Ritual do corpo e imaginário ribeirinho na lenda amazônica O Boto
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Ritual do corpo e imaginário ribeirinho na lenda amazônica O Boto
Ritual do corpo e imaginário ribeirinho na lenda amazônica O Boto Gilzete Passos Magalhães1 RESUMO: Este trabalho se propõe a descrever as relações de gênero em comunidades ribeirinhas amazônicas que incluem a divisão de tarefas, interdições por espaços públicos e superstições, como a crença na lenda O Boto, a partir dos complexos culturais. Adotouse o método de análise qualitativa, por meio de pesquisa documental e narrativas sobre o encantado O Boto, compiladas por estudiosos de diversas áreas. O material foi submetido ao processamento simbólico arquetípico (PENNA, 2009). Os resultados indicam a influência da geografia e dos processos históricos no imaginário ribeirinho e que a lenda O Boto ilustra a separação defensiva na relação de gênero. OBJETIVO: Este trabalho se propõe a descrever as relações de gênero em comunidades ribeirinhas da Amazônia que incluem a divisão de tarefas, interdições no trânsito por espaços públicos e superstições, como a crença no personagem O Boto, a partir de conceitos da Psicologia Analítica. Palavras-chave: Psicologia Analítica. O Boto. Complexos Culturais. Relação de Gênero. 1 Trabalho composto a partir da dissertação de mestrado Os espelhos dos rios: dimensões simbólicas da relação de gênero na lenda amazônica O Boto (Agente financiador: CAPES). 1 Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica (PUC – SP). Professora do Instituto Federal Fluminense (IFF) e docente da Faculdade Salesiana (Macaé – RJ). Exerce atividades clínicas, de pesquisa e extensão acadêmica. Contato: [email protected] Introdução A psicologia analítica considera o folclore como fonte de compreensão de relações de gênero, sexualidade e fenômenos psíquicos. Entre as motivações que me levaram ao estudo de lendas amazônicas, destaco os poucos trabalhos de psicólogos sobre o folclore brasileiro e a minha vivência no Amapá, o Lugar da Chuva na língua tupi. No período em que morei na Amazônia, dialoguei com ribeirinhos sobre encantados como O Boto que, para alguns caboclos, constituem-se como realidade incontestável. No percurso pela região me impressionou o mar de águas doces do Amazonas e as ruas de rios que apresentam à população suas faces: rios que distanciam e aproximam os povoados de outras cidades; a fartura em peixes, as águas que, com a violência de suas marés, provocam naufrágios e tragédias. Diante desse universo misterioso, alguns ribeirinhos atribuem a responsabilidade de catástrofes, afetos e explicam as relações de gênero pela ação de criaturas mágicas como O Boto. Em espaços como Itapuá e Salgado no Pará e em outros povoados da Amazônia, o mundo é delimitado por uma ordem natural, sobrenatural e social e essas dimensões determinam também os papéis atribuídos aos sexos (MOTTA MAUÉS, 1998; MAUÉS, 2006). Nesse contexto há uma separação entre tarefas atribuídas a homens e mulheres, em que a caça e a pesca são de responsabilidade do homem, enquanto a mulher se ocupa dos cuidados com o lar. As múltiplas faces do feminino e os complexos culturais Desde a menarca ao fim do período fértil, em algumas comunidades, são impostas restrições ao feminino, como a proibição do trânsito de mulheres por rios lugares esses, de domínio masculino -, pois em certos povoados, caso a jovem percorra tais espaços, pode vir a ser vítima de um ataque do Boto, ser encantado que sai da água metamorfoseado em homem bonito e seduz a jovem, provocando nela a flechada de bicho, entre outros fenômenos (MOTTA-MAUÉS, 1998; MAUÉS, 2006; CÂMARA CASCUDO, 2002). A flechada de bicho implica ação de personagens mágicos como O Boto, que produz dores em parte do corpo de quem tenha sido sua vítima (YAMÃ, 2005). Além das dores pelo corpo, a flechada de bicho pode despertar paixões, alterações psíquicas ou mesmo uma gravidez, a qual se atribui ao Boto, a paternidade da criança. (HENRIQUE, 2009; CÂMARA CASCUDO, 2002). Durante a gravidez algumas mulheres são classificadas panemas, termo de origem indígena que também significa insucesso no trabalho. Destarte, se a mulher comer um peixe, pode transmitir a panema ao homem, despertando nele a improdutividade na pesca (MOTTA-MAUÉS, 1998). Assim, no processo de socialização, muitas mulheres internalizam características ambíguas atribuídas ao feminino e passam a crer que esses aspectos fazem parte de sua natureza, propagando esses valores às próximas gerações, situação que nos reporta ao conceito de complexo cultural. Os complexos pessoais constituem-se como vivências de forte intensidade afetiva que se delineiam na psique de cada indivíduo de acordo com suas experiências. As vivências traumáticas decorrentes de processos históricos experimentadas por uma sociedade, favorecem a formação de complexos culturais, que se apresentam por meio da projeção destrutiva - em que um gênero, uma sociedade e até um objeto, como observamos no fetichismo -, venham a ser identificados como um inimigo comum (SINGER, 2002; WEISSTUB e GALILI-WEISSTUB, 2004). Desde a colonização do Brasil, a Amazônia tem sofrido brutais invasões que envolvem também violência sexual sobre seus habitantes, assim, o nascimento de uma criança de pele clara, muitas vezes era justificado pela ação do Boto, que, devido à sua coloração rosada e por transitar pelos rios da Amazônia, leva-nos a inferir que o cetáceo venha a representar um elemento invasor, tornando-se o inimigo identificado do grupo. A Amazônia ainda é palco de intenso fluxo migratório (PORTO et al., 2011). O contexto da região inclui mineradoras, programas de saúde, missões religiosas em que, após os estrangeiros terem realizado uma atividade pontual nos lugarejos da região, partem, fato que configura o norte do país como local de passagem. A separação entre os papéis de cada gênero em algumas comunidades ribeirinhas da Amazônia favorece a formação de complexos culturais, em que aspectos do feminino e masculino são reprimidos por homens e mulheres e impelidos à sombra, influenciando, portanto, na projeção de aspectos não identificados no sujeito na pessoa do sexo oposto. Portanto, o elemento diferente passa a ser visto como perigoso, o que ocorre, por exemplo, em relação ao feminino ou ao personagem O Boto. Considerações finais Os processos históricos, as atividades relacionadas a gênero, a separação entre dimensões do masculino e feminino, a migração e a geografia da Amazônia, com sua vegetação e superlativíssimos rios, contribuem para a hipótese de um complexo cultural amazônico. Em leituras sobre o contexto ribeirinho e diálogos com pessoas dessas comunidades, observa-se que as pessoas desses lugarejos agem conforme as imposições de um universo hierarquizado, em que as infrações das regras, culminam em punições no âmbito interpessoal, coletivo e sobrenatural (MAUÉS, 2006; MOTTA-MAUÉS, 1998), fato que nos reporta novamente a inferir sobre a constelação de complexos culturais. REFERÊNCIAS BERNARDO, Patrícia Pinna. A Prática da arteterapia – correlações entre temas e recursos – v. IV: amor, sexualidade, o sagrado e arteterapia: aproximações mitológicas entre Oriente e Ocidente. São Paulo: CIP – Brasil – Sindicato Nacional dos Editores de Livros - editado pela Autora, 2011. 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