“VIDA PREGRESSA é VIDA PREGRESSA, NãO

Transcrição

“VIDA PREGRESSA é VIDA PREGRESSA, NãO
EDIÇÃO 74 • SETEMBRO de 2006
12
30
HABEAS CORPUS
RECURSO ESPECIAL
Foto: STF
ORPHEU SANTOS SALLES
EDITOR
TIAGO SANTOS SALLES
DIRETOR EXECUTIVO
EDISON TORRES
DIRETOR DE REDAÇÃO
LUZ NA ESCURIDÃO
18
JOSÉ LUIZ COSTA PEREIRA
DIRETOR DE MARKETING
O DESRESPEITO À
ORDEM
CONSTITUCIONAL
22
DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
DEBORA OIGMAN
EDITORA DE ARTE
CARLA BRANCO
REVISÃO
VINÍCIUS GONÇALVES
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CONSELHO EDITORIAL
SUMÁRIO
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aurélio wander bastos
Bernardo Cabral
carlos antônio navega
carlos ayres britTo
Carlos mário Velloso
DALMO DE ABREU DALLARI
Darci norte Rebelo
denise frossard
EDITORIAL
4
REFLEXÕES EM TORNO DO PRINCÍPIO REBUBLICANO
6
PENHORA DE RENDA OU FATURAMENTO DA EMPRESA
24
HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL
36
SERVIÇO DE TELECOMUNICAÇÕES
40
A FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA E SEUS RUMOS
44
SUBVERSÃO INCONSCIENTE
48
TSE: MELHORIA INDISCUTÍVEL
50
Edson CARVALHO Vidigal
eLLIS hermydio FIGUEIRA
fernando neves
Francisco Viana
Francisco Peçanha Martins
Frederico José Gueiros
GILMAR FERREIRA mENDES
Humberto Gomes de Barros
Ives Gandra martins
josé augusto delgado
José Eduardo carreira Alvim
luis felipe Salomão
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Marco Aurélio Mello
MAURICIO DINEPI
maximino gonçalves fontes
Miguel Pachá
nEY PRADO
Paulo Freitas Barata
SEBASTIÃO AMOÊDO
Sergio Cavalieri filho
thiago ribas filho
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3
EDITORIAL
A MORALIDADE OU A DESONRA POLÍTICA
“Vida pregressa é vida pregressa, não transita em julgado,
não precisa de uma ação penal”.
Desembargador Roberto Wider
Presidente do TRE-RJ
Foto: Sandra Fado
O
“(...) o Judiciário
compromete-se
com redobrado
desvelo na
aplicação da lei.”
Ministro Marco Aurélio Mello
4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
espetáculo da imoralidade pública e das
safadezas que se desenrolam no Congresso
Nacional, e em especial, na Câmara dos
Deputados, transforma o lamaçal da
imoralidade o nivelamento da honra e da dignidade com
o emporcalhamento da infâmia e da vilania que gravita e
grassam no Legislativo Federal.
Os espantosos escândalos e a putrefata corrupção que
vêm sendo denunciadas pelo Ministério Público Federal, pela
Polícia Federal e pela Receita Federal, com prisões de quadrilhas
sonegadores de tributos, pilhados com milhões de dólares
em dinheiro e milhões de mercadorias contrabandeadas,
demonstram de forma categórica, que a honestidade, a ética e
a decência deixaram de existir em altos escalões da sociedade
e da administração pública e privada, onde empresários de
alto padrão se tornaram, através de delinqüência continuada,
assaltantes dos cofres públicos da nação.
Nas eleições que se avizinham em 1º de outubro,
centenas de deputados federais pilhados em flagrante delito
e denunciados publicamente face às falcatruas praticadas por
certo tentarão se apresentar novamente como candidatos
aos mesmos cargos que conspurcaram com as bandalheiras
do mensalão e dos sanguessugas, além de outras variadas
patifarias, se valendo, para atingirem o propósito eleitoral, do
arrimo do princípio da inocência, como disposto no artigo
5º, item LVII, da Constituição Federal.
Entretanto, para que esse descalabro não aconteça,
torna-se necessário constituir uma esperança renovadora da
manutenção da moral e princípios estatuídos no artigo 37 da
Carta Magna para que o excelso Tribunal Superior Eleitoral
interprete com a competência, que é inerente à mais alta corte
eleitoral da nação, os princípios constitucionais expressos na
Lei Maior. Ditas leis pregam e impõem o cumprimento das
normas estabelecidas nas cláusulas taxativas e positivas, que
indubitavelmente determinam a obrigatoriedade e obediência,
como dispostos nos artigos 14, parágrafos 9º e 10º; artigo
37, parágrafo 4º e artigo 55, parágrafo 1º da Constituição
Federal.
Assim, o Tribunal Superior Eleitoral, com o poder
normativo que ostenta ao lado do monopólio de jurisdição,
pode mudar esse quadro eleitoral deprimente que se apresenta
nestas eleições, com uma quadrilha de conhecidos e confessos
delinqüentes, se contrapondo para sanear o meio e “fazer com
que as eleições sejam legítimas”, trazendo de volta para o povo
(que se queda estarrecido com o tamanho da canalhice desses
criminosos que afrontam com suas candidaturas a moralidade
e a dignidade da nação).
Vale transcrever trechos do causticante libelo do
Desembargador Eliseu Fernandes, do Tribunal de Justiça
de Rondônia, publicado na edição de agosto último desta
revista: “É preciso dizer não ser aceitável a vulgarização que se
impôs à presunção de inocência, a ponto de transformá-la em
escudo da impunidade, subterfúgio jurídico, leito da hipocrisia
e passaporte do regime democrático, e por tais circunstâncias, é
preciso advertir que a moral, sob o ponto de vista axiológico, é
superior ao direito. Por isso que o justo é eticamente moral e o
direito material nem sempre decorre da lei justa e moralmente
conformada” .
Torna-se também mais do que oportuno, reavivar o
pronunciamento do Ministro Marco Aurélio Mello, na
solenidade de posse na Presidência do Tribunal Superior
Eleitoral: “No que depender desta Presidência, o Judiciário
compromete-se com redobrado desvelo na aplicação da lei. Não
haverá contemporizações a pretexto de eventuais lacunas da
lei, até porque, se omissa a legislação, cumpre ao magistrado
interpretá-la à luz dos princípios do direito, dos institutos de
hermenêutica, atendendo aos anseios dos cidadãos, aos anseios
da coletividade.”
Também é oportuna a manifestação do CorregedorGeral do TSE, ministro César Asfor Rocha, publicada
na mesma edição de agosto desta Revista a respeito do
posicionamento da Justiça Eleitoral: “ Mesmo que o pedido
não seja impugnado, o juízo eleitoral deverá indeferir o registro,
caso tenha conhecimento de fato comprovado que importe o não
preenchimento dos requisitos previstos na Constituição Federal
ou na legislação infra constitucional.”
Igualmente, em defesa da realização de eleições limpas,
despojadas de vícios e de candidatos de passado maculado
com provas de corrupção, o Desembargador Roberto
Wider, presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de
Janeiro, não deixa dúvidas quanto à aplicação de corretivos
aos candidatos indignos da postulação: “Nós não estamos
tratando aqui de crimes e de ações penais pura e simplesmente,
mas de uma forma de comportamento questionável para homens
públicos. Vida pregressa é vida pregressa, não transita em
julgado, não precisa de uma ação penal; vida pregressa é aquilo
que nós conhecemos em relação aos antecedentes que se refiram à
moralidade para o exercício do mandato público.”
No mesmo diapasão em favor da moralidade eleitoral, o
ilustre Procurador da República, Dr. Antonio Fernando de
Barros e Silva, em pronunciamento na posse do Presidente
do TSE, afirmou:” A revelação das urnas não pode ser invocada
como sanatória geral. A sociedade tem direito de exigir que a
Justiça Eleitoral somente dê eficácia à manifestação eleitoral
externada sem máculas.”
Também é oportuno a lembrança do artigo 5º da lei de
Introdução do Código Civil, de 04.09.1942: “Na aplicação
da lei, o juíz atenderá aos fins sociais a que se dirige e às
exigências do bem comum.”
Finalmente, as manifestações que já estão ocorrendo
nos julgamentos de registros de candidatos, nos diversos
tribunais regionais eleitorais, produzidos por representantes
do Ministério Público e de juízes eleitorais nos pedidos de
postulantes comprometidos pela conduta comprovada de
passado delituoso, reafirma as esperanças da sociedade, ávida
por providências saneadoras, contra os delinqüentes que ainda
pretendem continuar na deslavada exploração da credulidade
pública e dos benefícios que pretendem explorar da nação.
Nas circunstâncias, torna-se imprescindível que a justiça
eleitoral aja, neste momento, mantendo a esperança que ainda
existe na sociedade, pois, caso contrário, pode ocorrer que os
desígnios propalados pelos anarquistas Proudon, Malatesta,
Bakunin, Propotkin, dentre outros, se concretizem com
a negação dos valores dos homens públicos, descrédito nas
eleições e a possível desobediência civil.
Deus, que dizem ser brasileiro, não há de permitir que
a Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal se alheiem
da defesa da moralidade, da dignidade, da ética e dos bons
costumes, que estão em questão nas próximas eleições.
Orpheu Santos Salles
Diretor-Editor
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
REFLEXÕES EM TORNO
DO PRINCÍPIO REPUBLICANO
Enrique Ricardo Lewandowski
Fotos: STF
Ministro do Supremo Tribunal Federal
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo
6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
Princípio estruturante
Os constituintes de 1988, não por acaso, adotaram a forma
de governo escolhida pelo povo em 1891, em substituição
à monarquia, estabelecendo, logo no artigo 1º da Carta
Magna, que o Brasil é uma república. Tratou-se de uma opção
deliberada e plena de conseqüências, expressamente ratificada
pela cidadania no plebiscito realizado em 7 de setembro de
1993, levada a efeito ao mesmo tempo em que definiram que
o Estado teria uma configuração federal e adotaria o regime
democrático.
Ao se levar em conta a importância da topologia para
a hermenêutica constitucional, não há como deixar de
reconhecer que, quando se adotou a forma republicana de
governo, na verdade estava-se definindo um dos princípios
estruturantes de nossa Lei Maior. Com efeito, o princípio
republicano, ao lado dos princípios federativo e democrático,
configura-se, de acordo com a doutrina, o “núcleo essencial
da Constituição”1, visto que lhe garante uma determinada
identidade e estrutura.
Os princípios constitucionais, longe de configurarem meras
recomendações de caráter moral ou ético, consubstanciam regras
jurídicas de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às
demais e “positivamente vinculantes”2. A sua inobservância,
ao contrário do que muitos pregavam até recentemente,
atribuindo-lhes uma natureza apenas programática, deflagra
sempre uma conseqüência jurídica, de maneira compatível à
carga de normatividade que encerram.
Independentemente da preeminência que ostentam
no âmbito do sistema ou da abrangência de seu impacto
sobre a ordem legal, os princípios constitucionais, como se
reconhece atualmente, são sempre dotados de eficácia, cuja
materialização pode ser cobrada judicialmente se necessário.
Sua eficácia, porém, varia segundo o grau de abstração ou
generalidade que apresentam, podendo, conforme o caso,
atribuir diretamente a alguém um direito subjetivo, estabelecer
um padrão de interpretação a partir de uma hierarquia de
valores, autorizar a invalidação de regras ou atos que lhes
sejam contrários ou ainda impedir a revogação de normas que
frustrem a materialização dos fins neles apontados3.
O princípio republicano, apesar de sem caráter
fundamental, apresenta “larga abertura e baixa densidade”4,
fazendo-se necessário, para conferir-lhe maior concreção,
estudá-lo à luz de uma perspectiva histórica, de maneira a
identificar suas características essenciais, moldadas ao longo
de mais de dois milênios de elaboração doutrinária e prática
política, bem como confrontá-lo com outros princípios e
subprincípios que dele decorrem.
Res publica, res populi
Da Roma antiga, onde república identificava algo que
pertencia a todos (res publica) ou ao povo (res populi), até
os dias atuais, o conceito sofreu uma longa evolução,
embora tenha conservado, em linhas gerais, os fundamentos
axiológicos que lhe deram origem.
Instituída pelos romanos, no início do século V a. C.,
a partir da superação da realeza, a república encerra a idéia
de coisa comum, de um bem pertencente à coletividade,
correspondendo em linhas gerais à antiga noção grega de
politeia, regime em que os cidadãos participavam ativamente
da gestão da polis. Opõe-se às demais formas de governo,
a exemplo da monarquia, na qual se realça o conceito de
mando, ou seja, de archia, derivado archein, que significa
comandar, chefiar.5
Cícero definiu-a como a “coisa do povo”. Considerada
como tal não de todos os homens, de qualquer modo
congregados, mas a reunião deles que tem seu fundamento
no consentimento jurídico e na utilidade comum6. A
república, portanto, para o pensador romano, não era uma
mera multidão de pessoas reunidas sob uma determinada
autoridade, mas uma comunidade de interesses organizada
sob a égide da lei.
Maquiavel, embora paradoxalmente tenha defendido o
exercício de um poder sem limites por parte do Príncipe,
retomou, séculos depois, o conceito original de república,
com base nos clássicos da Antigüidade7. Na verdade, não
apenas para ele, mas também os demais republicanos do
cinquecento, para os quais a idéia de liberdade, balizada pela
lei comum, constituía um dos eixos em torno do qual girava
o “humanismo cívico” que praticavam8.
Nem sempre, porém, ao longo da História, o termo
república teve o mesmo significado. Na Idade Média,
as palavras res publica, imperium, regnum e civitas eram
empregadas indistintamente para designar aquilo que hoje
se entende por Estado (stato), expressão que só tornou-se
corrente a partir do século XVI9. Mesmo depois de findo
o medievo, não se atribuiu à palavra qualquer significado
especial, lembrando-se que Bodin associou-a ao exercício
de um poder absoluto e perpétuo, que denominou
“soberano”10.
Liberdade, igualdade e legalidade
A concepção romana de república foi resgatada, no
século XVIII, por Rousseau, para quem ela correspondia a
um “Estado regido pelas leis, qualquer que seja a sua forma
de administração”, aduzindo que “só então o interesse
público governa e a coisa pública é alguma coisa”11. O
pensador genebrino, ademais, desenvolveu a idéia de que as
leis procedem da vontade geral, derivada do contrato social,
sem conhecer quaisquer restrições (Quidquid populi placuit
legis habet vigorem)12.
Mas a maior contribuição de Rousseau para o conceito
moderno de república foi, sem dúvida, a afirmação da
igualdade essencial dos cidadãos, visto que o contrato, sobre o
qual se assenta o Estado, coloca todos sob idênticas condições,
fazendo com que tenham os mesmos direitos13. Também a
liberdade, para o autor, decorre do pacto fundamental, na
medida em que somente aos que o integram compete editar
normas de convivência social14.
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7
Eletividade, temporariedade e responsabilidade
No Novo Mundo a tese segundo a qual a representação
popular configura o cerne de um governo republicano
dominou o pensamento político. Madison, cujos escritos,
ao lado dos de Hamilton e Jay, contribuíram decisivamente
para moldar o arcabouço institucional dos Estados Unidos,
assinalava que uma república consiste num “governo que
deriva os seus poderes direta ou indiretamente do povo, e
é administrado por pessoas que se mantêm nos respectivos
cargos, por um período limitado, ao arbítrio daquele, ou
enquanto bem servirem”, associando também à noção
o princípio da separação dos poderes desenvolvido por
Montesquieu como instrumento de contenção do arbítrio
dos agentes estatais18.
No Brasil, o ideal republicano inspirou, ainda que
de forma difusa e inarticulada, grande parte das revoltas e
insurreições deflagradas desde os fins do século XVIII e
no decorrer da primeira parte da centúria seguinte, que
pretendiam instituir governos independentes e republicanos.
Mas o ambiente político somente tornou-se propício à
derrubada do regime monárquico depois da segunda metade
do século XIX, quando “um bando de idéias novas agita o
País e dá-lhe novas diretrizes”19.
Com efeito, nessa quadra histórica, o naturalismo, o
evolucionismo e o positivismo passaram a influenciar as
convicções da elite pensante, sobretudo dos profissionais
liberais e da oficialidade militar, ensejando uma tomada
de posição crítica, impregnada de laicismo, com relação
às instituições políticas então vigentes. Por toda a parte
cresciam os ataques à monarquia e às suas tradições, em
especial ao “poder moderador”, prerrogativa constitucional
que permitia ao imperador interferir nos demais poderes,
tida como a “tirania da coroa”20.
Deposto D. Pedro II, em 15 de novembro de 1889,
por um golpe militar liderado pelo Marechal Deodoro
de Fonseca, a imprensa, interpretando o sentimento dos
insurgentes e seus adeptos no mesmo dia registrava que o
Brasil, com o fim do ancien régime, ingressou numa nova
8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
fase, “passando a regime francamente democrático com
todas as conseqüências da liberdade”21.
Os mentores das instituições republicanas no Brasil não
alimentavam maiores dúvidas sobre seu significado. Rui
Barbosa, um dos principais artífices da nova ordem, tomando
emprestadas as palavras do constitucionalista norte-americano
Campell Black, definia a república como um governo “do
povo, para o povo e pelo povo”, que se apóia na igualdade
política dos homens22.
Os especialistas contemporâneos não se afastam muito
desse conceito quando assinalam que “república é o regime
político em que os exercentes das funções políticas (executivas
e legislativas) representam o povo e decidem em seu nome,
fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante
mandatos renováveis periodicamente”23. As características
essenciais dessa forma de governo são, pois, a eletividade, a
temporariedade e a responsabilidade dos governantes.
É interessante reparar que a monarquia, como forma
de governo oposta à república, ostenta características
diametralmente contrárias, quais sejam, a vitaliciedade, a
hereditariedade e a irresponsabilidade24. Em outras palavras,
o monarca governa “enquanto viver ou enquanto tiver
condições de governar”, procedendo sua escolha “pela simples
verificação da linha de sucessão”, não devendo “explicações
ao povo ou a qualquer órgão sobre os motivos pelos quais
adotou certa orientação política”25.
Nesse sentido, sob a égide da Constituição de 1824, a
pessoa do Imperador era “inviolável e sagrada”, em contraste
com as cartas republicanas que a ela se seguiram, nas quais,
sem exceção, previu-se que o chefe de Estado poderia perder
o mandato pela prática de crime de responsabilidade, sem
prejuízo de outras sanções. Essa pena, em nosso ordenamento
legal, não é privativa do supremo mandatário da nação,
aplicando-se também a todos os representantes eleitos,
que são afastados das respectivas funções, assim como os
demais servidores estatais, consonância com os postulados
de accountability e responsiveness, caso pratiquem atos
incompatíveis com o múnus público que lhes é cometido.
Representação e participação popular
Numa república os governantes escolhidos pelo povo
são responsáveis perante o mesmo pela gestão dos negócios
públicos. Não exercem o poder por direito próprio,
constituindo-se em meros mandatários dos cidadãos. Nessa
forma de governo, impera a soberania popular, que encontra
expressão por meio de representantes eleitos, distinguindo-se
dos regimes despóticos nos quais o povo não tem qualquer
ação sobre os governantes, ao mesmo tempo em que se
aparta das formas diretas de participação popular, em que os
cidadãos governam por si mesmos26.
A legitimidade dos representantes do povo radica em
eleições que têm como base o sufrágio geral, igual, direto e
secreto, que caracteriza, segundo alguns, a própria ratio essendi
da república27. Para dar-lhe concreção, impõe-se estender o
Foto: STF
Coerentemente com essas idéias, Rousseau concluía que
os cidadãos faziam as leis exprimirem sua vontade de forma
direta, sem qualquer intermediação, rejeitando, assim, a
possibilidade de representação, razão pela qual rebaixava os
deputados a meros comissários do povo, “que não estão aptos
a decidir definitivamente”15.
Kant, seu contemporâneo, embora entendendo também
que a res publica latius sic dicta constitui “uma forma de
união criada pelo interesse comum de todos os que vivem
sob o império da lei”16, divergia da concepção rousseaniana
da participação direta dos cidadãos no governo, explicando
que uma verdadeira república “é e não pode deixar de ser
um sistema representativo, no qual os direitos do povo
são custodiados por deputados que representam a vontade
unificada dos cidadãos”17.
Ministro durante a sessão plenário
direito de votar a todos os cidadãos, com exclusão apenas
daqueles que não preencham os requisitos da capacidade,
vedada qualquer restrição baseada em sexo, raça, renda,
instrução, ideologia etc..
Exige-se, por outro lado, que todos os votos tenham a
mesma eficácia jurídica, ou seja, o mesmo valor de resultado.
O voto há de ter também imediatismo, isto é, deve defluir
diretamente da vontade do eleitor, sem intermediação de
quem quer que seja e livre de pressões de qualquer espécie.
Além disso, o voto pressupõe não apenas a pessoalidade de seu
exercício, como também a ausência de qualquer possibilidade
de identificação do eleitor. Finalmente o voto precisa ser
renovado periodicamente, de modo a assegurar a alternância
dos representantes no poder.
O sistema representativo pressupõe ainda a existência de
mecanismos que estabeleçam o predomínio da vontade da
maioria, com a garantia de que as minorias encontrem expressão
no plano político. Para tanto, há de se assegurar não apenas o
pluripartidarismo, como também a mais ampla liberdade de
opinião, de reunião e de associação, além de outras franquias
pertinentes.
Mas a participação popular atualmente não ocorre mais
apenas a partir do indivíduo, do cidadão isolado, ente
privilegiado e até endeusado pelas instituições políticojurídicas do liberalismo. O final dos séculos XX e XXI
certamente entrará para a História como épocas em que o
indivíduo se eclipsa, surgindo em seu lugar as associações,
protegidas constitucionalmente, que se multiplicam nas
chamadas “organizações não-governamentais”.
Esse fato, aliado às deficiências da representação política
tradicional, deu origem a alguns institutos, que diminuem
a distância entre os cidadãos e o poder, com destaque para o
plebiscito, o referendo, a iniciativa legislativa, o veto popular
e o recall, dos quais os três primeiros foram incorporados à
nossa Constituição (artigo 14, I, II e III).
Direitos e deveres
Na república romana, os cidadãos de pleno direito (optimo
jure), em oposição aos estrangeiros (peregrini), eram detentores
de direitos políticos (jura politica), que compreendiam o voto
nos comícios, a elegibilidade para as magistraturas, o acesso
ao sacerdócio e faculdade de apelar quando processados28.
Também gozavam de direitos civis (jura privata), que incluíam
a propriedade, o casamento entre iguais e a possibilidade de
demandar na justiça29. Em contrapartida, sujeitavam-se a
obrigações (munera), com destaque para o dever de participar
do recenseamento (census), de servir no exército (militia) e de
pagar imposto (tributum)30.
A idéia moderna de república, a partir da Declaração dos
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia
francesa (1789), encontra-se indissoluvelmente ligada à
idéia de que os indivíduos são titulares de direitos em face
do Estado, em especial os direitos à vida, à liberdade, à
propriedade e à participação política. Isso porque, com as
revoluções liberais-burguesas, a relação entre governantes e
governados passou a ser entrevista mais ex parte populi, do
ponto de vista dos cidadãos, do que ex parte principis, da
perspectiva dos detentores do poder31.
Mais tarde, com a Revolução Industrial e as lutas
operárias desencadeadas em seu bojo, surgiram os
chamados “direitos sociais”, tais como o direito ao
trabalho, à saúde e à educação, que passaram a integrar
as constituições promulgadas a partir de então, ao lado
dos direitos civis e políticos, que já faziam parte das
cartas magnas surgidas em conseqüência da derrocada
do absolutismo monárquico, além de uma nova geração
de direitos, desenvolvidos em meados do século passado,
no contexto de um mundo globalizado, aos quais se
denominou “direitos de solidariedade ou fraternidade”,
com destaque para a proteção do meio ambiente.
Essas considerações, porém, não arredam a questão
básica, sempre recorrente na teoria política, relativa à
political obligation, quer dizer, aos deveres dos cidadãos em
face do Estado e da sociedade. Com efeito, se as pessoas
numa república são titulares de direitos, hão de ter também,
em contrapartida, obrigações para com a comunidade,
como ocorria na Roma antiga32 ou, mais recentemente, na
Alemanha sob a Constituição de Weimar, que enunciava um
rol de deveres fundamentais.
Mas, ainda que hoje os textos constitucionais, como
regra, não façam menção a obrigações, é possível deduzi-los
a partir da multissecular tradição republicana, a exemplo do
dever de tolerância, de solidariedade, de respeito aos outros,
de superação do egoísmo pessoal, da defesa à liberdade, da
observação aos direitos das pessoas e do servir ao bem comum33.
São deveres que Puffendorf, já no século XVII, fazendo eco à
conhecida máxima romana34, resumia nos seguintes: “viver em
paz e amizade com seus concidadãos; ser cortês e obsequioso;
não causar problemas nem criar dificuldades por obstinação;
não desejar ou subtrair a propriedade de outrem”35.
Republicanismo e virtude cívica
Um dos aspectos mais importantes da obra de Maquiavel,
e nem sempre bem compreendido, é o destaque que
empresta à noção de virtù, inspirada na virtude cívica dos
antigos romanos (vir virtutis), que não mediam sacrifícios
em prol do bem comum36. Para o pensador florentino, os
Estados nos quais a virtù declina tornam-se presas fáceis da
fortuna, de desfecho incerto, quando as circunstâncias lhes
são adversas37.
“É nessa hora – lembra um intérprete de seu pensamento
– “que as repúblicas, fruto de uma adesão dos homens a um
desejo de liberdade e às instituições que as exprimem, revelamse muito mais fortes para resistir aos ataques do tempo”38. Isso
10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
porque, sem cidadãos “capazes de resistir contra os arrogantes,
servir ao bem público, a república morre, torna-se um lugar
em que alguns dominam e outros servem”39.
Atualmente, a virtude cívica, como já se afirmou, constitui
uma característica dos homens e mulheres que “desejam viver
com dignidade e, porque sabem que não podem viver com
dignidade em uma comunidade corrupta, fazem o que podem,
quando podem, para servir à liberdade comum”, levando-os
a repudiar a prevaricação, a discriminação, a corrupção, a
arrogância e a vulgaridade40.
Alguns agem estimulados por um senso moral mais
desenvolvido ou por um sentimento de decência e decoro mais
aguçado, outros se vêem impelidos por uma série de interesses
legítimos, outros ainda encontram motivação no desejo de
obter a estima ou o reconhecimento social, não sendo raro
que tais razões atuem de forma combinada, reforçando-se
reciprocamente41.
República e Constituição
O princípio republicano, entre nós, representa a viga
mestra do “sentimento constitucional” (Verfassungsgefüll) a que
se refere a doutrina alemã, ou seja, de um estado de espírito
coletivo que, “transcendendo todos os antagonismos e tensões
existentes, político-partidárias, econômico-sociais, religiosas ou
de outro tipo, integra os detentores e destinatários do poder
num marco de uma ordem comunitária obrigatória”42.
A Constituição de 1988, com seu núcleo republicano,
derivou de um sentimento de repulsa ao regime de exceção
imposto pelos governos militares, bem como de repúdio ao
passado histórico de autoritarismo político e de exclusão
social, consubstanciando um projeto de desenvolvimento
nacional que busca a superação das desigualdades, a
efetivação dos direitos fundamentais e a consolidação da
democracia.
Por essa razão, o princípio republicano, na sistemática
constitucional vigente, não se resume apenas à eleição
dos representantes do povo, por um mandato renovável
periodicamente (artigos 27, § 1°; 28; 29, l e II; e 82), mas
implica também a igualdade de acesso dos cidadãos aos
cargos públicos, eletivos ou não, preenchidos os requisitos
legais (artigos 14, § 3°; e 37, 1), além de contemplar a
progressiva superação das causas da pobreza e dos fatores de
marginalização, simultaneamente à supressão dos privilégios
de todo o gênero (artigos 1º, I e II; 3º, I , III e IV; 5°; 6º; 7º;
23, X; e 170, VII) .
Mas ao lado dessas franquias, o constituinte criou
também mecanismos de defesa que protegem as instituições
contra ataques potencialmente destrutivos, estabelecendo
condições e restrições ao exercício da cidadania, que
limitam ou até mesmo suprimem o direito do cidadão
de participar do processo eleitoral ou de exercer funções
públicas. Nesse sentido, para que alguém concorra a
um cargo eletivo, é preciso que, de um lado, satisfaça
as condições de elegibilidade e, de outro, não incorra
nas causas de inelegibilidade, listadas no próprio texto
constitucional, com o escopo de proteger a probidade
administrativa e a moralidade para o exercício do mandato
(artigo 14, § 9).
A Constituição vinculou ainda a atuação dos servidores
do Estado à observância dos cânones da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência
(artigo 37), significando que devem exercer suas funções,
de forma lícita, imparcial, produtiva e transparente,
visando exclusivamente ao interesse público e não à
satisfação de desígnios particulares. Em defesa desses
postulados estabeleceu que a prática de atos de improbidade
administrativa importa a suspensão dos direitos políticos, a
perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o
ressarcimento ao erário, nos termos da lei (artigo 15, V; e
37, § 4º).
Ademais, atribuiu a qualquer cidadão o direito de ajuizar
ação popular para anular ato lesivo ao patrimônio público, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico e cultural (art. 5º, LXXIII) – âmbito de interesses
correspondente hoje à esfera de valores compreendida pela
res publica dos antigos romanos –, tarefa também cometida
supletivamente ao Parquet (art. 129, II), cujas funções
institucionais foram bastante ampliadas pelo legislador
constitucional.
Por fim, cumpre notar que, se todo princípio constitui
um “mandamento de otimização”, ou seja, um preceito que
determina “que algo seja realizado na maior medida possível,
dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”43,
forçoso é concluir que o princípio republicano, como
complexo axiológico-normativo situado no ápice de
nossa hierarquia constitucional, deve ser expandido em
sua extensão máxima, afastando nesse processo todos os
princípios, regras e atos que lhe sejam contrários. Convém
lembrar, todavia, que a força imperativa desse princípio será
tanto maior quanto mais elevado for o grau de maturidade
cívica dos cidadãos e quanto mais conscientes estejam de
que são titulares não só de direitos mas também de deveres
em face da coletividade.
NOTAS
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1992, p. 349.
Idem, p. 352.
3
Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2004, pp. 377/379.
4
Rui Samuel Espíndola, “Princípios Constitucionais e Atividade Jurídico-Administrativa”, in George Salomão Leite (org.), Dos Princípios Constitucionais: Considerações
em torno das normas principiológicas da Constituição, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 265.
5
Cf. verbete “República”, in Norberto Bobbio et al., Dicionário de Política, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1991.
6
De República, I, 25.
7
V. especialmente Il Principe e Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.
8
Cf. Newton Bignoto, Maquiavel Republicano, São Paulo, Loyola, 1991, p. 57.
9
Cf. Georg Jellinek, Teoría General del Estado, Buenos Aires, Albatros, 1973, p. 99.
10
Les six lives de la république, I, 8.
11
Du Contrat Social, II, 6.
12
Cf. Bertrand de Jouvenel, De la souveraineté: a la recherche du bien politique, Paris, Génin, 1955, p. 216.
13
Rousseau, op. cit., loc. cit.
14
Idem, ibidem.
15
Idem, III, 6.
16
Die Methaphysik der Sitten, II, § 43.
17
Idem, II, § 52.
18
The Federalist, 39 e 47.
19
Cruz Costa, Pequena História da República, 3ª ed., São Paulo, Civilização Brasileira, 1974, p. 25.
20
Idem, p. 27.
21
Apud Cruz Costa, op. cit., p. 43.
22
Homero Pires (org.), Rui Barbosa: Teoria Política, Rio de Janeiro, Jackson Editores, 1950, p. 48.
23
Geraldo Ataliba, República e Constituição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. IX.
24
Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, 16ª ed. São Paulo, Saraiva, 1991, p. 191.
25
Idem, ibidem.
26
Cf. Carré de Mahlberg, Contribution a la Theorie Génerale de L’État, tomo II, Paris, Sirey, 1922, p. 202.
27
José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1999, p. 159.
28
Bertrand Lançon, O Estado Romano: Catorze séculos de modelos políticos, Sintra, Europa-América, 2003, p. 26.
29
Idem, ibidem.
30
Idem, ibidem.
31
Cf. Norberto Bobbio e Maurizio Viroli, Diálogo em torno da República: os grandes temas da política e da cidadania, Rio de Janeiro, Campus, 2002, p. 52
32
Cícero as estuda sistematicamente em seu De Officiis.
33
Cf. Norberto Bobbio e Maurizio Viroli, op. cit., pp. 46/ 50.
34
Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, neminem laedere, jus suum cuique tribuere.
35
Samuel Pufendorf, De oficcio hominis et civis juxta legem naturalem libri duo, II, 18.
36
Cf. especialmente Il Principe, XXV e XXVI.
37
Cf. Newton Bignoto, op. cit., p. 152.
38
Idem, ibidem.
39
Norberto Bobbio e Maurizio Viroli, op.cit., p.16.
40
Idem, op. cit., p. 17.
41
Idem, ibidem.
42
Karl Loewenstein, Teoría de la Constitución, 2ª. ed., Barcelona, Editorial Ariel, 1976, p. 200.
43
Robert Alexy, Teoría de los Derechos Fundamentales, Madri, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002. p. 86.
1
2
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11
HABEAS CORPUS
Nº 91.955 – ES (2006/0143900-0)
DECISÃO
A vida em liberdade é a maior conquista do homem e vem
sendo perseguida em todos os quadrantes de sua existência. O
seu conceito é amplo e abrange desde as condutas interpessoais
às sociais, nestas compreendidas a liberdade política.
No que interessa, cuida-se de liberdade pessoal de ir e vir
no regime democrático brasileiro condicionada às disposições
da lei.
No art. 5º, a Constituição, regulando os direitos e deveres
individuais e coletivos, enfatiza:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
No inciso LVII, impõe:
“LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória;”
Adiante, defere o remédio do habeas corpus, nestes
termos:
Foto: STJ
“LXVIII - conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém
sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua
liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;”
IMPETRANTE: RONILDO LOPES DO NASCIMENTO
IMPETRADO PRIMEIRA TURMA ESPECIALIZADA DO TRIBUNAL
REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO
PACIENTE: PAULO ROBERTO SCALZER (PRESO)
12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
Na hipótese dos autos, Paulo Roberto Scalzer, brasileiro,
advogado, responde a processo penal instaurado pelo dito
cometimento dos crimes de falsidade ideológica e uso de
documento falso.
Alega o Ministério Público, guardião da lei, que o paciente
incorrera “nas penas do art. 171, c/c seu § 3º (por ter, na
qualidade de autor do crime, obtido para outrem vantagem
ilícita em prejuízo da União/Fazenda Nacional, por meio
fraudulento - uso de uma falsa escritura e falsas alegações
protocolizadas em juízo - induzindo e mantendo em erro a
União) e do art. 304 c/c o art. 299, todos do Código Penal (pelo
uso da escritura pública de compra e venda ideologicamente
falsa), ambos em concurso material, nos termos do art. 69 do
Código Penal;”
O Juiz Federal substituto indeferiu o requerimento de
prisão preventiva nestes termos (fls. 152/154):
“......................................................................................
........................
Em que pese a nobre combatividade do parquet, entendo,
data- vênia, que o pleito não merece prosperar.
A decretação da prisão preventiva, como espécie de prisão
cautelar que é, demanda a existência daqueles pisados e repisados
requisitos inerentes a qualquer medida cautelar, quais sejam, a
fumaça de existência do direito e o perigo na demora.
Em se tratando de prisão preventiva, estes requisitos estão
traduzidos no art. 312 do CPP, sendo o fumus boni iuris a
probabilidade de o requerido ser autor de determinado crime, e
o periculum in mora a necessidade da segregação para assegurar
a ordem pública, econômica, ou a eficaz instrução criminal ou
aplicação da lei penal.
Além disto, elenca os arts. 313 e 314 do CPP condições de
admissibilidade para o encarceramento, devendo o crime ser
apenado com pena de reclusão, à exceção de ser o requerido
“vadio”, haver dúvida sobre sua correta identificação, ou se
tratar de reincidente em crime doloso, além de restar assentada a
impossibilidade do decreto prisional em caso de se fazer presente
causa excludente de ilicitude.
Aduz o MPF que o fumus boni iuris “está includivelmente
demonstrado nos autos que integram o procedimento
administrativo em epígrafe. conforme minuciosamente descrito
na denúncia (..)”.
De fato, a probabilidade de cometimento do crime
imputado aos Requerentes na denúncia citada (autos de nº.
2005.50.01.009865-8) é extraída dos documentos que a
instruem.
Ocorre que não se faz presente o periculum in mora.
Sem desconhecer a viva discussão na jurisprudência de nossos
Tribunais, entendo que o perigo à ordem pública pode ocorrer
em duas hipóteses: 1) quando se comprova que o sujeito vem
reiteradamente cometendo crimes, de forma que, por sua atuação
concreta, pode-se se deduzir, fazendo-se um juízo de probabilidade,
que o mesmo, não sendo segregado cautelarmente, continuará a
cometer delitos; 2) ou quando a comoção e irresignação social se
revela em densidade tal que apenas a prisão do criminoso servirá
para manter a paz social.
O parquet, visando demonstrar a necessidade concreta da
prisão cautelar dos Requeridos para se garantir a ordem pública,
cita que esses, além de terem praticado o fato ora denunciado - uso
de escritura pública ideologicamente falsa em processo judicial:
a) também figuram como réus em um processo em trâmite
perante o Eg, STJ; b) foram presos, temporariamente, durante o
curso da amplamente noticiada “operação cevada”, pelo i. Juízo
Federal de Itaboraí / RJ; c) o requerido Beline se encontra preso
por determinação do Eg. STJ, “em razão de nova denúncia,
também relativa. a fraudes cometidas em processos da Justiça
Federal no ES e no TRF da 23. Região (APN nº 425)”.
Não obstante, o fato de figurarem os requeridos como réus
em outros processos ou terem sido presos cautelarmente nesses ou
em operações policiais referentes a inquéritos, não pode, por si só,
ensejar uma nova segregação cautelar.
Este Juízo poderia vislumbrar a existência de perigo à ordem
pública (na primeira das “espécies” acima exposta) se, além de
tais processos e investigações prejudiciais, surgisse elemento de
convicção novo que, sendo da sua competência para conhecimento
e julgamento, demonstrasse que o réu ou investigado continua a
delinqüir.
Esta nova denúncia, no entanto, refere-se à utilização de
documento ideologicamente falso no ano de 2003, não havendo
que se firmar juízo de probabilidade, apenas por esse fato, que
os Requeridos, supondo-se que realmente cometeram tal crime,
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
“Não afasto do
pensamento o julgamento
de Cristo. Seu crime, o de
haver pregado ser o ‘Filho
de Deus’. Por isso, e até
hoje, não mereceu perdão
dos que nele não creram.
E todo o povo judeu,
em aclamação, preferiu
conferir a liberdade a
Barrabás.”
continuam e continuarão a cometer novos crimes nos presentes
dias.
A presença da segunda “espécie” de risco à ordem pública
acima citada também não restou demonstrada, já que, embora
sejam de extrema gravidade os crimes imputados aos Requeridos,
a estabilidade da ordem pública não é ameaçada pelo fato de os
mesmos “responderem” ao presente processo em liberdade.
Note-se que se houver nos autos dos outros processos e
investigações citados pelo MPF elementos que, em cotejo com
a denúncia ora proposta, mostrem-se hábeis a demonstrar a
necessidade da segregação cautelar dos Requeridos, esta medida
deve, obviamente, ser decretada pelos Juízos perante os quais
tramitam aqueles processos ou investigações pré-judiciais.
Veja-se, inclusive, que o requerido Beline encontra-se preso
cautelarmente em um desses feitos, sendo que o requerido Paulo
Scalzer apenas foi segregado do convívio social no exíguo prazo
da prisão temporária, sendo, após, posto em liberdade.
Deve este Juízo se restringir à análise da necessidade da medida
extrema apenas em decorrência da denúncia ora oferecida (autos
nº 2005.50.01.009865-8).
Não há dúvida, como já acima mencionado, de que os crimes
imputados aos Requeridos (neste Juízo e nos processos citados pelo
MPF) são graves, mas o Judiciário deve ser prudente na análise
quanto à presença dos requisitos estritamente cautelares para a
adoção de medida tão drástica e ofensiva à dignidade do homem
como a prisão, despojando-se da paixão e parcialidade inerentes
às partes, sendo esta, aliás, a razão da reserva de jurisdição para
adoção de certas medidas limitadoras de direitos fundamentais
de réus e investigados.
Sem a presença dos requisitos cautelares, a prisão se torna uma
pena, a qual, como notório, só pode ser cominada judicialmente
e aplicada após o devido processo legal, cabendo registrar, ainda,
que, ante a política legislativa criminal, a substituição da pena
de prisão pelas chamadas “penas alternativas” é muito comum,
sendo irrazoável que, para o réu, seja melhor ser logo condenado
para, conseqüentemente, ser solto, em vez de defender-se da
acusação, mas enclausurado, pois além de estar cumprindo pena
14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
antes de condenado, estaria cumprindo pena pior que aquela que
lhe seria infligi da em caso de eventual condenação.
Ao contrário do alegado pelo MPF, a credibilidade deste
Judiciária, que, segundo aduz, estaria debilitada em razão das
práticas criminosas dos Requeridos, não ficaria salvaguardada
com a decretação desta prisão e a futura soltura dos presos. Pelo
contrário, isto provoca mais perplexidade na sociedade, a qual,
ante a desinformação ordinariamente prestada pela imprensa em
matérias jurídicas, não consegue entender por que um criminoso
(para a população o sujeito já se transforma em um criminoso) é
preso, mas, logo após, é solto.
Desta feita, INDEFIRO o requerimento ministerial,
por restar ausente requisito necessário à decretação da prisão
preventiva, conforme acima exaustivamente exposto.
........................................................................................
......................”
Interposto recurso em sentido estrito pelo MP, valem
transcritas as alegações reveladoras dos crimes cometidos pelo
réu (fls. 159/160):
“......................................................................................
.........................
III - DOS FATOS NARRADOS NA (NOVA) DENÚNCIA
(JÁ RECEBIDA PELO JUÍZO DE PISO)
No caso concreto o objeto da denúncia submetida à análise
do judiciário, verifica-se que Beline José Salles Ramos e Paulo
Roberto Scalzer, atuando, respectivamente, na qualidade de autor
e advogado no processo nº 2003.50.01.005160-8, induziram e
mantiveram em erro a União (e o juízo da 5ª Vara Federal de
Vitória), por meio fraudulento, caracterizado por falsas alegações
inseridas na peça inicial e em outras manifestações nos autos,
referente à suposta idoneidade de um bem ofertado em garantia
(fls. 36/38, 44 e 349). Os denunciados também fizeram uso de
documento falso, ao, concomitantemente, à propositura da ação,
apresentarem à Justiça Federal uma escritura pública de compra
e venda ideologicamente falsa (fls. 199/203), que atribuiu um
valor absolutamente irreal a um imóvel ofertado em garantia
para fins de suspensão da exigibilidade de crédito tributário.
Consta dos autos que o referido imóvel ofertado em garantia,
cujo valor consignado na falsa escritura de compra e venda de fls.
199/203 foi de R$ 1.612.755,00 (um milhão, seiscentos e doze
mil, setecentos e cinquenta e cinco reais), tem na verdade valor não
superior a R$ 28.571,00 (vinte e oito mil, quinhentos e setenta e
um reais) - de acordo com a Declaração de ITR (DITR) do mesmo
imóvel apresentado no exercício de 2004 - ou, no máximo, o valor
de R$ 43.006,80 (quarenta e três mil, seis reais e oitenta centavos)
- de acordo com a DOI (Declaração de Operações Imobiliárias)
fornecidas pelo Cartório de João Mollulo, em Santa Leopoldina/
ES, à Receita Federal (documentos de fls. 517/537).
As falsas alegações e o documento falso utilizado pelos
denunciados serviram de base ao Juízo da 5ª Vara Federal de
Vitória, na pessoa da Ínclita Magistrada Federal Virgínia Procópio
de Oliveira, que, induzida a erro, acolheu os pedidos formulados
e antecipou os efeitos da tutela, aceitando o imóvel oferecido em
garantia e declarando a imediata suspensão da exigibilidade do
crédito tributário relativo à inscrição nº 72.102.001122-69
(processo administrativo nº 10.783.005938/98-4), em decisão
proferida na data de 22 de outubro de 2003 (fls. 455/456).
Com tais condutas, os denunciados, em prévio conluio,
obtiveram para o primeiro denunciado proveito patrimonial
consistente no impedimento do prosseguimento da execução fiscal
e da cobrança do crédito inscrito em DAU sob o nº 72 1 02
001122-69, que atingia em junho de 2005 o montante de R$
1.015.395,68 (um milhão, quinze mil, trezentos e noventa e
cinco reais e sessenta e oito centavos), além do fornecimento
de certidão de regularidade fiscal (com relação a esse débito) e a
retirada de seu nome do CADIN.
Ocorre que, infelizmente, o quanto narrado na denúncia ora
oferecida não representa um fato isolado na carreira criminosa
dos advogados que Belini José Salles Ramos e Paulo Roberto
Scalzer consoante se relata no tópico seguinte.
........................................................................................
.......................”
O recurso foi provido à unanimidade, nos termos do
voto da relatora, que enfatizou o fato de haver sido instruído
“o feito com elementos que autorizam inferir a necessidade da
medida (três denúncias que comprovam o periculum libertatis,
porque demonstram, em denúncias recebidas, que pressupõem
materialidade e indícios de autoria)-, e com forte probabilidade
de que lesar o erário, fraudar, corromper, tornou-se um meio de
vida para o grupo de advogados do Escritório Beline”, afirmando
em seguida: “não vislumbro violação à ordem constitucional, e
sim, uma proteção à sociedade, a justificar a prisão preventiva
de um grupo acusado, por várias denúncias já recebidas, de
cometimento de tão graves crimes, no fundamento da garantia
da ordem pública”, razão porque não tinha como “atentatório
à ordem pública, em vista de provas tão evidentes, permitir-se
que os alegados dirigentes de uma organização de porte desse
formado pelo Grupo Beline, permaneça livre, desfilando a sua
impunidade ante as carências do povo brasileiro, neste portentoso
Brasil cuja posição no Índice de Desenvolvimento Humano IDH só nos causa vergonha”. E assinala mesmo que “é verdade
que me utilizo de razões metajurídicas. Consciente estou de que,
se razões metajurídicas não são, por si sós, válidos para sustentar a
custódia preventiva, servem, todavia, de suporte à circunstância
jurídica ‘garantia da ordem pública’.”
Não afasto do pensamento o julgamento de Cristo. Seu
crime, o de haver pregado ser o “Filho de Deus”. Por isso, e
até hoje, não mereceu perdão dos que nele não creram. E todo
o povo judeu, em aclamação, preferiu conferir a liberdade a
Barrabás.
A sua crucificação serviu à criação da Igreja e consolidou,
através dos séculos, a regulação rígida do processo de aplicação
do direito, sobretudo do direito penal.
No caso temos submetido à prisão preventiva um
advogado, cujo suposto crime é o de usar documento falso
“A prisão preventiva é
medida excepcional e
deve ser decretada apenas
quando devidamente
amparada pelos requisitos
legais, em observância ao
princípio constitucional
da presunção de inocência
ou da não culpabilidade,
sob pena de antecipar a
reprimenda a ser cumprida
quando da condenação.”
em ação anulatória de débito fiscal.
O fato é objeto de apuração de processo regular a que
respondia em liberdade, por força de escorreita decisão do juiz
federal que afastou com fundamentos jurídicos o periculum
in mora justificador da prisão preventiva. Também não
vejo ameaçada a ordem pública pela defesa do paciente em
liberdade. E, ao revés, tenho como direito seu o de defenderse do crime que lhe foi imputado em liberdade, bem maior da
vida, assegurado pela Constituição nos termos da lei.
Argumentos metajurídicos não podem determinar a perda
da liberdade.
Neste sentido vem se posicionando a jurisprudência do
STJ e do STF, como se pode constatar nos julgados cujas
ementas assim os resumiram:
“PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE
RECURSO ORDINÁRIO. ART. 157, § 2º, INCISOS I
E II, DO CÓDIGO PENAL. PRISÃO PREVENTIVA.
FUNDAMENTAÇÃO.
I - A prisão preventiva deve ser considerada exceção, já que,
por meio desta medida, o réu é privado de seu jus libertatis antes
do pronunciamento condenatório definitivo, consubstanciado
na sentença transitada em julgado. É por isso que tal medida
constritiva só pode ser decretada se expressamente for justificada
sua real indispensabilidade para assegurar a ordem pública, a
instrução criminal ou a aplicação da lei penal, ex vi do artigo
312 do Código de Processo Penal.
II - Em razão disso, deve o decreto prisional ser necessariamente
fundamentado de forma efetiva, não bastando meras referências
quanto à gravidade do crime e à possibilidade de ameaças
a testemunhas ou de fuga do distrito da culpa. É dever do
magistrado demonstrar, com dados concretos extraídos dos autos,
a necessidade da custódia, dada sua natureza cautelar nessa fase
do processo (Precedentes).
Ordem concedida.”
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15
(HC 49.256/PB, Rel. Ministro FELIX FISCHER,
QUINTA TURMA, julgado em 02.05.2006, DJ 19.06.2006
p. 159)
“CRIMINAL. HC. ENTORPECENTES. PRISÃO
PREVENTIVA. HEDIONDEZ DO DELITO. PROVA
DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA.
GRAVIDADE DO CRIME. MOTIVAÇÃO INIDÔNEA A
RESPALDAR A CUSTÓDIA. AUSÊNCIA DE CONCRETA
FUNDAMENTAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.
A prisão preventiva é medida excepcional e deve ser decretada
apenas quando devidamente amparada pelos requisitos legais,
em observância ao princípio constitucional da presunção de
inocência ou da não culpabilidade, sob pena de antecipar a
reprimenda a ser cumprida quando da condenação.
O fato de se tratar de crime hediondo não basta, por si só,
para justificar a custódia cautelar, sendo necessária a devida
fundamentação. Precedente.
Aspectos relacionados à existência de indícios de autoria e
prova da materialidade devem permanecer alheios à avaliação
dos pressupostos da prisão preventiva, não sendo suficientes para
respaldá-la.
O juízo valorativo sobre a gravidade genérica dos delitos
imputados à paciente não constitui fundamentação idônea
a autorizar a prisão para garantia da ordem pública, se
desvinculados de qualquer fator concreto.
Precedente do STF.
Deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como as decisões
monocráticas por ele confirmadas, para revogar a prisão
preventiva da paciente, determinando-se a expedição de alvará
de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver presa,
sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia
cautelar, com base em fundamentação concreta.
Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.”
(HC 54841/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA
TURMA, julgado em 23.05.2006, DJ 19.06.2006 p. 168)
“I. Prisão preventiva: fundamentação inidônea: liberdade
provisória deferida. 1. Invocação da manutenção da ordem
pública: ausência de fato concreto que a justifique. A referência
hipotética à mera possibilidade de reiteração de infrações penais,
sem nenhum dado concreto que lhe dê amparo, não pode servir
de supedâneo à prisão preventiva. 2. Garantia da aplicação da
lei penal: o simples fato de o recorrente não ter sido encontrado
não é por si só bastante a fundamentá-la, a pretexto de fuga
do acusado. 3. Suposta ameaça a testemunhas: fundamento
acrescentado pelo Superior Tribunal de Justiça e não referido pelo
decreto: não cabe às sucessivas instâncias, para denegar a ordem,
suprir a deficiência originária da decisão, mediante achegas de
novos motivos por ela não aventados.
II. Suspensão condicional do processo: ausência de
demonstração de que a questão tenha sido suscitada
oportunamente, o que inviabiliza a concessão do habeas corpus
de ofício.”
(RHC 86833/SP, Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE,
16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
PRIMEIRA TURMA, julgado em 13.12.2005, DJ 17.02.2006
p. 60)
“PRISÃO PREVENTIVA - EXCEPCIONALIDADE.
Em virtude do princípio constitucional da não-culpabilidade,
a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção.
Deve-se interpretar os preceitos que a regem de forma estrita,
reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque
em risco os cidadãos. PRISÃO PREVENTIVA - SUPOSIÇÕES
- IMPROPRIEDADE. A prisão preventiva tem de fazerse alicerçada em dados concretos, descabendo, a partir de
capacidade intuitiva, implementá-la consideradas suposições.
PRISÃO PREVENTIVA - NÚCLEOS DA TIPOLOGIA
- IMPROPRIEDADE. Os elementos próprios à tipologia bem
como as circunstâncias da prática delituosa não são suficientes
a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última análise,
antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta.
PRISÃO PREVENTIVA - PRESERVAÇÃO DA ORDEM
PÚBLICA. O bem a ser protegido a esse título há de situarse no futuro, não no passado, a que se vincula a pretensão
punitiva do Estado. PRISÃO PREVENTIVA - APLICAÇÃO
DA LEI PENAL - POSTURA DO ACUSADO - AUSÊNCIA
DE COLABORAÇÃO. O direito natural afasta, por si só, a
possibilidade de exigir-se que o acusado colabore nas investigações.
A garantia constitucional do silêncio encerra que ninguém
está compelido a auto-incriminar-se. Não há como decretar a
preventiva com base em postura do acusado reveladora de não
estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução
processual. PRISÃO PREVENTIVA - MATERIALIDADE
DO CRIME E INDÍCIOS DA AUTORIA - ELEMENTOS
NEUTROS. A certeza da ocorrência do delito e os indícios sobre
a autoria mostram-se neutros em relação à prisão preventiva,
deixando de respaldá-la. PRISÃO PREVENTIVA - CLAMOR
PÚBLICO. A repercussão do crime na sociedade do distrito da
culpa, variável segundo a sensibilidade daqueles que a integram,
não compõe a definição de ordem pública a ser preservada
mediante a preventiva. A História retrata a que podem levar as
paixões exacerbadas, o abandono da razão.”
(HC 83943/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO,
PRIMEIRA TURMA, Julgado em 27/04/2004, DJ 17-092004, p. 78)
Ante o exposto, concedo a liminar requerida, determinando
a imediata expedição do alvará de soltura.
Comunique-se ao Tribunal de origem.
Após, vista ao Ministério Público Federal.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília (DF), 27 de julho de 2006.
Ministro Francisco Peçanha Martins
Vice-Presidente, no exercício da Presidência
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17
ENTREVISTA
Célio Borja, ex-ministro do STF
Luz na escuridão
Marcone Formiga
Da Revista Brasília em Dia
A
lém de o Estado estar
ameaçado de perder a guerra
contra o crime organizado, a
democracia está perdendo a
admiração da sociedade. O veredito
cruel é dado pelo jurista Célio Borja.
Aos 78 anos de idade, o ex-ministro
da Justiça, ex-ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) e ex-presidente
da Câmara dos Deputados, tem uma
visão bastante crítica da crise moral e
ética que o Brasil vem atravessando
nos últimos anos. A escalada da
criminalidade em todo o país é vista
por ele de forma serena, questionando
o que leva essas pessoas a uma vida
marginal.
Sua avaliação é a de que, muitas
vezes, criminosos de colarinho branco
ou os doutores criminosos não têm o
menor sentido de moralidade, nem
pessoal nem pública. “E eles são
vítimas da desigualdade social?”,
questiona.
Ele considera o Movimento dos
Sem Terra, por exemplo, “um caso de
banditismo político, nada mais do que
isso”. Borja afirma não ter dúvidas de
que o Brasil chegou a toda essa crise
por causa da degradação do sistema
de representação política - partidos,
eleições, sistemas eleitorais e uma
infiltração da idéia de que a liberdade
é um produto dispensável. Veja ao
lado a íntegra da entrevista.
18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
A política brasileira, hoje, está mais para
mafiosos?
É uma mistura das duas coisas. Há mafiosos e ambiciosos.
Há os que querem o poder pelo poder e os que querem o
poder apenas para ficar ricos ou para viver melhor. Eu acho
que o quadro é esse. Agora, não podemos esquecer, também,
dos patriotas de sempre, os que estão na vida pública para
se credenciar ao reconhecimento público pelos serviços
que podem prestar. Certamente, algumas tintas estão
mais carregadas no lado de Dom Corleone e Maquiavel, e
menos para Aristóteles e Tomás de Aquino, da filosofia do
bem comum. Enfim, existem das três espécies no cenário
brasileiro.
E como separar o joio do trigo?
Eu acho que não é difícil. Qualquer pessoa dotada de
senso comum - e todos temos - é capaz de distinguir o Dom
Corleone de Maquiavel e de Aristóteles e Tomás de Aquino.
Mesmo quando a gente, às vezes, fica em dúvida, o próprio
tempo se encarrega de esclarecer quem é quem.
A impunidade não estimula a ousadia dos
assaltantes de cofres públicos?
Não sei se é só a impunidade, mas claro que ela estimula
também. Eu creio que seja o baixo nível de educação pessoal e
cívica e, ao mesmo tempo, a destruição de todas as idéias que
sustentam essa visão do bem comum como sendo o objeto
próprio da política. A política não é a arte de conquistar e
conservar o poder, como queria Maquiavel, nem a de se dar
bem, como queria Dom Corleone. A política é a ciência do
bem comum. Isso não é difícil de as pessoas entenderem, está
no consenso. Não é fácil, logo no começo, sabermos quem
está a serviço de uma ou outra coisa. Acredito que com um
pouco de atenção e reflexão, conseguimos fazer as distinções
necessárias.
São os bandidos que entram na política ou os
políticos acabam virando bandidos quando
obtêm o poder?
Há os dois casos. Há os que entram puros e saem viciados
e há os que entram já com finalidades condenáveis, ilícitas...
Muitas vezes, o eleitor é conivente com isso, porque não faz
nenhuma questão de apurar a qualidade moral do candidato
em que vai votar. Freqüentemente, o eleitor é enganado. Mas,
o fato é que não é pouco comum a ocorrência disso – entrar
na política com o melhor dos propósitos e sair com os piores.
A desigualdade social contribui para aumentar a
criminalidade?
Eu, cada vez mais, me convenço do contrário. Ela não é
tão importante como estímulo à criminalidade. Eu sempre
me recordo das pessoas modestas que conheci, que eram
padrões de dignidade pessoal. Eu atentaria contra a memória
dessas pessoas se subscrevesse a tese de que são as dificuldades
da vida que acabam por empurrar as pessoas para a vida do
crime. Eu vejo muitas vezes criminosos de colarinho branco
ou os doutores criminosos que não têm o menor sentido de
moralidade, nem pessoal nem pública. E eles são vítimas da
desigualdade social? São pessoas que se condoem de si mesmas
à vista da riqueza dos outros e da sua pobreza? Não é o caso.
“Continuamos todos
a sofrer os efeitos da
criminalidade organizada,
em todos os níveis –
tráfico de drogas,
prostituição,
roubo de cargas,
assalto de todos os tipos,
tanto nas ruas,
como no campo
e estradas.”
Em São Paulo, o crime organizado está praticando
uma demonstração de força à sociedade
brasileira ou o Estado está perdendo a guerra
contra o crime organizado?
Eu acho que são as duas coisas. O crime organizado está
dando uma demonstração de força, tanto que está assustando
a todos nós. Agora, de outra parte, alguma coisa não está
corretamente diagnosticada na ação do Estado, na ação
repressiva. Eu não saberia dizer o que falta, onde o Estado
peca, mas todos nós podemos constatar que ele não ganha
a guerra. Não sei se está perdendo, mas ganhando não está.
Continuamos todos a sofrer os efeitos da criminalidade
organizada, em todos os níveis - tráfico de drogas, prostituição,
roubo de cargas, assalto de todos os tipos, tanto nas ruas, como
no campo e estradas. Há alguma coisa que não permite que o
Estado ganhe a guerra. A ação do Estado, até certo ponto, é
eficaz, põe o criminoso na cadeia, aqui ou ali consegue debelar
a ação criminosa, mas não ganha a guerra. Enquanto a ação
policial é mais intensa, o tráfico se recolhe; mas reaparece
quando a polícia se cansa ou se retira. A guerra não é ganha.
Há alguma coisa desesperançando as pessoas de verem um dia
a lei se sobrepor à criminalidade.
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
“Acho gravíssimo!
É exatamente a falta
desse debate que está
transformando
a eleição em um plebiscito.
O tema do plebiscito seria:
“Lula fica ou Lula vai?”.
A eleição pressupõe
o debate em torno
de temas de interesse público.
Esse debate não existe.”
A gente vê que o crime organizado lança os
seus tentáculos em todos os poderes - Executivo,
Legislativo e Judiciário. Isso não significa uma
crise muito séria no país?
Não. Eu acho que é a crise de sempre, universal.
Os maniqueístas sempre vêem o mal de um só lado,
nunca vêem do outro lado. O maniqueísmo não é bom
conselheiro. O mal está em toda parte. Existe um velho
livro da literatura moralista francesa que dizia: “O mal está
entre nós”. Essa que é, ao meu ver, a realidade da condição
humana. Nós próprios somos bons e maus ao mesmo
tempo. Somos feitos de luz e sombra. A vida nos oferece
isso - grandes momentos de alegria e momentos de visível
tristeza. Então, não se deve imaginar que o mal, um dia,
estará todo de um lado e o bem do lado oposto. O mal e o
bem estão misturados.
Enquanto isso, o presidente Lula não está agindo
nem reagindo efetivamente contra o crime
organizado. O senhor concorda com isso?
Concordo. Há uma certa leniência com o crime
organizado e talvez não haja leniência nenhuma com
um ladrão pé-de-chinelo. Com a organização, existe
certo respeito, uma preocupação de não “aprontar”. Eu
acho que houve, nesses últimos 80 anos, um fato que
comprometeu muito a fidelidade de certos grupos políticos
aos valores morais. Criou-se o conceito do crime político,
em que certas ações são condenáveis, mas passam a ser
toleráveis, na medida em que visam a um fim político.
Por exemplo, o assassinato dos adversários ou o roubo
de dinheiro público ou privado para fins políticos, para
sustentar campanhas, fomentar determinadas atividades,
subversivas ou não. Eu acho , como já disse, que houve
uma certa leniência com o crime, a principio alegando
20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
razões políticas, e agora, descaradamente, por uma má
consciência, porque fica mal cobrar dos outros aquilo que
não se fez anteriormente. Quem organizou o “mensalão”
e coisas parecidas não tem muita moral para botar o dedo
no nariz dos criminosos comuns.
O país está assistindo a uma campanha
eleitoral onde não se vê, através de discursos
ou entrevistas, propostas dos candidatos para
resolver essa crise política e ética na democracia
que o país atravessa. Essa falta de debate e
propostas também não é grave?
Acho gravíssimo! É exatamente a falta desse debate que
está transformando a eleição em um plebiscito. O tema do
plebiscito seria: “Lula fica ou Lula vai?”. A eleição pressupõe
o debate em torno de temas de interesse público. Esse debate
não existe.
O que é preciso mudar?
O que eu tenho observado, e cada vez me
convenço mais, é que existe um escudo invisível
separando o governo e a administração. Veja bem, o
governo é constituído pelos políticos eleitos, não é?
Já a administração, com os cargos preenchidos por
funcionários de carreiras estáveis. Mas a eficiência
da extensão dos benefícios dos cidadãos só é possível
através de uma administração eficiente, e não através
de projetos ou planos de governo. É lamentável, mas
no debate atual não vejo nenhum candidato sugerindo,
por exemplo, uma mudança no sistema federativo. Ou,
uma muito importante, que seria redefinir o papel do
Supremo Tribunal Federal que atualmente funciona,
convenhamos, como juiz da lei, com poder realmente
supremo, que pode, inclusive, chegar ao ponto de
considerar inconstitucionais as leis que o parlamento,
no exercício das suas atribuições pode criar e até
alterar. Até o momento, o que se pode registrar na
atual campanha é a escassez de idéias.
O que o senhor considera emergencial para um
processo de mudança?
Ah, sem dúvida, a democracia participativa. Por quê?
Porque é através da participação pelo voto que fica possível
exercitar com mais eficiência a democracia. Ou seja, não é
com referendos ou até plebiscitos, mas acionando ONGs e
lobbies, por exemplo.
Seria tão eficiente assim?
Sem dúvida, porque todos eles existem na sociedade, mas
com um detalhe – não em seu nome. O propósito maior não
é a condução, mas acionar com eficiência a administração.
Seria o caso do MST (Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra), por exemplo?
Não, lógico! Não estou me referindo ao banditismo
político...
Por que a democracia brasileira chegou a esse
ponto, praticamente ao fundo do poço?
Chegou a esse ponto por causa da degradação do sistema
de representação política – partidos, eleições, sistemas
eleitorais, uma infiltração da idéia de que a liberdade é um
produto dispensável. Mas, a liberdade é a própria essência da
democracia. As revoluções inglesa, norte-americana, francesa
foram revoluções de liberdade. A liberdade que marcou o
mundo moderno, tanto com relação às idéias e pensamentos
como em relação à organização política. Insistem muito em
fraternidade e igualdade, claro que elas foram conquistas
importantes das que não se pode abrir mão, mas não precisa
se jogar fora a liberdade para se ter as outras duas. A liberdade
faz falta, porque se ela, por acaso, não existir, em uma
sociedade toda regulada pelo Estado, a representação política
é descaracterizada, juntamente com todo o regime políticodemocrático. Isso tudo está na raiz daquilo que se chama hoje
“crise da democracia”. Na realidade, essa é uma crise falsa,
porque ela deriva, exclusivamente, de uma prédisposição de
recusar à democracia a sua principal virtude: ser um regime
de homens livres.
Fala-se na necessidade de uma nova Constituição,
para corrigir as falhas da atual. Essa seria a
solução ideal?
Não. O que eu tenho visto são propostas que só interessam
aos políticos, só são discutidos temas que interessam a quem
tem mandato. Não se fala nunca na reforma do sistema
eleitoral, fala-se, quando muito, no voto fechado. Isso só
interessa, evidentemente, aos partidos. Os grandes problemas,
tanto das organizações políticas como das sociais do país, não
são considerados dignos de uma reforma constitucional. Acho
melhor ir devagar com esse setor.
Qual é o conceito que o senhor tem da atual
Constituição?
Sem dúvida nenhuma, seu papel é regulamentar.
Mas tenho a acrescentar que também vejo um caráter
antidemocrático nela...
Como assim?
Pela sua pretensão em engessar a sociedade, interferindo
em quase tudo. Até em pensão alimentícia! Ora, isso deve ser
tratado pelo direito comum. Além do mais, parece não ter
limites, principalmente com relação ao poder do Estado em
criar impostos. O meu ponto de vista é que uma Constituição
“O que eu tenho visto
são propostas que só
interessam aos políticos,
só são discutidos temas
que interessam a quem
tem mandato. Não se fala
nunca na reforma do
sistema eleitoral, fala-se,
quando muito, no voto
fechado. Isso só interessa,
evidentemente, aos partidos.”
deve preservar princípios, que são universais, com vida longa,
vale ressaltar.
Por que o senhor acha que a democracia é
evangélica?
Porque ela tem um fundamento moral, a sua essência é de
ordem moral. O que constitui a finalidade do Estado é o serviço
à sociedade, é a famosa frase aristotélica de que “a política é a
ciência do bem comum”. Este é o fundamento moral do regime
democrático. É sob este conceito de moralidade pública que se
estrutura todo o regime democrático. Quando se perde isto, não
há democracia. Quando digo que ela é de natureza evangélica,
estou simplesmente repetindo uma frase do Henri Bergson, o
grande filósofo francês da Idade Moderna. Ele, sendo judeu,
dizia que a essência da democracia é evangélica, porque foi o
Evangelho que nos ensinou a compaixão, a chamada amizade
física, como fundamento da ordem democrática. Não é o
ódio nem a guerra mas a amizade que faz a democracia. É a
dedicação de todos ao bem comum de todos que a caracteriza,
exatamente o que o Evangelho ensinou ao mundo.
O Brasil de hoje é pior ou melhor que o de antes?
Em muitos aspectos é melhor, até moralmente. Com
relação ao serviço público, basta dizer que o concurso público
é a única porta de entrada para os cargos públicos. Isso
realmente fez uma diferença enorme. O Estado hoje é melhor
controlado do que foi no passado. A educação também se
generalizou. A aspiração de todos é a universalização do ensino
e isso vem sendo conseguido. Alfabetizou-se praticamente
toda a população, pelo menos a parcela infantil e juvenil.
O nível de vida, sobretudo das famílias de menor renda, é
melhor hoje do que foi no passado. Então, enxergo belos
sinais de progresso material. Agora, nosso o grande problema
nosso continua sendo o progresso moral. É aí que está nossa
crise.
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21
O DESRESPEITO À ORDEM
CONSTITUCIONAL
Todos os gravíssimos fatos revelados, diariamente,
pelas CPIs e meios de comunicação, não levaram ninguém
à prisão temporária, tendo o correto Procurador-Geral da
República, depois de um árduo trabalho de investigação,
conseguido denunciar apenas 95 das centenas de pessoas
envolvidas, em face dos inúmeros obstáculos colocados
pelos detentores do poder às suas investigações.
Todo o dinheiro que circulou entre parlamentares,
dirigentes de partidos políticos da situação, empresários e
beneficiários de polpudos contratos do governo, que não era
do conhecimento nem da Receita Federal, nem da Justiça
Eleitoral, está sendo esquecido. Tal misteriosa fortuna
surrupiada de conhecimento das autoridades é, muitas
vezes, insuficientemente citada e tida como decorrente
de “pequenos desvios”, “incorreções da contabilidade”,
“pecadilhos a serem perdoados”, nada obstante tudo isto
revelar que os tributos arrecadados de todos os brasileiros
foram malbaratados. Ninguém foi preso, todos continuam
pleiteando cargos, benesses e novos mandatos. A Câmara
Ives Gandra da Silva Martins
Advogado
Membro do Conselho Editorial
O comportamento frouxo do governo é o maior estímulo
ao fortalecimento destes bandos de marginais, pois estão
colocados à margem do direito. De rigor, eles são a lei. No
melhor estilo de Luiz XIV, que disse: “L’Etat c’est moi”, dizem
“La loi c’est moi”.
O crime organizado é outra “elite” postada acima
dos seguidores da Constituição. Praticam as mesmas
violências que os outros grupos, apenas sem pudor e
sem preocupação de justificar suas ações por defesa de
pretensos e inexistentes ideais.
Hoje, são fortes e mais fortes do que as polícias
governamentais, ao ponto de darem-se ao luxo de
colocar em pânico uma cidade como São Paulo só para
demonstrar sua força, a pretexto de exigir dos governos
mais conforto e lazer nos estabelecimentos prisionais,
à custa de assassinatos. É uma elite de estupradores da
Constituição, não diferente da segunda ou da primeira
categoria de pessoas, que se consideram acima de qualquer
suspeita ou do ordenamento legal.
Foto: Arquivo
“O comportamento frouxo do governo
é o maior estímulo ao fortalecimento destes bandos
de marginais, pois estão colocados à margem
do Direito. De rigor, eles são a lei.
No melhor estilo de Luiz XIV, que disse:
‘L’Etat c’est moi’, dizem ‘La loi c’est moi’.”
O
suceder de escândalos e violações à lei suprema e a inércia das autoridades em combatê-los levam-me à conclusão
de que há elites brasileiras que estão acima dos homens mortais e a quem tudo é permitido e nada exigido.
A primeira destas “elites”, que tem tratamento preferencial, no atual modelo jurídico brasileiro, em relação aos
cidadãos, obrigados a obedecer a lei, é indiscutivelmente constituída pela classe dos políticos e dos amigos do rei.
22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
dos Deputados inocentou-os, ao desmoralizar, por inteiro,
sua Comissão de Ética. Estão, pois, acima das leis. São
intocáveis. Os órgãos de repressão não devem atingi-los,
pois são parte deles.
Os sem-terra constituem a outra “elite”. Invadem terras
públicas e privadas, prédios do governo e da sociedade,
destroem pesquisas científicas, violentam duramente
a Constituição e o Código Civil e, embora suas ações
sejam enquadráveis no Código Penal, não sofrem nada.
Ao contrário, seus líderes – que não passaram pelo teste
das urnas – declaram que, enquanto o governo não se
subordinar a eles, continuarão destruindo as instituições.
E o governo, que não controla seus próprios partidários
ou aliados, muitos profundamente envolvidos em
corrupção, peculato, sonegação, concussão etc., acaricia tais
movimentos, adulando-os, incentivando-os, considerando
que eles podem fazer o que quiserem, pois estão acima da
lei.
Neste quadro, é de se compreender o desalento da
população. Sem governo e pertencendo à classe daqueles
que, se não obedecerem à lei, serão punidos, os cidadãos
vêem desconsolados, as instituições se desfigurarem, não
sabendo a quem recorrer, pois o próprio Poder Judiciário há
muito deixou de ofertar a segurança jurídica necessária, nele
incluída a própria Suprema Corte.
As decisões dos tribunais superiores ou dos magistrados,
em que suas turmas acertam tanto quanto erram, não
permitem hoje dizer que o STF e STJ tenham uma
doutrina consolidada sobre nenhum dos grandes temas
do direito. A todo momento modificam suas decisões,
nada obstante o elevado nível de capacitação técnica e
de idoneidade moral que ostentam os magistrados que
os integram.
Resta a nós, pobres mortais, cidadãos do povo,
constatar que, infelizmente, no Brasil as instituições
pouco valem.
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23
PENHORA DE RENDA OU
FATURAMENTO DA EMPRESA
UMA REFLEXÃO QUE SE IMPÕE
J.E. Carreira Alvim
Desembargador Federal - TRF 2ª Região­
Foto: TRF
faço à forma como os devedores utilizam a justiça para
descumprir suas obrigações, e obter desta mesma justiça um
passaporte para trafegar pela inadimplência; especialmente o
poder público, sem dúvida um dos maiores inadimplentes
deste País.
Introdução
A execução ou o cumprimento da sentença representa
a última fase na dolorosa caminhada pelo processo de
conhecimento, se não houver recurso, porque, havendo-o,
prossegue a via sacra, que transforma o credor num mártir e
a justiça no seu algoz.
As reformas recentemente introduzidas no Código de
Processo Civil, aliás, na Consolidação das Leis Processuais
Civis – porque é nisso que ele vem sendo transformado –
buscam suavizar os rigores da antiga execução e prestigiar o
direito reconhecido ao credor, mas, nesse afã, não se pode
desconhecer limites impostos pela Constituição, pertinentes
aos direitos do devedor.
Em sede doutrinária, tenho sido severo nas críticas que
24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
Cumprimento da sentença e execução da
sentença
Com a reforma introduzida pela Lei nº 11.232/05, a
sentença deixou de ser o ato pelo qual o juiz põe termo ao
processo, decidindo ou não o mérito da causa (revogado
§ 1º do art. 162), para se transformar no ato do juiz que
implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269. Na
verdade, a sentença nem sempre era o que a antiga definição
dizia ser, pois o processo podia ser também extinto por ato
das partes (art. 269, III e V), sendo a sentença, nesses casos,
de natureza simplesmente homologatória.
Nos termos do novo art. 475-I, a sentença não é
mais exeqüível através de um processo de execução, mas
simplesmente cumprida numa fase subseqüente denominada
de cumprimento. Dispõe este artigo que “O cumprimento da
sentença far-se-á conforme os arts. 461 e 461-A desta Lei ou,
tratando-se de obrigação por quantia certa, por execução,
nos termos dos demais artigos deste Capítulo.” Em que
pese a intenção, relativamente ao conteúdo, que é das mais
louváveis para quem quer justiça rápida, a redação imposta
ao dispositivo não poderia ser pior. Primeiro, porque, ao
eliminar o processo de execução, sincretizado no processo de
conhecimento, como simples fase deste, não era necessário
referir-se mais à “execução” em relação à obrigação por
quantia certa, que é, tanto quanto as demais obrigações (fazer,
não fazer e entregar coisa) objeto de cumprimento. Em outras
palavras, o que restou dito no art. 475 é que o cumprimento de
obrigação, por quantia certa, far-se-á, por execução, nos termos
dos demais artigos deste Capítulo. Teria o preceito sido mais
coerente com a nova sistemática inaugurada pela reforma, se se
limitasse a dizer que o cumprimento de obrigação por quantia
certa far-se-á nos termos dos arts. 475-J a 475-R. Códigos
não são instrumentos destinados apenas aos operadores do
direito (advogados, juízes, Ministério Público), mas a todos os
jurisdicionados, que devem entender a sua linguagem; e, na
linguagem vulgar, cumprir é executar e executar é cumprir. Em
segundo lugar, o preceito alude a “esta Lei”, alusão totalmente
desnecessária porque, no seu prólogo, a Lei nº 11.232/05 já
diz que a alteração é à Lei nº 5.869/73, e aos demais artigos
“deste Capítulo”, que também não poderia ser outro, porque
é este que trata do cumprimento da sentença.
A alteração relativamente às obrigações de fazer, não
fazer e entregar coisa se fazia necessária para corrigir uma
incoerência injustificável do ordenamento processual, que
permitia a efetivação imediata de provimento antecipatório
(art. 461 e 461-A), que é fundado na verossimilhança, e não
permitia a imediata execução da sentença, fundada na certeza
(art. 485 c/c art. 520).
Execução por quantia certa e garantia da
execução
A execução de sentença para pagamento de quantia
certa, quando não cumprida voluntariamente a obrigação,
pressupõe a expropriação de bens do devedor, sua alienação
para conversão em dinheiro e sua entrega ao credor num
quantum necessário para a liquidação da dívida (arts. 646 e
647, I).
O direito brasileiro, na esteira do direito alemão,
condiciona a defesa na execução à segurança do juízo, o que
pode ser feito através da penhora (art. 737, I), ou mediante
o depósito do valor correspondente ao crédito objeto da
execução.
Com a reforma operada pela Lei nº 11.232/05, foram
suprimidos os embargos do devedor, nos moldes antigos, e
instituída em seu lugar a impugnação da sentença, se ocorrer
uma das hipóteses previstas nos incisos I a VI do art. 475-L.
No que contém de novo, instituiu a nova lei uma multa, no
percentual de 10% (dez por cento), para o caso de não efetuar
o devedor o pagamento do débito no prazo de quinze dias (art.
475-J). Não efetuado o pagamento, no prazo legal, determina
o juiz, a requerimento do credor, a expedição do mandado de
penhora e avaliação (art. 475-J) –, tenha ou não o exeqüente
indicado bens a serem penhorados (art. 475-J, § 3º) –, e, uma
vez cumprido esse mandado, intima-se o devedor na pessoa
do seu advogado, podendo oferecer impugnação no prazo de
quinze dias (art. 475-L).
Embora o art. 475-L passe a impressão de que a penhora
“somente poderá versar sobre” as hipóteses previstas nos seus
incisos I a VI, pode, na verdade, compreender outras nele
não referidas, como, por exemplo, a nulidade da penhora ou
da avaliação, se vier a ser constringido bem absolutamente
impenhorável, ou for o bem avaliado por preço vil.
Execução e pré-executividade
A pré-executividade é um incidente processual, de origem
pretoriana, cujos alicerces doutrinários remontam a Pontes de
Miranda, e cujo objetivo é possibilitar a discussão de questões
ligadas à execução da sentença, sem a precedente segurança
do juízo, representada pela penhora ou pelo depósito do valor
correspondente. As questões suscitadas nesse incidente são de
dupla natureza: a) questões processuais, de ordem pública, que
podem ser conhecidas de ofício pelo juiz, como a falta de
condições da ação, de pressupostos processuais, a ilegitimidade
de partes, etc; e b) questões substanciais, correspondentes a um
direito do executado, oponível ao credor, como o pagamento,
a novação, a compensação, a transação e a prescrição. No
primeiro caso, tem-se uma objeção processual e, no segundo,
uma exceção substancial.
O sistema anterior era mais propício ao florescimento da
pré-executividade do que o atual, a uma porque havia uma
ação e um processo de execução, e, a outra, porque o devedor
era citado para, no prazo de 24 horas pagar ou nomear bens
à penhora (art. 652).
No sistema atual, o devedor é intimado da sentença,
através do seu advogado, e, caso não a cumpra no prazo de
quinze dias – que é o mesmo prazo para apelar, caso não
concorde com a sentença – o juiz, a requerimento do credor,
e com o acréscimo da multa de 10% (dez por cento), fará
expedir mandado de penhora e avaliação (art. 475-J); e,
uma vez lavrado o auto de penhora e de avaliação, será dele
intimado o executado, também na pessoa do seu advogado,
para oferecer, caso queira, impugnação no prazo de quinze
dias (art. 475-J, § 1º). Portanto, ao ser intimado do auto
de penhora e avaliação, já terá havido a constrição dos bens,
restando ao executado a impugnação da execução.
A objeção de pré-executividade não tem, de regra,
cabimento, porque não existe mais ação e processo de
execução, não havendo lugar para argüir a falta de condições
da ação ou de pressupostos processuais.
Para quem admite que, nos casos de sentença penal
condenatória, arbitral e estrangeira, existe ação e processo, no
qual o devedor é citado para liquidação ou execução, haverá,
então, lugar para o incidente de pré-executividade (objeção e
exceção).
Ordem de nomeação de bens à penhora
O devedor responde, para o cumprimento de suas
obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros
–, salvo as restrições estabelecidas em lei (art. 591) –, mas,
mesmo com a constrição dos bens pela penhora, continuam
estes a pertencer ao devedor, até o momento da sua efetiva
expropriação, mediante alienação em praça ou leilão.
Alicerce de toda execução é o princípio da menor
onerosidade, prescrevendo o art. 620 do CPC que, quando
por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz
mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor
(AgRg no REsp. 547.215-RS). No entanto, não se deve
descurar que a execução por quantia certa, em princípio, se faz
no interesse do credor, pois é para a satisfação do seu direito
que se procede à expropriação de bens do devedor (art. 647).
Essas duas situações jurídicas, aparentemente
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25
contraditórias, devem ser conciliadas de forma que afetação
do patrimônio de um não vá além do necessário para a
satisfação do direito do outro.
Na antiga sistemática, ao devedor era assegurado o direito
de fazer a nomeação de bens (art. 655), quando citado para,
no prazo de 24h, pagar ou nomear bens à penhora. Com o
novo sistema, o devedor perdeu o direito (ou faculdade) de
nomear bens à penhora, facultando o novo § 3º do art. 475-J
que o exeqüente possa, em seu requerimento, indicar desde
logo os bens a serem penhorados. Se o credor não fizer uso
dessa faculdade, ela se transfere ao juiz, cumprindo a este,
a requerimento do credor, expedir mandado de penhora e
avaliação (art. 475-J).
É a seguinte a ordem de nomeação de bens à penhora
estabelecida pelo art. 655: I) dinheiro; II) pedras e metais
preciosos; III) títulos da dívida pública da União ou dos
Estados; IV) títulos de crédito, que tenham cotação em bolsa;
V) móveis, veículos; VI) semoventes; VII) imóveis; IX) navios
e aeronaves e X) direitos e ações.
Em doutrina, não há uniformidade sobre diversos aspectos
que envolvem esse dispositivo. De um lado, discute-se se
essa enumeração é taxativa ou meramente exemplificativa;
de outro, se o conceito de dinheiro compreende ou não o
faturamento; e, ainda, se atende ao interesse do credor ou
também ao interesse do devedor.
Quando se trata de execução em que estão em jogo
interesses que se excluem – do credor, em ver satisfeito o seu
crédito e do devedor em satisfazê-lo com o menor sacrifício
do seu patrimônio –, deve o juiz agir como bonus pater
família. Isso significa que ao juiz cabe conduzir a execução,
orientando-se pelo princípio da proporcionalidade, segundo
o qual não deve determinar nenhuma medida executória
que possa determinar de imediato constrangimento maior
ao devedor do que benefício imediato ao credor, como
a penhora de faturamento em lugar da penhora de outros
bens existentes. Sob essa ótica, deve ser analisado o comando
contido no art. 655 do CPC.
Penhora de faturamento na doutrina, com reflexo
nos tribunais
Embora em teoria, as diretrizes que orientam a execução
sejam determinadas em bases bastante razoáveis, na prática,
as medidas executórias, a cargo de juízos e tribunais, vêm
provocando situações de risco para a saúde financeira
das empresas, mormente as pequenas e médias empresas,
freqüentemente atoladas em dívidas tributárias.
Como a doutrina mais ortodoxa sustenta que a ordem de
bens a serem penhorados deve ser obrigatoriamente observada,
e, na relação do art. 655, o dinheiro aparece logo em primeiro
lugar, os juízos vêm determinando a penhora de renda ou
faturamento das empresas, mesmo das que prestam serviços
essenciais, sem nenhum proveito imediato para o credor, mas
com sensíveis prejuízos para o devedor, afrontando o princípio
da “proporcionalidade dos meios executórios”.
26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
Na verdade, “a penhora sobre faturamento da empresa
não é sinônimo de penhora sobre dinheiro, razão por que
o STJ tem entendido que referida constrição exige sejam
tomadas cautelas específicas discriminadas na lei” (AgRg no
AI 708.454-SP). Neste sentido, existe precedente também
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, assentando que “a
constrição da renda de uma empresa não pode ser equiparada
à penhora de dinheiro, de que trata o art. 655, I, do CPC. Na
primeira hipótese, existe ingerência na própria funcionalidade
da empresa, aproximando-se da figura prevista no art. 677
do CPC. Já na última situação, pressupõe-se a existência
de um capital disponível, em conta-corrente, poupança ou
investimento similar.” 1 Identificar a penhora de faturamento
com a penhora de dinheiro é o mesmo que confundir “bife à
milanesa com bife ali na mesa”.
Se a penhora de faturamento não se presta senão para
“garantir” o juízo (art. 737), não podendo ser utilizado para
fins de pagamento do débito, antes de finda a execução, a
única utilidade imediata dessa constrição é a de retirar da
empresa parte (ou até a totalidade) do seu capital de giro,
obrigando-a a buscar, no mercado financeiro, a reposição
a juros escorchantes, a repassá-los aos preços, perdendo
competitividade no mercado. Aliás, não é nada ético que a
receita ou faturamento da empresa seja depositado numa “conta
judicial”, corrigida pelos índices da caderneta de poupança,
utilizável pelo ente público mantenedor da Justiça (União ou
Estado), por tempo indeterminado –, porque ninguém neste
País, nem o próprio juiz, sabe quando a execução por quantia
certa chega a seu termo – dispondo a empresa de bens de outra
natureza (imóveis, veículos, máquinas e equipamentos) para
garantir a execução (ou cumprimento) da sentença. Diversa é
a hipótese em que o executado não disponha de outros bens,
senão o seu próprio faturamento para a satisfação do débito,
mas, mesmo nesse caso, deve a constrição do faturamento
obedecer a um critério de razoabilidade, para não prejudicar
o capital de giro da empresa, porque a penhora se destina, a
essa altura, à simples garantia do juízo e não ao pagamento
do débito.
Penhora de faturamento e atividades essenciais
Na execução por quantia certa, a penhora de faturamento
de empresas que se dedicam a atividades essenciais (ensino,
saúde, transporte coletivo, etc.), vem pondo em risco a sua
atividade econômica, embora elas atuem para suprir a inércia
e a omissão do poder público nessas áreas.
Nas instituições de ensino privadas, por exemplo, a
“penhora de faturamento” é ainda mais crítica – as públicas
não correm o mesmo risco –, justo porque elas servem de
anteparo à atividade pública no desenvolvimento da educação,
que o Estado, sozinho, não tem condições de suportar (art.
205, CF).
As instituições de ensino, na sua quase generalidade
– e nesse ponto as públicas não são exceção – vêm lutando
com enormes dificuldades para honrar seus compromissos
internos, com funcionários e corpo docente, com salários
atrasados há vários meses, e sem qualquer perspectiva de
saírem dessa situação em curto prazo, em vista do elevado
índice de inadimplência; que, aliás, a própria Justiça não
permite punir com a proibição de acesso às aulas.
Quase todas as instituições de ensino enfrentam, também,
problemas de natureza fiscal e tributária, respondendo a
inúmeras execuções na justiça, o que as impede de obter
recursos no mercado financeiro, para financiar as suas
atividades, ante a impossibilidade de exibir certidões negativas
de débito com o poder público.
As execuções fiscais contra as instituições de ensino são,
quase sempre, processadas e julgadas com total desprezo
ao disposto no art. 28 da Lei nº 6.830/80, que aconselha
a reunião de processos contra o mesmo devedor, por
conveniência da garantia da execução. O precitado art. 28
dispõe que o juiz, a requerimento das partes – que pode ser
exeqüente ou executado – poderá ordenar a reunião desses
processos, mas os juízos da execução, muitas vezes com o
respaldo dos tribunais, interpretam (equivocadamente) essa
providência como uma mera faculdade.
Para se ter uma idéia da extensão de várias execuções
perante diversos juízos, se cada juízo, em cinco execuções,
determina a penhora de 20% (vinte por cento) do faturamento
da instituição em cada processo, não tem o mesmo alcance
da penhora de 20% para todas as execuções unificadas num
mesmo juízo, como autoriza o art. 28 da Lei nº 6.830/80.
As dificuldades enfrentadas pelas instituições de ensino,
no mercado consumidor, não podem ser comparadas à de
qualquer outra atividade econômica, porque a sua clientela
são estudantes, que, com eventual encerramento de suas
atividades, por insuficiência financeira, acabará gerando
problemas sociais de dimensões incalculáveis.
Penhora de faturamento importa na penhora da
empresa ou estabelecimento
A empresa ou estabelecimento, qualquer que seja a
sua natureza, está sujeita à penhora, para garantia de suas
obrigações, estando a hipótese prevista no art. 677 do
CPC, o qual determina que, quando a penhora recair em
estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, o juiz
nomeará um depositário, determinando-lhe que apresente
em dez dias a forma de administração. Estabelece, por sua
feita, o art. 678, que a penhora de empresa, que funcione
mediante concessão ou autorização, far-se-á, conforme o valor
do crédito, sobre a renda, sobre determinados bens ou sobre
todo o patrimônio, nomeando o juiz como depositário, de
preferência, um dos seus diretores. Dispõe o parágrafo único
do art. 678 que, quando a penhora recair sobre a renda, ou
sobre determinados bens, o depositário apresentará a forma
de administração e o esquema de pagamento, observandose, quanto ao mais o disposto nos arts. 716 a 720; recaindo,
porém, sobre todo o patrimônio, prosseguirá a execução os
seus ulteriores termos, ouvindo-se, antes da arrematação ou
da adjudicação, o poder público que houver outorgado a
concessão.
Na prática, quando o juízo determina a penhora de
percentual do faturamento da empresa, limita-se a mandar,
simplesmente, que o recolhimento do percentual seja feito em
conta judicial, sem se dar conta que, sem o seu capital de giro,
para manter as suas atividades, a empresa ou estabelecimento
não tem a menor condição de prosseguir nas suas atividades.
Geralmente, ao determinar a penhora de renda ou
faturamento, o juiz nomeia o diretor financeiro da empresa
como depositário com a única incumbência de promover o
depósito judicial da quantia penhorada em conta judicial,
apresentando mensalmente a prestação de contas, indiferente
à nomeação de um administrador para gerir as atividades
empresariais (arts. 677, 678 e 719, CPC), administrador este
considerado indispensável por remansosa jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça (REsp. 829.138-RJ; AgRg no AI
708.454-SP; REsp. 692.972-SP), secundada pelo Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro (AI nº 6.221/2003).
A penhora de renda ou faturamento da empresa, sem
a observância das formalidades processuais, configura um
“confisco”, pois retira o capital de giro da empresa para
colocá-lo, até que se ultime a execução, numa conta judicial
com correção monetária abaixo das leis de mercado, a serviço
do ente que ministra a justiça.
Este o motivo pelo qual a penhora on-line não satisfaz às
exigências legais, nem constitucionais, pois penhora-se renda
ou faturamento (capital de giro) da empresa no suposto de
estar penhorando o simples “dinheiro”.
Recusa do encargo de depositário
A penhora de renda ou faturamento pode trazer
dificuldades também para os juízes, quando os agentes
da empresa (diretor financeiro, presidente, supervisor,
administrador, etc.) recusar o encargo de fazer a retenção e
promover o recolhimento da quantia penhorada, mês a mês,
na conta judicial, fazendo mensalmente a prestação de contas.
É que ninguém, nem mesmo o devedor, é obrigado a exercer
o encargo de depositário, pelo que, havendo recusa, cumpre
ao juiz nomear alguém que o aceite. Pode até o exeqüente, se
tiver motivo lícito, impedir que o encargo de depositário seja
entregue ao devedor, mas não lhe é permitido constrangê-lo
à assunção.2 Na penhora sobre o faturamento da empresa, a
recusa do contribuinte em funcionar como depositário, não
tendo assinado o auto de penhora, não justifica a imposição
do juízo, restando defeituosa a constrição.3
Em sede jurisprudencial, foram tantas as decisões
unânimes no mesmo sentido, que o STJ editou a súmula nº
319, estabelecendo que “O encargo de depositário de bens
penhorados pode ser expressamente recusado”. A recusa para
atuar como depositário particular (ou privado) não precisa
ser fundamentada, constituindo um mero direito potestativo
do nomeado de “não aceitar”, mesmo por capricho, porque,
antes de assinado o auto de penhora, não assume o nomeado
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27
“A penhora de renda ou
faturamento da empresa (...)
configura um ‘confisco’,
pois retira o capital de giro
da empresa para colocá-lo,
até que se ultime a execução,
numa conta judicial com
correção monetária abaixo
das leis de mercado, a
serviço do ente que
ministra a justiça.”
de bens, direitos ou valores, livres e desembaraçados, que
possam garantir a execução, ou seja os indicados de difícil
alienação; IV) a observância às disposições contidas nos arts.
677 e 678 (necessidade de ser nomeado administrador, com a
devida apresentação da forma de administração e esquema de
pagamento; V) a fixação de percentual que não invibialize a
atividade econômica da empresa.
Nesse precedente, assentou o STJ que a instituição
executada possuía outros bens passíveis de penhora, que não
foram aceitos pela exeqüente (União) por falta de interesse
em adjudicá-los, o que não justifica a substituição dos bens
indicados à penhora pelo faturamento da empresa, tendo
em vista o disposto no art. 620 do CPC, o qual estatui que
a execução deve ser feita pelo modo menos gravoso para o
executado.
É a seguinte, na íntegra, a ementa do acórdão proferido
no Resp. 829.138-RJ:
nenhuma responsabilidade perante o juízo. A manifestação
pura e simples da recusa obriga o juiz a nomear outro até que
se firme em quem aceite o exercício do encargo.
Essa é mais uma razão para que, na eventual penhora de
renda ou faturamento da empresa, por falta de outros bens
penhoráveis, seja nomeado, não um simples depositário, com
a incumbência de fazer, mensalmente, os recolhimentos dos
valores penhorados, mas um verdadeiro administrador da
empresa, nos termos dos arts. 677, 678 e 719 do CPC.
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO
ESPECIAL. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO
OU FALTA DE MOTIVAÇÃO NO ACÓRDÃO A
QUO. PENHORA SOBRE O FATURAMENTO DA
EMPRESA. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE
OBSERVÂNCIA A PROCEDIMENTOS ESSENCIAIS À
CONSTRIÇÃO EXCEPCIONAL, INEXISTENTES, IN
CASU. PRECEDENTES.
Penhora de faturamento na jurisprudência dos
tribunais
O Superior Tribunal de Justiça, constitucionalmente
encarregado de manter a uniformidade da legislação
infraconstitucional, no País, tem sido bastante razoável no
julgamento de recursos especiais, envolvendo a penhora
de faturamento, ainda que em percentuais aparentemente
insignificantes (2% sobre o faturamento mensal).
Decidiu esse Tribunal, no Resp. 829.138,4 que a constrição
sobre faturamento, além de não proporcionar, objetivamente,
a especificação do produto da penhora, pode ensejar deletérias
conseqüências no âmbito financeiro da empresa, conduzindoa, compulsoriamente, ao estado de insolvência, em prejuízo
não só de seus sócios, como também, e precipuamente, dos
trabalhadores e de suas famílias, que dela dependem para
sobreviver.
Nesse precedente, registrou essa Corte que a sua
jurisprudência vem se firmando no sentido de restringir
a penhora sobre faturamento da empresa, podendo, no
entanto, esta ser efetivada, unicamente, quando observados,
impreterivelmente, os seguintes procedimentos essenciais, sob
pena de frustrar a pretensão constritiva: I) a verificação de que,
no caso concreto, a medida é inevitável, de caráter excepcional;
II) a inexistência de outros bens a serem penhorados ou, de
alguma forma, frustrada a tentativa de haver o valor devido na
execução; III) o esgotamento de todos os esforços na localização
28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
1. Recurso especial interposto contra acórdão que
determinou a penhora de 2% do faturamento mensal da
recorrente.
2. Decisão a quo clara e nítida, sem omissões, obscuridades,
contradições ou ausência de motivação. O não-acatamento
das teses do recurso não implica cerceamento de defesa. Ao
juiz cabe apreciar a questão de acordo com o que entender
atinente à lide. Não está obrigado a julgá-la conforme o
pleiteado pelas partes, mas sim com seu livre convencimento
(CPC, art. 131), usando fatos, provas, jurisprudência, aspectos
atinentes ao tema e legislação que entender aplicáveis ao caso.
Não obstante a oposição de embargos declaratórios, não
são eles mero expediente para forçar o ingresso na instância
especial, se não há vício para suprir. Não há ofensa ao art.
535, II, do CPC quando a matéria é devidamente abordada
no aresto a quo.
3. A constrição sobre o faturamento, além de não
proporcionar, objetivamente, a especificação do produto da
penhora, pode ensejar deletérias conseqüências no âmbito
financeiro da empresa, conduzindo-a, compulsoriamente,
ao estado de insolvência, em prejuízo não só de seus sócios,
como também, e precipuamente, dos trabalhadores e de suas
famílias, que dela dependem para sobreviver.
4. Na verdade, a jurisprudência mais atualizada desta
Casa vem se firmando no sentido de restringir a penhora
sobre o faturamento da empresa, podendo, no entanto,
esta ser efetivada, unicamente, quando observados,
impreterivelmente, os seguintes procedimentos essenciais,
sob pena de frustrar a pretensão constritiva:
• a verificação de que, no caso concreto, a medida é
inevitável, de caráter excepcional;
• a inexistência de outros bens a serem penhorados ou, de
alguma forma, frustrada a tentativa de haver o valor devido
na execução;
• o esgotamento de todos os esforços na localização
de bens, direitos ou valores, livres e desembaraçados, que
possam garantir a execução, ou sejam os indicados de difícil
alienação;
• a observância às disposições contidas nos arts. 677 e 678
do CPC (necessidade de ser nomeado administrador, com a
devida apresentação da forma de administração e esquema de
pagamento);
• fixação de percentual que não inviabilize a atividade
econômica da empresa.
5. Não há notícia nos autos de que se tenha procedido
nas formas elencadas. Na hipótese, restou comprovado que
a executada possui outros bens passíveis de penhora, que
não foram aceitos pela exeqüente por falta de interesse em
adjudicá-los, o que não justifica a substituição dos bens
indicados à penhora pelo faturamento da empresa, tendo
em vista o disposto no art. 620 do CPC, o qual estatui que
a execução deve ser feita pelo modo menos gravoso para o
executado.
6. Recurso provido.”
No âmbito dos tribunais estaduais, a sua jurisprudência
não destoa da orientação firmada pelo STJ, tendo o
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decidido no
mesmo sentido quando a controvérsia envolve penhora de
faturamento:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO.
EMPRESA DE ÔNIBUS. PENHORA DE RECEITA
DERIVADA
DE
VALES-TRANSPORTES.
IMPOSSIBILIDADE. ART. 620 DO CPC. RECURSO
PROVIDO.
A finalidade básica da penhora é atender, do modo mais
eficiente e rápido possível, o processo de execução que,
embora seja instaurado para abrigar interesse do credor, deve
ser realizado de forma menos gravosa para o devedor, nos
termos do art. 620 do CPC.
Embora a penhora possa recair sobre as rendas de
determinado negócio, tal alternativa deve ser reservada a
hipóteses em que restou exaurida a possibilidade da execução
proceder-se de maneira menos gravosa ao devedor.
In specie, afigurando-se o bem oferecido pela empresa
devedora passível de constrição judicial, e, sendo inconteste no
ordenamento jurídico pátrio que a gradação legal estabelecida
para efetivação da penhora não tem caráter rígido, podendo,
pois, ser modificada por força das circunstâncias e das
peculiaridades de cada caso concreto, presente, ademais, a
regra do art. 620 do Digesto Processual, impõe-se aceitar o
“Embora a penhora possa
recair sobre as rendas
de determinado negócio,
tal alternativa deve ser
reservada a hipóteses em
que restou exaurida a
possibilidade da execução
proceder-se de maneira
menos gravosa
ao devedor.”
requerimento do agravante de que seja impedido o bloqueio
de sua receita junto à Fetranspor, tendo em vista que a
medida requerida consubstancia procedimento que atende
ao princípio da menor onerosidade, já que a mencionada
renda constitui o capital de giro da empresa, indispensável
ao custeio da sua atividade. (A. I. 6.221/2003, rel. Des.
Wellington Jones Paiva, TJRJ, 12ª Câmara Cível, DOERJ,
Seção I, Parte III de 17/10/2006, p. 61).
Em obediência à hierarquia judiciária e por uma questão
de observância à lógica do sistema jurídico não tem sentido
que, em face da jurisprudência já consolidada no âmbito do
Superior Tribunal de Justiça, sobre a penhora de renda ou
faturamento, continuem os juízes a prestigiar essa modalidade
de garantia, que, imediatamente, tem a única virtude de retirar
da empresa a disponibilidade de parte do seu capital de giro –,
quando a empresa tenha outros bens para garantir a execução –
colocando-o até que se ultime a execução, numa conta judicial,
repita-se, a serviço do ente que ministra justiça.
Conclusão
Estas considerações põem à mostra as desastrosas
conseqüências que pode provocar uma decisão judicial,
quando o juiz, insensível à situação de empresas que prestam
relevantes serviços essenciais à comunidade (ensino, saúde,
transporte coletivo etc.), suprindo a eterna omissão do poder
público, determina a penhora do seu faturamento, mediante
simples depósito em conta judicial, em vez de cumprir as
regras legais que disciplinam a penhora nesses casos.
NOTAS
A. I. 6.221/2003, rel. Des. Wellington Jones Paiva, TJRJ, 12ª Câmara Cível,
DOERJ, Seção I, Parte III, de 17/10/2003, p. 61
2
AgRg no AG 199.378-SP, rel. Ministro Nilson Naves, STJ, 3ª Turma, unân.,
DJ, Seção 1 de 4/10/1999, p. 56.
3
HC 20.789-SP, rel. Min. Francisco Falcão, STJ, 1ª Turma, unân., DJ, Seção 1
de 17/5/2004, p. 107.
4
Resp. nº 829.138-RJ, rel. Ministro José Delgado, STJ, 1ª Turma, unânime, DJ,
Seção 1 de 8/6/2006, p. 153.
1
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29
Fotos: STJ
RECURSO ESPECIAL
Nº 460.271 - SP (2002/0107397-1)
RELATORA : MINISTRA ELIANA CALMON
RECORRENTE : COMPANHIA PAULISTA DE FORÇA E LUZ - CPFL
RECORRIDO : MUNICÍPIO DE SANTA LÚCIA
30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
VOTO
O tema encontra divergências nesta Corte, embora
hoje, majoritariamente, colham-se depoimentos em favor
da legalidade do corte de fornecimento, em razão do
inadimplemento.
Pela divergência e incompreensão do problema,
especialmente pelas novidades do Direito Administrativo,
convém se faça uma digressão sobre os diferentes ângulos de
visão que vêm servindo de apoio para o entendimento daqueles
que consideram não ser permitida a interrupção do serviço,
quando se tratar de serviços públicos essenciais, como por
exemplo, fornecimento de água, energia elétrica, telefonia,
transporte, etc.
Segundo a CF/88, cabe ao Poder Público a prestação de
serviços públicos, entendendo-se como tais, os prestados pela
administração ou por seus delegados, sob normas e controles
estatais, para satisfazerem necessidades essenciais ou secundárias
da coletividade, ou simples conveniências do Estado.
Além dos serviços públicos da competência exclusiva de
cada ente estatal da administração direta, União (art. 21/CF/
88), Municípios (art. 39, inciso V, CF/88), Estados (art. 25, §
1º, CF/88), há uma competência comum para a titularidade de
tais serviços, destacando-se aqueles próprios e gerais, prestados
pelo Poder Público, sem possibilidade de identificação dos
destinatários, chamados de serviços uti universi. Esses serviços
são financiados pelos impostos, como são os serviços de
segurança pública, os de saúde e outros.
Diferentemente, há os serviços públicos impróprios e
individuais, cujos usuários são determinados ou determináveis,
os quais permitem a aferição do quantum utilizado por cada
consumidor, o que ocorre com os serviços de telefone, água e
energia elétrica. Tais serviços, em contraposição aos uti universi,
são chamados de uti singuli.
Para a consecução dos serviços públicos diretos ou indiretos,
criaram-se os entes da chamada administração indireta, cujo
modelo veio com o DL 200/67, criando-se, ao lado da União,
Estados, Municípios e Distrito Federal, as autarquias, empresas
públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas.
O esgotamento do modelo interventor do Estado ocorreu na
década de 90, demonstrando o Poder Público sua incapacidade
para financiar os serviços de utilidade pública, o que o levou a
firmar parcerias com a iniciativa privada, por via de delegação
de serviços públicos ao particular, como previsto no art. 175 da
CF/88, não sendo demais transcrever o texto:
Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente
ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de
licitação, a prestação de serviços públicos.
O parágrafo único do artigo em destaque diz que a lei
disporá sobre o regime jurídico da delegação dos direitos dos
usuários e da política tarifária.
Em obediência à norma constitucional, veio a Lei 8.987/
95, prequestionada neste recurso, a regular a concessão
e a permissão dos serviços públicos. Essa lei foi alterada
posteriormente, em alguns artigos, pela Lei 9.074/95, que, por
seu turno, regulou a concessão dos serviços de energia elétrica.
Assim, os serviços uti singuli podem ser prestados pelo próprio
Estado, ou por delegação, tendo-se como traço de identificação
a remuneração.
Os serviços uti universi, também chamados de próprios,
são remunerados por espécie tributária específica, a taxa,
cujo pagamento é obrigatório, porque decorre da lei,
independentemente da vontade do contribuinte. A espécie tem
por escopo remunerar um serviço público específico e divisível,
posto à disposição do contribuinte.
Esse serviço caracteriza-se pela obrigatoriedade, pois o
contribuinte não tem opção, porque, mesmo que dele não
se utilize, é obrigado a remunerá-lo, e pela continuidade,
mesmo ocorrendo a inadimplência. Trava-se, então, entre o
contribuinte e o Poder Público, uma relação administrativotributária, solucionada pelas regras do Direito Administrativo.
Com esses serviços não se confundem os uti singuli ou
impróprios, prestados pelo Estado via delegação, por parceria
com entes da administração descentralizada ou da iniciativa
privada.
“A tarifa é, portanto,
remuneração facultativa,
oriunda de relação
contratual na qual impera
a manifestação da vontade,
podendo o particular
interromper o contrato
quando assim desejar”.
Diferente daqueles, esses serviços são remunerados por
tarifas ou preços públicos, e as relações entre o Poder Público
e os usuários são de Direito Privado, aplicando-se o Código de
Defesa do Consumidor, ao identificarem-se os usuários como
consumidores, na dicção do art. 3º do CDC.
A tarifa é, portanto, remuneração facultativa, oriunda de
relação contratual na qual impera a manifestação da vontade,
podendo o particular interromper o contrato quando assim
desejar.
Assim, não se há confundir taxa com tarifa ou preço
público, como aliás advertido está na Súmula 545/STF. Se o
serviço público é remunerado por taxa, não podem as partes
cessar a prestação ou a contraprestação por conta própria,
característica só pertinente às relações contratuais, na esfera do
Direito Civil.
Verifica-se, portanto, que, a partir do sistema de
remuneração, é que se define a natureza jurídica da relação do
serviço público prestado.
Doutrinariamente, não há unidade. Uma corrente defende
a aplicação do CDC somente aos serviços remunerados por
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31
tarifa, estando dentre os adeptos dessa corrente, Cláudio Bonolo
e Paulo Valério Del Pai Moraes (“Questões Controvertidas
no Código de Defesa do Consumidor”, 4ª ed., Porto Alegre
– Livraria do Advogado).
Uma segunda corrente, menos ortodoxa, entende que
o CDC é aplicável, indistintamente, a todos os serviços,
remunerados por taxa ou tarifa. Dentre os adeptos estão
Cláudia Lima Marques e Adalberto Pasqualotto.
Filio-me à primeira corrente, para a qual só os serviços
remunerados por tarifa podem ser regidos pelo Código de
Defesa do Consumidor, em razão do direito de escolha do
usuário, um dos direitos básicos para o reconhecimento da
condição de consumidor (art. 6º do Código).
O artigo 22 do CDC faz menção expressa aos serviços
públicos essenciais, embora não os caracterize, defina ou sequer
indique as atividades assim consideradas. Por outro ângulo, a
CF/88 apenas sinaliza que a lei definirá os serviços ou atividades
essenciais (art. 9º, § 1º).
Somente na Lei 7.783/89, a Lei de Greve, é que se encontra
a definição das atividades essenciais, como aquelas que atendem
às necessidades inadiáveis da comunidade, trazendo, no art.
10, a relação dos serviços ou atividades essenciais e definindo,
no art. 11, as necessidades inadiáveis como aquelas que, não
atendidas, colocam em perigo iminente a sobrevivência, a
saúde ou a segurança da população.
Tem entendido a doutrina que a Lei de Greve supre o CDC
com a relação do seu art. 10, embora os “consumeiristas” não
o considerem como absoluto, porque, para eles, todo serviço
público é, em princípio, essencial. Lamentavelmente, o impasse
doutrinário não foi ainda solucionado pela jurisprudência,
extremamente vacilante nesse especial aspecto, inclusive nesta
Corte de Justiça.
As definições até aqui propostas, longe de mero exercício
doutrinário, são de importância fundamental para definir
não só a classificação de quais sejam os serviços essenciais, os
quais para mim estão na listagem do art. 10 da Lei de Greve,
como também para definir qual a natureza jurídica da relação,
entendendo-se que, se o serviço essencial é remunerado por
taxa, temos um serviço regido pelo Direito Público, Tributário
e Administrativo.
Se remunerado por tarifa, temos uma relação regida
pelo CDC. Mas não é só, porque é importante também o
estabelecimento das conseqüências da inadimplência.
No estudo das regras norteadoras do serviço público, temse como obrigatório o atendimento ao princípio da adequação
(art. 175, parágrafo único, inciso IV, CF/88). O mesmo
princípio está na Lei 8.987/95, que regulamentou as condições
para a prestação dos serviços públicos sob o regime da concessão
ou permissão, havendo o mencionado diploma definido, no
art. 6º, § 1º, o que seja serviço adequado:
Serviço adequado é o que satisfaz as condições de
regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade,
generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade nas
tarifas.
Conclui-se, pelo teor do dispositivo transcrito, que a
32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
continuidade consiste na indispensabilidade do serviço público
essencial, devendo ser prestado sem interrupções. O já citado
art. 22 do CDC é expresso ao indicar a continuidade como
característica do serviço, impondo a reparação de dano em caso
de descumprimento.
A leitura apressada e literal do dispositivo pode levar a
crer que em nenhuma hipótese é possível a interrupção do
serviço: entretanto, há na Lei 8.987/95 a expressa previsão de
interrupção, em determinados casos, como se depreende da
leitura do seu art. 6º, § 3º, inciso II:
Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua
interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso,
quando por inadimplemento do usuário, considerando o
interesse da coletividade.
A seu turno, a Lei 9.427/97, ao criar a ANEEL e disciplinar
o regime de concessão e permissão dos serviços de energia
elétrica, previu expressamente a possibilidade de corte, assim
como a Resolução 456, de 29/11/2000 (arts. 90 e 94).
A aplicação das normas indicadas, especialmente em
confronto com o art. 22 do CDC, vem causando profundos
embates doutrinários e jurisprudenciais, com divergências
entre autores e nos tribunais dos País.
Tenho posição já manifestada em alguns julgados, dentre os
quais o leading case da Segunda Turma, assim ementado:
ADMINISTRATIVO
SERVIÇO
DE FORNECIMENTO DE ÁGUA
PAGAMENTO
À
EMPRESA
CONCESSIONÁRIA
SOB
A
MODALIDADE DE TARIFA - CORTE POR
FALTA DE PAGAMENTO: LEGALIDADE.
1. A relação jurídica, na hipótese de serviço
público prestado por concessionária, tem
natureza de Direito Privado, pois o pagamento
é feito sob a modalidade de tarifa, que não se
classifica como taxa.
2. Nas condições indicadas, o pagamento
é contra prestação, e o serviço pode ser
interrompido em caso de inadimplemento.
3. Interpretação autêntica que se faz do
CDC, que admite a exceção do contrato não
cumprido.
4. A política social referente ao fornecimento
dos serviços essenciais faz-se por intermédio da
política tarifária, contemplando eqüitativa e
isonomicamente os menos favorecidos.
5. Recurso especial improvido. (REsp
337.965/MG, rel. Min. Eliana Calmon,
Segunda Turma, por maioria, julgado em 2/9/
2003, DJ de )
Na oportunidade em que proferi o voto condutor, deixei
claro que, na interpretação do art. 22 do CDC, Lei 8.078/
90, não se pode ter uma visão individual, considerando-se o
consumidor que, por algum infortúnio está inadimplente, pois
o que importa é o interesse da coletividade, que
não pode ser onerada pela inadimplência.
Os serviços essenciais, na atualidade,
são prestados por empresas privadas que
recompõem os altos investimentos com o
valor recebido dos usuários, através dos preços
públicos ou tarifas, sendo certa a existência de
um contrato estabelecido entre concessionária
e usuário, não sendo possível a gratuidade de
tais serviços.
Assim como não pode a concessionária
deixar de fornecer o serviço, também não pode
o usuário negar-se a pagar o que consumiu,
sob pena de se admitir o enriquecimento sem
causa, com a quebra do princípio da igualdade
de tratamento das partes.
A paralisação do serviço impõe-se quando
houver inadimplência, repudiando-se apenas a
interrupção abrupta, sem o aviso, como meio
de pressão para o pagamento das contas em
atraso. Assim, é permitido o corte do serviço,
mas com o precedente aviso de advertência.
À prestadora do serviço exige-se
fornecimento de serviço continuado e
de boa qualidade, respondendo ela pelos
defeitos, acidentes ou paralisações, pois é
objetiva a sua responsabilidade civil, como
claro está no parágrafo único do art. 22 do
CDC. Como então aceitar-se a paralisação
no cumprimento da obrigação por parte
dos consumidores? Tal aceitação levaria à
idéia de se ter como gratuito o serviço, o
que não pode ser suportado por quem fez
enormes investimentos e conta com uma
receita compatível com o oferecimento dos
serviços.
Essa é a interpretação que dou ao art. 22,
e não consigo visualizar a chancela legislativa
para a tolerância da inadimplência, com a
manutenção do serviço.
Por outro ângulo, diz o artigo 42:
Artigo 42. Na cobrança de débitos, o consumidor
inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido
a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único - O consumidor cobrado em quantia
indevida tem direito à repetição do indébito, por valor
igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de
correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano
justificável.
Procurei a interpretação autêntica desse dispositivo na
palavra do Dr. Antônio Hermann de Vasconcellos e Benjamim,
visto ter ele trabalhado na elaboração legislativa, buscando o
real alcance da norma:
O preceito não constava do texto original da Comissão
de Juristas. Foi novidade trazida pelo Substituto do
“Serviço adequado
é o que satisfaz as
condições de regularidade,
continuidade, eficiência,
segurança, atualidade,
generalidade, cortesia
na sua prestação e
modicidade nas tarifas.”
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33
distintas, conforme a atividade ou o nível sócio-econômico do
consumidor, estando fora de questão admitir-se a prestação
gratuita dos serviços.
Modernamente, não há mais espaço para que desenvolva
o Estado políticas demagógicas, de cunho assistencialista. O
papel do Estado é o de criar condições para que seus cidadãos
assumam a responsabilidade pelos seus atos.
A propósito, adverte Celso Ribeiro Bastos para a importância
do regime tarifário:
“Embora seja permitida
a suspensão do serviço
público objeto das
reclamações de consumo,
ela não se constituiu
em direito absoluto”.
Ministério Público - Secretaria de Defesa do Consumidor.
Na defesa de sua adoção, assim escrevi na justificativa
juntada ao Substituto: “A tutela do consumidor ocorre
antes, durante e após a formação da relação de consumo.
São do conhecimento de todos os abusos que são praticados
na cobrança de dívidas de consumo. Os artifícios são os
mais distintos e elaborados, não sendo raros, contudo, os
casos de ameaças, telefonemas anônimos, cartas fantasiosas
e até a utilização de nomes de outras pessoas. No Brasil,
infelizmente, não há qualquer proteção contra tais
condutas. O consumidor - especialmente o de baixa renda
- é exposto ao ridículo, principalmente em seu ambiente de
trabalho, tendo, ainda, seu descanso no lar perturbado por
telefonemas, muitos deles em cadeia e até em altas horas da
madrugada. (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor,
comentado pelos autores do anteprojeto, 7ª edição, pág.
334)
Aí está, portanto, o entendimento da norma transcrita,
o que, em nenhum passo, impede a cobrança corriqueira e
legítima, só reprimindo os abusos.
Segundo os comentários dos autores do anteprojeto, o art.
42 tem de ser lido em conjunto com o artigo 71, dispositivo
assim redigido:
34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
Artigo 71 - Utilizar, na cobrança de dívidas,
de ameaça, coação, constrangimento físico ou
moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas,
ou de qualquer outro procedimento que exponha
o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou
interfira com seu trabalho, descanso ou lazer.
Pena - Detenção de três meses a um ano e
multa.
Observe-se, portanto, que nenhum dos dois artigos autoriza
a continuidade do serviço de forma gratuita.
Admitir o inadimplemento por um período indeterminado
e sem a possibilidade de suspensão do serviço é consentir com
o enriquecimento sem causa de uma das partes, fomentando
a inadimplência generalizada, o que compromete o equilíbrio
financeiro da relação e a própria continuidade do serviço, com
reflexos inclusive no princípio da modicidade. Sim, porque
o custo do serviço será imensurável a partir do percentual
de inadimplência, e os usuários que pagam em dia serão
penalizados com possíveis aumentos de tarifa.
A política tarifária do setor de fornecimento de energia
elétrica, fortemente regulado, é estabelecida pelo Poder Público.
As tarifas têm valores diferenciados, sendo classificadas por faixa,
Da mesma forma as tarifas não podem deixar
de ser justamente remuneratórias do capital
investido. Caso assim não fosse, estar-se-ia
quebrando a justa expectativa de todo aquele que
desempenha a atividade econômica no regime
capitalista, qual seja a de auferir lucros no fim do
exercício. É certo, por outro lado, que o Poder
Público não está obrigado a cobrir as despesas
decorrentes de uma administração perdulária ou
mesmo desarrazoadamente incompetente.
A justa remuneração deve ser apurada
considerando-se os custos do serviço, levados
a efeito de forma eficiente e econômica. O
concessionário não pode beneficiar-se de um
lucro certo, independente da forma por que
administrou a concessão.
Cumprida a sua parte, consistente na geração
do serviço de estrita economicidade, não pode
também o concessionário deixar de fazer jus a
tarifas que lhe assegurem uma lucratividade
normal, sob pena de a concessão converter-se
numa forma sub-reptícia de confisco.
(Curso de Direito Econômico, Celso Bastos,
Editora 2003, pág. 314)
Embora seja permitida a suspensão do serviço público
objeto das reclamações de consumo, ela não se constituiu em
direito absoluto.
Em primeiro lugar, o fornecedor tem o dever de colaborar
para que o consumidor possa adimplir o contrato. Ou seja,
deve criar condições para o regular pagamento. Aliás, o
pequeno inadimplemento do consumidor se confunde com
a mera impontualidade, sem gerar as conseqüências de um
corte de fornecimento. Daí a obrigatoriedade de o fornecedor
estabelecer ao usuário datas opcionais para o vencimento de
seus débitos (art. 7º-A, Lei 8.987/95); além de prazo para
proceder-se à interrupção quando houver inadimplência.
Em regra, concluo não existir respaldo para impedir a
paralisação do serviço, se há inadimplência e está o consumidor
avisado de que será interrompido o fornecimento.
Sob o aspecto da norma específica, estão as concessionárias
autorizadas a suspender os serviços, quando não pagas as tarifas
(art. 6º, § 3º da Lei 8.987/95); sob o aspecto ontológico, não
se conhece contrato de prestação de serviço, firmado com
empresa pública, cujo não pagamento seja irrelevante para o
contratado; sob o ângulo da lógica capitalista, é impossível a
manutenção de serviço gratuito por parte de grandes empresas
que fazem altos investimentos.
Ocorre que, na hipótese dos autos, o MUNICÍPIO DE
SANTA LÚCIA – SP impetrou o presente mandado de
segurança objetivando a restauração do fornecimento de energia
elétrica para os próprios municipais (Ginásio de Esportes,
Piscina Municipal e respectivo vestiário, Biblioteca Municipal,
Almoxarifado, Paço Municipal, Câmara Municipal, Correio,
Velório, Oficinas e Depósito).
No julgamento do REsp 400.909/RS, cujo relator é o
Ministro Franciulli Netto, em que figurou como inadimplente
o Município, assim me posicionei:
1. Este recurso especial interposto pela
empresa Rio Grande Energia S.A, contra o
Município de Espumoso, Rio Grande do Sul,
tem como relator o Ministro Franciulli Netto e
trata de inadimplência das tarifas de consumo
de energia elétrica.
Concluiu o Tribunal a quo pela
impossibilidade de suspensão do fornecimento,
como sanção pelo inadimplemento.
2. O relator, em judicioso voto, concluiu,
em razão de expressa previsão normativa, pela
possibilidade de suspensão do fornecimento
de energia elétrica, forma de contraprestação
ajustada com a concessionária. Entretanto,
na hipótese dos autos, sendo devedora a
municipalidade, considerou o relator indevido o
corte do fornecimento, porque indiscriminado,
sem especificação das unidades consumidoras,
sendo presumível que nem todas as unidades do
Município têm igual consumo.
3. Entendo, como o relator, pela possibilidade
de corte no fornecimento de energia, em
razão do inadimplemento do contrato pela
municipalidade. Porém, no caso em questão,
não é possível que se faça o corte de toda a rede,
deixando sem energia, ruas, escolas, hospitais,
usinas, repartições públicas, etc. Afinal, como
bem observou o relator, nem todas as unidades
têm o mesmo consumo, nem igual prioridade
de funcionamento, existindo unidades que,
efetivamente, não podem deixar de funcionar.
Assim considerando, acompanho o voto do
relator.
É o voto.
Assim e em conclusão, dou provimento ao Recurso Especial
para reformar o acórdão e denegar a segurança.
É o voto.
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35
C
Luciano Volk
Advogado
Foto: Arquivo
HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL DE
SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA X
AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE.
QUAL PREVALECER?
omo é bem de ver, os conflitos de interesses
existentes no mundo contemporâneo estão a
ensejar relações jurídicas, tão complexas, quão
difíceis de solucionar, sendo certo que os reflexos
dos atos jurídicos nem sempre se adstringem aos limites
territoriais do Estado em que exsurgiram.
Bem por isso, impõe-se que cada Estado, à conta de sua
soberania, estabeleça os limites e o momento nos quais a
sentença estrangeira terá eficácia em seu território.
Sob este diapasão, segue-se que as dificuldades para a
produção extraterritorial dos efeitos das sentenças passam
por inequívoco processo de abrandamento na grande maioria
dos sistemas jurídicos atuais, de molde a alargar o manto de
cobertura de determinada decisão judicial ou arbitral.
No Brasil, para o ato formal de reconhecimento de sentença
estrangeira (cumpra-se, exequatur, ou homologação) deve
haver1 “o controle da observância de algumas formalidades,
correspondentes ao mínimo das garantias que se entende
compatível com a colaboração do Brasil, e a isso acrescenta
um sistema de limites, destinados a impedir que surtam
efeitos em nosso território sentenças estrangeiras contrárias
– segundo fórmula consagrada – “à soberania nacional, à
ordem pública e aos bons costumes”
Pois bem.
CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE
“Essa expressiva aproximação entre o processo arbitral e o estatal
é suficiente para abrigá-lo sob o manto do direito processual
constitucional, o que importa considerar seus institutos à luz dos
superiores princípios e garantias endereçadas pela Constituição da
República aos institutos processuais”. (Dinamarco, A Nova Era do Processo
Civil – Limites da Sentença Arbitral, p.33)
36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
No que toca ao cumprimento de decisão arbitral
estrangeira (rectius, laudo arbitral), alça-se necessária, ab
initio, a consideração de duas situações: há países em que se
exige, para que a decisão arbitral opere efeitos, seja a mesma
homologada judicialmente (v.g, Itália). Neste caso, reclamase a homologação da sentença judicial estrangeira, que, no do
país de origem, conferiu eficácia à decisão arbitral.
Outra hipótese é a de decisão arbitral oriunda de
país onde não se exige, para a produção de seus efeitos, a
homologação judicial da mesma (como se dá na Espanha), a
ensejar a homologação incontinenti do próprio laudo arbitral
no Brasil.
Assim postas as coisas, no que toca a evolução dos tratados
e convenções afetas à matéria, destaca-se a Convenção de
Nova Iorque, de 1958, cuja ratificação foi feita por mais de
oitenta países, tendo como conseqüência imediata tornar
desinfluente a Convenção de Genebra de 1927 - também
relativa ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais
estrangeiras.
No cenário nacional, passados mais de 40 anos, o Brasil
restou por formalizar a sua adesão incondicional à aludida
Convenção, com vistas a Reconhecer e Executar Laudos
Arbitrais Internacionais. 
Nesta toada, ao passar a integrar o grupo de países
signatários da denominada Convenção de Nova Iorque,
o Brasil avançou, a não mais poder, rumo à consolidação
do instituto da arbitragem. A prefalada adesão nacional
sobreveio por meio do decreto nº 4.311/02, vigorando, a
partir de 05.09.2002.
Mutatis mutandis, malgrado a Convenção do Panamá de
1975, dantes aderida pelo Brasil, versando sobre o mesmo
assunto, mas com escopo reduzido quanto aos países
participantes, e, outrossim, a Lei de Arbitragem regulando o
reconhecimento e execução de laudos arbitrais estrangeiros,
cuja linguagem é substancialmente a mesma da Convenção,
ansiava-se pela adesão do Brasil à Convenção de Nova Iorque
- manifesto título de maturidade outorgado aos países
signatários. 
A todas as luzes, não se enxergava os motivos da
relutância do Brasil em aderir à Convenção, o que somente se
materializou nos albores do terceiro milênio.
Dentre as inovações advindas com a Convenção de Nova
Iorque, merece relevo a possibilidade de anulação de sentença
arbitral estrangeira, no país de sua execução, quando a lei
deste tiver sido a aplicada ao caso.
De fato, o Artigo I determina que a Convenção de Nova
Iorque deve ser utilizada no reconhecimento ou execução de
laudos arbitrais proferidos no território de um Estado que
não o daquele Estado em que se busca o reconhecimento e
execução.
É o caso da arbitragem em que a parte brasileira e a parte
estrangeira decidiram que o local da arbitragem se situaria
fora do Brasil, podendo ocorrer no domicílio da parte
estrangeira ou em um local neutro. Em ambos os casos, está a
se configurar laudo arbitral estrangeiro para fins de execução
no Brasil.
Ademais, o mesmo artigo da Convenção de Nova Iorque
estabelece que ela se disciplinará também aos laudos arbitrais
não considerados nacionais no Estado em que se busque o
respectivo reconhecimento e execução dos mesmos.
Ora, parece que a preocupação em distinguir laudos
nacionais de laudos não estrangeiros, ainda que ambos sejam
proferidos no Brasil, tem efeitos mais práticos do que se
pudesse imaginar.
É que, sendo as partes na arbitragem oriundas de países
signatários da Convenção de Nova Iorque e apenas uma delas
brasileira, esta arbitragem, conquanto realizada no Brasil,
continuará sendo ainda reputada arbitragem internacional
no contexto da Convenção de Nova Iorque.
Por conseguinte, em tais ocasiões, não há falar que um
laudo feito no Brasil seja um laudo nacional, sendo, ao reverso,
um laudo não estrangeiro, a ganhar as vestes da arbitragem
internacional.
Daí decorre que a Convenção de Nova Iorque se aplica
aos laudos estrangeiros e aos não estrangeiros, mas certamente
não se aplicará aos laudos nacionais.
Noutro giro, a Convenção de Nova Iorque prevê
expressamente os casos em que um país poderá se recusar a
reconhecer e executar sentenças arbitrais estrangeiras. Esta
ressalva, já agasalhada por doutrinadores de escola, bem
assim pela construção pretoriana, está em perfeita sintonia
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37
“Na homologação de sentença estrangeira,
o paradigma utilizado, ainda que abstratamente
(em casos não previstos no ordenamento jurídico pátrio)
é a sentença que seria proferida
pela Justiça Brasileira.”
com a nossa Lei de Introdução ao Código Civil e com a Lei
de Arbitragem, ao estabelecerem a ineficácia no Brasil das
sentenças estrangeiras ofensivas à soberania nacional, a ordem
pública e os bons costumes.
Para tanto, o Artigo V, “e”, da Convenção de Nova Iorque
contempla expressamente que a ação de nulidade da sentença
arbitral pode ser promovida não só no país em que proferida,
mas, também, no país conforme a lei do qual regulou a
arbitragem.
Conclusivamente, a promulgação do decreto nº 4.311/02,
que aprovou o texto da Convenção sobre o Reconhecimento
e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, oportuniza,
por força de seu Artigo V, “e”, a propositura de ação de
decretação de nulidade de sentença arbitral estrangeira
regulada pela lei brasileira.
Em sendo assim, as sentenças arbitrais, regradas pela lei
brasileira, podem ser objeto de ação de nulidade, a determinar,
como competente para o respectivo conhecimento, a Justiça
Estadual do domicílio do Requerente.
Da mesma forma, o disparo acionário também pode visar a
declaração de nulidade da própria convenção de arbitragem.
Ipso facto, a possibilidade, dada pela Convenção de Nova
Iorque, de contestar o laudo arbitral estrangeiro, traduzido na
propositura da competente Ação Anulatória, tem o condão
de obstaculizar a homologação do mesmo pela Justiça
Brasileira.
Como curial, a Ação Anulatória é manifesta questão
prejudicial, suficiente, de per si, a sobrestar a homologação
do laudo ou sentença estrangeira, sob pena de, assim não
sobrestando, subverter totalmente a ordem jurídica.
Até porque homologar é2 “tornar o ato, que se examina,
semelhante, adequado, ao ato que devia ser”. Na homologação
de sentença estrangeira, o paradigma utilizado, ainda que
abstratamente (em casos não previstos no ordenamento
jurídico pátrio) é a sentença que seria proferida pela Justiça
Brasileira.
Se é verdade que o laudo arbitral foi proferido, não é
menos verdade que sobre o mesmo existe ação ordinária com
vistas à sua anulação. Por que, destarte, não se aguardar pelo
deslinde da mencionada Ação Ordinária, até com o fim de se
evitar decisões contraditórias?
Nesta hipótese, por prudência, e em respeito aos dogmas
de Direito Civil e Processual, é aconselhável que o Magistrado
38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
suspenda, por conseguinte, a homologação, em razão da
prejudicialidade que poderá abatê-la.
Na ponderação de valores, a prestigiar as decisões
prolatadas internamente, em detrimento de sentenças ou
laudos alienígenas, remansoso é o entendimento do Egégio
STF:
PEDIDO DE HOMOLOGAÇÃO DE DECISÕES
PROFERIDAS PELA JUSTIÇA NORUEGUESA QUE
CONCEDERAM A GUARDA DA FILHA MENOR DAS
PARTES AO REQUERENTE. EXISTÊNCIA DE DECISÃO
PROLATADA
POR
AUTORIDADE
JUDICIÁRIA
BRASILEIRA, COM O MESMO TEOR, A FAVOR DA
REQUERIDA. IMPOSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO,
SOB PENA DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA SOBERANIA
NACIONAL. ART. 216 DO RISTF. REQUISITOS FORMAIS
DA HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA.
ARTS. 218 E 219 DO RISTF. 1. O deferimento do pedido
formulado representaria a prevalência de uma sentença alienígena
sobre a decisão de um Juiz brasileiro que, embora proferida em
sede liminar, seria modificada, importando numa clara ofensa
aos princípios da soberania nacional. Precedentes: SEC 6.971,
Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 14.02.2003 e SEC 7.218, Rel.
Min. Nelson Jobim, DJ 06.02.2004.
Por tudo isso é que deve o juiz da causa sobrepor a jurisdição
estatal à arbitral ao chamar a si o poder de neutralizar e
manter neutralizado os efeitos daquela até quando o processo
principal tiver fim(CPC, art. 807). Mesmo porque, a exegese dos julgados acima conduz à
preponderância da Soberania Nacional, que não pode ser
considerada como um elemento do Estado, mas, sim, como
sua raison d´être, a afastar qualquer submissão à outro Estado
para elaborar a sua constituição, criar órgãos, determinar
competências e definir os direitos e garantias de seus cidadãos,
devendo sempre a homologação de laudo arbitral aguardar
o desfecho de eventual Ação Ordinária que visa vergastá-lo,
através da declaração de sua nulidade.
NOTAS
José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol.
V: arts. 476 a 565 – Rio de Janeiro – Forense, p. 61/62.
2
Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil (de 1973) Rio
de Janeiro, com atualização de Sérgio Bermudes, VI, p. 259
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SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES
QUESTÕES RELATIVAS À PASSAGEM
DE CABOS EM EDIFICAÇÕES
Eurico Teles
Diretor de Serviços Jurídicos da Telemar
INTRODUÇÃO
Muito embora o homem venha realizando, desde
a metade do século passado, avanços significativos em
matéria de comunicação à distância, certo é que no campo
das telecomunicações ainda estamos longe de prescindir
da utilização de cabos e tubulações para o atendimento da
demanda existente.
Talvez um dia a tecnolgia wireless1 nos permita a plena
substituição dos meios atualmente utilizados, mas até lá
continuaremos dependentes do uso de cabos ópticos ou
metálicos. Assim sendo, o direito deve regular esta questão,
pois é patente que deve haver equilíbrio entre o direito
de propriedade ou dever de administração do patrimônio
público e o direito das concessionárias de passarem seus
cabos através de propriedades privadas ou públicas, a fim de
instalarem os equipamentos e infra-estrutura necessários à
prestação dos seus serviços.
Com relação à passagem de dutos e cabos através de bens
públicos2 as concessionárias de serviços de telecomunicações
devem interagir diretamente com outras concessionárias ou
com o Poder Público. Quando é necessário acessar o interior
de casas, condomínios edilícios ou shopping centers, a
concessionária interage com os proprietários ou a respectiva
administração, a fim de acessar a rede interna de dutos e
condutos de telecomunicações, cuja existência é condição
sine qua non para obtenção do “habite-se3”.
DO DIREITO DE PASSAGEM
TELECOMUNICAÇÕES
EM
PRIVADAS
DE CABOS DE
PROPRIEDADES
Foto: Arquivo
Os serviços de telecomunicações são considerados
essenciais por expressa disposição legal4 e a utilização de
dutos e condutos para a infra-estrutura de telecomunicações
já era prevista antes da privatização do “sistema telebrás5”
através da Norma 05/79 (que somente veio a ser revogada
pela Resolução Anatel nº 85/98, que por sua vez veio a ser
revogada pela Resolução Anatel 426/2005):
40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
“INGRESSO NOS LOCAIS DE PRESTAÇÃO DE
SERVIÇOS
31 - A Prestadora tem direito de ingresso, por seus
empregados e prepostos devidamente credenciados, nos locais de
prestação do serviço ou onde se encontrem instalações, aparelhos
e equipamentos do sistema para efetuar vistoria, manutenção,
reparo, desligamento ou retirada das instalações.
31.1 - A oposição infundada a esse ingresso por parte do
Assinante ou Locatário, ou de seus representantes, faculta à
Prestadora suspender a prestação do serviço por até 30 (trinta)
dias e cancelar a assinatura ou locação, findo esse prazo.
31.2 - Os empregados e prepostos da Prestadora autorizados
a ingressar nos locais de prestação do serviço são portadores de
cartão de identidade específico, conforme modelo reproduzido
na Lista Telefônica e com período de validade expresso.”
O direito de propriedade não é absoluto e sofre limitações
diante do bem-estar comum e o interesse público.
A atual ordem constitucional deixa claro que a
propriedade privada não é oponível ao Estado quando o
intereresse público o exigir. O fundamento genérico para
a possibilidade de intervenção do Estado na propriedade
privada é a sua função social (artº 5º, XXIII da Constituição
Federal).
Assim, o Estado pode impor limitações ao Direito de
Propriedade através de obrigações positivas, negativas ou
permissivas, sem impedir o uso normal do bem. São as
chamadas Limitações Administrativas.
Neste sentido é a clássica lição de Hely Lopes Meirelles:
“Limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita,
unilateral e de ordem pública, condicionadora do exercício de
direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar
social. As limitações administrativas são preceitos de ordem
pública. Derivam, comumente, do poder de política inerente e
indissociável da Administração, e se exteriorizam em imposições
unilaterais e imperativas, sob a tríplice modalidade positiva
(fazer), negativa (não fazer) ou permissiva (deixar fazer).
Em qualquer hipótese, porém, as limitações administrativas
hão de corresponder às justas exigências do interesse público que
as motiva sem produzir um total aniquilamento da propriedade
ou das atividades reguladas. Essas limitações não são absolutas,
nem arbitrárias. Encontram seus lindes nos direitos individuais
assegurados pela Constituição e devem expressar-se em forma
legal. Só são legítimas quando representam razoáveis medidas
de condicionamento do uso da propriedade, em benefício do
bem-estar social (Constituição da República, art. 160, III),
e não impedem a utilização da coisa segundo sua destinação
natural.
(...)
Além disso, para que sejam admissíveis as limitações
administrativas sem indenização, como é de sua índole, hão de
ser gerais, isto é, dirigidas a propriedades indeterminadas, mas
determináveis no momento de sua aplicação. Para situações
particulares que conflitem com o interesse público, a solução será
encontrada na servidão administrativa ou na desapropriação,
mediante justa indenização nunca na limitação administrativa,
cuja característica é a gravidade e a generalidade da medida
protetora dos interesses da comunidade”. (in Direito
Administrativo Brasileiro, Ed. RT, 13ª. ed, pág. 530/532).
Havendo necessidade de uma restrição de uso, de caráter
permanente, decorrente de uma obra ou serviço público
delegado, como é o caso do serviço de telecomunicações, a
hipótese é de servidão administrativa.
“Vê-se, pois, que a limitação administrativa difere tanto da
servidão administrativa como da desapropriação. A limitação
administrativa, por ser uma restrição geral e de interesse
coletivo, não obriga o Poder Público a qualquer indenização: a
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
servidão administrativa ou pública, como ônus especial a uma
ou algumas propriedades, exige indenização dos prejuízos que
a restrição acarretar aos particulares; por retirar do particular a
sua propriedade ou parte dela, impõe cabal indenização do que
foi expropriado e dos conseqüentes prejuízos” (op cit, pág. 537)
Nesta hipótese, diferentemente da Limitação Administrativa, haverá indenização sempre que houver prejuízo efetivo ou restrição ao uso do bem pelo particular.
Sobre o tema, lecionou o insigne mestre Caio Mário:
“Também o Direito moderno disciplina certas situações que
estão a meio-termo entre a servidão e as restrições ao direito
de propriedade, como os casos dos serviços administrativos
(assentamento de esgotos e canalização de água), serviços de
utilidade pública (eletroduto ou afixação de linhas elétricas
ou telefônicas), implantação de oleoduto (lembrada por
Washington de Barros Monteiro), para as quais reservamos a
designação específica de quase-servidões, pelo fato de lhes faltar
a característica peculiar da sujeição de um prédio a outro
prédio, mas de ter o próprio prédio o ônus de suportar (pati) o
exercício de uma faculdade que beneficia indiscriminadamente
os prédios dos usuários.”6
CONCLUSÃO
Como já visto, qualquer edificação deve apresentar dutos
e condutos próprios para a passagem de cabos telefônicos,
como uma das condições necessárias à concessão do habitese pela municipalidade.
A existência de tal estrutura, como condição prévia
à utilização do prédio, constitui-se em uma das espécies
de Limitações Administrativas, notadamente de caráter
permissivo.
Tal estrutura, nesta linha de raciocínio, ocupa uma área
de domínio não útil para o proprietário, localizada no solo,
subsolo, teto ou em espaço intraparedes, que só pode ser
utilizada para este fim.
A utilização de tais dutos, decorrente de Limitação
Administrativa não acarreta, de forma alguma, qualquer
contrapartida ou indenização ao proprietário, já que não
haverá qualquer restrição ao uso do bem. O proprietário
somente fará jus à indenização quando a hipótese for de
servidão administrativa, quando então deverá ser verificada
efetiva perda, destruição ou embaraço ao uso normal do
bem.
*Colaboraram neste artigo Luciano Caldas, Gerente Jurídico do Contencioso Cível Estratégico e Criminal da
Telemar e Cláudio Morisson, Advogado Especialista da Telemar
NOTAS
“Termo utilizado para caracterizar sistemas de comunicação que utilizam ondas de rádio como meio de transmissão em contraposição à utilização de cabos com fios,
coaxial ou óptico. Em português tem sido traduzido por sem fio” – definição encontrada no site http://www.teleco.com.br/glossario.asp?termo=wireless - acessado em
17/07/2006.
2
Código Civil – Art. 99. São bens públicos:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
3
No Município do Rio de Janeiro – artº 83, §1º, “e” do RLF – Regulamento de Licenciamento e Fiscalização – disponível no site http://www.rio.rj.gov.br :
“Art. 83. Depois de terminada a construção de um prédio, qualquer que seja o seu destino, para que possa ser o mesmo habitado, ocupado ou utilizado, deverá ser pedido o
“habite-se” pelo titular do processo, por meio de requerimento apresentado ao órgão estadual competente.
§ 1º O requerimento do “habite-se” deve ser acompanhado dos seguintes documentos:
(...)
e) certificado de instalação das tubulações telefônicas e de sua aprovação, e comprovante de pagamento do cabo interno ou documento de isenção; [Redação dada pelo Decreto
n.° 1.774, de 20/9/1978].”
4
“Constituição Federal:
Art. 9.º
§ 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.”
“Lei 7.783 de 28 de junho de 1989
Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
(...)
VII - telecomunicações;”
5 O Sistema TELEBRÁS era composto por uma empresa holding, a TELEBRÁS; por uma empresa carrier (operadora de telecomunicações) de longa distância de
âmbito nacional e internacional, que explorava também serviços de comunicações de dados e de telex; 27 empresas de âmbito estadual local – e por quatro empresas
independentes, sendo três estaduais e uma privada.
A privatização do Sistema Telebrás resultou da Emenda Constitucional n° 8, de 15 de agosto de 1995, que alterou o inciso XI e a alínea “a” do inciso XII do art. 21 da
Constituição Federal vigente, com a seguinte redação:
“Art. 21. Compete à União:
(...)
XI – Explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a
criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”;
6
Pereira, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2005, 19ª ed., pág. 278.
7 Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997.
1
42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
A FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
E SEUS RUMOS
Aristóteles
Aristóteles, a despeito de ser discípulo de Platão dele
divergia quando introduziu suas regras de argumentação
persuasiva, aproximando-se, assim, dos sofistas, os quais
não vislumbravam qualquer possibilidade de uma cognição
da verdade absoluta. Segundo ele, a retórica deveria ser
corretamente assimilada como fator democratizante e que se
definem por três características básicas:
1. Argumento da autoridade, onde se tem em conta o
poder do orador;
2. A empatia com o auditório, privilegiando-se as opiniões
do auditório;
3. Plausibilidade argumentativa, argumentos fortes,
alicerçados em técnica persuasiva.
Introduz o silogismo como comprovação da vinculação
de dois termos criando uma proposição. Cada complexo
de afirmações seria dividido em afirmações menores que
deveriam ser cientificamente testadas através do silogismo,
premissa maior, premissa menor e conclusão, onde a premissa
maior seria igual à menor e que deveria, também, ser igual à
conclusão.
Em seguida temos o método sistemático-cartesiano,
formulado por Kelsen que, buscando esquadrinhar uma
ciência pura do direito, isolou do seu conteúdo a questão da
justiça como valor.
A lógica formal da dogmática jurídica tradicional não
respondia eficazmente à razoabilidade exigida nas soluções
dos problemas jurídicos. Volta-se ao debate de valores,
corrigindo a visão do normativismo que oportunizava uma
enorme discricionariedade.
Regina Coeli Medeiros de Carvalho
“Os sofistas foram
os primeiros a tratar da
retórica, como técnica
de persuasão, através dos
lógoi ou argumentos
opinativos, baseados na
aparência do objeto sobre
o qual se discutia. Esta,
como arte discursiva,
objetivava formar grandes
oradores e políticos
ensinando-lhes técnicas
argumentativas.”
É
indubitável a transição por que passa o sistema
jurisdicional de nossos tempos, pois, de uma análise
lógico-formal que balizava as decisões judiciais,
vimos mergulhando numa perspectiva ético-social
de interpretação e aplicação normativa.
O presente trabalho apresenta a evolução das teorias mais
importantes e, ao final, relaciona as principais contribuições
dos modelos estudados.
De acordo com os historiadores, os debates filosóficos
deitam suas origens na antiga Grécia, tendo-se notícia de que
ali existiam dois grupos filosóficos antagônicos debatedores:
44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
Foto: Arquivo pessoal
Juíza Federal Titular da 18a Vara do Rio de Janeiro
sofistas e socráticos, os quais utilizavam-se de estratégias
persuasivas e poder de oratória, objetivando determinado
tema. No grupo socrático vamos encontrar Platão e
Aristóteles.
Os sofistas foram os primeiros a tratar da retórica, como
técnica de persuasão, através dos lógoi ou argumentos
opinativos, baseados na aparência do objeto sobre o qual
se discutia. Esta, como arte discursiva, objetivava formar
grandes oradores e políticos ensinando-lhes técnicas
argumentativas.
Kelsen
Kelsen procurou demonstrar que a sentença, enquanto
ato de vontade do julgador, não deixa de ser norma concreta,
pois decide o litígio entre as partes, desde que não perdendo
o foco da lei.
Segundo Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, in
“Interpretação como ato de conhecimento e interpretação
como ato de vontade: a tese kelseniana da interpretação
autêntica”, a síntese das teses de Kelsen estabelece
que a interpretação é necessária tanto para a aplicação
como para a observância das normas jurídicas; o ato
de aplicação é ato, ao mesmo tempo, determinado e
indeterminado; a indeterminação pode tanto referir-se ao
fato condicionante quanto à conseqüência condicionada
juridicamente, podendo ser gerada intencionalmente ou
não pela autoridade que estabeleceu a norma a ser aplicada;
a indeterminação pode ter origem na ambigüidade
das palavras constantes da norma, ou na suposição de
ambigüidade entre a palavra da norma e a vontade do
legislador ou, por fim, por duas normas pretenderem
valer simultaneamente. Nos casos de indeterminação há
várias possibilidades de aplicação: o ato jurídico pode
tender a um dos significados das palavras, desde que
corresponda à vontade do legislador ou à expressão por
“A lógica formal
da dogmática jurídica
tradicional não respondia
eficazmente À razoabilidade
exigida nas soluções
dos problemas jurídicos.
Volta-se ao debate de
valores, corrigindo a
visão do normativismo que
oportunizava uma enorme
discricionariedade.”
ele escolhida de forma a se encaixar em uma das normas
que se contradizem ou considerar que duas normas em
contradição se anulam mutuamente, sendo entretanto
definitivo que todo o ato se mantenha dentro da moldura
estabelecida. Nesse sentido, o resultado da interpretação
é a fixação da moldura como o direito a interpretar ou,
ao menos, o conhecimento das possibilidades existentes
dentro da moldura.
A partir de 1960, admitem-se também as possibilidades
fora de moldura; todos os métodos podem conduzir apenas
a interpretações possíveis, que só existem se as normas
deixam possibilidades em aberto, sendo esta questão de
política do direito. A interpretação autêntica é aquela
realizada pelos órgãos jurídicos autorizados, escolhendo
entre as possibilidades reveladas pela interpretação
cognoscitiva, produzindo-se norma de escalão inferior e
a não-autêntica realizada pelos indivíduos, sendo que esta
não vincula os órgãos aplicadores do direito e, pela ciência
do direito, que é pura cognição do direito.
Calamandrei e Saussure
Calamandrei, em sua obra, destaca a importância da
fundamentação, reconhecendo ser ela uma grande garantia
da justiça, pois mostra o itinerário lógico percorrido pelo
decididor, para chegar a sua conclusão, permitindo, inclusive
a detecção do momento em que o magistrado se desviou da
decisão correta.
Saussure introduz o estudo do signo lingüístico
demonstrando que a língua aparece como uma herança
da época precedente, sendo um sistema complexo que se
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45
“Saussure introduz
o estudo do signo
lingüístico demonstrando
que a língua aparece como
uma herança da época
precedente, sendo um
sistema complexo que
se desenvolve com
as contribuições
das falas diferenciadas,
aparecendo como fator
de conservação.”
desenvolve com as contribuições das falas diferenciadas,
aparecendo como fator de conservação.
Na antiga tradição, o termo “decisão” está ligado
aos processos deliberativos, aparecendo como um ato
final em que uma possibilidade é escolhida e as outras
abandonadas.
Modernamente, o conceito de decisão tem sido visto
como um processo mais complexo que, em sentido amplo,
pode ser chamado de aprendizado. Esse processo tem
motivação (conjunto de expectativas, exigindo resposta),
reação (resposta) e recompensa (relação definitiva).
Nesse quadro, a decisão é um procedimento cujo
momento culminante é a resposta, cuja justificação
constitui a questão de sua legitimidade e onde podemos
pretender satisfação imediata para o conflito, sendo
uma forma de subordinação que pode ser denominada
compromisso, conforme surjam as incompatibilidades:
equivalentemente convincentes, não equivalentemente
convincentes sem recompensa viável, não equivalentemente
convincente com previsão das recompensas.
Há possibilidade, também, de se obter satisfação
imediata no processo decisório, enfrentando, entretanto,
incompatibilidades de segundo grau relativas à própria
satisfação imediata: expectativas grupais e sociais, políticas e
econômicas, jurídicas stricto sensu. Trata-se de um processo
dentro de um processo.
Bobbio
Norberto Bobbio, in “Teoria do Ordenamento Jurídico”,
46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
estuda o conjunto de normas que o constituem, as inúmeras
relações e conseqüências da sistematização das leis, assumindo
que estas não existem isoladamente, mas em contexto que as
relacionam entre si.
Estabelece critérios para a definição de direito, como
sistema normativo: formal, material, do sujeito que põe
a norma e do sujeito ao qual é ela destinada, dividindo as
normas que compõem o sistema: permissivas, proibitivas e
obrigacionais.
Ressalta os principais problemas conexos com a existência
de um ordenamento: se as normas constituem uma unidade,
antinomias, completude (lacunas) e relação entre os diversos
ordenamentos, que podem ser simples e complexos, mas que
não toleram as antinomias. Conclui que só acontecem as
antinomias se as normas pertencerem ao mesmo ordenamento
e que tenham o mesmo âmbito de validade.
Apresenta critérios para a solução das antinomias:
cronológico, hierárquico e da especialidade, embora
entendendo a insuficiência desses critérios, relegando-se ao
intérprete um autêntico poder discricionário, que resolverá o
conflito segundo a oportunidade.
No que concerne à completude, salienta que não é uma
característica onde o intérprete tem resposta para tudo, pois
seria um sistema casuístico, mas que o juiz deve aplicar seu
conhecimento para suprir qualquer lacuna existente.
Bobbio, conclui em “A era dos direitos”, que os direitos
dos homens pertencem a uma categoria heterogênea, que,
no seu conjunto, passou a conter direitos incompatíveis
entre si, restringindo-se uns aos outros, pois uma sociedade
é a um tempo mais livre e menos justa e a outra mais justa
e menos livre.
Alexy e Ferraz Junior
Robert Alexy tem por objetivo o estabelecimento de um
princípio universalista, estabelecendo-se um código padrão
de entendimento. Refere-se, também, à teoria da inércia,
segundo a qual para se modificar um entendimento, devemse apresentar razões fortes para tal fim.
Estabelece as regras para o discurso prático geral e as
do discurso jurídico, que em suma, dispõem que toda
fundamentação de decisão jurídica deve apresentar ao
menos uma norma universal e ser seguida de outra. Sempre
que houver dúvida deverá ser estabelecida regra para decidir
a questão. Deve-se seguir em etapas, no maior número
possível, formulando expressões cuja aplicação não permita
discussão.
Por fim, estabelecendo regras para esclarecer o papel dos
cânones, Alexy distingue alguns pontos: amplo campo de
aplicabilidade; esquema de argumentação caracterizando a
estrutura do ordenamento jurídico, evitando a elaboração
de uma gramática jurídica; saturação de toda forma de
argumento que houver entre os cânones da interpretação;
formas cumprindo função semântica, genética, histórica,
comparativa, sistemática e teleológica; com o objetivo
de evitar resultados diferentes nas formas, ocorreram
tentativas de hierarquização, sem entretanto, se chegar
a uma proposta totalmente aceita; a teoria do discurso,
embora não apresente um catálogo hierárquico, oferece
contribuição para solucionar o problema, demonstrando
como usar as diferentes formas de argumento: 1- levar
em conta a dimensão pragmática da discussão e 2não utilizar critérios que levem a resultado único; os
argumentos vinculados ao teor literal da lei e a vontade
do legislador histórico devem prevalecer; com a utilização
de regras de ponderação para a determinação do peso
dos diversos argumentos; todos os argumentos devem ser
considerados.
Ferraz Junior, entretanto, faz considerações sobre uma
comunicação pragmática, onde se localiza o discurso jurídico,
tendo em conta aspectos diversos daqueles expostos por Robert
Alexy. Efetua uma revisão de modelos clássicos e propõe o
estudo do discurso de duas formas: dialógico (“discussão com”
e “discussão contra”) e monológico. Com o modelo proposto
parte para uma análise do discurso jurídico, dividindo-o em
discurso judicial (valor e ideologia) e o discurso da Ciência do
direito (discussão científica).
Segundo sua teoria dogmática da argumentação jurídica,
não se recebeu nenhuma forma de acabamento, ao contrário
dos sistemas analíticos e interpretativos, possui, tão somente,
análises parciais.
No Brasil, o Código de Processo Civil, em seu artigo 131,
alicerçado por previsão constitucional, dispõe que é dever
do juiz “indicar na sentença os motivos que lhe formaram o
convencimento”.
Conclusões
Ressaltamos a contribuição de cada pensador para
a teoria da argumentação, sendo importante, como diz
Saussure, situar a norma no seu contexto histórico de tal
forma a entender o sinal lingüístico da norma no seu próprio
contexto histórico.
Kelsen, embora enfatize a necessidade de uma visão
depurada do direito, sem elementos estranhos à sua natureza
essencialmente jurídica, silencia quanto ao fato de que a
aplicação do direito sem a abrangência do meio social e da
possibilidade de interpretação fundamentada, limita a esfera
de atuação do magistrado, propiciando, assim, a dominação
do poder estatal.
Bobbio, conforme ressalta Wilson Madeira, in “Teoria
da Motivação da Decisão Jurídica”, tem por preocupação
científica criar “um marco teórico que consiga abranger
toda uma verdadeira lingüística pragmática sincrônica”,
fornecendo um painel estruturalista capaz de “tomar o
ordenamento jurídico enquanto comunicação dogmática”.
Alexy substitui o comando legal pela necessidade prática
de se realizar alguma coisa, estabelecendo, sob o ponto de
vista formal uma correlação entre as premissas maiores e
subsidiárias, devendo estas últimas restar comprovadas. Nesse
sentido estaria estabelecendo um polissilogismo a partir
da verdade universal de, por exemplo, um princípio, cuja
conclusão seria aferida no caso concreto.
Enfim, o uso dos cânones por este estabelecidos, embora
não garanta a correção do resultado, também não legitima as
decisões, auxiliando o cumprimento da pretensa correção que
se afirma existir na argumentação jurídica.
Cotejando o modelo de Ferraz Junior e o de Robert Alexy,
verifica-se que o primeiro imprime uma visão mais clara dos
aspectos relativos a uma teoria da recepção comunicativa e o
segundo se encaixa mais para uma “teoria pura”, mas ambos
exigem um domínio pragmático de falas diferenciadas.
Ressalte-se que Ferraz Junior apresenta em sua teoria uma
maior concentração de aspectos práticos, premissas mediatas
e imediatas do discurso e Alexy ao situar o argumento jurídico
como um dos componentes do discurso racional prático,
demonstra que sua tese central pode auxiliar o procedimento,
quanto aos ideais de racionalidade, em razão de ser o direito
uma comunicação dotada de delimitação semântica.
Por fim, resta claro, que todos os autores aqui declinados,
contribuem, de uma maneira ou de outra, na tentativa de
que se possa obter um discurso jurídico racional, utilizandose essa ou aquela metodologia, mas sempre procurando
emprestar um cunho científico à argumentação jurídica
das decisões, especialmente as jurisdicionais, objetivando a
clareza e transparência do percurso do magistrado, na busca
da solução para os conflitos sociais.
Bibliografia
Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus.
Bobbio, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 7ª. ed. Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1996, 184p..
Capelletti, Mauro, Proceso, ideologías, sociedad. Buenos Aires: Jurídicas Europa América, 1974.
Chauí, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, v. 1. 2ª. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Ferraz Junior, Tercio Sampaio, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. – 4ª. ed. – São Paulo: Atlas, 2003.
Madeira Filho, Wilson. Teoria da motivação da decisão jurídica: aspectos introdutórios – lógica e lingüística aplicadas ao direito.
Montesquieu, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das Leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996 (Coleção “Os pensadores”).
Viehweg, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Junior. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979 (Coleção Pensamento Jurídico
Contemporâneo).
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47
Subversão inconsciente
Antonio Oliveira Santos
Foto: Arquivo
Presidente da Confederação Nacional do Comércio
“A idéia da
‘república sindicalista‘,
no Brasil, não morreu
e continua viva, com
os mesmos ranços
dos séculos XIX e XX, com
as mesmas ideologias
ultrapassadas, que
almejam acabar com o
capitalismo e a burguesia.”
Nota do Editor
Reiteradamente temos dado realce a firme atuação do líder da Confederação Nacional do Comércio, Dr. Antonio
Oliveira Santos, pela veemente defesa que faz, pública e criteriosamente, dos legítimos interesses do empresariado
nacional e conseqüentemente da Nação.
Oxalá o exemplo, como as denúncias do Presidente da CNC, fossem seguidas ativamente pelos demais dirigentes
do empresariado nacional, pois o que perpetra hoje no País, com as remetidas abusivas e criminosas feitas, - até
acobertadas displicentemente pelo governo federal, como se constituem as invasões continuadas e descaradamente
denunciadas antecipadamente pelos subversivos e anarquistas do MST, atenta contra a Nação.
Agora e novamente, o corajoso e consciente dirigente empresarial, Dr. Antonio Oliveira Santos, explicita o
movimento sub-reptício das ONGs ambientalistas, que defendem interesses alienígenas de multinacionais onde se
abrigam os subversivos do MST, como ficou comprovado na invasão e destruição do Centro de Pesquisas da ARACRUZ,
onde deliberadamente foram destruídos experimentos científicos de mais de 20 anos de estudo e trabalho.
A denúncia é extremamente grave e contraria fundamentalmente os interesses agro-industriais da Nação, como as
tentativas do MST, que já praticou e planeja às escancaras a destruição das florestas de eucalipto, cujo aproveitamento
industrial está possibilitando que o Brasil se torne, em futuro próximo, no maior produtor mundial de celulose e papéis
brancos.
48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
M
ilhares, talvez milhões de brasileiros,
estão sendo utilizados e cooptados, de
maneira sutil e subreptícia, para realizar
um trabalho impatriótico e subversivo,
a serviço dos interesses de importantes empresas
multinacionais. Houve uma época em que essa
atividade era exercida pelos internacionalistas da
União Soviética, marxistas-leninistas que pretendiam
implantar o regime comunista nos países em
desenvolvimento, como fizeram no Leste Europeu,
no Chile (de Allende), em Cuba e alguns países da
África (Angola e outros). Tratava-se de uma “guerra”
contra o sistema capitalista, com o sentido de
destruir a burguesia, ou seja, os empresários privados,
e substituí-los, progressiva e ardilosamente, pelas
associações proletárias, sob o comando do Estado.
Por trás dessa “guerra”, estava o objetivo de enfraquecer
os Estados Unidos e roubar-lhes a hegemonia e a posição
influente de centro do capitalismo mundial. Havia,
inclusive, a idéia de tomar o poder pelas armas, infiltrandose nas Forças Armadas, como foi o caso, no Brasil, da
Intentona Comunista de 1935, liderada por Luiz Carlos
Prestes, e do que se pensava fazer com a mobilização
dos sub-oficiais (cabos e sargentos), no Governo João
Goulart.
Com a morte do socialismo real e a queda do império
soviético, iniciada por Kruchev, que acabou com o
mito stalinista, e Gorbachev, que abriu as fronteiras
da Rússia com a glasnost e a perestroika, os socialistascomunistas elegeram um novo guru, Antonio Gramsci,
seguindo uma cartilha de cooptação da sociedade civil,
para ocupar o poder e assumir o governo, mediante a
organização de um partido político forte, cujos associados
iriam, gradualmente, ocupando os cargos e funções
mais importantes da administração pública, através da
nomeação dos “comissários”.
A idéia, hoje, seria a implantação de uma “república
sindicalista”, na qual os trabalhadores sindicalizados iriam
sendo infiltrados nas organizações privadas, compartindo
o comando econômico da produção com uma burguesia
enfraquecida, até sua completa destruição. Essa tática,
ensaiada ao tempo do fraco governo do Presidente
João Goulart, foi abortada pela Revolução ou ContraRevolução de 1964.
A idéia da “república sindicalista”, no Brasil, não
morreu e continua viva, com os mesmos ranços dos séculos
XIX e XX, com as mesmas ideologias ultrapassadas,
que almejam acabar com o capitalismo e a burguesia.
Subrepticiamente, estão surgindo novas organizações,
como o MST, por exemplo, que também se propõe a
destruir o “capitalismo selvagem e patriarcal”, a começar
pela área rural, onde o objetivo é acabar com as grandes
empresas agropecuárias, invadir e tomar os latifúndios,
inclusive e de preferência os produtivos, a fim de repartilos com os trabalhadores sem terra, promovendo uma
reforma agrária “revolucionária”, com a omissão ou
complacência do Governo.
Pouco a pouco, foram se juntando a esse movimento
outras organizações, sob a forma imprecisa e suspeita de
ONGs ambientalistas, onde se abrigam, disfarçadamente,
os ativistas de esquerda, que não querem se expor à
sociedade como remanescentes comunistas ou frustrados
socialistas. Operam à sombra de dezenas de outras
ONGs que defendem os interesses nacionais e trabalham,
ordenadamente, em projetos de alto sentido social.
Há muitas evidências de que essas ONGs subversivas
atuam sob o comando de grandes empresas multinacionais,
com o propósito não confessado de impedir o avanço
tecnológico e o crescimento das empresas nacionais
que com elas competem nos mercados internacionais.
O Brasil tem, em algumas áreas, uma extraordinária
capacidade competitiva, como são, por exemplo, os
setores de mineração, a produção de carnes e produtos
agrícolas, a produção de matérias primas essenciais como
a celulose de fibra curta, fabricada com base nas florestas
de eucalipto.
O Brasil caminha para dominar o mercado mundial
de celulose destinada à fabricação de papéis brancos,
para uso nas impressoras de informática, de livros e
cadernos escolares e comerciais, de papel higiênico e
muitos outros. A base para essa indústria nacional são
as florestas de eucalipto e, por isso mesmo, o eucalipto
tem que ser combatido, tem que ser transformado numa
planta maldita, que polui o meio ambiente, que seca
os lençóis freáticos, que produz desertos, que ocupa e
degrada as terras que deveriam servir à produção agrícola
dos minifúndios. Uma coleção de inverdades e de
argumentos falsos e ardilosos, que são maquiavelicamente
utilizados através de uma dialética bem elaborada, com a
qual conquistou a simpatia da sociedade e de milhares
de brasileiros inocentes úteis que se deixam enganar por
esses argumentos falaciosos.
Não são poucos os casos em que se evidencia a
participação ardilosa de organizações supostamente
defensoras do meio ambiente, quando, em verdade,
estão a serviço de interesses de grandes empresas
multinacionais.
Isso explica a campanha negativa que sofre a
Embrapa, tolhida na implantação de muitas de suas
pesquisas e inovações. Explica também as invasões das
florestas de eucalipto ou a destruição do Centro de
Pesquisas da Aracruz, no Rio Grande do Sul, onde,
deliberadamente, foram destruídos experimentos
científicos de mais de 20 anos e destruídas milhões
de mudas de eucalipto, cientificamente prontas para
serem plantadas. A organização que comandou essa
destruição é ligada a uma matriz estrangeira e associada
ao MST. Mas na esteira dessa ardilosa conspiração,
estão brasileiros inocentes, mobilizados por falsas
“campanhas patrióticas”.
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49
TSE: melhoria indiscutível
Antônio Ermírio de Moraes
Empresário
50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • SETEMBRO 2006
Foto: Arquivo pessoal
U
m interessante movimento no Rio de Janeiro
buscou obter dos candidatos um compromisso de
que o eleito colocará na internet todos os dados
das contas públicas. Uma bela decisão. Afinal, os
recursos públicos são do povo e este tem todo o direito de
acompanhar e avaliar sua aplicação.
É claro que essa não é uma fórmula mágica para se controlar
a corrupção e a ineficiência. Mas ajuda. Ao que me consta,
a experiência pioneira do estado de São Paulo ao promover
licitações eletrônicas mostrou bons resultados, ainda que o
sistema não seja completamente blindado contra fraudes.
Foi pena que a minirreforma eleitoral abandonou a idéia
de colocar os dados detalhados econômico-financeiros dos
candidatos na internet. Ainda assim, o Tribunal Superior
Eleitoral fez um belo trabalho ao listar os dados básicos dos
quase 20 mil candidatos às eleições de outubro.
Espero que, na próxima eleição, aquele tribunal venha a
dar mais um passo, colocando a público a situação detalhada
de cada pretendente a cargo público. Penso que essa é a
condição básica para quem deseja entrar na vida pública.
Tudo deve ser público.
Por mais que se queira, é impossível ter um controle
completo da corrupção. Mas, cada medida desse tipo melhora
os controles.
Muitos poderão argumentar que a grande maioria da
população brasileira não tem acesso à internet. É verdade,
pois além da limitação econômica, cerca de 73 milhões de
eleitores que votarão em outubro não possuem o curso básico
completo. Mas isso não é empecilho, pois a imprensa tem
acesso e domina muito bem as ferramentas da internet. Os
jornalistas saberão como pesquisar a vida dos candidatos
e o comportamento dos eleitos. E, com técnica adequada,
saberão divulgar os resultados no rádio e na televisão, veículos
que chegam às mentes de todos os brasileiros, inclusive dos
menos educados.
O Brasil não pode continuar do jeito que está. A
formação de uma grande avalanche de informações a respeito
da conduta dos candidatos e dos eleitos forçará nossos
parlamentares a aprovarem uma legislação mais adequada
para amadurecer a democracia. É intolerável essa história
de políticos inquestionavelmente envolvidos em escândalos
de corrupção poderem se candidatar livremente e enganar
no rádio e na televisão milhões e milhões de eleitores pouco
educados, desinformados e desprotegidos.
Sei bem que ninguém pode ser punido sem sentença
adequada. Mas o povo não pode ser ludibriado por meio de
chicanas judiciais. Isso precisa acabar.
2006 SETEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51