Os sete sentimentos capitais

Transcrição

Os sete sentimentos capitais
O S S ETE S ENTIMENTOS C APITAIS
E XPLORAÇÃO S EXUAL C OMERCIAL
DE
C RIANÇAS
E
A DOLESCENTES
GLÓRIA DIÓGENES
OS SETE
SENTIMENTOS CAPITAIS
EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Infothes Informação e Tesauro
X000
Diógenes, Glória.
Os sete sentimentos capitais: Exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes / Glória Diógenes. – São Paulo:
Annablume, 2008.
000 p. ; 14 x 21 cm.
ISBN 978-85-7419-000-0
1. Guanges – Fortaleza (CE) 2. Marginalidade social – Fortaleza (CE) 3. Movimento da juventude – Fortaleza (CE). . I. Ceará. Secretaria de Cultura e Desporto. II. Título.
CDD-305.23098131
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Coordenação editorial
JOAQUIM ANTONIO PEREIRA
Produção
RAY LOPES - PAGINAÇÃO
Capa
CARLOS CLÉMEN
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (In memoriam)
Cecilia de Almeida Salles
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Aléssio Ferrara
1ª edição: julho de 1998
© Glória Diógenes
ANNABLUME editora . comunicação
Rua Tucambira, 79 . Pinheiros
05428-020 . São Paulo . SP . Brasil
Tel e Fax. (011) 3812.6764 – Televendas 3031-1754
www.annablume.com.br
Dedicamos esse livro a Romário/Larissa,
que atuou como mediador decisivo entre
os pesquisadores e as crianças e
adolescentes, assim como acompanhou
pontos diversos desse percurso.
Você sabe mais do que ninguém das
nossas razões. Você é um dos porta-vozes
dos sentimentos capitais que atravessam
e reproduzem as redes de exploração
sexual e dos tantos outros sentimentos
que nos mobilizam e nos comovem.
F ICHA T ÉCNICA
Coordenação geral: Glória Diógenes
Coordenação de campo: Camila Holanda Marinho
Coordenação técnica: Tiago Diógenes
Coordenação adjunta: Germana Cleide Pereira e Alberto dos Santos
Barros Filho
Sistematização dos dados quantitativos: Willi Pichler Araújo Melo
Tabulação de questionários: Germana Cleide Pereira e Alberto dos
Santos Barros Filho
Transcrição das entrevistas: Genilria de Almeida Rios
PESQUISADORES
Alberto Nepomuceno
Antônio Marcos de Sousa Silva
Francisca Emanuela Leitão Pereira
Francisca Helena Damasceno de Sousa
Francisco Augusto da Silva Júnior
Francisco Hélio Monteiro Júnior
Francisco Rafael Agostinho Araújo
Joselice Ferreira Viana (Pedrita)
Marcilene Lourenço Da Silva
Nelydelia Kelene França de Sousa
Sandra Luna Jorge
Sharon Darling de Araújo Dias
R EALIZAÇÃO
FUNCI - Fundação da Criança e da Família Cidadã
IMPARH – Instituto Municipal de Pesquisas, Administração e Recursos
Humanos
FCPC – Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura
P ARCERIA
TÉCNICO - FINANCEIRA
Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos narradores pesquisados por abrirem as portas de suas
vidas.
Aos pesquisadores pelo empenho e dedicação.
À Secretaria Especial dos Direitos Humanos pelo apoio institucional sem
o qual esta pesquisa não teria sido viabilizada.
À Assessoria de Planejamento, à Assessoria de Comunicação e ao
Laboratório de Estudos da Criança e Adolescente da Fundação da Criança
e da Família Cidadã pelo apoio técnico na elaboração deste livro.
Aos nossos familiares e amigos.
À Eroneide Alves.
SUMÁRIO
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Apresentação
Glória Diógenes
Das nossas pretensões
Das razões de uma cidade: Fortaleza
Dos motivos e escolhas: o jeito de fazer pesquisa
O educador social é um pesquisador: vias de acesso e de
construções metodológicas
Glória Diógenes, Camila Holanda, Germana Cleide Pereira e
Alberto Barros Filho
Contando a história da pesquisa: o tempo, os lugares, a freqüência,
a quantidade e as surpresas
Quantos, onde e quando?
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A eloqüência dos conceitos, o silêncio de quem vive e o olhar
do observador: pista e sinais do ato de fazer programa
Glória Diógenes
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Os lugares, as pessoas e as coisas: dinâmicas de exploração
sexual e lógicas territoriais
Glória Diógenes
As avenidas e os lugares de intensidade de tráfego
As praças, as barracas, os postos: caminhos de passagem
Os Terminais: lugares de todos e de ninguém
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Retrato em branco e preto: uma fotografia dos narradores
pesquisados
Helena Damasceno
Polaróide de heróis
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Desvendando as histórias familiares: o sentido da família e
seu lugar na rede de exploração sexual comercial de crianças
e adolescentes
Camila Holanda
Família: compreendendo o conceito
O que os conflitos dizem sobre as relações familiares
O que pensam sobre suas mães
E a figura masculina aonde entra nessa história?
Apesar de... alguns comentários finais
Violência: o cotidiano de crianças e adolescentes explorados
sexualmente
Alberto Barros Filho
Na casa se inicia a violência
Clientes e desconhecidos: medos, riscos, agressões e revides
Diversos personagens de um mesmo ator: o policial
A convivência e as disputas
Da violência do uso de drogas e do prazer vigiado
Helena Damasceno
Da saúde social do corpo
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Sexualidade, corpo e etiqueta
Germana Cleide Pereira
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Achados quantitativos, as narrações dos pesquisadores e a
fala dos sujeitos: o que significa fazer programa?
Glória Diógenes
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Os sete sentimentos capitais do ato de fazer programa
Glória Diógenes
I – Prazer
II – Nojo
III – Culpa
IV – Preconceito
V – Liberdade e autonomia
VI – Vaidade
VII – Medo
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O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente visto pelo avesso
Thiago de Holanda Altamirano e Gilberto Braga Teixeira
A rede de retaguarda: os circuitos e as falas da exploração sexual
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Considerações finais
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Tema: O cliente
Tema: Violações
Tema: Variações do fazer programa
Tema: Laços familiares e afetivos
Tema: Conflitos familiares
Tema: Violência doméstica
Tema: Violência policial
Tema: O silicone
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Anexos
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Mapa de Fortaleza: pontos de exploração sexual/ locais da pesquisa
Questionário para a pesquisa sobre exploração sexual
Tabelas relativas às instituições
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APRESENTAÇÃO
D AS
NOSSAS PRETENSÕES
Essa pesquisa tem como ponto de partida a afirmação de um
compromisso, de um pacto de conhecimento e a percepção da necessidade
de melhor qualificar o processo de construção da política pública para as
crianças e os adolescentes da cidade de Fortaleza. Em 2005, ao assumirmos
a Fundação da Criança e da Família Cidadã, órgão da Prefeitura Municipal
que planeja e executa as políticas públicas para essa área, elegemos o
enfrentamento da violência, abuso, exploração sexual e o tráfico de crianças
e adolescentes como eixos estratégicos de atuação. Certamente, não
poderíamos realizar um intento tão complexo e conjugado de aspectos tão
diversos, circunscritos ao limites institucionais e formais da construção dessa
política. O município, através da mediação do Conselho Municipal da
Criança e do Adolescente e dos parâmetros indicados no Plano Nacional
de Enfrentamento à Violência e ao Abuso Sexual de Crianças e
Adolescentes, tentou, como primeiro ponto de partida, identificar todos os
atores que compunham os eixos do referido Plano em Fortaleza.
Logo no início da gestão, contamos com a parceria da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, e identificamos, em conjunto, a necessidade
de se traçar o perfil detalhado das crianças e adolescentes que se encontram
nas redes de exploração sexual em Fortaleza, assim como identificar os
vários percursos que pontuam suas histórias de vida. A inserção de Fortaleza
no Programa de Ações Integradas de Enfrentamento da Violência Sexual
Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (PAIR), desde meados de 2005,
fortaleceu ainda mais a necessidade de um conhecimento mais sistematizado
desse campo específico de atuação. A consecução da primeira diretriz do
Plano Nacional – construção de um diagnóstico – forneceria os indicadores
necessários para qualificar, destacadamente, as ações de atendimento,
como também lançaria alguns parâmetros para os demais atores que
integram o Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes.
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GLÓRIA D IÓGENES
Em julho de 2008, o Estatuto da Criança e do Adolescente fará 18 anos,
uma maioridade que precisa cercar-se, cada vez mais, de elementos
concretos e sólidos para as ações relativas a uma efetiva construção dessa
política pública; assim como produzir aportes metodológicos capazes de
promover registros, formatações dessa política e iniciativas de multiplicação
de experiências.
Fortaleza é, atualmente, a quarta metrópole brasileira em população.
Encontra-se localizada na costa atlântica nordeste, possui 313,8 km² e uma
população estimada em quase 2 milhões e meio de habitantes. A atual
prefeita de Fortaleza – Luizianne Lins – teve como parlamentar uma
trajetória política voltada para a defesa dos direitos humanos, e elege, nessa
gestão, a criança e o adolescente em Fortaleza como prioridade absoluta,
seguindo a orientação do ECA. A conexão entre governo local e federal
na condução dessa política, aliada a fatores concernentes ao intenso fluxo
turístico dessa cidade traduzem os dados dessa pesquisa como
representativos e elucidativos para todo o território brasileiro.
D AS
RAZÕES DE UMA CIDADE :
F ORTALEZA
Nos últimos 30 anos, Fortaleza tem crescido de forma veloz e
desordenada. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), Fortaleza cresceu 50% no período 1940/1950, quase
dobrou entre os anos 50 e 60, e nos anos posteriores continuou a crescer
numa velocidade em torno de 50% por década. As migrações campo-cidade
provocaram, essencialmente, o aludido crescimento demográfico e a
configuração de um processo de urbanização e inchamento vertiginosos.
Durante décadas, Fortaleza é identificada como uma cidade
eminentemente terciária, tendo seu incremento industrial se intensificado,
de forma mais destacada, na década de 1980. O turismo tem sido
considerado o fator de desenvolvimento que atrai para a capital cerca de
um milhão de pessoas/ano.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio
(PNAD), analisada pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do
Ceará (Ipece), o Índice Geni, que mede a concentração de renda, atingia
0,600 em 2002 na Região Metropolitana. 53,4% da população era
considerada pobre e 26,3% indigente em 2002. É uma cidade desigual,
que concentra renda e tende a segregar a população que mais tangencia
a linha de pobreza para locais de difícil acesso, distanciadas da denominada
área nobre: o extensivo bairro Aldeota.
Dados de 1996 já indicavam que os 10% mais pobres ganham em média
0,76% do salário mínimo e os 10% mais ricos ficam com 45,81% dos salários
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
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(IBGE). Conforme indica o Relatório Sentinela 2007 (Serviço de
Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes), 37% das crianças do estado do Ceará fazem parte de famílias
que têm renda inferior a um salário mínimo. E, no caso da violência sexual,
a maior incidência de abuso sexual se dá com meninas de 7 a 14 anos,
inseridas em famílias cuja renda varia de zero a um salário mínimo.
O fenômeno da exploração sexual, como poderemos identificar ao
longo desse estudo, embora seja perpassado por vetores de ordem
econômica e privação material, tem seus ritos de iniciação marcados
também por muitas outras zonas de vulnerabilidade e processos de
fragilização. O estigma de ser morador da periferia, a dificuldade de acesso
a equipamentos e serviços, as rupturas e violências no âmbito da casa,
mesmo configurando um desenho de vínculos e de estrutura familiar,
expressa uma Fortaleza ainda excludente e hostil em relação aos que são
considerados “desviantes”. Por tais razões, percebemos que temos muitas
Fortalezas dentro de uma só cidade. Durante toda a etapa preparatória
da pesquisa, mapeamos pontos diversos de exploração sexual, suas
dinâmicas entrelaçadas aos movimentos das ruas, bares, motéis, boates,
barracas de praia e terminais de ônibus. Identificamos hábitos, atores e
tipos de freqüência de cada lugar e produzimos um outro mapa de Fortaleza,
como veremos ao longo dos escritos entrecortados de falas, pontilhado de
sinais da cidade onde a exploração sexual se tece e se produz em territórios
contíguos.
D OS
MOTIVOS E ESCOLHAS : O JEITO DE FAZER PESQUISA
Em 1998 coordenamos uma pesquisa acerca das redes de exploração
sexual comercial em Fortaleza, assim como delineamos representações e
projeções de algumas crianças e adolescentes situadas dentro desse
fenômeno. Durante esse interregno de 10 anos, seja como pesquisadora
de temáticas contíguas,1 seja como coordenadora do Projeto Enxame,2 seja,
1. “Meninos e meninas de rua: cenário de ambigüidades”, Secretaria do Trabalho e
Ação Social, 1993; “Diagnóstico da criança e do adolescente”, do Conselho Municipal
da Criança e do Adolescente, 1994, “História de vida de meninos e meninas de rua”,
da Secretaria do Trabalho e Ação Social, 1994; Personagens em foco, 2001; a tese
de doutorado Cartografia da cultura e da violência – gangues, galeras e o movimento
hip-hop, 1998, publicada pela Editora AnnaBlume; além da pesquisa realizada com
a juventude nos bailes funk e com torcidas organizadas de futebol – “Itinerários de
corpos juvenis” –, 2003, também publicada pela Editora AnnaBlume.
2. O Projeto Enxame, que teve início em setembro de 2000, atua no Morro Santa
Teresinha, Mucuripe e Castelo Encantado. Recebeu inicialmente apoio da Fundação
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GLÓRIA D IÓGENES
atualmente, como gestora pública, estivemos quase sempre envolvidas com
esse tema e com experiências de vida de muitas crianças e adolescentes
marcadas por violações dessa natureza. No momento em que a Secretaria
Especial de Direitos Humanos propôs a atualização da pesquisa de 1998,
mesmo com todas as tarefas relativas ao cargo de Presidência da Funci,
consideramos que devíamos conduzir esse desafio.
A primeira preocupação, tendo em vista as limitações de abordagem
dos pesquisadores vivenciadas na pesquisa anterior, foi relativa ao requisito
da competência e da agilidade no ato de selecionar e capacitar a equipe.
Estando assegurada a participação do que consideramos os mais adequados
interlocutores do ato de fazer pesquisa, dedicamos-nos às tarefas de
construir a estratégia de pesquisa, realizar o levantamento de campo,
sistematizar os dados e formar a equipe responsável pela elaboração do
relatório final.
Antes mesmo de assumirmos a Funci, na ocasião da pesquisa realizada
pela Equipe Interinstitucional de Abordagem de Rua3 – “Personagens em
foco” –, já havíamos iniciado ações de sensibilização com o seguinte tema:
o educador social é um pesquisador. Retomamos esse enfoque e
preparamos um farto material relativo a natureza da pesquisa etnográfica
e das técnicas de abordagem de pesquisa. Por isso, esse relatório toma
também outra forma: produz um encontro de olhares diversos e de linhas
de abordagem diferenciadas devido à trajetória de cada integrante desse
intento.
O relatório-livro é resultado de três tipos de fontes: os diários de campo,
as entrevistas e o resultado dos dados sistematizados através da aplicação
dos questionários. Decidimos envolver no ato de analisar e escrever acerca
dos “achados” uma educadora social que participou diretamente do trabalho
de campo – Helena Damasceno –, dos coordenadores da pesquisa – Camila
Holanda (que desempenhou o papel de sub-coordenadora), Germana
Cleide Pereira e Alberto Barros Filho, todos oriundos das ciências sociais
–, do presidente do Conselho Municipal da Criança por dois anos e seis
meses (2005 a 2008) – Thiago Holanda –, e de um ex-conselheito tutelar
– Gilberto Braga – que atualmente assume um lugar estratégico na condução
MacArthur, do Instituto Ayrton Sena e do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES).
Tem como meta desenvolver a arte-educação para adolescentes participantes de
gangues e galeras de rua. Criamos e coordenamos o projeto por quatro anos e quatro
meses, de setembro de 2000 a janeiro de 2005.
3. Fórum de articulação e execução de ações para crianças e adolescentes em situação
de moradia de rua que reúne entidades da sociedade civil e poderes públicos municipais
e estaduais do estado do Ceará.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
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da política do município, e eu, que estou atualmente exercendo atualmente
o cargo de presidente da Funci.
Fizemos questão de não seccionar, de forma linear e mecânica, a análise
das tabelas e entrevistas e o próprio processo de elaboração dos textos,
mas estabelecer divisões por temas: o perfil dos entrevistados, o direito a
convivência familiar e comunitária, a sexualidade, a violência, as drogas, a
exploração sexual propriamente dita, e uma avaliação desse segmento
contextualizando com o Sistema de Garantia de Direitos preconizado pelo
ECA. Desse modo, como todos os assuntos serão tratados tomando como
parâmetro uma visão integral dos sujeitos, embora compartimentados, o
leitor poderá identificar algumas repetições, retomada de indicadores e
de depoimentos. Cada autor recebeu o “sinal verde” para adentrar aspectos
e informações já abordadas pelos demais autores. Fizemos a opção de fugir
de uma leitura linear, seguindo linhas retas e segmentadas de uma aparente
evolução do fenômeno da exploração sexual. Nas considerações finais,
indicamos algumas diretrizes para orientação e recondução das políticas
públicas no campo da exploração sexual de crianças e adolescentes.
Queremos advertir aos leitores: leia cada página como um lugar de
acontecimento, uma tessitura escrita de situações muitas vezes sombreadas
e silenciadas. Respire quantas vezes sentir necessidade, e, quando for
possível, transforme sua indignação e estupor em atitude. Preferimos pecar
por excesso. Aqui e acolá o leitor perceberá uma tomada de posição dos
escritores, uma emoção intensa cravada em meio a um parágrafo, uma
perplexidade destacada. Não nos importamos em deixar resvalar
sentimentos; não nos pretendemos neutros. Arriscamo-nos. Essa deve ser
a aventura de quem enseja essa leitura. Então, adentremos essas tantas
portas.
Glória Diógenes
Fortaleza, 2008
O EDUCADOR SOCIAL É UM PESQUISADOR:
VIAS DE ACESSO E DE CONSTRUÇÕES
METODOLÓGICAS
Glória Diógenes
Camila Holanda
Germana Cleide Pereira
Alberto Barros Filho
Fazer pesquisa representa, fundamentalmente, identificar, mapear
significados e construir um sistematizado registro público. Dito de outra
forma, selecionar “categorias nativas”, próprias das formulações, crenças
e pactos constituídos por nossos narradores nos seus enredos costumeiros
e traduzi-los em narrativas “científicas”. São muitas as terminologias
utilizadas por crianças e adolescentes que se encontram em situação de
exploração sexual comercial. A mais recorrente delas – fazer programa –
será tomada aqui como referencial.
De modo geral, utilizaremos as categorias nativas, identificadas nas
entrevistas, nos diários de campo e nas respostas dos questionários, como
referenciais de análise e ponto de partida para qualquer empreitada de
interpretação e de uma possível atualização do conjunto de teorias e
discussões acerca do tema.
Fizemos uma opção metodológica que acabou produzindo desafios e
sinalizou a necessidade de construirmos novos parâmetros metodológicos
na fase relativa à seleção de pesquisadores e abordagem de campo. Em
1998, coordenamos a pesquisa “Criança (in)feliz”, acerca da exploração
sexual comercial em Fortaleza. Nessa oportunidade experimentamos o
principal desafio de uma pesquisa relativa a esse tema: como identificar
um segmento que, no geral, se oculta, se transmuda em outras identidades,
se adultiza precocemente em sua aparência e em suas práticas? O grupo
de pesquisadores, selecionados inicialmente parecia não conseguir
“enxergar” e muito menos abordar esse segmento. No momento, a
alternativa foi a de trazer para compor a equipe alguns educadores de
abordagem de rua, para produzir outro olhar e outra dinâmica na equipe.
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GLÓRIA D IÓGENES
Ao iniciar, em 2007, a pré-sistematização da estruturação dessa
pesquisa, já na qualidade de, além de pesquisadora, presidente da
Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci),1 tomamos uma decisão
junto à equipe inicial: selecionar, em sua maioria, para compor o grupo,
pesquisadores, educadores do “Ponte de Encontro”, 2 graduados ou
estudantes da área das ciências humanas (ciências sociais, história, psicologia,
serviço social, geografia). Estruturamos uma sensibilização em termos de
leituras teóricas acerca do tema violência/exploração sexual, além de
leituras e reflexões relativas ao do uso da etnografia urbana, das técnicas,
das entrevistas, história de vida e de abordagem na relação pesquisador/
pesquisado.
O fato de atuarem em campo numa dupla condição – de pesquisadores
e educadores – produziu e ampliou estratégias de inserção nos espaços da
rua, como também possibilitou a confluência de combinadas formas de olhar
e de sentir para um mesmo foco:
Conversei bastante com este jovem e confesso que naquele
momento em mim estava mais presente o educador-pesquisador
do que o pesquisador-educador. O menino falou das atividades que
mais gostava de participar, que era a capoeira e piscina. R. era
atencioso e meigo, mantinha em sua fala a aparência e o jeito de
criança. Em um certo momento começamos a falar de sonhos, e
lhe perguntei sobre qual era o seu sonho e ele me respondeu que
era aprender a ler. Comecei a lhe dizer como era bom ler, que a
viagem da leitura era muito mais massa que a das drogas, que com
nossa imaginação conseguíamos ver coisas incríveis, e, enquanto
eu falava, percebia que o garoto escutava atentamente. Em seguida,
ele olhou para o meu crachá e tentou ler o nome que estava escrito.
Neste momento Sandra e Jocélio já estavam conosco e também
participavam da conversa. Sei que o papo foi tão bom que até
estudamos a família do F, B e M, letras estas escolhidas pelo
próprio R. Antes de irmos embora falei com R. que ele iria aprender
a ler e depois ensinaria aos outros; que este ficaria sendo o nosso
plano. R., de forma entusiasmada, disse que era isso que ele iria
1. A Funci é o órgão da Prefeitura Municipal de Fortaleza que elabora e executa a
política pública na área da infância e adolescência. Tem a missão de promover e
garantir os direitos humanos com as crianças e adolescentes da cidade de Fortaleza.
2. Programa da Funci, no eixo da Proteção Especial, responsável pela construção da
retaguarda e ações de atendimento para crianças e adolescentes em situação de rua.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
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fazer. O jovem estava quase em cima de nós. Dei-lhe alguns
centavos e lhe desejamos boa sorte. Neste momento meu coração
de educador ficou pequeno (Terminal de Antonio Bezerra, Rafael).
Acerca dessa dupla condição, Machado Pais toma como referência
posturas por ela denominadas de “olhar intrometido e olhar
comprometido”. Diz ele:
O que se reclama é um olhar intrometido como método
sociológico. Olhar metido no que normalmente se desolha, mas
também comprometido, isto é, envolvendo um compromisso, uma
obrigação de denúncia, de desocultação, de desvendamento... Esse
duplo olhar – intrometido e comprometido – é tanto mais objetivo
quanto mais tocado por uma subjetividade conscientemente
cúmplice do observador (2006: 35-6; grifos nossos).
Os educadores sociais de abordagem de rua são comprometidos com
a promoção de direitos humanos de crianças e adolescentes e a esfera do
atendimento e, nessa condição intrometem-se, mobilizados pela função de
pesquisadores, na tentativa de compreensão e registro de suas histórias
de vida. Esse é um papel que assume importância extrema dentro da
complexidade sociocultural que pode ser comparado ao de “mediador
cultural”, isto é, “indivíduos que são intérpretes e transitam entre diferentes
segmentos e domínios sociais” (Velho, 1994: 81). Embora, na origem,
pertençam a um grupo, bairro ou região moral específicos, desenvolvem
o talento e a capacidade de intermediarem mundos diferentes (Velho,
1994).
Evoco aqui os percursos trilhados por Machado Pais, no livro intitulado
Nos rastros da solidão, onde ele pontua o papel de etnógrafo das ruas:
No espaço público das cidades dá-se também uma das formas mais
radicais da chamada observação participante. O etnógrafo urbano
é um participante natural da realidade que observa, ao permanecer
oculto ante aos olhares de quem observa. É um transeunte que se
confunde com os demais. Ao participar no meio de estranhos,
ser um estranho constitui-se me uma garantia máxima de discrição.
Deste modo, o etnógrafo urbano está em condições de registrar,
no terreno, uma realidade social fragmentada, cenário de
transeuntes em trânsito que se encerram em sociabilidades
anônimas, próprias de um estado de “indiferença flutuante”
(2006: 21).
GLÓRIA D IÓGENES
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Assim os pesquisadores “andarilhos”, por serem também atores das ruas,
ao atuarem como educadores sociais, facilmente descrevem percursos
nômades e de maior familiaridade com o próprio fluxo dos transeuntes.
Eles foram selecionados para atuar como pesquisadores, fora dos locais
que desenvolvem o papel de educadores sociais de rua. Houve um cuidado
para não se confundirem os papéis dos profissionais e as demandas
recorrentes das crianças e adolescentes a eles dirigidas. E essa condição
afligia intensamente os educadores-pesquisadores. De outro modo, como
“profissional das ruas”, eles exercem a oportunidade de projetar um outro
olhar sobre as dinâmicas locais e o movimento do público, por estarem,
mais que os pesquisadores não-educadores, amalgamados às redes e aos
modos locais de sociabilidade local. Não facilmente um acadêmico de
ciências sociais, por exemplo, poderia estar nas vias da BR-116, sem um
profundo sobressalto, tentando entrevistar meninas ao longo da rodovia.
De outro modo, nas madrugadas, em lugares próximos aos estabelecimentos
comerciais da Barra do Ceará, os motéis e barracas de praia, estabelecer
contatos com os meninos no tempo exíguo que tivemos para o trabalho
etnográfico foi algo bem mais familiar às práticas cotidianas dos educadores.
Foi essa convergência de sensibilidades, assim como todo o processo de
capacitação e o acompanhamento sistemático do trabalho de campo que
pôde produzir o resultado que se segue: técnico, militante e afetivo.
C ONTANDO
A HISTÓRIA DA PESQUISA : O TEMPO , OS LUGARES , A
FREQÜÊNCIA , A QUANTIDADE E AS SURPRESAS
A pesquisa teve seu início no dia 26 de março de 2007. Partimos de
um chão comum na definição das várias relações que se formam no trabalho
de campo: o pesquisador é um sujeito contracenante de uma cena
perpassada pelo objetivo de pesquisa. Foi ressaltada a importância da
relação entre os sujeitos em “situação de pesquisa” nos vários momentos
da investigação.
Nessa investigação verificamos que abordagem qualitativa e quantitativa
são intercomplementares e produzem interfaces entre conteúdos mais fáceis
de serem revelados e outros que demandam investimento paciente de um
interlocutor. Após os estudos exploratórios e o tempo relativo à fase de
etnografia de cada “território” pesquisado, de posse desse material
formulamos e sistematizamos todo o instrumental relativo à pesquisa
quantitativa. Tomamos como conceito de território o mesmo utilizado na
pesquisa realizada em 1998:
Os territórios são campos concretos/simbólicos produtores de
sentido e de práticas específicas da prostituição. O território, ao
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
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mesmo tempo em que se reporta a dimensões concretas, como o
corpo e os espaços físicos espaciais, ultrapassa-os, agregando
dimensões relativas aos conjuntos de relações, aos aspectos
culturais e simbólicos e aos papéis desempenhados pelos atores
específicos. O território é um mapa cultural. Tendo em vista a
diversificação de experiências da prostituição a partir de contextos
territoriais diversos, o mapeamento relativo a cada área,
possibilitou uma dupla identificação, qual seja do espaço como
locus produtor de redes de relações sociais (sociabilidade) e do
conjunto de significantes produzidos nesses campos de ação
(Diógenes, 1988: 18).
Ficamos de dois a três meses realizando uma etnografia em cada
território identificado, através de cruzamento de dados de várias pesquisas
e trocas de informações de instituições que atuam na abordagem de rua
em Fortaleza. Durante essa jornada, foram freqüentados sistematicamente
10 pontos de maior incidência de exploração sexual (ver Mapa nos Anexos)
de crianças e adolescentes na cidade de Fortaleza. Um esforço que
proporcionou a construção de uma visão complexa da dinâmica espacial
de cada lugar, como também de suas divisões territoriais e peculiaridade
dos atores sociais que “vivem” ou “trabalham” nesses espaços.
Para tanto, foram registrados cerca de 80 diários de campo, partindo
de observações dessas áreas, dando ênfase para a produção e registro de
um olhar diferenciado, capaz de identificar vestígios de cenas e redes de
exploração sexual.
Daí seguimos para o Mucuripe, na esperança de que nossos olhos
conseguissem perceber nas mais simples atitudes algo de peculiar
nas relações entre barraqueiros, vendedores ambulantes,
transeuntes e pipoqueiros... Caminhando com esse intuito, fomos
averiguando, observando em cada barraca se havia “meninas” que
se enquadrassem no perfil da pesquisa (Mucuripe, Antonio Marcos).
O olhar na avenida tem de ser aguçado, pois, aparentemente, não
percebemos a exploração que é bastante camuflada; somente a
percebemos por ser uma área dita como tal. Por isso, o olhar e o
ouvir são sentidos que temos que usá-los triplicamente. Então, o
que fazer para comprovar que existe exploração no local? Temos
que nos aproximar de informantes, tais como moto-taxistas, que
já na primeira conversa nos afirmaram que existem meninas
“fazendo programa”. Os vendedores de chicletes e rosas são em
24
GLÓRIA D IÓGENES
um número grande, em média de cinco vendedores de rosas e sete
de chicletes (Osório de Paiva, Emanuela).
Ficar, olhar, participar, e, em algumas situações, ter que “entrar na
dança”:
Após o preenchimento dos questionários, eu e Hélio descemos a
Avenida no sentido Parangaba e fomos direto até ao Leblon Show.
Na portaria fomos informados de que mulher não paga. Decidi
então entrar, sozinha. Hélio ficou do lado de fora, me esperando.
O local mais parece um galpão enorme, sem nenhuma
“decoração” ordenada. Muitas mesas espalhadas no salão, e um
palco azul, logo à frente das mesas, separado apenas por um
espaço vazio. Certamente um local para as pessoas dançarem. A
música que tocava era forró, e já haviam alguns homens sentados
bebendo. Dei uma volta rápida, pois alguns homens assobiavam,
e, como eu estava sozinha, temi passar por algum constrangimento
(Osório de Paiva, Nelydelia).
Beber cervejas nos bares, casas de forró, boates. Entrar em banheiros
femininos e retocar a maquiagem com a finalidade de compartilhar
conversas. Ler o horóscopo do dia e conseguir estabelecer um diálogo.
Distribuir preservativos e produzir um elo de um motivo para conversa.
São muitas as táticas e astúcias necessárias para um trabalho de campo
dessa envergadura. Tudo como quem entra numa lógica pontuada de códigos
de comunicação, de cumplicidades, conflitos e pactos, e precisa deles se
avizinhar para criar frestas de possibilidades. E não é essa a mais precípua
“função” do antropólogo?
(...) a essência da antropologia, na sua busca daquilo que é essencial
na vida dos outros. De tudo o que permite tornar qualquer
sociedade, em qualquer ponto do planeta, um conjunto coerente
de vozes, gestos, reflexões, articulações e valores (Geertz, 1997:
146).
Durante o tempo que foi necessário para que se “esgotassem” os
contatos e diálogos em cada território, procurou-se delinear um “conjunto
coerente de vozes”, capazes de nos fornecer um certo senso de nitidez das
razões e de sentidos da permanência de tantas crianças e adolescentes nas
redes de exploração sexual.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
Q UANTOS ,
25
ONDE E QUANDO ?
Após ter sistematizado e codificado todo o material de campo,
elaboramos o questionário constituído por 87 perguntas. Nossa equipe foi
formada por uma coordenadora geral, uma coordenadora de campo, dois
coordenadores adjuntos e um total de 12 pesquisadores responsáveis pela
pesquisa de campo. Compomos as equipes em campo sempre formadas
por dupla – um homem e uma mulher. Ocasionalmente, formamos trios
de acordo com a dinâmica de cada território. Todo o processo inicia-se
com a etapa de estudos exploratórios, tendo como finalidade mapear os
pontos de exploração sexual de crianças e adolescentes na cidade de
Fortaleza.
O desafio em utilizar um questionário de coleta de dados quantitativos
formado por 87 perguntas causou grande espanto e surpresa a todos.
Inicialmente, os pesquisadores consideraram que nenhuma menina ou
menino inserido na rede de exploração sexual comercial pararia entre 15
a 20 minutos para respondê-lo. Para esses jovens, “perder” tempo nas
ruas é perder trabalho. Esse questionário tão extenso poderia impossibilitar
a realização da pesquisa.
Optamos em realizar um pré-teste, alocando os pesquisadores em
campo por uma semana para observarmos a performance dos
pesquisadores com o questionário. Após esse período de experimentação,
obtivemos um resultado positivo, pois os pesquisadores retornaram do
campo avaliando que valeria a pena o desafio de utilizar um instrumental
tão extenso, que se mostrou capaz de coletar dados quantitativos, e,
concomitantemente elucidativos da densidade das trajetórias daqueles que
estão envolvidos na rede de exploração sexual comercial. A partir daí, os
pesquisadores caíram em campo: “Se a proposta nesses primeiros dias
éramos identificar possíveis locais de atuação, então estávamos no caminho
certo” (Castelão, Francisco Hélio).
Esse mapeamento tinha como exercício além da coleta de informações,
o esforço dos próprios pesquisadores em assimilar, e, de certo modo, a
impregnar-se dos temas da pesquisa, da sua complexidade, das angústias
que permeiam essas experiências. Foi preciso que alguns pesquisadores
estranhassem o familiar (educadores sociais) e que outros pesquisadores
familiarizassem com o estranho (cientistas sociais).3 De acordo com Gilberto
Velho:
3. Para a nossa pesquisa dos 12 pesquisadores de campo, 9 deles são educadores
sociais, que trabalham com crianças e adolescentes que estão/são moradores de rua
no projeto Ponte de Encontro. Realizamos com todos os pesquisadores uma oficina
GLÓRIA D IÓGENES
26
As possibilidades desse empreendimento ser bem-sucedido
dependem, sem dúvida, das peculiaridades das próprias trajetórias
dos pesquisadores, que poderão estar mais inclinados ou aptos a
trabalhar com maior ou menor grau de proximidade de seu objeto.
Logo, para variar, não há fórmulas nem receitas, e sim tentativas
de armar estratégias e planos de investigação que evitem
esquematismos empobrecedores. Assim, cada pesquisador deve
buscar suas trilhas próprias a partir do repertorio de mapas possíveis
(Velho, 2003: 18).
As primeiras incursões no campo ocorreram nas áreas da Barra do
Ceará, da Praia de Iracema, do Castelão e da Beira-Mar. Durante os meses
de abril e maio, os pesquisadores, divididos em duplas, produziram inúmeros
diários de campo, descrevendo os cenários e os personagens dessa trama
social cuja rede englobava proprietários de estabelecimentos, garçons,
taxistas, turistas, moradores locais, cafetão, cafetina e também as crianças
e adolescentes. Com o término dos diários de campo dessas áreas,
começamos a aplicação dos questionários. Através deles conseguimos obter
mais informações, as quais se somavam e casavam-se com as obtidas pelos
diários de campo. As quantidades de questionários aplicados nas respectivas
áreas são:
•
•
•
•
Barra do Ceará: 68 (13 anulados)
Praia de Iracema: 50 (4 anulados)
Castelão: 11 (1 anulado)
Beira-Mar: 30
O segundo passo dado pela nossa equipe foi relativo às incursões a outros
lugares para observar novos grupos de “argonautas” através de diferentes
tipos de “canoas” (Silva, 2006: 26), ou seja, a utilização de diferentes
estratégias de aproximação. “Pesquisadores e pesquisados enfrentam
momentos de maior empatia, desconfiança, solidariedade e reserva, em
diferentes etapas de uma mesma pesquisa.” (Velho, 2003: 8-9).
etnográfica com a intenção de trabalharmos tanto as temáticas da exploração sexual
como questões metodológicas, principalmente a familiaridade e o exotismo acerca
dos meninos e meninas pesquisados. Como afirma Gilberto Velho: “O que sempre
vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido, e o
que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido”. Cf.
Velho (1981: 126).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
27
Agora, já estávamos na Praia do Futuro, Osório de Paiva, Centro, e
nos Terminais Lagoa, Siqueira e Antônio Bezerra. Devido à disponibilidade
dos pesquisadores e à experiência de aproximação conseguida na primeira
etapa, tivemos uma maior rapidez e um maior fluxo de informações.
Terminamos os diários de campo no dia 26 de julho e nesse mesmo dia
começamos a aplicação dos questionários. As quantidades de questionários
aplicados nas respectivas áreas são:
•
•
•
•
Praia do Futuro: 28 (1 anulado)
Osório de Paiva: 17
Centro: 48
Terminais: 46
Para finalizar todos os pontos sugeridos com o mapeamento, faltavam
para o mês de agosto ainda as áreas da BR-116 e a Av. Expedicionários/
São Cristóvão. A feição desses diários ocorreu concomitante à aplicação
dos questionários. As quantidades de questionários aplicados nas respectivas
áreas são:
• BR-116: 24
• Av. Expedicionários/ São Cristóvão: 6
Após a aplicação de 328 questionários nos 10 pontos estabelecidos e
identificados ao longo da pesquisa, concluímos, no dia 23 de agosto, que o
desafio havia sido superado. Com o encerramento de toda a pesquisa de
campo, iniciamos a realização das histórias de vida. Vale ser destacado que
as indicações dos nomes dos possíveis entrevistados já vinham ocorrendo
ao longo de todo o processo, e que no livro utilizamos apenas a inicial de
cada nome com a finalidade de preservar a identidade dos mesmos. No
total, foram realizadas 36 histórias de vida.
Optamos pela utilização de entrevistas semi-estruturadas para que todos
os pesquisadores tivessem um rumo a seguir, mas também deixamos o
“caminho” livre para quaisquer intervenções, considerando que, em sua
realização, a investigação adquire um sentido interativo. Por isso, o ato de
pesquisar foi identificado como uma instância de acontecimento, no que
se refere a um “encontro etnográfico” (Oliveira, 2000: 24), uma vez que
o entrevistado não é considerado um simples “reservatório de informações”.
Seguindo esse eixo o pesquisador, além de ser tomado como sujeito
participativo no campo da investigação, se converte, ao mesmo tempo,
em sujeito intelectualmente ativo. Nesse esteio de encontros e desencontros
estabelece-se uma “fusão de horizontes”, na qual o pesquisador exerce a
28
GLÓRIA D IÓGENES
habilidade de ouvir “quem vive”, e de se fazer escutar, estabelecendo um
diálogo entre iguais. (Oliveira, 2000: 24)
É em campo que se vivem as emoções, situações inusitadas e eventos
surpreendentes, tornando instigante o trabalho do pesquisador. É lá que
se realiza uma viagem, como sugere Octavio Ianni, e, assim, largamos
nossos hábitos, vícios, convicções e certezas no momento da partida e da
travessia, abrindo-nos cada vez mais para o desconhecido à medida que
mergulhamos nele. Ianni ainda lembra que à medida que viaja o viajante
se desenraiza, se solta e se liberta, atravessando fronteiras e dissolvendo
barreiras, inventando diferenças e imaginando similaridades. Perdemosnos e nos encontramos ao mesmo tempo. Há sempre transfigurações, “de
tal modo que aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa” (Ianni,
2000: 31).
B IBLIOGRAFIA
DIOGENES, Glória. Criança infeliz. Fortaleza, 1998.
Enciclopédia Moderna, nº 10, Sociologia. Âmbar, 2006
GEERTZ, Clifford. O saber local. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
IANNI, Octavio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo. 2ª ed., Brasília/
São Paulo: Paralelo 15/Editora da Unesp, 2000.
PAIS, José Machado. Nos rastros da solidão. Deambulações sociológicas.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de
campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre
religiões afro-brasileiras. São Paulo: Edusp, 2006.
VELHO, Gilberto & KUSCHINIR, Karina (org.). Pesquisas urbanas: desafios
do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades
complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia
das sociedade contemporânea. 5ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1981.
A ELOQÜÊNCIA DOS CONCEITOS, O
SILÊNCIO DE QUEM VIVE E O OLHAR DO
OBSERVADOR: PISTA E SINAIS DO ATO DE
FAZER PROGRAMA
Glória Diógenes1
A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é uma
categoria de identificação de violação de direitos, considerada pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT), a mais degradante e cruel
forma de exploração do trabalho infantil. A Convenção nº 182, sobre a
proibição das piores formas de trabalho infantil e a ação imediata para a
sua eliminação, inclui:
Art 3º – Utilização, demanda e oferta de criança para fins de
prostituição, produção de material pornográfico ou espetáculos
pornográficos.
São diversas, e quase sempre convergentes, as conceituações acerca
do fenômeno da exploração sexual comercial:
A Declaração aprovada durante o primeiro Congresso Mundial
contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes,
Estocolmo 1996, definiu que “a exploração sexual comercial de
crianças é uma violação fundamental dos direitos da criança”. Esta
declaração compreende o abuso sexual,4 um ato cometido por
adultos, combinada a remuneração em espécie ao menino ou
menina e a uma terceira pessoa ou várias. A criança é tratada como
1. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Professora do Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é
presidente da Fundação da Criança e da Família Cidadão.
30
GLÓRIA D IÓGENES
um objeto sexual e uma mercadoria. A exploração sexual comercial
de crianças constitui uma forma de coerção e violência contra
crianças que pode implicar o trabalho forçado e formas
contemporâneas de escravidão (Pesquisa Pestraf, junho de 2002).
Verifica-se, entre os militantes, estudiosos e operadores do Direito no
campo da promoção e defesa de direitos humanos de crianças e
adolescentes, um consenso em torno dos indicadores referentes à dimensão
da violência, coerção e formas mais contemporâneas de escravidão.
Realizando-se um levantamento exaustivo sobre o fenômeno, identifica-se
apenas em algumas outras categorizações a complexificação e
“alargamento” da categoria exploração sexual comercial em torno de
dimensões bem específicas e de natureza sutil:
Exploração sexual comercial define-se como uma violência contra
crianças e adolescentes que se contextualiza em função da cultura
(do uso do corpo), do padrão ético e legal, do trabalho e do
mercado. A exploração sexual de crianças e adolescentes é uma
relação de poder e de sexualidade mercantilizada, que visa a
obtenção de proveitos por adultos, e que causa danos
biopsicosociais aos explorados, que são pessoas em processo de
desenvolvimento. Implica o envolvimento de crianças e
adolescentes em práticas sexuais, coercitivos ou persuasivos, o
que configura uma transgressão legal, e a violação de direitos a
liberdade individuais da população infanto-juvenil (Leal, 1998).
Observa-se que outros elementos comparecem no escopo da
conceituação desenvolvida por Leal: o uso do corpo, o conceito de poder,
a identificação de danos biopsicosociais, a idéia de persuasão em
contraposição ao mero uso da força, ou associando as mesmas situações
mais evidenciadas de coerção.
Obviamente, quanto mais o pesquisador exercitar um olhar das formas
diferenciadas de exploração sexual, através de indicadores que emergem
nas narrativas e práticas no campo dessas dinâmicas, mais densa e
significativa será sua teia de análise e interpretação. Nos vários meses que
seguiram esse esforço de investigação, deparamo-nos com um fenômeno
que assume para os seus sujeitos – crianças e adolescentes – uma face
ambivalente e imprecisa.
Deste modo, vale salientar, em nível de representação, que um número
significativo de crianças e adolescentes não construiu e nem construiria a
idéia: “sou explorado sexualmente”. A pesquisa realizada em 2003, em
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
31
Fortaleza, formula a seguinte questão: sente-se explorada sexualmente?
Obviamente, 60,3% responde que “não”.
A exploração sexual, além de um conceito e uma terminologia
compactuada, relativa a uma situação de violação de direitos de crianças
e adolescentes, representa quase um dialeto a ser decodificado. Quando
indagados, a maior parte dos adolescentes pesquisados desconversa e tece
comentários impessoais e imprecisos sobre o tema. Gomes põe em
evidência essa tensão, ao tomar o corpo e a rua como vitrines das “práticas
de prostituição juvenil”?
Na medida em que as meninas entrevistadas negam a prática da
prostituição como recurso por elas utilizado, fica difícil estabelecer
relações de causalidade para esta prática. Com relação às formas,
em alguns depoimentos, aparecem esboçadas, quase sempre
referidas a uma outra menina, ou conhecida, ou de ouvir falar, o
que parece afastar a possibilidade de que elas sejam vistas como
prostitutas, atribuindo a terceiros tal comportamento (Gomes,
1996: 220).
“Fazer programa”, quando se trata do imaginário de adolescentes, é
uma prática relativa a um “outro” que apenas se espreita ou se antevê.
Desse modo, uma pesquisa acerca da condição de exploração sexual se
movimenta sob olhares de diversos focos. A percepção de quem vê “de
fora”, por identificação e/ou estigma, confere o rótulo, seja de prostituição,
seja de exploração; a percepção de quem vivencia “por dentro”, no geral,
principalmente quando se trata de meninas, inicia-se através de uma
negação, como podemos identificar no diálogo entre a pesquisadoraeducadora e a adolescente da Barra do Ceará:
A – Eu não faço programa, não.
MARCILENE – E quantas vezes tu vem se divertir?
A – Uma semana e às vezes passo 4 dias sem vir.
MARCILENE – E tu costuma ganhar quanto assim?
A – R$30 (A., Barra do Ceará, feminino, 16 anos).
Divertir-se, brincar, curtir e ir para as baladas entremeiam-se na
dinâmica da exploração sexual de tal modo que pouca diferença existe na
percepção de quem vivencia uma e às outras dimensões assinaladas.
Verifica-se que muitos adolescentes, ao serem abordados(as) acerca de
possíveis “programas”, ensejam respostas de natureza diversa, tal qual
podemos identificar nos diários de campo:
32
GLÓRIA D IÓGENES
Não sou garota de programas, sou garota de problemas, que tem
contas de água e luz para pagar (Praia do Futuro, Marcilene).
As meninas, num primeiro momento, negaram fazer programa,
pois, segundo elas, fazer programa é ir para a avenida “batalhar
clientes”, elas vêm para se divertir, beber e dançar, e se no final
do “fica”, se houver sexo, elas cobram. Algumas fazem programas
fixamente com homens de 40 a 45 anos que “bancam” essas
meninas com roupas, sandálias, maquiagem e outros adornos em
troca de sexo; por isso algumas inicialmente negam fazer programas
(Osório de Paiva, Hélio).
A idéia da curtição, da dança, do divertimento em si camufla para quem
observa e para quem vivencia a dinâmica da exploração sexual em muitos
dos territórios pesquisados. Quando não se desce para a pista, expressão
que identifica o ato de expor-se, assumir o lugar da batalha e a abordagem
do cliente, a exploração sexual entrelaça-se a uma cadeia de
acontecimentos e nela pode se tornar um fenômeno praticamente invisível.
Um outro fator que produz uma sombra sob a dinâmica da exploração
sexual é relativo ao item agrado, ficando quase imperceptível para quem
a vivencia pela natureza do acontecimento fugidio e ocasional, facilitado
pela lógica do movimento.
Adolescentes que não se vêem como garotas de programas porque
afirmam: “Fico no pedágio da ponte da Barra do Ceará fazendo
amizades com homens que passam de carro e às vezes eu preciso
só fazer um agradinho de alguns minutos, e em troca ganho
presentes” (Barra do Ceará, Marcilene).
Conheci um garoto de 11 anos, vendedor de adesivos nas praças
e terminais, que é explorado desde os 9 anos de idade. Segundo
ele, não dispensa um convite de homens idosos, cobrando por
programa em torno de R$20, dormindo na casa dos clientes, onde
pratica sexo oral, anal e masturbação (Praça José de Alencar e
Lagoinha, Marcilene).
Fazer agrado por alguns minutos em troca de presentes não tem
caracterizado, para essas meninas e meninos, em geral, uma vivência de
programa e muito menos de exploração sexual. Já o garoto vendedor de
adesivos vive um outro quadro, relativo a uma certa duplicidade de papéis,
utilizando-se dessa venda ocasional com a finalidade de criar uma zona de
ocultação de sua principal atividade. São muitas as nuances que se acabam
produzindo sob o fenômeno, dificuldades até mesmo de identificação, de
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
33
visualização, para fins de pesquisa. Como mobilizar a fala de narradores
acerca das ocorrências de difícil precisão? Até mesmo para quem já
constituiu um conjunto de indicadores, de signos de identificação, e que
ainda tateia indícios através de dimensões díspares e amalgamadas, como
discernir entre divertir-se e ser explorada, fazer agrados sexuais, vender
adesivos e receber presentes?
Além dos dois fatores assinalados como formas de negação – a diversão
e o agrado – um outro assume o foco central da exploração sexual quando
associado a níveis mais drásticos de condição de vida:
Embora uma delas afirmasse categoricamente não fazer mais
programa, ainda assim insistimos para que respondesse. À medida
que respondia, foi ficando óbvio que ainda fazia. O que ocorre é
que suas estratégias de sobrevivência nas ruas levam-nas a passar
algumas semanas sem ir para aquele local. Uma delas contou-nos
que sempre anda com comprimidos entorpecentes para colocar
nas bebidas dos futuros parceiros (Osório de Paiva, Hélio).
Ficar nas ruas, nesse caso, confunde-se com uma diversidade de
estratégias de sobrevivência que tem o fazer programa mais como um “meio
de ludibriar e auferir vantagem” em relação aos possíveis parceiros, do
que propriamente como atividade fim. Um outro fator, acoplado a este
último refere-se à “natureza intermitente dessa atividade”. Ela vai ser
acionada apenas quando a necessidade de alimentação, de compra de
drogas e outros itens torna-se imperiosa.
O fenômeno da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes
nos espaços públicos produz, além de todos os pontos de sombreamento
acima assinalados, situações inesperadas, superpondo, numa só cena
brincadeira e risco, cenas insólitas que unem dimensões, aparentemente,
excludentes:
(...) a outra situação foi estes meninos e meninas brincando de
bobo, onde pegavam a garrafa de cola de um dos companheiros
e a passavam uns para os outros, tendo o dono da garrafa de
recuperá-la para que outro bobo fosse escolhido (Terminal da
Lagoa, Rafael).
Enquanto ele respondia o questionário comigo, seus amigos
ficavam brincando com ele dizendo que a “bicha” era da Europa.
Acredito que as brincadeiras eram devido a forma como ele falava
e se vestia. Quando eu estava perto de concluir o questionário,
começa uma briga entre um jovem travesti e um homem que
GLÓRIA D IÓGENES
34
vigiava uma loja de carros. Fiquei com o questionário na mão, pois
todas correram para ajudar a amiga. Por segurança, entramos no
carro e aguardamos o fim do conflito. Alguns minutos depois o
jovem com quem eu estava conversando voltou e concluímos o
questionário (José Bastos, Rafael).
Brincadeiras de infância e drogas, brincadeiras de deboche e conflitos,
tudo em pleno espaço público. A exploração sexual comercial de crianças
e adolescentes segue esse ritmo: velocidade, a lógica da passagem, a
visibilidade, a ocultação, as misturas. Tudo há um só tempo, sem o espaço
compartimentado, segmentado e disciplinado de atividades e vivências da
esfera privada e íntima, exibidos e, ao mesmo tempo, sombreados em meio
às ruas e ao tráfego.
B IBLIOGRAFIA
GOMES, Romeu. O corpo na rua e o corpo da rua: a prostituição infantil
feminina em questão. São Paulo: Unimarco,1996.
LEAL, Maria Lúcia & LEAL, Maria de Fátima (orgs.). PESTRAF. Pesquisa
sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de
exploração sexual comercial no Brasil. Brasília, jan, 2003.
LEAL, Maria Lúcia. A exploração sexual de meninos e meninas na
América Latina e no Caribe. Relatório final. Brasil, dez, 1998.
PESQUISA PESTRAF sobre exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes no estado do Ceará. Suporte técnico: POMMAR/USAID
– Partners. Nov, 2003.
OS LUGARES, AS PESSOAS E AS COISAS:
DINÂMICAS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL E
LÓGICAS TERRITORIAIS
Glória Diógenes
A cidade é o lugar do olhar, como diz Mássimo Canevacci (1997). Nessa
perspectiva, uma etnografia urbana é resultante de um feixe diversificado
de visões: a do pesquisador, a dos meninos e meninas, a do cafetão/cafetina,
às dos clientes, a da polícia, e a de uma multiplicidade agenciadores e
transeuntes. Para que se torne possível distinguir uma coisa da outra, dentro
da miscelânea de imagens, sinais e mensagens que desfilam sob os nossos
olhares é necessário que a cena de pesquisa seja “habitada” por sujeitos
que não provoquem muitos ruídos e efeitos de descontinuidade nos
territórios de exploração sexual. Para transpor essa zona de sombreamento
selecionamos como pesquisadores educadores sociais de abordagem de rua,
conforme foi mencionado no capítulo metodológico.
De acordo com Silva, dois exercícios podem caracterizar o que
denominamos aqui de território. O primeiro deles é o ato de dominar, que
significa assumi-lo numa dimensão de linguagem, de reconhecimento de
sinais e numa dimensão imaginária; ao passo que o segundo exercício, o
de percorrer, refere-se ao ato de pisar mesmo, de marcá-lo de uma ou de
outra forma, ou seja, dar-lhe uma entidade física (2001: 16). Isso significa
dizer que o território é muito mais que uma dimensão meramente
geográfica. Por isso mesmo, os vários territórios de exploração sexual
produzem-se segundo a lógica dos seus atores e as práticas e vivências
efetuadas no espaço. Retomaremos a conceituação de território utilizada
na pesquisa “Criança (in)feliz”, realizada em 1998 em Fortaleza:
Os territórios são campos concretos/simbólicos produtores de
sentido e de práticas específicas da prostituição. O território, ao
36
GLÓRIA D IÓGENES
mesmo tempo em que se reporta a dimensões concretas, como o
corpo e os espaços físicos espaciais, ultrapassa-os, agregando
dimensões relativas aos conjuntos de relações, aos aspectos
culturais e simbólicos, e aos papéis desempenhados pelos atores
específicos. O território é um mapa cultural. Tendo em vista a
diversificação de experiências da prostituição a partir de contextos
territoriais diversos, o mapeamento relativo a cada área possibilitou
uma dupla identificação, qual seja: do espaço como locus produtor
de redes de relações sociais (sociabilidade) e do conjunto de
significantes produzidos nesses campos de ação (Diógenes, p. 18).
Cada espaço observado estrutura-se sob uma lógica particular e
engendra relações e práticas diferenciadas de espaço. Por isso, “uma das
maiores dificuldades para a comunidade das sociedades complexas
contemporâneas é a de localizar um conjunto de símbolos legitimadores
de uma ordem social” (Velho, 1994: 83). Que símbolos conformam as redes
de exploração sexual de cada ponto observado? Quais os sinais que cada
território emite e é capaz de ser decodificado pelos potenciais clientes?
Como poderemos identificar nos vários diários de campo, a vivência da
exploração sexual comercial, dependendo das características do espaço,
produz estratégias bem diferenciadas de exploração e institui atores com
características também diversificadas.
AS
AVENIDAS E OS LUGARES DE INTENSIDADE DE TRÁFEGO
A Avenida Osório de Paiva pode ser dividida em grupos: o grupo
de travestis, onde a exploração é tradicional, com cafetão e
“ponto”; um outro grupo independente, de meninas que tem
“clientes fixos” e que freqüentam as churrascarias e clubes com a
intenção de fechar programas; e um outro grupo que vem por
diversão, agitação, formado por meninas que geralmente chegam
bêbadas e às vezes fazem programa. Tenho a hipótese que esse
grupo não vem exclusivamente fazer programa, o programa faz
parte da noitada (Osório de Paiva, Emanuela).
São, no geral, os travestis que mais se expõem e ocupam lugares ao
longo das vias públicas. Há um processo de disciplinarização e normatização
no uso do espaço urbano para fins de exploração sexual de crianças e
adolescentes em Fortaleza: meninas e travestis, por exemplo, quase nunca
ocupam o mesmo espaço.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
37
G – Mulher, tem o canto das mulher e tem os canto dos travesti,
tem os canto dos travesti e das mulher. Aí num canto fica duas, lá
pra frente fica mais duas. Nunca fica uma. Tem algumas mulher
que nós deixa ficar do nosso lado, quando é de madrugada, mas
quando é de 6 hora até as 12 hora é muito travesti na avenida”
(G., Castelão, masculino, 17 anos).
Isso significa dizer que o cliente que se movimenta pela cidade sabe
exatamente onde encontrar o que busca, e não precisa de muito esforço e
exposição pública para efetuar o programa. Os lugares de fluxo funcionam
como ampliadas vitrines de corpos a céu aberto. Além dos clientes, qualquer
aproximação pode parecer suspeita. Até mesmo porque, como veremos
a seguir, no tópico referente aos “sentimentos capitais”, quando se trata
de travestis os passantes, no geral, esboçam reações agressivas e
reprovativas.
Durante essa nossa observação, a maioria dos travestis em cada
esquina agiam com comportamentos bem vulgares, exibindo seus
corpos, abrindo a blusa e mostrando os seios; outros, de costas,
agachados, com roupas levantadas, mostrando seus bumbuns para
os carros que passavam por ali; outros fazendo sinais com as mãos,
chamando os carros e soltando beijos. O fluxo de carros que ali
passa é muito grande, assim como há também fluxo de pessoas a
pé, e durante essa nossa observação vimos que alguns carros que
passam pelos travestis, param no encostamento de frente para
eles, e, insultando e gritando com eles, xingando e dizendo nomes
e pornografias pesadas, alguns travestis levam na brincadeira e
outros até gostam; porém, alguns chegam a bater boca e discutir
com essas pessoas. A maioria delas são mulheres e homens jovens.
Após essa observação descemos da Kombi e fomos andando a pé
para que os travestis nos observassem. Andamos por toda avenida
e tínhamos na bolsa algumas camisinhas, e usamos para nos
aproximarmos deles, e assim fizemos: nos dividimos por dupla e
nos apresentamos para um grupo que estava numa esquina que
vendia churrascos (Av. José Bastos, Sandra Luna).
Ficar na pista significa estar exposto, usar o corpo como outdoor de
uma prática ao mesmo tempo ilícita e superenunciada. Um dispositivo que
utiliza e promove outros usos do espaço público. A pergunta que deve ser
formulada para que se saiba da mobilidade do programa no mapa da cidade
38
GLÓRIA D IÓGENES
é a seguinte: “Hoje tu tá fazendo programa só aqui mesmo ou tu está
descendo pra outros locais?”. Essa pergunta foi formulada pela
pesquisadora Nelydélia, para uma adolescente do Castelão, e a resposta
foi a seguinte: “Não. Tem vez que eu desço na Beira mar, na José Bastos,
no Centro, mas por enquanto eu estou só aqui”.
Quando a (o) adolescente sai dos espaços de divertimento (bares,
churrascarias, boites, dentre outros) e ocupa um ponto na via pública
significa dizer que ele desceu. E descer representa um momento de se
assumir, diante de si mesmo e dos demais, que se faz programa. Uma
significativa metáfora que assinala a mudança da condição de ambigüidade,
fazer e não fazer programa, de um certo cuidado na tentativa de
ocultamento para outro, a descida em direção a tudo que implica estar
visível e exposto. Verifica-se que na mesma avenida, a Osório de Paiva, é
possível serem identificados três formas diferenciadas de exploração sexual,
como já foi mencionado acima. Quando se trata da exploração sexual do
gênero feminino, a sua dinâmica assume contornos bem específicos na
Avenida Osório de Paiva:
De fato, os programas parecem obedecer a uma outra lógica. Uma
lógica da discrição para um observador neófito naquele lugar. Ele
ocorre mais nas churrascarias e em frente às casas de show. Como
o movimento de pessoas é bastante intenso, e com um público
de diversas idades, fica, a princípio, difícil de identificar “atitudes
suspeitas”. Ainda assim, depois de algum tempo observando,
notamos que havia duas garotas bem arrumadas nas imediações
da churrascaria Skina Grill. Quando indagadas sobre a presença
dessas meninas naquele lugar, ou se elas conheciam alguma, foram
prontamente respondendo que não sabiam e nem conheciam
ninguém. E mais: acrescentaram que não estavam ali fazendo
programa, mas esperando um amigo chegar para entrarem no
Leblon Show. Embora não tivéssemos feito essa pergunta, isso
nos pareceu bastante significativo (Osório de Paiva, Hélio).
Descer significa a conquista de um lugar, a construção de um processo
de legitimação entre as outras pessoas que freqüentam o mesmo espaço,
e, alguns casos, a “cessão” de espaço da “cafetina de rua”. No caso, como
afirma o próprio pesquisador, nos bares e casas de forró, churrascarias e
boates que se localizam na “Osório”, os programas parecem obedecer a
uma outra lógica, uma lógica da discrição e de um certo mimetismo em
relação a tantas outras atividades locais e a própria diversidade do público
que freqüenta esses espaços.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
39
E – Aquele espaço ali é dela. Ela chegou primeiro, então é sinal
de que você tá tomando os homem dela. Os homem ali é dela.
Os home daquela pista pertence a elas. É desse jeito. A não ser
que você já tenha amigas lá, aí elas liberam pra você ficar. Por
exemplo: se você já tem uma amiga, aí ela libera pra você ficar,
diz que você é uma prima, uma irmã, qualquer coisa, aí pronto,
você tá liberada pra ficar ali (E., Beira-mar/Terminal Lagoa,
feminino, 15 anos).
A rua não é um lugar de todos e todas, é um espaço compartimentado,
delimitado pelos pontos em que se percorre, pelos usos repetitivos desses
espaços, e por delimitações de domínios compactuados pelos que nele
atuam e vivenciam experiências locais.
Mas o ponto alto foi mesmo a José Bastos, com toda a sua energia,
violência e estardalhaço. Uma avenida central que centraliza uma
rede de exploração à moda antiga: um cafetão que coordena uma
casa de subjugados, reféns da baixa auto-estima e da liberdade
vigiada (José Bastos, Helena Damasceno).
A rua, principalmente quando se trata da exploração sexual comercial
de travestis, é um espaço pontilhado, segmentado e classificado por malhas
e atos de poder. Reportamo-nos ao que Foucault identificou como práticas
e relações de poder: “O interessante da análise é justamente que os poderes
não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social.
Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos...” (1984: xiv).
Nesse ângulo de visão, um cafetão, a cara de horror e sedução dos que
por ali trafegam, os clientes, a linguagem dos sinais que codificam e
classificam os usos do lugar, combinados ao “mau-jeito” das instituições em
lidarem com esse segmento, compõem uma teia de micropoderes,
sedimentadas e delimitadas por usos e práticas.
Quando se fala em delimitação, aponta-se, segundo Silva (2001: 19),
para um aspecto não só indicativo do uso como também de um aspecto
cultural: “O uso social marca as margens dentro das quais os usuários
“familiarizados” se auto-reconhecem, e fora das quais se localiza o
estrangeiro, ou, em outras palavras, aquele que não pertence ao território”.
Reconhecer os espaços delimitados através dos usos que se faz da cidade
e dos locais de fluxo possibilita uma intervenção qualificada e estratégica
por parte das instituições que atuam na área, assim como permite aos
educadores a percepção da necessidade de táticas diversas de abordagem
desse segmento. Desse modo, intervir, abordar, transcende o contato entre
40
GLÓRIA D IÓGENES
o sujeito-educador e o sujeito que teve e tem seus direitos violados; o espaço
territorializado e suas redes de micropoderes revelam mais, e tanto, que o
discurso dos sujeitos finalmente possibilita e permite ao educador realizar
uma intervenção mais adequada e compactuada aos ritmos locais.
A S PRAÇAS , AS BARRACAS , OS POSTOS : CAMINHOS DE
PASSAGEM
Quando a exploração sexual adentra espaços mais fechados, ou menos
expostos ao fluxo, as dinâmicas e os atores envolvidos demandam uma
investigação mais presencial, com um tempo mais ampliado de observação
e registro. Torna-se necessário que o pesquisador adentre as redes sociais
que produzem e “acolhem” todos os que formam e dão corpo às redes de
exploração sexual. Caso o pesquisador tenha como tarefa apenas entrevistar
pontualmente os atores envolvidos nas redes de exploração sexual,
certamente poderá estar sendo fisgado por estereótipos.
Dançar com turistas, ensaiar performances cujo signo de atração seja
o “bumbum” são indicadores insuficientes para que seja caracterizada uma
situação de exploração. De outro modo, quando a cena narrada a seguir
explicita o momento em que “o senhor” passou a acariciar seus “seios e
bunda”, é que provavelmente passa a se configurar uma relação de violência
sexual. De modo geral, nesses locais, todos os que estão presentes ensaiam
um uso compactuado do espaço. A superexposição do espaço público, no
caso das vias de intensidade de fluxo, cede lugar à banalização e a uma
certa naturalização do uso excessivo e erotizado do corpo de crianças
atravessando uma quase adolescência:
Aos poucos pude observar que as meninas dançavam com alguns
turistas, e se encaixavam umas nas outras, pegavam nas bundas
umas das outras, até que um dos gringos perdeu meio que a
vergonha e partiu para dançar com uma delas, mas só depois de
muita insistência da garota que não parava de paquerar. A mesma
cena se seguiu: o senhor passou a acariciar seus seios, bunda e
outras partes, e passaram a se agitar mais freneticamente. O
homem estava completamente embriagado e estava acompanhado
de mais três amigos, enquanto que a menina que também se juntara
à mesa estava em companhia de quatro amigas (Praia do Futuro,
Alberto).
A impressão que se tem na leitura completa dos diários de campo e
entrevistas aprofundadas é que adentramos outras dobras da existência,
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
41
lugares onde a lei, a noção de preservação, de limites, os caminhos do
atendimento institucional parecem não penetrar. São recorrentes os
diálogos que entrelaçam lugares e práticas compactuadas de contravenção
e violação de direitos. Observa-se, a seguir, que as garotas que adentram
pela primeira vez o local, lá chegam ainda balizadas por parâmetros do
mundo “de fora”, âmbito de normas e regras de conduta. De chofre, ao
indagar a pesquisadora acerca de sua condição de menor de idade, escuta
da menina uma resposta que sinaliza a “porta ampla” que ali se estabelece
para qualquer tipo de permissividade: “(...) apontando para a menorzinha:
‘Ela tem 12’”.
EU – Ei, mulher, me diga uma coisa? Será que vai dar problema a
gente tá aqui? É porque nós somos de menor....
GAROTA – Não... Por quê? Você tem quantos anos?
EU – Eu tenho 16 e minha amiga 17
GAROTA – Ah... Não tem problema não, eu tenho 14.
EU – E ela [apontando para a menorzinha que estava no espelho]?
Tem quantos anos?.
GAROTA – Ela tem 12.
E. mudou a conversa e perguntou se a noite ali hoje seria boa. Ela
disse que sim, mas que a noite só fica boa depois das duas da
madrugada, porque estão acontecendo as festas de Maracanaú, e
quando acaba lá é que o pessoal vai para a Osório. O final da
Osório de Paiva é limítrofe com o município de Maracanaú (Av.
Osório de Paiva/ Leblon Show, Nelydelia).
Certamente, a freqüência regular desse tipo de local produz uma
banalização compactuada da situação experimentada no primeiro
momento: “Será que vai dar problema a gente ta aqui? É porque nós somos
de menor...”. A iniciação à exploração sexual, no geral, se mistura às redes
de sociabilidades locais. Tudo se principia no momento do relato, no
triângulo da José Bastos, com um agenciamento adulto. A iniciação na
droga, a agressão familiar considerada não-legítima (um tio), o abrigo, a
perda da virgindade com onze anos, o Terminal da Lagoa, o início do fazer
programa até a perda total de vínculo com a família e as instituições de
retaguarda. Vejamos:
O triângulo é na José Bastos, lá embaixo, perto do posto
Guararapes. Eu moro perto do posto Guararapes, na José Bastos.
Aí, quando eu tinha 9 anos, eu comecei a andar no triângulo. Eu
via os outros usando droga, aí eu peguei e fui querer usar, aí eu
42
GLÓRIA D IÓGENES
comecei a usar droga. Eu via os outros fumando pedra, fumando
maconha, essas coisa assim. Aí eu pensei se eu vou entrar nessa
vida ou não vou. Aí eu peguei e disse: não, eu vou pra casa. Eu fui
pra casa. Porque o marido de uma mulher lá, que eu andava, ela
fazia programa. Aí eu comecei a fazer programa com ela. Todo
dia ela dizia: “Vambora H., fazer programa”. Todo dia eu chegava
às 12 hora, 2 hora em casa. Aí a minha mãe não gostava. O meu
tio começou a me bater, começou a me bater, começou a me bater,
começou a me bater... Aí eu, aí é, pois, quer saber de uma coisa?
Eu vou andar no triângulo. Aí quando eu tinha 10 anos a minha
mãe me botou no abrigo. Num abrigo, não, no Conselho Tutelar.
Ela falou com o vereador de lá e o vereador me botou lá na Casa
da Tia, lá na Casa do Menor. Aí quando eu completei 11 anos eu
perdi minha virgindade, com 11 anos. Aí eu comecei a se prostituir,
comecei a fazer programa... Eu fiz um programa uma vez... Eu
conheço o R., tia. Eu conheci um monte de gente homossexual.
Aí eu comecei a andar por ali e ver os outro fazendo programas.
Aí eu pensei: quer saber de uma coisa? estou sem nada, sem
dinheiro, o jeito que tem é fazer programa. Aí eu comecei a fazer
o programa com os outro. Eu fazia programa só pra comprar
bagulho, bagulho é bombom, chiclete. Eu fazia tudo por R$3, fazia
por R$2, quando eu era pequeno, eu tinha uns 10 anos. Eu fazia
só pra comprar bombom, chocolate, essas coisas... Eu comecei a
andar na rua, aí quando eu tinha 11 anod eu vim pra cá, pro
Terminal da Lagoa, e comecei a fazer programa com as menina,
e até hoje. Aí, quando eu tinha 12 anos, eu comecei a pegar cara
grande. Quando eu tinha 11 anos eu só pegava menino pequeno.
Quando eu tinha 12 anos eu comecei a pegar cara grande, fazer
programa com gente grande, alto. Eu tinha 12 anos. Eu perdi a
minha virgindade com 13 anos. Eu fiquei naquele babado lá, né,
foi com 13 anos (M., Av. Expedicionários, masculino, 15 anos).
No início, os lugares de violência sexual estão associados aos locais de
perambulação de crianças e adolescentes próximos de suas residências.
Na medida em que esses sujeitos têm a rua como lugar referencial de
sociabilidade, vão se afastando também geograficamente dos bairros de
origem e vão aventurando-se para locais mais identificados pela exploração
sexual em seu sentido mais explícito e menos conectados e referenciados
ao vetor moradia e ao campo da família.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
O S T ERMINAIS :
43
LUGARES DE TODOS E DE NINGUÉM
A narrativa de Helena, educadora social de rua, psicóloga movida pela
condição de etnógrafa, nos possibilita identificar, com precisão, as nuances
da dinâmica de exploração sexual de crianças e adolescentes que acontece
nos Terminais de Fortaleza:
Verificamos que nas duas lateralidades do Terminal existem
concentrações diferentes de protagonistas da rede de exploração:
de um lado adolescentes e jovens fazem ponto, digamos, de forma
mais mercantil e “livre” do cabresto de outrem. Não há a
necessidade de um interlocutor, da figura do cafetão, da dona do
bar, por exemplo, a intermediar essa relação. Elas se expõem e
pronto. Apesar de ser essa a região onde o foco da rede de
exploração é mais mascarado na região comercial, as meninas
demonstram maior liberdade de negociação do próprio produto
(corpo). Elas sentam-se nos bares depois de já terem entrado em
contato com os possíveis clientes.
Voltando pra casa, percebi, ao lado do posto de gasolina localizado
na Avenida Mister Hall, já próximo ao North Shopping, marcante
presença de adolescentes e jovens em situação de exploração sexual
comercial. Seis jovens que fazem ponto na esquina. À sua
esquerda, uma churrascaria, e, mais atrás, uma espécie de depósito,
onde muitos caminhoneiros param, abastecem seus carros e
descansam. A concentração de carros, homens a pé e mulheres
se oferecendo é intensa.
A rede aqui se compõe por caminhoneiros, meninas expostas na
calçada do posto de gasolina, outras mais sentadas na churrascaria
ao lado, estas com seus celulares a postos. De dentro do ônibus,
o trocador deste, Fernando, me disse que aquele local é um forte
ponto de exploração. Segundo o mesmo, as adolescentes da
churrascaria vêm de Caucaia, geralmente chegam cedo, se sentam
e esperam os clientes quem vêm à churrascaria. Fato relevante é
que, ainda segundo Fernando, os garçons é que intermedeiam a
negociação. Inquiri acerca da veracidade e fonte daquelas
informações. Ele me respondeu que sua irmã “trabalha” ali.
Identifiquei-me, então, e questionei-o sobre um possível contato
posterior com ele, ou com sua irmã. Ele permaneceu em silêncio,
afirmando que, caso nos encontrássemos novamente, o destino
44
GLÓRIA D IÓGENES
me responderia positivamente (Terminal Antonio Bezerra, Helena
Damasceno).
Conclui-se que nos Terminais as meninas movimentam-se sem
intermediações fechadas e exclusivas. Seguem o mesmo movimento de ida
e vinda, sem um lugar fixo de permanência, tais quais os circuitos ritualizados
dos transportes coletivos. Circulam nos bares e boates que tangenciam os
espaços dos Terminais; aliam-se e utilizam-se dos personagens que ocupam
e trabalham nesses locais.
Fiquei um tempo observando aquela dinâmica, semelhante à da
Barra, mas com sutis diferenças. A área onde se localiza o Terminal
é caracterizada por uma concentração comercial distinta à do
momento de observação na Barra. Aqui os pontos comerciais são
muitos: sucatas, oficinas mecânicas, indústria, farmácia, locadora,
etc. O grupo comercial é mais diverso e isso dá mais camuflagem
à exploração sexual comercial de adolescentes (Terminal Antônio
Bezerra, Helena Damasceno).
Observa-se a mudança de atitude das adolescentes quando a situação
desloca-se do Terminal para um lugar de tráfego e de passagem rápida
de potenciais clientes. Elas se exibem de modo bem mais intenso, têm uma
presença marcante e se oferecem de forma ostensiva.
Fora do Terminal há grande concentração de barzinhos, taxistas
e moto-taxistas, bem como há um motel ao lado. Algumas garotas
se aproximam e conversam com desenvoltura com os taxistas.
Algumas vêm acompanhadas de alguns homens, ou do bar, ou do
motel, entram nos táxis e saem. Há, notadamente, um acordo de
convivência ali. Elas ganham os clientes, eles ganham a corrida,
os donos dos estabelecimentos lucram, todo mundo ganha, todo
mundo fica satisfeito (Terminal Siqueira, Helena Damasceno).
A exploração sexual nos terminais não acontece tendo como exclusivo
ponto de apoio o espaço público, como no caso da pista. Há uma
confluência de equipamentos e serviços que compõem a rede: garçons,
taxistas, barzinhos, motéis, dentre outros. Nesse caso, é necessário que a
observação do pesquisador realize um trajeto similar àquele que as meninas
efetuam em suas práticas: desloque-se do Terminal e penetre nos espaços
do entorno, tal qual o realizado pela pesquisadora Sandra Luna:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
45
Todo o ambiente é muito pesado, com músicas altas e luzes de
cor vermelhas e azul também. Rola muita seresta por toda a noite.
Por volta da 23h45 tinha bastante gente. Por coincidência, havia
um amigo de Jocélio, que joga bola com ele e sentou na nossa
mesa, e perguntou o que estávamos fazendo ali, e expliquei que
estava fazendo uma pesquisa para a universidade, sobre
“comportamentos”, pois iria me formar e ele conversou bastante,
e disse que ali encontra-se de tudo, como mulheres casadas fazendo
programa porque precisa sustentar a família, outras garotas novas
de idade de 16 a 18 que chegam por volta da meia noite, pois já
tem clientes para elas, só que, como são de menores, elas ficam
dentro da boate, pois há quartos nos fundos da boate e todo aquele
movimento vai até o dia amanhecer (Terminal Antonio Bezerra/
Boate Bumbum, Sandra Luna).
A sensação de liberdade a que se refere a pesquisadora Helena, logo
no início desse tópico, assinala o processo de “adultização” que marca a
vida da maioria de crianças e adolescentes que vivem em torno dos
Terminais. No geral, o uso de drogas, um processo intensivo de nãopreservação do corpo, de uma quase degradação dele, o rompimento mais
drástico de vínculos afetivos, torna o espaço do terminal um “lugar de
ninguém”, onde todos se encontram e nada se fixa e permanece. Um relato
dramático, de uma tentativa de suicídio de uma adolescente que freqüenta
o Terminal da Lagoa, nos coloca diante do desalento dessas meninas e
meninos constantemente violados, de forma associada, em várias
dimensões de direitos.
O caso de N. atravessou a vida de vários educadores sociais e
pesquisadores que fizeram parte dessa investigação, e o relato abaixo é
relativo a E., irmã de N. As duas são filhas da mesma mãe, cujo padrasto
é soropositivo. Passaram muitas vezes por abrigos. Há relatos de cenas
cruéis de violência doméstica, abuso sexual e situação de rua até o
rompimento total do vínculo com a mãe. Os trechos da narração, a seguir,
nos colocam diante do árido e “livre” lugar representado pelos Terminais,
no caso, o da Lagoa.
Eu não vou muito em casa, não, só vou de vez em quando. Eu
não falo muito com meu padrasto, eu não tenho muito contato
com os meus irmãos. Até porque, como a gente não mora com
ela, ela nem quer que a gente fale muito com os meninos, porque
ela acha que a gente vai levar os meninos pra rua. Então, bem
dizer eu não tenho muito contato com a minha mãe, nem eu e
46
GLÓRIA D IÓGENES
nem a minha irmã. A minha irmã nem fala muito com ela. A N.
não tem muito contato com ela. (...)
Eu tava lá na Lagoa e fui na casa da minha irmã buscar um
walkman, aí a minha mãe chegou. O meu namorado ligou lá pro
Lagoa, o meu ex-namorado, e disse assim: “Olha, E., a tua mãe
me disse que tu tá na rua?”. Eu disse: O quê? O Marquinhos foi lá
pra dentro do terminal. As meninas estavam tudo lá na rua bebendo,
aí eu comecei a cheirar cola, cheirei bem muita cola e depois
comecei a beber, beber, beber, beber. Menina, eu fiquei beba que
caí da escada assim, bumba, bumba, pá. As meninas disseram: “Tu
tá beba, doida!”. Aí eu cheirei solvente que não conseguia nem
ficar em pé. Eu só sei que os meninos contou que eu comecei a
bater em todo mundo lá, que eu tava se garantido nas peia, comecei
a dar em todo mundo. Os meninos tavam com medo de me segurar.
A minha irmã disse que eu chorei, falei da minha família, falei que
eu odiava a minha mãe, que eu não gostava dela, falei um bocado
de coisa. Aí depois sabe pra onde é que eu fui me matar? Lá na
Lagoa, eu entrei na Lagoa e comecei a nadar, nadar. O homem
jogou o gelo em cima de mim e falou palavrão, eu comecei a nadar
e quando tava lá no fundo... A minha irmã disse que me tiraram
bem umas três vez, a N. E eu fui de novo. Eu quase morria com o
homem que me tirou. Eu queria me matar. A minha irmã disse que
eu queria me matar. É disse que eu desmaiei um bocado de vez, e
que os homem queria tocar no meu corpo, eu desmaiada e os
homem querendo tocar no meu corpo, e a minha irmã não deixava.
Aí o homem foi e mergulhou, me tirou de lá, pegou o que me
tirou, me levou pra o hospital já desmaiada. Porque eu tava no
fundo, e quando eu fui afundando ele viu e disse: “Vai morrer aquela
menina ali, olha”. Porque o meu corpo tava leve, eu tava bêba.
“Ela vai morrer se ninguém for tirar ela de lá”. E eu subindo em
cima da cabeça do homem assim, fazendo assim e dizendo que
era o Jociano, porque pra mim era o Jociano. Ela disse que eu
tava falando o nome do Jociano, eu tava vendo o Jociano. Ela
disse: “E., tu pensou que quem tava te salvando era o Jociano e
tu ia matando o homem...”. O homem pegou e me levou pra o
hospital. A ambulância foi me pegar lá e me levou pra o hospital.
Amarraram isso aqui meu, amarraram as perna, amarraram a
barriga, amarraram tudo como se eu tivesse doida. Deram um bocado
de sossega leão aqui, deram um bocado de calmante e eu nada de
me acalmar. Quando foi depois os amarelinho foi me buscar. Eu
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
47
saí do hospital era uma e pouco, por aí, e eu fui de tarde. Eu cheguei
lá no Lagoa e a tia disse: “Vambora, E. Pra o Viva Gente”. Por
que eu tava tonta, parece que me deram buscopan, um remédio aí
pra dormir, e eu não dormi, eu tava tão doida, tão doida mesmo
que eu não dormi. Elas disseram assim: “Vamos, E. ,pra o Viva
Gente senão tu vai querer fazer suicídio de novo” (E., Beira-mar/
Terminal Lagoa, feminino, 15 anos).
O Terminal é um lugar de risco, exploração e solidão. Um lugar onde
as relações de vizinhança, de uma formação de redes familiares cedem
espaço a uma esfera que apenas circulam transportes, pessoas que lá não
permanecem e mercadorias. Tudo ali tem um preço e assume uma
condição transitória e fugidia. E. sabe disso, sabe dela também. E sabe do
desgosto que carrega e afoga parte de sua existência:
O motivo era a minha mãe. O motivo era que eu tava com desgosto
da vida, entendeu? Eu passei dois dias com desgosto da vida;
desgosto de ter que se vender pra conseguir comida; desgosto de
ter que ver a Nágila se acabando nas drogas por causa da minha
mãe; desgosto de ver a minha mãe ir lá no Lagoa falar com a gente
e não fazer nada, nem chorar ela chorava quando ela ia lá ver a
gente; desgosto de querer morar com ela e ela não querer... (E.,
Beira-mar/ Terminal Lagoa, feminino, 15 anos).
Os lugares e suas histórias. A exploração sexual comercial é uma vivência
fundida a uma corrente de outras situações de violação, entremeada por
medos, privação e violências de toda ordem. No geral, em relatórios de
pesquisa, opta-se por recortar o fato delimitado da exploração, e seus
atores que parecem comparecer e produzir a cena em si.
No caso de E. percebemos que a exploração é a cena, talvez, menos
dolorosa, menos aviltante da sua história de vida. A ida para o Terminal,
como último destino de sua trajetória, coincide com a sua percepção da
impossibilidade de retorno à companhia da mãe. A Lagoa, a visão do
padrasto projetada no homem que a retirou das águas, o abrigo como forma
de evitar que E. “vá querer fazer suicídio de novo”.
Desse modo, para quem fica e mora nos Terminais, fazer programa é
parte de uma estratégia de sobrevivência:
MARCILENE – E tu tem vontade de deixar, de nunca mais fazer
programa?
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GLÓRIA D IÓGENES
E. – Com certeza. Vai fazer um mês, um mês não, vai fazer duas
semanas que eu não faço, que eu não tiro mais foto, não deixou
um homem mais tocar no meu corpo, não deixo um homem mais
me ver nua, essas coisas assim. Mas tem hora que você tá com
uma fome tão grande, que você tá na rua e sente uma fome tão
grande, que você pode amar quem for, namorado, isso e aquilo
outro. Mas é a fome que fala mais alto. Você sente vontade de ir
lá e fazer. Ou você mesmo leva o cara pra o cheiro do queijo e
apenas rouba. Isso é uma coisa que você pode se compricar, porque
ele pode lhe ver. É como uma vez que um velho queria ficar comigo,
aí eu fui ficar com ele, na hora que ele botou eu disse: “Bota logo
o dinheiro aqui na minha mão!”. Ele botou e eu saí correndo e
não fiquei com ele, fui me embora. Então isso é uma coisa que
acaba prejudicando a gente, porque a gente pode se dar mal
depois... (E., Beira-mar/ Terminal Lagoa, feminino, 15 anos).
E. sabe que fazer programa é apenas uma situação que permite e
propicia uma sorte de artimanhas e golpes. A exploração representa um
dos nós que arremata uma bordadura de privações, dores e angústias. Os
lugares que as crianças e adolescentes exploradas ocupam na cidade, os
percursos, são mapas ambulantes das histórias que se iniciam em casa e
em espaços contíguos, próximos, ou, ainda, no próprio bairro. Certamente,
a tarefa bem mais complexa e desafiante, no sentido de tentar reverter e
reduzir os danos é a de construir uma rede eficaz de direitos para E. e tantas
outras crianças e adolescentes. Inicia-se através da percepção nítida dos
contextos em que elas se inserem, suas tramas cotidianas, seus lances de
sorte e precipitações de vida e morte em pontos significativos da cidade. A
situação de exploração comercial de meninas e meninos exige um olhar
extensivo para além dos seus corpos físicos, agregando-se a eles percursos,
grupos de relação e lugares de atuação, ampliando o que se identifica
comumente como “sujeito”. Aliando a leitura de dados quantitativos e
qualitativos podemos tatear essa complexa rede com maior precisão.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
49
B IBLIOGRAFIA
CANEVACCI, Mássimo. A cidade polifônica. São Paulo: Studio Nobel,
1997.
DIÓGENES, Glória. Criança infeliz. Fortaleza, 1998.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
SILVA, Armando. Imaginários urbanos. São Paulo/Bogotá: Perspectiva/
Col. Convenio Andres Bello, 2001.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades
complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
RETRATO EM BRANCO E PRETO: UMA
FOTOGRAFIA DOS NARRADORES
PESQUISADOS
Helena Damasceno1
Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo.
Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos.
Sigmund Freud (Vol. XXIII: 1975)
Quando ouvimos falar em “exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes”, de imediato vem-nos à cabeça uma série de imagens que
circulam e produzem um senso comum acerca dessa questão. Esse cenário
é fotografado por nossos valores e subjetividade e legitimado através das
normas e práticas de controle social. Somos comumente atravessados por
estereótipos que, de maneira paradoxal, em grande maioria são esquecidos
e ou discriminados no campo dos direitos fundamentais e no âmbito de
cidadania de natureza mais concreta.
Vestimos um olhar diante do objeto de contemplação e o cristalizamos
num roteiro de definições que valoram sociabilidades. O juízo de valor e o
senso comum sancionam incondicionalmente quem é inocente ou
merecedor de culpa e repulsa, ou mesmo quem merece o cárcere ou a
liberdade dessa cadeia ilógica que oprime e comercializa sonhos e indivíduos.
Crianças e adolescentes em situação de exploração sexual compõem
esse imaginário social com referentes pontuados por atitudes de desdém e
ou piedade. Ainda não fomos capazes de reconhecer e intermediar
diferenciações para irmos além no campo das intervenções sociais que
circundam esse foco de violação.
1. Educadora social da Fundação da Criança e da Família Cidadã. Estudante de Psicologia
da Faculdade de Tecnologia Intensiva (Fateci). Escritora e poeta.
52
GLÓRIA D IÓGENES
Pois bem: as crianças e adolescentes representados nas páginas desse
livro não são, simplesmente, meros transgressores sociais ou vítimas em
potencial de violências muitas durante a vida. Mais que isso, os narradores
pesquisados são heróis lúdicos que brincam entre os riscos do ato de fazer
programa e a dor da violência iminente. Eles não perderam por completo
a fantasia e a ludicidade. Apenas a recalcaram nalguma gaveta imaginária
ante a emergência e os conflitos cotidianos, e, quando podem, mesclam
os riscos do dia-a-dia das ruas a formas diversas do brincar e do rir.
Dos narradores pesquisados as idades variam entre 12 e 18 anos. Suas
histórias têm semelhanças e peculiaridades muitas; os sentimentos se
complementam se contrapõem e as experiências se identificam. Aqui estão
meninas e meninos que coabitam diariamente a exploração sexual
comercial. Alguns travestidos, outros de face limpa, porém todos, sem
exceção, sujeitos de direitos acolhidos nesse espaço e legitimados pela lente
paradoxal da profundidade, da delicadeza e acidez de seus relatos e
vivências.
Na minha atuação como educadora social passei por muitas
experiências.2 Algumas dolorosas e outras de grande êxito. Contudo, sem
dúvida alguma, todas as vivências me levaram a tecer e solidificar uma
atitude de comprometimento profissional e de envolvimento social.
As lutas cotidianas são válidas, especialmente, quando falamos de seres
humanos ainda em formação. Diante das crianças e adolescentes, no
exercício da minha função de educadora social e tantas outras vivências,
sinto-me construindo uma fina sintonia. Eles me vêem com atenção e me
tratam com esmero. Talvez, porque nunca esqueci a criança que me sorri
quando a adulta meneia.
Assistimos todos os dias na televisão, e em outras formas de mídia, um
número cada vez maior de violências contra crianças e adolescentes no
Brasil. Testemunhamos bestificados alguns, agitados outros, uma violação
de direitos constante, onde na pauta, na ordem do dia, está a violência
sexual.
Vivenciamos uma constante violação dos direitos sexuais de crianças e
adolescentes que confronta diretamente o exercício de cidadania plena,
em oposição ao que preconiza a Carta Magna do Estado e o Estatuto da
Criança e do Adolescente. Violência contra crianças e adolescentes não é
um mal menor, embora muitos a vejam desta forma, dada a amplitude
desses casos que atravessam o cotidiano da sociedade em que vivemos.
2. Educadora social desde 1999, tendo passado por organizações governamentais e
não-governamentais que atuam na área da infância e adolescência.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
53
Para compreender o universo da exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes torna-se ferramenta fundamental compreender as
causas, objetividades e leis que estruturam e regem a realidade em que
estão inseridas. E, mais que isso, é necessário saber como se sentem as
crianças e adolescentes arrematados pela incoerência, dor e descobertas
no campo da exploração sexual comercial.
Os conceitos previamente estabelecidos turvam o olhar e escondem
realidades até então ignoradas. Os motivos e experiências da dimensão
social da exploração sexual e toda a sua complexidade montam o quebracabeças do corpo simbólico, transpassado por medos e angústias, que
oprime e castra liberdades.
Frei Betto atesta que alteridade é “ser capaz de apreender o outro na
plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença”
(Betto, 2003: 1). Durante a atuação dos pesquisadores-educadores nessa
empreitada, esse foi o grande exercício: despir vetos sob a ótica da
alteridade, permitindo-nos testar valores e suplantá-los à questão moral
para transvalorar outras formas de olhar.
Diante da exploração sexual comercial, o interesse pelas coisas doces
da infância fica perdido num tempo entre a dor e a fragilidade. Brincar,
estudar, fantasiar, sonhar, acreditar; verbos sem transitivo de amor, sem
complemento na delicadeza da vida. E sonhos não deveriam ser castigados
tão duramente, ou interrompidos bruscamente. Sonhar custa caro. Custa
a vida, o corpo e desejos pueris, pondo em xeque a delicadeza infantil.
Na sociabilidade das crianças e adolescentes em situação de exploração
sexual, nota-se que as primeiras relações se estabelecem no aparente
desequilíbrio entre ausência e excesso. Falta afeto, dignidade e o respeito
ao corpo de crianças e adolescentes que têm seus direitos violados. Sobram
as experiências dolorosas, a miséria evidente, o medo e a violência. As
relações que se seguem são, portanto, quase como um estímulo-resposta
dessa automação.
Elizabeth Kübler-Ross (1998: 320) diz que “tudo é suportável quando
há amor”. Pois que, aqui, nas vidas acolhidas durante o desenrolar dessa
pesquisa, o amor parece ser sempre um personagem sonhado e lamentado,
quase uma ilusão. Em todos os relatos dos narradores pesquisados é
recorrente o exercício de amargura e solidão.
A realidade impõe o refluxo de seus sonhos, a maioria deles simples,
comuns, mas quase inalcançáveis diante do rumo que a própria vida tomou.
Anseios são massacrados. As crianças e adolescentes carregam seus desejos
no colo, levam-nas à passárgada e brincam de ainda querer. A densidade
de suas vivências mostra, entretanto, que o dinheiro é um rei injusto que
parece desconhecer a infância.
GLÓRIA D IÓGENES
54
Durante algumas entrevistas chorei silenciosamente. Meu coração
indignado de educadora “metida” e “comprometida” sufocava diante do
que ouvia das crianças e adolescentes que deixava ali, na pista. Perplexa,
respirava profundamente e seguia em frente. Voltava pra casa quieta, e
às vezes não conseguia conversar com nenhuma pessoa por instantes,
permanecia por algum tempo pensativa e muda.
Meu coração não faz rodeios, insiste nos direitos humanos para todos.
E se for pra falar em nudez, que seja a da dignidade para além das
disparidades econômicas e sociais de qualquer ordem. Quem sabe assim
torne-se possível a transvaloração do contexto atual em torno de vidas que
têm suas relações fragilizadas ou equivocadas sob a orientação de uma
dialética da discriminação e da indignidade.
P OLARÓIDE
DE HERÓIS
Estamos discutindo aqui um fenômeno que tem, seguramente, cara,
endereço, etnia e gênero em seus mais intricados e contraditórios graus
de exclusão. Não estamos tratando de um perfil imaginário. Estamos
alicerçados por dados que evidenciam, com precisão, quem são as crianças
e adolescentes exploradas e explorados sexualmente em nossa cidade, onde
estão, como vivem e dialogam com as políticas públicas de atendimento e
o que têm a dizer.
Quem é tocado pela barbaridade da exploração sexual nunca mais é o
mesmo, que isso fique bem claro. Viver esse mundo adquire muitas formas.
Entretanto, na luta diária, o objetivo comum, além de mudar de vida, é
garanti-la sob a perspectiva da obstinação. O amanhã é visto como o dia
de hoje. Futuro são os planos feitos pra daqui a pouco. O tempo, em geral,
é uma estrada curta, de poucas horas, mas muito entretenimento regado
a sexo, drogas e música.
Os dados apontam que a maioria avassaladora – 97,8% – está inserida
na faixa etária que vai dos 13 aos 18 anos. Essas pessoas perdem, portanto,
se não toda, grande parte da adolescência. Ocorre que, quando falamos
em exploração sexual, o direito às descobertas e vivências psicológicas,
emocionais, sexuais e sociais saudáveis e edificantes não lhes é aferido.
Vale ressaltar que a exploração sexual e as demais violências a que
são submetidas as crianças e adolescentes aqui acolhidos queimam uma
etapa limítrofe para a idade adulta, comprometendo, além das próprias
vivências e qualidade de vida, outras gerações, se levarmos em
consideração a transgeracionalidade.
Na tabela abaixo verificamos a idade atual das crianças e adolescentes
em situação de exploração sexual. Constatamos que 82,9% estão na
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
55
adolescência, ou saindo dela, mas não podemos afirmar que foi essa a idade
que começaram na exploração. Provavelmente se iniciam muito mais jovens
ainda, na idade da infância, como nos apontam os dados seguintes: 14%,
de 13 a 15 anos, e, não menos importante, os 2,1% da idade até os 12
anos. Vejam que o recorte é anterior aos 12 anos, o que para nós, como
educadores sociais e demais militantes dos direitos fundamentais de crianças
e adolescentes, é motivo de muita preocupação.
1. IDADE
TOTAL
ATÉ 12 ANOS
7
2,1%
DE 13 A 15 ANOS
49
14,9%
DE 16 A 18 ANOS
272
82,9%
TOTAL
328
100,0%
A violência anterior é fator determinante para que a criança e ou
adolescente seja levada a sair de casa. A rua oferece uma aparente
liberdade, mas a alto custo. Como estratégia de sobrevivência as meninas
e meninos estabelecem relações com a mendicância, o trabalho infantil,
as drogas, e, muitos, com a exploração sexual. Inicialmente, levadas sem
um interlocutor direto, sem alguém que as mantenha numa relação de
custo/benefício aparente. Somente depois ela adentra a rede de
exploração propriamente dita. É claro que não existem regras: em alguns
casos a entrada na rede de exploração ocorre de outras formas, sem
etapas, ou tantas outras etapas.
Primeiramente, entretanto, ocorre uma quebra com os vínculos iniciais,
com os motivos que as levaram para rua. Depois disso é que se estabelecem
outras conexões. É a morte e o renascimento do corpo simbólico de
vivências. É o corpo transbordando todos os significados que o contemplam.
Tomando nos exemplos a seguir personagens fictícios, entenderemos
melhor os muitos papéis que a criança e ou adolescente podem
desempenhar a partir do momento em que passam a conviver com o espaço
da rua e as violências que o assistem.
Quando a criança sai de casa ela traz a Maria, seus valores, medos,
sua identidade e subjetividade. Quando ela vai pra rua, já não é a Maria.
Talvez seja a Violeta, que sai e que contempla outras reticências e
identidades. Quando a criança ou adolescente está em situação de
exploração sexual, quando ela está na pista, ela já não é nem a Maria
nem a Violeta. Ela é Joana, outra pessoa, outro significante que toma posse
do palco e que concentra também outras reticências e simbologias.
GLÓRIA D IÓGENES
56
Quando a criança e/ou o adolescente adentram o espaço da rua
acessando suas regras e valores, eles quebram com o instituído até então.
Portanto, eles produzem outros significantes. É um “transbordamento de
corpos” simbólicos: Maria, Violeta, Joana.
Podemos perguntar quem é esse ser humano fragmentado diante da
violência. Os educadores sociais de rua reconhecem isso nitidamente.
Quando há uma menina ou menino “novo” na rua, ele custa a dizer a
verdade sobre si. Muda de nome, de postura, de atitudes, muda de corpo
simbólico. Se ninguém o conhece, ninguém pode feri-lo. Se ninguém sabe
quem ele é, ele nada terá de enfrentar sobre as violências anteriores e
que não pertencem a ele, mas ao outro.
A tal lógica da verdade, quando se fala de pessoas, não está vinculada
à inflexibilidade. De que verdade se está falando mesmo? Da registrada
nos diários de campo, ou aquela que a criança expressa e legitima? Maria,
Violeta, Joana, ou quem quer que seja, quase todas carecem da
legitimação da sua afetividade e respeito.
A violência tem suas peculiaridades. A rua traz em si mesma muitos
riscos e comprometimentos. Quando se trata de exploração sexual, há uma
fortaleza de agressões que fragilizam e expõem ainda mais aqueles que
são por ela capturados. Quanto à questão de gênero, pôde-se verificar que
68,3% são do sexo feminino, enquanto que 31,7% são do sexo masculino.
1. IDADE
MASCULINO
TOTAL
104
31,7%
FEMININO
224
68,3%
TOTAL
328
100,0%
É um número significativo, forte. E duas coisas podem ser ditas sobre
ele. A primeira dá conta de um “velho conhecido” valor social atribuído à
imagem da mulher. Para muitos, a mulher ainda é percebida esteticamente
e de forma turva: um objeto sexual e subserviente. Nas ruas de Fortaleza
percebem-se canteiros flutuantes, quase dançantes, onde se dispõem
verdadeiros ventríloquos numa ilógica comercialização do desejo.
O sexo à venda nas prateleiras mercantis e injustas das ruas denota
relações de dominação e poder, onde (especificamente falando do sexo
feminino) mulheres se enfeitam e exibem seus corpos num ritual de
transbordamento para homens que procuram mais que entretenimento, a
realização de fantasias e fetiches sexuais.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
57
A segunda coisa a ser dita é que, apesar de ser ainda marcante a
presença do sexo feminino na rede de exploração sexual, há um crescente
contingente de pessoas do sexo masculino sendo arregimentado. Se
tomarmos como referência o resultado da pesquisa Criança (in)feliz (1998:
77), 27,1% eram do sexo masculino, enquanto que o sexo feminino dava
conta dos 72,9% restantes.
É demasiado importante esse comparativo. Houve um crescimento de
4,6% na ordem percentual quando comparados os resultados das duas
pesquisas. Talvez pelos agravantes sociais, talvez pela capacidade de
camuflagem, adaptação e mercantilização dessa rede.
Se observarmos a tabela 3, perceberemos que 57% dos entrevistados
não chegam a concluir o Ensino Básico, enquanto que singelos 3,4%
concluíram o Ensino Médio. É uma espécie de institucionalização da pouca
instrução, fonte mantenedora da rede de exploração. Se eles não estão
inseridos na rede de ensino, se não estudam, sabem pouco sobre números
e as letras, e são mais propensos à manipulação. 57% é uma porcentagem
enorme para uma sociedade que se pretende justa e inclusiva.
Se projetarmos uma imagem numa espécie de “mapa”, os números
que desenhariam os primeiros 15 anos de estudo resultam em alarmantes
96%. Isso diz alguma coisa sobre esse país, sobre a nossa cidade. Porque,
na verdade, se estamos falando de cidadania e desse exercício, como
podemos excluir alguém?
3. ESCOLARIDADE
TOTAL
NÃO ALFABETIZADO
10
3,0%
ALFABETIZADO
22
6,7%
1º GRAU INCOMPLETO
187
57,0%
1º GRAU COMPLETO
42
12,8%
2º GRAU INCOMPLETO
54
16,5%
2º GRAU COMPLETO
11
3,4%
N.S./N.R.
TOTAL
2
0,6%
328
100,0%
A escola é uma aquarela de muitos matizes, recortada pela dualidade
entre o urgente e a necessidade. Lugar de características ambíguas, a
escola parece não oferecer atrativos para mantê-las na busca de
conhecimento e passa mais pelo viés da obrigatoriedade.
GLÓRIA D IÓGENES
58
Sim, é verdade que se almeja estudar, concluir ou iniciar os estudos,
mas fica difícil ir à aula e conviver segundo as normas da sociedade e da
escola, se a criança e o adolescente aqui dispostos vivem sob outras regras,
outra dinâmica. E como construir o equilíbrio na corda bamba da avenida
cheia de gente que deseja, cospe e paga? Como estudar com a cabeça
cheia de medos? Medo do traficante, do cafetão, do policial, do cliente mau,
da dor das relações, de seus próprios corações estatelados pelo ritmo
acelerado das noites em riste?
A rede de exploração, todavia, se aproveita dessa confusão e oferece,
a “preços módicos”, uma vida de conforto, alegria e prazer, onde a criança
é aceita, a adolescente não é julgada, o homossexual, travestido ou não, é
bem-visto, e todos, sem exceção, são bem acolhidos e recompensados.
Mais assustadora ainda é a tabela seguinte, que mostra que 75,3% não
freqüentam a escola atualmente. A escola traz a perspectiva de
investimento em longo prazo, e a urgência da vida e a dinâmica da
exploração sexual obstruem direitos fundamentais, tais como a educação.
A prioridade passa ser a sobrevivência.
4. ATUALMENTE
FREQUENTA A ESCOLA
TOTAL
SIM
78
23,8%
NÃO
247
75,3%
3
0,9%
328
100,0%
N.S./N.R.
TOTAL
Perguntados sobre o tempo de evasão escolar, os dados são ainda mais
surpreendentes. Temos um número percentual de 57,5% se somarmos os
percentuais dos dois maiores dados (mais de dois anos fora das instituições
de ensino), enquanto que 11,7% representam as crianças e adolescentes
que estiveram menos de seis meses numa escola, ou que nunca a
freqüentaram. É um dado expressivo e que contraria, inclusive, as políticas
públicas na área, que devem garantir e estabelecer a inserção de todas as
crianças na escola e baixa evasão escolar.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
5. HÁ QUANTO TEMPO
FORA DA ESCOLA
NUNCA FREQÜENTOU
59
TOTAL
3
1,2%
MENOS DE 6 MESES
26
10,5%
DE 6 MESES ATÉ 1 ANO
59
23,9%
DE 1 ATÉ 2 ANOS
61
24,7%
MAIS DE 2 ANOS
81
32,8%
N.S./N.R.
17
6,9%
TOTAL
247
100,0%
Percebe-se pelo relato abaixo que a escola parece não se adaptar às
necessidades e especificidades das crianças e adolescentes em situação de
exploração sexual comercial:
Eu estava estudando esse ano. Eu parei no meio porque eu queria
estudar, com 16 anos, ou de manhã ou à tarde, e não podia porque
eu já tinha passado três anos sem estudar. Eu não podia estudar
de manhã porque eu já tinha repetido muitas vezes. Aí me passaram
para a noite. Eu gostei, porque era a noite, era bom. Até podia
me atrapalhar para vir para a rua, para a avenida, mas eu não gostei
porque tinha muito velho, idoso. Aí quando a professora ia fazer,
ela tinha que explicar tudo devagar. Porque eu gosto muito de
escrever e ela demorava a fazer as questões, as atividades só por
causa dos velhos. Por isso que eu não gostei (K., Barra do Ceará,
feminino, 16 anos).
K. está fora da escola há três anos e, apesar de gostar de estudar, não
conseguiu concluir seus estudos. Ele próprio elenca os motivos: não há
número consistente de vagas nos horários diurnos e ele não se adaptou a
política pedagógica da instituição de ensino.
A exposição aos riscos da rua, às drogas e à violência, ocupa a maior
parte do tempo de nossas crianças e adolescentes em situação de exploração
sexual. E de onde elas vêm?
As crianças e adolescentes em situação de exploração sexual na cidade
de Fortaleza vêm de muitos lugares. Se analisarmos os dados percentuais,
veremos que 13,1% se dizem moradores da Barra do Ceará, enquanto
que 4,9% do Bom Jardim. Dois grandes bairros da cidade de Fortaleza,
GLÓRIA D IÓGENES
60
mas que não fazem parte do circuito de turismo sustentável em nossa cidade.
Evidentemente, a rede de exploração sexual se adapta às peculiaridades
dessa região e monta um cenário no qual a exploração sexual é alimentada
pelo comércio local, como veremos de forma aprofundada em outros artigos
mais adiante.
Considerando os dados separando-os por Regionais, temos dois
percentuais de destaque. A Regional I, que compreende bairros como a
Barra do Ceará, Álvaro Weyne, Vila Velha e Carlito Pamplona, e a Regional
II, que abrange bairros como a Praia de Iracema, Centro, Aldeota, Praia
do Futuro e Mucuripe.
Os dados assinalam 22%, somados os bairros da Regional II, contra
20,7% da Regional I. São duas interfaces que destacam interesses
econômicos e sociais bem diferentes, mas que agregam uma mesma
problemática: a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.
Na Regional II, a rede de exploração é integrada ao turismo sustentável
de Fortaleza, enquanto que na Regional I essa rede de exploração parece
estar atrelada a outros fatores, como o comércio local. Logo, a exploração
sexual comercial não se prende às regras do turismo em nossa cidade. Áreas
de interesses e dinâmicas distintas aparecem com dados percentuais
aproximados. A exploração sexual amplia suas fronteiras e disposições.
Na mesma tabela percebe-se que a presença de crianças e adolescentes
de outros municípios é significativa. Cidades próximos, pertencentes à
Região Metropolitana de Fortaleza, como Caucaia, Pacatuba e Maracanaú,
têm contribuído para o adensamento da exploração sexual em nossa cidade.
O percentual de 7,3%, somatória dos municípios juntos, chega a ser maior,
por exemplo, que o índice da Regional IV, que é da ordem dos 6,1%.
Apesar de, à primeira vista, esse dado nos parecer inexpressivo, 0,9%
das crianças e adolescentes em situação de exploração sexual encontramse em situação de rua. Isso nos remete ao não-pertencimento, ao não-lugar.
Esse espaço que, anteriormente, era de passagem, passa a ser de
permanência, sendo, desta forma, ocupado pela violência, pela exploração
sexual comercial.
6. MORA EM QUE BAIRRO
TOTAL
ALDEOTA
1
0,3%
ÁLVARO WEYNE
1
0,3%
ANTÔNIO BEZERRA
14
4,3%
ARACAPÉ
1
0,3%
AUTRAN NUNES
3
0,9%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
6. MORA EM QUE BAIRRO
BARRA DO CEARÁ
61
TOTAL
43
13,1%
BARROSO
8
2,4%
BENFICA
1
0,3%
BOM JARDIM
16
4,9%
BOM SUCESSO
5
1,5%
BR-116
4
1,2%
CANINDEZINHO
2
0,6%
CARLITO
1
0,3%
CASTELO ENCANTADO
2
0,6%
CAUCAIA
5
1,5%
CENTRO
29
8,8%
CIDADE 2000
1
0,3%
CIDADE NOVA
3
0,9%
CONJUNTO CEARÁ
5
1,5%
CONJUNTO PALMEIRAS
5
1,5%
CRISTO REDENTOR
3
0,9%
DEMÓCRITO ROCHA
1
0,3%
DIAS MACEDO
3
0,9%
EDSON QUEIROZ
1
0,3%
FLORESTA
1
0,3%
GENIBAÚ
4
1,2%
GRANJA PORTUGAL
9
2,7%
HENRIQUE JORGE
3
0,9%
ITAPERI
1
0,3%
JACARECANGA
1
0,3%
JARDIM DAS OLIVEIRAS
1
0,3%
JARDIM GUANABARA
2
0,6%
JARDIM IRACEMA
1
0,3%
JOÃO PAULO
1
0,3%
JOÃO XXIII
4
1,2%
GLÓRIA D IÓGENES
62
6. MORA EM QUE BAIRRO
TOTAL
JOQUEY CLUBE
1
0,3%
MARACANAÚ
14
4,3%
MARAPONGA
1
0,3%
MEIRELES
1
0,3%
MESSEJANA
7
2,1%
MONDUBIM
2
0,6%
MONTE CASTELO
2
0,6%
MONTESE
2
0,6%
MUCURIPE
6
1,8%
OSÓRIO DE PAIVA
1
0,3%
PACATUBA
1
0,3%
PADRE ANDRADE
11
3,4%
PAN AMERICANO
1
0,3%
PAPICU
1
0,3%
PARANGABA
8
2,4%
PARQUE ARAXÁ
4
1,2%
PARQUE SANTA ROSA
1
0,3%
PIRAMBU
13
4,0%
PLANALTO AIRTON SENNA
6
1,8%
PRAIA DE IRACEMA
8
2,4%
PRAIA DO FUTURO
6
1,8%
PRESIDENTE KENNEDY
1
0,3%
QUINTINO CUNHA
3
0,9%
RUA
3
0,9%
SANTA CECÍLIA
1
0,3%
SERRINHA
4
1,2%
SERVILUZ
13
4,0%
SIQUEIRA
2
0,6%
TANCREDO NEVES
3
0,9%
VARJOTA
1
0,3%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
6. MORA EM QUE BAIRRO
VICENTE PINZON
63
TOTAL
3
0,9%
VILA MANOEL SÁTIRO
2
0,6%
VILA PERI
3
0,9%
OUTROS
3
0,9%
N.S./N.R.
3
0,9%
328
100,0%
TOTAL
Obs.: Ver Mapa nos anexos.
Quanto à temática da religião, podemos observar na tabela 7 que 62,5%
afirmam ter alguma prática religiosa, enquanto que 32% dizem não possuir
vínculo com qualquer crença.
Religião é categoria de pertencimento no campo simbólico da sociedade
e representa um sentimento de inserção num grupo social. Esse dado nos
leva a ponderar que seus vínculos com a sociedade estão comprometidos,
fragilizados ou substituídos por outros referenciais. Não ter uma religião
significa estar sob a ordem da exclusão com os valores que a sociedade
crê e reproduz. É, mais uma vez, estar à margem.
7. TEM RELIGIÃO
TOTAL
SIM
205
62,5%
NÃO
105
32,0%
N.S. / N.R.
18
5,5%
OUTROS
328
100,0%
Na tabela 8, 76,6% diz pertencer à religião católica, amplamente aceita
e difundida em nossa sociedade. Os 13,6% restantes se dizem pertencentes
às religiões de origem africana, largamente discriminadas e questionadas
em nossa sociedade. Entretanto, pertencer a uma religião não significa
necessariamente praticá-la. O importante é ter uma religião, na medida
em que ela tem o sentido literal do “re-ligare”, estando interligado a uma
ordem divina, como dizem na linguagem popular: “ser temente a Deus”.
GLÓRIA D IÓGENES
64
8. QUAL RELIGIÃO?
CATÓLICO
TOTAL
157
76,6%
EVANGÉLICO
16
7,8%
UMBANDISTA
22
10,7%
CANDOMBLÉ
6
2,9%
N.S./N.R.
2
1,0%
OUTROS
2
1,0%
205
100,0%
TOTAL
76,6% é um número expressivo. São crianças e adolescentes dizendose incluídas na religião predominante em nosso país. É através da religião
católica que as crianças e adolescentes em situação de exploração sexual
se colocam no espaço simbólico do “acreditar em algo” como referencial
de “alguém” que pode salvá-los. Provavelmente, para suportar as dores
da exploração, os narradores pesquisados se munem de padrões sociais
que possibilitem sua aceitação, e, claro, sinalizam alguma instância de
redenção.
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
Haiti, Caetano Veloso e Gilberto Gil
De acordo com Lacan (1954: 55), é através da relação com o outro
que se estabelece a linguagem, e desta interação passamos a nos reconhecer
enquanto sujeito. O outro, esse simbólico outro, é relevante para a psique
e a constituição desse indivíduo. Ou seja: o homem é um ser social que
interdepende de outros sujeitos. Essas relações são, portanto, de suma
importância para o processo social e civilizatório. Como percebemos e
reconhecemos o outro diz muito sobre a nossa própria imagem.
Mas como se constitui a significação desse ser social e suas inter-relações
diante duma cultura tão complexa e paradoxal como a nossa?
A identificação da cor é uma categoria social que desperta muitas
interpretações. Nos sensos do IBGE, esse dado é declaratório, e nesta
pesquisa foi adotado o mesmo princípio. Somos um país etnicamente livre,
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
65
porém, o preconceito é disfarçado. Quando declara a cor, a pessoa,
espontaneamente, expõe sua etnia e assume, portanto, todo o valor
cultural dela. Porém, é difícil assumir etnias que expressam discriminação
e preconceito.
Na tabela que se segue, 53,7% dos narradores pesquisados declararamse morenos. 23,5% se dizem brancos, enquanto apenas 8,8% se declaram
negros. É interessante perceber que a maioria se auto-intitula de cor
“morena”.
Quem se diz negro em nossa sociedade, se expõe aos riscos da
discriminação. Ser branco é legítimo, é o normativo sinalizando poder e
ascendência. Ser moreno parece estar entre a exclusão e o socialmente
aceitável, causa menos danos sociais e morais. Ser negro é quase uma
condição no âmbito da invisibilidade social.
9. COR
TOTAL
BRANCA
77
23,5%
NEGRA
29
8,8%
PARDA
31
9,5%
AMARELA
6
1,8%
MORENA
176
53,7%
N.S. / N.R.
5
1,5%
328
100,0%
TOTAL
Sobre a ocupação desses narradores pesquisados, evidencia-se que
49,4% declararam como ocupação principal o ato de fazer programa,
enquanto que 14,9% afirmaram não ter qualquer ocupação. São os dois
grupos que não registram alternativas além da exploração sexual.
Somados esses dois grupos, temos, portanto, o percentual de 64,3%
dos narradores pesquisados que está em grande parte do tempo sob o
exercício da exploração sexual comercial.
Não “ter ocupação” produz o viés da desvalorização enquanto sujeito.
Elas não produzem nada, estão, tão somente, à disposição da prática da
exploração sexual comercial, e, embora não a vejam como ocupação
principal, também não vislumbram ou não apontam outros caminhos.
GLÓRIA D IÓGENES
66
10. OCUPAÇÃO
COSTUREIRO
TOTAL
3
0,9%
ENGRAXATE
6
1,8%
ESTUDANTE
26
7,9%
NENHUMA OCUPAÇÃO
49
14,9%
PEDINTE
18
5,5%
PROGRAMA
162
49,5%
4
1,2%
SALÃO DE BELEZA
TRABALHO INFORMAL
11
3,4%
TRABALHOS DOMÉSTICOS
17
5,2%
VENDEDOR
12
3,7%
OUTROS
13
4,0%
N.S./N.R.
7
2,1%
328
100,0%
TOTAL
O tempo parece assumir um caráter de muitas avarias. Os sonhos
parecem estar mais distantes, enquanto a urgência e o stress da vida estão
sob maior foco. O cotidiano dessas crianças e adolescentes proclama
necessidades que precisam ser supridas e que, aparentemente, estão
submetidas ao ato de fazer programa. Nessa violência não há dignidade,
há uma espécie de normatização da força de trabalho arrematada no corpo
de cada criança e adolescente em situação de exploração sexual.
Aprofundando essa temática e discutindo sobre renda individual, os
dados apontam um cenário desmontado. De acordo com vários relatos e
entrevistas, seria de natureza econômica a maior motivação para a entrada
e ou permanência de crianças e adolescentes na rede de exploração sexual.
Há um imaginário popular constituído a partir de uma suposta facilidade
em ganhar dinheiro e em grande quantidade. Riscos devidamente calculados
e controlados, pagos sob a perspectiva maquiavélica de que “o fim justifica
os meios”. E, segundo essa lógica, valeria a pena, pois os lucros econômicos
seriam vultosos.
Entretanto, a tabela a seguir denota que o percentual de 45,7% tem
renda mensal sob o teto de um salário mínimo (SM), nem mais nem menos.
E, apesar de 7,9% estar no degrau dos 3 a 5 SMs, esse não chega a ser
um percentual significativo diante do universo pesquisado.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
11. RENDA INDIVIDUAL
MENSAL
67
TOTAL
ATÉ 1 S.M.
150
45,7%
DE 1 A 2 S.M.
74
22,6%
DE 2 A 3 S.M.
43
13,1%
DE 3 A 4 S.M.
14
4,3%
DE 4 A 5 S.M.
5
1,5%
MAIS DE 5 S.M.
7
2,1%
N.S. / N.R.
35
10,7%
TOTAL
328
100,0%
Isso estabelece uma quebra com o suposto glamour da exploração
sexual. Não é somente o dinheiro que sustenta os vínculos com a rede de
exploração. Há uma subjetividade nas práticas dessa rede e suas conexões
são mantidas pela própria peculiaridade da exploração sexual comercial.
Fatores como drogadição, laços familiares fragilizados ou rompidos,
baixa auto-estima, pouca escolarização, medos, angústias e sofrimentos,
por exemplo, vinculam e aprisionam as crianças e adolescentes à dinâmica
da exploração sexual. A ilusão de um protetor, da figura do cafetão, do
policial, do bando, de alguém que protege, simboliza uma segurança
presente e, como há um passado de violações de direitos, as crianças e
adolescentes submetem-se à exploração sexual como possibilidade de viver
e de se lançar à vida por conta própria e em “segurança”.
Como, então, restituir os direitos fundamentais de crianças e
adolescentes em situação de exploração sexual e garantir suas necessidades
básicas? Como substituir o “valor”, o espaço que a exploração sexual tem
em suas vidas? Quais alternativas seriam possíveis diante dessa questão?
B IBLIOGRAFIA
BETTO, Frei. Alteridade. 2003
ESTATUTO da Criança e do Adolescente. Lei 8.069, de 13 de julho de
1990. Prefeitura Municipal de Fortaleza , 2007.
FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1975.
ROSS, Elisabeth Kübler. A roda da vida. São Paulo: Sextante, 1998. http:/
/www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod
=7063&busca=
DESVENDANDO AS HISTÓRIAS FAMILIARES:
O SENTIDO DA FAMÍLIA E SEU LUGAR NA
REDE DE EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Camila Holanda1
F AMÍLIA :
COMPREENDENDO O CONCEITO
Pensar o lugar que as famílias ocupam em contextos de violação de
direitos de crianças e adolescentes é algo que representa um grande
desafio. Há muitas interpretações que oscilam entre imagens ainda por
demasiado sacralizadas dessa instituição social – a família – como se a ela
fosse impossível associar situações profanas. Para a antropologia, as
definições de sagrado e profano enunciam dois mundos com características
opostas, sendo que um existe pela negação do outro; mas esses mundos
se comunicam e são dialogais.
No caso do sagrado, ele está relacionado com o divino. Um objeto
sagrado possui uma ligação com o divino. É um poder que não se pode
definir, mas que está em todo lado e é tão desejado como temido. O profano
então seria seu oposto, ligado a noções de transgressão, impureza e
indignidade. Na modernidade é comum pensar o mundo a partir de
questões que se contrapõem, de lógicas duais, de dicotomias. Como pensar,
então, características profanas atribuídas a um objeto comumente
classificado como sagrado, nesse caso a família?
1. Socióloga, professora universitária e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Já atuou como gerente de Políticas de
Proteção Especial e como assessora institucional da Fundação da Criança e da Família
Cidadã da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Foi a coordenadora de campo dessa
pesquisa.
GLÓRIA D IÓGENES
70
As meninas e os meninos inseridos na rede de exploração sexual
comercial na cidade de Fortaleza possuem, na sua maioria, um referencial
familiar, como as tabelas abaixo evidenciam:
12. TEM FAMÍLIA?
TOTAL
SIM
315
96,0%
NÃO
11
3,4%
N.S. / N.R.
2
0,6%
328
100,0%
TOTAL
17. COM QUEM MORA
ATUALMENTE
PAI
TOTAL
49
8,9%
MÃE.
134
24,5%
IRMÃOS
128
23,4%
FILHOS
27
4,9%
COMPANHEIRO(A)
19
3,5%
AVÓS
17
3,1%
AMIGOS
88
16,1%
CAFETÃO
8
1,5%
PADRASTO
13
2,4%
PRIMOS
5
0,9%
SITUAÇÃO DE RUA
13
2,4%
SÓ
30
5,5%
TIOS
12
2,2%
OUTROS
3
0,5%
N.S. / N.R.
2
0,4%
548
100,0%
TOTAL
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
71
Sobre casos de violência doméstica, o senso comum teima em não querer
acreditar em situações de violência desencadeadas nos espaços mais íntimos
da vida privada familiar.2 O fenômeno da violência sexual contra crianças
e adolescentes reflete isso. No primeiro momento, há a negação. Uma
incapacidade de aceitar e admitir que o profano se instaurou em um lugar
que não é seu. É nesse sentido que se definem situações de violência sexual
contra crianças e adolescentes como algo “silencioso e interdito”.
A negação possibilita a invisibilidade ou a predisposição em não querer
ver o que aconteceu. Atravessada essa barreira silenciosa, quando a situação
se torna pública, ela passa a ocupar um lugar permeado por uma
moralidade muito intensa, que vai relacionar o papel do ser feminino como
esfera quase exclusiva de reprodução da vida. Observamos que sobre o
sexo feminino cercam-se tentativas recorrentes de proteção e controle. E,
nesse sentido, as referências feitas a quem está em uma posição definida
pela sociedade como hierarquicamente inferior – tomando como exemplo
as mulheres, os homossexuais e as crianças – são geralmente pejorativas
e estigmatizadoras. A cobrança fica bem maior.
O papel da família enquanto instituição primária da socialização dos
indivíduos deve ser compreendido dentro dos seus múltiplos formatos, para,
assim, identificar os lugares que ela ocupa hoje na vida social. A família
não deixou de ser uma referência significativa nos processos de socialização
porque ainda é símbolo de uma iniciação, de uma passagem entre indivíduo
e espaços da coletividade. O âmbito familiar é lugar de produção de normas
e valores que são transmitidos aos seus membros por meio de um cotidiano
regulado por acordos e pactos que funcionam como uma “ante-sala” de
entendimento de concepções sociais.
O primeiro passo para a compreensão da família é desconstruir um
olhar sacralizado sobre essa instituição e dissolver a idéia de naturalidade
e a aura de pureza que a envolve. Não se pode falar de “família” como
um conceito hermeticamente fechado, mas de “modelos de família”
estruturalmente diferenciados, cujas configurações são definidas por
2. Para além da espetacularização como a mídia tratou o “Caso Isabella”, ocorrido em
março de 2008, o que realmente chocou a população foi um caso de violência
intrafamiliar em um grupo de classe média. O indiciamento do pai da menina de 5
anos pela sua morte possibilitou a profanação de uma instituição – a família – que é
referenciada com uma instituição sagrada. E a quebra dessa “regra social” faz com
que as pessoas relutem a aceitar esse fato. Ao longo desse processo, a sociedade
acreditava muito mais em uma possível culpa da madrasta ao invés do pai. Como se
o pai fosse incapaz de tamanha violência contra sua própria filha.
72
GLÓRIA D IÓGENES
interferências espaciais e temporais.3 Família é um conceito que tem “vida”,
isso significa dizer que está em constante mutação.
Em Simmel (1993), qualquer tentativa de compreensão da família
enquanto estrutura social é conseqüência de uma convergência de olhares
diferenciados que consubstanciam enfoques estratégicos para a identificação
dos mecanismos de socialização. Trata-se de um pequeno número de
pessoas que se reproduz no seio de um grupo mais vasto, que é a própria
sociedade. Adotando uma compreensão socioantropológica do conceito de
família abre-se um entendimento mais ampliado e complexo por entendêla como uma instituição social. Desse modo, o conceito ganha dinamicidade
e aponta que se deve desnaturalizar o ideal sagrado e nuclear que teima
em prevalecer no imaginário social.
Atualmente, o que está posto pela sociedade é um modelo familiar que
se desvincula cada vez mais da lógica nuclear de organização. Torna-se
necessário desmistificar a idealização de uma estrutura familiar
fundamentada como natural, abrindo-se caminho para o reconhecimento
das diversidades. Torna-se tarefa primordial a identificação da família como
instância atravessada por contextos sociais, históricos e culturais vigentes.
O que temos hoje são grupos cuja referência principal não é mais a figura
masculina, ficando a mesma figura praticamente esmaecida nos grupos
populares e periféricos das grandes cidades urbanas. Observamos um
número cada vez maior de mulheres chefes de família que reconstituíram
suas vidas conjugais e afetivas com outros parceiros, possibilitando a
constituição do que podemos denominar de famílias ampliadas. Identificamse grupos homossexuais que lutam pelo direito de adoção de crianças com
a intenção de formar uma família. Há casos em que as crianças são criadas
por avós, tios ou irmãos mais velhos, e até mesmo o caso de pessoas que,
por desenvolverem laços afetivos com sujeitos diversos, passam a
compreendê-los como entes familiares.
Então, estamos diante de situações vivenciadas e formuladas pelos
indivíduos nas quais o grupo familiar não tem mais a consangüinidade como
característica fundamental. Os laços de afinidade estão tomando um lugar
significativo. Isso possibilita que esta esfera simbólica e relacional da
afetividade, que varia entre os diferentes grupos sociais, abarque um
3. Há uma periodização que possibilita a compreensão das estruturas familiares em
basicamente quatro modelos: a família aristocrática e a camponesa dos séculos XVI e
XVII, a família burguesa de meados do século XIX, a família da classe trabalhadora do
início da Revolução Industrial, que posteriormente dará origem à família moderna
que conhecemos hoje.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
73
número cada vez mais numeroso de pessoas que podem ser consideradas
como “da família”.
Assim, o ponto de partida para se buscar compreender o lugar que
ocupa a família na vida de meninos e meninas que estão inseridos na rede
de exploração sexual comercial deve seguir um caminho reflexivo: situar
a família como uma instituição que possibilita um processo de articulação
de trajetórias de vida de seus membros e que se constrói e se reproduz no
contexto das relações de classe, gênero e étnicas. Para Goldani (1994), o
ponto de partida é que a família, multifacetada e com múltiplos arranjos,
impõe a tarefa de descobrir como suas estruturas incorporam as hierarquias
de classe, raça, gênero e idade, fontes geradoras de desigualdades que
respondem pela forma e pelo significado das mesmas desigualdades.
O
QUE OS CONFLITOS DIZEM SOBRE AS RELAÇÕES FAMILIARES
A concepção de conflito em Simmel (1993) aponta elementos para o
entendimento do cotidiano familiar. Para o autor, a noção de conflito está
vinculada à idéia de interação social, prerrogativa básica para a socialização
entre os indivíduos. Assim, é natural pensar que essas situações são comuns
dentro dos grupos familiares, sobretudo quando há um choque de gerações
visíveis nas relações entre pais e filhos, independente da situação de classe
dos grupos. Desse modo, não existe relação familiar que não possua
momentos conflituosos. Indagados sobre os principais problemas que
enfrentam com suas famílias, os jovens entrevistados que estão inseridos
na rede de exploração sexual comercial na cidade de Fortaleza enunciaram
o conflito familiar (54%) como o principal problema vivido:
15. ATUALMENTE ENFRENTA
PROBLEMA NA FAMÍLIA
TOTAL
SIM
148
47,1%
NÃO
154
49,0%
N.S. / N.R.
12
3,8%
TOTAL
314
100,0%
GLÓRIA D IÓGENES
74
15. QUAL PROBLEMA NA
FAMÍLIA
CONFLITO FAMILIAR
TOTAL
95
54,0%
PROBLEMAS FINANCEIROS
28
15,9%
PROBLEMAS DE SAÚDE
11
6,3%
DROGAS
5
2,8%
PRECONCEITO
7
4,0%
OUTROS
27
15,3%
N.S. / N.R.
3
1,7%
176
100,0%
TOTAL
A existência de um grupo absolutamente harmonioso é empiricamente
irreal e inexistente, independente do processo da vida social. A sociedade
é inerentemente harmoniosa e conflituosa, associativa e competitiva,
amorosa e violenta e repleta de situações favoráveis e desagradáveis. Para
Simmel (1993), devemos compreender a relação conflito-consenso como
um eixo que se situa nas estruturas sociais. Seu lado positivo nos faz
referência a uma forma de ruptura e confrontação que quebra uma unidade
estabelecida. Dentro das famílias, os conflitos desencadeados na relação
entre pais e filhos, geralmente compreendidos pelos pais como ocasionados
pelos filhos, mostra que esses filhos passam a questionar o que até então
estava estabelecido como “ideal’ pela sua família, haja vista que a família
é a instituição de socialização primária que repassa para seus entes os
valores, regras e as representações sobre a vida social. Com a passagem
da etapa da infância, após o contato com outras instituições, os adolescentes
naturalmente se tornam sujeitos questionadores. É daí que surge a
expressão formulada pelo senso comum de que são eles “aborrecentes”.
Eles aborrecem porque questionam. Então, o ponto é que as famílias não
estão sabendo como lidar com os questionamentos expressos por seus filhos,
sobretudo quando o tema está relacionado a drogas e ao sexo, os assuntos
não-ditos ou interditos, nesse sentido, essas não-respostas causam conflitos.
No entanto, a existência de conflitos familiares não é compreendida
pelos jovens que estão na rede de exploração sexual comercial como um
motivo que torna a vida com suas famílias ruins, como mostra a tabela na
página seguinte:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
75
13 e 2. AVALIAÇÃO DA VIDA NA FAMÍLIA
MASCULINO
ATÉ 12 ANOS
DE 13 A 15 ANOS DE 16 A 18 ANOS
TOTAL
ÓTIMA
0
0,0%
2
18,2%
15
16,9%
17
16,8%
BOA
0
0,0%
6
54,5%
42
47,2%
48
47,5%
REGULAR
0
0,0%
0
0,0%
19
21,3%
19
18,8%
RUIM
0
0,0%
3
27,3%
4
4,59%
7
6,9%
PÉSSIMA
1
100,0%
0
0,0%
6
6,7%
7
6,9%
N.S. / N.R.
0
0,0%
0
0,0%
3
3,4%
3
3,0%
TOTAL
1
100,0%
11
100,0%
89
100,0%
101
100,0%
FEMININO
ATÉ 12 ANOS
DE 13 A 15 ANOS DE 16 A 18 ANOS
TOTAL
ÓTIMA
1
16,7%
2
5,6%
15
8,7%
18
8,4%
BOA
4
66,7%
9
25,0%
53
30,8%
66
30,8%
30,8%
REGULAR
0
0,0%
8
22,2%
58
33,7%
66
RUIM
1
16,7%
12
33,3%
19
11,0%
32
15,0%
PÉSSIMA
0
0,0%
3
8,3%
23
13,4%
26
12,1%
N.S. / N.R.
0
0,0%
2
5,6%
4
2,3%
6
2,8%
TOTAL
6
100,0%
36
100,0%
172
100,0%
214
100,0%
Portanto, nada nos leva a crer que o cotidiano conflituoso no qual estão
inseridos os jovens em situação de exploração sexual comercial é o motivo
que os levam a saírem de suas casa para fazerem os programas. É claro
que há um peso significativo das cobranças, intolerâncias e desaforos que
esse cotidiano produz, principalmente relacionado a algumas compreensões
estigmatizadoras e pejorativas que as mães têm sobre os seus filhos. Mas
se a intenção fosse romper de vez com o grupo familiar do qual vieram, a
vontade de garantir uma vida mais confortável e menos miserável para
suas famílias não apareceria sem suas narrativas sobre o que sonham para
seus futuros, como aponta os relatos que seguem:
Eu vou dizer pra senhora o meu sonho, o meu sonho é ta perto
da minha mãe, é ficar com ela, estudar, é terminar meus estudos.
O meu sonho é ser uma cantora. O meu sonho é tá perto da minha
mãe, tá perto dos meus irmãos. (...) Eu sinto muita pena da minha
mãe (M., Barra do Ceará, feminino, 16 anos.).
Pretendo juntar dinheiro e ajudar meus pais, colocar a minha mãe
numa casa boa. Se o meu pai quiser separar da minha mãe, ele
separa. Eu dou uma casa para ele do mesmo jeito (A., Barra do
Ceará, masculino, 16 anos).
76
GLÓRIA D IÓGENES
Eu pretendo no futuro ajudar a minha família. Porque a minha
família é sofrida por causa de mim e por causa desse vício que eu
entrei (X., Praia de Iracema, Masculino, 17 anos).
O meu sonho era eu trabalhar, ter a minha casa, morar junto com
a minha mãe sempre. Tirar ela do lugar onde ela está morando
com eu e os meus irmãos. Ter uma vida boa, e uma vida sem
confusão, sem brigas, porque na minha casa é briga direto (A.,
Barra do Ceará, masculino, 17 anos).
Muitos jovens também relacionam os programas como uma possibilidade
de sustento de suas famílias. Alguns relataram que as famílias sabem das
atividades praticadas por eles nas ruas; outros disseram que escondem da
família com medo de represálias e de conflitos que a notícia pode causar,
tanto dentro da família como fora dela, sobretudo por causa das classificações
depreciativas e malevolentes que possam surgir por parte dos vizinhos:
Eu me perdi com 13 anos. Foi onde eu comecei nessa vida. Fui
estrupada. Foi por onde eu comecei nessa vida, porque eu vi que
eu tinha que ajudar a minha família, certo? Então hoje eu trabalho,
eu tenho uma vida, trabalho no frigorífico, mas não dá pra sustentar
minha família. Então, quando é a noite, eu saio para Beira Mar
para ver se eu faturo alguma coisa. Então, eu tento sempre fazer
os meus programa assim de vez em quando, sem prejudicar
ninguém, e sim só a mim mesmo, porque às vezes é muito difícil
para mim, mas eu consigo levar. (...) As pessoas não me aceitam
do jeito que eu sou, porque apesar de eu trabalhar e de eu ter essa
vida noturna, elas não me aceitam. (...) Eu sinto aquela mágoa
muito grande. Porque às vezes eu passo na rua, eu chego com o
meu leitezinho de manhã, com meu pão, aí ela diz: “Essa daí passou
a noite na Beira Mar. Todo dia ela chega com seu pão e o seu
leite. Mas isso aí só de programa.” Isso eu me sinto mal. Mas mal
sabe ela que estou fazendo aquilo é para ajudar a minha família e
não mais a ninguém (L., Beira Mar, feminino, 18 anos).
Quando eu ganho dinheiro, a minha mãe pergunta logo se é
roubado, alguma coisa, porque ela vê que tenho dinheiro, mas eu
não digo pra ela que sou garoto de programa, digo que é uma amiga
que deu, digo que fui fazer uma faxina, jamais eu digo que sou garoto
de programa (G., Praia do Futuro, masculino, 18 anos).
Eu passei a ser incentivada pelas meninas, ao passar do tempo eu
passei a ser incentivada. Quando faltava as coisas em casa eu tinha
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
77
de fazer [o programa], porque tava necessitando de comida, de
alguma coisa dentro de casa. Mesmo a minha mãe não sabendo.
Ao passar do tempo ela ficou sabendo e passou a mandar eu andar
na rua só de biquíni pra os gringo ficar olhando e me chamar.
Mandava eu ficar dançando nas boate, quando ela ia beber, pra
chamar a atenção dos gringo pros gringo me chamar, essas coisa
assim (E., Terminal Lagoa, feminino, 15 anos).
Não podemos descartar que a situação econômica é um agravante que
leva os meninos e as meninas a entrarem na rede de exploração sexual
comercial, mas não podemos compreendê-la como determinante. Se assim
fosse, vivenciaríamos uma situação aterrorizante, uma vez que todos os filhos
e as filhas das classes pobres poderiam estar envolvidos na rede de
exploração sexual comercial. Em média, segundo 43% dos entrevistados,
a renda mensal de suas famílias gira em torno de 1 a 2 salários mínimos.
Apesar de grande parte dos entrevistados não saberem dizer exatamente
quanto é o rendimento mensal familiar (37,8%), as narrativas mostram que
muitos estão vivendo nessa situação para ajudar as famílias no seu sustento.
A tabela a seguir mostra o valor dos rendimentos mensais das famílias dos
jovens entrevistados:
14. RENDA MENSAL DA
FAMÍLIA
TOTAL
ATÉ 1 S.M.
56
17,1%
DE 1 A 2 S.M.
85
25,9%
DE 2 A 3 S.M.
30
9,1%
DE 3 A 4 S.M.
12
3,7%
DE 4 A 5 S.M.
3
0,9%
MAIS DE 5 S.M.
11
3,4%
NÃO TEM RENDA
6
1,8%
OUTROS
1
0,3%
N.S. / N.R.
124
37,8%
TOTAL
328
100,0%
78
GLÓRIA D IÓGENES
O maior agravante relativo a esse fato é que os jovens passam a ter
uma visão negativa sobre o que é o trabalho, pois utilizam a venda de seus
corpos negligenciando suas vidas, descartando seus prazeres em nome dessa
atividade. Nesse sentido, fica extremamente difícil e desafiador para as
políticas públicas de enfrentamento a violência sexual construir uma
proposta financeira em forma de bolsas ou subsídios que superem os valores
ganhos nos programas. As políticas públicas e sociais devem atuar na
constituição de um novo referencial de trabalho para esses jovens, que não
esteja vinculado à exploração ou ao consumismo, características essas
próprias da sociedade capitalista que devem ser enfrentadas também. Isso
é a quebra de um grande paradigma que permeia os dias de hoje: a
compreensão sobre o sentido do trabalho. Assim, o foco é na constituição
de um novo ideal de atividade produtiva e produtora, de forma que os jovens
possam passar a acreditar que essas atividades geram renda e podem
significar sustento para eles e suas famílias.
O
QUE PENSAM SOBRE SUAS MÃES
A figura materna é uma personagem que possui um lugar de destaque
nessa história. Não podemos afirmar que crianças e adolescentes em
situação de violação de direitos quebram todo e qualquer tipo de relação
com seus familiares, sobretudo com suas mães. Como foi dito anteriormente,
os conflitos domésticos não são motivações para a anulação da convivência
familiar. Temos que ressaltar que existe uma empolgação, uma curiosidade,
uma vontade de exercer nas ruas uma função diferente daquela
subordinada que esses jovens se submetem em suas casas, que é a função
de ser a filha ou o filho. Quando vão para as ruas, novos papéis sociais são
desempenhados.
Pensar a relação casa-rua faz emergir a compreensão do antropólogo
Roberto DaMatta (1997), que entende que “casa” e “rua” não são apenas
espaços geográficos ou lugares físicos comensuráveis, mas “entidades
morais”, “esferas da ação social”, “domínios culturais institucionalizados”
capazes de despertar leis, imagens, emoções que apesar de possuírem suas
diferenciações são, ao mesmo tempo, “codificações complementares”. A
vida na casa é marcada pela moralidade (mesmo que velada), pela
familiaridade, é o lugar doméstico por excelência, mediado por ordens
hierárquicas. A rua é lugar do movimento, da fluidez, que pode se
apresentar como um lugar também perigoso, mas, ao mesmo tempo,
referência de liberdade, onde se pode fazer tudo que a esfera privada da
casa não permite. Isso faz da rua um lugar atraente também para os jovens
que possam estar cansados dos conflitos e das cobranças familiares. Eles
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
79
saem de suas casas em busca do que compreendem como uma liberdade,
a procura de vivências classificadas por eles como emocionantes, que só a
rua pode oferecer. É lá também que se dão os encontros afetivos onde os
jovens podem formar as suas próprias famílias. Segundo os dados
levantados nessa pesquisa, grande parte dos entrevistados (45,7%) já
vivenciaram relações conjugais e 25,6% possuem filhos, como demonstram
as tabelas abaixo:
62. JÁ MOROU COM ALGUM
COMPANHEIRO?
TOTAL
SIM
56
17,1%
NÃO
85
25,9%
TOTAL
328
100,0%
TOTAL
63. TEM FILHOS?
SIM
84
25,6%
NÃO
239
72,9%
5
1,5%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
64. QUANTOS FILHOS?
TOTAL
ATÉ 1 FILHO
66
78,6%
MAS DO QUE 1 FILHO
18
21,4%
TOTAL
84
100,0%
A casa tem a mãe como a personagem central. Ela exerce um papel
equivalente ao de controle, sendo sinônimo de ordem, de regra, de
obediência. E isso enche o saco daqueles que são mobilizados pela
curiosidade natural dos tempos da juventude:
Trabalhar, terminar os meus estudos, ter minha vida, morar numa
casa com uma pessoa que eu quisesse. Não morar mais com minha
mãe, não porque minha mãe é chata, mas por falta de eu me sentir
80
GLÓRIA D IÓGENES
livre, viver livre, porque com minha mãe ali eu não posso fazer o
que eu quero. Eu não posso sair porque tenho que dar satisfação.
Não posso fazer nada que ela briga. Tudo ela tá ali no meu pé.
Tudo querendo saber (G., Praia do Futuro, masculino, 18 anos).
Para Elisabeth Badinter (1985), o amor materno é constituído de acordo
com as exigências sociais de uma determinada época. Sendo assim, é um
grande equívoco considerar que o amor materno é um atributo natural das
mulheres. Segundo a autorav desde o século XVIII o sentimento maternal
feminino oscilava entre rejeição e indiferença, tendo em vista a prática
cultural de entregar seus filhos a amas de leite, da preferência pelos
primogênitos do sexo masculino e o desapego devido às altas taxas de
mortalidade infantil da época. A visão sacralizada da figura feminina
relacionada à função materna é uma representação do cristianismo e de
sua compreensão da “Sagrada Família”.
Assim, é importante trazer de volta a discussão acerca das características
profanas de uma instituição historicamente interpretada como sagrada: a
família. As falas apresentadas pelos narradores dessa pesquisa evocam
situações de violência praticadas pelas mães tanto no sentido físico como
no verbal:
A minha mãe é uma pessoa totalmente difícil. Ela nunca entendeu
o meu lado.se eu chegar em casa com dinheiro eu sou recebida
muito bem, se eu não chegar com dinheiro eu não sou recebida
bem. Se possível for não tem almoço pra mim se eu não chagar
com dinheiro, quando eu chegar em casa, pode ter pros meus irmão,
mas pra mim não tem E é justamente agora que eu estou torcendo
porque a minha mãe já tá perto de se aposentar, eu estou torcendo
pra que ela se aposente pra ela poder vive a vida dela e eu viver a
minha (L., Beira Mar, feminino, 18 anos).
Ela me chamava de um monte de palavrão, e eu não era nada
disso ainda, eu ainda não era nada disso. Aí foi que quando eu
completei os meus 12, eu botei na cabeça: se ela me chama disso
tudo, agora eu vou mostrar quem eu sou. Eu não sou o que ela diz
agora, mas eu vou ser. Foi isso que veio na minha cabeça (J.,
Terminal Lagoa, feminino, 14 anos).
(...) só com a minha mãe, que quando ela bebia ela metia a chibata
em mim. Mas só que o meu avô não deixava. Quando ela bebia e
eu vinha do colégio. Ela não queria deixar eu entrar dentro de casa,
não. Aí quando meu vô chegava do trabalho, que ele dizia assim:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
81
“Você vai deixar ela entrar sim, porque essa casa aqui quando eu
morrer vai ser dela” (L., Terminal Lagoa, feminino, 15 anos).
E mais doloroso ainda é não ter o amor que eu penso que a minha
mãe tem por nós, porque a minha mãe não ama as filhas dela
mulher, ela ama os filhos homens, as filhas, nós, mulheres, ela
maltrata (E., Terminal Lagoa, feminino, 15 anos).
Quando eu saí de casa ela [a mãe] sabia que eu não sabia nem o que
era um cigarro. Sabia sim porque via ela fumando, mas eu não usava.
E hoje em dia ela diz que eu sou uma vagabunda, que não quer mais
eu em casa. Nos olho dela eu sou o que não presta, né? Mas só que
foi ela quem me botou pra cá. Eu culpo mais os meus pais por eu
estar nessa vida (A., Barra da Ceará, feminino, 17 anos).
Essas falas me levam a pensar sobre quem são essas mulheres que estão
desempenhando o papel de mães, mas pensar sobre as representações
que essas mulheres têm sobre a maternidade seria o objeto de uma outra
pesquisa. Nosso objetivo agora é compreender as crianças e adolescentes
inseridos na rede de exploração sexual comercial a partir de representações
constituídas por elas sobre suas famílias, suas comunidades, o programa,
a sexualidade, as situações de violência e a política de atendimento. Assim,
o que pensam esses meninos e meninas sobre suas mães?
Há uma associação inegável da figura materna com as situações de
violência. Sabemos que a violência é muitas vezes utilizada como a forma
mais rápida, e, até mesmo, bastante aceita para resolução de conflitos.
Isso faz com que as práticas violentas sejam compreendidas como atitudes
naturais, e que elas detenham uma legitimidade. Nas narrativas dos sujeitos
que foram alvos dessa modalidade de resolução de conflito, a violência é
inaceitável e causadora de mágoas e ressentimentos capazes de quebrar
laços familiares.
Em diversas histórias se percebe a omissão da mãe no tocante às
situações de abuso sexual por parte de pessoas conhecidas, sobretudo os
padrastos, como apontado pelos estudiosos e profissionais que atuam nessa
área. Mas nesta nossa pesquisa não podemos afirmar que exista uma
recorrência grande de situações de abuso sexual por parte dos padrastos.
Elas foram relatadas, porém numa freqüência menos destacada do que
esperávamos. O que foi mais freqüente foram os relatos de mães que
preferiram a companhia de seus companheiros, geralmente violentos e com
dependência química, do que a de seus filhos e filhas. Isso foram motivos
apontados por eles como decisivos para suas idas às ruas. Então, o que
essas mulheres-mães estão buscando? O que procuram? O que as deixa
satisfeitas?
82
GLÓRIA D IÓGENES
Apesar dessas diversas situações de violência desencadeada pela figura
materna na vida das meninas e dos meninos envolvidos na rede de
exploração sexual comercial, os jovens entrevistados ainda sonham em
poder dar a suas mães e às suas famílias uma vida melhor, menos miserável
e sem conflitos permanentes. Essa multiplicidade de sentidos atribuídos à
figura materna, seja ela a representação da violência ou da proteção, faz
das mães figura cruciais para o entendimento do fenômeno da exploração
sexual comercial de crianças e adolescentes, além de trazer de maneira
mais destacada como essas mulheres-mães precisam estar no foco das
intervenções das políticas publicas e sociais.
Essas mulheres devem ser entendidas, antes de tudo, como mulheres
que desempenham várias funções na vida social, entre elas a de mãe. Então,
se percebemos através das falas de seus filhos e filhas uma dose excessiva
de impaciência, intolerância e amargura, fruto de um passado e de um
presente de violências que elas também sofreram e sofrem de diversas
formas, cabem as ações de intervenção na área da garantia dos direitos
de crianças e adolescentes, compreendendo esses sujeitos como integrantes
de diversos grupos familiares que também merecem e devem ser cuidados.
E
A FIGURA MASCULINA , ONDE ENTRA NESSA HISTÓRIA ?
Apesar de diversa e múltipla, a composição familiar relatada pelos
jovens que participaram dessa pesquisa tem a figura feminina aparecendo
em destaque em contraposição à figura masculina, que é quase uma
raridade. Uma parte significativa desses meninos e meninas vive atualmente
sem a presença masculina do pai, como mostra a tabela abaixo, e estamos
falando de crianças e adolescentes que possuem naturalmente um curto
período de vida:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
83
17 e 2. COM QUEM MORA ATUALMENTE?
MASCULINO
ATÉ 12 ANOS
DE 13 A 15 ANOS DE 16 A 18 ANOS
TOTAL
PAI
0
0,0%
2
10,5%
16
12,3%
18
11,9%
MÃE
1
50,0%
7
36,8%
30
23,1%
38
25,2%
PAI E MÃE
0
0,0%
2
10,5%
12
9,2%
14
9,3%
COMPANHEIRO
0
0,0%
0
0,0%
2
1,5%
2
1,3%
AMIGOS
0
0,0%
0
0,0%
31
23,8%
31
20,5%
SÓ
0
0,0%
1
5,3%
5
3,8%
6
4,0%
FILHOS E MÃE/PAI
1
50,0%
7
36,8%
34
26,2%
42
27,8%
TOTAL
2
100,0%
19
100,0%
130
100,0%
151
100,0%
MASCULINO
ATÉ 12 ANOS
DE 13 A 15 ANOS DE 16 A 18 ANOS
TOTAL
PAI
0
0,0%
7
11,3%
24
8,9%
31
9,1%
MÃE
4
40,0%
19
30,6%
72
26,7%
95
27,8%
PAI E MÃE
0
0,0%
4
6,5%
19
7,0%
23
6,7%
COMPANHEIRO
0
0,0%
3
4,8%
14
5,2%
17
5,0%
14,6%
AMIGOS
2
20,0%
6
9,7%
42
15,6%
50
SÓ
0
0,0%
1
1,6%
22
8,1%
23
6,7%
FILHOS E MÃE/PAI
4
40,0%
22
35,5%
77
28,5%
103
30,1%
TOTAL
10
100,0%
62
100,0%
270
100,0%
342
100,0%
Isso nos leva a questionar qual a representação de uma figura masculina
no contexto familiar de crianças e adolescentes envolvidos na rede de
exploração sexual comercial? Será que essa falta ou ausência não faz com
que as meninas e os meninos construam representações cada vez mais
negativas sobre a figura masculina? Nos relatos apresentados nessa
pesquisa, grande parte dos jovens que vivem longe de seus pais disseram
não ter muito contato com os eles, e muitos não sabem onde eles estão.
Frutos dos novos rearranjos familiares, como foi mencionado anteriormente,
o que percebemos é que a figura masculina que compõe as famílias dos
jovens é normalmente representada pelos padrastos:
Foi com 9 e que aí foi que a minha mãe veio me apresentar o meu
padrasto. No começo foi tudo bom. O meu irmão já estava grande,
eu não estava nem reconhecendo ele. Aí foi que passou um bom
tempo e eu comecei a não me dar bem com meu padrasto, porque
o meu padrasto vivia brigando com a minha mãe. Eu já vi até o
meu padrasto bater na minha mãe. Aí eu comecei a brigar com
ele, a discutir (J., Terminal da Lagoa, feminino, 14 anos).
84
GLÓRIA D IÓGENES
Depois dos 9 anos a minha mãe se separou do meu pai. Aí teve
a maior putaria. A gente teve que escolher com quem ficar. Eu
fiquei com meu pai porque eu não gostava da minha mãe. E o
resto dos meus irmãos ficaram todos com a minha mãe. Com meu
pai eu pensei que teria uma infância legal, mas eu não tive tempo.
A minha madrasta batia em mim. Eu voltei pra casa da minha mãe
encontrei o Fofão, que era o meu padrasto. Ele tentou fazer comigo
a força, né? Eu disse pra minha mãe e ela não acreditou. E eu
fiquei com aquela raiva. Aí eu também não quis mais morar com
ela. Eu tentei viver a minha vida. Comecei a andar na casa da
minha tia, e da casa da minha tia eu comecei a encontrar as coisas
ruim, né?, droga, isso e aquilo. E por aí foi (E., Barra do Ceará/
Padre Andrade, feminino, 18 anos).
A minha mãe não tem casa própria. Ela mora com o meu padrasto,
e ele é muito ruim, é muito briguento (...), já me deu uma carreira
quando eu tava grávida da minha primeira filha (...), porque quando
ele bebe, ele fica esculhambando. Já essa semana eu tava numa
barraca, no ponto, e ele tava bebendo do outro lado, estava só
me esculhambando (M., Castelão, feminino, 17 anos).
Aí depois a minha mãe se separou do meu pai por causa que o
meu pai foi preso. Aí começou a andar um policial lá em casa e a
minha mãe foi gostando desse policial, aí se ajuntou mais ele.
Quando o meu pai chegou da prisão, aí meu pai chorou foi muito
nos pés da minha mãe, e a minha mãe disse que não queria mais
ele; ele pegou e disse que tava certo. Aí ele foi morar lá na casa
da minha avó. (...) A minha relação com meu padrasto era ruim
porque eu não gostava dele, por causa que ele vivia me batendo.
A minha mãe deixou de ficar comigo pra ficar com ele (J., Barra
do Ceará/ Padre Andrade, feminino, 12 anos).
Os conflitos com os padrastos são praticamente comuns nas narrativas
dos jovens entrevistados nessa pesquisa. Como já foi dito anteriormente,
assim como as relações com as mães são conflituosas, com os padrastos
esses conflitos são muito mais graves. Podemos até mesmo afirmar que
dos jovens entrevistados quase nenhum avaliou que possui um bom
relacionamento com seus padrastos. Então, se é praticamente inerente às
formações contemporâneas das famílias a presença de um padrasto, como
as políticas públicas podem atuar para orientar na resolução desses conflitos
existentes? Será que existem nas ações desenvolvidas no interior das
comunidades iniciativas que mediam os conflitos intrafamiliares, ou as ações
só são desenvolvidas nas esferas extrafamiliares?
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
85
Quando há a presença paterna nas histórias de vida dos jovens que
participaram dessa pesquisa, no caso dos jovens homossexuais, como
veremos em capítulos posteriores, a dificuldade em aceitar a condição
sexual de seus filhos reflete a marca de uma sociedade ainda machista e
autoritária, na qual o homem tem o tempo todo que se mostrar forte e
viril. A dificuldade em aceitar a condição homossexual de seus filhos é
marcada por mais uma situação de violência na vida desses jovens. Dessa
vez, essa situação, que é histórica e traz marcas culturais, se configura como
mais um grande paradigma a ser quebrado na tentativa de construir uma
sociedade mais justa e respeitadora da condição juvenil.
Mudar uma circunstância cultural é um processo longo, mas não
impossível de ser alcançado. As lutas pela igualdade de direitos sexuais e
da diversidade já avançaram em vários aspectos na sociedade em que
vivemos hoje, mas ainda há muito o que conquistar, principalmente em se
tratando dos jovens homossexuais. Os relatos abaixo mostram o preconceito
e a negação da homossexualidade de seus filhos por parte de seus pais:
Ele chegou em casa morto de bêbado e disse : “Tu quer ser boneca?
Pois tu vai ser boneca agora!”. Ele me trancou no quarto e aí rolou
a onda. Mas eu comecei a gostar também, menos com pai, porque
com pai eu achei, sei lá... eu me senti péssimo nesse dia. (...) por
que eu acho que um pai que é um pai não pode fazer isso com o
filho, não, nem que ele seja homossexual. Porque eu acho que
isso é um estrupo, isso é um crime. Mas eu não tive a iniciativa de
entregar ele a polícia e nem nada (X., Praia de Iracema, masculino,
17 anos).
A minha mãe pegou e me amostrou: “Aquele ali é o seu pai”. Aí eu
comecei a ter convivência com ele. Ele estava gostando de mim,
mas só que quando ele soube que eu estava virando homossexual,
ele não gostou, e ele me despistou, ele me deixou de lado, não quis
mais conversa comigo. Eu também não liguei. Eu saí e passei a morar
com a minha mãe (A., Barra do Ceará, masculino, 17 anos).
Que eu sou homossexual e faço programa? Agora, menos o meu
pai e o meu avô não sabem. Eles não aceitam. O meu pai um dia
chegou para mim e disse: “No dia que esse menino der para a
veado, ele pode pegar as malinhas dele e ir para outra casa!” (A.,
Barra do Ceará, masculino, 16 anos).
Assim, o que percebemos além das marcas socioculturais e histórias
implicadas nas representações dos homens que estão na condição de pais
GLÓRIA D IÓGENES
86
ausentes ou padrastos violentos na vida de crianças e adolescentes inseridos
nas redes de exploração sexual comercial é que a figura masculina possui
cada vez mais uma imagem negativa. Tanto por serem os homens os clientes
mais freqüentes nos programas que realizam, como por terem o lugar do
pai ocupado pelos padrastos. O que esta sociedade desigual em que vivemos
está produzindo para os jovens são concepções que fortalecem a
compreensão do homem como a representação da pior modalidade de
força. A força que oprime, que amedronta, que explora, que violenta em
uma diversidade enorme de situações.
Não devemos por isso achar que a melhor formação familiar é a nuclear,
composta pela “sagrada” formação pai-mãe-filhos, pois como diz Brasilmar
Ferreira Nunes (2003), a dificuldade em compreender a família
multifacetada e com múltiplos arranjos impõe a tarefa de descobrir o
ressurgimento de novas práticas de solidariedade, e, por que não, de
cooperação. Então, se trata de profundas mudanças na percepção do
simbolismo vinculado à instituição social família, não mais como referência
de sacralização e ordem, mas sim como de cooperação, pactuação e
desordem – no sentido de que é impossível supor que a relação indivíduosociedade pode acontecer sem algum tipo de conflito. O que é aceitável é
que esses conflitos não precisam necessariamente se materializarem em
situações de violência.
A PESAR
DE ... ALGUNS COMENTÁRIOS FINAIS
Toda vez que penso nas vivências das meninas e dos meninos nas redes
de exploração sexual comercial, me vem na lembrança um texto de Clarice
Lispector que está no livro Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres:
Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar
de, se deve comer. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas
vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.
Esse trecho é tão emblemático sobre as histórias desses meninos e
meninas que no dia que fui ler o livro da jornalista Elaine Trindade intitulado
As meninas das esquinas, tão grande foi minha surpresa quando vi esse
mesmo trecho abrindo o seu livro e ocupando o lugar de prefácio.
Apesar de possuírem uma vida conflituosa dentro dos espaços familiares
que vivem, os jovens ainda sonham em dar a suas famílias uma vida melhor
do que a que elas possuem. Apesar de construírem uma imagem negativa
sobre a figura masculina, ela ainda aparece como a representação de um
“príncipe encantado” com quem gostariam de formar suas famílias. Apesar
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
87
de saberem que suas trajetórias na rede de exploração sexual causa a
construção de imagens estigmatizadoras, esses jovens acreditam que um
dia terão um futuro mais saudável e feliz do que o presente violento que
possuem. Apesar de serem as meninas e os meninos da rede de exploração
sexual, isso para aqueles que operam as políticas de atendimento e que
militam na área, pois a sociedade os define de maneira bem mais
preconceituosa, eles são jovens que precisam ser compreendidos e ter seus
direitos adquiridos.
As adversidades e os contratempos são inerentes à experiência humana.
Os desafios são as tônicas que dão dinamicidade à vida, e fazem dela algo
imprevisível, sempre sujeito às surpresas. Para os jovens pobres urbanos,
os “apesar de” tomam um contorno mais contundente, pois são muitas
vulnerabilidades que os levam a trilhar caminhos violentos e violadores, e
mais ainda quando a decisão de sair precisa deixar de ser um ideal para
virar um fato real. O “apesar de” pode ser compreendido como um
mediador de decisões. Ele pode deixar de ser uma dúvída inibidora e se
apresentar como uma motivação superadora. É no momento da recusa
da vida nas ruas, fazendo os programas, que as intervenções devem ser
mais intensas e coerentes com a condição juvenil.
Só podemos viver numa sociedade em que as crianças e adolescentes
não precisem mais vender seus corpos, desejos e sonhos em nome de uma
diversidade de motivações, no dia em que estiver materializado as
prerrogativas de tantas normas, convenções e leis que regem a vivência
social dos homens e mulheres desta mesma sociedade. As políticas públicas
e sociais devem estar antenadas com as mudanças que ocorrem
constantemente e cientes da condição infantil e juvenil. A sociedade deve
se comprometer com as milhares de campanhas e ações de enfrentamento
a violência sexual que acontecem no Brasil e no mundo. Isso é um a luta
mundial. Mas será que estamos dispostos a fazer a nossa parte? Será que
compreendemos que temos algo a fazer?
Não se muda a concepção sobre a vida das meninas e meninos inseridos
na rede de exploração sexual comercial sem intervir na vida de suas famílias
ou na vida daqueles que consideram seus entes familiares. A família nunca
vai perder sua função de agente de socialização primária na vida dos
indivíduos que vivem em sociedade. Mas ela precisa ser compreendida
dentro de seus novos arranjos e dentro de suas novas referências.4
4. Acredito que já vivemos um momento de quebra de paradigmas sobre a compreensão
do atendimento integral na política da infância e adolescência, haja vista a articulação
em rede e a aceitação dos novos arranjos familiares que estão presentes no Plano
Nacional de Promoção, Defesa e Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes a
Convivência Familiar e Comunitária estabelecido em 2007.
88
GLÓRIA D IÓGENES
Quando os jovens pensam em mudar de vida, essa mudança está
entrelaçada com a mudança de vida de suas famílias também. A família é
um núcleo que possui uma função importante na vida social e faz parte da
predisposição dos indivíduos em viver em sociedade. Acredito que o único
paradigma sobre a referência familiar que não poderá ser quebrado é o
da compreensão de que ela é o lugar da afetividade, independente de como
ela esteja formada.
B IBLIOGRAFIA
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua. 5a ed., Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de
gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 2000.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC,
1989.
GOLDANI, Ana Maria. Família e pobreza no Brasil metropolitano: um
balanço dos anos 1980. São Paulo: Unicamp, 1995.
NUNES, Brasilmar Ferreira. Sociedade e infância no Brasil. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2003.
SIMMEL, Georg. “Sobre a sociologia da família”, in __________. Filosofia
do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
TRINDADE, Eliane. As meninas da esquina. 2 a ed., Rio de Janeiro:
Record, 2005.
VIOLÊNCIA:O COTIDIANO DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES EXPLORADOS
SEXUALMENTE
Alberto dos Santos Filho Barros1
As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e
é cansativo, para as crianças estar toda hora explicando.
Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe
Compreender o papel e o sentido da violência em suas manifestações
possibilita a construção de um olhar complexo acerca da dinâmica
sociocultural de uma sociedade ou de um dado grupo. Isso se torna ainda
mais necessário quando se trata de crianças e adolescentes em situação
de exploração sexual, pois a maioria deles foi e está exposta, desde cedo
a diferentes formas de violência. Nessa exposição em ambientes marcados
pela agressividade (casa, bairro, escola, rua, etc.), o preconceito é um fato
presente no cotidiano da vida dos meninos e meninas inseridos nas redes
de exploração sexual.
O fenômeno da violência é emblemático nos marcos da
contemporaneidade. Pode-se dizer que ele é multifacetado e apresentase de diversas formas: na literatura, no cinema, na mídia, no dia-a-dia das
pessoas em circunstâncias concretas, e muitas vezes apenas em seu
espectro, ou, de outro modo, através da sensação de que a qualquer
momento algum fato violento possa vir a se efetivar.
1. Graduando de ciências sociais pela Universidade Federal do Ceará. Integrante do
Laboratório de Estudos da Criança e do Adolescente da Fundação da Criança e da
Família Cidadã. Foi coordenador adjunto da presente pesquisa.
GLÓRIA D IÓGENES
90
A violência se traduz para além da esfera do acontecimento
propriamente dito. Ela se revela também no plano da linguagem e das
representações, como enunciação genuína, e, às vezes, legítima de conflitos
vivenciados no dia-a-dia da vida social.
Na presente pesquisa há de se constatar facilmente através dos diários
de campo dos pesquisadores, pelas informações que emergem nos
questionários e pela voz das próprias crianças e adolescentes nas entrevistas,
que a violência se fez e se faz presente em suas vidas antes e após a entrada
nas redes de exploração sexual. Apresentando-se, em muitos casos ainda,
no ambiente familiar, e possuindo uma continuidade na rua.
Um exemplo de tais situações pode ser identificado em um dos diários
de campo, no qual uma pesquisadora fala de crianças e adolescentes que
indicaram aceitar fazer sexo em troca de dinheiro e o realizam por serem
pressionados a fornecer dinheiro para a família:
Conheci crianças pedintes que perambulam nas praias, na faixa
etária de 10 a 14 anos, que aceitam convites obscenos para a
prática do programa porque são obrigados a levar para casa
determinada quantia, pois caso contrário são chamada atenção e
muitas são espancadas pelos seus familiares (Praia do Futuro,
Marcilene).
Essa situação foi perceptível de se constatar também quando os
pesquisados foram questionados se estariam enfrentando algum problema
na família, pois 47,1% disseram que sim, e 49% disseram que não, como
se visualiza na tabela 15:
15. ATUALMENTE ENFRENTA
PROBLEMA NA FAMÍLIA
TOTAL
SIM
148
47,1%
NÃO
154
49,0%
N.S. / N.R.
12
3,8%
TOTAL
314
100,0%
Dentre os que responderam que estão enfrentando algum problema,
54% afirmam que o principal problema, visto que os pesquisados podiam
evidenciar mais de um, é o “conflito familiar”, e em segundo lugar aparecem
os “problemas financeiros”, com 15,9%, conforme demonstra a tabela 16.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
15. QUAL PROBLEMA NA
FAMÍLIA
CONFLITO FAMILIAR
91
TOTAL
95
54,0%
PROBLEMAS FINANCEIROS
28
15,9%
PROBLEMA DE SAÚDE
11
6,3%
DROGAS
5
2,8%
PRECONCEITO
7
4,0%
OUTROS
27
15,3%
N.S. / N.R.
3
1,7%
176
100,0%
TOTAL
Essas respostas atestam que muitas vezes o conflito na família é mais
recorrente e mais significativo para esses meninos e meninas que o tão
aludido problema de ordem financeira. É interessante observar que mesmo
o preconceito, aparecendo com 4% na tabela citada, nos dados qualitativos
(diários de campo e entrevistas) é extremamente nítido que ele está
presente de forma destacada na vida desses meninos e meninas, ainda em
casa. Elucidativo é o relato do adolescente G.: “Ninguém me aceitava
porque eu era gay. Eu já levei uma surra porque eu disse que era gay. A
minha mãe era o ó”2 (G., Castelão, masculino, 17 anos).
A pesquisa constatou ainda que a vivência da violência além da esfera
doméstica assume uma continuidade na rua, sendo geralmente cometida
por atores sociais com os quais esses meninos e essas meninas convivem
cotidianamente, como os “clientes”, os “colegas da rua”, os policiais, etc.
É comum também que eles mesmos figurem como agentes chegando a
cometer ou revidar violências.
Através de uma conversa de uma das pesquisadoras com um vigia,
registrada em seu diário de campo, pôde-se reparar como o risco e a
violência perpassam atores que estão situados em pontos diversos de uma
rede social ampliada de exploração sexual:
O vigia contou também que as meninas sofrem muita violência
ali, que os homens não querem pagar as “bichinhas”. Disse que
lembra de um caso de uma garota que atirou uma pedra no carro
2. “O ó” é uma abreviação da expressão “o ó do borogodó”, que designa algo ou
alguém extremamente desagradável.
92
GLÓRIA D IÓGENES
de um cliente porque ele se recusou a pagar. O vigia deu abrigo
para ela no posto, escondendo-a dentro de um dos caminhões
que ficam estacionados no local, pois o homem estava armado.
O homem procurou a menina pela avenida dando “duas voltas”,
mas como não a encontrou, desistiu e foi embora. O vigia ressalta
que conversou com a menina e a aconselhou não aparecer mais
ali para evitar que o cliente voltasse para “pegá-la” (Castelão,
Nelydélia).
Observa-se que as reações e estratégias utilizadas por eles e elas para
escaparem dos perigos são diversificadas, desde jogar uma pedra no carro
de um “mau cliente” até se esconder em um caminhão, intermediados por
um vigia.
Desse modo, a violência se constitui na linguagem mais comum e
assimilada por eles, se tornando uma tática cotidiana na luta pela
sobrevivência, sendo o corpo seu território de combate. Corpos esses que
tentam ocupar posições estratégicas nos espaços sociais nos quais estão
inseridos. Em outras palavras, o habitus incorporado por eles, esse
conhecimento adquirido, de que fala Bourdieu (1998), é o da violência.
Uma vez que esses meninos entram em contato com a violência desde
muito cedo em suas próprias casas, e continuam convivendo com ela ao
saírem para a rua, apropriam-se desta “linguagem”, desse modo de agir
como o mais familiar de defesa, sendo um signo de sociabilidade
compartilhado e recorrentemente utilizado em suas “lutas” diárias.
Não se descarta que a casa e a rua também produzam redes de
solidariedade. Entretanto, não há como não se deter sobre o fenômeno da
violência, visto que ela ocupou lugares e falas tão sugestivas no escopo dessa
pesquisa.
A violência deixa muitas vezes sobre os corpos suas marcas e registros
concretos. No entanto, além desses registros, deixa outras marcas não
visíveis, que são tão ou mais profundas. São experimentadas por esses
meninos e meninas, além das agressões físicas, situações de discriminação,
de medo, de preconceito e estigma que recebem dos familiares, vizinhos,
conhecidos do bairro, desconhecidos, etc. Esse tipo de violência está mais
explicitado no capítulo referente ao programa.
Observa-se, por exemplo, no relato do adolescente F., de 17 anos, como
ele teve de lidar em casa com situações de agressões físicas e de
preconceito:
Eu morava com os meus pais, mas só que o meu pai me batia. Aí
eu fui morar com a minha vó. Eu saí de casa porque o meu pai me
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
93
batia, ainda me bate. Foi minha mãe que me tirou de lá e me levou
pra morar com a minha vó. Agora eu moro lá onde a minha vó
mora. Por que quando ele me agredia, ele agredia também a minha
mãe, porque ela me defendia.
Só eu que saí de casa. Mas na realidade eu não saí ainda porque
eu vim morar perto da minha mãe de novo. A minha mãe foi quem
mandou. Mas é a mesma coisa. Ainda não mudou nada. Eu ainda
moro com os meus pais. A minha mãe gosta mais de mim do que
meu pai, porque ele não gosta de mim, ele não aceita eu ser desse
jeito. Ele não gosta de homossexual.
[Minha irmã] é mais velha. E ela me bate também. Mas eu não
posso fazer nada porque ela é mais velha. Às vezes eu falo com
ela e ela me humilha. Ela gosta de me humilhar, de bater na minha
cara, puxar meu cabelo. Ainda hoje ela puxou o meu cabelo. Eu
não posso nem fazer nada porque ela é minha irmã mais velha. E
também eu não gosto de briga (F., Castelão, masculino, 17 anos).
O adolescente F. tem entre os seus principais agressores o pai e a irmã
mais velha. Segundo ele, a situação de preconceito é expressa por conta
de sua orientação sexual: “A minha mãe gosta mais de mim do que meu
pai, porque ele não gosta de mim, ele não aceita eu ser desse jeito. Ele
não gosta de homossexual”.
Sua mãe também vivencia agressões do pai, quando tenta defendê-lo.
Segundo o relato, a solução encontrada por ela foi deslocá-lo para da casa
da avó. Desenhado esse impasse, ele busca uma alternativa para a sua
vida que possa garantir aceitação. Encontra essa saída em um mundo
marginal, na batalha diária da pista, sendo explorado sexualmente e
correndo todos os riscos que essa trajetória implica. No entanto, tudo isso
parece ser mais suportável que o próprio espaço familiar.
Ao analisar a exploração sexual através do contato direto com as
crianças e adolescentes participantes dessas redes, e observando seu
cotidiano, ouvindo e analisando suas histórias de vida, percebe-se que a
violência não possui uma localização, não é uma situação circunstancial.
Ela se apresenta em vários momentos de forma múltipla e difusa, ficando
assim expressa no percurso desses meninos e meninas.
Desse modo, a violência não pode ser pensada apenas na dimensão
do imediato, da situação concreta e dos sinais físicos deixados pelo abuso,
exploração sexual, agressão física. Para além das marcas visíveis que
aparecem nos corpos, ela também deixa danos subjetivos que ferem as
almas, causando fissuras indeléveis.
GLÓRIA D IÓGENES
94
A
VIOLÊNCIA SE INICIA EM CASA
Considero fundamental, portanto, ao nos determos no processo de
inserção de meninos e meninas nas redes de exploração sexual, que se dê
uma atenção especial à condição familiar, mais especificamente às
experiências com a violência doméstica. Ela atua como elemento
potencializador na busca por autonomia dos familiares, conforme discutido
do capítulo relativo aos “sete sentimentos capitais”. Sendo assim, a
passagem para a inserção na rede de exploração sexual é uma possibilidade
que poderá propiciar uma relativa condição de autonomia. É obvio que
além dela emergirão todas as dificuldades implicadas nessa atividade.
A dinâmica familiar dessas crianças e adolescentes está fortemente
marcada pela violência em casa. Esse fato ficou expresso em nossa
pesquisa uma vez que foi perguntado se eles haviam presenciado essa
violência. Como se pode observar na tabela 20, a violência doméstica está
presente em 55,8% do total de entrevistados:
20. JÁ PRESENCIOU
VIOLÊNCIA EM CASA?
TOTAL
SIM
183
55,8%
NÃO
133
40,5%
N.S. / N.R.
12
3,7%
TOTAL
328
100,0%
Vê-se pela próxima tabela que dentre esses 55,8% dos entrevistados
que já presenciaram violência em casa, 36,9% são relativas a crianças e
adolescentes. Esse percentual somado com a mãe e os irmãos chega a
93,2% do total das vítimas, como mostra a tabela 21, a seguir. Nessa
questão os pesquisados também poderiam indicar mais de uma resposta:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
21. QUEM SOFREU A
VIOLÊNCIA?
95
TOTAL
EU
183
55,8%
IRMÃOS
133
40,5%
MÃE
12
3,7%
PAI
328
100,0%
MADRASTA
0
0,0%
PADRASTO
3
1,1%
OUTROS PARENTES
6
2,3%
263
100,0%
TOTAL
Esses dados evidenciam que as experiências cotidianas de brigas,
conflitos e violências no interior da casa estão entrecortados pela vontade
de buscar alternativas rápidas para uma desvinculação com essa esfera de
vida, isto é, quando por vezes não é o próprio ente da família que incentiva
essas crianças e adolescentes a deixarem que seus corpos sejam explorados.
Pode-se exemplificar esse fato com um dado concreto, com o caso da
adolescente C.:
FCO HÉLIO – Eu queria primeiro que tu me contasse como foi a
tua infância.
C. – Foi péssima, porque a minha mãe botou logo um macho
dentro de casa. Ela me espancava muito. Era eu e mais duas irmãs.
Cada uma saiu cedo de casa. Uma saiu com 14, outra saiu com
13, e a outra saiu com 15, porque a gente não agüentava (C., BR
116. feminino, 18 anos).
Pode-se observar no relato de C. que as agressões cometidas pela mãe
contra as filhas fizeram com que as mesmas saíssem de casa entre 13 e 15
anos. Os espancamentos as induziram a buscar alternativas mais suportáveis
e possíveis de serem trilhadas, tendo em vista as suas condições de seres
em desenvolvimento que precisam de proteção integral. Essa busca culmina
com a entrada dessas meninas na rede de exploração sexual.
Verifica-se ainda, conforme o relato anterior e a tabela 22, a seguir,
que geralmente os agressores são as pessoas mais próximas da vítima. O
pai aparece com 31,1%, o padrasto com 23,6%, os irmãos com 17% e a
mãe com 12,7%. Vale ressaltar que essa questão é também de múltipla
escolha:
GLÓRIA D IÓGENES
96
22. QUEM COMETEU A
VIOLÊNCIA?
TOTAL
EU
8
3,8%
IRMÃOS
36
17,0%
MÃE
27
12,7%
PAI
66
31,1%
MADRASTA
4
1,9%
PADRASTO
50
23,6%
OUTROS PARENTES
21
9,9%
TOTAL
212
100,0%
A violência é exercida pelas pessoas mais próximas, certamente pelo
fato de as mesmas se constituírem como “autoridades” para essas crianças
e adolescentes, ou seja, exercem uma violência também de natureza
simbólica, no sentido de que fala Bourdieu. Segundo ele, os dominados
também compactuam com a dominação por fazerem parte de uma
estrutura em que os papéis de dominantes e dominados estão estabelecidos
e são “naturalizados”, tanto para um quanto para outro. Assim, o autor
argumenta que:
A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o
dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto,
à dominação) quando ele dispõe, para pensá-la e para se pensar,
ou melhor, para pensar a relação com ele, mais que de
instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que,
não sendo mais a forma incorporada da relação de dominação,
fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos,
quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar,
ou para ver e avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/
feminino, branco/negro, etc.), resultam da incorporação de
classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto
(Bourdieu, 2007: 47).
No caso da agressão física e do abuso sexual por parte dos tutores,
eles partem do princípio de que os dominados (geralmente, filhos, enteados
e esposas) são propriedade suas, e munidos dessa condição podem usufruir
à vontade deles. Para os dominados, a situação de maus-tratos é vista em
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
97
alguns casos como “natural”. Eles encaram o dominador, de modo geral,
como uma pessoa com “autoridade” sobre eles, e entendem que devem
permanecer naquela posição social de subalternidade; isso é mais
recorrente, pelo menos no caso da exploração sexual, com crianças.
As violências pelas quais essas crianças e adolescentes foram expostas
são as mais variadas, sendo que a violência doméstica lidera a estatística,
com 45%, a agressão verbal aparece com 23%, as ameaças com 11,3%,
violência sexual com 7,9%, como mostra a tabela 23. Do mesmo modo
que nas questões anteriores, foi levado em consideração que uma mesma
pessoa poderia ter sofrido mais de um tipo de agressão, portanto, foi
registrado um número mais elevado de respostas do que o número de
entrevistados:
23. QUE TIPO DE VIOLÊNCIA?
TOTAL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
131
45,0%
VIOLÊNCIA SEXUAL
23
7,9%
AGRESSÃO VERBAL
67
23,0%
AMEAÇAS
33
11,3%
AGRESÃO FÍSICA
27
9,3%
TENTATIVA DE HOMICÍDIO
4
1,4%
OUTROS
4
1,4%
N.S. / N.R.
2
0,7%
291
100,0%
TOTAL
Vejamos um trecho de outra entrevista, como a E., de 18 anos, na qual
a convivência com a violência doméstica foi um fato constante e significativo
em sua história de vida, pois a mesma foi vítima de agressões físicas e
tentativas de abuso:
A minha infância foi normal até os 9 anos. Depois dos 9 anos a
minha mãe se separou do meu pai. Aí teve a maior putaria. A
gente teve que escolher com quem ficar. Eu fiquei com meu pai,
porque eu não gostava da minha mãe. E o resto dos meus irmãos
ficaram todos com a minha mãe. Com meu pai eu pensei que fosse
ter uma infância legal, mas eu não tive tempo. A minha madrasta
batia em mim. Eu voltei pra casa da minha mãe e encontrei o
Fofão, que era o meu padrasto. Ele tentou fazer comigo a força,
GLÓRIA D IÓGENES
98
né? Eu disse pra minha mãe e ela não acreditou. E eu fiquei com
aquela raiva. Aí eu também não quis mais morar com ela. Eu tentei
viver a minha vida. Comecei a andar na casa da minha tia, e da
casa da minha tia eu comecei a encontrar as coisas ruim, né?,
droga, isso e aquilo. E por aí foi (E., Barra do Ceará, feminino, 18
anos).
Na entrevista de E. encontra-se um caso de omissão da mãe. Após a
separação, E. ficou morando com o pai. Observa-se que essa experiência
acabou sendo negativa, tendo em vista que a madrasta passou a agredi-la,
levando E. a buscar refúgio na casa da mãe. Na residência da mãe ela se
defronta com o padrasto, que tentou abusar dela sexualmente. Ao relatar
o caso para a mãe, acaba caindo no descrédito. Num ambiente total de
negligência, vítima de violências físicas e marcada pelo afastamento da mãe,
a entrada dessa jovem no mundo da exploração sexual parece ser uma
alternativa factível e emergencial para o alcance da referida autonomia.
Como demonstra suas palavras: “Eu tentei viver a minha vida”.
Em relação à violência sexual em casa, constatou-se o número
significativo de 14% de entrevistados que presenciaram este tipo de
violência, conforme aponta a tabela 24:
24. JÁ PRESENCIOU VIOLÊNCIA SEXUAL EM CASA?
TOTAL
SIM
46
14,0%
NÃO
262
79,9%
N.S. / N.R.
20
6,1%
TOTAL
328
100,0%
As principais vítimas da violência sexual doméstica foram os próprios
entrevistados, com 64,4%; os irmãos aparecem com 22% e a mãe com
11,9%, segundo a tabela 25. Nessa pergunta, os entrevistados também
poderiam indicar mais de uma resposta, tendo em vista que mais de uma
pessoa na casa poderia ter sido vítima dessa violência:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
25. QUEM SOFREU A
VIOLÊNCIA SEXUAL?
99
TOTAL
EU
38
64,4%
IRMÃOS
13
22,0%
MÃE
7
11,9%
PAI
0
0,0%
MADRASTA
0
0,0%
PADRASTO
0
0,0%
OUTROS PARENTES
1
1,7%
TOTAL
59
100,0%
Assim como os demais casos de violência, quem mais comete a violência
sexual em casa, segundo a tabela 26, é o padrasto, com 38,8%; o pai é
responsável por 24,5% dos casos, os irmãos aparecem com 8,2%, e “outros
parentes” com 26,5%.
26. QUEM COMETEU A
VIOLÊNCIA SEXUAL?
TOTAL
IRMÃOS
4
8,2%
MÃE
1
2,0%
PAI
12
24,5%
MADRASTA
0
0,0%
PADRASTO
19
38,8%
OUTROS PARENTES
13
26,5%
TOTAL
9
100,0%
Outra tabela que evidencia a violência sexual doméstica é a referente
ao estupro. Indagados se já haviam sofrido estupro, 21,8% responderam
afirmativamente, com 74,1% indicando “não”, conforme pode ser
visualizado na tabela 37:
GLÓRIA D IÓGENES
100
37. JÁ SOFREU ESTUPRO?
SIM
TOTAL
71
21,6%
NÃO
243
74,1%
N.S. / N.R.
14
4,3%
TOTAL
328
100,0%
Na tabela 38 observa-se que o padrasto aparece com 14,1% , o pai
com 7%, o irmão e o tio com 5,6% cada um. Portando, os familiares
aparecem com 32,3%, figurando entre os principais agentes responsáveis
pelo estupro, ratificando que, notadamente, muitos dos meninos e meninas
presentes nas redes de exploração sexual foram acometidos por violações
no seio familiar:
38. QUEM FOI O RESPONSÁVEL PELO ESTUPRO?
TOTAL
POLICIAIS
2
2,8%
OUTROS
4
5,6%
IRMÃO
4
5,6%
AMIGO
9
12,7%
CLIENTE
14
19,7%
DESCONHECIDO
13
18,3%
N.S. / N.R.
2
2,8%
NAMORADO
1
1,4%
PADRASTO
10
14,15
PAI
5
7,0%
TIO
4
5,6%
VIZINHO
3
4,2%
TOTAL
71
100,0%
Deve-se levar em consideração ainda que a vivência da violência,
especialmente a violência sexual, principalmente no âmbito das famílias,
produz traumas emocionais bem mais difíceis de serem recompostos. É
certamente no campo da sexualidade que a presença incômoda desses
traumas vai se expressar.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
101
Seguido desses dados mais quantitativos, vejamos através de um trecho
da história de vida da adolescente D., de 17 anos, no qual são relatados os
dramas vividos por ela no ambiente doméstico, deixando assim ainda mais
evidenciado o seu imaginário em relação às condições concretas delineadas
na vida familiar, como tantas outras:
D. – A minha infância pra mim foi tudo muito difícil porque a gente
conviveu com o meu pai, com a minha mãe. Nós somos oito e
sempre com brigas e discussões. Com o tempo a minha mãe
abandonou a gente e eu fiquei com o meu pai, eu e minhas outras
irmãs. E minha mãe foi embora porque o meu pai só sabia beber,
bater nela, e batia na gente também. Eu tinha cinco anos.
HELENA – E tu lembra dessas brigas? Como é lembrar?
D. – É muito difícil, cara, assim, dá pra entender, mas só que é
um pouco revoltante, porque pra mim é como se fosse hoje,
porque eu tenho muita raiva da minha mãe, mas eu vejo que ela
não é no total culpada, mas é a questão dela não ter me dado o
amparo. Mas eu entendo a parte dela de ter ido embora devido às
brigas, as confusões. E aí ela abandonou a gente, deixou a gente
com o meu pai. Daí os meus irmãos uns foram pra São Paulo,
outros começaram a vida e tal, começaram a trabalhar cedo.
HELENA – E você ficou morando com o seu pai e mais quem?
D. – Eu fiquei morando com o meu pai e as quatro mulheres. E
sempre essa coisa de nós quatro com ele. Aí ele passou a usar a
minha irmã mais velha, a Bárbara...
HELENA – A abusar?
D. – A abusar dela realmente.
HELENA – Como é que você soube que ele estava abusando?
D. – Eu via toda a cena. Ele não respeitava, a gente via toda a
cena. Eu achava aquilo normal, pra mim era normal, sei lá, era
como se fosse algo que teria que acontecer. E daí a minha irmã
ficava chorando.
HELENA – Ela era mais nova ou mais velha?
D. – Mais velha. Ela ficava chorando, e ele abusando dela, batia
nela, ele falava pra ela calar a boca e ela calava. Teve um tempo
que ela não agüentou mais e foi pro interior. Aí o meu pai passou
a me usar, com sete anos ele me tocou e aos oito anos ele abusou
de mim sexualmente.
HELENA – Como foi que você se sentiu?
D. – Cara, foi muito difícil pra mim porque ele me machucou muito.
E ele começou a falar que ele não teria culpa, que foi eu que fiz e
102
GLÓRIA D IÓGENES
ele só fez o que eu queria. E até hoje eu carrego essa culpa comigo,
porque, primeiro, ele é meu pai, mas antes eu encarava isso como
se fosse uma coisa normal... E eu ficava calada. Aí, lá pros meus
10, 11, 12 anos ele me dava dinheiro e eu cedia pra ele.
HELENA – Fala um pouco sobre isso. Quando você tinha 10 anos
ele passou a te dar dinheiro. Fala um pouco sobre isso, como era
isso? Por que ele passou a te dar dinheiro?
D. – Porque eu passei a estar mais difícil e ele ficou com medo de
eu falar pra alguém. E era como se ele me comprasse, ele me dava
dinheiro.
HELENA – É assim que você se sente, como se ele te comprasse?
D. – É assim que eu me sinto. E ele me dava dinheiro. Pra mim
era só aquilo, e eu ter o dinheiro e pronto, eu ia ter o dinheiro e
ia comprar o que eu queria, essas coisas. E eu me tornei
dependente, tá entendendo? Pra mim isso era simples, porque eu
achava que era só eu ceder pra ele e eu teria dinheiro e pronto.
HELENA – E era assim que funcionava?
D. – Era assim que funcionava. E isso não era somente uma vez
ao dia, era 3 vezes, 4 vezes, dependendo. E a partir do momento
que eu entrava em casa acontecia. Ele trancava a porta e me dava
dinheiro, e tipo eu gostava, tá entendendo? Só que tinha muitas
vezes que eu sentia prazer e muitas não; muitas era só pelo dinheiro
e muitas era pelo prazer e pelo dinheiro. Isso foi se tornando
constante, constante e eu passei a prostituir. Ficou o vício
também. Foi as minhas primeiras vezes. O único programa fora
que eu tive foi o desse motel. E voltando ao assunto desse cara,
sempre ficou sendo constante, todos os dias eu ia pro motel com
ele.
HELENA – E o teu pai, onde estava nessa história? Ele continuava
te abusando?
D. – Continuava. Eu me prostituía pro cara e quando eu chegava
em casa me prostituía pra ele. Eles me usavam.
HELENA – Os dois te davam dinheiro?
D. – Os dois me davam dinheiro. E eu sempre com dinheiro. Com
o passar do tempo...
HELENA – O que você fazia com esse dinheiro?
D. – Eu comprava patins pra mim, comprava coisas pros meus
colegas, só essas coisinhas assim, roupa, chilitos, bota, só pra
ajudar a minha tia até, né? Muitas vezes eu me prostituí porque...
eu sei que isso não justifica, mas a minha tia tava doente e tal, e
era sempre eu, eu dava o dinheiro pra ela e dizia: “Tia, taí R$20,00,
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
103
a senhora compra o que der”. Ela nunca chegou a me pedir
dinheiro, eu chegava e dava.
HELENA – Ela não te perguntava onde tu arranjava o dinheiro?
D. – Ela nunca perguntava. Nunca ninguém da minha casa
perguntou (D., Terminal da Lagoa/ Praia de Iracema, feminino,
18 anos).
Desde os cinco anos, D. testemunha as agressões que eram cometidas
pelo seu pai contra sua mãe. E isso, segundo ela, justificou o abandono
dos filhos por parte mãe. A situação, de acordo com os relatos, agravouse. Os filhos saíram de casa, ficaram as meninas, então, submetidas aos
“cuidados” do pai. Este passou a abusar sexualmente das filhas.
D. teve que presenciar a irmã mais velha sendo violentada em casa,
diante dos seus olhos, assistindo toda cena de abuso pela qual a irmã foi
submetida, até que a insuportabilidade provocou seu deslocamento para
um local distante: o interior do estado. Nesse momento, D. passou a ser
silenciosamente abusada pelo pai, quando tinha apenas 7 anos. Ela
“consentia” a dominação do pai. O fato de ter crescido vendo a mãe ser
espancada por ele desde os cinco anos, visto a irmã ser abusada, a
influenciou “naturalizar” essa relação de dominação sob o efeito da “magia
do poder simbólico”. Sobre o fato da irmã está sendo abusada, ela fala o
que sentiu na época: “Eu achava aquilo normal, pra mim era normal, sei
lá, era como se fosse algo que teria que acontecer”.
Bourdieu, quando fala que o “poder simbólico” é exercido com o
consentimento do dominado, mesmo contra a sua vontade, está indicando
que a estrutura social está tão arraigada nos indivíduos envolvidos que os
impede a não aceitação dessa dominação. Esse efeito da dominação
assume, por vezes, a feição de “emoções corporais”:
Os atos de conhecimento e de reconhecimento práticos da
fronteira mágica entre dominantes e os dominados, que a magia
do poder simbólico desencadeia e pelos quais os dominados
contribuem, muitas vezes à sua revelia, ou até contra sua vontade,
para sua própria dominação, aceitando tacitamente os limites
impostos, assumem muitas vezes a forma de emoções corporais –
vergonha, humilhação, timidez, ansiedade, culpa – ou de paixões
e de sentimentos – amor, admiração, respeito –; emoções que se
mostram ainda mais dolorosas, por vezes, por se traírem em
manifestações visíveis, como enrubescer, o gaguejar, o
desajeitamento, o tremor, à cólera ou a raiva onipotente, e outras
tantas maneiras de se submeter, mesmo de má vontade ou até
104
GLÓRIA D IÓGENES
contra a vontade, ao juízo do dominante, ou em outras tantas
maneiras de vivenciar, não raro conflito interno e clivagem do ego,
a cumplicidade subterrânea que um corpo que se subtrai às diretivas
da consciência e da vontade estabelece com as censuras inerentes
às estruturas sociais (Bourdieu, 2007: 51).
Quando D. passa a ser abusada, mesmo contra sua vontade, também
“naturaliza” essa relação (dominante/dominado). Mesmo não aceitando e
resistindo, ela de algum modo “autorizava” a dominação e a violência
simbólica que se entrelaçava à violência física. Por mais de três anos o pai
a culpava pelo fato de estar sendo abusada, culpa interiorizada no imaginário
dessa menina: “E até hoje eu carrego essa culpa comigo”.
E no exercício diário das violências simbólica e física, novos artifícios de
dominação vão surgindo. Nesse caso, o dinheiro passa a fazer parte da
moeda de troca da relação entre pai e filha. Como ela relata, quando tinha
mais ou menos 10 anos de idade, ele começa a “comprar” o seu silêncio.
Desse modo, “ensina” essa criança a trocar sexo por dinheiro, mantendoa sob seu domínio e ao mesmo tempo iniciando dentro de casa a sua
caminhada na exploração sexual. Ela se “acostuma” e às vezes sente prazer
na relação, mas gosta mais do dinheiro para possuir objetos próprios da
sua idade, como ela mesma fala: “Eu comprava patins pra mim, comprava
coisas pros meus colegas, só essas coisinhas assim, roupa, chilitos, bota...”.
Em casa ela foi abusada e explorada sexualmente e, quase que como
um caminho natural (violência simbólica), passa a ser explorada por um
outro homem que a levava para um motel, mesmo ela sendo menor de
idade. E assim “acostuma-se”, ou, em suas palavras, “vicia-se” nesse círculo
de trocar sexo por dinheiro.
Além de tudo isso, ela ajudava com dinheiro uma tia que nunca
perguntou, assim como nenhuma outra pessoa, como conseguia o dinheiro.
Isso revela o quanto essa menina foi negligenciada. A omissão de todos em
sua volta facilitou que sua trajetória fosse entrelaçada pelas tramas da
exploração sexual.
Todas essas agressões não passam e fixam-se na vida, de modo que
sempre emergem atingindo a pessoa de forma dolorosa e traumática. Como
ressalta Madeira:
É no corpo que se recebe a chibata, a faca, o choque, a palavra.
O mínimo ruído repercute, amplifica-se, expande-se e aprofundase nas linhas da fissura, fixa-se nos pontos em que o buraco é
mais profundo e a cicatriz menos suturada (1995: 285)
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
105
As palavras de E. mostram como as feridas, já cicatrizadas do corpo,
estão em sua memória e em sua alma ainda muito presentes:
Essa foi uma infância que me marcou muito, foi muito sofrimento
mesmo. Até quando eu me lembro, eu passo a chorar, quando eu
estou escutando uma música, assim, quando eu me lembro do meu
passado de infância. O meu passado de infância foi uma coisa
horrível, muito ruim, foi uma coisa que marcou muito na minha
vida esse passado, foi a surras que eu levava por causa dele
(padrasto)... foi um passado muito ruim, eu não gosto de lembrar
da minha infância (E., Terminal da Lagoa e Beira Mar, feminino
15 anos).
Mesmo com tantos maus-tratos, esses adolescentes se referem à mãe,
de modo geral, como objeto de amor. Porém, as marcas dos
espancamentos ainda estão na memória, conforme é indicado por E. ao
evocar o amor pela mãe e ao trazer à tona cenas dos espancamentos:
Tudo isso que ela fez com a gente. Aí, ainda hoje, ela diz que a
gente não ama ela. Mas a gente ama sim, mas também a gente se
lembra, doida, das coisa que a gente passamo (E., Terminal da
Lagoa e Beira Mar, feminino 15 anos).
Percebe-se, portanto, pelos dados quantitativos e qualitativos que os
maus-tratos iniciam-se, quase sempre, na experiência inaugural do tempo
da infância. Formando um quadro no qual as violências física e psicológica
e a arbitrariedade na esfera das relações caseiras são admitidas. É na
memória, enraizada nesses meninos e meninas vítimas dos familiares mais
próximos, que as marcas ficam irremediavelmente gravadas, deixando-os
impactados e ao mesmo tempo “travados” pelos atos violentos e
humilhações a que foram submetidos em suas casas.
C LIENTES
E DESCONHECIDOS : MEDOS , RISCOS , AGRESSÕES E
REVIDES
Como já vimos traçando no decorrer do texto, as crianças e adolescentes
convivem cotidianamente com a violência. Mesmo quando eles saem de
casa na tentativa de “fugir” do ambiente familiar conflituoso, na rua eles
também acabam por se deparar com situações de risco e violência.
Foi indagado ao público pesquisado se eles já haviam sofrido algum tipo
de maus-tratos na rua. A sinalização deles, que pode ser encontrada na
GLÓRIA D IÓGENES
106
tabela 27, revela que 64,9% afirmam que já foram vítimas de maus-tratos
na rua, e 32,9% não:
27. JÁ SOFREU MAUSNA RUA?
TOTAL
SIM
213
64,9%
NÃO
108
32,9%
7
6,1%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
É possível perceber na fala da adolescente E. que a rua se torna para
esses meninos e meninas um campo de batalha, onde se deve ficar atento
a todo instante, pelo fato de que violência poder vir de toda e qualquer
pessoa, de todo e qualquer lugar, e acontecer a toda e qualquer hora:
Porque na rua é assim, você pode estar vivo hoje e amanhã não.
Você pode estar dormindo e alguém chegar, como fazem lá no
São Paulo, naquela parada de ônibus, e tocam fogo ou atira nos
menino (E., Terminal da Lagoa e Beira Mar, feminino, 15 anos).
Eles são vítimas de quase todos os tipos de pessoas que cruzam suas
trajetórias de vida, pois, como já mostrado, muitos vivenciam ou vivenciaram
violência na família. Como evidencia a tabela 28, os maus-tratos na rua
são cometidos por “desconhecidos”, com 28,7%, e até por “amigos”, com
4,2%; por “clientes”, com 29%, e até por “policiais”, com 25,1%. Observase que aparecem mais respostas do que o número total de entrevistados,
visto que alguns pesquisados indicaram mais de uma categoria:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
28. QUEM COMETEU OS
MAUS-TRATOS?
107
TOTAL
VIZINHOS
7
2,1%
AMIGOS
14
4,2%
NAMORADO(A)
9
2,7%
POLICIAIS
83
25,1%
CLIENTES
96
29,0%
CONHECIDOS
14
4,2%
DESCONHECIDOS
95
28,7%
VIGIAS
4
1,2%
OUTROS
7
2,1%
N.S. / N.R.
2
0,6@
TOTAL
2
0,6%
A maior parte dos maus–tratos de que foram vítima foi relativo a
“agressões físicas”, com 47,4%, em segundo lugar as “agressões verbais”,
com 28,6%; em seguida as “ameaças”, com 14, 8%, e a “violência sexual”
aparece com 7%, como demonstra a tabela 29. Assim como em tabelas
anteriores, aparecem mais respostas do que o número total de
entrevistados:
29. QUE TIPOS DE
MAUS-TRATOS?
TOTAL
AGRESSÃO FÍSICA
176
27,4%
AGRESSÃO VERBAL
106
28,6%
AMEAÇAS
55
14,8%
VIOLÊNCIA SEXUAL
26
7,0%
PRECONCEITO
3
0,8%
OUTROS
2
0,5%
N.S. / N.R.
3
0,8%
371
100,0%
TOTAL
108
GLÓRIA D IÓGENES
Percebe-se por esse quadro que a maior incidência de violência sofrida
por parte desses meninos e meninas foram cometidas pelos “clientes” (29%)
e por “desconhecidos” (28,7%).
Foi constatado, nos dados referentes ao estupro já mencionados, que
os “clientes” e “desconhecidos” aparecem também como os principais
agressores sexuais. A tabela 37 evidencia que 21,6% dos 338 entrevistados
já foram vítimas de estupro. Desse universo, o “cliente” aparece como
principal autor dos estupros, com 19,7%, seguido pelos “desconhecidos”,
com 18,3%.
Alguns deles expressam o receio de entrar no carro de um
“desconhecido”, como se lê nas palavras do adolescente F.:
Às vezes eu não gosto de sair. Eu tenho medo. É aquela coragem
pra sair, entendeu? Porque sair com um homem que tu nem
conhece, não sabe nem o que aquele homem tem. Às vezes elas
(outros travestis) brigam muito comigo porque os carros param e
me chama, aí eu não vou, porque às vezes eu tenho medo, então
eu não saio com qualquer pessoa (F., Castelão, Masculino, 17
anos).
O medo de alguns deles é exatamente pela recorrência de casos em
que há agressões físicas (47,4%) por parte de “clientes”. E. descreve como
alguns “clientes” não são “legais”, podendo agredi-los de diversas formas,
chegando até a apontar uma arma para eles:
O cara às vezes exige. Tem uns que é legal e tem outros que não
é, às vezes trata a gente mal. Tem uns que quer ficar com a gente
a força, mesmo a gente não querendo, às vezes bota revólver na
cara, bate na gente, faz um bocado de coisa (E., Barra do Ceará/
Padre Andrade, feminino, 18 anos).
Percebe-se nas entrevistas que as agressões físicas e verbais sofridas se
dão geralmente por três motivos: primeiro, porque os meninos ou as
meninas não querem fazer o programa; segundo, pela quebra de
“contrato” por parte do “cliente”, ou seja, quando o mesmo faz o programa
e não quer pagar e os meninos e meninas reagem, estabelecendo, então,
o confronto físico; e, por último, por fetiche, fantasia.
Mas os pesquisados, em muitos casos, como se diz coloquialmente, “não
levam desaforo para casa”, e reagem contra seus agressores de formas
hostis. Os primeiros respondem com violência física, com provocação, com
xingamentos, “recebendo o troco” dos que não querem pagar o programa.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
109
No geral, tomam dinheiro ou algum objeto dos “maus clientes” usando a
força física ou através de estratagemas típicas de quem sobrevive na rua.
Vê-se um exemplo de agressão e reação comum do dia-a-dia dos
meninos e meninas relatado por um dos pesquisadores em seu diário de
campo, quando ele narra a história de um adolescente que se traveste no
Castelão:
Antes andava com outros meninos para roubar. Agora não faz
mais isso. Somente quando o cliente não quer pagar, aí ela pega
o “troco”. Na maioria das vezes pega dinheiro ou celular. Ou se
utiliza do argumento de ser menor de idade e fala para o cliente
que pode denunciá-lo caso ele não pague o que deve. Já sofreu
várias agressões físicas dos clientes. Uma vez um homem quis
transar com ela ali mesmo escondido, num matagal escuro próximo
à avenida. Apesar da sua recusa, eles foram até o local. Quando
chegou lá, travaram uma luta física e ela acabou escapando. Outra
vez saiu correndo do motel após roubar um mau cliente (Castelão,
Hélio).
Observa-se também, por uma entrevista, um caso semelhante. O
adolescente E., de 17 anos, nos relatou um fato ocorrido em uma de suas
noites de batalha. Um cliente não quis pagar o programa e ele reagiu
imediatamente, propiciando que a situação fosse às vias de fato. E. levou
a pior:
Foi assim: eu tinha acabado de chegar e o carro parou. Quando o
carro parou, ele perguntou quanto era o programa, eu disse e a
gente entrou. Entrei e aí ele me levou ali para a banda da BR,
num canto eu escolho que só. Aí pronto, a gente fizemo. Aí ele
abriu a porta do meu lado e jogou a camisinha. Aí ele mandou eu
descer. Eu tava nua, só com um sutiãzinho. Aí ele pegou e disse:
“Desce aí”. Eu disse: “Não, eu não vou descer não, por que tu vai
me deixar aqui”. Aí ele disse assim “Se eu quisesse te deixar aqui,
eu botava um revólver na tua cabeça e mandava tu descer”. Aí eu
peguei e olhei para a cara dele e disse: “Coitado”. Quando eu disse
coitado, o meu banco estava deitado, aí ele pá, me dá um chute.
Eu pego na chave do carro e puxo. Aí, quando eu puxo, eu me
deito pra pegar o calção dele que tava atrás, junto com o celular
e a carteira. Aí, quando eu volto, ele dá uns dois murros no meu
ouvido e eu caio pro outro lado. Aí ele arrudeia, nu também, nesse
tempo eu tava de megahair, ele pegou no megahair aí pronto,
110
GLÓRIA D IÓGENES
foi só no meu nariz. Aí começou a descer sangue do meu ouvido,
do meu nariz. Aí eu fiquei nua lá na BR, fiquei ligando, ligando
pra polícia. Aí depois a viatura veio me deixar.
NELIDÉLIA – Aí tu disse que os policiais ainda quiseram ter relação
contigo?
E. – Foi (E., Castelão, masculino, 17 anos).
Esse jovem passou por uma situação de extrema covardia e humilhação,
pois após fazer o programa, o cliente, além não querer pagar, desprezao, assim como fez com o descartável preservativo. E., ao não querer sair
do carro e reagir, puxando a chave, é espancada. Depois disso, quando a
polícia chega, em tese para auxiliá-lo, mesmo ele estando machucado,
alguns policiais ainda assim o assediam. Nota-se que os policiais aparecem
como responsáveis pelos maus-tratos sofridos pelos pesquisados com um
percentual de 25,1%, como pôde se visto na tabela 28. Essa relação dos
meninos e meninas envolvidos nas redes de exploração sexual com os
policias será discutida um pouco mais adiante.
A. também relatou um caso de agressão por parte de um cliente,
que, segundo ela, convidou-a somente para conversar:
A. – Uma vez o homem ia me estrupando. Por que eu saí com
ele, mas só que foi pra conversar. Eu disse que não queria fazer
programa com ele. Ele já tinha me chamado uma vez e queria me
agredir, sabe? Eu disse que não ia sair com ele, aí ele me chamou
pra conversar no carro, aí eu peguei e fui. Aí, nessa saída do carro,
ele queria me bater dentro do carro e me comer a força. Como eu
não queria, ele travou as porta do carro e ficou lá tentando. Por
sorte apareceu não sei quem lá, aí eu fiquei batendo na janela. Eu
fiquei batendo na janela do carro, e ele, com medo, destravou as
porta e eu saí. Aí eu saí calada. E foi só essa vez mesmo.
HELENA – O que você sentiu depois que você saiu desse carro?
Aqui, olha. (coração)
A. – Nessas horas, tia, eu só tenho ódio da minha família mesmo.
Eu tive só essa raiva e fiquei imaginando em sair dessa vida, em
nunca mais subir em carro de ninguém. Quem vive assim nessa
vida e que é mulher é quase impossível sair assim, porque você
não tem emprego, não tem nada, não tem ninguém que lhe ajude
(A., Barra do Ceará, feminino, 17 anos).
A fala de A. desnuda quão arriscada e perigosa é a vida dos que se
submetem às redes de exploração sexual, tendo em vista que uma parcela
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
111
dos clientes os trata com muita agressividade. Para quem atua como cliente,
o programa é apenas um negócio, sendo os corpos das crianças e
adolescentes um artefato de agressão, abuso e prazer.
Nessa mesma linha de dominação, porém com o “consentimento
acordado”, alguns clientes os usam para satisfazerem suas fantasias,
espancando-os e agredindo-os verbalmente, conforme nos relata a
adolescente L. de 18 anos:
Já aconteceu de eu nem chegar a ter relação com aquela pessoa,
mas ele chegar a me agredir, ele dizer para mim que aquele ali é o
prazer dele, ele me agredir, dele me enxotar, dele me jogar assim
dentro do banheiro e dizer eu não lhe quero. Me chamar de nome
de pessoas que eu nem sabia quem era. Mas aquilo ali para eles
era o prazer. E eu nem sabia por que eu estava sofrendo tudo aquilo.
Depois ele chegar e me pagar e dizer você foi ótima sem eu ter
feito nada, só apanhar. Isso já aconteceu várias vezes. E não foi
só uma não (L., Beira-mar, feminino, 18 anos).
É assim que esses adolescentes vão sobrevindo: correndo risco,
recebendo agressões físicas, ameaças, humilhações, etc. Lutando, muitas
vezes literalmente, apenas para se conservarem vivos, visto que são
divorciados de seus direitos e muito jovens têm suas trajetórias permeadas
por riscos constantes e iminentes.
Tudo isso expressa como a violência circula na vida diária da maioria
dessas crianças e adolescentes. Ela faz com que o dia-a-dia seja pautado
pelo medo e a incerteza. O desrespeito passa a fazer parte da vida, seja
num programa, numa briga com seus próprios pares, com desconhecidos,
ou até mesmo com quem deveria ser responsável por zelar pela segurança
da população: os policiais.
D IVERSOS
PERSONAGENS DE UM MESMO ATOR : O POLICIAL
Outro fenômeno significativo identificado no âmbito dessa pesquisa é
relativo ao envolvimento de policiais com a rede de exploração sexual. Os
dados indicam que a violência é, predominantemente, a forma de atuação
utilizada por eles. Por isso é justificado lançar um olhar mais focado no
envolvimento desses atores nas redes que exploram e aliciam crianças e
adolescente.
Como destacado anteriormente, através do questionário aplicado foi
verificado que 64,9% afirmam que já sofreram maus-tratos na rua. Vale
enfatizar a dimensão da violência policial no que concerne ao segmento
112
GLÓRIA D IÓGENES
de crianças e adolescentes explorados sexualmente, uma vez que na
supracitada tabela 28: 25,1% dos maus-tratos cometidos contra os
pesquisados foram praticados por policiais, visto que eles são personagens
constantes no cotidiano da rua.
No relato de E., já exposto em parte, pode ser observado um outro
trecho em que ela expõe a violência cometida por policiais, bem como a
maneira que essa violência a marcou, deixando nela um trauma:
O que aconteceu com a polícia na rua foi dos policial, por exemplo,
separar você de uma coisa e chamar você pra ir pra um canto. E
ele não levar você praquele canto que você pensa que ele vai levar
simplesmente. Ele levava você pra um canto onde ele vai querer
ter relação com você, vai querer abusar de você sem você saber,
porque você tá vendo que ali é a lei e você tá confiando naquela
lei, então aquela lei que não vai levar você pra o canto. Por que
tem muito policial corrupto. Então, já aconteceu comigo de eu
confiar no policial, ele me levar pra outro canto e fazer outra coisa,
abusar de mim, isso e aquilo outro, e até a ameaçar de morte. É
isso que já aconteceu. Por isso que quando eu vejo policial ou gente
fardada do exército, eu tenho muito medo. Então foi um trauma
que eu peguei dos policial. Hoje em dia, se um policial me chamar
no carro pra mim entrar dizendo que vai levar eu pra um abrigo,
não acredito. Porque eu já entrei em um carro deles e me levaram
pra outro canto, tiveram relação comigo e não me deram nada,
me deixaram lá no mesmo lugar e mandaram eu ir embora a pé.
Mas o viver da rua é isso, é se desviar dos policial. Porque o policial,
pra gente que é mulher, eles não dispensa não, eles mete a peia
(E., Terminal da Lagoa/ Beira-mar, feminino, 15 anos).
Essa fala evidencia o descaso com as crianças e os adolescentes em
situação de vulnerabilidade em Fortaleza, tendo em vista que algumas
autoridades do Estado agem através da instituição em que trabalham
movidos pela arbitrariedade e visível intolerância. Isso comprova que uma
parte dos policiais, ao invés de atuarem no campo da resolução de conflitos
ou denúncias, atuam como agentes produtores de violência. Muitas vezes
eles produzem mais medo do que segurança, principalmente para os
segmentos excluídos do acesso a equipamentos e serviços sociais. Eles
atuam de variadas formas: como “clientes”, com agressões e ameaças
gratuitas, extorquindo dinheiro desses meninos e meninas, ou até mesmo
dos “clientes”, aproveitando-se da situação criminosa de exploração sexual
a que são submetidos às crianças e os adolescentes em questão.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
113
Pode-se perceber esse tipo de atuação pelo relato da adolescente E.,
de 18 anos, citado em parte anteriormente, e na entrevista da criança J.,
de 12 anos, quando se verifica como alguns policiais se aproveitam das
meninas que sejam ou aparentam ser menores de 18 anos para receberem
propina de “clientes”.
E. – Eles [policiais] trabalha mal. Quando nós tá fazendo programa,
por exemplo, eles pega eu e a Juliana e antes de levar... não é
certo não... fazer alguma coisa... se a gente tiver pedindo só uma
carona, eles pede pra gente dizer que nós tamo fazendo programa
pra eles ganhar dinheiro. Eles dizem que vão dar dinheiro pra gente,
mas não dão. Eles dizem assim pra gente dizer que tá fazendo
programa, e eu que sou de maior, eles dizem pra mim dizer que
sou de menor, porque eu tenho uma cara assim muito nova, né?
Aí eles ganha dinheiro nas nossas costa, mandam a gente dizer
que tá fazendo programa pra eles ganhar dinheiro. Se uma menina
for pegue num carro, eles pergunta a nossa idade, a gente diz, aí
eles comem R$100 da pessoa, se for eu e ela aí eles come R$100,
R$150 e manda o homem ir simbora e pronto, não acontece nada
com o homem. Eles são corrupto, né? Os outro dá dinheiro a eles,
aí eles libera (E., Barra do Ceará, feminino, 18 anos.).
RAFAEL – E o que tu pensa da polícia e dos policiais? O que tu
acha dos policiais?
J. – Não. É porque às vezes a gente tá fazendo programa aí tem
alguns policial que fala pra gente: “Tu já fez bobó? Quando vocês
entrar num carro, vocês diz que tá fazendo programa com o cara
mesmo que não tiver fazido”. A gente diz que tá fazendo programa
com cara pra eles comer o dinheiro, mas só que eles não dão.
RAFAEL – Isso sempre acontece?
J. – Sempre (J., Barra do Ceará, feminino, 12 anos).
Na fala do adolescente A., de 16 anos, fica notório que freqüentemente
os policiais partícipes da rede de exploração sexual agem gratuitamente
com violência. Esses atos podem acontecer, supostamente, porque o dono
de algum estabelecimento comercial se incomoda com a presença “suja”,
“obscena”, dos jovens fazendo ponto, ou seja, sendo explorados
sexualmente próximos ao seu negócio.
Assim sendo, eles podem ser espancados, violentados ou mortos
simplesmente por estarem nas ruas. E, ao invés de terem o apoio irrestrito
das instituições em geral e da sociedade, são tratados por muitos como os
criminosos. Observemos o que A. diz em sua entrevista:
114
GLÓRIA D IÓGENES
HELENA – E a polícia? Como é a polícia aqui na rua com vocês?
A. – Hoje em dia aqui as viatura está passando agora, porque antes
estava tendo muito roubo, mas agora a maioria estão preso. E às
vezes os policial pega a gente e nem para quê mete a porrada,
não está nem aí. O dono aqui do restaurante, quando a gente estava
na esquina, ele chamava polícia e eles dava busca de arma na gente
e mandava a gente para casa, espancava sem ver e nem pra quê
(A., Barra do Ceará, travesti, 16 anos).
Essa participação de policiais na dinâmica da exploração sexual, como
integrantes das redes, se apresenta como fato merecedor de atenção
especial, visto que os mesmos utilizam comumente do poder da sua profissão
e da sua força física para atuar dentro desses contextos.
É preciso, no entanto, que se compreenda que nem sempre os meninos
e as meninas aceitam passivamente a abordagem violenta e usurpadora
dos policiais. Eles reagem, em geral, também com violência física, com
agressões verbais e até mesmo com denúncias, que na maioria das vezes
caem no vazio da impunidade. Esse tipo de reação fica expressa de forma
nítida na fala da adolescente K. de 16 anos:
Eles [policiais] bateram em mim, mas só que eu reagi para eles. É
como eu falei, se vier eu reajo. Eu não tinha feito nenhum
programa ainda. Estava demorando. Quando eu entrei no carro,
eles pararam, aí eu já fiquei com raiva. Eles desceram do carro e
perguntar: “Quantos anos você tem?” Eu já com raiva olhei para
a cara deles e disse: “54 anos”. Aí ele disse: “Você muito atrevida”.
Eu falei: “Eu sou mesmo”. Ele disse: “Vambora, senta aqui”. Eu
disse: “Não vou sentar não, porque eu já sei o que vocês querem”.
A eles pegarem disseram: “E o que é que a gente quer?” Eu falei:
“Dinheiro. Não me leve a mal, mas dinheiro em cima de mim vocês
não ganham não”. Aí ele pegou e atacou com uma mãozada no
meu pé do ouvido. Aí eu peguei uma pedra bem grandona e joguei
na viatura, peguei lixo e paus e joguei neles, aí fui para o telefone
e disse: “Se vocês me baterem de novo eu vou ligar para o CIOPS”.
Aí liguei 190, dei o número da viatura e falei o que tinha acontecido.
Eles pegaram e foram embora (K., Barra do Ceará, feminino, 16
anos).
Muitos policiais vão ao encontro desses meninos e meninas para
utilizarem seus “serviços” como “clientes”, esquecendo-se das funções da
sua profissão, como nos diz em uma frase o adolescente E., de 17 anos:
“A gente tem sempre cliente policial”.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
115
Diante de tudo que foi expresso, fica evidente que a participação de
policiais nas redes de exploração sexual de crianças e adolescentes é uma
constante. Conforme os relatos obtidos, freqüentemente a abordagem por
parte deles é no sentido de abusar, explorar, violentar e extorquir. Quase
nunca eles atuam no sentido de defender essas crianças e adolescentes.
Para resumir a visão da maioria dos meninos e meninas sobre os policiais,
apenas uma frase da adolescente J., de 19 anos: “Eu odeio polícia!”
A
CONVIVÊNCIA E AS DISPUTAS
Um outro dado significativo referente à violência nas ruas é o percentual
de maus-tratos cometidos por “amigos”, com 4,2%. Os “conhecidos”
aparecem sendo agentes de maus-tratos com o mesmo percentual dos
“amigos”, conforme verificado anteriormente na tabela 28. Somados os
dois percentuais, se chega aos razoáveis 8,4% de agressões cometidas por
pessoas próximas.
Considerando os “amigos” e “conhecidos”, que convivem no momento
em que eles estão na rua e nos locais onde fazem programa, pode-se
constatar que a violência, as disputas, as brigas, acontecem com certa
freqüência entre eles. Na maioria das vezes ocorrem por disputa de clientes,
por demarcação de território ou por questões de vaidade. Temos um
exemplo na fala de F., quando revela que outros travestis não gostam dele,
deixando implícito a existência de disputas, de “rixas”, entre os travestis:
Mas só que aqui os travestis, têm uns que não gosta de mim, tem
uns que querem brigar comigo, que querem cortar os meus cabelos
a força, querem cortar a minha cara na navalha (F., Castelão,
masculino, 17 anos).
Em relação aos conflitos por razões territoriais, E. narra como funciona
esse código, e como a violência é muitas vezes a forma pela qual essa
situação é resolvida:
Tem aquela questão: eu mando nesse pedaço. Por exemplo, você
tá numa parte daquele poste e chega outras e manda você sair.
Então não tem conversa, não é caso de conversar. Elas chega
logo metendo a peia uma na outra, e se pega mesmo, bota você
pra correr daquele espaço. Aquele espaço ali é dela, ela chegou
primeiro, então é sinal de que você tá tomando os homem dela,
os homem ali é dela. Os homem daquela pista pertence a elas. É
desse jeito. A não ser que você já tenha amigas já lá, aí elas liberam
GLÓRIA D IÓGENES
116
pra você ficar. Por exemplo: se você já tem uma amiga, aí ela
libera pra você ficar, diz que você é uma prima, uma irmã, qualquer
coisa, aí pronto, você tá liberada pra ficar ali (E., Terminal da
Lagoa/ Beira-mar, feminino,15 anos).
As divergências entre eles, entretanto, se dão muito mais por motivos
de convivência. A resolução é feita através da violência e também por outros
artifícios evidenciados na fala de E. A violência geralmente é usada caso
se chegue em um ponto sem uma comunicação e intermediação prévia.
Outra forma de resolver a situação é quando algum dos atores envolvidos
com a exploração sexual, estabelecido no local há mais tempo, intermedia
a presença de “novatos” naquele espaço.
Noutro momento, E. informa que quando há brigas entre eles, em geral
logo voltam “às boas”:
Já aconteceu dos menino brigar entre si, mas depois... tipo... volta
à união entre eles, entendeu? Brigar no nosso redemoinho, por
exemplo, o Lagoa, se algum menino brigar depois eles já estão se
falando de volta, entendeu? É assim, é como se fosse uma família
(E., Terminal da Lagoa/ Beira-mar, feminino,15 anos).
Como “capitães de areia”, mesmo depois de algum conflito, eles se
entendem e cultivam a rede de solidariedade e amizade que constituem
durante os momentos de dificuldade e diversão que enfrentam diariamente.
B IBLIOGRAFIA
AMADO, Jorge. Capitães de areia. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora
Record.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª edição. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1998.
MADEIRA, Maria Angélica. “Fissura e estigma: a escrita em negro de Lima
Barreto”, in MESSEDER, Carlos Alberto (org.). Linguagens da
violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
DA VIOLÊNCIA DO USO DE DROGAS E DO
PRAZER VIGIADO
Helena Damasceno
Por que a gente se sente livre, não se sente trancada, a
gente pensa assim: vixe estamo livre para fazer o que a
gente quiser! O mundo é nosso agora. Só que o mundo
é nosso porque lá fora a gente pode usar droga, a gente
pode usar droga e pode fazer o que quiser.
J., Terminal Lagoa, feminino, 14 anos
Esse sentimento de liberdade, de não se sentir presa a nada ou ninguém,
representa a pulsão de vida liberta de qualquer forma de controle externo.
J. pode fazer o que quiser, assim que queira. Seu desejo é o soberano que
assume os próprios impulsos. E não há freio algum, aparentemente.
A vida parece trilhar um exagero de sensações e vivências. Mas, na
prática, o que esses narradores almejam é experimentar da própria
condição de sujeitos de direitos, senhores de desejos e quereres. A droga
surge como uma “companheira” capaz de fazer suportar ou esquecer a
lida cotidiana, e é ela, justamente, uma fonte ambígua de prazer e
ansiedade. Dos dados apresentados até aqui, esse talvez seja um dos mais
devastadores.
Seguramente, a exploração sexual não dignifica ou engrandece quem
é transgredido por ela. Não é uma “vida fácil”, como alardeia o senso
comum. É um crime de proporções avassaladoras, especialmente para
crianças e adolescentes, seres ainda em formação. O passado de violências,
os laços fragilizados com a família e as demais perdas da vida assumem
GLÓRIA D IÓGENES
118
uma invisibilidade momentânea, que recalca esse tempo de vivências
dolorosas. E, se já é complexo adentrar nesse mundo com um passado de
violências e violações de direitos, mais difícil ainda é estar inserido na rede
de exploração sexual e não ser afetado por tantas agressões que ela
dissimula e transfere.
Parece que para os narradores pesquisados a droga representa uma
substância de caráter entorpecente com a precisa finalidade de adormecer,
fazer esquecer dores antigas e ou suportar as vivências duras da exploração
sexual. No relato abaixo, J. diz com clareza os motivos pelos quais faz uso
de drogas:
É por que é assim: a gente tando drogada quando faz, a gente não
sente nada, parece que não tá em canto nenhum, a gente fica só
viajando. Agora, quando a gente não tá... a gente nem liga não
quando tá drogada, quando não tá a gente olha assim e pensa: “o
que é que eu tô fazendo aqui?” (J., Terminal Lagoa, feminino, 14
anos).
73,2% das crianças e adolescentes aqui entrevistados são usuários de
algum tipo de droga, conforme tabela abaixo. Do universo de 328 crianças
e adolescentes entrevistados, 240 usa algum tipo de droga. Esse é um
indicativo de quão comprometedor é a violência da exploração sexual
comercial. Se combinarmos esses dados com os da tabela 1 (faixa etária),
verificaremos que 82,9% dos narradores pesquisados estão na adolescência
(dos 13 aos 18 anos). Esse percentual ganha mais força ainda quando, de
acordo com a Organização Mundial de Saúde, a adolescência é etapa de
suma importância para a fase adulta, para a saúde física, psíquica e
emocional.
79. USA ALGUM TIPO
DE DROGA?
TOTAL
SIM
240
73,2%
NÃO
87
26,5%
N.S. / N.R.
1
0,3%
328
100,0%
TOTAL
Eu tomo ripinol às vezes; às vezes eu cheiro cola, só. Aí nós sai,
nós toma pra esquecer, pra não olhar pra cara dos homem (E.,
Barra do Ceará/ Padre Andrade, feminino, 18 anos).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
119
Esse “às vezes” assume variadas conotações: às vezes se usa ripinol; às
vezes, cola; às vezes, outras drogas, muito possivelmente as lícitas. O fato
é que a droga é presença constante na vida dos narradores pesquisados.
Contudo, a dinâmica de “nós toma pra esquecer, pra não olhar pra cara
dos homem” contextualiza uma subjetividade de sentimentos capitais que
serão tratados adiante com mais profundidade.
O nojo, quando da exploração sexual comercial de crianças e
adolescentes, mobiliza e justifica o entorpecimento e a dormência do efeito
do uso de drogas. Para não sentir nada, ou não sentir nojo, é preciso
desligar-se e a droga possibilita isso.
Quando indagados sobre o tipo de droga habitual, evidenciamos um
detalhe que faz jus a uma atenção especial. Conforme tabela a seguir, a
droga mais usada é o tabaco, com 21,9%, seguidos por 19,1% referentes
ao uso do álcool. Entretanto, o mais relevante é a incidência do crack:
19,9%.
80. USA QUAIS DROGAS
TOTAL
ÁLCOOL
109
19,1%
CIGARRO (TABACO)
125
21,9%
MACONHA
87
15,2%
CRACK
114
19,9%
COCAÍNA
41
7,2%
MESCLADO
53
9,3%
COLA
34
5,9%
RIPNOL
3
0,5%
SOLVENTE
3
0,5%
OUTROS
3
0,5%
N.S. / N.R.
0
0,0%
572
100,0%
TOTAL
Analisando esses dados evidenciamos que o crack, droga de efeitos
arrebatadores, faz parte da rotina das crianças e adolescentes em situação
de exploração sexual comercial, talvez mais do que imaginássemos. O
percentual de 19,9% é maior do que o álcool, que é uma droga legitimada
em nossa sociedade e de fácil aquisição. Apesar da restrição de venda a
adolescentes, garrafas de bebida alcoólica podem ser compradas em
GLÓRIA D IÓGENES
120
qualquer esquina, suas propagandas são milionárias e seu uso é comum
em nossa sociedade, sem maiores discussões ou problemáticas, salvo sobre
seu excesso.
O crack não. Ele não tem o mesmo espaço, a mesma facilidade de
compra e divulgação. Contudo, no cotidiano da exploração sexual, seu uso
é demasiado, perdendo apenas para as drogas lícitas (tabaco e álcool).
As crianças e adolescentes em situação de exploração sexual adentram
na rede por muitos motivos. Geralmente depois são seviciadas pela droga
como forma de suportar a violência da exploração sexual em si, ou mesmo
as dificuldades de suas vidas. Forma-se, então, um ciclo vicioso. Elas usam
drogas para esquecer as próprias dores, mas acabavam envolvidas pela
tentativa de esquecer ou amenizar as dores do ato de fazer programa.
A exploração sexual aliada ao uso de drogas é uma bomba-relógio de
efeitos muitos. Algumas vezes o vício é maior que as necessidades básicas,
como alimentação ou moradia. A droga passa, desta forma, a monitorar e
cercear as ações e necessidades da criança e ou adolescente em situação
de exploração sexual.
Não é tão difícil conseguir as drogas ilícitas, apesar da clandestinidade
que cerca a questão. Verificamos na tabela abaixo que 53,2% compra
diretamente do traficante, enquanto 19,7% adquirem a droga através de
um amigo. Isso denota que o tráfico de drogas e a exploração sexual
comercial não estão distantes; são fronteiriças e coniventes no crime de
entorpecer e limitar as possibilidades da vida de crianças e adolescentes.
81. COMO CONSEGUE AS
DROGAS ILÍCITAS?
TOTAL
ATRAVÉS DE UM AMIGO
43
19,7%
ATRAVÉS DO CLIENTE
33
15,1%
COMPRANDO DO TRAFICANTE
116
53,2%
AMIGOS
2
0,9%
NAMORADO
4
1,8%
OUTROS
8
3,7%
N.S. / N.R.
12
5,5%
TOTAL
218
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
121
Outro dado interessante da tabela acima é o fato de que 15,1% dos
clientes levam drogas ilícitas às crianças e adolescentes. A dinâmica da
exploração é aberta a muitas negociações e a droga é uma delas. Isso
comprova que os muitos crimes praticados na exploração sexual são
cometidos por mais de uma pessoa, mais de uma vez. O cliente, o cafetão,
o traficante e quem mais vier.
Usar drogas durante os programas é um dado que suscita assume
leituras interdependentes e complementares diante dos resultados da tabela
abaixo. A primeira é que, apesar de o que foi relatado nas entrevistas e
aplicação dos questionários, os dados estão tecnicamente empatados:
33,6% afirmam que usam drogas durante os programas, mas 31,9% dizem
que não. Esse aparente “equilíbrio” pode sugerir uma contradição, mas
apenas reforça o fato de que as crianças e adolescentes em situação de
exploração sexual têm um envolvimento forte e contínuo com as drogas.
82. USA DROGAS PRA
FAZER PROGRAMAS?
TOTAL
SIM
79
33,6%
NÃO
75
31,9%
ÀS VEZES
75
31,9%
N.S. / N.R.
6
2,6%
235
100,0%
TOTAL
A segunda é que, somados os percentuais “sim” e “às vezes”, temos o
dado de 65,5%. Um número significativo que não somente confirma a
leitura anterior, mas aponta a gravidade da questão. A droga é fonte de
prazer e esquecimento. Da dor à dormência, ela é quase como uma
orquestra dissonante e desajeitada que mantém os narradores pesquisados
cativos na exploração sexual comercial.
83. AVALIAÇÃO DO USO DA
DROGA PARA O PROG.
TOTAL
AJUDA
76
23,8%
ATRAPALHA
101
31,6%
NÃO FAZ DIFERENÇA
97
30,3%
N.S. / N.R.
46
14,4%
TOTAL
320
100,0%
122
GLÓRIA D IÓGENES
Quando a pergunta se estreita e perpassa a intimidade dessas relações
mercantis e díspares, a resposta estremece. A droga, enfim, ajuda ou
atrapalha o ato de fazer programa? As respostas são diversas, mas trazem
à tona sentimentos que se descolam daquela nudez indesejada e revelamse duramente. A fala transcorre a subjetividade, os sentimentos se permutam
e surgem apontando as ilusões a que são submetidas as crianças e
adolescentes em situação de exploração sexual.
Atrapalha, né? Porque faz a gente emagrecer. Eu não era magra
assim não. Eu era da grossura daquela mulher que ta sentada lá na
mesa. Eu era da grossura dela. Mas só que só de eu fumar pedra,
pedra, pedra, eu emagreci. A aranha também e a cocaína (R., Barra
do Ceará, feminino, 16 anos).
Eu já usei o álcool, fiquei muito bêba. É bom porque você não
sente, você não sente aquele homem tocando no seu corpo, você
não sente ódio, você não chora. Então o álcool vai fazer você
sentir ilusão. Por exemplo, se você ama aquele cara, então você
vai ver aquele cara no rosto da pessoa que você tá ficando por
dinheiro. Então ali são ilusões que a bebida e a droga vai fazer
você ver. Você vai sentir prazer e vai transar com alguém como
se você estivesse transando com alguém que você ama, alguém
que você gosta, alguém que é seu namorado ou alguma coisa assim.
É isso que a droga faz com a gente: é a gente sentir mais prazer
além do normal (E., Beira Mar/ Lagoa, feminino, 15 anos).
Parece existir a preservação íntima do próprio desejo para os 23,8%
que responderam que a droga ajuda. Permanece o entorpecimento, “o
não sentir nada” diante dessa relação. É desse viés que se sustenta o valor
do programa, não pela lógica do prazer, se atrapalha ou não. Ora, como
bem diz outro dado da mesma tabela, para 30,3% não faz diferença se a
droga ajuda ou atrapalha o “programa em si”.
Contrapondo as duas últimas tabelas, os dados nos remetem a dualidade
frente ao ato de fazer programa em relação ao uso de drogas, como foi
descrito também na tabela anterior. O limite entre “usar a droga e isso
atrapalhar o ato de fazer programa” (31,6%), ou “não fazer diferença”
(30,3%), denota o conflito inerente ao próprio uso, pois o desejo ali pertence
ao outro, a quem está no comando diante da exploração sexual comercial.
E se a rua é um espaço público e democrático, será que alguém “vigia”
ou “dá conta da vida que apenas lhes parece alheia”, mas que se divide
entre prazeres de outros e os seus? Como anda a saúde biopsicosocial diante
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
123
desses territórios embaçados por uma violência correlacionada a tantos
sentimentos, prazeres, medos e dores intrinsecamente misturados e
violados? Num caleidoscópio de tantas emoções e informações, o corpo
transmuta-se, transforma-se. E por falar em saúde...
DA
SAÚDE SOCIAL DO CORPO
Estar diante dessas tabelas decodificando suas entrelinhas e
particularidades é verificar que há um contingente significativo e pungente
de crianças e adolescentes em situação de exploração sexual e ou em
situação de drogadição em nossa cidade. E não podemos fechar os olhos
para nenhuma dessas demandas. Contudo, esse olhar deve vestir-se da
multidisciplinaridade ética de profissionais legitimados pela magia da
viagem interior relativa a um conjunto de corações e corpos fragilizados, e
isso de maneira lúdica e leve, e não invasiva.
A velha prática da política antidrogas com o tempo revelou-se obsoleta
e não deu conta da demanda do cotidiano, cada vez mais exigente e
complexa. Atualmente fala-se em redução de danos numa amplitude de
tratamentos e abordagens que oferecem mais qualidade biopsicosocial em
contribuições valorosas quando de uma perspectiva sistêmica e mais afetiva
de olhar e lidar com pessoas que utilizam abusivamente de drogas.
Crianças e adolescentes carecem de cuidados profiláticos, específicos
e mais atentivos constantemente, e especialmente quando já emaranhados
na violência urbana, simbólica e marcante, de várias ordens e níveis em
seu templo sagrado. O corpo padece ou ensoberbece, recebe a
somatização dos cuidados e ou não-cuidados de cada experiência. Algumas
silenciosas, outras mais viscerais e latentes, cada uma parece compor do
corpo um enfeite precioso, ainda que paradoxalmente cuidado e
descuidado.
Cuidar e ou descuidar do corpo estabelece-se na mesma ordem do ato
de usar drogas para amenizar os incômodos do fazer programa, ou não
usar porque tanto faz e não se está “nem aí”. Essa fantasia pode ser também
se enfeitar para uma noite animada e aparentemente lucrativa, ou zelá-lo
porque ele é o invólucro dos sonhos de ser dançarina de forró e até aparecer
no Jornal das Dez. Pode ser tudo isso, ou nada disso, quem sabe até outras
coisas mais. O fato é que a leitura agregada desse conjunto de indicadores
transbordam no campo da saúde.
Usar camisinha, por exemplo. O preservativo é uma das formas mais
eficazes e conhecidas de se prevenir doenças sexualmente transmissíveis
(DSTs) ou até mesmo de evitar uma gravidez não programada. Na tabela
a seguir verificamos que 75,9% dizem usar camisinha para fazer
GLÓRIA D IÓGENES
124
programas. Somados os percentuais “sim” e “a maioria das vezes”, temos
o dado de 89,3%. Verifica-se que permanece aí o desejo de cuidar do
próprio corpo, porta simbólica de passagem para suas vivências e
sociabilidades. Há um desejo mantido no ato de cuidar de si e do corpo,
mas agora numa perspectiva diferenciada, menos infantilizada no que tange
às lembranças de outrora, e agora marcada pelas vivências da exploração
sexual comercial.
66. USA CAMISINHA NOS
PROGRAMAS?
TOTAL
SIM
249
75,9%
NÃO
15
4,6%
A MAIORIA DAS VEZES
44
13,4%
QUASE NUNCA
16
4,9%
N.S. / N.R.
4
1,2%
328
100,0%
TOTAL
É, novamente, um transbordamento simbólico desse corpo que antes
expressava infância e inocência, mas que agora assume caráter e significado
através da exploração sexual e suas especificidades. A camisinha aparece
como uma espécie de facilitadora nesse caminho. Ela agrega os valores
do cuidar e descuidar como pertencente à prática de saúde social desse
corpo que está em processo.
Em contrapartida, dos dados colhidos e evidenciados na tabela acima,
9,5% correspondem àqueles narradores que dizem “não usar de jeito
nenhum” ou “quase nunca” o preservativo. Para esses personagens
narrados, o que poderia valer mais que o próprio corpo e suas passagens?
Quais significantes assumem a direção dessa rua que se compõe de ritos
diferenciados desse cuidar de si? Nesse sentido, há um relaxamento, talvez
até uma credulidade exagerada quanto ao uso da camisinha. Talvez uma
crença na idéia de que nenhum mal acontecerá, ou de que há algo que as
protege e abençoa, impedindo qualquer incômodo ou doença.
Não usar camisinha também pode oferecer outra leitura além dessa.
Talvez, essa prática ofereça possibilidades de ganhos outros, além dos
habituais. Há clientes que pagam mais, ou mesmo clientes que são habituais
e freqüentes que “garantem” uma segurança no ato de fazer programa.
Há algo nas entrelinhas que parece dizer de uma ausência ensimesmada
na vida diante da exploração sexual. Vestir papéis que simbolizem uma
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
125
representação de si mesma. Que personagem é ela, ou qual e quais ela
pode “vir a ser”? Elas estão nesse vir a ser e não usar a camisinha parece
assumir a significação simbólica do descuidado com o próprio corpo que
se transmuta e transforma-se em outros.
Esse exercício de cuidado e descuidado aparece ainda com mais
evidência na tabela que se segue: 79% das crianças e adolescentes em
situação de exploração sexual pesquisados afirmam nunca ter contraído
quaisquer DSTs, enquanto que 15,2% afirmaram já ter adquirido alguma.
Esse último dado, 15,2%, inferior, apesar de não menos relevante, aponta
indivíduos que parecem estar desprovidos dos cuidados de si, de uma autoimagem positiva capaz de impulsionar ações de uma cidadania que se inicia
nos âmbitos da vida cotidiana, nas experiências do corpo simbólico e social
e na busca dos direitos a saúde sexual e reprodutiva.
67. JÁ ADQUIRIU
ALGUMA DST?
TOTAL
SIM
50
15,2%
NÃO
259
79,0%
N.S. / N.R.
19
5,8%
TOTAL
328
100,0%
Para 5,8% dos narradores pesquisados, percebe-se uma reflexão em
espírito de latência. A composição desse não-saber, ou o silêncio afirmativo
que nada disse sobre adquirir ou não uma DST. Quem sabe isso possa
simbolizar uma transformação diferenciada da própria imagem que estaria
sendo resvalada no desejo do outro que as avalia e solicita.
Dentre os dados da tabela abaixo, 61,7% representam as doenças
sexualmente transmissíveis mais apontadas pelos narradores pesquisados.
Sífilis, herpes e gonorréia estão à frente desse percentual, com valores
significativos individualmente. Contudo, sem exceção, todas têm uma
prevenção e profilaxia facilmente acessada em postos de saúde ou afins.
O que poderia, entretanto, ocasionar a incidência desses eventos de
forma tão significativa? Quem sabe, o fato de que, assumido o tratamento
profilático, há a necessidade da ausência quando da prática de fazer
programa, mesmo que por pouco tempo. E isso as coloca sob a perspectiva
de ficar fora de ganhos e sociabilidades inerentes à exploração sexual
comercial, isolando-as. Tratadas, essas doenças não apresentam ameaça
de mortalidade. Mas assume significado distinto quando se refere a
GLÓRIA D IÓGENES
126
ausentar-se da pista. Aqui, nesse espaço de exploração sexual, essas
doenças assumem um caráter de exclusão e morte simbólica de sentimentos
e significados do exercício da exploração. É uma espécie de dança de busca
e equilíbrio entre a aparente harmonia e desarmonia que permeiam essa
dinâmica.
68. ADQUIRIU QUAIS DST
TOTAL
SÍFILIS
10
16,7%
HERPES
11
18,3%
GONORRÉIA
16
26,7%
HEPATITE
0
0,0%
HPV
3
5,0%
AIDS
1
1,7%
TRICHOMONAS
5
8,3%
OUTROS
8
13,3%
N.S. / N.R.
6
10,0%
TOTAL
60
100,0%
As DSTs de tratamento mais complexo e ou demorado, entretanto, são
apontadas de forma menos significativa, mas nem por isso menos
significativa e preocupante. A existência do HPV e do HIV somam 6,7%.
Duas patologias que têm atendimento e tratamento garantidos através de
políticas públicas de saúde.
A Trichomonas surge com 8,3% dos casos, e mesmo sendo uma doença
de desconforto generalizado e bastante comum, quando trazemos à
discussão ao âmbito da saúde sexual e reprodutiva, alinhamos a profilaxia
como um direito garantido. Isso ressalta as táticas e oposições que se
desenham nas entrelinhas que oferecem resistência ao tratamento.
Eventualmente, podem ocorrer desdobramentos de maior complicação
quando da prática de fazer programa. Parece que quando falamos em
preservativo, conectamos esse conceito tão somente à prevenção de DSTs
como idéia fundamental, e esquecemos da questão sistêmica da saúde social
do corpo ligadas à gestação, gravidez e aborto. Essas experiências foram
apontados de forma significativa nas tabelas a seguir.
A gravidez não programada e/ou não desejada algumas vezes pode
ser considerada incômodo ou impedimento quando discutimos o corpo como
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
127
mercadoria. O aborto foi apontado por 34,4% dos narradores pesquisados
como uma vivência já experimentada. E destes, 55,8% afirmaram ter sido
intencional a interrupção da gestação.
69. JÁ SOFREU ALGUM
ABORTO?
TOTAL
SIM
77
34,4%
NÃO
141
62,9%
6
2,7%
224
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
70. O ABORTO FOI
INTENCIONAL?
TOTAL
SIM
43
55,8%
NÃO
32
41,6%
N.S. / N.R.
2
2,6%
TOTAL
77
100,0%
A sexualidade na exploração sexual comercial é vivenciada seguindo
uma dinâmica da sobrevivência, algumas vezes de forma a envolver e ou
admitir a experiência do prazer, outras carregadas de nojo e sentimentos
outros que permeiam a subjetividade diante da lógica desse corpo que é
“compartilhado” por clientes e cafetões.
O aborto parece assumir uma prática de liberação diante dos transtornos
e ou dificuldades que a gravidez poderia trazer. Talvez elas estivessem
gerando um ser tão estranho aos seus territórios afetivos quanto elas
próprias diante dos próprios medos.
O corpo dos narradores pesquisados não é uma representação
particular, compartilhada apenas com quem se deseja e por
enamoramento, sem motivos outros além desse. Aqui, no campo da
exploração, os sujeitos são diversos, as vivências múltiplas e destacadas
pelo desejo alheio que parece controlar e editar a intimidade do sexo e da
sexualidade das crianças e adolescentes pesquisados.
Certamente que se apresenta também o que é de cada um, o que é
dela e o que é do cliente em cada situação, como num só corpo social. O
128
GLÓRIA D IÓGENES
que discutimos aqui é uma inconseqüente violação de direitos que descamba
violentamente nesses atores, ao passo que eles queimam etapas diante do
corpo infantil e do corpo adulto.
Os desejos misturam-se, assim como os corpos, evidentemente. Mas o
exercício latente da prática da exploração sexual é o de garantir a
sobrevivência diante de uma relação de poder onde um paga por um serviço
específico em detrimento do outro, servil àquela ordem, mas que se alimenta
da sensação “de se dar bem”, apesar da violência irrompida nas vitrines
urbanas.
B IBLIOGRAFIA
LACAN, Jaques. O Seminário de Jacques Lacan. Livro II: O eu na teoria
de Freud e na técnica da psicanálise 1954-1955.São Paulo: Zahar,
1987.
SEXUALIDADE, CORPO E ETIQUETA
Germana Cleide Pereira1
É no espaço da rua das grandes cidades onde podemos encontrar mais
movimento, seja de pessoas que andam apressadas rumo ao trabalho, ou
de carros envolvidos no trânsito caótico. De fato, quando estamos na rua
quase tudo nos parece indiferente; geralmente estamos cegos e alheios ao
que se passa, “somos membros indiferenciados de um mundo anônimo e
asfaltado onde ninguém conhece ninguém”. (DaMatta, 1980: 27) Os
minutos correm mobilizados pela busca de outras fruições do tempo. As
pessoas não se percebem mais no burburinho das ruas, não se
cumprimentam mais e se esquivam dos encontros face a face. De modo
geral, somos estranhos e insensíveis ao que vemos e ouvimos, e talvez por
isso tenhamos tanto medo da insegurança do que nos cerca nas ruas. Assim,
a rua seria por definição algo perigoso e cheio de mistérios, onde se
predomina a desconfiança, a incerteza e a exclusão.
Segundo Roberto DaMatta, existe em nossa sociedade uma dicotomia
entre a casa e a rua, e nela podemos enxergar, dentre outras, a oposição
das representações simbólicas da mulher virgem, mãe, boa esposa e da
mulher “da vida”, da rua. Na primeira categoria temos a mulher da casa,
honesta e digna de adoração; já na segunda, temos uma categoria relativa
ao que deve ser visto e tratado como algo a ser usado e descartado: as
prostitutas, que ao serem encontradas na rua, que na rua permaneçam.2
1. Cientista social pela Universidade Federal do Ceará e integrante do Laboratório de
Estudos da Criança e do Adolescente da Fundação da Criança e da Família Cidadã.
Foi coordenadora adjunta da presente pesquisa.
2. Podemos verificar essa dicotomia em: DaMatta (1980 e 1997).
GLÓRIA D IÓGENES
130
Considero, assim, os meninos e meninas focos dessa pesquisa pertencentes
a esse segundo segmento, tanto pela referência à rua como local de batalha
pela sobrevivência, como pelos aspectos relacionados à sexualidade que
serão abordados mais adiante.
Atualmente, crianças e adolescentes descobrem mais rapidamente a
sua sexualidade, seja no contato físico com outras crianças e adolescentes,
seja por meio da mídia eletrônica (novelas, internet, etc.) ou através dos
abusos sexuais sofridos tanto dentro como fora de casa. No caso específico
da exploração sexual comercial, muitos aspectos dos direitos da criança e
do adolescente são violados, sendo este ato considerado crime.
Do grupo de meninos e meninas na nossa cidade que vivem sob a
exploração sexual, realizamos um total de 328 questionários (como já
mencionado na metodologia). Deles, 54,3% tiveram sua primeira
experiência com sexo, não necessariamente ato sexual, antes dos 12 anos
de idade, e 64,6% desse mesmo universo tiveram sua primeira relação
sexual no intervalo dos 13 aos 15 anos de idade. Ou seja: a faixa etária
que cobre até os 15 anos de idade corresponde a mais de 90% das primeiras
atividades sexuais desses meninos e meninas.
33. IDADE DA PRIM. EXP. COM
SEXO (NÃO NECES. SEXUAL)
TOTAL
ATÉ 12 ANOS
178
54,3%
DE 13 A 15 ANOS
129
39,3%
DE 14 A 16 ANOS
7
2,1%
17 ANOS
2
0,6%
OUTROS
12
3,7%
TOTAL
328
100,0%
35. IDADE DA PRIMEIRA
RELAÇÃO SEXUAL
TOTAL
ATÉ 12 ANOS
107
32,6%
DE 13 A 15 ANOS
212
64,6%
DE 16 A 18 ANOS
5
1,5%
OUTROS
4
1,2%
328
100,0%
TOTAL
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
131
M. - A minha primeira relação sexual foi com cinco anos. Eu ainda
não tinha tirado... eu tirei a minha virgindade com 13 anos com
3 caras. Foi assim, eu tava no colégio, quando eu saí de noite, 3
caras me chamaram, três amigos meus. Eu comecei a gostar de
dois amigos dele, aí veio outro amigo dele, aí eu gostei também.
Aí nós fumo lá pra dentro de uns mato lá, primeiro foi um, mas
doía demais, eu começava a gritar, chorar. Ninguém escutava
porque era longe.
EMANUELA – E aí?
M. - E aí eu fiquei com ele. Aí foi, foi, foi. Aí depois eu fui pra
casa da mulher. Aí, no dia que eu perdi a minha virgindade, a minha
menstruação veio. Aí eu não sabia nem o que era menstruação,
entendeu? Aí a mulher que eu morava disse assim: “Mary, você
menstruou”. Eu disse: “Ai meu Deus, ainda bem”. Eu fiquei muito
feliz (M., Barra do Ceará, feminino, 16 anos).
A adolescente M., atualmente com 16 anos, teve sua primeira
experiência com sexo aos cinco anos de idade, e a primeira relação sexual
aos 13 anos, com três homens ao mesmo tempo, antes até da sua primeira
menstruação. A idade da menarquia das 224 meninas pesquisadas está
distribuída segundo tabela a seguinte:
32. IDADE DA PRIMEIRA
MENSTRUAÇÃO
TOTAL
ATÉ 12 ANOS
128
57,1%
DE 13 A 15 ANOS
88
39,3%
DE 16 A 18 ANOS
3
1,3%
OUTROS
TOTAL
5
2,2%
224
100,0%
Essa forma de iniciação sexual certamente provoca uma convivência
prematura através de sentimentos que mexem com o próprio corpo e com
a auto-identidade desses indivíduos ainda em formação. Um dos inúmeros
riscos que se corre é o de uma gravidez na adolescência, caso um tanto
quanto freqüente quando se trata de meninas envolvidas na rede de
exploração sexual. Do universo estudado, 35,7% (percentual
correspondente a 80 meninas) estavam no seu período gestacional ou
tiveram seu primeiro filho, como mostra a tabela abaixo:
GLÓRIA D IÓGENES
132
65. IDADE NA PRIMEIRA
GESTAÇÃO
TOTAL
ATÉ 12 ANOS
3
3,8%
DE 13 A 15 ANOS
37
46,3%
DE 16 A 18 ANOS
35
43,8%
OUTROS
5
6,3%
TOTAL
80
100,0%
É através de tudo isso que precocemente passam a perceber a forma
como as normas sociais definem o certo e o errado e quais os
comportamentos adequados ao padrão social vigente.
Nossa pesquisa assinala que 52,4% começaram a fazer programa na
mesma faixa etária em que tiveram a sua primeira experiência sexual, ou
seja, dos 13 aos 15 anos. Apontamos também, através das histórias de
vida, que ao entrar na rede de exploração sexual eles passaram a tomar
conta de suas próprias vidas e a se conscientizar dos usos competentes do
próprio corpo. Aos poucos, sem se darem conta, provocavam uma ruptura
mais ou menos complexa com seu passado, deixando para trás a infância
e entrando muito cedo na mesma esfera social dos adultos.
39. IDADE EM QUE COMEÇOU
A FAZER PROGRAMA
TOTAL
ATÉ 12 ANOS
30
9,1%
DE 13 A 15 ANOS
172
52,4%
DE 16 A 18 ANOS
118
36,0%
8
2,4%
329
100,0%
OUTROS
TOTAL
Seja em casa ou na rua, as ações que são conferidas ao corpo constituem
a trama da vida cotidiana, podendo ser elas distribuídas entre o olhar, o
ouvir, o tocar, o sentir, o saborear, ou seja, são ações que fazem parte do
mundo que cerca cada um de nós. Sabemos ainda que todo o processo de
socialização dessa experiência corporal adquire formas através do padrão
cultural que nos é incutido desde a infância.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
133
Do corpo nascem e se propagam as significações que
fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da
relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência
toma forma através da fisionomia singular de um ator. Através do
corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindoa para outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha
com os membros da comunidade (Breton, 2006: 7).
Essa pesquisa que também tem o objetivo de desenhar os contextos
socioculturais da biografia dos meninos e meninas que vivem a exploração
sexual comercial em Fortaleza, põe em evidência suas percepções, suas
estranhezas, seus sentimentos, suas angústias, suas relações com o
sofrimento, com a dor e também seus gestuais, a partir da produção de
uma aparência que faz parte do jogo de sedução dos programas a que são
submetidos.
O que verificamos nesses personagens são corpos sendo construídos por
ações individuais, mas que carregam consigo uma cena coletiva. Não seriam
eles apenas uns amontoados de órgãos solitários em uma esquina à espera
de um cliente, porém um corpo simbólico cheio de representações
indissociáveis da cultura da qual fazem parte.
A menina nos respondia, porém nunca deixava de se mostrar para
os carros, dando sinal e beijinhos. Percebemos que olhava sempre
e rapidamente para a rua paralela à avenida. Ela nos pediu para
nos afastarmos, pois estávamos atrapalhando, e que poderia falar
depois conosco.
Nesse momento aproxima-se outra menina. Perguntamos se ela é
sua amiga, e ela nos responde: “Amiga só o dinheiro”. E assim
continuamos nosso percurso. Decidimos ficar na calçada do posto,
próximo ao território das meninas. Lá observamos que mais
meninas chegavam, franzinas, aparentemente adolescentes,
trajando miniblusa, minissaia e sandália rasteirinha (Castelão,
Emanuela).
A aparência corporal desses atores corresponde ao modo como eles
se apresentam e representam. No entanto, a aparência física “real” dispõe,
na maioria das vezes, de uma magreza excessiva, seja pela falta de comida
ou porque muitos ainda possuem uma forma fisiologicamente infantil. E é
através desses corpos sem forma, ou com superformas, como
constataremos a seguir no caso dos travestis, que nossos atores tentam
134
GLÓRIA D IÓGENES
preencher o imaginário da sedução, embora saibamos diante mão que essa
sedução perde parte do seu significado, pois se trata de um sexo já
disponível, de baixa emoção e afinidade, e a conquista não carece
necessariamente de tanto esforço por parte dos clientes.
(...) as crianças, nem corpos formados tinham. Elas ficavam
dançando, fumando, bebendo e se agarrando com os homens que
estavam dentro dos seus carros (Barra do Ceará/ Avenida Radialista
Lima Verde, Sandra).
Parada num poste no balão do Castelão encontramos “Daiana”,
uma menina de 14 anos (idade que ela nos forneceu), magrinha,
corpo de menina, morena e de estatura média. Trajava uma saia
curta, preta, colada no corpo e uma blusa tipo top, vermelha, e
usava uma faixa nos cabelos pretos e despenteados (Castelão,
Nelydélia).
Descemos em busca das meninas. Logo avistamos na esquina uma
garota baixinha, magrinha, cabelo liso, vestindo uma minissaia
amarela e um top preto (Castelão, Nelydélia).
Enquanto ela conversava com o vigia do posto, eu continuava um
papo infrutífero com o frentista. Morador daquela região já há
bastante tempo, ele afirmou que conhecia algumas meninas de
vista, mas que era bastante difícil identificar a idade delas. Muitas
são usuárias de drogas desde cedo. O que em conjunto com uma
vida com péssimas condições de higiene e abuso sexual cedo
aparentam ter uma idade superior àquela que realmente possuem.
As vestimentas não somente realçam as curvas de algumas mais
bem dotadas fisicamente, como também desvela os corpos já
minguados e sofridos. Corpos frágeis, magrinhas, como ele mesmo
se referiu (Castelão, Hélio).
É por meio da imagem de mulher sedutora e sensual, com seu corpo
moldado, malhado e trabalhado, que muitos deles vão à busca da perfeição
física e a tudo que pode marcá-lo. Porque é através desse corpo que em
nossa sociedade todas as pessoas são julgadas e classificadas, entre rico e
pobre, feio e bonito, gordo e magro, etc. Prematuramente, o corpo, para
esses meninos, torna-se um empreendimento a ser bem cuidado e bem
administrado, com a finalidade de gerar bons lucros. O corpo será, segundo
o imaginário deles, um importante veículo de conquista e ascensão social,
como vemos no diário de campo a seguir:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
135
No lado de fora da construção, bem na esquina, estava um travesti
belíssimo. Ela tinha aproximadamente 1,70m ajudados pelo salto
agulha preto e alto. Usava um microshort jeans, um piercing no
umbigo e uma blusa de malha frente única na cor pink. Ela rebolava
muito, fazendo do poste de iluminação pública uma espécie de
alicerce que dava apoio aos seus movimentos. Na avenida
passavam vários carros, alguns de luxo exacerbado – Mercedes e
BMw’s –, mas nenhum parou (Praia de Iracema, Pedrita).
A esta altura, a noite foi revelando outras figuras: alguns travestis
passavam, com seus corpos malhados e esculturais, andavam na
rua de pedras com desenvoltura de cima de um salto Luís XV. Mas
eles não andam lado a lado: o mais alto, aparentemente mais velho,
segue sempre na frente. Traz em uma das mãos um copo de
plástico e entra sem receio em todos os lugares. O outro é moreno,
tem menos corpo e é menos produzido; andava dois passos atrás
do primeiro, mas com tanta desenvoltura quanto aquele. Foi
justamente o segundo travesti que me chamou atenção, porque
mesmo com tanta maquiagem, deu para perceber que ele ainda é
um adolescente. Não usava peruca como o maior. Em vez disto,
uma faixa azul brilhosa cobria a parte da frente da cabeça. A faixa
compunha o look monocromático de faixa, minissaia e blusa
tomara que caia (Praia de Iracema, Pedrita).
Grande parte das meninas e meninos que compõem a rede de
exploração em nossa cidade tem o corpo, como diria Mauss (1974), como
seu primeiro instrumento. Não seria apenas um instrumento de boa
conduta, de uma excelente técnica corporal, mas de uma série de gestos
e feições que não dispensa habilidade e destreza para a sua realização. O
corpo torna-se o único parceiro, e é através dele que eles mantêm consigo
uma relação de exploração e benefício, pois sabem que é a partir dele
que ganham “o pão de cada dia”. Logo, o corpo é o seu principal capital
(Goldenberg, 2007: 12), porque é nele que está embutido um valor, um
valor físico.
Elas riem alto, fazem gestos obscenos com o próprio corpo, imitam
beijos entre elas, seduzindo e marcando hora... “Mais tarde tem,
volta!”. (...) Quando voltávamos pra casa uma menina conversava
com o trocador. Eu fingia que prestava atenção no movimento
externo, e eles nem notavam meu foco neles. Ela dizia que voltaria
com dinheiro, que ele não se preocupasse. Ele ria, tocava nela,
136
GLÓRIA D IÓGENES
que o seduzia quase que tocando em seu sexo. Desci antes dela,
mas nada mais evidente que o diálogo do corpo (Barra do Ceará,
Helena Damasceno).
Passa uma moto trazendo uma mulher e dois homens, ela no meio.
Eles fazem a curva, descem da moto e a mulher busca uma
adolescente. Todos entram no bar, pedem bebida alcoólica,
dançam, e começam a “namorar”. As mãos dos homens passeiam
nas pernas e nádegas das garotas. A adolescente ri alto,
corresponde às carícias e o rapaz conta-lhe algo ao ouvido. Os
homens da mesa ao lado solicitam o mesmo atendimento ao dono
do estabelecimento, e o serviço chega rapidamente: duas mulheres
se aproximam da mesa e ensaiam danças sensuais e beijos
apaixonados (Barra do Ceará, Helena Damasceno).
O toque no corpo é utilizado para se analisar a “mercadoria”,
manifestando, por um lado, o interesse do cliente na utilização do “produto”,
e, por outro, a disponibilidade simbólica desses meninos e meninas de se
submeterem à “venda”. E toda essa permissão de manuseio do corpo tende
a classificá-los, segundo o senso comum, como sujeitos profanos,
abandonando a inocência de almas máculas em proveito de uma vida
mundana.
Por serem membros de um determinado grupo social podemos perceber
certa uniformidade no gestual, nas falas, acessórios e posturas, onde palavra
e movimento fazem parte de um único sistema carregado de significação
e valor. Desse modo, a comunidade em si elabora seu repertório sensorial,
cabendo a cada ator apropriar-se dele de acordo com sua vontade e desejo.
Pois: “A percepção dos inúmeros estímulos que o corpo consegue recolher
a cada instante é função do pertencimento social do ator e de seu modo
particular de inserção no sistema cultural” (Breton, 2006: 56).
Na realização dos programas existe uma etiqueta corporal tanto por
parte das meninas como dos meninos. Essa etiqueta não tem um sentido
rígido dependente de uma educação formal, aquela que só é vista entre as
fronteiras do educado/civilizado e um outro rude/não-civilizado. Entretanto,
está envolvida com o universo da rua e com os simbolismos específicos do
grupo ao qual pertencem, ou seja, dos seus códigos, das suas referências
e mais precisamente da educação aprendida informalmente.
(...) aparentemente era “cliente”, pois quando as meninas estão
fechando um programa elas inclinam o corpo para dentro dos
carros; já os homossexuais inclinam o corpo e dão um balançado
nos cabelos (Castelão, Emanuela).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
137
O trabalho incessante e repetitivo nesses programas gera uma
ritualização de ações para a aproximação com a clientela, inculcando
maneiras comuns de se postar perante eles. As semelhanças no trato
corporal também podem ser percebidas nas vestimentas.
As meninas, assim como os travestis, vestem-se de forma provocante e
sensual. Os trajes mais usados são saias e shorts curtíssimos, tops, blusas
de alça ou tomara-que-caia; eventuais calças compridas, essas, em sua
maioria justíssimas, saltos altos ou sandálias rasteiras. Podemos afirmar que
aquele ou aquela que “melhor” se veste, que mais chama atenção, que
mais se expõe, consegue a preferência dos clientes, pois se posiciona quase
sempre em exposição para o outro. As roupas despertam a luxúria e tem
a finalidade de provocar o imaginário dos clientes, que se vêem servidos
de um corpo-cardápio em permanente disposição.
Um era louro é trajava uma minissaia preta e miniblusa rosa é
calçava sandália rasteirinha; o outro estava de minissaia e miniblusa
pretas. A que trajava miniblusa rosa ficava dançando ao redor do
ferro que sustenta a placa que indica o Estádio do Castelão. Esta
dançava como se estivesse em uma boate, descia e subia segurando
o ferro da placa em uma dança sensual (Castelão, Emanuela).
A intenção, como também a obrigação, de mostrar o próprio corpo
demonstra o quanto a fronteira da vergonha é rompida, principalmente
quando temos a clareza das necessidades existenciais de cada um deles. O
embaraço tende a “desaparecer”, ou é esquecido e camuflado à medida
que se estabelece a interação com o cliente e se firma a possibilidade de
concretização do programa.
As roupas usadas nos programas são um meio simbólico de exibição,
uma maneira de dar forma exterior, segundo Giddens, às narrativas do eu
(Giddens, 2002). Elas são muito mais do que um simples meio de proteger
o corpo; são na verdade um meio de auto-exibição, revelando os aspectos
da identidade de cada indivíduo. A moda expressa nesses grupos um
paradoxo entre a individualização e, ao mesmo tempo, o pertencimento a
uma tendência coletiva. Entretanto, o corpo propriamente dito é mais
importante que a roupa; esta será apenas um acessório para a valorização
e, como já ressaltamos, para exposição corporal.
As meninas que conversávamos trajavam: a de 14 anos, minissaia
jeans, blusa preta, sandália alta; a de 16 anos estava de short
“ciclista”, sandália plataforma; a de 12 anos estava de saia jeans,
blusa verde e sandália de salto alto, e notavelmente era perceptível
138
GLÓRIA D IÓGENES
que não sabia andar de salto. A garota se equilibrava sempre
precisando do ombro de uma delas para se locomover. Pareceume, aparentemente, que era a sua primeira saída à noite, pois não
dançava e olhava assustada para os lados (Osório de Paiva,
Emanuela).
Os dois travestis eram Eduarda e Serena. Eduarda hoje estava
vestida de mulher: uma saia jeans curta, um cinto branco, botas
pretas e uma blusa curta prateada. Usava também muita maquiagem
e um aplique nos cabelos (Castelão, Nelydélia).
Verificamos nessa pesquisa que essas tendências estéticas obedecem à
lógica dos territórios, tal qual está esboçado no texto de Diógenes. Foi
possível perceber que o comportamento, assim como as vestimentas,
redimensionam-se dependendo das características de cada ponto de
atuação desses personagens. As atitudes das meninas, quando são
encontradas na Barra do Ceará, com seus trajes simples, seus aspectos de
maltratadas diferenciam-se das meninas da Beira Mar, com seus saltos altos
e seus rostos maquiados.
Muita bebida nas mesas e, bem próximo ao “cordão de
isolamento”, vi o rosto de três mulheres: tratava-se na verdade de
meninas de no máximo 16 anos. Muito produzidas: maquiagem
carregada nos rostos quase infantis. Roupas da moda: malhas
escuras, salto altíssimos. As três olhavam atentamente para a rua
(Beira-Mar, Pedrita).
Chegamos por volta das 20 horas de uma noite quente, abafada.
Pensamos que ia chover, mas não ocorreu. Percorremos parte da
orla, por onde estamos nos deslocando, logo após o píer. Fomos
do Bar de Dona R. até mais abaixo, depois do Patricinha Strip
Dance Bar. Movimentação intensa nas calçadas. Paramos adiante,
estrategicamente afastados, mas próximos o suficiente para
assistirmos a cena: cadeiras de balanço lado a lado, casa pouco
iluminada, muro desbotado, espaço horizontal de onde se vê uma
sala e um pequeno sofá, estante com televisão pequena, quadros
nas paredes e um corredor dividido por luzes avermelhadas que
parecem demarcar entradas ou portas; algumas plantas contribuem
para a ornamentação na entrada da casa. Outro instrumento
bastante comum é a bebida alcoólica, aqui disposta no chão, onde
duas mulheres dividiam a entrada da casa e se mostravam a quem
passava. A estratégia compunha um visual também comum: saias
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
139
curtas, pernas cruzadas e seios à mostra, fora do sutiã. Não os
dois, mas apenas um. Uma outra característica presente é o sorriso
aberto, sempre flagrante. Aqui as moças riem muito alto e mostram
um dos seios... O outro? Pague pra ver (Barra do Ceará, Helena
Damasceno).
Então, podemos afirmar que o uso de certos adereços e acessórios não
se resume apenas à originalidade de cada indivíduo, mas ao habitus
(Bourdieu, 2007) incorporado, um sistema que interioriza a exterioridade
e exterioriza a interioridade, ambas construídas nesses espaços. A moda
que marca esses territórios é indicativa dos locais e das situações específicas.
Os vestuários usados organizam os códigos de cada espaço e por fim
articulam linguagens não-verbais que ultrapassam a própria vestimenta.
A maquiagem era composta por um lápis preto passado bem rente
à pálpebra de cima, deixando o olhar mais sedutor, e um brilho
labial transparente. No lugar dos usuais saltos, trazia uma sandália
preta básica e rasteira nos pés, usava um short jeans curto e
apertado e uma blusa estilo nadador preta, sem brilho. Trazia no
bolso direito de trás do short uma carteira de cigarros, mas não
fumava (Praia de Iracema, Pedrita).
Já nessa parte da Barra onde fomos hoje, há uma maior
concentração de boates e bares dos dois lados (calçada e praia).
Muitas adolescentes passeiam em pequenos grupos de três ou
quatro, mostrando-se abertamente, quase se esfregando nas mesas,
rindo largamente, e sempre arrumadas com roupas que expõem
ou demarcam partes de seus corpos (nádegas, seios). Homens
sentados às mesas tocam a mercadoria, mas elas saem logo. Como
se estivessem à procura de melhor oferta, saem à procura (Barra
do Ceará, Helena Damasceno).
Elas passam e vão certeiras às barracas, sem medo. Não
pestanejam, sentam nas mesas, se expõem sem nenhum receio,
nenhuma esquiva ou vergonha. O que me pareceu é que as meninas
da Beira Mar estão cristalizadas naquela paisagem. Ali houve uma
espécie de naturalização da exploração sexual. Também percebi
que elas são as mais bem arrumadas até aqui, as mais bem vestidas,
sensualizadas e mais envolvidas na rede de exploração e violência.
É como se existisse uma rede dentro da outra. Para cliente de todos
os tipos, todos os tipos de mercadoria. Cada área tem suas
características e especificidades, mas que são co-complementares
(Praia de Iracema, Helena Damasceno).
GLÓRIA D IÓGENES
140
É interessante notar que a composição dessa etiqueta e das marcas
exteriores de cada de território também distingue ou separa desde já o
turismo com fins de exploração sexual, realizado principalmente na orla
marítima, e a exploração sexual realizada dentro das comunidades. Pois
grande parte da exploração sexual de nossa cidade acontece dentro de
certos bairros, como Barra do Ceará, Castelão, Serviluz, entre outros, uma
vez que 54,9% dos clientes habituais são moradores locais. Conforme será
tratado, adiante, com feitio mais detalhado e completo no texto relativo
“ao ato de fazer programa”. Em resumo, vestuário e comportamento dos
meninos e meninas, assim como o perfil dos clientes, fazem parte de uma
dinâmica diferenciada nos territórios onde são realizados os programas.
Os meninos e meninas pesquisados utilizam o olhar como forma de
seleção dos seus clientes, privilegiando as mensagens emitidas através de
gestos delicados e de expressões simpáticas. Não que isso diga
verdadeiramente quem são cada um desses clientes e em qual confiar, mas
essa seleção de comportamento tem sido a única saída de sobrevivência
para aqueles que se arriscam nesse mundo. A única garantia é a confiança.
O contrato estabelecido entre ambas as partes determina os limites sexuais
dos clientes juntamente com o pagamento do programa e o local em que
o mesmo ocorrerá.
FCO HÉLIO - Tu já sofreu maus tratos?
F. – Já. Às vezes eu não gosto de sair. Eu tenho medo. É aquela
coragem pra sair entendeu? Porque sair com um homem que tu
bem conhece, não sabe nem o que aquele homem tem... Às vezes
elas brigam muito comigo [outros travestis] porque os carros param
e me chama, aí eu não vou porque às vezes eu tenho medo, então
eu não saio com qualquer pessoa (F., Hospital Sarah/ Castelão,
masculino, 17 anos).
Perguntei por que o programa não tinha “rolado”, ela respondeu
que o cliente estava bêbado e mal conseguia falar. Esses clientes
geralmente “enrolam”, não querem pagar o que elas pedem: “Às
vezes a gente pede 10,00 e eles querem dar só 5,00” (Castelão,
Nelydélia).
Segundo Giddens:
A confiança torna-se um projeto, a ser “trabalhado” pelas partes
envolvidas, e requer a abertura do indivíduo para o outro; onde
ela não pode ser controlada por códigos normativos fixos, tem
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
141
que ser ganha e o meio de fazê-lo consiste em abertura e
cordialidade demonstráveis (1991: 123)
Talvez pelo medo da violência ou de serem trapaceados, 22,3% dos
pesquisados prefiram os clientes mais velhos, enquanto que 26,8% prefiram
os turistas estrangeiros, pois ambas as categorias aparentemente dão uma
maior sensação de segurança.
É mais senhor, velho. É mais raro eu ficar com novo, porque é os
cabra mais ignorante que tem aqui, porque eles vem aqui se acha
bonitão. Aí eu prefiro ficar com velho. É melhor. É gente boa (C.,
Posto Pinheiro/ BR 116, feminino, 18 anos).
A quebra do contrato com o não pagamento do serviço ou o impulso
de subordinar e humilhar a quem se presta a realizá-lo são manifestações
de violência, nas quais o agressor detém o poder e o controle sexual sobre
os corpos em uso. A agressão física (assunto discutido no capítulo sobre
violência) é um tanto recorrente na realização dos programas e talvez por
isso a idéia de confiança seja sempre ambivalente, com possibilidade de
rompimento continuamente presente, como podemos verificar no relato
logo abaixo. Essa relação como os clientes constitui-se um grande paradoxo,
já que a relação íntima travada com eles exige, além de exposição,
sensibilidade e tato.
Foi assim: eu tinha acabado de chegar e o carro parou. Quando o
carro parou, ele perguntou quanto era o programa, eu disse e a
gente entrou. Entrei e aí ele me levou ali para a banda da BR,
num canto eu escolho que só. Aí pronto, a gente fizemo. Aí ele
abriu a porta do meu lado e jogou a camisinha. Aí ele mandou eu
descer. Eu tava nua, só com um sutiãzinho. Aí ele pegou e disse:
“Desce aí”. Eu disse: “Não, eu não vou descer não, por que tu vai
me deixar aqui”. Aí ele disse assim “Se eu quisesse te deixar aqui,
eu botava um revólver na tua cabeça e mandava tu descer”. Aí eu
peguei e olhei para a cara dele e disse: “Coitado”. Quando eu disse
coitado, o meu banco estava deitado, aí ele pá, me dá um chute.
Eu pego na chave do carro e puxo. Aí, quando eu puxo, eu me
deito pra pegar o calção dele que tava atrás, junto com o celular
e a carteira. Aí, quando eu volto, ele dá uns dois murros no meu
ouvido e eu caio pro outro lado. Aí ele arrudeia, nu também, nesse
tempo eu tava de megahair, ele pegou no megahair aí pronto,
foi só no meu nariz. Aí começou a descer sangue do meu ouvido,
142
GLÓRIA D IÓGENES
do meu nariz. Aí eu fiquei nua lá na BR, fiquei ligando, ligando
pra polícia. Aí depois a viatura veio me deixar (E., Posto G4/
Castelão, masculino, 17 anos).
Os clientes preferidos também são aqueles que possuem um mínimo
de higiene, conforme se encontra desenvolvido no capítulo sobre os “sete
sentimentos capitais”, no item relativo ao “nojo”. Essa valorização da higiene
diz respeito a uma etiqueta do corpo, porque sustenta elementos
desagradáveis da convivência social, já que na intimidade devemos ter certos
cuidados com os odores ou aromas exalados pelo corpo. Isso traduz uma
forma de classificar e distinguir através da aparência o melhor e o pior
cliente.
Segundo a mesma, ela não gosta de homens sem higiene, e ele a
faz sentir dores durante o ato sexual (Terminal Antônio Bezerra/
Terminal Lagoa, Helena).
(...) e a única exigência muitas vezes é só que os clientes estejam
limpos (Praia do Futuro, Marcilene).
Porque ele tava fedorento, tava bebo, sujo. Eu não gosto de ficar
com homem que bebe, tá entendendo? Eu gosto de ficar com gente
que esteja bom. Por que quando tem bebida no meio, vai rolar
confusão, toda vida é isso, é uma coisa (C., Posto Pinheiro/ BR
116, feminino, 18 anos).
Essa etiqueta não diz respeito apenas aos odores exalados pelos clientes,
mas também é dedicada aos comportamentos avaliados como “normais”
ou como “grosseiros”. São parâmetros utilizados e que dizem muito a
respeito do sucesso e do fracasso dos programas. O exercício do controle
sobre si, afastando atitudes violentas e praticando a contenção dos odores
na frente de outras pessoas, descrevem aquilo que Norbert Elias (1994)
disse fazer parte do processo civilizador.
O corpo nessa relação com os clientes não é apenas um meio de ação,
mas um organismo físico, sexuado, fonte de prazer, e que pode ser
transformado a partir da necessidade de cada indivíduo. Um exemplo dessa
transformação são os travestis, quando se utilizam do silicone como um
instrumento de sedução e também como “um modo ritual de afiliação”
(Breton, 2006), pois integra definitivamente aquele menino no mundo
simbólico da comunidade da qual quer fazer parte, ao mesmo tempo que
o separa dos outros que ainda não estão inseridos dentro do seleto grupo.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
143
Chegamos no campo de futebol do lado da avenida Paulino Rocha.
Lá estavam Ana e Serena, que são meninos. Eles estavam trajando
minissaia, miniblusa e sandália alta. Chegamos até lá e iniciamos
nossa conversa. Ana se mostrava mais interessada na gente.
Conversamos e ele nos contou que seu sonho é ir para São Paulo
depois de colocar silicone, que, segundo ele, será na sexta-feira.
O silicone na vida de Ana foi que a levou a morar com a cafetina,
pois ele quer colocar seios que custam R$350 cada litro, e é com
a cafetina o menor custo. Ana esta morando com ela para iniciar
sua “montagem” (Castelão, Emanuela).
O consumo do silicone tem a finalidade de que os corpos sejam
transformados para assim serem aceitos na coletividade. Eles buscam
modificar o olhar sobre si, bem como o olhar dos outros. Essa necessidade
nasce do imaginário de que ao mudar o seu corpo o indivíduo muda a sua
vida, passa a se aceitar melhor e a gozar de uma nova identidade. “Modela
para si diariamente um corpo sempre inacabado, sempre a ser conquistado
graças aos hormônios e aos cosméticos, graças às roupas e ao estilo da
presença” (Breton, 2007: 32).
Falaram depois sobre o silicone que Bruna pretende colocar no
bumbum. Ele dizia que já estava quase terminando de pagar a
cafetina. Segundo Bruna, funciona assim: eles moram com a
cafetina (em torno de 20 travestis numa casa no Barroso) e
trabalham para ela até que terminem de pagar o valor do silicone.
No caso de “Bruna”, R$350 por 2l. Ao pagarem a cafetina, ela
se responsabiliza por “bombar” (colocar silicone) os travestis, que
podem deixar a casa e trabalharem por conta própria (Castelão,
Nelydélia).
Bruna tinha colocado o silicone no sábado, no bumbum, como já
havia nos dito antes. Estava, segundo ele, com muitas dores nas
pernas e o outro travesti, que já fez aplicação de silicone no corpo
inteiro , segundo ele contou, mandou Bruna ir para casa porque
senão o silicone podia descer para os testículos e daí não tinha
jeito. (...) Os riscos são muitos. Segundo ele, o silicone é aplicado
pela própria cafetina e que eles desconhecem a origem do produto.
Sâmara disse que o silicone é mais grosso que óleo de cozinha, e
que é aplicado diretamente no corpo através de agulhas do tamanho
de um prego grande, sem anestesia (Castelão, Nelydélia).
144
GLÓRIA D IÓGENES
Todas as qualidades atribuídas tanto ao sexo masculino como ao sexo
feminino dependem de escolhas presentes na sociedade da qual eles fazem
parte. Tornar-se homem ou tornar-se mulher é uma construção social e
não apenas um destino biológico. “No interior do corpo são as possibilidades
sociais e culturais que se desenvolvem” (Breton, 2006: 70).
MARCILENE – Em relação à roupa que você usa, você quer falar?
T. – Assim, as roupa que eu uso assim, eu não gosto muito de
usar roupa de homem, gosto mais de vestir roupa de mulher, mais
quando eu saio à noite. Saio três vez na semana: sexta, sábado e
domingo. Aí eu visto roupa de mulher, saio montado. Montado é
quando eu me visto de mulher. Aí vou muitas vezes pras esquina,
aí conheço os cliente, aí vou (T., Praia do Futuro, masculino, 18
anos).
Ao se montar, os travestis fabricam uma estética feminina que para
eles é tão somente a sua mais pura essência, significando a afirmação da
identidade que eles próprios escolheram. O corpo feminino dentro do corpo
masculino “(...) traduz a necessidade de completar por iniciativa pessoal
um corpo por si mesmo insuficiente para encarar a identidade pessoal”
(Breton, 2007: 40) Seriam uma espécie de Diadorim3 às avessas, reunindo
dentro de si o homem e a mulher.
Perguntei como faziam para ficarem com o corpo feminino. Todas
responderam que aplicam silicone na casa de uma cafetina que é
aliciadora na Beira Mar. Ana completou que ira se montar essa
semana (colocar silicone), mas tem medo, pois segundo ela o
silicone é colocado por uma pessoa não habilitada para tal
procedimento. Ana faz programa na Beira-Mar e no centro da
cidade, mas nestes locais somente pode entrar com a autorização
da pessoa “responsável” pelo local (Castelão, Emanuela).
Hoje ele estava trajando minissaia, miniblusa rosa e sandália alta.
Os cabelos estavam com uma peruca que se sustentava com fivelas
douradas. A maquiagem era leve, apenas um batom, lápis e sombra
verde (Castelão, Emanuela).
3. Personagem do livro Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
145
O travesti menor em estatura trajava minissaia branca, blusa verde,
salto branco e uma pequena bolsa. Sua maquiagem era discreta:
batom e sombra. Já os outros dois eram altos e o salto aumentava
a estatura. Um deles trajava short curtíssimo, miniblusa, salto alto
preto, uma pequena bolsa. A maquiagem era pesada: sombra e
batom bem marcantes. O outro trajava minissaia, miniblusa e
maquiagem também marcante (Castelão, Emanuela).
Os travestis buscam a todo custo equiparar a sua aparência sexual ao
seu sentimento pessoal, e por isso ficam extasiados quando, vestidos de
mulher, os clientes os procuram para serem por eles sodomizados. A
homossexualidade, nesse caso, “rejeita” as atividades que os clientes
passivos impõem. A pior humilhação que eles sofrem consiste em serem
tratados como homens, já que embora o gênero seja uma construção social,
o ato sexual é o lugar no qual a oposição entre os sexos é defendida como
a figura masculina desejante e ativa e a figura feminina passiva (Bourdieu,
2007: 31).
Eu gosto de sair mais com boyzinho, garotos, pois, os velhos fazem
passivo e ativo e eu gosto de ser passivo, porque mulher eu tô
toda mulher, e a Maricota, homem velho, quer que eu faça o babado
nele. É horrível! Agora, os boyzinhos não, são ativos. Aí é uma
delícia! Eu não gosto que cantem, sexo oral em mim, porque eu
tô de mulher. (...) Apesar de me vestir como mulher o que me
incomoda é a calcinha. Eu não gosto de vestir que coça, esquenta.
Eu não fico o dia todo de mulher, de manhã me visto de homem
e a noite eu venho de mulher. Meu sonho é ir pra Europa e voltar
pra passar na cara das pessoas o que eu consegui. Eu não boto
silicone porque eu quero botar lá fora pra vim toda bonita (Castelão,
Emanuela).
A grande maioria dos meninos travestis sofre discriminação, seja na rua,
em casa ou na escola. Esse corpo estrangeiro torna-se corpo estranho
(Breton, 2006: 72), a sua anatomia é diferente e essa diferença gera
exclusão. O ser humano não é mais considerado como tal, ele resume-se
apenas a seu corpo e com isso conotações estigmatizantes recaem sobre
ele, conforme mencionado adiante, nos “sete sentimentos capitais”. Segundo
Breton:
A alteração do corpo remete, no imaginário ocidental, a uma
alteração moral do homem e, inversamente, a alteração moral do
146
GLÓRIA D IÓGENES
homem acarreta a fantasia de que seu corpo não é apropriado e
que convém endireitá-lo. Essa passagem a um outro tipo de
humanidade autoriza a constância do julgamento ou do olhar
depreciativo sobre ele, e até a violência contra ele. Só ao homem
comum se reserva o privilegio aristocrático de passear por uma
rua sem suscitar a menor indiscrição. Se o homem só existe por
meio das formas corporais que o colocam no mundo, qualquer
modificação de sua forma determina uma outra definição de sua
humanidade. (2007: 87).
AL. – Eu me sentia uma pessoa assim machucada. Porque você
sabe que não é todo mundo que chega assim no povo e diz eu sou
homossexual...
HELENA – E você dizia?
AL. – Eu dizia: olha, eu sou homossexual e não gosto de mulher.
Aí dizem: “Por que você não gosta de mulher? Você já comeu
alguma? Eu: “Já! Com 5, 6 anos eu experimentei e via que aquilo
não era pra mim”. Os meus amigo do colégio chegavam e falavam
assim: “Olha, Alex, eu posso levar uma menina pra tua casa?”.
Eu disse: “Pode. Mas eu lhe prometo que não vou fazer nada, você
pode fazer tudo, mas eu não vou fazer nada”. Aí, pronto, pintou
aquele clima, ele começou a beijar a menina no corpo, eu comecei
a ficar com a menina, aí a gente pegou e fez uma pequena suruba,
o que hoje é a grande suruba de hoje em dia. Aí eu amei (A., Barra
do Ceará, masculino, 16 anos).
Os travestis na Avenida Osório de Paiva são perseguidos pelos
freqüentadores. Na sexta-feira um grupo de jovens que disputavam
som jogaram garrafas de vidro contra o grupo de travestis. Não
sabemos o motivo, porém imaginamos que seja pelo fato de eles
passarem na área de disputa de som. Um pouco adiante um dos
travestis respondeu a agressão, transformando o short em um
biquini fio-dental e dançou provocando o grupo de jovens (Osório
de Paiva, Emanuela).
O preconceito sofrido por AL. e as garrafas jogadas nos travestis da
Osório de Paiva ilustram apenas uma parcela da violência e do preconceito
enfrentado por esses indivíduos. Essa discriminação não atinge somente os
meninos travestis em situação de exploração sexual; as meninas também
sofrem o prejuízo de pertencerem a um determinado grupo e serem a partir
de suas escolhas e comportamentos consideradas socialmente desviantes.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
147
Podemos, assim, perceber que nem só de sedução vive essa relação de
exploração; o nojo, a raiva, a repugnância e a vergonha fazem parte dessa
questão relacionada ao corpo e a exposição prematura da intimidade de
crianças e adolescentes.
RAFAEL – Como são os programas? O que é que tu sente quando
tu faz um programa?
J. – Eu sinto nojo do cara quando ele tá em cima de mim, eu sinto
nojo dele. Eu não gosto (J., Barra do Ceará/ Padre Andrade,
feminino, 12 anos).
Todos esses sentimentos afetam diretamente a auto-identidade, pois
entram em conflito no interior de cada indivíduo e são alimentados pelas
experiências humilhantes pela qual a maioria passa. É na realização de
tais programas que surge a soma desses sentimentos, e é através da
narrativa desses encontros que percebemos o distanciamento entre o corpo
físico e o indivíduo, como se algo ou alguma coisa permitisse que eles se
distanciassem das privações que o corpo sofre todas as vezes em que são
submetidos aos transtornos que os programas causam.
Durante a conversa com esse grupo de adolescentes e jovens, um
homem se aproximou e começou a dizer que queria sair com uma
delas. Bastante envergonhada, a adolescente que ele apontava nada
disse. Ela pedia que se retirasse, mas ele insistia.
Aproximei-me dele, que me disse que a presenteava com perfumes,
roupas, sandálias e comida, e, portanto, via-se no direito de “cuidar
dela”. Ele não admitiu que havia uma espécie de contrato ali, ele
disse que apenas cuidava dela, que tinha sentimentos de pai pela
adolescente e que não gostava de vê-la naquela situação. A
adolescente, no entanto, seguia em completo silêncio, apenas o
observava a poucos passos, quieta (Terminal Antônio Bezerra/
Terminal Lagoa, Helena Damasceno).
Essa relação de dominação e exploração leva os meninos e meninas à
tarefa longa e ingrata de agradar a pouco custo seus exploradores, estando
dispostos sempre que solicitados. Depois de cumprido todo o ritual de
aproximação, negociação e realização do encontro em si, aquele ou aquela
que há bem pouco tempo era “íntimo torna-se de súbito novamente um
estranho” (Giddens, 1991: 144). O exemplo abaixo, retirado de um diário
de campo, é bem emblemático sobre o que estamos discorrendo:
148
GLÓRIA D IÓGENES
Um pouco mais acima, um matagal meio cercado, de cerca baixa,
mas com uma abertura, uma espécie de trilha. Dali uma garota sai
acompanhada, sai na frente, e o homem logo depois, mas fingem
que não se conhecem. Ela arrumava a saia, ajeitava os cabelos,
olhava pros lados... Visivelmente ela acabara de sair de um
programa. Mas mal deu tempo pra que ela se recuperasse, na
mesma hora um carro branco pára, ele sinaliza e ela entra sem
pestanejar. No carro eles parecem conversar, como se acertassem
valor, local, ou apenas conversassem. Nós estávamos do outro
lado da rua, bem em frente à parada de ônibus, como se
estivéssemos esperando um. O carro anda devagar, podemos quase
acompanhá-los. O carro some da nossa vista, não sem antes o
vermos fazer a volta para entrar num motel próximo (Barra do
Ceará, Helena Damasceno).
Entretanto, nada disso extingue a vontade de amar e ser amado desses
meninos e meninas que sonham com aquilo que Anthony Giddens (1993)
chamou de “amor romântico”, um amor feminilizado, que carrega dentro
de si as categorias “para sempre” e “único” na forma fantasiada de um
romance. Essa idéia de romance é estendida também aos homossexuais,
que idealizam tanto a feminilidade quanto a masculinidade nos seus
relacionamentos. É um amor que concebe a sua completa desvinculação
do poder, pois isso eles vivenciam continuamente através das relações que
estabelecem nos programas. Sonham com um amor livre e puro, que
represente a liberdade e o desejo de se viver algo verdadeiro e positivo.
Assim, eu queria viver numa casa, ser uma pessoa feliz, ter o meu
marido, como um casal vive, não ter filhos, mas assim, eu queria
ter uma vida normal, não a vida de umas pessoas, um garoto de
programa. Queria muito mudar a minha vida (T., Praia do Futuro,
masculino, 18 anos).
Todos nós nos confrontamos com uma variedade quase infinita de
escolhas, escolhas plurais que podem dizer muito sobre quem somos, ou
melhor, dizer sobre o nosso estilo de vida. No mundo em que vivemos, um
estilo de vida indica ter “um conjunto mais ou menos integrado de práticas
que um indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem
necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa
particular da auto-identidade” (Giddens, 2002: 79).
Ela também me relatou várias aventuras que já havia passado. Seus
pais e familiares não sabem nem imaginam que ela faz programa.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
149
Depois que trabalhou em casa de família e foi morar com uma
amiga passou a fazer programa. Antes por necessidade e hoje
porque optou por este estilo de vida que lhe proporciona conhecer
lugares diferentes, ter lindas roupas. Gosta de conhecer homens
bonitos, mas não faz isso todos os dias, somente nos finais de
semana. Mas que até hoje é muito difícil se assumir como garota
de programa (Beira Mar/ Mcdonalds, Marcilene).
Para falar a verdade, nem todos os indivíduos possuem a livre escolha
do seu estilo de vida. Muitos são condicionados pelas oportunidades que
surgem. Mas não podemos esquecer que “os hábitos do estilo de vida são
construídos pelas resistências da vida no gueto e também pela elaboração
direta de estilos culturais e modos de atividades distintos” (Giddens, 2002:
84).
Um exemplo de estilo de vida seria a desses meninos e meninas que,
por terem pouca ou quase nenhuma oportunidade, decidem utilizar o corpo
como forma de ganhar algo que os sustentem, seja em relação ao que
comer, ao que vestir, ou simplesmente ao consumo de drogas. Entre aqueles
que responderam ao questionário, perguntamos se faziam sexo em troca
de algo além de dinheiro. Dos 24,7% que responderam “sim”, 49,5%
afirmaram fazer em troca de drogas; 26,8% de presentes (roupas,
cosméticos, brinquedos, etc.); 11,3% de comida; 6,2% de amor e carinho,
e 6,2% de outras coisas. Vejamos os relatos dos adolescentes T. e J.:
MARCILENE – E o que tu faz com esse dinheiro que tu ganha?
T. – Assim, eu compro roupa, eu tenho dívida, geralmente eu pago
o que eu devo, né? Eu compro comida pra dentro de casa. Minha
mãe, eu compro comida pra ela, pra minha irmã. Não que ela é
casada, mais muitas vezes eu dou pra minha família (T., Praia do
Futuro, masculino, 18 anos).
RAFAEL – Como é que tu utilizas o dinheiro que tu usa nos
programas?
J. – Se eu ganhar mais ou menos R$30, eu pego aí é dois mesclado
que eu fumo, o resto é pra mim comprar as coisa pra mim, xampu,
creme... (J., Barra do Ceará/ Padre Andrade, feminino, 12 anos).
A triste realidade é a de que esses meninos tomam todos os dias a decisão
de descer para o asfalto cumprindo uma rotina cansativa e degradante,
sendo que um programa pode ser realizado por míseros R$2. A adoção
150
GLÓRIA D IÓGENES
dessa opção de vida se integra ao uso que eles fazem do seu próprio corpo
e também da sua própria existência. “Quando grandes áreas da vida de
uma pessoa não são mais compostas por padrões e hábitos preexistentes,
o indivíduo é continuamente obrigado a negociar opções de estilo de vida”
(Giddens, 1993: 87). Na maioria das vezes, a opção pelo programa surge
com o desejo de se ter acesso a bens de consumo que sequer fazem parte
da lista de primeiras necessidades, como, por exemplo, bombom, chiclete,
chocolate.
Aí quando eu completei 11 anos eu perdi minha virgindade, com
11 anos. Aí eu comecei a se prostituir, comecei a fazer programa...
Eu fiz um programa uma vez... Eu conheço o R., tia. Eu conheci
um monte de gente homossexual. Aí eu comecei a andar por ali e
ver os outro fazendo programas. Aí eu pensei: quer saber de uma
coisa? estou sem nada, sem dinheiro, o jeito que tem é fazer
programa. Aí eu comecei a fazer o programa com os outro. Eu
fazia programa só pra comprar bagulho, bagulho é bombom,
chiclete. Eu fazia tudo por R$3, fazia por R$2, quando eu era
pequeno, eu tinha uns 10 anos. Eu fazia só pra comprar bombom,
chocolate, essas coisas... Eu comecei a andar na rua, aí quando
eu tinha 11 anod eu vim pra cá, pro Terminal da Lagoa, e comecei
a fazer programa com as menina, e até hoje. Aí, quando eu tinha
12 anos, eu comecei a pegar cara grande. Quando eu tinha 11
anos eu só pegava menino pequeno. Quando eu tinha 12 anos eu
comecei a pegar cara grande, fazer programa com gente grande,
alto. Eu tinha 12 anos. Eu perdi a minha virgindade com 13 anos.
Eu fiquei naquele babado lá, né, foi com 13 anos (M., Av.
Expedicionários, masculino, 15 anos).
A partir desse estilo de vida esses meninos e meninas são julgados e
em alguns momentos excluídos de equipamentos, serviços e redes mais
amplas de sociabilidade. Muitas vezes as formas perversas e agressivas
como são tratados, inclusive nos programas, refletem as proibições e tabus
que a sociedade os impõe. Seus comportamentos, suas atitudes e suas
opções passam a se transformar em problemas, que prejudicam a
convivência harmônica com outros grupos sociais.
Percebemos, então, que a experiência da exploração sexual comercial
em Fortaleza, por movimentar seus ganhos e perdas, atrai, através das
necessidades e das aspirações, um número cada vez mais crescente de
meninas e meninos para as ruas. E o abandono social em que vivem essas
crianças e adolescentes faz com que eles, na ausência do amparo da
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
151
sociedade, procurem ultrapassar fisicamente os limites do corpo e fiquem
à mercê de uma conquista sexual empoderada pelo dinheiro e poder
exercido pelo cliente.
B IBLIOGRAFIA
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª ed., Rio de Janeiro:
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__________. O poder simbólico. 10ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
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ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José
Olympio,1956.
ACHADOS QUANTITATIVOS, AS NARRAÇÕES
DOS PESQUISADORES E A FALA DOS
SUJEITOS: O QUE SIGNIFICA
FAZER PROGRAMA?
Glória Diógenes
A rua é o cenário. Um lugar em que se entremeiam e se confundem
passantes, automóveis, bicicletas, pipoqueiros, ônibus, taxistas, pedintes,
camelôs, policiais, lugar de fluxo e, em alguns casos, de permanência e
construção de vínculos. Exatamente isso, um vínculo com o transitório, com
o impreciso, com o movimento. A rua é um espaço que condensa fluxos,
atividades e freqüências diversas. Assim como as cidades, cada lugar conta
a sua história por seus usos e práticas. Como bem exemplifica Michel De
Certeau (2000: 35), justificando a escolha do foco de sua pesquisa:
Mais do que intenções, eu gostaria de apresentar a paisagem de
uma pesquisa e, por esta composição de lugar, indicar os pontos
de referência entre os quais se desenrola uma ação. O caminhar
de uma análise inscreve seus passos, regulares ou ziguezagueantes,
em cima de um terreno habitado há muito tempo.
É assim que as “práticas do lugar”, a movimentação dos sujeitos de
observação e dos pesquisadores e seus encontros têm a rua como cenário
de observação e, no geral, como espaço de conversação. Andar e palmilhar
trajetos na rua, fazer registros de práticas, ziguezaguear, identificar o
envolvimento de turmas e as dinâmicas do fazer programa passa a fazer
parte do métier do pesquisador. É preciso que a rua possa produzir
movimento no olhar do pesquisador e nos escrevinhadores dessas
experiências. Machado Pais afirma (2006: 49), na sua pesquisa acerca dos
“sem-abrigo”:
154
GLÓRIA D IÓGENES
A vida de sem-abrigo como de um nómada, é intremezzo. Os pontos
de seu percurso são etapas de um trajecto. Os próprios elementos
de seu habitat são concebidos em função dos trajecto que
constantemente os mobiliza.
As crianças e adolescentes que vivem na rua ou que fazem da rua seu
lugar central de sociabilidade experimentam, de forma precoce e sem que
se tenha o tempo necessário para compreender e situar as experiências,
mudanças de espaço e de tempo. As noções de estar aqui, dormir acolá,
alimentarem-se alhures são bem recorrente nos seus discursos. Deve-se
ressaltar que o olhar intrometido (ver capítulo 1) do pesquisador tem como
referente a lógica da casa, sendo que o uso e as dinâmicas que imprimem
no espaço expressam as tensões e diferenças não apenas da noção de
espaço, como também do tempo e dos seus ritos.
Da casa para rua não muda apenas o ritmo da vida, isto é, a forma de
apreensão do tempo e do espaço por intermédio das atividades – mudam
também os valores. Liberdade no espaço, liberdade com o tempo, liberdade
para o corpo – todas estas formas significam, em última análise, algo bem
mais problemático para o sistema social: a liberdade de quem não adere
à convenção do mercado. “Na rua, para se ter o que se quer, basta tomar”,
por isso é possível conseguir as coisas que a família não pode oferecer e
que estão fora do alcance de quem trampa legal (isto é, quem trabalha
regularmente). O projeto de consumo do grupo doméstico, nas camadas
de baixa renda, se vê constantemente obrigado a diferir a fruição do que
a sociedade urbana tem a capacidade de proporcionar. Na rua pode-se
ter a cidade à sua disposição, desde que se esteja disposto a conquistá-la
(Vogel, 1991: 69).
A rua instaura e dinamiza encontros que, por se estruturarem para além
da lógica da sociedade moderna do trabalho e dos espaços habituais de
sociabilidade urbana (postos, Terminais, passeios de avenidas), concentram
modos inusitados e aparentemente invisíveis das dinâmicas da exploração
sexual adolescentes. Por isso, a leitura das tabelas e os percentuais
analisados são entremeados com as falas dos meninos e meninas e os olhares
e registros dos pesquisadores
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
39. IDADE EM QUE COMEÇOU
A FAZER PROGRAMA
155
TOTAL
ATÉ 12 ANOS
30
9,1%
DE 13 A 15 ANOS
172
52,4%
DE 16 A 18 ANOS
118
36,0%
8
2,4%
328
100,0%
OUTROS
TOTAL
Observa-se que os caminhos de iniciação à exploração sexual ocorrem
de forma mais marcante (61,5%) na faixa etária que se localiza no intervalo
de 12 a 15 anos. Esse momento inicial, como já foi mencionado no capítulo
anterior, tem seu prenúncio, no geral, em cenas que ainda se passam na
esfera íntima da casa. Acompanhemos a trajetória de D., que tem
atualmente 17 anos e vive no Terminal da Lagoa:
HELENA – Como é que você soube que ele [o pai] estava abusando?
D – Eu via toda a cena. Ele não respeitava, a gente via toda a
cena. Eu achava aquilo normal, pra mim era normal, sei lá, era
como se fosse algo que teria que acontecer. E daí a minha irmã
ficava chorando.
HELENA – Ela era mais nova ou mais velha?
D – Mais velha. Ela ficava chorando, e ele abusando dela, batia
nela, ele falava pra ela calar a boca e ela calava. Teve um tempo
que ela não agüentou mais e foi pro interior. Aí o meu pai passou
a me usar, com sete anos ele me tocou e aos oito anos ele abusou
de mim sexualmente.
HELENA – E aí o que aconteceu?
D – Eu tinha muito medo dele, cara, aí eu cedia mesmo, eu cedia
pra ele e apanhava mesmo. Eu tinha proteção mais da minha irmã.
E também a minha família descobriu e eu passei a enfrentar ele,
falei que não queria mais, que não dava mais certo e dei basta
mesmo. Ainda hoje eu não posso nem voltar pra casa porque ele
diz que vai me matar, que vai matar a minha família, então é melhor
estar à distância. Então assim, tudo isso que aconteceu comigo
veio mexer aos 14 anos, eu passei a sentir nojo de mim, eu não
suportava o meu corpo, eu me sentia suja, imunda, muito suja.
156
GLÓRIA D IÓGENES
Tinha vezes que eu me olhava no espelho e eu tinha vontade de
me cortar, sei lá, de me esmurrar, de me matar mesmo, porque eu
não agüentava assim. É algo muito horrível que você sente. Não
é constante, tá entendendo? Mas tem dias assim que parece que
aparecem todos os problemas de uma vez, que vem tudo pra cima,
sabe? Que você olha assim no espelho... não, cara, eu não agüento
mais, eu não quero mais essa vida e tal. Eu nasci pra sofrer... E
você acha que não tem solução.
HELENA – Não dá pra explicar, não é?
D – Não dá. É muito complicado, é tanto complicado como
doloroso, porque é algo que você conta e dói muito, é como se
você mesma falasse pra você: ah eu vou esquecer, mas não esquece
porque são feridas que estão abertas, não estão fisicamente. Mas
não existiria pior do que a mental, é a que dói muito porque é a
sua realidade, tá entendendo? É sua história e pra você curar tudo,
você vai ter que contar. É muito difícil você enfrentar pessoas que
querem lhe ajudar e você tem que contar toda realidade, toda a
sua história triste de novo.
D – Isso. Então é você no seu mundo, é você sozinha. E a partir
do momento que você passa por toda essa situação, você se torna
sensível, sensível demais, então assim, pra você pode ser uma coisa
que pode ser uma brincadeira, pode ser simples, ou até mesmo
uma coisa que você vai ouvir de qualquer pessoa que você nem
conhece e que vai lhe machucar; parece que o mundo desaba em
cima de você. E a única solução que mostra pra você que é a errada
é voltar pra prostituição de novo e até mesmo a usar droga.
No momento em que decide dar voz e proferir através de palavras uma
vivência quase indizível, D. apresenta a sua porta de entrada para o que
denominamos exploração sexual: sete anos de idade. Obviamente que D
relata vivências de estupro, situações de violência sexual. De outro modo,
vale ressaltar que mesmo o percentual de 61,5%, que declara ter feito o
seu primeiro programa na faixa etária acima evidenciada, expressa apenas
um outro momento de uma trajetória que se inicia em outro lugar e com
outros figurantes: a casa e as cenas de violência doméstica e violência sexual.
Através da leitura das entrevistas e do discurso de cada criança e adolescente
sobre a família, pode-se identificar uma relativa ruptura: pais distantes,
mães permissivas e também marcadas por desalentos e histórias de violações
de direitos. Lasch (1991: 229) ressalta que “a mesma criança que despreza
seus pais por considerá-los fracos e hesitantes, que estabelece vínculos
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
157
frouxos com eles e relega-os a um segundo plano sem dificuldades, conjura
em suas fantasias um outro elenco de pais”. A entrada na exploração sexual
é marcada por um imaginário oscilante: ora a mãe aparece com figura
que falta, assim como o pai; ora personifica a meta de um sonho de
mudança, de uma transmudação absoluta do modo de vida.
Nessas horas, tia, eu só tenho ódio da minha família mesmo. Eu
tive só essa raiva e fiquei imaginando em sair dessa vida, em nunca
mais subir em carro de ninguém. Quem vive assim nessa vida e
que é mulher é quase impossível sair assim, porque você não tem
emprego, não tem nada, não tem ninguém que lhe ajude (A., Barra
do Ceará, feminino, 17 anos).
O meu relacionamento familiar é como eu já te falei, é muito difícil.
Os meus pais são separados. A minha mãe é uma pessoa
totalmente difícil. Ela nunca entendeu o meu lado. Se eu chegar
em casa com dinheiro eu sou recebida muito bem; se eu não chegar
com dinheiro eu não sou recebida bem. Se possível for não tem
almoço pra mim se eu não chegar com dinheiro. quando eu chegar
em casa, pode ter pros meus irmão, mas pra mim não tem. E é
justamente agora que eu estou torcendo porque a minha mãe já tá
perto de se aposentar, eu estou torcendo pra que ela se aposente
pra ela poder vive a vida dela e eu viver a minha. Eu quero mudar
de vida, logicamente eu quero, quem não quer mudar de vida? Eu
espero que ela primeiro mude a vida dela pra eu poder mudar a
minha vida. Você já pode fazer outra pergunta (L., Beira Mar,
feminino, 18 anos).
84. TEM OU NÃO VONTADE DE
DEIXAR DE FAZER PROGR.
TOTAL
SIM
226
68,9%
NÃO
66
20,1%
N.S. / N.R.
36
11,0%
TOTAL
328
100,0%
A tabela acima evidencia um marco divisor, uma passagem que parece
ter hora, lugar e escolha. 20,1% indicam não querer sair da exploração
sexual, no entanto, 68,9% aspiram uma vida diferente da que levam. Como
tatear esses ritos e o que se pode compreender da inserção desses
158
GLÓRIA D IÓGENES
personagens nas ruas, a forma das primeiras abordagens dos clientes e as
tantas idas e vindas nos territórios de exploração?
De outro modo, quando se indaga qual o sonho, a projeção de futuro
para as crianças e adolescentes, a maioria ressalta o desejo de poder
“mudar a vida da família”:
O meu sonho é ter um emprego, dar uma casa melhor pra minha
mãe sair daqui desse buraco e fazer ela parar de trabalhar, por que
ela trabalha muito. Ela tá muito doente, tá doente do coração. De
vez em quando ela sente uma dor. Eu morro de medo de perder a
minha mãe. Ave-Maria, se eu perder a minha mãe eu perco o meu
chão. O meu sonho é esse: dar uma casa pra ela e uma vida
melhor, é arrumar um emprego pra poder ajudar ela em casa.
Porque na verdade ela é quem faz a comida e o meu irmão é quem
entregou. Aí ela cuida de menino, ajeita a casa. (J., Barra do Ceará,
feminino, 19 anos).
Meus maiores sonhos... assim, meu sonho no passado, até os 14
pra lá, era ter um quarto só pra mim com tudo dentro. Eu digo
assim, televisão, computador, ter patins, essas coisa assim. Dentro
da minha casa ter paz na minha família, ter uma família unida.
Porque o meu pai tinha condição de dar tudo pra gente, mesmo
sendo pai adotivo. E daí desmoronou tudo que eu sonhava. E daí
eu passei a sonhar somente... hoje eu passei a sonhar só em ter
um futuro melhor, mais lá na frente terminar os meus estudos,
trabalhar nem que seja em casa de família, em qualquer canto, mas
ter um trabalho digno, sem ser o trabalho que a gente levava quando
era de rua, essas coisas assim, ter a minha casa própria, ajudar
meus irmãos que tão com a minha mãe, porque eu sei que a minha
mãe não vai ficar viva pra sempre. É isso aí o meu sonho... O que
eu sonho até ainda hoje mesmo é ter um patins, até hoje eu sonho
de ter um patins (E., Terminal da Lagoa, feminino 15 anos).
E. é a mesma adolescentes que “fez o suicídio” na Lagoa motivada pelo
abandono e até mesmo pelo rompimento de vínculo com a família e a
incursão prolongada na rua dela e da irmã N. A exploração tanto aparece
como uma válvula de escape do ambiente de violência, negligência e
abandono, que parece configurar o cotidiano dessas famílias, como também
representa um lugar de autonomia e busca de estratégias capazes, no
imaginário de quem vivencia, de reverter as privações e o desalento na e
da família.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
40. COM QUEM FEZ O
PRIMEIRO PROGRAMA
DESCONHECIDO
159
TOTAL
6
1,8%
OUTROS
4
1,2%
PRIMOS
3
0,9%
CONHECIDO
2
0,6%
CAMINHONEIRO
7
2,1%
AMIGOS
21
6,4%
CLIENTES LOCAIS
124
37,8%
POLICIAIS
3
0,9%
TURISTAS BRASILEIROS
34
10,4%
TURISTAS ESTRANGEIROS
98
29,9%
VIZINHOS
13
4,0%
N.S. / N.R.
13
4,0%
TOTAL
328
100,0%
No geral, a motivação e até mesmo a justificativa para o primeiro
programa se efetua pela sedução e promessa de ganhos e oportunidades
que se realiza através do “turista” (aproximadamente 44%).
RAFAEL – Quando e como foi a tua primeira experiência sexual?
R. – Foi com um italiano, na Praia de Iracema. Ele me deu R$500.
RAFAEL – Qual era a tua idade na época?
R. – Eu tinha 14 anos (R., Barra do Ceará, feminino, 17 anos).
É ele, o turista, quem paga um valor mais alto para usufruir do corpo
de crianças e quase adolescentes ainda virgens. É ele que, no geral, oferta
uma quantia de dinheiro mais elevado por fotografias que envolvam cenas
de nudismo e de erotismo. Vejamos o depoimento de E., de 15 anos,
entrevistada na Beira Mar:
Eu também passei pelo Cristo Rei, onde eu fui abusada dos 7 aos
9 anos por um menino de 14 anos. Foi uma fase muito complicada
na minha vida, porque eu passei a não me sentir mais criança, e
sim a me sentir já como se fosse uma mulher, como uma pessoa
160
GLÓRIA D IÓGENES
adulta depois da relação. Mesmo ele não tendo mexido comigo,
mas ele passou a mão no meu corpo, então eu já passei a não me
sentir mais criança e nem com noção de criança. Então eu passei
a já vestir roupas que chama a atenção dos homens, essas coisas
assim, aquilo e aquilo outro.
Eu passei a me prostituir próximo à minha casa e meu padrasto
passou a saber. Como o meu padrasto começou a saber, ele
começou a querer pagar dinheiro pra ficar comigo e com a minha
outra irmã, aí eu voltei pra a rua, até hoje eu estou na rua de novo,
aos 16 ou 15 anos... Agora eu vou ser encaminhada pra um abrigo.
O cliente que eu gostava era só um, que era esse da Praça do Liceu.
Ele tirava as foto, tocava no nosso corpo, essas coisas assim. E
ele pagava direitinho. Ele era legal. Ele dava as coisas que a gente
tava precisando. Às vezes ele levava a gente pra dormir na casa
dele, essas coisa assim. Ele não obrigava a gente a ter relações
com ele e nem nada. Ele brincava, por exemplo, não existe só
um tipo de relação do homem só penetrar em você, ele pode
brincar com você. Ele brincava com a gente, essas coisas assim,
e pagava e tudo mais.
Cenas de abuso, passagem por uma instituição de abrigo, violência por
parte do padrasto, exploração do cliente da Praça do Liceu travestida da
idéia de brincadeira; enfim, o comprometimento com a condição da infância:
“Então eu já passei a não me sentir mais criança e nem com noção de
criança. Então eu passei a já vestir roupas que chama a atenção dos homens,
essas coisas assim, aquilo e aquilo outro”. O fazer programa é recortado
por um feixe de experiências fragmentadas que produzem, porém no
imaginário de quem adentra e dela é vítima a projeção de uma situação
quase naturalizada desse conjunto de acontecimentos e fatos que acumulados
culminam no ato de fazer programa.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
41. O QUE MOTIVOU A COMEÇAR A FAZER PROGRAMA
161
TOTAL
DINHEIRO
231
58,2%
DIVERSÃO
48
12,1%
AVENTURA
42
10,6%
PRAZER
13
3,3%
AJUDAR A FAMÍLIA
3
0,8%
AMIGOS
3
0,8%
CONSUMO
4
1,0%
CURIOSIDADE
3
0,8%
DROGAS
9
2,3%
PELOS FILHOS
2
0,5%
POR NECESSIDADE
6
1,5%
SAIR DE CASA
9
2,3%
OUTROS
11
2,5%
N.S. / N.R.
13
3,3%
TOTAL
397
100,0%
As motivações de ingresso no campo da exploração sexual assinaladas
de uma forma objetiva e quantitativa certamente expõem, em primeiro
plano, referentes mais concretos e presentes no dia-a-dia das crianças e
adolescentes entrevistados. As falas mais extensivas acerca de suas
trajetórias de vida elucidam como o fator dinheiro (58,2%), que aparece
em primeiro plano, é antecedido por outros de natureza diversa: violência
doméstica, abuso, afastamento de entes da família, estupro dentre outros
fatores. No caso de D. (Terminal da Lagoa, feminino, 17 anos) verifica-se
que o dinheiro, embora seja citado, não aparece como elemento central
de motivação:
HELENA – Como é que foi o primeiro programa? Que idade você
tinha?
D – Eu tinha 12 anos. O cara começou a falar que era meu amigo
e tal. Ele me dava dinheiro e eu aceitava na boa. Eu não sabia por
que ele me dava dinheiro.
GLÓRIA D IÓGENES
162
HELENA – Sem te pedir nada em troca?
D – Ele não me pedia nada em troca. E aí passou uns dias ele me
dando dinheiro, e enquanto ele me dava dinheiro, ele se masturbava
no birô dele.
HELENA – E aonde era isso?
D – Numa oficina.
HELENA – Perto da tua casa?
D – Perto da minha casa. Eu vendia rifa pra minha tia, eu ajudava
ela, então eu sempre ia lá porque ele preenchia toda rifa, ele
comprava a rifa toda e o bicho que desse o prêmio era meu, ele
não queria. E ele falou que tudo que eu precisasse ele iria me dar,
que ele seria meu amigo, e ele não iria fazer nada comigo. Isso
passou, passou... quando eu fui ver, eu estava dentro de um motel
com ele. E foi sempre assim.
HELENA – Que idade você tinha?
D – 12 anos. Foi sempre assim, ele me usando e me dando
dinheiro.
HELENA – O que você sentia quando entrava no motel com ele?
Como era pra você?
D – Sei lá, eu me colocava no lugar de uma prostituta, porque é
motel, eu nunca tinha entrado, e eu fiquei com medo e tal. Ele
falou pra mim confiar, e eu confiei, fui com ele e ele me deu R$50.
HELENA – O que você fazia com esse dinheiro?
D – Eu comprava patins pra mim, comprava coisas pros meus
colegas, só essas coisinhas assim, roupa, chilitos, bota, só pra
ajudar a minha tia até, né? Muitas vezes eu me prostitui porque,
eu sei que isso não justifica, mas a minha tia tava doente e tal, e
era sempre eu, eu dava o dinheiro para ela e dizia: “Tia, taí R$20,
a senhora compra o que der”. Ela nunca chegou a me pedir
dinheiro, eu chegava e dava.
O dinheiro do programa, que aparentemente iniciou-se no
preenchimento de uma rifa, era utilizado para comprar patins, chilitos, bota,
produtos que não estão na pauta de primeira necessidade, De outro modo,
D. informa que a tia nunca chegou a lhe pedir dinheiro. O dinheiro é
retomado na fala de D. da forma seguinte:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
163
E eles não tão nem aí pra você não, eles fazem o que eles quer, e
você só obedece. Mas, até mesmo você não querendo, e você
estando ali, você vai ver que você é especial, que você é
importante. E o que vai ajudar é o carinho e o apoio, é a conversa,
a compreensão. Não é chegar e apontar você quis, você gostou,
vai de novo porque quer, não. É muito difícil, eu não vou mentir
pra ti, é muito difícil sair dessa vida porque é dinheiro fácil, e às
vezes é algo que pra você é prazeroso (D., Terminal da Lagoa,
feminino, 17 anos).
O dinheiro é a justificativa primeira, mais fácil de ser compreendida e
assimilada, seja pelas próprias meninas, seja por quem está de fora, sejas
pelas instituições de retaguarda, tal qual o caso do pesquisador que segundo
as mesmas é símbolo do lugar de indagação: “Vai de novo porque quer?”
O dinheiro figura na ordem das necessidades, da justificativa de luta pela
sobrevivência. Assumir prazer, desejo de sentir-se valorizada, especial,
importante, de receber carinho, apenas emerge em relatos embalados por
um pacto de confiança e em certas relações de reciprocidade, relativa à
condição educador-pesquisador.
Observa-se que se agregando os itens “diversão”, “aventura”, “prazer”
e “curiosidade” alcança-se o percentual de 26,8%, aparecendo de forma
residual o item “drogas” com 2,3%. Isso significa dizer que qualquer
intervenção institucional no campo da exploração sexual deve intervir para
além das condições socioeconômicas das crianças e adolescentes e de suas
famílias. O dinheiro, a necessidade e a luta pela sobrevivência representam
apenas a ponta do iceberg de demandas e expectativas mais complexas
desse segmento.
42. ALGUÉM LHE MOTIVOU A
FAZER PROGRAMA?
TOTAL
SIM
137
41,8%
NÃO
188
57,3%
3
0,9%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
GLÓRIA D IÓGENES
164
43. QUEM MOTIVOU A COMEÇAR A FAZER PROGRAMA?
OS PAIS
TOTAL
5
3,4%
IRMÃOS
3
2,0%
AMIGOS
99
66,9%
NAMORADO(A)
12
8,1%
CONHECIDOS
16
10,8%
DESCONHECIDOS
2
1,4%
PRIMOS
4
2,7%
OUTROS
6
4,1%
N.S. / N.R.
1
0,7%
148
100,0%
TOTAL
Verifica-se que 57,3% dos entrevistados ressaltam que não consideram
que tenham sido motivadas por outrem para sua incursão nas práticas de
exploração sexual. Isso significa, em se tratando de crianças e adolescentes,
uma perspectiva de uma relativa condição de autonomia e de
responsabilidade por escolhas e preferências. Os “pais” aparecem com
apenas 3,4% das indicações, contrariando relatos orais em que a figura
materna parece fazer “vista grossa” e exigir dinheiro na volta para casa, e
o personagem padrasto, que também assume um lugar significativo nas
situações de violência narradas no escopo dessa pesquisa. Assim como o
dinheiro, as “amigas” (66,9%) e “conhecidos” (10,8%) são indicados,
recorrentemente, como motivadores, incentivadores e propiciadores de
situações estratégicas para o ato de fazer programa. São recorrentes os
relatos em que a categoria “amiga” é quase responsabilizada por uma
iniciação, aparentemente, não desejada.
Foi bem. Depois eu comecei a morar com a minha mãe de novo.
Eu comecei a andar na minha vó. A minha mãe mora lá, aí eu
comecei a morar com a minha mãe. Aí eu conheci uma menina...
eu posso falar? Eu conheci uma menina. Foi num dia de domingo.
Ela me chamou pra praia, aí eu peguei e vim. Ela pegou carona
com um homem. O homem pegou e deu... mas só que eu não era
mais virgem. Eu tinha perdido a minha virgindade com o meu
namorado. Eu perdi agora em outubro de 2006, nesse ano que
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
165
passou... Aí ela me chamou e pediu uma carona ao homem. Eu
disse que não ia. Ela disse que se eu não fosse ela ia ficar com
raiva de mim. Aí eu subi dentro do carro. Quando chegou lá no
motel o homem deu 20 pra mim e 20 pra ela. Aí de lá ela pegou
e pediu dinheiro pra comprar pedra. Ai eu peguei e disse: “Se tu
for fumar, fuma sozinha”. Aí, olha o jeito dela: “Mulher, tu não
vai fumar, não?”. Aí foi que eu fumei e se aviciei na droga (R.,
Barra do Ceará, feminino, 16 anos).
Eu não fazia programa. Aí eu estudava com ela ali, com aquela
lorinha ali, eu não fazia programa. Eu estudava com ela, e ela já
fazia. Aí ela me perguntou se eu queria, se eu estava a fim e tal.
Eu disse que não. Aí passou assim umas duas semanas e eu fiquei
assim pesando no dinheiro. Eu precisando comprar as coisas pra
mim. Aí eu peguei e fiz, e pronto, depois desse dia aí até hoje (R.,
Barra do Ceará, feminino, 17 anos).
44. FAZ MAIS PROGRAMAS
COM PESSOAS:
TOTAL
MESMO SEXO
74
22,6%
SEXO DIFERENTE
175
53,4%
AMBOS OS SEXOS
76
23,2%
N.S. / N.R.
3
0,9%
328
100,0%
TOTAL
Quando chegamos às questões relativas aos programas, L. confessou
fazer programas com homossexuais que o procuram de vez em quando, e
falou ter um fixo que sempre lhe paga muito bem e presenteia com roupas,
calçados e passeios. Disse que esse homem tem 28 anos, muito dinheiro,
um carro legal, e que às vezes nem precisa transar com ele para ganhar
alguma coisa. Embora tenha dito que seus clientes habituais são
homossexuais e que sente prazer nos programas (geralmente é o ativo), L.
diz ser heterossexual: “Se for pra namorar é com mulher, tia” (Centro,
Sharon Dias).
GLÓRIA D IÓGENES
166
45. ORIENTAÇÃO SEXUAL
TOTAL
HETEROSSEXUAL
225
68,6%
HOMOSSEXUAL
86
26,2%
BISSEXUAL
15
4,6%
N.S. / N.R.
2
0,6%
328
100,0%
TOTAL
Verifica-se que 53,4% das crianças e adolescentes entrevistados realizam
o programa com pessoas de sexo diferente, sendo 22,6% apenas com
pessoas do mesmo sexo e 23,2% com pessoas de ambos os sexos. Na
pesquisa realizada em 1998 (“Criança (in)feliz”) observa-se que apenas
11,6% indicavam relacionar-se com pessoas de ambos os sexos, e 36,4%
afirmavam ter como cliente habituais pessoas do mesmo sexo. Isso significa
dizer, segundo os dados, que se ampliou, dentre desse segmento, a
capacidade de transitar e direcionar o programa para ambas as preferências:
feminina, masculino e transexual. Os papéis assumidos durante o programa
tornaram-se menos codificados: 26,2% dos pesquisados se identificam
como homossexuais 4,6% como bissexuais e 68,6% como heterossexuais.
46. SE TRAVESTE?
TOTAL
SIM
68
81,9%
NÃO
10
12,0%
ÀS VEZES
4
4,8%
N.S. / N.R.
1
1,2%
TOTAL
83
100,0%
47. CLIENTES MAIS HABITUAIS
OUTROS
MORADORES LOCAIS
TOTAL
5
1,5%
180
54,9%
CAMINHONEIRO
8
2,4%
TURISTAS BRASILEIROS
41
12,5%
TURISTA ESTRANGEIROS
80
24,4%
N.S. / N.R.
14
4,3%
TOTAL
328
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
167
A exploração sexual que transcorre nas ruas tem o espaço público e
seus equipamentos como locus e tem os “moradores locais” (54,9%) como
principais clientes, vindo em segundo plano, e bem distante do primeiro,
os “turistas estrangeiros” com 24,4% de indicações, ficando o “turista
brasileiro” com 12,5% e o “caminhoneiro” com 2,4% de ocorrências. Das
duas últimas pesquisas realizadas em Fortaleza (em 1998 e em 2003), até
esse levantamento realizado em final de 2007, verifica-se uma ascendência
da categoria “moradores locais” (em 1998 com 16,7% , em 2003 com
48,3%, atualmente com 54,9%), e uma ampliação do item “turista
estrangeiro” (em 1998 com 18,8%, em 2003 com 9,9%, e no
levantamento atual com 24,4%), mantendo-se praticamente estável o
indicador “turista brasileiro (em 1998 com 16,7%, em 2003 com 11,3%,
e na atual consulta com 12,5%).
Os relatos que pontuam as entrevistas ressaltam o caráter ocasional das
práticas de exploração sexual e, certamente o “morador local” é alguém
que permeia a esfera cotidiana dessas crianças e adolescentes. O vizinho
do birô, que comprava rifa, o homem da mercearia, o policial, todos eles
são contracenantes de cenas costumeiras das casas e das ruas. Observa-se
que, no geral, essas meninas e meninos experimentam uma sensação mais
demarcada pela idéia de necessidade, e esboçam expressões e adjetivos
relativos ao nojo do ato sexual quando se trata desses atores que convivem
e se encontram presentes no campo mais estreito de suas relações.
Vale salientar que é o território que projeta dinâmicas de exploração como
também o perfil da clientela e o valor do programa. Por isso, deslocar-se da
Barra do Ceará para Beira Mar significa agregar valor ao programa e indica
a padronização de um tipo de cliente e um nível diferenciado de oferta.
Como aqui é um local (Barra do Ceará), como por exemplo, na
Beira Mar, que já se conhece tem pessoas se prostituindo. E quem
gosta de adolescente vai mais para a Beira Mar, vai ali para a Leste.
Por que a gente fica aqui é difícil, aqui tem muitas se prostituindo,
e as que estão aqui já são de maior. Então eles já sabem que aqui
tem garotas de programa e já vem para cá. Quando ele vê uma
pessoa na esquina andando ou parada, eles já sabe que está atrás
de fazer (K., Barra do Ceará, feminino, 16 anos).
A exploração sexual no espaço da Barra do Ceará, assim como aquela
das BRs e dos Terminais, pode ser considerada ainda mais degradante,
agressiva e violenta que a exploração sexual que transcorre em locais de
turismo, de freqüência de público das classes mais favorecidas e de intensa
visibilidade pública.
168
GLÓRIA D IÓGENES
(...) porque ela (a amiga) era só a gente ir lá, abrir as pernas pro
cara, mas não é só assim. O cara às vezes exige. Tem uns que é
legal e tem outros que não é, às vezes trata a gente mal, tem uns
que quer ficar com a gente à força, mesmo a gente não querendo,
às vezes bota revólver na cara, bate na gente, faz um bocado de
coisa. R$15, R$10. Nós costuma cobrar mais se o homem tiver a
cédula ou se ele for muito nojento, que a gente não quer ficar com
o homem, aí a gente aumenta o preço pra ele não querer (E., Barra
do Ceará/ Padre Andrade, feminino, 18 anos).
O lugar do programa é também um indicador de outras práticas ilícitas
e de outras formas de exploração. Observa-se nos relatos referente às
entrevistas que a vivência da rua, da exploração, está quase sempre
associada à droga e a violência física e verbal:
Foi assim: eu cheguei com um cara num motel e ele perguntou se
ele poderia cheirar o pó. Eu disse que tudo bem. Ele me ofereceu
e eu disse que não queria. Isso eram 3 horas da tarde, de 3 horas
da tarde ele passou até 12 horas da noite cheirando pó. Então eu
peguei e disse que ia sair, não ia mais ficar. Ele disse que se eu
saísse ele ia ligar para a recepcionista e dizer que eu tinha roubado
o celular dele. Eu não podia sair do quarto. Depois que ele terminou
o pó dele, ele veio querer fazer sexo comigo. Como eu não queria
mais, porque já estava muito tarde, ele me forçou a fazer com ele
e foi muito violento, chegou até a me bater (B., Barra do Ceará,
feminino, 16 anos).
A Barra do Ceará é um território que tanto concentra um número mais
elevado de crianças e adolescentes em situação de exploração sexual, como
também evidencia um alto grau de associação entre fazer programa e o
uso de drogas, ficando muito destacado o relativo ao crack. A pesquisa
realizada em 1998 (p. 92) já indicava que o item “maus tratos e violência”
assumia um percentual global de 15,1% entre os entrevistados, e esse
mesmo percentual, na Barra, ascendia para 42,9%.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
48. QUE TIPO DE
MORADORES LOCAIS
VIZINHOS
169
TOTAL
4
2,2%
AMIGOS
12
6,7%
POLICIAIS
19
10,6%
TRABALHADORES LOCAIS
101
56,1%
CAMINHONEIROS
3
1,7%
DESCONHECIDOS
6
3,3%
OUTROS
15
8,3%
N.S. / N.R.
20
11,1%
TOTAL
180
100,0%
O “morador local”, de acordo com a tabela acima, assume faces diversas.
A maior parte deles é representada pelo “trabalhador local” (56,1%), vindo
os policiais em segundo plano (10,6%), e os “amigos” em terceiro, com
6,7%. Esses podem ser considerados os clientes de ocasião que, no geral,
adentram e fazem parte das redes de sociabilidade das crianças e
adolescentes.
O “morador local” foge dos estereótipos tão alardeados pela mídia e
tão destacado como “perfil do explorador”, com contornos imaginários
supervalorizados no que tange o seu caráter “imoral e pervertido”. Trechos
de um diário de campo evidenciam outros sinais:
Início de noite e já há muitos homens à procura de sexo. Há muita
variedade de tipos masculinos. Encontra-se desde o homem que
sai do trabalho para tomar uma cerveja com seu grupo de amigos,
até aquele que sai de casa à procura de sexo casual. Feios, bonitos,
fisicamente atléticos, obesos, arrumados, banhados, que bebem
cachaça, outros cerveja, uns que vão de encontro ao que procuram
diretamente, outros que mandam recado pelo garçom. Mas o mais
interessante é que são homens comuns, simples, aparentemente
de classes sociais distintas, porque há aqueles que denotam ser
mais abastados, outros tem visivelmente sua fonte econômica mais
escassa, limitada, pois são menos polidos e gastam menos que os
demais; mas todos são tipos comuns. São homens que podemos
encontrar em outros ambientes, tais como em bares de periferia,
independente da função de destino destes, ou em padarias, ou no
GLÓRIA D IÓGENES
170
meio da rua. O que digo é que não há um estereotipo específico,
típico para homens que procuram sexo por diversão, ou sexo com
adolescentes e jovens (Terminal Antonio Bezerra/ Lagoa, Helena
Damasceno).
Um tipo comum, de classes sociais distintas, um sujeito anônimo. Um
perfil que se encaixa, a princípio, em qualquer homem que trafega e habita
a cidade de Fortaleza. No caso dos travestis, freqüentemente pela
necessidade de ocultamento também da clientela, esses indicadores sugerem
outros padrões.
HELENA – Esses homens, que tipo de homens são esses com que
você sai? Eles são jovens? Como são eles?
AL. – São policiais, advogados, secretariados de justiça. Sabe o
que é secretariados de justiça, né? E outra coisa: muita gente que
tem carro e que é casado mesmo procura a gente. Eu não sei
responder por que eles procura a gente, porque são casado, têm
suas poucas, têm seus filhos, têm suas coisas dentro de casa e
ainda vêm procurar a gente. Então eu acho o que há alguma carne
boa que ele quer compor a vida dele. Até agora, graças a Deus, eu
parei de fazer programa porque estou namorando. (AL., Barra do
Ceará, masculino, 16 anos).
49. TIPO DE CLIENTES
PREFERIDOS
TOTAL
CLIENTES BONITOS
5
1,5%
CLIENTES COM DINHEIRO
26
7,9%
CLINTES JOVENS
17
5,2%
CLIENTES LOCAIS
16
4,9%
CLIENTES VELHOS
74
22,6%
MULHERES
6
1,8%
TURISTA BRASILEIROS
14
4,3%
TURISTAS ESTRANGEIROS
88
26,8%
SEM PREFERÊNCIAS
45
13,7
N.S. / N.R.
37
11,3%
TOTAL
328
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
171
Quando se trata de definir a “clientela preferida”, de acordo com a tabela
acima, os “turistas estrangeiros” (26,8%) aparecem em primeiro plano,
quase nivelados aos “clientes mais velhos” (22,6%). 13,7% declararam “não
ter nenhuma preferência” e 7,9% destacam “clientes com dinheiro” como
sendo o referente central da escolha. A leitura do conjunto de entrevistas
evidencia os motivos centrais da preferência por estrangeiros.
Os clientes são os mesmos tipos comuns, bem diversos. Mas um
detalhe interessante: é que os mais velhos aqui presentes preferem
os adolescentes que se travestem, enquanto os mais novos
procuram as mulheres e jovens. Há também meio que um ritual
de conquista. Ao sentar à mesa, elas não partem imediatamente
para os beijos e carícias, apesar de alguns dos rapazes assim o
desejarem. Há uma fraca e temporária resistência das moças. Não
é apenas a moeda que importava ali, mas a sedução, a conquista
também é fator determinante para a realização de um programa
(Terminal Antônio Bezerra, Helena Damasceno).
A preferência pelo cliente diferencia-se através dos seguintes
indicadores:
1) Tipo de freqüência do público, como também de crianças e
adolescentes no território relativo à dinâmica da exploração sexual;
2) Equipamentos e serviços locais;
3) Vida noturna (bares, boates, danceterias, barracas de praia) e/ou
atividades que são mais intensas durante a luz do dia (comércio e
serviços públicos);
4) Zona de turismo versus zonas de maior freqüência de moradores
locais.
A exploração sexual no espaço da Beira Mar, por exemplo, nas falas
de meninos e meninas, tem aparecido associada à lógica do divertimento
e da aventura do deslocamento nos espaços da cidade.
M. – Eu comecei o primeiro dia foi na Beira Mar com cara de fora,
da Argentina. Eu saí com ele e aí vim para cá fazer programa. Aí
as menina começaram a me incendiar, aí eu comecei a fazer, e
faço até hoje. Graças a Deus não aconteceu nada comigo.
EMANUELA – Como é que costuma se divertir, o que tanto gosta
de fazer para se divertir?
GLÓRIA D IÓGENES
172
M. – Para se divertir eu gosto de chamar uma amigas e sair assim
para uma festa, ir pra um baile, tomar um sorvete, e ir para um
aniversário, brincar um pouco e ir para praia curtir.
EMANUELA – E para onde quer que tu vai?
M. –Mais para praia, para Beira Mar conhecer os estrangeiros de
fora...
EMANUELA – Como é, me conta a tua relação com o teu
namorado?
M. – Tá ali ele.
EMANUELA – Me conta como é a tua relação com ele.
M. – É muito boa. Ele não é daqui, ele é da África. Aí ele vem, eu
almoço com ele, a gente fica conversando. Se negócio assim de
sexo, de ter relação sexual eu não tenho com ele ainda não. Nós
se conhece há pouco tempo (M., Barra do Ceará, feminino, 16
anos).
Além disso, a condição do turista condensa referentes de movimento e
mobiliza a sedução pelo desconhecido, diferenciado também através do
fator curiosidade e pelo que pode proporcionar de vantagem financeira.
Além de tudo isso, é o “turista estrangeiro” que mobiliza o sonho de um
amor, de um namorado, a projeção da mudança drástica de vida. Sonho
esse alimentado de certo modo, em alguns casos também pelo turista.
Os turistas estrangeiros têm uma preferência maior pelas garotas
que aparentam ser mais humildes e não demonstram interesse por
estar com eles apenas pelo dinheiro, por mais que a principio esse
seja o verdadeiro motivo que me atrai (L., Praia do Futuro, feminino
18 anos).
A relação sexual, no caso das meninas e meninos com o turista
estrangeiro, é permeada por expectativas do campo amoroso. Piscitelli (2002)
ressalta que nesse tipo de turismo o prazer está vinculado às atrações
“inventadas”; o gozo, à credulidade em “pseudo-acontecimentos”. Projetase no sexo um inusitado imaginário amoroso. “Um impulso centrífugo, ao
contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar
o que “está lá fora”. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto...”
(Bauman, 2004: 24). O “estrangeiro” representa o desejo de expandir-se,
de uma certa incursão em uma outra cultura, em um outro mundo.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
173
O movimento de europeus é maior no mês de agosto devido ao
período de férias. (...) Esses que vem no linho são os que pagam
melhor. Em média de R$200 o programa e são menos exigentes.
Alguns turistas agem como se fossem donos do ambiente. Passam
pelas mulheres sorrindo, oferecendo bebidas alcoólicas e até fazem
comentários: “Estou na barraca certa, na minha cidade no Sul não
tem tanta gostosa assim (Praia do Futuro, Marcilene).
A adolescente ou o adolescente “humilde” e que parece demonstrar
um interesse mais genuíno pela figura do estrangeiro propriamente dito,
para além do interesse monetário, pode projetar no que vem de fora a
idéia de fusão, do encontro “verdadeiro” com o outro.
Existe um outro tipo de turismo, que pode estar interligado a uma rede
de tráfico, explicitado do seguinte modo:
Conversei com duas amigas que são do Belém do Pará e
aparentavam ser menores de idade. A princípio falaram que tinham
20 anos e explicando do que se tratava minha pesquisa aceitaram
participar confessando que tinham 17 e 18 anos. Eram garotas
belíssimas, morenas bronzeadas, corpos esculturais, usavam
perfumes fortes e muita maquiagem. Segundo elas, o fato de serem
menores de idade não trazia nenhum problema, pois tinham
“amigos” que facilitavam suas estadia em Fortaleza nos meses de
julho e janeiro para fazerem programas. Completando que não
vão embora de Fortaleza com menos de R$5 mil cada uma. Estes
amigos pagam passagens e hospedagens e ganham algumas
porcentagens pelos programas. Disseram ainda que o grupo de
meninas que estavam hospedadas pela Beira Mar constava de 5
meninas (Praia do Futuro, Barraca de Praia, Marcilene Lourenço).
A Pesquisa sobre Tráfico – PESTRAF – realizada em 2003, assinala
que
torna-se muito difícil dar visibilidade a uma questão que envolve
seres humanos vulneráveis às redes (de traficantes) que têm como
única preocupação suprir o mercado com opções erótico-sexuais
em busca de retorno financeiro (p. 105).
São esses amigos “que facilitam a estadia em Fortaleza, nos meses de
julho e janeiro para fazerem programas” que atuam, certamente, nas redes
“invisíveis” de tráfico. Por isso, a temporalidade e a freqüência dos
GLÓRIA D IÓGENES
174
programas, conforme veremos a seguir, é sazonal e resultante de cada
dinâmica territorial da rede de exploração.
50. QUANTOS DIAS POR SEMANA FAZ PROGRAMA
TOTAL
DE 1 3 VEZES
109
33,2%
DE 4 A 6 VEZES
92
28,0%
TODOS OS DIAS
98
29,9%
SÓ QUANDO APARECE
15
4,6%
OUTROS
8
2,4%
N.S. / N.R.
6
1,8%
328
100,0%
TOTAL
Os dados relativos à freqüência semanal do programa evidenciam os
processos de intensificação das experiências de crianças e adolescentes no
campo da exploração sexual. Em 1998, a pesquisa realizada em Fortaleza
apontava que apenas 19,4% faziam programa todos os dias da semana.
No levantamento realizado em 2003, apenas 2% dos entrevistados afirmam
fazer programa “5 vezes ou mais por semana”, no caso do atual relatório
verifica-se que quase 30% das crianças e adolescentes fazem programa
todos os dias, sendo que 28% afirmam fazer de “4 a 6 vezes por semana”.
Esses indicadores evidenciam a natureza, a intensificação de caráter
predatório e cada vez mais intenso dos usos do corpo de crianças e
adolescentes no campo da exploração sexual comercial.
É como se o corpo da criança e do adolescente se tornasse um mero
artefato de projeção e dominação da vontade dos sujeitos: o cliente de
manipulá-lo, penetrá-lo, dessacralizá-lo; já a criança e o adolescente,
experimentam um vácuo: as “fronteiras do corpo, que são
simultaneamente os limites de identidade de si, despedaçam-se e semeiam
confusão” (Le Breton, 2003: 26), provocando um “adeus (precoce) ao
corpo” da infância.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
175
51. ONDE FAZ MAIS PROGRAMA
MASCULINO
ATÉ 12 ANOS
DE 13 A 15 ANOS
DE 16 A 18 ANOS
TOTAL
AV. ABOLIÇÃO
0
0,0%
0
0,0%
1
1,0%
1
0,8%
AV. BEIRA MAR
0
0,0%
1
7,7%
14
13,3%
15
12,6%
AV. EXPEDICIONÁRIOS
0
0,0%
0
0,0%
1
1,0%
1
0,8%
AV. HUMBERTO MONTE
0
0,0%
0
0,0%
2
1,9%
2
1,7%
AV. JOSÉ BASTOS
0
0,0%
0
0,0%
21
20,0%
21
17,6%
BARRA DO CEARÁ
0
0,0%
0
0,0%
4
3,8%
4
3,4%
BR 116
0
0,0%
0
0,0%
2
1,9%
2
1,7%
CASTELÃO
0
0,0%
0
0,0%
5
4,8%
5
4,2%
CENTRO
0
0,0%
3
23,1%
17
16,2%
20
16,8%
GRANJA PORTUGAL
0
0,0%
0
0,0%
1
1,0%
1
0,8%
JOÃO XXIII
0
0,0%
1
7,7%
0
0,0%
1
0,8%
LESTE OESTE
0
0,0%
0
0,0%
1
1,0%
1
0,8%
MESSEJANA
0
0,0%
1
7,7%
0
0,0%
1
0,8%
OSÓRIO DE PAIVA
0
0,0%
1
7,7%
2
1,9%
3
2,5%
PERIMETRAL
0
0,0%
1
7,7%
1
1,0%
2
1,7%
PRAÇA DO FERREIRA
1
100,0%
0
0,0%
1
1,0%
2
1,7%
PRAIA DE IRACEMA
0
0,0%
1
7,7%
27
25,7%
28
23,5%
RUA
0
0,0%
1
7,7%
0
0,0%
1
0,8%
TERMINAL DO LAGOA
0
0,0%
1
7,7%
3
2,9%
4
3,4%
TERMINAL DO SIQUEIRA
0
0,0%
0
0,0%
1
1,0%
1
0,8%
OUTROS
0
0,0%
2
15,4%
1
1,0%
3
2,5%
TOTAL GERAL
1
100,0%
13
100,0%
105
100,0%
119
100,0%
FEMININO
ATÉ 12 ANOS
DE 13 A 15 ANOS
DE 16 A 18 ANOS
TOTAL
ANTÔNIO BEZERRA
0
0,0%
0
0,0%
5
2,6%
5
2,1%
AV. ABOLIÇÃO
0
0,0%
0
0,0%
2
1,0%
2
0,8%
AV. BEIRA MAR
0
0,0%
3
7,7%
20
10,3%
23
9,6%
AV. EXPEDICIONÁRIOS
1
16,7%
1
2,6%
2
1,0%
4
1,7%
AV. HISTORIADOR R. GIRÃO
0
0,0%
0
0,0%
2
1,0%
2
0,8%
AV. HUMBERTO MONTE
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
1
0,4%
AV. JOSÉ BASTOS
0
0,0%
0
0,0%
3
1,5%
3
1,3%
BARRA DO CEARÁ
3
50,0%
10
25,6%
53
27,3%
66
27,6%
BR 116
0
0,0%
2
5,1%
18
9,3%
20
8,4%
CASTELÃO
1
16,7%
2
5,1%
1
0,5%
4
1,7%
CENTRO
0
0,0%
4
10,3%
14
7,2%
18
7,5%
LESTE OESTE
0
0,0%
1
2,6%
1
0,5%
2
0,8%
MISTER HULL
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
1
0,4%
MONTESE
0
0,0%
1
2,6%
0
0,0%
1
0,4%
OSÓRIO DE PAIVA
0
0,0%
1
2,6%
7
3,6%
8
3,3%
PASSEIO PÚBLICO
0
0,0%
2
5,1%
5
2,6%
7
2,9%
PERIMETRAL
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
1
0,4%
PIRAMBU
0
0,0%
1
2,6%
0
0,0%
1
0,4%
POSTO PIONEIRO
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
1
0,4%
PRAÇA DA ESTAÇÃO
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
1
0,4%
GLÓRIA D IÓGENES
176
ATÉ 12 ANOS
DE 13 A 15 ANOS
DE 16 A 18 ANOS
TOTAL
PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR
0
0,0%
0
0,0%
4
2,1%
4
1,7%
PRAIA DE IRACEMA
0
0,0%
4
10,3%
32
16,5%
36
15,1%
PRAIA DO FUTURO
1
16,7%
3
7,7%
8
4,1%
12
5,0%
RUA
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
1
0,4%
SERVILUZ
0
0,0%
2
5,1%
3
1,5%
5
2,1%
TERMINAL DO LAGOA
0
0,0%
1
2,6%
3
1,5%
4
1,7%
TERMINAL DO SIQUEIRA
0
0,0%
1
2,6%
0
0,0%
1
0,4%
TERMINAL PARANGABA
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
1
0,4%
OUTROS
0
0,0%
0
0,0%
4
2,1%
4
1,7%
TOTAL GERAL
6
100,0%
39
100,0%
194
100,0%
239
100,0%
Observa-se que a inserção nos campos da exploração sexual relativa
ao sexo masculino tem como lugar central a Praia de Iracema (23,5%),
vindo a José Bastos em segundo lugar (17,6%), o Centro em terceiro, com
16,8%, e a Beira Mar em quarto, com 12,6%. No que se refere ao sexo
feminino, a Barra do Ceará aparece em primeiro plano (27,6%), seguida
da Paria de Iracema (15,1%), e, com percentuais aproximados, identificase: Beira-mar (9,6%), BR-116 (8,4%) e Centro (7,5%). Verifica-se que é
na Barra do Ceará que a faixa etária – até 12 anos – no que tange à
exploração sexual feminina – atinge a ordem de 50%, vindo a Praia do
Futuro em segundo lugar, nessa faixa etária, com 16,7%. Já no caso da
exploração relativa ao sexo masculino, é no Centro que se identifica os
níveis mais drásticos de violência sexual e violação de direitos; 23,1% desse
segmento situa-se na faixa etária de 13 a 16 anos.
ATÉ 10 REAIS
DE 11 A 50
REAIS
DE 51 A 100
REAIS
ACIMA DE 100
REAIS
TOTAL
MASTURBAÇÃO
140
50,5%
58
9,7%
5
6,0%
1
1,7%
204
SEXO ORAL
99
35,7%
96
16,0%
2
2,4%
4
6,7%
201
19,7%
SEXO VAGINAL
19
6,9%
125
20,8%
12
14,5%
8
13,3%
164
16,1%
SEXO ANAL
10
3,6%
116
19,3%
10
12,0%
6
10,0%
142
13,9%
SEXO GRUPAL
1
0,4%
52
8,7%
17
20,5%
12
20,0%
82
8,0%
PROGRAMA COMPLET.
8
2,9%
154
25,6%
37
44,6%
29
48,3%
228
22,3%
NÃO ACEITA DINHEIRO
–
–
–
–
–
–
–
–
3
0,3%
OUTROS
–
–
–
–
–
–
–
–
12
1,2%
N.S. / N.R.
–
–
–
–
–
–
–
–
12
1,2%
277
100,0%
601
100,0%
83
100,0%
60
100,0%
1021
100,0%
TOTAL
20,0%
O valor do programa confirma a própria multiplicidade relativa à vivência
da exploração sexual. Observa-se que a situação “masturbação” é uma
alternativa de programa que no cômputo geral recebe 20,6% de
freqüência, aproximando-se da alusão ao programa completo, que recebe
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
177
22,3% e do item “sexo oral” com 19,7% das indicações. Isso significa dizer
que fazer programa, no que se refere à natureza das práticas de exploração
sexual de crianças e adolescentes, não necessariamente diz respeito ao ato
de penetração e de coito vaginal e/ou anal.
Perguntei se não temiam a presença de tantos homens e elas riram
e disseram que estavam acostumadas. Apontaram para uma garota
de 13 anos que estava com elas e disse: “Ela tanto pede como faz
aquele negócio”. A garota por sua vez disse: “Não é só eu que
faço, vocês também fazem” Perguntei de que tipos de negócio
estavam falando, e elas disseram que as coisas que homem faz
com mulher. E que os vendedores ambulantes também faziam com
elas. Uma delas disse: “Mas eu não tiro a roupa não. (Praia do
Futuro, Marcilene Lourenço)
A exploração sexual guarda matizes que se expressam e ganham
contornos em pedaços de fala e em comentários que acabam revelando
sinais apenas decodificadas por quem vivencia, no dia-a-dia, os movimentos
e comportamentos relativos a essas práticas.
R– Programa aqui na Barra é R$20. Quando a gente vai pra Beira
Mar é R$100. R50, mas aqui na Barra é R$20. Tem uns que quer
dar R$10 ou R$15. Aparece daquele que quer dar até R$5 (R, sexo
feminino, 16 anos, Barra do Ceará).
Às vezes elas vão por R$10, por R$15 O pessoal daqui da Barra
do Ceará quer dar R$5, quer dar R$2, porque tem várias mulheres
e outros homossexual que faz por R$2. É só usar droga. Aí pronto.
Tem pessoas que querem fazer por mais dinheiro, mas eles diz não
quero não é porque eu comi aquela fulano dali por tanto (A., Barra
do Ceará, Masculino, 16 anos).
HELENA – Quanto você cobra para o programa completo?
AL. – Para o programa completo R$35 é bolagato; boquete; R$10;
e comer meu anus é R$20. Geral mesmo de comer, dar, chupar e
me bater é R$35, completo.
HELENA – E tem essa diferença de com camisinha ou sem
camisinha?
AL. – Sem camisinha... Eu cobro R$35 completo como eu te falei,
e sem camisinha eu cobro mais R$15 em cima, então dá quarenta
e...? (AL., Barra do Ceará, masculino, 16 anos).
178
GLÓRIA D IÓGENES
O valor do programa é definido, primordialmente, pelo território e pelo
“cardápio” de opções que ali se exibem na vitrine. O mesmo “programa”,
com a mesmo menina, ascende 500% o seu valor quando se desloca da
Barra do Ceará para a Beira Mar. Na Barra do Ceará, devido ao nível de
renda mais baixo de seus moradores, além da dependência química e da
fome das crianças e adolescentes exploradas sexualmente, o valor do
programa pode baixar até a R$5. Verifica-se que, quando se trata de
travestis, os níveis de exploração e de combinação de um leque mais amplo
de agressões e violências se diversifica, chegando mesmo, no caso de
dependentes de drogas, que o valor cobrado seja algo em torno de R$2.
Observa-se no relato de AL. que o preço do programa, se for o caso, inclui
também o ato de violência física, estipulado no montante de R$35. Ainda
existe o valor relativo ao comprometimento da própria vida do adolescente:
“Sem camisinha eu cobro mais R$15”.
É como se o corpo ali estivesse, como uma mera ferramenta de
trabalho, desvinculando-se, quase que de forma absoluta, de sua dimensão
biopsicosocial. Walty reporta-se, no seu estudo sobre “corpus rasurados”,
a uma certa diluição das fronteiras do corpo:
O corpo, é pois, invadido de várias formas e, objeto de violência,
institucionalizada ou não, confunde-se com outros corpos, inserese na sujeira, perdendo suas marcas identitárias....o corpo é, pois,
sempre a vítima da exposição maior ao risco inerente à vida nas
ruas (2005: 68).
O corpo dos adolescentes travestis, na condição de explorados
sexualmente, são alvo de uma série de agressões, violências físicas e verbais,
expressões de preconceitos e de exclusão e dificuldade de aceitação e
acesso nos espaços da família, da escola, do trabalho e das redes mais
amplas de sociabilidade. O valor do programa expressa o déficit de valor
que esses sujeitos vivenciam, tornando-se quase sujeitos invisíveis no plano
das políticas públicas. São relatos que precisam alcançar registros públicos.
E. – É, mulher. Porque não tem emprego pra travesti a não ser
salão de beleza ou então rua mesmo..
NELIDÉLIA – O que é que acontece aqui na noite?
E – Acontece várias coisas. Às vezes eles passam e jogam ovo,
gasolina. Outra vez eu tava ali e o homem jogou o carro por cima
de mim. É fuá. (E., Castelão, masculino, 17 anos).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
SHARON – E como foi essa história?
M. – Por causa que ele me esculambava muito. Quando eu passava
ele me chamava de veado, de veado, de veado, de veado, de veado.
E sempre eu levava a culpa. Ele me chamava, mas eu é que levava
a culpa, eu ia pra diretoria. Aí eu rebolei ele da escada, eu não
rebolei, eu empurrei ele assim sem querer, aí ele caiu. Eu fui expulso.
Aí eu voltei de novo pro colégio. Aí eu não terminei de estudar,
eu parei, foi o maior babado. Eu gosto porque eles não têm
preconceito, eles são bem legalzinho comigo. É assim, eu mal falo
com eles entendeu? Eu mal falo com a minha mãe, mal falo com
meu pai. E é porque mora todo mundo junto dentro da mesma
casa. Porque eu acho que eles falam de mim, eles me tesouram
por detrás.
SHARON – Lá tu já sofreu algum tipo de violência do pessoal que
passa? Alguma agressão verbal?
M. – Já não. Mas tem uma amiga minha que levou a um bocado
de ovada, um bugre passou e aí...(risos). Mas foi a Roberta, levou
um bocado de ovada ela. Não, mas foi sem enxame. Porque uma
vez a gente foi fazer programa na Beira Mar, aí nós vimos um veado
que não gosta da gente, aí nós fiquemo zombando da cara do veado
porque ele tava com o tamanco quebrado. Aí nós passemo na
pista. Aí vinha um carro na nossa frente com um bocado de homem
fazendo assim com a mão. Aí nós passamo pro outro lado, aí do
outro lado vinha um bugre, aí foi esse bugre... nós saímo toda
melada. Preconceito que precisa melhorar viu. Tem umas
professoras e uns professor que não gosta muito dos travestis que
entra dentro da sala de aula. Que fica falando venha de homem,
não sei o quê, não sei o quê, que coisa feia (M., Pirambu, masculino,
17 anos).
A. – Eu quero dizer assim, que essa vida de prostituição não é fácil
para ninguém, porque quem faz isso enfrenta mundo. O
homossexual é mais homem do que os outros homens, é isso que
eu tenho a dizer, porque ele enfrenta o social, ele enfrenta o
marginal, ele enfrenta homem, enfrenta mulher, enfrenta violência,
enfrenta o que vem pela frente. Então, eu quero dizer que não é
fácil, que não é como dizem que é só chegar e fazer prostituição.
Porque também não é bom fazer. Apesar se tivesse muito recurso
de coisa educativa para fazer, era melhor.
179
180
GLÓRIA D IÓGENES
Eu conheci a A., a dona da quadrilha, que é uma pessoa que eu
gostei muito. Eu conheci essa pessoa que ajuda nas horas mais
difícil, que eu precisava que estava ali pra me ajudar, pra me
aconselhar. Ela sabe um pouco da minha história de garoto de
programa, da minha vida, mas nunca soube que ela comentou. Eu
não tenho vergonha, mas o fato de você conhecer amizades, aí o
pessoal vai falar aqui que você vivia numa vida daquelas, aí você
vai se sentir uma pessoa... você vai se sentir uma formiga no meio
daquelas pessoas descentes, pessoas que não merecem bem dizer
assim a minha amizade, porque como eu era garoto de programa
antigamente (A., Barra do Ceará, masculino, 16 anos).
HELENA – Que você é homossexual? Que você faz programa?
AL – Que eu sou homossexual e faço programa. Agora, menos o
meu pai e o meu avô não sabem. Eles não aceitam. O meu pai
um dia chegou para mim e disse: “No dia que esse menino der
para a veado, ele pode pegar as malinhas dele e ir para outra casa”.
Eu cheguei para ele e disse: “Olha, eu posso ir para a casa da
minha prima na Itália, ou ela pode mandar a minha passagem para
São Paulo, que eu vou fazer os meus programas, que é o melhor
do que eu faço”. Eu vou fazer os meus programa, apesar de saber
que lá é muito arriscado, São Paulo não é a vida mesmo daqui.
Em São Paulo se você entra no carro você não sabe se volta no
mesmo dia. Você não sabe se volta para contar a história do que
aconteceu (AL., Barra do Ceará, masculino, 16 anos).
O fuá, a algazarra, a confusão parece estar sempre presente quando
se trata de um local de exploração sexual de travestis. Ovadas, gasolina,
quando não são os próprios carros constantemente lançados sobre eles.
Em todos os relatos as histórias de indiferença, rejeição, estigma avolumamse e vão pontilhando percursos que cada vez mais os conduzem a lugares
de limitada e homogênea rede de sociabilidade: eles, entre eles e a presença
quase sempre à espreita da cafetina. Ela cuida, ela vigia, ela cobra um
valor alto que apenas intensifica as redes de dominação, exploração e
aviltamento desses adolescentes. Os relatos de preconceito na família, a
exclusão da escola, a dificuldade de acesso a qualquer programa de
profissionalização, até o sentimento descrito por AL.: “Você vai se sentir
uma formiga no meio daquelas pessoas decentes, pessoas que não merecem
bem dizer assim a minha amizade” (AL., Barra do Ceará, masculino, 16
anos).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
181
Essa pesquisa delineia a presença marcante desse segmento no campo
da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Dos 26,2%
dos entrevistados que declarou como orientação sexual “homossexual”,
81,9% se traveste e se encontra fora de ações de retaguarda e do foco
mais prioritário de ações efetivas do poder público.
53. DIVIDE O QUE GANHA
COM ALGUÉM?
TOTAL
SIM
120
36,6%
NÃO
203
61,9%
5
1,5%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
54. COM DIVIDE O QUE
GANHA?
TOTAL
OS PAIS
34
27,2%
IRMÃOS
12
9,6%
AMIGOS
25
20,0%
NAMORADO(A) /
COMPANHEIRO(A)
16
12,8%
CONHECIDOS
1
0,8%
CAFETÃO/CAFETINA
24
19,2%
FILHOS
7
5,6%
OUTROS
7
5,6%
N.S. / N.R.
TOTAL
1
0,8%
125
100,0%
Parte significativa (61,9%) do público pesquisado, revela que não divide
o que ganha no programa, ao passo que 36,6% assinalam que repartem
aquilo que conseguem ganhar nessa atividade. Os pais aparecem com o
mais elevado percentual: 27,2%, muito embora se tenha afirmado na
tabela 43 que são os “pais” (3,4%) os que menos os incentivam a fazer
programa. A mencionada divisão do que ganha com “amigos(as)”
certamente diz respeito à própria dinâmica compactuada do ato de fazer
182
GLÓRIA D IÓGENES
programa em dupla. Uma forma recorrentemente mencionada nas
entrevistas: muitas vezes, não ficar sozinha, para garantir sua segurança,
incentiva-se e mobiliza-se uma amiga para acompanhar o programa. Esse
ritual, segundo relatos já mencionados no escopo desse relatório, tem sido
indicado como um fator decisivo de motivação para a porta de entrada de
crianças e /ou do adolescente no campo da exploração sexual.
A figura da cafetina (19,2%) é a que, de forma mais direta e objetiva,
pode ser identificada como sujeito de aliciamento, agenciamento e
exploração. A ação da cafetina, de modo geral, vai ocupar um lugar central
nas seguintes situações:
• Principalmente entre os travestis que fazem programa na pista;
• Adolescentes de alguns Terminais e de boates que têm agregados
quartos para programas;
• Entre os que dominam territórios de exploração e cobram pedágio.
A presença mais marcante das cafetinas, no que tange a exploração
sexual que tem a rua como locus central, ocorre junto aos travestis. O
desalento causado pela sensação de rejeição em relação à família, pelos
estigmas e exclusões cotidianas, tornam o travesti uma presa fácil das
estratégias de dominação. As cafetinas reproduzem papéis (também
travestidos) que se assimilam à lógica familiar: tratam por “filhas” as
adolescentes que se encontram no seu âmbito de poder.
Todos os travestis que ali estavam nos disseram que moram com
um cafetão e que não dar para juntar muito dinheiro porque pagam
a estadia, os produtos usados por eles e principalmente o óleo de
silicone, pois quem banca tudo é o cafetão. Após termos terminado
a realização dos questionários, nos despedimos deles, e quando
nos afastamos escutamos gritos e paramos para observar e
presenciamos uma briga que estava acontecendo com dos travestis
que acabávamos de conversar, “Paola”. Um homem de estatura
alta forte e careca estava batendo de murros e chutes nesse travesti.
Nós corremos em direção à kombi e essa briga chamou atenção
na avenida. Foram parando alguns carros e todos os travestis que
ali estavam correram para ajudar amiga. Percebemos nessa hora a
solidariedade do grupo, pois eles tiraram seus sapatos e deram muito
naquele homem, que saiu correndo. Quando paramos, após uma
volta na Kombi, fomos logo conversar com Paola. Ela estava muito
machucada e disse que aquele homem era vigia de um comércio
que ela estava perto. Paola se despediu da gente dizendo-se que
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
seu cafetão estava para chegar e pediu que fôssemos embora para
não sujar, pois ele é muito violento. (Terminal Lagoa/ Av. José
Bastos, Sandra Luna).
Nosso foco seriam os adolescentes em meio àquele grupo misto.
Alguns carros passam e presenciamos cenas degradantes.
Passageiros denunciam seus preconceitos e discorrem dissabores,
muitos liberando uma agressividade evidente. “Demônios! Filhos
do cão! Quanto custa o programa, baby?”. Muitas gargalhadas de
desdém pudemos ouvir de longe, apesar do arranque do carro.
Nesse momento começamos a conversar sobre os riscos, sobre
os motivos e caminhos que os levaram àquela possibilidade de
sobrevivência. “É a vida... o que a gente pode fazer? A gente tem
que levar isso como se fosse uma grande novela, meu bem... É
sim, sabe como é? Uma família imensa? Pois é. Aqui a gente ri
junto, chora, sofre, a gente passa por tudo junto! A rua une a
gente. A vida é assim mesmo e além do mais, isso lá é nada! É
pior quando tu sai p’rum programa e o bofe te paga com porrada,
te chuta do carro, e te cospe feito lixo (Terminal Lagoa/ Av. José
Bastos, Helena Damasceno).
Começamos a conversar e a falar do questionário na informalidade,
apresentando-o na sua simplicidade para que elas perdessem o
receio de respondê-lo. Nesse ponto da avenida pudemos conversar
sobre quem são os cafetões, a que horas elas chegam e saem, que
cada cafetão cobra um valor às seus “filhas” (como são chamadas),
uma espécie de pedágio para a pista, bem como sobre o lugar onde
moram, quase uma república por idéia original.
Shirley tem 16 anos e é bastante simpática. Responde às perguntas
como se fosse um questionário de revista teen: com alegria,
animação e sinceridade. Ela informa sobre a casa onde moram.
Os dois cafetões – um casal rival – sublocam casas para seus filhos
e cobram um valor (não revelado) pelo acolhimento. Os bairros
são a Serrinha e a Parangaba. Shirley começou a fazer programa
cedo e veste-se totalmente emprestada de outros companheiros
de rua. Estes alugam a roupa e os demais acessórios que ela usa
por R$5 cada. Shirley diz que junta o dinheiro que arrecada para
comprar algo, mas que não sabe o que é, pois não sabe o que
comprar. Mantém contato com a família todo mês. Deixa dinheiro
para eles. Não pensa em deixar os programas.
De lá, desse primeiro contato, subimos uns quarteirões, onde
encontramos um grupo com 4 travestis. Ao nos aproximarmos,
183
184
GLÓRIA D IÓGENES
percebemos um grupo de pit boys na mesma direção. Já estávamos
aplicando os questionários, quando eles iniciaram a segunda série
de impropérios da noite. Puseram-se a ameaçar o grupo de
travestis, que nem ligava, fingia não ser com eles. Ameaçadores,
eles permaneceram na esquina, à espreita do momento em que
não estaríamos mais lá. Para sorte, nossa e do grupo de travestis,
uma ronda da polícia passa e nos aborda educadamente. Percebe
a proximidade dos pit boys e dispersa-os.
Fomos então para mais uma observação. Nos deparamos com um
grupo de três jovens homossexuais, todos travestidos e bastante
simpáticos. Eles nos receberam sem maiores resistências. Eles já
sabiam àquela altura que estamos subindo pela José Bastos, por
essa lógica – cafetão e cafetinas – já deviam ter sido devidamente
avisados.
Alguns vêm de cidades do interior, como Ipú e Sobral. Alegam
que gostam do cafetão, pois este não lhes deixa faltar abrigo ou
comida. Sempre permanecem em cada grupo: um mais velho, para
gerenciar a movimentação da noite e angariar o dinheiro, que é
devidamente repassado ao cafetão e cafetina. Somente depois, já
na casa, é que todos recebem o pagamento pela noite (Terminal
Lagoa/ Siqueira, Helena Damasceno).
A situação cotidiana de agressão, a atitude de quem está sempre
sentindo-se ameaçado agrega ao valor cobrado pelo programa, em tese,
um sobrevalor, obtido em situações como (obviamente após o prévio
pagamento do preço do programa):
• Levar o cliente um lugar ermo, ensaiar um boquete, morder o pênis
e ao provocar a dor do cliente, sair correndo de posse do dinheiro;
• Ameaçar fazer escândalo, barulho, e por em evidência a aproximação
dos clientes aos travestis, quebrando o anonimato;
• Uso do recurso “Boa Noite, Cinderela” diluindo soníferos na bebida
do cliente, provocando um sono profundo, antes mesmo que seja
efetuado o programa.
O tirar proveito justifica-se pelo sentimento, entre os adolescentes
travestidos, de revolta, com a oportunidade de vingança diante de tantas
ameaças e agressões cotidianas: “Demônios! Filhos do cão!”. Paga-se um
preço, como disse um deles: “A vida é assim mesmo e além do mais, isso
lá é nada! É pior quando tu sai p’rum programa e o bofe te paga com
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
185
porrada, te chuta do carro, e te cospe feito lixo” (Terminal Lagoa/ Av.
José Bastos, Helena Damasceno).
Diante da tantas experiências marcadas pela privação, fazer sexo pode
tornar-se uma efetiva moeda de troca.
55. FAZ SEXO EM TROCA DE
ALGO ALÉM DE DINHEIRO?
TOTAL
SIM
81
24,7%
NÃO
241
73,5%
6
1,8%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
56. FAZ SEXO EM TROCA
DE QUE?
AMOR E CARINHO
TOTAL
6
6,2%
COMIDA
11
11,3%
DROGAS
48
49,5%
PRESENTES (ROUP. COSM.
E BRINQ.)
26
26,8%
OUTROS
6
6,2%
TOTAL
97
100,0%
A destacada maioria (73,5%) indica não usar o sexo como elemento de
troca. Um contingente de 24,7% dos entrevistados assinala que faz uso do
sexo (24,7%) principalmente em troca de drogas (49,5%), vindo em
segundo lugar o item “presentes” (26,8%) e, apenas em terceiro o item
“comida” (11,3%).
Observa-se que as meninas e meninos que se arriscam no campo da
exploração sexual comercial estão mobilizados por um “dinheiro” que vai
mais que garantir sua sobrevivência, no sentido restrito; vai possibilitá-los,
além da compra de drogas diversas, ter acesso a bens de consumo que
estão fora do alcance da condição de vida de suas famílias.
As meninas, num primeiro momento, negaram fazerem programa,
pois segundo elas fazer programa é ir para a avenida batalhar
186
GLÓRIA D IÓGENES
clientes. Elas vêm para se divertir, beber e dançar e se no final do
“fica” houver sexo, elas cobram. Algumas fazem programas
fixamente com homens de 40 a 45 anos que “bancam” essas
meninas com roupas, sandálias, maquiagem e outros adornos em
troca de sexo, por isso algumas inicialmente negam fazer programas
(Av. Osório de Paiva, Emanuela).
“E se tiveres renda, aceito uma prenda, qualquer coisa assim, como
uma pedra rara, um sonho de valsa ou um corte de cetim”, como figura
na canção de Chico Buarque. A beleza, a vaidade, o acesso a itens do
consumo de massa recorta as falas e os sonhos dessas crianças e
adolescentes:
S. – Eu gosto muito de tirar foto. Eu gosto muito de mim. Eu sou
muito apresentada, gosto muito de tirar foto. Quando eu tô com
os caras eles tiram muito a minha foto, grava, a gente vê junto. E
eu sempre assisti filme pornô. Toda vez que eu olho eu penso eu
quero ser uma atriz pornô.
MARCOS – Tu pensa isso pro teu futuro?
S. – Eu penso comigo. Só que eu acho assim, talvez eu não chegue
nem aos 18 anos (S., Terminal do Papicu, feminino, 16 anos).
A. – Tia, o meu sonho é subir na vida, eu queria ser cantora. Eu
quero só sair dessa vida mesmo, só sair dessa vida, ter uma família
(A., Barra do Ceará, feminino, 17 anos).
M. – O meu futuro, quando eu crescer, tia, se Deus quiser, eu vou
ser um grande dançarino. Eu vou aparecer na televisão, do Jornal
da 10. Se Deus quiser um dia eu vou estar ali na Casa de Forró
dançando num grupo de forró, eu vou ser um grande dançarina de
forró (M., Barra do Ceará, masculino, 17 anos).
G. – Ai, mulher, o meu sonho é como eu te falei, é ir pra Europa,
comprar minha casa, botar meu salão e dar tudo à minha vó, minha
mãe. Lá é onde eu consigo, eu vou já trás de um homem.
Terminou? (G., Castelão, masculino, 17 anos).
Ser cantora, dançarina do Canal 10, ter um salão de beleza na Europa,
tornar-se atriz pornô são projeções que demandam, afora a ida a Europa,
baixos aportes financeiros. Por isso, ao serem indagadas acerca das
motivações ao ato de fazer programa, o referencial “dinheiro” assume um
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
187
lugar central, além das necessidades básicas que o mesmo possibilita que
sejam atendidas.
57. O QUE MOTIVA ATUALM.
A FAZER PROGRAMA
TOTAL
DINHEIRO
261
66,4%
DIVERSÃO
43
10,9%
AVENTURA
17
4,3%
PRAZER
13
3,3%
CONSUMO
3
0,8%
DROGAS
18
4,6%
FILHOS
3
0,8%
PORQUE GOSTA
4
1,0%
OUTROS
19
4,8%
N.S. / N.R.
12
3,1%
TOTAL
393
100,0%
Dinheiro aparece com 66,4% das indicações. Somando-se itens que
estão mais correlacionados ao vetor “lazer”, temos: diversão (10,9%);
aventura (4,3%); prazer (3,3%), consumo (0,8%), drogas (4,6%) e “porque
gosta” (1%), atinge-se 24,9% das motivações. Obviamente, se houvesse
uma forma de identificação do destino do dinheiro auferido no programa
se poderia, de forma mais objetiva, obter-se um maior nível de
detalhamento do que realmente impulsiona e assegura a permanência de
crianças e adolescentes nas redes de exploração sexual comercial.
58. ALGUÉM INCENTIVA
ATUALM. A FAZER PROG.?
TOTAL
SIM
65
19,8%
NÃO
261
79,6%
2
0,6%%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
GLÓRIA D IÓGENES
188
59. QUEM INCENTIVA
ATUALM. A FAZER PROGR.
OS PAIS
TOTAL
9
12,2%
IRMÃOS
0
0,0%
AMIGOS
36
48,6%
NAMORADO(A)
13
17,6%
CONHECIDOS
6
8,1%
CAFETÃO/CAFETINA
6
8,1%
OUTROS
4
5,4%
N.S. / N.R.
0
0,0%
TOTAL
74
100,0%
Verifica-se que no momento do primeiro programa, 41,8% das meninas
assinalaram terem sido incentivadas por alguém; quando elas adentram
esse campo e movimentam-se com mais autonomia, apenas 19,8%
afirmam estar sendo incentivadas. Constata-se que nessa segunda
circunstância, o item “amigos” decresce de 66,9% para 48,6%, ao passo
que o tópico relativo aos “pais” ascende de 3,4% para 12,2%. Esse dado
sinaliza um certo pacto dos pais com a exploração, que se deve, certamente,
ao fluxo de dinheiro e outros produtos que as crianças e adolescentes fazem
chegar à família e provocam conseqüentemente uma ampliação da renda
mensal.
O meu relacionamento familiar é como eu já te falei, é muito difícil.
Os meus pais são separados. A minha mãe é uma pessoa
totalmente difícil. Ela nunca entendeu o meu lado. Se eu chegar
em casa com dinheiro, eu sou recebida muito bem, se eu não chegar
com dinheiro eu não sou recebida bem. Se possível for não tem
almoço pra mim se eu não chagar com dinheiro, quando eu chegar
em casa, pode ter pros meus irmãos, mas pra mim não tem (L.,
Beira-Mar, feminino,18 anos).
Obviamente a palavra incentiva ganha um peso e uma associação de
fatos dolorosos de serem assumidos por uma criança e/ou adolescente:
“Minha mãe me incentiva a fazer programa”. Assim como identificamos
uma “zona de negação” em relação à própria condição relativa ao ato de
fazer programa, talvez mais doloroso seja identificar a pressão e o estímulo
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
189
da família para a consecução desse ato. Essa fragilidade do relacionamento
não apenas provoca uma mudança de rota na vida da criança e do
adolescente, como também processa uma mudança efetiva nos lugares e
funções que se distribuem no núcleo familiar.
Sarti (1996: 48) adverte que
diante das freqüentes rupturas de vínculos conjugais e da
instabilidade do trabalho que assegura o lugar do provedor, a família
busca atualizar os papéis que a estruturam, através da rede familiar
mais ampla.
Como já indicado na parte da análise alusiva à família, apenas 25,5%
(amigos, sozinho, situação de rua e cafetão/cafetina) desse segmento reside
fora do âmbito da família. De outro modo, 55,8% afirmam já terem
vivenciado violência em casa.
Novas configurações da casa e da família, certamente atuam como
fatores decisivos para que uma criança e adolescente adentre as redes de
exploração sexual comercial. São mudanças que provocam em diversas
etapas de um mesmo percurso (violência doméstica, violência sexual,
privações de fome e de afeto, vivência precoce da sexualidade, banalização
dos cuidados e de preservação do corpo, as drogas, a aventura e o risco),
tomadas de decisões e um conjunto de sensações que aparecem como sinais,
resvalam em linhas narrativas e desenham sentimentos quase
imperceptíveis.
B IBLIOGRAFIA
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços
humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004.
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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 5ª ed.,
Petrópolis: Vozes, 1990.
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Colecção: Enciclopédia Moderna, nº 10, Sociologia. Âmbar, 2006.
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PISCITELLI, Adriana. Exotismo e autenticidade: relatos de viajantes à
procura de sexo. Agosto, 2002.
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pobres. São Paulo, Ed. Autores Associados. 1996.
WALTY, Ivete Lara Camargos. Corpus rasurados: exclusão e resistência
na narrativa urbana. 2005.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS DO ATO
DE FAZER PROGRAMA
Glória Diógenes
A leitura das tantas páginas de entrevistas, descrições tão densas do
trabalho de campo realizado pelos pesquisadores-educadores sociais, tantas
vezes revolveu e nos instigou sensações difíceis de conciliar com uma escrita
que exige um certo grau de parcimônia e racionalidade nos processos de
análise dos denominados dados. Certamente, as revelações mais elucidativas
se escondem em tantas palavras soltas, desabafos sub-reptícios, frases que
mais se assemelham a suspiros povoados por palavras. Decidi então realizar
uma outra espécie de leitura. Percorrer todas as páginas como quem busca
vestígios, pedaços de sentimentos a ermo. Fui empreendendo uma leitura
de emoções que mais se assemelham a mensagens depositadas em garrafas
enviadas por náufragos. Uma incursão que projeta no leitor uma sensação
de também navegar nesse mesmo destino, em águas à deriva, ao sabor
dos ventos.
Incursionei na tentativa de compartilhar com os leitores um relativo
“desenho dos sentidos” (Serres, 2001: 47). Para esse intento, identificamos
sensações esboçadas nas entrevistadas, entremeadas de silêncio, de gaguez,
de uma imprecisão no encaixe de palavras. Palavras “à flor da pele” que,
segundo Serres, desenvolve a sensibilidade, estremece, exprime, respira,
escuta, vê, ama e deixa amar, recebe, recusa, eriça-se de horror, cobrese de fissuras, rubores, feridas da alma. Uma sociologia das emoções1 capaz
de prover aos sentimentos um caráter de “dado”, de indício do que é
significativo no trabalho de campo, tanto quanto dos dados estatísticos. Por
1. Alguns autores que desenvolvem suas pesquisas e escritos nessa área: Norbert Elias,
Richard Sennett, Mauro Koury.
GLÓRIA D IÓGENES
192
isso, esse tópico é escrito na primeira pessoa do singular. Por se tratar de
uma ângulo de visão e de um campo de afetações singulares de sentimentos.
Desse modo, o primeiro sinal de que as emoções expressam uma certa
“confusão” nas cronologias sucessivas é quando a alusão aos sentimentos,
em relação à infância, por exemplo, não emergem necessariamente no
bloco de questões do roteiro de entrevistas para esse tópico. A noção de
tempo
opera um nível de racionalidade que foge de uma dimensão
meramente cronológica ou biológica, para um intervalo psicológico
enquanto tempo de descoberta que dará materialidade à narrativa
proposta (Koury, 2005: 98).
Seguem-se narrativas que mais se referem a vivências nômades, sem
uma definição precisa do espaço e nem do tempo
por mais que o nômade siga pista ou caminhos costumeiros, não
tem a função do caminho sedentário, que consiste em distribuir
aos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um sua parte,
e regulando a comunicação entre as partes” (Deleuze, 1997: 51).
Desse modo, os sentimentos aparecem desconectados de uma visão
delimitada de espaço e do tempo, do mesmo modo que percorrem as falas
das crianças e adolescentes, sem que ocupem a interligação e sucessão
dos assuntos previsto no roteiro de entrevistas.
Que sentimentos produzem uma paisagem de emoções capazes de
delinear um quadro figurativo que retrate a exploração sexual comercial
de crianças e adolescentes em Fortaleza? “Não é tarefa simples limitar o
abismo que tantas vezes parece abrir-se, no pensamento, entre indivíduo
e sociedade” (Elias, 1994: 29). O indivíduo deve ser tomado como instância
representativa do que denominamos sociedade. O enlace de sentimentos
que se cruzam, se repetem e se expressam dentro do mesmo campo de
vivência produz um repertório diferenciado de sentidos e uma interligação
entre os mesmos que aqui vamos denominar de “paisagem de emoções”.
Foram elas as que mais emergiram tanto nas falas dos próprios narradores
como nos relatos dos pesquisadores.
I - PRAZER
A tabela abaixo representa a “ponta do iceberg” da leitura dessa
paisagem de sentimentos que pretendemos percorrer. Verifica-se que
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
193
36,2% das crianças e adolescentes entrevistadas fala sobre experiências
de prazer proporcionado através do ato de fazer programa. Devemos
separar o joio do trigo e sinalizar o que está posto nessa indicação relativa
ao ato de sentir prazer. Uma coisa é a sensação, que inclusive será
destacada a seguir, de repúdio, nojo, dentre outras; uma outra dimensão
é o fato de entendermos que crianças e adolescentes têm e vivem sua
sexualidade.
60. SENTE PRAZER QUANDO
ESTÁ FAZENDO PROGR.?
TOTAL
SIM
63
19,2%
NÃO
154
47,0%
A MAIORIA DAS VEZES
56
17,1%
QUASE NUNCA
46
14,0%
N.S. / N.R.
9
2,7%
328
100,0%
TOTAL
A sexualidade de crianças e adolescentes se configura quase como um
tema tabu. Sacralizamos nossas crianças e criamos um manto de inocência
e proteção e uma aura que as investe de uma certa ausência de corpo. Na
História da sexualidade, Foucault assinala que o próprio termo sexualidade
surgiu tardiamente, no início do século XIX (1984: p. 9). O prazer sexual
é tema concernente à vida adulta, sendo que qualquer alusão à sexualidade
e um discurso sobre a possibilidade do desejo e do seu exercício entre
crianças e adolescentes representa quase um ato de transgressão. Por isso,
as episódicas falas sobre esse tema são quase sempre pontudas por
justificações, seja da quase “obrigatoriedade” do ato, seja atravessado por
um sentimento de “culpa”.
Mas até mesmo você não querendo, e você estando ali,você vai
ver que você é especial, que você é importante. E o que vai ajudar
é o carinho e o apoio, é a conversa, a compreensão. Não é chegar
e apontar você quis, você gostou, vai de novo porque quer, não.
É muito difícil, eu não vou mentir pra ti, é muito difícil sair dessa
vida porque é dinheiro fácil, e às vezes é algo que pra você é
prazeroso (D., Terminal da Lagoa, feminino, 17 anos).
GLÓRIA D IÓGENES
194
As argumentações misturam-se de tal modo que dimensões afetivas,
monetárias e do âmbito do prazer tornam difícil para D. indicar sua
dificuldade de uma possível mudança de vida. As raras pontuações acerca
do prazer, das fantasias que povoam os programas, são também
diferenciadas quando se trata de adolescentes travestidos e de meninas:
Foi uma noite bastante proveitosa e que ocasionou algumas
informações peculiares acerca de alguns detalhes dos programas.
Segundo os travestis, a preferência dos policiais, por exemplo, é
o fetiche por coletes e saltos (policiais usando), e de uma relação
passiva (policial passivo x travesti ativo). As mulheres que os
procuram buscam por um sexo não consensual e com penetração.
Questionei sobre essa categorização, quase rígida, ao que foi
respondido que a dinâmica do sexo à noite é cara e cheia de segredos
e loucuras, e o papel dos travestis é o de materializar esses fetiches
a qualquer preço (Terminal Lagoa/ Av. José Bastos, Helena
Damasceno).
Os “segredos e loucuras” são aspectos quase impenetráveis no escopo
de uma pesquisa dessa natureza. São alusões que dificilmente seriam
apreendidas de um plano exterior. Como bem afirma Bataille (1988: 31):
“O erotismo e a religião estão-nos vedados na medida em que os não
situarmos resolutamente no plano da experiência interior”. Essas dimensões
são quase sempre encaradas como exteriores aos sujeitos, principalmente
quando se trata de crianças e adolescentes, como se de algum modo, ao
identificarmos uma situação de exploração sexual, como bem exemplifica
o dito popular, jogássemos fora da bacia a água e a criança. Iniciei pelo
sentimento de prazer, exatamente com a finalidade de sinalizar um modo
de olhar os demais sentimentos sobre os quais nos deteremos a seguir.
II - N OJO
A definição de nojo abre o leque para uma gama de sensações:
Nojo é uma emoção tipicamente associada com coisas que são
percebidas como sujas, incomestíveis ou infecciosas.
Primariamente, em relação ao sentido do paladar, como realmente
percebido ou vividamente imaginado; e, secundariamente, com
relação a qualquer coisa que provoque sentimento similar, através
dos sentidos do olfato, tato e mesmo pela simples visão (Wikipédia).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
195
Nojo é tudo que não queremos e que somos pressionados ou levados a
entrar em contato corporal, ou mesmo a ingerir, de um modo contrário ao
nosso desejo. Nojo é o contrário do desejo. O sentimento mais destacado
na tabela abaixo é exatamente o “nada” (47,6%), como a suposta ausência
de desejo. Em segundo plano evidencia-se o “nojo”, com 30,5% das
indicações.
61. O QUE SENTE
FAZENDO PROGRAMA
TOTAL
DOR
6
3,7%
RAIVA
15
9,1%
NOJO
50
30,5%
NADA
78
47,6%
PENSO NO DINHEIRO
5
3,0%
OUTROS
5
3,0%
N.S. / N.R.
5
3,0%
164
100,0%
TOTAL
Observa-se nos depoimentos abaixo arrolados que nojo é quando o
cliente congrega características físicas e/ou de higiene que produzem
distanciamento, uma resistência mais intensa do corpo.
Este senhor é bem mais velho que os clientes que costumo ver
durante as observações da pesquisa. Ele deve ter aproximadamente
uns 60 anos, tem cara de vovô, é um daqueles tipos que ninguém
ousaria questionar a conduta. Entretanto, quando ele se foi, a
adolescente disse que não suportava mais o assédio dele. Que tinha
feito um programa uma vez, e desde então, ele a persegue. Segundo
a mesma, ela não gosta de homens sem higiene, e ele a faz sentir
dores durante o ato sexual. Ouvi seus motivos. Aventei a
possibilidade da entrevista, num segundo momento, e ela
concordou sem problemas (Terminal Antonio Bezerra/ Lagoa,
Helena Damasceno).
D., de 16 anos, que é explorada desde os 8 anos, afirma que só queria
que os homens com quem ela sai tomassem banho e nada mais, pois “se
trata de homens bêbados e sujos” (Praia do Futuro, Marcilene). Quando a
GLÓRIA D IÓGENES
196
pesquisadora afirma – ela não gosta de homens sem higiene – e associa
esse incômodo a “dores no ato sexual”, constata-se que o nojo não é apenas
um sentimento, assim como todos os outros; ele se instala nos corpos das
meninas e meninos e produzem sensações físicas. O nojo também está
associado a situações de violência, das agressões sofridas pelas crianças e
adolescentes, como se identifica no relato abaixo:
PEDRITA – Mas ele veio te esculhambando, por quê?
J – Ele veio bebo. Porque toda confusão, eu me meto pela minha
mãe. Um dia desses, ele veio querer dar um murro na cara da minha
mãe e ele acertou o murro aqui.
PEDRITA – Mas ele não bateu?
J – Acertou um murro aqui.
PEDRITA – Em ti?
J – Foi. Aí eu fiquei com nojo da cara dele.
PEDRITA – Aí desde esse dia, desde o ano passado que não falo
mais com ele.
PEDRITA – Que história é essa de pacto? Nunca ouvi falar desse
pacto...
J – O pacto do roqueiro é beber sangue de gato.
PEDRITA – Tu bebeu sangue de gato?
J – Ela.
PEDRITA – Ela é louca.
J – Ela pegou e me amostrou o livro de São Cipriano. Ela fez um
feitiço pra matar a mãe dela.
PEDRITA – Ave Maria! Que coisa horrorosa!
J – Aí eu falei: “Não, mulher, eu vou fazer pra matar o meu
padrasto, porque ele é muito chato” (J., Praia de Iracema,
masculino, 16 anos).
A sensação de nojo quase nunca é um sentimento que redunda em
passividade, diferentemente da tristeza e da angústia. O nojo atinge de tal
modo o corpo do sujeito que mobiliza uma defesa e/ou uma vingança: “Aí
eu falei: ‘Não, mulher, eu vou fazer tudo pra matar o meu padrasto, porque
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
197
ele é muito chato”. O sentimento de ter ficado “com nojo da cara dele”
provoca no corpo uma ação, um revide. Desse modo, para que o nojo não
provoque ações mais radicais e de conseqüências mais graves, a droga entra
em ação:
Eu tomo ripinol, às vezes, às vezes eu cheiro cola, só. Aí nós sai,
nós toma pra esquecer, pra não olhar pra cara dos homem. Aí
meu Deus do céu! Tem uns homem que é legal, mas tem uns que
é nojento (E., Padre Andrade, feminino, 18 anos).
Providencia-se o amortecimento do corpo para que as pulsões que essas
vivências intensas provocam possam ser, de certo modo, adormecidas. O
nojo, como se percebe, é um sentimento transitivo. O contato com o corpo
de alguém que provoca nojo quase sempre faz transpassar essa sensação
para o próprio corpo da criança e do adolescente:
Então, assim, tudo isso que aconteceu comigo veio mexer aos 14
anos. Eu passei a sentir nojo de mim, eu não suportava o meu
corpo, eu me sentia suja, imunda, muito suja. Tinha vezes que eu
me olhava no espelho e eu tinha vontade de me cortar, sei lá, de
me esmurrar, de me matar mesmo, porque eu não agüentava assim.
É algo muito horrível que você sente (D., Terminal da Lagoa,
feminino, 17 anos).
Quando o nojo se instala, o corpo passa a representar um lugar de
interdição, de risco e de evitação, dificultando assim as ações de transposição
da situação de exploração sexual. Um silêncio, um medo, um tanto do que
está vedado à visitação provoca uma ausência e um fechamento desses
sujeitos. Até mesmo porque nojo e desejo se misturam e se confundem:
HELENA – Quantos anos tu tinha?
A. – Eu tinha 11 já, tinha 11 anos (A., Barra do Ceará, feminino,
17 anos).
A culpa, que quase sempre não se revela de forma clara, é traduzida
para o próprio sujeito através de palavras. Esse sentimento pode ser
comparado a um labirinto em que não se encontram facilmente as vias de
acesso. Provavelmente, foi esse o sentimento que impulsionou Freud a criar
a psicanálise na virada do século XX, em Viena. De acordo com Mezan
(1988: 63), numa reflexão acerca da epistemologia da psicanálise, ele
GLÓRIA D IÓGENES
198
ressalta que a tese de Freud se define pelo conflito, cujos pólos são o desejo
e as defesas contra o desejo. Obviamente que, nos contornos da análise
dessa pesquisa, acabei por reduzir a extensiva obra de Freud acerca da
natureza “esfinge” do inconsciente. Interessa-me aqui, após apresentar dois
sentimentos aparentemente díspares – prazer e nojo – incursionar no que
poderíamos indicar como um potencial ponto de fusão entre os mesmos.
O depoimento abaixo é relativo a um caso de abuso sexual cujo pai é o
protagonista.
Ela dizendo que lá era fácil arranjar dinheiro, mas só que eu não
sabia como. Ela me levou, aí parou um carro e chamou a gente,
aí nós foi, daí nós entramos no motel. Foi aí que eu fiz o meu
primeiro programa. Mas só que nós só fez sexo oral com o homem.
Desse dia aí eu...
HELENA – O que você sentiu quando você entrou no motel quando
você percebeu que para ganhar esse dinheiro era...
A. – Por um lado, eu gostei. Por que quando eu entrei no motel eu
tomei banho. Mas, por outro, eu nunca tinha feito, e aquele
homem era estranho, sei lá, eu me senti suja fazendo aquilo. Mas
eu fiz. Ganhei R$25 por ter feito isso, e ela ganhou R$15 (A.,
Barra do Ceará, feminino, 17 anos).
Sentir-se suja e, por outro lado, admitir um certo gosto em “fazer aquilo”
certamente provoca uma confusão de sentimentos de ordem simbólica,
fincados como marca indelével nos corpos de meninos e meninas. Como
desafio, qualquer forma de abordagem dos percursos diversos da
exploração sexual deve tentar ultrapassar as barreiras moralistas de nossa
cultura e tentar chegar no lugar dos sentimentos “misturados” (prazer e
nojo), como possibilidade complexa e infinita dos sujeitos. Daí o recorrente
sentimento de culpa.
III - CULPA
HELENA – Como foi que você se sentiu?
D. – Cara, fica muito difícil pra mim porque ele me machucou
muito. E ele começou a falar que ele não teria culpa, que foi eu
que fiz e ele só fez o que eu queria. E até hoje eu carrego essa
culpa comigo, porque primeiro ele é meu pai, mas antes eu encarava
isso como se fosse uma coisa normal... E eu ficava calada. Aí, lá
pros meus 10 anos, 11 anos, 12 anos, ele me dava dinheiro e eu
cedia pra ele. (D., Terminal da Lagoa, feminino, 17 anos).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
199
O sentimento de culpa, quando se trata da exploração sexual comercial,
é quase sempre associado a uma inversão de papéis: quem se sente
culpado, no geral, é a própria vítima. O sentimento de sentir-se culpada
associa à dor e à negação do abuso uma sensação de “não ter mais nada
a perder” e um impulso de lançar-se para fora de casa.
O abuso sexual e outras violências cometidas no âmbito da família
e de sua vizinhança constitui um fator que pode decretar o início
da prática da prostituição por parte de meninas. No conjunto das
fontes primárias e secundárias, não são poucos os depoimentos
que revelam a existência dessa triste realidade. Nas histórias de
vida dos sujeitos sociais aqui estudados e nas histórias de prostitutas
adultas, mencionadas por pesquisadores citados ao longo deste
estudo, casos de padrastos, irmãos, parentes próximos ou até
mesmo pais que abusam sexualmente de meninas são comuns.
Assim, esses fatos podem servir de iniciação para o mundo da
prostituição, que passa antes por um processo de exclusão do
mundo familiar, conforme atestam os depoimentos (Gomes, 1996:
250).
É um sentimento de “exclusão familiar”, de ter perdido os vínculos não
apenas da família mas também de um suporte de valores morais, que
mobiliza as crianças e adolescentes a cruzar uma fronteira que, certamente,
é mais complexa que os limites estabelecidos entre casa e rua.
IV – P RECONCEITO
O estigma tem produzido uma marca identificatória entre as crianças e
adolescentes que se encontram dentro das redes de exploração sexual
comercial. O estigma é uma identificação que tem por base a sinalização
de um atributo: “Não, tia, eu sou do Lagoa, eu só fico na Lagoa, eu sou
mirinha (M., Terminal Lagoa/ Av. dos Expedicionários, masculino, 15 anos).
Mirinha, feminino de “mirim”, identificação pejorativa, atribuída de forma
exterior ao sujeito, e, em alguns casos, assimilada pelo próprio sujeito. De
acordo com Goffman (1975: 13) “O termo estigma, portanto, será usado
em referência a um atributo profundamente depreciativo”; é quando o
sujeito, na sua inteireza, é reduzido a um atributo específico. “Um indivíduo
que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui
um traço que pode se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra,
destruindo a possibilidade de atenção de outros atributos seus” (Goffman,
1975: 14). O estigma aparece como uma certa confirmação da culpa, é
200
GLÓRIA D IÓGENES
como se o sujeito vítima da violência doméstica e algumas vezes do abuso
sexual confirmasse e exibisse socialmente uma culpa infringida a ele.
Os casos mais gritantes de situação de estigma nessa pesquisa dizem
respeito aos travestis. É como se a simples presença dos mesmos no espaço
público provocasse uma reação de insultos e agressões:
Decidimos observar a avenida de frente ao Água na boca, do
canteiro. Vimos um grupo de travestis que estavam do outro lado
da avenida em uma parada de ônibus. Eles estavam em três.
Decidimos ir ao encontro deles, mas ao nos aproximarmos eles
rapidamente seguiram em frente.
Os travestis na Avenida Osório de Paiva são perseguidos pelos
freqüentadores. Na sexta-feira, um grupo de jovens que disputavam
som jogaram garrafas de vidro contra o grupo de travestis. Não
sabemos o motivo, porém imaginamos que seja pelo fato de eles
passarem na área de disputa de som. Um pouco adiante um dos
travestis respondeu a agressão transformando o short em um biquini
fio-dental e dançou provocando o grupo de jovens.
Os travestis, quando passam no lado do Água na boca e do
Leblon, são perseguidos com gritos e risos. Todos os olham e
fazem piadas. Já no outro lado da avenida, de quem vem do
Siqueira, não observei essas perseguições (Osório de Paiva,
Emanuela).
O depoimento abaixo, inclusive já citado anteriormente, evidencia a
dupla cena da presença marcante dos travestis em locais próximos ao
Castelão, à Osório de Paiva, à Av. Abolição, dentre outros: quanto mais
eles são agredidos, perseguidos e humilhados, mais eles apregoam e
alardeiam sua presença.
Nosso foco seriam os adolescentes em meio àquele grupo misto.
Alguns carros passam e presenciamos cenas degradantes.
Passageiros denunciam seus preconceitos e discorrem dissabores
muitos liberando uma agressividade evidente. “Demônios! Filhos
do cão! Quanto custa o programa, baby?”. Muitas gargalhadas de
desdém pudemos ouvir de longe, apesar do arranque do carro.
Nesse momento começamos a conversar sobre os riscos, sobre
os motivos e caminhos que os levaram àquela possibilidade de
sobrevivência.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
201
É a vida... o que a gente pode fazer? A gente tem que levar isso
como se fosse uma grande novela, meu bem... É sim, sabe como
é? Uma família imensa? Pois é. Aqui a gente ri junto, chora, sofre,
a gente passa por tudo junto! A rua une a gente. A vida é assim
mesmo e, além do mais, isso lá é nada! É pior quando tu sai prum
programa e o bofe te paga com porrada, te chuta do carro, e te
cospe feito lixo (Lagoa/ Siqueira, Helena Damasceno).
A pergunta construída na citação acima sinaliza o entrelaçamento dessas
duas dimensões: “Demônios!”, “Filhos do cão!”, “Quanto custa o programa,
baby?”. É que ao mesmo tempo em que os travestis revelam a fragilidade
moral de uma sociedade cujos clientes são prioritariamente homens casados,
com “carros do ano” e de profissões de elevado status social, condensam
expressões de ódio e desejo. Desse modo, a restrição da família, a
dificuldade de acesso à escola, a uma ocupação mais digna torna a existência
de crianças e adolescentes travestidos quase uma não-existência, uma vida
segregada entre pares.
E. – É, mulher. Porque não tem emprego pra travesti a não ser
salão de beleza ou então rua mesmo.
NELIDÉLIA – O que é que acontece aqui na noite?
E. – Acontece várias coisa. Às vezes eles passa e joga ovo,
gasolina. Outra vez eu tava ali e o homem jogou o carro por cima
de mim. É fuá (E., Castelão, masculino, 17 anos).
SHARON – E como foi essa história na escola?
M. – Por causa que ele me esculhambava muito. Quando eu passava
ele me chamava de veado, de veado, de veado, de veado, de veado.
E sempre eu levava a culpa. Ele me chamava, mas eu é que levava
a culpa, eu ia pra diretoria. Aí eu rebolei ele da escada. Eu não
rebolei, eu empurrei ele assim sem querer, aí ele caiu. Eu fui expulso.
Aí eu voltei de novo pro colégio. Aí eu não terminei de estudar,
eu parei, foi o maior babado.
M. – Eu gosto por que eles não têm preconceito, eles são bem
legalzinho comigo. É assim, eu mal falo com eles entendeu? Eu
mal falo com a minha mãe, mal falo com meu pai. E é porque
mora todo mundo junto dentro da mesma casa. Porque eu acho
que eles falam de mim, eles me tesouram por detrás.
202
GLÓRIA D IÓGENES
SHARON – Lá tu já sofreu algum tipo de violência do pessoal que
passa? Alguma agressão verbal?
M. – Já não. Mas tem uma amiga minha que levou a um bocado
de ovada, um bugre passou e aí... risos... Mas foi a Roberta, levou
um bocado de ovada ela. Não, mas foi sem enxame. Porque uma
vez a gente foi fazer programa na Beira Mar, aí nós vimos um veado
que não gosta da gente, aí nós fiquemo zombando da cara do veado
porque ele tava com o tamanco quebrado. Aí nós passemo na
pista. Aí vinha um carro na nossa frente com um bocado de homem
fazendo assim com a mão. Aí nós passamos pro outro lado, aí do
outro lado vinha um bugre, aí foi esse bugre... nós saímos toda
melada. Preconceito que precisa melhorar, viu. Tem umas
professoras e uns professores que não gostam muito dos travestis
que entra dentro da sala de aula. Que fica falando venha de homem,
não sei o quê, não sei o quê, que coisa feia (M., Pirambu, masculino,
17 anos).
G. – Mulher, é maravilhoso estudar. Lá aonde eu estudava era tudo.
Mas só, mulher, que eu não tenho paciência mais. Todo dia eu
ficava agüentando aquele mesmo ó, todo mundo falando pêi gay,
pêi gay... (G., Castelão, masculino, 17 anos).
O percurso do isolamento vai se intensificando na medida em que as
situações de estigma acumulam-se e limitam a atuação do adolescente nas
várias esferas da vida: família, escola, oportunidades de profissionalização,
acesso ao posto de saúde, dentre outras.
Eu quero dizer, assim, que essa vida de prostituição não é fácil
para ninguém, porque quem faz isso enfrenta mundo. O
homossexual é mais homem do que os outros homens, é isso que
eu tenho a dizer, por que ele enfrenta o social, ele enfrenta o
marginal, ele enfrenta homem, enfrenta mulher, enfrenta violência,
enfrenta o que vem pela frente. Então eu quero dizer que não é
fácil, que não é como dizem, que é só chegar e fazer prostituição.
Porque também não é bom fazer. Apesar se tivesse muito recurso
de coisa educativa para fazer, era melhor (A., Barra do Ceará,
masculino, 16 anos).
Os riscos, os preconceitos, as tantas portas que se fecham em alguns
momentos acabam por reforçar um sentimento de recuo. Goffman (1975:
27) afirma que “uma pessoa estigmatizada alguma vezes vacila entre o
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
203
retraimento e a agressividade, correndo de uma para outra”. Sentir-se fora
dos padrões, como “uma formiga no meio das pessoas decentes” é o caso
mais drástico do estigma. É quando o estigma produz no sujeito um
enclausuramento e, como no caso dos adolescentes travestidos em situação
de exploração sexual, a cena pode redundar em agressão, como uma forma
drástica de afirmação de personalidade.
Eu conheci a Aninha, a dona da quadrilha (de São João), que é
uma pessoa que eu gostei muito. Eu conheci essa pessoa que ajuda
nas horas mais difícil, que eu precisava que estava ali pra me ajudar,
pra me aconselhar. Ela sabe um pouco da minha história de garoto
de programa, da minha vida, mas nunca soube que ela comentou.
Eu não tenho vergonha, mas o fato de você conhecer amizades,
aí o pessoal vai falar aqui que você vivia numa vida daquelas, aí
você não vai se sentir uma pessoa... você vai se sentir uma formiga
no meio daquelas pessoas decentes, pessoas que não merecem
bem dizer assim a minha amizade, porque como eu era garoto de
programa antigamente (T., Praia do Futuro, masculino, 18 anos).
A. vive o preconceito na escola, e quando tem a oportunidade de fazer
parte de algo tão prazeroso, dançar quadrilha, ele se percebe em um outro
lugar, se identifica como “desviante”. Na sua obra sobre uma teoria da
ação coletiva, Becker tenta delinear o perfil daqueles que são apontados
como desviantes e marginais. Diz ele: “O desviante é alguém a quem aquele
rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é o
comportamento que as pessoas rotulam como tal” (Becker, 1977: 60). Esse
é o risco mais grave por que passam essas crianças e adolescentes: deixarem
que uma atribuição externa, capaz de rotulá-las, estreite e obstrua outras
possibilidades de si. É uma ameaça que espreita, recorrentemente, suas
existências. Risco e liberdade misturam-se e produzem experiências de dor
e de sensação de autonomia, como se uma coisa compensasse a outra.
V – L IBERDADE
E AUTONOMIA
Já muito se exaltou a dimensão do fascínio que representa a saída da
casa e o perambular nas ruas para crianças e adolescentes. Acredito que,
dos “sete sentimentos capitais”, este seja até então o mais destacado nas
pesquisas e por educadores sociais de abordagem de rua. Verifica-se que
o imaginário acerca da exploração sexual combina a um só tempo liberdade
e risco.
204
GLÓRIA D IÓGENES
O imaginário é o além multiforme e multidimensional de nossas
vidas, no qual se banham igualmente nossas vidas. É o infinito
jorro virtual que acompanha o que é atual, isto é, singular, limitado
e finito no tempo e no espaço. É a estrutura antagonista e
complementar daquilo que chamamos real, e sem a qual, sem
dúvida, não haveria o real para o homem, ou antes, não haveria
realidade humana (Morin, 1990: 80).
É do plano do imaginário o recurso à invenção, de uma construção quase
sempre desvinculada da esfera das ações compactuadas por todo o corpo
social, do lugar da ordem e das normas sociais. A liberdade vai se delinear
através de uma contraposição aos ritos da família como instância de
proteção e situar a rua, ou as ações de “adulto” vivenciadas por crianças
e adolescentes nesse âmbito, como núcleo principal da sociabilidade. A
liberdade nasce do desvio.
Os desviantes tornam-se uma oposição, projetam-se como
expressão de uma diferença 2 que cristaliza o componente
“genérico”, como registro do corpo social ampliado e o
componente “específico”, no que se refere a personificação
concreta do exercício da diferença, em atos, estéticas e palavras
(Diógenes, 1998: 131).
Imaginar-se como desviante, contrariar os ritos de disciplina (quando
existe) e de regulação do tempo na esfera da casa, projeta uma diferença
identificada em atos, estéticas e palavras.
Porque a gente se sente livre, não se sente trancada, a gente pensa
assim vixe estamo livre para fazer o que a gente quiser! O mundo
é nosso agora. Só que o mundo é nosso porque lá fora a gente
pode usar droga, a gente pode usar droga e pode fazer o que quiser.
Na rua também ontem a coisa ruim, a gente é muito o humilhado,
só porque a gente mora na rua o povo olha para a gente assustado
(J., Terminal Lagoa, feminino, 14 anos).
2. Para melhor compreender a discussão sobre diferença ver : LINS, Daniel. “Como
dizer o indizível?”, in __________. Cultura e subjetividade: saberes nômades.
Campinas: Papirus 1997; PIERUCCI, Flávio. Ciladas da diferença. Tempo social –
Revista de Sociologia da USP, v. 2, n. 2, 1997; VERHELST, Thierry G. O direito à
diferença. Petrópolis: Vozes, 1992.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
205
Tudo que é relativo aos signos de duração, estabilidade, fruição contínua
do tempo, parece romper-se quando a criança e/ou o adolescente ganha
as ruas e adentra as redes de exploração sexual. Até mesmo a construção
acerca do amor pode projetar-se com uma instância de dominação e
imposição de limites.
ENT – Tu nunca teve namorado? Como é a história de ter um
namorado e vir para a pista? Como é? Me conta aí.
G. – Porque eu ajudo o bofe, e o bofe seu eu pegar você lá naquele
canto eu te dou uma surra, e eu já fico nervosa, eu digo: “Pois
vem...”. Não preciso, não, mulher, porque é muito ruim. Quando
eu tinha namorado eu ficava muito presa dentro de casa.
ENT – Ele não deixava tu vir para a pista não? (G., Castelão,
masculino, 17 anos).
Ir para pista, descer significa movimentar-se sob o imperativo de “não
ficar presa” aliada à possibilidade de ficar “nervosa” por ter que conciliar
duas situações díspares: a de atuar como namorada e, concomitantemente,
como alguém que faz programa. Regulação do tempo de sair de casa e
voltar para casa. Limitações no campo dos divertimentos, tudo isso produz
uma tensão difícil de ser contornada.
É assim... Tudo que eu fazia na minha adolescência, hoje em dia
eu torno a fazer novamente. Eu gosto de beber, eu gosto de me
divertir, eu gosto de curtir a vida. Desde a minha adolescência,
dos meus 13 anos até os meus 18 anos, eu sempre fiz o que eu
quis e o que eu gosto (L., Beira-Mar, feminino, 18 anos).
A recusa às normas morais de convenção, ao mesmo tempo em que
institui e dá visibilidade à dimensão de desvio e de estigma, possibilita a
projeção de crianças e adolescentes em espaços mais amplos e diversificados
de sociabilidade e, conseqüentemente de liberdade. Exibir-se em lugares
públicos, ultrapassar as barreiras de uma família que mais cobra e vitimiza
do que protege, criar outros vínculos, tudo isso podem ser formas possíveis
e extremas encontrada por crianças e adolescentes para produção de outras
imagens de si.
GLÓRIA D IÓGENES
206
VI – V AIDADE
Vivemos imersos num mundo arrodeado de signos. Cada coisa que
existe, de modo geral, precisa projetar uma imagem, e fazer com que essa
imagem ocupe um lugar e circule de forma mais ampla possível. Sedução
e consumo fazem par no campo ampliado dos signos que pontuam as
“mídias” das grandes cidades. Para falar em vaidade, “sem dúvida, temos
que partir do mundo do consumo. Com a profusão luxuriante de seus
produtos, imagens e serviços, com o hedonismo que induz, com seu clima
eufórico de tentação e proximidade, a sociedade do consumo revela até à
evidência a amplitude da estratégia de sedução” (Lipovetsky, s/d: 19). A
vaidade, que parece muitas vezes lançar tantos meninos e meninas para a
esfera da exploração sexual, aliada a todos os outros sentimentos aqui
destacados, é parte de uma trama mais ampla de sedução.
Eu gosto muito de tirar foto. Eu gosto muito de mim. Eu sou muito
apresentada, gosto muito de tirar foto. Quando eu tô com os cara
eles tiram muito a minha foto, grava, a gente vê junto. E eu sempre
assisti filme pornô. Toda vez que eu olho eu penso eu quero ser
uma atriz pornô (S., Terminal do Papicu, feminino, 16 anos).
Sabe-se que no mundo moderno só existe quem adquire visibilidade
pública. Ficar remetido ao espaço restrito da casa e ao destino comum dos
trabalhadores de baixa renda parece mobilizar entre as meninas e meninos
um gosto pela imagem e pelo que se é capaz de provocar em relação a
quem vê, a quem aprecia esta imagem. Consumir não significa, pra esse
segmento tão identificado com a produção da imagem, apenas possuir bens.
“Consumir é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade
produz e pelos modos de usá-lo” (Canclini, 1995: 54). O que essas meninas
e meninos desejam, para além da aquisição de bens necessários a sua
sobrevivência, é poder ter acesso a outros referentes de identificação do
que significa ser jovem na sociedade matizada pela imagem e exposição
pública. Acessar o sonho de uma Cinderela moderna.
É, Eu gosto de usar só caprizinho, blusazinha de manga, mas sendo
colada, tamancozinho altozinho, só aquelas coisazinha,
maquiagem, lápis de olho. Uma coisa que eu adoro é lápis de olho.
Eu fico ridícula sem lápis de olho, agora se eu colocar lápis de
olho eu fico uma princesa, fico a Cindelera (M., Pirambu, feminino,
17 anos).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
207
É nesse corredor de imagens que se misturam referentes da casa (o
ideal de ganhar dinheiro para cuidar da família, a vontade de encontrar
um homem para “me tirar dessa vida”) com projeções de “fama” através
da profusão de imagens de amplo alcance (a televisão).
O meu futuro, quando eu crescer, tia, se Deus quiser, eu vou ser
um grande dançarino. Eu vou aparecer na televisão, do Jornal das
10. Se Deus quiser um dia eu vou estar ali na Casa de Forró
dançando num grupo de forró, eu vou ser um grande dançarina de
forró (M., Av. dos Expedicionários, masculino, 16 anos).
A experiência do fazer programa nas ruas de Fortaleza, cidade
pontilhada de turistas, de shoppings centers, de carros importados, e que
parece ser um dos lugares do Brasil em que mais se viaja para Disney World,
induz crianças e adolescentes a experimentarem, através da exploração
sexual, de forma invertida e perversa, um mundo de fantasias. É como se
a exploração sexual, tantas vezes aludida a partir de tais referentes, se
investisse em determinadas situações de um caráter lúdico e de um forte
teor imaginário.
Para eu entrar na prostituição foi assim. Eu tinha 11 anos. Morava
uma menina na frente da minha casa que fazia programa. A pessoa
quando a criança é muito curiosa, né? Eu queria saber, mas elas
não me diziam. Eu acho que elas já não me dizia para eu não entrar
nessa vida. Aí eu tentava querer saber por alto assim, para descobrir
o que elas faziam. Porque elas se vestiam bem, andavam sempre
maquiadas, cabelo feito, unhas feitas. Eu achava aquilo bonito.
Eu não tinha certeza do que era. Eu tirei a dúvida. Aí, quando eu
completei 13 anos e perdi a minha virgindade, eu fui para a Beira
Mar, quer dizer, eu perdi a minha virgindade lá (K., Barra do Ceará,
feminino,16 anos).
Um corpo diferenciado – se vestiam bem, andavam sempre maquiadas,
cabelo feito, unhas feitas – do corpo de uma criança de onze anos,
obviamente. Para K., o corpo da menina da casa, de quem ainda não havia
“entrado nessa vida”, parecia destituído de imagem. É como bem afirma
Le Breton (2003: 31): “Nossas sociedades consagram o corpo como
emblema de si”. Que emblemas teria K. capazes de lhe projetar uma
imagem positiva do seu próprio corpo? A curiosidade deu curso à sua
passagem, da casa até a Beira Mar. O que vem depois? O que vem por
fim?
GLÓRIA D IÓGENES
208
VII – M EDO
O medo é um sentimento único, singular e quase da ordem do indizível.
Qualquer explicação sobre os medos que cada um sente diz respeito, em
geral, a uma alusão à entrada nova no desconhecido. Aquilo que assume
a representação do desconhecido diferencia-se e ganha contornos diversos
em cada tempo e em cada experiência concreta de vida. Duby escreveu
uma obra cuja tentativa é de revelar as “pistas do medo do ano 1000 para
o ano 2000”. Ele traz um exemplo da sociedade medieval, quando não
havia paredes nas casas, e um grande número de pessoas dormiam no
mesmo leito, e elas jamais saíam sozinhas, e desconfiava-se daqueles que
o faziam: os loucos ou criminosos. “Era uma sociedade totalmente gregária”
(Duby, 1998: 28).
Com o surgimento das grandes cidades, do fenômeno da multidão,
perder-se, ou deixar-se levar por ela produz novos contornos na vida de
seus moradores. O desgarramento de cada um, a intensidade dos desejos
de autonomia, da busca da individualidade, fragiliza os vínculos. O temor é
o de aprisionamento, da passividade, de uma ausência de aventura e de
emoções contínuas. Os medos apontados pelas crianças e adolescentes em
situação de exploração sexual, condição esta que produz precocemente
um leque de sentimentos intensos, são relativos a acontecimentos que
ocorrem em lugares fechados, sem a presença do público. É nessa situação
que mais emerge a vulnerabilidade e impossibilidade de defesa de agressões
e violências.
HELENA – O que você sentia quando entrava no motel com ele?
Como era pra você?
D. – Sei lá, eu me colocava no lugar de uma prostituta, porque é
motel, eu nunca tinha entrado, e eu fiquei com medo e tal. Ele
falou pra mim confiar, e eu confiei. Fui com ele e ele me deu R$50
(D., Terminal da Lagoa, feminino, 17 anos).
Retomando o relato de D., acerca da sua dolorosa experiência de abuso,
adentremos as imagens turvas do medo e suas feridas:
D. – Mas tem dias assim que parece que aparecem todos os
problemas de uma vez, que vem tudo pra cima, sabe? Que você
olha assim no espelho... não, cara, eu não agüento mais, eu não
quero mais essa vida e tal. Eu nasci pra sofrer... E você acha que
não tem solução.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
209
HELENA – Não dá pra explicar, não é?
D. – Não dá. É muito complicado. É tanto complicado como
doloroso, porque é algo que você conta e dói muito. É como se
você mesma falasse pra você: ah eu vou esquecer, mas não esquece
porque são feridas que estão abertas, não estão fisicamente. Mas
não existiria pior do que a mental. É a que dói muito porque é a
sua realidade, tá entendendo? É sua história e pra você curar tudo,
você vai ter que contar. É muito difícil você enfrentar pessoas que
querem lhe ajudar e você tem que contar toda realidade, toda a
sua história triste de novo (D., Terminal da Lagoa, feminino, 17
anos).
O temor do pai, que nessa cena aparece como um “outro”, como o
“desconhecido”, a dor física – “eu cedia pra ele e apanhava mesmo” –
culmina com a saída de casa. No começo do século passado, com o
surgimento das multidões a esfera privada era ainda identificada como
refúgio, proteção, lugar da experiência gregária. Por isso mesmo, poetas,
como Baudelaire, exaltam a solidão e os processos de desenraizamento a
que estão remetidos “todos os estranhos entre si e para com o meio,
submetidos a um código mecânico de sociabilidade” (Bresciani, 1994: 66).
No relato de D., é a casa o lugar da solidão, do desenraizamento e do medo.
Não há códigos possíveis para a construção de pactos dentro da esfera
doméstica.
A não existência de um lugar de acolhimento, de familiaridade é “tanto
complicado, como doloroso”. O corpo é que paga, que se contorce, que é
punido por não encontrar esse lugar, por não se reconhecer: “Tinha vezes
que eu me olhava no espelho e eu tinha vontade de me cortar, sei lá, de
me esmurrar, de me matar mesmo, porque eu não agüentava assim. É
algo muito horrível que você sente”.
Deixar-se explorar sexualmente é uma aventura de repetição e
assimilação de medos, de banalização do medo. Propositalmente, vou findar
esse percurso pelo que denominei os “sete sentimentos capitais do ato de
fazer programa” retomando a história de E. e o seu contundente relato de
vontade de morte, ao se jogar na Lagoa da Parangaba. Ela fala que o ato
de fazer “o suicídio dura três dias”:
Então foi um desgosto que eu tive na minha vida durante três dias,
de querer me matar durante três dias. Aí, pronto, depois eu me
acalmei. O Marquinhos conversou comigo, e eu também me lembrei
das coisas lá da Rosa de Sarom, aí eu peguei e pensei que Deus
GLÓRIA D IÓGENES
210
não quer isso pra mim, ele quer um futuro melhor. Eu procurei me
acalmar e pronto. Depois eu não quis me matar mais não. Eu fui
dormir e o outro dia amanhece normal (E., Terminal Lagoa/ Beira
Mar, feminino, 15 anos).
O outro dia amanhece normal. Foram três, “conforme as escrituras”.
Para todos que acompanharam esses relatos de vida e morte, experimentase um vácuo habitado ainda por muitas inquietações. Tomar cada
sentimento aqui narrado, aqui entrecortado de visões e projeções, e tecer
outras formas de aproximação e de produção de alternativas de vida para
tantos meninos e meninas. Procuremos nos acalmar e pronto. Atravessar
a noite e fazer romper outros dias. Ver para além dos cifrados códigos
morais que habitam os nossos olhares. É esse o desafio das tantas instituições
que recortam e passam pela vida de E. e de todas as vidas que aqui se
fizeram presentes: romperem seus próprios temores.
B IBLIOGRAFIA
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O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOOS DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VISTO PELO
AVESSO
Thiago de Holanda Altamirano1
Gilberto Braga Teixeira2
Este artigo se propõe investigar como se articulam as instituições que
constituem o Sistema de Garantia de Direitos, em Fortaleza, a partir das
percepções imaginárias de crianças e adolescentes em situação de
exploração sexual comercial. Interessa-nos esse ponto de interseção, o
encontro das linhas de confluência do impacto das instituições que formam
o Sistema de Garantia de Direitos enunciado no Estatuto da Criança e do
Adolescente e as histórias de vida desse segmento.
Desse modo, não temos a pretensão de construir uma análise exaustiva
da denominada rede de retaguarda que compõe a política específica para
esse segmento. Um dos focos dessa pesquisa é exatamente o de identificar
como chegam para as crianças e adolescentes as ações desenvolvidas pelas
instituições que formam a referida rede.
Após vinte anos da aprovação da nossa carta constitucional, e dos dezoito
anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vivemos ainda muitos
desafios para a implementação dos direitos humanos do segmento infância/
adolescência no Brasil. Essas dificuldades estão relacionadas à distância que
1. Thiago de Holanda AltamiranoThiago de Holanda Altamirano é assessor institucional
da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), Ex-presidente do Conselho
Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolesceste de Fortaleza (Comdica)
na gestão 2006-2008 e graduando em ciências sociais pela Universidade Federal do
Ceará (UFC)
2. Gilberto Braga é chefe de Gabinete da Fundação da Criança e da Família Cidadã
(Funci), É educador popular, ex-conselheiro tutelar de Fortaleza no mandato 20022005. Foi assessor comunitário do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
(Cedeca).
214
GLÓRIA D IÓGENES
ainda existe entre a intenção e o gesto, das propostas trazidas na nova
legislação e sua efetiva implementação. Isso se dá, sobretudo, pelo
desentendimento por parte das instituições que compõem o Estado e a
sociedade civil, do que lhes cabe como junção decisiva das ações instituídas
nessa legislação.
A conquista desse marco legal se materializou devido a uma ampla
mobilização social que fez emergir no Brasil novas formas de se perceber
o segmento infância e juventude. Depois de se esgotarem todas as
possibilidades de continuidade do período autoritário, especificamente após
o golpe de 1964 e durante o período da ditadura militar, congregam-se
esforços entre Estado e sociedade civil com a finalidade de se concretizar
um novo patamar de efetivação dos direitos humanos. Esta pretensão,
ousada e inovadora, parte da existência de um marco regulador, alcançado
pela sociedade civil organizada e construído com a participação popular.
A convergência dessa mobilização consubstanciou, dentre outros, o artigo
227 da Constituição Federal, em 1988, que atribuiu ao Estado, à sociedade
e à família a co-responsabilidade de garantir a efetivação desses direitos.
Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança e adolescente, com absoluta prioridade. O direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
Esse avanço democrático foi regulamentado posteriormente, em 1990,
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que surge não só como
um instrumento regulatório formal, mas como uma afirmação de mudança
paradigmática que empodera a criança e o adolescente como sujeito da
sua história, com direitos que respeitem seu processo de desenvolvimento,
físico, psicológico e intelectual. Agora, este segmento deve assumir o centro
das políticas públicas, que de forma prioritária deverão garantir sua proteção
integral.
Obviamente, os impasses são numerosos e recorrentes no que diz
respeito à implementação do ECA. O sentimento que permeia o imaginário
brasileiro da vontade da punição, do impulso primário de vingança, tende
a produzir em relação às crianças e adolescentes uma dupla e contraditória
projeção: vítimas passivas ou sujeitos protagonistas de violência e situação
de instabilidade social.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
215
Uma conquista de natureza jurídica nem sempre corresponde às
mudanças efetivas no plano da justiça e de efetivação de direitos. Mudamse as leis, as regulamentações jurídicas e permanecem formas tradicionais
de dominação. Sobre a dominação, Foucault ressalta: “Por dominação eu
não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de
um grupo sobre o outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem
se exercer na sociedade” (1984: 181).
Estas formas dominação atravessam as determinações reguladoras e
destituem os referentes emancipatórios e protetivos promulgados pelo ECA.
O direito se fragiliza em instâncias de reprodução de dominação e de
hierarquização no plano da participação e das escolhas efetivas entre os
diferentes sujeitos. Não se alcançou, desse modo geral, a identificação, tal
qual preconizado na lei, do papel do adolescente como sujeito de direitos.
A família também fica nesse fogo cruzado: ao mesmo tempo em que deveria
proteger, não se produzem as condições necessárias para que ela assuma
sua responsabilidade mais plena.
Neste sentido, a família se configura num espaço fundamental para que
se consubstancie a proteção através desses direitos. Ela carrega, por meio
dos laços afetivos e consangüíneos, a responsabilidade de zelar por estas
crianças, providenciando seu registro de nascimento, seu ingresso na escola,
o carinho, o amor, o respeito e a dignidade. Mas, de outro modo, muitas
vezes, como evidencia a pesquisa, esta família se torna um grande referencial
de violação de direitos, questões já abordadas neste volume pelo texto de
Camila Holanda.
A família se faz presente na vida de 96,0% dos 328 entrevistados.
Destes, apenas 36,2% avaliam ter uma boa relação nesta organização
familiar. Um dado relevante é que 55,8% já presenciou violência em casa.
E, destas, 45,0% são de violência doméstica. A família, nesse caso, ao invés
de proteger e realizar um controle social sobre as políticas públicas que
atendem suas crianças e adolescentes, está assumindo também o papel
de agente de violação de direitos.
A sociedade civil passa a perceber esse segmento como sua
responsabilidade também. Talvez isso tenha provocado um interesse
crescente dessa instância em participar mais diretamente das decisões
governamentais. O desgaste que a democracia representativa enfrentou
em regimes autoritários, por não ter atendido todas as demandas da
população, produziu uma situação de ilegitimidade destas representações,
e fez com que crescesse o sentimento de luta, mobilização de natureza
coletiva em torno de promoção dos direitos no âmbito das relações privadas
da família. Espaços institucionais de participação foram criados, como os
Conselhos, de direitos e setoriais de políticas públicas, como educação,
GLÓRIA D IÓGENES
216
saúde, assistência social, entre outros, com a finalidade de a sociedade civil
organizada intervir de forma mais incisiva e direta na pauta das políticas
sociais.
As violações de direitos de crianças e adolescentes atingem todo o corpo
social, tal qual evidenciam os dados que emergem no âmbito desta pesquisa.
Todos são contracenantes de um mesmo enredo de exploração e,
concomitantemente, de uma relativa banalização e uma curiosa cegueira em
relação ao fenômeno. Ressaltamos amiúde o lugar desempenhado pelo turismo
no caso da exploração sexual, e, como assinala o dito popular, esquecemos
de tirar o cisco que encobre nossa própria visão. Verifica-se que os clientes
mais habituais desses serviços – representando 54,9% – são membros das
comunidades locais, como aponta os dados da tabela 47. Destes, 56,1% são
trabalhadores locais, como aponta os dados da tabela 48.
47. CLIENTES MAIS
HABITUAIS
OUTROS
MORADORES LOCAIS
TOTAL
5
1,5%
180
54,9%
CAMINHONEIRO
8
2,4%
TURISTAS BRASILEIROS
41
12,5%
TURISTAS ESTRANGEIROS
80
24,4%
N.S. / N.R.
14
4,3%
TOTAL
328
100,0%
48. QUE TIPO DE MORADORES
LOCAIS
TOTAL
VIZINHOS
4
2,2%
AMIGOS
12
6,7%
POLICIAIS
19
10,6%
TRABALHADORES LOCAIS
101
56,1%
CAMINHONEIROS
3
1,7%
DESCONHECIDO
6
3,3%
OUTROS
15
8,3%
N.S. / N.R.
20
11,1%
TOTAL
180
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
217
O Estado aparece na legislação como a retaguarda. É ele quem
garantirá, junto com a sociedade civil organizada, esses direitos, constituindo
uma rede de ações articuladas para operacionalizá-los. Desta forma, o
Estatuto prevê a integração de uma série de instituições que, de maneira
articulada, deverão garantir os direitos. Deste modo se constitui o artigo
86 do ECA, afirmando que os direitos previstos só serão efetivados se os
esforços forem bem articulados.
Art.86 – A política de atendimento da criança e do adolescente
far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais
e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios.
Enfim, o Estatuto abriu um espaço de destaque, de participação para
crianças e adolescentes nas pautas das políticas públicas, e produziu um
modelo de gestão para garantir sua efetivação. Sendo assim, o Estatuto
representa um avanço para os que se mobilizam em prol desses direitos:
uma instância de regulação normatizada e compactuada, e uma esfera vinda
de lutas e de congregação de forças.
No sentido de visualizarmos na prática as articulações entre as instituições
previstas no artigo 86 do ECA, levaremos como um dos referenciais nesta
pesquisa a teoria sobre o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do
Adolescente, desenvolvida pelo Centro de Defesa Dom Helder Câmara,3
e institucionalizada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda), através de Resolução nº 113, de 19 de abril de
2006. Este sistema se fundamenta em três grandes eixos: Promoção,
Defesa e Controle Social, e para cada um desses eixos se constitui uma
lógica de articulação para a consecução dos objetivos do atendimento, da
responsabilização e da vigilância, respectivamente.
A REDE DE RETAGUARDA: OS CIRCUITOS E AS FALAS DA
EXPLORAÇÃO SEXUAL
Fortaleza foi a primeira capital brasileira a criar seu Conselho de Direitos,
em novembro de 1990, por meio da lei municipal nº 6.729, através de
uma ampla mobilização social, traço característico da cidade que quase
3. O Centro de Defesa Dom Helder Câmara (Cendhec) é uma entidade que realiza
atendimento jurídico-social que tem como carro-chefe de todo o seu trabalho o
desenvolvimento sistemático da teoria inicial do Sistema de Garantia de Direitos
elaborada e apresentada por Wanderlino Nogueira Neto, em 1993.
218
GLÓRIA D IÓGENES
sempre é precursora de movimentos sociais no âmbito da criança e do
adolescente. Foram criadas nesses dezoito anos variadas instituições previstas
nas legislações de proteção e assistência social: Delegacias especializadas,
Varas da Infância e da Juventude, Promotorias especializadas, 6 Conselhos
Tutelares, Fundo Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes, dentre
outras conquistas.
Embora identifiquem-se avanços nos processos de estruturação e
proposição de políticas públicas, há, em contraposição, ainda um relativo
desarranjo entre estas instituições, tendo em vista a dificuldade de se garantir
uma unicidade das diversas facetas e atribuições de cada setor. Avança-se
na construção da política, qualificando as competências, porém, ainda fica
comprometido o fluxo coordenado entre as várias instituições. Sendo assim,
tomaremos os eixos previstos pelo Sistema de Garantia de Direitos como
parâmetro de análise dos dados obtidos no escopo dessa pesquisa.
Certamente, essa estratégia de análise facilitará a percepção do leitor
acerca do impacto das várias instituições que formam a rede de proteção
e a construção de uma visão fragmentada e imprecisa do papel destas na
percepção de meninos e meninas.
A Promoção de Direitos – um dos eixos do Sistema de Garantia de
Direitos – se faz em tese com a participação popular na formulação e
deliberação das políticas de atendimento, que de forma prioritária e universal
dão conta das necessidades básicas da criança e do adolescente. Essa
concepção proposta no ECA concretiza nas políticas públicas sua expressão
máxima como um espaço estruturador dos vários eixos que compõem a
organização social na busca da garantia dos direitos previstos na legislação.
No campo das políticas sociais básicas, temos duas vertentes: as políticas
de caráter estrutural, que se referem aos direitos básicos como educação,
saúde, profissionalização, habitação; e outras de caráter assistencial, que
deverão aparecer quando as políticas básicas não cumprirem seu papel.
Encontra-se nessa vertente os programas de proteção especial direcionados
ao conjunto de crianças e adolescentes vulnerabilizados, que estão de fora
das políticas sociais estruturantes: crianças e adolescentes em situação de
abuso e exploração sexual comercial, exploração do trabalho infantil e
aquelas dependentes de substâncias psicoativas, etc.
O serviço Sentinela4 é um exemplo dessa política de garantia de direito.
Ele se estrutura no campo da assistência social com a proposta de efetivação
4. De acordo com a normativa do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), os
Sentinelas passam a ser serviço Sentinela, integrando os serviços de proteção social
especial de média complexidade. O serviço Sentinela em Fortaleza está estruturado
na Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci).
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
219
do atendimento psicosocial5 às vítimas de violência sexual. No município
de Fortaleza, este serviço é executado pela Fundação da Criança e da Família
Cidadã (Funci), que atende, em maior percentual, crianças e adolescentes
vítimas de abuso sexual praticado em âmbito familiar, e, em menor
proporção, casos de exploração sexual comercial. Este serviço, muito
embora tenha desempenhado um papel importante no atendimento a
vítimas de abuso sexual, ainda não consegue, de forma definitiva, se
estabelecer como um referencial de atendimento para crianças e
adolescentes que estão nos circuitos da exploração sexual comercial.
Como a pesquisa evidencia na tabela 85.3, apenas 20,1% dos
entrevistados conhecem o programa, enquanto 75,9% desconhecem. Esses
dados demonstram que este atendimento não chega de forma contundente
ao público da exploração sexual comercial, evidenciando, deste modo, a
não efetivação dos seus direitos.
85.3. CONHECE O SENTINELA
TOTAL
SIM
66
20,1%%
NÃO
249
75,9%
N.S. / N.R.
13
4,0%
TOTAL
328
100,0%
Como o serviço Sentinela não atua de forma isolada, faz-se necessário
que outras instituições, constituídas pelo Sistema de Garantia de Direitos,
realizem suas funções para efetivar a proposta de atendimento integral
previsto no programa. Obviamente, não será o serviço Sentinela, por
exemplo, que realizará a busca a este público. Caberá aos educadores
sociais, constituídos numa rede de abordagem especializada junto à polícia
e ao Ministério Público, desempenhar este papel. Os conselheiros tutelares,
seguindo o fluxo, devem encaminhar estas crianças e adolescentes ao
atendimento adequado. Para que este caminho institucional se efetive, é
necessário que a ponta desses atendimentos, protagonizado pelos
educadores sociais, estabeleça relações e vínculos.
5. Acompanhamento psicológico dos sujeitos vitimados assim como de suas famílias;
encaminhamento para as políticas sociais disponíveis no município; orientação jurídica
e acompanhamento de crianças e adolescentes nos procedimentos referentes aos
processos de responsabilização de agressores.
GLÓRIA D IÓGENES
220
85.4. CONHECE OS
EDUCADORES DE RUA?
TOTAL
SIM
177
54,0%%
NÃO
147
44,8%
4
1,2%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
Como assinala a tabela 85.4, ainda há um desconhecimento por parte
desse público da existência destes agentes. Dos entrevistados, 44,8% não
conhecem educadores de rua, embora 54,0%, número representativo, já
tenham tido conhecimento da sua existência. Esses atores atuam no espaço
concreto das políticas, na esfera onde se exercem a maioria das violações
de direitos: o âmbito da rua. Assim sendo, os educadores ainda não são
percebidos, vistos, ou, simplesmente, não ocupam um lugar significativo
nas redes de sociabilidade dos adolescentes que se encontram em situação
de exploração sexual comercial, como detecta o discurso de uma
adolescente entrevistada.
MARCILENE – Tu conheceu algum educador na rua fazendo um
trabalho social?
A. – Não! É a primeira vez que eu tô vendo isso aqui (A., Barra do
Ceará, feminino, 16 anos).
Por volta da metade do século XX, ainda sob a doutrina do Código de
Menores, primeira legislação específica para o segmento infância/
adolescência deste país, crianças e adolescentes que estavam nas ruas eram
considerados desprovidos de qualquer virtualidade, sendo então retiradas
como objetos e colocadas em verdadeiros depósitos, sobretudo as crianças
e jovens pobres. Esta percepção que o menor deve ser retirado da rua é
um resquício de uma política higienista, que ainda se faz presente, aqui e
acolá, nas políticas que se espalham por todo o território brasileiro. Mesmo
depois de o Estatuto da Criança e do Adolescente ter suprimido a expressão
“menor” da legislação, observa-se ainda um uso recorrente desse termo,
que tinha como propósito não diferenciar o menor de idade, mas diferenciar
um determinado segmento: o pobre. Na maior parte dos casos, a alusão
ao referente “menor” representa a produção e a reprodução de um
instrumento de segregação, exclusão de efetivação de uma violência
simbólica.
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
221
O Estatuto, na sua política de proteção, prevê oito medidas no seu artigo
101 para restituir o direito que foi negado àquela criança e adolescente,
sendo o abrigamento considerado medida excepcional, que deve ser
utilizada em último caso. Contudo, ele ainda é empregado recorrentemente,
revelando uma estratégia de resolução de violações que parece mais
cômoda para nossos olhos e para o cenário da cidade. A tabela 77 evidencia
que 20% dos entrevistados já estiveram em um abrigo.
77. JÁ ESTEVE EM ALGUM
ABRIGO?
TOTAL
SIM
66
20,1%%
NÃO
259
79,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
3
0,9%
328
100,0%
Devemos considerar que dentre esses adolescentes que estiveram em
um abrigo, muitos não encontraram nessas instituições a possibilidade
concreta de ressignificarem suas vidas, e transcenderem do cenário de
violência, que muitas vezes ocorre nas ruas. A alternativa seria a busca de
políticas que possibilitem a reconstrução dos seus vínculos familiares, ou a
inserção em famílias substitutas, com a finalidade de reconstituir laços
afetivos sensibilizados tanto pelo sofrimento físico e psíquico desse segmento,
como garantindo seus sonhos de autonomia e liberdade. O relato de uma
jovem, quando indagada se já esteve em um abrigo, aponta um pouco nessa
direção.
E.– Já. Eu fui pra o Espaço Aquarela, pra Acamp, pro Moacir
Bezerra, fui pra República, pro Rosa de Sharon, que é um abrigo
evangélico. Todos esses abrigos são legais, são importantes. Mas
é porque a rua, a gente fica aviciado naquilo ali. É você querendo
mudar de vida e ao mesmo tempo a rua lhe chamando, você não
querendo sair porque você tá aviciada naquilo. Então, assim, você
tem a oportunidade, mas ao mesmo tempo a oportunidade, ela tá
de fora, a gente mesmo lança fora porque não consegue ficar fora
das drogas, fora da prostituição, fora dos vícios que tem na rua.
Porque você acha que dentro de um abrigo você não vai ter a
liberdade que tem na rua. Porque na rua você tem a liberdade de
fazer aquilo que você quiser (E., Terminal Lagoa/ Beira-Mar,
feminino, 15 anos).
GLÓRIA D IÓGENES
222
A Defesa dos Direitos – outro eixo do Sistema de Garantia de Direitos
– existe em tese como o foco central para responsabilização do Estado, da
sociedade e da família quando se identificar situações de violação de
quaisquer direitos, individuais ou coletivos, de crianças e adolescentes. É
este instrumento fiscalizador e punitivo que complementará o eixo da
Promoção dos Direitos no cumprimento do ECA. É importante a aplicação
de sanções nos casos de violação de direitos como uma retaguarda para
que se ultrapasse a impunidade e para que ela não se institua neste campo.
A composição deste eixo é estruturada basicamente por órgãos públicos:
Poder judiciário, Ministério Público, Delegacias, e outros. Mas existem dois
espaços a serem ocupados pela sociedade civil: os Centros de Defesas dos
Direitos das Crianças e Adolescentes (em Fortaleza nós temos o Cedeca),
e os Conselhos Tutelares, que apesar de se constituir em um órgão público,
seus representantes são escolhidos pela comunidade através do voto.
A atribuição primordial dos Conselhos Tutelares é do atendimento e a
aplicação, sobretudo, das medidas de proteção previstas no artigo 101 do
ECA, exceto, obviamente, a alternativa de colocação da criança ou do
adolescente família substituta, que fica a cargo do Poder Judiciário. O
Conselho Tutelar, em tese, é a porta de entrada de qualquer denúncia sobre
a violação de direitos de crianças e adolescentes. Certamente, nos casos
de exploração sexual comercial, esta porta de entrada, em alguns casos,
nem sempre está aberta, como aponta a tabela 85.1: 39,0% dos
entrevistados afirmam não conhecerem o Conselho Tutelar. Esse dado é
por demais preocupante e nos induz revisarmos as estratégias de
fortalecimento deste braço estratégico do Sistema de Garantia de Direitos.
85.1. CONHECE O CONSELHO
TUTELAR?
TOTAL
SIM
199
60,7%%
NÃO
128
39,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
1
0,3%
328
100,0%
Embora 60,7% indiquem conhecer o Conselho Tutelar, talvez ele
condense um relativo desgaste pela metodologia de atendimento, que alguns
conselheiros insistem em empreender ainda nos dias atuais. Em alguns casos,
essas abordagens lembram os antigos “agentes de menores”, quando alguns
conselheiros tutelares ainda realizam, com coletes similares ao da polícia e
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
223
práticas equivocadas da sua função, suas abordagens nas ruas. Esses
agentes, que representam a figura de “anjos da guarda” dessas crianças,
acabam confundidos com agentes de repressão, que retiram o “menor”
da rua e encaminham para algum outro lugar fora dela, como algumas
entrevistas desta pesquisa apontam. O Conselho Tutelar está desconectado,
em alguns casos, da linguagem, das práticas e do imaginário de crianças e
adolescentes que estão nas redes de exploração sexual. São mundos, em
algumas circunstâncias, cindidos, distantes; produzindo mais temor e mais
distanciamento entre as esferas institucionais e a lógica da rua.
RAFAEL – O que tu acha dos Conselhos Tutelares e do trabalho
que eles fazem?
R. – Eles tá certo, né? O que eles pega de menor na rua, eles tem
que levar. Mas só que eu tenho vergonha de aparecer na porta da
minha mãe com o SOS Criança, eu tenho vergonha. Avalie de eu
passar vergonha, a minha mãe também passa (R., Barra do Ceará,
Feminino, 16 anos).
MARCILENE – Tu acredita nesse trabalho que eles fazem?
T.– Acreditar, eu acredito, mas nunca veio até a mim (T., Praia
do Futuro, Masculino, 18 anos).
EMANUELA – Tu conhece o Conselho Tutelar?
G.– Nem quero.
EMANUELA – Mas tu já sabe o que é?
G. – Já.
EMANUELA – O que é pra tu o Conselho Tutelar?
G. – É quando pega gente de menor?
EMANUELA – Mais ou menos.
G. – Que pega e leva não sei pra onde, não sei o que, aí dá
conselho? (G., Castelão, masculino, 16 anos).
O relacionamento da polícia e do Poder Judiciário com a criança e o
adolescente na época do Código de Menores era marcado puramente pela
repressão. O antigo código legitimava a ação da polícia no sentido de retirar
o “menor” da rua pelo simples fato de ele estar na rua, ou em qualquer
situação “suspeita”, e levá-lo ao juiz para que este declarasse sua “situação
GLÓRIA D IÓGENES
224
irregular”. Em suma, os interesses do “menor” pouco importavam, em
detrimento dos interesses da polícia e do juiz. Muito embora a promulgação
do Estatuto da Criança e do Adolescente tenha elevado o status do “menor”
ao de “sujeito de direitos”, percebemos que ainda há uma relativa presença
no imaginário de crianças e adolescentes da polícia e do Poder Judiciário
como órgãos repressores, e não instâncias de garantia de direitos, tal qual
nos evidencia o discurso de um adolescente entrevistado.
RAFAEL – Vamos falar sobre políticas públicas para crianças e
adolescentes. Tu já foi abordada por algum educador social?
R. – Já, pelo Poder Judiciário.
RAFAEL – Eles realizaram algum encaminhamento pra ti?
R. – Eles tentaram me pegar, mas não conseguiram (R., Barra do
Ceará, feminino, 16 anos).
Vale ressaltar que em Fortaleza temos uma delegacia especializada no
combate à exploração contra crianças e adolescentes, sobretudo a
exploração sexual. Embora tenhamos conquistado este instrumento de
85.2. CONHECE A DECECA?
TOTAL
SIM
126
38,4%
NÃO
188
57,3%
N.S. / N.R.
14
4,3%
TOTAL
328
100,0%
defesa dos direitos, ela também ainda é pouco conhecida do público que
mais dela necessita: crianças e adolescentes vítimas de exploração sexualcomercial. A tabela 85.2 aponta que 57,3% não conhece a Delegacia de
Combate à Exploração Contra a Criança e o Adolescente (Dececa).
Não se garante um atendimento adequado e uma defesa de direitos
eficaz sem a participação da sociedade. Os eixos que compõem o Sistema
de Garantia de Direitos não podem, de forma alguma, funcionar
separadamente como “caixinhas”. O sistema só funciona com a articulação
de todos os atores, respeitando suas atribuições. A função do Controle Social
– eixo fundamental para o funcionamento desse sistema – é desempenhada
por entidades da sociedade civil organizada: pastorais sociais, ONG’s, fóruns
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
225
de Articulação de ONGs, associações de bairros, sindicatos e centrais
sindicais, e outras, que articuladas em espaços institucionais ou nãoinstitucionais fiscalizam a implementação do ECA. O próprio Estatuto prevê
espaços mistos de participação, como os Conselhos de Direitos, onde a
sociedade civil compartilha um permanente diálogo com poder público na
formulação, deliberação e controle das políticas que efetivem, de fato, os
direitos humanos do segmento infância e adolescência.
Nessa pesquisa estamos tratando de crianças e adolescentes que já
nasceram sob o marco da proteção integral previsto no Estatuto da Criança
e do Adolescente, e que estão em situação de exploração sexual comercial.
Porém, paradoxalmente, 46,0% dos adolescentes entrevistados não
conheçam a legislação que os protegem integralmente, como aponta dados
da tabela 86. Dos 50% que conhecem o Estatuto, apenas 16,5% avaliam
a lei como ótima, dado apontado 87.
86. CONHECE O ESTATUTO
DA CRIANÇA E DO ADOL.?
TOTAL
SIM
164
50,0%
NÃO
151
46,0%
N.S. / N.R.
13
4,0%
TOTAL
328
100,0%
87. O QUE ACHA DO
ESTATUTO?
TOTAL
ÓTIMO
27
16,5%
BOM
74
45,1%
REGULAR
24
14,6%
RUIM
2
2,4%
PÉSSIMO
13
7,9%
N.S. / N.R.
22
13,4%
TOTAL
164
100,0%
Esses dados evidenciam o lugar que esta moderna legislação e suas
instituições ocupam no imaginário dessas crianças e adolescentes que estão
nas redes de exploração sexual comercial. Quando subvertemos o olhar
para o Sistema de Garantia de Direitos do público atendido para as
226
GLÓRIA D IÓGENES
instituições que compõem a sua rede de proteção, percebemos que há um
abismo entre a realidade e as normas que deveriam protegê-los. Temos
ainda que superar muitos desafios para consolidarmos os direitos previstos
no ECA. E que isso só será alcançado com a priorização e articulação das
ações executadas pelas instituições e com a participação das crianças e
adolescentes na construção das políticas públicas.
B IBLIOGRAFIA
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil: promulgado em
5 de outubro 1988. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com
a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz
Santos Windt e Lívia Céspedes. 35ª ed. atual. e ampl., São Paulo:
Saraiva, 2005.
ESTATUTO da Criança e do Adolescente. Lei 8.069, de 13 de julho de
1990. Prefeitura Municipal de Fortaleza , 2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
PINHEIRO, Ângela. Crianças e adolescentes no Brasil: porque o abismo
entre a lei a liberdade? Fortaleza: Editora da Universidade Federal
do Ceará, 2006.
CENDHEC. Sistema de Garantia de Direitos: um caminho para a
proteção integral.. Recife: Centro Dom Helder Câmara de Estudos
e Ação Social (Cendhec), 1999.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse relatório-livro teve uma peculiaridade: reuniu em torno de um
mesmo tema e de um conjunto diversificado de dados, olhares e análises
construídas por interlocutores diferenciados no campo da reflexão e da
construção de políticas de promoção e efetivação de direitos humanos de
crianças e adolescentes. Existe um denominador comum que agrega e
unifica todos os autores: a valorização dessa pesquisa como fonte
propiciadora de novas diretrizes para o campo das políticas públicas
relativas ao segmento acima assinalado. Desse modo, em cada um dos
artigos desenvolvidos, na medida em que os narradores e os dados
quantitativos esboçam um quadro preciso, entremeados pelo olhar do
pesquisador alguns sinais conclusivos, de natureza mais analítica, já foram
delineados.
As considerações finais desse relatório expressam o trabalho exaustivo
da convergência de todos os olhares para um mesmo foco, para um mesmo
desafio: diante de tudo que foi aqui se desenhando, o que fazer? Decidimos,
então, seguir em uníssono um mesmo movimento: tomamos passagens dos
nossos textos, enunciadoras de dinâmicas de exploração sexual ainda não
reveladas de forma mais massiva e, partindo desses “achados”, apontar
novas diretrizes para a formulação e ampliação das políticas públicas.
A idéia final é de compactar e produzir uma agenda de contribuições
mais objetivas e condensadas em uma linguagem mais direta. Cada
formulação do texto, relativa a cada tema de análise, será seguido de
diretrizes e contribuições para novas formulações e redirecionamentos.
Assim, quem sabe, poderemos estar unificando territórios quase sempre
tão cindidos: o campo da reflexão acadêmica e o âmbito relativo à construção
228
GLÓRIA D IÓGENES
e implementações de estratégias no campo das ações públicas
governamentais.
T EMA : O C LIENTE
A exploração sexual que transcorre nas ruas, que tem o espaço público
e seus equipamentos como lócus, e que condensa um maior nível de violação
de direitos de crianças e adolescentes tem os “moradores locais” (54,9%)
como principais clientes, vindo em segundo plano, e bem distante do
primeiro, os “turistas estrangeiros”, com 24,4% de indicações, ficando o
“turista brasileiro” com 12,5% e o “caminhoneiro” com 2,4% de
ocorrências.
Indicativo:
Torna-se emergencial a intervenção de educadores sociais no esforço
de identificação de personagens habituais que transitam em locais de tráfico
e adensamento de crianças e adolescentes: Terminais, postos de gasolina,
bares, boates, pontos comerciais e vias de fluxo intenso. Os esforços das
ações de políticas públicas devem ser voltados para dois propósitos:
a) Identificar as redes de exploração, assim como seus atores, nos
territórios que dão sustentação às tramas diárias; os movimentos da
vida cotidiana para além dos “holofotes” do turismo sexual.
b) Mapear e acionar uma “rede institucional e comunitária” que
represente em nível local o sistema de garantia de direitos;
c) Unificar e qualificar o atendimento através da percepção das
dinâmicas de exploração e do que pensam e sentem as meninas e
meninos que falam através dos relatos aqui traçados.
T EMA : V IOLAÇÕES
O lugar do programa é também um indicador de outras práticas ilícitas
e outras formas de exploração. Observa-se nos relatos referente às
entrevistas que a vivência da rua, da exploração, está quase sempre
associada à droga e a violência física e verbal.
Indicativo:
As políticas públicas no geral seccionam áreas de atuação, criando
planos e estratégias diferenciadas de promoção e efetivação de direitos
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
229
de crianças e adolescentes. Observa-se que as situações de exploração
sexual representam, em algumas situações, mais uma estratégia de meninas
e meninos que rompem os muros da casa e da família, aventuram-se nas
ruas e tornam-se vítimas de violações, que lhes parecem como mais
agravantes e mais dolorosas. A exploração sexual é comumente expressa
como uma astúcia de sobrevivência, figurando como uma construção
imaginária de esperteza diante de tantas dores, perdas e violações
acumuladas. Certamente, por isso, a dificuldade de atuação efetiva das
políticas nesse campo específico de violação de direitos. Qualquer ação de
reconstrução de escolhas e oportunidades, de recondução de histórias de
vida, deve levar em conta os valores que os meninos e meninas constroem
e pactuam por seus feitos e conquistas nesse campo.
T EMA : V ARIAÇÕES
DO FAZER PROGRAMA
O valor do programa expressa a própria multiplicidade relativa à
vivência da exploração sexual. Observa-se que a situação “masturbação”
é uma alternativa de programa que no cômputo geral recebe 20,6% de
freqüência, aproximando-se da alusão ao programa completo, que recebe
22,3%, e do item “sexo oral”, com 19,7% das indicações. Isso significa
dizer que fazer programa, no que se refere à natureza das práticas de
exploração sexual de crianças e adolescentes, não necessariamente diz
respeito ao ato de penetração e de coito vaginal e/ou anal.
Indicativo:
Fazer programa para crianças e adolescentes mistura-se e mimetizase em dimensões variadas do fazer e da movimentação cotidiana. Ficar
próximo da ponte da Barra do Ceará, por exemplo, é trocar algumas
carícias e exposições de partes e toques no corpo por dinheiro, o que para
alguns meninos e meninas se constitui em uma tática para obtenção de
dinheiro e/ou de presentes e mimos. Por isso, o ato de fazer programa é
quase uma sombra nas falas e construção imaginária desses atores,
amalgamada às tantas ações e estripulias do dia-a-dia. Qualquer ação
institucional que tenha como foco atuar no campo do enfrentamento à
exploração sexual de crianças e adolescentes deve não apenas visualizar
os sujeitos e as suas práticas exclusivas nesse campo; deve, em
contrapartida, ter como foco as várias tramas e ações que produzem o ato
de fazer programa.
GLÓRIA D IÓGENES
230
T EMA : LAÇOS
FAMILIARES E AFETIVOS
O ponto de partida para se buscar compreender o lugar que ocupa a
família na vida de meninos e meninas que estão inseridos na rede de
exploração sexual comercial deve seguir um caminho reflexivo: situar a
família como uma instituição que possibilita um processo de articulação de
trajetórias de vida de seus membros e que se constrói e se reproduz no
contexto das relações de classe, gênero e étnicas.
Indicativo:
Os novos arranjos familiares e a composição multifacetada que as
famílias possuem atualmente denota o esforço de se perceber que a
consangüinidade não é mais compreendida como característica
fundamental. Os laços de afinidade estão tomando um lugar significativo.
Então, deve-se mapear quem são as pessoas que as crianças e adolescentes
que estão na rede de exploração sexual comercial referenciam como
integrantes de sua família.
T EMA : C ONFLITOS
FAMILIARES
Os conflitos com os padrastos são praticamente comuns nas narrativas
dos jovens entrevistados nessa pesquisa. Como já foi dito anteriormente,
assim como as relações com as mães são conflituosas, com os padrastos
esses conflitos são muito mais graves. Podemos até mesmo afirmar que
dentre os jovens entrevistados quase nenhum avaliou que possui um bom
relacionamento com seus padrastos.
Indicativo:
Desenvolver programas e projetos que possam atuar na mediação de
conflitos intrafamiliares. Se pressupomos que seja comum a formação de
novos arranjos familiares, onde mães e pais diversificam seus parceiros, é
necessário que haja ações capazes de se movimentar e travar diálogo no
ritmo dos novos personagens que compõem os referidos arranjos.
T EMA : V IOLÊNCIA
DOMÉSTICA
É fundamental, ao se deter no processo de inserção de meninos e
meninas nas redes de exploração sexual, que se dê uma atenção especial
à condição familiar, mais especificamente às experiências com a violência
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
231
doméstica, que atua como elemento potencializador na busca por
autonomia dos familiares. Sendo assim, a passagem para a entrada na rede
de exploração sexual é uma possibilidade que poderá propiciar uma relativa
sensação de autonomia.
Os dados evidenciaram que as experiências cotidianas de brigas, conflitos
e violências no interior da casa estão entrecortados pela vontade de buscar
alternativas rápidas para uma desvinculação com essa esfera de vida.
Quando não é o próprio ente da família que propicia essas crianças e esses
adolescentes a deixarem explorar seus corpos.
Indicativo:
É fundamental pensar as crianças e adolescentes envolvidos nas teias
da exploração sexual para além do momento em que estão expostos
publicamente às violações de direitos; pensá-los como sujeitos possuidores
de histórias de vida. Desvendar os labirintos dessas narrações, seus desvios
e seus lapsos é capital para que se tenha possibilidade de realizar um
atendimento eficaz. A compreensão da história desses meninos e meninas
funciona como indicativo das motivações e escolhas que propiciaram a saída
de casa e a busca de alternativas das condições de existência na rua. Desse
modo, acompanhar e desvendar percursos ajuda a perceber qual a
importância da família e dos aspectos subjetivos que os influenciaram e
mobilizaram a participarem das redes organizadas da exploração.
Deve-se refletir também sobre as formas de denúncias em relação às
violações a que são submetidas crianças e adolescentes, pensando em
formas práticas e seguras para a realização das mesmas. Deve-se levar
em consideração ainda o trabalho necessário com os profissionais de
instituições, que mantêm contato direto com crianças e adolescentes,
principalmente a escola, para que se tenha uma atenção aos primeiros
sinais de violências físicas ou psicológicas, mesmo que seja minimamente
demonstrados.
T EMA : V IOLÊNCIA
POLICIAL
Um fenômeno significativo constatado na pesquisa foi o envolvimento
de policiais com a rede de exploração sexual. Os dados indicam que a
violência é, predominantemente, a forma de atuação utilizada por eles.
Por isso, é justificado tomar como indicador o envolvimento desse segmento
institucional na rede que explora e alicia crianças e adolescente sexualmente.
A participação de policiais nas redes de exploração sexual de crianças
e adolescentes é uma constante. Conforme demonstrado nos dados,
GLÓRIA D IÓGENES
232
freqüentemente uma parte dos que compõe a instituição policial atuam
movidos pela arbitrariedade e visível intolerância.
Indicativo:
Deve-se ter como tarefa institucional a produção de um trabalho
continuado, a médio e longo prazo, nos setores de segurança pública, visto
que muitas práticas estão enraizadas e não serão reduzidas de forma
imediata. É preciso inserir na formação dos agentes de segurança pública,
especialmente os da polícia, orientações acerca do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) e do Sistema de Garantia de Direitos.
T EMA : O
SILICONE
O consumo do silicone por parte dos meninos travestidos tem a finalidade
de que os corpos sejam transformados, para assim serem aceitos na
coletividade. Eles buscam modificar o olhar sobre si, bem como o olhar
dos outros. Essa necessidade nasce do imaginário de que ao mudar o seu
corpo o indivíduo muda a sua vida, passa a se aceitar melhor e a gozar de
uma nova identidade.
Indicativo:
Crianças e adolescentes travestidos, no geral, parecem produzir
freqüentemente atos de violência, risco e de negação dos seus corpos.
Quase sempre são tomados por desejos incessantes de fabricação de
“novos” corpos. É necessário cada vez mais que se lance mão de ações de
esclarecimento dos cuidados e necessidades de preservação do corpo. Para
isso, deve-se extrapolar o âmbito da linguagem estritamente médica, com
a finalidade de informar e prevenir a utilização danosa e indiscriminada de
produtos químicos de caráter desconhecido nos corpos de meninos travestis.
Elaborar uma estratégia de intervenção que os alerte acerca dos perigos
da aplicação de silicone realizada por pessoas não habilitadas para tal
procedimento, sem higiene necessária, anestesia e desprovidas de qualquer
processo de acompanhamento pós-aplicação.
T EMA :
REDE DE PROTEÇÃO
Como foi exposto no texto “O Sistema de Garantia de Direitos da Criança
e do Adolescente visto pelo avesso”, o ECA dispõe sobre uma série de
direitos que foram conquistados à base de intensa mobilização social. Estes
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
233
direitos, materializados na lei, têm a pretensão de garantir para este
seguimento uma proteção integral capaz de respeitar o seu processo
peculiar de desenvolvimento, físico, psicológico e intelectual, e será efetivado,
em tese, com a articulação de uma série de instituições. Em Fortaleza,
constituímos uma ampla rede de proteção nesses últimos dezoito anos.
Desde a criação do ECA, foram criadas delegacias especializadas, varas
da infância e da juventude, promotorias especializadas, seis Conselhos
Tutelares, Fundo Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes, dentre
outras instituições previstas nas legislações de proteção e assistência social.
Mas, mesmo com este amplo leque articulado de instituições, ainda não
conseguimos, de forma sistêmica, constituir uma rede de retaguarda que
garanta efetivamente os direitos previstos na lei para as crianças e
adolescentes que estão nas redes de exploração sexual.
Indicativo:
Nesse sentido, como Fortaleza dispõe de uma rede de instituições, é
importante que ela se articule de forma mais sistemática. Espaços
institucionais já foram criados para a gestão deste sistema, como o Conselho
Municipal da Criança e do Adolescente (Comdica) e a Comissão do
Programa de Ações Intergradas e Referenciais de Enfrentamento a
Violência Sexual de Crianças e Adolescentes (Pair), que tem como objetivo
implementar os planos de políticas públicas que foram criados em nível
nacional, estadual e municipal para o enfretamento deste fenômeno. As
instituições foram criadas e são muitas, e os planos de ações de políticas
foram deliberados pelos Conselhos de Direitos. Agora só falta a priorização,
por parte de todas as instituições, para consolidarmos sua efetiva
implementação.
T EMA : C ONSELHO T UTELAR
Como foi exposto nesta pesquisa, a atribuição primordial dos Conselhos
Tutelares é do atendimento e a aplicação, sobretudo, das medidas de
proteção previstas no artigo 101 do ECA, exceto, obviamente, a alternativa
de colocação da criança ou do adolescente em família substituta, o que
fica a cargo do Poder Judiciário. O Conselho Tutelar existe, em tese, como
a porta de entrada de qualquer denúncia sobre a violação de direitos de
crianças e adolescentes. Esse fluxo foi pactuado entre a Prefeitura de
Fortaleza e os Conselhos Tutelares. Mas, nos casos de exploração sexual
comercial, este fluxo ainda precisar ser fortalecido, pois, como apontam
os dados revelados nesta pesquisa, há um desconhecimento ainda
234
GLÓRIA D IÓGENES
significativo desta instituição pelos adolescentes que estão nas redes de
exploração sexual, uma vez que 39,0% dos entrevistados afirmam não
conhecerem o Conselho Tutelar.
Indicativo:
Esse dado é por demais preocupante e nos induz revisarmos as iniciativas
de fortalecimento deste braço estratégico do Sistema de Garantia de
Direitos; ações na perspectiva da divulgação dos seus serviços e das suas
funções, estruturação e equipamentos da sedes destes seis Conselhos
Tutelares existentes na cidade, e a formação continuada destes agentes
públicos com a finalidade de desempenharem, cada vez mais, suas funções
de forma coerente e eficaz.
ANEXOS
236
GLÓRIA D IÓGENES
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
237
QUESTIONÁRIO PARA A PESQUISA SOBRE
EXPLORAÇÃO SEXUAL
Nome do pesquisador:
Local da entrevista:
Horário de início:
Horário de término:
1. Qual a sua idade? (aberta)
2. Sexo:
Masculino ( )
Feminino ( )
3. Qual a sua escolaridade?
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) não alfabetizado
) 1º grau incompleto
) 2º grau incompleto
) não sabe/respondeu
b) ( ) alfabetizado
d) ( ) 1º grau completo
f) ( ) 2º grau completo
4. Atualmente freqüenta a escola?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
5. (Caso tenha respondido NÃO na pergunta nº 4) Há quanto tempo
você está fora da escola?
a) ( ) nunca freqüentou
c) ( ) de 6 meses até 1ano
e) ( ) mais de 2 anos
b) ( ) menos de 6 meses
d) ( ) de 1 até 2 anos
f) ( ) não sabe/ não respondeu
6. Você mora em que bairro? (aberta)
GLÓRIA D IÓGENES
238
7. Você tem alguma religião?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
8. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 7) Qual?
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) católico
) espírita
) candomblé
) não sabe/ não respondeu
b) ( ) evangélico
d) ( ) umbandista
f) ( ) budista
h) ( ) Outros, especificar:
9. Qual a sua cor? (auto-identificação)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
)
)
)
)
branca
parda
morena
outros, especificar:
b) ( ) negra
d) ( ) amarela
f) ( ) não sabe/ não respondeu
10. Qual a sua ocupação? (autodefinição)
11. Qual sua renda individual mensal? (aberta)
12. Você tem família?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
13. (Caso tenha respondido SIM na pergunta n° 12) Como você
avalia a vida na sua família?
a) ( ) ótima
c) ( ) regular
e) ( ) péssima
b) ( ) boa
d) ( ) ruim
f) ( ) não sabe/ não respondeu
14. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 12) Qual a renda
da família mensal? (aberta)
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
239
15. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 12) Está,
atualmente, enfrentando algum problema na família?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
16. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 15) Qual
problema?
a) ( ) conflito familiar
c) ( ) problemas de saúde
e) ( ) outros, especificar:
b) ( ) problemas financeiros
d) ( ) não sabe/ não respondeu
17. Com quem mora atualmente? (múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
i)
(
(
(
(
(
) pai
) irmãos, quantos:
) companheiro(a)
) amigos
) outros, especificar:
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) mãe
) filhos, quantos:
) avós
) não sabe/ não respondeu
18. (Caso NÃO tenha respondido o item C da pergunta nº 17) Você
tem irmãos?
a) ( ) sim, quantos:
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
19. (Caso tenha respondido que tem irmãos) Você é qual dos
filhos? (aberta)
20. Já presenciou violência em casa?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
21. (Caso tenha respondido SIM na pergunta n° 20) Quem sofreu
a violência? (múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) eu
) mãe
) madrasta
) outros parentes
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) irmãos
) pai
) padrasto
) outros, especificar:
GLÓRIA D IÓGENES
240
22. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 20) Quem
cometeu a violência? (múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) eu
) mãe
) madrasta
) outros parentes
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) irmãos
) pai
) padrasto
) outros, especificar:
23. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 20) Que tipo de
violência? (múltipla escolha)
a) ( ) violência doméstica
b) ( ) violência sexual
c) ( ) agressão verbal
d) ( ) ameaças
e) ( ) não sabe/ não respondeu f) ( ) outros, especificar:
24. Já presenciou violência sexual em casa?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
25. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 24) Quem sofreu
a violência sexual? (múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) eu
) mãe
) madrasta
) outros parentes
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) irmãos
) pai
) padrasto
) outros, especificar:
26. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 24) Quem
cometeu a violência sexual? (múltipla escolha)
a) ( ) irmãos
c) ( ) pai
e) ( ) padrasto
b) ( ) mãe
d) ( ) madrasta
f) ( ) outros parentes g) ( ) outros,
especificar:
27. Já sofreu maus-tratos na rua?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
241
28. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 27) Quem
cometeu os maus-tratos? (múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
i)
(
(
(
(
(
) vizinhos
) namorado(a)
) clientes
) desconhecidos
) outros, especificar:
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) amigos
) policiais
) conhecidos
) não sabe/ não respondeu
29. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 27) Que tipo de
maus-tratos? (múltipla escolha)
a) ( ) agressão física
b) ( ) agressão verbal
c) ( ) ameaças
d) ( ) violência sexual
e) ( ) não sabe/ não respondeu f) ( ) outros, especificar:
30. Usa alguma coisa para se defender?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
31. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 30) O que usa?
(múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
)
)
)
)
gilete
faca
arma de fogo
outros, especificar:
b) ( ) acetona
d) ( ) água oxigenada
f) ( ) não sabe/ não respondeu
32. (Caso seja mulher) Qual a idade da sua primeira
menstruação? (aberta)
33. Com que idade foi a sua primeira experiência com sexo, não
necessariamente ato sexual? (aberta)
34. Com quem foi?
a)
c)
e)
g)
i)
l)
(
(
(
(
(
(
) pai
) mãe
) irmão(a)
) vizinho(a)
) amigo(a)
) outros, especificar:
b)
d)
f)
h)
j)
(
(
(
(
(
) padrasto
) madrasta
) tio(a)
) namorado(a)
) não sabe/ não respondeu
GLÓRIA D IÓGENES
242
35. Qual a idade da primeira relação sexual? (aberta)
36. Com quem foi?
a)
c)
e)
g)
i)
l)
(
(
(
(
(
(
) pai
) mãe
) irmão(a)
) vizinho(a)
) amigo(a)
) outros, especificar:
b)
d)
f)
h)
j)
(
(
(
(
(
) padrasto
) madrasta
) tio(a)
) namorado(a)
) não sabe/ não respondeu
37. Já sofreu estupro?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
38. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 37) Quem foi
responsável pelo estupro?
a)
c)
e)
g)
i)
l)
n)
(
(
(
(
(
(
(
) pai
) mãe
) irmão(a)
) vizinho(a)
) amigo(a)
) desconhecido(a)
) outros, especificar:
b) (
d) (
f) (
h) (
j) (
m) (
) padrasto
) madrasta
) tio(a)
) namorado(a)
) cliente
) não sabe/ não respondeu
39. Com que idade você começou a fazer programa? (aberta)
40. Com quem fez o primeiro programa?
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) turistas brasileiros
) clientes locais
) amigos
) não sabe/ não respondeu
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) turistas estrangeiros
) vizinhos
) policiais
) outros, especificar:
41. O que lhe motivou a começar a fazer programa? (múltipla
escolha)
a) ( ) dinheiro
b) ( ) diversão
c) ( ) aventura
d) ( ) prazer
e) ( ) não sabe/ não respondeu f) ( ) outros, especificar:
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
243
42. Alguém lhe motivou a começar a fazer programa?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
43. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 42) Quem lhe
motivou a começar a fazer programa? (múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) os pais
) amigos
) conhecidos
) não sabe/ não respondeu
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) irmãos
) namorado(a)
) desconhecidos
) outros, especificar:
44. (Ler até a interrogação) Geralmente, você faz mais programas
com pessoas
a) ( ) do mesmo sexo
c) ( ) ambos os sexos?
b) ( ) de sexo diferente
d) ( ) não sabe/ não respondeu
45. (Ler até a interrogação) Qual a sua orientação sexual? (auto
identificação)
a) ( ) heterossexual
c) ( ) bissexual?
e) ( ) outros, especificar:
b) ( ) homossexual
d) ( ) não sabe/ não respondeu
46. (Caso tenha respondido B ou C na pergunta nº 45) Você se
travesti?
a) ( ) sim
c) ( ) às vezes
b) ( ) não
d) ( ) não sabe/ não respondeu
47. Quais os clientes mais habituais (ler até a interrogação)?
a) ( ) turistas brasileiros
c) ( ) moradores locais ?
e) ( ) outros, especificar:
b) ( ) turistas estrangeiros
d) ( ) não sabe/ não respondeu
244
GLÓRIA D IÓGENES
48. (Caso tenha respondido a opção C na pergunta nº 47) Que
tipo de moradores locais?
a) ( ) vizinhos
b) ( ) amigos
c) ( ) policiais
d) ( ) trabalhadores locais
e) ( ) não sabe/ não respondeu f) ( ) outros, especificar:
49. Tipo (s) de cliente(s) preferido(s)? (aberta)
50. Quantos dias por semana você vai às ruas “fazer programa”?
(aberta)
51. Em que local você faz mais programa? (nome que o local é
conhecido e o bairro) (aberta)
52. Geralmente, qual o valor cobrado por cada programa neste
local? (múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) masturbação, R$____
) sexo vaginal, R$____
) sexo grupal, R$____
) não sabe/ não respondeu
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) sexo oral, R$____
) sexo anal, R$____
) programa completo, R$____
) outros, especificar:
53. Você divide o que ganha com alguém?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
54. (Caso tenha respondido SIM na pergunta 53) Com quem?
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) os pais
) amigos
) conhecidos
) não sabe/ não respondeu
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) irmãos
) namorado(a)
) cafetão ou cafetina
) outros, especificar:
55. Faz sexo em troca de alguma coisa, que não seja dinheiro?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
245
56. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 55) Em troca de
que? (aberta)
57. O que lhe motiva, atualmente, a fazer programa? (múltipla
escolha)
a) ( ) dinheiro
b) ( ) diversão
c) ( ) aventura
d) ( ) prazer
e) ( ) não sabe/ não respondeu f) ( ) outros, especificar:
58. Alguém incentiva, atualmente, você a fazer programa?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
59. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 58) Quem?
(múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
(
(
(
(
) os pais
) amigos
) conhecidos
) não sabe/ não respondeu
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) irmãos
) namorado(a)
) cafetão ou cafetina
) outros, especificar:
60. Você sente prazer quando está fazendo programa?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) a maioria das vezes
d) ( ) quase nunca
e) ( ) não sabe/ não respondeu
61. (Caso tenha respondido NÃO na pergunta nº 60) O que você
sente? (múltipla escolha)
a) ( ) dor
b) ( ) raiva
c) ( ) nojo
d) ( ) nada
e) ( ) não sabe/ não respondeu f) ( ) outros, especificar:
62. Já morou com algum companheiro(a)?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
GLÓRIA D IÓGENES
246
63. Tem filhos?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
64. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 63) Quantos?
(aberta)
65. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 63) Qual a sua
idade na primeira gestação? (aberta)
66. Usa camisinha nos programas?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) a maioria das vezes
d) ( ) quase nunca
e) ( ) não sabe/ não respondeu
67. Você já adquiriu alguma doença sexualmente transmissível?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
68. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 67) Qual ou quais?
(múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
i)
(
(
(
(
(
) sífilis
) gonorréia
) HPV
) trichomonas
) outros, especificar:
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) herpes
) hepatite B
) AIDS
) não sabe/ não respondeu
69. (Caso seja mulher) Já sofreu algum aborto?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
70. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 69) O aborto foi
intencional?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
247
71. Já procurou o apoio de alguma instituição?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
72. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 71) Qual ou quais?
1ª Instituição:
2ª Instituição:
3ª Instituição:
4ª Instituição:
73. O que você buscava nesse apoio da Instituição “x”? (se foi
atendido (a) por mais de uma instituição fazer separadamente)
1ª Instituição:
2ª Instituição:
3ª Instituição:
4ª Instituição:
74. Por qual programa da instituição você foi atendido (a)?
1ª Instituição:
2ª Instituição:
3ª Instituição:
4ª Instituição:
75. Foi atendido (a) no que precisava?
1ª Instituição
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
2ª Instituição
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
3ª Instituição
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
248
GLÓRIA D IÓGENES
4ª Instituição
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
76. Você considera o apoio dessa instituição (ler até a interrogação)
1ª Instituição
a) ( ) ótima
c) ( ) regular
e) ( ) péssimo?
b) ( ) bom
d) ( ) ruim
f) ( ) não sabe/ não respondeu
2ª Instituição
a) ( ) ótima
c) ( ) regular
e) ( ) péssimo?
b) ( ) bom
d) ( ) ruim
f) ( ) não sabe/ não respondeu
3ª Instituição
a) ( ) ótima
c) ( ) regular
e) ( ) péssimo?
b) ( ) bom
d) ( ) ruim
f) ( ) não sabe/ não respondeu
4ª Instituição
a) ( ) ótima
c) ( ) regular
e) ( ) péssimo?
b) ( ) bom
d) ( ) ruim
f) ( ) não sabe/ não respondeu
77. Você já esteve em algum abrigo?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
78. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 77) Qual abrigo?
(aberta)
79. Usa algum tipo de droga?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
249
80. (Caso tenha respondido SIM a pergunta nº 79) Qual ou quais?
(múltipla escolha)
a)
c)
e)
g)
i)
(
(
(
(
(
) álcool
) maconha
) cocaína
) cola
) outros, especificar:
b)
d)
f)
h)
(
(
(
(
) cigarro (tabaco)
) crack
) mesclado
) não sabe/ não respondeu
81. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 79) Como
consegue as drogas ilícitas?
a) ( ) através de um amigo
c) ( ) comprando diretamente
do traficante
b) ( ) através do cliente
d) ( ) não sabe/ não respondeu
e) ( ) outros, especificar:
82. (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 79) Usa drogas
para “fazer programa”?
a) ( ) sim
c) ( ) às vezes
b) ( ) não
d) ( ) não sabe/ não respondeu
83. Como avalia o uso da droga para o programa (ler até a
interrogação)
a) ( ) ajuda
c) ( ) não faz diferença?
b) ( ) atrapalha
d) ( ) não sabe/ não respondeu
84. Você tem ou não vontade de deixar de fazer programa?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
85. Você conhece:
85.1 Conselho Tutelar?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
250
GLÓRIA D IÓGENES
85.2 Dececa – Delegacia de combate à exploração de crianças e
adolescentes?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
85.3 Sentinela?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
85.4 Educadores de rua?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
85.5 (Caso tenha respondido SIM na pergunta nº 85.4) De qual
instituição? (aberta)
86. Você conhece o Estatuto da Criança e do adolescente?
a) ( ) sim
b) ( ) não
c) ( ) não sabe/ não respondeu
87. (Caso tenha respondido SIM na pergunta 86) O que acha do
estatuto (ler até a interrogação)
a) ( ) ótimo
c) ( ) regular
e) ( ) péssimo?
b) ( ) bom
d) ( ) ruim
f) ( ) não sabe/ não respondeu
TABELAS RELATIVAS ÀS INSTITUIÇÕES
71. JÁ PROCUROU O APOIO
DE ALGUMA INSTITUIÇÃO?
TOTAL
SIM
109
33,2%
NÃO
214
65,2%
5
1,5%
328
100,0%
N.S. / N.R.
TOTAL
73. O QUE BUSCAVA NESSE APOIO DA INSTITUIÇÃO “X”?
TOTAL
ACAMP
ABRIGAMENTO
1
20,0%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
2
40,0%
FAMÍLIA
1
20,0%
PROJETO DE VIDA
TOTAL
1
20,0%
328
100,0%
GLÓRIA D IÓGENES
252
TOTAL
BARRACA DA AMIZADE
ABRIGAMENTO
2
25,0%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
2
25,0%
CONHECER A INSTITUIÇÃO
1
12,5%
PROJETO DE VIDA
1
12,5%
OUTROS
1
12,5%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
12,5%
TOTAL
8
100,0%
TOTAL
CASA DA JUVENTUDE
SAIR DAS DROGAS
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
CASA DO MENOR
ABRIGAMENTO
2
28,6%
ALIMENTAÇÃO
1
14,3%
ATIVIDADES LIGADAS A ARTE EDUCAÇ.
1
14,3%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
1
14,3%
ATIVIDADES LIGADAS AO ESPORTE
1
14,3%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
14,3%
TOTAL
7
100,0%
TOTAL
CONSELHO TUTELAR
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
1
25,0%
ENCAMINHAMENTO
2
50,0%
NADA
4
100,0%
TOTAL
4
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
253
TOTAL
CURUMINS
ABRIGAMENTO
2
66,7%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
33,3%
TOTAL
4
100,0%
TOTAL
ESCOLAS
ATIVIDADES LIGADAS A ARTE EDUCAÇ.
1
33,3%
ATIVIDADES LIGAS A EDUCAÇÃO
1
33,3%
OUTROS
1
33,3%
TOTAL
3
100,0%
TOTAL
FUNCI
AABRIGAMENTO
14
31,1%
ALIMENTAÇÃO
1
2,2%
AMIZADES
3
6,7%
ATENDIMENTO/APOIO
5
11,1%
ATIVIDADES LIGADAS A ARTE EDUCAÇ.
2
4,4%
ATIVIDADES LIGAS A EDUCAÇÃO
5
11,1%
CARINHO
2
4,4%
DEIXAR DE FAZER PROGRAMA
1
2,2%
DORMIR
1
2,2%
FAMÍLIA
1
2,2%
PROJETO DE VIDA
2
4,4%
SAIR DAS DROGAS
6
13,3%
OUTROS
1
2,2%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
2,2%
TOTAL
45
100,0%
TOTAL
JARDIM DA ADOLESCÊNCIA
SAIR DAS DROGAS
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
GLÓRIA D IÓGENES
254
TOTAL
MARIA MÃE DA VIDA
ABRIGAMENTO
2
50,0%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
2
50,0%
TOTAL
4
100,0%
TOTAL
ONG BEMFAM
ATENDIMENTO/APOIO
2
66,7%
OUTROS
1
33,3%
TOTAL
3
100,0%
TOTAL
ONG FAZENDA DA ESPERANÇA
SAIR DAS DROGAS
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
ONG MOVIMENTO
ATENDIMENTO/APOIO
1
50,0%
OUTROS
1
50,0%
TOTAL
2
100,0%
TOTAL
PASTORAL DO MENOR
ABRIGAMENTO
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
PEQUENO NAZARENO
PROJETO DE VIDA
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
PREFEITURA
ATENDIMENTO/APOIO
1
33,3%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
1
33,3%
BOLSA FAMÍLIA
1
33,3%
TOTAL
3
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
255
TOTAL
PROJETO FREI TITO
ATENDIMENTO/APOIO
1
50,0%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
1
50,0%
TOTAL
2
100,0%
TOTAL
ROSA DE SHAROM
ABRIGAMENTO
1
50,0%
FAMÍLIA
1
50,0%
TOTAL
2
100,0%
TOTAL
SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO
ATENDIMENTO MÉDICO
3
100,0%
TOTAL
3
100,0%
TOTAL
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
FAZER DENÚNCIA
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
SETOR - PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
ABRIGAMENTO
1
9,1%
ALIMENTAÇÃO
2
18,2%
AMIZADES
2
18,2%
CUMPRIR MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA
3
27,3%
LIBERDADE
1
9,1%
SAIR DAS DROGAS
1
9,1%
OUTROS
1
9,1%
TOTAL
11
100,0%
GLÓRIA D IÓGENES
256
TOTAL
SETDS / GOVERNO DO ESTADO
ABRIGAMENTO
16
26,2%
ALIMENTAÇÃO
12
19,7%
AMIZADES
1
1,6%
ATENDIMENTO/APOIO
4
6,6%
ATIVIDADES LIGADAS A ARTE EDUCAÇ.
5
8,2%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
9
14,8%
ATIVIDADES LIGADAS AO ESPORTE
1
1,6%
CUMPRIR MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA
1
1,6%
FAMÍLIA
1
1,6%
PROJETO DE VIDA
2
3,3%
SAIR DAS DROGAS
3
4,9%
OUTROS
3
4,9%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
3
4,9%
TOTAL
61
100,0%
TOTAL
SMS
ATENDIMENTO MÉDICO
5
71,4%
PRESERVATIVOS
2
28,6%
TOTAL
7
100,0%
TOTAL
SOCIEDADE DE REDENÇÃO
ABRIGAMENTO
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
257
TOTAL
OUTROS
ALIMENTAÇÃO
2
8,7%
AMIZADES
1
4,3%
ATENDIMENTO MÉDICO
2
8,7%
ATENDIMENTO/APOIO
2
8,7%
ATIVIDADES LIGADAS A ARTE-EDUCAÇ.
5
21,7%
ATIVIDADES LIGADAS A EDUCAÇÃO
1
4,3%
ATIVIDADES LIGADAS AO ESPORTE
2
8,7%
PRESERVATIVOS
3
13,0%
SAIR DAS DROGAS
1
4,3%
OUTROS
3
13,0%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
4,3%
TOTAL
1
100,0%
74. POR QUAL PROGRAMA DA INSTITUIÇÃO VOCÊ FOI ATENDIDO?
TOTAL
ACAMP
ACAMP
3
60,0%
JARDIM DA ADOLESCÊNCIA
2
40,0%
TOTAL
5
100,0%
TOTAL
BARRACA DA AMIZADE
BARRACA DA AMIZADE
7
100,0%
TOTAL
7
100,0%
TOTAL
CASA DA JUVENTUDE
CASA DA JUVENTUDE
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
GLÓRIA D IÓGENES
258
TOTAL
CASA DO MENOR
CASA DO MENOR (GOVERN. DE ESTADO)
4
100,0%
TOTAL
4
100,0%
TOTAL
CONSELHO TUTELAR
PMF
4
100,0%
TOTAL
4
100,0%
TOTAL
CURUMINS
SÍTIO
1
33,3%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
2
66,7%
TOTAL
3
100,0%
TOTAL
ESCOLAS
COLÉGIO MARIA DEODATO
(COLÉGIO DE PADRES)
1
33,3%
ONG DA PRÓPRIA COMUNIDADE
1
33,3%
PELO COLÉGIO QUE ME DEU APOIO
1
33,3%
TOTAL
3
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
259
TOTAL
FUNCI
AGENTE JOVEM
1
2,1%
CASA DAS MENINAS
12
25,0%
CASA DOS MENINOS
8
16,7%
CRESCER COM ARTE
1
2,15
ESPAÇO AQUARELA
5
10,4%
FAMÍLIA CIDADÃ
1
2,1%
NAPS
1
2,1%
NUPRED
2
4,2%
PETI
2
4,2%
PONDE DE ENCONTRO
9
18,8%
SEMEAR
1
2,1%
SENTINELA
2
4,2%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
3
6,3%
TOTAL
48
100,0%
TOTAL
JARDIM DA ADOLESCÊNCIA
CASA DO MENOR (GOVERN. DE ESTADO)
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
MARIA MÃE DA VIDA
CASA DO MENOR (GOVERN. DE ESTADO)
4
100,0%
TOTAL
4
100,0%
TOTAL
ONG BEMFAM
BEMFAM
1
25,%%
DST AIDS
1
25,0%
OFICINA DE CABELO
1
25,0%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
25,0%
TOTAL
4
100,0%
GLÓRIA D IÓGENES
260
TOTAL
ONG FAZENDA DA ESPERANÇA
FAZENDA DA ESPERANÇA
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
ONG MOVIMENTO
ONG MOVIMENTO DE MENINOS E
MENINAS DE RUA
1
50,0%
TEATRO JOSÉ DE ALENCAR
(MOVIMENTO)
1
50,0
TOTAL
2
100,0%
TOTAL
PASTORAL DO MENOR
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
PEQUENO NAZARENO
PEQUENO NAZARENO
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
PREFEITURA
PRO-JOVEM
1
33,3%
SER
2
66,7%
TOTAL
3
100,0%
TOTAL
PROJETO FREI TITO
GRUPO DE CROCHÊ
1
50,0%
ONG FREI TITO (SERVILUZ)
1
50,0%
TOTAL
2
100,0%
TOTAL
ROSA DE SHAROM
ROSA DE SHAROM)
2
50,0%
TOTAL
2
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
261
TOTAL
PROJETO FREI TITO
HOSPITAL FROTINHA DE PARANGABA
1
33,3%
HOSPITAL GERAL DE FORTALEZA
1
33,3%
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA
1
33,3%
TOTAL
3
100,0%
TOTAL
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
DELEGACIA
1
100,0%
TOTAL
3
100,0%
TOTAL
SETDS - PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
ALDACI BARBOSA
4
50,0%
LIBERDADE ASSISTIDA
1
12,5%
PATATIVA - FEBEM
1
12,5%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
2
25,0%
TOTAL
8
100,0%
TOTAL
SETDS - GOVERNO DO ESTADO
ABC
3
5,1%
AMARELINHOS
1
1,7%
CASA NOVA
1
1,7%
ESPAÇO VIVA GENTE
22
37,3%
FORA DA RUA DENTRO DA ESCOLA
14
23,7%
MOACIR BEZERRA
10
16,9%
POLO
1
1,7%
PROJETO ABC
1
1,7%
S.O.S.
2
3,4%
S.O.S. CRIANÇA
3
5,1%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
1
1,7%
TOTAL
59
100,0%
GLÓRIA D IÓGENES
262
TOTAL
SMS
ALDACI BARBOSA
4
50,0%
LIBERDADE ASSISTIDA
1
12,5%
PATATIVA - FEBEM
1
12,5%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
2
25,0%
TOTAL
8
100,0%
TOTAL
SOCIEDADE DE REDENÇÃO
SOCIEDADE DE REDENÇÃO
1
100,0%
TOTAL
1
100,0%
TOTAL
OUTROS
ADRAC
1
4,8%
ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES
1
4,8%
CASA DO MARACATU
1
4,8%
COMER
1
4,8%
GAPE
1
4,8%
NEREIDE (BOM JARDIM)
1
4,8%
NEREIDE (ONG)
1
4,8%
ONG PROJETO NEREIDE
1
4,8%
ORIENTAÇÃO SEXUAL
1
4,8%
POSTO DE SAÚDE
2
9,5%
PROGRAMA DO BAIRRO
1
4,8%
PROJETO DO BAIRRO
1
4,8%
PROJETO PEQUENO MUNDO
1
4,8%
QUADRILHA JUNINA (VARJOTA)
1
4,8%
TEATRO DE PORTAS ABERTAS
1
4,8%
NÃO SABE/NÃO RESPONDEU
5
23,8%
TOTAL
21
100,0%
OS SETE SENTIMENTOS CAPITAIS
75. FOI ATENDIDO NO QUE
PRECISAVA
SIM
NÃO
263
N.S / N.R.
TOTAL
ACAMP
3
2,1%
2
5,4%
0
0,0%
5
2,7%
CASA DA JUVENTUDE
0
0,0%
1
2,7%
0
0,0%
1
0,5%
CASA DO MENOR
3
2,1%
1
2,7%
0
0,0%
4
2,2%
CONSELHO TUTELAR
1
0,7%
0
0,0%
2
66,7%
3
1,6%
CURUMINS
1
0,7%
1
2,7%
0
0,0%
2
1,1%
ESCOLAS
2
1,4%
1
2,7%
0
0,0%
3
1,6%
FUNCI
36
25,2%
5
13,5%
0
0,0%
41
22,4%
JARDIM DA ADOLESCÊNCIA
1
0,7%
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
MARIA MÃE DA VIDA
4
2,8%
0
0,0%
0
0,0%
4
2,2%
ONG BARRACA DA AMIZADE
6
4,2%
1
2,7%
0
0,0%
7
3,8%
ONG BEMFAM
3
2,1%
0
0,0%
0
0,0%
3
1,6%
ONG FAZ. DA ESPERANÇA
1
0,7%
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
ONG MOVIMENTO
2
1,4%
0
0,0%
0
0,0%
2
1,1%
PASTORAL DO MENOR
0
0,0%
0
0,0%
1
33,3%
1
0,5%
PEQUENO NAZARENO
1
0,7%
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
PREFEITURA
1
0,7%
2
5,4%
0
0,0%
3
1,6%
PROJETO FREI TITO
2
1,4%
0
0,0%
0
0,0%
2
1,1%
ROSA DE SHARON
2
1,4%
0
0,0%
0
0,0%
2
1,1%
SECRETARIA DE SAÚDE
DO ESTADO
1
0,7%
0
0,0%
0
0,0%
1
0,5%
SETDS - PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE
5
3,5%
2
5,4%
0
0,0%
SETDS - GOVERNO DO
ESTADO
44
30,8%
17
45,9%
0
0,0%
7
3,8%
61
33,3%
SMS
7
4,9%
1
2,7%
0
0,0%
8
4,4%
OUTROS
17
11,9%
3
8,1%
0
0,0%
20
10,9%
TOTAL
143
100,0%
37
100,0%
3
100,0%
183
100,0%