Figuras e Fulguras.

Transcrição

Figuras e Fulguras.
Figuras e Fulguras.
Hugo Arruda
4. O pensamento é a proposição com sentido.
Ludwig Wittgenstein
Todo escritor tem um quê de hipnotizador. Alguns são entendedores do
ofício; todos os outros são conhecedores do martírio. Escrever sem hipnotizar
sequer a si mesmo é como quando sente-se como urgente o salto em metáforas
vazias. Assim. Quando a tinta não pode muito, todo o resto que ela não pode,
pode ao menos revelar-se no seio do frustrado; por contraste com o que não foi
à folha. Fulguras, não figuras. Figuras, antes fossem. Lápis, rabisco, nada é peito. E peito jamais fora nada. Além de uma dessas palavras, que frustram quem
as escreve; enquanto o fazem perceber, pelo erro risível da incapacidade, a verdade que resta onde papel nenhum jamais poderá ir.
Causo algum, apesar de tanto, é páreo para os papéis. A voz que fala é
aquela que cala por si mesma. À resma, o olhar torna quando quer. Reinventa o
que puder, diverte-se em solidões diferentes; vê. O que ouve, quando há fala,
não pode escolher a atenção. Tenta-se dar-se todo, quando é o caso de ouvir. A
frase que segue, com a entonação que a acompanha, faz-se toda na expectativa
que funda. Arquear de sobrancelhas, é este o caso. Sentir volta-las ao lugar é ver
crescer, à espreita, a possibilidade de arqueá-las de novo. É quando a frase é
outra, quando o tom muda, que vem a gargalhada. Nada é mais vivo que o riso,
simplesmente pelo fato de que não se escolhe dia para rir.
Tem gente que tenta, vai à peça de comédia. Predispõe-se. As melhores
gargalhadas que dei foram as que me sabotaram, que vieram como que de trás
de uma árvore em um desses passeios tranquilos. É assim que dá-se a sentir o
que é, quando aquilo que não se pode tentar ser mostra-se enquanto alma. Forte.
Era assim que eu me sentia quando ouvia as estórias de Casimiro. Encontra-lo na rua, quando havia pressa, era uma tristeza só. Bom mesmo era tê-lo
naqueles dias nos quais o mundo só servia como referência externa para o papo.
Durante um de seus causos, o sentido de ter vivido qualquer coisa antes era
dado pela importância de ter ideias para associar. Para me fazer gargalhar logo
após quase chorar.
Há um tempo ele me falou que lhe convidaram para escrever um livro.
- O cara veio e falou: “É fácil, Casa, escreve essas estórias que você conta, do jeitinho que você fala. Vai ficar famoso, você tem o dom. você conhece o
timing!”
Perguntei o que ele respondeu. Primeiro, disse que perguntou o que era
timing; e que quando entendeu, começou, com uma certa desconfiança, a gostar
da ideia. Disse-me ele que o tal amigo continuou assim:
- “Veja só, Casa, você não gosta que as pessoas ouçam os seus causos?
Então, se escrevê-los, imagina só quantas pessoas não poderão ler!”
Foi então que começou a me contar seu martírio.
- Você também é desses que escreve, não é? – respondi que sou, talvez
com a mesma expressão que ele fizera quando começou a topar a proposta de
seu amigo – então, vamos tomar uma gelada, eu queria te pedir uns toques.
Fomos. Mal sabia o Casa que para mim esse tipo de convite era um imperativo da alma, como a gargalhada que salta de trás da árvore. Ele me disse
que quando chegou em casa, fez tudo como seu amigo lhe ensinou. Colocou
uma música, música boa, preparou um chá, tomou um banho quente, pôs um
papel na mesa, nem muita nem pouca luz, respirou, e escreveu um título.
Ele que tinha todas as sequências das estórias na cabeça preencheu as
folhas em um lance. Era o primeiro conto de Casimiro. Naquele dia, tive a honra de lê-lo.
Do título, Minha primeira cicatriz, seguia-se:
Fazia uma noite fria no interior de São Paulo. Estávamos Marcio, Arnaldo, Lúcia e eu, fazendo um bolo e tomando vinho. De repente, o Marcio falou que ouviu um
barulho do lado de fora da casa. Ninguém deu muita bola, mas ficamos mais atentos.
Continuamos proseando. Percebi que a Lúcia não parava de olhar para a janela.
Quando Arnaldo foi tirar o bolo do forno, bateu com força, sem querer, a tampa. O barulho foi forte, mas eu tenho certeza que ele abafou um outro, que vinha do lado de fora.
Parece que alguma coisa se assustou, sabe como é?
Fui lá ver. Tava frio, dava pra ouvir o vento passando nas árvores. Achei que os
barulhos fossem de alguma fruta caída de uma árvore. Resolvi voltar para dentro.
Quando fiz que ia virar, ouvi:
- Casa! ô Casa!.
- Quem é que tá aí? – respondi.
- Vem cá, atrás do portão!
Era meu primo, Pedro.
- O que você tá fazendo aí, rapaz?
- Tô fugindo, deu merda com a mulher do Antonio. Ele tá vindo me matar.
Corri o Pedrinho para dentro do quintal e comecei a ouvir os gritos do Antônio.
Veio ele com outros três. Dois armados de pau e ele com um 38. Tentei botar o Pedro pra
dentro mas não deu tempo, Antonio o viu.
- Manda o merda do seu primo pra fora. Se não eu vou matar é todo o mundo!
Tranquei a porta da frente, saí pela dos fundos, pulei pra casa do vizinho e saí
por trás deles. Peguei o pau do primeiro, dei com ele na cabeça dos dois, que caíram. Antonio virou com o revolver para mim e disparou. Ele tava atrás das árvores. Só consegui
ouvir o som da bala batendo nas folhas. Meio que me guiei pelo som e achei ela no ar. Foi
assim que eu soube como desviá-la com o bastão que eu segurava.
- Ué, Casa, e a cicatriz?
Casimiro respirou fundo, como quem se alivia de algo preso há muito
tempo, e falou:
- Pois é, rapaz, isso aqui foi quando eu pulei pra casa do vizinho. Me arranhei na grade.
Eu, que estava atento aos sinais de angústia de Casimiro, preparado para ter uma conversa séria, garanti a gargalhada do dia. Como bom contador de
causos, ele bebeu a cerveja enquanto esperava que eu me recuperasse. Não quis
saber da veracidade do que ele escreveu, com isso eu nunca me importei. Preferi perguntar se a coisa toda, do convite para virar escritor, era verdade. Ele ficou
sério e me disse que sim. Olho para o lado e emendou dizendo:
- Como pode, vê? Esse negócio de escrever não tem graça nenhuma.
Duvido que você gostasse de mim se me conhecesse lendo as minhas estórias.
Além disso, tem esse negócio de timing. É timing, não é? Isso não existe quando
está você, o chá, o banho tomado, o papel e a caneta.
De fato, percebi que havia lido com uma única expressão. Que só dei
importância quando só fazia questão de me deixar à revelia do timing de Casimiro. Concordei com tudo o que ele me disse. Fui pra casa depois de ouvir mais
um par de causos, e de algumas cervejas.
Quando entrei em casa, vi a chaleira, a mesa com papéis, e o banho que
me esperava. Parece que pela primeira vez os contos de Casemiro me mostraram outras fulguras. Era estranho. Não gargalhei. Fui invadido por algo em
mim que me fez ir direto para a cama. E se ele tivesse me perguntado por que
eu continuo a escrever coisas? Que será que eu responderia?
Lembrei que durante a nossa conversa eu falei algo sobre isso, como se
a pergunta já estivesse posta; como se faltasse somente um arranjo na linguagem. Disse a ele que as pessoas escrevem quando não sabem contar. Que só escreve quem não sabe ler os outros. Só quem não sabe nada de timing. Quem não
se importa tanto com quem ouve.
Escreve quem precisa hipnotizar-se a si mesmo. E precisa da hipnose
quem vê como urgente a transformação das fulguras em figuras, por não suportá-las. Lê, quem, por azar, acompanha o pêndulo por trás da porta.
Decidi que devia fazer um chá e sentar à mesa com papéis, já sabia que
todo escritor tem um quê de hipnotizador, e que o martírio da frustração repetia-se somente por ser, a atenção a novas fulguras, de qualquer tipo, um modo
de hipnose. Um modo que, embora menor, serve para que haja texto, que serve,
por sua vez, para que percebam-se novas fulguras para as quais se atentar.
Com minhas figuras, posso tentar sugerir fulguras. A sugestão é quase
sempre falha. Não tenho o tempo, nem o timing.