________________
Professor Dr. Ivo Dantas
RESUMO
Trata o presente trabalho da contribuição do cristianismo para o
desenvolvimento do direito. O cristianismo constitui-se em importante marco para
a libertação do pensamento humano de culturas arcaicas, levando o Ocidente a
desenvolver as atuais ciências modernas, como nenhuma outra civilização.
Também, faz parte do intuito abrir um debate honesto, “sem mitos e lendas”,
sobre religião e ciência jurídica.
Palavra-chave: Direito - Cristianismo Filosofia - Religião e Ciência jurídica na
Antigüidade,
Idade
Média
e
Idade
Contemporânea.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.........................................................................6
2. O MUNDO ANTIGO .............................................................10
2.1 Família, matrimônio, adultério e castidade . 10
2.2 A Lei antiga ............................... 12
2.3 Liberdade individual ....................... 13
3. O ADVENTO DO CRISTIANISMO ....................................15
3.1
3.2
3.3
3.4
3.5
3.6
3.7
A velha religião ...........................
O cristianismo .............................
A Idade Média ..............................
Quando os fracos não têm vez ...............
Gladiadores, duelistas, mártires e suicidas
A Guerra Justa .............................
Democracia .................................
15
16
18
19
20
21
22
4. CONTRIBUIÇÕES JURÍDICAS..........................................26
4.1 DIREITO PROCESSUAL ........................................................26
4.1.1 Os canonistas e as provas racionais ...... 27
4.2 DIREITO PENAL ..................................................................28
4.2.1 A cela e o monge, a tortura e a expiação . 29
4.3 DIREITO CIVIL....................................................................31
4.3.1 Pessoa Jurídica .......................... 31
4.3.2 Posse e Propriedade, uso mas não abuso ... 31
4.3.3 Livre consentimento e Matrimônio ......... 33
4.4 DIREITO COMERCIAL .........................................................33
4.4.1 Usura .................................... 33
4.5 DIREITO CONSTITUCIONAL ................................................35
4.5.1 Direito Natural .......................... 36
4.5.2 Direitos Fundamentais .................... 37
4.6 DIREITO INTERNACIONAL ..................................................38
4.6.1 O sermão de Montesinos ................... 38
4.6.2 Vitória nas Índias ....................... 39
4.7 DIREITO DO TRABALHO .....................................................42
4.7.1 Escravismo ............................... 42
4.7.2 Servilismo ............................... 43
4.7.3 A encíclica Rerum Novarum ................ 44
4.8 DIREITO PREVIDENCIÁRIO .................................................45
4.8.1 Lei dos pobres ........................... 46
5. DIREITO X RELIGIÃO........................................................48
5.1 - A RELIGIÃO DE HABERMAS .............................................49
5.2 - O DIREITO DE RATZINGER ...............................................51
6. CONCLUSÃO.........................................................................55
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................56
1. Introdução
A
civilização
ocidental
possui
seus
fundamentos
civilizacionais,
basicamente, formados por 4 culturas: a grega, a romana, a hebraica e a cristã
(inseridos aqui a eslava, céltica e germânica). O presente trabalho tem o intuito de
destacar a contribuição específica do cristianismo ao desenvolvimento do direito.
O objetivo deste trabalho não é de discorrer pormenorizadamente sobre
nenhum instituto de direito aqui levantado, não há preocupação de verticalizar
nenhum tópico, e sim coletar as relações do tema direito e cristianismo. Evidente
que não se trata de nenhuma obra enciclopédia, apenas algumas notações que
evidenciam a contribuição cristã por diversas vezes sonegadas aos formandos em
direito. Desta forma, diria até que o presente trabalho poderia ser chamado
apropriadamente de “Notas de rodapé de uma história sonegada” a ser desdobrado
em futuro mestrado e doutorado que abarque a complexidade do assunto.
Importante ressaltar que a perspectiva desta monografia não se traduz em
apologia de um tempo passado como a de Jorge Manrique quando se lamentava
do mundo moderno ao afirmar “Cualquiera tiempo pasado fue mejor”. Procura-se
apenas esclarecer que o direito moderno é depositário de inúmeras transformações
técnicas e morais oriundos da religião cristã. A justificativa para o tema de
pesquisa baseia-se imperiosamente na importância do advento do cristianismo
como um marco libertário do pensamento humano perante concepções jurídicosociais arcaicas.
Não resta dúvida da separação entre o poder temporal e atemporal no Estado
laico, contudo levanta-se a pergunta: até que ponto a ausência de valores morais
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cristãos não levaram o séc. XX a ser o mais mortal1 de todos os tempos? Embora
não seja aqui o objetivo específico desta monografia, este dilema também será
exposto no penúltimo capítulo através da exposição do debate entre Habermas e
Ratzinger, que bem sintetiza o dilema direito versus religião.
Como se pode constatar, salienta-se a importância do discurso religioso no
mundo jurídico, ponto de vista divergente de alguns professores da Faculdade de
Direito do Recife, que durante a graduação defendem insistentemente que a Idade
Média é a Idade das Trevas2, sendo o cristianismo o arauto das maiores
barbaridades.
Ver professores secundaristas dizerem tamanha tolice é a coisa mais fácil de
encontrar pelo Brasil afora, mas ver professores universitários terem a mesma
atitude preconceituosa é preocupante. Esta distorção elaborada propositadamente
por renascentistas se propaga até os nossos dias como verdade absoluta sem
nenhuma evidência científica. Tal pantomima ainda ressoa num ambiente onde
não deveria encontrar nenhum eco... a universidade! Ao contrário do que se pode
imaginar, esta cria medieval era palco de debates rigorosos e racionais, de
liberdades e divergências contra a própria Igreja, lugar de pesquisa intelectual e
intercâmbio cultural que fomentaram as bases da revolução científica moderna.
1
Do séc. III a.C até o séc. XIX (22 séculos) o saldo acumulado pelas guerras foram de 133
milhões de mortos no mundo inteiro (dos quais apenas cerca de 2 milhões foram por motivos
religiosos); já o séc. XX, sozinho, dobra o número de mortos para 262 milhões (saldo este que
deve ser colocado na conta da Ciência). Informações mais detalhadas, consultar o site do cientista
político
R.J.
Rummel:
http://www.hawaii.edu/powerkills/MURDER.HTM
e
http://www.hawaii.edu/powerkills/20TH.HTM, acesso em 20 de abril de 2009.
2
“O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e agitadores do século
XVIII como expediente de ocasião para a propaganda anti-religiosa, destinada a minar as bases
morais e ideológicas da monarquia. Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia
popular, graças ao respaldo de toda sorte de organizações políticas e sociedades pseudo-iniciáticas,
o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica aceitável nos meios científicos e hoje subsiste
apenas em círculos de ativistas semiletrados do Terceiro Mundo, à margem das correntes vivas do
pensamento mundial. No Brasil ou na Zâmbia, "medieval" ainda pode ser usado como termo
pejorativo nas polêmicas da mídia, mas quem quer que se deixe impressionar por isso mostra que é
escravo de uma atmosfera mental provinciana, sem a mínima abertura para o horizonte maior da
cultura universal.” http://www.olavodecarvalho.org/textos/stotomas.htm Olavo de Carvalho em
Sto. Tomás, a vaca voadora e nós, acesso em 20 de abril de 2009.
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Na realidade, a FDR não é um caso isolado, a verdade é que o público
universitário3, mais cheio de preconceitos que informação, vem aumentando este
disparate com superstições de que Tecnologia, Filosofia, Cultura, Ciência e
Direito recrudesceram neste período, ou de que nada houve de novo. Certo é dizer
que, em nenhuma hipótese, se baseiam os fatos. É bom lembrar que não são
historiadores de profissão os que alardeiam isto, pois não há nenhum medievalista
sério a afirmar tamanha bobagem.
Ao contrário da ignorância, da repressão e da estagnação propagada nas
escolas e universidades4 sobre o cristianismo, houve de fato inovações em muitos
3
A respeito de tal empobrecimento cultural, há muito perscrutava os motivos que levaram a
este estado de coisas. A explicação de Carpeaux, só veio confirmar minhas expectativas: “A
propósito de tal fenômeno ‘Segundo o regime escolar vigente em todos os países, sem exceção, a
Universidade dedica-se ao ensino profissional superior, enquanto a ‘cultura geral’ fica reservada
ao ensino secundário, aos ginásios e aos liceus. Quer dizer: o ensino da cultura geral limita-se aos
jovens de dez a dezoito anos. Depois, a ‘cultura’ termina, e a medicina e a jurisprudência
começam, sem nenhuma ‘cultura geral’. Os conhecimentos do ensino secundário empalidecem,
naturalmente, com o tempo; mas ainda há coisa pior: todo esse ensino de ‘cultura geral’ é feito ao
alcance de jovens de dez a dezoito anos: a história, a filosofia, a literatura, amoldadas ad usum
Delphin, e forçosamente puerilizadas. E aí fica. Nunca mais o jovem médico ou engenheiro ouve
falar em história, filosofia, literatura, exceto pela imprensa ou pelo rádio, que se colocam ao
alcance do espírito artificialmente preservado no estado pueril com uma formação profissional
superposta. Conheço bem as numerosas exceções que felizmente existem. Mas, em geral, estas
massas graduadas se distinguem dos iletrados somente por uma autoridade profissional que as
torna menos úteis que perigosas. Ainda uma vez cito Ortega y Gasset: ‘La peculiarísima brutalidad
y la agresiva estupidez com que se comporta um hombre, cuando sabe mucho de uma cosa y
ignora de raiz todas las demás’ (O. G., p.1291). Eles, porém, os iletrados, têm sempre razão,
porque são muitos e ocupam um lugar de elite, esse ‘proletariado intelectual’, sem dinheiro ou com
ele, isso não importa. Julgam tudo, e tudo deles depende. Lêem os livros e decidem sobre os
sucessos de livraria, criticam os quadros e as exposições, aplaudem e vaiam no teatro e nos
concertos, dirigem as correntes das idéias políticas, e tudo isto com autoridade que o grau
acadêmico lhes confere. Em suma, desempenham o papel de elite. São os nouveax maîtres, os
señoritos arrogantes, graduados e violentos; e nós sofremos as conseqüências, amargamente,
cruelmente.” Otto Maria Carpeaux, Ensaios Reunidos, p. 217
4
Todas as duas instituições são invenções do cristianismo: a primeira do séc. VIII, quando
Carlos Magno e o monge Alcuíno fizeram ter, gratuitamente, em cada igreja uma escola ao lado
para salvar a alma da ignorância; já a segunda é do séc. XIII, valendo lembrar as palavras
beneditinas, revelando as origens monásticas da Universidade e da Europa (F. Struns, La vie
scolarire du Moyen-age, 1923) “Ex scholis ominis nostra salus, omnis felicitas, divitiae omnes ac
ordinis splendor constansque stabilitas (Das escolas vem toda a nossa salvação, toda felicidade,
todo o esplendor e a estabilidade da ordem). A Universidade é uma criação da Idade Média, e os
tempos modernos mal têm conhecido a liberdade ilimitada do ensino e a comunhão internacional
dos espíritos nacionais que distinguiram a Universidade Medieval. Para conhecer a universalidade
dos seus interesses espirituais, devem-se ler os recentes estudos sobre a escola de Chartre (Paré,
Brunet et Treblay, La renaissance du XIIme. Siècle, Inst. d’ Études Médiév., Otava, 1934). Não se
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campos do conhecimento humano, que destaco neste trabalho, especificamente o
campo do direito.
duvidará mais das palavras do P. Thonnard: ‘Dois princípios dominavam a organização da
Universidade medieval; a Liberdade e o Internacionalismo’ [...] Não se deve pôr em dúvida que a
liberdade de pensar- e, sobretudo, a liberdade de falar – era muito mais ampla na Idade Média do
que mais tarde. Na Idade Média não se tinha ainda que recear o espírito sectário. Isso possibilitou a
extraordinária licenciosidade do ‘Roman de la Rose’, com os seus ataques vigorosos ao clero e à
aristocracia, o que fez um Gourmont confessar: ‘É necessário rever a nossa concepção sobre a
Idade Média. Porque o Roman de La Rose foi o livro mais lido durante três séculos’; e, num pólo
oposto, lembro Santa Catarina de Siena, simples religiosa, cuja linguagem singular, violenta –
‘foetor infernalium vitiorum in Romana cúria’ (O fedor dos vícios infernais na cúria romana) –
obrigou um papa desconcertado a calar-se. [...] Falemos na vitória dessa liberdade medieval: Santo
Tomás de Aquino. Durante 800 anos, o dogma da Igreja baseara-se no agostinismo neoplatônico,
apoiado na autoridade do maior Pai da Igreja. Mas o monge Tomás ousa abandonar estes conceitos
sagrados para basear o dogma da autoridade no filósofo pagão Aristóteles, este mesmo Aristóteles
que todas as instâncias da autoridade eclesiástica tinham recentemente condenado. Na época dos
sistemas fechados, teológicos e filosóficos, do barroco, isto seria impossível. Imaginai, hoje, um
professor de seminário que abandonasse o tomismo para basear o dogma em Kant ou Hegel! E
sabereis o que perdíamos.” Ibid, pp. 207-208
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2. O Mundo Antigo
A religião e a moral antiga5 originavam-se essencialmente da vida doméstica
e do culto dos mortos. O homem antigo era um ser extremamente egoísta
espiritualmente, não orava em favor dos outros, não fazia caridade com os demais;
suplicava apenas para si e para os seus diante do altar doméstico. No tempo de
Plutarco, havia um provérbio grego indicando este isolamento espiritual quando se
dizia do egoísta “tu sacrificas no lar”, que significava: “Afasta-te dos teus
concidadãos, não tens amigos, os teus semelhantes não são para ti coisas algumas,
tu só vives para ti e para os teus”. Este provérbio representa os vestígios do tempo
em que todos os valores giravam em torno do Lar, o horizonte moral e afetivo do
homem não ultrapassava o estreito círculo familiar.
2.1 Família, matrimônio, adultério e castidade
Pode-se adivinhar quanto estas crenças se traduziam em respeito e em afeto
mútuo pela família. Os antigos davam às virtudes domésticas o nome de piedade:
a obediência do filho para com o pai e o amor consagrado à mãe chamavam de
piedade, pietas erga parentes; o afeto do pai pelo filho e a ternura da mãe eram
também piedade, pietas erga líberos. Tudo na família era divino. Sentimento do
dever, afeto natural, idéia religiosa, tudo se confundia, formando um todo e
expressado na mesma palavra, piedade.
5
“A religião destas primeiras épocas foi exclusivamente doméstica; a moral era-o também. A
religião não dizia ao homem, mostrando-lhe um outro homem: ali está o teu irmão. Dizia-lhe ali
tens um estranho; ele não pode participar dos atos religiosos do teu lar; não pode aproximar-se do
túmulo de tua família, pois conhece outros deuses sem serem os teus, e não pode unir-se a ti em
prece comum; os teus deuses repelem a sua adoração e encaram-no como seu inimigo; ele é
também teu inimigo.” Fustel de Coulanges, A cidade antiga, p. 96
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O amor à casa também era uma virtude profunda nas almas dos antigos. De
tão importante, ele a amava como amava a sua vida. Cícero, quando já não falava
mais o poeta, mas o homem público, declarou “Aqui está minha religião, aqui está
a minha raça, aqui estão os restos dos meus pais; não sei que encanto se encontra
em tudo isto que penetra o meu coração e os meus sentidos.” É preciso
transportar-se pelo tempo e vivenciar as antigas gerações para compreender
quanto estes sentimentos, já enfraquecidos à época de Cícero, ainda eram
poderosos.
Ao homem moderno, a casa representa somente guarita ou domicílio, não se
tem nenhum outro sentimento forte que não o da saudade, do pesar ou da posse.
Para o homem moderno, a religião não está no coração da casa, o Deus é
onipresente, está em todo lugar e não encerrado num lugar específico; já para os
antigos, era no interior da casa que tinham o culto, a oferenda, a prece, a conversa
mais íntima com os deuses. Lá fora, o homem já não tinha deus; o do vizinho era
um deus hostil que não lhe atendia as súplicas e nem lhe dava proteção... um
possível inimigo.
Na religião antiga, os deuses, de tão severos, não admitiam nenhum perdão.
Os antigos também não distinguiam juridicamente entre o assassínio involuntário
e o crime premeditado. Embora ignorassem em absoluto os deveres de caridade,
ao menos traçaram ao homem, com admirável nitidez, os seus deveres de família.
O celibato era considerado um crime aos olhos da religião que fazia da
continuidade da família o primeiro e o mais sagrado dos deveres6, e por isso, o
casamento era obrigatório.
A pureza da família era vista com extremo cuidado. Sendo a primeira regra
do culto a transmissão da religião ao filho, o adultério era visto como o crime
mais grave por comprometer a natureza do nascimento e a transmissão dos valores
e bens familiares.
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Assim, era norma religiosa o túmulo encerrar apenas os membros da
família, e, sendo um estranho o filho do adultério, não poderia sepultá-lo no
mesmo túmulo; caso contrário, se violariam todos os princípios da religião, o
culto ficava profanado, o lar tornava-se impuro, cada oferenda convertia-se em
ofensa aos deuses. Pelo adultério, rompem-se os laços sanguíneos dos homens
vivos com os mortos, extingue-se a felicidade divina entre os antepassados. Assim
falava o hindu: “O filho adulterino aniquila nesta vida e na outra as oferendas
dirigidas aos manes.” Para os antigos romanos, Manes eram as almas deificadas
de ancestrais já falecidos. (Dicionário Houaiss, versão eletrônica 2001)
2.2 A Lei antiga
As leis gregas e romanas reconheciam ao pai aquele poder ilimitado de que
a religião, primitivamente, o revestira. Os numerosos e diversos direitos que as
leis lhe conferiam se ordenavam em três categorias, conforme consideramos o pai
de família como sendo chefe religioso, proprietário e juiz7.
“Entre os gregos e romanos, como entre os hindus, desde o
princípio e espontaneamente, a lei surgiu como uma parte da religião.
Os antigos códigos das cidades reuniam um conjunto de ritos, de
prescrições litúrgicas, de orações e, ao mesmo tempo, de disposições
legislativas. As normas sobre direito de propriedade e direito de
6
Ibid, p. 98
7
“É de se notar que todos estes direitos eram atribuídos somente ao pai, com exclusão de todos
os outros membros da família. A mulher não tinha o direito de divorciar-se, pelo menos nas épocas
mais antigas. Mesmo quando viúva, a mulher não podia emancipar, nem adotar. Não podia ser
tutora, nem mesmo de seus filhos. Em caso de divórcio, os filhos ficavam com o pai, mesmo as
filhas. A mulher nunca podia ter os filhos em seu poder. Não lhe era pedido consentimento para o
casamento de sua filha.” Ibid, p. 91
Segundo Catão, o antigo, “O marido, é o juiz de sua mulher; seu poder não sofre limitação;
pode o que quer. Se a mulher cometeu qualquer falta, ele pune-a; se bebeu vinho, condena-a; se
teve relações com outro homem, mata-a.” Ibid, p. 98
Como só o pai de família estava submetido ao julgamento da cidade, a mulher e o filho não
podiam ter outro juiz a não ser o seu pai. Era, no interior da família, o seu único magistrado. Ibid,
pp. 91-94
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sucessão achavam-se dispersas entre as regras relativa aos sacrifícios,
à sepultura e ao culto dos antepassados.”8
Em Roma, não se podia ser um bom pontífice sem conhecer bem o direito,
não se podia ser um bom juiz sem ter boa ciência da religião. Como existiam
poucos atos na vida humana sem laços com a religião, quase tudo se submetia às
decisões dos sacerdotes, que também eram os únicos juízes para um número
infinito de processos.9
A lei ordenava a todos as mínimas coisas: dizia como o cidadão devia se
vestir, como a mulher devia se pentear; impedia os homens de fazer a barba, de
beber vinho, obrigava-os a fazer ginástica, pois seus corpos eram armas
pertencentes ao Estado.
Entre os legisladores hindus, como na Grécia ou em Roma, se algum pai
deixasse herança à filha, estes bens deixariam de pertencer à família do pai para
pertencer à família do esposo, desta forma não existia a herança feminina, por
dividir o que se deveria somar, os bens familiares. Assim, fica fácil entender a
restrição à herança feminina do código de Manu “Depois da morte do pai, que os
irmãos partilhem o patrimônio entre si”; não havia nenhum direito às filhas de
propriedade, contudo recomendava-se que dotassem os irmãos às irmãs dos meios
necessários para a sobrevivência, sinalizando que as filhas apesar de ausentes da
sucessão paterna, deveriam contar com a generosidade fraternal.
2.3 Liberdade individual
A cidade era fundada sobre a base da religião e construída como um templo,
daí sua força e império absoluto sobre seus membros. Numa sociedade
8
Ibid, p. 202
9
Ibid, p. 203
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demasiadamente organizada na coletividade, a liberdade individual não podia
existir. O cidadão não tinha posse de si mesmo, subjugava-se sem reserva à
cidade. A Religião gerou o Estado, este preservava sua origem e sua força na
Religião, desta forma, apoiavam-se mutuamente e confundiam-se num só corpo;
estes dois poderes associados formavam um poder sobre-humano, ao qual a alma
e o corpo dos cidadãos submetiam-se.
Segundo Fustel de Coulanges, é um erro crasso, entre tantos outros,
acreditar que na antiguidade o homem gozava de liberdade. O homem não tinha
sequer a mais leve idéia do que isso significasse. Ele não se julgava sujeito de
direitos em detrimento da cidade e dos seus deuses. O governo mudava de forma,
mas a natureza do Estado permanecia com a mesma onipotência. O sistema de
governo tomou vários nomes, monarquia, aristocracia ou ainda democracia, mas
em nenhuma destas mudanças o homem ganhou a sua liberdade individual. Nesta
época, ter direitos políticos ou liberdade significava votar e nomear magistrados,
ser arconte, mas o homem, no fundo, não foi mais que escravo do Estado. Os
antigos só davam importância aos direitos da sociedade, devido ao caráter sagrado
e religioso de que a sociedade originariamente se formou, mas ao homem, a
liberdade individual não era possível em detrimento da coletividade.
O ser humano quase não tinha valor perante o Estado santificado. O Estado,
de tão poderoso, não tinha somente o direito de justiça sobre seus cidadãos, podia
punir tanto os culpados quanto os inocentes; no caso dos ostracismos, bastava
estar em jogo o interesse da pátria para que um cidadão fosse banido como
precaução de qualquer suspeita de perturbação futura10.
10
Ibid, p. 250
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3. O Advento do cristianismo
3.1 A velha religião
A velha religião, onde cada deus protegia uma família ou cidade, criou uma
moral onde o direito não era baseado em princípios de equidade natural, mas sim
numa miríade de costumes e ritos conformes os cultos divinos. “Religião, direito,
governo confundiam-se e não eram mais que a mesma coisa vista sob três
aspectos diversos.”11
A vida pública ou privada era um reflexo direto dos cultos domésticos. O
Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um
sacerdote, a lei uma fórmula santa em que o patriotismo era pio e o exílio uma
excomunhão; a liberdade individual era desconhecida e o homem estava sujeito ao
Estado por corpo, alma e patrimônio; o ódio contra o estrangeiro era obrigatório;
as noções de direito e de dever, de justiça e de afeto paravam nos limites da
cidade, como numa verdadeira redoma que bloqueava qualquer possibilidade de
fundar sociedades mais amplas12.
Estes eram as características do primeiro período da história de Roma e
Grécia, mas nos cinco séculos que precederam o cristianismo, uma pequena
separação entre Estado e Religião ocorreu pelo enfraquecimento da última.
Diversos fatores como a pressão das classes oprimidas e o trabalho dos filósofos
fizeram esforços por libertar o homem da velha religião, dando também a
oportunidade de se desprender a política, a moral e o direito.
11
Ibid, p. 442
12
Ibid, pp. 442-443
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3.2 O cristianismo
Mas será que a antiguidade se libertando da religião antiga não correria o
risco de cair nos mesmos erros de uma nova religião? A resposta é não, conforme
Fustel, pois inúmeras diferenças morais introduzidas na sociedade pelo
cristianismo deram uma nova cosmologia ao homem. A religião deixou de ser
apenas um culto exterior para residir no pensamento do homem, deixou de ser
materialista para ser espiritual, transformando a natureza e a forma de adoração,
não era mais necessário dar a Deus o alimento e a bebida; a oração deixou para
sempre de ser fórmula de magia, mas ficou sendo para o futuro ato de fé e de
humilde súplica. O temor aos deuses foi substituído pelo amor a Deus. O
cristianismo deixou de ser a religião doméstica de determinada família, a religião
nacional de qualquer cidade ou de qualquer raça; não pertencia mais a nenhuma
casta ou corporação; Jesus Cristo ensina aos seus discípulos, chamando a si toda a
humanidade: “Ide e instruí todos os povos.” (Mt 28, 19)
A nova religião trazia em tudo uma nova concepção de mundo, porque, por
toda a parte, na primeira idade da humanidade, se havia concebido a divindade
como pertencendo especialmente a uma coletividade. Os judeus acreditavam no
Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter
capitolino. O direito de praticar um culto fora discriminatório; o estrangeiro
estivera expulso dos templos; o não-judeu não tinha podido entrar no templo dos
judeus; o lacedemônio não tinha usufruído do direito de invocar a Palas ateniense.
Contudo, é justo ressalvar que nos cinco séculos que precederam o
cristianismo já todo o homem que pensava se insurgia contra estas regras
mesquinhas. No que respeita ao governo, o cristianismo transformou a essência do
Estado, precisamente porque não se ocupou dele. Em vez disso, Jesus Cristo
ensina que o seu reino não é deste mundo; separa a religião do governo. A religião
deixa de imiscuir-se demais nas coisas terrenas, senão no mínimo. Jesus Cristo
aconselha: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21).
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Foi a primeira vez que tão nitidamente se distinguiu Deus do Estado; em César, a
sua própria pessoa era sagrada e divina, porque um dos aspectos da política dos
imperadores era precisamente o caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reispontífices e aos sacerdotes-fundadores. Cristo quebra essa aliança que o
paganismo e o império procuravam reatar, e proclama que a religião já não é o
Estado, e obedecer a César já não é o mesmo que obedecer a Deus.
Os sentimentos e os costumes transformam-se, o dever por excelência
deixou de consistir em dar o seu tempo, as suas forças e a sua vida ao Estado. A
política e a guerra já não representavam tudo para o homem; no patriotismo já não
estão compreendidas todas as virtudes, porque a alma já não tem pátria. O
cristianismo distingue as virtudes privadas das virtudes públicas, humilhando
estas, exalta aquelas; coloca Deus, a família, a pessoa humana, acima da pátria, e
o próximo, acima do concidadão.
O direito acompanha as mudanças. Em todas as nações antigas, o direito
submetera-se à religião e dela recebera todas as suas normas. Entre os persas e
hindus, entre os judeus, gregos, romanos e gauleses, o direito estava in totem nos
livros sagrados ou na tradição religiosa. Por isso cada religião criara o direito a
seu modo. O cristianismo é a primeira religião que não pretende regular o direito.
Ocupou-se dos deveres dos homens, não das suas relações de interesses. Não o
encontramos regulando nem o direito de propriedade, nem a ordem de sucessão,
nem as obrigações, nem o processo. O cristianismo coloca-se fora do direito,
como acima de todas as coisas puramente terrenas. O direito tornou-se, pois,
independente; pôde procurar as suas regras na natureza, na consciência humana,
na poderosa concepção do justo que existe em nós. Desenvolveu-se em liberdade
seguindo os progressos da moral, curvou-se aos interesses e às necessidades
sociais de cada geração. À medida que o cristianismo conquistava a sociedade, os
códigos romanos admitiam novas leis, já não por subterfúgios, mas abertamente e
sem hesitações.
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O pai perdeu a autoridade absoluta que outrora lhe havia dado o seu
sacerdócio, só conservando a autoridade pela própria natureza conferida para a
educação do filho. A mulher, que o antigo culto colocara em posição de
inferioridade perante o marido, tornou-se moralmente igual. O direito de
propriedade transformou-se na sua essência; desapareceram os limites sagrados
dos campos; a propriedade deixou de derivar da religião para provir do trabalho.
3.3 A Idade Média
Há uma idéia, um tanto equivocada quanto divulgada, de que a Idade Média
era uma cultura monolítica inteiramente controlada pela Igreja Católica. Ninguém
imagina ter sido a realidade bem diferente, este período não foi nada contínuo,
nada uniforme, nada simplório! O período medieval foi bastante intrincado e
multifacetado culturalmente como que uma colcha de retalhos formada por
tecidos das mais diversas origens, tipos, fios e cores; um imenso mosaico formado
pelos estilhaços de um mundo em colapso e pelo choque violento de diversas
culturas semitribais, cada uma rejeitando a outra, e apesar dos pesares,
entrelaçando línguas, costumes, valores, leis, ciências, artes, mitos e sangue.
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Para dar uma idéia dos diferentes processos de formação do Estado13 e da
descontinuidade econômica deste caldeirão multicultural, na mesma região da
península itálica, a ascensão das comunas urbanas aconteceu mais cedo e foi mais
importante do que em outros lugares; os domínios senhoriais predominavam
apenas na Lombardia e no Norte, mas no Sul concentravam mais as propriedades
rurais; no centro montanhoso do país, as pequenas propriedades camponesas eram
mais numerosas. O próprio sistema senhorial era mais fraco na Itália que ao norte
dos Alpes e as cidades italianas jamais perderam as características da vida urbana
do antigo império romano e se transformaram em importantes centros de tráfico
comercial no mediterrâneo14.
3.4 Quando os fracos não têm vez
Do ponto de vista da caridade na Antigüidade, o que funcionava era o “cada
um por si” e o meu deus contra os outros. Seja pobre ou doente, o fraco era
freqüentemente tratado com desprezo; era comum antes do cristianismo que um
homem incapaz fosse abandonado à morte ou que crianças débeis fossem
afogadas. Nas sociedades patriarcais, deixar meninos viverem por causa do seu
valor e matar meninas por causa do seu desvalor eram a praxe.
13
“A gradual introdução do cristianismo na Escandinávia, conversão que só foi completada
pelo final do século XII, presente por toda parte, acelerou a transição de comunidades semitribais
tradicionais a sistemas de Estado monárquicos: as religiões pagãs nórdicas que haviam sido a
ideologia nativa de uma velha ordem de clãs naturalmente caíram.” Perry Anderson, Passagens da
Antiguidade ao feudalismo, p. 173
Houve ainda um segundo catalisador externo na formação das estruturas de Estado no Oriente.
Este foi a Igreja Cristã. Assim como a transição das comunidades tribais a formas de governo
territorial era invariavelmente seguida pela conversão religiosa na época das colonizações
germânicas no Ocidente, no Oriente ocorreu o mesmo – fundação de Estados geridos por príncipes
coincidia com a adoção do cristianismo. Como já tivemos oportunidade de verificar, o abandono
do paganismo tribal normalmente era uma precondição social para o estabelecimento de
autoridade e hierarquia políticas centralizadas. O trabalho profícuo de emissários da Igreja vinda
de fora – católica ou ortodoxa – era uma componente essencial ao processo de formação do Estado
na Europa Oriental. Ibid, p. 223
14
Ibid, p. 161
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Foi o cristianismo que trouxe à nossa civilização a idéia da sacralidade da
vida humana, o valor único que cada pessoa tem, em virtude, da sua alma imortal
e não da sua raça, sexo, credo ou status na sociedade.
3.5 Gladiadores, duelistas, mártires e suicidas
O entretenimento pelo jogo da morte15 também foi abolido pelos
ensinamentos de Cristo. Segundo Lecky “Houve poucas reformas tão importantes
na história moral da humanidade como a supressão dos espetáculos de
gladiadores, um feito que deve ser atribuído quase exclusivamente à Igreja
Católica”.
O duelo também foi abolido pelo cristianismo, o Papa Leão XIII condenouo enfaticamente ao dizer que no fundo só tratava do desejo ridículo por vingança e
o desprezo profundo por sua e pela vida do próximo. O duelista, no fundo, não
passava de um suicida em potencial.
Entre os estóicos era freqüente cometer suicídio, consideravam prova de
desapego do mundo determinar o momento da sua própria morte. Santo Agostinho
condenou explicitamente a antigüidade pagã favorável ao suicídio:
“Grandeza de espírito não é o termo correto para designar
alguém que se mata por lhe ter faltado coragem para enfrentar o
sofrimento ou as injustiças dos outros. Na verdade, revela-se fraqueza
em uma mente que não pode suportar a opressão física ou a opinião
estúpida da plebe. Nós atribuímos muito justamente grandeza de
espírito a quem tem a fortaleza de enfrentar uma vida de miséria em
15
O derramamento de sangue dos gladiadores e a consumação dos homens pelas feras como
espetáculos circenses sempre foram julgados imorais pelos cristãos, mas os estóicos, defensores de
uma moralidade desapegada da dor e do prazer, eram indiferentes para com a matança e nada
fizeram para acabar com o espetáculo do horror. O Imperador Marco Aurélio, profundamente
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vez de fugir dela, e de desprezar os juízos dos homens [...] antepondolhes a pura luz de uma boa consciência.” 16
A respeito do aparente paradoxo entre o mártir e o suicida, Chesterton
aponta em seu famoso livro Ortodoxia que “O Cristianismo fez mais: estabeleceulhe limites nas terríveis sepulturas do suicida e do mártir, apontando a distância
que separa aquele que morre por amor à vida daquele que morre por amor à
morte.”
3.6 A Guerra Justa
A Guerra Justa foi outro tema em que a moral foi muito discutida. Ao
defender que o Estado17 estava acima da moral, Maquiavel foi de encontro à
posição da Igreja. Para ele, a política eximia os governantes de qualquer juízo
moral, e as estratégias políticas não passavam de um jogo de xadrez, no qual a
eliminação de um peão, não passava de uma peça de marfim a menos no tabuleiro,
mesmo que esta peça significasse a morte de cinqüenta mil homens.18
“Foi precisamente para combater esse tipo de pensamento que
começou por desenvolver-se a tradição da Guerra Justa e,
particularmente, as contribuições dos escolásticos do século XVI. De
acordo com a Igreja Católica, ninguém – nem mesmo o Estado – está
isento das exigências da moral. Nos séculos subseqüentes, a teoria da
guerra justa demonstrou-se uma ferramenta indispensável de reflexão
moral; e os filósofos que, nos dias de hoje, trabalham nessa linha,
estóico e detentor do poder político, também nada fez.
16
Santo Agostinho, A cidade de Deus, 1, 22
17
“Devemos muito mais à Igreja Católica do que a maior parte das pessoas – incluídos os
Católicos – costuma imaginar. Porque, para sermos exatos, foi ela quem construiu a civilização
ocidental.” Thomas Woods Jr, Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental, p. 5
18
Roland H. Bainton, Chistian Attitudes Toward War and Peace, Abingdon Press, New York,
1960, pp. 123-26. Apud, ibid, p. 198
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partem desses princípios tradicionais para fazer face aos desafios
específicos do século XX.”19
3.7 Democracia20
No livro “Cristianismo e democracia”, Jacques Maritain designa a
democracia como sendo, antes de tudo, uma filosofia geral da vida humana e da
vida política, um certo estado de espírito, que não exclui qualquer dos “regimes”
ou das “formas de governo” que a tradição clássica reconheceu como regimes
legítimos. Desde a Revolução Francesa e a explosão do idealismo cristão
laicizado nela, o lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” transmutou-se em
justiça social e vivificou o Ocidente.
Já o Autoritarismo e Totalitarismo, no Ocidente, só podiam ser explicados,
segundo o autor, por causa dos sofrimentos e das desordens ocasionados pela
Revolução, através de certos indivíduos, ainda presos à barbárie, como que almas
de escravos ansiosos pelo aniquilamento desse próprio sentido da Liberdade.21
19
Ibid, p. 199
20
“A democracia em sentido estrito só deu certo na Inglaterra e nos EUA, porque os povos
anglo-saxônicos foram preparados para ela, primeiro, pelo cristianismo (os ingleses cristianizaramse bem antes do resto da Europa); segundo, pela economia de mercado, que na Inglaterra já era
muito ativa desde a Idade Média; terceiro, por uma longa tradição de respeito aos direitos e
privilégios formados pelo tempo e pelo hábito - uma condição que, na Inglaterra, faz a ponte entre
a sociedade feudal e o mundo moderno por meio da continuidade da monarquia. A democracia é
inconcebível sem a noção da inviolabilidade sagrada da consciência individual, portanto sem a
herança grega, romana e judaico-cristã, e sem a tradição de iniciativa pessoal. Essas condições
existem em poucos lugares do mundo, portanto a idéia democrática, quando transplantada para
fora do mundo anglo-saxônico e enxertada em condições locais diferentes, resulta em formações
sociais bem diferentes do modelo original. No Brasil, por exemplo, ela encontra três condições
adversas: a tradição de governo central forte, a cristianização insuficiente das massas, a
desorientação e fragilidade dos indivíduos num território enorme e numa sociedade complexa onde
vieram parar (muitos à força, como os escravos) sem ter um projeto de vida claro.” Olavo de
Carvalho em Entrevista de Olavo de Carvalho à Revista do Clube Militar,
http://www.olavodecarvalho.org/textos/cmilitar.htm, acesso em 04 de junho de 2009.
21
Jacques Maritain, Cristianismo e Democracia, p. 31
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Em 1942, em plena 2ª Guerra Mundial, ano de escritura do livro, Maritain
discursando sobre o Totalitarismo e a importância dos povos cristãos na guerra,
disse:
“O sangue de tantos homens não está sendo derramado para
impor a todos os povos a forma de governo democrático. Está sendo
derramado para que prevaleça em todos essa consciência da vocação
da nossa espécie para realizar, em sua vida temporal, a lei de amor
fraterno e a dignidade espiritual da pessoa humana, que é a alma da
democracia. [...] no que se refere às relações da política e da religião,
está claro que o cristianismo e a fé cristã, assim como não podem ser
enfeudados a qualquer espécie de forma política, também não o podem
ser, quer à democracia como forma de governo, quer à democracia
como filosofia da vida humana e política. Isso mesmo resulta da
distinção fundamental, introduzida pelo Cristo, entre as coisas que
pertencem a César e as coisas que pertencem a Deus, distinção que se
desenvolve através de toda espécie de acidentes ao longo de nossa
história, e que liberta a religião de toda servidão temporal, despojando
o Estado de qualquer pretensão sagrada., em outras palavras,
laicizando o Estado.” 22
O que a consciência profana adquiriu sob inspiração evangélica, caso não se
volte para a barbárie novamente, é a condenação da dominação perversa dos
governantes; o sentimento profundo de que a injustiça é o berço da desordem; que
a inviolabilidade das consciências é a primazia dos valores interiores sobre os
valores exteriores; que a idéia de uma casta, de uma classe, ou de uma raça
superior e dominadora, deve ceder o lugar à idéia de uma elite do espírito e do
trabalho que provenha do povo sem dele se isolar, corromper valores ou
simplesmente devorar vidas; que mesmo a pessoa fazendo parte do Estado,
transcende o Estado pelo mistério inviolável de sua liberdade e por sua vocação a
certos bens absolutos. A razão de ser do Estado é auxiliar na conquista desses
22
Ibid, pp. 44-45
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bens e de uma vida verdadeiramente humana, só a compaixão pelo homem, na
pessoa dos fracos e sofredores é que se faz Fraternidade; certeza de que a obra
política por excelência é tornar a vida comum mais fraternal, trabalhando, ao
mesmo tempo, para fazer das leis, das instituições e dos costumes um lar para
irmãos.
O cristianismo23 anunciou o reino de Deus, ensinou a unidade do gênero
humano, a igualdade de natureza de todos os homens, filhos do mesmo Deus e
resgatados pelo mesmo Cristo24, a inalienável dignidade de cada alma criada à
imagem de Deus, a exata vigilância da justiça e da providência de Deus sobre os
grandes e sobre os pequenos, a lei do amor fraternal que a todos se estende,
mesmo aos que são nossos inimigos, porque todos os homens qualquer que seja o
grupo social, a raça, a nação, a classe a que pertençam, são membros da família de
Deus e irmãos adotivos de Cristo. O cristianismo proclamou que onde está a
Caridade ali Deus está, e que depende de nós transformar qualquer homem em
nosso próximo, amando-o como a nós mesmo e tendo compaixão dele, isto é,
morrendo de certo modo a nós mesmos por ele.25
Razões mais antigas que a Revolução Francesa são dadas pelo escritor
judeu Franz Oppenheimer quando afirmou que as democracias nasceram no
mundo judaico-cristão do Ocidente, que a história da democracia é um
pressuposto fundamental do nosso mundo pluralista e que se deve também a essa
23
“Não coube a crentes inteiramente fiéis ao dogma católico, coube a alguns racionalistas
proclamarem na França os direitos do homem e do cidadão. Coube a alguns puritanos darem na
América o último golpe à escravidão. Coube a comunistas ateus abolirem na Rússia o absolutismo
do lucro privado. Essa última operação teria sido menos viciada pelo poder do erro e teria custado
menos catástrofes se tivesse sido feita por cristão. O esforço para libertar o trabalho e o homem da
dominação do dinheiro procede, entretanto, das correntes abertas sobre o mundo pela pregação do
Evangelho, tanto quanto o esforço para abolir a servidão e o esforço para fazer reconhecer os
direitos da pessoa humana.” Ibid, p. 46
24
“A pregação da verdade não levou o Cristo a fazer muitas conquistas, levou-o à Cruz. Pela
caridade é que Ele conquistou as almas e arrastou-as atrás de si. Não existe outros meios para
conquistá-las a nós.” Ibid, p. 98
25
Ibid, p. 54
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mesma história os critérios com base nos quais as nossas democracias puderam
voltar a ser verificadas, criticadas e corrigidas até hoje.26
26
“Não posso senão concordar com o que Oppenheimer disse. Hoje sabemos que o modelo
democrático se desenvolveu a partir das constituições monacais que anteciparam esses modelos
com os capítulos e a votação. Assim, a idéia de um direito igual para todos pode encontrar a sua
forma política. É claro que antes já tinha havido a democracia grega, da qual vieram impulsos
decisivos, mas que teve de voltar a ser transmitida depois da queda dos deuses. É um fato
conhecido que as duas democracias originárias, a americana e a inglesa, se baseiam num consenso
de valores que vem da fé cristã e que só puderam e podem funcionar quando existe um consenso
básico no que diz respeito aos valores. De outro modo, elas se dissolveriam e se desfariam. Podese, pois, fazer um balanço histórico positivo do cristianismo, o qual levou a uma nova relação do
Homem consigo mesmo e a um novo molde de ser humanitário. A democracia grega antiga
baseava-se na garantia sagrada dos deuses. A democracia cristã da época moderna baseia-se no
caráter sagrado dos valores garantidos pela fé que são subtraídos à arbitrariedade das maiorias.
Precisamente o disse há pouco sobre o balanço do século XX mostra também que, quando se retira
o cristianismo, voltam a irromper, de repente, forças arcaicas do mal que estiveram banidas por
causa dele. Pode-se dizer, de um ponto de vista puramente histórico, que não há democracia sem
um fundamento religioso, ‘sagrado’. [...] é precisamente a história das grandes ditaduras atéias do
nosso século, o nacional-socialismo e o comunismo, que mostra que o declínio da Igreja, o
enfraquecimento e a ausência da fé como força marcante precipitam realmente o mundo no
abismo. O paganismo pré-cristão ainda tinha certa inocência, e a ligação com os deuses também
representava valores originários que limitavam o mal; se agora desaparecessem as forças que se
opõem ao mal, o desmoronamento seria de fato extraordinário. Podemos dizer, com base na
certeza empírica, que se o poder moral representado pela fé cristã fosse arrancado de repente da
humanidade, ela vacilaria como um navio que tivesse batido num iceberg, e então a sua
sobrevivência estaria em grande perigo.” Joseph Ratzinger, O sal da terra, pp. 180-181
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4. Contribuições Jurídicas
A contribuição do cristianismo ao direito não se deu apenas no campo dos
costumes, da moral e do Estado, ele também se fez notar em institutos próprios
desenvolvidos por estudos jurídicos basilares. Passa-se a elencá-la, nesta parte do
trabalho, uma amostra das contribuições jurídicas por um critério de importância
lógico-cronológica.
4.1 Direito Processual
Antes de ser compilado o Direito Canônico27 nos séculos XII e XIII, não
existia na Europa nenhum sistema jurídico assemelhado com o moderno. Desde a
queda de Roma e sua invasão pelos povos bárbaros, muitas das leis deste período
baseavam-se apenas nos costumes e nos laços sanguíneos. Tão pouco o direito na
Igreja era sistematizado, encontrava-se disperso e regionalizado em concílios
ecumênicos, livros penitenciais, livros dos papas, dos bispos, dos Padres da Igreja
e da Bíblia.
27
Do latin canón,ònis 'lei, regra, medida, regras de gramática, conjunto de livros sagrados
reconhecidos pela Igreja como de inspiração divina'. Do grego. kanôn,ónos 'haste de junco, régua
de construção, peça de maquinaria, chave de abóbada, fronteira ou limite, tipo, modelo, princípio,
épocas ou períodos principais da história, regra ou modelo ou padrão gramatical de declinação,
conjugação, flexão, metrificação' (Dicionário Houaiss, versão eletrônica 2001)
O Código Canônico está em pleno funcionamento, o atual foi promulgado em 1983 pelo papa
João Paulo II, abrogando o código anterior de 1917. O direito canônico influenciou toda a Europa
e países colonizados, oferecendo-lhes valores éticos e morais de origem cristã. Anteriormente, o
direito canônico fora influenciado pelo romano naquilo que não contrariava o cristianismo.
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4.1.1 Os canonistas e as provas racionais
Os canonistas, a partir do uso da razão e da noção de uma lei natural,
ensinaram como elaborar um sistema coerente partindo de fontes tão distintas
quanto os costumes e os laços sanguíneos; textos tão vastos quanto a Bíblia, a
Patrística e os textos conciliares da Igreja; e autores tão diversos quanto Platão,
Aristóteles, Agostinho e Justiniano28.
Foi um trabalho monumental o do monge Graciano quando reuniu o que
parecia impossível “Uma concordância de cânones discordantes” no seu Tratado
sobre Direito Canônico (Decretum Gratiani). De acordo com Berman, foi “o
primeiro tratado legal abrangente e sistemático na história do Ocidente e, talvez,
na história da humanidade – se por [abrangente] se entende a tentativa de abarcar
virtualmente todo o direito de um sistema de governo, e [sistemático] o esforço
por apresentar esse direito como um corpo único, cujas partes se relacionam entre
si de modo a formarem um todo”.29
Importantes desenvolvimentos foram além da forma unificada e codificada
do direito canônico, chegaram ao conteúdo do direito, atingindo o matrimônio, a
propriedade, a herança e as provas racionais em juízo.
Quanto às provas em juízo, os canonistas e os juristas católicos das
universidades medievais viram-se diante de uma situação desastrosa: até fins do
século XI, os povos da Europa continuavam a viver em um regime bárbaro, em
que “a lei que prevalecia era a lei da vendeta do sangue, dos julgamentos
decididos por meio de combates, pelos ordálias do fogo e da água, pelo
depoimento de testemunhas arroladas pelo acusado em sua defesa.”
28
No século XII, os romanistas elaboraram um ensino baseado no direito romano,
principalmente da clássica codificação de Justiniano, Corpus iuris civilis. Esse "direito romano",
porém, não era o mesmo de Roma, pois os romanistas interpretavam a partir da cultura jurídica em
que viviam.
29
Thomas Woods Jr, Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental, p. 33
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A culpa e a inocência eram cruelmente determinadas em provas de água e
fogo; os procedimentos racionais canônicos buscaram afastar do julgo do homem
as crenças supersticiosas das ordálias.
Com o desenrolar do tempo, o devido processo legal foi consagrado na
Magna Carta de 1215, primeira referência indelével ao instituto que no original
em Latin era per legale judicium parium suorum, vel per legem terrae (ninguém
pode ser processado "senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou
em harmonia com a lei do País”). A expressão due process of Law só foi usada na
5ª Emenda à Constituição Americana de 1787, estabelecendo que "nenhuma
pessoa pode ser privada da vida, liberdade e propriedade, sem o devido processo
legal"; com a 14ª Emenda à Constituição Americana veio a consolidação do
instituto.
4.2 Direito Penal
Distanciando-se do paganismo, o cristianismo trouxe à civilização uma
distinção fundamental entre o crime e o criminoso; enquanto este deveria ser
perdoado 70 x 7, aquele seria imperdoável. O homem poderia ser considerado
“condenável”, mas jamais “condenado” em absoluto30. No mundo pagão, os atos
humanos não eram julgados morais ou imorais sem também olhar quem os
cometera. Desta forma, para um escravo simpático ladrão de vinhos, a zombaria
seria sua pena, mas para um escravo antipático que traísse seu senhor, certamente
sua vida perderia. O cristianismo ensinou que deveríamos ser mais intolerante ao
simpático ladrão de vinhos, e mais tolerante ao antipático traidor. O crime, uma
vez cometido, nunca mais deixaria de existir, por isso era imperdoável, enquanto o
criminoso é passível de transformação e recuperação, e por isso, perdoável.
30
Exceto o pecado/blasfêmia contra o Espírito Santo que não será perdoado neste mundo, nem
na eternidade (Mateus 12:31-32 e Marcos 3:30).
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4.2.1 A cela e o monge31, a tortura e a expiação
A cela monacal forneceu um modelo arquitetônico e psicológico de clausura
que ainda permanece nas penitenciárias atuais: “Inegavelmente, o direito
Canônico contribuiu decisivamente para com o surgimento da prisão moderna,
especialmente no que se refere às primeiras idéias sobre a reforma do delinqüente.
Precisamente do vocábulo “penitência”, de estreita vinculação com o Direito
Canônico, surgiram os termos penitenciário e penitenciária.”32
Segundo o Papa Alexandre, através do Decretum Gratiani no séc. XII: “a
confissão não deve ser obtida pela tortura” e apesar de ainda existir crueldade, as
prisões eclesiásticas eram mais humanas que as prisões seculares.
O Papa Clemente XI (1649-1721) foi um importante reformador e
reabilitador da penas privativas de liberdade, suas idéias tiveram êxito na “Casa de
Correção de São Miguel” (1703), onde o ensino religioso, o isolamento, o
silêncio, o trabalho, além de uma férrea disciplina, eram os pilares para a correção
do apenado.
Obra importante é o livro “Reflexões sobre as prisões monásticas” de Juan
Mabillon (monge beneditino francês) que antecipou uma série de considerações
apresentadas por iluministas, destacando a proporcionalidade da pena de acordo
com o delito cometido e a reintegração do apenado à comunidade. Segundo a
31
Os mosteiros são um capítulo a parte dentro da Idade Média. Guardaram em suas bibliotecas
o tesouro da Antiguidade e difundiram conhecimento, trabalho e oração. São Bento com sua regra
e seu lema “Orat et Labora” transformou profundamente os povos bárbaros. Nos mosteiros, o
trabalho foi resgatado e considerado virtuoso enquanto o ócio assumiu seu vício, afinal Jesus era
um carpinteiro e seus apóstolos, pescadores. São Benedito delcarou que "agora são verdadeiros
monges, pois vivem do trabalho das suas mãos, como os nossos pais e os apóstolos". Valoriza-se o
trabalho como um corretivo, antídoto ao ócio, que é inimigo da alma.
32
Cezar Bitencourt, Tratado de Direito Penal, Vol 1, p. 465
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concepção do monge, em suas células prisões, além do isolamento, deveria ter um
jardim para que o preso pudesse cuidar da terra e ajudá-lo em sua recuperação.
Através da “Doutrina da Expiação”, Santo Anselmo fomentou que a ofensa
à ordem moral do universo e contra a justiça requeria uma punição adequada à
natureza e à extensão da violação. Os delitos deveriam ser proporcionais aos
males, e o direito de propriedade, quando violado, deveria ser restabelecido por
quem o violou.33
Apesar de toda humanização e dulcificação das penas, havia o paradoxo na
Idade Média, seja pela mentalidade bárbara ou pelo enfraquecimento da fé em
determinadas lugares e épocas, que a tortura era aceita como “norma” dos
costumes. Durante a Inquisição, era mais que comum soltar o réu arrependido sem
nenhum castigo que não fosse o da penitência da confissão, porém quando não o
fazia, a confissão era retirada pelo suplício do corpo torturado e posteriormente
entregue aos braços seculares para fogueira. O aparente paradoxo se explica no
fato em que para o homem medieval, era mais importante a salvação da alma que
o sofrimento do corpo. Claro que, sob este prisma, muitos confessaram o que não
fizeram, pois sob a tortura “toda carne se trai.”34
33
Tendo violado a justiça em si (em abstrato), a pessoa devia submeter-se a alguma punição, a
fim de que a justiça fosse restabelecida. Em grande parte, o crime tornou-se ‘despersonalizado’, na
medida em que as ações criminosas começaram a ser encaradas menos como ofensas a pessoas
concretas e mais como violações ao princípio abstrato da justiça. “Essa linha de pensamento,
embora nos seja familiar, contém o perigo potencial de que o direito penal, na sua ânsia de reparar
a justiça em abstrato por meio de uma punição retributiva, degenere até o ponto de olhar apenas
para o castigo, abandonando qualquer propósito de restituição, de um tipo ou de outro. É por isso
que, hoje em dia, nos encontramos com a perversa situação de que um criminoso violento, em vez
de ao menos tentar indenizar de algum modo a sua vítima ou os seus herdeiros, é ele próprio
sustentado pelos impostos pagos pela vítima e seus familiares. Portanto, a insistência em que o
criminoso ofendeu a Justiça em si mesma e, por isso, merece punição, deve estar completamente
subordinada ao senso anterior de que o criminoso ofendeu a sua vítima, e que deve indenizar
qualquer pessoa que tenha prejudicado.” Thomas Woods Jr, Como a Igreja Católica construiu a
civilização Ocidental. p. 185
34
“Sabemos que os sacrifícios humanos marcam de forma horrível uma parte da história das
religiões; sabemos que a religião política se transformou num instrumento de destruição e de
opressão; conhecemos patologias na própria religião cristã. A queima das bruxas e a retomada de
um costume germânico que tinha sido superado com dificuldade com a evangelização na Alta
Idade Média e que, depois, na Baixa Idade Média, voltou a surgir com o enfraquecimento da fé.”
Joseph Ratzinger, O sal da terra, p. 20
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4.3 Direito Civil
4.3.1 Pessoa Jurídica
O Direito Romano chegou a fazer distinção entre a corporação (universitas)
e os seus membros (singuli), mas não conheceu a pessoa jurídica como a
conhecemos. Os canonistas foram à frente e criaram o conceito de Instituição
Eclesiástica para divergir da Corporação Eclesiástica dos glosadores. Aqueles
queriam criar um conceito que separasse dos membros religiosos os direitos
eclesiásticos pertencentes a Deus. “Aparece aqui, pela primeira vez, a distinção
entre o conceito jurídico de pessoas e conceito real das pessoas como ser
humano.”35 No Concílio de Lyon (1245) foi adotada esta pessoa ficta sem alma e
por conseqüência sem possibilidade de delinqüir e de ser excomungada.
As pessoas jurídicas começaram a ter importância somente para a
criminalidade no mundo moderno, mais como figura de retórica que de outro
fundamento. O princípio Societas delinquere non potest só faz refletir a
inadmissibilidade perante a punibilidade penal das pessoas jurídicas, aplicandolhes somente a punibilidade administrativa ou civil por causa dos impedimentos
doutrinais a respeito de: a) a política criminal; b) a incapacidade de ação; c) a
incapacidade de culpabilidade; d) o princípio da personalidade da pena; e) as
espécies ou natureza das penas aplicáveis às pessoas jurídicas.
4.3.2 Posse e Propriedade, uso mas não abuso
Mesmo em sociedades não civilizadas como a pastoral e a nômade,
concebia-se a idéia de propriedade decorrente de uma “lei natural” segundo os
frutos do trabalho: a presa de caça ou de guerra, os braceletes e as pontas de lança,
as peles do urso caçado, os produtos do cultivo da terra.
35
Cezar Bitencourt, Tratado de Direito Penal, vol I, p. 15
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Na sociedade patriarcal, o pai possui em nome da família a propriedade que
a todos aproveita e que ele não tem o direito de vender nem de dar. A idéia de
propriedade vinha de cada religião, de cada lar e de cada família com seus
antepassados exclusivos. Os antigos viam uma misteriosa relação de propriedade
entre os deuses, o solo e a família36.
O homem sempre considerou em seus direitos o de se apoderar de certos
bens, daí a frase célebre dos romanos sobre a propriedade ius utendi, fruendi et
abutendi re sua, exclusis aliis, quatenus iuris ratio patitur (Digestae, 7, 8, 2, par.),
ou seja, a propriedade é o direito de reivindicar e de conservar como seu aquilo
que foi legitimamente adquirido, de usar, gozar e dispor dessa coisa à vontade,
com exclusão de outrem, nos limites da lei37.
Latente à idéia de propriedade dos antigos, havia também a noção do uso
sem limites38 que gerava o abuso da destruição e da exploração. Apesar dos
romanos já distinguirem a noção de posse do direito de propriedade (conceito
construído na jurisprudência pretoriana datada do início do século II a.C.), foi na
sociedade feudal que a propriedade e a posse vão ser, definitivamente, separadas e
relativizadas. Com isto, a noção de uso e de abuso irá surgir com mais precisão.
Assim, o escravo antigo passa a ser servo do “senhor” e não mais ter
“dono”. Esta concepção de posse e propriedade permeava todos estamentos da
sociedade medieval, enquanto o servo tinha a posse da terra quem detinha a
propriedade era o senhor feudal; enquanto o senhor feudal tinha a posse da terra
quem detinha a propriedade era o Barão; enquanto o Barão tinha a posse da terra
quem detinha a propriedade era o Visconde... e depois o Visconde, e depois o
Conde, e depois o Marquês, e depois o Duque, e depois o Arquiduque (quanto
36
Fustel de Coulanges, A cidade antiga, pp. 62-75
37
Máriton Silva Lima, http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9342, acesso em 25 de abril
de 2009
38
Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, vol. III, p. 3
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mais elevado o posto na hierarquia, mais próximo do monarca a da sucessão do
trono), e depois o Rei, e depois o Imperador... Ninguém possuía a propriedade em
absoluto, todos eram posseiros, administradores contingentes e efêmeros.
Ninguém era dono de nada; podiam usar, mas não abusar, pois, em última
instância, deveriam prestar contas de tudo e de todos a Deus, o verdadeiro
proprietário e criador de todas as coisas.
4.3.3 Livre consentimento e Matrimônio
Através do matrimônio, o livre consentimento passou a ser necessário em
todos os atos da vida civil. Qualquer coação ou erro de identidade ou condição
importante da outra pessoa era motivo para desfazimento como se nunca tivesse
existido. Segundo Harold J. Berman, surgiram aqui elementos básicos do
moderno direito contratual: conceito de livre manifestação da vontade e de
ausência de erro, coação e fraude39. Por meio destes princípios pôs-se fim aos
casamentos de crianças, tão comuns às culturas bárbaras.
4.4 Direito Comercial
4.4.1 Usura
Apesar de Aristóteles considerar que o comércio de dinheiro não deveria
criar riquezas “não é natural, pois é feita à custa dos outros”; em Roma, o
empréstimo poderia ser gratuito (mutuum significa a um só tempo empréstimo e
reciprocidade) ou com juros estipulados (stipulatio usurarum) a 1% ao mês, eram
a censtésimae usurae, os “cêntímos de usura”, mas qualquer aumento no
percentual (12% a.a) era considerado ilícito (iniquissimo foenore).
39
Fustel de Coulanges, A cidade antiga, p. 182
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Muitos consideram que a Idade Média tinha uma economia fechada, a
maioria pensava que o resultado das trocas financeiras era nulo40. Dentro desta
concepção, a usura era vista como uma forma de tirar vantagem do próximo, o
reembolso do principal é humano, mas os juros eram bestiais. São Boaventura
resume Aristóteles e a Bíblia na frase “O dinheiro não frutifica por si mesmo, seu
fruto vem de outra parte.”
Verdade que o “Emprestai, sem nada esperar em troca” era um apelo
insistente da Igreja41 à santidade dos homens; poderia ser considerado
pecaminoso, contudo nunca criminalizado.
40
“Insistindo ainda neste ponto de liberdade, gostaria de falar da economia medieval. Ela nos
foi descrita como um sistema fechado, estabilizado. Mas desde Fritz Roerig (Le Commerce
international du Moyen-Age, 1993) sabemos que era uma economia internacional e livre. Sua
liberdade só foi destruída pelo mercantilismo barroco. O mercantilismo estabeleceu barreiras
alfandegárias que também só foram destruídas pelo liberalismo. Aí o liberalismo e a Idade Média
se juntam contra um inimigo comum: o barroco.[...] Ortega y Gasset assinala o caráter
antidemocrático, mas profundamente liberal, da sociedade medieval: os senhores feudais colocam
os seus direitos pessoais acima da lei do Estado, o que torna muito limitados os poderes do Estado
em relação aos direitos individuais. Ortega Y Gasset chega mesmo a falar em “Direitos do
homem” da Idade Média. Sem dúvida, seria excessivo falar num “liberalismo medieval”; mas os
privilégios feudais e as instituições do liberalismo inglês tiveram as suas origens comuns no direito
germânico. Eis por que Guido de Ruggiero assinala, logo na primeira página da sua Storia di
liberalismo nell´Europa (1925, pp.1-7), a origem feudal da “Liberdade” e sua prioridade
cronológica em relação ao Estado absolutista do barroco. Não é por acaso que o liberalismo dos
“Direitos do homem” se revolta contra o absolutismo barroco, verdadeira antítese do Estado
medieval. Ainda uma vez o liberalismo e a Idade Média se encontram, tendo o barroco por inimigo
comum. [...] A conclusão já está tirada. O que se odeia ou admira na Idade Média, os sistemas
filosóficos rigorosamente fechados, o Estado paternal e forte, a Igreja como base espiritual da
Ordem estabelecida, não são, porém, atributos da Idade Média, e, sim do barroco. Como era e é
admissível este erro? Fez-se da Idade Média um pretexto para polêmicas apaixonadas, em vez de
defini-la sinceramente.” Otto Maria Carpeaux, Ensaios Reunidos, pp. 209-210
41
“Examinando a cristandade ocidental no século XVI, somos levados a concluir que havia
uma quase-igualdade de chances, com um evidente avanço no Sul. Nada poderia induzir a prever,
na época, o impulso das nações que aderirão a uma das Reformas protestantes, nem o declínio
relativo, ou até absoluto, das nações que permanecerão ‘romanas’. Ora, a partir do final do século
XVI, a cristandade ocidental torna-se o teatro de uma distorção econômica. A Europa nórdica
substituiu a Europa latina como foco de inovação e de modernidade. Contudo, é redutivo demais,
para não dizer simplista demais, afirmar que a Reforma protestante seria como uma galinha dos
ovos de ouro, e que deteria em si mesma o segredo do desenvolvimento econômico, social,
político e cultural. A divisão entre uma Europa ‘romana’, que entra em declínio econômico, e uma
Europa das Reformas protestantes que toma impulso, reflete menos uma determinação do
econômico pelo religioso — ou do religioso pelo econômico — do que a expressão de uma
‘afinidade eletiva’ entre um comportamento socio-econômico espontâneo e uma escolha religiosa.
Pelo menos é essa a minha conclusão.” Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança, p. 24
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São Tomás de Aquino consagra uma questão inteira da Suma Teológica ao
“pecado da usura”, separa definitivamente do empréstimo o investimento.
Enquanto no primeiro, o risco da perda do dinheiro era totalmente do prestatário e
não do prestamista, no segundo, o investidor assumia o risco do capital investido;
era justo que participasse nos lucros como de seu próprio bem fosse.
A intenção de Tomás era dar provas racionais sem apelar à Bíblia ou
qualquer argumento de autoridade para verificação da usura. Se por um lado ele
desenvolveu o pensamento da época ao diferenciar o investimento do empréstimo,
ele não conseguiu ver adequadamente o valor do usufruto financeiro no decorrer
do tempo. Se era permitido cobrar rendimento de uma terra, cuja forma natural era
um campo improdutivo, por que não cobrar rendimento do dinheiro? Se nenhum
risco havia ao proprietário perder a terra, nem ao dono, perder sua casa alugada,
por que considerar pecado a usura decorrente da perda de tempo, de oportunidades
e dos lucros cessantes do prestamista?42
4.5 Direito Constitucional
A Magna Carta foi redigida em latim, seu nome completo era Magna Carta
Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione
libertatum ecclesiae et regni angliae, também conhecida como Grande Carta das
liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das
liberdades da Igreja e do Rei inglês. O documento de 1215 limitou o poder
absoluto dos monarcas, resultado dos desentendimentos entre o Rei João-semTerra, o Papa e os barões ingleses acerca das prerrogativas do soberano. Segundo
os termos da Magna Carta, João deveria reconhecer que a vontade do rei estaria
42
“Ora, qual é a diferença moral entre extrair 5% de dado capital e, com o mesmo capital,
construir uma casa que será alugada pelos mesmos 5%?” Alain Peyrefitte, A sociedade de
confiança, pp. 95-102
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sujeita à lei e respeitar determinados procedimentos legais, a exemplo do
conhecido art. 39:
"Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado
de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de
maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou
mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal
dos seus pares, ou pela lei da terra."
Ao tornar a Igreja livre da ingerência da monarquia, o documento43 garantiu
certas liberdades individuais que, na prática, concedeu determinadas liberdades
civis à sociedade.
4.5.1 Direito Natural
Antes, pensava-se que as origens dos direitos naturais remontavam ao
século XVII, mas com o trabalho de Brian Tierney44, importante medievalista,
verificou-se que as raízes estavam fincadas no século XII pelo Decretum de
Graciano e por seus estudiosos conhecidos como decretistas:
“O importante para nós é que, ao explicarem os vários sentidos
possíveis do termo ius naturale, os juristas descobriram um novo
significado, que não estava realmente presente nos textos antigos.
Lendo-os com a mente formada na sua nova cultura, mais personalista
e baseada em direitos, esses juristas chegaram a uma nova definição.
Aqui e acolá, esses textos definiam por vezes o direito natural em um
43
A Carta Magna repetiu em grande parte a Carta de Liberdades de Henrique I, outorgada em
1100, que submetia o rei a certos limites no tratamento de oficiais da Igreja e nobres.
44
Brian Tierney, The Idea of Natural Rights: Studies on Natural rights, Natural Law, and
Church Law; veja-se também Annabel S. Brett, Liberty, Right and Nature: Individual Rights in
Later Scholastic Thought, Cambridge University press, Cambridge, 1997. Apud, Thomas Woods
Jr, Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental, p. 186
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sentido subjetivo, como poder, força, capacidade ou faculdade inerente
à pessoa humana [...]. Assim que se captou esse sentido, foi fácil
chegar às normas de conduta prescritas pela lei natural ou às lícitas
reivindicações e poderes inerentes aos indivíduos que hoje chamamos
direitos naturais.”
Segundo Tierney45, os canonistas consideravam que para além do conceito
de direito natural deveriam existir realmente os direitos naturais. Assim,
pensavam que qualquer individuo tinha o direito de se defender das acusações
num tribunal, e que não era uma concessão do governo ao cidadão esta defesa,
possibilitando aqui o surgimento do direito do contraditório e do devido processo
legal. Também neste período de efervescência jurídica, 1150 a 1300, os direitos de
propriedade, de legítima defesa, do matrimônio e do processo civil foram
definidos.
4.5.2 Direitos Fundamentais
Pouco a pouco, a idéia que o individuo tinha direitos subjetivos ou naturais
ganhava força pelo simples fato de serem humanos.
De acordo com o historiador Kenneth Pennington, “foram definidos os
direitos de propriedade, de legítima defesa, do matrimônio e de processo civil com
base na lei natural e não na lei positiva, assim como os direitos dos não cristãos. E
ao situarem esses e outros direitos justamente dentro da estrutura da lei natural, os
juristas puderam sustentar – e assim o fizeram efetivamente – que nenhum
príncipe humano podia suprimi-los ou restringi-los. O príncipe não tinha
jurisdição sobre os direitos baseados na lei natural; conseqüentemente, esses
direitos eram inalienáveis.”
45
Apud, Ibid, p. 188
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4.6 Direito Internacional
4.6.1 O sermão de Montesinos
Em 1511, na Ilha de Hispanhola (atual Haiti e República Dominicana), num
sermão sobre o texto “Eu sou a voz que clama no deserto”, o frade dominicano
Antônio Montesinos denunciou a política espanhola para as Índias:
“Subi a este púlpito para desvendar os vossos pecados contra as
Índias; sou uma voz de Cristo clamando no deserto desta ilha e, por
isso, convém que me escuteis, não com pouca atenção, mas com todo
o vosso coração e sentidos; porque será a voz mais estranha que jamais
tereis ouvido, a mais áspera, a mais terrível e a mais audaz que jamais
esperásseis ouvir [...]. Esta voz diz que estais em pecado mortal, que
viveis e morreis nele, pela crueldade e tirania com que tratais este
povo inocente. Dizei-me com que direito ou justiça mantendes estes
índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade
empreendestes uma detestável guerra contra este povo que habitava
quieta e pacificamente na sua própria terra? Por que os oprimis e
fazeis trabalhar até à exaustão, e não lhe dais o suficiente para comer
nem cuidais deles nas suas enfermidades? Pelo excesso de trabalho
que lhes impondes, adoecem e morrem, ou melhor, vós os matais pelo
vosso desejo de extrair e adquirir ouro todos os dias. E que cuidado
pondes em fazer com que sejam instruídos na religião [...] Por acaso
não são homens? Não possuem almas racionais? Não estais obrigados
a amá-los como vos amais a vós mesmos? [...] Estai certos de que, em
uma situação como esta, não podeis ser salvos mais do que os mouros
ou os turcos.” 46
46
Ibid, p. 129
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Posteriormente, os governantes das ilhas pediram que negasse todas suas
acusações; ordenaram que o frade no próximo domingo se retratasse com os
desgostosos. Qual foi a surpresa dos poderosos da ilha quando Montesinos
começou seu discurso com um versículo de Jô (13, 17-18): “Estou pronto para
defender a minha causa, sei que sou eu que tem razão”; ratificou todas as suas
críticas e foi além, disse que os frades não mais recebessem a confissão dos
oficiais, já que estes não tinham o propósito de se emendar, e que escrevessem a
Castela para contar o que bem quisessem.
Por causa da propagação das denuncias do frade Montesinos à política
espanhola do Novo Mundo, o rei pediu a um grupo de teólogos que regulassem as
relações com os indígenas. Assim nasceram as Leis de Burgos (1512), de
Valladolid (1513) e em 1542, as Novas Leis.
4.6.2 Vitória nas Índias
Ao fazer as críticas contra a política espanhola, o pe. Francisco de Vitória
(1492-1546) levantou as bases da teoria moderna do direito internacional, junto a
outros teólogos e juristas, “defendeu a doutrina de que todos os homens são
igualmente livres; e, com base na liberdade natural, proclamou o direito à vida, à
cultura e à propriedade.”47
A partir de dois princípios tomados em Tomás de Aquino: 1) a lei divina,
que procede da graça, não anula a lei humana natural, que procede da natureza
racional; 2) nada do que pertence ao homem por natureza pode ser-lhe tirado ou
concedido em função dos seus pecados; Vitória sustentou, assim como os seus
47
Marcelo Sánchez-Sorondo, “Vitoria: The Original Philosopher of Rights”, em Kevin White,
ed., Hispanic Philosophy in the Age of Discovery, Catholic University of America Press,
Washington, DC, 1977, p. 66. Apud, ibid, p. 131
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colegas Domingos de Soto48 e Luis de Molina, que os príncipes pagãos
governavam legitimamente, fundamentando-se inclusive na Escritura sobre a
obediência de Cristo49 à autoridade pagã de Pôncio Pilatos50.
Defendiam que o Direito Natural existia para todos, não podiam então os
índios ser privados de seus direitos, independentemente do credo, do espaço ou do
tempo:
“Na verdade, não são irracionais, mas possuem o uso da razão a
seu modo. Isto é evidente, porque organizam as suas ocupações, têm
cidades
ordenadas,
celebram
casamentos,
têm
magistrados,
governantes, leis [...]. Também não se enganam em coisas que são
evidentes para os outros, o que revela que usam da razão. Nem Deus,
nem a natureza falham em dotar as espécies daquilo que lhes é
necessário. Ora, a razão é uma qualidade específica do homem, e uma
potência que não se atualizasse seria vã.”51
Depois de Vitoria52, houve um célebre debate entre Bartolomé de Las
Casas53 e Juan Ginés de Sepúlveda que defendia o uso da força na conversão dos
nativos. De acordo com Thomas Woods:
“Ambos os contendores defendiam a atividade missionária entre
os nativos e desejavam ganhá-los para a Igreja, mas Las Casas insistia
em que esse processo devia ocorrer pacificamente, já Sepúlveda, por
48
O Pe Domingos de Soto, resumiu bem a problemática da época “No que concerne aos
direitos naturais, aqueles que estão em graça de Deus não são nem um pouquinho melhores que o
pecador ou o pagão”. Ibid, p. 133
49
“Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21)
50
“Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dado” (João, 19,10)
51
Ibid, p. 136
52
Vitoria achava legítimo o uso da força contra os índios para livrá-los de algumas práticas
sanguinárias de sua própria cultura, a exemplo dos sacrifícios humanos praticados nos rituais de
magia “em escala industrial” na América espanhola.
53
Brevísima relación de la destrucción de las Índias. Apud, ibid …
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sua vez, não afirmava que os espanhóis tivessem o direito de
conquistar os povos nativos simplesmente por serem pagãos, mas
argumentava que o baixo nível de civilização e os costumes bárbaros
desses povos eram um obstáculo para a sua conversão e que, portanto,
era necessário algum tipo de tutela para que se pudesse levar a cabo
com sucesso o processo de evangelização. [...] Las Casas, pelo
contrário, estava absolutamente convencido de que, na prática, tais
guerras seriam desastrosas para todos os povos envolvidos e
prejudiciais à difusão do Evangelho. Qualquer especulação acadêmica
sobre o tema parecia-lhe “irresponsável, frívola e chocante.”
Sejam quais forem as dificuldades práticas da capacidade de coerção, a idéia
do Direito Internacional, nascida da discussão filosófica levantada pela descoberta
da América, foi extremamente importante, mostrava que cada nação não é um
universo moral fechado em si mesmo, mas tem o seu comportamento submetido a
princípios básicos das leis naturais, evidenciando que o estado não é moralmente
autônomo, como afirmava Maquiavel.
Segundo Mario Vargas Llosa, ao discorrer sobre os europeus e o Novo
Mundo:
“O padre Las Casas foi o mais ativo, ainda que não o único, dos
não-conformistas que se rebelaram contra os abusos infligidos aos
índios. Esses homens lutaram contra os seus compatriotas e contra as
políticas dos seus próprios países em nome de princípios morais que,
para eles, estavam acima dos princípios de nação ou Estado. Essa
autodeterminação não teria sido possível entre os incas ou em qualquer
outra cultura pré-hispânica. Nessas culturas, assim como em outras
grandes civilizações da História, nascidas fora o Ocidente, o individuo
não podia questionar moralmente o organismo social de que fazia
parte, porque existia unicamente como um átomo dentro desse
organismo e porque, para ele, os ditames do Estado não se
dissociavam da moralidade. A primeira cultura a interrogar-se e
questionar-se a si mesma, a primeira a separar as massas em seres
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individuais que foram ganhando gradualmente o direito de pensar e
agir por si próprios, veio a converter-se graças a essa desconhecida
prática chamada liberdade, na civilização mais poderosa do nosso
mundo”.
Bom lembrar que, entre as tribos indígenas, por menor que fossem e ao
contrário do mito do bom selvagem de Rosseau, tratavam-se umas as outras de
forma insultuosa, sejam como meras inimigas ou como “filhos de uma cadela”;
contudo para si, referiam-se como “nós, o povo”.
4.7 Direito do Trabalho
4.7.1 Escravismo
Quanto à escravidão, o que na filosofia pagã era imputado à natureza, será
na filosofia cristã imputado ao pecado original. Esta referência pode ser
encontrada tanto no abade de Saint-Michel "Não foi a natureza que fez os
escravos, mas a culpa", quanto em Isidoro de Sevilha "a escravidão é uma punição
imposta à humanidade pelo pecado do primeiro homem".
Apesar de não condenar enfaticamente a prática escravagista, Santo
Agostinho54 e São Tomás de Aquino mitigaram-na ao considerarem os homens
imagem viva do Criador; defendiam tratamento digno e caridoso para com os
escravos.
O cristianismo trouxe um novo conceito de dignidade humana ao pugnar
pela fraternidade entre os homens, condenando a acumulação de riquezas e a
54
Para justificar a escravidão dos negros, Santo Agostinho supõe que seriam descendentes de
Cam, o filho de Noé que fora amaldiçoado pelo pai por ter zombado de sua nudez. A Bíblia
fornecia, assim, um argumento racista em favor da escravidão. Dizia que a escravidão era
conseqüência do pecado. O pecado era, na verdade, a pior escravidão: ele tornava os homens
escravos de suas paixões.
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exploração dos menos afortunados. Tais ensinamentos eram, na época,
revolucionários, contrapondo-se ao pensamento grego e romano, favorável à
escravidão e contrário aos princípios da dignidade do trabalho.
A Igreja exerceu uma forte ação reduzindo a escravidão na Idade Média, por
mais que usasse escravos, condenasse a sua insubordinação e justificasse a sua
existência.
4.7.2 Servilismo
Num mundo dominado por povos de índole guerreira e por ameaças
constantes de invasões, a terra não era de quem cultiva, mas de quem podia
conquistar e preservar dos agressores. O trabalho servil era algo natural, os nobres
davam proteção, os servos a semente.
Ao longo do tempo, o servilismo foi substituindo o escravismo. O servo não
podia fugir do feudo, contudo era sujeito de direitos como a posse perpétua da
terra e de instrumentos de trabalho. Podia ser mobilizado para a guerra, como
também cedido pelo senhor aos donos das pequenas fábricas e oficinas existentes.
Apesar de existir uma melhora significativa da dignidade do servo em
relação ao escravo, seria inconcebível uma Idade Média sem servos, da mesma
forma que a antiguidade sem escravos, ou a modernidade sem empregados.
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4.7.3 A encíclica Rerum Novarum55
A sociedade industrial modificou as antigas estruturas sociais com o
surgimento da massa urbana de proletários e da "relação capital e trabalho" de
uma forma inusitada e até então desconhecida. Os representantes da Igreja foram
percebendo lentamente que, com as novas formas socio-econômicas, surgiam
problemas na "justa estrutura social". Muitas iniciativas pioneiras surgiram nesta
época entre leigos e religiosos voltadas para os problemas de pobreza, doenças e
carências de serviços de saúde e educação. Com os novos tempos, surgiram novos
problemas que a Igreja56 só veio regulamentar em 1891 pela encíclica Rerum
Novarum do papa Leão XIII (1878–1903). A ela seguiram-se diversos
55
Em latim Rerum Novarum significa "Das Coisas Novas". O Papa dizia que "não pode haver
capital sem trabalho, nem trabalho sem capital".
56
“A Igreja dos séculos XIX e XX confrontou-se com o dinamismo, e principalmente com a
universalização, fenômenos contra os quais preferira proteger-se no século XVI, e que acreditara
poder acantonar nas sociedades reformadas. O perigo ainda se agravara devido ao fato de que as
idéias ‘perigosas’ eram menos religiosas do que seculares. Os filósofos das ‘Luzes’, o ‘josefismo’
na Áustria, Pombal em Portugal, o grão-duque da Toscana, os Constituintes franceses: era nos
países católicos que o Estado se posicionava como adversário da Igreja, arrancava-lhe a escola ou
a caridade, fechava seus conventos, pretendia ditar-lhe sua organização. Com a exceção dos
direitos naturais, aliás dissociados de qualquer referência divina, o pensamento político a caminho
da democracia colocava a "vontade geral" como sendo a origem absoluta de todo direito, ou até de
toda moral. Em suma, a Igreja tinha algumas razões para desconfiar: o século XIX será para ela
um século de combate, cuja reduza está impressa nas encíclicas de Pio IX sobre, ou melhor, contra
a liberdade. No final do século XIX, porém, Roma, pela primeira vez, toma conhecimento de uma
industrialização que, ao longo do tempo, chegou até a Itália e a Espanha, e que já concerne
milhões de católicos. Em 1893, Leão XIII promulga Rerum Novarum, uma encíclica que abre uma
série de notáveis textos pontificais — longa meditação a muitas vozes que após mais um século
resultará, com Centesimus Annus de João Paulo II, na aceitação de uma economia fundada na
liberdade dos princípios econômicos. Mas quanto tempo terá sido preciso, antes que a Igreja
católica abandonasse o modelo de uma sociedade fundamentalmente agrária e patriarcal, para
finalmente colocar a liberdade no centro da sua antropologia... Por tempo demais o ensino da
Igreja ignorou a economia moderna, e manteve com seus adversários da laicidade militante um
combate que desviou as sociedades católicas dos verdadeiros desafios da liberdade — aquela que
suscita as riquezas. Representava também seu papel de instituição-testemunha de um reino ‘que
não é deste mundo’, contra as pompas de Satã e a idolatria de Mammon. À sua mãe inquieta, Jesus
em meio aos doutores responde: ‘Devo ocupar-me dos assuntos do meu Pai’. Milagres e santos, a
Igreja é sempre lenta para reconhecê-los quando os reconhece. A fortiori, para ela que vive na
escala dos milênios, uma adesão sem exame a um desenvolvimento anárquico, sem outra
finalidade a não ser ele mesmo, não era concebível. As ameaças que pesam sobre o mundo
desenvolvido, depois de dois, três ou quatro séculos de progresso, são suficientes para nuançar a
crítica de cegueira que espíritos sistematicamente anti-clericais ficariam tentados a lhe fazer. Ela
precisava de tempo para separar o bom grão da liberdade que cria, do joio da liberdade que
corrói.” Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança, pp. 37-38
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documentos compondo a Doutrina Social da Igreja que só teve seu compêndio
sistematizado em 2004 pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz. Os demais
documentos são: a encíclica Quadragesimo anno de Pio XI em 1931; a Mater et
magistra do beato papa João XXIII em 1961; a encíclica Populorum progressio
(1967) e a carta apostólica Octagesima adveniens (1971) de Paulo VI; Laborens
exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e Centesimus annus (1991) de
João Paulo II.
A encíclica ressalta que o trabalho não pode ser considerado como
mercadoria, mas expressão direta da dignidade da pessoa humana. O assalariado
não podia ser refém das leis de mercado, deveriam ser estabelecidas normas
mínimas de justiça e eqüidade. Condenava a concentração da riqueza nas mãos de
poucos e a exploração do empregado à custa de sua miséria e dos baixos salários.
O Estado não poderia ficar inerte, precisava regular a relação entre “capital e
trabalho” e zelar pela harmonia social. Este documento cobrou do mundo cristão o
interesse dos governantes pelas classes trabalhadoras, dando força para sua
intervenção nos direitos individuais em benefício dos interesses coletivos.
4.8 Direito Previdenciário
Não é de hoje que o homem se preocupa com as vicissitudes da vida, desde
os tempos antigos ele tenta amenizar a fome, doença e velhice. Na Grécia e em
Roma, não era diferente, pode-se reconhecer uma insipiente previdência nas
instituições de cunho mutualista, que amparavam os seus membros contribuintes
mais necessitados, ou quando os mendigos eram transformados em escravos e
ficavam sob responsabilidade de alguém. Porém a previdência mais comum era o
patrocínio familiar, onde os mais jovens cuidavam dos mais velhos e incapazes.
Quanto aos escravos, o costume era o de abandono à mendicância pelo seu
dono quando não lhe interessava mais... contudo nas grandes cidades, havia leis
que promoviam a integração do desocupado válido nas legiões de escravos ou de
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colonos. O combate à mendicância se dava sem a preocupação com a liberdade do
homem.
Sob o poder de Justiniano, os senhores que abandonavam seus escravos
válidos à mendicância, eram forçados a retomá-los, mesmo que não o desejassem;
já os mendigos livres, provindos de outras partes do Império, podiam ser
devolvidos às suas origens. Os demais casos deveriam exercer tarefas de utilidade
pública sob pena de ser banidos da cidade, só os incapazes tinham autorização de
ficar sem trabalhar, sob caridade alheia. No final de Roma, já se admitia o apelo à
caridade, revelando a ação do cristianismo, e impregnando a consciência social da
solidariedade como forma de suprir os menos afortunados.
No medievo, as primeiras “relações de trabalho” surgiram dos laços
existentes entre os vassalos, senhores feudais, artesãos, menestréis e cavalheiros
mercenários. Os servos eram protegidos concomitantemente pela posse perpétua
da terra, pelos laços feudais e pelas relações familiares. A grande previdência era
naturalmente vinculada à gleba e aos laços de vassalagem. Com o século X e o
ressurgimento das trocas comerciais e desenvolvimento das concentrações
urbanas, outras formas de cooperação e organização desconhecidas do trabalho
servil passaram a existir como as guildas57 e as corporações de ofícios que
passaram amparar os membros contribuintes.
4.8.1 Lei dos pobres58
Com o saque dos bens eclesiásticos pela coroa inglesa, durante o
Anglicanismo, houve redução significativa na fixação do homem do campo pela
ausência da obra assistencial da Igreja. Isto teve conseqüência direta no aumento
57
Guildas - associações de proteção mútua, para os artesãos.
58
O caráter contributivo da previdência enseja que a Lei dos pobres era de caráter assistencial,
pois pobre não tem condição de pagar previdência.
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da emigração rural estimulada pela crescente demanda de lã (enclusure), e no
aumentou da quantidade de pobres nas cidades inglesas.
Na Inglaterra da Rainha Elizabeth, em 1601, a Poor Relief Act faz com que
antes era obra caridosa, passe a ser obra legal por meio da Igreja, obrigando as
paróquias a conceder auxílio financeiro aos necessitados de suas respectivas
jurisdições. Este ato concedia aos juízes o poder de lançar o imposto de caridade,
pago por todos os donos de terras, e de nomear inspetores em cada paróquia com
o objetivo de arrecadar e distribuir o montante acumulado pela lei. Também
obrigava aos homens capazes prestar serviços em asilos e albergues, as crianças a
freqüentar escola. Quem não trabalhava era açoitado, preso e poderia ser até
condenado à morte. A lei consolidou a idéia de que o governo é responsável pelos
pobres e foi o embrião do moderno Estado do Bem Estar Social.
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5. Direito x Religião
A forma como as religiões são retratadas nos centros acadêmicos não reflete
a realidade de que 95% da população acreditam em Deus; nem reflete a
importância que os valores religiosos têm na formação da sociedade humana. A
religião termina por ser tratada não como um “desafio cognitivo” para o direito
moderno, mas como um fenômeno intelectual superado “resíduo de um passado
terminado”.
Em 2004, Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas, no livro “Dialética da
secularização sobre razão e religião” não fugiram do tema e terminaram por expor
algumas idéias a respeito; um representando a fé católica e o outro o pensamento
secular liberal e individual. O discurso foi em torno “das bases morais prépolíticas de um Estado liberal” e “O que mantém o mundo unido?” Habermas
considerou a razão prática de um pensamento secular pós-metafísico, e Ratzinger
considerou a realidade do homem ser criatura de Deus, realidade existencial
anterior a qualquer racionalismo humano posterior.
Quando falam da racionalidade chegam às mesmas conclusões duma
sociedade baseada na “ética da sobrevivência” fundamentada na dignidade
humana, mas na fundamentação da ética e do direito explícito, cada um aponta
para alternativas diferentes resumidas a seguir:
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5.1 - A Religião de Habermas
À pergunta formulada por Ernst Wolang Böckenförde nos anos 60 ”Será
que o Estado liberal secularizado se alimenta de pressupostos normativos que ele
próprio não é capaz de garantir?” Habermas responde através de cinco aspectos:
1.Sobre a fundamentação do Estado constitucional secular a partir das
fontes da razão prática - ele considera que o Estado moderno pode ser muito
bem fundamentado a partir da ratio, de uma moral e direito criados no processo
democrático tal como pensava Hans Kelsen e Niklas Luhmann. Neste ponto,
mister salientar que Habermas deixa de considerar que o processo democrático
pode gerar um estado anti-democrático e anti-racional a exemplo do Fascismo,
Nazismo e Comunismo (citados aqui em ordem crescente de periculosidade59).
2.Como se reproduz a solidariedade cidadã - o autor afirma que existiria
uma moralidade independentemente de uma verdade religiosa e metafísica nos
princípios constitucionais do Estado liberal e que o problema principal seria
apenas o de ordem motivacional, resolvida pela cobrança das virtudes políticas
dos cidadãos para a sobrevivência política da sociedade60. Cabe apenas perguntar
quem cobraria tais deveres políticos dos cidadãos se nem mesmo os direitos são
conhecidos e exercidos a contento?
3.Quando se rompe o vínculo social – do ponto de vista interno, Habermas
não vê nenhum problema em ter a democracia seus próprios valores fundantes,
59
Segundo R. J. Rummel, cientista político da Universidade do Havaí (o especialista faz
distinção entre o genocídio que é o assassinato por raças, do democídio que é o assassinato da
população por governantes), o Facismo, o Nazismo e o Comunismo mataram no século XX
respectivamente
11
milhões,
21
milhões
e
205
milhões
de
pessoas.
http://www.hawaii.edu/powerkills/welcome.htm,
http://www.olavodecarvalho.org/semana/090219dc.html Para melhor entendimento, ver o
documentário de Edvin Snore, The Soviet Story.
60
O “vínculo unificador” que estaria faltando é formado pelo próprio processo democrático –
uma prática comunicativa que só pode ser exercida em comum e na qual se discute, em última
análise, o verdadeiro entendimento da constituição.” Dialética da secularização, p. 36
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porém levanta a possibilidade de causas externas esgotar a solidariedade da qual o
Estado democrático depende, a exemplo dos renitentes fracassos experimentado
no caminho da constitucionalização do direito internacional decorridos da
despolitização dos cidadãos, já que a formação democrática só atinge o nacional
não alcançando os processo decisórios supranacionais.61
4.Secularização como processo de aprendizagem duplo e complementar
– segundo o autor, “começa a prevalecer na sociedade pós-secular a idéia de que a
“modernização da consciência pública” afeta de maneira defasada tanto as
mentalidades religiosas quanto as seculares, modificando-as de forma reflexiva.
Entendendo a secularização da sociedade como um processo comum de
aprendizagem complementar, ambos os lados estarão em condições de levar a
sério em público, por razões cognitivas, as respectivas contribuições para temas
controversos.”
5.Como deveriam relacionar-se cidadãos religiosos e seculares62 encimado dos limites iluministas, Habermas traça um relacionamento tolerante de
sociedades pluralistas de constituição liberal, onde crentes convivem com o
dissenso e descrentes dialogam na transposição da fé para um conhecimento mais
claro e mundano.63
61
Ibid, p. 42
62
“A neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a
todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão do mundo
secularizada. Em seu papel de cidadãos do Estado, os cidadãos secularizados não podem nem
contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos
concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates público servindo-se de uma
linguagem religiosa. Uma cultura política liberal pode até esperar dos cidadãos secularizados que
participem de esforços de traduzir as contribuições relevantes em linguagem religiosa para uma
linguagem que seja acessível publicamente.” – J. Habermas, Glauben und Wissen, Frankfurt/Main,
2001. Apud, ibid, p. 57
63
Ibid, p. 56
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5.2 - O Direito de Ratzinger
Segundo Ratzinger, temos uma sociedade mundial dependente de diversas
partes culturais. Mas apesar de existir o desenvolvimento de possibilidades
humanas como nunca antes fora visto, paralelamente há o poder de criar e destruir
tudo o que já se construiu anteriormente. Decorrente desta encruzilhada, levantase a questão do controle jurídico e moral do poder, se neste amálgama de culturas
é possível encontrar um “etos mundial” ao modo de Hans Küng, não obstante as
críticas argutas de Robert Spaemann e da indagação se é possível do encontro e
permeação das culturas surgir um etos mundial quando são as certezas éticas que
justamente caem por terra perante a diversidade cultural.
Segundo Ratzinger, a pergunta fundamental continua sem resposta: o que é
propriamente o bem, e se ele deve ser praticado mesmo quando é em prejuízo
próprio? Propõe então cinco reflexões para a questão sabendo que a priori debate
científico nenhum é capaz de erguer uma ética quando a própria ciência é
responsável em boa parte pelo desaparecimento da ética humana. No máximo, a
filosofia se responsabiliza na correção das ciências singulares, sobre o que é
humano ou não; eliminando do contexto qualquer elemento não-científico;
sonegando ao homem qualquer dimensão da realidade humana que as ciências só
alcançam parcialmente.
1.Poder e direito – colocar o poder a serviço da ordem e do direito é por
essência constituir a liberdade na confiança de que é a força do direito que
prevalece e não o direito da força. Segundo o autor, o clima de desconfiança só
surge quando o poder não está a serviço da justiça, e a revolta contra o direito
ganha força quando o poder é usurpado e posto o direito em favor daqueles que
tem o poder. O problema de ser a expressão do interesse de todos e não de um
grupo isolado é resolvido aparentemente pela democracia, mas surge novamente a
indagação de quando uma injustiça surge em desfavor de uma minoria religiosa
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ou étnica. Será que não existam direitos que por sua essência devam ser
preservados mesmo que seja em detrimento da maioria64?
2.Novas formas de poder e novas questões a respeito de sua contenção a ratio moderna construiu a bomba atômica, ameaça de destruição de toda a
humanidade, também evoluiu o suficiente para curar as mais diversas
enfermidades do homem, ao mesmo tempo, tratando-o como mero produto de
experiência científica65. Do lado das religiões, atualmente, encontra-se um
fundamentalismo no terrorismo de Bin Laden apresentado como castigo de
“povos oprimidos” ao ocidente arrogante e presunçoso. Não será que tanto a razão
quanto a religião devam se limitar mutuamente66?
3.Pressupostos do direito: direito, natureza, razão – para o até então
Cardeal, o entendimento sobre os princípios éticos do direito numa sociedade
secular pluralista passa necessariamente por discussões envolvendo o direito
natural, direito comum anterior a qualquer dogma, um direito mínimo que se
baseie na razão humana, sendo inclusive corretivo do direito positivo. Semelhante
idéia já fora desenvolvida por Francisco de Vitória, Las Casas, Hugo Grotius e
64
“Na Idade Moderna, certo número de elementos normativos dessa natureza foi incluído em
diversas declarações de direitos humanos, subtraindo-os dessa maneira ao jogo das maiorias. Pode
ser que, segundo a consciência atual, as pessoas se satisfaçam com a evidência intrínseca desses
valores. Mas a própria autolimitação de um questionamento desse tipo já é de caráter filosófico;
existem valores em si que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são
invioláveis em todos os detentores dessa essência. [...] nem todas as culturas reconhecem hoje essa
evidência. O Islã definiu seu próprio catálogo de direitos humanos que diverge do catálogo
ocidental. A China, apesar de aderir hoje a uma forma de cultura surgida no ocidente, ou seja, ao
marxismo, discute, segundo as informações de que disponho, se não se trata, no caso dos direitos
humanos, de uma invenção ocidental que precisa ser questionada.” Ibid, pp. 68-69
65
“O homem passou a ter condições de fazer seres humanos, de produzi-los, por assim dizer,
dentro da proveta. Tornando-se um produto, o ser humano modifica substancialmente a relação
consigo próprio. Ele deixa de ser uma dádiva da natureza ou do deus criador e se torna seu próprio
produto. O homem desceu às nascentes do poder de onde brota sua própria existência. A tentação
de querer construir o ser humano certo, a tentação de fazer experiências com o ser humano, a
tentação de considerar o ser humano um lixo e de eliminá-lo deixaram de ser uma quimera de
moralistas retrógrados.” Ibid, p. 74
66
“Com isso surge novamente a pergunta como se pode encontrar numa sociedade mundial,
com seus mecanismos de poder e suas forças indomadas, além de diferentes visões daquilo que é
moral e direito, uma evidência ética eficaz que disponha de suficiente força motivacional e de
persuasão para resolver aos desafios mencionados, ajudando a vencê-los.” Ibid, p. 75
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Samuel Von Pufendorf, mas o Cardeal acrescenta que à doutrina dos direitos
humanos (direito natural) deva ser contraposta uma doutrina dos deveres
humanos, renovando desta maneira a discussão da possibilidade de existir uma
razão da natureza e conseqüentemente um direito da razão67.
4.Interculturalidade e suas conseqüências - para o Cardeal, não existe
qualquer possibilidade de discussão que não envolva interculturalidade na
resolução de uma fórmula universal ética. Daí discorre a respeito das culturas
concorrentes mostrando que basicamente assim como existem profundas tensões
entre o cristianismo e a racionalidade moderna (polaridade disposta a aprender na
mesma proporção de se rejeitar) não existe uniformidade nas demais culturas. Na
cultura islâmica, encontra-se desde o absolutismo de Bin Laden a uma tolerância
racional; na cultura indiana existe, uma miríade de tensões proporcionais aos
credos do hinduísmo e do budismo, além das pretensões do racionalismo ocidental
e fé cristã presentes no meio; as culturas tribais da África e da América Latina,
embora reavivadas pela teologia cristã, em certos casos, questionam não só o
pensamento ocidental, mas também a pretensa universalidade cristã. Por mais que
a fé cristã e a racionalidade secular ocidental exerçam influência no mundo, as
duas não podem se arvorar em serem universalmente aceitas em culturas que até
mesmo as reneguem. Desta forma, segundo Ratzinger até mesmo o etos mundial,
seja racional ou religioso, continua sendo uma abstração no momento atual.
5.Resultados - Ratzinger concorda com Habermas no que diz respeito à
aprendizagem e autolimitação para ambos os lados na sociedade pós-secular68,
contudo esclarece em duas teses:
67
“Atualmente, um debate desse tipo precisaria ser concebido em bases interculturais. Para os
cristãos, esse debate envolveria o tema da criação e do criador. No mundo indiano, existe o
conceito do ‘dharma’, das leis intrínsecas do ser, e na tradição chinesa, a idéia das ordens do céu.”
Ibid, p. 81
68
“Recentemente, Karl Hübner chegou a formular uma exigência semelhante quando disse que
o objetivo direto dessa tese não é um ‘retorno à fé’. O que importa é uma libertação da obcecação
histórica de que a fé já não teria nada a dizer ao ser humano atual pelo simples fato de ela
contradizer a idéia humanista da razão, do iluminismo e da liberdade”. Ibid, pp. 88-89
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1) Esta mútua aprendizagem deve levar em conta a hybris da religião e da
razão, quando por um lado, a patologia da religião (fundamentalismo) é
controlada e reordenada pela luz divina da razão conforme até mesmo os padres
da igreja assim apontaram, e por outro, a patologia da razão (o ser humano como
mero produto e a ameaça da bomba atômica), pois quando a razão se emancipa
completamente torna-se demasiadamente destruidora. Assim, uma e outra seriam
chamadas para se purificar e curar mutuamente;
2) O plano concreto destas ações deve levar em conta a contribuição das
demais religiões, uma verdadeira congregação de culturas, mesmo reconhecendo
que a fé cristã e a razão ocidental já tenham dado e demonstrado importantes
passos neste caminho, caso contrário, incorreria no erro de se cometer no
Ocidente uma hybris ocidental pela qual já se está pagando caro.
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6. Conclusão
Conclui-se que o cristianismo contribuiu definitivamente para a evolução do
direito, servindo de base cultural para a construção da civilização ocidental. Tal
fato é evidente quando se percebe que a fé cristã está inextricavelmente vinculada
aos valores da dignidade humana, às instituições jurídicas e políticas.
O cristianismo sobreviveu ao colapso de um mundo antigo; uniu povos
inimigos em torno do evangelho; ensinou a desenvolver a inteligência e a
caridade; forneceu a justificativa moral para a democracia. Houve equívocos?
Claro que houve! O cristianismo tolerou a escravidão inicialmente, uma
instituição universal naquela época, mas mobilizou gradualmente os recursos
morais e políticos para por fim a ela. Com o cristianismo, a religião nunca mais
prescreveu o ódio entre os povos, nem preceituou o infanticídio e a morte dos
mais fracos.
Essa doutrina religiosa foi responsável pelo surgimento de escolas,
observatórios e universidades. O homem, livre das superstições antigas, foi em
busca das leis gerais que refletiam a racionalidade de Deus. As ciências modernas
têm raízes cristãs, a ciência jurídica, também.
Há quem pense, apesar do cristianismo ter moldado o cerne das instituições
e valores ocidentais, que agora não se precisa mais dele. Contudo, se os ideais
distintivos da religião cristã têm beneficiado enormemente a civilização ocidental,
por que afastá-los tão radicalmente, incorrendo no risco do retorno à barbárie? É
importante não fugir do questionamento e reconhecer ao cristianismo o papel
central no desenvolvimento da consciência humana.
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PARECER
A monografia-final de curso de Joelson Lima Vale apresentada à defesa com o
título o DIREITO E CRISTIANISMO atende aos requisitos formais.
O tema é atual e relevante, concentra-se no importante debate em torno do
papel do cristianismo na formação do direito. O aluno discorre de forma clara e
objetiva, ilustrando o texto com informações colhidas em obras e por via
eletrônica, tornando o trabalho digno de se recomendar à leitura do público
universitário.
É o parecer.
Recife (PE), 08 de junho de 2009
___________________________
Prof. José Luiz Delgado
Orientador
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