Resenhas das obras do vestibular da UEL
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Resenhas das obras do vestibular da UEL
Celso Leopoldo Pagnan Doutor em literaturas de língua portuguesa Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEL 2017/2018 Londrina, 2016 1a edição 1 Direção-Geral Virgílio Tomasetti Jr. Direção administrativo-financeira Ubiracy D'Andrea Coordenação de novos produtos Cássia Gimenes Barcaro Coordenação Editorial Joaquim Luís de Almeida Supevisão de Editoração Walternei Pelisson Machado Organização e Revisão Celso Leopoldo Pagnan Capa João Paulo Fidellis da Silva Diagramação Glauber Damasceno 808.8 P156r Pagnan, Celso Leopoldo. Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEL 2017-2018. Celso Leopoldo Pagnan. – Londrina : Colégio Maxi, 2016. – 85p. 1. Resenhas – vestibular. 2. Literatura. 3. UEL – vestibular. I. Colégio Maxi. Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Cleberlei Assumpção – CRB 1696/9 Copyright © 2016 – Todos os direitos de publicação reservados. Nos casos em que não foi possível contatar ou finalizar negociação com os detentores de direitos autorais sobre materiais utilizados como subsídio na produção desta obra, a Sociedade Educacional Maxi Ltda. coloca-se à disposição para os devidos acertos, nos termos da Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e demais dispositivos legais pertinentes. Sociedade Educacional Maxi Ltda. Av. Duque de Caxias, 1589 – Jardim Petrópolis CEP 86015-000 – Londrina – Paraná www.colegiomaxi.com.br 2 Apresentação Vestibulando(a)! Estas são as resenhas de leituras obrigatórias destinadas especificamente, e com antecedência, aos candidatos a cursos de graduação da UEL – Universidade Estadual de Londrina (PR), nos concursos vestibulares de 2017 e 2018. Uma lista com 10 obras literárias é sugerida pela Universidade a cada dois anos. A atual compõe-se de 3 obras remanescentes da lista anterior e 7 novas: Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano O pagador de promessas, de Dias Gomes Toda poesia, de Paulo Leminski Vozes anoitecidas, de Mia Couto Uma menina está perdida no seu século à procura do seu pai, de Gonçalo Tavares O Ateneu, de Raul Pompéia Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade A hora da estrela, de Clarice Lispector Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon Topless, de Martha Medeiros As resenhas foram feitas pelo prof. Celso Leopoldo Pagnan, com a intenção de oferecer a você informações e análises indispensáveis ao seu preparo imediato para o vestibular, sem a pretensão de substituir a leitura do texto literário integral. Ora, detalhes importantes como ambientação da obra, estilo do autor, caracterização dos personagens, ritmo da narrativa e a própria “mensagem” são objetos da tratativa desta resenha, mas podem ficar incompletos para o leitor apenas de uma resenha, por mais fiel que ela tente ser. Daí, nossa recomendação de que estas resenhas sirvam de preparação ou de complementação à leitura do texto integral das respectivas obras, pois nossa intenção é tanto abrir caminhos a quem vai lê-las quanto preencher eventuais lacunas a quem as leu. Seja a leitura destas resenhas uma introdução e, ao mesmo tempo, um complemento ao seu estudo da literatura luso-brasileira no que tange às exigências do vestibular de 2017 e 2018 na UEL. Bom estudo! 3 Sumário Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano .................. 5 O pagador de promessas, de Dias Gomes ......................... 13 Toda poesia, de Paulo Leminski ............................................. 19 Vozes anoitecidas, de Mia Couto ........................................... 27 Uma menina está perdida no seu século à procura do seu pai, de Gonçalo Tavares ............................................... 35 O Ateneu, de Raul Pompéia .................................................... 41 Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade .................. 49 A hora da estrela, de Clarice Lispector ................................ 57 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon ....... 65 Topless, de Martha Medeiros ........................................ 77 Referências bibliográficas ................................. 85 4 Eurico, o presbítero Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano, é um romance histórico, bem ao gosto romântico. Isto porque o conceito de história, tal e qual conhecemos hoje, o de uma progressão seja teleológica (com a perspectiva de um fim da história), seja a evolucionista (a que considera um contínuo processo de melhoramento em vários aspectos da vida), seja ainda a dialética (a que revela um processo entre idas e vindas, sem que se chegue a um determinado fim sintético). No caso específico, a visão romântica era a que buscava explicar as origens de algo para compreender o momento presente e projetar a vida futura. Neste sentido, Alexandre Herculano (1810-1877) situa o enredo de seu romance no século VIII, quando houve a invasão muçulmana à Península Ibérica, chamada pelo autor toda ela de Espanha (ou Hispânia), afinal Portugal ainda não existia. de Alexandre Herculano A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos germânicas que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da civilização romana soubera como os godos ajuntar esses fragmentos de púrpura e ouro, para se compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo expulsara da Espanha quase que os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos francos, que em suas correrias assolavam as províncias visigóticas d’além dos Pireneus, acabara com a espécie de monarquia que os suevos tinham instituído na Galécia e expirara em Toletum depois de ter estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascônia, abrangiam grande porção da antiga Gália narbonense. (2014, p. 21) Para poder se entender esse momento é preciso retornar ainda mais no tempo e dizer que os romanos, no seu intento expansionista, chegaram à Península no século II a.C., subjugando os lusos ao seu domínio. Os romanos não apenas conquistavam um território como também impunham sua cultura, seu modo de vida, sua língua (o latim). Permaneceram dominando a região até o século V, quando o Império Romano do Ocidente começou a ruir, ante as invasões dos chamados povos bárbaros (os povos do norte da Europa, os suevos, os vândalos e os godos), que conquistaram boa parte dos territórios dominados pelos romanos. Leovigildo (572-586), no caso, é uma referência a um dos reis godos, governantes da região de Toledo, que conseguiu impor-se como rei no século VI. No século VIII, porém, mais precisamente no ano de 711 d. C., houve a invasão muçulmana. Em maior número, e com um exército mais bem preparado para a guerra, os árabes conquistaram palmo a palmo toda a península, deixando aos godos apenas a região norte, isto é, parte da Galícia e das Astúrias, conforme se pode observar no mapa abaixo, que mostra a dominação muçulmana na região. Esse povos, porém, tinham outra mentalidade. O objetivo maior era o de conquistar, sem necessariamente impor sua cultura ao povo conquistado. Por isso mesmo, a cultura romana permaneceu bastante influente na região, fosse a língua latina, fosse a religião cristã. Durante os cerca de duzentos anos que esses povos ficaram na região foram se alternando no domínio, até que os godos, especialmente os visigodos, se estabeleceram no poder. Desse modo, foram aos poucos criando o que viria a ser a aristocracia da Espanha, a nobreza, que, ao lado da Igreja cristã, sobretudo a católica se constituiu na liderança de todos os povos que habitavam a Península. Os godos, a princípio eram arianos, isto é, pertencentes a uma seita que pregava a separação entre a figura de Jesus e de Deus. Para os arianos, não formariam, com o Espírito Santo, uma trindade. Jesus seria uma pessoa comum, embora o predileto de Deus, mas não seria deus. Aos poucos, porém, aderiram ao culto romano e se converteram ao catolicismo, ao menos parte dos godos. http://raffaelbarbosa.blogspot.com.br/2009/07/sobre-presenca-arabena-iberia-medieval.html É exatamente desse processo de conquista que trata Eurico, o presbítero. É verdade que o autor situa a ação no ano 748. Seu objetivo, mais que a precisão histórica, é revelar esse momento que se tornou, mais tarde, crucial para a formação dos estados modernos de Portugal e da Espanha. No romance, o narrador faz essa contextualização, ainda que sempre com alguma liberdade poética, alguma liberdade de criação: 5 Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano Outro dado importante a relatar é que os árabes também não procuraram impor totalmente sua cultura aos povos conquistados. Eram mais tolerantes em relação a isso. Queriam mesmo era a conquista dos territórios e a dominação política. Graças a isso, a cultura romana continuou bastante presente e base das relações sociais do ibéricos. Não por acaso, a região manteve-se firme na fé cristã e o latim, em contato com outros idiomas, foi aos poucos se modificando até se transformar no galego-português (língua das cantigas, dos primeiros textos em língua local) e depois no português e no espanhol (galego, castelhano, catalão, conforme a região). Alexandre Herculano era também historiador, tendo escrito alguns livros sobre a história de Portugal. Como romancista, interessou-se por momentos simbólicos da formação de Portugal, e seguiu um determinado estilo legado por romancistas como Victor Hugo e Walter Scott. Por isso mesmo, este romance sobre qual estamos tratando, apresenta, além da narração do enredo, notas de rodapé, como meio de explicar alguma decisão narrativa, explicar algum termo histórico. No prefácio, faz considerações sobre o momento histórico de que trata. Nesse prefácio, ele próprio ficou em dúvida sobre como classificar o gênero literário escolhido e também revela de modo mais explícito seu intento que é o de determinar o início da formação portucalense. A Espanha romano-germânica transformou-se na Espanha rigorosamente moderna no terrível caminho da conquista árabe. A obra literária (novela ou poema – verso ou prosa – que importa?) relativa a essa transição deve combinar as duas fórmulas – indicar as duas extremidades a que se prende; fazer sentir que o descendente de Teodorico ou de Leovigildo será o ascendente do Cid ou do Lidador, que entre o homem e coisa, começa a converter-se em altivo e irrequieto burguês. (2014, p. 17) Essa Espanha romano-germânica são exatamente os godos, romanizados e cristianizados e que, unida, em prol de um ideal comum, a expulsão dos invasores, vai aos poucos se recuperando até a construção dos estados modernos. É bem verdade que o exército árabe acabou sendo formado não apenas pelos próprios árabes ou muçulmanos, mas também se constituiu de traidores, fossem os próprios cristãos de outras igrejas ou seitas (denominados de moçárabes), fossem os berberes. No caso dos cristãos, isso de fato aconteceu. No romance, essa traição é representada por Juliano, conde de Septum, e Opas, bispo de Hispalis. Ou seja, ao invés de lutarem unidos pela Espanha e pelo cristianismo, deixaram-se levar por vantagens que obteriam com a subserviência aos novos conquistadores. O romance tem como foco também o frustrado relacionamento amoroso entre Eurico e Hemengarda. Esta era filha de Fávila e irmã de Pelágio, que irá desempenhar grande papel no romance. Embora se amassem, os dois jovens são impedidos de se relacionarem, pois cada um pertencia a uma crença religiosa diferente, o que era proibido pelas leis visigodas. No caso, o casamento entre os godos arianos e os cristãos católicos era proibido. Hemengarda prefere a obediência ao pai a ter de enfrentar tudo por amor. Por isso, Eurico se afasta de todos e se ordena padre, sendo elevado a pároco do presbitério da Carteia no sul da Espanha, no estreito de Gibraltar, parte do mar mediterrâneo que separa os continentes africano e europeu, e que acabou sendo porta de entrada para a invasão muçulmana. Uma destas revoluções morais que as grandes crises produzem no espírito humano se operou então no moço Eurico. Educado na crença viva daqueles tempos; naturalmente religioso porque poeta, foi procurar abrigo e consolações aos pés d’Aquele cujos braços estão sempre abertos para receber o desgraçado que neles vai buscar o derradeiro refúgio. Ao cabo das grandezas cortesãs o pobre gardingo encontrara a morte do espírito, o desengano do mundo. A cabo da estreita senda da cruz acharia ele, porventura, a vida e o repouso íntimos? Era este problema, no qual se resumia todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor do pobre presbitério da velha cidade do Calpe. (2014, p. 27-28) Em tempo, gardingo seria um antigo nobre dos visigodos. Eurico ali permaneceria até a morte caso não houvesse sido conclamado pelo Duque Teodomiro, governador do condado de Córdoba, uma das primeiras regiões a serem conquistadas pelos árabes. A princípio, Eurico, por meio de cartas trocadas com o Duque, afirma não se importar com mais nada, a não ser o cuidado com seus fiéis. Sabe, porém, que o fim é próximo, sabe que a opressão tolherá a liberdade. A bem da verdade, por seu presbitério ser no sul da Espanha, próximo do estreito de Gibraltar, já tinha visto a chegada dos árabes e antevisto o que se passaria. Contam-se coisas incríveis desses povos que assolam a África, chamados os árabes, e que, em nome de uma crença nova, pretendem apagar na terra os vestígios da cruz. Quem sabe se aos árabes foi confiado o castigo desta nação corrupta? Já as nossas praias foram visitadas por eles, e para os repelir cumpriu que desembainhasse a espada o ilustre Teodomiro, o último guerreiro, talvez, que mereça o nome de neto dos godos. Terra em que nasci, se o teu dia de morrer é chegado, eu morrerei contigo. Na procela que se alevanta de África deixarei submergir o meu débil esquife, sem que a esses gemidos que ouvi se vão ajuntar os meus. Que me importa a vida ou a morte, se o padecer é eterno? (2014, p. 56) Essa fuga de Eurico para um local ermo, bem como a ideia mesmo de se ordenar padre é uma solução tipicamente romântica, de busca da expiação da dor em contato com a natureza ou mesmo em aproximação com as dores de Cristo. Ou por outra, o herói romântico percebe o mundo corrompido, que lhe veda a felicidade, no caso casar-se com Hemengarda, aí tem de isolar-se e buscar a expiação de sua dor em meio àqueles que sofrem por outros motivos. 6 Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano De sua parte, Teodomiro reúne todo o exército que consegue. Porém, sabe que teria pouca chance de resistir. Vai até Crissus pedir apoio ao bispo Opas, mas, depois de certo tempo, percebe que isso não seria possível. A verdade é que Opas tenta dissuadi-lo a lutar com Tárique, uma vez que tinha se unido, juntamente com Juliano, ao invasor. A verdade, porém, é que nem o Cavaleiro Negro, nem outro combatente poderia vencer em definitivo os invasores, isto porque muitos godos se aliaram aos árabes. Dessa feita, os que permaneciam fieis ao reino foram, pouco a pouco, perdendo espaço e batalhas sucessivas até que sucedeu o esperado: a morte do último rei godo, a morte de Roderico (ou Rodrigo). Poucos dias haviam passado depois que o duque de Córduba recebera a última carta do infeliz Eurico. A frente das suas tiufadias ele se encaminhara para Híspalís, seguindo as margens do Bétis. Ao chegar à antiga Rômula, o bispo Opas recebeu-o com demonstrações de alegria tais, que as suspeitas de Teodomiro, suscitadas, malgrado seu, pelas revelações do presbítero, quase se desvaneceram. Na linguagem do sacerdote parecia reverberar-se indignação profunda contra o conde de Septum e contra os demais godos que tentavam unidos com os bárbaros, assolar a terra natal. (2014, p. 71) Roderico, porém, estava aí! mas retalhado de golpes; mas sem vida! Já não seria debaixo de seus pés que o trono da Espanha se desfaria aos golpes do machado dos árabes. Um cetro sem dono em Toletum e mais um cadáver junto às margens do Críssus, eis o que restava do último rei dos godos! Com a sua morte fenecera ao redor dele a esperança, e com a esperança dera em terra o esforço dos ânimos mais robustos. (2014, p. 92) Apesar dos esforços de alguns combatentes e do próprio Cavaleiro Negro o fim estava próximo. Com efeito, a narrativa de Herculano leva o leitor a experimentar o desalento do período que marca o fim de um reino, mas, ao mesmo tempo, a preparação do que viria a ser os reinos modernos tanto de Portugal quanto da Espanha, quando os últimos, sob a liderança de Pelágio, entre outros de família nobre, conseguiram estabelecer-se nas Astúrias, no norte da Espanha. E daí, durante os séculos seguintes (até o XII), ir expulsando os árabes da Península. Na primeira batalha, fica clara a traição de Juliano; e ele e Teodomiro têm um encontro nada amistoso, como se poderia esperar: Os dois cavaleiros godos acometeram-se com toda a fúria de rancor entranhável: as espadas, encontrando-se no ar, faiscaram como o ferro abrasado na incude: mas a de Teodomiro fora vibrada por braço mais robusto, e, posto que o golpe descesse amortecido, ainda entrou profundamente no escudo que o seu adversário levava erguido sobre a cabeça. Entretanto Juliano, revolvendo ligeiro a espada, rompeu a couraça do duque de Córduba e feriu-o levemente no lado. (2014, p. 84) Mesmo Teodomiro teve de render-se ao invasor. Não que tenha se aliado aos invasores, mas, como meio de salvar o pouco que lhe restara, fez um pacto de não mais agressão, restando a Pelágio o comando do último foco da resistência. Antes disso houve um Importante acontecimento para o desenrolar do enredo. Inspirado em fato histórico é o suicídio das freiras do mosteiro da Virgem Dolorosa, localizada na região da Galícia, norte da Lusitânia, onde hoje fica Santiago de Compostela. Esse suicídio se deu como meio de as freiras protegerem sua honra ante a iminente invasão dos árabes ao mosteiro. Dispersos, alguns cavaleiros, que levavam consigo Hemengarda, até o norte, pararam no mosteiro para descansarem. Outros tantos nobres também viram no mosteiro um local para se protegerem do ataque dos inimigos. Porém, o intento de um e de outro foi malogrado. Da batalha particular entre ambos, Teodomiro a princípio se sai melhor, mas não demora muito para que os aliados de Juliano interfiram no combate e avancem sobre o comandante godo. É aí que surge um salvador, um cavaleiro todo vestido de negro. Após as últimas cartas trocadas com o conde de Córduba, Eurico já tinha traçado seu destino. Sabia que estava morto para o mundo, quis apenas buscar a morte efetiva do corpo, por isso traveste-se de um Cavaleiro com vestes negras, despertando em batalha as mais diversas suspeitas de quem seria ou do que de fato seria. Se homem, se fantasma, se anjo ou se demônio. O fato é que consegue se destacar nas diversas batalhas. Nesta primeira, salva o amigo e desperta a imaginação de todos. Naquela noite muitos nobres senhores de terras tinham chegado ao mosteiro, vindos da banda de Légio. Um numeroso exército de árabes aparecera subitamente na véspera junto aos muros da cidade, que logo fora acometida pelos pagãos. Era o que sabiam. Fugitivos desde o aparecimento dos inimigos, ao anoitecer haviam enxergado para aquela parte um clarão grande e duradouro. Se eram as fogueiras dos arraiais árabes, se o incêndio de Légio, não o podiam resolver: só, sim, que seria impossível resistir por largo tempo cidade tão mal defendida a tamanha cópia de infiéis, que não tardariam a derramar-se para o lado do mosteiro, prosseguindo nas suas devastadoras conquistas pela Galécia e pela Tarraconense. (2014, p. 104) Os godos, espantados, perguntavam uns aos outros quem seria aquele temeroso guerreiro; mas entre eles ninguém havia que pudesse dizê-lo. Se combatesse pelos muçulmanos, crê-lo-iam o demônio da assolação; mas, pelejando pela cruz, dir-se-ia que era o arcanjo das batalhas mandado por Deus para salvar Teodomiro e, com ele, os esquadrões da Bética. (2014, p. 86) 7 Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano E, com efeito, após um pequeno período dado pelos árabes para que todos se entregassem, iniciaram a invasão. A monja, porém, para evitar que as freiras pudessem servir de escravas sexuais aos árabes, se entregam ao sacrifício. Depois de subirem a encosta, o cavaleiro negro e os que o seguiam viram alongar-se diante deles uma chapada plana, em cujo topo a serra se alteava de novo, com os seus mil acidentes de cordilheiras cortadas, de algares profundos, de gargantas selvosas, ao lado das quais os picos agudos se atiravam para o ar ou pendiam sobre os abismos e torrentes. A natureza, mais rude naquelas paragens, tinha um aspecto soturno, vista assim, ao perto e à luz da lua: era como um oceano tempestuoso, onde todas as gradações da morte-cor se confundiam e misturavam, desde a brancura desbotada e pálida do rochedo até a pretidão fechada dos pinheiros retintos nas sombras da noite. (2014, p. 157) Com efeito, há diversos momentos no romance em que se pode observar essa simbologia entre claro e escuro, entre esperança de vida e iminência da morte, representado pela descrição da natureza e também por objetos em geral. A hora de amanhecer aproximava-se: o crepúsculo matutino alumiava frouxamente as margens de rio mal-assombrado, que corria turvo e caudal com as torrentes do inverno. Apertado entre ribas fragosas e escarpadas, sentia-se mugir ao longe com incessante ruído. (2014, p. 161) Com o apoio dos outros cavaleiros, que seguem em galope levando Hemengarda, Eurico vai armando emboscadas contra os que o perseguiam. Sabe, porém, que só conseguirá a salvação nas terras dominadas por Pelágio. E o capítulo que marca a chegada dos cavaleiros a Covadonga é intitulado de “A aurora da redenção”, como complemento a essa simbologia entre claro e escuro. Já nos domínios de Pelágio, Eurico e Hemengarda têm uma conversa reveladora sobre a possibilidade do relacionamento entre os dois. A moça, com a morte do pai e com a demonstração de bravura e lealdade a Pelágio por parte Eurico, acredita que não haveria mais impedimentos para que ambos pudessem se casar. Ela ainda não sabia que Eurico tinha feito votos de castidade por conta do sacerdócio. Diante desse novo impedimento, não há escapatória para a felicidade do casal. E cada um se entrega a seu próprio destino, individualizado, e que, simbolicamente também, indica as divisões da Espanha nesse momento, e que ainda dependia de ações pessoais para se fortalecer. Trata-se de uma conversa carregada de sofrimento mútuo, de tentativa de entender o que se passara e o que se passava. Um momento dramático, tipicamente romântico. – Que tens tu com o presbítero de Carteia; com esse ilustre sacerdote, cujos hinos sacros reboavam ainda há pouco pelos templos da Espanha, e a quem, decerto, o ferro ímpio dos árabes não respeitou? A tua glória é outra e mais bela; a glória de seres o vencedor dos vencedores da cruz. A sua era santa e pacífica. Deus chamou-o para si, e tu vives para ser meu. Ninguém existe hoje no mundo que possa embaraçá-lo. Esquece o passado; esquece-o por amor de mim! Em nota de rodapé, Herculano faz uma explicação para o episódio. Tal explicação, como de resto outras tantas, serve como meio de conferir veracidade ao relato, como meio de tornar a narrativa, ainda que idealizada, próxima da realidade. Diz o autor: O fato narrado neste capítulo é histórico. O lugar da cena e a época é que são inventados. Foram as monjas de Nossa Senhora do Vale, junto de Ecija, que, em tempos posteriores, praticaram este feito heróico, para se esquivarem à sensualidade brutal dos árabes. Parece que o procedimento das freiras de Ecija foi imitado em muitas outras partes. Consulte-se Berganza, Antiguidades de España, t. I, p. 139, e Morales, Cron. Gener., t. III, p. 105. (2014, p. 118) Quando chegava o momento do sacrifício de Hemengarda, esta acabou capturada pelos soldados de Abdulaziz, um dos líderes árabes. Ele a toma como sua possível “esposa” e a leva para sua tenda. Ordena a ela que se curve para que isso possa poupar outros de sua ira, inclusive o irmão de Hemengarda, Pelágio. Ela, porém, permanece irresoluta ante as ameaças e diz preferir a morte a ter de servir a um invasor de sua pátria: Mas Hermengarda só vira afronta e opróbrio nas palavras do amir, e o ódio a este homem, cuja natural fereza e orgulho o amor convertera em brandura e, talvez, em submissão, tornou-se ainda maior ao ouvi-lo. (2014, p. 140) Em paralelo a esses acontecimentos, o próprio Pelágio e demais cavaleiros, bem como Eurico estão próximos de Cavadonga, nas Astúrias, onde poderiam se reorganizar. Porém, Pelágio sabe, por intermédio de alguns cavaleiros, que sua irmã estava sob os domínios de Abdulaziz. Pensa ele próprio em partir para salvar Hemengarda, mas é impedido por Eurico, que estava com eles. Oferece-se no lugar para, com poucos cavaleiros, resgatar a mulher que ele ainda amava. Fingindo-se de serviçal, Eurico consegue entrar no acampamento do inimigo e, mais, aproximarse da tenda de Abdulaziz. Com rapidez e agilidade, consegue ferir o inimigo e tomar Hemengarda em seus braços e iniciar uma fuga por entre as florestas até retornar a Covadonga na região das Astúrias. É um dos momentos mais empolgantes e simbólicos do livro, uma vez que alterna a esperança da liberdade e a certeza da morte iminente, representado ora pelo clarão da paisagem, ora pela paisagem mais soturna, fechada: 8 Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano O cavaleiro sorriu de novo dolorosamente e disselhe: Nas mil tradições diversas, quer antigas, quer inventadas em tempos mais modernos, sobre o modo como se constituiu a monarquia das Astúrias procurei cingir-me, ao menos no desenho geral, ao que passa por mais proximamente histórico. Todavia, cumpre advertir que Pelágio viveu, segundo todas as probabilidades em tempos um pouco posteriores à conquista árabe, e que a morte de Opas e de Juliano na batalha de Cangas de Onis, sucesso narrado por alguns escritores, tem sobrado caracteres de fabulosa. A minha intenção, porém, foi, como já notei, pintar os homens da época de transição, digamos assim, dos tempos heróicos da história moderna para o período da cavalaria, brilhante ainda, mas já de dimensões ordinárias. O meu herói do Críssus é como o último semideus que combate na terra; os foragidos de Covadonga são os primeiros cavaleiros da longa, patriótica e tenaz cruzada da Península contra os sarracenos. Deste modo, sendo hoje dificultoso separar, em relação àquelas eras, o histórico do fabuloso, aproveitei de um e de outro o que me pareceu mais apropriado ao meu fim. (2014, p. 200-201) Para finalizar, digamos um pouco mais sobre o autor. Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu em Lisboa no ano de 1810. Sua vida foi marcada por lutas políticas e pela reconstrução literária da história de Portugal. Um dos mais importantes romancistas do século XIX, suas obras são de cunho romântico e vão desde a poesia ao drama e ao romance. É um dos grandes escritores de sua geração, desenvolvendo o tema romântico por excelência: a incompatibilidade do indivíduo com o meio social. Devido ao seu envolvimento na Revolta do 4 de Infantaria, emigrou para Inglaterra em 1831. No ano seguinte, tendo retornado a Portugal, Herculano começa a trabalhar na Biblioteca Pública do Porto, como segundo bibliotecário. Em 1839, é nomeado diretor das bibliotecas reais das Necessidades e da Ajuda. No ano de 1853, o romancista funda o Partido Progressista Histórico. Quatro anos depois, manifesta sua discordância em relação à Concordata de Roma, que restringia os direitos do padroado português na Índia. Em 1859, adquire a quinta de Vale de Lobos, perto de Santarém, onde, embora retirado, continua a receber correspondência e muitas personalidades ligadas à cultura e ao poder. No ano seguinte, participa na redação do primeiro Código Civil português. Em 1866, casa-se com uma senhora por quem era apaixonado desde a juventude. Morre em 1877, rodeado de enorme prestígio, traduzido numa manifestação nacional de luto organizada pelo escritor João de Deus. Além de Eurico, o presbítero escreveu: A Voz do Profeta (prosa poética) – 1836 Harpa do Crente – 1837 O Bobo – 1843 – Que tenho eu com o presbítero de Carteia?!... Hermengarda, lembras-te do seu nome? Os lábios da donzela fizeram-se brancos ao ouvir esta pergunta: um pensamento monstruoso e incrível lhe passara pelo espírito. Com voz afogada e quase imperceptível replicou: – Era... era o teu, Eurico!... Mas que pode haver comum entre o guerreiro e o sacerdote? Que importa um nome... uma palavra?... que... O cavaleiro pôs-se em pé e, deixando descair os braços e pender o rosto sobre o peito, murmurou: – Há comum, que o guerreiro e presbítero são um desgraçado só!... Importa, que esse desgraçado é neste momento um sacerdote sacrílego. O pastor de Cartéia... – Oh, não acabes! – interrompeu Hermengarda, com indizível aflição. – Era Eurico, o gardingo! (2014, p. 195) O romance finaliza com a loucura de Hemengarda, com a morte de Eurico, que se atira de modo suicida na batalha final contra os árabes, com a conquista quase plena de toda a Península e com a semente plantada nos que permaneceram fiéis à fé cristã e à defesa de sua pátria. E foi essa fé que possibilitou o início da expulsão dos árabes, levando a formação dos primeiros reinos que, desmembrados, viriam a se constituir em Portugal e na Espanha. Eram os reinos de Leão, Castela, Navarra e Aragão, conforme se pode observar no mapa a seguir. Fonte: http://raffaelbarbosa.blogspot.com.br/2009/07/sobre-presencaarabe-na-iberia-medieval.html O romance não aborda isso, apenas sugere, posto que termina com Pelágio mantendo-se firme na liderança do castelo nas Astúrias. Assim, apenas a título de curiosidade, a reconquista se inicia no século IX e passa por diversos momentos até a expulsão completa dos muçulmanos da península, ou particularmente de Portugal, no século XII, quando finalmente é instituído o reinado portucalense e se inicia a dinastia afonsina, com o rei D. Afonso Henriques. A última nota de rodapé do livro é indicativo desses acontecimentos futuros: 9 Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dois templos? Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre. Por que vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a Cruz ensanguentada do Calvário; quando a mão inexorável do sacerdócio soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da igreja; quando o primeiro passo além do limiar desta será a perdição eterna? Mas, ai de mim! essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do espaço está estampada unicamente na minha alma e reflete-se no céu do oriente através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes queimou as lágrimas. Lendas e Narrativas I e II –1839 e 1844 O Pároco da Aldeia – 1844 O Monge de Cister – 1848 História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal – 1850 História de Portugal I, II, III e IV – 1846 e 1853 Herculano fez parte da primeira fase do Romantismo português, oficialmente iniciado com o poema Camões (1825), de Almeida Garrett. Essa primeira geração está ligada à ideologia liberal, à visão burguesa, bem como à ideia de regenerar a pátria, os valores patrióticos. Por isso, o autor passou a escrever romances históricos. Do ponto de vista estético, Herculano, em sua tentativa de resgate histórico, se perde um pouco, posto que seu romance não apresenta a mesma força dramática que os de outros autores, como Camilo Castelo Branco. Em outros termos, a leitura pode não fluir como seria de esperar de um livro com tantos componentes épicos, pelas batalhas, pelo suspense ou pela história de amor. Claro que há momentos sublimes, como a fuga de Hemengarda das mãos de Abdulaziz, ou mesmo o momento de revelação mútua entre Hemengarda e Eurico. Porém, no geral, trata-se de uma leitura pesada e pouco fluente. HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. Edição crítica, dirigida e prefaciada por Vitorino Nemésio. 41ª ed. Lisboa: Livraria Bertrand, [s.d.], p. 42-43. EXERCÍCIOS 1.(Vunesp) Eurico, o Presbítero Os raios derradeiros do sol desapareceram: o clarão avermelhado da tarde vai quase vencido pelo grande vulto da noite, que se alevanta do lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e luminosa surge a meus olhos, ó Hermengarda, semelhante à aparição do anjo da esperança nas trevas do condenado. E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe a fronte a coroa das virgens; sobe-lhe ao rosto a vermelhidão do pudor; o amículo alvíssimo da inocência, flutuando-lhe em volta dos membros, escondelhe as formas divinas, fazendo-as, porventura, suspeitar menos belas que a realidade. É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade: mas, em sonhos ou desenhada no vapor do crepúsculo, tu não és para mim mais do que uma imagem celestial; uma recordação indecifrável; um consolo e ao mesmo tempo um martírio. Não eras tu emanação e reflexo do céu? Por que não ousaste, pois, volver os olhos para o fundo abismo do meu amor? Verias que esse amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é imenso, como o ideal, que ele compreende; eterno, como o seu nome, que nunca perece. Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! Adorava-te só no santuário do meu coração, enquanto precisava de ajoelhar 10 O Missionário Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciarse do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular e conter a ação determinante da hereditariedade psicofisiológica sobre o cérebro do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera? No momento dado, impotente o freio moral para conter a rebelião dos apetites, o instinto mais forte, o menos nobre, assenhorearase daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de S. Sulpício. Em outras circunstâncias, colocado em meio diverso, talvez que padre Antônio de Morais viesse a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral, sem educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de costumes, sem a coação da opinião pública, sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente constituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir. Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas ardentes sensualidades dum amor físico, porque a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos, tentação demoníaca, das suas formas esculturais, assombro dos sertões de Guaranatuba. 4. (UEL) Leia o trecho a seguir. Como um rochedo pendurado sobre as ribanceiras do mar, que, estalando, rola pelos despenhadeiros e abrindo um abismo se atufa nas águas, assim o cavaleiro desconhecido, rompendo por entre os godos, precipitou-se para onde mais cerrado em redor de Teodomiro e Muguite fervia o pelejar. (HERCULANO, A. Eurico, o presbítero. 2.ed. São Paulo: Martin Claret, 2014. p.85.) SOUSA, Inglês de. O missionário. São Paulo: Ática, 1987, p. 198. A visão que o amante tem de sua amada constitui um dos temas eternos da Literatura. Uma leitura comparativa dos dois fragmentos apresentados, que exploram tal tema, nos revela dois perfis bastante distintos de mulher. Considerando esta informação, (A)aponte a diferença que há entre Hermengarda e Clarinha, no que diz respeito ao predomínio dos traços físicos sobre os espirituais, ou viceversa, segundo as visões de seus respectivos amantes; (B)justifique as diferenças com base nos fundamentos do estilo de época em que se enquadra cada romance. 2. (FGV - modificada) Assinale a alternativa em que aparecem duas obras que vtratam do conflito entre vocação sacerdotal e a busca da realização amorosa. (A)O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, e O mulato, de Aluízio de Azevedo. (B)Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco, e Quincas Borba, de Machado de Assis. (C)Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, e São Bernardo, de Graciliano Ramos. (D)Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano e O seminarista, de Bernardo Guimarães. (E)Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, e Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. 3. (URCA) Marque a alternativa INCORRETA acerca de Alexandre Herculano e/ou sua obra: (A)Viagens na minha Terra é uma obra de Alexandre Herculano que se classifica entre a prosa de ficção e as memórias de viagens. (B)Eurico, o Presbítero é considerado o melhor romance de Alexandre Herculano. (C)O Monge de Cister aborda aspectos históricos e culturais de Portugal. (D)Sua obra inserese no contexto do Romantismo português. (E)Temas religiosos, históricos e medievais estão presentes na prosa de Alexandre Herculano. 11 No romance Eurico, o presbítero, há um diálogo com a história da formação territorial da Península Ibérica. Nesse sentido, alguns episódios retomam batalhas reais com o intuito de afirmar o heroísmo português frente aos árabes. Associado a certo “realismo” histórico, no entanto, encontra-se a figura do herói, representada por Eurico. Como a imagem do herói está construída nesse cenário real de batalhas? Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano (UEL) Leia o trecho a seguir e responda às questões 5 e 6. O presbítero Eurico era o pastor da pobre paróquia de Carteia. Descendente de uma antiga família bárbara, gardingo na corte de Vítiza, depois de ter sido tiufado ou milenário do exército visigótico vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos deleites da opulenta Toletum. Rico, poderoso, gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado de Hermengarda, filha de Favila, Duque de Cantábria, e irmã do valoroso e depois tão célebre Pelágio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso Favila não consentira que o menos nobre gardingo pusesse tão alto a mira dos seus desejos. Depois de mil provas de um afeto imenso, de uma paixão ardente, o moço guerreiro vira submergir todas as suas esperanças. Eurico era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las. Desventurado, o seu coração de fogo queimou-lhe o viço da existência ao despertar dos sonhos do amor que o tinham embalado. A ingratidão de Hermengarda, que parecera ceder sem resistência à vontade de seu pai, e o orgulho insultuoso do velho prócer deram em terra com aquele ânimo, que o aspecto da morte não seria capaz de abater. A melancolia que o devorava, consumindo-lhe as forças, fê-lo cair em longa e perigosa enfermidade, e, quando a energia de uma constituição vigorosa o arrancou das bordas do túmulo, semelhante ao anjo rebelde, os toques belos e puros do seu gesto formoso e varonil transpareciam-lhe a custo através do véu de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O cedro pendia fulminado pelo fogo do céu. Assinale a alternativa correta. (A)Somente as afirmativas I e II são corretas. (B)Somente as afirmativas I e IV são corretas. (C)Somente as afirmativas III e IV são corretas. (D)Somente as afirmativas I, II e III são corretas. (E)Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. 6. Com base na leitura do romance Eurico, o presbítero e, especificamente, do trecho apresentado, é correto afirmar que este é o momento em que o narrador conta (A)a saga de Eurico perante sua família e a de Hermengarda, que eram as responsáveis pelo seu sofrimento. (B)o desencanto de Eurico diante de um amor impossível, o que o levaria a dedicar sua vida a professar a fé. (C)como Eurico abandona a batina para lutar por seu grande amor, a nobre Hermengarda. (D)como Eurico se torna um guerreiro contra a Igreja Católica, a quem responsabiliza pelo fim de seu noivado. (E)como Hermengarda abandona Eurico diante do altar, apenas porque ele não é de família nobre como a dela. gABARITO 1.a) Hermengarda: há a predominância de traços espirituais sobre os físicos Clarinha: os atributos físicos dominam nessa personagem. b) O primeiro romântico, idealizado; o segundo naturalista, mais preso a uma visão materialista e cienfiticista. 2.D 3.A 4.O romance Eurico, o presbítero pertence à primeira fase do Romantismo português e apresenta feição histórica e nacionalista, na medida em que retoma a formação territorial da Península Ibérica, atribuindo aos portugueses uma imagem de heroísmo. O autor se utiliza de uma série de eventos verídicos, como, por exemplo, a invasão ao convento pelos árabes, além de várias batalhas enfrentadas pelos povos ibéricos. A organização social da época, com suas “leis, usos e costumes”, é base da representação histórica do romance, que prima pela valorização dos heróis nacionais. Nesse sentido, Eurico encarna o herói que representa todo o povo português e sua coragem diante dos “invasores bárbaros”, capazes de atos desumanos, como estuprar freiras indefesas. O jovem presbítero não luta apenas pela manutenção do território com os povos ibéricos, mas também para difundir a religião católica, representada como a única capaz de levar ao reino dos céus. Nesse sentido, a sua religiosidade surge como um dado essencial para a formação de seu caráter de herói sobre-humano, um indivíduo com força e coragem acima do homem comum e que vence batalhas que já haviam sido dadas como perdidas por um exército inteiro. Eurico, o presbítero traz, portanto, o diálogo com a História, ao mesmo tempo em que apresenta um indivíduo legendário, que mistura características humanas à fantasia do super-herói. 5.B 6.B (HERCULANO, A. Eurico, o presbítero. 2.ed. São Paulo: Martin Claret, 2014. p.26-27.) 5. Sobre o romance Eurico, o presbítero, considere as afirmativas a seguir. I. A história das personagens se passa em meio às lutas pela defesa do território da Península Ibérica diante da tentativa de dominação pelos muçulmanos. II. A guerra santa, que é pano de fundo do romance, diz respeito ao contexto da reforma protestante, em que católicos e reformistas se enfrentam em batalhas sangrentas. III. Hermengarda escapa do clichê romântico e é a única personagem da obra cujo final é feliz, visto que consegue se casar com um soldado e dar à luz três filhos. IV. Romance da primeira geração romântica, coloca a história de amor em segundo plano, na medida em que evidencia a questão histórica. 12 O pagador de promessas Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em 1922 e faleceu em 1999. Autor de diversas peças de teatro e novelas de sucesso, entre as quais Bandeira 2, 1971; O Bem Amado, 1973; Saramandaia, 1976; Roque Santeiro, 1985. Sua marca, tanto como teatrólogo como autor de novelas, é a observação da realidade brasileira, revelada em meio a muito fantasia, formando assim um realismo-fantástico. Outra característica de sua produção é a presença constante de cultura popular, com todos os seus componentes, como crendices, danças e comidas típicas de determinadas regiões, em especial o Nordeste. Em O pagador de promessas, escrito em 1960, há isso tudo. A história se passa em Salvador, na parte mais velha da cidade, onde permanecem traços colonialistas. O objetivo é marcar o cenário pelo contraste, elemento que dá sustentação à peça. No caso, há um Brasil antigo, religioso e rural, personificado em Zé-do-Burro, em contraste com outro, moderno e dinâmico. Na peça, o drama é estabelecido pelo fosso que separa as duas realidades, os dois Brasis, por assim dizer. Não se compreendem as razões da existência do outro. Confrontados, erigese um labirinto, cuja saída só pode ser trágica. A peça, que ganhou diversos prêmios, entre eles o Prêmio Nacional de Teatro, de 1960, bem como a Palma de Ouro, no Festival de Cannes de 1962 em sua versão cinematográfica, é dividida em três atos. No primeiro, acompanhamos a chegada de Zé-do-burro e sua esposa Rosa à praça da Igreja de Santa Bárbara em Salvador. Ainda é madrugada, por isto encontram a igreja com as portas fechadas. Sua promessa era trazer do sítio onde morava, há sete léguas, ou cerca de 40 km, uma cruz de madeira e depositá-la no altar. Conforme a promessa feita, Zé deveria cumpri-la no dia em que se homenageia a santa guerreira, no caso dia 04/12. O espectador percebe já o primeiro contraste: enquanto Zé é um homem contemplativo, desligado das coisas terrenas, cuja fé é mais importante que qualquer coisa, Rosa tem outros desejos. Quer uma vida melhor e sua fé não é tão forte quanto a do marido. Segue-o mais por obrigação que por convicção. Além disso, procura esconder uma sensualidade latente. Neste primeiro ato, conhecemos outros dois personagens: Bonitão e Marli. Um cafetão e sua prostituta preferida, ao menos a que lhe dá mais dinheiro. O papel de bonitão é o de, sutilmente, plantar a discórdia entre Zé e Rosa. Como era de madrugada, Bonitão propôs ao casal que fosse dormir num hotel à espera da abertura da igreja. Zé não quis deixar a cruz, como medo de a roubarem, mas permite que Rosa vá ao hotel dormir um pouco. Bonitão deixa Marli ir embora e leva Rosa ao hotel, onde a seduz. de Dias Gomes missa e para onde foram levados os primeiros escravos com suas crenças e deuses. Como é de conhecimento comum, o sincretismo religioso entre o cristianismo, a Igreja Católica, e o candomblé se deu à época da colonização, e mesmo no Brasil Império por conta da proibição de os negros manifestarem sua fé de origem. Assim, os orixás dos candomblés foram relacionados aos santos católicos. No caso, toda a peça gira em torno de Santa Bárbara, conhecida por ser uma santa guerreira e ter como armas o relâmpago e o raio. O orixá equivalente é Oyá ou Iansã, também senhora dos raios e das tempestades. Outra atribuição de Yansã é ser deusa dos cemitérios, dos mortos. A propriedade de Santa Bárbara e Yansã fica mais clara no final da peça. Mas não adiantemo-lo. Analisemos antes outros aspectos presentes em O pagador de promessas. O drama da peça se dá exatamente por conta do sincretismo. Zé-do-Burro tinha essa alcunha por ter como principal companheiro um equus asinus, ou seja, um burro. O espectador fica sabendo qual promessa fizera e por que apenas no segundo quadro do primeiro ato. O burro se chama Nicolau, que, pela tradição cristã, significa o que ajuda os outros. O nome também pode ser uma referência a são Nicolau, que acabou dando origem ao Papai Noel. Dessa feita, Nicolau é para o personagem Zé-do-burro praticamente um ser humano, a quem trata como a um igual. Em um dia de grande tempestade, Nicolau se protegia sob uma árvore quando um raio a atingiu e derrubou-a na cabeça do burro. Devido à clara crendice, Zé fez uma promessa à santa Bárbara que se o burro se curasse, levaria uma cruz tão pesada quanto a de Cristo até a igreja mais perto dedicada à santa. E assim o faz. No entanto, fizera promessa em um terreiro de Candomblé. Em sua simplicidade, Zé-do-burro não cometera qualquer falha grave. Fizera a promessa e vinha agora pagá-la, porém impedido pelo padre local, chamado Pe. Olavo. Zé – Padre, é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum... o senhor não conhece Nicolau, por isso... é um burro com alma de gente... Padre – Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja você não entrará com essa cruz! (p. 38) Em favor dessa deliberação, padre Olavo busca argumentos teológicos para impedir a entrada do pagador de promessa no interior da igreja. Entre os quais, parte do princípio de que a caminhada do sitiante teria uma intenção oculta: a de imitar Cristo e de a ele igualar-se, não do modo pelo qual todo fiel deveria fazer, e sim para ombrear o ato salvifíco de Cristo. Padre – Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior. Zé – Qual, padre? Padre – A de igualar-se ao Filho de Deus. Zé – Não, padre. Padre – Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade? Não, para salvar um burro! (p. 37) Há na peça quase naturalmente o sincretismo religioso. Quase naturalmente porque a história se passa em Salvador; na Bahia onde foi rezada a primeira 13 O pagador de promessas, de Dias Gomes Assim, a promessa do Zé-do-Burro é interpretada pelo padre como uma afronta a Deus e à autoridade da Igreja. Não consegue compreender em sua simplicidade a promessa do sitiante, que por sua vez também não compreende o porquê o impendem de entrar na igreja e cumprir a promessa. Com isso, Zé-do-Burro tem um caminho trilhado em direção à sua martirização, a despeito de seu real propósito. Zé é um mártir sem querer ser. Apoiado por uma fé incondicional, que beira ao fanatismo, trilha o caminho da sua crença em meio às forças e instituições da civilização contemporânea. Como D. Quixote, não consegue se fazer entender, nem é capaz de entender as ideologias. Assim, a peça se constitui numa espécie de tragédia moderna com um herói sem a consciência do papel que acaba exercendo; sua simplicidade é densa e responsável pela tragédia que Rosa antevê. Embora sem o mesmo significado que nas tragédias gregas, em que o destino é força catalizadora dos personagens, em que os deuses cumprem papel determinante para o cumprimento desse destino, em O pagador de promessa o destino é fruto das ações humanas, mesmo assim Zé-do-Burro é um Édipo que não consegue e não quer fugir a seu destino, traçado por ele mesmo, mas, segundo sua leitura, com a anuência de Santa Bárbara/Yansã, que salvara seu burro da morte. Zé – Sarou em dois tempos. Milagre mesmo. No outro dia já estava de orelha em pé, relinchando. E uma semana depois todo o mundo me apontava na rua: - “Lá vai Zé-do-Burro com o burro de novo atrás!” E eu nem dava confiança. E Nicolau muito menos. Só eu e ele sabíamos do milagre. Eu, ele e Santa Bárbara. (p. 36) Como não pode se liberar da promessa até que esteja cumprida, seu destino é, neste sentido, traçado por forças externas a ele, qualquer coisa que faça o levará a cumprir seu destino, que só pode ser trágico. Zé – O senhor me liberta... mas não foi ao senhor que eu fiz a promessa, foi a Santa Bárbara. E quem me garante que como castigo, quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto. (p. 72) presença quando o repórter pensa ser o Zé-do-Burro um político se autopromovendo. Assim, a sociedade como um todo tem seu representante na peça. E essa é a ideia do teatro de Dias Gomes, marcado por explícita preocupação político-social. O terceiro e último ato da peça inicia-se com uma roda de capoeira. Era já o final da tarde do dia 04 de dezembro. Zé-do-Burro estava na praça havia mais de 12 horas. A roda de capoeira é marcada por canto e dança; na peça, a cantoria ganha uma dimensão extra, o coro da cantoria faz mais uma vez o espectador evocar aspectos do teatro clássico, a presença de um coro, ou seja, grupo de pessoas representando a consciência social; o coro era responsável pela análise moral, pelo comentário que fazia o espectador da tragédia compreender ao que estava assistindo. O coro em O pagador não comenta, antes brinca e serve para compor o cenário, a roda da capoeira, no entanto, implicitante, anuncia o que virá, demonstra que não há mais como o caminho escolhido pelo sitiante levá-lo a cumprir seu intento. Diz o mestre do coro: Vou pidi a Santa Bárbara. Pra ela me ajudá Coro – Santa Bárbara que relampuê/ Santa Bárbara que relampuá. (p. 78) O refrão é repetido em ritmo acelerado vários vezes, acompanhado pela dança, pelo jogo da capoeira. Embora no texto escrito isso não seja explícito, a encenação leva o espectador a perceber que a senhora dos raios e relâmpagos logo se manifestará e o choque terá um fim não feliz. Não se deve entender, porém, que a peça encerre uma defesa do candomblé em detrimento do catolicismo, do cristianismo. O objetivo maior é mostrar como o Brasil é um país de contraste e que o mito propalado da cordialidade, da democracia cultural e racial, em que todos teriam seu espaço, em que todos poderiam manifestar-se livremente, revelase uma falácia. Essa democracia existe até o ponto em que não altera a ordem estabelecida. A intransigência do padre em negar ao sitiante o cumprimento de sua promessa é a mesma que tem a autoridade policial, que vê na atitude do personagem um desrespeito à autoridade e uma ameaça à ordem. Por outro lado, embora consiga a simpatia de Minha tia, dona de um tabuleiro, do poeta malandro Dedé e do Galego, dono de um bar em frente à igreja, nenhum é capaz de compreender por inteiro o porquê da insistência de Zé-do-Burro em cumprir sua promessa. Mesmo assim, acabam apoiando-o porque vêem nele a possibilidade de ganhar algo, sobretudo o Galego, que as vendas aumentarem significativamente nesse dia a ponto de oferecer ao sitiante e à sua esposa Rosa comida de graça. Mesmo Rosa não compreende o porquê do radicalismo do marido, e vê na situação a possibilidade de ter uma vida melhor. Não é por acaso que, a despeito de algum pudor e remorso, entrega-se ao prazer com Bonitão. Ele promete a ela dar-lhe uma vida melhor, mais digna: Uma outra característica do teatro clássico presente na peça de maneira modificada é a personificação de arquétipos, de tipos representativos da sociedade. Isso pode ser verificado na Farsa Atelana ou nas peças de Gil Vicente, em que não há aprofundamento psicológico dos personagens, mas apenas conhecemo-los pelas ações e por nomes genéricos: o padre, o fidalgo etc. No caso do teatro de Dias Gomes, cada personagem tem seu nome, ou ao menos uma alcunha, como o gigolô Bonitão, mas particularmente em O pagador de promessas, as individualidades são arquetípicas, lembrando, pois, o teatro clássico. Há o padre, representando a Igreja, há o guarda, representando a força pública; há o repórter, obviamente fazendo o papel da imprensa; há as pessoas comuns, que representam o povo; embora não apareça nenhum político, fica sugerida sua 14 O pagador de promessas, de Dias Gomes espanto de Zé-do-Burro e Rosa, eles colocam a barraca no meio da praça e o colchão dentro da barraca. Repórter – Fomos aos nossos clientes e eles se dispuseram prontamente a colaborar conosco. (p. 86) Isto ocorre porque o repórter a todo instante faz uma interpretação à luz do que ele conhecia, do contexto com o qual estava acostumado. Num país que, impulsionado pelo Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek (1955-1961), cujo objetivo era levar modernidade a todas as regiões brasileiras, soava estranho a alguns a permanência de uma crendice tão piegas, no caso acreditar que uma santa ou uma orixá pudesse intervir para salvar um burro. Assim, para o repórter tudo não passaria de um golpe publicitário, com objetivo claramente político, visando às próximas eleições. Repórter – Hum... bem me pareceu que por trás dessa história do burro, da promessa, havia qualquer coisa... uma intenção oculta e um objetivo político. A polícia, naturalmente, percebeu também. (p. 87) Em resumo, o padre interpreta o ato como uma afronta à autoridade eclesiástica e à História Sagrada, o repórter o vê como um golpe político, a polícia como um ato de desordem, o povo em geral trata Zé-do-Burro como um louco, ainda que possa ser visto também como herói, Rosa o considera seu atraso, mas a quem deve respeito como esposa, a despeito de tê-lo traído com Bonitão; no fim, o próprio Zé-do-Burro chega a pensar que teria sido traído pela santa de sua devoção. Apenas não abandona o cumprimento da promessa por um fanatismo no compromisso assumido. Outro aspecto a se considerar na peça diz respeito à reforma agrária. Se nos últimos vinte anos passou a ser plano efetivo de governo, com assentamento de milhares de famílias, no final da década de 1950 e início dos anos 60, eram antes um projeto, praticamente interrompido com o governo militar em 1964. Não que a peça aprofunde o debate ou ao menos faça uma discussão rasa sobre o assunto, há tão somente uma alusão ao tema, quando, de passagem, Rosa diz a Bonitão no primeiro ato que dividir parte de sua propriedade, que era pouca, entre os agricultores sem terra como complemento da promessa. Bonitão interpreta o ato de maneira debochada, o repórter, porém, ao saber disso, escreve na reportagem que Zédo-Burro era a favor da Reforma Agrária no país. Repórter – Repartir o sítio... diga-me, o senhor é a favor da reforma agrária? Zé – (não entende) Reforma agrária? Que é isso? Repórter – É o que senhor acaba de fazer em seu sítio. Redistribuição das terras entre aqueles que não as possuem. (p. 51) Bonitão – Se você viesse pra cidade, eu podia lhe garantir um bonito futuro... Rosa – Fazendo o quê? Bonitão – Isso depois se via. Rosa – eu não sei fazer nada. Bonitão – Mulheres como você não precisam saber coisa alguma, a não ser o que a natureza ensinou... (p. 24) No entanto, percebe a real intenção de Bonitão. Ainda assim Rosa libera-se sexualmente e tem seu drama particular, que se resume em voltar a ser fiel ao marido e manter-se presa a uma realidade arcaica, asfixiante para ela ou conquistar a liberdade definitiva e realizar-se por inteiro como mulher, como participante de um mundo em transformação. Depois, quando o repórter aparece para fazer uma matéria sobre o que estava ocorrendo, Rosa fica feliz ao ser fotografada e sonha com a possibilidade de ser conhecida por meio de um jornal. Seria talvez o caminho para escapar às forças do destino. Rosa – (Ela vislumbrou nas palavras do repórter uma possibilidade confusa de libertação, ouviuas num entusiasmo crescente) Oxente! Não seja estúpido, homem! O moço está querendo a gente. (p. 53) Ela diz isso ao ouvir que o repórter estava organizando entrevistas, apresentações para que Zé contasse sua história a mais gente. Seria assim meio de libertar-se por completo de um estilo de vida arcaico, que impedia uma experiência mais ampla da própria vida. Mulher do sitiante, Rosa cumpre também o papel de antagonista, posto que o trai e não se deixa absorver inteiramente pela crença do marido. Porém, antevendo a tragédia para qual se encaminha Zé-do-Burro, tenta dissuadi-lo da promessa, sobretudo no final da peça. O máximo que obtêm dele é a certeza de que irá embora ao final do dia dedicado à santa Bárbara. Zé – Esta noite a gente vai embora. Rosa – E por que não agora? Zé – Vamos deixar passar o dia de santa Bárbara. Rosa – De noite, talvez seja tarde... Zé – Tarde pra quê? Rosa – Pra voltar! (p. 85) O contraste no qual se assenta a peça também passa pela presença da sociedade de consumo, capitalista, cujo processo de formação se ampliava na década de 1960, momento da redação e encenação do texto. Este papel está representado pelo vendeiro, o Galego, mas especialmente pelo repórter, que, para ajudar a promover o jornal pelo evento do pagador de promessa, consegue patrocínio de empresas, as quais cedem algum produto que poderia servir de uso pelo sitiante. Neste instante, entram os capoeiristas conduzindo primeiro uma tenda de pano já armada e em seguida um colchão de molas. Na tenda, há um letreiro: Oferta da Casa da Lona. No colchão há outro: Gentileza da Loja Sonho Azul. Com enorme Temos na figura do repórter, cujo trabalho principal é com a linguagem, apontamentos sobre o processo criativo, sobre a ficcionalização da realidade. Ora, ao repórter, isto é, à imprensa interessa mais a 15 O pagador de promessas, de Dias Gomes construção verossímil de fatos, por meio do texto jornalístico que propriamente a verdade factual. Claro, Dias Gomes escreve num período em que a preocupação ética da imprensa parecia menor em comparação com o momento atual. De qualquer modo, é visível o poder da mídia em geral de criar factóides, de criar heróis efêmeros, seja com objetivo político, meramente comercial ou ambos. O próprio Dias Gomes exploraria mais tarde o processo de criação de falsos heróis ou santificações de pessoas comuns na novela Roque Santeiro, escrita em 1975, mas que, por conta da censura militar, só pôde ir ao ar em entre 1985 e 1986. Por fim, vale a pena chamar a atenção para o tipo de rubrica que é usado no texto de Dias Gomes. Além das tradicionais indicações feitas para o ator e o diretor da peça, o autor do texto faz algumas rubricas que quase se assemelham, em função, a um narrador (e isso não existe em peças de teatro, a não ser quando se trata de personagem-narrador). Elas são altamente descritivas e dão detalhes extremamente minuciosos sobre os personagens, o que delimita muito bem as possibilidades de improvisação dos atores, pois indicam mais do que as ações daqueles, descrevendo características psicológicas que poderiam estar presentes nas falas. Esse processo é largamente explorado nas diversas referências bíblicas. A mais forte está na associação feita pelo padre e pelos populares entre Zé-do-Burro e Jesus Cristo. O primeiro de modo negativo, os segundos como um santo popular, incompreendido pelo discurso oficial eclesiástico e laico. No entanto, essa relação é estabelecida antes pelo próprio narrador da peça, quando, na apresentação do “Primeiro Quadro”, diz tratar-se de “um homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura média. (...) Tem barba de dois ou três dias e traja-se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira.” (p. 13) Uma descrição que faz o leitor/espectador lembrar-se de Jesus de Nazaré, sobretudo porque, como se sabe, iniciou sua pregação pública aos 30 anos. Ao final, após a morte de Zé-do-Burro, os populares pegamno e o colocam sobre a cruz; em procissão, levam-no finalmente para dentro da igreja, ante a impassibilidade das autoridades religiosa e policial. Dias Gomes, de certa forma, recupera, com esta peça, a origem do teatro pela temática religiosa. Obviamente que aqui o tratamento é crítico e irônico. Mesmo assim, erige-se um personagem com características religiosas para além da sua consciência. Toda a história tem uma sequência linear, com progressão contínua, sem flash back ou tergiversações, que costumam romper a linearidade. Isto também colabora para a tipificação dos personagens, ou seja, são indivíduos que representam uma coletividade. Já nos referimos a alguns personagens neste sentido, lembremos apenas de mais um, no caso a beata, que carrega em si todos os estereótipos desse tipo de personagem. Temente a Deus, à autoridade do padre, suas roupas sóbrias indicam claramente tal característica, é incapaz de pensar por si mesma, tudo o que diz ou suas ações denotam a subserviência temerária a que está sujeita. Beata – É o cúmulo! Ainda está aí! Minha tia – Não vai abrir a igreja hoje, Iaiá? Dia de Santa Bárbara... Beata – Não enquanto esse indivíduo não for embora. Minha tia – Que foi que ele fez? Beata – Quer entrar com essa cruz na igreja. (...) promessa de candomblé. (...) Herege! (p. 44-45) 16 O pagador de promessas, de Dias Gomes (C)bate na prostituta, até matá-la, pela traição em roubar-lhe o amante, Bonitão. (D)cansada do descaso de Zé-do-Burro, quebra a cruz, impossibilitando-o de cumprir sua promessa. (E)delata o marido para o Secreta a fim de vingarse da traição de Zé-do- Burro com Iansan. EXERCÍCIOS 1. (CEFET-PR) Leia atentamente as afirmações abaixo sobre O Pagador de Promessas e assinale a verdadeira: (A)Zé-do-Burro e sua esposa, Rosa, mantêm um relacionamento amoroso conflituoso devido a ele ser um revolucionário do campo e ela, uma beata devota. (B)O Secreta, o Delegado e o Guarda demonstram a nova face da polícia, após a ditadura de Vargas, preocupada com os direitos humanos. (C)Minha Tia e Mestre Coca são representantes do povo, católicos ardorosos, que se revoltam com as heresias cometidas por Marli e Zé-doBurro. (D)Bonitão e Marli são o exemplo de um relacionamento moderno, em que homem e mulher usufruem dos mesmos direitos. (E)O Monsenhor e Padre Olavo representam a rigidez de princípios teóricos da doutrina católica diante de situações práticas inusitadas. (UTFPR) Leia atentamente os excertos de rubricas retirados da peça O Pagador de Promessas, de Dias Gomes. I.“É uma bela mulher, embora seus traços sejam um tanto grosseiros, tal como suas maneiras. (...) É agressiva em seu “sexy”, revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar. Veste-se como uma provinciana que vem à cidade, mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui”. II.“Ela tem, na realidade, vinte e oito anos, mas aparenta mais dez. Pinta-se com exagero, mas mesmo assim não consegue esconder a tez amarelo-esverdeada. Possui alguns traços de uma beleza doentia, uma beleza triste e suicida. Usa um vestido muito curto e decotado, já um tanto gasto e fora de moda, mas ainda de bom efeito visual. Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertar-se de uma tirania que, no entanto, é necessária ao seu equilíbrio psíquico...”. Em relação às assertivas I e II é correto afirmar que: (A)em I e II tem-se a descrição da mesma mulher, Rosa, amante de Bonitão, o malandro cafetão. (B)em I tem-se a descrição de Rosa, mulher do personagem principal de O pagador de promessas. (C)em II tem-se a descrição de Rosa, amante de Bonitão, o malandro cafetão. (D)em II tem-se a descrição de Marli, mulher do personagem principal de O pagador de promessas. (E)em I e II tem-se a descrição da mesma mulher, Marli, mulher do personagem principal, Zé-do-Burro. 5. (UTFPR) Na obra O Pagador de Promessas, circulam pela praça, onde se passa a história, diversos personagens que retratam diferentes questões. Estabelecendo uma correlação entre personagens e temas, teremos: I. Zé-do-Burro e a fé; Padre Olavo e a intransigência II. Bonitão e o amor; Rosa e a traição III. Galego e a ambição; Mestre Coca e o sentimento de coletividade IV. Repórter e a vaidade; Marli e a pureza 4. 2. (UTFPR) Em O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, “ABC da Mulata Esmeralda” de Dedé Cospe-Rima que conta a história dessa mulher, “desde o nascimento, no Beco das Inocências, até a morte, por trinta facadas, na Rua da Perdição”, é de certa forma um prenúncio da própria história narrada na peça, pois: Encontre a faculdade certa pra você I. a mulher de Zé-do-Burro é morta com trinta facadas quando se aproxima da roda de capoeiristas. II. a trajetória dos personagens Zé-do-Burro e Rosa segue o mesmo caminho, da inocência à perdição. III. Zé-do-Burro, trinta anos presumíveis, acaba morto na “rua da perdição” de sua mulher, que o traiu. Está(ão) correta(s) somente: (A)I. (B)II. (C)III. (D)II e III. (E)I e II. 3. (UTFPR) Em O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, o personagem central, Zé-do-Burro, é casado com uma mulher que, segundo a rubrica da peça, “parece pouco ter de comum com ele. (...) Ao contrário do marido, tem “sangue quente”. “Demonstração do “sangue quente” da esposa se dá quando ela: (A)sem resistir, seduzida por Bonitão, entrega-se ao sensual cafetão traindo o marido. (B)enfrenta a vendedora de Beiju devido aos ciúmes que sente do relacionamento desta com o marido. 17 O pagador de promessas, de Dias Gomes 9. (UEL) Sobre o intertexto bíblico presente em O Pagador de Promessas, considere as frases a seguir. I. “Mas eu conheço seus adeptos! Mesmo quando se disfarçam sob a pele do cordeiro!” II. “Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade?” III. “Uma epopeia. Uma nova Ilíada, onde Troia é a Lua e o cavalo de Troia é o cavalo de São Jorge!” IV. “É até bom demais. Nunca fez mal a ninguém, nem mesmo a um passarinho.” Assinale a alternativa que apresenta, corretamente, frases com intertexto bíblico. (A)Somente as frases I e II. (B)Somente as frases I e IV. (C)Somente as frases III e IV. (D)Somente as frases I, II e III. (E)Somente as frases II, III e IV. Estão corretas somente as assertivas: (A)I e II. (B)III e IV. (C)II e III. (D)II e IV. (E)I e III. 6. (UEL) Sobre o motivo da jornada da personagem Zé-do-Burro até Salvador, no livro O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, assinale a alternativa correta. (A)Pagamento de promessa pela conquista de suas terras. (B)Pagamento de promessa pela recuperação de Rosa. (C)Pagamento de promessa pelo restabelecimento do burro. (D)Pretexto para fazer campanha a favor da reforma agrária. (E)Pretexto para protestar contra a ditadura. 7. (UEL) Sobre as personagens de O Pagador de Promessas, assinale a alternativa correta. (A)Galego e Bonitão são artistas populares nordestinos. (B)Minha Tia e os capoeiristas são católicos praticantes do candomblé. (C)O repórter e o fotógrafo são policiais disfarçados que manipulam Zé-do-Burro. (D)O padre e a beata ilustram a intolerância religiosa. (E)Rosa e Marli representam o movimento de liberação feminina dos anos 1990. 8. (UEL) Com base em O Pagador de Promessas, assinale a alternativa que apresenta, corretamente, o parecer crítico que analisa a obra. (A)“A mola propulsora da peça – o autor deixou bem claro – é a espinafração.” (B)“Nunca um escritor nacional se preocupou tanto em investigar sem lentes embelezadoras a realidade, mostrando-a ao público na crueza de matéria bruta.” (C)“Sério exercício de introspecção, o texto se passa em uma viagem de volta ao interior, ao encontro do pai distante.” (D)“O espectador que desejar a diversão desabrida da farsa encontrará na peça um motivo inesgotável de comicidade.” (E)“Essa intolerância erige-se, na peça, em símbolo da tirania de qualquer sistema organizado contra o indivíduo desprotegido e só.” gABARITO 1.E 2.D 3.A 4.B 5.E 6.C 7.D 8.E 9.A 18 Toda poesia Paulo Leminski nasceu em 1944 em Curitiba, mas morou um bom tempo em São Paulo, onde atuou como publicitário, compositor, professor, além de ter se aproximado da poesia concreta paulista. Faleceu prematuramente em 1989, deixando uma vasta obra poética, que foi publicada postumamente. Leminski estreou na poesia publicando livros à maneira marginal, isto é, à margem das grandes editoras. Participou da chamada geração do mimeógrafo, porque muitas vezes era usando essa técnica meio caseira que se publicavam livros. O primeiro foi Quarenta clics em Curitiba, de 1976, a que se seguiram Polonaises, de 1980, Não fosse isso e era menos/ não fosse tanto e era quase, também de 1980. Logo em seguida, publicou Caprichos e relaxos, em 1983, pela Brasiliense, uma das principais editoras do país, entrando assim, de vez, no mercado regular das edições no Brasil. O segundo e o terceiro livro foram integrados a essa mesma edição da Brasiliense. Depois, vieram Distraídos Venceremos, também pela Brasiliense em 1987; pela mesma editora La vie en close, já publicação póstuma de 1991, Winterverno, pela Fundação Cultural de Curitiba, em 1994 e O ex-estranho, pela Iluminuras, em 1996. Todos esses livros, além de alguns outros poemas, sob o título de Poemas esparsos, integram o volume ora editado pela Companhia das Letras em 2013 e que já chegou a treze reimpressões, atestando, desse modo, a importância da poesia de Leminski no cenário literário nacional e mesmo internacional. Escrever uma resenha sobre um livro de poesia é tarefa um tanto complexa, pois cada texto teria uma explicação específica. Que dirá então de uma coletânea com toda ou a maior parte da produção poética de um autor? Não há como, pois, darmos conta dessa tarefa. Queremos, de qualquer modo, destacar as principais linhas da poesia de Leminski, para que assim o leitor possa ter um fio condutor, como o fio de Ariadne, para poder entrar no labirinto e sair dele (caso queira) de uma poesia muito rica de significados e capaz de dialogar com a tradição e com o mundo contemporâneo, tão fluído e com pouco tempo para a própria poesia. Há, pois, dois aspectos que temos de considerar na poesia de Leminski: sua preocupação com o fazer poético, o que inclui um cuidado na escolha dos termos, o modo de construir o texto, e, ao mesmo tempo, um certo relaxamento com esses aspectos, de modo a deixar fluir o texto naturalmente. Trata-se de uma figura bifronte, que toma o texto poético ao modo romântico, do gênio criador, inspirado, e também ao modo racionalista, pelo qual procura trabalhar o texto, extraindo dele todas as possibilidades estéticas. Em outros termos, sua poesia fica entre o capricho, o cuidado e o relaxo, o descuido, o deixar fluir, bem no estilo entre o erudito e o marginal. Esse jogo criativo está presente nos títulos de alguns de seus livros: Caprichos & relaxos, Distraídos venceremos e O ex-estranho, por exemplo. de Paulo Leminski O planejado está na própria ideia de retomar toda uma tradição de poetas. Há um eu que fala, e um eu que dialoga com a tradição, seja a imediata, seja a que busca a universalidade. Em rigor, Leminski é um poeta inovador, mas que não despreza o que se fez antes dele, até porque reconhece toda uma tradição que vem dos gregos até os modernos, passando pelos clássicos e que ajudaram, de um modo ou de outro, a construir a poética. Sabe também na literatura, ou em qualquer processo criativo, a despeito da ideia de posse ou de propriedade intelectual, não existe algo exclusivo, tudo pertence a todos. nada tão comum que não possa chamá-lo meu nada tão meu que não possa dizê-lo nosso [...] (2013, p. 41) Essa comunhão tem um objetivo maior, que é o da universalidade da poesia. Embora haja autores que tenham uma preocupação com as questões nacionais, como Luis de Camões ou Fernando Pessoa, a poesia de ambos ultrapassa o próprio conceito de nacionalismo português, em busca de uma integração mais ampla, posto que são obras que também se comunicam com a tradição helênica, por exemplo. Nesse sentido, a poesia de Leminski, que tem com berço uma Curitiba, capital de um estado, mas provinciana em termos nacionais, quer a comunicação mais ampla, quer estabelecer pontos de contato com outros autores, e toda uma tradição inventiva, consoante até com o projeto da Poesia Concreta, de que fez parte quando morou em São Paulo. um dia a gente ia ser Homero a obra nada menos que uma ilíada depois a barra pesando dava pra ser aí um Rimbaud [...] por fim acabamos o pequeno poeta de província que sempre fomos [...] (2013, p. 71) Há diversos outros poemas nessa linha, que buscam esse diálogo com a tradição, como “aviso aos náufragos”, em que há de novo uma retomada do poema de Homero, atualizando o princípio da busca, da conquista, da descoberta ou “limites ao léu” (p. 246), em que toma definições sobre linguagem e criação de diversos artistas, e conclui com uma frase sua mesmo: “a liberdade da minha linguagem”. Isto é, trata-se de um liberdade criativa, ao mesmo tempo 19 Toda poesia, de Paulo Leminski Leminski nem sempre obedece ao rigor do Haikai, embora a ideia (geral, particular, conclusão) seja respeitada. Em outros termos, nem sempre segue a quantidade de sílabas poéticas, nem mesmo a quantidade de versos, que deveriam ser sempre três, há alguns com quatro versos. Claro, alguém mais rigoroso poderia dizer: então não se trata de Haicai. Mas vivemos em tempos de renovação, reescrita, redescobertas e reinvenções. Pois bem, há um Haicai de particular importância, inclusive intitulado: Mallarmé Bashô, que faz clara referência ao de Bashô já especificado. Um salto de sapo jamais abolirá o velho poço que uma relação constante que estabelece com outros criadores. Como exemplo, em “Papajoyceatwork”, temos um poema escrito à maneira do autor irlandês, James Joyce, com termos criados ou recriados, em português e em inglês Mustmakesomething! Reverythming! (2013, p. 157) Ou outros poemas, em que revela suas preferências, suas leituras e sua filiação literária, como “Rosa rilke raimundo correia” (p. 213). Outro é “m, de memória”, em que exalta o poder de determinados autores que continuam a ser lidos, relidos, lembrados, posto que no jogo entre ficção e realidade, entre vida literária e vida real, o que importa é o constructo que fazemos de tudo isso. O que é real vira ficção e viceversa. Eis o papel fundador da literatura, de erigir mundos e reconstruir a realidade. Os livros sabem de cor milhares de poemas. [...] Ulisses voltou de Troia, Assim como Dante disse. [...] Byron era verdadeiro. Fernando, pessoa, era falso. Os livros sabem de tudo. Já sabem desse dilema. Só não sabem que, no fundo, Ler não passa de uma lenda. (2013, p. 306) Trata-se de uma dupla referência, primeiro ao famoso Haicai, de Bashô, depois ao título de um livro do poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé (18421898), Un coup de dès jamais n’abolira le hasard (um jogo de dados jamais abolirá o acaso). Observe-se como Leminski estabelece uma relação entre os dois poetas para dizer que as coisas existem para além do que possamos querer, ou possamos controlar. Mesmo que se queira controlar o resultado do jogo ou se queira controlar a natureza, os acontecimentos estão repletos de acaso, de possibilidades. (2013, p. 226) O Haicai acaba servindo como mote para uma reflexão sobre questões comuns, situações exemplares, que podem servir como expressão do universal. Seguindo dessa busca pela universalidade poética e comunicação com uma tradição, um tipo de poesia predominante na obra de Leminski é o Haicai, forma poética criada e desenvolvida por Bashô (16441694), samurai, que após a morte de seu mestre, transformou-se em Rônin, um samurai sem mestre. Há uma série de Haicais em La vie en close, no caso da edição de que estamos nos servindo entre as páginas 306 e 322. Há outros tantos em Ideolágrimas. Além dos espalhados nos demais livros do autor e reunidos neste Toda Poesia. viver é superficial o mais fundo está sempre na superfície (2013, p. 246) São diversos haicais, uma de suas formas poéticas preferidas, e trata de diferentes temas. Considerando um dos pontos deste texto, podemos nos referir a mais um, em que se refere a um dos princípios criativos que norteiam sua produção poética, o diálogo. Um Haicai é um poema de 17 sílabas, distribuídos em três versos (na tradução nem sempre se obedece a essa quantidade de sílabas), sendo o primeiro e o terceiro com cinco sílabas, e o do meio com sete. Este tipo de poema é baseado em certo silogismo. Um dos Haicais mais famosos de Bashô é o seguinte: A velha lagoa o sapo salta o som da água O primeiro verso expressa uma visão geral, o cosmos A velha lagoa No segundo verso, exprime-se o particular, um determinado evento O sapo salta No terceiro, tem-se o resultado, a conclusão lógica entre o geral e o específico O som da água lá vamos nós lendo sempre a mesma voz (2013, p. 363) No livro La vie en close, por referência a uma música interpretada pela cantora francesa Edith Piaf, La vie en rose, Leminski revela a vida ao saber do acaso, mas também do controle, como um coup de dès, o jogo de dados de Mallarmé já referido acima, cujo resultado pode-se tentar, mas é de difícil previsão. Na música, Piaf canta a felicidade da descoberta do amor, do encontro feliz, canta a perfeita comunhão dos que se amam. Leminski, ao contrário, fala a respeito da necessidade de se submeter a alguns caminhos, por isso a vida fechada, sem escolhas (la vie en close). Em rigor, até fazemos escolhas, mas essas escolhas já estariam definidas previamente. 20 Toda poesia, de Paulo Leminski [...] c’est la vie des choses qui n’ont pas un autre choix1 Ou mais adiante: Ambígua volta em torno da ambígua ida, quantas ambiguidades se pode cometer na vida? [...] (2013, p. 243) Tal possibilidade de escolha está relacionado, mais uma vez, a esse princípio criativo que revela o jogo entre o acaso e o planejado. Ora, se as coisas não podem escolher, elas devem ser guiadas pelo acaso. Isso inclui a poesia, o objeto por excelência do poeta, que, como ser, quer fazer escolhas, quer planejar, direcionar. Nesse sentido, é preciso às vezes deixarse levar, é preciso mesmo ir contra si mesmo, conta a lógica criativa, como propõe em “motim de mim”: xx anos de xis, xx anos de xerox, xx anos de xadrez, não busquei o sucesso, não busquei o fracasso, busquei o acaso, esse deus que eu desfaço. (2013, p. 194) Nessa linha de reflexão sobre a linguagem poética, uma das questões levantadas por Leminski e por tantos outros escritores é o que significa ser poeta. Qual o papel da poesia no mundo moderno? Ora, talvez a condição do poeta e da própria poesia seja a de exercer um papel de estranheza, de desleixo, mas ao mesmo tempo é conhecida, é algo comum, posto que seu material de trabalho é a palavra, é a língua, sem a qual a comunicação se realizaria com a maior dificuldade. Além de que a linguagem cria e recria o mundo. Explicando melhor, o mundo moderno (entenda-se desde o século XIX), é marcado pela busca frenética por dinheiro, por mercados, é o mundo baseado na economia, nas relações comerciais. Assim, quanto dinheiro dá a poesia? Que tipo de produto é a poesia? O que fazer com ela e como negociá-la? Ora, essas perguntas não têm respostas certas. Em rigor, claro, poesia é transformada em livro e livros são vendidos. Porém, há dois pontos: excluindo um autor ou outro, poesia vende muito pouco, não compensa financeiramente às editoras; segundo, para além dessa questão econômica, poesia é um trabalho com a palavra e vai muito além de aspectos econômicos. Então, volta-se à pergunta: qual o papel do poeta e da poesia no mundo moderno? Observe como o poeta, em uma autorreferência, buscar compreender esse papel e como ele pode ser visto pela sociedade, aquele que chama a atenção e atrapalha a vida dos que seguem o padrão: o pauloleminski é um cachorro louco que deve ser morto a pau e pedra a fogo a pique senão é bem capaz o filhodaputa de fazer chover em nosso piquenique. (2013, p. 257) Entenda-se xerox como a cópia ou diálogo com a tradição, e xadrez como a lógica, o planejado. Nessa linha, pode-se ler “ímpar ou ímpar”, “quem sai aos seus” ou “andar e pensar um pouco”. Todos publicados e em La vie en close. Leminski é um desses poetas, como os escritores que lhe serviram de base (Rimbaud, Mallarmé, Joyce, Rosa, entre outros) que procura fazer uma revolução com a palavra, com o jogo poético, ao constantemente buscar novas formas de expressão. É bem verdade, porém, que, uma vez estabelecida sua linguagem, procurou manter-se naquela linha, qual seja: a do culto ao Haicai, à da poesia concreta, a da poesia fragmentada, a jogo entre o coloquialismo e a poesia erudita. Em todos esses casos, procurou tratar sobre questões comezinhas da vidas, isto é, sobre o cotidiano, mas também procurou explicações para a existência, explicações para as contradições da vida e para muitas vezes o sentimento de mal estar que acontece a qualquer um. A poesia seria, pois, um caminho entre o sentido da vida, se é que existe, e a própria vida. Esse papel mediador da arte e da linguagem não é nenhuma novidade. Remonta especialmente aos simbolistas, como Cruz e Souza, mas também a diversos outros artistas. De qualquer modo, Leminski procurou dar sua visão sobre esse ponto. E o fez de modo inventivo e provocador. Mandei a palavra rimar, ela não me obedeceu. [...] Mandei a frase sonhar, e ela se foi num labirinto. Fazer poesia, eu sinto, apenas isso. Dar ordens a um exército, para conquistar um império extinto. (2013, p. 102) Matar significa aqui eliminar a poesia, eliminar os que olham para o mundo de modo diverso do padrão. Eis o papel do poeta e mesmo da poesia, o que quase nunca é vista de modo aceitável. Nesse sentido, a poesia seria algo marginal, algo não central na vida das pessoas. Apesar disso, cabe ao poeta buscar sentido para sua atividade, mesmo em um mundo onde mais vale a prosa (entenda-se, a vida prática, pragmática, que a poesia): Não há verso, tudo é prosa, passos de luz num espelho, verso, ilusão de ótica, verde, o sinal vermelho. [...] (2013, p. 190) (2013, p. 189) 1 “É a vida das coisas que não têm outra escolha” 21 Toda poesia, de Paulo Leminski Há diversos outros poemas nessa linha de confronto entre a resistência da poesia e o ter de buscar a segurança econômica, ou entre a vida poética e a vida pragmática, entre o sonho e o mundo real. Bem significativo nesse sentido é o que segue: quando eu tiver setenta anos então vai acabar esta adolescência vou largar da vida louca e terminar minha livre-docência [...] vou fazer o que minha deseja aproveitar as oportunidades de virar um pilar da sociedade e terminar meu curso de direito [...] intertextuais para se chegar a um determinando sentido. Outro aspecto presente no poema acima é o cinema, assim como as artes em geral, é capaz de criar outro mundo, outra realidade, bem melhor que a própria realidade, uma vez que no cinema os problemas são resolvidos, os desencontros têm um final feliz e tudo se resolve até que o filme termine; ao passo que no mundo real, na vida, muitos problemas ficam pendentes e não se tem certeza se até o fim (a morte) tudo estará resolvido. Entre os diversos poemas cartaz, destaquemos um: (2013, p. 55) E outro, talvez até mais claro sobre o que significa ser poeta ao tratar a escrita em âmbito da marginalidade, do fora do centro ou do ex-cêntrico. Ora, marginal é usado aqui no sentido de não ocupar papel central na sociedade, não no sentido de um bandido, ou fora da lei. Marginal é quem escreve à margem, deixando branca a página para que a paisagem passe e deixe tudo claro à sua passagem. [...] (2013, p. 213) (2013, p. 146) Talvez por isso (e também como meio de sobrevivência da pessoa Paulo Leminski), o autor tenha ido trabalhar como publicitário, o que o fez estabelecer relações mais próximas entre a linguagem literária e a publicitária. Embora os objetivos sejam outros, o fato é que essa aproximação fez de Leminski um poeta ao mesmo tempo de formação erudita e prática mais pop (não por acaso, é um poeta que está entre os primeiros em termos de vendagem de livros...) Essa relação se dá também pela uso de técnicas da poesia concretista, que explora muito a imagem, a escrita outdoor por assim dizer (poemas que parecem cartazes) e, claro, pela referência ao mundo pop, ao mundo da música (Leminski era compositor e teve vários parceiros, entre os quais Caetano Veloso) e do cinema. podem ficar com a realidade esse baixo astral em que tudo entra pelo cano eu quero viver de verdade eu fico com o cinema americano A mensagem não é muito diferente daquilo que está presente em sua poesia como um todo. Ora, mais uma vez vem a pergunta: o que significa escrever? Deixar-se levar pela inspiração, pelo desleixo, ou antes significa um trabalho com a palavra, ser caprichoso? A frase “ao que tudo indica” sugere uma certeza, um cuidado, um caminho certo (tudo indica...). Porém, essa certeza é embaralhada, é desfeita pelas letras, dispostas de maneira aleatória, uma sobre as outras. A certeza assim se desfaz, e é preciso esperar “como tudo fica”. Em outros momentos, diz escrever pela simples atividade de escrever, como se fosse uma atividade natural, mesmo sabendo que não é. Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, Preciso porque estou tonbto. [...] Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? (2013, p. 218) (2013, p. 200) Há um tom de ironia aí, mas que também serve para dizer, entre as artes, o cinema é aquela mais bem preparada para atender às necessidades do mercado, é o que dá mais dinheiro, é a que cria mundos nos quais qualquer pessoa, mesmo a sem maior preparo, pode entrar. Ora, ler poesia pressupõe primeiro ser alfabetizado, depois significa ter alguma sensibilidade, por fim saber estabelecer relações contextuais e Em Quarenta clics de Curitiba, uma constante é o tempo, a passagem do tempo, em relação ao com a literatura, com a arte da escrita, posto que esta, como um clic, isto é, um foto, eterniza um momento. De qualquer modo, mesmo eternizado, o tempo é uma constante. De todos, o poema mais caraterístico dessa visão é o seguinte: 22 Toda poesia, de Paulo Leminski O tempo fica cada vez mais lento e eu lendo lendo lendo vou acabar virando lenda Foi infeliz. Era possessivo como um pronome. E ela era bitransitiva. Tentou ir para os EUA. Não deu. Acharam um artigo indefinido em sua bagagem. A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo. Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça. (21013, p. 23) (2013, p. 158) Neste caso, há um trocadilho entre lento, lendo e lenda. O tempo é, em rigor, inexorável, isto é "o tempo passa", mas pode ficar lento pela leitura, pode se eternizar pela escrita, pela lenda, pela literatura. Leminski também é conhecido por sua grande capacidade de síntese. Dizer muito em poucas palavras. Isso é próprio também da estética concretista, cujo fundamento era o de explorar ao máximo o significante, a palavra. Esse caso pode ser exemplificado por diversos poemas do livro, mas destaquemos um em especial. Trata-se de “Rimas de moda”: 193019601980 Amorhomemama Dor come cama fome Três momentos do século XX que podem significar, em poucas palavras, contextos diferentes, perspectivas diferentes. Se na primeira metade do século há uma pretensa ideia de que o amor está diretamente ligado ao sofrimento (uma visão romântica); na metade há uma visão de caráter mais social; por fim, na segunda metade do século, uma visão de liberação sexual. Claro que o segundo grupo também pode indicar uma conotação sexual, de expressão do desejo, talvez como referência à revolução sexual. De qualquer modo, o poema expressa, sinteticamente, a perspectivas diferentes sobre um mesmo tema. A preocupação metalinguística, já referida, é uma constante em Leminski, mas também é uma constante a preocupação com a reflexão em torno da língua e em torno de estudiosos da língua, vista como meio de comunicação e como material de trabalho do poeta. Há, por isso, poemas que refletem sobre o uso da língua de um ponto de vista pragmático (comunicativo), linguístico, filológico (a história da língua) e/ou gramatical. Entre os quais, destaquemos três poemas: “Ouverture la vie en close” e “EU RO PA”, de La vie en close, “O assassino era o escriba”, de Caprichos & relaxos. Destaquemos versos de cada um desses poemas, a começar por este último. Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito Inexistente. Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular com um paradigma da 1ª conjugação. Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos torturar com um aposto. Casou com uma regência. Observe que o poema faz uma mescla de gêneros textuais (o próprio poema, o gênero descritivo, o narrativo) e observe também como o autor brinca com a função metalinguística, para caracterizar seu personagem (o tal professor). No caso, esse professor preso a regras de condutas morais, mas que, após um casamento infeliz, uma desilusão amorosa, se perde na vida, e enfrenta uma série de situações impensáveis para alguém tão correto quanto ele. em latim “porta” se diz “janua” e “janela” se diz “fenestra” [...] já em inglês “janela” se diz “window” porque por ela entra o vento (“wind”) frio do norte a menos que a fechemos como quem abre o grande dicionário etimológico dos espaços interiores (2013, p. 248) Neste caso, o poeta busca compreender o sentido das palavras de acordo com suas raízes. Trata-se de um princípio poético disseminado ao longo do livro, afinal resgatar uma tradição poética é também estabelecer os parâmetros de compreensão da própria poesia, é expressar possibilidades de leitura. EU O mundo desabava em tua volta, e tu buscavas a alma que se esconde no coração da sílaba SIM. [...] RO Um mundo, o velho mundo, árvore no outono, Hitler entra em Praga, Rússia, revolútzia, [...] PA Roma, Rôman, romântico romã, Jak, Jákob, Jákobson, filho de Jacó, preservar as palavras dos homens. Enquanto houver um fonema, Eu nunca vou estar só. (2013, p. 272) Por fim, neste poema, tem-se uma alusão a momentos da vida do linguista Roman Jakobson (18961982), responsável por estudos na área de comunicação e da linguística na linha estruturalista. Foi ele quem pensou os elementos da comunicação e suas respectivas 23 Toda poesia, de Paulo Leminski funções, entre as quais a metalinguística, tão comum na poesia de Leminski. Os estudos do linguista foram também responsáveis pela base teórica da Poesia Concreta, formulada pelo poeta Haroldo de Campos, de quem Leminski foi seguidor e amigo pessoal. Leminski tem uma variedade grande de poemas, mas aqui procuramos detalhar as principais linhas poéticas de sua produção literária. Com base nesses elementos, é possível ler os demais poemas do livro. Para finalizar, destaquemos um último poema extraído de Caprichos & relaxos e que acaba sintetizando as aspirações nem sempre realizadas, o choque entre a poesia, isto é, a vida simbólica, de busca de significados, de elevação espiritual, de comunicação sensorial, e a vida prosaica, representada na última estrofe: Manchete CHUTES DE POETA NÃO LEVAM PERIGO À META eu queria tanto ser um poeta maldito a massa sofrendo enquanto eu profundo medito eu queria tanto ser um poeta social rosto queimado pelo hálito das multidões em vez olha eu aqui pondo sal nesta sopa rala que mal vai dar para dois EXERCÍCIOS 1. 2. (PUC-PR) Leia o poema: “podem ficar com a realidade esse baixo astral em que tudo entra pelo cano eu quero viver de verdade eu fico com o cinema americano” O poeta Paulo Leminski neste poema usa de procedimento redundante em sua obra. Assinale a alternativa que identifica esse procedimento: (A)Intertextualidade. (B)Ironia. (C)Crítica à sociedade de massa. (D)Fuga à realidade. (E)Desejo de viver intensamente. (PUC-PR) Identifique as alternativas verdadeiras a respeito do poema transcrito, de autoria de Paulo Leminski: RIMAS DA MODA 1930 1960 1980 amor homem ama dor come cama fome I.O título do poema, metalinguístico, indica a importância das semelhanças sonoras na sua composição. II.O poema traça um breve histórico da sucessão de temas privilegiados pela poesia brasileira ao longo do século 20. III. Segundo o texto, em 1960 a poesia voltou-se mais para a problemática social do que para os relacionamentos amorosos. IV. A distribuição espacial das palavras e a presença de números exemplificam a aproximação de Paulo Leminski à Geração de 45. Estão corretas apenas: (A)II, III e IV (B)I e II (C)II e III (D)II e IV (E)I, II e III (2013, p. 90) Sempre importante lembrar, na esteira de Fernando Pessoa, que “o poeta é um fingidor”, isto é, o poeta é um construtor de mitos, de mundos. A expressão do eu não é necessariamente a expressão da subjetividade pessoal. Trata-se de um eu particular, simbólico, expressão, pois, de um sujeito universal em busca da compreensão mais ampla do estar no mundo, tendo a linguagem poética como mediadora entre nossa percepção e a realidade objetiva. Escrevia no espaço. Hoje, grafo no tempo, na pele, na palma, na pétala, luz do momento. Soo na dúvida que separa o silêncio de quem grita do escândalo que cala, no tempo, distância, praça, que a pausa, asa, leva para ir do percalço ao espasmo. Eis a voz, eis o deus, eis a fala, eis que a luz se acendeu na casa e não cabe mais na sala. 3. (ESPM) Leia: noite sem sono o cachorro late um sonho sem dono A forma poética acima é um haicai, de origem japonesa, que valoriza a concisão e a objetividade. Das características abaixo, também do haicai, assinale a que não foi utilizada pelo autor: (Paulo Leminski) 24 Toda poesia, de Paulo Leminski (A)não revelar um “eu” poético subjetivo; 5. Sobre o texto de Paulo Leminski todas as alternativas estão corretas, EXCETO (A)a terminologia sintática e morfológica, que em um primeiro momento é motivo de estranhamento, concede o efeito de humor ao poema. (B)o eu lírico demonstra por meio da composição de texto pessoal e confessional o seu desconhecimento gramatical. (C)nos primeiros sete versos o eu-lírico apresenta seu professor, que, por meio de suas ações e funções, é caracterizado como um torturador. (D)entre os versos 8 e 16 o leitor toma consciência de todos os fracassos que compuseram a vida do professor. (E)o texto é estruturado em forma de narrativa policial, mas em função de sua organização gráfica, métrica e rítmica é considerado um poema. (B)apresentar três versos metrificados; (C)referenciar a solidão e uma estação do ano; (D)oferecer um momento de reflexão para causar uma descoberta; (E)conter poucas palavras, com predominância de substantivos. 4. Leia o poema a seguir: o bicho alfabeto tem vinte e três patas ou quase por onde ele passa nascem palavras e frases com frases se fazem asas palavras o vento leve o bicho alfabeto passa fica o que não se escreve. 6. (LEMINSKI, Paulo. Melhores poemas de Paulo Leminski. São Paulo: Global Editora, 2001.) O tema do texto de Paulo Leminski é o processo e o sentido da escrita associados aos atos de semear e de soltar a imaginação. Transcreva do texto os versos que comprovam cada uma dessas associações. semear imaginação = por onde ele passa nascem palavras Pelos versos, percebe-se que a poesia de Leminski (A)mantém relação com a geometrização das formas e volumes cubista. (B)tem como base os dilemas financeiros do ser humano. (C)valoriza a concisão e é transgressora. (D)é composta por uma observação rigorosa do mundo material. (E)é composta por personagens positivamente idealizados. 7. (Unisinos) Dos trechos abaixo, qual aquele que melhor representa a literatura contemporânea (atual): (A)Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. (Camões) (B)Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. (Gonçalves Dias) (C)não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase (Paulo Leminski) (D)Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela...(Olavo Bilac) (E)Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável (Augusto dos Anjos) soltar a imaginação = o vento leve o bicho alfabeto passa fica o que não se escreve. (Mackenzie) Leia o poema a seguir e responda às questões 5 e 6: Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente. Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida, regular como um paradigma da 1.ª conjugação. Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético de nos torturar com um aposto. Casou com uma regência. Foi infeliz. Era possessivo como um pronome. E ela era bitransitiva. Tentou ir para os EUA. Não deu. Acharam um artigo indefinido em sua bagagem. A interjeição do bigode declinava partículas expletivas, conectivos e agentes da passiva, o tempo todo. Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça. 25 Toda poesia, de Paulo Leminski (UEL) Leia o poema, a seguir, e responda às questões 8 e 9: estupor esse súbito não ter esse estúpido querer que me leva a duvidar quando eu devia crer esse sentir-se cair quando não existe lugar aonde se possa ir esse pegar ou largar essa poesia vulgar que não me deixa mentir No que diz respeito aos procedimentos formais verificados (rimas, sonoridade e jogos de palavras) e aos sentidos construídos, relacione os dois primeiros versos ao restante do poema. Resposta oficial: Os dois primeiros versos do poema “Mandei a palavra rimar, / Ela não me obedeceu” mostram o eu lírico em seu processo de criação. Ali, há a expectativa de que a palavra rime, seguida da constatação de que ela desobedece a essa ordem. Ao longo do poema, quanto à forma, encontramse rimas externas rosa/prosa e internas sinto/extinto, sonoridade “sílaba silenciosa” e jogos de palavras, embora o eu lírico afirme que ela não obedeceu a ele. No que diz respeito aos sentidos, o poema mantém o tom conflituoso e até paradoxal, que descreve esse embate entre poeta e palavra. A ideia de liberdade e desobediência, exposta nos versos iniciais, confirmase ao longo do poema em versos como “parecia fora de si” ou “se foi num labirinto”. (LEMINSKI, P. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.249.) 8. O título do poema refere-se (A)ao efeito da poesia vulgar sobre o leitor estúpido. (B)ao estado do eu lírico, dividido entre o crer e o duvidar. (C)ao fazer poético, atividade vulgar que engana o receptor. (D)ao poeta, estupefato com a carência de sensações. (E)à poesia, que inspira o súbito desejo de fuga de um lugar inóspito. 9. Considerando o poema no conjunto da obra Toda Poesia, de Paulo Leminski, é correto afirmar que (A)exemplifica a metalinguagem praticada pelo autor. (B)a poesia de Leminski é vulgar porque utiliza formas poéticas livres. (C)a adjetivação intensa no poema é um traço recorrente em sua obra. (D)o heptassílabo é o verso mais cultivado na produção leminskiana. (E)o esquema de rimas encontra equivalência na obra Ideolágrimas. gABARITO 1.D 2.E 3.C 4. semear imaginação = por onde ele passa nascem palavras soltar a imaginação = o vento leve o bicho alfabeto passa fica o que não se escreve. 5.B 6.C 7.C 8.B 9.A 10. Os dois primeiros versos do poema “Mandei a palavra rimar, / Ela não me obedeceu” mostram o eu lírico em seu processo de criação. Ali, há a expectativa de que a palavra rime, seguida da constatação de que ela desobedece a essa ordem. Ao longo do poema, quanto à forma, encontram-se rimas externas rosa/ prosa e internas sinto/extinto, sonoridade “sílaba silenciosa” e jogos de palavras, embora o eu lírico afirme que ela não obedeceu a ele. No que diz respeito aos sentidos, o poema mantém o tom conflituoso e até paradoxal, que descreve esse embate entre poeta e palavra. A ideia de liberdade e desobediência, exposta nos versos iniciais, confirma-se ao longo do poema em versos como “parecia fora de si” ou “se foi num labirinto”. 10. (UEL) Leia o poema a seguir. desencontrários ela Mandei a palavra rimar, ela não me obedeceu. ela Falou em mar, em céu, em rosa, em grego, em silêncio, em prosa. ela Parecia fora de si, a sílaba silenciosa. ela Mandei a frase sonhar, e ela se foi num labirinto. ela Fazer poesia, eu sinto, apenas isso. Dar ordens a um exército, ela para conquistar um império extinto. (LEMINSKI, P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.190.) 26 Vozes anoitecidas de Mia Couto Durante duas semanas o velho dedicou-se ao buraco. Quanto mais perto do fim mais se demorava. (p. 23) Porém, durante a execução desse trabalho, que não foi fácil, e devido à chuva que tomou, o velho ficou doente. Acamado, volta a ter a preocupação pela mulher, afinal quem a colocaria na cova se ele viesse a morrer. Por isso mesmo, decide que a cova não pode ficar sem serventia e que o melhor a se fazer é matar a mulher antes que ele próprio morra. Ainda que seja estranho, não se trata de uma decisão com ódio ou outro sentimento ruim. Acredita, segundo sua visão de mundo, que esse é o correto a se fazer. A mulher, comunicada pelo marido sobre tal decisão, aceita passivamente, sem admoestá-lo, sem se revoltar ou falar qualquer coisa em contrário. – É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim. (p. 25) No dia seguinte, o marido não resiste e é encontrado morto pela mulher. Durante a noite, a velha sonhara com os antepassados, sonhara com as histórias contadas e o sentido que faziam para manter a integridade do grupo. O que se deve, portanto, destacar no conto é, além da extrema pobreza em que vivem, a singeleza e a harmonia do casal, é. Se falta riqueza material, sobram a eles exatamente elementos da cultura local, o respeito à sabedoria dos mais velhos, o respeito às decisões. Esse primeiro conto revela já o contraste entre o mundo moderno, egoísta, de busca por novidades e a harmonia de uma sociedade que, como os velhos, morrem e eles próprios têm de cavar a própria cova. No segundo conto, “O último aviso do corvo falador”, temos uma história que se aproxima do maravilhoso, embora tenha um tanto de enganação também. Isso porque, como o título indica, um corvo seria capaz de falar com os mortos e prever o futuro. Seu nascimento foi um tanto esdrúxulo, se é que tenha ocorrido como narrado de fato. Zuzé Peraza, um pintor, teria “vomitado” o corvo e de imediato mostrara sua habilidade em falar. Porém, o único a compreender sua fala era o próprio Zuzé. Verdade ou não, o pintor de parede passou a ser visto pela comunidade como alguém detentor de poderes mágicos e era sempre consultado por essa pretensa habilidade que teria o corvo. Os pedidos logo acorreram numerosos. Zuzé já não tinha quarto, era gabinete. Não dava conversa, eram consultas. [...] E assim entra na história Dona Cândida, mulata de volumosa bondade, mulher sem inimigos. (p. 30) Dona Cândida fora casada com Evaristo, um negro da região. Porém, com a morte dele, e sem esperar muito, casou-se com um comerciante de origem indiana, chamado Sulemane, um comerciante da região. Vozes anoitecidas é o primeiro livro de contos de Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto. O escritor moçambicano, nascido em 1955, publicou esse livro em 1987. São doze contos que levam o leitor a ter experiências ora um tanto absurdas, ora um tanto fantásticas, mas cujo objetivo é sempre o de chamar a atenção para os conflitos da vida, as situações em que o drama e a angústia se fazem presentes pelos mais variados motivos. O título do livro apresenta um tanto de metafórico. O termo vozes remete à construção discursiva, à possibilidade de se expressar, oralmente em especial, o que é bastante pertinente, considerando que a ancestralidade africana se faz presente. E o termo anoitecidas nos remete igualmente a uma tradição moçambicana, pois segundo Henri Junod, que fez um profundo estudo sob re a cultura no sul de Moçambique, a narração dos contos africanos obedece a determinados rituais: Há que tomar uma bizarra precaução quando se contam contos: é um tabu fazê-lo durante o dia; trata-se de um entretenimento da noite; o que transgredir essa regra torna-se calvo! (...) Penso que essa proibição provém de que, como esse jogo é tão popular, os indígenas receiam consagrarlhe tempo demasiado: perderiam toda vontade de trabalhar, se começassem a jogá-lo logo a meio dia. Por isso se interditaram, instintivamente, a narração de contos durante o dia (JUNOD, apud LOPES, 2004, p. 185). Apesar desse componente mais local, o leitor brasileiro ou de outros países pode bem se deparar com situações similares, pois Couto consegue abordar temáticas abrangentes, especialmente as relações mais diversas. O próprio Mia Couto em prefácio revela que anoitecer as vozes significa impedir o desenvolvimento da imaginação, da fantasia. Quer dizer, um discurso que é impedido de se manifestar por estar nas trevas, no esquecimento. Contra isso, contra o esquecimento, manifesta-se a literatura, que tira do limbo, da escuridão as histórias ou esquecidas ou não contadas. Esse é, pois, o papel do escritor, o de inventar ou o de resgatar histórias orais. O que chama a atenção inicialmente na literatura de Couto é a semelhança com a obra de Guimarães Rosa, especialmente por conta dessa oralidade, do trabalho estético da oralidade. Sem dúvida, o leitor experiente conseguirá perceber as semelhanças entre os dois autores. No primeiro conto do livro, “A fogueira”, tem-se a história de um casal de idosos. Como estão velhos e sozinhos, o marido tem uma preocupação: saber quem enterraria a mulher se ele morresse antes dela. Por este motivo, resolve, com a anuência da esposa, cavar uma cova para a esposa. E faz isso todos os dias, devagar devido à idade e à pouca força. 27 Vozes anoitecidas, de Bia Couto Segundo o que foi relatado no conto, a morte de um marido deveria suceder um ritual de modo dar-lhe sossego espiritual na outra vida. Mudando aqui ou ali, as culturas em geral têm grande respeito pelos mortos. Lembrando-se que no Brasil, o dia 02 de novembro é dedicado a eles. Tais crenças despertam também crendices. No caso, Sulemane parecia não conseguir ter relações com Dona Cândida, e ela acreditava que poderia ser devido a algum feitiço do marido morto. Zuzé Paraza cruzou as mãos, acariciou corvo. Tinha suas suspeitas: Evaristo era da raça negra, natural da região. Dona Cândida, com certeza não cumprira as cerimónias da tradição para afastar a morte do primeiro marido. (p. 32) Obrigava-o a trabalhar o dia todo e ainda o ameaçava caso perdesse algum boi. Por isso, o jovem pastor ficou preocupado em retornar sem o principal boi do rebanho. A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras, mas não encontrava saída. (p. 42) Azarias gostaria muito de estudar, ter perspectivas de uma vida melhor, assim como, inclusive, ter tempo para se divertir, brincar, o que o tio impedia de ele fazer porque tinha sempre de trabalhar. O conto explora, pois, o estado de pobreza de muitos moçambicanos, bem como reproduz a tirania de determinados grupos sobre os demais. No conto isso ocorre mesmo entre parentes. Além disso, a presença de minas é indicativa das guerras travadas em Moçambique após o processo de independência do país, ocorrido nas décadas de 60 e 70 do século XX. Apesar da suspeita, ela confirma que fizera tudo quanto mandaram. Zuzé pede ao corvo que investigue o caso. Mesmo com algum temor da mulher, ele pousa em seu ombro. O conto tem um tanto de cômico também, pelo inusitado da cena. O leitor é capaz de perceber as intenções de Zuzé. Após ouvir o corvo, ele conclui que Everisto deveria estar passando frio e que precisaria das suas roupas. Como ela, no ritual de encomendação, já se desfizera das roupas, Zuzé propõe que dê roupas do atual noivo, que o Evaristo certamente não se importaria. – O Sulemane não pode saber disto. Meu Deus! Se ele desconfia! – Fica descansada, dona Candida. Ninguém vai saber. Só eu e o corvo. (p. 34) Já era noite e Raul estava preocupado com o sumiço do sobrinho. Não tanto com o bem-estar dele, e sim porque achava que o menino estaria vadiando. Ameaçava-o e rogava pragas contra o menino. Nesse momento, soube por soldados locais o que ocorrera. Raul, mesmo alertado para a possibilidade de pisarem outras minas, decide ir atrás do menino, que, mesmo não tendo culpa, ainda assim pensava em castigá-lo. Carolina vai atrás dos dois. A senhora, mais compreensível, localiza o neto e tenta convencê-lo a se apresentar, dizendo que Raul não bateria nele. De fato, Zuzé vestir as roupas entregues por Dona Cândida. Mais tarde, Sulemane toma conhecimento que as suas roupas estavam com Zuzé e, procura-o para ajustar as contas. O encontro resulta em agressão física e na morte do pássaro por um acidente. Na discussão, Sulemane cai sobre a ave. Diante da situação, Azarias faz uma exigência: que pudesse começar a estudar no ano seguinte. Aparentemente o tio Raul concorda com o pedido. Porém, ao sair para ir ao encontro do tio e a da avó, Azarias aciona uma mina e morre. A descrição é um tanto poética e sugere uma espécie de libertação da opressão a que era submetido o menino. O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. [...] Azaria correu e abraçou-a [ndlati] na viagem da sua chama. (p. 47) Zuzé, aproveitando-se da atitude intempestiva de Sulemane que acaba mantando por acidente a ave, faz profecias malignas contra. Sulemane, logo em seguida, começa a passar mal. O fato serviu para reforçar a crença nos poderes de Zuzé. A notícia, como um relâmpago, correu a povoação. Afinal, esse Zuzé! Era mesmo, o gajo. Dono de bruxezas, realmente. (p. 38) Em “De como vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro”, conforme indica o título, o conto tem como personagem principal Ascolino do Perpétuo Socorro, casado com a dona Epifania e, tinha Vasco João Joãoquinho como seu empregado e que manobrava a bicicleta que carregava Ascolino pela cidade. Tratase de um conto em que a comédia prevalece. Outra característica é a semelhança com a narrativa de Guimarães Rosa. Ascolino é um personagem um tanto caricato, seu modo de falar é bem marcado, revelando uma pretensa nobreza. Após esses acontecimentos, Zuzé tem de abandonar o local, porque também previra dificuldades para todos na região. Crendo nisso e na atitude do pintor elevado à condição de bruxo, um a um, os moradores abandonaram suas casas e partiram para outras terras. O conto explora, portanto, as crendices populares. “O dia em que explodiu Mabata-bata” também o início marcado por crendice. No caso, um boi chamado Mabata-bata explode quando pastava em um campo minado. O pastor, o jovem Azarias, acredita que tenha sido obra de ndlati, a ave do relâmpago, que teria enviado um raio, mesmo em um dia claro, sem nuvens. Originário de Goa, morava em Moçambique e se intitulava “indo-português [...], católico de fé e costume” (p. 59). Apenas como referência, Goa é atualmente um dos estados da Índia, mas foi território português na Ásia entre 1510 e 1961. Azarias era órfão e morava com um tio, Raul, e a avó, Carolina. O tio, no entanto, não o tratava bem. 28 Vozes anoitecidas, de Bia Couto louco do local. Tentaram tirá-lo da margem, mas, estranhamente, parecia colado à terra. Mesmo os homens mais fortes da aldeia não conseguiram tirar o cadáver de onde estava. Vestia sempre de rigor, fato de linho branco, sapatos de igual branco, chapéu de idem cor. Cerimonioso, emendado, Ascolino costurava no discurso os rendilhados lusitanos da sua admiração. [...] Qui tém, homem? Essetragô sapúe de nosso. Não obstante, qui vai pagar?” (p. 59 e 61) Começou, nesse momento, uma tempestade, o que muito assustou os moradores, imaginando que poderia ser o castigo anunciado por Timba. E esta chuva que consegue mover seu corpo rio abaixo. Plácido, o rio foi ficando longe, a rir-se da ignorância dos homens. E num embalo terno foi lavando Ernesto Timba, corrente abaixo, a mostrar-lhe os caminhos que ele apenas tinha aflorado em sonhos. (p. 56) O drama de Ascolino é que ele era infeliz no casamento, pois Dona Epifânia não lhe dava atenção e o carinho que ele desejava. Era uma mulher muito devota a Deus. Com isso, a diversão de Ascolino era beber no bar do Meneses, na companhia do seu empregado João. Porém, para não se misturarem, Ascolino ficava na parte de frente com outros brancos; João, por sua vez, ficava na parte traseira com outros homens negros. Com esse término, o narrador faz uma oposição entre a racionalidade que contraria a fantasia, o sonho. Esse contraste é tipificado entre o pescador e demais moradores, que o viam como um desequilibrado. Já a diversão de João era narrar aos amigos as peripécias de Ascolino, o que ele fazia para ter a atenção da esposa. Certa feita, destruiu móveis da casa, quis destruir as imagens dos santos e símbolos religiosos, para ver se a esposa olhava para ele. Porém, o efeito foi o contrário. Dona Epifânia resolve abandonar o marido. Já em “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar”, também remete o leitor a Guimarães Rosa, pois o narrador se dirige a um interlocutor ausente, no caso um advogado. Na esteira de Riobaldo (de Grande sertão: veredas), o narrador quer confessar seu crime. Alertado por Vasco, Ascolino diz que eles têm de perseguir o caminhão que estava levando a mudança da esposa. Manda Vasco pegar a bicicleta e irem atrás dela. Evidente que jamais alcançariam a esposa assim. Apesar disso, Vasco prepara a bicicleta em partem em busca dela. Não, sem antes Ascolino dizer: – Pedal, pedal depresse. Não obstante, temos que chegar cedo. Hora de cinco hora temos que volta na cantina de Meneses. (p. 71) A história, dividida em quatro partes, trata como o narrador matou sua esposa, os motivos que o levaram a cometer o crime, bem como sobre seu arrependimento e necessidade de pagar pelo crime. Seu objetivo é explicar ao advogado como ocorreu tudo. O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender. [...] Afinal, estou aqui na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada, não foi ninguém que queixou. Farto de mim me denunciei. (p. 75-76) Em “Os pássaros de Deus”, conta-se a história de Ernesto Timba, pescador, que também acaba por ser adotado por um pássaro. Ernesto passou a acreditar que o pássaro seria um mensageiro de Deus. Isso porque, enquanto pescava, um pássaro pousou em sua canoa. Tentou afugentá-lo, mas ele não ia embora. Nada, o pássaro não se mexia. Foi então que o pescador suspeitou: aquilo não era um pássaro, era um sinal de Deus. Esse aviso do céu havia de matar, para sempre o seu sossego. (p. 53) O caso tem início quando Bartolomeu, cunhado do narrador, deixa cair, acidentalmente, em sua esposa uma lenha em brasa. A mulher emite um grito estranho, como se fosse de um animal. Na cultura moçambicana tradicional, o fato indica que ela seria uma nóii, isto é, uma feiticeira. Alertado por Bartolomeu, o narrador fica preocupado e imagina ser casado com uma também, afinal eram irmãs. Por isso, resolve tirar a prova. Joga em Carlota água fervendo. Porém, para sua surpresa, ela não gritou, apenas chorou sem muito barulho. Ele, então, ficou em dúvida, imaginava que ela poderia se transformar em um animal. Por isso o título do conto. Ela não virou um pássaro ou coisa parecida. Apenas sofreu até a morte. Ainda assim, o narrador continuou a acreditar que ela seria uma nóii. Conclusão que tirei dos pensamentos: Carlota Gentina era um pássaro, desses que perdem voz nos contraventos. (p. 79) Resolveu levá-lo para sua casa. Não demorou muito para que surgisse outro pássaro. Era um casal, que gerou filhotes. Como chegava a desviar comida destinada à família para alimentar o pássaro, a comunidade passou a vê-lo como. Na aldeia, espalhou-se a suspeita: Ernesto Timba estava era maluco. A própria mulher, depois de muito ameçar, abandonou o lar, levando com ela todos os filhos. (p. 55) Em certo momento, após voltar do trabalho, Timba encontra o pássaro morto, havia sido queimado na gaiola. O fato o leva a acreditar que os assassinos do pássaro seriam amaldiçoados por serem pássaros divinos. Por isso, ele sabe que cometeu um crime, mas não contra os homens, e sim contra a cultura local. Ele se divide entre o mundo português, com suas leis, cultura e a cultura moçambicana. Chega a dizer que “mesmo brancos somos pretos”, ou seja, não porque houve a colonização que o ser moçambicano está totalmente morto. Trata-se, portanto, de um conto Em certo momento, Timba, que tinha muita tristeza, é encontrado morto às margens do rio onde costumava pescar. Logo anunciaram a morte do 29 Vozes anoitecidas, de Bia Couto efeitos, a história de que ele teria tido contado com esses animais marinhos seria verdadeira. Na verdade, eram submarinos. João acaba morrendo em uma tempestade sem avistar as tais baleias. que revela a preocupação localista de Mia Couto. Em resumo, o narrador acredita que deva ser julgado pela justiça tradicional, pois seria julgado considerando a tradição. Partindo do princípio de que o seu crime foi por uma justa causa, a desconfiança que teve. Outra narrativa em que a água é importante é “De como o velho Jossias foi salvo das águas”. No caso, há uma enchente, mas Jossias, antigo morador da região, não queria abandonar o local. Imaginava que morrer ali seria uma honra. Mas os salva-vidas procuravam por sobreviventes em uma das enchentes e, mesmo a contragosto, Jossias acaba sendo salvo. Desejou que a viagem não tivesse fim como se o salvassem do tempo e não das águas, como se o tivessem liberto não da morte mas da sua terrível e solitária espera. Com olhos de menino, fixou o escuro engolindo a terra, a tarde anoitecendo tudo. (p. 113-114) “Saíde, o Lata de Água” é um interessante conto por dois motivos: primeiro por jogar com o binômio fantasia e verdade, invenção e realidade; depois, porque aborda o machismo sob ótica pós-moderna. No caso, Saíde se casa com uma mulher, Júlia, que já havia se relacionado com outros homens. A despeito de muitos criticarem Saíde, que acreditavam que ele deveria se casar com uma virgem, insiste no casamento. Quando souberam que andava com ela, condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia escolher uma intacta, para ser estreada com seu corpo. (p. 88) Em “A menina de futuro torcido”, tem-se uma história comum a pessoas de países subdesenvolvidos, em que a pobreza prevalece. A perspectiva de um futuro fica tolhida pela falta de oportunidade. Com isso, quando surge uma, por absurda que seja, agarrase com toda a gana. É o que fez Joseldo Bastante. Pai de doze filhos, em certa feita em que apareceu uma trupe de contorcionistas na aldeia, decidiu que uma de suas filhas, por ser magrinha, a Filomeninha, seria uma artista, seria uma contorcionista. – A partir desse momento, vais treinas curvar-te, levar a cabeça até no chão e vice-versa. (p. 128) Trata-se de um discurso machista recorrente, a ideia segundo a qual a mulher para se casar deve permanecer virgem. Casados, precisavam de filhos, “é um documento exigido pelos respeitos”. No entanto, Saíde é estéril. Por isso, pede à mulher que se deite com outro homem para poder engravidar. Apesar do absurdo da situação, ela aceita, e passa a dormir com homens diferentes, até que consegue engravidar. Em um acesso de raiva e ciúmes, exija saber que seria o verdadeiro pai. Júlia, porém, se recusa a falar, afirmando apenas que ele era o pai verdadeiro. E assim fez. Com base na própria intuição, Joseldo iniciou treinamentos com a filha, os mais disparatados, como amarrar a filha para esticá-la ou jogar água quente de modo a deixá-la mole... Também quase não alimentava a filha, que começou a ficar doente. Joseldo, de sua parte, acreditava estava fazendo de maneira correta o treinamento e não dava ouvidos às reclamações da filha. Em princípio, o casamento se assenta, ainda mais com o nascimento do filho. Assim, para encobrir uma mentira, teve de inventar outra. Ninguém poderia saber que ele era incapaz de fazer filhos em uma mulher. Também não podiam saber que ele havia sido traído com seu consentimento. De qualquer modo, passa a ameaçar a esposa, que decide ir embora às escondidas da cidade. Para completar o mundo de mentiras, fantasioso, passa a bater na mulher quase todas as noites. A vizinhança quer saber o que estava acontecendo e um representante, Severino, inquire de Saíde o porquê de tanta violência contra a esposa. Conta então uma das verdades, que ela havia partido, mas para manter a aparência de que o casamento ainda continuava, inventava que estaria batendo nela. – Eu faço isto não sei porquê. É para vocês pensarem que ela ainda está. Ninguém pode saber que fui abandonado. Sempre que bato não é ninguém que está por baixo desse barulho. Vocês todos pensam que ela não si porque sofre da vergonha dos vizinhos. Enquanto não... (p. 92) Até que resolve partir com Filomena para a cidade e mostrá-la ao empresário de circo, que a vê, adverte o pai de que a menina parecia doente e ainda diz que contorcionismo já era. Nem queria mais ver esse número. – A única coisa que me interessa agora esses tipos com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que vocês às vezes têm, capazes de roer madeira e mastigar pregos. (p. 131) De volta à aldeia, Joseldo imaginou que a filha parecia ter esses tais dentes fortes... Porém, no mesmo instante em que olhou para ela, esperando uma resposta para a nova empreitada, a menina tombou desfalecida nos braços do pai. Em respeito ao amigo, Severino decide manter o segredo. “A história dos aparecidos” é o conto mais denso do livro. Retrata o desaparecimento de alguns cidadãos, cuja morte foi operada pelo Estado, mas oficialmente teriam se afogado ou morrido de alguma doença. Moçambique viveu sob o regime português até 1975. Depois disso houve guerra civil em busca da consolidação do poder por grupos ideológicos diferentes, ou sob inspiração marxista ou sob inspiração Nessa mesma linha de jogo entre fantasia e realidade, está “As baleias de Quissico”, me que o mágico parece mais plausível que a própria realidade. É a história de Bento João Mussavele, que acreditava que um dia encontraria baleias na praia. Isso não acontece de verdade, mesmo assim para todos os 30 Vozes anoitecidas, de Bia Couto mais liberalista. Em momentos assim, é comum que haja uma perseguição aos direitos civis, e os cidadãos fiquem sem a devida liberdade de expressão. No caso do conto, a ideia é falar sobre a morte civil. Se o indivíduo está vivo, oficialmente está morto. E é contra isso que devem lutar alguns personagens, Luís e Aníbal. – Como não estamos? Vocês riscam a pessoa assim qualquer maneira? – Mas vocês morreram, nem sei como que estão aqui. – Morremos como? Não acredita que estamos vivos? – Talvez, estou confuso. Mas este assunto de vivo não-vivo é melhor falarmos com os outros camaradas. (p. 118-119) A história tem como ponto central o assassinato de uma chinesa, chamada Mississe. Em princípio, o autor do crime seria Panhoca, referido no título do conto. A narrativa vai sendo construída aos poucos. Primeiros sabemos quem é Mississe, uma viúva chinesa, que morava em Muchatazina, Moçambique e que, pelo exotismo, era assediada por muitos portugueses e também moçambicanos. Mas ela não demonstrava interesse por ninguém. A viúva embrulhava-se nos azedos, enviuvando sempre mais. Os portugueses, ricos até, saíam de ombros cabisbaixos. (p. 138) Patanhoca, que significa na língua local aquele que pega cobra, era um domador de serpentes. Embora tivesse essa habilidade, era, segundo o narrador, um coitado, alguém sem posses materiais ou possuidor de vasta cultura. O narrador não sabe muito sobre sua vida pregressa. Sabe apenas que ele lida com cobras, que as doma e que tira o couro delas. Conhecendo a história da viúva, decidiu que a protegeria dos assediadores, dos que porventura quisessem lhe fazer mal. Por isso, soltava suas cobras no entorno da casa da chinesa, impedindo que ela saísse ou que alguém se aproximasse durante a noite. “Tudo isso, todo esse serviço de guarda, o Patanhoca fazia sem pedir a troca”. (p. 140) Toda a aldeia ficou surpresa. Não sabiam o que fazer, como agir. Depreende-se daí a importância maior que se dá à burocracia que a aspectos reais e efetivos do ser humano, como estar vivo de fato e necessitar de suprimentos básicos para a sobrevivência. A resolução vem de uma comissão governamental, que conclui estarem de fatos os dois vivos, mas que deveriam estar mais atentos para que isso não viesse a se repetir. – Mas os dois aparecidos é bom serem avisados que não devem repetir essa saída da aldeia ou da vida ou seja lá de onde. Aplicamos a política da clemência, mas não iremos permitir a próxima vez. (p. 123) Após esse acontecimento, quatro noites se passaram. Na primeira, a chinesa convidou o domador de cobras para que entrasse em sua casa. Ele não entendeu o motivo ou se fez de inocente. Ela o chamou de João, o que causou mais descontentamento ainda, pois preferia ser chamado por seu apelido. É provável que quisesse esquecer o passado. – Sou Patanhoca, eu mesmo. Não é só nome que fui dado. Tenho focinho, não é cara de pessoa. (p. 142) Apesar de algum non sense, a decisão tem um tanto de irônico, e para isso que o narrador chama a atenção, para o absurdo da sociedade totalmente controlada por um poder estatal, que retira dos indivíduos a autonomia até mesmo para ser, para existir. Mia Couto escreve sobre diversas temáticas, desde aquelas mais cômicas, até essas mais trágicas, sempre com o intuito de retratar Moçambique em toda a sua riqueza cultural. Como país colonizado, caso do Brasil também, há sempre um choque cultural, entre a tradição local e a trazida pelos colonizadores. Às vezes, dessa mistura, surge uma cultura mestiça; às vezes, surge também o conflito, o embate entre perspectivas. “Patanhoca, o cobreiro apaixonado” é o último conto do livro. Dividido em seis partes, tematiza assuntos diversos: da eutanásia à xenofobia. Na segunda noite, ela o espera ainda mais bonita e ele chega mais cedo. Apesar de ela mostrar verdadeiro interesse por ele, Patanhoca quer manterse distante. Parece que são mundos que colidem e ele quer preservar o que é, sem misturar-se com uma mulher de outro país, outra cultura. Mesmo assim, aproximam-se sem ter algo efetivo. Por isso mesmo, nessa segunda noite, têm uma primeira briga, motivado por um pretenso ciúmes. “A china Mississe roubara-lhe o fogo que a gente acende nos outros”. (p. 145) No início, há uma pequena reflexão sobre o narrado. Se aquilo que se narra é a verdade, ou apenas um modo de olhar para a verdade. Se é possível apreender o todo ou apenas parte dele. Em rigor, a literatura tem como um de seus objetivos explicar o real com base na fantasia, na imaginação. E o todo depende de várias partes: do olhar de quem escreve, de quem conta, ao olhar de quem lê. Não quero mostrar verdade, disse nunca soube. Se invento é culpa da vida. A verdade, afinal, é filha mulata de uma pergunta mentirosa. (p. 135) A terceira noite é marcada pelo conflito dele, quer esquecê-la, não quer ser envolver com essa mulher, isso significaria mudar sua vida, seu estilo de vida que havia adotado, inclusive com outro nome, não mais o nome de batismo, um nome cristão. Tem dúvida também se ela ainda o iria querer por conta da briga da segunda noite. Teve então um sonho. Ouviu as visões com atenção. Diziam o seguinte: ela estava arrependida, perdoara. Ele seria aceite, outra vez João, outra vez nome e cara. Outra vez gostado. (p. 147) 31 Vozes anoitecidas, de Bia Couto E, de acordo com que sonhara, ela o esperava na outra noite, ainda mais bonita. Ele se sentiu confiante, sentiu-se não mais o Patanhoca, e sim o João, como ela preferia chamá-lo. Ela o chamou para beberem, deixarem-se levar pelo desejo, pelas sensações. Ele fica confuso com isso. “Agora, sou João ou Patanhoca?” Ela então lhe pede um favor, queria que buscasse um remédio, um mitombo. Não fica claro o que seria isso. Ele próprio fica em dúvida qual seria a razão do pedido: “talvez era uma armadilha, aldrabice de esperanças”. Seria um remédio devido a uma picada de cobras? 3. (UEL) Algumas expressões idiomáticas da língua portuguesa são recriadas em O outro pé da sereia, de Mia Couto, como ocorre no seguinte fragmento: (F)“O navio é uma ilha habitada por homens e seus fantasmas”. (G)“Quem tem insônia é o peixe que só adormece na frigideira”. (H)“É que isto, em Vila Longe, vai de animal a pior”. Na verdade, o final, um tanto ambíguo, revela a real intenção da chinesa: ela queria se matar, queria o tal remédio, que na verdade seria o veneno da cobra para poder se matar. Por esse motivo, João passou como o assassino da viúva, mas isso fica no plano da ambiguidade, conforme anunciara desde o início o narrador. (I) “A melhor maneira de mentir é ficar calado”. (J) “As mãos eram um incêndio”. 4. Leia o seguinte fragmento do conto “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar” e analise as afirmativas a seguir: Com esse Vozes anoitecidas, Mia Couto revela um mundo que ficaria esquecido sem o discurso literário, quer, pois, revelar a cultura moçambicana, os contrastes dessa cultura que tenta libertar-se das amarras coloniais, mas reconhece a importância dessa mistura para ser o que é. EXERCÍCIOS O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender. [...] Afinal, estou aqui na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada, não foi ninguém que queixou. Farto de mim me denunciei. (p. 75-76) I. O marido, nesse conto, afirma ter matado sua esposa por acreditar que ela era uma bruxa. Obs.: Como não há questões de vestibulares sobre Vozes anoitecidas, colocamos algumas outras sobre livros diversos de Mia Couto. II. Ele prontamente se entrega à polícia após o acontecido. III. Supôs que a mulher fosse uma bruxa porque o cunhado narrador havia lhe dito que desconfiava da esposa, que era irmã de Carlota. 1. Conto em que se tem a história de um casal de idosos, e o marido decide fazer uma cova para enterrar sua esposa. (A)Patanhoca, o cobreiro apaixonado (B)A menina de futuro torcido (C)A história dos aparecidos (D)Saíde, o Lata de Água (E)A fogueira Está correto o que se afirma em: (A)Apenas I e III (B)Apenas I e II (C)Apenas II (D)Apenas III (E)Em I, II e III 2. (UEL) A crítica literária tem aproximado o moçambicano Mia Couto do brasileiro Guimarães Rosa, em particular pelo fato de ambos empregarem neologismos em suas obras. No trecho “as mãos calosas, de enxadachim”, extraído do conto “Fatalidade”, de autoria do autor brasileiro, o neologismo “enxadachim” é construído pelo mesmo processo de formação de palavras utilizado pelo autor moçambicano para a criação de (A)vitupérios. (B)bebericava. (C)tamanhoso. (D)mudançarinos. (E)malfadado. 5. Vozes anoitecidas, de Mia Couto, é um: (A)romance que trata da vida dos imigrantes africanos que decidem ir até Portugal. (B)livro de contos, que tematizam diversos aspectos da cultura moçambicana. (C)livro de crônicas, que falam sobre a vide em Portugal e também em Moçambique. (D)romance em que se verifica a preocupação do autor em resgatar a cultura oral de Moçambique. (E)livro de contos, que fazem uma inter-relação entre Brasil, Portugal e Moçambique. 32 Vozes anoitecidas, de Bia Couto 7. 6.((PUC_MG) Fragmento do ensaio “Língua que não sabíamos que sabíamos”, de Mia Couto. Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as insuportáveis dores. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar: — Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida. — Desconhecida? — pergunta ele. — Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada! O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ganhando mais à-vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos vivos. [...] Moçambique é um extenso país, tão extenso quanto recente. Existem mais de 25 línguas distintas. Desde o ano da Independência, alcançada em 1975, o português é a língua oficial. Há trinta anos apenas, uma minoria absoluta falava essa língua ironicamente tomada de empréstimo do colonizador para negar o passado colonial. Há trinta anos, quase nenhum moçambicano tinha o português como língua materna. Agora, mais de 12% dos moçambicanos têm o português como seu primeiro idioma. E a grande maioria entende e fala português inculcando na norma portuguesa as marcas das culturas de raiz africana. (A)I, apenas. (B)II, apenas. (C)I e III, apenas. (D)II e III, apenas. (E)I, II e III. In: COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? e outras interinvenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 11-18. (PUC-RS) Leia o trecho extraído do romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto, e responda à questão. De imediato, centenas de pessoas se lançaram em todo tipo de embarcações, das pequenas às mais mínimas, para assaltarem o navio malfragado, afim de se servirem das ditas xicalamidades. [...] Desde então, a situação só piorou pois, consoante o secretário do administrador, a população não se comporta civilmente na presença da fome. Muita gente insistia agora em voltar ao tal navio pois lá sobrava comida que daria para salvar filhos, mães e uma africanidade de parentes. [...] Assame foi preso, sujado por mil bocas. Na prisão lhe bateram, chambocado nas costas até que as pernas se exilaram daquele sofrimento que lhe era infligido. Perdeu o sentimento da cintura para baixo. Assane passou as palmas das mãos pelas desempregadas coxas. Tinha sido apenas há dias que lhe abriram a porta da prisão. Ainda nem sabia bem se arrastar de mão pelo chão. Por isso as sacudia, limpando essas mãos que ele sempre aplicara nos documentos. Com base no trecho e em seu contexto, leia as seguintes afirmativas. I. As obras de Mia Couto exploram, de modo geral, o mundo simbólico moçambicano, a guerra e as tensas relações entre o africano e o europeu. II.O trabalho com a linguagem literária torna-se evidente a partir da criação de novos vocábulos e da utilização de outros com diferentes sentidos. III. Para narrar a violência sofrida pelo personagem, o autor vale-se de eufemismos como “sujado por mil bocas”, “as pernas se exilaram daquele sofrimento”, “perdeu o sentimento da cintura”. A(s) afirmativa(s) correta(s) é/são A colonização portuguesa na África perdurou até o fim do século XX, com as guerras de independência. As tensões políticas e sociais repercutiram e ainda repercutem fortemente na produção literária desses países, especialmente nas literaturas angolana e moçambicana. Levando-se em consideração o contexto histórico do período pós-colonial, é possível verificar que para Mia Couto, em seu ensaio, a colonização portuguesa é vista como: (F)autoritária e impositiva, oposta à autonomia das nações dominadas. (G)vantajosa para a economia e para a comunicação entre os povos. (H)importante para as tradições locais e para a língua das colônias. (I) repressora dos direitos à liberdade de pensamento e expressão. gABARITO 1.E 2.D 3.C 4.A 5.B 6.C 7.E 33 Anotações __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ Uma menina está perdida no seu século à procura do pai de Gonçalo M. Tavares Gonçalo M. Tavares (1970) nasceu em Luanda, Angola; apesar disso, Tavares pode ser considerado um escritor português uma vez que vive em Portugal desde os dois anos de idade. Publicou seu primeiro livro em 2001, Livro da dança. Em quinze anos de carreira, publicou 25 livros dos mais diversos gêneros literários: poesia, contos, romances e crônicas. Uma menina está perdida no seu século à procura do pai foi publicado originalmente em 2014. O enredo se passa algumas décadas após a Segunda Guerra Mundial, em uma Europa ainda devastada psicologicamente, sobretudo em Berlim, para onde viajam Marius e Hanna, personagens principais do livro. O livro é dividido em quinze partes, em que se verifica uma progressão narrativa tradicional, ou seja, o livro é narrado ab initio. Mas o que significaria estar perdida no século, conforme indica o título? A resposta não é dada prontamente pelo enredo. Uma das explicações é que o livro tem um tanto de esquizofrênico, no sentido de que o todo não se completa, embora ele esteja presente. Assim, estar perdida no século é sugestivo da condição de Hanna, uma jovem de 14 anos com síndrome de Down. A esquizofrenia está presente na construção da narrativa, pois ora o livro é narrado em terceira pessoa, ora, em primeira pessoa, tendo como narrador o próprio Marius. Não se trata de uma novidade, mas sem dúvida que causa uma estranheza no leitor; ao que parece, porém, o objetivo é fazer o leitor construir uma outra visão daquilo que parecia solidificado. Trata-se de uma estratégia, o de quebrar expectativas, presente nas atitudes de diversos personagens do livro. A história tem início quando Marius identifica na rua essa jovem com expressão diferenciada e atitudes incomuns também. Percebe logo de início que é uma menina com alguma deficiência. Conversando com ela, observa as atitudes incomuns, mas, mesmo assim, fica sabendo que ela está sozinha e em busca do pai, sem que tenha maiores informações. Marius decide então ajudá-la. Não fica claro o porquê dessa decisão de Marius; supõe-se que seja pelo fato de ele ser um perdido também, no sentido de não ter uma vida bem definida, não ter objetivos específicos. Apenas vive o dia a dia. Ao que parece, ajudando-a, ela o ajuda também a se encontrar. Ao que parece não tinha uma forte razão para viver, não tinha pessoas que dependessem dele. Desse modo, sua vida também não tinha grande significado e viu em Hanna a possibilidade de fazer algo, de preencher o vazio, o que lhe permitiu também entrar em contato com diferentes pessoas em situação semelhante à da dele. Hanna carregava uma série de fichas para poder se comunicar com maior facilidade. Tais fichas, de certa forma, mimetiza a divisão do livro, em que cada uma das quinze partes ou capítulos conta sobre um personagem em particular. Não há grande interseção entre os personagens salvo em momentos raros. São episódios em torno de personagens secundárias que elevam a um patamar superior uma trama um tanto banal, comum. Os encontros que Marius e Hanna têm com essas personagens (Hanna como espectadora) se constituem no verdadeiro enredo do livro, já que a busca pelo pai da menina é apenas a desculpa que os faz viajar de Portugal até Berlim. As poucas referências indicariam que o pai da menina estaria em Berlim. Empreendem então uma viagem de trem até a Alemanha. Berlim, cidade que ainda tinha vários resquícios oriundos da Guerra, além dos traumas que certamente os indivíduos ainda carregavam. Conhecemos, pois, vários nuances desses traumas pelo contato que têm os dois com os mais diversos personagens. Essa viagem, mais do que servir para encontrar o possível pai de Hanna, se presta a outros dois pontos: uma compreensão mais ampla da trissomia 21 (síndrome de Down) e uma compreensão sobre como pessoas afetadas pela Guerra, especialmente judeus, procuraram reconstruir a vida e dar novo sentido a ela. De início, ainda em Lisboa, conhecem um fotógrafo de animais, que ao final da narrativa retornará. Trata-se de Josef Berman. Seu projeto era fotografar animais como se fossem pessoas. Sempre tirava três fotos: de frente, do perfil direito e do perfil esquerdo. “Sabe quantos animais fotografei? Não vai acreditar... mais de sete mil”. Berman conta então que os animais tinham uma sensibilidade diferente, eram capazes de prever situações de perigo mais rápido que o ser humano e cita uma série de episódios que servem de exemplo dessa maior sensibilidade que teriam os animais para os perigos, como os ratos que, em Londres, sentiram antes que haveria um bombardeio na capital da Inglaterra. Evidente, não que os ratos pudessem nomear algo assim, mas perceberam que algo ameaçava a vida deles. O segundo maior interesse do fotógrafo era fotografar pessoas com trissomia 21. Por isso, demonstrou interesse por Hanna. Marius, por sua vez, imaginou que o fotógrafo poderia lhe fazer mal e não permitiu que a fotografasse. O fato serviu para Marius, observando as fotos que Josef lhe mostrou, comparar os rostos de diversas pessoas com essa condição genética. Rostos e mais rostos sorridentes, aceitando o que a vida lhes havia dado, aceitando tudo, aceitando certamente o que aquele fotógrafo lhes havia pedido, aceitando, sem perceber [...], manifestando-se incapazes de distinguir os dois lados do mundo. (p. 25) No trem para Berlim, conhecem Fried Stamm, que decidira, em conjunto com outros quatro irmãos, espalhar cartazes por toda a Europa, com mensagens variadas. Era sua contribuição para ajudar aos outros a se reconstruir. Era seu meio de dar sentido à própria vida. 35 Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares Era, pois, uma forma de resistência. Não pelo esquecimento de práticas, e sim pela confirmação de que aconteceu para que não ocorra mais. Um meio de afirmar um fato e evitar que ocorra novamente pela ocultamento da verdade. No outro dia ao episódio da música, Marius e Hanna conhecem o músico do quarto. Era Terezin, um senhor nomeado assim pelo próprio Marius, por morar no quarto que tinha esse nome em referência a um campo de concentração na antiga Tchecoslováquia. Era um dos hóspedes mais antigos do hotel. Estava ali havia doze anos, e virara morador efetivo. Além de tocar música, tinha uma estranha estratégia para poder sobreviver às adversidades e à condição de judeu perseguido. Dizia que um indivíduo não poderia ter objetos e utensílios que pesassem mais do que ele próprio. No caso, Terezin tinha 63 kg e seus objetos pessoais pesavam apenas 26kg. Terezin revela então a Marius algo que serve igualmente para explicar o título do livro. A menina estar perdida no seu século é indicativo de que ela também estaria construindo a sua história, uma história com os componentes de quem tem síndrome de Down, e, por isso mesmo, viveria em mundo paralelo. Evidente que existe uma ligação com os referentes de todos, mas também é evidente que o modo de olhar, o modo de interpretar os fatos tende a ser diferente das pessoas sem essa deficiência. Para se compreender melhor essa relação entre o título e a história de Hanna, ficamos sabendo pelo discurso de Terezin que existiam sete judeus responsáveis por manter a história do século XX memorizada, isso porque, segundo Terezin: [...] os judeus não confiavam em documentos, em papéis, em fotografias, em suma, em nenhum registro concreto, material, palpável. (p. 185) A explicação é que a História, entenda-se o registro histórico, poderia ser modificada de acordo com determinados interesses. Por isso, cada um desses sete judeus memorizara todo o século XX e depois passaria a técnica a outros de modo a manter viva memória judaica. Havia, espalhados pelo mundo, sete homens, sete judeus, que tinham memorizado, sem qualquer falha, toda a História do século XX. Com factos, disse Terezin, com datas concretas, tentando eliminar qualquer interpretação ou julgamento. Esses sete homens – explicou Terezin – memorizaram o mesmo texto; são homensmemória cuja única função – além de tentarem continuar vivos – é a de não esquecer um único dado, uma única linha. Como é evidente, o que memorizaram tem a ver, directa ou indirectamente, com a nossa história particular, a dos Judeus. (p. 186) Narra então alguns acontecimentos históricos significativos, como o pacto de não agressão entre Alemanha e URSS ou a invasão alemã a Polônia. Não fica claro se ele seria ou não um dos Séculos, fato é que ele explica bem os motivos. Não se trata de provocar uma revolução, não gostamos dessa palavra, trata-se em primeiro lugar de um projecto de acumulação: transmitir uma inquietação progressiva, mês a mês crescendo, quase sem se dar por isso. Pela repetição, por não deixar que se instale qualquer tipo de trégua ou suspensão, por, enfim, não desistimos... provocar uma circulação de mensagens insatisfeitas, de informação indignada, repetir pequenas pancadas para, no fim, demolir, eis em parte a nossa estratégia. (p. 33) Em Berlim, hospedam-se em um hotel de um casal de judeus, Moebius e Raffaela. O sentido dado à vida por esse casal tem suas estranhezas também. No caso, o hotel fora construído de modo a lembrar a disposição dos principais campos de concentração nazistas, como Dachau, Auschwitz, entre outros. Ficaram hospedados exatamente no quarto nomeado como Auschwitz, por estranho que fosse. Em dado momento, em que retornam de uma busca pela cidade, já noite, os corredores estavam escuros. Começaram a ouvir uma música, remetendo o leitor ao fato de que nos campos de concentração, os que eram enviados para as câmaras de gás ou outro meio de extermínio eram acalmados por músicas. Marius também sente certo alívio ouvindo a música, depois passa a ter certo medo devido à escuridão, o que o levou a demorar a encontrar o próprio quarto. Há certa similitude com os campos nazistas nesse sentido. Uma mistura de sentimentos contraditórios, entre a calma e o desespero pela morte iminente. Outra referência aos campos de concentração é a avareza de comida que havia no hotel. Marius assim descreve a situação: Raffaela só trazia mais alimentos quando já não havia nada: só trazia pão – três, quatro, de cada vez, para uns sete hóspedes presentes na sala de refeições – quando o cesto estava completamente vazio. (p. 126) Alguns hóspedes simplesmente saiam do local antes de comerem o suficiente. Mesmo assim, habituaram-se a esse regime. Certamente, nos campos isso era até mais comum, posto que objetivo era economizar comida e fazer os prisioneiros passarem fome. No caso do hotel, a prática passava pela economia, mas, talvez, poderia também sugerir um simulacro do que teria sido a vida no passado recente. Na Alemanha nazista, os judeus tinham que andar com uma estrela costurada em suas roupas de modo a serem facilmente identificados. Nos campos, além disso, ainda era tatuada em seu braço uma numeração. Moebius revela a Marius um segredo. Levanta a camisa, vira-se de costas, onde se podia ler, em letras bem pequenas e em diversas línguas, a palavra judeu tatuada. Passou a tatuar a palavra quando judeus começaram a ser mortos. A princípio começara por uma espécie de orgulho de raça, como o próprio Moebius disse. Nas semanas em que muitos tentavam ao máximo disfarçar a sua origem judia, Moebius, pelo contrário, exibia-a em todos os momentos e sítios possíveis, e foi ele próprio que, por esses dias, pediu à mulher que lhe tatuasse pela primeira vez a palavra JUDEU. (p. 137) 36 Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares E o sentido estava exatamente no fato de prosseguir a tradição familiar, mas também de colaborar para fazer sentido à própria vida, já que a vida ao redor estava em ruínas, ele trabalhava com objetos do passado, mas a vida presente não tinha lugar. Assim, seguir aquela tradição era manter-se ocupado, manter algo que o ligaria a outros seres, com a finalidade de registrar o passado, a história humana. A estranha numeração remetia a acontecimentos importantes, como a data do assassinato do herdeiro do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Franz Ferdinand, em 28 de junho de 1914, dando origem à Primeira Guerra Mundial, ou a chamada noite dos cristais, quando sinagogas foram incendiadas na Alemanha, em 9 de novembro de 1938. – Vê, meu caro? Tudo em ordem. Não se trata de fugir, de não querer saber. Trata-se de manter uma direção. Uma direção individual. E só por isso resistimos. E por isso estou aqui. (p. 110) No dia em que os dois tiveram essa conversa, Hanna ficara no hotel, sob os cuidados de Raffaela. Para surpresa de Marius, a senhora disse-lhe que um fotógrafo estivera ali para fotografar a menina, mas não permitiram. Marius percebeu logo tratar-se de Josef Berman. Não gostou nada da ideia novamente e agradeceu pela iniciativa de Raffaela. Outro personagem que surge nesse momento é um artista chamado Agam Josh. Ele tinha um defeito nos olhos. No caso eram vermelhos, o que o impedia de ver bem. Porém, com o olho esquerdo era capaz de enxergar com grande nitidez detalhes minúsculos. A característica lhe possibilitava produzir sua arte que consistia exatamente em escrever frases minúsculas, que, à distância, pareciam manchas ou algum desenho qualquer. Passa a mostrar a Marius e Hanna uma de suas obras. À primeira vista, era apenas um traço contínuo ___________. Mas, depois, com o auxílio de um microscópio, Marius conseguiu ler a seguinte frase: “Não dirigir a palavra a nosso pó” (p. 152) Em seguida, viram um ponto . Novamente, com o auxílio do microscópio, percebeu tratar-se de um jardim japonês desenhado naquele pequeno ponto. Agam trabalhara para Josef Berman uma vez e passa a contar uma história sobre ele, nada simpática. Agam não tem provas sobre o que afirma e ainda faz um alerta, dizendo que “talvez parte disto sejam já histórias que as pessoas contam, que inventam. Não sei”. Para Agam, Berman manteria uma espécie de campo de concentração para animais, especialmente cachorros, onde faria experiências as mais variadas para poder tirar fotos variadas dos cães, expressando emoções diversas. A narrativa, fantasiosa ou verdadeira, leva Marius a uma reação inesperada. Já pensavam em ir embora, em deixar Berlim. A procura pelo pai de Hanna era infrutífera, e, a rigor, nem ocorrera efetivamente. E ambos estavam no café da estação, quando viram entrar Josef Berman. Marius não pensa duas vezes. Vai de encontro a ele, puxa-o no canto e, sem maiores explicações, soca-o repetidas vezes, até cansar-se. Em seguida, pergunta se Marius gostaria de conhecer um desses homens, chamado Século XX, por alusão a sua atividade. A ideia era ser um arquivo vivo, mas não se expor publicamente. Terezin cita o caso de um que moraria em Moscou. Como parece ter ficado louco, passou a proclamar os acontecimentos do século a todos em praça pública. Isso seria ruim para os planos do projeto, por isso certamente seria eliminado. Um dia após chegar a Berlim, Marius e Hanna foram até o centro da cidade, que ainda apresentava diversas ruínas, levar, em um antiquário, uma peça que Hanna trazia consigo e que poderia indicar sua origem e, em consequência, ajudar na localização de seu pai. Marius fica preocupado com Hanna, que poderia se impressionar com o local, mas, a rigor é ele quem se sente mal, pois para chegar ao Antiquário Vitrius, tinham que subir uma alta escada, o que acabou lhe causando vertigem. Simbolicamente, a subida e a vertigem indicam um caminho sem volta para ele. Agora, não poderia mais “descer”, não poderia simplesmente abandonar Hanna à própria sorte em Berlim. Outro ponto interessante é que Vitrius, o dono do local, tem um porte físico, alto e com uma pequena barba, que faz Marius lembrar-se imediatamente da figura de Dom Quixote de la Mancha, o personagem de Miguel de Cervantes, conhecido por viver em um mundo à parte da realidade. Esse jogo entre ficção e realidade é uma condição sine qua non para a sobrevivência dos personagens do livro. Embora não se isolem do mundo real, todos apresentam um escape para algo que tem um tanto de fantasioso ou estranho. É o que se pode perceber em todos os personagens. Hanna é claramente a que vive em um mundo particular, os demais têm de construir algo sólido para que possam sobreviver ao tempo. Vitrius, por exemplo, além de trabalhar normalmente como antiquarista, na empresa que fora do avô e passara para o pai, também tem um meio de conferir sentido à própria vida. Nem sempre abre a loja, e nem tem preocupações com o sucesso do empreendimento. Também não tem horário muito definido para abrir ou fechar a loja. Porém, mantém uma prática por tradição familiar. Desde o seu bisavô, passando pelo avô e depois pelo pai, era levado a montar dossiês, tomando por base números, relacionados a determinados momentos históricos. Folheei um maço enorme de folhas. Ali estava: 157668, 157670, 157672, 157674, 157676, 157678, 157680 [...] – O que é isto? – perguntei. – Em parte é a minha salvação – disse Vitrius a rir-se -, mas se quiser pode considerá-lo um passatempo. [...] O meu pai retomou a série no mesmo dia em que o meu avô morreu, explicou. Depois houve um silêncio e Vitrius continuou: eu só retomei oito dias depois da morte do meu pai. [...] Foi mesmo a tentativa de encontrar um sentido para isso. (p. 103-105) 37 Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares concreta. É o fim das buscas pelo pai de Hanna, algo que efetivamente nem ocorreu. Ao saírem do antiquário, deparam-se com uma multidão que parecia fazer um protesto, algo assim. A princípio, Marius sente medo, especialmente por Hanna. Mas conforme caminham ao encontro da passeata, Marius se sente parte integrante daquele todo, sente-se bem, sente-se partícipe de algo, não de um projeto individual ou particular, e sim de uma coletividade que luta por algo maior, luta pela melhoria das condições sociais, ainda que não fique claro quais seriam. [...] ele sentiu pela primeira vez que podia fazer o que quisesse com as mãos, levantar uma ou as duas, gritar, fechar o punho com raiva como faziam muitos ao seu lado, podia fazer tudo, a partir dali, mas agora o que era preciso era gritar, e não parar, em situação, não parar. (p. 235) Por fim, em momentos diferentes da narrativa, Marius relata dois pesadelos que teve. No primeiro, ele observa, como testemunha ocular, a movimentação de um grupo de pessoas com síndrome de Down, cavando um buraco, de onde surge uma igreja e onde, depois, são todos enterrados, até que Marius acorde. No segundo pesadelo, o mesmo grupo de adolescentes com trissomia 21 estão no poço novamente, mas agora cercados de muitos livros, escritos em diversos idiomas. Conforme o pesadelo avança, ele se vê em meio aquele grupo e percebe que todos são iguais, todos têm a mesma condição genética. Ele mesmo passa a ter o rosto arredondado: “mas eu não era como eles porque poderia pensar nestas coisas todas em que agora estou a pensar” (p. 182) Os pesadelos, ao que parece, são indicativos de um dos projetos do livro, o fazer pensar diferente, o fazer ver a vida com outros olhos, de outro modo e aceitar o diferente como a um igual, sem discriminações. O pesadelo se transforma então em sonho, em algo projetável. Num mundo de iguais, não há porque haver discriminação, ou a submissão pela força. Gonçalo Tavares procura, portanto, reconstruir o passado imediato, cujas feridas ainda estão abertas, de modo a rememorar o horror vivido, para manter a consciencialização sobre esse período nefasto da humanidade. Não por acaso, estão os campos de concentração representados no hotel, ou as datas significativas mantidas em código pelo antiquarista, ou ainda a tatuagem no corpo de Moebius, ou ainda os sete judeus responsáveis pela memorização de fatos, ou o trabalho de Stamm e seus irmãos, sempre com o objetivo último de manter a consciência alerta contra situações semelhantes. São gestos que, em separado, formam um rito de dignificação da comunidade judia, um registro de modo a perpetuar pela linguagem a dor, o sofrimento, a perseguição, a guerra. O objetivo último é a negação do esquecimento, um trauma que precisa ser revivido na memória para não ser vivido novamente no plano físico. A passeata no final é indicativa da luta, do caminhar juntos, da integração entre projetos em comum. Quanto ao pai de Hanna revelou-se antes uma desculpa que um projeto real. É um desabafo violento às investidas contra Hanna, bem como a possibilidade de o fotógrafo ter de fato um campo para fazer experiências com animais, e tirar fotos. O jogo entre realidade e ficção se estabelece novamente. Adiante o próprio Agam dirá que inventara as histórias nefastas sobre o fotógrafo, que a única parte real era o projeto de Berman em fotografar animais, mas isso o próprio Marius já sabia desde a viagem até Berlim. O movimento se presta a revelar de que modo a ficção pode vir a ser mais forte que os fatos ao ponto de levar Marius a agir. A História também é marcada por momentos assim, em que ocorre certo histerismo coletivo por suposições; em outros, a verdade existe, mas é negada em favor de uma ideologia, caso típico foi o dos alemães comuns que acreditavam que os judeus recebiam tratamento digno nas prisões e não acreditavam na política de extermínio proposta por Hitler. E por isso, o ato de escrever a palavra judeu realizado por Moebius, ou os judeus que mantinham na memória o século XX ou ainda Vitrius que seguia a tradição familiar de registar a história por uma sequência lógica de números. Após esse episódio, Marius e Hanna fogem para a casa de um historiador, que seria amigo de Marius, chamado Grube. Também tinha um hábito, um passatempo. No caso, revia corridas de 100 metros, tanto por sua velocidade quanto por indicar uma vitória em um momento crucial, às vezes por uma passada a mais, pelo tronco à frente. Eram indicativas, pois, do curso da História, ao mesmo tempo do seu registro pelas filmagens. Havia em sua casa muitos livros e fotografias, especialmente referindo-se a três acontecimentos importantes: Moscou (1917), quando houve a revolução comunista; Jerusalém (1948), quando houve a criação do Estado de Israel e o cerco a Jerusalém pelos povos muçulmanos, que não queriam os judeus na região; Berlim (1961), quando houve um conflito envolve a parte oriental (comunista) de Berlim e a parte ocidental. Moscou que Berlim Ocidental se desarmasse para evitar uma guerra. Para Grube, esses pontos identificavam os sucessivos centros de gravidade da História. Nessas datas e naquelas cidades estava o ponto que concentrava todo o peso do mundo. Se alguém quisesse derrubar, pôr a História de cabeça para baixo, era ali que teria de aplicar o golpe, naquele ponto preciso, no centro da gravidade. [...] Os poucos que se apercebiam disso no próprio momento eram os que conseguiam, por isso mesmo manipular a História (p. 220-221) Em outros termos, a História é um texto que se escreve e o discurso história depende muito de quem escreve esse texto. No caso, o objetivo é reescrever a história judaica, bem como entender o outro, o diferente, o que nem sempre é fácil. Antes de irem embora de Berlim, Marius procura Vitrius para saber se descobrira algo a respeito do objeto de Hanna. Mas ele não tinha qualquer notícia 38 Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares (C)inscrever o livro na estética surrealista, afinal o livro está ligado a esse movimento artístico. (D)mostrar que o sonho de Marius seria realizado na realidade, no caso construir uma casa para pessoas com alguma deficiência. EXERCÍCIOS 1. Leia o trecho do livro em seguida as afirmativas: [...] ele sentiu pela primeira vez que podia fazer o que quisesse com as mãos, levantar uma ou as duas, gritar, fechar o punho com raiva como faziam muitos ao seu lado, podia fazer tudo, a partir dali, mas agora o que era preciso era gritar, e não parar, em situação, não parar. (p. 235) I. O trecho é uma referência ao momento em que Marius encontra o pai de Hanna e fica feliz. II. O trecho se refere ao final do livro, quando Marius segue uma multidão e percebe que se encontrara. III. O trecho se refere a um momento em que primeiro Marius sentiu certo temor, e depois percebeu que era um movimento de que queria fazer parte. Está correto o que se afirma apenas em: (A)I e II (B)II (C)III (D)II e III (E)I 2. O livro tem como objetivo principal: (A)revelar o sucesso de Marius em ter localizado o pai de Hanna em Berlim. (B)mostrar como os judeus ficaram perdidos devido à Segunda Guerra Mundial. (C)revelar como as pessoas buscam, por meio de algumas atitudes, dar sentido à própria vida. (D)buscar a cura para a Síndrome de Down. (E)fazer um retrato no modo de agir dos nazistas. 3. Por que Marius decide ajudar Hanna? (A)a razão não fica muito clara no livro, mas parece que sua vida era sem muito sentido. (B)porque ele participava de uma ONG que procurava ajudar crianças desaparecidas. (C)porque ele também tinha de ir até a Alemanha e resolveu acompanhá-la. (D)ele queria colaborar com todas as pessoas inocentes que tiveram prejuízo devido à guerra. 5. 4. Qual o significado dos sonhos relatados por Marius? (A)nenhum, apenas o de mostrar na narrativa um pouco de non sense. (B)é um modo de expressar um dos objetivos do livro, a necessidade de integrar pessoas com deficiência à sociedade. Leia as seguintes afirmações: I. O livro alterna o tipo de narração, ora em primeira pessoa ora em terceira. II. O livro tem sequência tradicional, com meio, meio e fim e narrativa expressa claramente. III. Os principais personagens lidam com algum tipo de perda. IV. No final do livro, Hanna consegue encontrar seu pai, graças à ajuda de Marius. Está correto o que se afirma em: (A)apenas I e III (B)apenas II e III (C)apenas II (D)apenas I e IV gABARITO 1.D 2.C 3.A 4.B 5.A 39 Anotações __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________ O Ateneu O Ateneu, de Raul Pompeia, é um dos livros mais singulares da literatura brasileira. Singular porque está inserido em um período literário bem delimitado, o realismo-naturalista, mas, apesar disso, não se enquadra totalmente nessa escola, embora também seja possível verificar vários aspectos dessa escola no romance, conforme iremos demonstrar. O livro foi publicado em 1888 e tem como objetivo resgatar a trajetória do narrador especificamente no período em que estudou no colégio interno homônimo do título do livro. A intenção do narrador parece ter sido a de purgar uma culpa que não poderia ser atribuída de fato a ele, mas que carregou ao longo do tempo. O narrador já é adulto e precisa passar a limpo o processo de formação intecto-afetiva, bem como os traumas que sofreu o menino Sérgio. É o retorno à infância, não como no caso do poeta romântico Casimiro de Abreu (famoso por seu poema “Meus oito anos”), e sim como aquele período que forja o adulto, que o capacita ou o traumatiza. No caso do narrador de Ateneu, podemos dizer que as duas possibilidades se fazem presentes. Por ironia, o livro tem o subtítulo de Crônica da saudade. O termo saudade, em princípio, parece referir-se a um sentimento positivo. No entanto, excluindo alguns momentos bons no colégio, algumas amizades, ainda que superficiais, não há na narrativa elementos que efetivamente indicariam uma saudade salutar. Em rigor, são antes certos traumas e algumas experiências não sempre positivas que tiveram o menino no início de sua adolescência. Observe que é o narrador que procura deixar a ambiguidade do termo saudade explícita: Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas. O livro, que fora publicado inicialmente no formato folhetim no início de 1888, se inicia com uma frase sintética: “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Esse encontro com o mundo, ainda que tenha um sentido metafórico, também é indicativo de que o universo narrativo do livro se restringe à vida no colégio. Além disso, o narrador procura captar os diversos dramas vividos por estudantes, mas que podem ocorrer na vida extramuros, como a busca pelo poder, a luta pela sobrevivência, os conflitos amorosos, os sentimentos baixos, os encontros e desencontros entre indivíduos diversos, a loucura manifestada etc. O Ateneu é, praticamente, o único que escreveu Raul Pompeia. Ao menos o que é lido ainda hoje. De qualquer modo, a título de curiosidade, citemos outros livros do autor: Uma Tragédia no Amazonas, 1880 A Queda do Governo, 1880 Canções sem Metro, 1881 de Raul Pompeia Segundo a frase de abertura de O Ateneu e seguindo o programa do realismo a ideia era revelar a realidade, era compreender o mundo para além do idealismo doméstico: “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico [...] Encontrar o mundo significa aqui compreender a luta entre os seres, discutindo, na esteira darwinista, a proeminência dos mais fortes sobre os mais fracos, a influência do meio social sobre as ações individuais, o que o também colocaria no rol dos romances naturalistas. Outros aspectos que podem ser percebidos no livro é a exploração das chamadas belas letras, das belas artes. Isso porque o livro não tem uma única classificação. No período, ainda predominava a estética parnasiana, cujo foco era propriamente o da defesa do ideal de beleza. Com isso, há no livro uma mistura de estilos literárias, com leve predominância para o impressionismo, tendo em vista que o narrador expressa suas impressões sobre os diversos personagens, sobre o colégio e, particularmente, sobre o diretor, Aristarco Argolo de Ramos, que exercia o poder supremo sobre os demais. A frase de abertura do romance revela ainda a estrutura de poder que o Brasil ainda conhecia em 1888, a monarquia, cujo chefe maior era o Imperador. Apesar de certos laivos de democracia, devido à possibilidade de se elegerem deputados e senadores, quem detinha o poder era o imperador D. Pedro II. No caso do colégio, quem exercia esse poder era o diretor, o “Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de Ramos, do Norte, [que] enchia o império com o seu renome de pedagogo”. Com efeito, no primeiro capítulo, o narrador expressa suas primeiras impressões a respeito do colégio, notadamente de Aristarco. As impressões do menino Sérgio começam pelo próprio colégio, visto como um personagem, não apenas como o local onde se passa a história: Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos anúncios. Ser aluno do Ateneu representava um status. Assim como pode ocorrer em qualquer cidade, sempre há um colégio que se torna referência à sociedade de modo geral. No caso de o Ateneu, tal fama parecia ocorrer por dois motivos: pelo método e pelos professores afamados. 41 O Ateneu, de Raul Pompeia Sérgio, de início, analisa o ambiente em que vai estudar, para depois se concentrar nas aulas, especialmente as de artes ou de literatura que certamente tornaria qualquer estudante médio um grande conhecedor do universo literário, para em seguida descrever os professores e demais colegas. Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de tipos que me divertia. O Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos revoltos, motilidade brusca e caretas de símio – palhaço dos outros, como dizia o professor; o Nascimento, o bicanca, alongado por um modelo geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como uma foice; o Álvares, moreno, cenho carregado, cabeleira espessa e intonsa de vate de taverna, violento e estúpido, que Mânlio atormentava, designando-o para o mister das plataformas de bonde, com a chapa numerada dos recebedores, mais leve de carregar que a responsabilidade dos estudos; o Almeidinha, claro, translúcido, rosto de menina, faces de um rosa doentio, que se levantava para ir à pedra com um vagar lânguido de convalescente; o Maurílio, nervoso, insofrido, fortíssimo em tabuada: cinco vezes três, vezes dois, noves fora, vezes sete?... Como se pode observar, alguns comentários são um tanto irônicos, bem como revelam um olhar não muito simpático aos colegas, destacando o que teriam de negativo. Quanto ao diretor, Sérgio destaca que era tido como incorruptível, justo e grande educador. Segundo as palavras de Venâncio, professor do colégio, por ocasião de festa de encerramento do ano letivo, a que Sérgio, antes de ser efetivamente matriculado, e compareceu ao lado de seu pai, Aristarco estaria apenas abaixo de Deus na terra, por seu papel de mestre, cujo papel seria o de preparar a todos “para a segurança íntima inapreciável da vontade”, por alusão à filosofia de Friedrich W. Nietzsche. Tal discurso alude ao fato de que Aristarco, por estar abaixo tão somente de Deus, no colégio estaria acima do próprio Imperador, ao menos de acordo com a metáfora do professor Venâncio. Com efeito, no colégio era Aristarco quem ditava as ordens, as regras. Exercia ao mesmo tempo os poderes legislativo, judiciário e executivo. Era quem fazia as leis e as aplicava. Ora, importante lembrar que o sistema educacional brasileiro do Império não era como o de hoje, em que se verifica uma progressão, um estágio de educação básica ao nível superior. O próprio Sérgio relata que até os onze anos estudara com educadores que iam até sua casa. Antes era preciso aprender o conteúdo e não tanto estar nessa ou naquela série ou ano, além disso a regulação não era ainda tão detalhada, como veio a se verificar a partir da década de 30. Tal poder conferido a Aristarco, apesar de admiração, também despertava ódio, por nem sempre atender a uma pedagogia mais voltada para a formação integral do ser. O que lhe importava era repassar o conteúdo e manter os alunos sob uma rígida disciplina. Sérgio, ao longo da narrativa, aponta, porém, as contradições das atitudes do diretor, que é implacável com alguns alunos, e menos com outros, sobretudo quando filhos de famílias mais ricas ou influentes. Reforçando essa visão monarquista com que Aristarco é descrito, no aludido evento de encerramento do ano letivo, houve o beija-mão na princesa, porém, para a tristeza de Aristarco, seu filho se revelou republicano: Uma coisa o entristeceu, um pequenino escândalo. Seu filho Jorge, na distribuição dos prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa, como faziam todos ao receber a medalha. Era republicano o pirralho! Tinha já aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha inflexível do caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura. Aristarco, porém, chamou o menino à parte. Encarou-o silenciosamente e – nada mais. E ninguém mais viu o republicano! Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino da monarquia jurada, última verba do programa. Feitas as considerações iniciais, Sérgio passa a tratar sobre a vida que levaria no colégio. Essa vida deveria ser nova e diferente da que tivera até então, longe do convívio familiar, longe da segurança do lar, para que assim, conforme seu pai adiantou, entrasse na luta que era a vida. Essa passagem é marcada por um acontecimento que fica entre a ordem com tom militar e uma lembrança do carinho materno. – Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a bondade de ir ao cabeleireiro deitar fora estes cachinhos... Eu tinha ainda os cabelos compridos, por um capricho amoroso de minha mãe. O conselho era visivelmente salgado de censura. O diretor, explicando a meu pai, acrescentou com o risinho nasal que sabia fazer: “Sim, senhor, os meninos bonitos não provam bem no meu colégio...” – Peço licença para defender os meninos bonitos... objetou alguém entrando. Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente escoada por um sorriso, chegou a senhora do diretor, D. Ema. Bela mulher em plena prosperidade dos trinta anos de Balzac, [...]. Esta aparição maravilhou-me. Houve as apresentações de cerimônia, e a senhora com um nadinha de excessivo desembaraço sentou-se no divã perto de mim. – Quantos anos tem? perguntou-me. – Onze anos... Em outros temos, Sérgio tem de abandonar a vida doméstica, a inocência da vida infantil para assumir novo papel naquela sociedade escolar, que, por sua vez, seria espelho da sociedade como um todo, ainda que com suas pertinentes particularidades. Era, pois, um microcosmo social, cujo papel Sérgio ainda não sabia qual assumir, ainda não sabia como deveria agir. 42 O Ateneu, de Raul Pompeia Esse acontecimento aproximou os dois, que passaram a estudar juntos e também a ficar mais tempo juntos. Apesar disso, Sérgio sempre via Sanches com certa repugnância, porque percebia nele não uma amizade sincera. Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que eu tolhi a tempo de ser forte. Subi ao salão azul, dormitório dos médios, onde estava a minha cama; mudei de roupa, levei a farda ao número 54 do depósito geral, meu número. Não tive coragem de afrontar o recreio. Via de longe os colegas, poucos àquela hora, passeando em grupos, conversando amigavelmente, sem animação, impressionados ainda pelas recordações de casa; hesitava em ir ter com eles, embaraçado da estreia das calças longas, como um exagero cômico, e da sensação de nudez à nuca, que o corte recente dos cabelos desabrigara em escândalo. Se o colégio é meio para se “encontrar o mundo”, Sérgio entende logo a necessidade de aliados, de outros alunos que possam ajudá-lo nessa empreitada. O olhar é sempre parcial, ainda que com distanciamento do tempo, afinal é então o adulto Sérgio quem filtra a percepção do menino, ainda incapaz de entender muito do que se passava com ele, e interpreta o modo de olhar, interpreta aquilo que ainda era incompreensível à época. O Professor Mânlio, a quem eu fora recomendado, recomendou-me por sua vez ao mais sério dos seus discípulos, o honrado Rebelo. Rebelo era o mais velho e tinha óculos escuros como João Numa. Fui também recomendado ao Sanches. Sérgio destaca três amizades em especial que fez no colégio durante os dois anos em que estudou no Ateneu. A primeira dessas amizades começou de modo um tanto estranho. Foi logo nos primeiros dias do ano letivo. Era o dia da natação, Sérgio relata que, por essa ocasião, os meninos menores ficavam apartados dos maiores exatamente para evitar acidentes e brincadeiras não condizentes com a idade de cada um. Estava temeroso, pois era a primeira vez que teria essa aula ou recreação. Em certo momento, sentiu que o puxavam para baixo d’água, ao mesmo tempo que percebeu uma mão salvadora. Era a mão de Sanches, que prontamente ofereceu amizade e proteção a Sérgio, dizendo-lhe que o colégio tinha uma série de “perversos”. Sérgio desde a primeira vez que viu Sanches o achou estranho, antipático. Porém, percebeu a necessidade mesmo de uma aproximação com alguém maior. Mais adiante, teve fortes razões para crer que fora ele próprio que o havia puxado para baixo da água e depois se apresentar como o salvador. Levei algum tempo para me inteirar do que ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei que o Sanches me tinha salvo. “Ia afogar-se!” disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me haviam feito. [...] Mas a consequência imediata do fato foi que forcei a repugnância que o Sanches me causava e me fiz todo gratidão para com ele e intima amizade. Curiosa e acidentada tinha de ser essa minha aventura de apego e confiança. Uma característica naturalista presente no livro é explorar desvios de conduta moral ou estados doentios. Embora hoje tenhamos uma percepção diferente, à época a homossexualidade era vista como uma patologia, como algo anormal. Diversos outros romances naturalistas vão explorar tal “anormalidade”, como O cortiço, de Aluísio Azevedo, ou O Bom-crioulo, de Adolfo Caminha. Sérgio parece ceder por interesse a um carinho mais sutil do amigo, porém, quando percebe nele uma intenção mais explícita, afasta-se. Apesar disso, o caso não se deu por uma repugnância ao ato em si, e sim por não considerar Sanches um “amigo” efetivo. Essa perspectiva vai ser repetida diversas vezes, sempre em tom comparativo com outros rapazes com quem Sérgio teve uma amizade mais efusiva. A homossexualidade dos meninos, em O Ateneu, parece ser mais como meio de escapar de uma carência afetiva ou meio de se autoprotegerem que propriamente uma pendência deliberada. Nesse sentido, a “anormalidade” como diriam os naturalistas teria uma razão de ser nesse ambiente de constante luta pela “sobrevivência”. Sempre desconfiado e receoso dos outros, o meu companheiro era quase exclusivamente Sanches. Sempre juntos eu e ele. Sabia-se no Ateneu que ele era meu explicador, supunham até que pago. Não causavam estranheza as nossas relações. Contudo Sanches, como os mal-intencionados, fugia dos lugares concorridos. Gostava de vaguear comigo, à noite, antes da ceia, cruzando cem vezes o pátio de pouca luz, cingindo-me nervosamente, estreitamente até levantar-me do chão. Sérgio é um típico exemplo de que a homossexualidade não seria inerente ao seu desejo, ao seu modo de ser. Embora ela vá se manifestar implicitamente nas outras duas próximas amizades mais íntimas, com Sanches restou uma ambiguidade, interrompida com um gesto mais ousado do outro. Com efeito, a amizade entre os dois durou até o momento em que Sanches tentou uma aproximação mais íntima com Sérgio, que a repeliu imediatamente. Sanches praticamente desaparece da narrativa, sendo lembrado vez ou outra sempre com desprezo e repugnância. Estimulado pelo abandono, que lhe parecia assentimento tácito, Sanches precipitou um desenlace. Por uma tarde de aguaceiro errávamos pelo saguão das bacias, escuro, úmido, recendendo ao cheiro das toalhas mofadas e dos ingredientes dentifrícios, solidão favorável, multiplicada pelos obstáculos à vista que ofereciam enormes pilares quadrados em ordem a sustentar o edifício, — quando, sem transição, o companheiro chegou-me a boca ao rosto e falou baixinho. 43 O Ateneu, de Raul Pompeia E mais adiante: Li a Nova floresta, de Bernardes. O reverendíssimo autor veio retocar a obra do Barreto, com as suas narrativas de iluminado terrifico. Comecei a achar a religião de insuportável melancolia. Morte certa, hora incerta, inferno para sempre, juízo rigoroso; nada mais negro! A Nova Floresta (1706) é um livro do padre Manuel Bernardes, do período barroco (século XVIII), em que discorre sobre preceitos morais diversos, com base em histórias variadas. De tudo o que Barreto e Sérgio conversaram, um assunto se sobrepunha, a influência negativa que pode exercer uma mulher sobre as vontades masculinas. Tais elucubrações se confirmam em um episódio importante do Ateneu, confirmando que o colégio interno é espaço para se ter uma compreensão ampla da vida, da realidade. Havia pouquíssimas mulheres no colégio. Em particular duas. Ema, esposa de Aristarco, e Ângela, uma empregada espanhola do colégio. Apesar do nome, por referência a anjo, ela tinha uma sensualidade lasciva e despertava desejo em muitos. Ângela tinha cerca de vinte anos; parecia mais velha pelo desenvolvimento das proporções. Grande, carnuda, sanguínea e fogosa, era um desses exemplares excessivos do sexo que parecem conformados expressamente para esposas da multidão — protestos revolucionários contra o monopólio do tálamo. Aqui, poderíamos citar um conhecido poema de Gregório de Matos em que ele fala exatamente o seguinte: Mas vejo, que tão bela e tão galharda, Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, Que me tenta, e não me guarda. No caso da Ângela do colégio, no episódio em questão, ocorre um crime. Um jardineiro ataca um criado da casa de Aristarco com uma faca e o mata. E isso se dá exatamente porque havia uma disputa entre os dois para saber quem ficaria com a moça. O homem da faca era um dos jardineiros do Ateneu. Durante o jantar enfrentara-se de razões com um criado da casa de Aristarco e o matara. Havia algum tempo que disputavam os dois a primazia no coração de Ângela uma terrível pendência. O criado de Aristarco julgava-se na legítima posse desse escrínio de afetos, pela convivência ao lado da bela, consorciados maritalmente na intimidade dos alguidares, onde as mãos se confundiam como as louças ou na sociedade afetuosa do serviço dos aposentos do diretor e da senhora, permutando entre si dichotes açucarados, à flagelação dos tapetes. Na fuga, porém, o jardineiro é pego por Bento Alves, bibliotecário do grêmio do colégio. Bento será a segunda amizade íntima de Sérgio. Como da primeira vez, trata-se de um relacionamento de amizade um Só a voz, o simples som covarde da voz, rastejante, colante, como se fosse cada sílaba uma lesma, horripilou-me, feito o contato de um suplício imundo. Fingi não ter ouvido; mas houve intimamente a explosão de todo o meu asco por semelhante indivíduo e muito calmo, desviando apenas a vista, pretextei a falta de um lenço, que me endefluxara a friagem e... fui buscá-lo. Após a experiência, Sérgio passa a frequentar algumas aulas de Aristarco, que tratavam a respeito da astronomia. Sérgio destaca, a despeito do ar de superioridade, a inteligência e a habilidade didática do diretor, que realmente entendia sobre o que estava falando. Talvez pela proximidade temática, por ambas falarem sobre além do planeta, além do visível, Sérgio passa a viver um momento mais espiritualizado, buscando uma comunicação com o sagrado, talvez de modo a purgar qualquer culpa que possa ter tido no episódio envolvendo Sanches. A astronomia, como os céus do salmo, levoume à contemplação. O mal na terra, descrito pelo Sanches com uma perícia de conhecedor e praticante, tomou vulto no seio das minhas cogitações. A incredulidade primeira acabou em meu espírito, reconhecendo o descalabro deste vale de lágrimas em que vivemos. Ao tempo que devia consagrar à minha reabilitação nos estudos, pus-me a estudar, como Inácio de Loiola, talvez na mesma idade, a reabilitação do mundo. Encarnei o pecado na figura de Sanches [...] No recreio, andava só e calado como um monge. Depois do Sanches não me aproximava de nenhum colega, senão incidentemente, por palavras indispensáveis. Rebelo tentou atrair-me; eu desviava. Sanches, rancoroso, perseguia-me como um demônio. Dizia coisas imundas. Saliente-se que não era propriamente uma devoção fervorosa, algo que levaria Sérgio a uma religiosidade que ele jamais tivera. Quando muito, um surto contemplativo e de recolhimento para entenderse melhor e entender o que se passara. Em rigor, o fim do século XIX foi marcado por uma crise religiosa, devido às ideias positivistas, que pregavam, entre outras coisas, a proeminência da matéria sobre a metafísica. O ser humano deveria antes se ocupar da matéria que do espírito, que seria uma fantasia, não realidade perene. Talvez por isso mesmo, Sérgio, por um breve período, acabou por se dedicar à prédica religiosa, que, em rigor, considerava muito mais traumática pelo que exigia de penitências, de abnegação, além do discurso de culpa que carregava, que algo que poderia devolver-lhe o equilíbrio, o sentimento de harmonia em relação aos próprios desejos e aspirações. Iniciara-me Sanches no Mal; Barreto instruiume na Punição. Abria a boca e mostrava uma caldeira do inferno; as palavras eram chamas; ao calor daquelas práticas, as culpas ardiam como sardinhas em frege. 44 O Ateneu, de Raul Pompeia tanto ambíguo, pois há uma sexualidade latente entre os rapazes que, mesmo não sendo efetivamente homossexuais conforme já explicado, acabam por ter uma intimidade para além da simples amizade. Sérgio repelira Sanches por esse motivo, mas a proximidade com Bento Alves sugere algo mais profundo. Na biblioteca, Bento Alves escolhia-me as obras: imaginava as que me podiam interessar; e propunha a compra, ou as comprava e oferecia ao Grêmio, para dispensar-se de mas dar diretamente. No recreio não andávamos juntos; mas eu via de longe o amigo, atento, seguindome o seu olhar como um cão de guarda. Soube depois que ameaçava torcer o pescoço a quem pensasse apenas em me ofender; seu irmão adotivo! Confirmava. Essa amizade intensa no início, aos poucos esfria após certo tempo. Bento Alves, sentindo-se traído por Sérgio, não por se envolver com outro aluno, e sim porque este se cansara de sua amizade e abandona aos poucos as visitas à biblioteca e, consequentemente, ao próprio Bento Alves, briga com Sérgio com quem acaba por se envolver em uma luta corporal. Como resultado, Bento é forçado pelo diretor a sair do colégio. Sérgio, imaginando que sofreria uma punição semelhante, percebe que Aristarco, como de resto já acontecera em outros episódios, nem sempre é tão exemplar assim. Ao que parece, seria custoso ao Ateneu perder dois ou três alunos de uma vez. Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despedira-se do Ateneu na mesma tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da minha consciência o encargo da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não se duvida, mas sem testemunhas. A terceira amizade mais íntima de Sérgio ocorre no segundo ano de estudo. De início, parece ser uma amizade totalmente desinteressada, a qual começara porque passou a se sentar, na sala de aula, ao lado de um novo aluno, no caso Egbert. Nesse sentido, podemos dizer que a narrativa se apresenta como uma espécie de educação sentimental do Sérgio, algo a que qualquer um de nós pode passar, no sentido de que, aos poucos, vamos formando nosso círculo de amizades, estabelecemos nossas afinidades eletivas e nos constituímos como ser. A convivência do Sanches fora apenas como o aperfeiçoamento aglutinante de um sinapismo, intolerável e colado, espécie de escravidão preguiçosa da inexperiência e do temor; a amizade de Bento Alves fora verdadeira, mas do meu lado havia apenas gratidão, preito à força, comodidade da sujeição voluntária, vaidade feminina de dominar pela fraqueza, todos os elementos de uma forma passiva de afeto, em que o dispêndio de energia é nulo, e o sentimento vive de descanso e de sono. Do Egbert, fui amigo. Sem mais razões, que a simpatia não se argumenta. Trata-se de outra amizade que, como as outras duas, beira à ambiguidade, reforçada pelas leituras em comum, especialmente pelo livro intitulado Paul et Virginie, de Bernadin de Saint-Pierre, um romance publicado em 1788 e que relata a história de amizade e de amor entre o casal de adolescentes. A pastoral de Bernardin de Saint-Pierre foi principalmente o nosso enlevo. Parecia-nos ter o poema no coração. A baia do Túmulo, de águas profundas e sombrias, festejada apenas algumas horas pelo sol a prumo, em suave tristeza sempre; ao longe, por uma bocaina, a fachada, à vista, branca, da igreja rústica de Pamplemousses. Porém, como as duas amizades anteriores, essa também se esvai ante o prosaísmo da rotina. Não por acaso, o adolescente Sérgio passa a nutrir por Ema um amor platônico, vendo nela tanto o apelo sexual, bem como a proteção e o carinho maternos. O próprio nome Ema é um anagrama de mãe, sugerindo, pois, essa leitura. Com efeito, tem-se nova ambiguidade nos sentimentos do menino pela mulher. Quando no dia do jantar subi para o dormitório com o Egbert, dançava-me no espírito, reduzida a miniatura, a imagem de Ema (era agradável suprimir o D.), pequenina como uma abelha de ouro, vibrante e incerta. Sonhei: ela sentada na cama, eu no verniz do chão, de joelhos. Mostravame a mão, recortada em paro jaspe, unhas de rosa, como pétalas incrustadas. Eu fazia esforços para colher a mão e beijar, a mão fugia; chegavase um pouco, escapava para mais alto; baixava de novo, fugia mais longe ainda, para o teto, para o céu, e eu a via inatingível na altura, clara, aberta como um astro. Ápice dessa paixão platônica ocorreu quando Sérgio, doente, passou a ser tratado na casa de Aristarco, especialmente sob os cuidados de Ema. Quando então sentiu e imaginou toda a docilidade de Ema, bem como uma sensualidade inocente. Outro aspecto a se destacar do livro são as considerações em torno das diversas referências a livros da época, aos conceitos que eram efetivamente tratados pela Academia, pelos professores em sala de aula. Alguns desses conceitos já foram revistos, ainda assim sempre é digno de nota compreender como eram pensados diversos assuntos: a biologia, a cultura como um todo, a literatura, a ciência etc. O Dr. Cláudio encetou uma série de preleções aos sábados, à imitação das que fazia às quintas Aristarco sobre lugares-comuns de moralidade. Filosofia, ciência, literatura, economia política, pedagogia, biografia, até mesmo política e higiene, tudo era assunto; interessantíssimas, sem pesadas minuciosidades. Depois da astronomia do diretor, nenhuma curiosidade me valera tão bons minutos de atenção. 45 O Ateneu, de Raul Pompeia Conforme já se afirmou, O Ateneu é um livro de difícil classificação. Já foi visto como realista, expressionista, impressionista, simbolista e também como naturalista. Seguindo essa última acepção, com efeito podemos vislumbrar várias características dessa escola no livro, especialmente os sentidos sexuais aflorados, o ambiente coletivo, algumas patologias. E como bom romance naturalista, ao menos em uma das classificações possíveis, há que se punir o vilão da história, no caso o próprio colégio. Por esse motivo, em período de férias, o colégio sofre um incêndio criminoso. Américo, um novo estudante, filho de um fazendeiro e que não queria estudar ali, para evitar que continuasse internado, resolve pôr fogo na escola. Informaram-me de coisas extraordinárias. O incêndio fora propositalmente lançado pelo Américo, que para isso rompera o encanamento do gás no saguão das bacias. Desaparecera depois do atentado. Por fim, lembremos que o livro fora publicado originalmente no formato folhetim, antes de ser publicado em livro. Por isso mesmo, o livro se apresenta como uma coletânea de episódios. Embora conectados, têm certa independência, pois isso era uma característica do folhetim, publicado capítulo a capítulo uma ou duas vezes por semana, o que demandava do autor certo cuidado para manter o interesse dos leitores. Algo semelhante na atualidade são as séries televisivas, produzidas respeitando-se a ideia de que cada episódio encerra um acontecimento completo. Ou seja, Raul Pompeia poderia ter escrito mais episódios conforme lhe fosse conveniente, mas parece ter se cansado e encerra o livro com o incêndio, provocado por, Américo. Não avança mais no assunto, mas certamente o colégio deve ter continuado suas atividades após o episódio. Fato é que são relatados apenas dois anos de estudo de Sérgio. A narrativa da saudade se encerra, pois, com ironia e sem saudade efetiva, e ainda fazendo uma descrição final de Aristarco, que expressava um sentido de frustração ddo diretor, pelas perdas financeiras e de sua obra. Ele, como um deus caipora, triste, sobre o desastre universal de sua obra. Apesar do vocabulário um tanto complexo para o jovem leitor do século XXI, O Ateneu é um livro importante. Lido sob olhar criterioso certamente colabora para o desenvolvimento da percepção. Mais do que leitura obrigatória para vestibulares, o livro, inscrito entre os principais de toda a literatura brasileira, deve ser obrigatório para ajudar qualquer indivíduo a compreender melhor o que significa o processo de construção do ser. EXERCÍCIOS 1. 2. 46 (PUC-RS) Leia o trecho a seguir, no contexto da obra O Ateneu, de Raul Pompéia, e as afirmativas. “Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no fundo, prendiam-me o tornozelo, o joelho. A um impulso violento caí de costas; a água abafou-me os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me arrastado. Num desespero de asfixia, pensei morrer. Sem saber nadar, vi-me abandonado em ponto perigoso; e bracejava, à toa, imerso a desfalecer, quando alguém me amparou. Um grande tomou-me ao ombro e me depôs à borda, estendido, vomitando água. Levei algum tempo para me inteirar do que ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei que o Sanches me tinha salvo. “Ia afogar-se!” disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me haviam feito. “Perversos!” observou-me o colega com pena, e atribuiu a brutalidade a qualquer peste que fugira no atropelo dos nadadores, desvelando-se em solicitudes por tranquilizar-me. Tive depois motivo para crer que o perverso e a peste fora-o ele próprio, na intenção de fazer valer um bom serviço”. I. A violência recorrente num ambiente de confinamento mostra ao personagem principal a lógica da dominação dos mais fracos pelos mais fortes. II. A expressão “fazer valer um bom serviço” explicita o trabalho duplo de Sanches: apresentar um suposto perigo e ao mesmo tempo oferecer proteção ao aluno novato. III. O incêndio que devastaria o colégio Ateneu, provocado pelo personagem principal do romance, é um último ato de violência, que dá fim à obra de Raul Pompéia. IV. Com teor memorialista, a obra O Ateneu, uma crônica de saudades, traz um narrador em primeira pessoa do singular, chamado Franco. As afirmativas corretas são, apenas, (A)I e II. (B)I e III. (C)III e IV. (D)I, II e IV. (E)II, III e IV. (FEI) O foco narrativo de O Ateneu está: (A)na terceira pessoa do singular. (B)na terceira pessoa do plural. (C)na primeira pessoa do singular. (D)na primeira pessoa do plural. (E)na segunda pessoa do singular. O Ateneu, de Raul Pompeia 3. (FEI) É possível afirmar que o protagonista: (A)rememora os bons tempos da vida. (B)despreza a razão dos outros companheiros de classe. (C)é irônico ao contar a história de seus colegas de classe. (D)conclui que é impossível compreender sua vida a partir da narração da mesma. (E)debruça-se sobre o passado com olhar crítico. (C)Lendo esta descrição você considera que o narrador compartilha dos mesmos sentimentos de Aristarco? Justifique. 7. (PUC-Camp) [...] não havia família de dinheiro, enriquecida pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre seus jovens um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu. (Raul Pompéia. O Ateneu) 4. (FEI) Depreende-se do livro que o narrador, no colégio, teve uma infância: (A)distante do convívio familiar. (B)feliz pela ausência da mãe. (C)sufocada pelo ritmo de trabalho dos pais. (D)superprotegida pela atenção dispensada pelos pais. (E)ameaçada pelo amor doméstico em regime autoritário. 5. Sugere-se, nesse trecho, que o colégio Ateneu (A)servia diligentemente à comunidade local e cultivava nos alunos valores de alta espiritualidade. (B)era bastante prestigiado e correspondia aos planos que uma elite econômica traçava para seus filhos. (FUVEST) Assinalar a afirmação correta a respeito de O Ateneu, romance de Raul Pompéia. (A)Romance de formação que avalia a experiência colegial, por meio de Sérgio, alter ego do autor. (B)Romance romântico que explora as relações pessoais de adolescentes no colégio, acenando para o homossexualismo latente. (C)Romance naturalista que retrata a tirania do diretor do colégio e o maternalismo de sua mulher para com os alunos. (D)Romance realista que apresenta um padrão de excelência da escola brasileira do final do império. (E)Romance da escola do Brasil no final do império, cuja falência vem assinalada pelo incêndio do prédio, no final da narrativa. (C)tinha fama de disciplinador, e a ele recorriam as famílias abastadas para que se punisse a rebeldia dos jovens. (D)primava pela firme orientação religiosa, razão pela qual pais modestos se sacrificavam para a ele enviar os filhos. (E)adotava uma revolucionária pedagogia moderna, afastando-se dos princípios de uma educação mais tradicional. 8. (ITA) Dos comentários que se fazem de “O ATENEU” assinale o falso: (A)misto de ficção e memória, pendente entre diário e romance, gira em torno das experiências sofridas por um menino ingênuo no internato de Aristarco Argolo de Ramos. 6. (Unicamp) No capítulo VII de O ATENEU, ao descrever a exposição de quadros dos alunos do colégio, o narrador assim se refere aos sentimentos de Aristarco: “Não obstante, Aristarco se sentia lisonjeado pela intenção. Parecia-lhe ter na face a cocegazinha sutil do creion passando, brincando na ruga mole da pálpebra, dos pés-de-galinha, cortando a concha da orelha, calcando a comissura dos lábios, entrevista na franja pelas dobras oblíquas da pele do nariz, varejando a pituitária, extorquindo um espirro agradável e desopilante.” (A)A que intenção se refere o narrador? (B)sem haver propriamente um enredo, mas justaposição de quadros, vão desfilando diante de nós as personagens e situações de um colégio em que a hipocrisia esconde toda gama de baixeza. (C)Diretor e senhora (Dª Ema), professores e estudantes, todos vivem numa atmosfera saturada e postiça forjada pela vaidade de Aristarco. (D)a sucessão de flagrantes impressionistas termina com o incêndio do colégio, ateado pelo estudante Américo. (E)O Ateneu distingue-se na história de nossa ficção por uma série de aspectos originais, entre eles, o realismo exterior tal qual o de Aluísio Azevedo em “O CORTIÇO”. (B)Quais características de Aristarco estão sugeridas neste comentário do narrador? 47 O Ateneu, de Raul Pompeia 9. (UEPB) I. O Ateneu é uma crítica ao romantismo, na medida em que estabelece uma crítica à ingenuidade da infância enquanto espaço idílico e importante para a construção imaginária dos românticos, o que o transforma num precursor do romance psicológico. II. O Ateneu é ao mesmo tempo uma crítica ao modelo de educação posto em prática no internato e uma crítica ao autoritarismo das elites brasileiras sustentadas pelo modelo político monárquico. Em certo sentido, o internato é uma metonímia da monarquia brasileira. III. Raul Pompéia utiliza-se das avaliações apaixonadas de Sérgio na infância para fazer um romance com fortes traços impressionistas e simbolistas, romance que também antecipa certos aspectos da vanguarda expressionista, sobretudo nas descrições de Aristarco e dos personagens alinhados com ele. (A)Apenas III é correta (B)Apenas I é correta (C)Apenas II é correta (D)Todas são corretas (E)Nenhuma é correta 10. (UFRS) Leia as afirmações abaixo sobre o romance O Ateneu, de Raul Pompéia. I. Sérgio, em seu relato memorialista, revela a outra face da fachada moralista e virtuosa que circundava o Ateneu, a face em que se incluem a corrupção, o interesse econômico, a bajulação, as intrigas e a homossexualidade entre os adolescentes. II. A narrativa, ainda que feita na primeira pessoa, evita o comentário subjetivo e as impressões individuais, uma vez que o narrador adota uma postura rigorosa, condizente com o cientificismo da época. III. Através da figura do Dr. Aristarco, diretor do colégio, com sua retórica pomposa e vazia, Raul Pompéia critica o sistema educacional da época e a hipocrisia da sociedade. Quais estão corretas? (A)Apenas I. (B)Apenas II e III. (C)Apenas II. (D)I, II e III. (E)Apenas I e III gABARITO 1.A 2.C 3.E 4.A 5.A 6.a) A vaidade lisonjeira de ver grafado seu próprio rosto. b) A vaidade, o engodo, o orgulho e a felicidade de ser o diretor do Ateneu. c) Não, Sérgio, o narrador, ironiza os sentimentos de Aristarco, pois através do diretor satiriza seu próprio pai e a sociedade em que vive. 7.B 8.E 9.D 10.E 48 Alguma Poesia de Carlos Drummond de Andrade Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é um dos poetas mais conhecidos da literatura brasileira e mesmo da de língua portuguesa. Pode-se dizer que, mesmo entre aqueles que dizem não gostar de poesia, Carlos Drummond é bem conhecido. Drummond estreou com o livro que ora vamos analisar, Alguma poesia. Publicado em 1930, há, nesse livro, poemas cujos versos se tornaram célebres e mesmo ganharam a popularidade em expressões recorrentes pela citação literal ou pela paráfrase, como “Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo” ou “No meio do caminho tinha uma pedra” ou ainda “João amava Tereza que amava Raimundo”, entre outras. O livro se insere no período modernista e é considerado o iniciador da Poesia de 30, o que seria a segunda fase do modernismo brasileiro. Os poemas foram escritos nos anos 20 do século passado, quando se promoveu uma revolução literária e, por isso, os radicalismos de parte a parte impediam, muita vez, uma voz mais ponderada. A poesia de Drummond conseguiu, em meio à agitação cultural do período, que buscava novas formas de expressão, imprimir uma marca, conseguiu construir algo sólido, de tal modo que sua produção tem valor ainda hoje. O poeta deve tentar uma explicação para as dúvidas recorrentes do ser humano. Por exemplo: o que é o amor? Qual o sentido da vida? O que é a política? Entre outras tantas. Embora as respostas tendem a cair na carga da subjetividade; ainda assim, o olhar crítico do poeta e sua capacidade de expressão podem levar o leitor a compreender melhor aquilo que o cerca. Para tanto, cabe ao poeta comunicar-se bem, mas cabe ao leitor ter um domínio básico da linguagem poética. Drummond possibilita exatamente isso tudo. A todo instante busca comunicar-se com o leitor, ainda que não diretamente, e, a todo instante, busca uma compreensão do próprio trabalho como artista, como poeta. Em Alguma Poesia, por exemplo, há uma série de poemas metalinguísticos, cujo objetivo maior é refletir sobre o ato de escrever, refletir a respeito do trabalho poético usando para isso o próprio poema. São 49 poemas publicados no livro, os quais tratam sobre o trabalho do poeta, exploram questões sócio-políticas, refletem sobre a vida cotidiana, moderna, sobre o Brasil e o sentimento nacionalista. Aqui, vamos abordar a maior parte dos poemas, para destacarmos essas temáticas e o tratamento poético dado a elas. Não vamos seguir a ordem dos poemas e sim a análise por temas. Um desses temas é a reflexão em torno do papel do poeta no mundo das máquinas, da pressa urbana, da correria cotidiana. Em “Nota social”, por exemplo, tem-se algo que se tornou comum na modernidade: a poesia perdeu espaço para outras linguagens, mais imediatistas, talvez que exijam menos reflexão, por isso nem sempre se preste atenção ao que tem a dizer um poeta. No poema em questão, ele é equiparado a uma cigarra solitária, que canta sem que ninguém a possa ouvi-la. Por isso, constata o eu lírico que “o poeta está melancólico”. Numa árvore do passeio público (melhoramento da atual administração) [...] Canta uma cigarra que ninguém ouve Um hino que ninguém aplaude. Como a cigarra, o poeta canta e não é ouvido, por seu trabalho se contrapõe ao imediatismo da vida moderna. Já o poeta necessita do tempo, necessita da meticulosidade para buscar a melhor palavra, buscar a forma mais adequada. Ele é repleto de ideias, de sentimentos, porém “a pena não quer escrever”. Isso não deve ser confundido com o conceito de inspiração, e sim, exatamente o contrário: escrever é uma atividade que requer cuidado, requer reflexão. Porém, a vida moderna exige o aqui e o agora, exige de todos uma produtividade que nem sempre combina com a atividade poética. O poema pernambucano Manuel Bandeira, referência do modernismo, escreveu diferentes poemas nessa mesma linha temática, como, por exemplo, “O Cacto”. Bandeira parece uma importante fonte para o Drummond de Alguma poesia. “Festa no brejo”, por exemplo, certamente alude ao famoso poema de Bandeira, “Os sapos”, em que o poeta pernambucano contrapõe o academicismo da poesia parnasiana à maior liberdade, à iconoclastia da poesia moderna. A “festa no brejo” do título ilustra a humildade da poesia, ao papel não lucrativo que desempenha o trabalho do poeta. A saparia toda de Minas Coaxa no brejo humilde. Hoje tem festa no brejo! Linha temática semelhante pode ser encontrada em “O sobrevivente”. O título é indicativo de que muitos pereceram, mas é preciso resistir, é preciso continuar a escrever, mesmo sob os horrores das guerras, mesmo ante ao culto da máquina que caracterizou o processo de construção da sociedade capitalista. Ante à constatação de que, apesar da evolução técnica, o ser humano não evoluiu, não melhorou, nem no plano individual, nem no plano coletivo: “Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado”. A partir desse paradoxo, o poeta faz a constatação de que o que pode garantir um quê de humanidade ao ser, um quê de cultura mais pura, por assim dizer, é o ato de escrever: “(Desconfio que escrevi um poema.)” Tal conceito, o do papel consolador da escrita, fica mais claro ainda em “Explicação”, em que o eu lírico declara ser seu verso a sua consolação, a sua cachaça. Porém, sabe que a poesia não pode, de fato, exercer esse papel na vida de todos, pois o que se busca na vida moderna são antes as comodidades, a estabilidade. A poesia, ao 49 Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade A reflexão em torno da vida moderna é temática própria de Alguma poesia, bem como nos livros seguintes de Drummond. Destaquemos três poemas, em particular, que abordam o assunto: “A rua diferente”, “Sinal de apito” e “Cota zero”. O mais significativo é o último. O primeiro fala sobre as mudanças por que pode passar uma cidade pequena e como isso tende a alterar a sociabilidade; o segundo refere-se à linguagem nova que a vida urbana obriga o indivíduo a conhecer. Já “Cota zero”, conhecido haicai do autor, que reflete a respeito da desumanização que a vida urbana pode impor ao homem. Inicia com um verbo em inglês, “stop”, para em seguida questionar se a constatação seria para indicar que um automóvel parou a um sinal de trânsito ou se teria sido a própria vida que teria parado, se o ser humano teria abandonado uma pretensa evolução humanística em favor de uma evolução técnica e tecnológica. Em tempo, haicai é um típico poema de origem japonesa, escrito em três versos e que segue uma estrutura silogística, em que de uma premissa maior e outra menor decorre uma conclusão lógica. A essa agitação e desenvolvimento da vida urbana, o poeta opõe outro poema para tratar sobre o cotidiano em uma cidade pequena. “Cidadezinha qualquer” evoca a rotina lenta e corriqueira das cidades menores, de modo a concluir-se que esse tipo de vida pode também indicar a bestialidade humana, “Eta vida besta, meu Deus” é o último verso do poema. O próprio título revela certo desprezo pelo uso do diminutivo bem como pelo uso do pronome indefinido, indicando que é algo bastante comum no país. Tal contraste, cidade grande x cidade pequena, bem como outros, é constante em Drummond, que, por meio da ironia, aproxima as contradições da vida e do país. Outra constante na poesia do autor mineiro é a religiosidade, não a confessional, a que expressa uma crença absoluta na divindade, e sim a que caracteriza a chamada mineiridade, isto é, o modo de ser mineiro. O rompimento com crenças, qualquer que seja ela, é sempre doloroso, uma vez que se perdem as certezas construídas ao longo do tempo. Em dois poemas: “O que fizeram do Natal” e “Casamento do céu e do inferno”, verificamos o contraste entre a religiosidade dos mais velhos e a iconoclastia do mais jovens. Enquanto o céu dorme, segue uma rotina comum, o inferno, o mundo busca novos ritmos, novos valores: [...] As beatas ajoelharam e adoraram o deus nuzinho mas as filhas das beatas e os namorados das filhas, mas as filhas das beatas foram dançar black-bottom nos clubes sem presépio. contrário, tende a levar o leitor à constante reflexão, levá-lo a ter uma visão não conformista em relação à vida moderna. Nesse sentido, o eu lírico faz a seguinte advertência em tom conclusivo: “Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou”. Tal afirmação se explica também porque Drummond reconhece que o leitor de poesia é aquele ainda da poesia tradicional, parnasiana, com rima, com métrica perfeita e padrão definido. Apenas para lembrar, em 1924, o parnasiano Alberto de Oliveira foi eleito o “Príncipe dos poetas” brasileiro. Isso já durante a efervescência modernista. Ao contrário dessa visão tradicional, deve o poeta moderno estar apto a aceitar os ritmos mais variados, os temas mais disparatados, usar termos em geral, mesmo os não poéticos. Esse foi, inclusive, o legado deixado pelo modernismo, conforme constatação do escritor Mário de Andrade. “Política literária” é dedicado a Manuel Bandeira e expressa certo hermetismo, pelo que apresenta da dificuldade de compreensão mais nítida. O leitor atual pode, eventualmente, não conseguir chegar ao real significado do texto. Se considerarmos, porém, o contexto do modernismo, isto é, os anos 20 e 30, ainda mais no caso de Bandeira, que entrou em debates literários contra aqueles que detinham o patamar do que seria a poesia de alto valor literário, é possível então compreender melhor a ironia de Drummond ao dizer que, enquanto poetas menores discutem quem seria capaz de tirar a primazia do que chama “poeta federal”, este segue sentindo-se superior. Nesse sentido, a falsa polêmica de quem seria menor ou maior sugere uma atmosfera provinciana e pouco afeita ao que seria, de fato, poesia com valor literário. Na mesma linha temática, há o poema “Política”, cujo objetivo é tratar sobre assunto que domina as discussões acadêmicas e também as literárias: a escolarização dos literatos. É preciso lembrar que um valor burguês, advindo do século XIX é a individualidade criativa. Por outro lado, não existe criação pura, no sentido de que um escritor vai sempre tomar por referência suas leituras, o estilo de outros escritores. Essa ligação entre os pares pode chamar a atenção dos leitores, o reconhecimento crítico. No poema em questão, Drummond revela a angústia de um poeta pelo reconhecimento, pela subserviência às práticas, bem como a necessidade de seguir esse ou aquele modelo de criação. Na última estrofe, entretanto, o poeta, depois de ver-se no limite desse estado de coisas, liberta-se das amarras, das correntes, isto é, sente-se livre para ser ele próprio, não seguir correntes literárias específicas: “livre livre livre que nem uma besta/ que nem uma coisa.”. Um dos objetivos do poeta moderna é dizer que a poesia pode ocorrer mesmo em situações pouco poéticas, em situações banais. Essa é a lição de “Poema que aconteceu”, em que o eu lírico expressa a necessidade de se escrever mesmo sobre o nada, sobre um dia modorrento, em que nada aparentemente tenha acontecido, afinal cabe ao poeta antes saber trabalhar a palavra. Trata-se do mesmo conceito defendido A rosa do povo (1945), onde está publicado o famoso “À procura da poesia”. (O que fizeram do Natal) Como referência, Black-bottom era uma dança comum à época, caracterizada pela sensualidade e pelos movimentos bastante rápidos do corpo. Em outro poema, “Igreja”, o contraste fica por conta dos dois significados possíveis para o termo. 50 Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade O diálogo irônico com o Romantismo se estabelece em outros poemas do livro. Especialmente os que tratam sobre o amor, como, por exemplo, “Toada do amor”, “Cantiga de viúvo”, “Esperteza”, “Quadrilha”, “Iniciação amorosa” e “Balada do amor através das idades”. Neste último, tem-se uma síntese do modo de relacionar-se a dois ao longo dos tempos, com destaque para os tempos modernos, que reconstrói, pelo cinema, o mito do amor romântico e seu pretenso final feliz. A ideia de que o amor supera todas as dificuldades e vence no final. Há em todos dois pontos essenciais: a necessidade humana de se relacionar e a constatação de que o amor romântico, idealizado, é um grande mito. E qual a solução? No caso, a ironia, o jogo, a brincadeira com o tema. Em “Toada do amor”, a ideia é mostrar que os relacionamentos, por perfeitos e necessários que sejam, são marcados por constantes brigas, discussões, imposição das vontades individuais. E o amor sempre nessa toada: Briga perdoa perdoa briga. [...] Mas, se não fosse ele, também Que graça que a vida tinha? O mesmo conceito se faz presente em “Esperteza”, em que se lê: Certo me tornaria Brinquedo nas suas mãos. Já em “Iniciação amorosa”, o que se destaca é a descoberta sexual, não tanto do amor e como essa descoberta e o consequente desejo mexem com a quietude humana, tiram a paz de espírito, pela depois necessidade de voltar a satisfazer tais desejos. “Sentimental”, por sua vez, revela o contraste entre sentimentos. Enquanto o eu lírico prepara uma cena romântica, imagina uma situação cinematográfica em que escreve o nome da amada com macarrão de uma sopa, ela parece ser mais prática. Percebendo que ele não está comendo, e sim divagando, chama-o para a realidade imediata: “- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!” Seria algo como dizer a alguém “Eu te amo” e ouvir apenas uma palavra de agradecimento. De certo modo, “Quadrilha” resume o que se lê nos demais poemas aludidos, pois trata dos encontros e desencontros amorosos, bem como do fato de que na vida não dá para se controlar o final, o tal final feliz, como tende a ocorrer em um texto literário, cujo enredo é dirigido por um escritor: “João amava Teresa que amava Raimundo/ [...] Lili casou com J. Pinto Fernandes/que não tinha entrado na história.” Em contraposição a isso (Drummond sempre opõe pares como campo/cidade, vida/morte etc., não no sentido barroco, e sim de modo a revelar as ironias da vida, as contradições da vida), em “Sweet home”, o eu lírico percebe que o mundo pode se equiparar a um grande romance, do qual seríamos todos personagens a desempenhar papeis diversos. O lar doce lar seria, pois, qualquer lugar onde podemos viver a realidade ou a fantasia, “afinal a vida é um bruto romance”, no sentido que é preciso aos poucos lapidá-lo, tentar tornálo melhor. Trata-se de conceito presente igualmente em Igreja tanto se refere ao prédio onde ocorrem orações, como a instituição em si. O eu lírico se aprofunda mais no segundo significado, para poder destacar o lado externo das prédicas religiosas, como uma mera obrigação, e não a expressão de um sentimento real: “Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.” O mesmo se dá em “Romaria”, em que a ironia se revela mais no final. Após expressar motivos diversos pelos quais um indivíduo vem a se tornar romeiro e pagar uma promessa, o eu lírico constata que, em rigor, Cristo, após atender tantos pedidos, também teria um pedido: o de trocar toda a humanidade... Retomando a discussão em torno da poesia modernista, uma das pautas foi a questão nacionalista não de modo tão específico como foi durante o Romantismo, e sim procurando-se abordar o Brasil como um todo, a questão cultural, racial. É bem verdade que houve grupos com uma visão mais nacionalista, de defesa dos valores patrióticos, como é o caso do chamado Grupo verde-amarelista, de que fizeram parte os escritores Plínio Salgado e Guilherme de Almeida. Também houve grupos que defendiam uma visão mais pluralista, como o Grupo da Poesia Pau-Brasil, liderado por Oswald de Andrade. No caso específico de Drummond, não se pode dizer que tenha se filiado a algum grupo. Não se absteve, porém, de pensar a questão nacionalista, ainda mais em época de radicalismos na Europa, que levariam à eclosão da 2ª. Grande Guerra, ou no Brasil, onde instaurou-se a Ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, que, entre outras coisas, prometia a defesa dos valores nacionais. Drummond, como poeta, está mais interessado no diálogo cultural entre os povos. Sabe que o país não figura entre os principais modelos culturais, tendo antes se servido de outras culturas para formar seus referenciais: O poeta vai enchendo a mala, Põe camisas, punhos, loções, Um exemplar da imitação E parte para outros rumos. [...] (“Fuga”) Em “Também já fui brasileiro”, tal reflexão fica ainda mais explícita. No poema, lê-se que o nacionalismo, embora possa ser uma virtude, algo positivo, também é um meio de romper com o restante, com outros universos culturais: “há uma hora em que os bares se fecham/ e todas as virtudes se negam”. Nessa mesma linha, destaca-se “Europa, França e Bahia”, que estabelece explicitamente um diálogo intertextual com a famosa “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. No texto romântico, temos a exaltação das qualidades do país, com especial destaque para a natureza, até porque o Brasil era um país pouco desenvolvido em meados do século XIX. Já no texto de Drummond, o eu lírico, em visita à Europa, vai da euforia à disforia, pelo que apreende da cultura dos diversos países. Ironicamente, em um ímpeto de patriotismo diz que basta daquele mundo que não é o dele, e quer resgatar os valores nacionalistas, lembrando-se da “Canção do exílio”, porém não tem certeza dos conhecidos versos: “Como era mesmo a ‘Canção do exílio’?” 51 Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade matar animais... Ao que parece, consoante a psicologia, uma compensação moral para atos corriqueiramente imorais praticados por certos líderes. Em “Música” e “Cabaré mineiro”, tem-se poemas menores, que revelam, de qualquer modo, o papel que a música pode desempenhar, tanto para a expressão dos sentimentos quanto para a expressão sensual do corpo. Ainda no caso de “Cabaré mineiro”, temse a mistura cultural tão tipicamente exaltada pelos modernistas. A dançarina espanhola de Montes Claros Dança e redança na sala mestiça. Emílio Moura (1902-1971) foi um poeta menor do chamado grupo mineiro que procurou levar o modernismo a Minas, do qual fizeram parte ainda Pedro Nava e Cyro dos Anjos, a quem Drummond dedica poemas no livro. Moura foi um dos grandes amigos de Drummond, que lhe escreveu “Epigrama para Emílio Moura”. Importante lembrar que epigrama é um tipo de poesia que se presta a expressar um sentimento único, festivo, satírico ou comovente. No caso, o poema destaca a tristeza que se pode sentir em três situações: causada por algo externo, como o tempo e o clima; pela necessidade de se comprar “amor”; e por não poder revelar um segredo que é de conhecimento comum, isto é, não poder comentar algo que todos sabem. No caso, após tantas tristezas, só se pode concluir pelo lado negativo da vida. Certamente, há no poema um sentido específico mais direcionado à compreensão do poeta a quem é dedicado o texto. Outra constante na poesia de Drummond é a recorrência à sua cidade natal, Itabira-MG, e também por locais onde morou, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Com efeito, em “Lanterna mágica” e “Sesta”, por exemplo, o eu lírico retoma sua mitologia pessoal, revelando os conflitos entre o eu e o mundo, entre a cidade pequena e a grande, entre a vida modorrenta no interior de Minas e urbanidade do Rio de Janeiro, com seus altos prédios e a malandragem, entre o passado preso a uma época colonial e um presente e suas inovações tecnológicas. Muitos poemas de Drummond têm um caráter epifânico, isto é, revelador de verdades escondidas. Esses em que faz a retomada de tempos antigos tendem a expressar descobertas, como o da comparação entre a vida do eu lírico e a de Robinson Crusoé. “Ai tempo!/ Nem é bom pensar nessas coisas mortas, muito mortas./ Os séculos cheiram a mofo [...] O presente vem de mansinho/ de repente dá um salto:/ cartaz de cinema com fita americana”. Em “Sesta” trata da família mineira, com destaque para uma cena comum, em que nada demais acontece, a não ser pequenos gestos dos pais e dos filhos, que descansam sob o sol. Outro poema nessa linha temática é “Família”, em que, por meio de quadros, sintetiza diversas situações, boas ou ruins, por que passa uma família, sob a égide da felicidade: “O agiota, o leiteiro, o turco,/ o médico uma vez por mês [...] A mulher que trata de tudo/ e a felicidade”. Finalizemos essa resenha com dois dos poemas mais significativos, o da abertura, “Poema de sete faces”, e “No meio do caminho”. “Infância”, onde o eu lírico diz gostar de ler a história de Robinson Crusoé, livro publicado em 1719 e escrito por Daniel Defoe (1660-1731). Crusoé ficou conhecido por ser um aventureiro dos mares e que acabou preso em uma ilha. Em contraposição à vida de Crusoé, a do eu lírico, quando criança, é rotineira, basicamente observa os pais trabalhando e cria mundos novos. Conclui que sua vida “era mais bonita que a de Robinson Crusoé”, afinal a aventura de viver é particular e o que importa, em contraposição à fantasia, é ter a vida real. Desse modo, consegue ver, como de resto em vários outros poemas, algum sublime na banalidade, algo poético no mundo prosaico, comum. Ao longo de sua carreira, Drummond revelou preocupação com os assuntos midiáticos. Em rigor, viveu o advento do cinema, do rádio e da TV, por isso acompanhou de perto o desenvolvimento da mídia no país. Em Alguma poesia, já demonstrava certo cuidado em tratar a respeito do tema, conforme se verifica em “Poema do jornal”, no qual revela a necessidade de o jornalismo dar rapidamente uma notícia, mesmo sem apuração detalhada, posto que o objetivo maior seria tomar por um referência um fato, e criar dele uma reportagem espetacular, ainda não seja totalmente verdadeira: “O fato ainda não acabou de acontecer/ e já a mão nervosa do repórter/ o transforma em notícia.” Isso em 1930, quando o jornalismo impresso dominava a mídia. Agora, com outros recursos de transmissão, especialmente a internet e a televisão, a espetacularização da vida, dos fatos banais, ganham ainda mais amplitude. Um típico exemplo são as redes sociais, que podem transformar um fato banal em acontecimento grandioso. “Outubro 1930” mistura versos e prosa poética e revela, ao modo jornalístico, os acontecimentos em torno do Golpe de 1930, que derrubou o então presidente da república Washington Luís, impedindo a posse do presidente eleito Júlio Prestes, o que deu início ao chamado Estado Novo, por oposição ao período conhecido como República Velha. Um novo, claro Brasil Surge, indeciso, da pólvora. Meu Deus, tomai conta de nós. “Coração numeroso” e “Lagoa” retomam o contraste entre localismo e cosmopolitismo. A lagoa representa algo menor, mais tangível, ao passo que o mar, pela sua amplidão, pela impossibilidade de vê-lo por completo representa o “mundo, vasto mundo”. Para o poeta absorver essa amplidão, esse cosmopolitismo precisa ter um “coração numeroso”, que apreenda tudo, que lhe possibilite apreender até o que não é tangível: “O mar batia em meu peito, já não batia no cais./ A rua acabou, quede as árvores? A cidade sou eu”. Em outras ocasiões, o contraste pode vir de algo inesperado. Em “Anedota búlgara”, por exemplo, um czar, para demonstrar seu poder, sua influência, perseguia os contrários a ele, mas julgava desumano quem caçava pequenos animais ou insetos. Interessante que Adolf Hitler, que ainda não tinha se revelado por inteiro ao mundo, também julgava imoral 52 Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade Sobre o poema “No meio do caminho”, já se escreveu até uma bibliografia, pela importância do conceito expresso nele. Trata-se de um poema repetitivo, enfadonho até, mas que, de modo sintético, expressa as adversidades da vida, metaforizadas no termo pedra. Para um poeta, as adversidades são a indiferença, a objetividade técnica, o capitalismo, a vida sem sensibilidade, sem fantasia etc. E para piorar é “no meio do caminho”, não no início, não no fim, ou seja, nos extremos, e sim no meio, cujo avançar ou retornar pode significar a mesma frustração, o mesmo dissabor. Eis o paradoxo ou aporia do poeta, que ainda assim tem de escrever, tem de buscar a revelação daquilo que está oculto. Quanto ao “Poema de sete faces”, o número indicativo do título é significativo, indica totalidade. No caso ainda, as sete faces estão representadas em sete estrofes cada uma abordando um aspecto, de modo a fragmentar o texto em sete quadros, o que leva o leitor a pensar no estilo cubista. Todo o texto é construído com base em imagens díspares, mas que podemos resumir em pares antitéticos: eu x mundo; moral x desejo; expressão pessoal x objetividade. Na estrofe inicial, já encontramos aspectos significativos para se compreender a poesia de Drummond, mas também a poesia nos tempos modernos. Ao nascer, “um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.” Ora, esse anjo é uma metáfora para indicar o contraditório, indicar o conflito; reforçada pelo conselho dado ao eu lírico, para que seja gauche, isto é, seja de esquerda, não no sentido político, mas por oposição ao que é direito, certo, moralmente falando. Ser gauche também é não se prender ao satus quo, ao que é estabelecido como correto. Em um contexto mais amplo, devemos considerar que o poeta moderno não está aí para corroborar o que a sociedade afirma, ser uma espécie de sorriso da sociedade, como queria a poesia parnasiana, e sim para contestar, chocar, ser a voz dissidente. Podemos ainda pensar ainda sob outros aspectos. O poeta não deve ser mais visto como um arauto, o mantenedor dos valores sociais, e sim o contrário; ele é um cacto (para nos referirmos ao famoso poema de Manuel Bandeira), que, arrancado de sua raiz, de sua origem, tende a incomodar a todos, a atrapalhar a rotina, quebrar os paradigmas. Por este motivo, o coração do poeta, isto é, sua percepção do mundo tende a ser maior que o próprio universo que o cerca, pois vai além do óbvio. Nesse caminho, porém, há muitas pedras, há a retina que atrapalha a visão, há o desejo que embota o cérebro: “Meus Deus, porque me abandonastes/ [...] se sabias que eu era fraco.” A metáfora do anjo é retomada no último poema do livro: “Poema da purificação”. Nele, o paradoxo, que parece se resolver, cria outro paradoxo, pois o anjo bom mata o anjo torto, o anjo mau. Joga então o corpo no rio, cujas águas se avermelham com o sangue e leva, de certo modo, o anjo mau por todos os lados, com o curso do rio. E as sombras dão lugar à luz, que parece ser do próprio poema, isto é, da capacidade que a linguagem poética tem de revelar o mundo, para além de uma simples rima com a palavra Raimundo. Em resumo, é preciso ler os poemas de Drummond não com um olhar romântico, passivo e conformado, e sim seguir o voo do anjo torto, seguir não o caminho fácil, e sim os descaminhos da vida moderna, cujo centro é não ter um centro, cuja verdade é não ter uma verdade. Alguma poesia é, pois, o mapa desse descaminho. Cabe ao leitor saber ler esse mapa. EXERCÍCIOS 1.(PUC-RS) “Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos.” Um dos traços da poesia de Carlos Drummond de Andrade, como demonstram os versos acima, é a ____________ entre as estrofes, o que nos oferece uma ideia de fragmentação da realidade. (A)disponibilidade (B)carência. (C)descontinuidade. (D)indagação. (E)dissolução. 2. (FUVEST) Refere-se corretamente a Alguma Poesia, de Drummond, a seguinte afirmação: (A)A imagem do poeta como gauche revela a sua militância na poesia engajada e participante, de esquerda. (B)As oposições sujeito-mundo e provínciametrópole são fundamentais em vários poemas. (C)A filiação modernista do livro liberou o poeta das preocupações com a elaboração formal dos poemas. (D)O livro não contém textos metalinguísticos, o que caracteriza a primeira fase do autor. (E)A ironia e o humor evitam que o eu-lírico se distancie ou se isole, proporcionado-lhe a comunhão com o mundo exterior. 3. 53 (Fuvest) QUERO ME CASAR Quero me casar na noite na rua no mar ou no céu quero me casar. Procuro uma noiva Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade 5. loura morena preta ou azul uma noiva verde uma noiva no ar como um passarinho. Depressa, que o amor não pode esperar! (A)Caracterize brevemente a concepção de amor presente neste poema. (FUVEST) Leia os poemas a seguir: I. (...) Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples. Se quer fumar um charuto aperte um botão. Paletós abotoam-se por eletricidade. Amor se faz pelo sem-fio. Não precisa estômago para digestão. (...) (O sobrevivente) (B)Compare essa concepção de amor com a que predominava na literatura do Romantismo. 4. (UEL) O poema que segue faz parte do primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia, publicado em 1930, e tem como título “Cidadezinha qualquer”. Leia o poema e assinale a alternativa correta: Casas entre bananeiras Mulheres entre laranjeiras Pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. (A)O poema denuncia de forma irônica e com uma linguagem sintética a monotonia e o tédio que predominam em pequenas cidades do interior. (B)O poema mostra com sentimento piedoso o desajuste existencial do homem diante da vida. (C)O poema retrata de modo triste e melancólico a desventura amorosa do poeta na cidade de Itabira, onde nasceu. (D)Predomina no poema um sentimento de nostalgia do passado, por meio de uma linguagem muito simples e pouco elaborada esteticamente. (E)Há no poema uma preocupação de ordem social e política que sintetiza o “sentimento do mundo” do eu lírico. II. Cota zero Stop. A vida parou. Ou foi o automóvel? Sobre esses versos, extraídos de Alguma Poesia, pode-se dizer que: (A)Os dois textos podem ser aproximados quanto ao tema (mecanização do cotidiano); entretanto, enquanto o primeiro apresenta uma visão crítica sobre o tema, o segundo faz uma apologia bem-humorada do progresso urbano. (B)Os textos assemelham-se não apenas quanto ao tema (automatização da vida humana), mas também quanto à linguagem: ambos apresentam a brevidade e a descontinuidade sintática características de Alguma Poesia. (C)A crítica à mecanização excessiva que caracteriza a vida moderna evidencia-se, no texto I, especialmente no emprego da antítese no primeiro verso, e, no texto II, no emprego do estrangeirismo, ou barbarismo (stop). (D)O texto II apresenta, através de uma linguagem marcada pela concisão telegráfica, a crítica presente no texto I, uma vez que os termos zero, stop e parou indicam a total dependência da vida moderna em relação às máquinas. (E)A máquina como assunto poético pode ser verificada nos dois textos, o que torna evidente a influência exercida, sobre o autor, da vanguarda artística conhecida como futurismo. 6.(Fuvest) Chega! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. Minha boca procura a “Canção do Exílio”. Como era mesmo a “Canção do Exílio”? Eu tão esquecido de minha terra... Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá! (Carlos Drummond de Andrade, “Europa, França e Bahia”, ALGUMA POESIA) 54 Neste excerto, a citação e a presença de trechos.............. constituem um caso de.............. Os espaços pontilhados da frase acima deverão ser preenchidos, respectivamente, com o que está em: Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade Costuma-se reconhecer que estes poemas, pertencentes ao Modernismo, apresentam aspectos característicos do “poema-piada”, modalidade bastante praticada nesse período literário. (A) Identifique um recurso de estilo tipicamente modernista que esteja presente em ambos os poemas. Explique-o sucintamente. (A) do famoso poema de Álvares de Azevedo / discurso indireto. (B) da conhecida canção de Noel Rosa / paródia. (C) do célebre poema de Gonçalves Dias/ intertextualidade. (D) da célebre composição de Villa-Lobos/ ironia. (E) do famoso poema de Mário de Andrade / metalinguagem. SENTIMENTAL Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas E debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! – Está sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando… E há em todas as consciências um cartaz amarelo: Neste país é proibido sonhar. 7. 8. 9. (PUCCAMP) Este poema é caracteristicamente modernista, porque nele: (A) A uniformidade dos versos reforça a simplicidade dos sentimentos experimentados pelo poeta. (B) Tematiza-se o ato de sonhar, valorizando-se o modo de composição da linguagem surrealista. (C) Satiriza-se o estilo da poesia romântica, defendendo os padrões da poesia clássica. (D) A linguagem coloquial dos versos livres apresenta com humor o lirismo encarnado na cena cotidiana. (E) O dia-a-dia surge como novo palco das sensações poéticas, sem imprimir a alteração profunda na linguagem lírica. (UFJF) Leia, com atenção, o poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro Alguma poesia. Com base na leitura do poema, discuta a concepção de amor em Drummond. QUADRILHA João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. 10. (UEM) Assinale o que for correto sobre o poema abaixo e sobre seu autor, Carlos Drummond de Andrade. Cidadezinha qualquer Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. (01) Apesar de Drummond ser considerado um dos expoentes da segunda geração modernista no Brasil, na qual o ímpeto de novidade da geração anterior diminui, ainda podemos encontrar exemplos de uma dicção poética inovadora em relação a modelos como o dos parnasianos. O verso “pomar amor cantar.”, sem pontuação entre as palavras e sem outros vocábulos, é um exemplo dessa proposição libertária da linguagem poética que havia sido iniciada com a geração de 1922. (Fuvest) Leia os poemas a seguir: POLÍTICA LITERÁRIA O poeta municipal discute com o poeta estadual qual deles é capaz de bater o poeta [federal. Enquanto isso o poeta federal tira ouro do nariz. ANEDOTA BÚLGARA Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade. 55 Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade (02) O último verso do poema, “Eta vida besta, meu Deus.”, a despeito de seu tom informal e aparentemente despretensioso, encerra uma reflexão de cunho existencial que tem no tempo um de seus elementos principais. Presente em “Cidadezinha qualquer”, essa reflexão é um elemento marcante na obra de Drummond e pode ser encontrada em outros poemas do autor. (04) Fruto da consolidação da linguagem poética em Drummond, a regularidade métrica marca os primeiros livros do autor, sobretudo Alguma poesia, seu livro de estreia. Nesse sentido, é exemplar o uso de redondilhas maiores no poema reproduzido, ilustrando um procedimento rigoroso do autor que só veio a ser modificado com a publicação de Lição de coisas. (08) Em termos de utilização de vocábulos e de escolhas nos campos da rima, do ritmo, da métrica e da estrofação, “Cidadezinha qualquer” aproxima-se de outro poema de Drummond, “No meio do caminho”, embora esses poemas tenham sido publicados pela primeira vez em livros diferentes (Alguma poesia e Libertinagem, respectivamente). No caso de “No meio do caminho”, o poema, inclusive, foi alvo de críticas de outros autores modernistas por sua falta de ousadia formal. (16) A referência ao ambiente urbano, presente desde o título do poema reproduzido, é ilustrativa em relação a uma das marcas da lírica de Drummond: o elogio da cidade em detrimento do universo do campo. A natureza, sinal de falta de civilização para o autor, reproduzida em seus poemas como um elemento capaz de atravancar o progresso, marcou uma das divergências entre Drummond e um de seus colegas de geração modernista, seu irmão Oswald de Andrade, poeta da natureza e contrário à urbanização. gABARITO 1.E 2.B 3.a) O amor é caracterizado como algo não propriamente idealizado, afinal ele aceita qualquer mulher.b) A concepção de amor era idealizada pelo "eu-lírico" da poesia romântica. Para ele, o amor era único e eterno. No caso do poema de Drummond, o amor não parece ser único. 4.A 5.B 6.C 7.D 8.a) Ambos os poemas são compostos em versos chamados "livres", pois não obedecem às convenções da métrica tradicional. O registro de linguagem é coloquial e há a presença do humor, da ironia, tipicamente modernista. 9.Trata-se de uma visão irônica do amor, contrariando a concepção romântica, aquela que prega o amor único e verdadeiro, para todo o sempre. 10.(01) Apesar de Drummond ser considerado um dos expoentes da segunda geração modernista no Brasil, na qual o ímpeto de novidade da geração anterior diminui, ainda podemos encontrar exemplos de uma dicção poética inovadora em relação a modelos como o dos parnasianos. O verso “pomar amor cantar.”, sem pontuação entre as palavras e sem outros vocábulos, é um exemplo dessa proposição libertária da linguagem poética que havia sido iniciada com a geração de 1922. (02) O último verso do poema, “Eta vida besta, meu Deus.”, a despeito de seu tom informal e aparentemente despretensioso, encerra uma reflexão de cunho existencial que tem no tempo um de seus elementos principais. Presente em “Cidadezinha qualquer”, essa reflexão é um elemento marcante na obra de Drummond e pode ser encontrada em outros poemas do autor. 56 A hora da estrela Clarice Lispector (1925-1977) era romancista, cronista e contista. Publicou o primeiro livro, Perto do coração selvagem, com menos de vinte anos, em 1944. Esse período ficou conhecido na literatura como a 3ª geração do modernismo, ou Geração de 45, da qual fizeram parte escritores como Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. A obra literária de Lispector é carregada de simbologia, como meio de tentar compreender o ser humano, compreender aquilo que definiria sua existência e sua essência, por assim dizer. A hora da estrela foi o último publicado em vida, em 1977, ano também em que Clarice veio a falecer. O título, estrela, sugere que o romance irá tratar de alguém conhecido. De modo geral, classificamos como estrelas pessoas que exercem determinado fascínio sobre uma coletividade. Assim são chamados, por exemplo, artistas do cinema ou da música, ou também pessoas que se destacam em alguma área: fulano é uma estrela, as estrelas da literatura, como a própria Clarice Lispector, etc. Porém, a estrela de que o livro fala é uma pessoa apagada, não é conhecida do grande público e nem reconhecida por ninguém. A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. (p. 30) O livro parece, portanto, ter esse título por dois motivos: primeiro, ao se selecionar determinada personagem para um livro, para um filme, enfim para uma história, há certa tendência de ela tornar-se conhecida e, eventualmente, adquirir “vida própria” por assim dizer. Como exemplos, podemos lembrar de Sherlock Holmes, Moby Dick, Mogli entre outros tantos dos mais diferentes autores. A segunda razão é que Macabéa, a protagonista do livro, tem seu momento de estrelato quando morre e é notícia no jornal. Além disso, adiantando o final, sua morte ocorre quando é atropelada por um veículo da marca Mercedes, cuja logomarca é uma estrela. O livro, em seu início, não deixa claro ao leitor quem seria Macabéa. Ao contrário, nas dez primeiras páginas, o leitor toma contato com quem seria o escritor do livro sobre ela e sobre o que ele pensa a respeito dela, que seria sua personagem. Desse modo, temse uma estranheza, pois a autora é Clarice Lispector, que cria um escritor, que será o criador de Macabéa, que parece ter existência própria. Isso tudo se explica aos poucos. Escritores da chamada Geração de 45 ficaram caracterizados por não apenas produzirem textos literários, mas também por discutirem todo o processo criativo. A esse jogo discursivo, que mescla a criação ao processo, dá-se o nome de metalinguagem. É exatamente nesse tipo de linguagem que A hora da estrela se encontra. O narrador, chamado de Rodrigo S. M., é também o pretenso escritor do livro sobre uma moça que teria visto nas ruas do Rio de Janeiro. Destaca-a da multidão para narrar a história dela. E, ao mesmo tempo em que narra essa história, reflete sobre o processo criativo. de Clarice Lispector Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a préhistória da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. [...] Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da prépré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe passará a existir. (p. 25) Como se pode observar, o narrador alude ao momento da criação, quando tudo era disforme. Essa alusão acaba por estabelecer uma comparação com o ato de criar. Um escritor antes de produzir algo vive um mundo disforme, há em sua mente ma espécie de caos, que depois vai tomando forma. Ora, se “tudo no mundo começou com um sim”, também o escritor deve dizer para o mundo sem forma; do caos fazer surgir a ordem por meio de um processo afirmativo. Clarice parece indicar com seu livro que a criação literária passa a existir por ela própria, sem dependência com o criador. Ora, esse é o princípio do livre arbítrio, i.e., se a criação existe, ela agora precisa ser, precisa da liberdade para constituir-se plenamente. É o que se dá com A hora da estrela. Macabéa, uma vez criada, parece ter um ritmo próprio, de modo que nem o narrador-criador é capaz de interferir. Por isso, em algumas vezes, Rodrigo se desespera com algumas atitudes de Macabéa, mas nada pode fazer, a não ser narrar o que ela mesma vive. Com isso, vamos também conhecendo o narrador, que, enquanto registra as ações da personagem principal, faz autoconsiderações, como meio de entender seu papel de escritor, sua essência: “ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino” [...] “Com esta história, eu vou me sensibilizar” (p. 29-30) O narrador, ao fazer diversas considerações sobre o ato de escrever, sobre o processo criativo, bem como sobre o poder criativo da palavra - “Disse Deus: Haja luz; e houve luz.” Gênesis 1:3 -, reconhece que a palavra é seu objeto, que a língua é seu instrumento de trabalho: “Mas que ao escrever – que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a” (p. 32) Por todos esses aspectos, é possível afirmar que narrador busca aquilo que seria o grau zero da escritura, i.e., o momento em que o que se escreve não estaria carregado de valores culturais, de valores ideológicos, de nada. A palavra bastaria por ela mesma. Apesar do intento, também podemos pensar que se trata de um processo um tanto impossível, uma vez que teria de chegar ao que seria a “pré-pré-história” de que falou no início. Para falarmos de outro modo, quando se escreve qualquer coisa, há sempre a visão de mundo de quem escreve, há os valores ideológicos, as crenças e tudo o mais que nos torna seres humanos. 57 A hora da estrela, de Clarice Lispector O jeito é começar de repente assim como eu me lanço de repente na água gélida do mar [...]. Vou agora começar pelo meio dizendo que – – que ela era incompetente. Incompetente para a vida. (p. 39) Em seguida, o narrador passa a intercalar a narrativa propriamente dita com comentários sobre o ato de narrar e sobre sua percepção a respeito de Macabéa. Em certo momento, o narrador afirma estar incomodado com ela: “(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. [...])” (p. 41) ou “Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência.” (p. 45) Macabéa pouco se importa com o mundo a sua volta. E isso desperta em Rodrigo certa revolta. Ainda assim, ele não quer interferir sobre o narrado. Ela parece viver um mundo apenas dela, num circuito fechado – talvez mimetizando a própria literatura que, embora expressa o mundo circundante, isola esse mundo em um universo significativo, de modo a compor um enredo com começo, meio e fim bem definidos: “Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.” (p. 42) Ao ser ler uma história, pressupõese que haverá acontecimentos importantes na vida de determinada personagem. No caso de Macabéa, o próprio narrador sabe que ela não tem nada extraordinário para oferecer; sua vida é comum, medíocre, sem contar outros aspectos que não tornam a história dela invejável ou exatamente edificante, não como sugere o título, a história de uma estrela. Conta que a nordestina sofrera muito na infância em Alagoas, que a tia, que a criara, lhe batia, que era xingada e privada das coisas mais simples da vida, como eventualmente tomar sol na praça ou comer doce ou mesmo ter um animal de estimação. Não sabia bem o que era felicidade, mas, por outro lado, também desconhecia a tristeza. Apenas o sentimento de existir. Já crescida, vem com a tia ao Rio de Janeiro. Depois de arrumar-lhe o emprego, a tia falece e ela fica sozinha na cidade. Para diminuir despesas, passa a dividir um apartamento com quatro moças, com quem não tem nenhuma amizade. O apartamento ficava num bairro frequentado por marinheiros, que vão atrás de prostitutas. Morava na rua do Acre, trabalhava na rua do Lavradio e, para se distrair, frequentava o cais do porto, na região da Ilha Fiscal. Era uma vida sem perspectiva. Esse é o motivo que leva o narrador-autor a ficar confuso quanto ao que sentiria por ela: talvez pena, talvez ódio ou mesmo amor. Parece querer escapar dela, porém fica imaginando que talvez ela possa ainda reagir na vida, e, com isso, buscar algo além de apenas seguir uma rotina de trabalho, descanso e passeio sem emoção. Tal modo de narrar revela uma característica da obra de Lispector, que mais do que contar uma história, reflete sobre o papel da literatura e como ela pode ou não expressar a vida real. Literatura, em rigor, é um constructo e, como tal, pode direcionar a vida de uma personagem para onde melhor convier O grau zero seria a negação disso tudo, seria isentarse da História para o retorno ao caos. Chegar a esse grau zero significaria a capacidade de escrever a partir do nada, como um deus criando o mundo pela força da palavra. Se digo “faça-se a luz” e a luz é feita, ora quem criou a luz se não a palavra, o ato de dizer? Mas o que era a luz antes dela existir? O que é um livro, um personagem antes de existir? Nada, apenas o caos. E para que tudo existe, há que se dizer sim: “A palavra tem que se parecer com a palavra”. (p. 34) Isso só pode ser entendido considerando o conceito de que escrita é um processo criativo e, como tal, significa dar vida a uma personagem. Essa vida, porém, deve ser, segundo a concepção do livro, livre da visão de mundo de quem escreve, e sim expressão do que seria a pessoa. Rodrigo não quer, portanto, macular Macabéa com seu modo de pensar, sua visão de mundo, seus valores. Quer que ela exista por ela mesma, personagem nascida do caos que vai tomando forma, formando corpo. Em conclusão, escrever possibilitaria ao narrador ser, possibilitaria a ele quebrar a rotina da vida vazia, sem significados, afinal ele está no grau zero, está pronto para o processo criativo, pronto para falar da personagem de modo mais livre, ou julga estar. [...] não sei se minha história vai ser – ser o quê? Não sei de nada, ainda não me animei a escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também não sei. (p. 36) E quem é Macabéa? Uma nordestina, datilógrafa (hoje o equivalente a uma digitadora). Mas observese: ela usa da palavra, não como a que cria, e sim como a que tão somente preenche documentos, escreve cartas prontas previamente. Nesse sentido, essa personagem seria o avesso do escritor. Outras características: é uma moça tímida, com vergonha da própria nudez, sem grandes expectativas da vida, vive com poucos pertences, em uma casa simples, sem luxo ou ostentação. Seu nome é uma homenagem a Nossa Senhora da Boa Morte, isso porque não se tinha certeza se ela vingaria, sobreviveria à pobreza. Mesmo assim, o nome foi dado apenas um ano após seu nascimento. O mesmo conceito aparece em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Os filhos dos personagens Fabiano e Vitória não têm nome. São chamados apenas de menino mais novo e menino mais velho. Se sobrevivessem mais tempo, talvez passassem a ser nomeados. Macabéa conseguiu o feito com um ano. Apenas disso, seu nome parece uma referência ao que é macabro, sinistro, diferente. Rodrigo afirma não querer utilizar termos complexos em seu texto. Prefere o simples. Fica claro, pois, a integração plena entre o que se diz e como se diz. Em termos críticos, seria fundir forma e conteúdo. A criatura teria de ser uma Eva sem Paraíso, sem nada antes, apenas o ser construindo-se aos poucos. Para ser a estrela na hora certa. Nesse sentido, a narrativa em si começa do nada, começa com uma oração principal, cuja subordinada se inicia duas vezes com a conjunção que: 58 A hora da estrela, de Clarice Lispector ao contexto da obra. Nesse caso, estamos diante de um laissez-faire por assim dizer. A personagem fica livre para viver como quer, como é. Com efeito, nem sempre nossa vida apresenta momentos dignos de uma novela, de um romance, no sentido de serem diferentes ou significativos. Mas, muitas vezes, a narrativa moderna, contemporânea, a dos últimos cinquenta anos, quer narrar exatamente o nada. Acabo de descobrir que para ela, fora Deus, também a realidade era muito pouco. Dava-se melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmera leeeenta, lebre puuuuuulando no aaaar sobre os ooooooouteiros, o vago era o seu mundo terrestre, o vago era o de dentro da natureza. (p. 50) Além de gostar de ir até o cais, Rodrigo descobre e comunica aos poucos outros interesses de Macabéa, entre eles ouvir rádio de madrugada. Maria da Penha, uma das moças com quem dividia o apartamento, emprestava a ela um rádio de pilha e ela ouvia músicas e as mais variadas histórias, além de informações cujo conteúdo ela não sabia quando ou como utilizar. Outra distração era ler anúncios de jornais que ela recortava para ler à noite sozinha. Era o mundo de fantasia que ela se permitia. Vivia os anúncios e a histórias ouvidas no rádio como se fora realidade. Era imaginação, que, me sua mente, virava real. A narrativa segue, em certo sentido, uma vertente existencialista, para a qual antes de sermos algo, existimos. Que antes de nos construirmos culturalmente, existimos. Eis o ponto do livro. A essência do livro se constrói aos poucos, ao passo que Macabéa está ali em presença desde o início, vamos conhecendo-a passo a passo. “Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro.” (p. 55) Entre alguns fatos de Macabéa, sabemos que tinha enjoo para comer e que gostava de certos termos diferentes, mesmo sem saber o significado, como efeméride, e que tinha pouca consciência social, no sentido de não entender que a sociedade tem um dinamismo e a organização social não é um dado natural, mas sim cultural e histórico. Como não tem consciência do porquê da própria vida, também não teria essa consciência da realidade circundante. Em um episódio, porém, Macabéa conta ao patrão que precisaria arrancar um dente e que teria de ficar à tarde descansando por isso. “E a mentira pegou”. Fato é que teve um dia todo sozinha no apartamento e pôde ver-se como alguém que pode ter prazer em dançar, em ouvir música, em imaginar um possível casamento. Com frequência, o referido conceito de escritura zero é retomado pelo narrador, que deixa claro ser ele apenas um condutor da vida da personagem, que é a própria quem vive como acha melhor. Em outros termos, o narrador não quer que a personagem seja construída com base em sua visão de mundo e sim com base naquilo que ela quer, almeja. Nem de longe consegui igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado. É com humildade que contarei agora a história da história. Portanto se me perguntarem como foi direi: não sei, perdi o encontro. (p. 59) Macabéa conhece então seu par amoroso na narrativa. Se ela tem apenas um nome, sem sobrenome, o par apresenta-se como Olímpico de Jesus Moreira Chaves. O narrador alerta tratar-se de uma mentira, pois teria “como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai”. Também é nordestino, mas da Paraíba. Teve uma vida tão dura e difícil quanto a dela, o que o levou a cometer alguns crimes, como roubar e mesmo matar quando era adolescente. Seu nome mescla a mitologia grega à religião cristã. O sobrenome de mentira parece ser meio de se dar maior importância e não ser alguém tão comum. Trabalhava como metalúrgico. O livro não chega a explorar de modo tão explícito as diferenças sociais, talvez porque tenha sido publicado em uma época quando a censura militar era bem ativa contra o que se considerava subversivo, como, por exemplo, apontar problemas sociais. Mesmo assim, vez ou outra, a narrativa leva o leitor a refletir sobre o que significa ser um trabalhador braçal e ao estilo de vida comum, cujo foco é sempre o hoje, não o amanhã, não a criação de perspectivas. A despeito de algumas ironias: “Mas ela e Olímpico era alguém no mundo. ‘Metalúrgico e datilógrafa’ formavam um casal de classe.” (p. 61) Se Macabéa é pessoa sem grandes projetos, Olímpico pretende ser deputado, não tanto por querer mudar o mundo ou coisa que o valha, e sim por achar pomposa a possibilidade de fazer discursos. Passaram a se ver com maior frequência. Macabéa já o considerava seu namorado, embora por não acontecer nada além de conversa nesses encontros, Olímpico não a visse do mesmo modo. Olímpico na verdade não mostrava satisfação nenhuma em namorar Macabéa — é o que eu descubro agora. Olímpico talvez visse que Macabéa não tinha força de raça, era subproduto. Mas quando ele viu a colega da Macabéa, sentiu logo que ela tinha classe. (p. 76) O relacionamento não ocorre de fato porque Macabéa não se vê como um indivíduo, não consegue se definir por completo, ao contrário de Olímpico, que percebe sua própria individualidade. “É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu”, diz Olímpico. As conversas giram em torno daquilo que ela ouve no rádio: referência a livros, a peças de teatro, música, cinema, curiosidades inúteis. Embora não entenda muito sobre o que fala, acha bonito esse tipo de assunto. Olímpico, de sua parte, não consegue entendê-la por completo, talvez ser ela incapaz de expressar sua própria individualidade. Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito se pensava. Mas olímpico não só pensava como usava palavreado fino. Nunca esqueceria que no primeiro encontro ele a chamara de “senhorinha”, ele fizera dela um alguém. Como era um alguém, comprou um batom cor-de-rosa. O seu diálogo 59 A hora da estrela, de Clarice Lispector era sempre oco. Dava-se conta longinquamente de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E “amor” ela não chamava de amor, chamava de não-sei-o-quê. – Olhe, Macabéa... – Olhe o quê? – Não, meu Deus, não é “olhe” de ver, é “olhe” como quando se quer que uma pessoa escute! Está me escutando? – Tudinho, tudinho! – Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não falei! (p. 71) Por isso, Olímpico passa a prestar mais atenção em Glória, uma carioca, miscigenada entre portuguesa e um quê de africana, mas que tinha cabelos loiros pintados. O modo que Olímpico a vê é repleta de clichês preconceituosos sobre o corpo da mulher e outros aspectos: por ser do sul ele a via como superior à Macabéa, além disso, por ser um pouco mais gorda, ter ancas grandes, imaginava que ela lhe daria muitos filhos; por morar com família, possibilitaria a Olímpico almoços ou jantares, até porque o pai era açougueiro. Não demora muito e ele termina o namoro com Macabéa e inicia outro com Glória. A verdade é que Olímpico não parece apaixonado por uma ou por outra, quando muito via no possível namoro uma maneira de ocupar os momentos livres. Glória, de qualquer modo, poderia ser sua ascensão social e também meio de se complementar como ser. Não era exatamente rica, ainda assim tinha mais dinheiro que ele e também mais dinheiro que Macabéa. Ela representa o diferente que também o tornaria diferente daquele menino pobre e que fora levado a cometer crimes. Ao descrever esse momento, o narrador evoca famosa frase de Euclides da Cunha: “O sertanejo é antes de um tudo um forte” transmudada para “O sertanejo é antes de tudo um paciente”. Ao ser comunicada de modo nada simpático, “Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer”, a nordestina, ao invés de chorar, passa a rir sem razão aparente. Como ela não tinha uma individualidade, também não sabia bem que reações deveria ter nesses momentos específicos. A única certeza é que gostaria de se casar, de ter um dia de noiva, vestir-se com tal e festar. Por isso, resolve dar uma festa de noivado para si mesma. Sobretudo porque era o que via nos anúncios e também ouvia no rádio. A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante. (p.79) Glória, que trabalhava com ela, se assustou com a mudança e teve um leve despeito, dizendo que a cor era próprio de mulheres da vida. Apesar da leve discussão, Macabéa continuou na sua toada, sem se importar porque o tal namorado fora “roubado’ por uma colega de serviço. A partir desse acontecimento, por estranho que seja, passou a ver em Glória sua ligação com o mundo. Era com ela que passara a conversar mais, e mesmo passara a se autoanalisar ou pelo menos se perceber. Macabéa, que nunca se irritava com ninguém, arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada. Glória usava uma forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha estômago delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto. (p. 81) Glória, um tanto chateada com a situação, mas não arrependida, decide tratar melhor Macabéa, chega mesmo a convidá-la para um lanche em sua casa. A atitude causa indignação em Rodrigo, o narrador: “Soprar depois de morder?” É algo interessante, pois vai além daqueles comentários feitos em romances românticos ou realistas, como no caso de Machado de Assis, em que um narrador tende a tecer comentários moralizantes. Aqui, é como se o narrador nada pudesse fazer, apenas seguir o narrado que ocorre por si mesmo. Revolta-se, entretanto não toma qualquer atitude. Deixa os acontecimentos seguirem seu curso. Macabéa, por não ter costume de comer coisas diferentes (pegou escondido uma pequena barra de chocolate), no dia seguinte passa mal ao ponto de ter de ir ao médico, que, sem muita vontade de consultar a moça, a diagnostica com começo de tuberculose, doença típica dos românticos do século XIX. Nesse momento, com alguma surpresa por parte do leitor, Rodrigo faz uma declaração: Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiura e anonimato total pois ela não é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela. (p. 86) A declaração se explica porque Macabéa é despida daquilo que nos torna pertencentes a uma classe social, a uma profissão, a um país, enfim despida de traços culturais e ideológicos claros. Ela não é nada, apenas é ser humano. Por isso, Rodrigo diz ser apaixonado por ela, pelo que ela tem de nada, e, por isso mesmo, pode ser verdadeira, plena, sem se prender a estereótipos. “Quanto a mim, só sou verdadeiro, quando estou sozinho.” (p. 87) Em alguns momentos, o narrador reconhece estar fazendo literatura, i.e., construindo uma obra ficcional e, como tal, ele é o condutor da história. Isso fica claro quando, após relatar conversa entre Glória e Macabéa, em que aquela lhe recomenda consultar uma cartomante para saber de seu futuro, Rodrigo diz estar “absolutamente cansado de literatura” e interrompe o narrado por três dias. A última frase grafada fora a pergunta de Macabéa ainda sobre a cartomante: “- É muito caro?” Três dias depois, Rodrigo retoma a narração e repete essa mesma pergunta como se o tempo fora congelado, enquanto ele se restabelecia do cansaço de escrever ainda mais sobre uma personagem sem vida, sem futuro e querendo consultar uma cartomante a ver se teria algum. 60 A hora da estrela, de Clarice Lispector Ainda seguindo essa perspectiva, o narrador estar preocupado com os fatos, contra os quais nada pode fazer a não ser narrar. Eis seu problema, porque os fatos parecem enfadonhos e por isso ele fica cansado da história. Considerando seu projeto inicial, não quer fazer juízos de valor ou outras considerações variadas. (Como é chato lidar com fatos o cotidiano me aniquila, estou com preguiça de escrever esta história que é um desabafo apenas. Vejo que escrevo aquém e além de mim. Não me responsabilizo pelo que agora escrevo.) (p. 90) Em seguida, narra a ida de Macabéa até Olaria, onde Madama Carlota, a cartomante, faz suas consultas. Conseguiu dispensa do trabalho com outra mentira, Glória lhe emprestara dinheiro e ela foi até Olaria de taxi. Macabéa ouviu inicialmente a história de Carlota. Soube que ela fora prostituta quando mais jovem, depois, já sem cliente começou a colocar cartas, mesmo sob o olhar vigilante da polícia. Para ela, sempre fora agraciada pela benevolência de Jesus Cristo, a quem devotava toda sua fé. Em sua fase de prostituta, diz que chegou a viver com um homem fixo, mas ele a tratava muito mal, por isso teria se envolvido com mulheres, para ao menos ter um pouco de carinho sem brutalidade. Conforme contava sobre a própria vida, perguntava a Macabéa se ela já conhecera homem, se ela se pintava, se enfeitava com frequência, entre outros questionamentos. Ante às negativas, Carlota, com base nas experiências que tivera além de ter aprendido a conhecer as pessoas por pouco que lhe revelavam, conclui que a vida de Macabéa era horrível: “Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim.” (p. 94) A verdade é que Macabéa nunca prestara atenção efetivamente em sua vida, se é que tinha alguma. Para ela, bastava o momento presente. Por isso, não projetava futuro, nada que demandasse tempo para se realizar. E aqui vem o momento crucial da história de Macabéa, aproxima-se a hora da estrela. Carlota lhe diz que sua vida mudará, que ela será mais feliz, em todos os sentidos, no amor, no dinheiro, pois iria se casar com um homem estrangeiro e rico. E eis o problema para ela, pois como ficar esperando por algo que ela nem conhecia, não fazia parte da sua realidade imediata. De qualquer modo, Macabéa passou a se sentir outra imediatamente. Mais uma vez pelo poder criativo da palavra. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras – desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. (p. 98) E, de fato, Macabéa tem um encontro com um homem rico, porém, ao invés de ser um encontro amoroso, ao decidir atravessar a rua, não vê e nem é vista. Um carro Mercedes a atropela e ela fica jogada ao chão, próximo ao meio fio, agonizando e tentando entender o que acontecera. É o momento, a hora em que a estrela surge no livro, para transformar Macabéa em uma estrela fugaz. Quase o final do livro, o narrador faz uma série de considerações em torno do narrado, mais do que já fizera, especialmente para, mais uma vez, se desculpar por não poder fazer nada por Macabéa, pois nem ele poderia prever o atropelamento, nem saberia dizer que aquilo a levaria ou não à morte. Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam. (p. 100) E adiante: Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia deixá-la na rua e simplesmente não acabar a história. Mas não: irei até o ar terminar [...] (p. 102) No final, o narrador reflete outra vez sobre a existência, sobre o que pode significar a vida. Há uma mescla de clichês, de filosofia existencialista e visão cristã, sem que isso interfira de fato na caracterização da personagem, cuja existência ocorre por ela mesma, sem interferência do narrador. No chão, Macabéa, moribunda, parece finalmente perceber-se como alguém, como um ser existente, devido à quantidade de pessoas que estavam próximas, mais olhando-a que tentando ajudá-la. Eis então o momento em que Macabéa, a estrela do título, é descoberta, torna-se alguém, por algum tempo ao menos, torna-se alvo dos olhares. Ela que nunca fora vista por ninguém. E essa multidão ouvem-na dizer uma frase que aparentemente não tem sentido: “Quanto ao futuro.” Macabéa, com essa afirmação, parece fazer uma piada, mas ao que parece também tem um tanto de constatação teleológica que a morte pode ter. Ora, a morte dela liberta Rodrigo de sua obrigação, e o leva a perceber que ele também é mortal, que pode não ser o fim. Não se trata de uma explicação cristã, da possibilidade de ir para o Céu ou para o Inferno, e sim tem-se a revelação catártica de que a “morte é um encontro consigo”. Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passo logo, eu sei porque de morrer com a moça. Desculpai-me esta morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita tudo porque já beijou a verdade. (p. 105) Eis o aspecto essencial desse livro em particular e da obra de Clarice Lispector em geral, o problema da existência. Por que existimos? O que somos? O que queremos de fato? O que nos torna humanos? Além disso, há ainda a problemática da mulher, do papel do feminino em uma sociedade machista, construída para o homem. Sempre importante lembrar que o livro foi publicado nos anos 70, quando o discurso feminista procurava afirmar sua validade. Macabéa é nordestina, sem voz, sem vida externa, que aceita a vida como ela é. Glória acredita na felicidade, ainda 61 A hora da estrela, de Clarice Lispector que tenha de fazer algo moralmente não tão aceitável. Madama Carlota é livre por vias tortas, para afirmar sua feminilidade teve de servir o corpo aos homens a fim de poder construir uma pretensa identidade. Em conclusão, o livro pode ser lido como revelador de que tudo se dá por um processo de construção: o autoconstruir-se de Macabéa, o descobrir-se por parte do narrador-autor e a construção da narrativa, cujo elemento chave é a linguagem. A linguagem reprodutora dos fatos, mas também construtora do real ou de uma realidade possível, a que transforma alguém desconhecido em uma estrela do momento, fugaz. Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida. Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. Até deu-se ao luxo de ter tédio – um tédio até muito distinto. EXERCÍCIOS 1. (FUVEST) Em A Hora da Estrela, o narrador apresenta a seguinte reflexão: “ Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes”. Com base nela, explique: (A)Por que o romance tem o título A hora da estrela? (B)Por que é irônica a relação entre o título e a história de Macabéa? 2. Considerando-se o fragmento e a obra, é correto afirmar: (01) A personagem apresenta-se como um ser dissimulado, astuto e ambicioso. (02) A liberdade proporciona a Macabéa um momento de autoconhecimento. (04) A felicidade, para Macabéa, reside na superação de desafios cotidianos. (08) A declaração “Às vezes só a mentira salva” revela relativismo moral e ironia. (16) Solidão e liberdade apresentam-se como ingredientes necessários ao bem-estar da personagem. (32) Os motivos da felicidade vivenciada pela personagem apontam para a complexidade de seus projetos existenciais. (64) A expressão “as quatro Marias cansadas” revela, simultaneamente, a perda da individualidade dessas personagens e o contraste com a situação de Macabéa, narrada no fragmento. 3. (FUVEST) Sobre o narrador de A hora da estrela, de Clarice Lispector, pode-se afirmar que: (A)(é do tipo observador, pois revela não ter conhecimento sobre o que se passa no universo sentimental e psíquico da personagem (Macabéa). (UFBA) Pois não é que quis descansar as costas por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. (B)(é onisciente, pois assume o papel de criador de uma vida, sobre a qual detém todas as informações; o poder da onisciência é, para ele, fonte de satisfação, pois Rodrigo S. percebe que os fatos dependem de seu arbítrio. (C)é do tipo observador, pois limita-se a descrever superficialmente as emoções de Macabéa, o que fica evidente nas ocorrências enigmáticas do termo “explosão“, apresentado sempre entre parênteses. 62 A hora da estrela, de Clarice Lispector (D)constitui-se como um personagem, pois narra em primeira pessoa; não há, entretanto, referências à sua história pessoal, visto que seu objetivo é falar sobre um personagem de ficção (Macabéa). (E)é um dos personagens do livro; entretanto, ao apresentar-se não só como narrador, mas também como criador da história, problematiza a essência da literatura de ficção, que reside na recriação arbitrária do real. 4. (FUVEST) Devo registrar aqui uma alegria. é que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve urna inesperada felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos de artifício. Ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é? (Clarice Lispector, A hora da estrela ) Considerando-se no contexto da obra o trecho sublinhado, é correto afirmar que, nele, o narrador: (A)assume momentaneamente as convicções elitistas que, no entanto, procura ocultar no restante da narrativa. (B)reproduz, em estilo indireto livre, os pensamentos da própria Macabéa diante dos fogos de artifício. (C)hesita quanto ao modo correto de interpretar a reação de Macabéa frente ao espetáculo. (D)adota uma atitude panfletária, criticando diretamente as injustiças sociais e cobrando sua superação. (E)retoma uma frase feita, que expressa preconceito antipopular, desenvolvendo-a na direção da ironia. 6. (ITA) O título do livro A hora da estrela, de Clarice Linspector, diz respeito ao seguinte momento do romance: (A)o desspertar amoroso de Macabéa no namoro com Olímpico. (B)a descoberta de Macabéa de que Olímpico a traia com Glória. (C)a obtenção por Macabéa de um bom emprego como datilógrafa. (D)a previsão do grande futuro de Macabéa, feita pela cartomante. (E)a morte de Macabéa, atropelada por um carro de luxo. 7. (ENEM) Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. [...] Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré- história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo. [...] Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual – há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes. LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 (fragmento). 5. (FUVEST) “A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem (…)”. Neste excerto de A hora da estrela, o narrador expressa uma de suas tendências mais marcantes, que ele irá reiterar ao longo de todo o livro. Entre os trechos abaixo, o único que NãO expressa tendência correspondente é: (A)“Vejo a nordestina se olhando ao espelho e (…) no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos”. (B)“é paixão minha ser o outro. No caso a outra”. (C)“Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa, como se chegasse a si mesma”. (D)“Queiram os deuses que eu nunca de escreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra”. (E)“Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti” 63 A elaboração de uma voz narrativa peculiar acompanha a trajetória literária de Clarice Lispector, culminada com a obra A hora da estrela, de 1977, ano da morte da escritora. Nesse fragmento, nota-se essa peculiaridade porque o narrador (A)observa os acontecimentos que narra sob uma ótica distante, sendo indiferente aos fatos e às personagens. (B)relata a história sem ter tido a preocupação de investigar os motivos que levaram aos eventos que a compõem. (C)revela-se um sujeito que reflete sobre questões existenciais e sobre a construção do discurso. (D)admite a dificuldade de escrever uma história em razão da complexidade para escolher as palavras exatas. (E)propõe-se a discutir questões de natureza filosófica e metafísica, incomuns na narrativa de ficção. A hora da estrela, de Clarice Lispector gABARITO 1.a) A hora da estrela alude, metaforicamente, à morte, ao instante de fulguração rápida, mas reveladora de todo um sentido de existência. É a epifania à maneira de Clarice Lispector, dentro da ótica existencialista da busca do sentido da experiência humana. Além disso, é uma referência irônica à estrela do automóvel que a atropela. b) A ironia, trágica no caso, dá-se pela discrepância entre a breve aspiração de glória de Macabéa, insuflada pela cartomante (a miragem da estrela hollywoodiana), a sua condição social (migrante nordestina marginalizada no Rio de Janeiro) e seu destino: atropelada por um carro de luxo, na porta do Copacabana Palace. A hora da estrela, banal e reveladora, é o instante maior de Macabéa, anônima, estatelada na rua, mas objeto da atenção fugaz de transeuntes anônimos. 2. (08) A declaração “Às vezes só a mentira salva” revela relativismo moral e ironia. (16) Solidão e liberdade apresentam-se como ingredientes necessários ao bem-estar da personagem. (64) A expressão “as quatro Marias cansadas” revela, simultaneamente, a perda da individualidade dessas personagens e o contraste com a situação de Macabéa, narrada no fragmento. 3.E 4.E 5.C 6.E 7.C 64 Melhores contos de Nélida Piñon de Nélida Piñon são narrados em terceira pessoa e não apresentam personagens com nomes específicos. São sempre tratados por pronomes ou por substantivos: ela, ele, homem, mulher etc. “Fraternidade” é o primeiro conto, que trata inicialmente do relacionamento entre dois irmãos. No caso, a personagem principal, uma moça, tem de cuidar do irmão doente, após a morte da mãe. O irmão vive recluso em seu quarto, acamado. Ela faz tudo por ele. Como meio de ter momentos apenas seus, libertar-se da necessidade dos cuidados que tem para com o irmão, ela se entrega a homens viajantes que necessitam de algum pouso. Quando a mãe morreu, ninguém da cidade apareceu para as despedidas do corpo. Mas, a filha procurou tudo esquecer. Com a ajuda de viajantes que ali pernoitaram, nomes obscuros e jamais identificados, pôde enterrar a mãe. (p. 21) Um desses homens torna-se seu companheiro fixo. No entanto, o que poderia ser meio de ela ter suas atividades divididas, de ter uma colaboração, transforma-se em outro peso. Ela agora, além de servir ao irmão, deve também estar sempre disposta a seu homem. Ou seja, deve cumprir seu papel de “esposa”, “amante”, cuidadora da casa, provedora do lar. O meio de tentar subverter essa ordem é pelo sexo. Sabe que, de certo modo, acaba por prender aquele que é servido. Trata-se de um jogo entre a visão patriarcal, de dominação masculina, e a construção do universo feminino. Em dado momento da narrativa, esse jogo volta a ser mais favorável aos homens da casa. Percebia que o homem não dependia do seu consentimento para preservar um mundo que se fez seu na conquista. [...] Nem perguntaram, e você, tem fome? O idiota ameaçava falar como se a sua recente habilidade liberasse-o para as tentativas mais ousadas. (p. 36 e 38) Ela tem consciência de seu papel, tem consciência de que é a serviçal, ao mesmo tempo que projeta reconquistar o terreno perdido. Em dado momento, cansada desse servilismo, decide matar o irmão. Interessante que o faz como se estivesse ainda cuidando dele. Limpa-o, troca sua roupa, toca em seu corpo até golpeá-lo mortalmente. Não revela qualquer dor ou arrependimento. Ao contrário, sente-se forte, sabe que é preciso também fazer o mesmo com o homem que agora dominava a casa. E o faz enquanto ele dorme. Consciente da sua força, jamais sofrendo os resultados de qualquer ato que viesse a praticar, olhou as mãos, a faca no bolso da saia e murmurou, até que será fácil se eu não tiver pena. E caprichosa, entrou no quarto onde certamente estendia-se o homem amado. (p. 41) “Breve Flor” relata a história do crescimento sentimental de uma moça, que se relaciona com o primeiro rapaz que lhe agrada. Seria algo como para Uma das escritoras mais estudadas dos últimos trinta anos tem sido Nélida Piñon (1937). Jornalista de profissão, a autora vem publicando livros desde a década de 60, especialmente romances e contos. Tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras em 1990 e a primeira mulher eleita para ocupar a presidência da casa. Não é pouca coisa, pois a literatura, historicamente, foi exercida mais por homens que por mulheres. A explicação é um tanto óbvia: a mulher foi relegada mais aos serviços domésticos que à atividade intelectual. O século XIX até contou com ou uma outra mulher na literatura, mas foi no século XX que surgiram nomes como Raquel de Queiroz, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e a própria Nélida Piñon. No caso específico da obra literária de Piñon a discussão em torno dos papéis femininos na sociedade é recorrente. Tal temática é bastante comum nos três livros de contos de onde foram extraídas as 22 narrativas para a coletânea Os melhores contos de Nélida Piñon, publicada em 2014. Do primeiro livro, Tempo das frutas (1966), são onze contos; de Sala de armas (1973), seis; e, de O calor das coisas (1980), outros cinco. A linguagem é um importante meio de manipulação política. É pela linguagem que se constroem os discursos e se cria um universo pela literatura. Consciente desse papel, a autora quer, em seus contos, revelar os implícitos discursivos e de que modo o machismo se perpetuou historicamente. Em contrapartida, por meio da ironia e de outros mecanismos linguísticos, revela o modo de olhar o feminino, sem cair no discurso fácil das feministas. Seu objetivo antes é o mostrar que a opressão deve ser combatida pela ação e também pela reconstrução discursiva. Sabe que assim terá mais chances de revelar e desvendar a alma das personagens, espelhos do ser humano. Não se trata, pois, de um texto que pretende tão somente falar da mulher, e sim compreender o ser humano. No caso específico de Piñon, nem sempre é possível separar o enredo, a história, do próprio discurso, tendo em vista que um constrói o outro. Há em seus textos uma visão crítica da vida, com um erotismo ora velado, ora explícito, mas nunca gratuito, como meio também de compreender as atitudes humanas. Para facilitar a análise, vamos tratar dos contos, respeitando o livro onde foram originalmente publicados. Desse modo, tem-se uma visão de conjunto da coletânea. De Tempo das frutas, incluindo o que dá título ao volume, há onze contos. Publicado originalmente em 1966, insere-se em um contexto de busca de mais direitos às mulheres, no sentido de proporcionar que a mulher fale, tenha liberdade para se expressar. Um dos caminhos é explorar a sensualidade do corpo, não a do sexo pelo sexo, e sim como meio de afirmar sua individualidade, de constituir-se. Os contos 65 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon sair de sua rotina busca alguém que a complemente, que a complete. Inexperiente, engravida desse primeiro homem, que a abandona antes mesmo do nascimento do filho. Já mãe, relaciona-se com outro homem, não por amor, mas por necessidade um tanto financeira, outro tanto para ter suporte, proteção. Após o menino ter crescido, percebe que seu relacionamento não tem mais razão de ser, além disso percebe que viver em um sítio era pouco para ela, para o que imaginava ser a vida que projetara, especialmente no que diz respeito à construção de sua identidade como ser humano e como mulher, em particular. Parte com o filho para a cidade. Acolheram-nos uma casa de freiras, mas a vida reclusa, de oração e trabalho também não a satisfazia. Despediram-se no dia seguinte, abafando certa fé que sufoca as decisões necessárias, ainda que reconhecessem luta maior se iniciando. (p. 49) Nesse tempo todo, o menino virara homem. Sempre um cuidando do outro, trabalhando em conjunto. Trata-se de uma história de amor materno e filial, cujo título se explica após a morte da mulher. “Quando o filho a enterrou, enfeitou-lhe a sepultura com a brevidade das flores” (p. 50) O título sugere algo romântico, segundo a visão tradicional da mulher, ou seja, aquela que deve cuidar do lar, do marido. No entanto, a mulher desse conto não fica à espera, está sempre em busca de algo, como de resto os demais contos de Nélida Piñon que têm como personagem principal uma mulher. O mesmo se dá em “Aventura de saber”, que lembra um pouco “Missa do Galo”, de Machado de Assis (detalhe, a autora escreveu “O ilustre Menezes”, em que reescreve esse conto de Machado. Adiante iremos analisá-lo). Em ambos os contos, há um jogo sensual entre uma mulher adulta e um rapaz ou, no caso do conto de Nélida, mais especificamente um adolescente. O leitor da época em que foi publicado o conto (anos 60) pode ter se sentido mais incomodado, sobretudo porque era mais incomum uma mulher mais velha se relacionar com alguém mais jovem. Não que isso não acontecesse, mas sem dúvida sugeria um escândalo, agravado ainda mais pelo fato de essa mulher ser a professora do menino. Modernamente, o caso tem o seu tanto de escandaloso, ainda mais por se tratar de um menor de idade, mas a sociedade parece aceitar um pouco mais relacionamentos nem sempre convencionais, por assim dizer. Como se trata de algo não aberto, não público, o caso se estabelece antes na mente que propriamente na realidade. Um jogo em que misturam sensualidade tímida e desejos contraditórios. O conto de Piñon se inicia com o retorno de uma professora às suas atividades após uma estranha doença. Em seguida, o leitor, por meio de uma narrativa sutil, singela, poética e delicada, toma contato com o que ocorrera. No caso, a professora passa a notar entre os alunos de uma turma (nada é nomeado explicitamente, fica apenas no âmbito do indefinido). Em um primeiro momento, percebendo que o menino parecia olhar para ela de modo diferente, passa a nutrir não ainda uma paixão, e sim o conflito entre o que ela é, o papel que ela desempenha, bem como a diferença de idade entre eles. Ainda assim, em dado momento, sente um pouco de ciúmes ao perceber que uma menina se aproxima do “seu” menino. Repreende-os ao ponto de mais tarde haver até a necessidade de uma reunião com os pais, uma suspensão do menino. Após o episódio, a aproximação parece inevitável, e passam a conversar sobre assuntos gerais. À medida que ele falava, aquele corpo, e definitivamente percebia-o um homem, embora inexperiente para amar, revelou-se desajeitado, perdendo a harmonia que ela sempre teimara descobrir. (p. 59) Sozinha, começa a pensar nas possíveis consequências, positivas e negativas, de uma aproximação efetiva. Decide, por fim, que irá se declarar ao menino, por não suportar mais a agonia daquele sentimento, era preciso expressar-se, revelar o que era oculto. Porém, para sua surpresa e decepção, viu, na sala de aula, que o menino era ainda apenas um adolescente, imaturo e incerto em seus sentimentos. Percebeu isso, ao ver novamente a menina próxima a ele, conversando com mais desenvoltura, mais cuidado, com olhares desejosos. A se ressaltar, portanto, que o enredo contraria aquela visão tradicional da professorinha, cuja função seria a de ensinar tão somente. No caso, essa professora revela uma sensualidade, vai contra o senso comum, de qualquer época e, particularmente, do contexto anterior às revoluções feminista e sexual dos anos 60. Nessa mesma linha, está “Tempo das frutas”, em que uma senhora de 70 anos revela a sua filha estar grávida. Se no século XXI a prática do sexo por uma mulher idosa pode ser vista como algo normal, na década de 60 do século passado era quase uma afronta à moral vigente. Não por acaso, a primeira frase do conto é da perspectiva da jovem, que “teve nojo do seu cheiro como daquela velhice que era a aparência da morte” (p. 97). Aos poucos, porém, a jovem compreende que uma mulher mais idosa, mais madura pode ainda amar, ser amada, pode ainda sentir prazer. Não está apenas à espera da morte. Em “A força do poço” e “Miguel e seu destino”, temos a temática da loucura. O que se observa em ambos os contos é que a perda da sanidade, motiva a construção do sentido para a vida em outros aspectos. No primeiro caso, o personagem principal vê em um poço algo que o ligaria a seu universo particular, uma vez que qualquer outro lugar ou objeto não lhe devolveriam o sentido. Levado para o hospital, ali ficou em repouso. A cabeça estourava no riso e na lágrima, expulsando a galanteria dos momentos amáveis. Parecia o corpo crescer esmagado contra a parede, tais os recursos que o impulsionavam contra as extensões brancas. Logo que o rosto tornou-se severo e a mancha das explosões fáceis o abandonou, os amigos suspenderam as visitas, e a família também. (p. 61). 66 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon Por isso, a solução foi passar a viver em um poço. O que era uma atitude desesperada, revelou-se sua escapatória. Era ali que via sentido em sua vida, tentando reconstruir-se como ser, como indivíduo. Ia conquistando paciente a liberdade através da sujeira e da fragmentação do corpo. Restava-lhe agora desfrutá-la. Sim, o homem se aperfeiçoava, a despeito das dificuldades. (p. 66) No caso de “Miguel e seu destino”, o personagem principal, um dos únicos que são nomeados em todo o primeiro livro de contos, motivado por comiseração e também por desvio da racionalidade, Miguel cumpre o seu destino, no caso matar um indivíduo leproso (hoje, diríamos portador de hanseníase). Para dar sentido ao seu ato, estabelece uma analogia entre matar um animal qualquer, como um porco, para que possamos nos alimentar, e matar uma pessoa doente, como meio de aliviá-la do sofrimento. Depois de ter vivido aquela intimidade sufocada por feridas, apenas os olhos libertos do horror em que se tornar, nenhum homem podia viver em paz. Aquele ato consumia a sua vida. (p. 73) Outro conto em que se tem a presença de algo aparentemente sem sentido é “A vaca bojuda”. Não se pode afirmar categoricamente que temos outro caso de insanidade. Ainda assim, o proprietário da vaca deixa de a ver como um simples animal, para considerá-la uma amiga, uma companheira. Mesmo sendo casado e tendo família, parece que é com a vaca que a vida tem mais sentido para ele. O título, vaca bojuda, é por referência à descrição da vaca: gorda ou arredondada. O ponto culminante ocorre quando a vaca, doente, falece. O homem então, para se despedir da amiga, faz o enterro do animal como se fosse um ser humano, e exige a presença de toda a família. Como nos dois contos anteriores, o objetivo é revelar que os indivíduos buscam um sentido para a própria vida. No caso específico desse homem, mais do que cuidar da família, embora o fizesse, o sentido estava na amizade com a vaca. Esse é o significado mais geral dos contos de Nélida Piñon. Se a vida é um constructo, há que se buscar algo significativo para dar razão à ela. Com “Menino doente”, a autora, para além de abordar a doença de uma criança, quer, antes, revelar o distanciamento entre pai e filho. Segundo o que se depreende da leitura, o pai, por trabalhar muito e passar pouco tempo em casa, acaba vendo o filho mais à noite, sem que entre eles houvesse maior afinidade. Por isso mesmo, agora doente, o menino se mantém arredio às investidas do pai, que, por sua vez, queria uma aproximação ainda que tímida, nesse momento de convalescença do garoto. Com efeito, não parece querer a amizade de ninguém, mas é contra o pai que se volta. O menino observava-o como a um estranho, inclinado a ridicularizar aquele hábito desesperado e intransigente de apelar para o seu amor a fim de que ambos esquecessem da verdade que jamais abordariam corajosos. (p. 90) Também fica sugerido no conto que o homem não desejou ter se tornado pai desse menino. A paternidade ocorreu a contragosto. Não por acaso o filho desde sempre percebeu tal distanciamento. Agora, doente, percebe a intenção do pai, não a vê como algo positivo, e sim apenas como uma mera obrigação do adulto e não um desejo real. A comunicação entre eles não se estabelece naturalmente; fica sempre no limite de um possível conflito. Ao mesmo tempo, parece haver um sentimento à espera de um gesto verdadeiro de parte a parte. O pai aproximou-se, a respiração intensa e rara, pousou delicado os lábios na testa febril, a mesma intensidade severa com que uma boca trabalha uma outra ampliando-se. [...] O menino temia a sobrevivência após a liberdade do carinho [...] (p. 94) Um conto, portanto, que aborda a dificuldade de comunicação entre pessoas que se conhecem e que não querem a amizade mútua por tão somente uma obrigação parentesca. Em outra linha encontra-se “Vestígio”, conto com certa tendência para o fantástico, ainda que não pertença de maneira específica a esse gênero literário. Trata-se antes de uma alegoria. Sete monstros provocavam o terror em uma floresta, onde matavam, estupravam e mesmo comiam pessoas que ousassem passar pelo local. São descritos como seres inteligentes, porém sem qualquer civilidade, a não ser a de satisfazer as necessidades básicas: alimentar-se e praticar sexo. Até que um desses monstros pega uma menina de 14 anos e a leva para os demais. Seguindo sua prática habitual, matam e barbarizam a menina, comendo sua carne e bebendo do seu sangue. Porém, ao procurarem objetos na bolsa da menina encontram um broche e uma foto. Esses dois objetos despertam nos monstros um senso de humanidade. O fetiche dos objetos os fazem se ver como destruidores da humanidade. Olhou-o durante muito tempo. Depois foi passando adiante, e todos com a mesma intensidade apreciavam. Arrumaram então nobremente o broche, e seu retrato bonito, sobre os ossos da menina, e, de repente, os monstros choraram. (p. 113) É o último conto do primeiro livro da coletânea. Seguindo a mensagem geral, a autora quer chamar a atenção do leitor para uma necessária mudança do mundo machista, selvagem e que pouco daria ouvido dá às necessidades femininas. Não podemos dizer, contudo, que são contos feministas no sentido estrito do termo, que seguiriam uma ideologia sexista, mas sim que há necessidade de se compreender melhor a humanidade da mulher. É isso que, mesmo tardiamente, fizeram os monstros em questão. Em um outro conto ainda do primeiro livro, retoma-se a questão do papel da mulher na sociedade. “Rosto universal”, por exemplo, narra a história de um casal, que se mantém unidos não tanto por amor, que se perdeu com o tempo, mas sim por uma necessidade mútua. Embora a separação e o divórcio fossem 67 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon possíveis na década de 60, era sempre uma vergonha por indicar uma falha, a falência do projeto pessoal. Razão pela qual, o casamento poderia ser visto como meio de construção de uma identidade mútua, ao mesmo tempo que meio de cerceamento das individualidades, dos projetos pessoais. A reflexão parte da mulher que, após uma noite de sexo, fica olhando para o corpo do homem, buscando compreender o que motivava duas pessoas se aproximarem, ficarem juntos, terem relações íntimas. Reflete também sobre o conceito de um pertencer ao outro, algo como “meu marido”, “minha mulher”, como se a individualidade devesse se anular completamente em favor de uma união indissolúvel. A mulher constrangia-se em possuir um homem constrangido em possuir uma mulher, e era uma luta de afinação, à procura do som perfeito. (p. 88) Do segundo livro presente na coletânea, Sala de armas, publicado em 1973, há seis contos, entre os quais um dos mais famosos da autora: “Colheita”. Os contos seguem a tendência do primeiro livro, especialmente no que diz respeito à tematização da mulher, da condição feminina, sem ser, repita-se, pertencente ao feminismo tacanho e radical. Além disso, a autora apresenta uma maior maturidade estética, o que significa um apuro maior no trato da linguagem literária e na composição dos textos. Outro aspecto é que os contos desse livro remetem o leitor a alguns mitos fundadores, isto é, exploram os arquétipos humanos, que seriam, segundo Jung um conjunto de imagens psíquicas presentes no inconsciente coletivo. “Ave de paraíso”, por exemplo, lembra a famosa história de Ulisses e Penélope na Odisseia, de Homero. Apenas como lembrança, Ulisses ficou dez anos longe de seu reino e de sua esposa por ocasião da Guerra de Troia, depois levou mais 17 anos tentando retornar a Ítaca. Todo esse tempo fez que todos imaginassem que o rei havia morrido e por isso propunham a Penélope casamento. Como ela nunca perdera as esperanças, dizia que só se casaria quando o vestido estivesse pronto. Porém, costurava durante o dia e desmanchava à noite para evitar o casamento. No caso do conto, uma mulher casada a contragosto da família e mesmo de amigas vive o infortúnio de ficar meses sem o marido em casa. Não fica claro o porquê das ausências, apenas que toda vez que ele chega, ela o recebe com grande alegria, fazendo de tudo o que pode para ele. Nas ausências seguintes, ao retornar ele usa disfarces para causar alguma desconfiança na vizinhança (Ulisses, por exemplo, se fez de louco). Ao que parece queria também testar a fidelidade da esposa. No final do conto, após idas e vindas, o marido diz à esposa que agora irão iniciar efetivamente uma vida a dois. – Terminou o tempo da provação. Desta vez eu vim para ficar. A mulher escondendo a profunda alegria olhou o homem, em seguida correu para a cozinha. Ninguém a superava nas tortas de chocolate. (p. 122) Embora se tenha uma mulher submissa, há a busca pela felicidade efetiva, que só chega após provações. Por isso o título: o paraíso só vem após a “tempestade”. Na sociedade brasileira, o homem é visto como autoridade. Nesse sentido, a mulher deve seguir o exemplo de Penélope, eternamente à espera de seu Ulisses. Cabe a ela ser prendada, boa dona de casa, boa esposa sempre marcada pelo silêncio e pela obediência. O conto se opõe a outro do mesmo livro: “Colheita”. Nesse conto, a personagem feminina, casada, fica sozinha à espera do marido que tem de fazer uma longa viagem. Antes, porém, o homem, antes de deixar sua “Penélope” para conquistar outras terras, desempenhar seu papel de homem, por assim dizer, marca o próprio território, deixando com a esposa uma foto. Algo semelhante ao que fazem os casais nas redes sociais de modo a dizer, “ela me pertence”. Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. (p. 152) Como a Penélope da Odisseia, ela também não permitiu que nenhum homem se aproximasse dela com a ausência do marido. Porém, não ficou simplesmente à espera do seu homem. Passou a se reconstruir como mulher. Esse momento de espera serviu-lhe para uma busca da sua própria identidade. Sempre mudava o vestido, usando cores vibrantes, também cuidou com esmero da casa, do mesmo modo que passou a tomar posse efetiva do que lhe pertencia. Não demorou muito para pegar o retrato do marido e escondê-lo da vista, não por ódio, mas para afirmar sua identidade, marcar ela própria o território com sua personalidade, com seu modo de ser. [...] porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.” (p. 153). Desse modo, sua voz se torna altíssona em contraste à ausência do marido, tanto física quanto espiritual, ainda que em nenhum momento tenha imaginado trai-lo com outro. Tempos depois, com o retorno dele à casa, o conto tem seu ápice. Inicialmente, o marido descobre que o retrato fora retirado do local e o descobre escondido no armário. Apesar de estranhar, aceita a desculpa da mulher que ele ficava livre da sujeira. E complementa: – Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais... (p. 156) Ela, no entanto, interrompe o discurso do marido e começa a falar, a discorrer sobre o que fizera, sobre o que acontecera na sua ausência. Uma espécie de Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre (1763-1852). Quanto mais ela falava da aventura de ter ficado em sua própria casa, em torno da sua própria vida, ele se diminuía, percebia que sua viagem, o que descobrira aqui e ali, as conquistas que tivera pouco importavam frente à narrativa da esposa, diante da construção e reconstrução que ela empreendera de si mesma, do espaço que era comum aos dois. 68 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon gado, à falência da agricultura da época. Além disso, Eleusis representa as quatro estações do ano e os quatro pontos cardeais. Desse modo, compreender a simbologia da personagem é compreender o espaço circundante, é ter uma visão ampla, global do espaço. Nesse conto, encontramos outra referência à Penélope, agora mais explícita. Ao contrário desta que se submetia às vontades masculinas, Eleusis não abdica de sua liberdade, de sua própria vontade. Pertencia à terra, mas não queria se prender a um único espaço, a um único lugar. Era preciso espalhar-se, conquistar. Ser. Essa é a mensagem do conto. Em “Vida de estimação”, ainda se está no âmbito da natureza, da religiosidade, mas no caso trata-se de uma simbolização da figura de Cristo. Um casal adota um bezerro. Passa a tratá-lo como a um igual, dentro de casa, tratado a “leite, pão e vegetais. Em nenhum momento, sua forma se modificou, para agradar ao homem ou à mulher. Atendia ao crescimento com suas manchas brancas na pele”. (p. 123) Deixam a cidade em direção ao campo. O casal, porém, não tem certeza sobre o que seria aquele animal, quão igual ou quão diferente seria deles. Deixam-no na cidade e três dias depois vão buscá-lo, para deixá-lo em um estábulo. Sentem-se culpados por isso. Há uma clara relação com o início do cristianismo. Cristo nasce em um estábulo, seus pais, por assim dizer, tiveram de abandonar a cidade e se esconder para gerar o Cristo. Seu nascimento se deu como meio de apagar uma culpa original da humanidade. Ao mesmo tempo, o bezerro (a rigor, Cristo é mais associado a uma ovelha ou o pastor das ovelhas) pode ser considerado igualmente uma referência ao bezerro de ouro que os hebreus passaram a adorar no lugar de Deus, por ocasião da saída do Egito em busca da Terra Prometida, conforme se lê no livro do Êxodo, capítulo 32. Há, no conto, desde o início uma personificação do bezerro, que, por sua vez, tenta se reconstruir como animal: E ainda que não falasse [...] seu rosto trazia ao mundo expressões pungentes. [...] Ainda tentou pastar. Pastar nutrindo-se de erva, para libertar-se da danação do alimento dos homens. (p. 125) Abandonou sua terra, tentou encontrar os seus, porém sempre com o “perigo de ser amarrado, tangido e crucificado” (p. 126). Com tudo isso, o casal sente-se preterido pelo bezerro, a quem haviam criado como ser humano. Desse modo, o que parecia uma união foi se rompendo. O bezerro parecia pretender corrigir as falhas da criação, tanto do lado humano, quanto animal. O final do conto é outra clara referência à passagem de Cristo. Cansados, o casal resolve vender o bezerro em uma feira. Assim como Cristo fora delatado por dinheiro, também acusara os vendedores de fazerem do Templo um lugar de comércio, não de oração. O conto, pois, expressa as oposições discursivas entre a construção cristã da civilização e outra mais libertária, mais humana, mais sujeita a falhas. E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. (p. 157) Enfim percebeu que ela adquirira voz, adquirira vontades que ele nunca imaginara que ela poderia ter. Qualquer aventura, conquista dele se apequenavam diante da força que adquira essa “Penélope” moderna. “Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida”. (p. 158) Desse modo, quando no momento da partida do homem ela ficara em silêncio e apenas o observara, sem qualquer admoestação, permitindo a ele ser o detentor do discurso, no final da narrativa ela assume esse papel. E ele tem de se calar ante aquela conquista. Outro conto que retoma aspectos mitológicos, bem como arquetípicos é “Os mistérios de Eleusis”, referência tanto à cidade localizada no nordeste de Atenas, bem como aos mistérios do culto a Deméter, deusa chamada de A Grande Mãe por ter buscado salvar a filha Perséfone do reino da morte, para onde foi levada por Hades, deus do mundo dos mortos. O termo Eleusis deu origem aos chamados “Campos Elísios”, que seria uma espécie de paraíso na mitologia grega. O culto se destinava inicialmente apenas às mulheres. Esses ritos Eleusínios foram praticados por quase dois milênios sem que se revelasse, aos não iniciados, nada a respeito dos rituais ou das iniciações. O que chegou até nós, veio com base nas referências literárias e também na visão cristã sobre as chamadas práticas pagãs. Piñon traz para sua narrativa o que seriam esses mistérios, esse mito. A narradora tenta decifrar as atitudes de Eleusis, transformada em personagem mítica, que, por sua vez, se metamorfoseia em animais ou plantas, como meio de estabelecer um diálogo com o cosmos, com o oculto e a linguagem simbólica. Eleusis tinha o hábito de morrer. Assumia diariamente novas formas. Um espetáculo a que eu ia me acostumando. Sem jamais saber se ela era o gato de plumas leves, vapor de ácido, que me contemplava. Ou havia se transformado em água de um rio em tormenta, para deste modo viver um estado difícil. (p. 129) A deusa Demeter é ligada à terra e representa a natureza, a agricultura. Segundo a lenda, seu papel é percorrer os campos e espalhar seus ensinamentos oralmente. A narradora do conto tenta compreender esses mistérios, percorrendo o labirinto para decifrar a simbologia de Eleusis, igualmente ligada aos elementos da natureza para também expressar, sob olhar feminino, a travessia humana. Exatamente por essas atribuições, quando Demeter abandona a terra para ir em busca da filha, há uma esterilidade da terra, o que leva à morte do 69 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon quebrar paradigmas, de modo a buscar novas formas de olhar. O objetivo último é sempre a construção da identidade, daquilo que nos define em um dado espaço, mas também nos define como seres humanos. “I love my husband”, por exemplo, é narrado da perspectiva feminina, com o objetivo de traçar um perfil da família tradicional brasileira, em que cabe à mulher o trabalho doméstico e ao homem o sustento. Discutese, pois, essa divisão social, sobretudo pela opressão a que é submetida a mulher, que não tem domínio sobre o próprio corpo, cuja função é servir o marido de todos os modos. É uma revolução silenciosa, que se faz primeiro no espírito, em seu processo de percepção da realidade, para depois começar a realizar-se nas palavras, por fim constituir-se como novo mundo. Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis. (p. 163) Publicado num momento em que a ditadura militar perdia força - era já o governo Figueiredo (1979-1985), o último presidente militar -, o medo e o silêncio ainda eram ardis para coibir manifestações mais acentuadas. É o que subsiste em “I love my husband”, no qual a mulher tem consciência de sua subserviência, reclama por mais liberdade, no sentido de poder fazer sua voz ser ouvida, ao mesmo tempo em que percebe ser melhor manter a vida dentro do padrão que aprendeu. Somente assim poderia ser uma mulher. Chega mesmo a penitenciar-se: Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peçolhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoarme à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. (p. 169) A questão expressa no conto não se refere unicamente à ditadura militar (ainda que seja uma chave de leitura), mas sim a que trata da subserviência feminina, que começava a ser questionada à época. Como referência, podemos citar a série da Rede Globo, Malu Mulher, em que, no início dos anos 80, Regina Duarte, no papel de Malu, encarnava a imagem da mulher independente. Separada, tem de trabalhar para sustentar a filha, namorava e abordava questões bastante polêmicas para a época como aborto, pílula anticoncepcional e virgindade. O seriado representou a conquista social empreendida pela mulher. O conto contextualiza a mesma situação. Duas vozes se apresentam no conto. Paradoxalmente, se complementam e se distanciam. Complementam-se pela visão do marido, que acredita ser dotado da tarefa de fazer o país progredir e necessitar do suporte doméstico fornecido pela esposa; distanciam-se pela visão da mulher que quer completar-se como ser para além de simples suporte Um dos contos mais fortes do livro é “Cortejo do divino”. Nesse conto, um casal é julgado por se amarem muito. Desde o início, cada um está preso em sua cela, sendo constantemente interrogados para se entender o que significaria o amor que teria um pelo outro. A mulher está em um convento e o homem em outro local. A denúncia havia surgido quando se descobriu aquela veemência. O fato do homem e da mulher terem adotado hábitos amorosos que contrariavam tudo que se inventara até então, ao menos esta era a suspeita geral. (p. 137) O problema é que esse amor vai além do entendimento humano, além de ser visto como um sortilégio e mesmo uma heresia, pois tal amor era considerado superior a que o homem deve ter por Deus. De fato, a mulher declara amar seu homem de modo até a se esquecer de Deus. Trata-se, pois, da “volúpia de vencer a divindade pelo poder da carne”. Uma afronta ao que é conhecido, ao que é aceito; uma afronta ao amor divinal, não carnal, portanto. E contra isso, a população local se insurge. Para se ter uma comprovação desse amor, o juiz decide soltá-los para que pudessem ser observados e vigiados. No entanto, ao contrário do que era esperado, o casal mantém-se distante. Durante o tempo de prisão, o homem ficara cego. Talvez por isso ou por um acordo tácito, “a partir daquele dia, jamais se tocaram uma única vez, ou se disseram uma palavra. Nem ela o ajudou, pelo fato de ele agora exigir trato especial”. (p. 139) Pretendia-se pegá-los em relação íntima intensa para que se tivesse uma justificativa para poder matá-los. O casal até permanecia sempre bem próximo, mas sem uma relação amorosa efetiva, sem mais manifestar o amor para decepção de todos. Ninguém mais suportava aquela altiva resistência. Os dois rostos destilando um prazer diário, mas de fúria tão esquiva que se abrigava, e jamais se viu sua luxúria. (p. 141) No último conto do segundo livro, “Oriente próximo”, uma mulher, narradora do conto, trata sobre a aproximação cultural que teve com quatro turcos e como, entre diferenças e semelhanças, descobriram-se ser todos humanos. Trata-se de uma temática recorrente na obra de Nélida Piñon, que vê no Oriente a confluência das três maiores religiões monoteístas da humanidade, seus pontos de contato e suas divergências. Entender o outro é uma forma de se conhecer também. [...] eu prevenira aos amigos sobre o estranho comportamento que adotariam sem aviso. Vinham de terras longínquas, de hábitos peculiares, que devíamos respeitar, antes de julgá-los engraçados. (p. 144) Do terceiro livro da coletânea, O calor das coisas, publicado em 1980, são destacados cinco contos. Nesse livro, Piñon repete alguns temas, mas acrescenta outros, sempre sob olhar contestador, de modo a 70 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon O mesmo discurso está presente em “O ilustre Menezes”, no qual a visão masculina é a preponderante, mas para cuja compreensão há que se ouvir a voz feminina. Escrito originalmente para uma coletânea intitulada Missa do galo: variações sobre o mesmo tema, o conto obedece à ideia, proposta pelo escritor Osman Lins, em 1977. Autores deveriam escrever narrativas tendo como mote o conto “Missa do galo”, escrito por Machado de Assis e publicado no livro Páginas recolhidas, de 1899. No conto original, o narrador é Nogueira, um jovem de dezessete anos de idade que estava no Rio de Janeiro para estudar. Hospeda-se na casa do escrivão Menezes, viúvo de uma de suas primas e casado em segundas núpcias com Conceição, uma mulher de trinta anos de idade que parece se resignar com uma relação extraconjugal do marido. Vivem na casa, ainda, D. Inácia, mãe de Conceição, e duas escravas. O título se explica porque na noite do dia 24 de dezembro, Nogueira fica na sala lendo à espera de um amigo com quem iria à Missa do Galo. Conceição resolve fazer-lhe companhia e mantém com o rapaz uma conversação ambígua, em que a sensualidade está presente, mas não se manifesta de modo explícito. Pela tradição, hoje não mais seguida por diversos motivos, a Missa do Galo era rezada à meia noite. O conto de Nélida Piñon é narrado da perspectiva do escrivão. A autora não subverte o enredo do texto original, ou seja, Menezes é casado com Conceição, vive com a sogra também, e, igualmente, mantém um caso extraconjugal, a despeito da vigilância de D. Inácia e do silêncio incriminador da esposa. Conceição poupou-me de maiores explicações. Havia aprendido que entre casais baniam-se exatamente as palavras que poderiam exaurir o delicado tema. Desde a primeira noite decidiu pela obediência. Se a surpreendi alguma vez discreto pranto, garantiu-me devê-lo às aflições tão próprias da natureza feminina. (p. 174) O leitor tem, pois, acesso à perspectiva e à explicação do Menezes para suas atitudes pouco dignas em relação à esposa. Homem sério perante a sociedade, não se excedia nos gastos e era respeitado por todos, por isso era ilustre. Mesmo D. Inácia, que vez ou outra, parecia querer falar-lhe algo, mantinhase em posição de defesa, até para garantir o próprio sustento e o da filha. Não darei a Conceição outros motivos de queixa além do que já tem. Os direitos que lhe assegurei, devem tranquilizá-la. Pode D. Inácia testemunha a meu favor. (p. 175) Para ele, a necessidade do sustento torna-se uma garantia de que nada fariam para ir contra sua maneira de viver. Sabendo que, fora do casamento, à mulher pouco restava como meio de sobrevivência, manipulava esposa, sogra e também amante, a quem dava sustento. Sua amante era uma mulher abandonada pelo marido. Deu-lhe o singelo nome de Pastora, o que remete o leitor ao arcadismo, período marcado pela tematização do marido. Tais visões estão representadas pelo tempo: o passado, que indica, na mente da mulher, sua individualidade, o presente, em que existe como entidade que complementa o homem, e o futuro que devolveria a identidade para a mulher. O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? (p. 166) Depois dessa conversa, a mulher volta a servir seu marido, dando o suporte necessário: comida, roupa, conforto, carinho, sexo. Cabia a ela, manter a tradição, manter a estrutura familiar intacta. Era preciso, pois, anular-se para ser. Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. [...] Ele é único a trazerme a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. (p. 168) O título do conto, em inglês, é retomado em pelo menos quatro momentos do conto. “Eu amo meu marido”, “Sou a sombra do homem que todos dizem eu amar”, “Não é verdade que te amo, marido?”, “Sou grata pelo esforço que faz em amar-me”. A primeira frase é categórica. É a tradução do título. Mas é a partir dela que passa a questionar se seria amor ou apenas obrigação do casamento. A segunda frase indica a visão de fora. Certamente aos olhos alheios, o casamento dela é perfeito. E, se é perfeito, o amor certamente existe. A terceira é questionadora, pois procura entender a perspectiva do marido, para quem ser amado é ser respeitado em sua autoridade e ter os serviços domésticos feitos conforme deseja. Ora, se tudo é feito como imagina, então deve ser amado... Por fim, a perspectiva é invertida. A mulher, ironicamente, percebe que, embora não seja amada de verdade (chega mesmo a imaginar que o amor poderia acontecer para ela com outro homem), ao fazer tudo o que marido quer, pensa que o sentimento do marido poderia, ilusoriamente, ser comparado ao verdadeiro amor. O conto é finalizado com a mesma frase com que é iniciado. É, porém, introduzida por uma interjeição afirmativa que parece indicar uma constante e necessária obrigação de lembrar-se do seu amor: “Ah, sim, eu amo meu marido”. A questão toda não deve ser vista apenas como amar e ser amada, e sim como perda e reconstrução da identidade, que caracteriza os demais contos presentes nesse terceiro livro. 71 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon total domínio sobre sua esposa, não a conhece por inteiro. Enquanto Menezes mantém uma máscara que não esconde quem é, Conceição, dentro do papel que lhe cabe de mulher recatada, esconde-se para poder construir sua real identidade. Em “Finisterre”, uma jovem retorna as suas origens, ao reencontrar o padrinho em uma ilha na Galícia. Nélida Piñon, com isso, recupera suas raízes ibéricas, particularmente a Galícia, como se sabe origem da língua e da cultura portuguesa, que viria a construir o Brasil. Há, pois, uma reflexão em torno da perda ou da construção da identidade. Finisterre é uma ilha que fica na Galícia, região noroeste da Espanha, onde se localiza também Santiago de Compostela, local conhecido pelas peregrinações que muitos empreendem até lá a pé. Finisterre, até a Idade Média, era conhecida como o fim da Terra (em latim, finis significa final), isto porque se acreditava que adiante haveria a beira do mundo. Quem navegasse para além daquele local cairia no espaço, cairia no vazio. A narradora vai até Finisterre reencontrar seu padrinho, já idoso, e é recebida por pescadores e recepcionada com um banquete, uma orgia gastronômica como meio de tomar parte cultural daquele local que também lhe pertence, mas que, por viver no Brasil, do outro lado do mundo, para além do Atlântico, não tinha mais acesso. Trata-se, pois, de uma cidade de pescadores acostumada a receber turistas em viagem a Santiago de Compostela. Simbolicamente, em Finisterre ia-se ao confronto do Fim, isto é, com a Morte, representada pelo pôrdo-sol. Por outro lado, também significava um renascimento, então representado pelo nascer do sol. Dessa feita, o local representava o fim e o início de jornadas. É o que se observa no conto. A narradora é levada a ter nova vida naquele ambiente. Representada pelo banquete, associado a um ato sexual, renovador e criador: Com o grafo, ele mergulhou diversas vezes nas entranhas do crustáceo, e trouxe-me como um caçador de esponjas o coral ambicionado. Mastiguei a delicada porção de olhos fechados, fazendo amor com um coral nascido de recantos primevos, de uma carapaça mais antiga e sólida que a minha pele. (p. 191) Esse ato devolve-lhe suas origens, e fica dividida entre dois mundos: o antigo, o galego, e o novo, o das Américas, o do Brasil. É dessa simbiose antropofágica que se irá construir uma nova identidade. (“Salve a terra, padrinho. A que terra queres homenagear, afilhada?”) O próprio nascimento da Galícia representa tal simbiose de povos diferentes, que formaram ao longo dos séculos o povo galego: Abraçou-me e passou a falar dos celtas, dos ibéricos, dos visigodos, que se uniram de tal modo que seria hoje difícil isolá-los, pois um só rosto galleto muito tem de cada um, e eles próprios neste rosto jamais poderiam reconhecer-se ou indicar que parte dele originou-se da força dos seus sangues. (p. 192) de idílios amorosos entre pastores, como no caso de Marília de Dirceu, do poeta Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810). Uma das desculpas que Menezes costumava dar em casa era que saía à noite para ir ao teatro. Certa vez, diz ter visto uma peça da autoria de Machado de Assis, O protocolo, sobre a qual tece um comentário bastante corrente sobre o teatro do autor: “uma comédia muito mais para ser lida e não representada. Menezes afirma gostar de Conceição, com quem vive bem, com quem pode manter a seriedade que sua função na sociedade exige; ela lhe é devotada, cuida de sua roupa e da casa. O problema talvez seja o recato em que se mantém, e também por nunca ter lhe dito que o amava. O fato serve-lhe como justificativa para que mantenha a amante, com a qual busca realizar fantasias, as quais não faria com a esposa, pelo recato que deveria manter com ela. Pastora parece ser o oposto de Conceição, o que proporciona ao escrivão novas “experiências”. Ela é mais bonita e tem atitudes mais intempestivas, “implacável a qualquer atraso”, ao contrário das atitudes submissas da esposa. A narrativa caminha assim até a chegada do Nogueira, primo de sua primeira esposa, Amélia, que lhe pede o favor de dar pousada por uns tempos, uma vez que era de Mangaratiba e estava no Rio de Janeiro para estudar. O conto termina exatamente onde se inicia o conto de Machado de Assis, com Menezes, após cear com a família, despedindo-se para ir ao teatro, e Nogueira dizendo que ficaria na sala lendo à espera do amigo. Já com o volume nas mãos, tratava Nogueira de acomodar-se à mesa da sala de jantar, trazendo a si o candeeiro de querosene. – Se não há mal em perguntar-lhe, primo, que é que vai ler até a sua Missa do Galo. O primo levanta-se, acompanha-me à porta. Dáme o beneplácito, sem esquecer de acrescentar: – Leio Os Mosqueteiros. Ah, belo rapaz esse Nogueira! (p. 187) No conto original de Machado, Conceição também representa o papel da mulher submissa, mas ao ficar sozinha, à noite, ao lado de um rapaz, indica um desejo escondido, que Menezes não consegue perceber, ao vê-la apenas como “santa”. Desse modo, o leitor que confronta os dois textos percebe a ironia da situação. E por este motivo, antes de sair de casa, diz que Nogueira é um belo rapaz, isto é, alguém que não irá fazer nada para atentar contra a ordem estabelecida em sua casa. Na ótica do escrivão, a leitura de um livro de aventuras era indício de que era um jovem sonhador, pouco afeito à prática. Menezes aceita a explicação e gosta dela, porque “há leituras que nos suprem com sonhos que a realidade mesmo não comporta. E se lá fosse Conceição ao seu encalço, teria que abater-lhe as asas”. Nélida não quis, com isso, contrariar o que fora revelado no conto de Machado; antes, a passagem serve para ilustrar como Menezes, que imagina ter 72 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon de tudo, pertencente a outra classe social. Por estranho que pareça, esse homem diferente é que lhe devolve alegria, que contribui para a construção de si mesma, de sua identidade por inteiro. Ao seu lado, não sinto medo. A própria vida fortaleceu-me desde que o vi pela primeira vez nesta manhã. (p. 214) Começaram a conversar e ele lhe pediu para que fossem sócios em seu negócio de vender sorvetes na praia. O estranho do pedido é o que garante a percepção de um poderia completar o outro, de se formar um todo. A narradora revela não ter vida própria, assistia a novelas como meio de projetar na vida alheia aquilo que não era. Assim, ao ver-se diante de uma situação estranha, com um homem com vida alheia a sua, distante física, social e culturalmente, isso poderia completá-la, a despeito de ele ser casado. (“Viver será transferir para o outro o que é nosso por direito.”) Deus sabe que não quero falsas aflições, mas um homem capaz de interpretar meus sentimentos, serei acaso a última flor do Lácio? (p. 215) A “última flor do Lácio” é uma referência a um poema de Olavo Bilac, intitulado “Língua portuguesa”, em que fala ser o português o último idioma surgido do latim, falado na região do Lácio, que deu origem ao Império Romano. Não parece haver uma relação imediata. A rigor, o que a narradora quis expressar é que ela poderia ser a última mulher a encontrar o homem perfeito e ideal para ela. Poderia ter dito também que era seria “a última dos moicanos”, por alusão ao famoso romance de James Fenimore. Um momento significativo é que ele vai até a casa dela e se senta na poltrona que pertencera ao pai e ela na poltrona em que ficava a mãe. Por analogia, é como se cada qual estivesse ocupando os papéis, sonhados, de marido e mulher. A questão a que sempre retorna é o da identidade (“Serei eu mesma o tempo todo?”). Como construir algo para o qual é preciso primeiro destruir? Destruir a antiga identidade dele, seu casamento, abandonar sua vida no outro lado da cidade? É comum na Europa as cidades divididas em duas, uma margem pobre, uma outra próspera. (p. 216) Essa ideia de construção/destruição está metaforizada no fato de o homem ser sorveteiro, de fabricar para vender um produto que se perdia com facilidade, que, diante do calor, desaparecia. Eu respeitava aquele arquiteto a erguer um mundo frágil pela força da sua vontade. A lidar com formas que o calor desfazia. (p. 218) Por este motivo, o sorveteiro tem sempre de retornar à sua casa, à sua fábrica, entre idas e vindas e, com isto, o amor entre ele e a narradora não se totaliza nunca. Após ouvir a história de Colombo, Rubem volta a narrar sua história com Alice, sua ex-mulher. Aos poucos, percebeu que Alice representava, mais do que amor, relacionamento de um casal, apenas a aventura, os passeios. Não se via completo efetivamente por ela. Com efeito, galeto deriva do topônimo Gallaecia, cujo termo procede dos celtas, que chegaram ao local por volta de 2300 a.C. Mais tarde vieram os ibéricos, dominados pelos romanos, destruídos, por sua vez, pelos visigodos, conhecidos também como bárbaros. A região ainda foi conquista no século VIII d.C. pelos muçulmanos. Outro ponto que ajuda a compreender a simbologia do conto diz respeito à origem do termo Galiza cuja raiz indo-europeia kala significava refúgio, abrigo. Em seguida, passou a ser grafada gall, e significar mãe, terra. O conceito expresso no conto de um encontrar-se com as origens (a mãe terra) encontra respaldo também quando a narradora conhece uma senhora moribunda, cujo nome é Amparo. Esse contato corrobora o nascimento de uma nova mulher, bem como o rejuvenescer da moribunda: Ela melhorou com meu ato de heroísmo. (...) Comecei a usufruir-lhe da velha como se tivesse ela vinte anos. (...) Eu me entregava àquela orgia disposta a mudar a minha vida. Mas, que vida, afinal. A vida que herdei, a vida que fabriquei, a vida que me impuseram, a vida que não terei, ou a vida proibida, que não está na casca da pele, mas na pele íntima do sangue? (p. 192) Trata-se, pois, de um conto que, como os demais, busca compreender o próprio ser construído a partir da aproximação de fontes culturais diversas. “Tarzan e Beijinho”, narrado em primeira pessoa por uma narradora-personagem, fala sobre os amigos Tarzan e Beijinho. Caracterizado por realizar reflexões sobre temas recorrentes: amor, paixão, religião, solidão, amizade, entre outros. Nesse conto, os temas da amizade e da solidão revelam complexidade das relações interpessoais. Conheci Tarzan e Beijinho em Malibu, antes de se transferirem para o Leblon, uma praia que havia tragado o coração de muitos almirantes batavos e sereias litorâneas. (p. 203) Há um sentimento de amizade íntima entre eles, porém a narradora decide afastar-se um pouco para que vivam o relacionamento a sós. Passado certo tempo, a narradora recebe um bilhete dos amigos, vai ao encontro deles, mas é recebida friamente. Em conclusão, percebe que a amizade não era assim tão forte. O afastamento parece ter quebrado aquela harmonia, o que acabou se tornando difícil de consertar. Tentei sorrir e eles me corrigiram. Quietos, de mãos dadas, agora parecíamos turistas descobrindo a cidade, a nós mesmo. (p. 211) O último conto, “O sorvete é um palácio”, é escrito sob a forma de depoimento uma mulher, rica, narra as vicissitudes em torno de um caso que mantém com um homem pobre, sorveteiro, casado e pai de três filhos. A mulher narradora também não é nova (“Esquecida do espelho a proclamar que a carne não é mais um sortilégio para as mulheres de minha idade”.), e encontra o amor onde menos esperava, na figura de um homem simples, sem beleza física, casado e, além 73 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon me, voltei a casa. A chave quase não coube na fechadura pela ferrugem. O regresso parecia assinalado pela marca do abandono. Debaixo da porta, os bilhetes de Tarzan e Beijinho: por favor, por que a violência, quando há outros modos mais delicados de matar; não podemos mais viver sem você; já não somos Tarzan e Beijinho, somos você quando está perto; o que quer que sejamos, para lhe agradar?” Foi um amor sem ciúmes, não fazia sofrer. Os outros podiam desejá-la, aplaudi-la ao seu lado. Não queria um amor solitário, ou que lhe faltassem amigos com quem dividi-la. (p. 221) Esse conto lembra As cartas portuguesas, escritas por Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723), de um convento localizado Beja, dirigidas a um oficial francês, chamado DeChamilly, que lhe prometera amor eterno e que a iria tirar do convento para se casarem. No entanto, a promessa não se cumpre. Foram cinco curtas cartas de amor, em que se percebe um amor incondicional e exacerbado. O tom das cartas vai do sentimento de esperança à desilusão, por não receber notícias e correspondência equivalente. A título de exemplo, eis um trecho da terceira carta: Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?... Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado! Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas; que alimentarias a minha Paixão com as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me daria alguma espécie de repouso; e que ficaria assim em um estado suportável, sem estrema dor. Em conclusão, podemos dizer que Nélida Piñon é uma autora pós-moderna, no sentido de tematizar questões hodiernas, como o feminismo, o respeito às diferenças, a construção de novas identidades, a reconstrução de identidades perdidas. “Durante horas evitamos qualquer olhar. Fora uma ausência tão difícil. (...) Ainda não sabíamos em que nos convertêramos. (...) Saímos passeando pela praia, (...). Tentei sorrir e eles me corrigiram. Quietos, de mãos dadas, agora parecíamos turistas descobrindo a cidade, a nós mesmos.” PIÑON, Nélida. O calor das coisas. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 93-101. (01) O conto é narrado em primeira pessoa por uma narradora-personagem, empenhada em contar a história que vivenciou ao lado dos amigos, Tarzan e Beijinho. O conteúdo do texto remete a valores, como amizade, estilo de vida, autoconhecimento. (02) O conto, assim como toda a coletânea à qual ele pertence, é bem representativo da prosa de ficção de Nélida Piñon, caracterizada por empreender reflexões acerca dos grandes temas da humanidade, como amor, paixão, religião, solidão, amizade, entre outros. Nesse conto, os temas da amizade e da solidão concorrem para a afirmação da complexidade das relações interpessoais. EXERCÍCIOS (04) O conto destoa do tom geral da coletânea a que pertence, uma vez que, diferentemente das demais narrativas, não se enquadra no realismo fantástico, tendência literária contemporânea marcada pela distância entre a lógica da realidade objetiva e a expressão artística, por meio de uma linguagem simbólica. 1. (UEM) Leia os fragmentos transcritos abaixo, retirados do conto “Tarzan e Beijinho”, integrante da coletânea O calor das coisas, de Nélida Piñon, e assinale o que for correto, considerando também o conto como um todo. “Conheci Tarzan e Beijinho em Malibu, antes de se transferirem para o Leblon (...).” “Certa vez, eles me confessaram, no fundo do mar encontram-se nossos corações, é preciso ir bem fundo para ouvir-lhes as pulsações. Teria sido um convite para eu fugir deles, me censurariam o modo de olhá-los? (...)” “Vestida de mim mesma, sem precisar de espelho a corrigir-me, eu destoava deles. Por onde Tarzan e Beijinho seguiam, eu procurava as marcas visíveis de sua passagem.” “Pela primeira vez pensei, por que grudo minha vida a Tarzan e Beijinho e nos estamos tornando um a sombra do outro? Sempre me faltara a coragem de propor-lhes tal questão, insinuar uma transcendência que condenavam na vida de praia que ambos haviam adotado. Ou dizer-lhes: por algum tempo seguirei caminho contrário ao de vocês. Precisava descobrir o mundo sem o socorro deles. (...)” “Já sem roupa com que vestir- (08) O conto é marcado por uma linguagem hermética, muitas vezes cifrada, contrariando a banalização da linguagem literária no contexto da pós-modernidade. As tendências literárias contemporâneas primam pela simplicidade, pelo coloquialismo, evitando, assim, o jogo metafórico, a alegoria, a ousadia estrutural. Isso torna quase imperceptíveis os limites entre a linguagem referencial e a artística. (16) O desfecho do conto remete à ideia de desconforto entre o casal, Tarzan e Beijinho, e a narradora. A amizade que os unia parece comprometida após o período de separação provocado por esta última. Trata-se de uma espécie de quebra da harmonia, difícil de remediar, dadas as sutilezas da alma humana confrontadas com certos valores e padrões de comportamento. 74 Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon 2. Assinale a alternativa incorreta quanto à temática dos contos em O calor das coisas, de Nélida Piñon. (A)Em “I love my husband” uma mulher, embora declare amor pelo marido, demonstra querer ser mais livre. (B)“As quatro penas brancas” trata de um homem torturado durante a ditadura militar. (C)Em “A sereia Ulisses” a narradora se revela livre para buscar o próprio caminho. (D)Em “O ilustre Menezes” temos a ocorrência de intertextualidade com o conto “A missa do galo”, de Machado de Assis. (E)“Disse um campônio à sua amada” é escrito à maneira de uma carta. 3. (UEM) Leia os fragmentos a seguir. “E não é feia, a minha Conceição. Ocorre apenas que os mesmos encantos que em outra mulher reluzem firmemente, nela, por mistério que não explicou, simplesmente empalidecem. Com esta verdade, já estou bem conformado. Se ao menos Conceição soubesse rir!” “Tanto assim, que mal eu a tocava, Conceição retraía-se toda, a tremer de frio, depressa recolhendo para dentro do corpo qualquer gesto que pudesse eu interpretar como generoso.” “Como prêmio, para certos infortúnios, tenho de Conceição a sua fidelidade e completa devoção ao lar. Assim, inimigo mesmo é o tempo a esgotar-se sem cerimônia.” “Nogueira tem o gosto da leitura. (...) Certa manhã, sugeri-lhe a deixar o livro para trás, seguindo-me até onde encontravam-se certos prazeres viris. Pareceu não entender-me.” (02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida com o conto “Missa do galo”, conforme as informações anteriormente fornecidas, o desconhecimento de Menezes, em “O ilustre Menezes”, sobre certos detalhes relacionados ao comportamento de sua mulher confere ao texto um tom de ironia e de comicidade. A ideologia patriarcal, condescendente com o adultério masculino, é ridicularizada. (04) No que se refere à construção da personagem Conceição, o conto de Nélida Piñon prima pela ambiguidade e pelo poder de sugestão. Efetivamente, nada acontece em sua trajetória capaz de desabonar sua reputação de dona de casa exemplar e esposa fiel, mas o marido adúltero insiste em vislumbrar também nela o fantasma da traição. (08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em primeira pessoa pelo próprio Menezes. Esse afirma que Conceição seria, de fato, capaz de cometer adultério se lhe fosse apresentada uma situação favorável. Afirma também que o adolescente Nogueira pretendia ficar acordado até tarde com o único propósito de se deparar, a sós, com Conceição. (16) Os textos de Nélida Piñon guardam estreitas relações com os textos de Machado de Assis, no que se refere ao estilo denso e intimista, não raro irônico, bem como no que diz respeito à habilidade de promover o desnudamento dos melindres da alma humana, suas grandezas e, sobretudo, suas misérias. 4. (Nélida Piñon, “O ilustre Menezes”. In: O calor das coisas) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, consiste em uma reescrita do conto “Missa do galo”, de Machado de Assis. Trata-se de uma reinvenção da história machadiana, construída a partir da transferência do ponto de vista narrativo. A história original é narrada pelo adolescente Nogueira, agregado da casa, e gira em torno da “conversação” que ele manteve com Conceição na noite de Natal, enquanto a casa dormia e ele esperava a hora da missa do galo. Nessa oportunidade, Conceição se transfigura, aos olhos de Nogueira, em uma mulher “lindíssima” e muito sensual que em nada lembra a mulher simplesmente “simpática” que todos conhecem no dia-a-dia familiar. Tendo em vista essas considerações, bem como os fragmentos acima, o conto ao qual eles pertencem e a ficção de Nélida Piñon, assinale o que for correto. (01) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, pode ser lido sem se considerar o texto “Missa do galo”, de Machado de Assis. No entanto, conhecer previamente a narrativa machadiana implica o alargamento das possibilidades interpretativas do conto da escritora. 75 Uma das constantes na obra de Nélida Piñon é a busca pela identidade. Assinale a alternativa em que o conto não apresenta como conteúdo central essa temática: (A)Finisterre (B)O calor das coisas (C)O jardim das Oliveiras (D)O sorvete é um Palácio (E)O ilustre Menezes Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon gABARITO 1. (01) O conto é narrado em primeira pessoa por uma narradora-personagem, empenhada em contar a história que vivenciou ao lado dos amigos, Tarzan e Beijinho. O conteúdo do texto remete a valores, como amizade, estilo de vida, autoconhecimento. (02) O conto, assim como toda a coletânea à qual ele pertence, é bem representativo da prosa de ficção de Nélida Piñon, caracterizada por empreender reflexões acerca dos grandes temas da humanidade, como amor, paixão, religião, solidão, amizade, entre outros. Nesse conto, os temas da amizade e da solidão concorrem para a afirmação da complexidade das relações interpessoais. (16) O desfecho do conto remete à ideia de desconforto entre o casal, Tarzan e Beijinho, e a narradora. A amizade que os unia parece comprometida após o período de separação provocado por esta última. Trata-se de uma espécie de quebra da harmonia, difícil de remediar, dadas as sutilezas da alma humana confrontadas com certos valores e padrões de comportamento. 2.B 3. (01) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, pode ser lido sem se considerar o texto “Missa do galo”, de Machado de Assis. No entanto, conhecer previamente a narrativa machadiana implica o alargamento das possibilidades interpretativas do conto da escritora. (02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida com o conto “Missa do galo”, conforme as informações anteriormente fornecidas, o desconhecimento de Menezes, em “O ilustre Menezes”, sobre certos detalhes relacionados ao comportamento de sua mulher confere ao texto um tom de ironia e de comicidade. A ideologia patriarcal, condescendente com o adultério masculino, é ridicularizada. (08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em primeira pessoa pelo próprio Menezes. Esse afirma que Conceição seria, de fato, capaz de cometer adultério se lhe fosse apresentada uma situação favorável. Afirma também que o adolescente Nogueira pretendia ficar acordado até tarde com o único propósito de se deparar, a sós, com Conceição. 4.E 76 Topless de Marta Medeiros modo sem ter de escolher entre ser solteiro ou casado, entre ser da direita ou da esquerda, entre o certo e o errado moralmente falando. Observe-se que, com efeito, estamos na segunda década do terceiro milênio, que tem se caracterizado propriamente por estilos de vida alternativos e igualmente aceitos socialmente falando, pela busca da afirmação das minorias, pela tentativa compreensão do outro, pela valorização da multiplicidade (ainda que ainda permaneça em pauta o discurso do ódio, da radicalização político-ideológico e também religiosa em diversos setores da sociedade). Outro assunto recorrente nas crônicas de Martha Medeiros é a moda. Ao menos, em cinco crônicas, a autora trata do assunto. Por exemplo, em “Verão: decadência do Império”, reflete sobre a deselegância no modo de se vestir das pessoas no verão, justificada pela necessidade de se usar pouca roupa no dia a dia; com o agravante de, muitas vezes, homens, em determinadas funções, trabalharem sem camisa. Mesmo as mulheres ficam em situação complicada por conta da maquiagem, que derrete com o suor. Outro exemplo da moda citado pela autora está no uso do vocabulário. Em “Grande África”, Medeiros lembra que alguns termos deixam de ser utilizados com o tempo, trata-se do envelhecimento das expressões, das gírias e mesmo de certos objetos que deixam de ser utilizados com o tempo. O vocabulário da hora (lembra “da hora”?) não resiste a mais de uma geração. Às vezes, nem a um único verão. Fazer o quê? Continuar tagarelando do jeito que se sabe, com as palavras que encontrar. Só não vale fechar a matraca. (p. 129) Por referência a uma música de Cazuza, “Mentiras sinceras” é uma crônica sobre o ato de falar a verdade ou a necessidade de ocultá-la. Nem sempre falar a verdade abertamente é algo positivo para o convívio social. Isso porque revelar a verdade diretamente pode ser deselegante; ao contrário, haveria formas brandas de ser verdadeiro ou ao menos não ser tão direto. Em outros termos, há verdades que não precisam ser expressas, como dizer que uma pessoa está mal vestida ou que ela é um tanto ignorante. Isso pode gerar conflitos desnecessários. A violência das palavras também ocorre nas relações interpessoais. No caso de “Vestidos para matar”, a cronista fala sobre as fardas usadas por militares. Se é elegante, chamativo, por outro lado sugere violência, ditadura, grosseria (lembre-se que a Ditadura acabara há cerca de uma década em relação ao período em que ela escreve). E, de fato, em três crônicas se refere a esse período nefasto da história brasileira recente. Ditaduras são sempre ruins, não importa se de direita ou de esquerda. São formas de governo que devem ser banidas de vez da sociedade brasileira de modo a fazer a vida em comum fluir melhor, com mais leveza. Martha Medeiros (1961), nascida em Porto Alegre, começou a escrever crônicas na década de 80 e desde então tem publicado regularmente seus textos em revistas e jornais do país. Reunidas as crônicas, publicou sua primeira coletânea em 1985 com o sugestivo título de Striptease. Como cronista, seu objetivo é o de desnudar a vida cotidiana, apresentar ao leitor seu modo de olhar para os mais diversos fatos da vida nacional e de temas que possam interessar as pessoas de modo geral. Com as redes sociais, todos se sentem um tanto cronista do cotidiano, mas, sem dúvida, nem todos têm o talento para escrever, para se expressar com correção e estilo por escrito. O livro em questão, Topless, apresenta 54 crônicas escritas entre 1995 e 1997. Passados vinte anos, há crônicas cujo assunto podem ter envelhecido, tendo em vista que a crônica é um gênero híbrido, entre o literário e o jornalístico. E é exatamente o literário que faz da crônica um texto permanente, pois, ao comentar os fatos do dia a dia, o cronista busca revelar o que ele teria de essencial, como fazia Rubem Braga, por exemplo. Nesse sentido, as crônicas de Topless apresentam essa característica. Assim, passadas duas décadas, o leitor, além de tomar contato com algum acontecimento dos anos 90, é levado a perceber que qualquer acontecimento apresenta o seu tanto de permanente, de essencial para se compreender a vida, se compreender o ser humano. Por se tratar de diversos textos, vamos procurar separar as crônicas não por sequência, e sim por temas, de modo a facilitar os comentários e a análise. Com isso, esperamos destacar as características comuns, incluindo tratamento estético e construção discursiva, de modo a facilitar a leitura. Conforme já referido, a crônica é um gênero que trata do cotidiano. Como tal, o objetivo é tratar dos temas mais variados e prementes. Em 1996, por exemplo, uma preocupação comum era discutir o fim do milênio e como seria a vida no século XXI e no 3º milênio da Era Cristã. Muitos acreditavam que esse tempo marcaria o fim do mundo. Por isso, eram normais as reflexões existenciais do tipo: “quem sou eu, de onde vim, para onde vou?” Medeiros em “Vidas passadas para trás” discute exatamente essa temática. Apesar de instigar muita gente, Medeiros expressa seu desejo de viver apenas o que tem para ser vivido, sem se preocupar tanto “para onde iremos”. Conforme diz no final de crônica: “A mim basta um banho quente, um pijama limpo e dormir acreditando que amanhã tem mais”. (p. 63) Retoma a temática em “O Terceiro lado da moeda”. O título, um tanto irônico, revela algo que se podemos verificar na atualidade: a busca por uma maior compreensão do diferente, não apenas o oposto, como o lado A e o lado B, e sim o terceiro lado, conforme indica o título. Esse terceiro lado pode ser a homossexualidade, o viver de outro 77 Topless, de Marta Medeiros Crônica interessante para compararmos o olhar do passado a respeito do que vivemos agora é “Os livros da nova era”, escrita em 1995, em que fala sobre o advento do livro no formato digital. Passados mais de vinte anos, trata-se de uma realidade. Porém, como a autora já previa, há ainda relutância em ler livros no formato digital. Com efeito, a maioria dos leitores ainda prefere o suporte papel para ler. A explicação, entre outras, parece ser a mesma data pela cronista. Aqueles que têm com o livro uma relação íntima, quase religiosa, e que não deixam para abri-lo só quando a tevê está estragada. Eu, por exemplo, gosto do cheiro do livro. Gosto de interromper a leitura num trecho especialmente bonito [...]. Depois reabro e continuo a viagem. (p. 36) Há, ao menos, seis crônicas em que Medeiros trata sobre a temática livro/literatura/arte. Em “Aula de literatura”, por exemplo, defende que o ensino das letras deve prevalecer sobre a de qualquer outra arte tendo em vista que todos fazemos uso da língua, o que se configura como essencial para a formação do indivíduo. Evidente que não despreza outras artes, como a pintura, por exemplo. Em “Aquarelas universais”, por exemplo, revela a importância de se visitar um museu, de se conhecerem os grandes pintores, entre os quais a brasileira Tarsila do Amaral. Em complemento está “Gênios monoglotas”, na qual Medeiros trata sobre gênios brasileiros das mais diferentes artes e expressões artísticas, como Millôr Fernandes, Chico Buarque, Jô Soares ou Sônia Braga. Se eventualmente hoje são nomes marcados por escolhas políticas, igualmente foram ou são representantes artísticos de grande valor. Em “Literatura póstuma”, Medeiros se refere a obras de escritores importantes e que são publicadas postumamente. Sua dúvida é saber se o tal artista gostaria mesmo que fossem publicadas. Em geral, a publicação de um livro esquecido ou guardado na gaveta atende mais a um interesse comercial, posto que determinado nome venderia um livro com facilidade, que a uma evolução estética. De fato, analisandose apenas o valor artístico do livro é provável que um determinado escritor não o tenha publicado por considerá-lo ruim. É o caso do poeta chileno Pablo Neruda, ganhador de diversos prêmios, reconhecido mundialmente, mas que não publicou tudo o que escreveu. Na maioria das vezes, obras póstumas são obras menores, cujo valor é mais sentimental do que artístico. Seu único benefício é mostrar aos jovens autores que ninguém nasce sabendo e que a prática é a melhor amiga do talento. Mas nem esse argumento me comove. Já bastam as besteiras que fazemos em vida. (p. 123) Outro caso é o da morte de artista odiado, não tanto por sua obra, e sim por suas escolhas políticas ou posições a respeito de assuntos polêmicos. Era o caso do jornalista e escritor Paulo Francis, que fez vários inimigos especialmente porque não tinha muito cuidado em expressar opiniões, por mais polêmicas que fossem. Há, inclusive, uma suposição de que tenha Em “Loteria dos espertos”, a autora inicia falando sobre algo que veio a se tornar comum, processos judiciais como meio não ético para ganhar dinheiro, como processar alguém por um xingamento ou uma empresa por não ter cumprido um acordo. Evidente que não se deve prejudicar o outro, mas muitas ações poderiam ser resolvidas sem a intervenção do poder judiciário. No caso, o uso excessivo dessa mediação judiciária sugere a tal indústria dos processos. Na crônica, em questão, porém, seu objetivo principal é lembrar que foi nos anos 90 que os atos da Ditadura começaram a ser revistos e quando pessoas que efetivamente sofreram no período apenas por terem expressado ideias de modo contrário ao pensamento dos militares passaram a ser recompensadas financeiramente. Nesse caso, foi necessária a ajuda da justiça como meio de rever o passado recente e fazer as devidas correções. Por outro lado, a liberdade excessiva ou sem o devido cuidado pode gerar situações perigosas ou, ao menos, constrangedoras. A autora relata em “Assassinos por distração” que à época jovens na Flórida, EUA, teriam arrancado placas de trânsito para se divertirem. A falta de sinalização provocou um grave acidente e esses jovens foram condenados a quinze anos de detenção. O caso é todo complexo e dividiu opiniões. Para Medeiros, no mínimo os jovens agiram sem pensar e mereceriam uma punição, talvez não tão longa. Fato é que em sociedades democráticas, a liberdade tem de ser usada com cuidado, pois pode prejudicar outros. Não somos marginais, mas somos todos homicidas em potencial. Basta uma inconsequência, uma distorção de valores ou uma sandice como a dos jovens americanos. (p. 166-167) Medeiros toma uma situação qualquer do cotidiano para fazer considerações de ordem específica ou moral ou apenas para levar o leitor à reflexão. Em duas crônicas, a autora se baseia em filmes para fazer essas considerações. “Meryl Streep, chorai por nós” trata de alguns filmes importantes da década de 90, especialmente As pontes de Madison, para dizer que também nós podemos exercer papéis diferentes em nossa vida ou apenas manter algo regular, sem grandes mudanças. Para Medeiros, o mais importante é “nos acostumarmos com a presença de nossas outras personalidades, sem tentar mascará-las [...] Chama-se a isso amadurecimento”. (p. 34) Já em “No divã com Woody Allen, seu objetivo é mostrar que o cinema pode se comparar ao cotidiano. Essa seria a lição do diretor, para quem os fatos banais, cotidianos apresentam histórias divertidas e dramáticas que podem bem ser organizadas sob forma de roteiro. Martha Medeiros, portanto, vê essa característica no diretor norte-americano como determinante para seu modo de produzir cinema, que não precisaria de efeitos especiais, tiros, explosões etc. para contar uma bela história. Mas para isso, temos que aprender com o diretor, “aprender a se divertir com a repetição, com a banalidade, com o previsível” (p. 66) Trata-se, pois, de um cinema do prosaico, da vivência que qualquer um de nós pode experimentar. 78 Topless, de Marta Medeiros Uma das crônicas é sobre pensão alimentícia. A autora se refere a um episódio da época em que um exmarido foi preso por não pagar corretamente a pensão. O advento do novo Código Civil, em 2002, mudou essa relação, mas como o texto é de 1996 seguia regras antigas em que sempre cabia ao homem pagar a pensão. Pós-2002, o entendimento legal passou a ser outro. De qualquer modo, Medeiros chamava a atenção para o fato de que se a mulher queria independência, ela teria de ser plena, incluindo a financeira, sem depender mais de ex-, de modo a não requerer a prisão pela falta de pagamentos não a filho, mas à própria ex-esposa. Pensão alimentícia, só para as crianças. Se ela tem uma formação profissional e tem saúde, é hipocrisia querer herdar o paternalismo que tanto se lutou para romper. (p. 16) Em outra crônica, “Mulher solteira procura”, a cronista revela as contradições do sentimento feminino. Apesar de uma maior independência, as mulheres ainda sonham com o casamento, ao menos com o ato em si, encontrar aquilo que os contos de fada já falavam, a busca pelo príncipe. Isso porque se cobrava e se cobra da mulher que cumpra com seu dever social: casarse. Em outras palavras, se pensarmos no todo, vemos muitas mulheres que têm um pensamento diferente; de qualquer modo, permanece no senso comum o desejo de casar-se, até porque ser casada parece trazer algumas vantagens, entre elas a ideia de ser livre, por não ter de estar, em tese, à procura de algo: [...] a mulher casada é infinitamente mais livre do que a solteira, pois já cumpriu o papel que a sociedade exigiu dela – casou! – e agora tem o resto da vista para ser ela mesma. (p. 22) “Década de 70: a adolescência do feminismo” trata sobre a luta feminina por mais direitos e como isso colaborou para as mudanças de sociabilidade. É uma liberdade conquistada, mesmo que não plena; sem dúvida, porém, que as mulheres passaram a ter direitos que antes não se imaginava ter, isso, ao mesmo tempo, gerou deveres também novos. Em rigor, vivemos ainda hoje um processo de mudança de sociabilidade, em que nem sempre se tem certeza do que se quer, certeza sobre o papel de cada um. O fato é que alguns estereótipos, bem como rótulos têm sido revistos. Ser mulher nunca foi uma maravilha, assim como nascer homem está longe de ser uma graça dos céus. Há problemas e vantagens em ambos os lados e, juntos, estamos fundando uma nova sociedade, sem tanto estereótipo e com um pouco mais de bom-senso. (p. 40-41) A mesma ideia, com outro objetivo, está em “Vovó é uma uva”, fazendo uma brincadeira com os antigos métodos de alfabetização. A crônica procura mostrar que as avós modernas, como Baby Consuelo, Danuza Leão, entre outras, não carregam aquele conceito de vovozinha que faz chá e bolo, sempre à espera dos netinhos; ao contrário, têm vida própria, são descoladas e são mulheres ainda desejáveis, que despertam sentimentos sensuais. É a mudança no modo de olhar para as mulheres, bem como o papel que elas próprios começaram a construir para si desde a década de 60. falecido em decorrência de uma declaração sua de que haveria corrupção na Petrobrás, isso nos anos 90, o que motivou diretores da estatal processá-lo exigindo o pagamento de uma indenização altíssima. Independente das opiniões fortes do jornalista, Medeiros destaca que a morte de Francis, ocorrida em 1997, deixou uma lacuna na arte e no jornalismo, pelo fato de o autor ter grande capacidade de análise, além de talento para escrever. “É por isso que todos aqueles que adoravam Paulo Francis e também os que o odiavam do fundo do coração devem lamentar sua morte”. (p. 126) Mudando um pouco o foco, relata que as viagens de avião começaram a baratear, o que permitiu a um maior número de pessoas viajar pelo país ou para o exterior. Medeiros chama a atenção para isso em “A classe econômica vai ao Paraíso”. Na crônica, seu objetivo maior é revelar que viagens deveriam ser meio de aumentar o conhecimento cultural, e não apenas meio de comprar produtos variados, sem maior utilidade, apenas para se dizer que comprou determinado coisa no exterior. Mas para sacoleiros natos, [...] estar em Miami ou Nova York dá na mesma, desde que haja um camelódromo em volta do hotel. (p. 57) Na crônica que dá título ao volume: “Topless: atentado ao pudor”, há uma reflexão de ordem moral e também comportamental do brasileiro. O termo anglicano, topless, serve para indicar um hábito muito comum em praias europeias e em algumas localidades dos EUA de as mulheres ficarem sem a parte de cima do biquíni, deixando os seios à mostra. Medeiros chama a atenção para o fato de que o brasileiro é aparentemente liberal no assunto sexualidade, porém, por estranho que seja, reagia mal (e ainda continua a reagir) quando uma mulher faz topless na praia, por exemplo. A autora descreve que em carnaval, em situações erotizantes, como em filmes, novelas etc. não se vê problema uma mulher ficar seminua, porém na praia ou em ambientes públicos, o ato se torna uma afronta aos chamados bons costumes. Contradições que, mesmo tendo passados vinte anos da publicação da crônica, ainda persistem. Basta uma garota fazer topless numa praia de Santa Catarina ou de Pernambuco para provocar um clarão a sua volta, como se ela estivesse com lepra. (p. 51) O tema mais recorrente nas crônicas do livro é relacionamento, o que inclui o casamento em si, as separações, a maternidade, o feminismo e assuntos correlatos. São ao menos dezoito crônicas sobre essas temáticas. Vamos resumir e analisar as principais, estabelecendo algumas relações entre elas. Trata dos relacionamentos antes, durante e após o casamento. Seu objetivo parece ser o de analisar os novos tempos (leia-se fim de século, mas claro que muito do que ela disse continua a fazer parte do contexto atual). 79 Topless, de Marta Medeiros Outra crônica a tratar da vida doméstica é “As musas de Odair José”, por referência às empregadas do lar. Com as mudanças na sociabilidade, ter uma empregada em casa não significa mais apenas uma pretensa vadiagem de uma mulher burguesa, cuja vida era basicamente servir ao marido, mas sim algo necessário para uma dona de casa que é também profissional, que tem outros afazeres, outras perspectivas de vida. O título é porque Odair José se tornou um cantor paradigmático das empregadas domésticas ou secretárias do lar. Em “Crônica de um casamento anunciado”, Medeiros revela que em fins do século XX o casamento parecia em desuso, pelas facilidades de se buscar apenas morar juntos, mas, em rigor, era uma prática mais recorrente do que se poderia imaginar. Talvez hoje essa percepção também esteja presente, embora casar-se ainda continua algo bastante comum. O objetivo da autora é o de mostrar que declarar-se noiva pode não ser impeditivo para que outra pessoa tente paquerar uma moça. Segundo Medeiros, o contrário poderia até acontecer: um noivo, em princípio, seria respeitado pelas mulheres solteiras. Verdade ou não, Medeiros quer dizer que as mulheres tendem a respeitar mais os comprometidos em comparação aos homens, que, mesmo diante de uma noiva, tentaria algo com ela. Além de mostrar que noivado é apenas um rito de passagem, não uma certeza de durabilidade no relacionamento. Tem gente que namora duas semanas, casa e comemora bodas de ouro. Outras ficam noivas dez anos e casada apenas dez dias. Noivado é rito de passagem. Uma maria-fumaça. A paixão é que é o verdadeiro trem-bala. (p. 78) Ainda nessa linha temática, sobre relacionamento, outras duas crônicas tratam sobre a primeira vez e sobre a manutenção da paixão por anos. Em ambos os casos, a cronista tenta entender os tempos modernos, sem se esquecer da tradição moral, por assim dizer. “Em a primeira noite de uma mulher”, como indica o título, ela aborda a dificuldade natural de uma mulher se apresentar intimamente a um homem pela primeira vez: “Não é tarefa fácil nem para balzaquianas calejadas, o que dirá para uma garota cheia de fantasias na cabeça” (p. 95) No caso de “O príncipe que virou sapo”, trata sobre as traições que podem ocorrer durante um relacionamento de muitos anos. Ela sugere que isso pode acontecer, sem que necessariamente o traidor queira o fim do relacionamento sério, ou o faz por mau caratismo, a não ser, claro, que não se queira continuar de fato o casamento: “Admitamos: infidelidades casuais não justificam a separação de duas pessoas que se amam” (p. 98) Com efeito, muitas vezes a separação ocorre mais por pressão social que propriamente por um desejo efetivo do traído. Na crônica “Casamento, lado A e lado B”, a temática se repete. Os pontos positivos e negativos do casamento. A rotina que traz segurança é a mesma rotina que torna a relação monótona. Por outro lado, na crônica “uma aventura no supermercado”, Medeiros Essa independência feminina, bem como o novo homem, pode produzir consequências negativas, como o não desejar ter filhos. Embora não seja um crime, pode ocorrer de, ao se gerar um filho não desejado, o casal simplesmente dar o filho para a adoção, de modo a evitar que o filho venha a atrapalhar seu estilo de vida. É o que se observa em “Toma que o filho é teu”. Medeiros chama a atenção para a possibilidade de, após a doação, ocorrer um arrependimento, porém, a justiça deveria retirar de vez qualquer direito de um casal reaver um filho já doado. Até porque, depois, “os pais adotivos também se sentem legítimos. [...] Crianças não são produtos que vêm com prazo de validade”. (p. 53-54) Em “Verdades e mentiras sobre as mães”, Medeiros segue a mesma linha de reflexão ao abordar alguns mitos a respeito da maternidade: “Mãe é mãe”; “Mãe é uma só”; “Ser mãe é padecer no paraíso”; “Maternidade: missão de toda mulher”. Para a autora, são mitos, pois a mulher hoje adquiriu outras perspectivas, apresenta outros interesses, o que pode sugerir que nem toda mulher teria tal perfil para a maternidade. Porém, conclui com outro clichê: “Mamãe eu quero”, ou seja, que todos amariam a própria mãe, o que também pode não ser exatamente a verdade. Fato é que a autora quer chamar a atenção para as mudanças que vêm ocorrendo desde a década de 60, quando a mulher passou a perceber que seu destino poderia não ser apenas aquele a que lhe era reservado, casar-se e ter filhos. Com efeito, observamos hoje a mulher totalmente integrada às mais diversas profissões, de modo a colocar em prática o princípio democrático do Brasil atual (leia-se, os últimos trinta anos). Um pouco na contramão da ideia de mãe moderna, Medeiros fala de Madonna, em “Madona like a virgin”, que encarna, a despeito de toda liberalidade da cantora, a típica mãe super-protetora, que proibiria o filho de fazer coisas básicas, como ver TV. “A mudança de Madonna reforça um mito antigo, o de que ser mãe compensa o abandono de si mesma”. (p. 155) O mesmo se dá em “Parabéns para você”, em que a autora chama a atenção para as festas de aniversário mais modernas, que, além de doces, guloseimas, devem ter brincadeiras organizadas etc., tendo como diretora a mãe, que, mesmo querendo ser moderna, nessa hora tem que ser mãe. “Por que suportamos tudo caladas? Porque mãe é sinônimo de sacrifício, entrega, benemerência”. (p. 138) Já em “Homens, mulheres e abajures”, seu objetivo é mostrar as diferenças persistentes entre os sexos opostos, sobretudo no que diz respeito à decoração da casa. Interessante que no início da crônica afirma que assim como lojas de decoração, era possível achar locadoras de vídeo em qualquer lugar. As casas de decoração permanecem, mas as locadoras foram sendo esquecidas, pouco a pouco. Pois bem, na crônica, quer mostrar que sempre haverá diferenças entre os sexos, pois os interesses e a sensibilidade nem sempre são iguais. 80 Topless, de Marta Medeiros mostra que mesmo a vida rotineira de uma dona de casa pode ser aventureira em alguns momentos, no sentido de que a vida moderna, com seus desafios, correria, indecisões, pode levar uma pessoa a viver experiências intensas mesmo em um supermercado. Se você optou por um supermercado popular, vai querer cortar os pulsos. Você mesma terá que acomodar suas compras. Ovos com lustrador de móveis, fita de vídeo com manteiga, uvas com garrafas de refrigerante, tudo junto, como uma grande família. Dane-se a higiene. (p. 132) Medeiros aborda a dificuldade de se encontrar a chamada “alma gêmea” e como as pessoas, para isso, costumavam recorrer a agências de casamento, exatamente na crônica “Agências de casamento”. Escrita em 1997, se atualizada, certamente a crônica faria menção às redes sociais ou as agências virtuais que promovem todo tipo de encontro, do casual ao sério. Mudando os tempos, uma verdade permanece: a dificuldade de se encontrar a pessoa perfeita para nosso objetivo de vida, desejos, comportamento etc. Em outra crônica, porém, “Sargentos e soldados”, a autora afirma que há casais que permanecem unidos mesmo sendo diferentes, isso porque certamente cada um aceita a diferença do outro que o complementa ou mostra a vida de outro modo, ao menos. “As pequenas divergências só ganham ares de drama quando atingem o lado frágil do casal: o bolso”. (p. 163) Mesmo assim, podem ainda assim se entenderem. Apesar de Medeiros quase sempre escrever da perspectiva feminina, ela não despreza a visão do homem. Busca entender a dificuldade de ser homem nos tempos modernos (leia-se fins do século XX e, extrapolando, o século XXI), em que mulher tem voz, tem sonhos, desejos, projetos pessoais etc. Por isso, propõe o “Dia internacional do homem”. Por conta da nova mulher, o homem deve se reinventar também. Isso o levou a fazer serviços domésticos e a experimentar certos julgamentos sociais, a que eram submetidas apenas as mulheres. Por isso, além das lides do lar, os moços trabalham fora. E ai deles se fracassarem. [...] No amor, a opressão é ainda maior. Os homens que não casam são marginalizados pela sociedade. São vistos como playboys, filhinhos de mamãe ou bichas enrustidas. (p. 133) Nessa linha, “Homens que têm tudo” discute que tipo de presente um homem deveria receber. No caso, é preciso esquecer os tradicionais, como meias, gravatas, lenços ou camisas polo. Se a mulher mudou, o homem também. Esse é o foco da maior parte das crônicas de Martha Medeiros, discutir as mudanças nas relações familiares, no modo de ver o papel de cada sexo. Ora, para uma nova mulher há que se constituir um novo homem. E, talvez, mais do que isso, excluindo os estereótipos do que seja um homem, do que seja uma mulher, Medeiros mostra que há urgências, que antes não se pensava em ter. Claro que em qualquer época, sempre haverá esse discurso do “no meu tempo não era assim...” Mas eis o papel do cronista, ou um deles, retratar a vida cotidiana, registrar por meio de uma linguagem jornalística aquilo que tem de permanente, ver no efêmero um padrão, um estilo de vida, determinar o que é comum a muitos indivíduos. Em “A felicidade no fim de século”, isso é bastante explícito. Cita algumas personalidades da época, ou seja, 1995, como Arnaldo Jabor, Danuza Leão, Jô Soares, que mudaram sua vida pessoal ou profissional, para mostrar que as pessoas comuns, as não celebridades também têm buscado alternativas para serem felizes, para se realizarem, para atingirem metas antes impensáveis. Até porque há uma urgência pela felicidade, como se ela não pudesse esperar. É preciso viver o agora, sempre. Para nossas bisavós, ser era fácil. Bastava casar e ter filhos. [...] Priscas eras. [...] Por que esta urgência de viver? Simples, porque a morte tem chagado à bala. (p. 17) Essa mudança de comportamento está registrada em “O beijo de Maradona”. Escrita em 1996, a crônica discute o novo homem, motivado por um beijo que Maradona teria dado em Cannigia por ocasião da marcação de um gol. Medeiros aproveita o caso para refletir que, embora não seja comum homens se beijarem, ao menos não em público, tem se permitido demonstração de afeto mútuo, sem serem confundidos como homossexuais. É bem verdade que, passados vinte anos, isso é até mais comum, inclusive o beijo. O ponto é que, com efeito, demonstrar sentimentos em público não é mais ato exclusivo das mulheres. Homens sempre tiveram dificuldade com isso, não porque sejam incapazes de sentir, mas sim, por pressão social, cultural, tinham de sempre manter-se firmes nas emoções, por referência ao famoso clichê, segundo o qual “homem não chora”. Em “Falem bem, falem mal”, Medeiros reflete sobre a necessidade de as celebridades, em particular, terem seu nome e trabalho constantemente comentados. Embora Medeiros não tenha antevisto, hoje, com a proeminência das redes sociais, esse desejo se estendeu a todos, sobretudo os que almejam popularidade mesmo que sob um enforque negativo, pejorativo. Vídeos são gravados com cenas torpes e mesmo assim compartilhados para se obter uma fama um tanto duvidosa. O mais importante é que se curta, se compartilhe qualquer prática, por mais tosca ou néscia que seja. O papel de personalidades, heróis, líderes é o de inspirar atitudes transformadoras, revolucionárias, positivas. Porém, nem sempre é o que acontece. Na crônica, “A modéstia sobre ao pódio”, Medeiros fala da ascensão do tenista Gustavo Kuerten, o Guga. Trata-se, pois, de uma personalidade por uma ação positiva, não por se expor em redes sociais de modo a se transformar em pseudocelebridade. Por fim, vale a pena ainda destacar outra crônica de Martha Medeiros. Nascida no Rio Grande do Sul, a autora analisa o modo de ser gaúcho em “Rio Grande, ame-o e deixe-o”. O título é irônico e remente o leitor ao slogan politico dos anos 70, quando o 81 Topless, de Marta Medeiros Fernando Sabino dizendo que faltava demônio em Berna, onde morava na ocasião. A Suíça, de fato, é um país de contos de fada onde tudo funciona, onde todos são belos, onde a vida parece uma pintura, um rótulo de chocolate. Mas falta uma ebulição que salve do marasmo. Retornando ao assunto: pessoas habitadas são aquelas possuídas por si mesmas, em diversas versões. Os habitados estão preenchidos de indagações, angústias, incertezas, mas não são menos felizes por causa disso. Não transformam suas “inadequações” em doença, mas em força e curiosidade. Não recuam diante de encruzilhadas, não se amedrontam com transgressões, não adotam as opiniões dos outros para facilitar o diálogo. São pessoas que surpreendem com um gesto ou uma fala fora do script, sem nenhuma disposição para serem bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam pela verdade pessoal que defendem. Além disso, mantêm com a solidão uma relação mais do que cordial. Então são as criaturas mais incríveis do universo? Não necessariamente. Entre os habitados há de tudo, gente fenomenal e também assassinos, pervertidos e demais malucos que não merecem abrandamento de pena pelo fato de serem, em certos aspectos, bastante interessantes. Interessam, mas assustam. Interessam, mas causam dano. (...) Que tenhamos a sorte de esbarrar com seres habitados e ao mesmo tempo inofensivos, cujo único mal que possam fazer é nos fascinar e nos manter acordados uma madrugada inteira. Ou a vida inteira, o que é melhor ainda. governo ditatorial militar usava a frase: Brasil, ame-o ou deixe-o. Naquele contexto, a ideia de amar refletia o discurso de que era precisa aceitar o status quo ou abandonar o país para que não houvesse luta etc. No caso da cronista, seu objetivo é mostrar que o bairrismo, o regionalismo que gira em torno de certos locais no país, em especial no Rio Grande, tende a produzir um discurso de afirmação local, porém de consequências ruins para a brasilidade, no sentido de que o gaúcho mais típico vê sua cultura como superior a qualquer outra, gerando certo preconceito em relação a outras regiões. O Rio Grande do Sul vive para dentro. Cultiva suas tradições como um pai feroz cuida da filha donzela. [...] Mais: o protecionismo gaudério não deixa que se critique a literatura gaúcha, os músicos gaúchos, a costela gaúcha. [...] o confinamento é terreno fértil para preconceitos. (p. 115-117) O que pode ser visto de modo positivo sob certo ângulo é algo que se revela nefasto a todos, afinal o olhar para fora é sempre importante. Compreender o todo é mais vantajoso que um olhar limitado, particularista. Por isso, a literatura de modo geral e em particular de Martha Medeiros, por ampliar nosso modo de olhar, por partir de elementos comuns, leva o leitor a sair de seu mundinho, daquilo que o cerca para ganhar o mundo. É o desnudamento que provoca as crônicas de Martha Medeiros, que quer fazer um topless do que está em nossa mente, para apontar as mudanças e também provocar o leitor a ver para além do próprio mundo, para refletir além do próprio umbigo. Fonte: SANTOS, Joaquim Ferreira dos. (org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva. 2007. p. 324-5. EXERCÍCIOS Observação: as questões a seguir se referem a crônicas publicadas em outros livros. No entanto, estão aqui para servirem de referência ao estudante. (IFNMG) Pessoas habitadas - Martha Medeiros Estava conversando com uma amiga, dia desses. Ela comentava sobre uma terceira pessoa, que eu não conhecia. Descreveu-a como sendo boa gente, esforçada, ótimo caráter. “Só tem um probleminha: não é habitada.” Rimos. É uma expressão coloquial na França — habité — mas nunca tinha escutado por estas paragens e com este sentido. Lembrei-me de uma outra amiga que, de forma parecida, também costuma dizer “aquela ali tem gente em casa” quando se refere a pessoas que fazem diferença. Uma pessoa pode ser altamente confiável, gentil, carinhosa, simpática, mas se não é habitada, rapidinho coloca os outros pra dormir. Uma pessoa habitada é uma pessoa possuída, não necessariamente pelo demo, ainda que satanás esteja longe de ser má referência. Clarice Lispector certa vez escreveu uma carta a 82 1. Assinale a alternativa que NÃO corresponde às ideias defendidas no texto, com relação às pessoas habitadas: (A)Os habitados são surpreendentes, uma vez que não são alienados; são autênticos. (B)A forma como as criaturas habitadas lidam com a solidão é vista de maneira positiva. (C)Nem sempre as pessoas habitadas são as melhores pessoas, ainda que, em certos aspectos, sejam interessantes. (D)Pessoas habitadas são mais felizes porque estão desabitadas de incertezas e angústias. 2. Em relação às estratégias discursivas empregadas na construção do texto, a autora faz uso de vários recursos, EXCETO de: (A)Uso da forma interrogativa como recurso enfático. (B)Inserção de discurso direto por meio da utilização das aspas. (C)Relato de acontecimentos em terceira pessoa, exclusivamente no primeiro parágrafo. (D)Uso de estrangeirismos. Topless, de Marta Medeiros (Fafisa) O PERMANENTE E O PROVISÓRIO O casamento é permanente, o namoro é provisório. O amor é permanente, a paixão é provisória. Uma profissão é permanente, um emprego é provisório. Um endereço é permanente, uma estada é provisória. A arte é permanente, a tendência é provisória. De acordo? Nem eu. Um casamento que dura 20 anos é provisório. Não somos repetições de nós mesmos, a cada instante somos surpreendidos por novos pensamentos que nos chegam através da leitura, do cinema, da meditação. O que eu fui ontem e anteontem, já é memória. Escada vencida degrau por degrau, mas o que eu sou neste momento é o que conta, minhas decisões valem para agora, hoje é o meu dia, nenhum outro. Amor permanente... como a gente se agarra nessa ilusão. Pois se nem o amor por nós mesmos resiste tanto tempo sem umas reavaliações. Por isso nos transformamos, temos sede de aprender, de nos melhorar, de deixar para trás nossos imensuráveis erros, nossos achaques, nossos preconceitos, tudo o que fizemos achando que era certo e hoje condenamos. O amor se infiltra dentro de nós, mas seguem todos em movimento: você, o amor da sua vida e o que vocês sentem. Tudo pulsando independentemente, e passíveis de se desgarrar um do outro. Um endereço não é pra sempre, uma profissão pode ser jogada pela janela, a amizade é fortíssima até encontrar uma desilusão ainda mais forte, a arte passa por ciclos, e se tudo isso é soberano e tem valor supremo, é porque hoje acreditamos nisso, hoje somos superiores ao passado e ao futuro, agora é que nossa crença se estabiliza, a necessidade se manifesta, a vontade se impõe – até que o tempo vire. Faço menos planos e cultivo menos recordações. Não guardo muitos papéis, nem adianto muito o serviço. Movimento-me num espaço cujo tamanho me serve, alcanço seus limites com as mãos, é nele que me instalo e vivo com a integridade possível. Canso menos, me divirto mais e não perco a fé por constatar o óbvio: tudo é provisório, inclusive nós. [...] Foi realizado em Madri o Primeiro Congresso Internacional da Felicidade, e a conclusão dos congressistas foi que a felicidade só é alcançada depois dos 35 anos. Quem participou desse encontro? Psicólogos, sociólogos, artistas de circo? Não sei. Mas gostei do resultado. A maioria das pessoas, quando são questionadas sobre o assunto, dizem: “Não existe felicidade, existem apenas momentos felizes”. É o que eu pensava quando habitava a caverna dos 17 anos, para onde não voltaria nem puxada pelos cabelos. Era angústia, solidão, impasses e incertezas pra tudo quanto era lado, minimizados por um garden party de vez em quando, um campeonato de tênis, um feriadão em Garopaba. Os tais momentos felizes. Adolescente é buzinado dia e noite: tem que estudar para o vestibular, aprender inglês, [...] não beber quando dirigir, dar satisfação aos pais, ler livros que não quer e administrar dezenas de paixões fulminantes e rompimentos. Não tem grana para ter o próprio canto, costuma deprimir-se de segunda a sexta e só se diverte aos sábados, em locais onde sempre tem fila. É o apocalipse. Felicidade, onde está você? Aqui, na casa dos 30 e sua vizinhança. Está certo que surgem umas ruguinhas, umas mechas brancas e a barriga salienta-se, mas é um preço justo para o que se ganha em troca. Pense bem: depois dos 30, você paga do próprio bolso o que come e o que veste. Vira-se no inglês, no francês, no italiano e no iídiche, e ai de quem rir do seu sotaque. Não tenta mais o suicídio quando um amor não dá certo, [...] apaixonou-se por literatura, trocou sua mochila por uma Samsonite [...]. Talvez não tenha se tornado o bam-bam-bam que sonhou um dia, mas reconhece o rosto que vê no espelho, sabe de quem se trata e simpatiza com o cara. (MEDEIROS, Martha. Coisas da vida. Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 39-40). 3. (Ulbra) As questões 4 e 5 estão baseadas na crônica 35 anos para ser feliz, de Martha Medeiros, disponível no site: http://www.releituras.com/ mamedeiros_serfeliz.asp. Depois que cumprimos as missões impostas no berço — ter uma profissão, casar e procriar — passamos a ser livres, a escrever nossa própria história, a valorizar nossas qualidades e ter um certo carinho por nossos defeitos. De acordo com o texto, assinale a alternativa cujo fragmento reforça a ideia de transitoriedade associada ao casamento. (E)“O casamento é permanente, o namoro é provisório.” (F)“[...] mas o que eu sou neste momento é o que conta, minhas decisões valem para agora, hoje é o meu dia, nenhum outro.” (G)“[...] Pois se nem o amor por nós mesmos resiste tanto tempo sem umas reavaliações.” (H)“Faço menos planos e cultivo menos recordações.” (I) “[...] tudo é provisório, inclusive nós. Somos os titulares de nossas decisões. A juventude faz bem para a pele, mas nunca salvou ninguém de ser careta. A maturidade, sim, permite uma certa loucura. Depois dos 35, conforme descobriram os participantes daquele congresso curioso, estamos mais aptos a dizer que infelicidade não existe, o que existe são momentos infelizes. Sai bem mais em conta. 83 Topless, de Marta Medeiros 4. Sobre a crônica de Martha Medeiros, é correto afirmar. (A)No Primeiro Congresso Internacional da Felicidade, realizado em Madri, os congressistas concluíram que a felicidade só é alcançada antes dos 35 anos. (B)A autora do texto afirma que a felicidade é relativa e que na adolescência é possível encontrar a felicidade nas pequenas coisas do dia a dia. (C)A maturidade não permite mais loucuras. (D)A juventude faz bem para a pele e torna a pessoa feliz. (E)Depois que o indivíduo tem uma profissão, casa e tem filhos, começa a escrever sua própria história, começa a ser livre. 5. Assinale a única alternativa que expõe uma informação encontrada na crônica de Martha Medeiros. (A)Junto com psicólogos, artistas de circo participaram do encontro em Madri. (B)Após os 35 anos, as pessoas podem afirmar que não há infelicidade, existem momentos infelizes. (C)O adolescente é cobrado diuturnamente, não tem condições de manter-se sozinho e sempre tem momentos de felicidade. (D)As rugas comprometem o visual e tornam o indivíduo infeliz. (E)A maioria das pessoas acredita na felicidade total. gABARITO 1.D 2.C 3.C 4.E 5.A 84 Referências bibliográfricas Referências bibliográfricas Alexandre Herculano. Eurico, o presbítero. São Paulo: Martin Claret, 2014. Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia. In: Nova reunião. 8. ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2014, vol. 1. Clarice Lispector. A hora da estrela. 21. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. Dias Gomes. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. Gonçalo M. Tavares. Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. São Paulo: Cia. das Letras, 2015. Martha Medeiros. Topless. Porto Alegre: L&PM, 2015. Mia Couto. Vozes anoitecidas. São Paulo: Cia. das Letras, 2013. Nélida Piñon. Melhores contos. São Paulo: Global, 2014. Paulo Leminski. Toda Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2015. Raul Pompeia. O Ateneu. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2020. Acesso em 01 maio 2016. 85 Hino Nacional Brasileiro Letra: Joaquim Osório Duque Estrada Música: Francisco Manuel da Silva Parte I Parte II OUVIRAM DO IPIRANGA AS MARGENS PLÁCIDAS DE UM POVO HEROICO O BRADO RETUMBANTE, E O SOL DA LIBERDADE, EM RAIOS FÚLGIDOS , BRILHOU NO CÉU DA PÁTRIA NESSE INSTANTE. DEITADO ETERNAMENTE EM BERÇ O ESPLÊNDIDO, AO SOM DO MAR E À LUZ DO CÉU PROFUNDO, FULGURAS, Ó BR ASIL, FLORÃO DA AMÉRICA, ILUMINADO AO SOL DO NOVO MUNDO! S E O PENHOR DESSA IGUALDADE CONSEGUIMOS CONQUISTAR COM BRAÇO FORTE , E M TEU SEIO, Ó LIBERDADE, DESAFIA O NOSS O PEITO A PRÓPRIA MORTE ! DO QUE A TERRA MAIS GARRIDA, TEUS RISONHOS , LINDOS CAMPOS TÊM MAIS FLORES ; MAIS VIDA”, “NOSS OS BOSQUES “NOSSA VIDA” NO TEU SEIO “MAIS AMORES .” Ó PÁTRIA AMADA, IDOLATRADA, S ALVE! S ALVE! Ó PÁTRIA AMADA, IDOLATRADA, S ALVE! S ALVE! BRASIL, UM SONHO INTENSO, UM RAIO VÍVIDO DE AMOR E DE ESPERANÇA À TERRA DESCE , S E EM TEU FORMOSO CÉU, RISONHO E LÍMPIDO, A IMAGEM DO CRUZEIRO RESPLANDECE . GIGANTE PELA PRÓPRIA NATUREZA, É S BELO, ÉS FORTE , IMPÁVIDO COLOSS O, E O TEU FUTURO ESPELHA ESSA GRANDEZA. TERRA ADORADA, E NTRE OUTRAS MIL, É S TU, BRASIL, Ó PÁTRIA AMADA! DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS PÁTRIA AMADA, BRASIL! VERÁS UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA, NEM TEME, QUEM TE ADORA, A PRÓPRIA MORTE . TERRA ADORADA, E NTRE OUTRAS MIL, É S TU, BRASIL, Ó PÁTRIA AMADA! MÃE GENTIL, DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS PÁTRIA AMADA, B ! MÃE GENTIL,