Versão de Impressão
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CINEMA Qual a finalidade da vida? Para que serve uma existência? O que é mais importante na vida? Para que estamos aqui? Perguntas como estas assombram a humanidade desde seus primórdios e não foram poucos os estudiosos que dedicaram suas vidas para tentar minimizar a angústia que elas nos causam. Talvez uma das melhores respostas a tais perguntas seja dada pela Ética aristotélica, que afirma que todas as coisas visam um Bem e que o Bem supremo é a Felicidade. Idéia essa que também é corroborada pela filosofia de Epicuro, que enfatiza a importância de elementos como a amizade e a busca do prazer nas coisas simples. Certamente o pensamento filosófico marcou profundamente o “espírito grego” (e de todos os povos que tiveram contato com essa cultura), tanto que podemos encontrar reflexos desse pensamento clássico em obras modernas, como no livro “Zorba, o Grego” de Nikos Kazantzakis, tão brilhantemente adaptado para o cinema por Michael Cacoyannis e estrelado por Anthony Quinn e Alan Bates nos respectivos papéis dos protagonistas Zorba e Basil. Trata-se de um filme que enfatiza o lado humano da existência e que preconiza a importância de valorizar e, sobretudo, de participar com toda intensidade da vida, a cada dia e a cada instante. É uma obra que apresenta a vida como um prêmio a ser desfrutado e não como um sacrifício a ser suportado. Sendo assim, “Zorba, o Grego” destaca-se como um dos clássicos da sétima arte que, necessariamente, precisa ser assistido por todos aqueles que de um modo ou de outro se relacionam ou atuam em áreas como a Filosofia, as Artes e as Ciências Humanas. O filme em si já se apresenta como um excelente exemplar da arte cinematográfica, com ótimas interpretações, mesclas de cenas que vão do humor ao drama e ênfase nos aspectos emocionais (quase viscerais) dos personagens. Entretanto, o que mais toca a percepção do expectador são os diálogos eloquentes, com um tom filosófico, grego, trágico, pequenas “lições de vida”, entre os dois personagens principais do filme, Zorba e Basil. O expectador poderá tirar grande proveito para sua vida pessoal se estiver atento ao conteúdo e intensidade das falas desses personagens. Um exemplo desses diálogos já aparece logo 12 TUCUNDUBA no início do filme. Basil, (um escritor inglês, meio grego por parte de pai e herdeiro de uma mina desativada localizada na ilha grega de Creta), mostra-se desajeitado e contrariado com o péssimo trabalho dos estivadores gregos que embarcam sua mudança, debaixo de chuva, em um navio que não zarpa devido ao mau tempo. Assim que consegue despachar sua mudança, Basil busca refúgio da chuva em um saguão, onde outros passageiros também aguardam a melhora do tempo e ali ocorre A celebração da amizade e do prazer em viver: uma reflexão sobre o filme “Zorba, O Grego” André Luiz Picolli da Silva TUCUNDUBA 13 seu encontro com Zorba. Esse se aproxima de Basil e começa a interpelá-lo de um modo debochado, inconveniente, chamando a atenção de quem está ao redor, num modo típico de agir de pessoas “menos cultas” ou “menos educadas”... Zorba - Você está viajando... para onde, se me permite? Basil - Creta. Zorba - Vai ficar lá bastante tempo, não? Basil - Como sabe? Zorba - Eu o vi com as caixas, na chuva. Muito engraçado... gostei de você... leve-me com você, sim? Basil - Levá-lo?... por quê? Zorba - Por quê?... será que ninguém faz nada sem perguntar “por quê?”... simplesmente por fazer?... muito bem, leve-me como cozinheiro. Sei fazer sopas.... gosta de sopa, não? Basil - Bem... Zorba - É claro que gosta. É inglês, não? Basil - Meio inglês. Zorba - Meio? Basil - Meu pai era grego, mas nasci na Inglaterra. Zorba - Dá na mesma. Basil - Você é cozinheiro? Zorba - Se precisar de um, sou. Basil - Eu quis dizer, que tipo de trabalho você faz? Zorba - Ouça, eu tenho mãos, pés, cabeça. Eles trabalham. Quem sou eu para dizer o que fazer? Esse primeiro diálogo chama a atenção pelo estilo despojado e de certo modo infantil de Zorba, que deseja ir com Basil para Creta, simplesmente porque “gostou dele” e fica irritado quando questionado sobre o “por quê?”. Esse primeiro diálogo também lembra o modo ingênuo de ver o mundo, do protagonista do clássico “O pequeno príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry, que também ficava indignado quando o seu interlocutor expressava alguns posicionamentos “sérios”, “maduros” ou “adultos”. O que fica claro nesse primeiro diálogo é que para se iniciar uma amizade com alguém é necessário um elemento essencial: “o gostar dessa pessoa” e “querer o seu bem”. E para isso, não é prioritariamente necessário o conhecimento de elementos racionais, 14 TUCUNDUBA como saber o que essa pessoa faz, quanto dinheiro tem, onde estudou, onde mora, de quem é filho etc. ou em outras palavras, uma verdadeira amizade é algo essencialmente emocional, está mais ligada mais ao “sentir” do que ao “saber”. Isso nos faz refletir sobre quantas vezes deixamos passar em nossas vidas excelentes oportunidades de desfrutar de amizades sinceras simplesmente por sermos “racionais demais”. Zorba despreza e critica o excesso de racionalidade, que faz com que o homem corra o risco de passar sua existência “refletindo sobre a vida” ao invés de “viver”; isso fica evidente na última fala, quando retruca a respeito de “qual trabalho sabe realizar” e também fica evidenciado em um diálogo seguinte: Zorba – O que o senhor faz mesmo? Basil – Eu? Bem, sou escritor. Zorba – Desculpe, mas é o que parece mesmo... o que escreve? Romances? Basil – Não. Poesias, ensaios. Zorba – O que é isso? Basil – Ensaios? ... Zorba – Não... você pensa muito, esse é o seu problema. Gente esperta e merceeiros pensam tudo. Eu se fosse você, olharia para mim e diria... “Zorba, venha” ou “Zorba, não venha”. Entretanto, para uma existência plena e realmente intensa, além da amizade e de uma relação mais emocional do que puramente racional com a vida, outro elemento é indispensável, a liberdade. Essa necessidade é enfatizada ao longo de todo o filme como, por exemplo, na cena subsequente. Assim que Basil decide levar Zorba junto com ele, para trabalhar na mina que era de sua família e que estava desativada em Creta, eles dialogam: Zorba – Senhor... é um homem de sorte. Quando Zorba trabalha... nenhuma mina fica parada. Basil – Vai ser bom voltar ao trabalho... Também vai ser bom para o vilarejo. Parece que é pobre. Zorba – Vamos fazer todos felizes. Basil – E vamos nos divertir também. Vamos nadar e beber vinho. E você tocará o santouri (instrumento grego que Zorba carregava consigo). Zorba – (parecendo um pouco contrariado) Vamos fazer um trato, ou não poderei ir... No trabalho, você manda. Mas quando estivermos brincando ou cantando, sou meu próprio dono. Basil – Como assim? Zorba – Quero ser livre. Você concorda? Basil – Eu concordo. O Garçom trás dois copos de rum que Zorba havia pedido. Zorba – Tome. Basil – Mas eu não bebo rum. Zorba – Desta vez, vai beber. Por que começar com o pé errado? Basil – Bem, Zorba, que Deus o abençoe. Zorba – E o Diabo também, chefe! Esse diálogo é extremamente interessante, por evidenciar a condição, que embora angustiante, é básica para a felicidade, ou seja, a liberdade. Porém, o que Zorba defende não é uma liberdade totalmente leviana, irresponsável, ou ilimitada e é isso que se vê em sua fala “No trabalho, você manda. Mas quando estivermos brincando ou cantando, sou meu próprio dono”. De certo modo, o que Zorba implicitamente diz a Basil é que a realização pessoal, ou a construção de algo realmente útil na vida só ocorre por intermédio de uma amizade sincera e para existir a amizade, é preciso que exista a felicidade. Porém, para ser feliz, o primeiro passo é ser livre e o segundo passo é não querer escravizar ninguém, principalmente se essa escravidão vier pelo prazer... Talvez, por sua “herança grega” Zorba saiba (inconscientemente) que a liberdade plena é algo utópico na existência humana (pois a vida é maior que o homem) e que o preço da liberdade é a angústia. Assim, de modo implícito, o personagem deixa transparecer em suas atitudes que uma forma sábia de se relacionar com “o preço que a vida cobra do homem” é adaptar, é adequar a felicidade e a liberdade humana (que são limitadas) ao destino (o que a vida traz). Ou usando uma linguagem mais próxima da mitologia grega, “saber aproveitar aquilo que os Deuses nos trazem” e, sobretudo, “honrar a todos os Deuses” o do vinho (Dionísio), o da música (Apolo), a da sabedoria (Atena), a do amor (Afrodite), da família (Hera) e assim por diante. O filme todo é “recheado” de pequenas lições morais direcionadas ao saber viver aproveitando os pequenos momentos da vida (que em geral são os melhores). Um exemplo disso, é a cena na qual Zorba e Basil estão jantando no hotel da madame francesa (que era dona do hotel e há anos morava sozinha no mesmo) e Zorba incita Basil a dançar e a flertar com a Madame, num sentimento misto de divertimento próprio e de elogio àquela senhora que apresentava, por intermédio de suas falas, uma nostalgia melancólica e levemente entristecida, de quem já viveu “entre lençóis de seda e renda verdadeira” e que agora se encontrava sozinha, dirigindo um hotel abandonado num pequeno vilarejo esquecido em uma ilha grega... Nessa perspectiva, o filme também destaca elementos profundos da Psicologia, explicitando interpretações quase freudianas sobre a “natureza humana”. Isso ocorre, em alguns momentos em que se expõem elementos como a sexualidade e os desejos inconscientes humanos, que acabam por reger a vida consciente das pessoas, fazendo com que estas ajam de determinadas maneiras em suas vidas cotidianas. Tais elementos são percebidos em alguns personagens, que apresentam exacerbada “defesa da moral”, TUCUNDUBA 15 por meio da qual se comportam, de modo preconceituoso, arbitrário e cruel. Esses comportamentos são evidenciados em algumas cenas como, por exemplo, quando a jovem (e bela) viúva do vilarejo, debaixo de chuva, vai buscar sua cabra (que havia fugido) e que os homens, que estavam numa cantina, capturaram e esconderam dentro da mesma. Após alguns momentos de chacota e humilhação para com a viúva que tentava em vão recuperar sua cabra, mas era impedida pelos homens, Zorba (sob o olhar contrariado dos homens presentes) pega e devolve a cabra à viúva que vai embora debaixo da chuva, mas com o guarda-chuva oferecido por Basil e de algumas trocas de olhares. Depois que a viúva se afasta e um jovem que estava na cantina (e visivelmente apaixonado) corre atrás dela, sendo repreendido pelo pai que permanece na cantina, e que o chama de volta em vão, Zorba e Basil travam o seguinte diálogo, ainda sob os olhares contrariados, raivosos e angustiados dos homens, pelo fato dos dois estrangeiros “terem se metido em algo que não lhes dizia conta”. Zorba – Olhe para Mavrandoni (o pai do jovem que saiu correndo atrás da viúva)... Está queimando por dentro. 16 TUCUNDUBA Basil – Por quê? Zorba – Seu filho está apaixonado pela viúva... Mas ela o desprezou... quanto mais ela o despreza... mais ele a deseja. Veja... veja o rosto de todos eles... todos a desejam. E a odeiam porque não podem tê-la. Só um homem aqui... pode. Basil – Quem? Zorba – Você. Basil – Que bobagem. Zorba – Vi seus olhos quando ela olhou para você. Basil – Zorba, não comece... Nesse sentido, a evidência da sexualidade como “motor primeiro da vida” não passa despercebida no filme, bem como que a má condução desta “força divina e humana” como, por exemplo, pela repressão, pode levar a estados de vida angustiantes e tristes como o manifestado pelos homens na cantina. A sexualidade no seu sentido mais amplo (tão bem explorado pela Psicanálise) é o que impulsiona o homem para a vida, pois é puro movimento, é intensidade, é o que efetivamente dá sabor à existência. Ao seu modo, é isso que Zorba constantemente tenta evidenciar e que em alguns momentos chega a até a explicar, como quando ele e Basil passam na frente da casa da viúva à qual Zorba queria que Basil tentasse conquistar... Zorba – Chefe! Basil – Sim. Zorba – Chefe, ouça. Vá lá e bata à porta. Diga: “vim buscar meu guarda-chuva”... ela vai dizer para entrar. Basil – Não. Zorba – Chefe... não me faça ficar bravo. Basil – Não quero encrencas. Zorba – Chefe, a vida é encrenca. Só a morte é sossego... Estar vivo é procurar encrencas... E então? Basil – Não. A sexualidade, sendo essa “força motriz” responsável pelo movimento, possui um aspecto criativo que geralmente é pouco explorado por todos nós. No filme, isso é sutilmente apresentado em alguns momentos (embora muito provavelmente isso tenha ocorrido de modo mais inconsciente do que planejado), como, por exemplo, quando Zorba teve a idéia de pegar as árvores do bosque que pertenciam a um mosteiro próximo, para usar como vigas na Mina. Zorba parecia meio transtornado por estar tendo “idéias malucas”, parecia estar “possuído por um gênio” que ao mesmo tempo poderia ser benigno ou maligno, ou, para utilizar uma expressão mais grega, parecia possuído por um “Daimom”. Algum tipo de divindade inspiradora, mas que causa uma forte inquietação visceral, nos humores do corpo, com um tom de lascívia; portanto, algo profundamente criativo, luciférico, no sentido mais clássico da palavra. Ou, em outros termos, Zorba parecia estar completamente tomado pela paixão. E não é a paixão que nos torna excessivamente criativos e engenhosos? Para obter a resposta a essa pergunta, basta dar uma olhada em todas as “aventuras” dos personagens da mitologia grega e teremos uma idéia do poder criativo da paixão... Basil – O que foi Zorba... desembuche logo. Zorba – Chefe... confia em mim? Basil – Sim, confio. Zorba – E por quê? Basil – Porque você é você. Zorba – Mas não entende... Meu cérebro não é normal... ele... ele me dá idéias malucas... Eu posso arruiná-lo. Basil – Eu quero arriscar. Zorba – Diga isso de novo, chefe. Para me dar coragem. Basil – Eu quero arriscar. Zorba – Chefe... chefe... Basil – O que? Zorba – Sabe dançar? Basil – Dançar? Não, não. Zorba – Então saia do caminho. Pode ser que eu o derrube. Zorba dança de uma forma demoníaca, catártica. Seu rosto está transfigurado (digase de passagem, uma excelente interpretação de Quinn) ele dança como se estivesse “exorcizando seus demônios internos”, do mesmo modo que devem ter sido as antigas danças ritualísticas, não só nos tempos arcaicos gregos com os cultos de Pã e das Ninfas (e das demais divindades próximas à natureza), mas também, de todas as divindades de todos as culturas, em rituais que celebravam os mistérios relacionados à “vida e à morte”. Nesta cena, é interessante destacar que, em sua dança, em sua expressão facial, Zorba faz lembrar as Bacantes descritas por Eurípides, realizando seus cultos desvairados em todo monte Parnaso sob a influência de Dionísio. Outro elemento interessante é o contraste das expressões faciais de êxtase e exorcismo, de Zorba e de assombro e perplexidade, de Basil, que retratam, de forma majestosa, a dualidade Apolínea e Dionisíaca presentes na tragédia grega (e na vida) tão bem referenciada por Nietzsche. Zorba começa a dançar sozinho dentro da casa e lentamente, alguns homens que passavam com instrumentos, começam a se aproximar e observar o que está acontecendo. Aos poucos, começam a tocar e Zorba salta para fora da casa e começa a dançar com os outros gregos. Basil, aturdido com tudo o que está acontecendo e sem conseguir encontrar uma explicação racional para aquilo, manda que todos parem e que vão embora. Os homens obedecem, mas Zorba continua a dançar sozinho, até cair no chão, exaurido e esgotado, como se tivesse acabado de participar de um ritual de autoflagelação. Então reinicia o diálogo: TUCUNDUBA 17 Basil – Zorba, Zorba! Você está bem? Zorba – Agora... agora, eu posso. Posso falar de novo. Basil – O que deu em você? Zorba – Quando um homem está cheio... o que pode fazer? Explodir? Quando meu filhinho, Dimitri, morreu... Todos choraram... Eu? Eu me levantei... e dancei. Eles disseram... “Zorba está louco”. Mas foi a dança... só a dança que fez a dor diminuir. Ele foi meu primeiro filho... e só tinha três anos.... Quando estou feliz é a mesma coisa. Basil - Vamos entrar... você está ficando resfriado. Observando a fala de Zorba, “Quando um homem está cheio... o que pode fazer? Explodir?” somos levados a questionar: existe uma maneira mais saudável de evitar uma explosão (ou uma implosão) do que extravasar o que se tem em excesso, seja dor ou alegria? Provavelmente a resposta será não, porém a duvida residirá sobre a “maneira correta” de realizar esse extravasamento... o que “os outros irão dizer” se realmente extravasarmos o que estamos sentindo do jeito que estamos sentindo? Será salutar ser autêntico? Ou além do risco da explosão (ou da implosão) ainda poderemos ser taxados de loucos? Essa pequena, porém marcante cena de Zorba nos faz notar que o que muitas vezes pode ser entendido pela maioria - e as vezes nós fazemos parte dessa maioria como manifestações de comportamentos inadequados, cruéis ou insanos, podem ser, na verdade, pequenos momentos de lucidez. Extravasar é, por certo, uma das melhores formas de exorcizar nossas dores internas e talvez seja até o melhor remédio para isso; o único problema é que quem extravasa está sujeito ao julgamento moral daqueles que não têm coragem (ou como diria Nietzsche, não têm força) para fazer o mesmo. Portanto, aquele que se atreve a extravasar pode acabar pagando socialmente um preço alto pela sua “lucidez”, como geralmente aconteceu ao longo da história com todos os que foram realmente autênticos. Entretanto, estar disposto a pagar o preço por essa autenticidade pode ser um indicativo de um comportamento ético para consigo próprio e pode fazer com que o homem 18 TUCUNDUBA evolua para uma condição moral mais elevada de “entendimento do outro” e, sobretudo, do respeito às diferenças, como pode ser observado em outro momento do filme: Zorba – Chefe, agora posso contar um segredo. Nesses dias todos, não trabalhei nem dormi. Sabe por quê? Por causa da viúva. Não me entenda mal, sei que ela é boa demais prá mim. Mas pensar que ela não tem ninguém... era demais... muito bem, ria. Mas lembrese disso. Se uma mulher dorme sozinha, é vergonha de todos os homens. Deus tem um coração enorme... Mas tem um pecado que Ele não perdoa... uma mulher chamar um homem para a sua cama e ele não ir. Sei disso porque um turco sábio me falou. Basil – Um turco? E você, sendo grego, acreditou nele? (A Grécia foi dominada pela Turquia por vários séculos e só conseguiu sua independência após várias e sangrentas guerras por libertação). Zorba – Vou me lavar... Basil – Achei que os gregos e os turcos não se falassem... que só lutassem. Não me diga que nunca foi à guerra. Zorba – Não gosto dessas conversas idiotas. Basil – O que tem de idiota... em lutar por seu país? Zorba – Desculpe, chefe. Fala como um professor. Pensa como um professor. Como poderia entender? Basil – Claro que posso. Zorba – Com a cabeça, sim. Diz: “Isso é certo. Isso é errado.” Mas quando fala... veja seus braços... suas pernas, seu peito. São mudos. Não dizem nada. Então como pode entender? Basil – Está inventando desculpas. Não acredito que se preocupe com seu país. Zorba – Não fale assim comigo! Veja aqui, aqui e aqui (Zorba abre a camisa e mostra o peito com três marcas de ferimentos de balas). Nada nas costas! Fiz coisas pelo meu país que o deixariam arrepiado. Já matei, queimei vilarejos, violentei mulheres. Por quê? Porque eram turcas, ou búlgaras. Fui idiota a este ponto! Agora, olho para um homem e digo: “ele é bom, ele é mau”. Que me importa se é grego ou turco? Com a idade, juro pelo pão que eu como... que até isso parei de dizer. Bom ou mau, que diferença faz? Todos terminam da mesma forma... ou seja, alimentando os vermes. De certa forma, o que realmente fascina no filme é o modo como ele vai de um tema suave (coloquial, corriqueiro) para um tema trágico e volta a novamente ao suave com uma destreza e uma poesia que impressiona e mostra que, embora alguns eventos da vida sejam “leves”, isso não significa que sejam menos profundos do que os eventos “trágicos”. Nesse sentido, o filme não é composto só de alegrias e nem pretende ser uma versão grega de Polyana, mostrando que a vida é uma maravilha e que o único problema é que não sabemos aproveitála. Ao invés disso, o filme também explora o lado torpe, mesquinho, invejoso, rancoroso e “mal” do ser humano, que surge quando este não deixa aflorar em sua existência o amor e o prazer pela vida, tornando-se assim um ser amargo e tristem por não ter coragem de realizar as coisas que deseja, como alertam os trabalhos de autores como Freud, Reich, Deleuze e Nietzsche. Tais manifestações de amargura, rancor e tristeza são apresentadas em algumas relações dos personagens (evidenciando bem o aspecto negativo da “natureza humana”). Por exemplo, quando Basil mente para a madame francesa, dizendo que Zorba havia escrito uma carta na qual dizia que queria se casar com ela, quando, na verdade, na carta Zorba estava se gabando de suas “peripécias” em um bordel em outra cidade. Basil quando mentiu ou “brincou” não revelando a verdade sobre o que estava escrito, não agiu de uma forma ingênua e pueril (um comportamento típico que o personagem de Zorba representava), mas agiu intencionalmente movido pela raiva, rancor ou inveja, de não estar fazendo o mesmo que Zorba, ou seja, entregando-se a suas paixões. Agindo assim, Basil agiu de uma forma maliciosa, o que acabou obviamente ocasionando um “mal”. Outro exemplo desse “aspecto obscuro da natureza humana” (que muitos autores da psicologia, psicanálise e filosofia preferem representar como uma “natureza humana distorcida”) é demonstrado pela execração pública, com o apedrejamento e assassinato por degolamento da jovem viúva, que havia permitido que Basil dormisse com ela uma TUCUNDUBA 19 noite em sua casa. A entrada de Basil na casa da viúva foi vista por um homem da vila, que logo tratou de contar aos demais e estes, no mesmo instante, começaram infernizar o jovem apaixonado e não correspondido por ela. O jovem se suicidou. A viúva, obviamente, não teve responsabilidade nenhuma sobre esse suicídio, entretanto, todos os moradores da vila (que na verdade estavam há anos vivendo vidas reprimidas e cultivando internamente suas “paixões tristes”), consideraram-na responsável pela morte do jovem. A viúva permanecendo viva representava uma ofensa a todos os outros que não conseguiam ter seus desejos realizados (e que nunca teriam, simplesmente, por terem medo de se entregar à vida), “não restando” assim alternativa, a não ser a expiação. A representação dramática do seu assassinato em público, sob o “consentimento” de todos os moradores da vila, ilustra bem uma clássica perversão patológica da psicologia das massas, que sempre consideram que o “mal” está fora, no “outro” e que a melhor forma de eliminar “o mal” é eliminando “o outro”. Esse exemplo clássico de “natureza humana distorcida”, evidenciada na ficção, é facilmente encontrada ao longo da história da humanidade como, por exemplo, na caça às bruxas no período medieval ou no holocausto durante a segunda grande guerra. A cena do assassinato da viúva é uma cena 20 TUCUNDUBA forte, na qual o diretor do filme fez diversas tomadas fixando as expressões faciais de várias das pessoas presentes no momento, buscando captar as diversas emoções ali constantes. A cena mostra a viúva literalmente sendo sacrificada para que a ordem social pudesse continuar existindo... ela foi apenas o bode expiatório da frustração de todos os presentes. A cena faz o espectador perguntar no fundo de sua alma... não é isso que nós ainda hoje fazemos? Agora não mais com facas em praças públicas, mas com pensamentos, pequenos chistes, e pequenos comentários maldosos “entre amigos” sobre o “comportamento desviante” de outras pessoas que decidem ser autênticas? Outro ponto do filme que impressiona pela morbidez e por apresentar de modo “nu e cru” a que ponto pode descer a mesquinhez e a falta de valores de pessoas frustradas e possuídas por “paixões tristes”, que não se permitem viver a vida em toda intensidade que ela se apresenta, é o momento da morte da madame francesa. A pobre madame, ainda moribunda e circundada apenas por Zorba e Basil, vê entrar em seu quarto duas velhas gregas carpideiras com rostos contorcidos num misto de cobiça e espanto, semelhantes a personagens de um quadro de Bosch. Aquelas senhoras, personificando verdadeiras “aves de mau agouro” estavam ali mais para observar o que poderia ser surrupiado após a morte da moribunda, do que para chorar por aquele momento final, pois como todos na vila sabiam, a madame não tinha herdeiros e, com sua morte, todos os seus bens, apesar de serem de pouquíssimo valor, iriam para o Estado. A ganância, o querer sempre a mais, o muito que nunca é suficiente, essa outra distorção pérfida que nasce no coração humano, muito provavelmente pelo medo do abandono, da perda e da necessidade, que faz com que o homem passe por cima de todos os valores, querendo sempre levar vantagem em qualquer situação, faz com que as pessoas cometam atitudes bizarras e tragicômicas. Um exemplo disso é dado na cena em que os moradores da vila, após a confirmação da morte da madame, começam a saquear seu hotel e a levar qualquer coisa que pudesse ser carregada, mesmo sem saber ao certo para que aquilo que estava sendo roubado lhes seria útil. O que fica evidenciado no filme é que nesse ponto, quando se perde o sentindo da existência, por exemplo, desrespeitando os grandes mistérios (como a passagem da vida para morte), o ser humano se animaliza... Porém a poesia e a beleza de “Zorba, o Grego” reside justamente no fato de não negar a existência desse lado torpe do ser humano (ou da humanidade). Assim, por não negar essa existência, o filme não se torna (como dito anteriormente) uma versão masculina de Polyana, mas ao invés disso, reconhece a existência desses elementos na nossa vida. Nesse sentido, faz lembrar que a vida é mais forte do que a mesquinhez de alguns (mesmo que esses “alguns” seja toda a “massa”) e que, mesmo com todas as agruras e desventuras, é possível encontrar a felicidade em pequenas coisas da vida (talvez, na verdade, as grandes coisas) como a amizade, o trabalho, a dança, os ideais, num garrafão de vinho, no sexo e, de vez em quando, na total inexistência da ruminação mental que realizamos sobre todas as nossas ações no mundo... Zorba é uma celebração à vida, à amizade e ao prazer que se pode ter em estar vivo. É uma tentativa de dizer que a vida existe para ser vivida ao invés de somente observada e que para ser vivida de modo adequado, é preciso intensidade, paixão. É um chamado para que se experimente tudo o que a existência nos oferece e uma advertência de que, nas aparências, as experiências podem ser percebidas em aspecto bons ou ruins, mas que em essência constituem um todo chamado vida. Assim sendo, para finalizar, nada mais adequado do que o último diálogo entre Basil e Zorba, logo após a engenhoca montada por Zorba (para fazer descer toras de madeira do alto da montanha para servirem de vigas para a mina) falhar, desmontando-se toda e quase matando as pessoas que estavam ali assistindo o espetáculo. Esse acontecimento inviabilizou totalmente qualquer possibilidade de reativar a mina e ficou evidente que a permanência de Basil em Creta tinha chegado ao fim e que ele, muito em breve, partiria de regresso ao ambiente que lhe era mais favorável e familiar. Zorba – Em quanto tempo, chefe? Basil – Não sei... Alguns dias. Zorba – O que vou fazer... sem sua companhia? Basil – Anime-se... Vamos nos ver novamente. Zorba – Não. Vai embora e vai ficar lá. Com seus livros... à sua saúde (Zorba levanta o copo oferecendo um brinde). Basil – À sua, Zorba. Zorba – Que droga, chefe. Gosto muito de você prá não dizer nada. Você tem tudo... menos uma coisa: Loucura! Um homem precisa ser um pouco louco, senão... Basil – Senão? Zorba – Ele nunca vai ousar e se soltar e ser livre... está bravo comigo? Basil – Ensine-me a dançar. Por favor? Zorba – Dançar? Disse dançar? Venha cá meu rapaz! O filme termina com a clássica cena que ficou eternizada no mundo de cinema que é a de Zorba e Basil dançando sozinhos na praia. Nessa última cena, Basil deixa claro que tudo o que passaram na ilha não foi em vão e que apesar de não conseguirem o seu principal intento (e na vida geralmente é assim...) que era reativar a mina, algo havia mudado naquele homem tão britânico e comedido, que aquela experiência o havia ensinado a não levar tudo tão a sério e aproveitar mais as pequenas maravilhas de cada instante, tudo isso resumido numa simples, curta e emblemática frase: “Zorba, ensine-me a dançar!!!” TUCUNDUBA 21
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