JOELSON LIMA VALE DIREITO E CRISTIANISMO (A contribuição
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JOELSON LIMA VALE DIREITO E CRISTIANISMO (A contribuição
JOELSON LIMA VALE DIREITO E CRISTIANISMO (A contribuição do cristianismo ao direito, ou “Notas de rodapé de uma história sonegada”) Recife 2009 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACVLDADE DE DIREITO DO RECIFE DIREITO E CRISTIANISMO (A contribuição do cristianismo ao direito, ou “Notas de rodapé de uma história sonegada”) Monografia-final de curso apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, como exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito. Orientando: Joelson Lima Vale Orientador: Professor José Luiz Delgado Recife 2009 JOELSON LIMA VALE DIREITO E CRISTIANISMO Trabalho monográfico apresentado como requisito parcial para a obtenção do Grau de Bacharel em Ciências Jurídicas. NOTA: ______________ Data de aprovação __________________ Banca Examinadora: _____________________________________ Professor José Luiz Delgado _____________________________________ Professor Cláudio César ____________________________________ Professor Dr. Ivo Dantas RESUMO Trata o presente trabalho da contribuição do cristianismo para o desenvolvimento do direito. O cristianismo constitui-se em importante marco para a libertação do pensamento humano de culturas arcaicas, levando o Ocidente a desenvolver as atuais ciências modernas, como nenhuma outra civilização. Também, faz parte do intuito abrir um debate honesto, “sem mitos e lendas”, sobre religião e ciência jurídica. Palavra-chave: Direito - Cristianismo Filosofia - Religião e Ciência jurídica na Antigüidade, Idade Média e Idade Contemporânea. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.........................................................................6 2. O MUNDO ANTIGO .............................................................10 2.1 Família, matrimônio, adultério e castidade . 10 2.2 A Lei antiga ............................... 12 2.3 Liberdade individual ....................... 13 3. O ADVENTO DO CRISTIANISMO ....................................15 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 3.7 A velha religião ........................... O cristianismo ............................. A Idade Média .............................. Quando os fracos não têm vez ............... Gladiadores, duelistas, mártires e suicidas A Guerra Justa ............................. Democracia ................................. 15 16 18 19 20 21 22 4. CONTRIBUIÇÕES JURÍDICAS..........................................26 4.1 DIREITO PROCESSUAL ........................................................26 4.1.1 Os canonistas e as provas racionais ...... 27 4.2 DIREITO PENAL ..................................................................28 4.2.1 A cela e o monge, a tortura e a expiação . 29 4.3 DIREITO CIVIL....................................................................31 4.3.1 Pessoa Jurídica .......................... 31 4.3.2 Posse e Propriedade, uso mas não abuso ... 31 4.3.3 Livre consentimento e Matrimônio ......... 33 4.4 DIREITO COMERCIAL .........................................................33 4.4.1 Usura .................................... 33 4.5 DIREITO CONSTITUCIONAL ................................................35 4.5.1 Direito Natural .......................... 36 4.5.2 Direitos Fundamentais .................... 37 4.6 DIREITO INTERNACIONAL ..................................................38 4.6.1 O sermão de Montesinos ................... 38 4.6.2 Vitória nas Índias ....................... 39 4.7 DIREITO DO TRABALHO .....................................................42 4.7.1 Escravismo ............................... 42 4.7.2 Servilismo ............................... 43 4.7.3 A encíclica Rerum Novarum ................ 44 4.8 DIREITO PREVIDENCIÁRIO .................................................45 4.8.1 Lei dos pobres ........................... 46 5. DIREITO X RELIGIÃO........................................................48 5.1 - A RELIGIÃO DE HABERMAS .............................................49 5.2 - O DIREITO DE RATZINGER ...............................................51 6. CONCLUSÃO.........................................................................55 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................56 1. Introdução A civilização ocidental possui seus fundamentos civilizacionais, basicamente, formados por 4 culturas: a grega, a romana, a hebraica e a cristã (inseridos aqui a eslava, céltica e germânica). O presente trabalho tem o intuito de destacar a contribuição específica do cristianismo ao desenvolvimento do direito. O objetivo deste trabalho não é de discorrer pormenorizadamente sobre nenhum instituto de direito aqui levantado, não há preocupação de verticalizar nenhum tópico, e sim coletar as relações do tema direito e cristianismo. Evidente que não se trata de nenhuma obra enciclopédia, apenas algumas notações que evidenciam a contribuição cristã por diversas vezes sonegadas aos formandos em direito. Desta forma, diria até que o presente trabalho poderia ser chamado apropriadamente de “Notas de rodapé de uma história sonegada” a ser desdobrado em futuro mestrado e doutorado que abarque a complexidade do assunto. Importante ressaltar que a perspectiva desta monografia não se traduz em apologia de um tempo passado como a de Jorge Manrique quando se lamentava do mundo moderno ao afirmar “Cualquiera tiempo pasado fue mejor”. Procura-se apenas esclarecer que o direito moderno é depositário de inúmeras transformações técnicas e morais oriundos da religião cristã. A justificativa para o tema de pesquisa baseia-se imperiosamente na importância do advento do cristianismo como um marco libertário do pensamento humano perante concepções jurídicosociais arcaicas. Não resta dúvida da separação entre o poder temporal e atemporal no Estado laico, contudo levanta-se a pergunta: até que ponto a ausência de valores morais Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 6 de 57 cristãos não levaram o séc. XX a ser o mais mortal1 de todos os tempos? Embora não seja aqui o objetivo específico desta monografia, este dilema também será exposto no penúltimo capítulo através da exposição do debate entre Habermas e Ratzinger, que bem sintetiza o dilema direito versus religião. Como se pode constatar, salienta-se a importância do discurso religioso no mundo jurídico, ponto de vista divergente de alguns professores da Faculdade de Direito do Recife, que durante a graduação defendem insistentemente que a Idade Média é a Idade das Trevas2, sendo o cristianismo o arauto das maiores barbaridades. Ver professores secundaristas dizerem tamanha tolice é a coisa mais fácil de encontrar pelo Brasil afora, mas ver professores universitários terem a mesma atitude preconceituosa é preocupante. Esta distorção elaborada propositadamente por renascentistas se propaga até os nossos dias como verdade absoluta sem nenhuma evidência científica. Tal pantomima ainda ressoa num ambiente onde não deveria encontrar nenhum eco... a universidade! Ao contrário do que se pode imaginar, esta cria medieval era palco de debates rigorosos e racionais, de liberdades e divergências contra a própria Igreja, lugar de pesquisa intelectual e intercâmbio cultural que fomentaram as bases da revolução científica moderna. 1 Do séc. III a.C até o séc. XIX (22 séculos) o saldo acumulado pelas guerras foram de 133 milhões de mortos no mundo inteiro (dos quais apenas cerca de 2 milhões foram por motivos religiosos); já o séc. XX, sozinho, dobra o número de mortos para 262 milhões (saldo este que deve ser colocado na conta da Ciência). Informações mais detalhadas, consultar o site do cientista político R.J. Rummel: http://www.hawaii.edu/powerkills/MURDER.HTM e http://www.hawaii.edu/powerkills/20TH.HTM, acesso em 20 de abril de 2009. 2 “O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e agitadores do século XVIII como expediente de ocasião para a propaganda anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e ideológicas da monarquia. Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia popular, graças ao respaldo de toda sorte de organizações políticas e sociedades pseudo-iniciáticas, o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica aceitável nos meios científicos e hoje subsiste apenas em círculos de ativistas semiletrados do Terceiro Mundo, à margem das correntes vivas do pensamento mundial. No Brasil ou na Zâmbia, "medieval" ainda pode ser usado como termo pejorativo nas polêmicas da mídia, mas quem quer que se deixe impressionar por isso mostra que é escravo de uma atmosfera mental provinciana, sem a mínima abertura para o horizonte maior da cultura universal.” http://www.olavodecarvalho.org/textos/stotomas.htm Olavo de Carvalho em Sto. Tomás, a vaca voadora e nós, acesso em 20 de abril de 2009. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 7 de 57 Na realidade, a FDR não é um caso isolado, a verdade é que o público universitário3, mais cheio de preconceitos que informação, vem aumentando este disparate com superstições de que Tecnologia, Filosofia, Cultura, Ciência e Direito recrudesceram neste período, ou de que nada houve de novo. Certo é dizer que, em nenhuma hipótese, se baseiam os fatos. É bom lembrar que não são historiadores de profissão os que alardeiam isto, pois não há nenhum medievalista sério a afirmar tamanha bobagem. Ao contrário da ignorância, da repressão e da estagnação propagada nas escolas e universidades4 sobre o cristianismo, houve de fato inovações em muitos 3 A respeito de tal empobrecimento cultural, há muito perscrutava os motivos que levaram a este estado de coisas. A explicação de Carpeaux, só veio confirmar minhas expectativas: “A propósito de tal fenômeno ‘Segundo o regime escolar vigente em todos os países, sem exceção, a Universidade dedica-se ao ensino profissional superior, enquanto a ‘cultura geral’ fica reservada ao ensino secundário, aos ginásios e aos liceus. Quer dizer: o ensino da cultura geral limita-se aos jovens de dez a dezoito anos. Depois, a ‘cultura’ termina, e a medicina e a jurisprudência começam, sem nenhuma ‘cultura geral’. Os conhecimentos do ensino secundário empalidecem, naturalmente, com o tempo; mas ainda há coisa pior: todo esse ensino de ‘cultura geral’ é feito ao alcance de jovens de dez a dezoito anos: a história, a filosofia, a literatura, amoldadas ad usum Delphin, e forçosamente puerilizadas. E aí fica. Nunca mais o jovem médico ou engenheiro ouve falar em história, filosofia, literatura, exceto pela imprensa ou pelo rádio, que se colocam ao alcance do espírito artificialmente preservado no estado pueril com uma formação profissional superposta. Conheço bem as numerosas exceções que felizmente existem. Mas, em geral, estas massas graduadas se distinguem dos iletrados somente por uma autoridade profissional que as torna menos úteis que perigosas. Ainda uma vez cito Ortega y Gasset: ‘La peculiarísima brutalidad y la agresiva estupidez com que se comporta um hombre, cuando sabe mucho de uma cosa y ignora de raiz todas las demás’ (O. G., p.1291). Eles, porém, os iletrados, têm sempre razão, porque são muitos e ocupam um lugar de elite, esse ‘proletariado intelectual’, sem dinheiro ou com ele, isso não importa. Julgam tudo, e tudo deles depende. Lêem os livros e decidem sobre os sucessos de livraria, criticam os quadros e as exposições, aplaudem e vaiam no teatro e nos concertos, dirigem as correntes das idéias políticas, e tudo isto com autoridade que o grau acadêmico lhes confere. Em suma, desempenham o papel de elite. São os nouveax maîtres, os señoritos arrogantes, graduados e violentos; e nós sofremos as conseqüências, amargamente, cruelmente.” Otto Maria Carpeaux, Ensaios Reunidos, p. 217 4 Todas as duas instituições são invenções do cristianismo: a primeira do séc. VIII, quando Carlos Magno e o monge Alcuíno fizeram ter, gratuitamente, em cada igreja uma escola ao lado para salvar a alma da ignorância; já a segunda é do séc. XIII, valendo lembrar as palavras beneditinas, revelando as origens monásticas da Universidade e da Europa (F. Struns, La vie scolarire du Moyen-age, 1923) “Ex scholis ominis nostra salus, omnis felicitas, divitiae omnes ac ordinis splendor constansque stabilitas (Das escolas vem toda a nossa salvação, toda felicidade, todo o esplendor e a estabilidade da ordem). A Universidade é uma criação da Idade Média, e os tempos modernos mal têm conhecido a liberdade ilimitada do ensino e a comunhão internacional dos espíritos nacionais que distinguiram a Universidade Medieval. Para conhecer a universalidade dos seus interesses espirituais, devem-se ler os recentes estudos sobre a escola de Chartre (Paré, Brunet et Treblay, La renaissance du XIIme. Siècle, Inst. d’ Études Médiév., Otava, 1934). Não se Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 8 de 57 campos do conhecimento humano, que destaco neste trabalho, especificamente o campo do direito. duvidará mais das palavras do P. Thonnard: ‘Dois princípios dominavam a organização da Universidade medieval; a Liberdade e o Internacionalismo’ [...] Não se deve pôr em dúvida que a liberdade de pensar- e, sobretudo, a liberdade de falar – era muito mais ampla na Idade Média do que mais tarde. Na Idade Média não se tinha ainda que recear o espírito sectário. Isso possibilitou a extraordinária licenciosidade do ‘Roman de la Rose’, com os seus ataques vigorosos ao clero e à aristocracia, o que fez um Gourmont confessar: ‘É necessário rever a nossa concepção sobre a Idade Média. Porque o Roman de La Rose foi o livro mais lido durante três séculos’; e, num pólo oposto, lembro Santa Catarina de Siena, simples religiosa, cuja linguagem singular, violenta – ‘foetor infernalium vitiorum in Romana cúria’ (O fedor dos vícios infernais na cúria romana) – obrigou um papa desconcertado a calar-se. [...] Falemos na vitória dessa liberdade medieval: Santo Tomás de Aquino. Durante 800 anos, o dogma da Igreja baseara-se no agostinismo neoplatônico, apoiado na autoridade do maior Pai da Igreja. Mas o monge Tomás ousa abandonar estes conceitos sagrados para basear o dogma da autoridade no filósofo pagão Aristóteles, este mesmo Aristóteles que todas as instâncias da autoridade eclesiástica tinham recentemente condenado. Na época dos sistemas fechados, teológicos e filosóficos, do barroco, isto seria impossível. Imaginai, hoje, um professor de seminário que abandonasse o tomismo para basear o dogma em Kant ou Hegel! E sabereis o que perdíamos.” Ibid, pp. 207-208 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 9 de 57 2. O Mundo Antigo A religião e a moral antiga5 originavam-se essencialmente da vida doméstica e do culto dos mortos. O homem antigo era um ser extremamente egoísta espiritualmente, não orava em favor dos outros, não fazia caridade com os demais; suplicava apenas para si e para os seus diante do altar doméstico. No tempo de Plutarco, havia um provérbio grego indicando este isolamento espiritual quando se dizia do egoísta “tu sacrificas no lar”, que significava: “Afasta-te dos teus concidadãos, não tens amigos, os teus semelhantes não são para ti coisas algumas, tu só vives para ti e para os teus”. Este provérbio representa os vestígios do tempo em que todos os valores giravam em torno do Lar, o horizonte moral e afetivo do homem não ultrapassava o estreito círculo familiar. 2.1 Família, matrimônio, adultério e castidade Pode-se adivinhar quanto estas crenças se traduziam em respeito e em afeto mútuo pela família. Os antigos davam às virtudes domésticas o nome de piedade: a obediência do filho para com o pai e o amor consagrado à mãe chamavam de piedade, pietas erga parentes; o afeto do pai pelo filho e a ternura da mãe eram também piedade, pietas erga líberos. Tudo na família era divino. Sentimento do dever, afeto natural, idéia religiosa, tudo se confundia, formando um todo e expressado na mesma palavra, piedade. 5 “A religião destas primeiras épocas foi exclusivamente doméstica; a moral era-o também. A religião não dizia ao homem, mostrando-lhe um outro homem: ali está o teu irmão. Dizia-lhe ali tens um estranho; ele não pode participar dos atos religiosos do teu lar; não pode aproximar-se do túmulo de tua família, pois conhece outros deuses sem serem os teus, e não pode unir-se a ti em prece comum; os teus deuses repelem a sua adoração e encaram-no como seu inimigo; ele é também teu inimigo.” Fustel de Coulanges, A cidade antiga, p. 96 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 10 de 57 O amor à casa também era uma virtude profunda nas almas dos antigos. De tão importante, ele a amava como amava a sua vida. Cícero, quando já não falava mais o poeta, mas o homem público, declarou “Aqui está minha religião, aqui está a minha raça, aqui estão os restos dos meus pais; não sei que encanto se encontra em tudo isto que penetra o meu coração e os meus sentidos.” É preciso transportar-se pelo tempo e vivenciar as antigas gerações para compreender quanto estes sentimentos, já enfraquecidos à época de Cícero, ainda eram poderosos. Ao homem moderno, a casa representa somente guarita ou domicílio, não se tem nenhum outro sentimento forte que não o da saudade, do pesar ou da posse. Para o homem moderno, a religião não está no coração da casa, o Deus é onipresente, está em todo lugar e não encerrado num lugar específico; já para os antigos, era no interior da casa que tinham o culto, a oferenda, a prece, a conversa mais íntima com os deuses. Lá fora, o homem já não tinha deus; o do vizinho era um deus hostil que não lhe atendia as súplicas e nem lhe dava proteção... um possível inimigo. Na religião antiga, os deuses, de tão severos, não admitiam nenhum perdão. Os antigos também não distinguiam juridicamente entre o assassínio involuntário e o crime premeditado. Embora ignorassem em absoluto os deveres de caridade, ao menos traçaram ao homem, com admirável nitidez, os seus deveres de família. O celibato era considerado um crime aos olhos da religião que fazia da continuidade da família o primeiro e o mais sagrado dos deveres6, e por isso, o casamento era obrigatório. A pureza da família era vista com extremo cuidado. Sendo a primeira regra do culto a transmissão da religião ao filho, o adultério era visto como o crime mais grave por comprometer a natureza do nascimento e a transmissão dos valores e bens familiares. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 11 de 57 Assim, era norma religiosa o túmulo encerrar apenas os membros da família, e, sendo um estranho o filho do adultério, não poderia sepultá-lo no mesmo túmulo; caso contrário, se violariam todos os princípios da religião, o culto ficava profanado, o lar tornava-se impuro, cada oferenda convertia-se em ofensa aos deuses. Pelo adultério, rompem-se os laços sanguíneos dos homens vivos com os mortos, extingue-se a felicidade divina entre os antepassados. Assim falava o hindu: “O filho adulterino aniquila nesta vida e na outra as oferendas dirigidas aos manes.” Para os antigos romanos, Manes eram as almas deificadas de ancestrais já falecidos. (Dicionário Houaiss, versão eletrônica 2001) 2.2 A Lei antiga As leis gregas e romanas reconheciam ao pai aquele poder ilimitado de que a religião, primitivamente, o revestira. Os numerosos e diversos direitos que as leis lhe conferiam se ordenavam em três categorias, conforme consideramos o pai de família como sendo chefe religioso, proprietário e juiz7. “Entre os gregos e romanos, como entre os hindus, desde o princípio e espontaneamente, a lei surgiu como uma parte da religião. Os antigos códigos das cidades reuniam um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de orações e, ao mesmo tempo, de disposições legislativas. As normas sobre direito de propriedade e direito de 6 Ibid, p. 98 7 “É de se notar que todos estes direitos eram atribuídos somente ao pai, com exclusão de todos os outros membros da família. A mulher não tinha o direito de divorciar-se, pelo menos nas épocas mais antigas. Mesmo quando viúva, a mulher não podia emancipar, nem adotar. Não podia ser tutora, nem mesmo de seus filhos. Em caso de divórcio, os filhos ficavam com o pai, mesmo as filhas. A mulher nunca podia ter os filhos em seu poder. Não lhe era pedido consentimento para o casamento de sua filha.” Ibid, p. 91 Segundo Catão, o antigo, “O marido, é o juiz de sua mulher; seu poder não sofre limitação; pode o que quer. Se a mulher cometeu qualquer falta, ele pune-a; se bebeu vinho, condena-a; se teve relações com outro homem, mata-a.” Ibid, p. 98 Como só o pai de família estava submetido ao julgamento da cidade, a mulher e o filho não podiam ter outro juiz a não ser o seu pai. Era, no interior da família, o seu único magistrado. Ibid, pp. 91-94 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 12 de 57 sucessão achavam-se dispersas entre as regras relativa aos sacrifícios, à sepultura e ao culto dos antepassados.”8 Em Roma, não se podia ser um bom pontífice sem conhecer bem o direito, não se podia ser um bom juiz sem ter boa ciência da religião. Como existiam poucos atos na vida humana sem laços com a religião, quase tudo se submetia às decisões dos sacerdotes, que também eram os únicos juízes para um número infinito de processos.9 A lei ordenava a todos as mínimas coisas: dizia como o cidadão devia se vestir, como a mulher devia se pentear; impedia os homens de fazer a barba, de beber vinho, obrigava-os a fazer ginástica, pois seus corpos eram armas pertencentes ao Estado. Entre os legisladores hindus, como na Grécia ou em Roma, se algum pai deixasse herança à filha, estes bens deixariam de pertencer à família do pai para pertencer à família do esposo, desta forma não existia a herança feminina, por dividir o que se deveria somar, os bens familiares. Assim, fica fácil entender a restrição à herança feminina do código de Manu “Depois da morte do pai, que os irmãos partilhem o patrimônio entre si”; não havia nenhum direito às filhas de propriedade, contudo recomendava-se que dotassem os irmãos às irmãs dos meios necessários para a sobrevivência, sinalizando que as filhas apesar de ausentes da sucessão paterna, deveriam contar com a generosidade fraternal. 2.3 Liberdade individual A cidade era fundada sobre a base da religião e construída como um templo, daí sua força e império absoluto sobre seus membros. Numa sociedade 8 Ibid, p. 202 9 Ibid, p. 203 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 13 de 57 demasiadamente organizada na coletividade, a liberdade individual não podia existir. O cidadão não tinha posse de si mesmo, subjugava-se sem reserva à cidade. A Religião gerou o Estado, este preservava sua origem e sua força na Religião, desta forma, apoiavam-se mutuamente e confundiam-se num só corpo; estes dois poderes associados formavam um poder sobre-humano, ao qual a alma e o corpo dos cidadãos submetiam-se. Segundo Fustel de Coulanges, é um erro crasso, entre tantos outros, acreditar que na antiguidade o homem gozava de liberdade. O homem não tinha sequer a mais leve idéia do que isso significasse. Ele não se julgava sujeito de direitos em detrimento da cidade e dos seus deuses. O governo mudava de forma, mas a natureza do Estado permanecia com a mesma onipotência. O sistema de governo tomou vários nomes, monarquia, aristocracia ou ainda democracia, mas em nenhuma destas mudanças o homem ganhou a sua liberdade individual. Nesta época, ter direitos políticos ou liberdade significava votar e nomear magistrados, ser arconte, mas o homem, no fundo, não foi mais que escravo do Estado. Os antigos só davam importância aos direitos da sociedade, devido ao caráter sagrado e religioso de que a sociedade originariamente se formou, mas ao homem, a liberdade individual não era possível em detrimento da coletividade. O ser humano quase não tinha valor perante o Estado santificado. O Estado, de tão poderoso, não tinha somente o direito de justiça sobre seus cidadãos, podia punir tanto os culpados quanto os inocentes; no caso dos ostracismos, bastava estar em jogo o interesse da pátria para que um cidadão fosse banido como precaução de qualquer suspeita de perturbação futura10. 10 Ibid, p. 250 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 14 de 57 3. O Advento do cristianismo 3.1 A velha religião A velha religião, onde cada deus protegia uma família ou cidade, criou uma moral onde o direito não era baseado em princípios de equidade natural, mas sim numa miríade de costumes e ritos conformes os cultos divinos. “Religião, direito, governo confundiam-se e não eram mais que a mesma coisa vista sob três aspectos diversos.”11 A vida pública ou privada era um reflexo direto dos cultos domésticos. O Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula santa em que o patriotismo era pio e o exílio uma excomunhão; a liberdade individual era desconhecida e o homem estava sujeito ao Estado por corpo, alma e patrimônio; o ódio contra o estrangeiro era obrigatório; as noções de direito e de dever, de justiça e de afeto paravam nos limites da cidade, como numa verdadeira redoma que bloqueava qualquer possibilidade de fundar sociedades mais amplas12. Estes eram as características do primeiro período da história de Roma e Grécia, mas nos cinco séculos que precederam o cristianismo, uma pequena separação entre Estado e Religião ocorreu pelo enfraquecimento da última. Diversos fatores como a pressão das classes oprimidas e o trabalho dos filósofos fizeram esforços por libertar o homem da velha religião, dando também a oportunidade de se desprender a política, a moral e o direito. 11 Ibid, p. 442 12 Ibid, pp. 442-443 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 15 de 57 3.2 O cristianismo Mas será que a antiguidade se libertando da religião antiga não correria o risco de cair nos mesmos erros de uma nova religião? A resposta é não, conforme Fustel, pois inúmeras diferenças morais introduzidas na sociedade pelo cristianismo deram uma nova cosmologia ao homem. A religião deixou de ser apenas um culto exterior para residir no pensamento do homem, deixou de ser materialista para ser espiritual, transformando a natureza e a forma de adoração, não era mais necessário dar a Deus o alimento e a bebida; a oração deixou para sempre de ser fórmula de magia, mas ficou sendo para o futuro ato de fé e de humilde súplica. O temor aos deuses foi substituído pelo amor a Deus. O cristianismo deixou de ser a religião doméstica de determinada família, a religião nacional de qualquer cidade ou de qualquer raça; não pertencia mais a nenhuma casta ou corporação; Jesus Cristo ensina aos seus discípulos, chamando a si toda a humanidade: “Ide e instruí todos os povos.” (Mt 28, 19) A nova religião trazia em tudo uma nova concepção de mundo, porque, por toda a parte, na primeira idade da humanidade, se havia concebido a divindade como pertencendo especialmente a uma coletividade. Os judeus acreditavam no Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter capitolino. O direito de praticar um culto fora discriminatório; o estrangeiro estivera expulso dos templos; o não-judeu não tinha podido entrar no templo dos judeus; o lacedemônio não tinha usufruído do direito de invocar a Palas ateniense. Contudo, é justo ressalvar que nos cinco séculos que precederam o cristianismo já todo o homem que pensava se insurgia contra estas regras mesquinhas. No que respeita ao governo, o cristianismo transformou a essência do Estado, precisamente porque não se ocupou dele. Em vez disso, Jesus Cristo ensina que o seu reino não é deste mundo; separa a religião do governo. A religião deixa de imiscuir-se demais nas coisas terrenas, senão no mínimo. Jesus Cristo aconselha: “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 16 de 57 Foi a primeira vez que tão nitidamente se distinguiu Deus do Estado; em César, a sua própria pessoa era sagrada e divina, porque um dos aspectos da política dos imperadores era precisamente o caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reispontífices e aos sacerdotes-fundadores. Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império procuravam reatar, e proclama que a religião já não é o Estado, e obedecer a César já não é o mesmo que obedecer a Deus. Os sentimentos e os costumes transformam-se, o dever por excelência deixou de consistir em dar o seu tempo, as suas forças e a sua vida ao Estado. A política e a guerra já não representavam tudo para o homem; no patriotismo já não estão compreendidas todas as virtudes, porque a alma já não tem pátria. O cristianismo distingue as virtudes privadas das virtudes públicas, humilhando estas, exalta aquelas; coloca Deus, a família, a pessoa humana, acima da pátria, e o próximo, acima do concidadão. O direito acompanha as mudanças. Em todas as nações antigas, o direito submetera-se à religião e dela recebera todas as suas normas. Entre os persas e hindus, entre os judeus, gregos, romanos e gauleses, o direito estava in totem nos livros sagrados ou na tradição religiosa. Por isso cada religião criara o direito a seu modo. O cristianismo é a primeira religião que não pretende regular o direito. Ocupou-se dos deveres dos homens, não das suas relações de interesses. Não o encontramos regulando nem o direito de propriedade, nem a ordem de sucessão, nem as obrigações, nem o processo. O cristianismo coloca-se fora do direito, como acima de todas as coisas puramente terrenas. O direito tornou-se, pois, independente; pôde procurar as suas regras na natureza, na consciência humana, na poderosa concepção do justo que existe em nós. Desenvolveu-se em liberdade seguindo os progressos da moral, curvou-se aos interesses e às necessidades sociais de cada geração. À medida que o cristianismo conquistava a sociedade, os códigos romanos admitiam novas leis, já não por subterfúgios, mas abertamente e sem hesitações. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 17 de 57 O pai perdeu a autoridade absoluta que outrora lhe havia dado o seu sacerdócio, só conservando a autoridade pela própria natureza conferida para a educação do filho. A mulher, que o antigo culto colocara em posição de inferioridade perante o marido, tornou-se moralmente igual. O direito de propriedade transformou-se na sua essência; desapareceram os limites sagrados dos campos; a propriedade deixou de derivar da religião para provir do trabalho. 3.3 A Idade Média Há uma idéia, um tanto equivocada quanto divulgada, de que a Idade Média era uma cultura monolítica inteiramente controlada pela Igreja Católica. Ninguém imagina ter sido a realidade bem diferente, este período não foi nada contínuo, nada uniforme, nada simplório! O período medieval foi bastante intrincado e multifacetado culturalmente como que uma colcha de retalhos formada por tecidos das mais diversas origens, tipos, fios e cores; um imenso mosaico formado pelos estilhaços de um mundo em colapso e pelo choque violento de diversas culturas semitribais, cada uma rejeitando a outra, e apesar dos pesares, entrelaçando línguas, costumes, valores, leis, ciências, artes, mitos e sangue. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 18 de 57 Para dar uma idéia dos diferentes processos de formação do Estado13 e da descontinuidade econômica deste caldeirão multicultural, na mesma região da península itálica, a ascensão das comunas urbanas aconteceu mais cedo e foi mais importante do que em outros lugares; os domínios senhoriais predominavam apenas na Lombardia e no Norte, mas no Sul concentravam mais as propriedades rurais; no centro montanhoso do país, as pequenas propriedades camponesas eram mais numerosas. O próprio sistema senhorial era mais fraco na Itália que ao norte dos Alpes e as cidades italianas jamais perderam as características da vida urbana do antigo império romano e se transformaram em importantes centros de tráfico comercial no mediterrâneo14. 3.4 Quando os fracos não têm vez Do ponto de vista da caridade na Antigüidade, o que funcionava era o “cada um por si” e o meu deus contra os outros. Seja pobre ou doente, o fraco era freqüentemente tratado com desprezo; era comum antes do cristianismo que um homem incapaz fosse abandonado à morte ou que crianças débeis fossem afogadas. Nas sociedades patriarcais, deixar meninos viverem por causa do seu valor e matar meninas por causa do seu desvalor eram a praxe. 13 “A gradual introdução do cristianismo na Escandinávia, conversão que só foi completada pelo final do século XII, presente por toda parte, acelerou a transição de comunidades semitribais tradicionais a sistemas de Estado monárquicos: as religiões pagãs nórdicas que haviam sido a ideologia nativa de uma velha ordem de clãs naturalmente caíram.” Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao feudalismo, p. 173 Houve ainda um segundo catalisador externo na formação das estruturas de Estado no Oriente. Este foi a Igreja Cristã. Assim como a transição das comunidades tribais a formas de governo territorial era invariavelmente seguida pela conversão religiosa na época das colonizações germânicas no Ocidente, no Oriente ocorreu o mesmo – fundação de Estados geridos por príncipes coincidia com a adoção do cristianismo. Como já tivemos oportunidade de verificar, o abandono do paganismo tribal normalmente era uma precondição social para o estabelecimento de autoridade e hierarquia políticas centralizadas. O trabalho profícuo de emissários da Igreja vinda de fora – católica ou ortodoxa – era uma componente essencial ao processo de formação do Estado na Europa Oriental. Ibid, p. 223 14 Ibid, p. 161 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 19 de 57 Foi o cristianismo que trouxe à nossa civilização a idéia da sacralidade da vida humana, o valor único que cada pessoa tem, em virtude, da sua alma imortal e não da sua raça, sexo, credo ou status na sociedade. 3.5 Gladiadores, duelistas, mártires e suicidas O entretenimento pelo jogo da morte15 também foi abolido pelos ensinamentos de Cristo. Segundo Lecky “Houve poucas reformas tão importantes na história moral da humanidade como a supressão dos espetáculos de gladiadores, um feito que deve ser atribuído quase exclusivamente à Igreja Católica”. O duelo também foi abolido pelo cristianismo, o Papa Leão XIII condenouo enfaticamente ao dizer que no fundo só tratava do desejo ridículo por vingança e o desprezo profundo por sua e pela vida do próximo. O duelista, no fundo, não passava de um suicida em potencial. Entre os estóicos era freqüente cometer suicídio, consideravam prova de desapego do mundo determinar o momento da sua própria morte. Santo Agostinho condenou explicitamente a antigüidade pagã favorável ao suicídio: “Grandeza de espírito não é o termo correto para designar alguém que se mata por lhe ter faltado coragem para enfrentar o sofrimento ou as injustiças dos outros. Na verdade, revela-se fraqueza em uma mente que não pode suportar a opressão física ou a opinião estúpida da plebe. Nós atribuímos muito justamente grandeza de espírito a quem tem a fortaleza de enfrentar uma vida de miséria em 15 O derramamento de sangue dos gladiadores e a consumação dos homens pelas feras como espetáculos circenses sempre foram julgados imorais pelos cristãos, mas os estóicos, defensores de uma moralidade desapegada da dor e do prazer, eram indiferentes para com a matança e nada fizeram para acabar com o espetáculo do horror. O Imperador Marco Aurélio, profundamente Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 20 de 57 vez de fugir dela, e de desprezar os juízos dos homens [...] antepondolhes a pura luz de uma boa consciência.” 16 A respeito do aparente paradoxo entre o mártir e o suicida, Chesterton aponta em seu famoso livro Ortodoxia que “O Cristianismo fez mais: estabeleceulhe limites nas terríveis sepulturas do suicida e do mártir, apontando a distância que separa aquele que morre por amor à vida daquele que morre por amor à morte.” 3.6 A Guerra Justa A Guerra Justa foi outro tema em que a moral foi muito discutida. Ao defender que o Estado17 estava acima da moral, Maquiavel foi de encontro à posição da Igreja. Para ele, a política eximia os governantes de qualquer juízo moral, e as estratégias políticas não passavam de um jogo de xadrez, no qual a eliminação de um peão, não passava de uma peça de marfim a menos no tabuleiro, mesmo que esta peça significasse a morte de cinqüenta mil homens.18 “Foi precisamente para combater esse tipo de pensamento que começou por desenvolver-se a tradição da Guerra Justa e, particularmente, as contribuições dos escolásticos do século XVI. De acordo com a Igreja Católica, ninguém – nem mesmo o Estado – está isento das exigências da moral. Nos séculos subseqüentes, a teoria da guerra justa demonstrou-se uma ferramenta indispensável de reflexão moral; e os filósofos que, nos dias de hoje, trabalham nessa linha, estóico e detentor do poder político, também nada fez. 16 Santo Agostinho, A cidade de Deus, 1, 22 17 “Devemos muito mais à Igreja Católica do que a maior parte das pessoas – incluídos os Católicos – costuma imaginar. Porque, para sermos exatos, foi ela quem construiu a civilização ocidental.” Thomas Woods Jr, Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental, p. 5 18 Roland H. Bainton, Chistian Attitudes Toward War and Peace, Abingdon Press, New York, 1960, pp. 123-26. Apud, ibid, p. 198 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 21 de 57 partem desses princípios tradicionais para fazer face aos desafios específicos do século XX.”19 3.7 Democracia20 No livro “Cristianismo e democracia”, Jacques Maritain designa a democracia como sendo, antes de tudo, uma filosofia geral da vida humana e da vida política, um certo estado de espírito, que não exclui qualquer dos “regimes” ou das “formas de governo” que a tradição clássica reconheceu como regimes legítimos. Desde a Revolução Francesa e a explosão do idealismo cristão laicizado nela, o lema “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” transmutou-se em justiça social e vivificou o Ocidente. Já o Autoritarismo e Totalitarismo, no Ocidente, só podiam ser explicados, segundo o autor, por causa dos sofrimentos e das desordens ocasionados pela Revolução, através de certos indivíduos, ainda presos à barbárie, como que almas de escravos ansiosos pelo aniquilamento desse próprio sentido da Liberdade.21 19 Ibid, p. 199 20 “A democracia em sentido estrito só deu certo na Inglaterra e nos EUA, porque os povos anglo-saxônicos foram preparados para ela, primeiro, pelo cristianismo (os ingleses cristianizaramse bem antes do resto da Europa); segundo, pela economia de mercado, que na Inglaterra já era muito ativa desde a Idade Média; terceiro, por uma longa tradição de respeito aos direitos e privilégios formados pelo tempo e pelo hábito - uma condição que, na Inglaterra, faz a ponte entre a sociedade feudal e o mundo moderno por meio da continuidade da monarquia. A democracia é inconcebível sem a noção da inviolabilidade sagrada da consciência individual, portanto sem a herança grega, romana e judaico-cristã, e sem a tradição de iniciativa pessoal. Essas condições existem em poucos lugares do mundo, portanto a idéia democrática, quando transplantada para fora do mundo anglo-saxônico e enxertada em condições locais diferentes, resulta em formações sociais bem diferentes do modelo original. No Brasil, por exemplo, ela encontra três condições adversas: a tradição de governo central forte, a cristianização insuficiente das massas, a desorientação e fragilidade dos indivíduos num território enorme e numa sociedade complexa onde vieram parar (muitos à força, como os escravos) sem ter um projeto de vida claro.” Olavo de Carvalho em Entrevista de Olavo de Carvalho à Revista do Clube Militar, http://www.olavodecarvalho.org/textos/cmilitar.htm, acesso em 04 de junho de 2009. 21 Jacques Maritain, Cristianismo e Democracia, p. 31 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 22 de 57 Em 1942, em plena 2ª Guerra Mundial, ano de escritura do livro, Maritain discursando sobre o Totalitarismo e a importância dos povos cristãos na guerra, disse: “O sangue de tantos homens não está sendo derramado para impor a todos os povos a forma de governo democrático. Está sendo derramado para que prevaleça em todos essa consciência da vocação da nossa espécie para realizar, em sua vida temporal, a lei de amor fraterno e a dignidade espiritual da pessoa humana, que é a alma da democracia. [...] no que se refere às relações da política e da religião, está claro que o cristianismo e a fé cristã, assim como não podem ser enfeudados a qualquer espécie de forma política, também não o podem ser, quer à democracia como forma de governo, quer à democracia como filosofia da vida humana e política. Isso mesmo resulta da distinção fundamental, introduzida pelo Cristo, entre as coisas que pertencem a César e as coisas que pertencem a Deus, distinção que se desenvolve através de toda espécie de acidentes ao longo de nossa história, e que liberta a religião de toda servidão temporal, despojando o Estado de qualquer pretensão sagrada., em outras palavras, laicizando o Estado.” 22 O que a consciência profana adquiriu sob inspiração evangélica, caso não se volte para a barbárie novamente, é a condenação da dominação perversa dos governantes; o sentimento profundo de que a injustiça é o berço da desordem; que a inviolabilidade das consciências é a primazia dos valores interiores sobre os valores exteriores; que a idéia de uma casta, de uma classe, ou de uma raça superior e dominadora, deve ceder o lugar à idéia de uma elite do espírito e do trabalho que provenha do povo sem dele se isolar, corromper valores ou simplesmente devorar vidas; que mesmo a pessoa fazendo parte do Estado, transcende o Estado pelo mistério inviolável de sua liberdade e por sua vocação a certos bens absolutos. A razão de ser do Estado é auxiliar na conquista desses 22 Ibid, pp. 44-45 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 23 de 57 bens e de uma vida verdadeiramente humana, só a compaixão pelo homem, na pessoa dos fracos e sofredores é que se faz Fraternidade; certeza de que a obra política por excelência é tornar a vida comum mais fraternal, trabalhando, ao mesmo tempo, para fazer das leis, das instituições e dos costumes um lar para irmãos. O cristianismo23 anunciou o reino de Deus, ensinou a unidade do gênero humano, a igualdade de natureza de todos os homens, filhos do mesmo Deus e resgatados pelo mesmo Cristo24, a inalienável dignidade de cada alma criada à imagem de Deus, a exata vigilância da justiça e da providência de Deus sobre os grandes e sobre os pequenos, a lei do amor fraternal que a todos se estende, mesmo aos que são nossos inimigos, porque todos os homens qualquer que seja o grupo social, a raça, a nação, a classe a que pertençam, são membros da família de Deus e irmãos adotivos de Cristo. O cristianismo proclamou que onde está a Caridade ali Deus está, e que depende de nós transformar qualquer homem em nosso próximo, amando-o como a nós mesmo e tendo compaixão dele, isto é, morrendo de certo modo a nós mesmos por ele.25 Razões mais antigas que a Revolução Francesa são dadas pelo escritor judeu Franz Oppenheimer quando afirmou que as democracias nasceram no mundo judaico-cristão do Ocidente, que a história da democracia é um pressuposto fundamental do nosso mundo pluralista e que se deve também a essa 23 “Não coube a crentes inteiramente fiéis ao dogma católico, coube a alguns racionalistas proclamarem na França os direitos do homem e do cidadão. Coube a alguns puritanos darem na América o último golpe à escravidão. Coube a comunistas ateus abolirem na Rússia o absolutismo do lucro privado. Essa última operação teria sido menos viciada pelo poder do erro e teria custado menos catástrofes se tivesse sido feita por cristão. O esforço para libertar o trabalho e o homem da dominação do dinheiro procede, entretanto, das correntes abertas sobre o mundo pela pregação do Evangelho, tanto quanto o esforço para abolir a servidão e o esforço para fazer reconhecer os direitos da pessoa humana.” Ibid, p. 46 24 “A pregação da verdade não levou o Cristo a fazer muitas conquistas, levou-o à Cruz. Pela caridade é que Ele conquistou as almas e arrastou-as atrás de si. Não existe outros meios para conquistá-las a nós.” Ibid, p. 98 25 Ibid, p. 54 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 24 de 57 mesma história os critérios com base nos quais as nossas democracias puderam voltar a ser verificadas, criticadas e corrigidas até hoje.26 26 “Não posso senão concordar com o que Oppenheimer disse. Hoje sabemos que o modelo democrático se desenvolveu a partir das constituições monacais que anteciparam esses modelos com os capítulos e a votação. Assim, a idéia de um direito igual para todos pode encontrar a sua forma política. É claro que antes já tinha havido a democracia grega, da qual vieram impulsos decisivos, mas que teve de voltar a ser transmitida depois da queda dos deuses. É um fato conhecido que as duas democracias originárias, a americana e a inglesa, se baseiam num consenso de valores que vem da fé cristã e que só puderam e podem funcionar quando existe um consenso básico no que diz respeito aos valores. De outro modo, elas se dissolveriam e se desfariam. Podese, pois, fazer um balanço histórico positivo do cristianismo, o qual levou a uma nova relação do Homem consigo mesmo e a um novo molde de ser humanitário. A democracia grega antiga baseava-se na garantia sagrada dos deuses. A democracia cristã da época moderna baseia-se no caráter sagrado dos valores garantidos pela fé que são subtraídos à arbitrariedade das maiorias. Precisamente o disse há pouco sobre o balanço do século XX mostra também que, quando se retira o cristianismo, voltam a irromper, de repente, forças arcaicas do mal que estiveram banidas por causa dele. Pode-se dizer, de um ponto de vista puramente histórico, que não há democracia sem um fundamento religioso, ‘sagrado’. [...] é precisamente a história das grandes ditaduras atéias do nosso século, o nacional-socialismo e o comunismo, que mostra que o declínio da Igreja, o enfraquecimento e a ausência da fé como força marcante precipitam realmente o mundo no abismo. O paganismo pré-cristão ainda tinha certa inocência, e a ligação com os deuses também representava valores originários que limitavam o mal; se agora desaparecessem as forças que se opõem ao mal, o desmoronamento seria de fato extraordinário. Podemos dizer, com base na certeza empírica, que se o poder moral representado pela fé cristã fosse arrancado de repente da humanidade, ela vacilaria como um navio que tivesse batido num iceberg, e então a sua sobrevivência estaria em grande perigo.” Joseph Ratzinger, O sal da terra, pp. 180-181 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 25 de 57 4. Contribuições Jurídicas A contribuição do cristianismo ao direito não se deu apenas no campo dos costumes, da moral e do Estado, ele também se fez notar em institutos próprios desenvolvidos por estudos jurídicos basilares. Passa-se a elencá-la, nesta parte do trabalho, uma amostra das contribuições jurídicas por um critério de importância lógico-cronológica. 4.1 Direito Processual Antes de ser compilado o Direito Canônico27 nos séculos XII e XIII, não existia na Europa nenhum sistema jurídico assemelhado com o moderno. Desde a queda de Roma e sua invasão pelos povos bárbaros, muitas das leis deste período baseavam-se apenas nos costumes e nos laços sanguíneos. Tão pouco o direito na Igreja era sistematizado, encontrava-se disperso e regionalizado em concílios ecumênicos, livros penitenciais, livros dos papas, dos bispos, dos Padres da Igreja e da Bíblia. 27 Do latin canón,ònis 'lei, regra, medida, regras de gramática, conjunto de livros sagrados reconhecidos pela Igreja como de inspiração divina'. Do grego. kanôn,ónos 'haste de junco, régua de construção, peça de maquinaria, chave de abóbada, fronteira ou limite, tipo, modelo, princípio, épocas ou períodos principais da história, regra ou modelo ou padrão gramatical de declinação, conjugação, flexão, metrificação' (Dicionário Houaiss, versão eletrônica 2001) O Código Canônico está em pleno funcionamento, o atual foi promulgado em 1983 pelo papa João Paulo II, abrogando o código anterior de 1917. O direito canônico influenciou toda a Europa e países colonizados, oferecendo-lhes valores éticos e morais de origem cristã. Anteriormente, o direito canônico fora influenciado pelo romano naquilo que não contrariava o cristianismo. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 26 de 57 4.1.1 Os canonistas e as provas racionais Os canonistas, a partir do uso da razão e da noção de uma lei natural, ensinaram como elaborar um sistema coerente partindo de fontes tão distintas quanto os costumes e os laços sanguíneos; textos tão vastos quanto a Bíblia, a Patrística e os textos conciliares da Igreja; e autores tão diversos quanto Platão, Aristóteles, Agostinho e Justiniano28. Foi um trabalho monumental o do monge Graciano quando reuniu o que parecia impossível “Uma concordância de cânones discordantes” no seu Tratado sobre Direito Canônico (Decretum Gratiani). De acordo com Berman, foi “o primeiro tratado legal abrangente e sistemático na história do Ocidente e, talvez, na história da humanidade – se por [abrangente] se entende a tentativa de abarcar virtualmente todo o direito de um sistema de governo, e [sistemático] o esforço por apresentar esse direito como um corpo único, cujas partes se relacionam entre si de modo a formarem um todo”.29 Importantes desenvolvimentos foram além da forma unificada e codificada do direito canônico, chegaram ao conteúdo do direito, atingindo o matrimônio, a propriedade, a herança e as provas racionais em juízo. Quanto às provas em juízo, os canonistas e os juristas católicos das universidades medievais viram-se diante de uma situação desastrosa: até fins do século XI, os povos da Europa continuavam a viver em um regime bárbaro, em que “a lei que prevalecia era a lei da vendeta do sangue, dos julgamentos decididos por meio de combates, pelos ordálias do fogo e da água, pelo depoimento de testemunhas arroladas pelo acusado em sua defesa.” 28 No século XII, os romanistas elaboraram um ensino baseado no direito romano, principalmente da clássica codificação de Justiniano, Corpus iuris civilis. Esse "direito romano", porém, não era o mesmo de Roma, pois os romanistas interpretavam a partir da cultura jurídica em que viviam. 29 Thomas Woods Jr, Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental, p. 33 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 27 de 57 A culpa e a inocência eram cruelmente determinadas em provas de água e fogo; os procedimentos racionais canônicos buscaram afastar do julgo do homem as crenças supersticiosas das ordálias. Com o desenrolar do tempo, o devido processo legal foi consagrado na Magna Carta de 1215, primeira referência indelével ao instituto que no original em Latin era per legale judicium parium suorum, vel per legem terrae (ninguém pode ser processado "senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou em harmonia com a lei do País”). A expressão due process of Law só foi usada na 5ª Emenda à Constituição Americana de 1787, estabelecendo que "nenhuma pessoa pode ser privada da vida, liberdade e propriedade, sem o devido processo legal"; com a 14ª Emenda à Constituição Americana veio a consolidação do instituto. 4.2 Direito Penal Distanciando-se do paganismo, o cristianismo trouxe à civilização uma distinção fundamental entre o crime e o criminoso; enquanto este deveria ser perdoado 70 x 7, aquele seria imperdoável. O homem poderia ser considerado “condenável”, mas jamais “condenado” em absoluto30. No mundo pagão, os atos humanos não eram julgados morais ou imorais sem também olhar quem os cometera. Desta forma, para um escravo simpático ladrão de vinhos, a zombaria seria sua pena, mas para um escravo antipático que traísse seu senhor, certamente sua vida perderia. O cristianismo ensinou que deveríamos ser mais intolerante ao simpático ladrão de vinhos, e mais tolerante ao antipático traidor. O crime, uma vez cometido, nunca mais deixaria de existir, por isso era imperdoável, enquanto o criminoso é passível de transformação e recuperação, e por isso, perdoável. 30 Exceto o pecado/blasfêmia contra o Espírito Santo que não será perdoado neste mundo, nem na eternidade (Mateus 12:31-32 e Marcos 3:30). Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 28 de 57 4.2.1 A cela e o monge31, a tortura e a expiação A cela monacal forneceu um modelo arquitetônico e psicológico de clausura que ainda permanece nas penitenciárias atuais: “Inegavelmente, o direito Canônico contribuiu decisivamente para com o surgimento da prisão moderna, especialmente no que se refere às primeiras idéias sobre a reforma do delinqüente. Precisamente do vocábulo “penitência”, de estreita vinculação com o Direito Canônico, surgiram os termos penitenciário e penitenciária.”32 Segundo o Papa Alexandre, através do Decretum Gratiani no séc. XII: “a confissão não deve ser obtida pela tortura” e apesar de ainda existir crueldade, as prisões eclesiásticas eram mais humanas que as prisões seculares. O Papa Clemente XI (1649-1721) foi um importante reformador e reabilitador da penas privativas de liberdade, suas idéias tiveram êxito na “Casa de Correção de São Miguel” (1703), onde o ensino religioso, o isolamento, o silêncio, o trabalho, além de uma férrea disciplina, eram os pilares para a correção do apenado. Obra importante é o livro “Reflexões sobre as prisões monásticas” de Juan Mabillon (monge beneditino francês) que antecipou uma série de considerações apresentadas por iluministas, destacando a proporcionalidade da pena de acordo com o delito cometido e a reintegração do apenado à comunidade. Segundo a 31 Os mosteiros são um capítulo a parte dentro da Idade Média. Guardaram em suas bibliotecas o tesouro da Antiguidade e difundiram conhecimento, trabalho e oração. São Bento com sua regra e seu lema “Orat et Labora” transformou profundamente os povos bárbaros. Nos mosteiros, o trabalho foi resgatado e considerado virtuoso enquanto o ócio assumiu seu vício, afinal Jesus era um carpinteiro e seus apóstolos, pescadores. São Benedito delcarou que "agora são verdadeiros monges, pois vivem do trabalho das suas mãos, como os nossos pais e os apóstolos". Valoriza-se o trabalho como um corretivo, antídoto ao ócio, que é inimigo da alma. 32 Cezar Bitencourt, Tratado de Direito Penal, Vol 1, p. 465 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 29 de 57 concepção do monge, em suas células prisões, além do isolamento, deveria ter um jardim para que o preso pudesse cuidar da terra e ajudá-lo em sua recuperação. Através da “Doutrina da Expiação”, Santo Anselmo fomentou que a ofensa à ordem moral do universo e contra a justiça requeria uma punição adequada à natureza e à extensão da violação. Os delitos deveriam ser proporcionais aos males, e o direito de propriedade, quando violado, deveria ser restabelecido por quem o violou.33 Apesar de toda humanização e dulcificação das penas, havia o paradoxo na Idade Média, seja pela mentalidade bárbara ou pelo enfraquecimento da fé em determinadas lugares e épocas, que a tortura era aceita como “norma” dos costumes. Durante a Inquisição, era mais que comum soltar o réu arrependido sem nenhum castigo que não fosse o da penitência da confissão, porém quando não o fazia, a confissão era retirada pelo suplício do corpo torturado e posteriormente entregue aos braços seculares para fogueira. O aparente paradoxo se explica no fato em que para o homem medieval, era mais importante a salvação da alma que o sofrimento do corpo. Claro que, sob este prisma, muitos confessaram o que não fizeram, pois sob a tortura “toda carne se trai.”34 33 Tendo violado a justiça em si (em abstrato), a pessoa devia submeter-se a alguma punição, a fim de que a justiça fosse restabelecida. Em grande parte, o crime tornou-se ‘despersonalizado’, na medida em que as ações criminosas começaram a ser encaradas menos como ofensas a pessoas concretas e mais como violações ao princípio abstrato da justiça. “Essa linha de pensamento, embora nos seja familiar, contém o perigo potencial de que o direito penal, na sua ânsia de reparar a justiça em abstrato por meio de uma punição retributiva, degenere até o ponto de olhar apenas para o castigo, abandonando qualquer propósito de restituição, de um tipo ou de outro. É por isso que, hoje em dia, nos encontramos com a perversa situação de que um criminoso violento, em vez de ao menos tentar indenizar de algum modo a sua vítima ou os seus herdeiros, é ele próprio sustentado pelos impostos pagos pela vítima e seus familiares. Portanto, a insistência em que o criminoso ofendeu a Justiça em si mesma e, por isso, merece punição, deve estar completamente subordinada ao senso anterior de que o criminoso ofendeu a sua vítima, e que deve indenizar qualquer pessoa que tenha prejudicado.” Thomas Woods Jr, Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental. p. 185 34 “Sabemos que os sacrifícios humanos marcam de forma horrível uma parte da história das religiões; sabemos que a religião política se transformou num instrumento de destruição e de opressão; conhecemos patologias na própria religião cristã. A queima das bruxas e a retomada de um costume germânico que tinha sido superado com dificuldade com a evangelização na Alta Idade Média e que, depois, na Baixa Idade Média, voltou a surgir com o enfraquecimento da fé.” Joseph Ratzinger, O sal da terra, p. 20 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 30 de 57 4.3 Direito Civil 4.3.1 Pessoa Jurídica O Direito Romano chegou a fazer distinção entre a corporação (universitas) e os seus membros (singuli), mas não conheceu a pessoa jurídica como a conhecemos. Os canonistas foram à frente e criaram o conceito de Instituição Eclesiástica para divergir da Corporação Eclesiástica dos glosadores. Aqueles queriam criar um conceito que separasse dos membros religiosos os direitos eclesiásticos pertencentes a Deus. “Aparece aqui, pela primeira vez, a distinção entre o conceito jurídico de pessoas e conceito real das pessoas como ser humano.”35 No Concílio de Lyon (1245) foi adotada esta pessoa ficta sem alma e por conseqüência sem possibilidade de delinqüir e de ser excomungada. As pessoas jurídicas começaram a ter importância somente para a criminalidade no mundo moderno, mais como figura de retórica que de outro fundamento. O princípio Societas delinquere non potest só faz refletir a inadmissibilidade perante a punibilidade penal das pessoas jurídicas, aplicandolhes somente a punibilidade administrativa ou civil por causa dos impedimentos doutrinais a respeito de: a) a política criminal; b) a incapacidade de ação; c) a incapacidade de culpabilidade; d) o princípio da personalidade da pena; e) as espécies ou natureza das penas aplicáveis às pessoas jurídicas. 4.3.2 Posse e Propriedade, uso mas não abuso Mesmo em sociedades não civilizadas como a pastoral e a nômade, concebia-se a idéia de propriedade decorrente de uma “lei natural” segundo os frutos do trabalho: a presa de caça ou de guerra, os braceletes e as pontas de lança, as peles do urso caçado, os produtos do cultivo da terra. 35 Cezar Bitencourt, Tratado de Direito Penal, vol I, p. 15 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 31 de 57 Na sociedade patriarcal, o pai possui em nome da família a propriedade que a todos aproveita e que ele não tem o direito de vender nem de dar. A idéia de propriedade vinha de cada religião, de cada lar e de cada família com seus antepassados exclusivos. Os antigos viam uma misteriosa relação de propriedade entre os deuses, o solo e a família36. O homem sempre considerou em seus direitos o de se apoderar de certos bens, daí a frase célebre dos romanos sobre a propriedade ius utendi, fruendi et abutendi re sua, exclusis aliis, quatenus iuris ratio patitur (Digestae, 7, 8, 2, par.), ou seja, a propriedade é o direito de reivindicar e de conservar como seu aquilo que foi legitimamente adquirido, de usar, gozar e dispor dessa coisa à vontade, com exclusão de outrem, nos limites da lei37. Latente à idéia de propriedade dos antigos, havia também a noção do uso sem limites38 que gerava o abuso da destruição e da exploração. Apesar dos romanos já distinguirem a noção de posse do direito de propriedade (conceito construído na jurisprudência pretoriana datada do início do século II a.C.), foi na sociedade feudal que a propriedade e a posse vão ser, definitivamente, separadas e relativizadas. Com isto, a noção de uso e de abuso irá surgir com mais precisão. Assim, o escravo antigo passa a ser servo do “senhor” e não mais ter “dono”. Esta concepção de posse e propriedade permeava todos estamentos da sociedade medieval, enquanto o servo tinha a posse da terra quem detinha a propriedade era o senhor feudal; enquanto o senhor feudal tinha a posse da terra quem detinha a propriedade era o Barão; enquanto o Barão tinha a posse da terra quem detinha a propriedade era o Visconde... e depois o Visconde, e depois o Conde, e depois o Marquês, e depois o Duque, e depois o Arquiduque (quanto 36 Fustel de Coulanges, A cidade antiga, pp. 62-75 37 Máriton Silva Lima, http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9342, acesso em 25 de abril de 2009 38 Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, vol. III, p. 3 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 32 de 57 mais elevado o posto na hierarquia, mais próximo do monarca a da sucessão do trono), e depois o Rei, e depois o Imperador... Ninguém possuía a propriedade em absoluto, todos eram posseiros, administradores contingentes e efêmeros. Ninguém era dono de nada; podiam usar, mas não abusar, pois, em última instância, deveriam prestar contas de tudo e de todos a Deus, o verdadeiro proprietário e criador de todas as coisas. 4.3.3 Livre consentimento e Matrimônio Através do matrimônio, o livre consentimento passou a ser necessário em todos os atos da vida civil. Qualquer coação ou erro de identidade ou condição importante da outra pessoa era motivo para desfazimento como se nunca tivesse existido. Segundo Harold J. Berman, surgiram aqui elementos básicos do moderno direito contratual: conceito de livre manifestação da vontade e de ausência de erro, coação e fraude39. Por meio destes princípios pôs-se fim aos casamentos de crianças, tão comuns às culturas bárbaras. 4.4 Direito Comercial 4.4.1 Usura Apesar de Aristóteles considerar que o comércio de dinheiro não deveria criar riquezas “não é natural, pois é feita à custa dos outros”; em Roma, o empréstimo poderia ser gratuito (mutuum significa a um só tempo empréstimo e reciprocidade) ou com juros estipulados (stipulatio usurarum) a 1% ao mês, eram a censtésimae usurae, os “cêntímos de usura”, mas qualquer aumento no percentual (12% a.a) era considerado ilícito (iniquissimo foenore). 39 Fustel de Coulanges, A cidade antiga, p. 182 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 33 de 57 Muitos consideram que a Idade Média tinha uma economia fechada, a maioria pensava que o resultado das trocas financeiras era nulo40. Dentro desta concepção, a usura era vista como uma forma de tirar vantagem do próximo, o reembolso do principal é humano, mas os juros eram bestiais. São Boaventura resume Aristóteles e a Bíblia na frase “O dinheiro não frutifica por si mesmo, seu fruto vem de outra parte.” Verdade que o “Emprestai, sem nada esperar em troca” era um apelo insistente da Igreja41 à santidade dos homens; poderia ser considerado pecaminoso, contudo nunca criminalizado. 40 “Insistindo ainda neste ponto de liberdade, gostaria de falar da economia medieval. Ela nos foi descrita como um sistema fechado, estabilizado. Mas desde Fritz Roerig (Le Commerce international du Moyen-Age, 1993) sabemos que era uma economia internacional e livre. Sua liberdade só foi destruída pelo mercantilismo barroco. O mercantilismo estabeleceu barreiras alfandegárias que também só foram destruídas pelo liberalismo. Aí o liberalismo e a Idade Média se juntam contra um inimigo comum: o barroco.[...] Ortega y Gasset assinala o caráter antidemocrático, mas profundamente liberal, da sociedade medieval: os senhores feudais colocam os seus direitos pessoais acima da lei do Estado, o que torna muito limitados os poderes do Estado em relação aos direitos individuais. Ortega Y Gasset chega mesmo a falar em “Direitos do homem” da Idade Média. Sem dúvida, seria excessivo falar num “liberalismo medieval”; mas os privilégios feudais e as instituições do liberalismo inglês tiveram as suas origens comuns no direito germânico. Eis por que Guido de Ruggiero assinala, logo na primeira página da sua Storia di liberalismo nell´Europa (1925, pp.1-7), a origem feudal da “Liberdade” e sua prioridade cronológica em relação ao Estado absolutista do barroco. Não é por acaso que o liberalismo dos “Direitos do homem” se revolta contra o absolutismo barroco, verdadeira antítese do Estado medieval. Ainda uma vez o liberalismo e a Idade Média se encontram, tendo o barroco por inimigo comum. [...] A conclusão já está tirada. O que se odeia ou admira na Idade Média, os sistemas filosóficos rigorosamente fechados, o Estado paternal e forte, a Igreja como base espiritual da Ordem estabelecida, não são, porém, atributos da Idade Média, e, sim do barroco. Como era e é admissível este erro? Fez-se da Idade Média um pretexto para polêmicas apaixonadas, em vez de defini-la sinceramente.” Otto Maria Carpeaux, Ensaios Reunidos, pp. 209-210 41 “Examinando a cristandade ocidental no século XVI, somos levados a concluir que havia uma quase-igualdade de chances, com um evidente avanço no Sul. Nada poderia induzir a prever, na época, o impulso das nações que aderirão a uma das Reformas protestantes, nem o declínio relativo, ou até absoluto, das nações que permanecerão ‘romanas’. Ora, a partir do final do século XVI, a cristandade ocidental torna-se o teatro de uma distorção econômica. A Europa nórdica substituiu a Europa latina como foco de inovação e de modernidade. Contudo, é redutivo demais, para não dizer simplista demais, afirmar que a Reforma protestante seria como uma galinha dos ovos de ouro, e que deteria em si mesma o segredo do desenvolvimento econômico, social, político e cultural. A divisão entre uma Europa ‘romana’, que entra em declínio econômico, e uma Europa das Reformas protestantes que toma impulso, reflete menos uma determinação do econômico pelo religioso — ou do religioso pelo econômico — do que a expressão de uma ‘afinidade eletiva’ entre um comportamento socio-econômico espontâneo e uma escolha religiosa. Pelo menos é essa a minha conclusão.” Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança, p. 24 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 34 de 57 São Tomás de Aquino consagra uma questão inteira da Suma Teológica ao “pecado da usura”, separa definitivamente do empréstimo o investimento. Enquanto no primeiro, o risco da perda do dinheiro era totalmente do prestatário e não do prestamista, no segundo, o investidor assumia o risco do capital investido; era justo que participasse nos lucros como de seu próprio bem fosse. A intenção de Tomás era dar provas racionais sem apelar à Bíblia ou qualquer argumento de autoridade para verificação da usura. Se por um lado ele desenvolveu o pensamento da época ao diferenciar o investimento do empréstimo, ele não conseguiu ver adequadamente o valor do usufruto financeiro no decorrer do tempo. Se era permitido cobrar rendimento de uma terra, cuja forma natural era um campo improdutivo, por que não cobrar rendimento do dinheiro? Se nenhum risco havia ao proprietário perder a terra, nem ao dono, perder sua casa alugada, por que considerar pecado a usura decorrente da perda de tempo, de oportunidades e dos lucros cessantes do prestamista?42 4.5 Direito Constitucional A Magna Carta foi redigida em latim, seu nome completo era Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae, também conhecida como Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do Rei inglês. O documento de 1215 limitou o poder absoluto dos monarcas, resultado dos desentendimentos entre o Rei João-semTerra, o Papa e os barões ingleses acerca das prerrogativas do soberano. Segundo os termos da Magna Carta, João deveria reconhecer que a vontade do rei estaria 42 “Ora, qual é a diferença moral entre extrair 5% de dado capital e, com o mesmo capital, construir uma casa que será alugada pelos mesmos 5%?” Alain Peyrefitte, A sociedade de confiança, pp. 95-102 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 35 de 57 sujeita à lei e respeitar determinados procedimentos legais, a exemplo do conhecido art. 39: "Nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra." Ao tornar a Igreja livre da ingerência da monarquia, o documento43 garantiu certas liberdades individuais que, na prática, concedeu determinadas liberdades civis à sociedade. 4.5.1 Direito Natural Antes, pensava-se que as origens dos direitos naturais remontavam ao século XVII, mas com o trabalho de Brian Tierney44, importante medievalista, verificou-se que as raízes estavam fincadas no século XII pelo Decretum de Graciano e por seus estudiosos conhecidos como decretistas: “O importante para nós é que, ao explicarem os vários sentidos possíveis do termo ius naturale, os juristas descobriram um novo significado, que não estava realmente presente nos textos antigos. Lendo-os com a mente formada na sua nova cultura, mais personalista e baseada em direitos, esses juristas chegaram a uma nova definição. Aqui e acolá, esses textos definiam por vezes o direito natural em um 43 A Carta Magna repetiu em grande parte a Carta de Liberdades de Henrique I, outorgada em 1100, que submetia o rei a certos limites no tratamento de oficiais da Igreja e nobres. 44 Brian Tierney, The Idea of Natural Rights: Studies on Natural rights, Natural Law, and Church Law; veja-se também Annabel S. Brett, Liberty, Right and Nature: Individual Rights in Later Scholastic Thought, Cambridge University press, Cambridge, 1997. Apud, Thomas Woods Jr, Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental, p. 186 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 36 de 57 sentido subjetivo, como poder, força, capacidade ou faculdade inerente à pessoa humana [...]. Assim que se captou esse sentido, foi fácil chegar às normas de conduta prescritas pela lei natural ou às lícitas reivindicações e poderes inerentes aos indivíduos que hoje chamamos direitos naturais.” Segundo Tierney45, os canonistas consideravam que para além do conceito de direito natural deveriam existir realmente os direitos naturais. Assim, pensavam que qualquer individuo tinha o direito de se defender das acusações num tribunal, e que não era uma concessão do governo ao cidadão esta defesa, possibilitando aqui o surgimento do direito do contraditório e do devido processo legal. Também neste período de efervescência jurídica, 1150 a 1300, os direitos de propriedade, de legítima defesa, do matrimônio e do processo civil foram definidos. 4.5.2 Direitos Fundamentais Pouco a pouco, a idéia que o individuo tinha direitos subjetivos ou naturais ganhava força pelo simples fato de serem humanos. De acordo com o historiador Kenneth Pennington, “foram definidos os direitos de propriedade, de legítima defesa, do matrimônio e de processo civil com base na lei natural e não na lei positiva, assim como os direitos dos não cristãos. E ao situarem esses e outros direitos justamente dentro da estrutura da lei natural, os juristas puderam sustentar – e assim o fizeram efetivamente – que nenhum príncipe humano podia suprimi-los ou restringi-los. O príncipe não tinha jurisdição sobre os direitos baseados na lei natural; conseqüentemente, esses direitos eram inalienáveis.” 45 Apud, Ibid, p. 188 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 37 de 57 4.6 Direito Internacional 4.6.1 O sermão de Montesinos Em 1511, na Ilha de Hispanhola (atual Haiti e República Dominicana), num sermão sobre o texto “Eu sou a voz que clama no deserto”, o frade dominicano Antônio Montesinos denunciou a política espanhola para as Índias: “Subi a este púlpito para desvendar os vossos pecados contra as Índias; sou uma voz de Cristo clamando no deserto desta ilha e, por isso, convém que me escuteis, não com pouca atenção, mas com todo o vosso coração e sentidos; porque será a voz mais estranha que jamais tereis ouvido, a mais áspera, a mais terrível e a mais audaz que jamais esperásseis ouvir [...]. Esta voz diz que estais em pecado mortal, que viveis e morreis nele, pela crueldade e tirania com que tratais este povo inocente. Dizei-me com que direito ou justiça mantendes estes índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade empreendestes uma detestável guerra contra este povo que habitava quieta e pacificamente na sua própria terra? Por que os oprimis e fazeis trabalhar até à exaustão, e não lhe dais o suficiente para comer nem cuidais deles nas suas enfermidades? Pelo excesso de trabalho que lhes impondes, adoecem e morrem, ou melhor, vós os matais pelo vosso desejo de extrair e adquirir ouro todos os dias. E que cuidado pondes em fazer com que sejam instruídos na religião [...] Por acaso não são homens? Não possuem almas racionais? Não estais obrigados a amá-los como vos amais a vós mesmos? [...] Estai certos de que, em uma situação como esta, não podeis ser salvos mais do que os mouros ou os turcos.” 46 46 Ibid, p. 129 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 38 de 57 Posteriormente, os governantes das ilhas pediram que negasse todas suas acusações; ordenaram que o frade no próximo domingo se retratasse com os desgostosos. Qual foi a surpresa dos poderosos da ilha quando Montesinos começou seu discurso com um versículo de Jô (13, 17-18): “Estou pronto para defender a minha causa, sei que sou eu que tem razão”; ratificou todas as suas críticas e foi além, disse que os frades não mais recebessem a confissão dos oficiais, já que estes não tinham o propósito de se emendar, e que escrevessem a Castela para contar o que bem quisessem. Por causa da propagação das denuncias do frade Montesinos à política espanhola do Novo Mundo, o rei pediu a um grupo de teólogos que regulassem as relações com os indígenas. Assim nasceram as Leis de Burgos (1512), de Valladolid (1513) e em 1542, as Novas Leis. 4.6.2 Vitória nas Índias Ao fazer as críticas contra a política espanhola, o pe. Francisco de Vitória (1492-1546) levantou as bases da teoria moderna do direito internacional, junto a outros teólogos e juristas, “defendeu a doutrina de que todos os homens são igualmente livres; e, com base na liberdade natural, proclamou o direito à vida, à cultura e à propriedade.”47 A partir de dois princípios tomados em Tomás de Aquino: 1) a lei divina, que procede da graça, não anula a lei humana natural, que procede da natureza racional; 2) nada do que pertence ao homem por natureza pode ser-lhe tirado ou concedido em função dos seus pecados; Vitória sustentou, assim como os seus 47 Marcelo Sánchez-Sorondo, “Vitoria: The Original Philosopher of Rights”, em Kevin White, ed., Hispanic Philosophy in the Age of Discovery, Catholic University of America Press, Washington, DC, 1977, p. 66. Apud, ibid, p. 131 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 39 de 57 colegas Domingos de Soto48 e Luis de Molina, que os príncipes pagãos governavam legitimamente, fundamentando-se inclusive na Escritura sobre a obediência de Cristo49 à autoridade pagã de Pôncio Pilatos50. Defendiam que o Direito Natural existia para todos, não podiam então os índios ser privados de seus direitos, independentemente do credo, do espaço ou do tempo: “Na verdade, não são irracionais, mas possuem o uso da razão a seu modo. Isto é evidente, porque organizam as suas ocupações, têm cidades ordenadas, celebram casamentos, têm magistrados, governantes, leis [...]. Também não se enganam em coisas que são evidentes para os outros, o que revela que usam da razão. Nem Deus, nem a natureza falham em dotar as espécies daquilo que lhes é necessário. Ora, a razão é uma qualidade específica do homem, e uma potência que não se atualizasse seria vã.”51 Depois de Vitoria52, houve um célebre debate entre Bartolomé de Las Casas53 e Juan Ginés de Sepúlveda que defendia o uso da força na conversão dos nativos. De acordo com Thomas Woods: “Ambos os contendores defendiam a atividade missionária entre os nativos e desejavam ganhá-los para a Igreja, mas Las Casas insistia em que esse processo devia ocorrer pacificamente, já Sepúlveda, por 48 O Pe Domingos de Soto, resumiu bem a problemática da época “No que concerne aos direitos naturais, aqueles que estão em graça de Deus não são nem um pouquinho melhores que o pecador ou o pagão”. Ibid, p. 133 49 “Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21) 50 “Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dado” (João, 19,10) 51 Ibid, p. 136 52 Vitoria achava legítimo o uso da força contra os índios para livrá-los de algumas práticas sanguinárias de sua própria cultura, a exemplo dos sacrifícios humanos praticados nos rituais de magia “em escala industrial” na América espanhola. 53 Brevísima relación de la destrucción de las Índias. Apud, ibid … Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 40 de 57 sua vez, não afirmava que os espanhóis tivessem o direito de conquistar os povos nativos simplesmente por serem pagãos, mas argumentava que o baixo nível de civilização e os costumes bárbaros desses povos eram um obstáculo para a sua conversão e que, portanto, era necessário algum tipo de tutela para que se pudesse levar a cabo com sucesso o processo de evangelização. [...] Las Casas, pelo contrário, estava absolutamente convencido de que, na prática, tais guerras seriam desastrosas para todos os povos envolvidos e prejudiciais à difusão do Evangelho. Qualquer especulação acadêmica sobre o tema parecia-lhe “irresponsável, frívola e chocante.” Sejam quais forem as dificuldades práticas da capacidade de coerção, a idéia do Direito Internacional, nascida da discussão filosófica levantada pela descoberta da América, foi extremamente importante, mostrava que cada nação não é um universo moral fechado em si mesmo, mas tem o seu comportamento submetido a princípios básicos das leis naturais, evidenciando que o estado não é moralmente autônomo, como afirmava Maquiavel. Segundo Mario Vargas Llosa, ao discorrer sobre os europeus e o Novo Mundo: “O padre Las Casas foi o mais ativo, ainda que não o único, dos não-conformistas que se rebelaram contra os abusos infligidos aos índios. Esses homens lutaram contra os seus compatriotas e contra as políticas dos seus próprios países em nome de princípios morais que, para eles, estavam acima dos princípios de nação ou Estado. Essa autodeterminação não teria sido possível entre os incas ou em qualquer outra cultura pré-hispânica. Nessas culturas, assim como em outras grandes civilizações da História, nascidas fora o Ocidente, o individuo não podia questionar moralmente o organismo social de que fazia parte, porque existia unicamente como um átomo dentro desse organismo e porque, para ele, os ditames do Estado não se dissociavam da moralidade. A primeira cultura a interrogar-se e questionar-se a si mesma, a primeira a separar as massas em seres Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 41 de 57 individuais que foram ganhando gradualmente o direito de pensar e agir por si próprios, veio a converter-se graças a essa desconhecida prática chamada liberdade, na civilização mais poderosa do nosso mundo”. Bom lembrar que, entre as tribos indígenas, por menor que fossem e ao contrário do mito do bom selvagem de Rosseau, tratavam-se umas as outras de forma insultuosa, sejam como meras inimigas ou como “filhos de uma cadela”; contudo para si, referiam-se como “nós, o povo”. 4.7 Direito do Trabalho 4.7.1 Escravismo Quanto à escravidão, o que na filosofia pagã era imputado à natureza, será na filosofia cristã imputado ao pecado original. Esta referência pode ser encontrada tanto no abade de Saint-Michel "Não foi a natureza que fez os escravos, mas a culpa", quanto em Isidoro de Sevilha "a escravidão é uma punição imposta à humanidade pelo pecado do primeiro homem". Apesar de não condenar enfaticamente a prática escravagista, Santo Agostinho54 e São Tomás de Aquino mitigaram-na ao considerarem os homens imagem viva do Criador; defendiam tratamento digno e caridoso para com os escravos. O cristianismo trouxe um novo conceito de dignidade humana ao pugnar pela fraternidade entre os homens, condenando a acumulação de riquezas e a 54 Para justificar a escravidão dos negros, Santo Agostinho supõe que seriam descendentes de Cam, o filho de Noé que fora amaldiçoado pelo pai por ter zombado de sua nudez. A Bíblia fornecia, assim, um argumento racista em favor da escravidão. Dizia que a escravidão era conseqüência do pecado. O pecado era, na verdade, a pior escravidão: ele tornava os homens escravos de suas paixões. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 42 de 57 exploração dos menos afortunados. Tais ensinamentos eram, na época, revolucionários, contrapondo-se ao pensamento grego e romano, favorável à escravidão e contrário aos princípios da dignidade do trabalho. A Igreja exerceu uma forte ação reduzindo a escravidão na Idade Média, por mais que usasse escravos, condenasse a sua insubordinação e justificasse a sua existência. 4.7.2 Servilismo Num mundo dominado por povos de índole guerreira e por ameaças constantes de invasões, a terra não era de quem cultiva, mas de quem podia conquistar e preservar dos agressores. O trabalho servil era algo natural, os nobres davam proteção, os servos a semente. Ao longo do tempo, o servilismo foi substituindo o escravismo. O servo não podia fugir do feudo, contudo era sujeito de direitos como a posse perpétua da terra e de instrumentos de trabalho. Podia ser mobilizado para a guerra, como também cedido pelo senhor aos donos das pequenas fábricas e oficinas existentes. Apesar de existir uma melhora significativa da dignidade do servo em relação ao escravo, seria inconcebível uma Idade Média sem servos, da mesma forma que a antiguidade sem escravos, ou a modernidade sem empregados. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 43 de 57 4.7.3 A encíclica Rerum Novarum55 A sociedade industrial modificou as antigas estruturas sociais com o surgimento da massa urbana de proletários e da "relação capital e trabalho" de uma forma inusitada e até então desconhecida. Os representantes da Igreja foram percebendo lentamente que, com as novas formas socio-econômicas, surgiam problemas na "justa estrutura social". Muitas iniciativas pioneiras surgiram nesta época entre leigos e religiosos voltadas para os problemas de pobreza, doenças e carências de serviços de saúde e educação. Com os novos tempos, surgiram novos problemas que a Igreja56 só veio regulamentar em 1891 pela encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII (1878–1903). A ela seguiram-se diversos 55 Em latim Rerum Novarum significa "Das Coisas Novas". O Papa dizia que "não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital". 56 “A Igreja dos séculos XIX e XX confrontou-se com o dinamismo, e principalmente com a universalização, fenômenos contra os quais preferira proteger-se no século XVI, e que acreditara poder acantonar nas sociedades reformadas. O perigo ainda se agravara devido ao fato de que as idéias ‘perigosas’ eram menos religiosas do que seculares. Os filósofos das ‘Luzes’, o ‘josefismo’ na Áustria, Pombal em Portugal, o grão-duque da Toscana, os Constituintes franceses: era nos países católicos que o Estado se posicionava como adversário da Igreja, arrancava-lhe a escola ou a caridade, fechava seus conventos, pretendia ditar-lhe sua organização. Com a exceção dos direitos naturais, aliás dissociados de qualquer referência divina, o pensamento político a caminho da democracia colocava a "vontade geral" como sendo a origem absoluta de todo direito, ou até de toda moral. Em suma, a Igreja tinha algumas razões para desconfiar: o século XIX será para ela um século de combate, cuja reduza está impressa nas encíclicas de Pio IX sobre, ou melhor, contra a liberdade. No final do século XIX, porém, Roma, pela primeira vez, toma conhecimento de uma industrialização que, ao longo do tempo, chegou até a Itália e a Espanha, e que já concerne milhões de católicos. Em 1893, Leão XIII promulga Rerum Novarum, uma encíclica que abre uma série de notáveis textos pontificais — longa meditação a muitas vozes que após mais um século resultará, com Centesimus Annus de João Paulo II, na aceitação de uma economia fundada na liberdade dos princípios econômicos. Mas quanto tempo terá sido preciso, antes que a Igreja católica abandonasse o modelo de uma sociedade fundamentalmente agrária e patriarcal, para finalmente colocar a liberdade no centro da sua antropologia... Por tempo demais o ensino da Igreja ignorou a economia moderna, e manteve com seus adversários da laicidade militante um combate que desviou as sociedades católicas dos verdadeiros desafios da liberdade — aquela que suscita as riquezas. Representava também seu papel de instituição-testemunha de um reino ‘que não é deste mundo’, contra as pompas de Satã e a idolatria de Mammon. À sua mãe inquieta, Jesus em meio aos doutores responde: ‘Devo ocupar-me dos assuntos do meu Pai’. Milagres e santos, a Igreja é sempre lenta para reconhecê-los quando os reconhece. A fortiori, para ela que vive na escala dos milênios, uma adesão sem exame a um desenvolvimento anárquico, sem outra finalidade a não ser ele mesmo, não era concebível. As ameaças que pesam sobre o mundo desenvolvido, depois de dois, três ou quatro séculos de progresso, são suficientes para nuançar a crítica de cegueira que espíritos sistematicamente anti-clericais ficariam tentados a lhe fazer. Ela precisava de tempo para separar o bom grão da liberdade que cria, do joio da liberdade que corrói.” Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança, pp. 37-38 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 44 de 57 documentos compondo a Doutrina Social da Igreja que só teve seu compêndio sistematizado em 2004 pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz. Os demais documentos são: a encíclica Quadragesimo anno de Pio XI em 1931; a Mater et magistra do beato papa João XXIII em 1961; a encíclica Populorum progressio (1967) e a carta apostólica Octagesima adveniens (1971) de Paulo VI; Laborens exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e Centesimus annus (1991) de João Paulo II. A encíclica ressalta que o trabalho não pode ser considerado como mercadoria, mas expressão direta da dignidade da pessoa humana. O assalariado não podia ser refém das leis de mercado, deveriam ser estabelecidas normas mínimas de justiça e eqüidade. Condenava a concentração da riqueza nas mãos de poucos e a exploração do empregado à custa de sua miséria e dos baixos salários. O Estado não poderia ficar inerte, precisava regular a relação entre “capital e trabalho” e zelar pela harmonia social. Este documento cobrou do mundo cristão o interesse dos governantes pelas classes trabalhadoras, dando força para sua intervenção nos direitos individuais em benefício dos interesses coletivos. 4.8 Direito Previdenciário Não é de hoje que o homem se preocupa com as vicissitudes da vida, desde os tempos antigos ele tenta amenizar a fome, doença e velhice. Na Grécia e em Roma, não era diferente, pode-se reconhecer uma insipiente previdência nas instituições de cunho mutualista, que amparavam os seus membros contribuintes mais necessitados, ou quando os mendigos eram transformados em escravos e ficavam sob responsabilidade de alguém. Porém a previdência mais comum era o patrocínio familiar, onde os mais jovens cuidavam dos mais velhos e incapazes. Quanto aos escravos, o costume era o de abandono à mendicância pelo seu dono quando não lhe interessava mais... contudo nas grandes cidades, havia leis que promoviam a integração do desocupado válido nas legiões de escravos ou de Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 45 de 57 colonos. O combate à mendicância se dava sem a preocupação com a liberdade do homem. Sob o poder de Justiniano, os senhores que abandonavam seus escravos válidos à mendicância, eram forçados a retomá-los, mesmo que não o desejassem; já os mendigos livres, provindos de outras partes do Império, podiam ser devolvidos às suas origens. Os demais casos deveriam exercer tarefas de utilidade pública sob pena de ser banidos da cidade, só os incapazes tinham autorização de ficar sem trabalhar, sob caridade alheia. No final de Roma, já se admitia o apelo à caridade, revelando a ação do cristianismo, e impregnando a consciência social da solidariedade como forma de suprir os menos afortunados. No medievo, as primeiras “relações de trabalho” surgiram dos laços existentes entre os vassalos, senhores feudais, artesãos, menestréis e cavalheiros mercenários. Os servos eram protegidos concomitantemente pela posse perpétua da terra, pelos laços feudais e pelas relações familiares. A grande previdência era naturalmente vinculada à gleba e aos laços de vassalagem. Com o século X e o ressurgimento das trocas comerciais e desenvolvimento das concentrações urbanas, outras formas de cooperação e organização desconhecidas do trabalho servil passaram a existir como as guildas57 e as corporações de ofícios que passaram amparar os membros contribuintes. 4.8.1 Lei dos pobres58 Com o saque dos bens eclesiásticos pela coroa inglesa, durante o Anglicanismo, houve redução significativa na fixação do homem do campo pela ausência da obra assistencial da Igreja. Isto teve conseqüência direta no aumento 57 Guildas - associações de proteção mútua, para os artesãos. 58 O caráter contributivo da previdência enseja que a Lei dos pobres era de caráter assistencial, pois pobre não tem condição de pagar previdência. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 46 de 57 da emigração rural estimulada pela crescente demanda de lã (enclusure), e no aumentou da quantidade de pobres nas cidades inglesas. Na Inglaterra da Rainha Elizabeth, em 1601, a Poor Relief Act faz com que antes era obra caridosa, passe a ser obra legal por meio da Igreja, obrigando as paróquias a conceder auxílio financeiro aos necessitados de suas respectivas jurisdições. Este ato concedia aos juízes o poder de lançar o imposto de caridade, pago por todos os donos de terras, e de nomear inspetores em cada paróquia com o objetivo de arrecadar e distribuir o montante acumulado pela lei. Também obrigava aos homens capazes prestar serviços em asilos e albergues, as crianças a freqüentar escola. Quem não trabalhava era açoitado, preso e poderia ser até condenado à morte. A lei consolidou a idéia de que o governo é responsável pelos pobres e foi o embrião do moderno Estado do Bem Estar Social. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 47 de 57 5. Direito x Religião A forma como as religiões são retratadas nos centros acadêmicos não reflete a realidade de que 95% da população acreditam em Deus; nem reflete a importância que os valores religiosos têm na formação da sociedade humana. A religião termina por ser tratada não como um “desafio cognitivo” para o direito moderno, mas como um fenômeno intelectual superado “resíduo de um passado terminado”. Em 2004, Joseph Ratzinger e Jürgen Habermas, no livro “Dialética da secularização sobre razão e religião” não fugiram do tema e terminaram por expor algumas idéias a respeito; um representando a fé católica e o outro o pensamento secular liberal e individual. O discurso foi em torno “das bases morais prépolíticas de um Estado liberal” e “O que mantém o mundo unido?” Habermas considerou a razão prática de um pensamento secular pós-metafísico, e Ratzinger considerou a realidade do homem ser criatura de Deus, realidade existencial anterior a qualquer racionalismo humano posterior. Quando falam da racionalidade chegam às mesmas conclusões duma sociedade baseada na “ética da sobrevivência” fundamentada na dignidade humana, mas na fundamentação da ética e do direito explícito, cada um aponta para alternativas diferentes resumidas a seguir: Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 48 de 57 5.1 - A Religião de Habermas À pergunta formulada por Ernst Wolang Böckenförde nos anos 60 ”Será que o Estado liberal secularizado se alimenta de pressupostos normativos que ele próprio não é capaz de garantir?” Habermas responde através de cinco aspectos: 1.Sobre a fundamentação do Estado constitucional secular a partir das fontes da razão prática - ele considera que o Estado moderno pode ser muito bem fundamentado a partir da ratio, de uma moral e direito criados no processo democrático tal como pensava Hans Kelsen e Niklas Luhmann. Neste ponto, mister salientar que Habermas deixa de considerar que o processo democrático pode gerar um estado anti-democrático e anti-racional a exemplo do Fascismo, Nazismo e Comunismo (citados aqui em ordem crescente de periculosidade59). 2.Como se reproduz a solidariedade cidadã - o autor afirma que existiria uma moralidade independentemente de uma verdade religiosa e metafísica nos princípios constitucionais do Estado liberal e que o problema principal seria apenas o de ordem motivacional, resolvida pela cobrança das virtudes políticas dos cidadãos para a sobrevivência política da sociedade60. Cabe apenas perguntar quem cobraria tais deveres políticos dos cidadãos se nem mesmo os direitos são conhecidos e exercidos a contento? 3.Quando se rompe o vínculo social – do ponto de vista interno, Habermas não vê nenhum problema em ter a democracia seus próprios valores fundantes, 59 Segundo R. J. Rummel, cientista político da Universidade do Havaí (o especialista faz distinção entre o genocídio que é o assassinato por raças, do democídio que é o assassinato da população por governantes), o Facismo, o Nazismo e o Comunismo mataram no século XX respectivamente 11 milhões, 21 milhões e 205 milhões de pessoas. http://www.hawaii.edu/powerkills/welcome.htm, http://www.olavodecarvalho.org/semana/090219dc.html Para melhor entendimento, ver o documentário de Edvin Snore, The Soviet Story. 60 O “vínculo unificador” que estaria faltando é formado pelo próprio processo democrático – uma prática comunicativa que só pode ser exercida em comum e na qual se discute, em última análise, o verdadeiro entendimento da constituição.” Dialética da secularização, p. 36 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 49 de 57 porém levanta a possibilidade de causas externas esgotar a solidariedade da qual o Estado democrático depende, a exemplo dos renitentes fracassos experimentado no caminho da constitucionalização do direito internacional decorridos da despolitização dos cidadãos, já que a formação democrática só atinge o nacional não alcançando os processo decisórios supranacionais.61 4.Secularização como processo de aprendizagem duplo e complementar – segundo o autor, “começa a prevalecer na sociedade pós-secular a idéia de que a “modernização da consciência pública” afeta de maneira defasada tanto as mentalidades religiosas quanto as seculares, modificando-as de forma reflexiva. Entendendo a secularização da sociedade como um processo comum de aprendizagem complementar, ambos os lados estarão em condições de levar a sério em público, por razões cognitivas, as respectivas contribuições para temas controversos.” 5.Como deveriam relacionar-se cidadãos religiosos e seculares62 encimado dos limites iluministas, Habermas traça um relacionamento tolerante de sociedades pluralistas de constituição liberal, onde crentes convivem com o dissenso e descrentes dialogam na transposição da fé para um conhecimento mais claro e mundano.63 61 Ibid, p. 42 62 “A neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão do mundo secularizada. Em seu papel de cidadãos do Estado, os cidadãos secularizados não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates público servindo-se de uma linguagem religiosa. Uma cultura política liberal pode até esperar dos cidadãos secularizados que participem de esforços de traduzir as contribuições relevantes em linguagem religiosa para uma linguagem que seja acessível publicamente.” – J. Habermas, Glauben und Wissen, Frankfurt/Main, 2001. Apud, ibid, p. 57 63 Ibid, p. 56 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 50 de 57 5.2 - O Direito de Ratzinger Segundo Ratzinger, temos uma sociedade mundial dependente de diversas partes culturais. Mas apesar de existir o desenvolvimento de possibilidades humanas como nunca antes fora visto, paralelamente há o poder de criar e destruir tudo o que já se construiu anteriormente. Decorrente desta encruzilhada, levantase a questão do controle jurídico e moral do poder, se neste amálgama de culturas é possível encontrar um “etos mundial” ao modo de Hans Küng, não obstante as críticas argutas de Robert Spaemann e da indagação se é possível do encontro e permeação das culturas surgir um etos mundial quando são as certezas éticas que justamente caem por terra perante a diversidade cultural. Segundo Ratzinger, a pergunta fundamental continua sem resposta: o que é propriamente o bem, e se ele deve ser praticado mesmo quando é em prejuízo próprio? Propõe então cinco reflexões para a questão sabendo que a priori debate científico nenhum é capaz de erguer uma ética quando a própria ciência é responsável em boa parte pelo desaparecimento da ética humana. No máximo, a filosofia se responsabiliza na correção das ciências singulares, sobre o que é humano ou não; eliminando do contexto qualquer elemento não-científico; sonegando ao homem qualquer dimensão da realidade humana que as ciências só alcançam parcialmente. 1.Poder e direito – colocar o poder a serviço da ordem e do direito é por essência constituir a liberdade na confiança de que é a força do direito que prevalece e não o direito da força. Segundo o autor, o clima de desconfiança só surge quando o poder não está a serviço da justiça, e a revolta contra o direito ganha força quando o poder é usurpado e posto o direito em favor daqueles que tem o poder. O problema de ser a expressão do interesse de todos e não de um grupo isolado é resolvido aparentemente pela democracia, mas surge novamente a indagação de quando uma injustiça surge em desfavor de uma minoria religiosa Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 51 de 57 ou étnica. Será que não existam direitos que por sua essência devam ser preservados mesmo que seja em detrimento da maioria64? 2.Novas formas de poder e novas questões a respeito de sua contenção a ratio moderna construiu a bomba atômica, ameaça de destruição de toda a humanidade, também evoluiu o suficiente para curar as mais diversas enfermidades do homem, ao mesmo tempo, tratando-o como mero produto de experiência científica65. Do lado das religiões, atualmente, encontra-se um fundamentalismo no terrorismo de Bin Laden apresentado como castigo de “povos oprimidos” ao ocidente arrogante e presunçoso. Não será que tanto a razão quanto a religião devam se limitar mutuamente66? 3.Pressupostos do direito: direito, natureza, razão – para o até então Cardeal, o entendimento sobre os princípios éticos do direito numa sociedade secular pluralista passa necessariamente por discussões envolvendo o direito natural, direito comum anterior a qualquer dogma, um direito mínimo que se baseie na razão humana, sendo inclusive corretivo do direito positivo. Semelhante idéia já fora desenvolvida por Francisco de Vitória, Las Casas, Hugo Grotius e 64 “Na Idade Moderna, certo número de elementos normativos dessa natureza foi incluído em diversas declarações de direitos humanos, subtraindo-os dessa maneira ao jogo das maiorias. Pode ser que, segundo a consciência atual, as pessoas se satisfaçam com a evidência intrínseca desses valores. Mas a própria autolimitação de um questionamento desse tipo já é de caráter filosófico; existem valores em si que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência. [...] nem todas as culturas reconhecem hoje essa evidência. O Islã definiu seu próprio catálogo de direitos humanos que diverge do catálogo ocidental. A China, apesar de aderir hoje a uma forma de cultura surgida no ocidente, ou seja, ao marxismo, discute, segundo as informações de que disponho, se não se trata, no caso dos direitos humanos, de uma invenção ocidental que precisa ser questionada.” Ibid, pp. 68-69 65 “O homem passou a ter condições de fazer seres humanos, de produzi-los, por assim dizer, dentro da proveta. Tornando-se um produto, o ser humano modifica substancialmente a relação consigo próprio. Ele deixa de ser uma dádiva da natureza ou do deus criador e se torna seu próprio produto. O homem desceu às nascentes do poder de onde brota sua própria existência. A tentação de querer construir o ser humano certo, a tentação de fazer experiências com o ser humano, a tentação de considerar o ser humano um lixo e de eliminá-lo deixaram de ser uma quimera de moralistas retrógrados.” Ibid, p. 74 66 “Com isso surge novamente a pergunta como se pode encontrar numa sociedade mundial, com seus mecanismos de poder e suas forças indomadas, além de diferentes visões daquilo que é moral e direito, uma evidência ética eficaz que disponha de suficiente força motivacional e de persuasão para resolver aos desafios mencionados, ajudando a vencê-los.” Ibid, p. 75 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 52 de 57 Samuel Von Pufendorf, mas o Cardeal acrescenta que à doutrina dos direitos humanos (direito natural) deva ser contraposta uma doutrina dos deveres humanos, renovando desta maneira a discussão da possibilidade de existir uma razão da natureza e conseqüentemente um direito da razão67. 4.Interculturalidade e suas conseqüências - para o Cardeal, não existe qualquer possibilidade de discussão que não envolva interculturalidade na resolução de uma fórmula universal ética. Daí discorre a respeito das culturas concorrentes mostrando que basicamente assim como existem profundas tensões entre o cristianismo e a racionalidade moderna (polaridade disposta a aprender na mesma proporção de se rejeitar) não existe uniformidade nas demais culturas. Na cultura islâmica, encontra-se desde o absolutismo de Bin Laden a uma tolerância racional; na cultura indiana existe, uma miríade de tensões proporcionais aos credos do hinduísmo e do budismo, além das pretensões do racionalismo ocidental e fé cristã presentes no meio; as culturas tribais da África e da América Latina, embora reavivadas pela teologia cristã, em certos casos, questionam não só o pensamento ocidental, mas também a pretensa universalidade cristã. Por mais que a fé cristã e a racionalidade secular ocidental exerçam influência no mundo, as duas não podem se arvorar em serem universalmente aceitas em culturas que até mesmo as reneguem. Desta forma, segundo Ratzinger até mesmo o etos mundial, seja racional ou religioso, continua sendo uma abstração no momento atual. 5.Resultados - Ratzinger concorda com Habermas no que diz respeito à aprendizagem e autolimitação para ambos os lados na sociedade pós-secular68, contudo esclarece em duas teses: 67 “Atualmente, um debate desse tipo precisaria ser concebido em bases interculturais. Para os cristãos, esse debate envolveria o tema da criação e do criador. No mundo indiano, existe o conceito do ‘dharma’, das leis intrínsecas do ser, e na tradição chinesa, a idéia das ordens do céu.” Ibid, p. 81 68 “Recentemente, Karl Hübner chegou a formular uma exigência semelhante quando disse que o objetivo direto dessa tese não é um ‘retorno à fé’. O que importa é uma libertação da obcecação histórica de que a fé já não teria nada a dizer ao ser humano atual pelo simples fato de ela contradizer a idéia humanista da razão, do iluminismo e da liberdade”. Ibid, pp. 88-89 Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 53 de 57 1) Esta mútua aprendizagem deve levar em conta a hybris da religião e da razão, quando por um lado, a patologia da religião (fundamentalismo) é controlada e reordenada pela luz divina da razão conforme até mesmo os padres da igreja assim apontaram, e por outro, a patologia da razão (o ser humano como mero produto e a ameaça da bomba atômica), pois quando a razão se emancipa completamente torna-se demasiadamente destruidora. Assim, uma e outra seriam chamadas para se purificar e curar mutuamente; 2) O plano concreto destas ações deve levar em conta a contribuição das demais religiões, uma verdadeira congregação de culturas, mesmo reconhecendo que a fé cristã e a razão ocidental já tenham dado e demonstrado importantes passos neste caminho, caso contrário, incorreria no erro de se cometer no Ocidente uma hybris ocidental pela qual já se está pagando caro. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 54 de 57 6. Conclusão Conclui-se que o cristianismo contribuiu definitivamente para a evolução do direito, servindo de base cultural para a construção da civilização ocidental. Tal fato é evidente quando se percebe que a fé cristã está inextricavelmente vinculada aos valores da dignidade humana, às instituições jurídicas e políticas. O cristianismo sobreviveu ao colapso de um mundo antigo; uniu povos inimigos em torno do evangelho; ensinou a desenvolver a inteligência e a caridade; forneceu a justificativa moral para a democracia. Houve equívocos? Claro que houve! O cristianismo tolerou a escravidão inicialmente, uma instituição universal naquela época, mas mobilizou gradualmente os recursos morais e políticos para por fim a ela. Com o cristianismo, a religião nunca mais prescreveu o ódio entre os povos, nem preceituou o infanticídio e a morte dos mais fracos. Essa doutrina religiosa foi responsável pelo surgimento de escolas, observatórios e universidades. O homem, livre das superstições antigas, foi em busca das leis gerais que refletiam a racionalidade de Deus. As ciências modernas têm raízes cristãs, a ciência jurídica, também. Há quem pense, apesar do cristianismo ter moldado o cerne das instituições e valores ocidentais, que agora não se precisa mais dele. Contudo, se os ideais distintivos da religião cristã têm beneficiado enormemente a civilização ocidental, por que afastá-los tão radicalmente, incorrendo no risco do retorno à barbárie? É importante não fugir do questionamento e reconhecer ao cristianismo o papel central no desenvolvimento da consciência humana. Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 55 de 57 7. Referências bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1962. ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2004. AQUINO, São Tomás de Aquino. Suma Teológica, 1265. São Paulo: Edições Loyola, 2001. AQUINO, Felipe. Uma história que não é contada, 3ª ed. Lorena: Cléofas, 2008. BITENCOURT, Cezar. Tratado de Direito Penal, vol I, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004. CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos, vol I. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. CARVALHO, Olavo de. 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Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 56 de 57 PARECER A monografia-final de curso de Joelson Lima Vale apresentada à defesa com o título o DIREITO E CRISTIANISMO atende aos requisitos formais. O tema é atual e relevante, concentra-se no importante debate em torno do papel do cristianismo na formação do direito. O aluno discorre de forma clara e objetiva, ilustrando o texto com informações colhidas em obras e por via eletrônica, tornando o trabalho digno de se recomendar à leitura do público universitário. É o parecer. Recife (PE), 08 de junho de 2009 ___________________________ Prof. José Luiz Delgado Orientador Monografia Universidade Federal de Pernambuco 15 julho, 2009 Direito e Cristianismo Facvldade de Direito do Recife Joelson Vale Pág. 57 de 57