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APERITIVOS, ESCOLTAS & LANCHES... HOT-DOG Cachorro-Quente Este trabalho, tão cioso em sua pesquisa e na sua compulsão de homenagear as tradições, não pode ignorar o movimento pseudoculinário que o planeta batizou de fast food, a partir da sua procedência norte-americana. Aqui, ao menos, quase como uma trivialidade, abro espaço à mais maravilhosa das bobagens que a velocidade ianque inventou. Zombaria à parte, a citação vale pela história deliciosa da criação do hot-dog. As salsichas datam dos romanos. A obra de Marcus Gavius Apicius está repleta de receitas de preenchimento de tripas animais. Algumas, aliás, bastante ricas na qualidade e na quantidade de ingredientes – além da carne, geralmente de porco, bem batidinha com uma faca ou um macete, levavam várias gorduras, pimentas, cominho, pinóis, salsinha, sálvia e até as uvas secas. O conjunto ficava horas, às vezes dias, num defumador. Até mesmo com moluscos marinhos, o polvo, a lula, os mexilhões, Apicius fazia os seus embutidos. A palavra, aliás, vem do latino salsisium, que vem de salsus, que significa “salgado”. Em séculos de viagens através da Europa o produto assumiu milhares de vestimentas e de formatos diferentes. Na Itália, por exemplo, surgiu a luganega, a mamãe da lingüiça. Aliás, a propósito: o idioma inglês não estabelece uma distinção precisa entre a salsicha e a lingüiça. A confusão só serve para trair os tradutores dos livros de cozinha que não dispõem do conhecimento necessário ao seu labor. Já capturei muita pizza de salsicha em versões pífias por aqui. No seu departamento específico, os alemães, os austríacos e os poloneses se tornaram imbatíveis. A coloração 29 característica não surge necessariamente da química ou da artificialidade. Ocorre quando se mistura salitre à pasta do recheio, um casamento de carne de porco com peito de boi. O salitre ajuda na conservação e, de certo modo, resgata a matriz do nome. Paralelamente, a idéia de colocar um ingrediente qualquer entre duas fatias de pão também é antiqüíssima. Os escravos dos romanos, nas galeras dos Césares, recebiam uma ração de picea, um disco de massa de farinha e água, dobrado sobre vegetais e, em dias de glória, sobre um peixe. O termo sanduíche, de todo modo, brotou graças a um viciado. Inglês, devasso, freqüentemente acusado de corrupção, ainda assim John Montagu (1718-1792), o quarto lorde de Sandwich, mereceu da sorte e de amigos poderosos uma carreira longa na marinha britânica. Entre outras tarefas, nem sempre bem-sucedidas, ele chegou a comandar as forças navais de sua pátria na Guerra de Independência dos Estados Unidos. Em 1762 permaneceu por 24 horas sem se despregar da mesa de jogo, apenas se alimentando de rosbife embrulhado em fatias de pão. Um parceiro, ironicamente, batizou o alimento de sandwich. A alcunha pegou. A expressão hot-dog, por sua vez, surgiu em 1900, no Polo Grounds, em Nova York, então o mais importante estádio de beisebol dos EUA. Harry M. Stevens detinha a concessão de exploração do bar das galerias. A sua especialidade: refrigerantes. Certa ocasião, porém, um dia muito frio, Stevens resolveu fugir do risco de um fracasso em suas vendas. Encomendou todas as salsichas que podia nas mercearias das vizinhanças do estádio, assim como comprou centenas de quilos de pão. Nos mesmos tachos em que perpetrava os refrigerantes, manteve aquecidas as salsichas. Aos berros, passou a estimular a freguesia: “Get’em while they’re hot”. Ou: “Aproveitem, enquanto elas estão quentes”. Um celebrado cartunista, T. A. Dorgan, pseudônimo Tad, aproveitou o mote para publicar uma charge num jornal da cidade – um cão bassê no Polo Grounds. A alcunha também pegou. Obviamente, depois deste intermezzo supostamente cultural, eu me abstenho de recontar como se monta um cachorro-quente. 30 PISSALADIÈRE Torta de cebolas da Provença BASTA EXAMINAR o resultado desta receita para compreender que a pizza italiana, em suas origens, era efetivamente uma torta, de massa espessa, generosa – ao contrário das finuras e das transparências exibidas por zilhares de forneiros pára-quedistas do Brasil e até mesmo da Itália. Não, eu não enlouqueci. A Pissaladière representa o elo perdido entre a pizza de antigamente e a sua história cada vez mais desperdiçada. Trata-se, este, de um teorema complexo, e eu vou demonstrá-lo. O pão faz parte da Bíblia, desde que Abraão pediu a Sara que moesse o trigo e a ele misturasse água fresca, obtendo um impasto que seria seco e assado ao sol. Seguramente, por outras descrições, o resultado se parecia bastante, ao menos no formato, no jeitão, com o pão árabe de agora. A romanização do Levante, nos idos do nascimento de Cristo, carregou a preciosidade até onde hoje se localiza a bela Itália. Naquela época, a coisa se chamava picea. Servia para tudo. Comia-se a picea ao natural, de manhã, ou nas refeições normais de cada dia, ao lado de um copo de vinho ou correlato. Mas também se temperava a picea com azeite, sal, especiarias, e ela se tornava uma parte importante de um repasto. Desde aqueles tempos, a picea se mostrava mais grossa nas regiões de maior pobreza, ao sul da Bota. Coisas da fome, de encher o bucho. Quando o tomate aportou na Europa, no século 16, pioneirissimamente os napolitanos entenderam a sua versatilidade. E um dos seus usos iniciais para o produto foi, exatamente, a sua colocação na picea. Assim nasceu a pizza. Da formulação e da palavra picea. E não, como insiste tolamente o Larousse, de “um verbo que significa condimentar”. E a Pissaladière, como entra nesta tese? Trata-se de um prato da Provença, que fez parte da Itália. O grande Giuseppe Garibaldi nasceu em Nice, a principal cidade da região, e o seu sonho, 31 ao atravessar a Bota e expulsar o invasor gaulês, era mesmo recolocar o lugar na geografia peninsular. Não deu certo. De qualquer modo, o eterno tráfego entre a Itália e a Provença carregou a picea-pizza até lá. Aliás, eu não necessito observar ao meu leitor que Pissaladière obviamente vem de picea-pizza. INGREDIENTES PARA UMA FÔRMA: 300g de farinha de trigo, bem peneirada. 180g de manteiga. Sal. Água fresca e declorada. 1kg de cebolas brancas, grandes, as mais doces. Açúcar. 16 filés de anchovas, bem lavados, dessalgados e sem as espinhas. Algumas azeitonas pretas, sem caroços, cortadas na horizontal. Pimenta-do-reino. Azeite de olivas. MODO DE FAZER: Deixo as cebolas, já descascadas, de molho por quinze minutos em bastante água fria, com um pouco de açúcar. Fatio. Pico, finerrimamente. Numa frigideira, aqueço um pouco de azeite. Refogo as cebolas, sem permitir que elas se bronzeiem. Diminuo a chama, quase que completamente. Cozinho, mexendo de quando em quando, por mais alguns instantes. Tempero com o sal e a pimenta-do-reino. Reservo. Preparo a massa da torta com a farinha, a manteiga, uma pitada de sal, outra de açúcar e a água necessária para obter um conjunto bem amalgamado, liso, brilhante. Unto, sempre com azeite, uma fôrma de uns 20/25cm de diâmetro. Abro a massa, cerca de 1cm, no mínimo, de espessura. Comprimo bem, junto às bordas, com a ponta de um garfo. Transformo o restante da massa em tirinhas com 1cm de largura. Disponho alguns dos filés de anchova no fundo, à maneira dos raios de uma roda. Recheio a torta com as cebolas. Cubro com as anchovas restantes e com as azeitonas. Enfeito com as tirinhas de massa. Levo ao forno moderado até que a massa atinja um ponto agradavelmente dourado. Sirvo a Pissaladière fria ou quente. No caso de ela funcionar como uma entrada solitária, acompanho com um molho fresco de tomates. 32 POMMES FRITES Batatas Fritas FILHA DAS BORDAS DO PACÍFICO, a batata começou a ser cultivada pelos incas, talvez um milênio atrás, como uma alternativa para o milho que não crescia nas terras mais elevadas dos Andes, acima de três mil metros de altitude. Um navegador espanhol, Francisco Pizarro (1475-1541), foi o seu descobridor, por volta de 1530, provavelmente nos arredores de onde hoje se localiza Quito, a capital do Equador. Um visceral adversário dos ibéricos, porém, foi o responsável pela sua denominação. Um jovem de impressionante liderança, de enorme ousadia, Francis Drake (1540-1596), com pouco mais de trinta anos de idade, recebeu da rainha Elisabete I da Inglaterra a incumbência de espicaçar como pudesse as tentativas de instalação das colônias da Espanha nas costas de Cartagena, na Colômbia. Numa de suas investidas, bem acolhidos pelo povo de um lugarejo qualquer, Drake e os seus homens decidiram interromper por um tempo a sua missão. Entre a coleta de água e de mantimentos, um dos imediatos de Drake, o seu ultra-amigo Malcolm Marsh se envolveu com Potato, a bela filha de um chefe local. Quando Drake anunciou a sua partida, semanas depois, o chefe exigiu que Marsh permanecesse na tribo. Drake, então, coordenou com os seus homens uma grande fuga noturna, enquanto os nativos dormiam. Os escaleres dos britânicos já levavam vinte ou trinta metros de vantagem quando os nativos iniciaram a perseguição. Esgotadas as suas flechas, desandaram a arremessar batatas na nave do corsário. Obviamente, o inglês escapou e Marsh se livrou do casamento indesejável – melhor, Drake carregou de volta à Inglaterra centenas de quilos do produto. Em Londres, vitorioso, foi homenageado pela rainha, e provavelmente sua amante, com um banquete monumental. Entre outros pitéus, serviram-se as tuberosas, exatamente à moda dos nativos, assadas na brasa. Elisabete, deliciada, perguntou ao corsário como se chamava 33 a iguaria. Drake não sabia. Eternamente bem-humorado, porém, brincou com Marsh, afinal o responsável pela confusão. Sem graça, o imediato respondeu com o primeiro nome que lhe apareceu na cabeça, aquele da sua pobre namoradinha: “Potato, madam!” Apesar da sua facilidade de reprodução, a batata não recebeu dos europeus uma acolhida digna de um produto, digamos, da real gastronomia. Além de considerá-la de raiz egípcia, o enciclopedista Denis Diderot (1713-1784) humilhou as suas qualidades. Brillat-Savarin afirmou que a batata servia apenas como um mata-fome. Só nos arredores de 1770, graças a Antoine Augustin Parmentier, sobre quem eu falarei no capítulo da potage em sua honra (página 71), ela passou a receber um tratamento mais nobre. Além de grelhada ou enfornada, então a batata era cozida, meramente. Durante a pesquisa do seu trabalho Examen Chimique de la Pomme de Terre, o formidável Parmentier decidiu experimentá-la também frita. Adorou o resultado, crocante por fora e macio no interior. Logo a sua audácia se espalhou, inclusive graças ao apoio pessoal do rei Luís XVI, aquele que acabou na guilhotina. Rapidamente, toda a França assumiu as pommes frites como uma escolta obrigatória para um exército de alquimias. Fritar batatas, entretanto, exige mais habilidade e/ou mais paciência do que parece. Passo adiante o método ideal. INGREDIENTES PARA UMA PORÇÃO: 100g de batata do tipo Bintje, a holandesa, de casca escura e espessa, farinhenta, sem brotos ou machucaduras. Água fervente, previamente salgada. Óleo de milho, bem quente. MODO DE FAZER: Corto a batata, em rodelas, palitos ou palitinhos, de tamanhos e espessuras precisamente iguais. Banho na água, por cerca de segundos. Retiro. Escorro. Seco, meticulosamente. Coloco no óleo, separando e revirando com a escumadeira até atingir o ponto desejado. • 34 Aproveito o segmento para descrever e explicar alguns outros processos antológicos e importantes de se prepararem as batatas. POMMES ANNA Criação de Adolphe Dugléré (1805-1884), um cozinheiro bordalês, pupilo de Carême, chef dos já milionários Rothschild e, posteriormente, diretor do celebrado Café Anglais de Paris. Apelidado de “O Mozart dos Fogões”, em 7 de junho de 1867 ele montou um rebuscadíssimo menu para um banquete nobilérrimo. Entre os seus convidados estavam o czar Alexandre II da Rússia, o seu filho também Alexandre (futuro III), o imperador Guilherme I da Prússia e o seu chanceler Otto von Bismarck. As Pommes Anna são realizadas ao forno, com bastante manteiga. Cortam-se as batatas em rodelas espessas, ao menos um dedo. Com uma espátula, elas são comprimidas uma às outras e, então, várias vezes reviradas na gordura, enquanto se assam, em forno bem forte, até que se mostrem bem bronzeadas. POMMES DAUPHINE Basicamente, uma mistura de três partes de purê de batatas com uma de massa de Brioche (preparação básica na página 26). Transforma-se o resultado em pelotas do tamanho de uma bola de golfe. Depois de algum descanso na geladeira, as pelotas são fritas em óleo neutro, preferivelmente o de milho, muito quente. No Brasil, a crônica mandriice faz com que muitos restaurantes ofereçam as Pommes Dauphine apenas cometidas com o purê – ou, no máximo, com o purê mescolado a um pouco de farinha. As Dauphine com presunto moído na sua composição se chamam Pommes Bayonne. Aquelas com um pouco de queijo incorporado ao purê, Pommes Lorette. POMMES DUCHESSE Neste caso, às três partes de purê se combina uma de gema de ovo e manteiga amolecida à temperatura ambiente. Pode-se moldar a pasta resultante nos mais diversos desenhos. Em vez 35 de fritas, as Duchesse são assadas em forno forte. Com trufas, viram Berny. Com presunto, Saint Florentin. Obviamente, existe quem prefira fritá-las em algum tipo de gordura. O resultado, no forno, contudo, me parece vastamente superior. POMMES SOUFFLÉES Aquelas que fazem lembrar travesseirinhos. A sua perpetração é bem mais singela do que se imagina. Basta cortar as batatas de maneira detalhadamente igual, cerca de 3mm de espessura. Numa primeira etapa, colocam-se os pedaços em óleo medianamente quente. Aos poucos, se levanta o calor. Num certo instante, os pedaços subirão à superfície. Então, basta escumá-los e refritá-los numa segunda gordura, superaquecida. WELSH RAREBIT Bocado de Queijos Picantes à Moda Galesa GRAÇAS À PRESENÇA de Escoffier em Londres, no final do século passado, e graças aos herdeiros que ele deixou por lá, a culinária inglesa atravessou um bom período de apogeu, entre oitenta e cem anos atrás. Depois, porém, desandou a decair, a ponto de quase não mais existir, hoje, como uma manifestação cultural. O seu melhor símbolo, na atualidade, é uma mulher, Prue Leith, que infelizmente se dedica ao catering e não tem tempo de revolucionar o seu mercado. Há muito celebrados, dois chefs importantes, os irmãos Roux, recentemente se desmoralizaram numa sucessão de escândalos e de punições ferozes aos seus restaurantes. Mais. Além da invenção do sanduíche, as ilhas de Sua Majestade praticamente não injetaram iguarias de respeito na história da gastronomia. Uma das suas raridades, inclusive, vem de Gales, e foi tão deturpada, por este planeta afora, que perdeu o seu caráter de sobremessa salgada e digestiva, ao final de uma refeição mais impactante. Seu nome, Welsh Rarebit, não sugere uma tradução literalmente inteligível. Por isso tomei a liberdade de optar pela versão, digamos, descritiva, 36