Editorial Psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado
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Editorial Psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 Editorial Memorandum: memória e história em psicologia Número 24 Psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado A edição 24 da Memorandum traz contribuições que se agrupam por volta de três eixos temáticos: a psicologia no contexto histórico brasileiro; a psicologia e a fenomenologia; psicologia, história, cultura e sociedade. A inserção da psicologia no contexto histórico brasileiro é tema de dois artigos: Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros de Scarparo, Sottili, Albert e Jesus estuda, numa perspectiva histórica, as práticas psicológicas no ano da regulamentação da psicologia no Brasil especialmente através do jornal gaúcho Correio do Povo. Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil de Gianordoli-Nascimento, Silva, Cruz, Oliveira, Veloso e Rabelo analisa entrevistas com mulheres que foram presas e torturadas no contexto da ditadura militar brasileira (1964-1985): aponta a relevância das atividades culturais como recurso para crítica, resistência e enfrentamento do autoritarismo. As relações fecundas entre psicologia e fenomenologia são evidenciadas por três artigos: Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica de Freitas estabelece uma interessante comparação entre as concepções do filósofo americano James B. Pratt (1875-1944) e do psiquiatra suíço Herman Rorschach (1884-1922) a partir de uma leitura fenomenológica fundamentada em Husserl e Merleau-Ponty. A relação com o outro em Sartre de Furlan investiga os diversos sentidos da relação com o outro na filosofia de Sartre tematizados por Foucault e Merleau-Ponty. "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano de Veríssimo analisa a concepção lacaniana do estádio do espelho em diálogo com as teorias de Wallon, Sartre e Merleau-Ponty, apontando a relação entre psicanálise e fenomenologia. As relações entre psicologia, história, cultura e sociedade são discutidas segundo métodos e objetos distintos por dois artigos: Por uma história da psicologia histórica de Waeny propõe um estudo original sobre o termo "psicologia histórica" mostrando que, apesar de estreitamente relacionado aos historiadores dos Annales, seu uso ultrapassa aquele âmbito e que a história da psicologia histórica não se restringe ao contexto da psicologia histórica francesa de Ignace Meyerson. From multiculturalism to interculturality: through the relational reason de Donati discute a ideia de multiculturalismo, termo que se difundiu no Ocidente durante a década de 1960, fazendo uma análise crítica de sua utilização; aponta a categoria mais recente de interculturalidade, indicando a necessidade de novas semânticas da Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 diversidade inter-humana e propondo o conceito de "razão relacional" para pensar uma nova ordem social capaz de humanizar os processos de globalização e as migrações crescentes. Por fim, a resenha de Massimi sobre a Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos organizada por Leite traz ao conhecimento do leitor de Memorandum uma interessante iniciativa de preservação da cultura regional brasileira. De modo geral, portanto, a edição documenta diversas formas de inserção da psicologia nos contextos amplos da cultura e da sociedade. A complexidade destes contextos é evidente na atualidade pela própria diversidade de âmbitos sócio-culturais e das relações humanas que neles se configuram, somada a sua grande visibilidade no nível mundial. Neste sentido, faz-se cada vez mais necessário o aprimoramento dos recursos conceituais e metodológicos por parte da psicologia que chegue a viabilizar o diálogo vital e indispensável interno às ciências humanas e com a filosofia. Abril de 2013 Miguel Mahfoud Marina Massimi Editores Editorial Memorandum: memory and history in psychology Issue 24 Psychology and sociocultural biodiversity in the globalized world The 24th edition of Memorandum brings contributions which group themselves in three thematic axes: psychology in Brazilian historic context; psychology and phenomenology; psychology, history, culture and society. The insertion of psychology in Brazilian historic context is a topic of two articles: Extra! Brazilian psychology in the news in 62: brief time, lasting meanings by Scarparo, Sottili, Albert and Jesus studies, in a historical perspective, the psychological practices in the year of the regulation of psychology in Brazil, specially through the gaucho newspaper Correio do Povo. Promises of life in times of threat: women, music and resistance during the military dictatorship in Brazil by Gianordoli-Nascimento, Silva, Cruz, Oliveira, Veloso e Rabelo analyzes interviews with women who were arrested and tortured in the context of Brazilian military dictatorship (1964-1985): it shows the relevance of cultural activities as an approach to critical opposition, resistance and a way to face authoritarianism. The fruitful relations between psychology and phenomenology are demonstrated in three articles: Pratt and Rorschach: a phenomenological approach by Freitas establishes an Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 interesting comparison between the conceptions from the American philosopher James B. Pratt (1875-1944) and from the Swiss psychiatrist Herman Rorschach (1884-1922) based on the phenomenological approach from Husserl and Merleau-Ponty. The relationship with the other in Sartre by Furlan investigates the various meanings of the relationship with the other in the philosophy of Sartre, addressed by Foucault and Merleau-Ponty. "Place ofthe imaginary of seeing": dialogues based on Lacan's mirror by Veríssimo analyses the lacanian conception of mirror stage in dialogue with theories of Wallon, Sartre and Merleau-Ponty, demonstrating the relationship between psychoanalysis and phenomenology. The relations between psychology, history, culture and society are discussed according to distinct methods and objects in two articles: For a history of the historical psychology by Waeny proposes an original study about the term "historical psychology" showing that although closely linked to the historians from the Annales, its use goes beyond that scope and that the history of historical psychology is not restricted to the context of French historical psychology from Ignace Meyerson. From multiculturalism to interculturality: through the relational reason by Donati discusses the idea of multiculturalism, term that was spread in the Occidental world in the 60'sdoing a critical analysis of its use; it demonstrates the most recent category of interculturality, indicating the necessity of new semantics of the interhuman diversity and proposing the concept of "relational reason" to think of a new social order which is capable of humanizing the globalization processes and the growing migrations. Finally, the digest by Massimi about Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos organized by Leite provides the reader of Memorandum the knowledge of an interesting initiative of Brazilian regional culture preservation. All in all, this edition documents various forms of insertion of psychology in the ample contexts of culture and society. The complexity of these contexts is evident nowadays due to the diversity of socio-cultural scopes and human relations which take place, added to its high visibility. This way, it is increasingly necessary that psychology improve conceptual and methodological resources to make viable the vital and indispensable dialogue contained in human sciences and with philosophy. April 2013 Miguel Mahfoud Marina Massimi Editors Equipe/ Editorial Board Editores Miguel Mahfoud Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 Marina Massimi Universidade de São Paulo Brasil Editores Assistentes Roberta Vasconcelos Leite Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Yuri Elias Gaspar Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Consultores externos Ad Hoc / Ad Hoc Consultants - Memorandum 24 Carmen Lúcia Cardoso Universidade de São Paulo Brasil Cristiano Roque Antunes Barreira Universidade de São Paulo Brasil Cristina Lhullier Universidade de Caxias do Sul Brasil Francisco Teixeira Portugal Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil Giancarlo Petrini Universidade Católica do Salvador Brasil Helena Beatriz Kochenborger Scarparo Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Brasil Lílian Perdigão Caixêta Reis Universidade Federal de Viçosa Brasil Márcio Luiz Fernandes Pontifícia Universidade Católica do Paraná Brasil Marília Ancona Lopez Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 diversidade sociocultural no mundo globalizado. de , , de Marta Helena de Freitas Universidade Católica de Brasília Brasil Mônica Yumi Jinzenji Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Paulo José Carvalho da Silva Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Pierre Sanchis Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Paulo Roberto de Andrada Pacheco Universidade Presbiteriana Mackenzie Brasil Raquel Martins de Assis Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Sávio Passafaro Peres Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Thiago Antonio Avellar de Aquino Universidade Federal da Paraíba Brasil Conselho Editorial/Advisory Board Adalgisa Arantes Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Alcir Pécora Universidade de Campinas Brasil Angela Ales Bello Pontificia Universitas Lateranensis Italia Aníbal Fornari Universidad Católica de Santa Fe Argentina Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 Anna Unali Università La Sapienza Italia Antonella Romano École des Hautes Études en Sciences Sociales France Belmira Bueno Universidade de São Paulo Brasil Caio Boschi Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Brasil Celso Sá Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil Danilo Zardin Università Cattolica Sacro Cuore Italia Eclea Bosi Universidade de São Paulo Brasil Francesco Botturi Università Cattolica Sacro Cuore Italia Franco Buzzi Università Cattolica del Sacro Cuore Italia Gilberto Safra Universidade de São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Helio Carpintero Universidad Complutense España Hugo Klappenbach Universidad San Luis Argentina Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 diversidade sociocultural no mundo globalizado. de , , de Isaías Pessotti Universidade de São Paulo Brasil Janice Theodoro da Silva Universidade de São Paulo Brasil José Carlos Sebe Bom Meihy Universidade de São Paulo Brasil Luís Carlos Villalta Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Luiz Jean Lauand Universidade de São Paulo Brasil Maria Armezzani Università degli Studi di Padova Italia Maria do Carmo Guedes Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Maria Efigênia Lage de Resende Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Maria Fernanda Diniz Teixeira Enes Universidade Nova de Lisboa Portugal Martine Ruchat Université de Genève Suiss Michel Marie Le Ven Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Monique Augras Universidade Católica do Rio de Janeiro Brasil Olga Rodrigues de Moraes von Simson Universidade de Campinas Brasil Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 Pedro Morande Universidad Católica de Chile Chile Pierre-Antoine Fabre École des Hautes Études en Sciences Sociales France Regina Helena de Freitas Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Sadi Marhaba Università degli Studi di Padova Italia William Barbosa Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil Conselho Consultivo/ Board of editorial consultants Adone Agnolin Universidade de São Paulo Brasil Ana Maria Jacó-Vilela Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil André Cavazotti Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Arno Engelmann Universidade de São Paulo Brasil Bernadette Majorana Università degli Studi di Bergamo Italia Davide Bigalli Università degli Studi di Milano Italia Deise Mancebo Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 Edoardo Bressan Università degli Studi di Milano Itália Eugénio dos Santos Universidade do Porto Portugal Giovanna Zanlonghi Università Cattolica del Sacro Cuore Italia José Francisco Miguel Henriques Bairrão Universidade de São Paulo Brasil Marcos Vieira da Silva Universidade Federal de São João del Rei Brasil Maria Luisa Sandoval Schmidt Universidade de São Paulo Brasil Marisa Todeschan D. S. Baptista Universidade de São Marcos Brasil Mitsuko Aparecida Makino Antunes Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Nádia Rocha Faculdade Ruy Barbosa Brasil Rachel Nunes da Cunha Universidade de Brasília Brasil Raul Albino Pacheco Filho Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Vanessa Almeida Barros Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2013). Editorial: psicologia e diversidade sociocultural no mundo globalizado. Memorandum, 24, 1-10. Recuperado em ____ de ______________, _______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/editorial24 ^ Equipe técnica/ Technical Team Lucas Albertoni - tradução português-inglês editorial e revisão abstracts. Abraão Coelho - desenvolvedor web. Apoio/ Supported by LAPS - Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FAFICH/UFMG. Núcleo de Epistemologia e História das Ciências Miguel Rolando Covian, Universidade de São Paulo - USP/Ribeirão Preto. Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, USP/Ribeirão Preto. A revista eletrônica Memorandum é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa "Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Universidade de São Paulo - USP/Ribeirão Preto. The electronic scholarly journal Memorandum is an initiative of the Research Group "Estudos em Psicologia e Ciências Humanas: História e Memória", linked to Departamento de Psicologia of Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas of Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG and to Departamento de Psicologia e Educação of Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras of Universidade de São Paulo - USP/Ribeirão Preto. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ editorial24 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros Extra! Brazilian psychology in the news in 62: brief time, lasting meanings Helena Beatriz Kochenborger Scarparo Thais de Souza Sottili Carla Estefanía Albert Luciana Oliveira de Jesus Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Brasil Resumo O artigo busca compreender práticas psicológicas no ano da regulamentação da psicologia no Brasil. A pesquisa se baseia em matérias sobre as relações políticas, o comportamento cotidiano e a divulgação científica do jornal Correio do Povo. A coleta ocorreu no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre onde foi feita a seleção e fotografia de materiais referentes à psicologia. Posteriormente, foi criado um banco de dados para análise temática e discussão do material. Dentre os resultados sobressaíram-se algumas estratégias voltadas para a legitimação da área como a inserção na mídia impressa com a divulgação de cursos, pesquisas, debates e aconselhamentos. Foram evidentes as correspondências entre as práticas psicológicas explicitadas no Jornal e o contexto sócio político da época pautado pela ênfase no desenvolvimento econômico e tecnológico, pela evitação de conflitos e pela crença de que a ciência psicológica poderia promover a humanização das relações. Palavras-chave: história da psicologia; construção de conhecimento; história social Abstract This research paper aims to understand the psychological practices in 1962, the year of formalization of Psychology in Brazil. The research is based on contents about political relations, behavior and science popularization in the newspaper "Correio do Povo". Data were collected at Hipólito José da Costa Museum of Communication in Porto Alegre where all material related to psychology was selected and photographed. Afterwards, a database for analysis and material discussion was created. Among the results, some strategies oriented to the field's legitimation stood out, as the insertion in the print media with the promotion of courses, researches, debates and advices. There was an evident correspondence between the psychological practices explained in the newspaper and the socio-political context guided by the economical and technological development emphasis, by the conflict avoidance and by the belief in the psychological science as a promoter of humanization in relationships. Keywords: history of psychology; construction of knowledge; social history Introdução O presente artigo apresenta parte dos resultados do projeto de pesquisa "A construção da Psicologia no Rio Grande do Sul: das práticas sociais à produção de conhecimentos Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 através de múltiplas metodologias"1. Trata-se de uma investigação de cunho histórico, do tipo descritivo-interpretativa, que explora indicadores teóricos e empíricos capazes de descrever e explicar processos de instituição e regulamentação da Psicologia no Brasil, mais especificamente, no cenário sul-rio-grandense. Neste artigo são descritos os resultados do subprojeto que examina os sentidos atribuídos à Psicologia, expressos pela mídia impressa, em 1962, no jornal Correio do Povo - criado no final do século XIX e que permanece em circulação até o presente. O trabalho se insere no âmbito da História Social, pois se propõe a entender as condições para o estabelecimento da psicologia em contexto, considerando os processos sociais nos quais essa área se constituiu e tem se consolidado (Barros, 2005). Nessa perspectiva, o estudo buscou articulações entre as especificidades históricas e políticas do início da década de 1960 e as práticas relacionadas ao conhecimento psicológico naquele contexto. Desse modo, se procurou contemplar a historicidade das ideias, da linguagem utilizada e das ações políticas articuladas à inserção naquelas circunstancias. É evidente que não pretendemos com isso tarefas impossíveis como esgotar o tema ou mesmo acessar com precisão as especificidades da época. A proposta do estudo é favorecer uma aproximação das condições da emergência, circulação e instituição da psicologia como ciência e profissão no ano de sua regulamentação legal no Brasil, evento que, no presente ano motiva comemorações da categoria profissional pela passagem do cinquentenário. Como já mencionado, a investigação aqui descrita teve como fonte o jornal Correio do Povo, do ano de 1962. Trata-se de um dos Jornais mais tradicionais do Estado, que é editado desde 1895 até o presente, com expressiva penetração. No período estudado, esse periódico era leitura usual da sociedade gaúcha e suas matérias compunham as opiniões e os diálogos cotidianos da população. Nesse período, a televisão era artigo raro e a grande maioria da população recebia notícias sobre o que se passava no mundo, especialmente através das rádios e dos jornais. Vale ressaltar que, no que se refere aos parâmetros da pesquisa histórica, um período de cinquenta anos é, obviamente, um breve espaço. Por outro lado, se observarmos as peculiaridades do contexto, a intensidade das trajetórias percorridas, assim como a diversidade das experiências e dos sentidos formulados no decorrer desse tempo, poderemos avaliar a importância de conhecer as especificidades dessa etapa de construção da Psicologia no Brasil. Tratou-se de um período cujas ações conjugaram ideais de construção de um mundo pacífico no pós-guerra e cenários políticos conturbados. Esses eram marcados pela intolerância às diferenças ideológicas e por mudanças nas relações 1 Pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq e FAPERGS pela equipe do Grupo de Pesquisa "Psicologia e Políticas Socias - História, Memória e Produção do Presente", do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 ^ sociais expressas, no Brasil, em transformações na esfera do trabalho, da educação, da política e da ciência. A Segunda Guerra Mundial pode ser considerada acontecimento impactante para a construção das ciências em geral, o que incluiu, evidentemente, a psicologia (Farr, 2000). Após esse episodio, alterações nos sentidos de ciência e tecnologia denotavam uma grande valorização das atividades ditas científicas e de seus produtos que prometiam, num futuro próximo, a conquista do espaço, avanços na medicina, facilidades da automação e maior conforto associado á vida cotidiana. Ao mesmo tempo, estabeleciam-se questionamentos quanto à responsabilidade e aos efeitos da produção de conhecimento científico. O episódio da destruição de Hiroshima e Nagasaki através da tecnologia nuclear, por exemplo, era alvo de profundas discussões e intensas preocupações com a possibilidade de mais uma guerra na qual este tipo de armamento ou outros mais potentes e destruidores fossem utilizados. Tais perspectivas transformaram o fazer científico e as práticas dele decorrentes e, ao mesmo tempo, legitimaram alguns espaços e atribuições para cada área. É o caso da avaliação psicológica no decorrer e após a Segunda Guerra Mundial (Bender, 1978; Farr, 2000). O período de 1962, desta forma, foi um momento de muitas mudanças e de reestruturações em nível global que repercutiram no contexto político brasileiro da época e contribuíram para fortalecer os movimentos de oficialização e para consolidar a regulamentação da psicologia. Com isto, torna-se relevante uma reflexão histórica do contexto político brasileiro. A seguir apresentaremos os resultados de nossos esforços para contribuir com esta reflexão. Primeiramente faremos algumas considerações acerca do contexto brasileiro na década de 1960. Logo após apresentaremos a descrição dos procedimentos metodológicos para a efetivação do estudo. Em seguida serão detalhados sentidos expressos no jornal sobre o contexto da época e logo em seguida trataremos das especificidades dos movimentos para legitimação da área, tendo em vista o campos da saúde mental, as especificidades da ciência psicológica e as características da profissão em tempos de regulamentação. Algumas considerações sobre o contexto histórico-político brasileiro na década de 1960 Com a renúncia do presidente Jânio Quadros no dia 25 de agosto de 1961, tomou posse o então vice-presidente João Goulart ou "Jango", como era conhecido popularmente. Ele assumiu o poder, em um sistema parlamentarista, após intensa negociação política pela campanha da legalidade (Fausto, 2009). Entre os fatores que levavam a esta situação foi determinante a rejeição por parte dos ministros militares da época à postura política e à liderança exercida por ele. Por exemplo, na época da renúncia de Jânio Quadros, Jango estava em viagem diplomática para a China - país de regime comunista e, portanto opositor do ideário estadunidense. Como vice-presidente na época, buscava estabelecer uma política Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 externa independente. Desejava o livre trânsito comercial tanto com o lado socialista quanto capitalista e tinha como proposta o desenvolvimento nacionalista com a ampliação da democracia a partir das "Reformas de Bases", o que não agradava interesses políticos hegemônicos na época. Assim, em período conturbado politicamente, o Brasil estava fragilizado institucionalmente num contexto que acirrava, localmente, o clima global de desconfiança, característico do período pós Segunda Guerra Mundial (Fausto, 2009; Ferreira & Delgado, 2003). Este período de transição entre o governo de Juscelino Kubitschek e a ditadura que se instauraria a partir de 1964 foi conturbado. As matérias jornalísticas pesquisadas mostram influencias da Guerra Fria nas relações políticas brasileiras que se caracterizavam pelos antagonismos ideológicos, como, por exemplo, entre comunistas e não comunistas. Também foram noticiadas manifestações de contrariedade com as circunstancias políticas - como a organizada pela União Nacional dos Estudantes em 01 de junho ou a greve geral no dia 05 de julho. Especificamente no que se refere à psicologia no Brasil dessa época, algumas peculiaridades desenhavam-se já no início da década de 1960. Por um lado, havia a perspectiva da categoria profissional que recentemente tinha conquistado sua regulamentação como profissão através da Lei 4119/1962. Era evidente entusiasmo daqueles que, de alguma forma, se mobilizaram para tal e que tinham, como projeto, dedicar-se à consolidação da área e às práticas desenvolvidas com apoio no conhecimento psicológico. Por outro, se estabeleciam no imaginário social, ideais, expectativas e atribuições para a profissão recém-oficializada (Scarparo, 2005). Emergia assim, um complexo campo no qual se entrecruzaram territórios, se inauguraram demandas e se estabeleceram fronteiras. Tais processos transformaram as paisagens profissionais compostas no Brasil em um tempo global de crise e mudanças no qual se discutia a urgência de reformas institucionais, num projeto de intensificação de um modelo econômico pautado pela necessidade de estabelecer as bases de uma economia industrial madura (Baer, 1986; Soares, 1981). Podemos afirmar, então, que a psicologia brasileira, oficializada em 1962, instituiu-se no cenário global da Guerra Fria e, localmente, na interface da urgência em implementar mudanças econômicas, políticas e sociais com a crença nas amplas possibilidades da profissão recém oficializada em contribuir com o projeto de construção de uma nação próspera e desenvolvida. O texto que segue relata uma das compreensões possíveis desse processo quando busca coletar materiais da mídia impressa, analisar e discutir as expectativas, as demandas e os fazeres associados à psicologia presentes nessa fonte. Procedimentos metodológicos: a escolha do jornal como fonte Os resultados aqui apresentados se originam da coleta e análise de conteúdos sobre a Psicologia presentes no jornal "Correio do Povo" em 1962. Hoje, é um dos periódicos mais Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 ^ antigos ainda ativos no Rio Grande do Sul. Em 1962 já tinha expressiva tiragem e circulação, o que nos fez optar por esse periódico como fonte para coleta dos dados empíricos. As edições consultadas pertencem ao acervo do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, localizado em Porto Alegre. Após selecionar e fotografar todos os materiais referentes à psicologia que se evidenciaram no jornal, no ano mencionado, foi montada uma coleção de imagens e textos. A coletânea foi disposta de acordo com a data e o tipo de material jornalístico (coluna, reportagem, anúncio ou publicidade). Foram examinados todos os exemplares referentes ao ano de 1962 e selecionados o total de 103 matérias que tinham relação com as práticas psicológicas do período. Além da busca específica pelos conteúdos referidos, foram fotografadas também todas as capas dos jornais selecionados. Tal iniciativa auxiliou na compreensão, através do teor das manchetes de capa, dos contextos sociais e políticos que marcaram os temas de cada edição. Nesse processo de organização foi composta uma ampla coleção de imagens e textos, o que resultou num corpus que denotou a riqueza e a complexidade do objeto de análise. Estudar os contextos de inscrição e escrita dos elementos que formam o corpus de análise auxilia o conhecimento da direção e da força das argumentações, das características do vocabulário da época e dos elementos geradores das práticas sociais formuladas. Desse modo podemos falar em dois planos para o entendimento do material: um mais evidente e, até, óbvio e outro mais interpretativo e decorrente das mobilizações aguçadas pelo material examinado. Quando associamos o conteúdo material, o simbólico e os contextos ocorre a intensificação da expressão do potencial de análise do material, pois se vislumbram diferentes focos de percepção do objeto de estudo (Hernandez, Scarparo, 2008). Tal processo permite também reconhecer as contingências datadas das fontes e sondar sentidos de questões e argumentos que foram próprios da época. Assim, não basta, apenas, examinar as imagens eos textos coletados. Os sentidos revelados por cada material coletado são inseparáveis dos contextosnos quais se instituíram (Penn, 2010). Para a análise do material coletado buscamos uma proposta teórico-metodológica que situasse a produção do conhecimento no interior dos processos de interação social - o Construcionismo Social (Gergen, 1985). Nessa perspectiva optamos pela proposta de análise das práticas discursivas (Spink, 2004; Spink & Gimenez,1994), pois acreditamos existir íntima relação entre enunciados e saberes, o que constitui os discursos como práticas socialmente significativas e, ao mesmo tempo, como a materialização das ações num dado tempoterritório. Assim, examinamos os materiais tendo em vista os processos de produção da psicologia, os sentidos compartilhados e os posicionamentos engendrados na construção de identidades naquele contexto histórico. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 " Se considerarmos o período analisado, podemos afirmar que, já naquela época, o jornal era um dos principais recursos discursivos. Trata-sede uma mídia que propõe fatos e explicita narrativas sobre as ações que os constituíram. Dessa forma, participa da construção de opiniões e, por decorrência, afeta o comportamento social. Desse modo, "o que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta" (Gregolin, 2007, p. 16). A psicologia como prática profissional oficializada pode ser compreendida, então, através dos discursos e das circunstâncias de produção que a constituem e que, em última análise, confirmam determinados lugares para a ciência psicológica e para o profissional da área em condições temporaise territoriais específicas. Desse modo, a partir da circulação das ideias na sociedade, se elaboram e se compartilham versões acerca de determinada prática e se estabelecem processos de negociação das identidades sociais. Tais processos são pessoais e coletivos. Além disso, são marcados pelos discursos pertinentes à cultura nos quais se inserem (Spink & Gimenez, 1994). Essa perspectiva de análise incorporada ao corpus acima descrito resultou nos temas que passamos a descrever a seguir. Textos e imagens como narrativa de um contexto O ano da oficialização da Psicologia como profissão no Brasil se desenrolou no contexto da Guerra Fria, período pós Segunda Guerra Mundial no qual era improvável que se tivesse uma guerra e impossível conquistar a paz (Aron, 1979). A Guerra Fria teve início com o término da Segunda Guerra Mundial e encerrou-se com a desestruturação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Nos anos sessenta, a lógica da Guerra Fria tinha vigor no Brasil, apesar de já abalada por acontecimentos que questionavam tanto as experiências capitalistas quanto as comunistas. No decorrer da Guerra Fria os Estados Unidos da América (EUA), norteados pela ideologia capitalista e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) inspiradas num sistema socialista, disputavam a hegemonia política, militar e econômica o que resultava numa série de artimanhas e embates de cunho ideológico, sem confronto militar declarado entre as duas nações. Eram evidentes áreas de influência político-econômicas distintas. No início o conflito situava-se na divisão da Europa em Ocidente e Oriente, sob a influência dos EUA e da URSS, respectivamente. Desse modo, as relações internacionais se traduziam na bipolaridade de poderes e na continuidade dos conflitos entre os capitalistas e os comunistas. O Brasil, como de resto toda a América Latina, era sede do expansionismo dos EUA. A literatura consultada (Hobsbawm, 1997; Fausto, 2009) anuncia marcantes influências econômicas, culturais e científicas nos países latino-americanos e os dados coletados para o Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 presente estudo confirmam tais interferências com conteúdos que indicam valores, estilos de vida e, consequentemente, comportamentos inspirados em modelos estadunidenses. Nesse processo de consolidação do antagonismo entre as duas ideologias citadas, a Revolução Cubana, ocorrida em 1959, relativizou a suposta configuração de divisão em dois blocos. Isso porque Cuba instituiu uma revolução social, apoiada em um regime comunista, localizado no cerne da "zona de influência" estadunidense. Como decorrência, o opositor, que estava isolado e afastado na URSS até então, passa a se impor dentro da América Latina, constituindo-se num "inimigo interno". Tal situação era considerada ameaçadora na medida em que poderia ter como decorrência a ampliação do comunismo nas Américas (Fernandez, 2009). No jornal examinado, a análise das capas de cada periódico denota essas circunstâncias. No ano de 1962, as primeiras páginas do Correio do Povo, são centradas exclusivamente na política externa. É curioso observar que as notícias sobre o Brasil emergem apenas quando descrevem atividades voltadas para o âmbito internacional como, por exemplo, viagens de políticos brasileiros ao exterior. É o caso da visita do então Presidente, João Goulart aos EUA em abril de 1962. Ao mesmo tempo, as alusões ao comunismo eram pauta diária do periódico. Frequentemente os textos traziam alusões depreciativas ou, pelo menos preocupantes, em relação à ideologia comunista. Podemos citar como exemplo, a manchete "Homens demasiadamente idosos e doentes estão governando a Rússia", que traz na matéria a sugestão de que se estudasse "os efeitos que dirigentes enfermos têm exercido na história do mundo" (Correio do Povo, 1962, 9 de janeiro, p. 1). Comunistas eram, então, inimigos, depois da revolução cubana, muito mais próximos, que precisavam ser enfrentados e combatidos "com armas espirituais e éticas" (Correio do Povo, 1962, 9 de janeiro, p. 1). Eram vistos como ameaças e descritos como produtores de mazelas sociais numa diversidade de modos de expressão. No plano religioso tal característica pode ser ilustrada pela excomunhão de Fidel Castro pela Igreja Católica, por ele ter "confessado ser comunista" (Correio do Povo, 1962, 9 de janeiro, p. 1). Na esfera da política internacional, uma reportagem do de 12 de janeiro desse ano, traz fragmentos de um discurso do então presidente dos EUA, John Kennedy que afirma: "Não são os países livres que tem discórdia dentro de si, com inevitáveis sinais de desunião" (Correio do Povo, 1962, 9 de janeiro, p. 1). Na mesma edição e página, aparece a notícia de que o Vietnam do Sul está recebendo ajuda estadunidense para o enfrentamento das "constantes agressões dos rebeldes comunistas". Como se pode perceber, havia argumentos fundamentados em valores religiosos, liberais e nacionalistas (Fausto, 2009). Todos esses indicavam padrões de comportamentos a serem seguidos e categorizados como "bons ou maus", "certos ou errados", "doentes ou saudáveis", "aptos ou inaptos" de acordo com a ideologia proposta pelo bloco capitalista e tendo em vista as ameaças de reedição de mais um conflito de Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 " proporções mundiais. Destacamos uma declaração de Kennedy feita no pátio da Casa Branca, ao receber um grupo de estudantes brasileiros em visita aos EUA, divulgada pelo jornal, na edição de primeiro de agosto: "Só um doente mental pode querer uma guerra nos dias atuais" (Correio do Povo, 1962, 1° de agosto, p. 1). Também foi marca desse período a corrida espacial, tema que usualmente ocupava os espaços do jornal examinado falando de avanços tecnológicos, heróis espaciais e prospecções para o modo de vida humana no futuro. Numa das matérias a acirrada competição entre os blocos capitalista e comunista foi alvo de uma comparação numérica entre os feitos de um e outro. Ao falar da "conquista do espaço, da lua e de outros planetas que parecem mais próximos e não mais tão inatingíveis" o jornal apontou que enquanto os EUA computam setenta lançamentos espaciais, a URSS tem apenas 13 satélites de observação, lançados no espaço. O interesse pela tecnologia e suas possibilidades de mudança dos modos de viverera evidente, o que aparecia também em relação à Psicologia, com suas teorias e instrumentos, como veremos adiante. Saúde Mental e loucura: demarcando territórios O clima de desconfiança imperante no contexto da Guerra Fria foi marcado pela valorização e expansão do conhecimento científico e tecnológico (Martins, 2004). Se associarmos a essas circunstâncias ao material coletado no jornal teremos alguns exemplos de formulação de práticas de prevenção no campo da saúde mental. Nesse sentido, dentre o material coletado encontra-se matérias sobre as novas técnicas de terapia ocupacional no Hospital Psiquiátrico São Pedro (Correio do Povo, 1962, 9 de outubro, p. 11); a apresentação de teste para avaliar a saúde mental de mulheres (Correio do Povo, 1962, 8 de abril, p. 25) sobre o metabolismo humano como regulador da química das emoções (Correio do Povo, 1962, 9 de outubro, p. 11) e previsões quanto à epidemiologia da saúde mental no Brasil (Correio do Povo, 1962,11 de janeiro, p. 11). As iniciativas para prevenir ou amenizar as consequências do adoecimento psíquico também foram enfocadas no Jornal. É o caso da fundação da "Associação de Saúde mental", motivo de reportagens nos exemplares dos dias 23 de junho e 5 de julho. A matéria relatou a iniciativa de uma equipe do Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre, através da qual se pretendia socializar informações acerca dos fatores desencadeantes da loucura e do manejo adequado do paciente portador de doença mental. Entre os integrantes da equipe figuravam psiquiatras, educadores, párocos. assistentes sociais e psicólogos. Dentre esses últimos foram nomeados na matéria Artur de Matos Saldanha, José Carlos Fenianos, Jurema Alcides da Cunha e Graciema Pacheco conhecidos profissionais dedicados à psicologia em Porto Alegre (Correio do Povo, 1962, 23 de junho, p. 9; 1962, 5 de julho, p. 13). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 ^ Nesse período, a Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul estava instituída e promovia diferentes atividades relacionadas à profissão em processo de oficialização, dentre essas à saúde mental. Além disso, muitas pessoas se dedicavam à formação disponibilizada na PUCRS e ao exercício de práticas psicológicas (Scarparo & Osório, 2009, 2011). Contudo, a elucidação de aspectos referentes aos fenômenos do campo da doença mental, no conteúdo examinado, era associada aos conhecimentos advindos da medicina, da psiquiatria e da psicologia. As matérias atribuíam a esses conhecimentos as tarefas de pesquisar o tema, descobrir precocemente e subsidiar o enfrentamento das ameaças à sociedade que representava a loucura. Neste sentido, havia forte influência do conhecimento produzido nos EUA e o jornal examinado frequentemente trazia noticias de pesquisas realizadas e resenhas de obras publicadas cujos conteúdos corroboravam uma lógica de categorização dicotômica dos sujeitos: ou são normais ou patológicos. Entretanto, o reconhecimento nosográfico da manifestação psicopatológica é atribuído aos profissionais da área médica nos conteúdos examinados. Da mesma forma, os cursos anunciados referentes à psicanálise, na maioria das vezes, são protagonizados por profissionais dessa área. É o caso da palestra promovida pela Faculdade de Filosofia da UFRGS, que abordaria a definição de Psicanálise, psicoterapia de grupo e tratamentos a partir dessa abordagem (Correio do Povo, 1962, 11 de maio, p. 9; 1962, 15 de maio, p. 16), assim como do "Seminário Estudantil Latino-americano de Psicologia Médica", realizado em Ribeirão Preto de 22 a 39 de julho daquele ano (Correio do Povo, 1962, 8 de março, p. 12). O conceito de saúde mental se traduz no jornal em comportamentos esperados para uma pessoa normal, ou seja, adaptada às expectativas sociais para homens e mulheres da época, pautadas pela habilidade no desempenho dos papéis na área familiar e do trabalho. Os materiais relativos às práticas psicológicas no campo da saúde mental expressam modos de detectar e prevenir desvios dos padrões de comportamento aceitáveis, indicações de ordem educativa quanto ao manejo de situações desviantes, espaços de aperfeiçoamento profissional com recursos da psicologia (por exemplo, "Psicologia das Vendas") ou oportunidades de qualificação profissional como palestras, congressos e cursos (especialmente de testes para medir habilidades ou detectar características de personalidade). A dissociação presente nas relações internacionais, no período da Guerra Fria, parece reproduzir-se nas dicotomias saúde mental-doença mental, o que corresponde ao comportamento normal e comportamento desviante nos conteúdos veiculados nos materiais examinados. Desse modo, as expectativas sociais na perspectiva do capitalismo correspondem aos sentidos de saúde e normalidade enquanto o rechaço a essa ideologia poderia associar-se aos modos de viver anticapitalistas. Desse modo, o conhecimento e as práticas psicológicas, por sua vez, poderiam ser instrumentos eficientes de prevenção com detecção dos desviantes e acomodação ao Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 ^ paradigma proposto para a normalidade. Em função disso, muitos dos cursos e pesquisas anunciados na fonte investigada buscavam dar uma conotação de neutralidade e cientificidade à atividade proposta. Era evidente a necessidade de pautar pelos critérios de normalidade vigentes no comportamento desejável. Nesse sentido, destaca-se uma matéria veiculada em um dos jornais investigados tendo como chamada a questão: "Como está sua saúde mental?" (Correio do Povo, 1962, 8 de abril, p. 25). Tratava-se de um questionário apresentado no Congresso Internacional de Medicina e Higiene Escolares, realizado em Paris, em 1959. Esse questionário pontuava, a partir das expectativas sociais da época para o comportamento feminino, se a leitora gozava de "boa saúde mental" ou se estava doente e, por isso, precisava suprimir as causas de seu adoecimento ou buscar ajuda de um especialista para conseguir adotar "comportamentos normais". Entre as questões figuram: "As crianças a deixam constantementenervosa?" "Tem medos sem razão?" Você pensa que tem sempre razão e que as pessoas que discordam de você estão sempre erradas? "Queixa-se de numerosas dores vagas para as quais os médicos não encontram causas físicas?". É interessante destacar as noções de saúde mental que se pode extrair do texto. Ele está associado à felicidade e essa é significada como atributo de uma pessoa "sem problemas", com atitude calma, cordata, invariavelmente tranquila e amigável. Nesse exemplo é evidente a associação da noção de saúde mental utilizada à prática de relações harmônicas e consensuais. Ao mesmo tempo, se desenvolve um conceito generalizante, através do qual só podem ser caracterizados como saudáveis comportamentos que não denotem angústias, discordâncias, ansiedade ou imprevisibilidades. Todas essas possibilidades seriam desviantes do comportamento atinente à normalidade, justificando o acompanhamento profissional. Psicologia no jornal: ciência-profissão Os espaços destinados à psicologia ou aos temas a ela relacionados são frequentes e diversificados no jornal examinado. As matérias são ilustrativas quanto aos lugares a serem ocupados e às atribuições para a área no ano correspondente à oficialização da profissão. Um fato não poderia ser negado: se intensificavam no imaginário social os matizes e contornos de uma profissão apoiada em conhecimentos voltados para as peculiaridades dos seres humanos num contexto de ampla valorização do conhecimento científico e dos avanços tecnológicos. Acrescente-se a essas circunstâncias o controle ideológicoo que propiciava práticas adaptativas, voltadas para os processos de fortalecimento da lógica de gestão de negócios e oferecimento ao mercado de bens e serviços. Uma notícia veiculada em 2 de dezembro de 1962 ilustra bem o vigor desse processo no Rio Grande do Sul. A manchete "Porto Alegre é sede de um verdadeiro laboratório Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 psicológico de cores" (Correio do Povo, 1962, 2 de dezembro, p. 18) referia-se a uma matéria que relatava uma pesquisa desenvolvida na capital através de uma amostra de 3600 pessoas. Tinha como mote o conhecimento mais amplo da psicodinâmica das cores. De acordo com essa notícia em "exaustivo e profundo trabalho", 85 alunos matriculados num curso sobre o tema, aplicaram o instrumento e coletaram os dados para a investigação coordenada pelo arquiteto "Dr. Simão Goldman com auxílio da psicóloga Leila Ramos". Ao falar da relevância do estudo, a matéria informou que os resultados poderiam "fornecer respostas para muitos casos de aplicação de cores e desenhos na indústria, além de permitir "a observância de reações psico-sociais". A matéria acrescentava que os resultados seriam organizados de acordo com o poder aquisitivo dos propósitos para que se compreendesse, nos diferentes extratos sociais, as preferências e comportamentos vinculados às cores. Além dessa atividade vinculada a um curso sobre psicodinâmica das cores, outros cursos voltados para a psicologia também foram alvo de matérias ou, simplesmente, motivos de anúncio para divulgação no jornal. É o caso do curso de "Psicologia para vendedores", promovido pelo "Centro de Psicologia da Venda" que era dirigido pelo "psicopedadogogo Kurt Richter". Esse programa de estudos tinha como objetivos a "preparação adequada do elemento que milita em vendas". Dentre os conteúdos programáticos figuravam "biotipologia humana e sua aplicação na prática dos negócios", "dinâmica cerebral da conduta humana", "psicologia dos grupos humanos", "relações entre servidor e público", "relações públicas e liderança em reuniões" e "técnicas de vendas" (Correio do Povo, 1962, 8 de fevereiro, p. 16). Como se pode observar pelas breves descrições acima, havia clara alusão à utilidade dos conhecimentos da psicologia, tendo em vista a o mercado de trabalho e a atuação no comércio, podendo exemplificar a ênfase desenvolvimentista presente no Brasil desse período (Fausto, 2006). Além disso, tratava-se de um saber que não era restrito à atividade precípua de profissionais da psicologia. Nesses casos, por exemplo, os trabalhos eram coordenados por um arquiteto auxiliado por uma psicóloga e por um psicopedagogo, respectivamente. Desse modo, a conquista de um território profissional, através das especificidades do conhecimento psicológico produzido, parecia uma tarefa árdua e prolongada. As fronteiras de atuação da psicologia também foram pauta da visita ao Brasil do presidente da "Associação Psicanalítica Internacional", o médico estadunidense Maxwell Gitelson. Através da reportagem "Psicanálise e Psiquiatria tem que caminhar juntas", veiculada no dia 14 de agosto de 1962, fica clara a disputa por domínios profissionais e disciplinares. No texto jornalístico, o referido médico afirmou que os conhecimentos da psiquiatria, da bioquímica e da fisiologia eram de suma importância para a psicanálise no que tocava à atividade de psicodiagnóstico. Por outro lado, declarou o entrevistado, a "ciência de Freud" só pode fazer parte do aprendizado da psicologia "de forma intelectual" Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 (Correio do Povo, 1962, 14 de agosto, p. 13). A notícia, veiculada duas semanas antes da oficialização da profissão de psicólogo, trouxe indícios dos tensionamentos acerca dos territórios de atuação que a profissão teria que enfrentar. Alguns anos depois, tal discussão se desdobraria no Projeto - Lei n°2726/80 do Deputado Salvador Julianelli, nos anos 1980 (Scarparo, 2009) e, mais recentemente, no Projeto de Lei do Ato Médico, motivos de controvérsias, disputas e mobilizações por parte das categorias profissionais envolvidas. Além dos processos de inserção e dos embates pela conquista de espaços profissionais, podemos afirmar que, em geral, as temáticas voltadas para a psicologia no jornal se dirigiram tanto à produção do conhecimento científico quanto à sua aplicabilidade na prática dos profissionais da área. Nesse sentido, a atribuição de avaliar comportamentos adequados/normais ou não, era usual e esperada nas alusões às práticas psicológicas. Nesse sentido, foi frequente a socialização de saberes já produzidos, especialmente em sessões dedicadas à educação de filhos e filhas e à responsabilidade dos pais e mães no sentido de construir espaços sociais considerados apropriados à ideologia vigente. Nessa ótica, havia uma coluna denominada "Nós e as crianças", assinada pela psicóloga Yeda Roesch da Silva, através da qual eram veiculadas informações acerca do desenvolvimento infantil e do manejo adequado das relações familiares em diferentes situações. Podemos citar como exemplo, o cuidado com crianças deficientes, o efeito nefasto das exigências perfeccionistas dos pais e das mães em relação às crianças e a questão da desobediência infantil. Em outra matéria sobre a psicologia infantil, assinada por uma assistente social (Correio do Povo, 1962, 21 de janeiro, p. 19), são mencionados os prejuízos ao desenvolvimento saudável de uma criança, causados pela necessidade de sua mãe trabalhar fora. Além do permanente conflito para a mulher, o texto ressalta as condições adversas decorrentes da falta de serviços que possam substituir a mãe e o clima de um lar na sua ausência. Tais materiais revelam os paradigmas de família e comportamento presentes no período como, por exemplo, a preponderância de homens nas atividades remuneradas, no espaço público. Como decorrência fica clara a indicação do espaço doméstico como lócus preferencial para as atividades das mulheres. Tais atribuições também são frequentes na publicidade veiculada no jornal. As expectativas para a psicologia como ciência aparecem, também, atreladas às discussões globais da época, mais especificamente ao contexto da Guerra Fria e ao receio de eclosão de outra Guerra de proporções mundiais, acima mencionados. Chama atenção a reportagem originada da vinda a Porto Alegre do psicólogo norte americano Henry Clay Lindgren. O referido cientista exercia suas atividades na Califórnia, na San Francisco State College e dedicava-se especialmente à saúde mental e psicologia educacional. Veio ao Brasil patrocinado pela United Nations Educational, Scientificand Cultural Organization (UNESCO) e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) e, em sua Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 ^ estadia no País proferiu cursos e palestras em São Paulo e em Porto Alegre. No Rio Grande do Sul a atividade foi planejada e organizada pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais da, então, Universidade do Rio Grande do Sul. Dentre as atividades do palestrante uma delas chama atenção pela franca vinculação da produção da ciência psicológica aos temores e expectativas globais característicos da época. Em uma das mais extensas matérias sobre psicologia expostas no jornal foi divulgado que Lindgren tratou da "contribuição potencial da psicologia para a paz mundial" (Correio do Povo, 1962, 25 de agosto, p. 11). Segundo ele, os conhecimentos produzidos na área oferecem elementos fundamentais para a compreensão das relações internacionais, uma vez que "as relações entre nações apresentam grande similitude com as relações entre as pessoas, principalmente no que se refere à hostilidade". Informou que existem muitos "dados objetivos" acumulados sobre o tema e que podem ser usados para evitar as guerras e prevenir tensões. Revela sua esperança de que tal aplicabilidade do conhecimento psicológico fosse reconhecida e que as ações nesse sentido se realizem "antes que seja tarde". Essa expressão denotaa ênfase na prevenção. No tocante à psicologia ela se dirigiu, na fonte estudada, frequentemente, à delinquência juvenil. A Matéria "Como descobrir precocemente a tendência para o crime" - veiculada em 11 de novembro daquele ano, descreve estudos realizados na esfera da psicologia na Universidade de Bristol. Ao descrever as características do provável delinquente juvenil, o autor da matéria refere resultados atinentes a fatores de ordem social, congênita, familiar e psicológica, entre outras. A detecção precoce éfortemente indicada e a causa da delinquência é atribuída a uma "desintegração da motivação normal e racional" que faz com que a pessoa repudie tudo o que se constitui "aspiração máxima para a pessoa normal". Tal aspiração é traduzida por "perspectivas econômicas, estima da família, amigos e oportunidades matrimoniais" (Correio do Povo, 1962, 11 de novembro, p. 15). Trata-se de apenas mais uma das matérias que confere ao conhecimento psicológico o lugar de legitimar a condição de normalidade ou saúde mental traduzida na capacidade de cumprir os requisitos de inserir-se no mercado de trabalho, constituir família e produzir relações sociais pautadas pela harmonia e pela adaptação à ordem social vigente. Nessa perspectiva, são reiterados os anúncios e matérias do jornal atinentes à avaliação psicológica e às descrições das maneiras consideradas adequadas de ser e de viver na sociedade, naquele contexto. Encontramos também materiais coletados acerca da aprendizagem e aplicação de instrumentos que pudessem favorecer as práticas de diagnósticos e a classificação ou categorização do comportamento dos indivíduos. Assim, o uso de instrumentos de avaliação da personalidadee de habilidades para as tarefas do âmbito educacional ou do trabalho denotava a premência de predição de comportamentos. Tal predição abria espaços para a inserção de psicólogos nas tarefas de orientação, recrutamento e seleção profissional. É o caso da matéria acerca de Orientação Vocacional que Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 menciona o uso de recursos psicotécnicos para subsidiar o acompanhamento de jovens no momento de sua escolha profissional (Correio do Povo, 1962, 27 de maio, p. 15). Em notícia veiculada no dia 10 de março, é relatada a iniciativa da Universidade de Brasília "a mais nova e (dita "revolucionária") universidade brasileira", no sentido de promover entrevistas e exames psicotécnicos para os candidatos inscritos nos diferentes cursos oferecidos. A proposta foi justificada e elogiada pelo jornal pela "salutar finalidade de ordem vocacional" e "pelo afastamento da universidade de gente psiquicamente incapaz de a frequentar, embora passando nos exames ordinários" (Correio do Povo, 1962,10 de março, p.4). As circunstancias construídas até então expressas no jornal examinado favoreceram o processo de legitimaçãoda psicologia como prática profissional o que aconteceu no dia 27 de agosto de 1962, com a Lei n. 4.119. Houve grande euforia por esse reconhecimento e iniciaram-se movimentos pela ocupação de espaços de atuação, pela delimitação e defesado território profissional. Para Chaves (1992), tal defesa referia-se principalmente à classe médica, a qual não reconhecia plenamente a psicologia. No jornal examinado, na edição do dia 27 de agosto, uma pequena nota divulga uma reunião da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul na qual seu presidente, José Carlos Fenianos expressa sua satisfação pela recente sanção presidencial do Projeto que regulamenta o curso de Psicologia e a atividade profissional. Tal notícia é acrescida da informação de que, a partir de então, muitos novos candidatos se inscreviam para associar-se àquela entidade, o que denota a emoção e esperança de construir um espaço profissional profícuo. Considerações finais O estudo aqui descrito fez uma tentativa de explicitar sentidos formulados pelo jornal, acercadas circunstâncias e dos processos para oficialização da Psicologia como profissão legalmente instituída no Brasil em 1962. Se pensarmos na perspectiva do historiador, trata-se de um breve tempo. Cinquenta anos é uma curta distância entre o presente e os tempos vividos no início dos anos 60. Em função dessa aproximação temporal, é na imprensa diária que encontramos subsídios (Hobsbawm, 1995) para conhecer, de modo mais preciso, as especificidades e circunstâncias dos processos de instituição da psicologia no Brasil. Ao folhear os jornais de 1962 nos deparamos com manchetes, notícias e imagens que atravessavam o cotidiano dos psicólogos e das psicólogas que, em 27 de agosto, comemoraram a oficialização da profissão. Desse modo, foi possível compreender aspectos da articulação dos contextos narrados pelo conteúdo jornalístico com demandas, projetos e práticas profissionais possíveis naquele momento. Podemos dizer que ao pesquisar criamos uma articulação entre os materiais midiáticos e o olhar do leitor ou leitora preso a um espaço Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. Recuperado em ____ de ______________, ______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 ^ futuro. Nele se instituem as experiências e expectativas para a profissão posteriores ao contexto desenhado pelo jornal. Os achados reforçaram a impossibilidade de estabelecer divórcios entre as ideias e os contextos. Tal constatação nos levou a optar por uma investigação fundada nas diferenças dos tempos e compreender sentidos produzidos numa história singular. Ou seja, reconhecendo a natureza eminentemente datada da fonte consultada, buscamos compreender desenhos possíveis da Psicologia no Brasil, através do olhar para o texto e para contexto: a escrita, suas linguagens, as circunstâncias e as considerações sobreefeitos sociais e políticospossíveis de se vislumbrar. Na sociedade contemporânea, informações sobre os acontecimentos se dão através dos meios midiáticos (Braudel, 1992). Com a elaboração deste estudo, testemunhamos a complexidade de um tempo de incertezas, no qual a psicologia era considerada novidade e, ao mesmo tempo, instrumento de inovação para intervir nas relações sociais. Por outro lado, no presente, as distâncias dos sistemas de crenças e dos vocabulários normativos daquela época, nos fazem pensar nas singularidades que se estabelecem no fazer da psicologia no presente. Hoje somos muitos e diversos. Exercemos muitas psicologias e nos relacionamos com diferentes territórios. Em todos eles encontramos demandas, incertezas e esperanças. As demandas, ecos de outras vozes ou chances de criação, sugerem a amplitude e diversidade do trabalho possível; as incertezas, frutos de conceitos esvaziados pelo tempo e do envelhecimento de valores nos impõem pensar nas éticas que justificam práticas tão distintas. E as esperanças? Só em escrever a palavra brotam várias, o que denota a impossibilidade de restringi-las a um texto. De qualquer forma, a autoria nos possibilita ressaltar uma que gostaríamos de compartilhar aqui: a de participar da construção da história da psicologia no sentido de favorecer a consolidação de práticas solidárias, capazes de reconhecer a riqueza da vida todos os dias. Tal esperança não admite comportamentos ou caminhos marcados de forma rígida por métricas descontextualizadas ou pela renovação de dogmas; ela sugere o exercício político de fazer psicologia e de desejar que os meios midiáticos do século XXI narrem a história de uma profissão que participou da construção do mundo da dignidade humana. Referências Aron, R. (1979). Paz e guerra entre as nações (S. Bath, Trad.). Brasília: UnB. (Original publicado em 1962). Baer, M. (1986). A internacionalização financeira do Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes. Barros, J. (2005). O campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. E. & Jesus, L. O. (2013). Extra! Psicologia brasileira é notícia em 1962: breve tempo, sentidos duradouros. Memorandum, 24, 11-28. 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Negociaremos quando oportuno e lutaremos se for necessário (1962,12 de janeiro). Correio do Povo, 85,1. Os semi-fortes (1962, 21 de janeiro). Correio do Povo, 93,19. Seminário estudantil latino-americano de psicologia médica (1962, 8 de março). Correio do Povo, 12. Exame psicotécnico (1962,10 de março). Correio do Povo, 132, 4. Como está sua saúde mental? (1962, 8 de abril). Correio do Povo, 157, 25. Palestra sobre psicanálise (1962,11 de maio). Correio do Povo, 183, 9. Palestras sobre psicanálise (1962,15 de maio). Correio do Povo, 186,16. Orientando na escolha da profissão (1962, 27 de maio). Correio do povo, 197,15. Funda-se hoje o Io "Clube da Saúde Mental" (1962, 23 dejunho). Correio do Povo, 219,9. Primeira diretoria da Assoc. de Saúde Mental (1962, 5 de julho ). Correio do Povo, 229,13. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Scarparo, H. B. K., Sotiili, T. S., Albert, C. 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Doutora em Psicologia Social pela PUCRS. Professora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS. Contato: [email protected] Thais de Souza Sottili. Graduanda da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS. Contato: [email protected] Carla Estefanía Albert. Doutoranda em Psicologia Social do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS. Contato: [email protected] Luciana Oliveira de Jesus. Mestranda em Psicologia Social do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS. Contato: [email protected] Data de recebimento: 03/08/2012 Data de aceite: 24/04/2013 Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/scarparosottiliabertjesus01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil Promises of life in times of threat: women, music and resistance during the military dictatorship in Brazil Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento Sara Angélica Teixeira da Cruz Silva Jaíza Pollyanna Dias da Cruz Flaviane da Costa Oliveira Flávia Gotelip Corrêa Veloso Laís Di Bella Castro Rabelo Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Resumo Esta investigação apresenta a temática da ditadura militar brasileira (1964-1985), focalizando as experiências de prisão e tortura de ex-presas políticas durante o regime, integrando um conjunto mais amplo de pesquisas que exploram o tema neste período histórico específico. A pesquisa proposta parte do relato de cinco entrevistadas, privilegiando trechos que elucidam o papel da música na trajetória de resistência das militantes. Por meio de análise de conteúdo das informações, revelaram-se as seguintes categorias: a música como arte e militância; estratégia de integridade física, psicológica e moral; coesão grupal e expressão de afeto. A discussão temática é perpassada por elementos conceituais do campo de análise da memória psicossocial e da teoria de identidade social. Os resultados apontaram a importância que as atividades culturais tiveram como veículo de crítica e resistência ao autoritarismo, tornando-se importante modo de enfrentamento da experiência de prisão e tortura. Palavras-chave: mulheres; ditadura; resistência; música Abstract This investigation presents the theme of the Brazilian military dictatorship (1964-1985), focusing on the experiences of prison and torture undergone by ex-female political prisoners during the time of such regime, and also encompassing a wider body of research that explores the theme at this particular historical period. From the accounts given by five interviewees, there has been made a clipping that privileged fragments that portray the role of music in this activist women's journey of resistance. By analyzing the content of the pieces of information, the following categories have stood out: music as a form of art and militancy; as a strategy to preserve physical, psychological and group integrity; as an expression of affection and group cohesiveness. The thematic discussion is colored by conceptual elements from the field that analyzes psychosocial memory and the social identity theory. The results have pointed to the importance of cultural activities as an approach to critical opposition and resistance to authoritarianism, and to the fact that they became an important way of facing the experiences of prison and torture. Keywords: women; dictatorship; resistance; music Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 1. Introdução Tudo em volta é só beleza Sol de abril e a mata em flor Mas Assum Preto cego dos óios Num vendo a luz, ai, canta de dor (Assum Preto, Humberto Teixeira & Luiz Gonzaga, 1950) A ditadura militar no Brasil (1964-1985) foi precedida por lutas em prol de melhorias sociais, que incluiriam reformas estruturais, no âmbito da educação, saúde e economia, condensadas nas chamadas "Reformas de Base", metas centrais do governo de João Goulart (1961-1964) (Arquidiocese de São Paulo, 1985). Tais metas favoreceram ações sociais e conspirações políticas e militares, culminando no golpe militar em Io de abril de 1964. Nos quatro primeiros anos da ditadura as medidas repressivas do regime autoritário nem sempre possibilitavam uma distinção clara das fronteiras entre o que era proibido ou permitido para a população. Com o fortalecimento das organizações e movimentos populares em oposição ao regime, o governo militar instaurou uma atmosfera de medo, silêncio e repressão que culminou na promulgação do Ato Institucional n° 5 - o AI-5, 13 de dezembro de 1968. Conhecido como o golpe dentro do golpe, marcou o enrijecimento do Regime Militar que ficou conhecido como os anos de chumbo (Almeida & Weis, 2002; Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012; Ventura, 1988). Passou a vigorar no país uma política de perseguição aos que contestavam ou representavam algum tipo de ameaça ao governo intensificando os atos violentos: prisões arbitrárias, práticas de tortura, mortes, desaparecimento, banimento e exílio (Arquidiocese de São Paulo, 1985; Coimbra, 2001). A repressão levou as ações contrárias ao regime a adentrar a esfera privada dos oposicionistas. Almeida e Weis (2002) esclarecem que diferentemente das democracias, em regimes de exceção as esferas públicas e privadas se entrelaçam, pois permitem cada vez menos mobilizações na esfera pública fazendo com que "a resistência ao regime inevitavelmente (...) [arraste] a política para dentro da órbita privada". Neste sentido os autores apontam que "é consenso considerar privado, em sentido amplo, o âmbito da chamada sociedade civil: as atitudes, atividades, relações, e formas de organização não voltadas para o sistema político, ou, mais especificamente, não orientadas para influenciar, conquistar ou exercer o governo" (Almeida & Weis, 2002, p.327, grifo do autor). Com o AI-5 "oficializou-se o terrorismo de Estado (...). O Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas estaduais foram colocados temporariamente em recesso e o governo passou a ter plenos poderes para suspender direitos políticos dos cidadãos" (Ridenti, 1999, p. 59) como a suspensão do direito a habeas corpus (Brasil, 2007). Em dezembro de 1968, há uma nova onda de cassação de mandatos políticos e ampliação da censura às manifestações culturais e à imprensa (Almeida & Weis, 2002). Com a ascensão dos militares Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ linha dura o Estado passou a utilizar a violência de forma arbitrária e permanente em suas ações. Esse tipo de política, caracterizada como Ideologia ou Doutrina da Segurança Nacional, tem bases herdadas do nazismo e das grandes potências do pós-guerra (Boff, 1987; Borges, 2003; Chauí, 1987). Segundo Boff (1987), O que houve foi a ruptura com um acordo mínimo que sustenta o Estado de Direito. Este pressupõe um consenso acerca de certa ordem social (...) e uma adesão a referências básicas de direitos e de deveres do Estado e do cidadão. Um Estado de Direito não se sustenta sem o consenso mínimo (...). Em lugar do antigo consenso e do novo a surgir entrou a violência como forma de relação do Estado para com o resto da sociedade. E com a violência, a tortura como expressão da força de submetimento de todos os que resistem, divergem, se opõem ao Estado ditatorial (p. 11). Ainda que a tortura tenha sido utilizada no período inicial do regime, foi somente após o AI-5 que tal prática foi institucionalizada pelo Estado e usada de modo sistemático contra os opositores ao ser atrelada à política de segurança nacional adotada pelo Estado. Mediante esse cenário de acirramento da repressão, as ideias que inspiravam o movimento de reconstrução sociopolítico do país tiveram que encontrar novas formas de existência (Carmo, 2001; Ferreira, 1996; Martins Filho, 1987). Assim, além da militância vinculada a organizações políticas, outros setores da sociedade fizeram oposição ao regime militar ao reagir às tentativas de silenciamento impostas pelo Estado, visando restabelecer a possibilidade de expressão política. Os problemas sociais e políticos denunciados pela esquerda, juntamente com a crítica feita aos valores sociomorais da classe média abastada, que cultivava preconceitos e ideias estreitas, o chamado comportamento pequeno-burguês, passaram também a ser tematizados no campo da cultura que buscava transformações de valores e costumes ao questionar e romper com os valores sociomorais tradicionais (Almeida & Weis, 2002; GianordoliNascimento, Trindade & Santos, 2012). Nesse contexto, o cenário cultural foi atingido por um intenso movimento de renovação que alcançou os meios de difusão cultural, da música popular ao cinema novo, passando também pelo teatro e pela literatura (Almeida & Weis, 2002; Ferreira, 1996; Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012; Ventura, 1988; Albin, 2002). Valorizando esses aspectos, este trabalho enfoca a trajetória de mulheres que participaram da militância política rompendo com os códigos e valores sociais da época. Neste sentido, a investigação destacou a música como instrumento de resistência, protesto, sobrevivência e espaço de elaboração de sentidos (Berger & Luckmann, 2004), para mulheres militantes em situação de prisão e tortura, durante o regime militar no Brasil. Além da discussão temática sobre o cenário histórico-social da ditadura militar, alguns elementos conceituais do campo de análise da memória psicossocial (Sá, 2007; 2009) e da Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ teoria de identidade social (Tajfel, 1983), serão acionados a fim de contribuir para o enriquecimento das análises realizadas. 1.1 A resistência ao golpe militar pós-1964: o movimento musical na cultura de protesto A produção cultural brasileira no período ditatorial promoveu a aproximação de diversos grupos que questionavam o regime e fez ecoar as vozes contrárias ao sistema, silenciadas mediante o acirramento dos mecanismos de repressão. Exemplo disso foi a relação entre o meio artístico e o movimento estudantil, que fortaleceu as manifestações deste último para além das causas educacionais alcançando a contestação e denúncia das mazelas da sociedade brasileira (Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012). A partir de meados da década de 1960, a produção artística nacional, em especial o teatro e a música, passou a apresentar questões políticas e sociais que denunciavam a realidade brasileira, tornando-se um dos mecanismos de maior resistência ao regime militar (Abreu, 1997; Aguiar, 1994; Ferreira, 1996; Michalski, 1994; Simões, 1999; Ventura, 1988). É nesse período histórico que se formou "um novo perfil de resistência que se convencionou chamar de cultura de protesto" (Caldas, 2005, p. 123). As manifestações culturais de protesto tiveram seu auge entre 1964 e 1968, período em que, embora houvesse a censura institucionalizada por meio de cortes e proibições, a repressão se manifestava por atos isolados. Com o recrudescimento da repressão, após o AI5, a perseguição à classe artística se tornou intensa obrigando alguns artistas ao exílio forçado ou autoexílio (Caldas, 2005; Kornis, 2004). A música, uma das expressões artísticas, ficou caracterizada também como prática político-ideológica, expressando ideais, atitudes, valores, convicções e motivações que ajudaram a fortalecer a resistência à ditadura (Bernardo, 2007; Starling, 2004). Em função do lugar que ocupou tanto na indústria cultural quanto na cultura da juventude, a música popular foi importante canal de denúncia do autoritarismo no país. Um dos maiores exemplos disto é a música de Geraldo Vandré que se tornou o Hino do combate a ditadura no Brasil: Nenhuma outra criação artística simbolizou com tanto vigor a oposição ao regime, nem tão explicitamente convocou à sua derrubada - pelo menos até o "Hino Nacional" cantado por Fafá de Belém (...) em 1984 - quanto "Pra não dizer que não falei das flores" de Geraldo Vandré, que horrorizou os militares para todo o sempre pelos seus versos explícitos sobre o que se ensinava nos quartéis ("morrer pela pátria/e viver sem razão") (Almeida & Weis, 2002, p. 345). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 O ideário de libertação difundido por qualquer segmento intelectual, artístico, estudantil ou operário, ficava impossibilitado de ser conjugado com a ideologia da Segurança Nacional imposta pelo regime (Ventura, 1988), que atacou com virulência a produção artística e cultural do país durante a época, inclusive causando impacto devastador sobre os profissionais1. A censura muitas vezes proibia obras inteiras, cancelando a encenação de peças, a publicação de livros, o lançamento de discos ou canções isoladas, classificando vários artistas como inimigos do Estado. Antes mesmo de deflagrado o AI-5, alguns representantes incipientes da Música Popular Brasileira (MPB)2 já haviam sido incluídos nesta categoria, entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo Vandré (Almeida & Weis, 2002). O ano de 1965 foi um marco da chamada "era dos festivais" (Napolitano, 2004c, p. 203), quando ocorreu o I Festival da MPB, na TV Excelsior. Chico Buarque e Geraldo Vandré passaram a serem reconhecidos na cena musical do período após o II Festival de MPB na TV Record-SP, em 1966, e seguiram com suas notáveis participações nos festivais até 1968 (Napolitano, 2004a, 2004c). Os festivais de músicas da TV Record-SP foram essenciais para a consolidação de novos artistas, mas tiveram sua atuação impactada pela repressão e censura, cada vez mais acentuadas após este ano (Napolitano, 2004a, 2004c). No cenário musical as figuras que mais se destacaram foram Geraldo Vandré e Chico Buarque de Holanda, considerados inimigos do Estado repressor devido ao conteúdo propagado pelas suas canções e pelo consequente sucesso das mesmas. A música Caminhando, lançada por Geraldo Vandré no festival de 1968, ficou proibida de ser cantada e executada em todo o país. Só voltou a ser veiculada em 1979, após a abertura política e a anistia, quando a cantora Simone a cantou em um show no Canecão/RJ. Posteriormente, Perseguido intensamente pelo regime, Geraldo Vandré esteve exilado de 1969 a 1973. Após o exílio, não conseguiu recuperar a carreira interrompida pela censura presente na ditadura militar. Foi um dos mais emblemáticos casos de uma expressiva carreira artística, emprestada ao combate à ditadura militar, abruptamente calada pela ditadura. Com o fim do regime, o cantor não faria sucesso expressivo no cenário musical e muitos cogitaram uma mudança ideológica ou acometimento mental, em detrimento de torturas sofridas durante o regime. Já Taiguara, considerado uma das mais belas vozes masculinas da MPB, foi um dos cantores que mais se opuseram a censura da ditadura militar. Sua obra pagou o preço da perseguição e em 1971 tornou-se um dos alvos da censura, chegando a ter no ano de 1973 onze músicas proibidas (Albin, 2002; Araújo, 2005; Caldas, 2005; Bernardo, 2007). A perseguição levou Taiguara a dois autoexílios. Em meados de 1980 retornou em definitivo para o Brasil, porém não conseguiu mais manter uma inserção contínua no cenário musical. Segundo Napolitano (2005), a sigla foi utilizada em letras maiúsculas pelas primeiras vezes em LP's e eventos musicais em meados de 1965, quando o gênero musical tenta aglutinar toda a tradição musical popular brasileira. O autor aponta que a sigla MPB traz em si traços de estilos musicais que se uniram e passaram a delimitar uma ideologia comum aos artistas e às pessoas que na Música Popular Brasileira se identificavam. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ Chico Buarque "se tornou alvo da mais longa e acidentada história de atritos com a ditadura e a censura" (Almeida & Weis, 2002, p. 346). Ambos são considerados ícones fomentadores da notoriedade da MPB (Napolitano, 2004b). Durante o período, esses artistas utilizaram diferentes recursos musicais para contestar a política do Governo. Enquanto Geraldo Vandré criticava diretamente a ditadura, Chico Buarque deixava suas mensagens escamoteadas por uma linguagem que trazia duplo sentido de interpretação (Napolitano, 2003; Ribeiro, 2004). A figura de Chico Buarque é considerada paradigmática, ainda que nem todas as suas canções fossem de protesto. Gostar de ouvir Chico Buarque implicava simpatizar com valores que estavam culturalmente associados a questões republicanas. Tais ideias ficaram vinculadas de forma emblemática à MPB de modo geral, sem que necessariamente o conteúdo das músicas tivesse em si uma discussão política (Almeida & Weis, 2002). A MPB ficou marcada por reunir músicos que já atuavam na Bossa Nova, como Vinícius de Moraes, Baden Powell, e artistas que surgiam naquele momento, como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré. Assim, sobre o considerável papel da MPB, Napolitano (2005) esclarece que: A MPB será um elemento cultural e ideológico importante na revisão da tradição e da memória, estabelecendo novas bases de seletividade, julgamento e consumo musical, sobretudo para os segmentos mais jovens e intelectualizados da classe média. A "ida ao povo", a busca do "morro" e do "sertão", não se faziam em nome de um movimento de folclorização do povo como "reserva cultural" da modernização sociocultural em marcha, mas no sentido de reorientar a própria busca da consciência nacional moderna. Nessa perspectiva é que se deve entender as canções, atitudes e performances que surgiram em torno da MPB, que acabaram por incorporar o pensamento folcloricista ("esquerdizando-o") e a ideia de "ruptura moderna" da Bossa Nova ("nacionalizando-a") (p. 64). Nesse sentido, a MPB tornou-se um canal de diálogo entre o povo e os intelectuais, já que mantinha vínculos com a tradição do cancioneiro popular. Expressou-se, então como campo fértil para as emergentes questões políticas, através de uma resistência cultural ligada ao movimento nacional-popular (Vianna, 2004). Nesse contexto a música torna-se veículo inédito de aglutinação entre classes musicais, antes separadas. Um dos momentos mais importantes da cultura musical brasileira, após o golpe militar, foi o show musical Opinião, realizado em Dezembro de 1964 pelos jovens exintegrantes do Centro Popular de Cultura (CPC) com a participação de cantores e compositores como João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão (Caldas, 2005; Vianna, 2004). O CPC Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 foi criado em 1962 por um grupo de intelectuais de esquerda associados à União Nacional dos Estudantes (UNE) com o objetivo de conscientizar politicamente as massas através de uma "arte revolucionária" (Caldas, 2005, p. 89) e foi extinto em março de 1964 pelo golpe (Caldas, 2005; Kornis, 2004). Apesar do CPC ter se extinguido, a organização do evento ainda contou com caráter de conscientização popular defendido até então pelos seus membros, pautado na captação de novos valores e anseios para melhorias sociais, que naquele momento do evento atingia um novo público. Realizado no emblemático teatro de Arena, em Copacabana, bairro de classe média do Rio de Janeiro, o show trazia em seu bojo uma conotação política que agora contava com o respaldo do segmento intelectualizado da classe média. O próprio nome do evento, Opinião, foi uma escolha notoriamente política e de resistência (Caldas, 2005). Com o fechamento das organizações que fizeram oposição ao regime "a cultura parecia ser uma das poucas alternativas de oposição, e a música um meio eficaz de se dizer o que estava abafado" (Bernardo, 2007, p. 17). A música, assim como "todas as formas de manifestação artística, além de seu sentido lúdico e estético, tinha ainda importante função de alertar a sociedade para os seus problemas" (Caldas, 2005, p. 121). Diante do exposto, podemos compreender como as manifestações culturais, e especialmente a música, fizeram parte da trama social do cenário da ditadura militar no Brasil, tendo sido silenciadas pela censura, mas não apagadas das lembranças/ experiências partilhadas por diferentes grupos sociais que vivenciaram de forma singular este momento histórico. 1.2 Ecos da memória feminina: militância e identidade A história de um país, ou de um povo, pode ser escrita e contada por diferentes versões. Há nesta forma de narrar ou escrever, uma peculiaridade construída socialmente que atravessa os espaços e as relações micro e macrossociais: a hierarquia do que será mantido ou omitido, que conduz a construção de uma versão considerada oficial e legitimada como verdade. Nas diferentes versões da história, seja oficial ou silenciada, a participação feminina permanece hierarquicamente inferiorizada (Perrot, 2005), seja nas organizações políticas de esquerda, nas guerrilhas armadas urbanas e rurais, e nas ações de oposição ao regime militar (Ferreira, 1996; Gianordoli-Nascimento, Trindade & Santos, 2012; Goldenberg, 1997; Ridenti, 1990). Os poucos registros sobre as militantes na história oficial brasileira sinalizam uma tentativa mais de "esquecer do que recordar com espírito crítico um passado que, Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 visivelmente, mais incomodava que interessava a imensa maioria" (Reis, Ridenti & Motta, 2004, p. 9). Gianordoli-Nascimento, Trindade e Santos (2012) assinalam que após o fim do regime militar no Brasil, por mais de vinte anos uma grande parcela dos atores envolvidos não pôde assumir e contar suas próprias histórias. Poucos são os registros históricos da participação de mulheres na militância política (Colling, 1997; Goldenberg, 1997; Ridenti, 1990), aspecto que elucida, entre outros, a relevância desta investigação. Segundo Ferreira (1996), a produção historiográfica e a própria constituição da memória situam-se em um mesmo campo de relações de poder, onde o discurso oficial sobrepõe-se a outros discursos e memórias. Um período histórico traumático, a exemplo do ditatorial, pode trazer consequências como a falta de possibilidades para expor, lembrar ou ainda elaborar as memórias, gerando o silenciamento. Segundo Pollak (1989), o silêncio não significa que o passado foi esquecido, mas demonstra "a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais" (p. 5). É possível, então, que um acontecimento ou um período histórico só possam ser mais adequadamente recontados numa rede de discursos parciais, com seus atritos, pontos de contato e independências. Sá (2007, 2009), ao organizar o campo da memória social em torno de uma perspectiva psicossocial, aponta que as memórias orais, pessoais e comuns de um período, ao serem registradas e divulgadas, podem contribuir para a difusão de novos aspectos dos fatos históricos entre indivíduos que não o vivenciaram, ou até mesmo entre aqueles que não tiveram acesso a esse tipo de informação. Cabe ressaltar que a análise psicossocial da memória (Sá, 2007, 2009) diferencia-se do foco dos historiadores, pois A preocupação do psicólogo social não é com a preservação dos relatos ou com a confiabilidade das fontes, como faz a história oral, mas sim com o processo e com as circunstâncias segundo os quais tais memórias são construídas, reconstruídas ou atualizadas por conjuntos sociais mais ou menos amplos e, por diferentes critérios, suficientemente circunscritos (Sá, 2007, p. 294). A partir desta perspectiva psicossocial da memória, a reconstrução de uma memória histórica (Sá, 2007) torna-se possível, na medida em que são valorizados os depoimentos dos grupos e indivíduos cujas vozes se encontravam silenciadas. Dentro deste quadro, alguns autores (Catela, 2001; Padrós, 2007; Tanno, 2005) apontam a importância desses depoimentos e experiências para a análise da questão da violência e seus desdobramentos durante os períodos ditatoriais, pois além de revelarem histórias e dramas individuais e de familiares, que se entrelaçam e ganham sentido no quadro da repressão militar, trazem a tona seus aspectos obscurecidos. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ O silêncio que paira sobre estas histórias remete à disputa entre o que é lembrado e esquecido na constituição da memória histórica do período (Pollak, 1989; Sá, 2009). Sendo as memórias patrimônios dos grupos sociais, revelar ou omiti-las deflagra a dinâmica de valorização e proteção da identidade social dos grupos. Desta forma, percebe-se uma interconexão entre as dinâmicas de relações intergrupos que compõem a identidade social (Tajfel, 1983) e a construção da memória social (Sá, 2007) das gerações. Assim, a construção da memória está intimamente relacionada com a identidade social, carregada de elementos "históricos, culturais, religiosos e psicológicos" (Carneiro, 1994, p. 187). A Teoria da Identidade Social (Tajfel, 1983) compreende a identidade como processo dinâmico construído a partir da relação intergrupos. A identidade social é composta pelo auto-conceito, somado às pertenças grupais que cada membro do grupo partilha. Os grupos se comparam, estabelecendo categorias para se diferenciarem uns dos outros (Tajfel, 1983), neste processo, estão emjogo mecanismos de categorização, comparação e diferenciação, que envolvem aspectos sociocognitivos. O processo de categorização e comparação social imbricado na construção de um nós e de um eles, tem por função organizar a realidade. Nesta dinâmica, processos de identificação e diferenciação, podem produzir distanciamentos ou proximidade entre os grupos. Como estratégia de proteção da identidade social, os grupos se relacionam de modo a valorizar atributos do grupo de dentro (endogrupo ou ingroup) e de des valorização do grupo de fora (exogrupo ou outgroup), protegendo e fortalecendo a identidade social (Tajfel, 1983). A proteção endogrupal, algumas vezes, pode conduzir a formas de exclusão, manifestando-se em atos violentos, tais como, o preconceito e a discriminação, podendo chegar ao extermínio (Souza, 2004). Por outro lado, o reconhecimento de pontos de identificação (Bonomo, Trindade, Souza & Coutinho, 2008) através da comparação social, pode levar a construção de redes de solidariedade entre os grupos, que superam a separação imposta no processo de diferenciação. Internamente, a formação de laços de solidariedade, pode representar importante elemento de fortalecimento e coesão da identidade social do grupo de pertença (Souza, 2004). 2. Método Esta investigação apresenta a temática da música no período da ditadura militar brasileira, focalizando os relatos referentes à prisão e tortura de mulheres militantes, presas políticas durante o regime. O presente trabalho integra um conjunto mais amplo de pesquisas que exploram este período histórico específico. A produção destas pesquisas contribuiu para a construção de um banco de dados composto por vinte e cinco entrevistas de mulheres militantes e familiares de ex-presos políticos, mortos e desaparecidos. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 38 As entrevistas foram realizadas em períodos distintos entre 2002 e 2012, obtidas individualmente, a partir de um roteiro semi-estruturado que serviu de guia para o conhecimento da trajetória de vida das militantes. Esse trabalho é um recorte temático, a partir do relato de cinco mulheres militantes entrevistadas, privilegiando trechos que elucidam o papel da música como instrumento de resistência em suas trajetórias, salientando a importância da Música Popular Brasileira para seus enfretamentos pessoais e coletivos em situações de prisão e tortura. Considerando as especificidades e características de cada uma das entrevistadas e com o objetivo de garantir seu anonimato, optamos pela utilização de nomes fictícios que não guardam qualquer semelhança com os nomes verdadeiros ou codinomes utilizados pelas entrevistadas durante o período de militância. O Quadro 1 caracteriza as militantes em relação à sua prisão, que ocorreram em bases militares do exército, presídios comuns, DOPS3, DOI-CODI4 e CENIMAR5. Estão identificadas as cidades onde a militância se iniciou, embora a trajetória de militância as tenha conduzido a diversas cidades brasileiras. As sucessivas prisões também ocorreram em várias cidades, sendo que algumas militantes foram remanejadas de centros de tortura a presídios ao longo do período de prisão. Todas as informações do quadro foram obtidas a partir dos relatos. Quanto ao tempo de prisão, cabe ressaltar que o mesmo não tem correlação com o grau de sofrimento das entrevistadas, uma vez que as dimensões de sofrimento e tempo são vividas de forma singular. Quadro 1: Caracterização das mulheres entrevistadas Nome ficticio Local ele inicio , .,..„ . , . Ano das prisoes r da inÜltanCia Tempo total de prisao f . _•*. (aproximado) Idade na época , prisao . 5 da _ . , Qasse social larrnvimarlní ría tincan 3 anos 19 anos Média-alta a Sóida Vitória-ES I ) 1968 2a)19ó8 3a)19ó9 4a)1971 Rita Vitória-ES la)1972 2a)1972 40 dias 21 anos Baixa Rosane Vitória-ES 1972 40 dias 2üanos Baixa Renata Vitória-ES 1972 2 meses 21 anos Média-alta Sofia Sao Paulo-SP 1972 26 anos Baixa DOPS - Departamento de Ordem Política e Social DOI-CODI - Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna CENIMAR- Centro de informações da Marinha Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 As informações foram submetidas à análise de conteúdo (Bardin, 1977/2009), revelando as seguintes categorias: 1. A música como arte e militância; 2. Estratégia de integridade física, psicológica e moral; 3. Coesão grupal e expressão de afeto. Ressalta-se que na apresentação e discussão dos resultados, os trechos de uma mesma entrevista poderão compor mais de uma categoria, uma vez que os temas estão entrelaçados. A discussão temática será perpassada por elementos conceituais do campo de análise da memória psicossocial (Sá, 2007, 2009) e da teoria de identidade social (Tajfel, 1983). Desse modo, resultados e discussão formam um amálgama que compõe experiências, memórias e história. 3. Resultados e discussão 3.1 A música como arte e militância A musicalidade é um dos elementos que compõem a identidade nacional brasileira (DaMatta, 1994) sendo um traço de reconhecimento internacional, reforçado e autorreconhecido na experiência dos brasileiros, seja em seus ritos, festejos e tradições. No país, entre a "invenção do samba" (Carvalho, 2004, p. 65), ocasionada na década de 1930, até a transição à democracia, em meados da década de 1980, a música foi lugar de edificação da opinião pública e de uma interpretação comum acerca da moderna trajetória do Brasil (Carvalho, 2004). Segundo Starling (2004), no Brasil, a música possui uma vocação ética e pedagógica, capaz de criar uma imagem de mundo comum, possível de ser válida para indivíduos de uma mesma coletividade, podendo integrar, assim, públicos diversos e fornecer temas e recursos de linguagem para o debate sobre a realidade brasileira. Ressoa nas trajetórias individuais de algumas militantes entrevistadas, o papel da música enquanto parte de sua experiência de vida e militância: Ele [namorado e militante] estudava..., bebia cerveja e tal, cantava, ia nesse negócio de Música Popular Brasileira, ia no teatro, era isso que ele queria. Era uma vida maravilhosa que ele tinha! Então, pra ele foi muito complicado isso, muito complicado. Ter responsabilidade, né, de pai, de família... E, aí, nasceu Clarice, Clarice chama Clarice, porque da música, né, do Caetano: Os Mistérios de Clarice... Porque era minha música predileta de todos os tempos. Adoro (Rita). Chama atenção no relato de Rita a menção à MPB, como apontada por Napolitano (2005), não representando somente um gênero musical, mas relacionada ao posicionamento frente uma cultura política. Neste sentido, Gianordoli-Nascimento, Trindade e Santos (2012) identificam em seus dados referentes à organização da esquerda em Vitória-ES (local de Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ militância de Rita) uma composição na qual as militantes valorizam a inserção cultural que tinham como forma de expressão política, como é atestado na fala de Sônia. Então, havia coisas maravilhosas... Eu me lembro que, naquela fase, logofoi criado o Centro Popular de Cultura, CPC, esse centro maravilhoso... Eu soube que Vitória era... culturalmente importantíssimo!... Nos sentimos sempre inseridos mais nacionalmente (...) (Sônia). Sônia demonstra a existência de diferentes formas de atuação e identificação com o pensamento denominado de esquerda, tendo a música um papel aglutinador dos indivíduos, e também figurando como ponte para o contato entre grupos sociais diversos. A música se apresenta enquanto facilitadora do acesso a bens culturais (intelectualidade) valorizados no período e pelos grupos de pertença. A fluência nos assuntos culturais, em geral, possibilitava o diálogo entre os pares e garantia certo status intelectual, favorecendo as relações e a integração ao grupo social. Desta forma, o acesso e o gosto musical vinculado à MPB, também significava identificar-se com uma opção ideológica ligada primordialmente à classe média contestadora (Bernardo, 2007). No trecho abaixo, a entrevistada destaca a importância que as relações sociais vinculadas à militância tiveram para a sua aquisição de conhecimentos musicais associados à intelectualização política da classe média, garantindo ao mesmo tempo um processo de diferenciação e identificação com as formas de expressão da intelectualidade de outros militantes, favorecendo sua mobilidade social ao se relacionar com pessoas de classe média com elevado grau de intelectualidade, em sua avaliação. No caso de Rosane, proveniente de classe popular, sua mãe lavadeira e pai carpinteiro, ambos analfabetos e ela a única filha a ingressar na universidade, a ampliação de seu conhecimento musical lhe assegurava a percepção de uma posição integrada ao grupo de militância, diminuindo a diferença de capital político-cultural que percebia ter em relação às demais militantes oriundas da classe média. Cabe destacar que, no cenário da época, o estilo musical associado às classes populares era a chamada música cafona6, ignorada pelas elites culturais do período. Então [o pai de um colega da universidade] era muito nosso amigo [ dela e do namorado também militante]... um médico conceituado... ele dava um respaldo intelectual. Tipo assim, ele não dava dinheiro nem nada. Ele nunca contribuiu pro Seus representantes são vários: Waldick Soriano, Odair José, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio. Estes são apenas alguns dos nomes mais conhecidos da geração de cantores bregas que marcou época durante o regime militar. Ao contrário dos artistas da MPB, não tiveram formação universitária e não compunham prioritariamente canções de protesto, embora análises recentes evidenciem o cunho político que algumas das músicas revelavam. Por conta disso, foram taxados de alienados e ignorados pelas elites culturais da época. Suas músicas falavam quase sempre sobre a rejeição, seja ela amorosa ou social, e foram censuradas principalmente pelos aspectos morais, pois tratavam de temas considerados tabus, como: Sexo, pílula, prostituição, drogas e homossexualismo (Araújo, 2005). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 partido... ele era muito intelectualizado, mas muito. Ele lia de tudo, sabia de tudo, ele que me apresentou "Águas de Março", que eu choro até hoje quando eu escuto, eu lembro quando eu escuto porque eu relacionei a música à ele. Eu era fã da Elis Regina, porque eu via os festivais que passavam... Porque eu gostava de um tipo de música [n... que eu conhecia [a música de Nana] Caymmi, depois eu fui conhecer Dorival Caymmi. Eu sempre fui ligada [a música]. Assim, meu lado intelectual era de outra maneira que eu via... era cultura, era cultural mesmo. Não tinha nada desse negócio de rebeldia política. Ao analisar a música como recipiente de temas socialmente compartilhados sobre a realidade brasileira, nota-se que, durante o regime, a política passa a ser debatida e tematizada na produção musical engajada de modo contundente, estabelecendo um elo entre a arte e a militância. Sobre isso, Starling (2004) afirma que os anos do regime militar em nosso país costuraram um vínculo de integração extrema entre a palavra, a ação e o discurso político, e a forma musical, a estrutura poética e a performance interpretativa da canção. Por conta desse vínculo que estabelece um quase isomorfismo entre os versos da canção e as práticas da política, essa canção passou a manter um elo operante e muito visível com o conjunto vigoroso de ideias, ideais, crenças e sensibilidades políticas que formaram as origens e o desenvolvimento das forças de resistência ao regime militar brasileiro (p. 219). Na análise das entrevistas, é possível perceber esse importante papel da música como instrumento de ação política, pois, além de ter sido um mecanismo de difusão das ideias contra o regime, também era utilizada pelas militantes como uma estratégia de ação política dentro das prisões. Um exemplo dessa condição foi descrita por uma das entrevistadas. Sônia relata que, após um grupo de estudantes ter sido preso, durante o congresso de Ibiúna7 realizado clandestinamente em outubro de 1968, eles organizaram uma greve de fome a fim de pressionar as autoridades para as solturas e transferências de presos políticos dos presídios comuns, enquanto uma quantidade enorme de comida chegava dentro das celas enviada pelos familiares e amigos. Nessa ocasião, parte da estratégia política era cantar músicas de compositores que já estavam sendo visados e perseguidos pelo regime, em duetos, entre as celas masculinas e femininas: E todo mundo preso junto... era um presídio comum. A gente cantava as músicas de, de, cantávamos as músicas de Chico Buarque, ou então essas músicas de...Vandré "Caminhando e cantando e seguindo a canção"... eufiquei numa cela de mulheres e Ocorreu em 1968, na cidade de Ibiúna, interior de São Paulo, o 30° Congresso da União Nacional de Estudantes (UNE). A quantidade de pessoas com características incomuns chamou a atenção da população local, isso tornou fácil a prisão de 720 estudantes, inclusive toda a cúpula da organização: José Dirceu, Vladimir Palmeira e Luiz Travassos (Pontes & Carneiro, 1985). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 perto, assim, do lado, ficou a cela do pessoal da, da, UNE, a diretoria da UNE que tava mais visada. Aí eu me lembro que a gente ficou cantando aquela música do Chico Buarque em parceria, assim: "Vem, meu menino vadio". Aí a gente fez um dueto, a gente cantava um monte de música assim (Sônia). Nota-se que, não aleatoriamente, os estudantes cantaram as músicas de Geraldo Vandré e Chico Buarque, reforçando a importância dos dois compositores que, através de suas canções, representaram nesse momento histórico uma forma de resistência contra o regime, como destacado por Almeida e Weis (2002). É pertinente ressaltar que cantar especific amente as músicas de Chico Buarque não só representava uma forma de protesto, mas um claro posicionamento transgressor diante dos valores impostos pelo governo. Segundo Napolitano (2003), as músicas do compositor não apenas denunciavam o regime militar, mas os efeitos da violência e da repressão sobre as consciências (...) não se tratava de fazer uma música de protesto, no sentido estrito da exortação a uma ação política efetiva e prática, mas afirmar uma experiência sociocultural, ainda que fugaz, de liberdade e "promessa de felicidade" que durava na exata medida da própria experiência da canção (p. 11). As manifestações culturais e artísticas promoviam a consciência sobre o cenário político brasileiro, pois tinha como pressuposto um desejo de transformação e de crítica à ordem estabelecida (Kornis, 2004). Nesse sentido, a arte, em especial a música, foi instrumento imprescindível de algumas militantes para a resistência à ditadura. Quando em situação de prisão os militantes cantavam, expressavam de alguma forma a situação que estavam passando. A experiência vivida era metaforizada e denunciada na expressão musical, atingindo aos militares que vigiavam o cárcere. Desta forma, mesmo que figurada, a mensagem chegava ao seu destino, e provocava diversas reações, dentre elas o incômodo, como relembra Sofia no período em que ficou presa no DOI-CODI de Brasília: "Eles punham todo dia seis horas da tarde pra você ouvir nos microfones, que era aquela [música] 'Jesus Cristo eu estou aqui', então eu cantava isso... e mesmo assim o cara vinha 'não pode cantar, não sei o que... ah alguma coisa eu tenho que fazer!'" (Sofia). Apesar das entrevistadas não fazerem parte de um mesmo grupo de militância e terem sido presas em períodos, instituições e duas cidades diferentes (vide Quadro 1) percebe-se a importância da música no contexto de prisão, seja como forma de resistência ou como forma de não sucumbir à violência física, psicológica e moral imposta pelo regime. As militantes do período foram expostas a fatos históricos semelhantes, como a mudança no cenário político e ascensão de militares ao poder, com consequente perseguição a seus opositores, e, sendo assim, mesmo que não tenham discutido estes acontecimentos, a análise de seus relatos indicou a presença de memórias comuns. Sendo assim, trabalhamos, Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ inevitavelmente, com as memórias comuns formadas pelo conjunto de memórias pessoais sobre determinado tema, e que podem ser construídas de forma independente (Sá, 2007). As memórias comuns dizem respeito a lembranças de um grupo de pessoas que foram expostas a um mesmo acontecimento, mesmo que não façam parte das comunicações grupais ocorridas face a face (Sá, 2007). As mulheres que vivenciaram a militância durante o regime possuem memórias pessoais e comuns acerca desse período, revelando representações sobre o passado que englobam redes de significados vinculadas as diferentes vivências da experiência. Por outro lado, as memórias pessoais não são individuais, a construção dos fatos históricos vivenciados não se dá de forma isolada, as lembranças são, até certo ponto, compartilhadas entre as pessoas que integram um contexto social determinado "pelos grupos, pelas instituições, pelos marcos mais amplos da sociedade, por recursos culturalmente produzidos" (Sá, 2007, p. 291). Desta forma, o embate sobre o que será lembrado ou esquecido, está intimamente ligado à relação intergrupos, sendo que neste contexto as estratégias de silenciamento e esquecimento perpetradas pelo regime, cumprem sua função, fazendo com que as lembranças saiam dos porões da memória de forma fragmentada. Considerando tais aspectos, durante o regime militar, a censura parece ter tido um importante papel nessa dinâmica, pois impediu a veiculação de músicas, manifestações culturais e informações, ao censurar os mais diversos meios de comunicação, principalmente aqueles sobre os quais havia a mínima suspeita de que seus conteúdos pudessem aludir qualquer sentido de oposição ao regime militar. No que tange às manifestações culturais, a mordaça colocada pela censura atingia não somente a classe artística, mas também a população que se via impedida de usufruir desse bem cultural. Rita descreve a sensação de violência sofrida quando a expressão das manifestações artísticas produzidas eram brutalmente cerceadas. Nesses momentos, parte da população de diferentes segmentos sociais, que de alguma partilhavam deste contexto, se sentia violada no compartilhamento de suas expressões culturais. Olha bem, veio o AI-5, né, veio o AI-5, que coisa, aquilo era uma coisa assombrosa. Aqui, por exemplo, no teatro, a gente iafazer um teatro, era uma coisa, na época da ditadura, todas as manifestações culturais, fossem elas onde fossem, as cadeiras primeiras eram da censura. Sentavam lá aqueles caras e ficavam lá. E se eles achassem que deveriam, eles interrompiam o espetáculo no meio. "Acabou, acabou a festa, acabou a peça, vai embora. Acabou, todo mundo vão borá". Isso era uma coisa muito violenta, né, assim, sabe?!... A gente ensaiou uma peça meses, meses e meses, e não conseguimos passar a peça. Porque no meio da peça, que era Morte e Vida Severina, né?!... assim, no ensaio pra mostrar pra polícia como que ia ser, porque tinha que fazer uma... [exibição] um teatro só pra eles, né?! Pra polícia assistir pra ver se ia liberar ou não. Aí no meio tinha assim, do camarote do governador, uma pessoa [que era o ator] chegava e falava: "mais forte são os poderes do povo". [Os Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 censores falavam] "Pára tudo! Acabou! Não vai ter teatro. Acabou". Não teve a peça... era pára tudo. Acabou. É isso que eu to falando... são umas coisas, assim, gente... música! Tudo era assim, né? Você ia ter um show musical: "não, essa música não pode, essa não pode, essa não pode". Então aquilo era uma coisa muito, sabe?! E isso era muito violento pra gente (Rita). 3.2 A música como estratégia de preservação da integridade física, psicológica e grupal Várias foram às estratégias mencionadas pelas entrevistadas no contexto de prisão, nas quais a música e o cantar se tornaram um instrumento de coesão, pertencimento e manutenção da integridade individual e grupal. Um dos primeiros contextos que nos chamou a atenção foi a realidade cotidiana vivenciada pelas presas políticas nos momentos de prisão coletiva em que a possibilidade de suporte social, por meio da comunicação, era percebida como forma de (re)integração com o cotidiano das relações de militância do qual foram apartados; isto porque presos antigos podiam estar em contato com presos recentes. Por meio da música, os militantes encontraram uma estratégia de comunicação para veicular mensagens de forma escamoteada, permitindo ao grupo certo controle sobre o que acontecia com os companheiros presos. Assim, era possível saber quem tinha chegado recentemente aos porões, quem havia sido transferido, levado para tortura, voltado ou não, e em que condições. O cantar foi um recurso para a proteção grupal, que garantia certa segurança para a identidade pessoal e social de preso político, contribuindo para a integridade física e psicológica. Então eu não conseguia falar com ninguém e tinha um esquema, por exemplo, [dos] presos mais velhos, de fazer contagem dos presos pra ver se estão todos, se tava faltando algum, então quando chegava na minha vez, eles cantavam uma música acho que é do Roberto Carlos, é senhora [Minha senhora]... Era a única hora que eu podia responder, tá certo?! E a resposta era aquela música que eles, [os militares na prisão], punham todo dia seis horas da tarde pro cê ouvir nos microfones, que era "Jesus Cristo eu estou aqui", então eu cantava isso (risos)... Eu respondia com essa [música] cantando... E eles [os presos mais velhos] davam as dicas, tipo "senhora cante" efale! (Sofia) Na coletividade da prisão, diversas formas de convívio social se estabeleciam entre os presos que, independente das suas filiações anteriores de esquerda, naquele contexto se identificavam enquanto grupo de presos políticos (ingroup), em contraposição ao grupo da repressão (outgroup). As músicas cantadas no contexto de prisão se tornaram catalisadoras do processo de identificação e relação grupal entre os militantes presos mesmo que não tenham se encontrado face a face neste contexto, pois poderiam estar em outras celas. Sofia exemplifica essas interações ao revelar que até hoje não sabe quem eram os presos com os quais se comunicava e por quem se sentia protegida. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ Sendo assim, a música em situaç ões-limite pode exercer um papel extremamente significativo. Lerner (2008), ao analisar como as canções se tornaram uma forma de refúgio para os judeus perseguidos e aprisionados nos tempos do holocausto, aponta a música como importante estratégia para a manutenção da integridade física e moral deste grupo, contribuindo para descarregar a opressão que sofriam ao vivenciar a fome, presenciar mortes e sofrer torturas inimagináveis. Em situação de suplício, em que se tentava destruir a dignidade humana através da dor e da humilhação, os relatos das mulheres apontam que a música parece ter tido um papel expressivo para a conservação da integridade moral, psicológica e física, favorecendo a luta pela vida na prisão e uma maneira de enfrentar psicologicamente o sofrimento. A prática da tortura, a partir dos anos 1960, embora negada oficialmente pelo governo militar, passou a ser utilizada pela repressão como "política sistemática do Estado brasileiro" (Coimbra, 2001, p. 13) nos porões da ditadura. Chauí (1987) afirma que se estabelecia uma relação na qual o torturador agia como se estivesse "acima da posição humana" (p. 33). Tal instrumento tinha como objetivo desumanizar o torturado, realizando um processo de violência e violação em que o indivíduo é rebaixado da condição de sujeito a "coisa", a objeto (Chauí, 1987, p. 33). Aportando tal discussão em um conceito mais amplo de violência, Chauí (1980) pontua que esse é um processo que geralmente se realiza em silêncio e de forma velada, no âmbito das relações sociais, visando minar a cidadania. Nesse sentido, a violência pode prescindir da ação física contra o corpo, estendendo-se, principalmente, contra o existir social. "A sua eficácia depende em grande medida do seu silêncio. Quanto mais silencioso, quanto menos visível, mais eficaz" (Souza, 2004, p. 60). "A tortura não quer "fazer" falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto" (Coimbra, 2004, p. 54). Como complementa Chauí (1987) a resistência é encarada como esforço gigantesco para não perder a lucidez, isto é, para não permitir que o torturador penetre na alma, no espírito, na inteligência do torturado (...). O que me impressiona nos relatos é o esforço, às vezes bem-sucedido, às vezes fracassado, de não permitir que o torturador se aposse do espírito torturado, de sua subjetividade, de sua humanidade (p. 34). Durante os vários momentos de tortura, em mais de um ano de prisão, em diversos estados, tal esforço é revelado por Sônia numa complexa estratégia de manutenção da integridade mental instrumentalizada pela música. EU atéfalei com eles [os torturadores] assim: "se tem uma coisa que vocês não vão conseguir é destruir, me destruir como pessoa, porque vocês tão tentando, mas isso vocês não vão conseguir"... Se eu não morri ou não enlouqueci ou foi por sorte ou Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 " muita determinação... Agora, que exigiu muita determinação minhafoi demais! Foi muito autocontrole, foi muita capacidade! Eu dizia assim: "não, tenho que pensar, não posso parar de pensar, eu tenho que raciocinar. Não posso perder minha capacidade de raciocínio... porque a hora que eu perder, eu tô lascada". Então isso aí, esse autocontrole, essa capacidade de pensar, refletir... cantava música quando eu tava muito desesperada pra poder relaxar... minha cabeça descansar um pouco, me manter lúcida" (Sônia). Dentre as várias experiências dessa natureza, ela relata sobre os momentos na prisão em que foi torturada na casa da morte8- Petrópolis/Rio de Janeiro, em uma câmara refrigerada onde havia alterações constantes de temperatura, simultaneamente a uma variação sonora intensa (Arquidiocese de São Paulo, 1985): eu não consigo muito lembrar de como era, porque como eu já tava muito ruim quando eu fui levada [do DOI-CODI de Belo Horizonte] pra lá [casa da morte Petrópolis/Rio de Janeiro], e como eu já fui entrando no pau ali... eu me lembro muito, assim, eu tenho uma visão muito clara da geladeira, que euficava dentro. O som, porque era grave, agudo, mas era um negócio, a história do som com a temperatura era uma coisa assim que desestruturava completamente, eu pensava assim "vou enlouquecer"... depois, também lá em Belo Horizonte [onde foi levada de volta] quando eu percebi que eu não conseguia suportar um barulho, os caras, ficavam fazendo assim [dedilhando na mesa], o soldadinho. Aquilo me fazia um mal! Eu começava a botar coisa no meu ouvido pra não ouvir, e eles ficavam [dedilhando na mesa]. E eufiquei pensando: "acho que eles estão fazendo isso para eu lembrar daqueles barulhos da tortura", por que eles me faziam aqueles barulhos quando eu tava no, na, na geladeira, ai eu começava a querer pensar assim: "não pode ser! Eles não devem saber daquilo porque são soldados". Mas ai eu pensava: "Issojá é alucinação! Issojá é alucinação, já tô alucinando" (Sônia). A estratégia utilizada por Sônia era cantar o mais alto possível todas as músicas de Chico Buarque que conhecia, uma forma também de resistência. Como ressaltado no item anterior, as músicas de Chico Buarque, bem como de outros cantores da MPB, eram produzidas e cantadas como forma de crítica e protesto ao regime estabelecido. Porque vocêficava ali, só ouvindo aquilo, euficava cantando... E quando terminava de cantar começava tudo de novo. Tentando voltar minha atenção pra outra coisa, esforçando minha memória para pensar em coisas, pra eu não ouvir o som. Mas é uma coisa que enlouquece mesmo, teve momentos que eu pensei que ia enlouquecer (Sônia). Casa de Petrópolis também conhecida como "Casa da Morte". Centro de tortura e extermínio clandestino montado pelo Centro de Informação do Exército (CIE), considerado "uma filial do inferno". Passar pelas mãos do CIE era considerado pelos militantes como o equivalente a passar pelas "piores desgraças possíveis. Não era só o risco de ser morto. No CIE, a morte não era o pior dos castigos; muitas vezes, para os guerrilheiros presos, parecia até mesmo ser a solução" (Figueiredo, 2005, p. 207). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Neste sentido, estar vinculado psicologicamente ao que representavam alguns artistas da época, era um fator positivo de fortalecimento da pertença ao grupo de militância, à ideologia partilhada, e sua ligação com os companheiros que estavam fora da prisão. Tal vinculação pode estar associada ao que Tajfel (1983) identificou como forma de pertencer a um grupo, que não necessariamente significa vincular-se a ele de maneira presencial, trata-se de uma pertença psicológica. Para o autor, o termo "grupo" indica uma entidade cognitiva com grande significado para o indivíduo num determinado momento e que é diferente da maneira como se utiliza o termo "grupo" quando se quer indicar uma relação face-a-face entre um certo número de pessoas (Tajfel, 1983, p. 289). A música representava um refúgio para resistir ao objetivo dos torturadores, qual seja, minar o sujeito em todas as suas formas de dignidade, o que naquele contexto representava também a possibilidade de delatar os companheiros: Vocêsabe o que eu pensava? Eu pensava o seguinte: que as pessoas quefalam, depois elas se sentiam tão mal com elas mesmas... Tanta culpa, que eu falei "esse sentimento eu não vou ter"... Eu vou poder dormir tranquila, porque eu não denunciei companheiros (Sônia). Após sete meses em confinamento, passando por um longo período de bárbaras torturas, presa na maior parte do tempo em solitária com poucas notícias da vida extramuros, e sem nenhuma noção de quanto tempo havia se passado desde sua prisão, a esperança de vida de Sônia retornou através de um rádio clandestino: "os caras deixaram mamãe entrar... me deixaram um minutinho encontrar... mamãe, aí mamãe pegou... Ela enfiou um radinho desse tamanhozinho, de pilha. Enfiou no meu bolso... eufiquei com aquele radinho" (Sônia). Nessa conjuntura, a música constituiu-se como elo entre a prisão e o mundo externo, não se restringindo às chamadas músicas de protesto. Foi uma coisa tão importante aquilo, tão importante aquilo, o meu psicológico foi a mil. Porque eu me lembro que na hora que eu botei o rádio tava dizendo assim "agora vamos ouvir uma nova música de Tom Jobim". E isso era março. Aí dizia assim "são as águas de março fechando o verão, é promessa de vida no meu coração". Menina, aquilo, olha, essa música até hoje me emociona, porque diz assim "é pau, é pedra, é ofim do caminho, é um resto de toco, é um toco sozinho". Aí quando dizia assim "são as águas de março fechando o verão, é promessa de vida no meu coração". Eu falei assim: "gente, eu sobrevivi, eu tô ouvindo música de rádio, eu tô ouvindo o que tá acontecendo no mundo, eu entrei em contato com o mundo"... Foi quando eu senti que eu tava retomando contato com o mundo... Mas aí já mudei a minha... a minha psicologia já mudou (Sônia). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 " Embora a música mencionada pela entrevistada não seja especificamente identificada no rol das canções de protesto, ela ganha aqui uma acepção peculiar, despertando esperança de vivências para além do cárcere. Naquela ocasião, a canção tornou-se a promessa de vida em tempos de ameaça. Mesmo diante de uma situação-limite, de crise, é na música que a militante consegue um espaço para elaboração de sentido transformando a vivência em experiência (Berger & Luckmann, 2004), ou seja, possibilitando novas formas de significação da vida e da situação objetiva que estava vivendo. Este momento de reflexão, possibilitado por meio da música escutada, anuncia a continuidade da vida e a esperança de superação daquele cenário. 3.3 A música como expressão de afeto e coesão grupal Várias eram as músicas cantadas e ouvidas, que compunham o repertório das militantes e que não se configuravam necessariamente como críticas ao governo, mas acionavam sentimentos diversos e traduziam a vivência do período e a necessidade de resistir. A música também pode ser um recurso para traduzir o que em alguns momentos se torna de difícil expressão ou que não pode ser comunicado de forma explícita. Geralmente, carrega emoções e mensagens socialmente compartilhadas que podem unir gerações em códigos de sociabilidade, tanto no tempo, quanto no espaço. Segundo Napolitano (2005), Entre nós, brasileiros, a canção ocupa um lugar muito especial na produção cultural. Em seus diversos matizes, ela tem sido termômetro, caleidoscópio e espelho não só das mudanças sociais, mas, sobretudo, das nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas mais profundas (p. 77). No período da ditadura militar no Brasil, a música engajada embasou e fortaleceu a luta política de uma corrente de pensamento que repudiava o regime. Em situações de prisão e tortura, o canto serviu para ancorar vivências coletivas, contribuindo para a resistência das militantes. O ex-preso político Fernando Gabeira, em seu livro O que é isso companheiro ?, escrito em 1979 após seu retorno do exílio, menciona a presença da música cantada quando um dos companheiros voltava da tortura: "Fazíamos um círculo em torno da pessoa, curávamos os ferimentos com os poucos recursos que tínhamos, dávamos uma das frutas que estavam na reserva. A solidariedade tornava possível suportar aquela situação e, às vezes até cantávamos" (p. 392). Álvaro Caldas, também ex-preso político, relata o papel das canções nos momento sem que algum dos companheiros militantes era liberto: "A libertação de alguém era sempre festejada com a 'Canção do adeus', a 'Internacional' [Comunista] ou aquela estrofe do Hino da Independência que todos conheciam: 'ou ficar a pátria livre/ ou Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ morrer pelo Brasil'" (Almeida & Weis, 2002, p. 398). Nas vivências de Gabeira e Caldas, a música aparece como um dos meios que favoreciam a formação de uma rede de solidariedade e suporte emocional entre os presos. Nesta situação-limite na qual as militantes foram levadas a viver, eclodiam também, relações de embate e percepção de diferenças e semelhanças, o que segundo Souza (2004), pode conduzir à criação de laços de solidariedade ou ao surgimento de mecanismos de exclusão. No processo de comparação social, há segundo Tajfel (1983) uma tendência do grupo próprio a se valorizar positivamente e a desvalorizar o grupo com o qual se compara. Quando nos processos de comparação os grupos valorizam traços de semelhança de outrem, isso significa valorizar-se a si mesmo, fortalecendo a identidade pessoal e social (Souza, 2004). Na criação desses laços, não se trata de eliminar a diferença, mas de reconhecê-la, valorizando as igualdades em detrimento das dessemelhanças. Esses processos são ilustrados pela relação estabelecida entre as entrevistadas Rosane e Renata. Renata expressa à existência de diferenças entre ela e Rosane, em relação às formas de contestação ao regime dentro da prisão: EU acho que eu dava conteúdo e sentido, no sentido de que eu de repente falava, eu meio que pregava, assim, aquela coisa de "vamos, é a ditadura", eu meio que lembrava das nossas coisas [fundamentos ideológicos, estruturas políticas do partido]. E a [Rosane] mostrava o absurdo da situação... de forma mais estapafúrdia... do jeito dela, completamente diferente, anárquica... (Renata). Rosane, por sua vez, manifestou às companheiras suas inquietações com as posturas intelectualizadas que para ela não representavam nada: "eu andava no bairro, tipo assim, né, pé no chão, pegava ônibus... o pessoal era mais intelectualizado, mas só de falar. Lia, lia e repetia" (Rosane). Mas não eram só essas as questões que incomodavam Rosane, eram também seus preconceitos em relação à classe social, escolarização e regionalidade. Ela acreditava que quem vivia na capital deveria ter um nível intelectual e de conhecimento maior do que pessoas do interior: "Aí deu aquela minha revolta, né! 'Ela é do interior, como é que ela sabe isso tudo e eu não sei?’". Rosane se incomodava com Renata, seja pelo repertório musical que cantava, ou pela forma intelectualizada com que a companheira de cela se posicionava. Ao desvalorizar a origem rural de Renata e valorizar sua origem urbana, ela protege e fortalece sua identidade social, que poderia ser abalada pelas diferenças oriundas de suas classes sociais de origem (Renata é proveniente da classe média e Rosane da classe baixa). Embora Rosane se considerasse uma frequente ouvinte de música no rádio, MPB principalmente, desconhecia a existência das que eram cantadas por Renata, nascida em região rural, e por isso ficava incomodada: "Quem ouvia rádio era eu! [Depois] entendi que a Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 mesma onda que chegava [na cidade], chegava lá pra ela [no interior], com menos onda [frequência]! (Rosane). A convivência na prisão foi fazendo com que Rosane, por exemplo, pudesse rever as desigualdades sociais tão naturalizadas para ela, e pudesse perceber que a intelectualização das demais se referia à realidade social que ambas viviam, sendo esta outra maneira de questionar as desigualdades: "naquela época eu era muito simplória... não li muito sobre o que se passava no jornal, política, nada. Lia por ler. Eu não quis saber... Se tivesse questionado mais um pouco... Eu não tinha aquela, vamos dizer assim, aquela esperteza, aquela malícia, né?" (Rosane). Por meio das músicas que cantavam na prisão, apresentadas por Renata, Rosane percebeu o significado das letras e entendeu que não era apenas uma forma de passar o tempo, mas de representar, expressar e denunciar o que estavam vivendo. Para nossas entrevistadas que ficaram presas juntas, o canto foi também um fator de coesão e aproximação do grupo, que passou a estabelecer laços importantes de amizade e solidariedade ao instituírem seus hinos de resistência, como declara Rosane: (...) foi daí que eu ouvi Renata cantando, cantava [a música] Antonico... Assum Preto, descobri assim... É aí que eu vi o lado bom dali... Renatinha cantava todo dia, porque a gente pedia toda hora.... mas ela tinha um lado assim... ela bateu de frente comigo, [mas] nós só nos unimos (Rosane). A música, nesse sentido, foi um elemento mediador que contribuiu para a convivência e proteção do grupo, fazendo com que, principalmente, as duas pudessem se aproximar e se reconhecerem como parte do mesmo grupo. A partir dessa identificação, Rosane passou a partilhar a identidade social de militante política com as demais do grupo. Ao perceber que muitos vivenciavam as mesmas circunstâncias, unir-se era mais importante que dividiremse. Desta forma, as canções se tornaram referências entre as amigas, especialmente para Rosane com relação à música Antonico, por esta representar o que ela havia vivido naqueles dias. Afastadas no tempo e no espaço, tendo se passado vinte anos sem contato após o período que ficaram presas, Rita, Renata e Rosane se reencontraram em uma ocasião desejada por elas, e organizada pela pesquisadora, em função da participação na presente pesquisa. Foi um momento de intensa emoção, reencontro e fortalecimento de um laço identitário no qual a música manteve sua força. Agora, o sentido dado àquelas canções não tinha mais funções de protesto e oposição, mas eram marcas deste tempo de luta e resistência, estando vivas nas memórias pessoais e comuns, como pode ser visto no diálogo entre a entrevistada e a entrevistadora: [Entrevistadora:] Foi emocionante aquele dia que [vocês cantaram] na reunião... [Rosane:] Foi. Então. Vocêviu, ela do meu lado apoiada em mim, cantando... Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ [Entrevistadora:] Você ainda lembra a música toda ? [Rosane:] Não, um pedaço... lá lembrei... tinha essa [Assum Preto] e tinha Antonico. Não sei, mas Antonico eu não lembrava que era de Abel Silva [sic], depois eufui saber, né,fiquei apaixonada efoi assim (Rosane). Trazer essas lembranças à tona, pode ter sido uma forma de ressignificar os fatos e compartilhar diversos sentimentos despertados por meio da música e do canto em comunhão. Neste reencontro, percebe-se que a partilha de lembranças relacionadas às memórias pessoais e comuns (Sá, 2007) sobre o período, possibilitaram um espaço coletivo de transformação da vivência em experiência (Berger & Luckmann, 2004) e a possível constituição de um espaço de criação de memórias coletivas (Sá, 2007), a partir da reflexão conjunta sobre os fatos vividos. Desta forma, entende-se que a escolha das músicas não era aleatória. Cada canção trazia uma referência significativa por expressar a própria experiência, constituindo uma forma de elaboração de sentido (Berger & Luckmann, 2004). Em suma, percebe-se que o papel peculiar da música, no contexto da prisão política, propiciou a resistência dessas mulheres, ao favorecer o fortalecimento dos laços de amizade e solidariedade, possibilitando a elaboração das experiências relacionadas à situação-limite pela qual passaram. 4. Considerações Finais Diante da riqueza dos testemunhos das militantes e de suas lembranças, vemos emergir a possibilidade de se resgatar parte do repertório sociocultural daquele tempo no Brasil, contribuindo para a construção de uma memória histórica sobre o período. Os relatos autobiográficos das militantes revelam elementos de memórias pessoais e comuns (Sá, 2009), bem como a formação de redes de solidariedade e resistência mediadas pela música, aspecto relevante na trajetória destas mulheres e marcante no cenário cultural da época. Os dados apontam como a música surge como uma estratégia de engajamento político e manutenção da integridade física, psicológica e grupal, tornando-se um instrumento de resistência. Assim, a música pode também ser tomada como um veículo para a construção das memórias geracionais (Sá, 2007), nos ajudando a compreender e (re)construir a memória social deste cenário histórico e político (Lerner, 2008; Sá, 2007). Para as mulheres entrevistadas, a música teve também a função de fortalecer a identidade social e potencializar a luta que estavam travando contra a própria debilidade física e mental à qual temiam sucumbir. Para aquelas que ficaram presas juntas, o canto foi um fator de coesão e aproximação, que passou a estabelecer laços importantes de amizade e solidariedade. Segundo Lerner (2008), "a música aciona sentimentos, conhecimentos e Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. C., Veloso, F. G. C. & Rabelo, L. B. C. (2013). Promessas de vida em tempos de ameaça: mulheres, música e resistência durante a ditadura militar no Brasil. Memorandum, 24, 29-58. Recuperado em _____ de _________________, _______ de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 ^ valores partilhados pelo grupo que vivencia situações similares, permitindo uma identificação privada e subjetiva entre a informação transmitida pela mesma e a receptividade dos que a ouvem" (p. 1). Enquanto cantavam, a solidariedade consolidava-se como um componente importante para que pudessem suportar as condições de insegurança e de sofrimento. Essa experiência só podia ser partilhada por elas próprias, já que não havia contato periódico com familiares. A música, somada ao raciocínio, ao exercício lúdico ou à afetividade, era um elo de contato com a realidade exterior. A forte presença das músicas nos relatos e memórias dessas mulheres dá visibilidade à importância que as atividades culturais e artísticas tiveram como veículos de crítica ao autoritarismo. Finalmente, cabe destacar que a arte engajada e mobilizadora não se caracterizava como uma hegemonia cultural naquele momento. Para Mendes (2008) a existência da jovem guarda e das telenovelas caracteriza justamente o outro lado da moeda. Desta forma, não se tratava efetivamente de uma hegemonia da esquerda no meio artístico-cultural embora esta fosse a impressão tanto daqueles que faziam parte desse segmento político, como de setores da direita (p. 269). Embora inexistisse essa supremacia, "era uma parte representativa e qualitativamente destacada, porém, minoritária, desta produção [que] tinha pretensões de transformações de alguma espécie" (Ridenti, 1999). Por outro lado, ainda que durante a ditadura militar algumas vozes tenham se erguido contra as práticas de perseguição e tortura, estas não se mantiveram ativas após o período ditatorial, estabelecendo que a tortura ficasse vinculada apenas à ditadura. O mais grave hoje no Brasil é que muitas das vozes que clamavam contra a tortura no tempo do regime militar silenciaram, e constata-se agora uma certa complacência da sociedade - para não dizer o aplauso de setores das elites e de muitos segmentos médios. É como se a tortura praticada [hoje] contra os estratos mais baixos da população não fosse tão grave assim. É como se [hoje] não existisse mais tortura no Brasil (Araújo, 2005, p. 249). Referências Abreu, A. A. (1997). Quando eles eram jovens revolucionários: os guerrilheiros das décadas de 60/70 no Brasil. Em H. Viana (Org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais (pp.181-205). Rio de Janeiro: UFRJ. Aguiar, J. A. (1994). Panorama da música popular brasileira. Em S. Schawartz & S. Sosnowski (Orgs.). Brasil: o trânsito da memória (pp. 121-130). São Paulo: Edusp. 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Nota sobre as autoras Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento é Doutora em Psicologia pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do núcleo de pesquisa "Memórias, Representações e Práticas Sociais". Contato: Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 31270-901. E-mail: [email protected] Sara Angélica Teixeira da Cruz Silva é mestranda em Psicologia pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista da Coordenação Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Gianordoli-Nascimento, I. F., Silva, S. A. T. C., Cruz, J. P. D., Oliveira, F. 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Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 31270-901. E-mail: [email protected] Flaviane da Costa Oliveira é mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Contato: Programa de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 31270-901. E-mail: [email protected] Flávia Gotelip Corrêa Veloso é mestre em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: [email protected] Laís Di Bella Castro Rabelo é mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: Programa de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos, 6.627, Campus Pampulha, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 31270-901. E-mail: [email protected] Data de recebimento: 06/09/2012 Data de aceite: 26/03/2013 Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/gianordolinascimentoetalli01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 ,-„ Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica Pratt and Rorschach: a fenomenological approach Marta Helena de Freitas Universidade Católica de Brasília Brasil Resumo Este ensaio estabelece algumas comparações aproximativas entre as concepções do filósofo americano James B. Pratt (1875-1944) e do psiquiatra suíço Herman Rorschach (1884-1922), a partir de uma leitura fenomenológica inspirada nas contribuições de Husserl e Merleau-Ponty. Tal leitura retoma, principalmente, os conceitos "fundo de sentimento vital", em Pratt, e "tipo de vivência", em Rorschach, e seus respectivos fundamentos teórico-filosóficos e os coloca em diálogo com outros conceitos de autores de sua época, em especial de Freud e Jung. Tomando-se como fio condutor as relações entre o fundo irrefletido e a atividade reflexiva que caracterizam a existência humana, conclui-se que tanto Pratt como Rorschachbuscaram reenviar, por meio de seus conceitos e instrumentos, e cada um a seu modo, às contínuas transformações e às diferentes modalidades de realizações da intencionalidade psíquica. Palavras-chave: Pratt; Rorschach; fenomenologia; psicologia da religião; personalidade Abstract This essay provides some estimated comparisons between the conceptions from the American philosopher James B. Pratt (1875-1944) and from the Swiss psychiatrist Herman Rorschach (1884-1922), based on the phenomenological approach from Husserl and Merleau-Ponty. The main focus of these comparisons are the concepts of the "vital feeling background", by Pratt, and the "experience type", by Rorschach, along with their theoretical and philosophical principles, which are put in connection with the concepts from other authors of their time, especially Freud and Jung. In these connections, the main thread of discussion is the relationship between the unreflective background and the reflective activity that characterize human existence. The conclusion is that both Pratt and Rorschach attempted to resubmit, through their concepts and instruments, and each one in their own way, to the continuous changes and the different modalities of achievement of the psychic intentionality. Keywords: Pratt; Rorschach; phenomenology; psychology of religion; personality Introdução Toda ação ou todo conhecimento que não passam por esta elaboração [do que vivemos no mundo] e querem propor valores que não tenham tomado corpo em nossa história individual ou mesmo coletiva, "ou bem", o que dá no mesmo, escolher os meios por um cálculo e por um proceder inteiramente técnico acabam aquém dos problemas que desejavam revolver (Merleau-Ponty, 1960/1980, p. 175). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 ,„ De uma primeira visada pareceria haver nada em comum entre o filósofo americano James B. Pratt (1875 - 1944) e o psiquiatra suíço Herman Rorschach (1884 - 1922), a não ser o fato de ambos teremsido contemporâneos e vivido num período em que se registrou verdadeira efervescência intelectual em torno do tema religião. De fato, como indicam vários historiadores deste campo (Rosa, 1971/1992; Brown, 1973; Byrnes, 1984; Beit-Hallahmi, 1989; Paiva, 1990; Wulff, 1997; Abreu & Silva, 1999), entre os anos de 1890 e 1920, em consonância com o movimento intelectual da época, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, os estudiosos pareciam considerar o fenômeno religioso um objeto muito interessante e propício à investigação psicológica, de modo que, tanto Pratt quanto Rorschach,embora com objetivos e metodologias muito diversos, também se dedicaram ao assunto. Por outro lado, se, de um lado, Pratt ficou conhecido principalmente pelas suas contribuições nocampo da chamada psicologia da religião, sendo frequentemente apontado como um dos principais pioneiros neste campo, com Rorschch isso não se passou da mesma forma. Poucos profissionais ou estudantes em psicologia têm conhecimento dos estudos sobre os fundadores de seitas religiosas desenvolvidos pelo autor do famoso método de psicodiagnóstico que levou seu nome e que é até hoje empregado com muito êxito no campo da psicologia clínica. De fato, praticamente nenhum livro ou manual sobre o tão reconhecido método e seu respectivo autor trazem estas informações e é escassa a literatura concernente ao tema. Como exemplo dos exíguos trabalhos disponíveis em língua latina, encontram-se um obra organizada por Ellemberger (1967), um capítulo de Abreu e Silva (2004) e os trabalhos realizados por Freitas (2002, 2005). Este ensaio pretende ser mais uma contribuição nesta direção e tem como objetivo principal mostrar como que, de um ponto de vista fenomenológico, pode se encontrar muitas afinidades entre as concepções fundantes de ambos os estudiosos, Pratt e Rorschach, ainda que tais concepções tenham dado origem a diferentes métodos de investigaçãoe que, pelo menos aparentemente, ambos não tenham sequer chegado a conhecer os trabalhos um do outro. Pratt e Rorschach: divergências e convergências No intuito de tornar mais explícitas algumas divergências e convergências entre os dois estudiosos, alguns elementos importantes acerca da biografia e produção intelectual de ambos - origem, período de vida, formação, principais trabalhos, concepções filosóficas, principais influências, concepções religiosas, concepção de personalidade, conceitos básicos, sujeitos pesquisados, instrumentos elaborados - são apresentados sumariamente no Quadro 01. Como se pode constatar no referido quadro, Pratt (1875 - 1944) e Rorschach (1884 - 1922) foram contemporâneos, sendo que o primeiroteve um tempo de vida bem mais longo queo segundo. Isso inclusive, dentre outros fatores, como se verá a seguir, explica a produção mais Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 -.. significativa de Pratt em termos de número de obras publicadas, em geral livros, ainda em vida. Rorschach viveu mais tempo longe do mundo acadêmico, atuando como assistente médico em clínicas psiquiátricas (Münsterlingen e Waldau, Berna, na Suíça, e Münsingin, na Alemanha). Embora ele mantivesse relações com vários pesquisadores e cientistas de sua época e contexto cultural (dentre eles, Bleuler, Monakow, Jung, LudwingBinswanger, Eugene Minkowski, além do grupo psicanalítico suíço e diversos filósofos da Rússia), a sua principal obra - "O Psicodiagnóstico" - surgiu longe das universidades, dos laboratórios e das bibliotecas, numa pequena clínica psiquiátrica.Já Pratt, por outro lado, era filósofo, docenteuniversitáriono Williams College, nas áreas de psicologia, história da filosofia e história da religião, tendo se dedicado plenamente à vida acadêmica, boa parte dela em pleno centro cultural e científico de Nova Iorque. Em relação às concepções de mundo, Pratt se intitulava um filósofo de tipo realista pessoal, posição influenciada pelo pragmatismo de C. Pierce e W. James, tendo inclusive realizado a sua tese de doutoramento sob a orientação deste último. Rorschach, por sua vez, compartilhava dos ideais próprios do romantismo alemão e procurou conciliar contribuições vinda de fisiologia, em Mourly Vold, da psiquiatria francesa, em Pierre Janet, e da psicanálise, em Freud e Jung, como se pode ler em Ellenberger (1967), seu biógrafo, ou em Abreu e Silva (2004), quetraça um perfil dos fundadores de seitas estudados por Rorschach. Entretanto, mesmo considerando-se as especificidades de cada uma destas correntes filosóficas, uma leitura fenomenológica acerca do modo como cada um desenvolveu suas ideias, e respectivas concepções sobre a vida psíquica, leva a constatar que, em alguma medida, elas têm muitas similaridades, como se pretende deixar mais claro ao longo deste ensaio. Quadro 01: Comparativo entre Pratt e Rorchach J. B. PRATT H. RORSCHACH ORIGEM Norte Americana - EUA Européia - Suíça PERÍODO DE VIDA 1875 -1944 1884 -1922 FORMAÇÃO Filosofia - Professor Psiquiatria - Clínico Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em _ ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 62 Reflexhalluzinationenundverwandte Psychology ofReligious Belief (livro), Nova Iorque, l907. Whatis pragmatism?, ibid., 1909. PRINCIPAISTRABALHOS The religiousconsciousness, ibid., 1920. Matter and Spirit, ibid., 1920. Personal Realism, ibid., 1927. Naturalism, ibid., 1938. Why religions die, ibid, Berkeley, l940. Erscheinungen1 (Tese de doutorado), Zurich, l912. ReflexhalluzzinationundSymbolik2 (artigo), 1912. EinigesüberschweizerischeSektenund Sektengründer3 (artigo), 1917. Weiteresüberschaweizerische Sektenbildungen4(artigo), 1919. Sektierestudien5 (artigo), 1920. Psychodiagnosstik6(livro),Verlag /Berna/Leipzig, 1921. CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS Realismo personalista Romantismo alemão PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS Pragmatismo Peirce e W. James Fisiologia - Mourly Vold Psicanálise - Freud e Jung Fenomenologia - L. Binswanger CONCEPÇÕES RELIGIOSAS Cristão - Protestante CONCEPÇÃO DE PERSONALIDADE Cristão - Acreditava numa "corrente espiritual" fluindo através dos séculos. Fundo invisível e dinâmico, de Núcleo invisível, em cujas raízes se nutrem afetos, constanteelaboração e atividade e que, desejos e impulsose de onde consciente ou inconscientemente, coemergem pensamentos, determina pensamentos e atos raciocínio lógico e diferenciações conscientes. ideativas. CONCEITOS BÁSICOS RELACIONADOS "Fundo de sentimento vital" Tipos de crença: perceptiva, intelectual, afetiva e volitiva Tipos de vivência: introversivo, extratensivo, coartado e coarta tivo "Função do real" SUJEITOS PESQUISADOS População normal População psiquiátrica, principalmente INSTRUMENTO ELABORADO Questionário Pratt sobre Crença Religiosa Método de Rorschach (Psicodiagnóstico) Segundo a concepção de personalidade apreendida a partir das proposições de Pratt (1907), poder-se-ia distinguir, na vida mental, além dos aspectos racionais, cognitivos e representativos, dois outros tipos de material psíquico: "o sentimento e o que é conhecido como o fenômeno do "background" (pano de fundo, cenário)" (p. 9). As coisas que estão nesse 1 Sobre as "alucinações reflexas" e outras manifestações análogas. Alucinação reflexa e simbolismo. 3 Algo sobre seitas suíças e fundadores de seitas suíças. 4 Algo mais sobre as seitas suíças. 5 Estudos sobre sectários. 6 Psico diagnóstico. 2 Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 ,- pano de fundo são privadas, mas caso se fixe a atenção nelas, poderiam tornar-se comunicáveis. Por outro lado, estas mesmas coisas, "ainda enquanto na região marginal e ainda enquanto não percebidas e não conhecidas" (idem, p. 10), teriam um efeito sobre o tom geral da vida consciente, colorindo a vida, no sentido afetivo do termo. Esta espécie de pano de fundo da vida mental, a que o autor designou de "fundo de sentimento vital", é assim descrita e relacionada às demais funções psíquicas: A sensação e a ideação remetem-nos ao mundo exterior retirado de nós pelo espaço e o tempo; a massa sentimental de que eu falo está indissoluvelmente conectada com nossas funções vitais. Tanto o quanto nós somos conscientes destas funções todas, aquela consciência pertence principalmente à vida afetiva. "Coencesthesia" - como o termo alemão Gemeingefühl implica - é um caso de sentimento, num sentido amplo. Os ritmos conscientes dos processos corpóreos - especialmente os que indicam condições de saúde ou doença - são somados neste sentimento marginal comum. Em suma, podemos dizer que a ideação é a consciência de um homem enquanto ser racional; seu fundo sentimental/afetivo é sua consciência de organismo vivo. É isto que está em conexão com nossas necessidades vitais. Os desejos instintivos e os impulsos têm suas raízes lá, e de lá se nutrem; as reações inatas ao meio, enquanto conscientes, as antipatias e as tendências congênitas, nosso amor e ódio mais profundos tudo são partes deste "fundo" e crescem a partir dele. De fato, tão inextricavelmente ligado está ele à vida e tudo o que ela significa que bem poderia ser chamado de fundo vital (Pratt, 1907, pp. 14-15, grifo nosso). Também uma concepção de personalidade semelhante pode ser apreendida a partir dos fundamentos do Método de Rorschach (1921/1974), e que é decorrente da noção de "tipo de vivência" ou "tipo de ressonância íntima". Tal noção constituiu-se como que no núcleo do referido instrumento de psicodiagnóstico (Ellemberger, 1967) e pode ser compreendida como sendo a mais íntima e essencial capacidade de ressonância com as experiências da vida e respectiva elaboração inconsciente. O aparelho de vivência com o qual o indivíduo experimentaé um sistema muito mais amplo do que o aparelho com o qual o indivíduo vive. Para experimentar, o indivíduo possui uma série de registros dos quais ele costuma utilizar, em suas ações da vida, apenas alguns e a tal ponto que, frequentemente, recai na estereotipia (Rorschach, 1921/1974, p. 91, grifo do autor). Segundo o autor do famoso psicodiagnóstico, haveria, junto ao enlace natural entre as percepções isoladas por meio de "associações", um caminho muito mais direto através do sistema cinestésico. Assim, por meio dos fenômenos "cinestésicos", as percepções óticas seriam fixadas diretamente por baixo do umbral da consciência idiocineticamente. Estas percepções seriam, posteriormente, re-vivenciadas conscientemente como cinestésicas ou, ainda, "retraduzidas" inconscientemente em impressões óticas. Este princípio foi aplicado na elaboração do teste, cujas lâminas poderiam ser consideradas como uma espécie de espelho, Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 , . no qual os estímulos óticos ativariam imagens cinestésicas, que seriam, por sua vez, projetadas sobre as manchas de tinta e percebidas como pareidolias. Além dos conceitos de personalidade, aqui muito resumidamente apresentados, chama a atenção também o fato de ambos terem recorrido a aspectos da fisiologia para explicar a constituição e funcionamento da vida mental e, ainda, terem procurado estabelecer relações entre esta última e o passado do indivíduo, tanto em termos ontogenéticos como filogenéticos. Algumas semelhanças nesse sentido podem ser constatadas a partir do que diz Pratt (1907), no capítulo I do seu livro Psychology ofReligious Belief, e do que diz Rorschach (1921/l974), no capítulo IV do seu Psicodiagnóstico. Segundo Pratt (1907), o fundo de sentimento vital seria, na verdade, uma espécie de forma primária de consciência, mantendo íntima e direta relação com a vida do organismo. Todas as formas inferiores de vida teriam pouco dessa forma primária e tanto a sensação, como a percepção e, ainda, as funções psíquicas chamadas superiores, como a ideação, emergiriam a partir daí. Para o filósofo americano, "o processo parece análogo àquele da evolução biológica, e pode ser muito bem descrito pela definição de Spencer: um progresso desde a homogeneidade incoerente e indefinida até uma heterogeneidade coerente e definida, através de sucessivas diferenciações e integrações (idem., p. 17). Assim, por meio dessa massa de sentimento não-racional, o ser humano estaria ligado com seu próprio passado, com seus ancestrais, com a própria espécie e etnia e, até, num certo sentido, a todas as outras coisas vivas. Este fundo de sentimento vital o colocaria permanentemente em contato, de uma maneira perfeitamente natural, com um meio mais amplo do que, simplesmente, a capacidade de raciocínio, ligando-o, de certa maneira, tanto ao que está ausente no espaço, mas também com o passado distante e, mesmo, com o futuro, num certo sentido. E a partir destes pressupostos, concluiu: Em suma, a massa de sentimento é mais larga e mais profunda que os outros departamentos da vida psíquica, e mais estreitamente relacionada com o self. Uma mudança nela significa uma mudança de personalidade. Sensações e ideias têm uma natureza comunicável e universal; este resíduo não racional é peculiarmente privado e individual. É o determinante do caráter - num sentido é a própria personalidade e o próprio caráter. De lá a atividade prática retira a maior parte de sua energia e direcionamento. Por outro lado, embora de uma maneira peculiarmente individual em comparação com as ideias e as sensações, aquele resíduo parece, noutro sentido, mais universal que aquelas ideias e sensações, pois ele é ilimitado e parece se estender além de quaisquer fronteiras que possamos demarcar, e de ser sensível a influências para as quais nossa parte mais claramente consciente está inteiramente indiferente (Pratt, 1907, pp. 25-26). Pratt chegou a estas concepções motivado pelo seu interesse no estudo da crença religiosa e seus diferentes modos de manifestação. Para ele, seria esse fundo de sentimento vital que estaria na base da chamada crença emocional, que procede diretamente desta Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 de _ de instância, a qual, por sua vez, em termos fenomenológicos, poderíamos designar de prépredicativa. Ele estabelece, ainda, relações entre esta instância e as demais modalidades de crenças por ele descrita: a perceptiva, a intelectual e a volitiva. Rorschach, por sua vez, iniciou seus estudos a partir do seu interesse nas chamadas alucinações reflexas, tema de sua tese de doutoramento (Rorschach, 1967c), na qual procurou combinar as contribuições do filósofo norueguês Mourly Vould, que havia se ocupado durante mais de 25 anos da psicofisiologia dos sonhos, com as contribuições psicanalíticas de Freud e da psicologia analítica de Jung. A sua genialidade teria lhe possibilitado ver, muito além dali onde outros normalmente veriam apenas duas teorias contrapostas (uma proveniente e adepta da psicofisiologia, e outra, decorrente do estudo do inconsciente), possibilidades de complementaridade. E foi a partir desta complementaridade que ele pode elaborar o seu método mais tarde, partindo do princípio de que, não só as alucinações reflexas ou os sonhos levariam aos fenômenos cinestésicos, mas também toda modalidade de atividade assimiladora e criadora. E a partir disso chega também à noção de tipo de vivência, a qual é compreendida como sendo a mais íntima e essencial capacidade de ressonância com as experiências da vida, ao mesmo tempo que se relaciona também com suas respectivas elaborações inconscientes. Como se disse antes, o conceito de "tipo de vivência" constitui-se como que no núcleo do Psicodiagnóstico. Ellenberger (1967) chega a afirmar que, à época em que Rorschach o inventou, tratava-se de um conceito absolutamente novo e que não se assemelhava a nenhuma outra ideia então já apresentada em toda a psicologia ocidental. O biógrafo considera que o conceito que mais se aproximaria deste seria aquele dado pela psicologia hindu, ou seja, o conceito de Karma. Mas, este, tomado em sua acepção original, antes de ter sido posto em relação com o conceito de samsara (a cadeia sucessiva de reencarnações). Karma, em seu sentido primeiro, seria, então, o incessante devir e agir de um invisível núcleo da personalidade que, mesmo inconsciente, é formado continuamente por nossos atos e pensamentos conscientes e que, por sua vez, contribui por sua parte a determiná-los: trata-se do indissolúvel vínculo existente entre um ser vivo e todos os seus atos anteriores (Ellenberger, 1967, p. 59). Como pode ser constatado, no Capítulo IV do seu Psicodiagnóstico, Rorschach estabelece conexões entre o tipo de vivência e praticamente todos os demais aspectos da vida, partindo do princípio de que o mesmo revelaria a extensão do aparelho psíquico com o qual o indivíduo poderia viver. Esclarece que o tipo de vivência de um indivíduo não corresponde, necessariamente, ao psicograma geral dado pelo teste: "Ele apenas indica como o indivíduo experimenta, não como ele vive ou o que ele ambiciona." (Ellenberger, 1967, p. 91, grifo do autor). Admite, portanto, discrepâncias entre o tipo de vivência e a vida, mas que só poderiam ser explicados Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 ,, pelo fato de a energia vital, o grau de energia ativa, atuante em determinado momento, a vontade, a libido, ou seja qual for o nome que se possa dar a isto, esteja dirigida apenas para uma parte das possibilidades de vivência. Somente o impulso transforma os "momentos" disposicionais em tendências ativas (Rorschach, 1921/l974, p. 91, grifo do autor). Assim, ainda no Capítulo IV, após esclarecer o conceito em pauta, Rorschach apresenta vários elementos da relação entre o tipo de vivência de um indivíduo e demais aspectos da vida: a) o tipo de vivência e a vida; b) o tipo de vivência e os componentes da inteligência; c) o tipo de vivência e as perturbações; d) as variações temporárias do tipo de vivência habitual do indivíduo; e) as transformações do tipo de vivência no transcurso da vida, f) estudos comparativos sobre o tipo de vivência; g) a afetividade e o caráter; e) a imaginação; h) tipos de vivência e tipo de representação; i) o tipo de vivência e o tipo de alucinação; j) o tipo de vivência e os talentos; l) tipo de vivência, talento e impulso; m) tipo de vivência, caráter e talentos; n) tipo de vivência e enfermidade; o) o problema da evolução do tipo de vivência. Sobre o último aspecto relacionado acima, Rorschach acreditava que, no transcurso da vida humana, o tipo de vivência evoluiria lenta, constante e autonomamente. Embora afirmasse não ter, ainda, elementos que pudessem levar ao reconhecimento da gênese do tipo de vivência, visualizava alguns pontos do que chamou "desta vasta rede de problemas causais" (Rorschach, 1921/1974, p. 124). Por outro lado, embora aparentemente não tivesse dado muita atenção à religião convencional e suas práticas, ele "sentia um profundo respeito diante dos enigmas do Universo, da vida e do homem" e tal "como certos filósofos do Romantismo alemão, imaginava uma corrente espiritual fluindo através dos séculos e expressando-se de modo múltiplo na vida dos povos e dos indivíduos humanos" (Ellemberger, 1967, p. 48). Enquanto estudioso, teria ele uma preocupação em achar uma chave para decifrar e compreender todas estas múltiplas formas de manifestação e, em sua opinião, esta seria possível de ser encontrada justamente no âmbito da fantasia criadora. Ao final de sua vida, teria acreditado encontrar a solução definitiva para tais problemas, que teria exposto, segundo seu biógrafo, de forma bastante incompleta, na sua obra mais importante, justamente o seu Psicodiagnóstico. Tomando-se os principais conceitos básicos de Pratt (1907,1921) e de Rorschach (1967a, 1967b, 1967c, 1967d, 1921/1974), conforme relacionados no Quadro 01, seria possível o estabelecimento de algumas relações entre eles, como por exemplo: a) crença perceptiva e crença intelectual X Função lógica, ou função do real7; b) crença emocional X polaridade introversivo-extratensivo; e d) "fundo de sentimento vital" X "tipo de vivência". Do ponto de vista teórico, tais relações podem ser estabelecidas a partir das obras dos próprios autores, mas colocando-as em diálogo com as concepções do pragmatismo de Peirce e com as noções da psicanálise, em Freud e Jung, e discutidas à luz das contribuições oferecidas pela 7 Em francês, fonctionduréel, termo introduzido na França por Pierre Janet. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 ,_ fenomenologia, conforme se verá em mais detalhes nos dois próximos itens deste ensaio. Já do ponto de vista empírico, estas relações foram investigadas mais detalhadamente em outrostrabalhos sobreos instrumentos elaborados por cada um e seus respectivos fundamentos (Freitas, 2002; 2005; 2006). Quando Pratt (1907) elaborou o seu Questionário Pratt sobre Crença Religiosa, que contém dez questões, algumas delas desdobradas em subitens, tinha em mente o estudo do fenômeno religioso nas chamadas pessoas "normais". Em sua pesquisa, inclusive, abandonou os sujeitos compreendidos como "pessoas excêntricas" ou "extremistas". Já com Rorschach (1921/1974), em relação à elaboração do seu Psicodiagnóstico, poder-se-ia dizer que ocorreu quase exatamente o oposto: embora não tenha abandonado o estudo das pessoas consideradas normais, naquilo que diz respeito ao estudo dos fenômenos relacionados à crença religiosa, optou pelo estudo aprofundado e analítico exatamente daqueles que, com certeza, seriam considerados por Pratt como "extremistas" e "excêntricos", como o foram JohannesBinggeli e Anton Unternährer. Ambos os casos foram apresentados em dois de seus trabalhos: "Los fundadores de sectas suizos (Bingelli-Unternährer) (Rorschach, 1967a) e "Sobre las sectas suizas e sus fundadores" (Rorschach, 1967d). Em que pesem as diferenças entre ambos os instrumentos: a) Um, cujos estímulos são essencialmente verbais, e que se propõe a investigar elementos conscientes da crença religiosa - dada por uma tarefa de natureza discursiva; sintagmática, portanto - e, a partir da análise das respostas, chegar-se àquilo que seria o "fundo de sentimento vital", como é o caso do Questionário Pratt sobre Crença Religiosa; e b) outro, cujos estímulos são essencialmente formais, e que se propõe a investigar aspectos inconscientes da personalidade- dado por elementos não discursivos e linguísticos; paradigmáticos, portanto - e, a partir do material assim produzido, chegar-se àquilo que caracterizaria o tipo de vivência e suas relações com os aspectos de ordem intelectual, social e afetiva; A tese aqui defendida é a de que, sob muitos aspectos, esses instrumentos guardam entre si semelhanças e complementaridades, naquilo que revelam sobre o modo de ser dos sujeitos que a eles se submetem de maneira mais ou menos espontânea e que se veem, em ambas as situações, profundamente mobilizados. Do ponto de vista fenomenológico, as comparações que se pretende fazer entre as concepções de J. B. Pratt e H. Rorschach devem ser guiadas por um esforço de compreender como foi que cada um chegou às suas respectivas tipologias - no primeiro caso, as modalidades da crença religiosa - primitiva, intelectual, emocional e volitiva; no segundo caso, do tipo de vivência - introversivo, extroversivo, ambigüal, coartado e coartativo. Partese do princípio de que, cada um a seu modo, chegou às referidas modalidades sem seguir modelos inspirados na busca de sintomas e cifras, mas sim, de um modo que se poderia chamar "bastante intuitivo". Nesse sentido, mesmo tendo apresentado previamente seus Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 ,„ respectivos fundamentos teóricos, parte-se do princípio de que ambos colocaram muito mais nos instrumentos que elaboraram do que aquilo que puderam desenvolver conceitualmente. Especialmente no caso de H. Rorschach, cuja morte sobreveio de maneira abrupta, quando ele mesmo reconhecia que seu arcabouço teórico ainda era insatisfatório para fundamentar adequadamente o seu Psicodiagnóstico. Buscar-se-á, portanto, na fenomenologia, fundamentos que possam sustentar essa análise comparativo/aproximativa, permitindo compreender elementos implícitos e já presentes desde as concepções originárias de ambos os instrumentos. Uma leitura fenomenológica Os propósitos desta leitura exigem o abandono de julgamentos ideológicos com relação aos diferentes caminhos tomados pela linguagem filosófica e científica, rompendo com a tendência de se superestimar os métodos indiretos em detrimento das percepções diretas. Ou seja, para falar nos termos de Husserl (1911/1967), a radicalidade exige independência de ideias preconceituosas que provêm ainda da Renascença e que levam a qualificar mais o status filosófico em si do que suas próprias origens. Neste sentido: "Não é preciso postular-se que se veja com os próprios olhos, mas antes que se deixe de eliminar o visto numa interpretação que os preconceitos impõem" (Husserl, 1911/1967, p. 43). Isto posto, vale ressaltar, então, que, ao se apontar aqui possíveis correspondências conceituais entre Pratt e Rorschach, tem-se em mente um exercício de aproximações que não visa a simplesmente abolir ou desconsiderar as diferenças entre os mesmos. Embora reconhecendo que não se pode, naturalmente, fechar os olhos para os pressupostos históricos que encaminham a elaboração de ambos os instrumentos: uma teologia implícita, protestante liberal, típica da cultura americana da época está presente nas proposições de Pratt, enquanto que, nas concepções de Rorschach, acenam-se claramente as tendências vitalistas, também presentes nas artes e em boa parte da filosofia europeia do início do século XX. Entretanto, o que se quer apreender, a partir da leitura fenomenológica aqui proposta, é justamente o que há de comum entre tais conceitos, no sentido de reenviar, cada um a seu modo, às contínuas transformações e às diferentes modalidades de realizações da intencionalidade psíquica. Em outras palavras, parte-se do princípio de que a linguagem, em Pratt e Rorschach, reflete o esforço de ambos para expressar suas respectivas compreensões da riqueza obscura do ser. Poder-se-ia afirmar, a partir do que ensina Cassirer (1925/1973): cada um a seu modo procurou formular conceitos que exprimissem, da melhor forma possível, uma série de impressões fugidias e sempre semelhantes que lhe batiam aos sentidos, num sério esforço de colocá-las em relação com outras, até formarem um complexo maior, procedido de maneira discursiva e conceitual. Ocorre que, em ambos, houve um reconhecimento implícito de que Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 ,„ os sentidos forneceriam as idéias elementares (Langer, 1941/1989) ao pensar racional e reflexivo, incorporando toda a atividade mental à razão. Isto fica ilustrado, essencialmente, em seus respectivos conceitos de "fundo de sentimento vital" (Pratt, 1907) e "tipo de vivência" (Rorschach, 1921/1974), já apresentados anteriormente, de cujo seio emergiriam todas as demais potencialidades humanas, dentre elas, o intelecto. O próprio modo como Rorschach (1921/1974) cria seu método é um claro exemplo daquilo que Peirce (1931-1958/1995) qualificou como abdução - uma espécie de insight, para o qual seu próprio autor não conseguiu, de saída, oferecer uma razão lógica que se sustentasse do ponto de vista científico, tal como exigido pelo iluminismo ou pelo positivismo reinante. Ironicamente, num claro exemplo de um pragmatismo perverso (e, certamente, às avessas ao que propunha Peirce e, mais ainda, ao romantismo de Rorschach), o mesmo método foi resgatado porteriormente, segundo o modelo indexial, nos Estados Unidos - justamente onde encontrara inicialmente maior resistência (Klopfer & Kelly, 1942/1974), no emprego para seleção de combatentes militares que serviam à II Grande Guerra Mundial. Como filósofo, religioso, e partícipe integral do mundo acadêmico, Pratt (1907, 1921) apresentou um arcabouço instrumental essencialmente sintagmático: procurou dar conta, com o próprio recurso discursivo, dos diferentes níveis do psiquismo, apontados em suas respectivas descrições das modalidades de crenças: perceptiva, intelectual, emocional e, posteriormente, volitiva. Como clínico, artista, e não tão embrenhado na academia quanto o primeiro, Rorschach (1921/1974) não se satisfez apenas com os recursos simbólicos mais específicos da linguagem: para além do discurso, seu instrumental buscou recursos formais, articulando outros modos de expressão do ser, como as percepções de forma, movimento e cor. O acesso ao núcleo básico de vivência e suas respectivas articulações com a função do real, neste caso, seriam dados por uma tarefa de natureza paradigmática. Como resultado, a possibilidade de descrições mais dinâmicas das modalidades vivenciais de coartação, introversão, extratensão e ambiguidade. É compreensível que, no caso de Pratt (1907, 1921), a sua concepção intuitiva do "fundo de sentimento vital" e respectivas modalidades de crença religiosa se sustentassem sobre sua própria experiência pessoal como religioso. Como também, no caso de Rorschach (1921/1974), a concepção de seu método e respectiva descrição do "tipo de vivência" se alimentassem de sua própria sensibilidade artística e sentimento de religiosidade. Isto também estaria perfeitamente de acordo com o pragmatismo de Peirce (1931-38/1974), ao definir a qualidade da sensação, no campo da primeiridade - categoria daquilo que é originário, e assim resumida por Ghesti (2000): Ela marca o campo da potencialidade, enquanto pura possibilidade. Não é algo que se perceba diretamente nos fatos, mas pode ser inferido deles, porquanto é entendido como aquilo que precede qualquer ocorrência e, portanto, qualquer possibilidade de observação direta. (...) A primeiridade Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 _„ também pode ser pensada como aquele algo que possibilita o ser do quer que seja (p. 38). Ou ainda, numa leitura fenomenológica: o sentir é que oferece a possibilidade de discriminação de formas (Merleau-Ponty, 1945/1999) e, consequentemente, das articulações possíveis no nível da linguagem, não apenas a de cunho poético/artístico, mas também e inclusive aquela de cunho teórico/conceitual. Esta última, é certo, se estabelece num outro plano de racionalidade. Ou, para falar nos termos de Husserl (1950/2000), num outro modo "do chamado dar-se [dos objetos] (Gegebenheit)" (p. 93). Mas, no caso de ambos os autores referidos aqui, tal racionalidade não se deu ao preço da mutilação ou empobrecimento do mundo da vida, ou seja: não houve exclusão das experiências e fatos humanos fundamentais por não serem passíveis de submeterem-se aos seus respectivos métodos. Pelo contrário, em ambos os casos, registra-se um imenso esforço de contribuição mais efetiva para compreensão da problemática humana. Qualifica-se os dois modos de racionalidade intuitiva como exemplos de atividades reflexivas, que apreendem seu sentido pleno justamente pela menção ao fundo irrefletido suposto por ela mesma e "do qual tira proveito, constituindo-se para ela como que um passado original, um passado que nunca foi presente" (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 325). Para muito além da mera redução do saber humano ao sentir, Pratt e Rorschach apontam para o nascedouro desse saber e, tornando-o tão sensível quanto o sensível, reconquistam uma consciência de racionalidade, onde a percepção oferece "o logos em estado nascente" e ensina, sem quaisquer dogmatismos, "as verdadeiras condições da própria objetividade", de onde emergem mais límpidas "as tarefas do conhecimento e da ação" (Merleau-Ponty, 1947/1989, p. 63). A filosofia e a ciência que Pratt e Rorschach exercitaram-se em produzir, por menor que fosse o aparato linguístico disponível na época, seria aquelas cujos sentidos legitimar-se-iam, em última instância, no mundo da vida. Este, sim, é que lhes conferiria fundamentação axiológica, estrutura intencional e doação originária. Já em l923, em artigo trazendo algumas observações sobre o Psicodiagnóstico de Herman Rorschach, Binswanger (1923/1967) discutia o conceito de percepção que, se apenas decorrente de uma teoria materialista, seguramente não se aplicaria adequadamente à prova de Rorschach, pois que, desde a instrução "O que poderia ser isso?", o examinando seria remetido a um exame da fantasia ou da imaginação ótica e cinestésica. Binswanger (1923/1967) lembra que Rorschach não haveria conhecido suficientemente bem a chamada psicologia moderna (provavelmente, referindo-se às contribuições da Gestalt) e não teria tido tempo para fazer um esclarecimento conceitual adequado e explicitar melhor o que entendia por percepção. Entretanto, reconhece que o modo como Rorschach trabalhava com o método e as análises dele derivadas mostram que esta seria melhor entendida como referindo-se a atos psíquicos, nos quais estavam contidos, simultaneamente, aspectos fenomenológicos, psicogenéticos e fisiológico-cerebrais. Isto daria, então, ao conceito uma completa Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 de _de equivalência com o conceito de interpretação, eliminando-se as diferenças assépticas entre conteúdos autenticamente vistos e conteúdos meramente representados. Enfim, tudo isso ilustra o quanto Rorschach chegou à sua obra sem ter ainda o seu arcabouço teórico suficientemente pronto, colocando nela muito mais do que o que chegou a formular conceitualmente. Binswanger (1923/1967) aponta também o quanto o conceito de tipo de vivência desenvolvido a partir do Método de Rorschach contribui para a psicologia tipológica, sem incorrer, no entanto, nos tipos científico-naturais, dados pela tendência médico-psicológica da época. Ressalta que, mesmo sem ainda conhecer a fenomenologia de Husserl, a única que poderia proporcionar claridade absoluta sobre o assunto, Rorschach oferece uma descrição que pode supor um vínculo de união entre os tipos ideais, no sentido "científico-espiritual" (no sentido de Jaspers e Spranger) e os tipos científicos-naturais clínicos: Pois com quanto mais agudeza e exatidão se determinam e definam os tipos psicológicos fenomenologicamente quanto à sua essencialidade e no sentido da legalidade estrutural espiritual, a resultados tanto mais claros e unívocos conduzirá sua investigação desde pontos de vistas científico-naturais (Binswanger, 1923/1967, p. 237). Assim, a tipologia de Rorschach não se refere à captação da pessoa psíquica individual, e sim à busca de uma correspondência com a estrutura psíquica individual, já que seu método não se propõe a revelar como a pessoa vive, e sim como ela vivencia. Sabendo que não bastaria conhecer a estrutura psíquica e, sem conhecer a fenomenologia de Husserl, Rorschach teria buscado, então, o especificamente pessoal no instintivo-pulsional, em Freud, para explicar a conversão das disposições em tendências ativas. Também Pratt (1907), a seu próprio modo, procurou formular as conexões entre o racional e o que está para aquém ou além dele, num esforço de explicar a origem da energia e respectivo direcionamento da atividade prática e intelectual. Assim, ao referir-se, por exemplo, à modalidade de crença intelectual, descreve-a como decorrente do fato de se colocar em suspenso a crença perceptiva (e o termo percepção, neste caso, é usado para referir-se àquela concepção ingênua de que o mundo é aquilo que vemos), e de se levantar a dúvida concernente à existência do objeto da crença. Ela (a dúvida) seria, portanto, conforme palavras do autor, sempre "secundária" e, num certo sentido, "artificial". Ela surgiria da experiência com o mundo. Com relação à crença emocional, relaciona-a a vida interior, que tenderia a desclassificar as percepções e caracterizar-se por uma espécie de "confusão estrepitosa". Mas, admite também que "mesmo a mente lógica e ordeira do lógico mais seco" encontraria, no fundo de sua mente, com aquele "pano de fundo". Afirma também: "o pensamento, emergindo do fundo de sentimento, é uma experiência comum a todos" e "a máquina lógica humana seria uma invenção da imaginação", ou seja, ela seria o "último produto" que emerge de um "mar de sentimento vital" (Pratt, 1907, pp. 19-26). Ora, o estudo Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 sobre fenomenologia da percepção, em Merleau-Ponty (1945/1999), mostra como que o elemento intuitivo, para dar lugar ao elemento que se afirma puramente racional, deve ser colocado em suspenso, sendo aquele segundo sempre um objeto tardio de uma espécie de consciência científica. Daí porque o fenomenólogo afirmar que "a ciência", por pautar-se neste modelo de sujeição a supostamente lógico, "supõe a fé perceptiva", mas "não a esclarece" (Merleau-Ponty, 1971), pois que "o pensamento objetivo ignora o sujeito da percepção" (1945/1999, p. 279). Neste sentido, como denunciara Husserl (1936-1954/1996), em relação à crise da humanidade europeia, o mundo da ciência, quando comprometido apenas com um modelo objetivista e matemático, embora também derivado do mundo da vida, acaba por promover a alienação do mesmo. Tal como Rorschach, Pratt (1921), ao tomar conhecimento da noção de inconsciente, em Freud, busca nela elementos para descrever a influência do subliminal sobre o julgamento e sobre a vida prática. Mas, também como Rorschach, não se satisfaz plenamente com as noções freudianas: se ambos estão de acordo com Freud em vários aspectos, inclusive na interdependência do psiquismo para com o respectivo aparato biológico, qualificando a dimensão do corpo próprio na sua relação com a dimensão cultural, discordam da psicanálise exatamente naquilo que ela tem de excessiva generalização ou determinismo em relação à origem da energia psíquica, atribuída exclusivamente à sexualidade, ao mesmo tempo acompanhada de uma perspectiva desconfiada e patologizante da experiência religiosa. De fato, a concepção de "tipo de vivência", em Rorschach (1921/1974), bem como a noção de "fundo de sentimento vital", em Pratt (1907), muito mais se aproximariam dos conceitos junguianos de "arquétipo" e "inconsciente coletivo", que propriamente das acepções mais especificamente freudianas de "pulsão" e "inconsciente" individual. Rorschach, por exemplo, tal como Jung, provavelmente insatisfeito com a insuficiência do inconsciente freudiano, que se mostrava limitado para fundamentar toda a riqueza do material encontrado com o seu criativo método, vai aproximar-se mais da psicologia oriental, conforme apontou Ellenberger (1967), ao estabelecer seu conceito, então inovador, de tipo de vivência - ou "tipo de ressonância íntima" - para referir-se "à mais íntima e essencial capacidade de ressonância às experiências da vida" (p. 59). Já J. B. Pratt (1907), de certo modo, chega a antecipar-se a Jung na definição do que chamou de "fundo de sentimento vital", conceito muito próximo da noção de "inconsciente coletivo", que este último passou a formular, a partir de 1913. Para este último, o "substrato comum" e que "ultrapassa todas as diferenças de cultura e de consciência" não consistiria apenas de conteúdos aptos a tornarem-se conscientes, mas de predisposições latentes e que "partem de uma base comum, cujas raízes mergulham no passado mais distante" (Jung, em Jung & Wilhelm, 1929/1984). Desta base originar-se-iam as diversas linhas do que Jung chamou de "desenvolvimento anímico", inclusive todas as representações e ações conscientes. Estas últimas poderiam Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 __ __ alcançar um nível de consciência quase que emancipada da imagem primordial inconsciente. Entretanto, essa suspensão, se levada ao extremo de uma consciência intelectual exaltada e unilateral, afastando-se demasiadamente das imagens primordiais, seria acompanhada de inúmeras peripécias, geradoras de grande sofrimento psíquico, que ele pode constatar em seus próprios pacientes. Por outro lado, uma ausência total ou uma baixa descolagem dos protótipos inconscientes também teria seu preço. Assim, "quando o consciente não atingiu ainda maior grau de clareza, isto é, quando depende - em todas as suas funções - mais do instinto do que da vontade consciente, e mais do afeto do que do juízo racional" (Jung, em Jung & Wilhelm, 1929/1984, p. 28), o indivíduo pode apresentar maior "saúde anímica primitiva", mas tornar-se muito mais facilmente desadaptado diante de situações que lhe exigiriam um esforço moral ou intelectual mais alto. Também em seu conceito de "tipo de vivência", e, ao que indica, ainda sem conhecer todas as reflexões junguianas apontadas acima, Rorschach (1921/1974, p. 91) referiu-se às possíveis discrepâncias entre este e a vida, já que aquela "energia vital, o grau de energia ativa, atuante em determinado momento, a vontade, a libido, ou seja qual for o nome que se possa dar a isto" poderia ser dirigida apenas a uma parte das possibilidades de vivência. E, ao caracterizar o problema da evolução do tipo de vivência, o autor do "psicodiagnóstico" identifica a importância do pensamento disciplinado, ou seja, da "função lógica" ou "função do real", mas não ao ponto de sacrificar a própria capacidade de vivenciar, como seriam os casos dos meticulosos e intelectualistas puros, onde o tipo de vivência chega a alcançar extrema coartação dos momentos introversivos e extratensivos. Por outro lado, também as capacidades de introversão ou extratensão, quando levadas ao extremo, usurpando ou volatilizando o pensamento disciplinado, levariam a consequências nada saudáveis do ponto de vista adaptativo, em ambos os casos reduzindo ou até mesmo destruindo por completo a capacidade de adaptação afetiva: no primeiro caso, por excesso de abstração e estranheza ao mundo; no segundo, por excesso de estouvamento. Ou seja, em sua experiência clínica, Rorschach certamente constatou, tal como Jung, as mesmas peripécias que podem acompanhar tanto o mergulho total na "vida interior" como o movimento de suspensão absoluta da experiência fundamental em causa. Chama atenção, tanto em Jung quanto em Rorschach, que ambos tenham vivenciados uma certa ambiguidade em relação às suas próprias experiências místicas e também experimentado, em circunstâncias diferentes, momentos de profunda introversão. Poder-se-ia dizer que ambos preocuparam-se seriamente, cada um a seu modo, com a repercussão negativa que poderia decorrer de suas posições gnósticas e buscaram recursos diferentes para se protegerem de possíveis ataques iluministas e racionalistas. Referindo-se às contribuições de Jung para o esclarecimento do mundo dos símbolos, Augras (1980/1998) reconhece que a sua originalidade foi resultante justamente deste distanciamento do próprio irracionalismo para elaborar um corpus científico que dele se alimentasse. Certamente esta mesma espécie de originalidade se aplica também a Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 de _. Rorschach. Por outro lado, sabe que Rorschach (1921/1974) fez questão de ressaltar mais as diferenças do que as aproximações entre os seus conceitos de introversivo e extratensivo e os conceitos junguianos de introvertido e extrovertido. Entretanto, ao fazer esta distinção, conforme aponta Bash (1967), certamente não considerou a própria evolução do pensamento de Jung. De fato, desde 1917 até 1921, mesmo ano em que foram publicadas os "Tipos psicológicos" de Jung e o "Psicodiagnóstico" de Rorschach, há uma evolução do pensamento junguiano, no sentido de abandonar as concepções mais especificamente tipológicas em favor de um entendimento mais dinâmico das relações entre as atitudes introvertidas e extrovertidas. Desse modo, Jung também passou a relacionar a polaridade introvertidoextrovertido às demais funções psíquicas, supondo-a não como correspondente a uma tipologia constitucional mutuamente excludente, mas como descritiva de funções e atitudes universalmente dadas. Todas as obras posteriores de Jung podem mostrar, sobre este aspecto específico, mais aproximações do que propriamente diferenças entre ambos. Seria tarefa árdua e que extrapolaria os objetivos deste trabalho aprofundar na compreensão das semelhanças e diferenças entre o pensamento de Jung e Roschach. Entretanto, fica registrada a impressão de que Rorschach, em 1921, teria alcançado mais profundamente a compreensão dos conceitos de introversão e introversão do que poderia ter feito Jung à mesma época. Assim, conforme salienta McCully (1980), é de lamentar-se que ambos não tenham passado juntos horas a fio, discutindo suas ideias. Afinal, é como se Rorschach (1921/1974), ao estabelecer o seu conceito de Tipo de Vivência (Erlebnistypus), tivesse compreendido muito mais profundamente a dimensão de "último plano do vivido" (termo empregado por Husserl em "A síntese passiva", 1966/1998) do que o pudera fazer Jung à mesma época. Por outro lado também, é como se o próprio Jung tivesse plantado sementes (teste de associação de palavras, conferências assistidas por Rorschach, dentre outros) que brotaram posteriormente em solo fértil, regado pela sensibilidade criativa e independente do espírito de Rorschach. Uma retomada do conceito de Espírito (do grego Spiritus), na filosofia, e seus respectivos desdobramentos ao longo das épocas, em diferentes correntes religiosas, filosóficas e religiosas, permitiria um enriquecimento da discussão acerca das possíveis aproximações fenomenológicas entre a concepções de base realista-pessoal em Pratt e as de fundamento romântico em Rorschach. Para os propósitos deste estudo, entretanto, vale por enquanto apenas ressaltar que, em ambos, há um entendimento de que não é somente espiritual aquilo que reporta diretamente ao intelecto, à racionalidade e à vontade. Assim, a despeito da polissemia do termo inconsciente, ao empregá-lo, ambos buscam, simultaneamente e com o aparato linguístico e filosófico de que dispunham até então, qualificar a abertura originária às funções superiores do homem - que lhe oferecem a capacidade da apreensão do universal, mas ressaltando que tal abertura se sustenta sobre Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 „- um fundo básico de corporeidade e afetividade. Daí a preferência de ambos por termos como "fundo de sentimento vital" ou "tipo de ressonância íntima", ao invés de simplesmente "instinto" ou "inconsciente". Como se viu antes, Pratt falou de um "princípio vital" sob forma primária, tanto a nível filogenético quanto ontogenético, em cujo estado originário as sensações e ideações seriam ainda latentes, e que as dimensões vividas de tempo e de espaço encarregar-se-iam de promover as respectivas diferenciações ao longo da evolução do homem e da humanidade. Também Rorschach, acreditando firmemente numa corrente espiritual fluindo através dos séculos, propunha que, conforme o direcionamento da "energia vital", transformando "momentos" disposicionais em tendências ativas e ideacionais, ocorreria uma evolução de um estado mais primário em direção a uma finalidade ótima de desenvolvimento, cujas etapas poderiam ser identificadas num estudo longitudinal do indivíduo ao longo de sua história de vida, bem como da humanidade ao longo das épocas e das culturas. De novo, vale aqui lembrar as aproximações desta ideias com as concepções junguianas. Em sua obra "L'Energetik der Seele" (A energia psíquica), Jung (1928/1956) também referiu-se a um estado natural da "energia vital" que já conteria em si mesma um fluxo direcionado em pontos de diferenciação, que se expressaria nas ações e ideações humanas, ao longo do seu desenvolvimento individual e cultural. Nesse sentido, a cultura seria vista como "uma máquina que transforma energia vital em energia psíquica, sendo resultante de um processo de diferenciação evolutiva da natureza" (Mourão, 1997, p. 34). Eixos de análise e determinantes do Método de Rorschach X Modalidades de crença religiosa em Pratt Ao definir a pura fenomenologia, seu método e seu campo de investigação, Husserl (1928/1981) a caracteriza como "ciência da consciência pura", diferenciando-a da psicologia, que seria o estudo da consciência em seu sentido estritamente empírico. Em sua definição, consciência não seria uma substância ou uma instância, mas uma atividade constituída por atos (percepção, sentimento, imaginação, volição) com os quais visa-se sempre algo. Nesse sentido, a fenomenologia pura pretende chegar ao fundamento último do ser e de suas respectivas aparições à consciência, cuja intencionalidade seriam de duas espécies, uma temática (saber do objeto e do próprio saber sobre o objeto) e uma operante (visada do objeto em ato, ainda não refletida). Esta última, então, seria a essência buscada pela fenomenologia pura. Conforme esclarece Zilles, em sua introdução à obra "A crise da humanidade europeia e a filosofia" (Husserl, 1936/1996), por ele traduzida no Brasil: A primeira tenta alcançar a segunda, que a precede, sem nunca consegui-lo. O saber consciente só se exerce sobre este fundo de irrefletido, nessa Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 de _, dimensão de vida que já é sentido porque visada de objeto, mas sentido ainda não formulado (idem, p. 30). Em "A síntese passiva", Husserl (1966/1998) descreve diferentes níveis do vivido, considerando-se as diferentes modalidades de relações entre aquele saber irrefletido, prépredicativo - ou vivido de último plano (que, pode-se dizer, Pratt e Rorschach chamaram, respectivamente, de "fundo de sentimento vital" e "tipo de vivência", como já se viu anteriormente) e o saber refletivo, predicativo - ou vivido de primeiro plano. O exercício reflexivo que resulta nestas possíveis aproximações entre os dois autores, apresentadas ao longo deste trabalho, jamais poderia ser designado como fenomenologia em seu sentido puro, dada a radical alteridade desta com a psicologia. Entretanto, considerando-se justamente as noções apreendidas daquela primeira, é possível, seguindo a via deum saber refletido - via intencionalidade temática - que busca continuamente alcançar osaber irrefletido - a intencionalidade operante - ainda que de modo sempre incompleto, buscamos aprofundar estas reflexões a partir de uma comparação entre os eixos de análise e os determinantes dados pelo Método de Rorschach e as modalidades de crença descritas por Pratt. Tal exercício resultou nos Quadros 02 e 03, apresentados nas páginas seguintes. O Quadro 01 apresenta como que um diagrama, onde se coloca em relação os três eixos de análise do Rorschach - localização, determinante e conteúdo -, relacionados na primeira coluna, com as três modalidades de crença religiosa primeiramente descritas por Pratt - perceptiva, emocional e intelectual -, relacionadas na terceira coluna. Na coluna central, são relacionadas as dimensões fenomenológicas apontadas por Merleau-Ponty (1945/1999), em "Fenomenologia da Percepção", e Husserl (1966/1998), em "A síntese passiva". As possíveis correspondências entre os conceitos seriam identificadas pela análise horizontal, cujo elemento central seria a dimensão do sentir, ou vivido de último plano - ali onde a vigília pode estar ausente. Este plano corresponderia também ao que Peirce designou como primeiridade, ou seja, o campo aberto às potencialidades do ser, e que estão na base da percepção e da linguagem. Quadro 03: categorias fenomenológicas, eixos de análise do rorschach e modalidades de crença em pratt EIXOS DE ANÁLISE NO RORSCHACH CATEGORIAS FENOMENOLÓGICAS MODALIDADES DE CRENÇA EM PRATT Atenção/Percepção Localização Perceptiva (Secundidade, em Peirce) Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em _ ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 SENTIR Determinante Emocional (Vivido de último plano Primeiridade, em Peirce) Significado/Linguagem Conteúdo Intelectual (Vivido de primeiro plano Terceiridade, em Peirce) O Método de Rorschach, no âmbito da localização, vai exigir do sujeito uma tarefa perceptiva, dada pela sua capacidade de manter a atenção suficientemente estável e concentrada nos estímulos visuais que lhe são apresentados e, ao mesmo tempo, "pela posse de engramas de formas nítidas" (Rorschach, 1921/1974, p. 58). Segundo Rorschach "quando as imagens-lembranças não forem nítidas (confabuladas, muitos débeis, orgânicos), também não será possível um reconhecimento de formas igualmente nítidas, de despertá-las, de trazê-las ao consciente" (idem); ou seja, o processo associativo pode ser perturbado em função de fatores orgânicos ou psicológicos. Ainda, no âmbito da localização, seria fundamental a capacidade de escolher, entre as imagens-lembranças disponíveis, aquelas que mais se assemelham ao conjunto de estímulos visuais. O que significa, então, que a atenção, neste caso, não seria dirigida apenas para o estimulo exterior, mas também para o interior, permitindo ou não um controle do próprio processo perceptivo e uma crítica interpretativa. Na mesma linha, então, do eixo da localização, situamos a crença perceptiva, designada por Pratt, cujo elemento básico seria também a percepção, seja de um dado estímulo que lhe vem de fora, seja de uma figura percebida como autoridade. Neste caso, o processo perceptivo privilegiaria os estímulos, alimentado por ou em detrimento das várias camadas da consciência: seja a do sentir, na sua expressão mais fundamental, seja a do pensar, em sua capacidade de disciplinar a função lógica. No eixo dos determinantes, apreende-se o dinamismo pelo qual se manifesta o tipo de ressonância íntima, ou tipo de vivência, considerando-se as dimensões fenomenológicas de espaço, tempo e cor. Assim, ao centrar-se mais nos aspectos formais do estímulo, ou ao privilegiar os aspectos cinéticos ou cromáticos da prova, a afetividade básica pode mostrarse mais estabilizada, mais internalizada ou mais à mercê dos estímulos externos (labilidade). Ou seja, as modalidades do sentir se potencializam no direcionamento da acuidade perceptiva e dos processos associativos durante o trabalho de assimilação dos estímulos (forma), ou como uma disposição individual para afetos mais intensivos e interiorizados (cinestesia), ou, ainda, numa disposição geral afetiva mais orientada para o exterior e, portanto, mais sujeita à mobilidade (cor). Nesta mesma linha, situar-se-ia a crença emocional, Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 _„ no sentido em que a descreveu Pratt (1907), considerando-se a sua fonte direta do fundo de sentimento vital - ou vivido de último plano, em termos husserliano, e sua respectiva expressão no modo de apreender o mundo. Com relação ao conteúdo, expressão final da tarefa paradigmática dada pelo Método de Rorschach, que reflete a transformação dos elementos pré-lógicos em linguagem, num exercício de atribuir um sentido - uma gestalt, ao conjunto de elementos percebidos, há um remetimento à função mais propriamente cognitiva e linguística - uma dimensão consciente e, portanto, de natureza intelectual. Ou seja, ao primeiro plano descrito por Husserl - os atos do ego cogito, e que, em termos das modalidades de crença descritas por Pratt (1097), corresponderia ao que ele chamou de crença intelectual: a que se sustenta sobre argumentos, sobre o racional, sobre a lógica formal. Viu-se que o próprio Rorschach (1921/1974), ao concluir seu Psicodiagnóstico, reconhece os elementos anteriores (os princípios formais do processo de percepção - localização e determinantes) como sendo prioritários na compreensão do como se processa a vida psíquica. O conteúdo das interpretações deveria, então, ser considerado num segundo lugar, representando senão uma parte da vida mental. Numa linguagem husserliana, poder-se-ia dizer: os conteúdos são atos de uma consciência egóica específica e que se constituem em uma forma particular de realização da intencionalidade dada pelo vivido de último plano. Alguns autores, como são os casos de Anzieu e Chabert (1961/1987) e Pedrosa (1979), chegam a referir que, ao criar o seu método de interpretação das manchas de tinta, dirigindose "aos momentos dados, primários, chegando assim à diferenciação de diversos tipos de vivência" (Pedrosa, 1979, p. 90), Rorschach acabou criando a chamada psicopatologia estrutural, numa interessante aproximação dos mecanismos descobertos experimentalmente pela psicologia da forma (Gestaltpsychologie). De fato, a partir destes experimentos e, posteriormente, da própria experiência clínica, a compreensão de self, tal como dada mais tarde por Perls (conforme citado por Fadiman & Frager, 1986) far-se-á a partir de uma noção não estática e nem objetivável. Ou seja, o eu se identificaria "com qualquer experiência emergente da figura em primeiro plano". Assim, todos os aspectos do organismo (sensorial, motor, psicológico) identificar-se-iam temporariamente com a Gestalt emergente, sendo a experiência de si mesmo justamente essa totalidade de significações. Desta perspectiva, então, função e estrutura seriam idênticas. Ora, o método de Rorschach tem, intuitivamente, a compreensão daquilo que Merleau- Ponty (1945/1999) aponta em sua fenomenologia da percepção: Uma coisa não é efetivamente dada na percepção, ele é interiormente retomada por nós, reconstituída e vivida por nós enquanto é ligada a um mundo do qual trazemos conosco as estruturas fundamentais e do qual ela é apenas um das concreções possíveis (p. 438). Neste sentido, a dimensão de corpo próprio é fundamental, pois que manteria "o Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em _ ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 79 espetáculo visível continuamente em vida" (p. 273), animando-o e alimentando-o interiormente, formando com o mundo um sistema. Chama, portanto, a atenção, o fato de que, ao apresentar borrões simétricos, o método de Rorschach remete justamente a uma espécie de "geometria" que estaria em viva conexão entre a coisa - o mundo e as partes do próprio corpo. Como duas faces de um mesmo ato - certamente a experiência fundamental em causa: "tipo de ressonância íntima", como a chamou Rorschach (1921/1974), ou "fundo de sentimento vital", conforme a formulou Pratt (1907), a percepção do corpo próprio e a percepção exterior variam conjuntamente. É a essa relação que os determinantes - forma, movimento e cor - das respostas ao método parecem reenviar. Assim, muito mais que apontar uma personalidade estática, digamos assim, tais determinantes apontam para o processo, para as funções dinâmicas de estruturação de um modo de ser no mundo. Um exercício de aproximação entre as principais categorias fenomenológicas, apreendidas a partir de uma leitura em Merlau-Ponty, e os determinantes das respostas no Rorschach e, ainda, as modalidades de crença descritas por Pratt, resultou na elaboração do Quadro 02, apresentado a seguir. Na coluna do meio, situam-se as categorias fenomenológicas, em cujo centro estáa dimensão corporal - corpo / movimento, como princípio determinante de uma disposição afetiva individual. Na primeira coluna, portanto à esquerda da coluna central, situam-se os determinantes do Rorschach, numa clara analogia ao remetimento, dado pelo próprio método, a instâncias pré-lógicas e respectivo dinamismo da vida mental. Na segunda coluna, portanto à direita da coluna central, situam-se as modalidades de crença descritas por Pratt, também numa clara analogia ao seu método, de natureza sintagmática, remetendo a uma elaboração mental consciente das experiências fundamentais em causa. Quadro 03: categorias fenomenológicas, determinantes no Rorschach e modalidades de crença em Pratt DETERMINANTES DO RORSCHACH CATEGORIAS FENOMENOLÓGICAS MODALIDADES DE CRENÇA EM PRATT Percepção/Forma FORMAL Intelectual (Categoria espaço) Corpo/Movimento CINESTÉSICO Emocional (Categoria movimento) Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 „„ Meio/Cor CROMÁTICO Perceptiva (Categoria tonalidade) Como pode constatar empiricamente o próprio Rorschach, o determinante formal expressa o grau de acuidade dos processos associativos durante o trabalho de assimilação, bem como a capacidade de disciplinar a função lógica ou o quanto esta última se apresenta automatizada, instalando-se por si própria. Assim, uma percentagem ótima de respostas formais seria reflexo de uma vida mental consciente suficientemente desenvolvida. Por outro lado, um excesso delas poderia se dar de maneira quase automatizada e em detrimento de uma vida afetiva mais flexível, levando à estereotipa ou ao dogmatismo. Alinhando-se com o aspecto formal do teste, ressalte-se o aspecto fenomenológico do espaço, dado aqui no sentido propriamente estático. O determinante formal se sustenta sobre a distribuição do borrão no espaço físico delimitado e respectivos contornos. À direita desta mesma linha, relaciona-se a crença intelectual, descrita por Pratt (1907), considerando-se os seus determinantes, de primeiro plano, também racionais. O determinante cinético, segundo constatações também empíricas do próprio Rorschach (1921/1974), estaria relacionado a uma energia disposicional interior e, portanto, revelador de um movimento predominantemente introversivo. Como relatado em mais detalhes em trabalho anterior (Freitas, 2005), Rorschach chegou às suas concepções sobre o valor e as funções da cinestesia a partir dos seus estudos sobre os sonhos, estes últimos compreendidos tanto em sua dimensão fisiológica quanto simbólica. As sensações de movimento, ligadas portanto ao corpo próprio, estão na base do seu entendimento sobre o dinamismo das respostas cinestésicas. Portanto, no eixo central desta linha, situam-se as categorias fenomenológicas de corpo e movimento. Encontrando sua fonte diretamente no fundo de sentimento vital; portanto, também na vida interior do organismo, a crença emocional descrita por Pratt é relacionada na extrema direita desta linha. Por último, o determinante cromático, como disposição geral dada pela afetividade dirigida ao mundo exterior, mostra-se revelador de um movimento de extratensão: uma tendência a reagir de imediato aos estímulos do meio ou internos, acompanhada de uma inteligência mais reprodutiva que criadora. A categoria fenomenológica da tonalidade/meio ganha aqui a ênfase principal, conforme relacionado na coluna central. Na terceira coluna, relaciona-se, então, a modalidade de crença primitiva, descrita por Pratt, devido à sua particular identificação com uma espécie de consciência enredada ou, para falar nos termos em que se expressou Lévy-Brhul, de consciência "participativa". Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Freitas, M. H. (2013). Pratt e Rorschach: uma leitura fenomenológica. Memorandum, 24, 59-84. Recuperado em_____de ___,_______de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 „.. Á guisa de conclusão A ideia básica sobre a qual pautaram-se as reflexões desenvolvidas ao longo deste ensaioé a de que a crença religiosa ou a descrença, tal como os demais elementos do psiquismo humano, guardam a mesma relação de filiação para com a dimensão das vivências - o mundo da vida (Erlebnisse), a que se refere a fenomenologia. Ao tentar dar conta desta relação de fraternidade que integra os diversos aspectos da vida mental, Peirce (19311958/1995) falou em "Primeiridade", Pratt (1907) formulou o conceito de "fundo de sentimento vital" e Rorschach (1921/1974) apresentou sua concepção de "tipo de vivência" ou "tipo de ressonância íntima". Naturalmente que estes conceitos acima não podem ser considerados equivalentes, em seu sentido literal. O que há de comum entre eles, e que tornou-se como que o fio condutor ao longo as análises aqui apresentadas, é justamente o fato de refletirem um esforço de compreensão acerca das relações entre uma espécie de fundo irrefletido e a atividade reflexiva que caracterizam a existência humana. E é a partir disso que se pode concluir que, de um ponto de vista fenomenológico, ainda que representando o Zeigeist de onde inseridos, tanto Pratt e Rorschach buscaram reenviar, por meio de seus conceitos e instrumentos - e cada um a seu modo, às contínuas transformações e às diferentes modalidades de realizações da intencionalidade psíquica. Querendo ou não, não há como negar que a psicologia contemporânea - e não só a psicologia da religião! -, de um modo ou de outro, ainda se vê à volta com tais questões. Referências Abreu e Silva, N. N. (1999). Psicologia da Religião: uma introdução. 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E-mails: [email protected] e [email protected] Data de recebimento: 24/06/2012 Data de aceite: 07/03/2013 Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/freitas01 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 A relação com o outro em Sartre The relationship with the other in Sartre Reinaldo Furlan Universidade de São Paulo Brasil Resumo O objetivo é explorar os sentidos da relação com o outro na filosofia de Sartre (O ser e o nada). Em primeiro lugar destacamos as noções de ser-em-si, ser-para-si e ser-para-ooutro, noções chaves para a compreensão dos fundamentos da relação com o outro em sua filosofia. A seguir, destacamos o desejo e o amor nas formas concretas de relação com o outro. Por fim, encerramos com o levantamento de duas ideias, uma referente à atualidade de sua temática, através do pensamento de Foucault, e a outra problematizando a sua noção de encarnação, através do pensamento de Merleau-Ponty. Palavras-chave: relação com o outro; fenomenologia; Sartre; subjetividade; Merleau-Ponty Abstract The aim is to explore the meanings of the relationship with the other in the philosophy of Sartre (Being and Nothingness). First of all we highlighted the notions of being-in-itself, being-for-itself and being-for-the-other, key notions for understanding the fundamentals of the relationship with the other in Sartre's philosophy. After that, we highlighted desire and love in the concrete way of relationship with the other. Finally, we finished by raising two ideas, one referring to the relevance of the theme at the present time through Foucault's thought, and the other discussing the notion of incarnation through MerleauPonty's thought. Keywords: relationship with the other; phenomenology; Sartre; subjectivity; Merleau-Ponty Introdução Esse texto1 completa o trabalho que iniciamos com "Desejo e formação de mundo em Sartre: breve contraponto com Merleau-Ponty" (Furlan, 2012), destacando, agora, as relações com o outro segundo a filosofia de O ser e o nada (Sartre, 1943/1976). Do trabalho anterior, retomamos apenas o sentido necessário para a introdução da temática do presente artigo, a fim de torna-lo independente do primeiro. Mas, uma vez que ambos faziam parte de um mesmo curso que ministramos no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), consideramos vantajosa a sua leitura conjunta, uma vez que o trabalho Apoio CNPq Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de______________, _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 86 presente se desenvolve na sequência do primeiro, inclusive em obediência à ordem das razões na obra do próprio Sartre. Nesse sentido, consideramos bastante oportuna a possibilidade de publicá-los na mesma revista, facilitando seu acesso recíproco ao leitor interessado. Nesse artigo destacamos, pois, as relações com o outro segundo a filosofia de O ser e o nada (SARTRE, 1943/1976). Em particular, destacamos o capítulo intitulado "As relações concretas com o outro", que discute os fundamentos da relação com o outro através do amor e do ódio, do sadismo e do masoquismo, do desejo, da indiferença e da expressão linguageira. Damos atenção especial ao amor e ao desejo. Encerramos com o levantamento de duas questões, uma referente à atualidade de sua temática, em uma analogia com o pensamento de Michel Foucault, e outra problematizando a sua noção de encarnação, através do pensamento de Merleau-Ponty. O para-si2 Discutir o sentido fundamental da relação com o outro, ou a dimensão de ser-para-ooutro em Sartre, implica que se tenha com clareza a dimensão de ser da consciência ou do que o autor chamou de ser-para-si, em contraposição ao ser-em-si. A saber, o para-si surge enquanto negação do ser-em-si que ele não é, e esta negação será a ocasião da própria manifestação do Ser para a consciência, de um ser, portanto, que é para a consciência, e que a consciência não é. É o modo como Sartre explicita o caráter intencional da consciência, ou sua estrutura enquanto consciência de alguma coisa (Husserl), esvaziando a consciência de qualquer conteúdo de ser. Ela é apenas essa relação com o ser, e nada mais. Mas, em segundo lugar, é preciso entender o caráter concreto do para-si enquanto "separação" do ser-em-si das coisas, e que é ocasião da deflagração do ser propriamente dito. Pois não se trata, antes de tudo, da inauguração de uma relação epistemológica, ou da abertura da dimensão do conhecimento, mas de uma falta ontológica, um oco ou vazio de ser que surgirá enquanto desejo de ser. Ou seja, justamente porque a consciência aparece como não-ser (em-si), sente falta de ser, e esse desejo fundamental de ser é o que caracteriza a essência do ser humano, que assim se revela, pois, como vazia. E daí o mote sartreano de que "a existência precede a essência" (Sartre, 1946/1978, p. 5), pois, no caso do homem, cuja essência não é, ou é a de não-ser, será seu projeto, enquanto movimento de ser, que constituirá, na medida do possível, seu próprio ser, visto que o homem há de se projetar permanentemente em direção ao ser que ele não é, num movimento incessante e sempre ultrapassado por ele mesmo pela própria condição de (não)ser da consciência. 2 Para um maior esclarecimento desse item, remetemos o leitor ao nosso trabalho anterior, Furlan (2012). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de______________, _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 " Ser-para-o-outro E o importante agora, para os propósitos desse artigo, é perceber que nesse seu movimento ou nessa sua dimensão de ser, o para-si não se conhece. Tem consciência do que faz, pois sua condição de ser é a própria consciência, mas a tal ponto é no mundo com o ser das coisas, através das quais realiza seu próprio ser, que não se ocupa em saber o seu próprio sentido. Isto é, apenas o vive, ou é esse sentido em devir, e esse estado do para-si Sartre chama de consciência irrefletida. Será a presença do olhar do outro que fará com que o parasi se veja ou tematize o sentido e o valor de sua própria ação, isto é, de seu projeto de ser. Assim se abre para o para-si uma dimensão da qual não se ocupava, e que dará origem à própria moral. Pois é a presença do outro, melhor dizendo, a consciência que o para-si tem do olhar do outro sobre si, que o levará a reverter seu olhar, antes ocupado com as coisas, para o valor de suas próprias ações, ou sobre o sentido do seu próprio comportamento. Considere-se o exemplo de Sartre (1943/1976) sobre o ato de espiar o outro através do buraco da fechadura da porta. Enquanto o faço, sou todo visão no corpo que contemplo. Mas a simples possibilidade ou o fato de ser flagrado revela a mim a situação que na perspectiva do para-si eu vivia de forma irrefletida. Não significa que eu não tivesse, até então, consciência do que fazia. Ao contrário, eu era ou sou essa consciência, mas apenas enquanto consciência irrefletida, e não transcendida pelo outro ou pela perspectiva de ser-para-ooutro, que é a perspectiva do conhecimento ou da consciência reflexiva, que se volta sobre si mesma ou o sentido de sua ação. O que significa que a transparência da consciência (irrefletida) para si mesma é ao mesmo tempo a razão da opacidade daquilo que o para-si é enquanto projeto (Silva, 2003, p. 179), como se o engajamento estivesse na razão inversa do seu conhecimento. Ou seja, quanto mais sou ação no mundo, o que inclui, inclusive, minhas atividades de conhecê-lo, menos contemplo o sentido do meu próprio comportamento. Em contrapartida, no encontro com o Outro, o sentido que eu apenas vivia se apresenta como um fora que escapa a mim mesmo na dimensão do mundo que eu sou. Ou seja, a dimensão de ser para o outro a uma só vez possibilita "nos ver como nós somos" (Sartre, 1943/1976, p. 404), e na complexidade em que somos, uma vez que o sentido do que fazemos implica o sentido do nosso próprio mundo, isto é, nossa maneira de sê-lo através dos nossos projetos (cf. Furlan, 2012). Ou ainda, não fosse o olhar do outro (possibilidade que é uma abstração), o para-si viveria permanentemente em estado de inocência, ocupando-se apenas do mundo, e não do sentido que ele é enquanto o realiza. Na verdade, são duas perspectivas opostas: ver e ser visto. Ver é a dimensão de serpara-si, é o corpo próprio enquanto projeto de ser, isto é, transcendência em direção ao ser. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Ser visto é a dimensão de ser-para-o-outro, portanto, como transcendência transcendida pela perspectiva do olhar do outro, que capta o sentido de ser (projeto) do para-si no mundo. Ora, tudo o que se faz a partir da perspectiva de ser visível para o outro tem como ponto de partida essa objetivação de um sentido de ser do para-si - que o determina de uma forma ou de outra -, e como finalidade se afirmar enquanto para-si ou subjetividade diante da avaliação objetiva do outro, como veremos a seguir. O outro há sempre de me ver como um determinado sentido de ser que me identifica ou confere a mim certa identidade. O que significa que o seu olhar não apenas me desvela uma dimensão da qual eu não me ocupava até então, mas também representa uma ameaça à minha liberdade, que se vê estancada, porque apropriada no sentido de seu ato: um valor me foi atribuído, ou a dimensão de liberdade que eu vivo enquanto fuga permanente do ser (emsi) em direção ao ser (em-si) é estancada ou fixada num determinado valor de ser (em-si): "fulano é assim", "fulano é isso". E, antes, um nome me foi atribuído - note-se, desde já, o papel atribuído por Sartre à linguagem, que retomaremos mais à frente. Por isso a relação fundamental com o outro, segundo Sartre, é a do conflito entre uma liberdade que enquanto para-si eu vivo sempre em ato, cuja duração é essa permanente fuga do ser (em-si) em direção ao ser (em-si), e o olhar do outro que me apreende num desses sentidos que eu sou enquanto projeto de ser (que constituem o sentido que sou, enquanto passado ou sentido que trago sempre ultrapassado em direção ao ser que desejo). Frente a esse olhar que objetiva ou fixa o sentido de ser do para-si, qual será a minha reação? Segundo Sartre, duas opções são possíveis: aceitar essa objetivação, e a partir dela tentar recuperar a própria subjetividade diante do outro, ou recusar essa objetivação, reafirmando a própria subjetividade através da objetivação do outro com o próprio olhar. Entre as atitudes da primeira opção, Sartre destaca o amor, a linguagem e o masoquismo. Na segunda opção, a indiferença, o desejo, o ódio e o sadismo. Ele as descreve separadamente para fins analíticos, mas, de fato, são posições que podem se alternar. O importante é frisar que são atitudes que não se misturam: posso ocupar a posição de sujeito ou de objeto, mas não uma posição aquém dessa distinção. É a separação entre essas instâncias que se enfatiza, a passagem de uma para a outra, e não de uma na outra, isto é, enfatiza-se sua alternância, e não sua cumplicidade. Ou, coerente com sua noção de consciência enquanto nada ou não-ser (e conforme tratamos no artigo anterior), Sartre recusa por princípio qualquer tentativa de mistura "substancial" entre os sujeitos, e a carne, enquanto contingência humana do para-si, encontra-se destituída de sentido, é pura matéria. São duas perspectivas opostas e inconciliáveis, portanto. Posso ver ou tocar, e nessa dimensão sou o corpo próprio enquanto projeto de mundo, ou posso me ver e me tocar, como uma coisa no mundo, e então o para-si que sou, nesse momento, toma parte do próprio corpo como um ser (em-si), um isso ou aquilo. Por exemplo, quando olho para meu braço ferido ou o estendo para o olhar do médico, para um exame de raios-X, etc. Em Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 síntese, a dor que sofro é a dimensão do para-si, que, naturalmente, me atrai ou me lembra da contingência de meu próprio corpo, ou da sua dimensão de ser-em-si. Mas também posso (como tratamos no artigo anterior) assumir como fim imediato meu próprio corpo, ao invés de sê-lo como instrumento de meus projetos de ser no mundo. Então desejo (no sentido restrito do termo, e não mais em sentido ontológico mais amplo, onde todo projeto é desejo de ser), isto é, busco me encarnar ao invés de fazer do corpo princípio de ação no mundo. Quer dizer, meu corpo que é referência implícita no uso de todos os instrumentos com os quais componho meu ser no mundo (ou desejo ser, no sentido amplo do termo), passa a ser meu fim imediato enquanto desejo sexual ou de encarnação, o que levará à encarnação do mundo também. Isto é, a instrumentalidade do mundo dará lugar ao seu caráter sensível, à sua sensualidade para a minha própria consciência encarnada, o que significa que os meus projetos de ser se afundam no caráter sensível de minha carne e do mundo, que antes representavam apenas a presença da contingência da matéria nos mesmos. Retomaremos esse ponto mais à frente, quando tratarmos especificamente do desejo como modalidade de relação com o outro. As relações concretas com o outro Antes de tudo, é importante frisar que todas as descrições sartreanas que visam elucidar o sentido de nossas relações com o outro, ocorrem em diferentes graus ou intensidades, isto é, das formas mais ou menos nuançadas, até as mais explícitas ou evidentes. O importante nessas descrições, portanto, é a sua direção de sentido, e não a intensidade ou grau em que ocorrem em nossas relações, que varia segundo cada situação particular. A) Comecemos pelas atitudes de recusa da objetivação do olhar do outro, através das quais o para-si pretende preservar sua subjetividade. Dessa forma, o para-si, que se sente objetivado pelo olhar do outro, objetiva-o em defesa da própria subjetividade. 1) A indiferença. Com a indiferença o para-si procura ignorar o olhar do outro, tentando reduzi-lo a um elemento funcional entre tantos de seu mundo. Por exemplo, para um aluno existem salas de aula, ônibus ou carro para ir à escola, etc, mas também professores, e vice-versa. Professores e alunos são visíveis uns para os outros, ou sofrem os olhares uns dos outros (naturalmente, os pares também se olham). Revelam, assim, as dimensões objetivas que ameaçam suas liberdades. Ora, a atitude de indiferença frente à mesma é a tentativa de um reduzir o outro a um elemento funcional de seu mundo, por exemplo, como um instrumento entre outros para se obter um salário ou um diploma. Mas a medida do sucesso dessa tentativa é também a de seu fracasso, pois, uma vez sofrido o olhar do outro, como cada para-si envolvido pode recuperar sua subjetividade, transformando o Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 outro em coisa ou elemento funcional de seu mundo? Ou seja, quanto mais ele reduz o outro a insignificância das coisas, menos pode obter dele o reconhecimento de sua subjetividade. 2) O desejo. Como adiantamos, o desejo (sexual) é princípio de encarnação do para-si (consciência) em seu ser corpo. Isto é, de referência implícita à situação do para-si no mundo, seu corpo passa a ser seu objeto e fim mais imediatos. Desejar o outro já pode ser, pois, princípio de encarnação ou objetivação própria, porque a carne representa para Sartre a matéria do mundo desprovida de sentido, é princípio de "queda". Queda de um para-si que deixa de iluminar o mundo através de suas atividades para se obscurecer no próprio corpo desejante, e assim também ao mundo que vai se reduzindo a sua matéria sensível. Ora, o corpo que deseja procura enlear também o outro à própria encarnação, fazendo-se corpo fascinante. Ou seja, o para-si pode buscar com o desejo sexual a própria objetivação, e buscar com ela a objetivação do outro também, objeto do seu desejo. Tomemos, num uso mais livre, o exemplo sartreano da bailarina. A bailarina visivelmente aceita sua objetivação, isto é, aceita ser para o outro enquanto corpo dançante. Não é esse o aspecto destacado por Sartre, que se atém ao olhar do espectador, que se fascina por ela, mais precisamente, pela bailarina e não por seu corpo, pois esse corpo encontra-se transfigurado pelos seus movimentos - é corpo dançante, cuja graça suspende a matéria sensível (carne) que ela porta ou é. Não há nada menos nu do que a graça do corpo de uma dançarina em ato, diz Sartre, não importa a quantidade de roupa que ela use. Mas desde que em estado de graça, frisemos, pois um corpo "desconjuntado" ou com movimentos desarmoniosos destaca justamente suas partes, seus músculos, a matéria sob seus movimentos. O movimento das nádegas, por exemplo, não tem nada de gracioso, segundo Sartre, e, diferenças culturais à parte, isso ocorre quando o seu requebro destaca-se do conjunto do corpo. Ora, desejando a bailarina, isto é, o outro em situação, e não o seu corpo, o espectador começa por desnudá-la, isto é, a olhar suas coxas, nádegas... tentando reduzi-la à matéria sensível que se encontra sob sua dança. Em outros termos, o desejo pela subjetividade do outro acaba induzindo a percebê-la como um objeto, como pode induzir o próprio para-si desejante a se objetivar. Por isso Sartre destaca, na literatura, a proximidade frequente da volúpia com a morte, quando os dois amantes se aproximam ao máximo da matéria sensível que os constitui. Sartre aborda o exemplo da bailarina do ponto de vista do espectador, mas, como dissemos, é óbvio que quem dança para o outro ou para ser visto aceita ser isso que o outro vê. Mas, também, é assim que a bailarina procura recuperar sua subjetividade, pois é esta que inicialmente o espectador deseja e que, portanto, reconhece. Ora, do ponto de vista da bailarina, como pode um outro fascinado reconhecer sua subjetividade, se a fascinação supõe justamente a perda da liberdade da subjetividade, para ser todo ou apenas no objeto de fascinação? Ou, do ponto de vista do espectador que deseja a bailarina, que é o foco de Sartre, como pode obter dela o reconhecimento de sua subjetividade, se termina por objetivá-la através do desejo? Obterá o reconhecimento de suas coxas ou nádegas? Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de______________, _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 " 3) O sadismo. O sadismo é a tentativa de encarnar o outro lhe causando sofrimento. Se antes o outro era livre para me olhar e objetivar, como sádico procuro reduzi-lo ao próprio sofrimento ou à própria dor (em seu corpo), que deve suplicar-me, submeter-se à minha vontade, reconhecendo assim minha subjetividade. A contradição disso, mais uma vez, está em reduzir ao máximo o outro à condição de coisa para exigir dele o reconhecimento de minha subjetividade. Mas nem pode uma coisa reconhecer o que quer que seja (o em-si é fechado), nem pode o para-si próprio ou do outro ser reduzido a uma coisa. No caso do sadismo, nem pode, em última instância, um sujeito que é "apenas" dor ou sofrimento reconhecer a subjetividade do sádico, como também sempre lhe resta um último olhar ou suspiro com os quais suspende tudo o que havia dito ou jurado antes. "Acreditaria mesmo em tudo o que disse?" "O que teria significado aquele último olhar?" São dúvidas que o sádico, por fim, levará consigo, não logrando o que esperava. 4) O ódio. Através do ódio o para-si deseja a eliminação do outro. Mas, caso venha a fazê-lo, não pode eliminar o fato do outro ter sido e de ter apreendido o sentido de seu ser. Restaria, pois, a lembrança do outro que um dia encerrou seu ser, o que é suficiente para marcar o fracasso dessa tentativa do para-si de recuperar sua subjetividade, agravada, então, pela eliminação do outro, que, assim, não pode mais reconhecer coisa alguma. B) Na primeira atitude, ao contrário, o para-si aceita sua objetivação pelo olhar do outro, e é através dela que procura recuperá-la. 1) O masoquismo. O masoquista não só aceita sua objetivação como procura intensificá-la ao máximo, tornando-se totalmente objeto para o gozo do outro. Esse é o ponto em que procura converter sua submissão enquanto objeto para o outro, em necessidade desse outro por ele, com o que as posições se invertem, e o masoquista, antes dominado ou na posição de objeto, passa a ocupar o papel dominante de sujeito, e o outro, a de objeto. Mas, como dito anteriormente, um objeto não pode mais reconhecer subjetividade alguma, e o sentido visado pelo masoquista também está fadado ao fracasso. 2) O amor. A diferença com o desejo sexual é que o amor pressupõe reciprocidade. Quem deseja (sexualmente), não necessariamente precisa ser desejado, ainda que a reciprocidade possa ser favorável à satisfação do desejo. Em última instância, pode-se comprar um objeto de desejo ou até obtê-lo à força, mas o amor pressupõe reciprocidade. Contrariando visões puristas ou altruístas do amor, quem ama deseja ser amado. Em outros termos, não há amor desinteressado. O amante procura, então, fazer-se objeto fascinante para o amado, com as contradições que isso implica, como adiantamos a respeito da fascinação, pois um sujeito fascinado não pode mais reconhecer a subjetividade do outro, na medida em que perde a sua. Ou seja, no amor quer-se um sujeito (livre) cativo, o que é contraditório. Nesse caso, suscitar o desejo sexual do amado pode fazer parte desse processo, mas não basta, pois o amante não quer ser um objeto de desejo entre outros que o amado possa Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de______________, _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 " ter, mas ser O objeto, isto é, este a partir do qual todos os objetos do mundo são significados para o amado. Em outros termos, cada para-si valora espontaneamente o mundo através de seus projetos (como vimos no exemplo da montanha ou do campo de neve no artigo anterior, que têm um valor de sentido conforme o desejo do para-si na sua relação com os mesmos)3, e o outro, sendo valorado por ele, também é objetivado (como sendo isso ou aquilo, assim ou daquele jeito). Mas se esse outro passa a ser amado, torna-se o centro de referência de todos os outros objetos do mundo para o para-si, e assim de todos os seus valores, ocupando dessa forma um lugar sui generis em seu mundo, pois ao mesmo tempo é objeto e condição de valor de todo objeto, o que significa, no limite, deixar a própria condição de objeto (que é a forma, pois, como o para-si, aceitando sua objetivação através do seu ser amante, pretende recuperar sua subjetividade). Por isso se diz que o mundo fica diferente quando se ama, melhor ainda, que sem o amado nada mais importa ou tudo perde o sentido, e é isso o que o amante deseja do amado. Se isso acontece, então os dois passam a ser para cada qual o centro de referência de todos os outros valores mundanos, formando, assim, um casal, onde o olhar de um terceiro só atrapalha, porque rompe com essa cumplicidade fechada de referência recíproca e absoluta de mundo, ao situá-los no mundo como um casal que se ama, relativizando, assim, o que lhes parecia absoluto. Por isso, mesmo um amigo é um intruso indesejável quando de alguma forma pretende mostrar a um deles os defeitos ou limites do outro. Em geral, é a amizade que se enfraquece ou se acaba. Ora, note-se então o que supostamente consegue o amor. Sendo amado, o para-si sente justificada sua existência, pois esta parece absolutamente necessária para o outro. O outro não só me reconhece (em minha subjetividade), como me ama, justificando plenamente o meu ser. O amor realiza, pois, da maneira mais favorável possível, a avaliação que se iniciou com o olhar do outro. Pois se o outro me avalia com seu olhar, e me ama, então sou o objeto mais importante de sua vida, tão importante que sua própria avaliação encontra em mim o seu limite, confunde-se comigo, a ponto de não poder mais me avaliar, pois passo a ser a referência de todas as suas avaliações, o que seria o momento do reconhecimento de minha subjetividade pelo outro. Mas essa é a contradição, pois nessa condição de ser cativo o outro não pode mais reconhecer minha subjetividade, ou, conforme o dito popular, "o amor é cego". Note-se quantas variações de graus de intensidade podemos fazer em relação ao amor dos amantes, tal como descrito por Sartre. Porque professores, pais, filhos, amigos, profissionais em geral, também podem ser amados, se não nesse sentido particular dos 3 "Sendo em situação, o para-si qualifica o ser (em-si) enquanto seu projeto de ser. Sentir e perceber a situação de uma forma ou de outra já é, nesse sentido, um projeto de ser do para-si. Por isso uma montanha aparece como obstáculo desde que se pretenda passar para o seu outro lado; um campo de neve aparece como brancura na perspectiva de um espectador, ou, sobretudo, como espaço liso na perspectiva do esquiador; o frio e o calor parecem excessivos, desde que se queira um estado de conforto ou até mesmo, em última instância, preservar a vida, etc" (Furlan, 2012, p. 120). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 amantes, ao menos com alguns de seus traços. Então um professor, amado pelos alunos, encontra justificado, ao menos parcialmente, seu ser ou sua vida, e assim por diante, um médico ou terapeuta, pelos pacientes, um aluno, pelos professores, etc, etc. Ora, o risco disso está em trocar a consciência da liberdade por uma imagem de ser que o para-si não é e jamais será. Por isso, do ponto de vista sartreano, bons professores, alunos, pais, filhos, profissionais, etc., quando admirados ou amados, jamais se deixam seduzir por isso. Quer dizer, o que importa é o projeto pelo qual procuram "justificar" a própria existência, isto é, sendo o que lhes parece valer a pena, onde o ponto de vista dos outros pode participar ou ser relevante para essa sua realização, mas jamais com o intuito de ser bem visto ou bem avaliado pelos outros. Nosso ser é visível para o outro, e por isso a imagem que o outro tem de nós pode ser reveladora do nosso sentido ou projeto de ser. Não ignorá-la, porém, não significa ser-lhe subserviente, ou ser em função dessa imagem. O para-si tem apenas a si mesmo para se justificar, ainda que considere o ponto de vista do outro ou que este lhe seja importante. 3) A linguagem. Ser expressivo é ser na dimensão para o outro. A linguagem representa, pois, a perspectiva da objetivação do para-si, onde ele é para o outro ou do ponto de vista do outro. Naturalmente, a linguagem pode fazer parte dos utensílios do para-si, através dos quais ele projeta o próprio mundo ou se faz mundo. O para-si usa a linguagem sendo expressivo ou significante para o outro, enquanto escritor, professor, aluno, médico, terapeuta, paciente, sedutor, cantor, patrão, empregado, etc. O risco, mais uma vez, está em se objetivar aí, o que a palavra ou o olhar do outro faz por princípio, captando ou dizendo o sentido de ser de cada para-si que só é ultrapassando ou negando o próprio ser. De uma forma ou de outra, isto é, sendo ativo ou passivo, subjetivando ou sendo subjetivado (objetivado como sendo isso ou aquilo), através da linguagem o para-si reconhece sua dimensão expressiva de ser-para-o-outro. Melhor ainda, ser-para-o-outro é ser na dimensão da linguagem, que representa, por excelência, o campo geral dos conflitos com o outro, e, como o campo da percepção de si através do olhar do outro, é onde o para-si pode se deixar ou mesmo desejar se prender ou fixar. Todas as tentativas do homem de eliminar o conflito entre as suas dimensões subjetivas e objetivas de ser nas relações concretas com o outro são fadadas ao fracasso. Podemos, inclusive, ter projetos em comum com o(s) outro(s), quando suspendemos a relação de olhar um para o outro, e olhamos juntos a mesma coisa, ou visamos juntos aos mesmos objetivos. Nessa perspectiva, um casal, uma pequena reunião de pessoas, uma comunidade, uma classe social ou até mesmo a humanidade, como um todo, virtualmente podem assumir a perspectiva subjetiva de ser no mundo - o que não significa fusão subjetiva com o outro (Sartre, 1943/1976).4 Mas, nesses casos, a perspectiva de ser para o outro seria a ' Cf. Sartre (1943/1976, pp. 464-486), sobre a diferença entre ser ao lado e ser-com Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de______________, _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 " de ser vista, senão por alguém de fora do grupo ou de outra classe social, em última instância por "Deus" (o grande Outro), através do qual a humanidade se perceberia segundo o seu sentido de ser visível para o Absoluto ou um outro além. De qualquer forma, se me vejo, isto é, se assumo a perspectiva do outro, real ou imaginário, percebo o caráter de meu ser objetivo, que me fixa no mundo e transcende a minha subjetividade. Ora, é essa tensão entre o que sou e não sou, ou o que sou não sendo, que se agudiza na relação com o outro. Considerações finais Antes de tudo, julgamos pertinente encerrar com uma lembrança ao trabalho de Foucault, porque o ocaso da noção de consciência em nossa filosofia contemporânea mais recente não deve ser motivo para subestimar a força do pensamento sartreano, em que se apoiaram sobretudo filósofos franceses da geração seguinte. Quer dizer, sabemos que Sartre apostou no acabamento da noção de consciência, e que o ocaso da mesma na filosofia contemporânea também favorece o esquecimento de sua filosofia, ainda que Sartre seja um expoente muito refinado dessa noção, o que levou Deleuze & Guattari (1992, p. 65) a dizerem que sua filosofia devolve "à imanência seus direitos". Naturalmente, não sugerimos uma relação linear entre os pensamentos de Sartre e Foucault, este que se serviu de outros interlocutores importantes, entre os quais os epistemólogos franceses e o próprio Nietzsche. Mas não deixa de ser curiosa essa relação, eles que tiveram inclusive querelas pessoais na vida intelectual francesa. Sabe-se que Foucault construiu fama em grande parte fazendo a crítica das formas de objetivação do sujeito na história ocidental, destacando, sobretudo na fase genealógica de seu pensamento, como em Vigiar e Punir (1975/1996) e História da Sexualidade I (1976/1988), as formas modernas de saber-poder que se investem sobre nós. Ora, como vimos, o princípio geral da aplicação dessa ideia encontrava-se exposto de forma incisiva na filosofia sartreana. Em outros termos, o sistema "infernal" com que somos codificados, significados, avaliados, presos na teia do Outro (sociedade), encontrava-se anunciado na filosofia sartreana através da análise da perspectiva do outro. Foucault, naturalmente, atem-se a uma perspectiva histórica, ou de ontologia histórica e não geral, como em Sartre. Mas vale lembrar, inclusive, que o mote de que o conflito generalizado é a base das relações com o outro é comum a ambos os filósofos. Certamente, para Sartre a perspectiva do outro representa também a do conhecimento do sentido de nosso ser, perspectiva que não interessava a Foucault, cujo pensamento destaca apenas o que o poder fez de nós na história ocidental. Foucault (1984/2004a) destacava essa segunda perspectiva apenas em entrevistas, afirmando que suas obras não significam que não há verdade ou que tudo não passa de poder. Quer dizer, ao estudar as formas canônicas de saber-poder, em sua fase genealógica Foucault se preocupa apenas com os seus efeitos sobre nós, e só depois, em atenção à dimensão Ética, introduziu Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 um princípio positivo em sua análise sobre a subjetividade, quer dizer, então na perspectiva do que um sujeito pode fazer pela própria vida ou existência, e não apenas na perspectiva do que o outro faz dele (Foucault, 1984/2004b). Não bastasse esse contraponto com Foucault, a importância da nossa imagem pessoal para o outro, que se acentua na chamada sociedade de espetáculo, e coloca mais em risco nossa liberdade, encontra-se decididamente problematizada por Sartre, cuja filosofia se mostra, portanto, bastante atual. Por fim, gostaríamos de levantar outro ponto que não foi propriamente objeto de nossa discussão, para mostrar o que nos parece crucial caso se queira revisar os fundamentos da perspectiva sartreana sobre as relações com o outro. Sartre entende a relação com o outro a partir do conflito. Simplesmente porque ser olhado pelo outro revela a cada para-si a sua dimensão visível ou objetiva enquanto ser, que assim estanca sua liberdade de não-ser. Ou seja, a dimensão objetiva significa o efeito de se ver ou se sentir transcendido pelo olhar do outro. Não se trata, pois, de uma decisão voluntária daquele que olha, mas da estrutura interna da própria relação entre olhar e ser olhado. Daí a insuperabilidade dessa situação de conflito, e o que cabe a cada para-si objetivado pelo olhar do outro é a tentativa (sempre frustrada) de obter o reconhecimento de sua subjetividade através das alternativas que apresentamos, aceitando sua objetivação para através dela buscar o reconhecimento de sua subjetividade, ou recusando-a de imediato, objetivando o outro através do próprio olhar. Ora, a revisão dessa perspectiva parece-nos que passa de maneira privilegiada pela noção de carne ou encarnação em sua filosofia. Como vimos, para Sartre a carne representa apenas a contingência da matéria do para-si, ou sua faticidade mais própria, porque sempre com ele. Ou, a passividade é a dimensão da carne ou do corpo em-si para Sartre, e a atividade é o para-si enquanto corpo-próprio, isto é, enquanto homem que age no mundo através de seus projetos de ser. A dimensão passiva que o homem traz não pode, de direito, invadir sua atividade, ou, a inércia não invade a liberdade do para-si, distinta dela por natureza. São duas dimensões que se alternam, mas não se misturam, e a má-fé ocorre justamente quando o para-si procura se encarnar, empastar a consciência em seu próprio corpo, como destacamos com o desejo, mas que pode ser generalizado para qualquer atitude de má-fé, na medida em que através dela o para-si se comporta como se fosse uma coisa (emsi), no caso, como se seu corpo não fosse próprio (para-si), mas um objeto entre outros. Mas é essa ideia de carne ou encarnação que em última instância compromete nossas relações com o outro, particularmente o amor. Ou seja, coerente com sua definição de consciência, tomada como princípio central em sua filosofia, o outro sempre aparece como uma ameaça de objetivação que em última instância crava minha consciência no próprio corpo; é sempre a lembrança da faticidade de meus projetos, situados no mundo e particularmente em meu próprio corpo. Isto é, o outro inverte sempre a perspectiva de ser do Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 para-si: de abertura de mundo, ou de situação que se arma a partir de seus projetos, da qual o corpo próprio é referência ou princípio central, o para-si se sente encerrado pela perspectiva do outro, sente seu mundo ou projeto captado pelo seu olhar, e, em última instância, como encarnado em seu próprio corpo. Sartre não vê possibilidade de mistura dessas perspectivas, porque não vê possibilidade de mistura entre os para-si, definidos a partir da noção de consciência, nem destes com as coisas, o que a carne, se não fosse degradada à sua condição objetiva, poderia promover, afinal, os corpos se tocam ou se enlaçam. Vamos nos servir de uma citação de uma nota de curso de Merleau-Ponty que discute diretamente a posição sartreana. Nela, Merleau-Ponty destaca a ideia de sado-masoquismo justamente para mostrar que eu e o outro formamos um sistema, onde é difícil separar o que é meu e do outro, o que há de mim no outro e o que há do outro em mim: Numa concepção + profunda: relação com o outro e comigo são entrelaçadas e simultâneas - A agressão # resposta a uma frustração objetiva (e portanto o remédio não é uma gratificação objetiva). A agressão é também masoquismo: sou eu que persigo no outro, é o outro que persigo em mim. Freud: sado-masoquismo. Não sou de forma alguma simples: o outro é em mim, me destruo por ele, há troca - Não o ser para si + o ser para outrem, mas o Füreinander, isto é sado-masoquismo - O que sou em "para si", sou também "para outrem", o que ele é "para si", é também "para mim" - Isso é impossível de pensar através da "consciência": ela só pode se sentir anulada pelo outro absoluto, culpável absolutamente, injustificável absolutamente, responsável, condenada - mas se sou uma existência, isto é, sempre ligado à inércia, a outro que eu, essa generatividade me absorve, sei que não serei consciência negando-a (Merleau-Ponty, 1959-1961/1996, pp. 152-153). Por isso, quando agrido ou odeio o outro é a mim mesmo que também o faço, ou ao outro que está em mim e que, portanto, faz parte daquilo que sou. Merleau-Ponty trabalha, nesse sentido, com as noções de introjeção e extrojeção (psicanálise), fazendo da relação com o outro uma questão mais complicada do que se fosse apenas uma relação entre duas consciências. Isto é, as relações com o outro são tanto "internalizadas" quanto "projetadas", e por isso o que há é um no outro. Ora, é esse embaraçamento das dimensões do si que a noção de carne (Merleau-Ponty, 1964) possibilita compreender (o que a noção de consciência pura não permite), tornando mais difícil a distinção de suas perspectivas no sentido do nosso comportamento. Podemos nos servir de mais duas passagens em Merleau-Ponty para ilustrar a questão: Schilder observa: fumando cachimbo diante do espelho, sinto a superfície lisa e ardente da madeira não somente lá onde estão meus dedos, mas também nesses dedos gloriosos, nesses dedos apenas visíveis que estão no fundo do espelho. O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne, e, do mesmo passo, todo o invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante, meu corpo pode comportar segmentos extraídos Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de______________, _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 97 dos outros como minha substância se transfere para eles: o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu no outro e o outro em mim (Merleau-Ponty, 1960/1984, p. 93). Esta mistura e esta invasão (de um sobre o outro) existem já porque nós vemos, isto é, vemos os outros verem, com uma sutileza extraordinária, vemos com os olhos dos outros desde que tenhamos olhos (...) Isso parece 6o sentido porque cremos que se vê apenas coisas visíveis ou qualidades: mas eu vejo corpos dirigidos para o mundo e para o mesmo mundo que eu vejo, seus gestos ínfimos, eu os esposo, eu os vejo do interior. Os homens também são homens-gignognes - Se se pudesse abrir um, nele encontraríamos todos os outros como nas bonecas russas, ou antes, menos bem ordenados, em um estado de indivisão (Merleau-Ponty, 1959-1961/1996, p. 211). Temáticas, pois, a contrapelo do sentido da filosofia sartreana. E assim como no artigo anterior sobre a noção de desejo e formação de mundo em Sartre, fizemos referência, além de Merleau-Ponty, à filosofia de Deleuze & Guattari, podemos apontar aqui, en passant, que em Deleuze (1970/2002) ou Deleuze & Guattari (1997) a noção de afecto representará a prioridade da noção de corpo em substituição à noção de consciência. Não cabe aqui, naturalmente, desenvolver essa questão que introduzimos à luz da filosofia de Merleau-Ponty, que pode ser vista como uma tentativa de reescrever as temáticas sartreanas num outro sentido ou sob outros fundamentos, como já frisamos no artigo anterior (Furlan, 2012). De fato, a filosofia de Merleau-Ponty (1960/1984, 1964) procura justamente dar sentido à simultaneidade entre as nossas dimensões de ver e ser visto, tornálas compossíveis, e não excludentes, e procura fazê-lo justamente através da ideia de encarnação. Não significa que os riscos de objetivação descritos por Sartre sejam eliminados, mas que o caráter de ser-com o outro não está comprometido por princípio, em seu sentido mais forte ou intrínseco, talvez o preço pago por um pensamento que se caracterizou pela mais intransigente e rigorosa afirmação do princípio de nossa liberdade. Nesse sentido, ainda, mas esse seria tema para outro trabalho, em Merleau-Ponty a liberdade é mais matizada, opaca e embaraçada com o outro (nunca se sabe, ao certo, o que há do outro em mim ou de mim no outro), enquanto, para Sartre a consciência é translúcida em seu movimento intencional de ser, movimento sem inércia possível e livre de qualquer embaraço com o outro ou o que quer que seja, ainda que isso signifique na filosofia sartreana, como mostramos no trabalho anterior, a mais íntima ligação entre consciência e mundo, a ponto de constituírem um único Ser (já que separados por nada), mas livre de embaraços porque marcados por essa diferença de ser (em-si e para-si) "que os coloca mais distantes um do outro do que o mais longínquo exterior" (Furlan, 2012, p. 122). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Furlan, R. (2013). A relação com o outro em Sartre. Memorandum, 24, 85-99. Recuperado em____de _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Referências Deleuze, G. & Guattari, F. (1992). O que é a filosofia? (B. Prado Jr. & A. A. Muñoz, Trads.) Rio de Janeiro: Editora 34. Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil platôs: volume 4: capitalismo e esquizofrenia (S. Rolnik, Trad.). Rio de Janeiro: Editora 34 (Original publicado em 1980). Deleuze, G. (2002). Espinosa: filosofia prática (D. Lins & F. Pascal, Trads.). São Paulo: Escuta (Original publicado em 1970). Foucault, M. (1988). História da sexualidade: volume I: a vontade de saber (11a ed.). (M. T. C. Albuquerque & J. A. G. Albuquerque, Trads.). Rio de Janeiro: Graal (Original publicado em 1976). Foucault, M. (1996). Vigiar e punir: nascimento da prisão (14a ed.). (L. M. P. Vassalo, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1975). Foucault, M. (2004a) A ética do cuidado de si como prática da liberdade. Em M. Foucault. Ditos e escritos (Vol. V, pp.264-287). (E. Monteiro & I. A. D. 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E-mail: [email protected] Data de recebimento: 31/08/2012 Data de aceite: 19/04/2013 Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/furlan02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 “ Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano "Place of the imaginary of seeing": dialogues based on Lacan's mirror Danilo Saretta Verissimo Universidade Estadual de São Paulo Brasil Resumo A concepção lacaniana do estádio do espelho é perpassada por uma rica malha de diálogos teóricos. Em meio a esta rede se esboça uma ideia de sujeito. O presente trabalho é destinado ao exame dessa ideia, não no interior da obra de Lacan, e sim no âmbito do quadro de referências teóricas relacionado ao tema em apreço. Interessa-nos situar determinados aspectos metodológicos e antropológicos do estádio do espelho em relação a teorias que lhe servem de mediação. Nossos apontamentos voltam-se para três autores: Wallon, Sartre e Merleau-Ponty. O primeiro já em 1931 sublinhava a importância da experiência da criança diante do espelho para o estudo da psicogênese. O segundo é considerado como representante de uma filosofia do Cogito e, portanto, parece figurar como contra-referência para o psicanalista. O terceiro estabeleceu com Lacan uma relação de diálogo mútuo que reforça o caráter heurístico das confrontações entre a psicanálise e a fenomenologia. Palavras-chave: constituição do sujeito; Lacan; Wallon; Sartre; Merleau-Ponty Abstract Lacan's conception of the mirror stage involves a rich network of theoretical dialogues. Amidst this network, an idea of subject is drawn. The aim of this paper is to examine that idea, not inside Lacan's work, but in the theoretical framework related to the theme under analysis. We are interested in situating certain methodological and anthropological aspects of the mirror stage in relation to its mediating theories. Our observations are focused on three authors: Wallon, Sartre and Merleau-Ponty. As early as in 1931, the first underlined the importance of the child's experience in front of the mirror to study his/her psychogenesis. The second is considered a representative of a Cogito philosophy and, therefore, seems to serve as a counter-reference for the psychoanalyst. The third established a relation of mutual dialogue with Lacan, reinforcing the heuristic nature of confrontations between psychoanalysis and phenomenology. Keywords: constitution of the subject; Lacan; Wallon; Sartre; Merleau-Ponty Introdução A temática relativa ao estádio do espelho em Lacan é perpassada por uma malha teórica rica em cumplicidades, divergências e prolongamentos conceituais.1 O artigo intitulado O estádio do espelho como formador dafunção do Eu (Lacan, 1949/1999a) materializa particularmente bem esta condição multifacetária. Em meio a esta rede se esboça uma teoria 1 O presente artigo vincula-se a projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 do sujeito. O presente trabalho é destinado ao exame dessa teoria, não especificamente no interior da obra de Lacan, e sim no âmbito desse próprio quadro de referências relacionado ao tema em apreço. Interessa-nos situar determinados aspectos metodológicos e antropológicos concernentes ao estádio do espelho em relação a outras teorias que, de um modo ou de outro, lhe servem de mediação. Não teríamos, todavia, como nos aplicar a todas essas referências no espaço de um artigo, pois elas vão de Freud a Lévi-Strauss, da ideia de Gestalt ao conceito de Umwelt, tal como concebido por Uexküll, sem contar os inúmeros pesquisadores que se serviram posteriormente da ideia do estádio do espelho. Escolhemos, pois, guiar nossos apontamentos a partir de três autores: Henri Wallon, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. O primeiro já em 1931 sublinhava a importância da experiência da criança diante do espelho para o estudo da psicogênese. Veremos que Lacan opõe-se ao racionalismo de suas formulações acerca dessa experiência. O segundo é considerado como representante de uma filosofia do Cogito e, portanto, parece figurar como contra-referência para o psicanalista, apesar das convergências que unem os dois autores no que diz respeito ao papel da alteridade na constituição do sujeito. O terceiro estabeleceu com Lacan uma relação de diálogo mútuo que reforça o caráter heurístico das confrontações entre a psicanálise e a fenomenologia. Ademais, Merleau-Ponty valeu-se da teoria do estádio do espelho para desenvolver certos aspectos de sua própria filosofia. Aspectos históricos e epistemológicos da questão do estádio do espelho Lacan faz menção ao estádio do espelho pela primeira vez em 1936, numa conferência proferida junto à Sociedade Psicanalítica de Paris (Roudinesco & Plon, 1998). Nesse mesmo ano, Lacan expõe sua tese sobre o estádio do espelho no congresso da International Psychoanalytical Association (IPA). Na ocasião, a comunicação deixa de ser publicada. Trechos dessa conferência são integrados pelo autor a um texto consagrado às relações familiares e publicado na Encyclopédie Française, em 1938, a pedido de Wallon2. O tema do estádio do espelho foi retomado por Lacan em outra edição do congresso da IPA, realizada em 1949. A comunicação foi intitulada "O estádio do espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica" (Lacan, 1949/1999a). O psicanalista retomou a questão em outros trabalhos (Lacan, 1948/1999b, 1950/1999c). Dois aspectos do estádio do espelho são essenciais, tanto mais pela relação com os três autores que nos interessam. O primeiro deles refere-se ao fato de que Lacan (1949/1999a) mostra a necessidade de tratar o tema posicionando-se nos antípodas do racionalismo. O estádio do espelho ilumina o problema da função do eu, tal qual emerge da experiência psicanalítica. Essa experiência, diz o autor, coloca-nos em posição oposta "a toda filosofia 2 Trata-se do artigo intitulado "Les complexes familiaux dans la formation de l'individu" (Lacan, 1938/2001). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 advinda diretamente do Cogito" (Lacan, 1949/1999a, p.93). Com efeito, trata-se de contraporse a toda forma de racionalismo que povoa a tradição filosófica francesa desde Descartes. O que não implica, cumpre salientar, a adesão a qualquer espécie de materialismo ou de determinismo. Descartes funda a primazia do pensar na determinação do ser sujeito e do ser coisa. Na medida em que postula a existência da substância extensa, passível de uma segura inspeção do espírito por meio da observação, da experimentação e da formalização matemática, o filósofo seiscentista assenta os alicerces de um racionalismo cientificista. Se no século XIX essa ideologia busca compor o real a partir de uma rede de relações causais, a representação do mundo real permanece exigindo um sujeito da representação. Em outras palavras, o racionalismo, de um lado, e o materialismo e o determinismo, de outro, são aparentados, e, ao recusar aquele, Lacan recusa também a estes. Seu intuito é quebrar as barreiras seculares entre sujeito e objeto. Daí a leitura que realiza da segunda tópica freudiana, em direção contrária à psicologia do eu. Em sua segunda teoria do aparelho psíquico, Freud define as três instâncias que o constituem: o isso, o eu e o supereu. A gênese do eu é tratada por Freud (1920/1996, 1923/1996) sob "dois registros relativamente heterogêneos" (Laplanche & Pontalis, 1967/2007, p. 241). Por um lado, o eu, em meio ao contato com a realidade exterior, estabelece-se como um sistema adaptativo que se diferencia a partir do isso e que inclusive opera, em certa medida, inconscientemente. Por outro, constitui-se como produto de identificações relativas a objetos investidos pelo isso. A psicanálise tal como desenvolvida nos EUA privilegia as indicações de Freud referentes ao primeiro registro, do eu como resultado da diferenciação progressiva do isso, a ponto de conceber o eu como representante da realidade e contendor das pulsões. Para Roudinesco (1988), a estrutura desta apropriação teórica implica o estabelecimento do primado do sistema percepção-consciência sobre as matrizes inconscientes e, por conseguinte, pode ser considerada como expressão de uma espécie de neocartesianismo na psicanálise norte-americana. Como veremos, para Lacan a gênese do eu deve ser tratada em termos de identificação, de imagos tomadas de empréstimo a outrem, e não de autonomização (Roudinesco, 1993; Roudinesco & Plon, 1998). O segundo aspecto que gostaríamos de destacar é justamente o fato de que a discussão em torno do estádio do espelho refere-se à história da subjetividade, ou seja, a uma problematização de ordem genética. Lacan encaminha-nos à questão da gênese do eu e, por conseguinte, do mundo percebido, processo que, na tradição filosófica e psicológica, ora é reduzido ao problema do conhecimento do mundo, segundo correntes idealistas, ora a questões relativas à recepção e à associação dos aspectos sensíveis do mundo, de acordo com correntes empírico-deterministas. A abertura ao mundo não se dá à luz da evidência, mas contém uma parcela de obscuridade. Muito já ocorreu antes que as coisas sejam concebidas como objetos para um Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 sujeito do conhecimento. Apenas uma investigação genética precavida em relação às posições idealistas pode recolocar o sujeito pensante no fluxo da dimensão natural da nossa existência, ou seja, daquilo que se dá ao largo do pensamento objetivo. O estudo genético deve, contudo, precaver-se do risco de conceber a filiação natural do homem conforme a representação mecanicista. Vale considerar que Bergson (1907/1970) já alertava contra a concepção segundo a qual a forma intelectual do ser vivo é "modelada pouco a pouco sobre as ações e reações recíprocas de certos corpos e de seu meio material" (p. 491). Não sem ironia, Bergson comenta que a inteligência humana, destinada a inserir perfeitamente nosso corpo em seu meio, de modo a representar as relações de coisas exteriores umas às outras, sente-se muito à vontade entre objetos inertes, sobre os quais aplica com sucesso sua lógica dos sólidos, da matéria bruta. Essa forma puramente lógica é, no entanto, incapaz de se representar a natureza da vida e da sua evolução, afirma o filósofo. Segundo ele, a teoria da vida deve ser acompanhada de uma crítica do conhecimento, de maneira que os conceitos que habitualmente se encontram à disposição sejam revistos e nos aproximem da raiz da natureza e do espírito. Coerente com essa exigência crítica do seu tempo, Lacan aborda a questão da gênese do eu imbuído da intenção de reconstruir o modelo de cientificidade da psicologia (Simanke, 2002). Em suas reflexões esboça-se uma epistemologia que renuncia tanto ao objetivismo idealista quanto o objetivismo mecanicista, organicista. É o que transparece na forma com que Lacan se apropria da teoria walloniana do espelho. Lacan face ao espelho walloniano Wallon dedicou sua carreira à psicologia da criança. Ocupava-se justamente de questões relativas à vida psíquica no curso do desenvolvimento, a "processos gerais de psicogênese" (Wallon, 1949/2009, p. 245). Em 1931, o autor publica no Journal de Psychologie o artigo intitulado Comment se développe chez l'enfant la notion du corps propre. Este texto foi reeditado no livro Les origines du caractère chez l'enfant, de 1949, onde aparece com o título Conscience et individualisation du corps propre, compondo a segunda parte da obra. Nele, Wallon (1949/2009) propõe-se o estudo da constituição, por parte da criança, de "... uma noção suficientemente coerente e unificada de seu ser físico" (p. 179), o que ele denomina corpo próprio. As etapas dessa constituição são consideradas pelo autor como um aspecto particular da psicogênese. No texto, Wallon dá grande importância à evolução das reações da criança diante de sua imagem no espelho enquanto índice da individualização do corpo próprio, processo essencial na conquista da consciência de si na infância. De acordo com Wallon (1949/2009), a organização da consciência corporal não se limita à aquisição de um senso coordenado acerca dos nossos órgãos e da sua atividade. Ela exige a distinção progressiva entre aquilo que deve ser atribuído ao mundo exterior e aquilo Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 que deve ser imputado ao corpo próprio. Esse processo corresponde à integração e maturação, no plano da vida psíquica, da atividade simbólica, caracterizada pela capacidade de evocar, além das impressões sensíveis momentâneas, sistemas de representação do mundo e do próprio corpo. Antes disso, contudo, é preciso que ocorra o desenvolvimento de um sistema coeso e sinérgico entre as sensibilidades interoceptivas, proprioceptivas e exteroceptivas. No início da vida, estes diferentes domínios funcionais encontram-se dissociados, afirma o autor. O domínio interoceptivo, relacionado à sensibilidade visceral, e o domínio proprioceptivo, referente às sensações ligadas ao equilíbrio e à motricidade, desenvolvem-se mais precocemente. As funções exteroceptivas, que se referem à sensibilidade às excitações de origem externa, são mais tardias e, inicialmente, provocam efeitos que não pertencem à vida da relação com o mundo exterior, mas apenas ao próprio organismo. Segundo Wallon (1949/2009), a regulação mais estável e sinérgica entre estes três domínios pode ser vislumbrada em torno do fim do terceiro mês de vida. Este fato é atrelado ao processo de mielinização das fibras nervosas, cujo curso se estende ao longo do primeiro ano de vida da criança. Com efeito, trata-se de um processo de maturação progressiva dos centros nervosos ligados ao equilíbrio e às sinergias funcionais. Essa sinergia corporal nascente orienta-se progressivamente para o meio exterior, motivando e se beneficiando, ao mesmo tempo, de uma integração crescente entre elementos posturais, motores, sensoriais e psíquicos. Dessa forma, por volta do terceiro mês de vida, observa-se na criança o início da preensão e da atividade manual, que fará parte do estabelecimento de um circuito de ação no qual o uso dos objetos irá se diversificar e se transformar, a ponto de, em torno do oitavo mês de vida, poder ser comparado à habilidade instrumental dos chimpanzés estudados por Köhler (1927). O início das atividades exteroceptivas minimamente coordenadas possibilitam as primeiras reações da criança face ao seu próprio corpo. Wallon (1949/2009) observa que, entre o terceiro e o sexto mês de vida, é comum deparar-se com a surpresa da criança frente à aparição fortuita de seus membros em seu campo perceptivo. Durante o esforço para pegar um objeto qualquer, é possível que ela pare uma das mãos diante dos olhos e a fixe prolongadamente, atendo-se especialmente à agitação dos dedos. No curso de movimentos aleatórios, pode ainda ocorrer que a criança pegue uma mão com a outra, a mão tocada parecendo lhe surpreender mais, pois, apesar de inerte, apresenta-se como sede de sensações, comenta o psicólogo. Segundo ele, neste período ainda não existe, por parte da criança, uma intuição do corpo próprio em seu conjunto. No decorrer dos seis meses seguintes, são esperados importantes avanços na constituição de uma personalidade física mais unitária. O reconhecimento da imagem exteroceptiva do corpo próprio por parte da criança é destacado por Wallon (1949/2009) como importante etapa desse processo. Com efeito, a Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 presença da criança diante do espelho serve ao autor como contraprova das dificuldades que ela enfrenta antes de "reduzir numa intuição de conjunto tudo aquilo que se relaciona à sua personalidade física" (Wallon, 1949/2009, p. 218). Conforme Wallon, a tarefa que a criança tem diante de si é reconhecer seu aspecto exteroceptivo como seu. Mais do que isso, ela deve reconhecer o real na imagem, sendo capaz, contudo, de distinguir as coisas da sua representação. Wallon (1949/2009) mostra que esta atividade simbólica, cujo desenvolvimento se dá ao longo dos primeiros anos de vida infantil, não encontra paralelo entre os animais. Enquanto certas aves respondem à percepção de sua imagem especular como se estivessem diante de um de seus companheiros, símios superiores, como os chimpanzés, têm o ímpeto de, diante do reflexo, verificar a parte posterior do espelho. A frustração os deixa irritados e eles passam a evitar a imagem. Para o autor, o comportamento dos símios demonstra um "ato verdadeiro de conhecimento" (Wallon, 1949/2009, p. 221). Num átimo, tem lugar um rompimento entre a percepção e a adesão ao percebido, um esboço do "nascimento da representação face ao real" (Wallon, 1949/2009, p. 221). Até o terceiro mês de vida, a criança se mostra insensível à imagem especular. Entre o terceiro e o sexto mês, observam-se manifestações afetivas intermitentes de interesse pelo reflexo. A partir do sexto mês, as imagens refletidas no espelho encetam reações mais ricas. Wallon (1949/2009) dá o exemplo da criança que sorri diante do reflexo dela junto a seu pai, e que se espanta quando o escuta falar por detrás dela. Segundo o autor, trata-se de uma situação de confronto entre o aspecto refletido pelo espelho e a presença real do pai. A criança surpreende-se diante de uma espécie de duplicação espacial, que, num momento seguinte, deverá ser reduzida, ainda que precariamente, à identidade entre a imagem e o objeto. Malgrado a diferença de fontes espaciais, a criança começaria a se dar conta da correspondência mútua entre certos grupos de impressões. De acordo com Wallon (1949/2009), a verificação dessa relação revela um "ato de conhecimento" (p. 224) original, na medida em que implica a realização de novas formas de identificação e de integração mentais. As relações entre o objeto e a imagem, entre o corpo vivo e seu duplo visual, não são, todavia, apreendidas subitamente. Observam-se intermitências no comportamento da criança diante do espelho. Ora ela tenta agarrar sua imagem com as mãos e se espanta com a solidez do vidro. Noutro momento, ela examina a parte posterior do espelho, atribuindo realidade independente tanto à imagem quanto ao modelo. Noutra ocasião, se chamada por seu nome, pode ocorrer que ela olhe diretamente para o espelho. Wallon (1949/2009) referese a este realismo espacial como um estádio de simples justaposição. O trabalho que a criança deve realizar em seguida, ainda que a título de prelúdio da atividade simbólica, é o esvaziamento da existência da imagem especular do corpo próprio. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 ^" Nos termos do que afirma Wallon (1949/2009), isso implica que, gradualmente, o corpo próprio adquira uma dimensão espacial-objetiva. O autor comenta: Entre a experiência imediata e a representação das coisas é preciso necessariamente que intervenha uma dissociação, que destaca as qualidades e a existência pertencentes ao próprio objeto das impressões e das ações em que ele se encontra inicialmente implicado, atribuindo a ele, entre outros caracteres essenciais, aquele da exterioridade. Não há representação possível senão a este preço. Aquela do corpo próprio, na medida em que existe, deve necessariamente responder a esta condição. Ela apenas pode formar-se exteriorizando-se (Wallon, 1949/2009, pp. 227-228). O reconhecimento da imagem especular é, pois, uma das ocasiões para que a criança entre pouco a pouco no mundo das coisas perceptíveis. Ela chegará a se conceber como um corpo entre outros corpos, como "um ser entre os seres", concebendo imagens de si mesma análogas às que podem se formar exteriormente. A unificação de seu eu no espaço, contudo, pressupõe que a criança conceba a impossibilidade do agenciamento da percepção por parte do seu eu exteroceptivo, ou seja, por parte da sua imagem, afirma Wallon (1949/2009). A imagem não percebe, ela não tem acesso aos sentidos do corpo próprio, posto que não coincide com ele. Daí a dupla operação que a criança deve realizar: admitir que há imagens que apenas possuem a aparência de coisas reais e afirmar a realidade de imagens que escapam a uma apreciação perceptiva total, como no caso do corpo próprio. Em outros termos, escreve Wallon (1949/2009), trata-se de compreender que há "imagens sensíveis, mas não reais; [e] imagens reais mas subtraídas ao conhecimento sensorial" (p. 230). Em torno do primeiro ano de vida, a criança já é capaz de demonstrar ter sido introduzida no campo dessa atividade simbólica. É o caso de uma menina que serve de exemplo a Wallon: ao passar diante de um espelho, ela prontamente leva sua mão ao chapéu de palha que lhe cobre a cabeça, e não à imagem especular. O autor comenta a situação da seguinte maneira: A imagem no espelho não mais possui existência por si mesma; ela é imediatamente reportada pela criança ao seu eu proprioceptivo e tátil; ela é apenas um sistema de referências apto a orientar os gestos para as particularidades do corpo próprio do qual ela é a indicação (Wallon, 1949/2009, p. 231). Wallon, assim como Piaget, é herdeiro da neuropsicopatologia do início do século XX. A partir de pesquisas sobre a agnosia, a apraxia e a afasia, diversos neurologistas, psiquiatras e psicólogos concordaram em delimitar o núcleo destas patologias em torno da incapacidade para o exercício de atividades conceituais e abstratas. Os doentes apresentariam diversos graus de perturbação do que se denominou comportamento simbólico, e que representa a Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 possibilidade que temos de nos afastar em relação às nossas experiências concretas e imediatas e de adentrar as esferas do possível, do concebido e do pensado (Verissimo, 2011a). Nesse sentido, para Wallon o processo de constituição da consciência do corpo próprio envolve a progressiva distinção entre o corpo vivido e a imagem refletida no espelho, e termina com a compreensão simbólica do espaço imaginário em que sua unidade era forjada (Roudinesco & Plon, 1998). Mais ainda, termina com a compreensão de que o corpo próprio é passível de considerações de tipo espacial-objetivas. Segundo Roudinesco e Plon (1998), Wallon estuda a individualização do corpo próprio, enquanto processo de psicogênese, pelo prisma da consciência. Ao menos no que diz respeito a suas considerações acerca das experiências infantis diante da imagem especular, parece, pois, legítimo afirmar que Wallon assevera o primado da dimensão objetivante da inteligência na constituição do sujeito. Lacan atenta-se à função matricial da imagem especular a partir dos trabalhos de Wallon. Lacan, todavia, não apenas se apropria do espelho walloniano, mas o transforma, a ponto de nem sempre dar os devidos créditos ao psicólogo na concepção do estádio do espelho3. Diferentemente do que ocorre na teoria de Wallon, o psicanalista descreve a fase em que o bebê depara-se com a imagem global de seu corpo diante do espelho pela perspectiva do inconsciente, a partir do que a estruturação do sujeito humano em sua dimensão arcaica pode ser descrita sob a égide da intersubjetividade (Nasio, 2009; Ovilgie, 2005; Roudinesco, 1988,1993; Roudinesco & Plon, 1998). Para Lacan (1950/1999c), o comportamento do bebê denota "relações imaginárias fundamentais" (p. 184) que se assentam sobre processos de identificação, no sentido analítico do termo, a saber, o de assunção de uma imagem, com suas implicações transformadoras para o sujeito (Lacan, 1949/1999a). Na fase do desenvolvimento que nos ocupa, trata-se dos fundamentos da identidade e, portanto, a principal implicação da assunção da imagem especular por parte do bebê é a própria constituição de uma forma primordial do eu, uma "matriz simbólica" (Lacan, 1949/1999a, p. 93) anterior à dialética de identificação com outrem, anterior, pois, a qualquer instituição (Ogilvie, 2005), mas que "prefigura sua destinação alienante", comenta o autor (Lacan, 1949/1999a, p. 94). Destinado ao encontro com a imagem de outrem, Lacan observa que, segundo o registro da psicanálise freudiana, esta forma primordial do eu poderia ser designada pelo termo eu ideal. Seu encontro com o devir do próprio sujeito é uma possibilidade limite, comparável à ideia de figuras assintóticas. Com efeito, o eu é a instância destinada à descentração do sujeito por meio de identificações. 3 Roudinesco (1993) menciona o esforço de Lacan "(...) para apagar o nome do psicólogo e se apresentar como o único introdutor do termo" (p. 156). Vale notar que em O estádio do espelho, Wallon não é citado. Em outros dois artigos em que Lacan (1948/1999b, 1950/1999c) aborda o problema da fase do espelho, Wallon é mencionado, mas não naquilo que tange a questões relativas à imagem especular. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 ^" Na teoria lacaniana, nem o bebê nem seu olhar figuram como o principal personagem do estádio do espelho, mas, sim, a imagem especular do seu corpo, objeto primordial de identificação e fundamento do esboço de uma primeira unificação do eu (Nasio, 2009). Para Lacan (1938/2001, 1949/1999a, 1948/1999b, 1950/1999c), é surpreendente como o bebê, a partir do quadro de prematuração que o caracteriza, ou seja, do seu estado de desorganização motora, mostra-se efusivamente atraído pela forma total do seu corpo no espelho. O chimpanzé, que denota um nível de inteligência instrumental superior ao do bebê de seis meses de vida, após o exame do espelho e da constatação da desnecessidade da imagem, manifesta indiferença por ela. O bebê, ao contrário, regozija-se diante da imagem, identifica-se com a "Gestalt visual de seu próprio corpo" (Lacan, 1948/1999b, p. 112), mesmo sem saber que se trata apenas de uma imagem especular de si mesmo. Este fato deve-se a um fator psíquico que revela, no caso do homem, uma relação inédita com a natureza, "uma certa deiscência do organismo" (Lacan, 1949/1999a, p. 95), "discórdia primordial" (Lacan, 1949/1999a, p. 95) em relação ao inacabamento que marca o início da vida do indivíduo. A criança se reconhece de forma global e intuitiva na imagem (Nasio, 2009), é captada pela imago da forma humana. Ela sente prazer não apenas com essa Gestalt naquilo que ela possui de visível, mas também com a correspondência entre a imagem e seus próprios gestos, com a possibilidade nascente de dominar a turbulência que anima seu corpo. Com efeito, na experiência de contato com a imagem especular, a criança percebe uma unidade corporal sem paralelo com suas vivências intero e proprioceptivas. Se estas lhe oferecem um sentimento de desarranjo e de fragmentação, a identificação com a imagem, unificada e organizada, é capaz de aplacar a angústia do despedaçamento (Sales, 2005). Encontramo-nos, pois, no centro daquilo que interessava a Lacan tematizar a partir do estádio do espelho: um esboço primordial de unificação do eu, mas um eu que desde o início se aliena. Sales (2005) enfatiza a ideia de que a identidade própria da criança "(...) nunca poderá deixar de ser algo que lhe vem de fora, do horizonte da alteridade" (p. 116). Esta primeira relação da criança consigo mesma implica, em última instância, uma relação com o outro (Ogilvie, 2005). É a forma humana, enquanto Gestalt genérica, que cativa o bebê. Lacan (1950/1999c) afirma: "o primeiro efeito da imago que aparece no ser humano é um efeito de alienação do sujeito. É no outro que o sujeito se identifica e até se experimenta a princípio" (p. 180, grifo do autor). Estas considerações possuem um caráter de cunho estrutural e não simplesmente histórico. Muito mais do que um momento específico do desenvolvimento infantil, o estádio do espelho apresenta-se como paradigma de uma estrutura permanente da subjetividade (Sales, 2005). Ser capturado pela própria imagem já constitui uma relação dual. De modo que, no estádio do espelho, não se trata de um verdadeiro estádio nem de um verdadeiro espelho (Ogilvie, 2005; Roudinesco & Plon, 1998). Lacan (1956/1995) comenta: Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 O que é o estádio do espelho? É o momento em que a criança reconhece sua própria imagem. Mas o estádio do espelho está bem longe de apenas conotar um fenômeno que se apresenta no desenvolvimento da criança. Ele ilustra o caráter de conflito da relação dual. Tudo que a criança aprende nessa cativação por sua própria imagem é, precisamente, a distância que há de suas tensões internas, aquelas mesmas que são evocadas nessa relação, à identificação com essa imagem (pp. 115-116). Em suma, para Lacan o estádio do espelho não representa uma dialética natural que se encaminha para a maturação psicológica, principalmente para a capacidade de objetivação do mundo, mas um processo ontológico. Trata-se da constituição do ser humano pela identificação com seu semelhante, no caso, sua própria imagem diante do espelho (Roudinesco, 1993). É "(...) na relação do sujeito consigo mesmo como outro" (Ogilvie, 2005, p. 98) que a razão de ser da sua constituição é vislumbrada. A temática da estrutura intersubjetiva da experiência remete-nos ao diálogo com certos aspectos da filosofia de Sartre. "A cada instante outrem me olha" Lacan conhecia algumas das principais concepções filosóficas de Sartre. É o que se evidencia nas críticas endereçadas ao filósofo em O estádio do espelho como formador dafunção do Eu. Sem referir-se nominalmente a Sartre, Lacan (1949/1999a) fala da "negatividade existencial, cuja realidade é tão vivamente promovida pela filosofia contemporânea do ser e do nada" (p. 98, grifo nosso). Logo em seguida, imputa a esta filosofia a concepção de uma consciência auto-suficiente, cuja "ilusão de autonomia" (p.98) abarcaria o eu. Trata ainda esta filosofia como um "jogo de espírito" (p. 98) que, a partir de empréstimos da experiência analítica, teria a pretensão de fundar uma psicanálise existencial, tema tratado por Sartre (1943/1980) em um capítulo homônimo de O ser e o nada. Embora seja conhecido o incessante recurso de Lacan à filosofia, especialmente à obra de Hegel e à sua interpretação por Kojève, os conceitos filosóficos discutidos pelo psicanalista são diretamente voltados para investigações que fazem parte de um projeto de psicologia científica (Simanke, 2002). Trata-se de constituir uma psicologia concreta, nos moldes da discussão realizada por Politzer (1928/2003) acerca dos fundamentos da psicanálise. Lacan não pactua, pois, com a empresa abertamente eidética de Sartre nem tampouco com o intelectualismo expresso na formulação antinômica de um em-si e de um para-si. Há, todavia, aproximações significativas entre os dois autores, principalmente no que diz respeito ao papel que a alteridade assume na constituição do eu. Pode-se afirmar que a metafísica moderna faz-se presente no pensamento sartreano na forma de conservação da dicotomia entre sujeito e objeto (Bornheim, 2007). Sartre estabelece uma separação fundamental entre o mundo, reino das coisas, ou do em-si, e o homem Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 enquanto consciência, ou para-si. Tem-se em Descartes o principal agente fundador desta dicotomia. O filósofo seiscentista, a partir da delimitação de um entendimento infinito, encontrado na evidência do pensar, afirma a possibilidade de um conhecimento claro e distinto tanto da substância pensante quanto das coisas extensas. Como mostra MerleauPonty (1960/2003a), este "grande racionalismo" abre caminho para um "pequeno racionalismo", cujo mote é tomar a razão pela capacidade de enclausurar a totalidade do real num entrelaç amento de relações causais, com o que se decai na direção do materialismo psicologista, capaz de anular a autonomia da própria idéia de razão. Sartre (1943/1980), por seu turno, renuncia ao primado do conhecimento, o que quer dizer que o ser daquele que conhece não precisa se constituir como um objeto de conhecimento. Vale aqui o preceito fenomenológico de "colocar o mundo entre parênteses", de anular a atitude natural, cuja essência é conceber o mundo dotado de propriedades objetivas. O que emerge dessa "redução fenomenológica" é a fenomenalidade do mundo, o fato de que "o sentido de ser do mundo é ser para uma consciência" (Barbaras, 2009, p.49). A consciência pode, então, ser revelada como consciência transcendental. Em termos filosóficos, este processo equivale justamente à crítica ao materialismo (Bornheim, 2007). Sartre (1943/1980) comenta: "A consciência é consciência de alguma coisa: isso significa que a transcendência é estrutura constitutiva da consciência; quer dizer que a consciência nasce apoiada sobre um ser que não é ela" (p. 28, grifos do autor). Em outro trecho, o filósofo afirma que no ser da consciência está em questão o fato de que seu ser implica um ser diferente do dela. Não obstante a dicotomia que vai sendo implantada entre a consciência transcendental e o ser transcendente, Sartre distancia-se das formulações secularizadas pela filosofia moderna na medida em que se instala no plano do ser, e não do conhecimento: "não se trata de mostrar que os fenômenos do sentido interno implicam a existência de fenômenos objetivos e espaciais", afirma ele, "mas que a consciência implica em seu ser um ser não consciente e transfenomenal" (Sartre, 1943/1980, pp. 28-29). Estas são as bases para a caracterização de duas regiões do ser, o ser da consciência, o ser-para-si e o ser do fenômeno, o ser-em-si. As coisas existem em si, afirma Sartre (1943/1980). Nelas não há nenhum recuo de si a si mesmo, não há nenhuma relação a si. O em-si é maciço, repleto de si mesmo e, por isso, opaco a si mesmo. Sartre (1943/1980) comenta: "o ser é o que ele é" (p. 32), "não saberia nem mesmo não ser aquilo que ele não é" (p. 33). Ele não envolve nenhuma negatividade, não existe como falta. "Ele é plena positividade", conclui o filósofo (Sartre, 1943/1980, p. 33). O para-si é definido por Sartre de modo análogo. A consciência implica a "descompressão do ser" (Sartre, 1943/1980, p. 32). De modo que "o sujeito não pode ser si mesmo" (Sartre, 1943/1980, p. 115), posto que a coincidência consigo mesmo implicaria o seu desaparecimento como si. Por outro lado, ele não pode deixar de ser si mesmo, dado que o si indica o próprio sujeito. Daí a seguinte afirmação: Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ verissimo02 O si representa, pois, uma distância ideal na imanência do sujeito em relação a ele mesmo, uma forma de não ser sua própria coincidência, de escapar à identidade colocando-a como unidade, em suma, de ser em equilíbrio perpetuamente instável entre a identidade como coesão absoluta, sem traço de diversidade, e a unidade como síntese de uma multiplicidade. É o que chamamos de presença a si (Sartre, 1943/1980, p. 115, grifos do autor). Com efeito, Sartre instala no âmago do sujeito um princípio de negatividade. A presença a si "supõe que uma fissura impalpável tenha deslizado no ser" (Sartre, 1943/1980, p. 115). Ser presença a si implica não ser o si por completo, de modo que a presença figura como "uma degradação imediata da coincidência" (Sartre, 1943/1980, p. 115). E o que separa o sujeito dele mesmo, pergunta Sartre? Visto tratar-se de uma separação que não se opera no espaço, é preciso admitir que ela não seja efetuada por nada. "Esta fissura é o negativo puro", escreve o autor (Sartre, 1943/1980, p. 116). Pouco depois, afirma ainda: "Este negativo que é nada de ser e, conjuntamente, poder nadificador é o nada" (Sartre, 1943/1980, p. 116, grifo do autor). A nadificação é sustentada por uma "privação de ser", completa Sartre (1943/1980, p. 124). Não se trata, pois, de simplesmente introduzir o vazio na consciência, ou de expulsar o em-si do seu interior, mas sim de identificar a perpétua determinação do para-si de "não ser o em-si" (Sartre, 1943/1980, p. 124, grifo do autor). Esta descrição ontológica revela o Cogito enquanto "fundamento de si como privação de ser" (Sartre, 1943/1980, p. 124). Segundo o exemplo dado pelo filósofo, podemos facilmente afirmar que um cinzeiro não é um pássaro. Esta negação mantém, todavia, estes dois entes intocados. Trata-se de uma relação externa. A negação que concerne à relação do para-si ao em-si é interna, é a falta no ser do para-si que constitui a presença dela a si própria, bem como o aparecer do ser negado por ela. O ser do para-si determina a sua existência na medida em que não coincide consigo mesmo. Sartre chama de "ato ontológico" o acontecimento incessante pelo qual o em-si degrada-se em presença para si. O aparecer do ser, a transcendência, deve-se ao fato de que somos "negação de ser" (Sartre, 1943/1980, p. 259). Nada pode acontecer ao ser por meio do próprio ser. O para-si, ou seja, a nadificação, é "a única aventura possível do Em-si", assevera Sartre (1943/1980, p. 259). Não convém aprofundarmo-nos nas definições sartreanas do em-si e do para-si. Cumpre, todavia, retornarmos ao fato de que esta separação se dá no seio de uma correlação fundamental entre a consciência e o mundo tal como se apreende por meio da redução fenomenológica. A reboque de Husserl e de Heidegger, Sartre reconhece a impossibilidade de se afirmar um sujeito sem mundo. Não é possível, igualmente, conceber um sujeito isolado, sem o outro (Bornheim, 2007). De acordo com Sartre, afirmar que a realidade humana é-para-si não dá conta de outra estrutura ontológica, que, a despeito de ser minha, me apresenta "um ser que é meu ser sem ser-para-mim" (Sartre, 1943/1980, p. 265, grifo do autor). Se experimentamos vergonha, Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 podemos compreendê-la como apreensão vergonhosa de mim. Mas, antes de tudo, afirma Sartre (1943/1980), "a vergonha em sua estrutura primeira é vergonha diante de alguém" (p. 265, grifo do autor), o que revela meu ser-para-outrem. O outro aparece, pois, como "mediador indispensável entre mim e mim mesmo" (Sartre, 1943/1980, p. 266). É a partir da alteridade que me torno capaz de julgar a mim mesmo como a um objeto. Apesar de afirmar visar à consciência a partir do cogito, ou da consciência reflexiva, Sartre afirma também a impossibilidade do sucesso dessa empreitada. A consciência visada é a consciência objetivada, a consciência que não somos. O filósofo comenta: Com efeito, a noção de objetidade4 (...) exige uma negação explícita. O objeto é aquilo que não é minha consciência (...) Assim o eu-objeto-para-mim é um eu que não sou eu, quer dizer, que não possui os caracteres da consciência. Ele é consciência degradada (Sartre, 1943/1980, p. 320). Outrem é a condição concreta e transcendente da minha objetidade. É a partir da estrutura do ser-para-outrem que posso me qualificar como desagradável, gentil ou feliz. Conduzidos por Sartre, constataremos que esta mediação concretiza-se no olhar de outrem sobre nós, no ser visto. Sartre (1943/1980) se pergunta sobre a existência de uma realidade cotidiana capaz de desvelar nossa relação original com outrem. Ver alguém é por si só uma experiência desconcertante. O sujeito olha seu relógio, caminha até certo ponto, sem que sejamos o centro dessa atividade. O mundo, nosso mundo, é, pois, descentrado pela aparição de outrem. Poder-se-ia dizer, contudo, que nessa circunstância outrem continua sendo um objeto para nós. O que converte radicalmente esta situação é o ser-visto-por-outrem, já que não poderíamos ser vistos por um objeto, afirma Sartre. A condição de outrem como sujeito repousa em nossa possibilidade incessante de ser visto pelo outro. Daí a afirmação de que "O 'ser-visto-por outrem' é a verdade do 'ver-outrem'" (Sartre, 1943/1980, p. 303). De modo análogo, a aparição do ser-sujeito de outrem implica a revelação de meu ser-objeto para outrem. Em uma célebre passagem de O ser e o nada, Sartre (1943/1980) imagina-se só, olhando pela fechadura de uma porta. Atraído pela cena proibida, declara-se como "pura consciência das coisas" (Sartre, 1943/1980, p. 305, grifo do autor), consciência irrefletida, o que quer dizer: consciência colada aos atos, ou, simplesmente, consciência que coincide com o ato de espreitar e com o ciúme que o move. Subitamente, ouve passos no corredor e se percebe descoberto por alguém. De acordo com o filósofo, este acontecimento efetua a presentificação do eu à sua própria consciência irrefletida. Não se trata aqui, portanto, de um simples vislumbre reflexivo de uma consciência que toma a si mesma como objeto. "A consciência irrefletida", afirma Sartre (1943/1980), "não alcança a pessoa diretamente e como 4 Em francês, objectité. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 seu objeto: a pessoa está presente à consciência enquanto objeto para outrem. Isso significa que de repente tenho consciência de mim enquanto me escapo (...)" (p. 306, grifos do autor). Em outro trecho, o filósofo comenta: (...) não viso outrem como objeto, nem meu ego como objeto para mim mesmo, não posso nem mesmo dirigir uma intenção vazia para este ego, como para um objeto fora do meu alcance no presente; com efeito, ele está separado de mim por um nada que não posso preencher, já que o tenho enquanto não é para mim e que ele existe, por princípio, para o outro; não o viso, pois, enquanto poderia me ser dado um dia, mas, ao contrário, enquanto foge de mim por princípio e que jamais pertencerá a mim. E, no entanto, eu o sou, não o afasto como estrangeiro, mas ele está presente a mim como um eu que sou sem conhecê-lo (Sartre, 1943/1980, p. 307, grifos do autor). Influenciados pela filosofia hegeliana, Sartre e Lacan estabelecem a dependência de outrem no centro do nosso próprio ser, de modo que podemos observar convergências entre algumas de suas formulações teóricas. Pode-se afirmar que a metáfora especular é o fundamento do tema da alteridade em Sartre. A dialética das consciências aparece como fator de constituição do eu que, aliada à concepção fenomenológica da consciência como intencionalidade e ao caráter de negatividade que esta assume em O ser e o nada, conduz à dessubjetivação da consciência, ou seja, à desconstrução da ideia de eu como substância. Lacan (1949/1999a) não deixa de assumir a convergência em relação ao tratamento da alteridade em Sartre ao falar dos instintos de destruição invocados "para explicar a relação evidente da libido narcísica à função alienante do eu" (p. 98). Segundo Lacan, toda relação com o outro, mesmo a mais bem intencionada, envolve agressividade. Este fato, denominado por ele como "negatividade existencial" (p. 98), estaria no centro da filosofia sartreana. Vimos que Sartre desenvolve a ideia de um sujeito cuja unificação se dá apenas em uma dimensão fictícia. Em Sartre, o próprio do ser-sujeito é a não coincidência consigo mesmo. Além disso, o reconhecimento de si apenas é concebível no interior de uma alienação fundamental garantida pela estrutura ontológica do ser-para-outrem. Com efeito, para Sartre (1943/1980) "O conflito é o sentido original do ser para outrem" (p. 413). Ao ser visto pelo outro, experimento a minha alienação, sem que isso faça de mim um objeto. Ao olhar o outro, constituo-o como objeto, mas não completamente; minha liberdade logo se escoa na liberdade alheia (Bornheim, 2007). Pode-se afirmar que, na psicanálise, esta instabilidade aparece justamente sob a rubrica da agressividade. De um ponto de vista genético, o estádio do espelho, "experiência narcísica fundamental" (Laplanche & Pontalis, 1967/2007, p. 262), revela uma estrutura ambígua no que diz respeito à agressividade. Lacan (1949/1999a, 1950/1999c) fala da eficácia mágica de imagos arcaicas agrupadas por ele como imagos do corpo despedaçado. Trata-se da experiência primitiva, à qual já fizemos referência, de um corpo dividido, sem coordenação, Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ verissimo02 e que se expressa em imagens agressivas que nos acompanham, tais como a de castração, de mutilação, de desmembramento e de devoração. A obra do pintor Jérôme Bosch é indicada pelo psicanalista como representação privilegiada destas imagos. O fato é que Lacan (1950/1999c) caracteriza essa experiência como fundamento "de uma gestalt própria à agressão no homem" (pp. 104-105). A angústia do despedaçamento é perpassada por impulsos agressivos. A identificação imaginária da criança com sua imagem especular é mediada pelo desejo de pôr fim à angústia do despedaçamento (Cléro, 2002). A gestalt visual do próprio corpo constitui-se como "unidade ideal, imago salutar" (Lacan, 1966/1999c) em relação à incoordenação vivida. Por outro lado, a identificação com a imago do corpo próprio, unidade formadora do eu, não deixa de ser vivida como intrusão de uma tendência estrangeira, o que Lacan (1938/2001) denomina "intrusão narcísica". O autor comenta: "antes que o eu afirme sua identidade, ele confunde-se com esta imagem que o forma, mas o aliena primordialmente" (Lacan, 1938/2001, p. 43). O aparecimento do eu por identificação é, pois, marcado por uma "relatividade agressiva" (Lacan, 1950/1999c, p. 113). Lacan (1950/1999c) escreve: "Esta relação erótica em que o indivíduo humano se fixa a uma imagem que o aliena dele mesmo, está aqui a energia e está aqui a forma de onde tem origem esta organização passional que ele [o homem] chamará seu eu" (p. 112). A agressividade surge como tensão correlativa à estrutura narcísica. Lacan (1950/1999c) afirma ainda: "Esta forma cristalizar-se-á, com efeito, na tensão conflitual interna ao sujeito, que determina a manifestação de seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui o concurso primordial precipita-se em concorrência agressiva" (pp. 112-113). Cumpre assinalar que para Sartre (1943/1980) apreender-se como visto significa apreender-se como visto no mundo. Aquilo que sou, e que me escapa, eu o sou no meio do mundo, que também me escapa nas possibilidades de ação do outro. Tem-se, pois, que a constituição por alienação do eu implica a constituição de um mundo que não abarcamos completamente. Lacan (1949/1999a), por sua vez, afirma que "a imagem especular parece ser o limiar do mundo visível" (p. 94). Para ele, a significação do espaço para o organismo vivo relaciona-se ao efeito formativo de gestalts percebidas. Em certos animais que apresentam maturação sexual por identificação aos pares, o contato com imagens especulares ou mesmo com imagens cuja animação aproxime-se da de um membro da mesma espécie é suficiente para desencadear o processo biológico. Daí a afirmação de que a função da imago é "estabelecer uma relação do organismo à sua realidade" (Lacan, 1949/1999a, p. 95). No caso do homem, a função do eu encontra amparo na gestalt, ou imago, do corpo próprio. O eu que se esboça adquire, ao mesmo tempo, visibilidade, e é lançado no meio do mundo. Na esteira da ficção do eu unitário, o mundo, por sua vez, passa a exigir ares de objetividade. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 Reaprender a ver Analisamos certos pontos do pensamento de Wallon e Sartre tendo por objetivo a discussão das formulações de Lacan acerca do papel unificador que a relação especular exerce sobre a função do eu. A título de conclusão, invocaremos a figura de Merleau-Ponty, que, em alguns dos seus trabalhos, dedicou-se a questões relativas ao estádio do espelho e que nos será útil para integrar certos aspectos metodológicos e antropológicos aos quais fizemos menção no início do presente artigo. Em seus cursos na Sorbonne, realizados entre 1949 e 1952, Merleau-Ponty (1997, 2001) dedica-se à psicologia infantil. Por ocasião de reflexões em torno do problema da intersubjetividade na infância, o filósofo discute a relação entre a percepção do comportamento de outrem e a percepção do corpo próprio na criança. Interessado nas descrições acerca do progresso da abertura do corpo próprio ao mundo e sobre as reações da criança diante da percepção de seu próprio corpo, Merleau-Ponty recorre a Wallon. O filósofo dá particular importância às análises do psicólogo acerca das relações arqueológicas, e portanto indeléveis, entre a vida infantil e a vida adulta expressas nas considerações sobre a sociabilidade sincrética e no conceito de ultracoisas. Mas no que diz respeito às análises de Wallon sobre a organização da experiência do corpo próprio a partir da conquista de sua visibilidade por intermédio da imagem especular, Merleau-Ponty identifica o estabelecimento de uma cisão entre as experiências sensório-motoras da criança e a constituição de uma função simbólica. Tudo se passa como se a imagem da criança no espelho devesse ser progressivamente esvaziada de afetos e reduzida a um fenômeno intelectual, algo a ser pouco a pouco compreendido como um conjunto de fenômenos objetivos. Seguindo-se as considerações de Merleau-Ponty, constata-se que o espelho walloniano é, em última instância, um espelho cartesiano, e por dois motivos. Primeiramente, por reduzir a imagem especular a uma ilusão. Em O olho e o espírito, MerleauPonty (1961/2007) fala da tentativa de Descartes para constituir "um mundo sem equívoco" (p. 36), correlato de um pensamento que se nega a habitar o visível e que se satisfaz reconstruindo-o a partir de modelos de representação. Neste caso, o que dizer dos reflexos no espelho senão que estes "duplos irreais são uma variedade de coisas" (Merleau-Ponty, 1961/2007, p.38), ou seja, que há a própria coisa e a luz refletida em correspondência com a primeira. De modo que a semelhança entre a coisa e sua imagem especular é estabelecida pelo próprio pensamento, visto tratar-se de coisas exteriores umas às outras. Merleau-Ponty (1961/2007) comenta: Um cartesiano não se vê no espelho: vê um manequim, um "exterior" do qual tem todas as razões de pensar que também é visto pelos outros, mas que, nem para si mesmo nem para eles, é uma carne. Sua "imagem" no espelho é um efeito da mecânica das coisas; se ele se reconhece nela, se Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ verissimo02 1 encontra "semelhança" nela, é o seu pensamento que tece este vínculo, a imagem especular não é nada dele (pp. 38-39, grifos do autor). Em Wallon, é o ideal deste reflexo sem expressão, "exterior sem interior" (Al-Saji, 2005), que representa o ápice da experiência do sujeito diante do espelho. Lacan (1961), em texto de homenagem a Merleau-Ponty por ocasião da sua morte prematura, afirma que, em O olho e o espírito, o filósofo faz referência crítica "ao olho abstrato que supõe o conceito cartesiano de extensão, com seu correlativo de um sujeito, módulo divino de uma percepção universal" (p. 246). Ou à "experiência do cosmonauta", quer dizer, a de "um corpo que pode se abrir e se fechar sem pesar em nada nem sobre nada" (Lacan, 1961, p. 246). Com efeito, Merleau-Ponty e Lacan denunciam o esvaziamento da dimensão carnal da vida perceptiva em favor da dimensão objetivante do pensamento. Este é o segundo motivo para a aproximação de Wallon à tradição cartesiana. Partindo-se da premissa de que a criança conquista uma função simbólica, capaz de apresentar-lhe uma realidade objetiva, não se vê como esta função ancora-se na experiência sensório-motora nem como esta experiência corporal prepara o estágio de tomada de consciência do mundo (Verissimo, 2011b). MerleauPonty (2001) qualifica esta concepção do desenvolvimento como idealista. Para Merleau-Ponty (1997, 2001) a abordagem lacaniana da experiência especular por parte da criança revela não simplesmente relações de conhecimento, mas "relações de ser com o mundo, com outrem" (Merleau-Ponty, 1997, p. 204). A criança, ao apropriar-se de uma imagem visual, realiza a passagem de um estado de personalidade marcado por pulsões experimentadas confusa e imediatamente, sem distância, à experiência de si como espetáculo. Com isso, a própria presença do mundo adquire uma nova estrutura. Com o corpo "colocado sob a jurisdição do visível" (Merleau-Ponty, 2001, p. 527), o espaço adquire um efeito desrealizante. Este é o sentido da ênfase que Merleau-Ponty dará ao caráter reversível do corpo, ao fato de que o corpo é "sentiente sensível", ou seja, vidente-visível, toc ante-tocado. Não se trata apenas de incorporar o visível ao vidente, mas de incorporar o vidente ao visível. Em O visível e o invisível, o filósofo afirma: (...) sabemos que, desde que a visão é apalpação pelo olhar, é preciso que ela também se inscreva na ordem do ser que ela nos desvela, é preciso que aquele que vê não seja ele mesmo estranho ao mundo que vê. (...) A espessura do corpo, longe de rivalizar com a do mundo, é, ao contrário, o único meio de ir ao coração das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne (Merlea-Ponty, 1964/2006, pp. 175-176). Nos cursos sobre o conceito de natureza, Merleau-Ponty (1994) comenta que podemos sentir, na imagem especular, o calor do cachimbo em nossa mão, e anota: Lugar do imaginário do ver: pelo ver e seus equivalentes táteis, inauguração de um dentro e de um fora e de suas trocas, de uma relação de ser àquilo Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/ memorandum/ a24/ verissimo02 que, no entanto, está fora para sempre: a espacialidade do corpo é incrustação no espaço do mundo (...) (Merleau-Ponty, 1994, p. 346). Este parentesco entre o corpo e o mundo, chave da nossa "ambição racional", da "visada de um ser comum e objetivo" (Bimbenet, 2011a, p. 13), possui uma história. As pesquisas de Merleau-Ponty em torno da animalidade visam justamente à arqueologia do corpo e da sua relação com o mundo. Neste ponto a crítica de Lacan direcionada à Sartre, mais especificamente à autonomia assegurada à noção de consciência que emerge de seus estudos sobre o ser e o nada, pode ser esclarecida. Tendo o próprio Sartre como alvo, Merleau-Ponty (1994) busca reposicionar-se em relação às filosofias do negativo, que estabelecem uma dialética do ser e do nada. Segundo o autor, o esquecimento de uma filosofia da natureza corresponde ao assentimento a que o espírito, a história e o homem sejam concebidos como pura negatividade. A retomada de uma filosofia da natureza não significa, contudo, uma contraposição a estes problemas maiores. Trata-se, sim, de ancorar a negatividade no corpo, evitando, a uma só vez, recair em concepções naturalistas e espiritualistas. Merleau-Ponty refere-se reiteradamente a uma "negatividade natural", à vida como sistema de oposições que torna possível a emergência de algo como o sentir. É no interior desse sistema que se torna possível conceber o aparecimento do homem no seio da animalidade. Esta continuidade é ausente no "humanismo sartreano" (Merleau-Ponty, 1994, p. 182). Em Sartre, o para-si é imposto a um em-si, de modo que a subjetividade não pode ser englobada pelo ser ao qual ela abre (Merleau-Ponty, 1994). Estabelece-se um abismo entre estas duas dimensões do ser. Daí a seguinte afirmação por parte de Merleau-Ponty (1964/2006): "O pensamento do negativo puro ou do positivo puro é, pois, um pensamento de sobrevôo" (p. 97) - ou, nos termos de Lacan, um pensamento de cosmonauta. Podemos precisar, enfim, em que medida Merleau-Ponty nos ajuda a integrar aspectos metodológicos e antropológicos relativos a nossas análises precedentes. A versão merleau-pontiana da redução fenomenológica observa não apenas a suspensão do saber positivo, que, como queria Husserl, nos libera a fenomenalidade do mundo, o fato do mundo aparecer para a nossa consciência. Simetricamente, Merleau-Ponty suspende o intelectualismo filosófico, recusando-se a absorver a consciência na trama apriorística do saber transcendental. Este exercício duplo aparece na obra do filósofo como exigência de uma composição permanente e crítica entre o realismo dos fatos e a ordem filosófica do sentido; em outras palavras, entre as ciências - particularmente a psicologia, a psicanálise, as neurociências, a etologia, a antropologia - e a filosofia. Esta exigência metodológica possui seu correlato de ordem antropológica (Bimbenet, 2011a). A filosofia reflexiva coloca-se na perspectiva de um eu absoluto, que rompe o elo existente entre nós e o nosso corpo, entre nós, o mundo e os outros. Ela se afirma, todavia, na medida em que se opõe à consideração da relação entre nós e o mundo a partir de modelos mecanicistas e materialistas. À sombra destes modelos, a intenção racional que marca a vida humana apenas se associa à nossa Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 filiação natural de modo abstrato. É o que se observa na psicologia idealista do desenvolvimento, que não foge à consideração do comportamento a partir da alternativa clássica entre o automatismo e a consciência. Em contraponto, a filosofia de Merleau-Ponty busca apagar as linhas divisórias entre o "corpo" e o "espírito". Para Merleau-Ponty (1960/2003b) a psicanálise converge nesta mesma direção: O corpo é enigmático: parte do mundo sem dúvida, mas bizarramente oferecido, como seu habitat, a um desejo absoluto de aproximar outrem e de unir-se a ele em seu corpo, animado e animador, figura natural do espírito. Com a psicanálise o espírito passa no corpo como inversamente o corpo passa no espírito (p. 371). Na perspectiva de Merleau-Ponty vale aquilo que Zenoni (1991) afirma a respeito da psicanálise freudiana: não se trata de repetir ideias tais como a de que nossa origem animal sobrevive em nós na forma de um arcaísmo irracional. A psicanálise não estabelece o grau de dependência que nossos comportamentos conscientes e racionais possuem em relação a suas bases biológicas: ela evidencia, ao contrário, o fato de que a biologia que os condiciona é inteiramente distinta da biologia animal. Segundo Zenoni, a hipótese do inconsciente aponta para a eficácia de pensamentos e de palavras onde, se tratando do corpo, e fora da dimensão da consciência reflexiva, poderíamos supor a existência de funções menos evoluídas, próximas da animalidade e da irracionalidade. O sintoma, afirma o autor, é da mesma ordem do ato que lhe serve de tratamento: a decifração simbólica, operação estranha à vida psíquica animal. Trançando a descoberta do inconsciente à descoberta da sexualidade infantil, Zenoni (1991) comenta: "O escândalo da descoberta do inconsciente não se encontra na afirmação de um componente irracional na experiência humana, mas na afirmação do caráter tão 'intelectual' da satisfação libidinal que ele persegue" (p. 6). O autor afirma ainda que o desejo próprio à condição humana desnatura e perverte a sua animalidade. É disso que trata Merleau-Ponty ao abordar o lugar do corpo humano na natureza. O filósofo anota: "(...) o homem não é animalidade (no sentido de mecanismo) + razão - E é porque nos ocupamos do seu corpo: antes de ser razão a humanidade é uma outra corporeidade" (Merleau-Ponty, 1994, p. 269). Noutro trecho, encontramos o seguinte apontamento: "A relação animal homem não será hierarquia simples fundada sobre uma adição: já haverá uma outra maneira de ser corpo no homem" (Merleau-Ponty, 1994, p. 277). De fato, a empresa lacaniana em torno do estádio do espelho parece coincidir com a intenção merleau-pontiana. Em Lacan, se o ponto de partida não é a experiência fenomenológica, mas a clínica do inconsciente, a discussão se encaminha para uma indagação diametral do sujeito em suas dimensões de encarnação e de intenção racionalrealista, a partir da integração do ponto de vista empírico e do ponto de vista filosófico. Contra o "eu penso" ao qual a tradição filosófica tenta reduzir nossa presença, o psicanalista instala uma miragem no centro do sujeito (Lacan, 1961). Contra o determinismo biologicista, Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Verissimo, D. S. (2013). "Lugar do imaginário do ver": diálogos a partir do espelho lacaniano. Memorandum, 24,100-121. Recuperado em____de____________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 1 revela o poder cativante da imagem, inclusive em momentos diversos da escala zoológica. Mas, assevera Lacan (1949/1999a), a função do estádio do espelho revela "um caso particular da função da imago" (p. 95), uma relação alterada com a natureza no caso específico do homem. Não sem razão, Merleau-Ponty e Lacan são figuras centrais nos recentes debates realizados em torno das noções de vida e de animalidade, discussões das quais são testemunhas os trabalhos de Bimbenet (2011b), Barbaras (2008, 2011) e Duportail (2008, 2011). Referências Al-Saji, A. (2005). 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Professor Assistente Doutor do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP. Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo e Doutor em Filosofia pela Université Jean Moulin - Lyon III. E-mail: [email protected] Data de recebimento: 07/07/2012 Data de aceite: 26/03/2013 Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/verissimo02 Waeny, M. F. C. (2013). Por ums história da psicologia histórica. Memorandum, 24, 122-132. Recuperado em____de _ _ , _ _ _ _ _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/waeny04 Por uma história da psicologia histórica For a history of the historical psychology Maria Fernanda Costa Waeny Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Brasil Resumo Psicologia histórica é um termo estreitamente relacionado aos historiadores dos Annales, onde muitas vezes foi comparado a outras denominações. Este artigo recupera aspectos históricos do termo psicologia histórica no ambiente dos Annales; em seguida apresenta as primeiras menções à psicologia histórica de que se tem conhecimento até o momento, mostrando que desde 1833 o termo tem sido ininterruptamente mencionado por vários autores e de diferentes maneiras; o uso do termo por autores como Quevedo y Zubieta, Circé-Côté, Sforza, Fletcher, Van den Berg, Barbu, Schneider, Pelckmans, por sua vez, demonstra que seu uso ultrapassa o ambiente dos Annales e que a história da psicologia histórica não se restringe ao ambiente francês. Isto tem ocorrido porque historiadores, historiadores da psicologia e pesquisadores da psicologia histórica de Ignace Meyerson não consideraram a própria historicidade da psicologia histórica em suas pesquisas. Palavras-chave: história da psicologia; Annales; Ignace Meyerson; historiografia Abstract: Historical psychology is a term closely linked to the historians of Annales, where it was frequently compared to other names. This article retrieves historical aspects of the term historical psychology in the environment of Annales; after that it presents the first references to historical psychology which are known so far, showing that since 1833 the term has been continuously mentioned by several authors and in different ways; the use of the term by authors like Quevedo y Zubieta, Circé-Côté, Sforza, Fletcher, Van den Berg, Barbu, Schneider, Pelckmans, in turn demonstrates that their use goes beyond the Annales environment and that the history of historical psychology is not restricted to French environment. This has occurred because historians, historians of psychology and researchers of Ignace Meyerson's historical psychology did not consider the own historicity of the historical psychology in their researches. Keywords: history of psychology; Annales; Ignace Meyerson; historiography Psicologia histórica: pioneiro e desenvolvimentos O pioneirismo no uso do termo psicologia histórica tem sido atribuído a Henri Berr (1863-1954); ele a mencionou na tese, UAvenir de la philosophie, de 1899. Disse ele O espírito é o produto da história. A história é a concreção do pensamento. Psicologia da humanidade, psicologia dos povos, psicologia biográfica: ensaios diversos se multiplicam. E todas estas concepções aspiram a se fundir, absorvendo a erudição. Há uma psicologia histórica que se elabora, sem ter encontrado sua forma definitiva (citado por Chalus, 1961, p. ix). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ waeny 04 Waeny, M. F. C. (2013). Por ums história da psicologia histórica. Memorandum, 24, 122-132. Recuperado em____de _ _ , _ _ _ _ _ _ , de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/waeny04 ^ No ano seguinte Berr fundaria a Revista de síntese histórica, com uma seção dedicada a "artigos de fundo [composto por] (teoria da história e psicologia histórica)" (Revue de Synthèse, 1900). Sua proposta, porém, se inscreve no projeto maior de uma síntese histórica, ou seja, na "unificação da ciência a partir da definição de uma metodologia integradora fundada sobre a história" (Gemelli, 1987, p. 228). Berr, no entanto, não definiu claramente a posição da psicologia histórica em seu projeto: além de usar termos como psicologia dos historiadores (Berr, 1921), historiador psicólogo (Berr, 1939), psicologia coletiva ou psicanálise (Berr, 1949), psicologia genética (Berr, 1953), qualificou a iniciativa do psicólogo Ignace Meyerson como "um tipo de síntese na Síntese" (Berr, 1953, p. 291). As ideias de Berr ecoaram nos jovens Marc Bloch e Lucien Febvre, fazendo deles e do Annales seus legítimos herdeiros; de quem herdaram, também, o interesse pela psicologia e a indefinição terminológica: Bloch, por exemplo, em um único livro (Bloch, 1982) utilizou os termos maneiras de sentir e de pensar (p. 94), mentalidade (p. 104), memória coletiva (p. 111), e posteriormente usou psicologia coletiva (Bloch, 1948); Febvre, de sua parte, utilizou aparelhagem mental, (Febvre, 1978, p. 55), psicologia histórica (Febvre, 2004, p. 37). Quanto ao interesse pela psicologia, Berr se referiu a ela de modo geral, já Bloch e Febvre se apoiaram em autores da psicologia e da sociologia, a exemplo de Charles Blondel e Maurice Halbwachs (Burke, 1991, pp. 27-28), e Henri Wallon (Febvre, 1985). Outros integrantes dos Annales também foram vinculados à psicologia histórica; Burke (1991), por exemplo, menciona Henri Bremond (p. 28), Jean Delumeau (p. 84), avisou que o livro de Robert Mandrou (1961) foi baseado em notas deixadas por Febvre (p. 84) e estranhou que Vernant preste "homenagem não a Febvre, mas ao psicólogo I. Meyerson" (p. 114). É necessário alertar, porém, que Mandrou, originalmente, não é um autor em psicologia histórica, mas o compilador das ideias de Febvre; que Vernant foi discípulo de Meyerson, e inclusive subintitulou seu livro por psicologia histórica (Vernant, 1965a); que Bremond e Delumeau nada publicaram sobre psicologia histórica; ou ainda Dosse (1994, pp. 124-126), que cita Charles Morazé como historiador dos Annales, mas não menciona que ele nomeava seus cursos por psicologia histórica (Morazé, 1971-1972 e 1977-1978). O interesse pela psicologia no ambiente dos historiadores franceses não é recente; Berr (1911/1946), por exemplo, igualou as duas áreas alegando que ambas teriam curiosidade pelo humano e uma "inteligente simpatia para o diferente, o mutável e o complexo da vida" (p. 210); Febvre (1985a) sugeriu que psicologia e história deveriam "manter relações contínuas" (p. 205); Dumoulin (1993) afirmou que Berr fazia "da história a ciência das ciências que progridem graças à psicologia histórica" (p. 94); para Vernant (1965) a incontestável aproximação era evidente devido à recente publicação de três novos títulos em psicologia histórica (Barbu, 1960; Mandrou, 1961; Van den Berg, 1965); nessa mesma ocasião Vernant aproveitou para expressar seu espanto diante da ausência de referências destes autores a Meyerson; disse Vernant (1965) Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ waeny 04 Waeny, M. F. C. (2013). Por ums história da psicologia histórica. Memorandum, 24, 122-132. Recuperado em____de _ _ , _ _ _ _ _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/waeny04 Assim, no espaço de dois anos, um psicólogo, um psiquiatra, um historiador, sem se conhecer e independentemente uns dos outros, colocam igualmente sua obra sob o signo de uma psicologia histórica. É preciso lembrar que funciona na Escola de Altos Estudos um centro de Pesquisas de Psicologia Comparativa e histórica, criado e animado por nosso colega, o psicólogo Ignace Meyerson? (pp. 85-86) Com razão Vernant defendeu a anterioridade da proposta meyersoniana: já em 1941 Meyerson criou a Sociedade de Estudos Psicológicos de Toulouse; em 1948 defendeu a tese, As funções psicológicas e as obras, sistematizando sua proposta; em 1951 iniciou os cursos de psicologia comparativa na Escola de Altos Estudos e em 1953 inaugurou o Centro de Pesquisas em Psicologia Comparativa, mantendo estas e outras atividades relacionadas à psicologia histórica até 1983. A advertência de Vernant, portanto, adquire importância porque refere títulos posteriores à tese de Meyerson e acrescenta novos autores ampliando, assim, o leque de menções à psicologia histórica para além do ambiente dos Annales. O destino da psicologia histórica, porém, além de incerto parece desanimador: para Dosse (1994, p. 85), por exemplo, ela logo saiu de moda; Burke (1991, p. 132) anunciou que ela perdeu a disputa para o termo mentalidades; e Vernant (1965), de certo modo, identificou o isolamento que a tem caracterizado. Tudo leva a crer, portanto, que a indefinição conceitual, o recurso a termos similares e a dispersão dos autores tem contribuído para a permanência da psicologia histórica na obscuridade. A base sobre a qual estão assentadas as origens da psicologia histórica está incompleta. Isto porque a primeira menção até agora localizada antecede em mais de sessenta anos o surgimento comumente aceito, transferindo assim o pioneirismo de Berr, e sua tese de 1899, para Ballanche (1833). O texto em questão é um verbete sobre a alma, no qual Ballanche (1833) alega que não vai expor os diversos sistemas de conhecimentos já produzidos "sobre a natureza e a diferença das almas, sobre a união da alma e do corpo: isto seria uma psicologia histórica, comparada" (p. 334). Desta forma, a menção de Ballanche à psicologia histórica destaca a anterioridade no uso do termo e permite retraçar o percurso desta denominação. O percurso da psicologia histórica A primeira menção à psicologia histórica de que se tem conhecimento, portanto, foi localizada na Enciclopédia de conhecimentos úteis, de 1833 (Ballanche, 1833). Depois, tudo indica que psicologia histórica passou a ser mencionada em livros; entre as primeiras menções pode-se citar, por exemplo, Vinet (1853), Garnier (1865), Littré (1876 e 1877), Galvão Bueno (1877), Richet (1884), Ribot (1894), Brayce y Cotes (1899), Gourmont (1900), Barzellotti (1900), Renan (1910). Menções em publicações seriadas apareceram em 1860, na Revue contemporaine, e depois no Journal de médicine mentale (1870), Revue philosophique de la France et de l'étranger (1879), Revue historique (1893), Revue de métaphysique et morale (1898), entre outros Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ waeny 04 Waeny, M. F. C. (2013). Por ums história da psicologia histórica. Memorandum, 24, 122-132. Recuperado em____de _ _ , _ _ _ _ _ _ , de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/waeny04 ^ periódicos. Por fim surgiram os títulos em psicologia histórica, a exemplo de Gebhart (1896), Rocafort (1896), Prouteaux (1900), Quevedo y Zubieta (1909), entre outros títulos. A preferência dos exemplos acima citados recai sobre as primeiras menções, mas é certo que citações à psicologia histórica não deixaram de ocorrer ao longo do tempo: há menções em textos que cobrem o período que vai de Vinet (1853) a Hartog (2007), da Revue contemporaine (1860) à Revue de synthèse (1997), de Gebhart (1896) a Pelckmans (1986). Além do mais, títulos como os de Cochet (1917), Berr (1919), Circé-Côté (1924), Bertrand (1924), Fletcher (1930) e Sforza (1936) confirmam que a presença da psicologia histórica não ocorreu em apenas determinado período de tempo e nem em determinado local. Para avaliar e compreender o uso recorrente do termo, no entanto, é necessário identificar as diversas significações atribuídas à psicologia histórica ao longo de seu percurso. Já desde as primeiras menções é possível observar a diversidade conceitual e temática do termo psicologia histórica: Segundo Vinet (1853), "de todas as leis naturais, as da história sem dúvida são as mais difíceis a determinar. Ao tentar pode-se obter um tipo de psicologia histórica, uma ciência dos fenômenos da alma social" (p. 353). No livro de Garnier (1865) o editor, Paul Janet, propõe substituir a psicologia subjetiva por uma "psicologia histórica e geográfica fundada sobre a observação das raças, dos povos, das diversas classes da sociedade" (p. XVIII). Galvão Bueno (1877) dedica duzentas e vinte páginas à psicologia, classificando-a "em psicologia experimental ou histórica e psicologia racional ou especulativa" (citado por Massimi, 1990, pp. 32-33). Richet (1884) afirma que os testemunhos de posse demoníaca, magia e feitiçaria são relatos sobre "o estado do espírito humano na idade média" (p. 299), e diz: "Isto não é totalmente história e nem é totalmente psicologia: é psicologia histórica" (p. 299). Para Ribot (1894) os romanos, "malgrado suas tradições latinas, seu funcionamento imperial, seus hábitos importados do Oriente (...) e seu estreito cristianismo, ainda é grego no fundo. Há aí um curioso estudo de psicologia histórica" (p. 124). Para Brayce y Cotes (1899), "a psicologia histórica tende para a concepção do organismo social a serviço da coletividade" (p. 12). Para Gourmont (1900) psicologia histórica seria um estudo sobre "qual grau de dissociação se encontram, no decorrer dos séculos, certo número de verdades que pensadores qualificaram como primordiais" (p. 88). Em Barzellotti (1900) psicologia histórica é mencionada como sendo a "pedra de toque do método de Taine" (p. 59); como lei que transcende os vocábulos classicismo e romantismo, considerando-os como "duas faces, duas atitudes do espírito humano, duas maneiras originalmente distintas, nas quais a natureza [humana] se dispõe a conceber, a sentir as coisas, a vida e a arte" (p. 168). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ waeny 04 Waeny, M. F. C. (2013). Por ums história da psicologia histórica. Memorandum, 24, 122-132. Recuperado em____de _ _ , _ _ _ _ _ _ , de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/waeny04 " Para Quevedo y Zubieta (1909), se a associação dos termos é nova, "o conceito que expressa é tão velho como a própria história" (citado por Preciado, 2003, p. 11); afirma também que o autor que consegue expressar a consonância entre determinada situação e "um caráter, uma alma...[faz um] verdadeiro trabalho de psicólogo. Esses autores sem o saber faziam psicologia histórica" (citado por Preciado, 2003, p. 11). Renan (1910) pondera que o segundo volume do Cosmos de Humboldt, no qual a "[história de um sentimento de humanidade perseguido em todas as raças e através de todos os séculos, em suas variedades e suas nuances], pode ser considerado como um tipo dessa psicologia histórica" (pp. 175-176). As diferenças nos trechos acima são expressivas: Vinet sugere que psicologia histórica seria a ciência das leis de funcionamento social; Paul Janet propôs a substituição de uma psicologia subjetiva por uma outra fundada na observação de características da sociedade; Galvão Bueno a estabelece como uma das divisões da psicologia; para Richet é o estudo dos estados de espírito; em Ribot parece ser o que há de mais comum, irredutível, em determinado povo; para Brayce y Cotes ela estaria a serviço de um social e/ou coletivo; para Gourmont ela serviria para questionar o caráter histórico de verdades consideradas universais; Barzellotti, mesmo sem citar Taine diretamente, menciona que para este autor ela seria um método e também uma lei; em Quevedo y Zubieta ela seria o retrato do caráter de um povo; para Renan seria a somatória dos diversos sentimentos de humanidade. É possível organizar a diversidade conceitual e a abrangência temporal do termo psicologia histórica em duas categorias: a primeira se refere à concentração de títulos em dois períodos distintos; a segunda propõe uma classificação preliminar das menções à psicologia histórica nos trechos e títulos aqui referidos. A publicação de títulos em psicologia histórica se concentra nos períodos 1896-1909 e 1947-1965. O primeiro grupo de publicações (1896-1909) pertence ao contexto de fins do século XIX, que de modo geral tende a explicar os fenômenos e suas conexões, o funcionamento e desenvolvimento do homem e da sociedade, como evolução contínua do espírito humano, a história mostrando os níveis de graus do espírito e a organização social representando os degraus já galgados rumo à civilização; é este o motivo para o uso de termos como alma social (Vinet), caráter de um povo (Quevedo y Zubieta), observação das raças (Garnier), organismo social (Brayce y Cotes), estados do espírito humano (Richet, Barzellotti), e noções que sugerem a permanência de aspectos do homem através dos tempos (Ribot, Renan). O segundo grupo de publicações (1947-1965) surge justamente no período da crítica ao caráter ideológico da ciência e dos conceitos de Cultura e Civilização; eis o motivo para que, no âmbito da renovação da noção de cultura como produção e compartilhamento de processos simbólicos, o tema privilegiado serão as condições histórico-culturais de surgimento da vida íntima e do inconsciente (Van den Berg), da sensibilidade (Mandrou), das funções psicológicas (Meyerson), do pensamento racional na Grécia (Vernant). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ waeny 04 Waeny, M. F. C. (2013). Por ums história da psicologia histórica. Memorandum, 24, 122-132. Recuperado em____de _ _ , _ _ _ _ _ _ , d e www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/waeny04 É possível que a concentração de títulos em psicologia histórica tenha ocorrido porque ela serviu de recurso para explicar as mudanças paradigmáticas desses dois períodos, pois esses dois intervalos de tempo correspondem ao que Delacampagne (1997) definiu por crise da noção clássica de representação (1880-1914) e desilusão do pós-guerra (após 1950), denominando-os, respectivamente, "nascimento da modernidade" (pp. 11-20) e "a razão em questão" (após 1950) (pp. 233-284). Quanto à segunda categoria, uma classificação das menções à psicologia histórica permite agrupar as menções em torno de, por exemplo, teses (Brayce y Cotes, 1899; Meyerson, 1948), ementas (Morazé, 1971-1972 e 1977-1978) e cursos (Meyerson, 2000); aproximação à psicologia social/coletiva (Quevedo y Zubieta, 1909; Schneider, 1978; Preciado, 2003; Bloch, 1948); relações entre história e psicologia (Quevedo y Zubieta, 1909; Vernant, 1965; Febvre, 1985a); estudos sobre a arte (Vinet, 1877; Littré, 1877); estudos sobre a psicologia e/ou fisiologia (Richet, 1884; Ribot, 1894; Garnier, 1865; Galvão Bueno, 1877). Esta classificação, ainda que preliminar, demonstra que menções à psicologia histórica podem ser agrupadas e que as categorias, por sua vez, tanto contribuem para a compreensão das relações entre história e psicologia, entre psicologia e fisiologia, como podem dar visibilidade a novas perspectivas de análise tal como a aproximação entre psicologia histórica e psicologia social/coletiva. A concentração de títulos em dois períodos específicos e a classificação das menções demonstram que é possível agrupar as diferentes significações atribuídas à psicologia histórica ao longo de seu percurso e começar a compreender aspectos da história desse termo; os dados e a análise apresentados, porém, vale lembrar, são elementos para uma história da psicologia histórica. Consideração final O objetivo primordial deste artigo é mostrar a recorrência do termo psicologia histórica ao longo do tempo e delinear alguns dos aspectos que a mantiveram relegada. Ela foi mesmo muito mencionada pelos historiadores dos Annales, por isso comentadores e historiógrafos da nova história a citam com frequência; Burke e Dosse, dois reconhecidos historiógrafos dos Annales, exemplificam as apreciações acerca da psicologia histórica, mas a extensa bibliografia sobre esse tema, porém, dificulta qualquer aprofundamento no presente artigo. Além do mais, viu-se que a presença da psicologia histórica no ambiente dos Annales é apenas parte da história dessa denominação. A maioria dos textos que abordam a psicologia histórica, não sem razão, menciona apenas a proposta meyersoniana. Ignace Meyerson foi realmente o principal sistematizador, mesmo sem se restringir ao termo psicologia histórica: a tese Lesfonctions psy cholo giques et les oeuvres (Meyerson, 1948), por exemplo, não menciona o termo no título; o centro de Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ waeny 04 Waeny, M. F. C. (2013). Por ums história da psicologia histórica. Memorandum, 24, 122-132. Recuperado em____de _ _ , _ _ _ _ _ _ , de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/waeny04 " pesquisas que ele fundou, em 1953, foi nomeado por psicologia comparativa; o curso de 1975-1976, à Escola de Altos Estudos, acrescenta os termos objetiva e comparativa (Meyerson, 2000). Por outro lado, a argúcia e abrangência temática lhe garantem lugar de destaque na história da psicologia histórica: para Meyerson, por exemplo, a crença no caráter imutável das funções e das categorias do espírito "é um fato psicológico importante que não deve ser negligenciado" (Meyerson, 1948, p. 120); a história das funções psicológicas se enquadra no âmbito de "uma modificação mental, uma invenção nos domínios da memória e do tempo" (Meyerson apud Leroy, 1986, pp. 99-100); as transformações no uso da cor e sua percepção demonstram que "há uma história humana da percepção, feita de incessantes interações entre o homem e seu meio" (Meyerson, 1957, p. 7); as mudanças radicais no conhecimento científico conduzem à "convicção do inacabamento da pesquisa científica" (Meyerson, 1948, p. 190) e este inacabamento é um princípio próprio ao homem. A quantidade e variedade de menções ao longo do tempo, a falta de definições claras, o uso de termos similares, os comentários baseados em dados incompletos, o surgimento de títulos em curto período de tempo e a ausência de referência mútua entre os autores são alguns dos fatores que determinaram o desconhecimento que ainda hoje caracterizam a psicologia histórica. Este texto mapeou diversas menções à psicologia histórica ao longo do tempo e propôs uma explicação para o surgimento simultâneo de propostas em curto espaço de tempo, considerando a historicidade do termo psicologia histórica em seus aspectos sincrônico e diacrônico. Referências Ballanche (1833). Âme. Em Encyclopédie des connaissances utiles (pp. 333-339). Paris: [s.n.]. Barbu, Z. (1960). Problems ofhistorical psychology. London: Routledge & Kegan Paul. Barzellotti, G. (1900). La philosophie de H. Taine. Paris: Alcan. (Original publicado em 1895). Berr, H. (1919). 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From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 From multiculturalism to interculturality: through the relational reason Pierpaolo Donati University of Bologna Italy Abstrat Multiculturalism is a term which was spread in the West during the 1960s to indicate respect, tolerance and defence of cultural minorities. The idea of multiculturalism has become a collective imaginary ("all different, all equals"). It has generated a political ideology supporting an inclusive citizenship towards "different" cultures. After being adopted as official policy in many Countries, multiculturalism has generated more negative than positive effects (fragmenting the society, separating the minorities and creating public cultural relativism). As a political doctrine, it seems harder and harder to be put into practice. At its place, today we talk of interculturality. But this expression also seems quite vague and uncertain. This essay discusses the possible alternatives to multiculturalism, asking itself whether the way of interculturality can be a solution or not. The Author's thesis is that the theory of interculturality has the advantage to stress the inter, namely what lies in between different cultures. But it does not possess yet the conceptual and effective means to understand and handle the problems of the public sphere, when the different cultures express radical cultural values that bring about conflict between them. The troubles of interculturality result from the lack of two things: an insufficient reflexitivity inside the single cultures, and the lack of a relational interface between the different cultures (between the carrier subjects). Modern western Reason created a societal structure (lib-lab) promoting neither the first nor the second one. In fact, it neutralizes them, because it faces the dilemmas of values inside the cultural diversities through criteria of ethical indifference. Such criteria set reflexitivity to zero, preventing individuals from understanding the deepest reasons of the vital experience of the others. Reason is emptied of its meaning and of its understanding capability. To go over the failures of multiculturalism and the frailties of interculturality, a lay approach to the coexistence of cultures is required, being able to give strength back to Reason, through new semantics of the inter-human diversity. The Author suggests the development of the "relational reason", beyond the forms already known of rationality. To make Reason relational might be the best way to imagine a new social order of society, being able to humanize the globalizing processes and the growing migrations. The after-modern society will be more or less human depending on how it will be able to widen the human Reason, structuring it inside a new "relational unit" with the religious faith. Keywords: multiculturalism; interculturality; relational reason; recognition; relational paradigm 1. The issue of civil coexistence between different cultures and the theses of this contribution. 1.1. What is multiculturalism? Multiculturalism is usually defined as a public policy approach for managing cultural diversity in a multiethnic society, officially stressing mutual respect and tolerance for Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 cultural differences within a country's borders. As a policy, multiculturalism emphasizes the unique characteristics of different cultures, especially as they relate to one another in receiving nations. The word was first used in 1957 to describe Switzerland, but came into common currency in Canada in the late 1960s. As official political program, multiculturalism was first adopted in Canada in 1971 (see Canadian Heritage) to affirm "the value and dignity of all citizens, independently from their racial or ethnic origin, or their language or religion". It was adopted then by various Countries, as Australia, New Zealand, Great Britain and Holland. In its original definition, multiculturalism is a "way of incorporation" of immigrates in a society where another kind of culture prevails. A different way from assimilation (that defines the standards of interaction in public places by means of law), from the melting pot and from hyphenation (see the experience of USA), from hybridization, half-breeding (cross- breeding), and syncretism (that may be found in the Countries of Asia, Africa and SouthAmerica), and from other possible solutions1. In the last decades, multiculturalism had many formulations, that we may classify in two big currents. "Communitarian multiculturalism" (in many versions, from the anti-liberal one of C. Taylor and E. Sandel, to the new-aristotelic one of A. MacIntyre and A. Etzioni) and "pluralist multiculturalism" (W. Kymlicka)2. In the communitarian version (Taylor1992), the multicultural doctrine aims at recomposing ethics and policy within the single cultural communities (giving them self-government), since it is impossible to obtain such recomposition in the space between them. In the pluralist version, it aims at defending the specific cultural groups (ethnicals, nationals, etc.), through forms of political representation, which obtain special rights (namely, in the education of children, in the way of dressing and working, in the ways of taking care of the health, etc.), within the framework of a plural democracy. In any case, multiculturalism does definitely oppose to the modern, liberal and individualistic idea of "open society". I am suggesting to distinguish between multiculturalism as a "social fact", as a collective imaginary (supporting rethorics and theories in the field of social sciences), and as a political ideology. It is empirical that our societies are less and less homogeneous, as long as the variety of different races, ethnic groups and cultures increases. It results from an historical process that is under everybody's look, destinated to increase even more in the future. A society is virtually multicultural when it loses its "tribal" structure and meets interdependency and mixing with other societies having different ethnical cultures. Then some problems arise, to which various and different answers have been given in the course of history. 1 For instance, the idea of a patriotic and civic constitutionalism (or 'constitutional patriotism' as elucidated by J. Habermas) now debated in countries such as Germany, France and Italy. 2 It is not possible, here, for reasons of space, to stop to analyze all these versions. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 The ideology of multiculturalism is quite a different matter. Multiculturalism becomes an ideology when it fights for particular values or interests, lived in particular cultural communities, like they were universal values or interests, by appealing to the principle of equality (the political equality granted to all cultural differences). In these terms, multiculturalism has grown well beyond the original idea of defending and promoting the ethnical cultures (national or migratory), in a context where another culture prevails. It has become a collective imaginary 3, mythicizing the cultural diversity as an irreconcilable connotation of every personal and social identity. Society is represented as a field of coexistent cultures, considered refractory to one another, not translatable the one into the other, devoid of common values, therefore always potentially conflictual. The image of the Alter is absorbed and represented as completely different from the image of Ego. The collective imaginary of multiculturalism may be illustraded by the slogan "all differents, all equals". It supports some political programs that feed some social practices in order to deeply modify social life (Benhabib, 2002). Nowadays, as a political doctrine, multiculturalism produces a new version of secularity in the public life. It changes the sense of lay (= to give supported reasons to somebody's thoughts and/or acts) to a form of active and overpowering secularism. In order to make "normal" all the "differents", it legitimates a political system (at its various territorial levels) that, instead of comparing the sense of the topics in order to catch their differences and give them their pertinent meaning and value, neutralizes the ethical and religious reasons constituting the core of the cultural differences and makes them in-different (with no qualitative difference). In short, multiculturalism expresses an ideology legitimating an always further loss of what cements society. Multiculturalism produces a society distinguished by a growing pluralization of every culture, not only because of migrations, but also because of the inner dynamics of the native (national or not) cultures. In particular, multiculturalism erodes the very modern western culture, which loses the rational roots that guaranteed a certain homogeneity for so many centuries. The multicultural ideology, in fact, justifies not only the traditional cultures, but also the new cultures and lifestyles considered to be post-modern. The multiplication (systemic production) of the cultural differences feeds a social order, where the subjects become individuals through the search for an identity referred to particular social spheres that privatize the public sphere. All these novelties are interconnected and depend on the globalizing processes. Over the long term, it will be possible no more to keep the distinction, still dear to the liberal political scientists such as Giovanni Sartori (2000, p. 93), according to which it would be possible to distinguish between the "domestic differents" (the natives, which we are accustomed to) and the "foreign differents" (the ones coming from the migrations). By now, such distinction has no more acceptable sociological bases. ! About the distinction between ideology and collective imaginary, see Charles Taylor (2005, p. 174). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 ^" Therefore, our problem is the following one: does it exist a solution of civil coexistence between different cultures, which may avoid to incur the negative effects of the ethicalcultural relativism and of the political laicism kept by the ideology of multiculturalism? The stakes are those of the civilization as a human and progressive endeavour4. 1.2. The theses ofthis contribution. In this contribution, I am suggesting that multiculturalism is a symptom of the cultural crisis of western humanism, in particular of its Reason, the one developed from the Greek civilization until the Enlightenment5. My argument is that western humanism (with Jewish-Greek-Christian roots) risks the implosion and an historical drift, because it has not been able yet to develop a reflexivity of the human thought that can be able to confront the depersonalization of the reason, which is at the origin of multiculturalism as an epistemological, moral and political doctrine. In absence of an adequate reflexivity, a pervasive functionalist rationality - namely the Reason of globalization - prevails over, shaping the social world as an "anonymous matrix of c ommunication"6. I claim that the humanism of the 'old Europe' is drifting because it doesn't see the rifts and voids that prevent from drawing a common world under historical conditions of globalization. The dialogue and meeting of cultures suffer the lack of reasons of a neohumanism up to the global challenge, because reason is referred to partial domains, as a particular culture (as bounded or embedded rationality), or the individual as such (see the 4 One of the deepest criticism to multiculturalism has been expressed by the Ayn Rand Institute, according to which multiculturalism is a growing force in America's universities and public life. In brief, multiculturalism is defined as the view that all cultures, from that of a spirits-worshiping tribe to that of an advanced industrial civilization, are equal in value. Since cultures are obviously not equal in value — not if man's life is your standard of value — this egalitarian doctrine can have only one purpose: to raze the mountaintops. Multiculturalism seeks to obliterate the value of a free, industrialized civilization (which today exists in the West and elsewhere), by declaring that such a civilization is no better than primitive tribalism. More deeply, it seeks to incapacitate a mind's ability to distinguish good from evil, to distinguish that which is life promoting from that which is life negating: «We are opposed to this destructive doctrine. We hold that moral judgment is essential to life. The ideas and values that animate a particular culture can and should be judged objectively. A culture that values freedom, progress, reason and science, for instance, is good; one that values oppression, stagnation, mysticism, and ignorance is not». 5 In confirmation, there are several societies that are virtually multicultural (as Brazil, for instance, but generally various Countries of South-America, Africa and Asia), even if imaginary and ideology of multiculturalism are totally absent. 6 According to Gunther Teubner (2006): «Since violations of fundamental rights stem from the totalising tendencies of partial rationalities, there is no longer any point in seeing the horizontal effect as if rights of private actors have to be weighed up against each other. On one side of the human rights relation is no longer a private actor as the fundamental-rights violator, but the anonymous matrix of an autonomised communicative medium. On the other side, the fundamental rights are divided into three dimensions: first, institutional rights protecting the autonomy of social discourses - art, science, religion - against their subjugation by the totalising tendencies of the communicative matrix; secondly, personal rights protecting the autonomy of communication, attributed not to institutions, but to the social artefacts called 'persons'; and thirdly, human rights as negative bounds on societal communication, where the integrity of individuals' body and mind is endangered». Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 rational choice theory), or the functional needs of the social systems (the system rationality). The solution I suggest is to search for "new reasons" to be referred to social relations. My background thesis is that the reason must become reflexive, so that the good reasons of human coexistence would be referred to human relations, distinguishing them from the rationality inherent in individuals, social systems and the very cultures. Being an ideology, multiculturalism is not a solution expressing a project of society, simply because it generally excludes the possibility to build a common world. The alternatives to the rifts of the society may be searched within a program of inter-culturality, where the inter (what is between cultures) must be read, interpreted and acted through a relational paradigm. The sense of such paradigm is to expand the reasonfrom the human person to the social relations, so that the reason might play the role of mediation between cultures. I will name it "relational reason" (for a more extensive explanation of this concept: see Donati 2008). 2. Multiculturalism is a social fact, but also an ideology. My first argumentation is that multiculturalism represents a way to turn a social fact into a political program being the expression of an ideology. As such, it is not a suitable answer to the problem of reconciling cultural differences. The existence of a variety of cultures, as a mere social fact, represents a richness, because it expresses different aspects of the humanity of persons, social groups and populations. Obviously, it reflects peculiar contextual situations (Gupta, Ferguson 1992). The social-cultural practices, insofar as they exist and express a modus vivendi that shows a stable ability to survive, reflect some experiences of the human nature, which there is always something to learn from. Every cultural position or stance has its good reasons, even when there is not a full and satisfying rationality, because it expresses the nature of the human behaviour, which is free in creating the cultural forms. We must accept the social fact as a given, although it calls for a moral evaluation. You always have to answer to the facts. At the same time the social fact may not be the best and more acceptable solution to face the human needs. The problem starts when multiculturalism becomes an ideology, transforming the social fact of difference in a representation, for which a "partial" identity poses some instances that are incompatible with the basic values of social life. This is the case of a culture, where religion is coercively ascribed to the person for life (or vice versa, a coactive atheism or agnosticism is imposed); or a culture, where a disabled child (or the embryo with a pathology) is killed; or a culture, where the woman is considered to be inferior or a man's property; or a culture, which admits polygamous marriage where women have unequal dignities. In such cases, the values of Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 ^" these cultures affirm a partiality towards a conception that gives a full universal value to the human person, denying that dignity conquered in many centuries of cultural progress. Ideology enters the field when the cultural differences are asserted to defend or promote some particular interests as if they were universal. There are many examples under this respect: a religion which denies the right to freedom to other religions; religions which are wholly ascriptive (people born within it cannot exit); cultures which legitimises the killing of an embryo or a new born child, despite his human dignity, because he is not a 'perfect child'; and so on. The right to diversity, to every cultural diversity, is passed off as the right to the equality of opportunities that any culture should have in configuring its choices and practices (while in fact it is not). The ideology of cultural difference becomes the basis of a new conception of secularity of the public sphere, which affirms that, in order to coexist, it is necessary that all cultures were relativized (none of them can pretend to say the truth). Nobody is allowed to speak the language of truth when talking to others in the public sphere. If the public social space becomes devoid of common values (because the only common value is that all differences have equal dignity), the social acting must be inspired by that principle of "politically correct", which compels people to adopt a relativistic point of view. The fight for the acknowledgement of the different identities causes distancing and rifts. It is a new tragedy of common goods (that, with some similarities, recalls the tragedy of commons emerged with the rise of the modern capitalism). We see the fall of the "institutions of the sense" (that are common, public and collective as a matter of fact), and of the rational orders of justification, that have supported the western society up to now7. The social order becomes more chaotic, risky and liquid. The "eastern" morphogenesis (guided by a circular idea of time, and by a purely naturalistic idea of the human being) prevails over the "western" one (guided by the linear sense of time, and by an idea giving transcendental potentialities to the human being). It is the reign of the pure media communication, thus forcing the social actors to adopt behaviours whose reasons are no more judgeable or comparable between them on the basis of the old parameters of western rationality. The argumentations considered being "rational" (or also reasonable) up to now become useless and devoid of value. As a consequence, in the public sphere there is an increasing of anomy and irrationality, avoidable by the individual only if retiring into its own cultural community of reference. Both mechanical and organic solidarity8 are reduced, and the pathological lifestyles do increase. 7 See the juridical debate on the introduction of the "cultural defence" «to mitigate punishment, create exemptions from policies, and increase the size of damage awards» (A. Dundes Rentein 2005). The evidence sought to be adduced is "cultural" as opposed to classically scientific (Currie 2005). 8 We refer to the theories of E. Durkheim and F. Toennies. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 Multiculturalism considers the deep cultural diversities as incompatible9, and it offers itself as a solution to the potential conflicts between cultures. But, acting like this, it creates a reservoir of potential tensions and clashes, which may be avoided only by forcing the cultural models governing the public sphere to adopt a sort of "genetic mutation". This mutation consists in emptying the social relations (lived in the public sphere, but affecting the private as well) of any content of transcendental ethical sense. The sacrificial victim of such mutation of common culture is the human being. The ethical and cultural relativism embedded in the ideology of multiculturalism leads right to a further dehumanization of social relations both outside and inside the membership community. Ultimately, it leads to the so-called "trans-human". That is when the conflicts do arise, because it is unavoidable, in the social life, for the actors to judge practices, uses, values and rules of a particular culture as to the way in which the latter affects society. To express a judgement, it is necessary to have an instrument able to show whether a solution is acceptable or not. This instrument is the "judging knowledge", made up of science and conscience, namely of scientific and moral reasons. Which is the "judging knowledge" of multiculturalism? Multiculturalism is an ideology, because it answers the question of knowledge and judgement without putting forward any universal and disinterested reason, excluding even the possibility to do it. Its reasons, both theoretical and practical, are partial and selfinterested. When the cultural difference becomes a debating issue, multiculturalism neutralizes the difference, carrying it out in the field of incommunicability. We may say that the judging knowledge of multiculturalism is characterized as follows: (i) it is based on a form of cultural determinism, because it deterministically subordinates knowledge to culture; in other words, it assumes that every knowledge is completely conditioned by the cultural context and it is valid only referring to it; in doing that, it assumes that cultures are fully homogeneous inside them, and the subjects belonging to a culture have a full mutual comprehension, which is not empirically based (it is a mistake which, in my opinion, is present in the theory of S. Hungtinton 1996, and has not been sufficiently noticed during the international debate on his work); (ii) it denies the possibility of giving a moral judgement on cultural patterns, when instead, from a sociological point of view, culture is precisely what a human person needs in order to answer the ethical problems of conscience (when it is necessary to say whether an action or style of life is good or bad). These assumptions lead multiculturalism to certain consequences, which should be carefully considered. a) First, multiculturalism does not give rise to any mutual learning between cultures, because the claims of the cultural pluralism do legitimate the simple 9 Namely, it considers values and lifestyles not only as opposite realities (as like the physical and the spiritual, which may coexist), but also as excluding one another (as like considering the embryo as a human being or just a clot of cells). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 existence (ex-sistere, 'being out') of the "social fact" of difference. b) Secondly, when multiculturalism reduces the public-political sphere to a neutral arena towards cognitive and moral differences, it gives up the search for an agreement between different instances, which might lead to the building of a common good. On the whole, we could say that, behind the ideology of multiculturalism, lies an idea of recognition which, going back to Machiavelli, through Hobbes to Nietzsche, does not grant any positive role to morally-founded struggles of social groups — their collective attempt to establish, institutionally and culturally, expanded forms of reciprocal recognition — through which the normatively directional change of societies proceeds. The mainstream idea of multiculturalism is clearly opposed to a theory of recognition as a fight concerning a claim which can be traced back to Hegel (Honneth 1995) -, whose basic assumption is that social struggle (between partial identities that must recognize one another) is the structuring force in the moral development of the society. 3. Promises and limits of multiculturalism. 3.1. Why the promises of multiculturalism cannot be kept? As observed by Amartya Sen (2006), after about three decades, the political doctrine of multiculturalism is in crisis almost everywhere. It seems to be clear, by now, that multiculturalism, conceived as an ideology of difference, is not a suitable answer, neither on the ethical nor on the political basis, to the problem of coexistence between different cultures. Nevertheless, though the ideology is easily questionable, the collective imagery is much less, because it is supported by mass media and it is culturally homogeneous to the communicative processes of globalization. It is certain, in fact, that the western open liberal societies are not able to treat the causes that transformed multiculturalism into the collective imaginary according to which "all differences are equal". The sociological causes of multiculturalism lie on the desertification produced by the liberal societies (ruled by lib-lab regimes) in the connective tissue of society, because they tenaciously pursued the aim to immunize the individual from the (bonding features of) social relations. In front of the recognition requests of the various cultural identities, the modern Enlightenment Reason is idle. The social tissue cannot be reconstructed basing on the rational forms elaborated by the western liberalism up to today10. Therefore, if up to yesterday the modern cultures have been invaded by the western reason, today the very western culture loses its inner integration, because of the fall of "its" Reason. All cultures, 10 I am conscious, here, to disagree both with Charles Taylor and Jurgen Habermas (Habermas, Taylor 1998). They try to save liberalism reformulating it, the first one in the key of recognition and contribution of rights to minorities, the second one in the key of civic or patriotic constitutionalism. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 both the western and the eastern, lose their identity and are less and less homogeneous inside, they are always more syncretic and half-bred (Tiankui, Sasaki and Peilin eds. 2006). In brief, multiculturalism, as a sign and a display of the Western crisis, promises a form of civil co-existence that cannot be realized, because it meets with some insurmountable inner problems. The analysis of such limits it useful to understand where to seek some alternative solutions. There is an endless literature about promises and limits of multiculturalism as moral philosophy and political ideology. Here, I will limit my considerations to a few essential points: a) The epistemological limits of multiculturalism. Multiculturalism promises the recognition of identities, but its epistemological relativism cannot provide such performance. In fact, the authentic recognition of an identity needs an assumption on the truth of such identity (Ricoeur 2004). b) The ethical limits of multiculturalism. As a moral philosophy, multiculturalism leads to support an attitude, according to which what is possible becomes licit. In front of the moral aberrations rising from such principle, in particular the violations of human rights, multiculturalism must look for remedies built upon some ethical limits. But it is unable to do it, because it should violate its basing principle of ethical relativism. The promise of giving society an ethics of civil coexistence is necessarily disregarded. c) The political limits of multiculturalism. As a political ideology, multiculturalism promises tolerance, but in fact it generates intolerance11. More generally, multiculturalism supports a problematic form of citizenship, because its model of political inclusion hides some definite asymmetrical power relations, generating new forms of social exclusion (Mackey 2002). My personal opinion is that, after all, as a political doctrine, multiculturalism could be read as a new formula of that kind of arrangement that the sociology calls "the Hobbesian solution to the problem of social order" (T. Parsons), which is now applied to cultural systems instead of individuals. The principle of political inclusion of the individualist liberalism grants citizenship to minorities, basing on a pluralism devoid of ethical qualification in the public sphere. Consequently, it is unable to develop a "deep" citizenship (Clarke 1996) recognizing a true social pluralism, i.e. a pluralism that is an expression of the positive liberties of inter-human encounter (Donati 2002). In my opinion, the inner limit of multiculturalism in every perspective (epistemological, moral and political), is the loss of the relationality between the different cultures, or, in other words, the fact of institutionalizing the loss of the relational nature of what lies in between the different cultures. Multiculturalism is simply blind (in an affective, cognitive and 11 If the liberal tolerance may have been an element of civil progress at the beginning of the modern times, afterwards - with the loss of its traditional (Christian) values - it has become the reason of the decay of the western society (Seligman 1992). As stated by J. Ratzinger (2005), "a confused ideology of liberty leads to a dogmatism that is revealing to be more and more hostile to liberty". Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 moral sense) in front of the relational character of culture (culture as a relational fact)12. The relations between cultures are neutralized or made indifferent by the joint of two principles: the liberal principle of tolerance (lib) and the social-democratic principle (lab) of political inclusion. Attracted inside such binomial of liberty-equality (lib-lab), and used in a functionalist way, multiculturalism completely forgets the meaning of solidarity and brotherhood. How to fill up the lack of relationality of multiculturalism, lived and acted as an ideology and a collective imaginary? In my opinion, it should be observed that, in the international debate, there is no analysis of multiculturalism under this light. The transformation of political multiculturalism into a collective imaginary may be interpreted as an effort to make survive in a new form the lib-lab configuration of society13, in order to answer to its inner crisis. The attempt is the one of shaping the cultural communities as enclaves based on values (and belongings) innerly strong, but such as to have neutral relations ("impartial" according to Taylor, "dialoguing" according to Habermas) in the public space between them. The attempt, expressed in this way, is destined right to failure. 3.2. The background sociological deficit: a reductive theory of recognition. In its springing reason, multiculturalism expresses the need to search for new ways to recognize the dignity of the human being. As such, it certainly reflects a positive demand. The statement, according to which "the value and dignity of all the citizens, independently from their racial and ethical origins, their language and religion" (Canadian Heritage) must be recognized, recalls the Christian conception of laity at the beginning of Christianity (Letter to Diogneto). Nevertheless, if on the one side multiculturalism is a spur to rethink the characters, qualities and properties of the recognition of what is actually human, on the other side it does not provide an adequate answer. The multicultural solution is inadequate, because it is unable to fill the gap between citoyen and homme. To state that the citizen realizes itself in the public sphere through the politics of the human dignity and its corresponding legal rights (the "politics of universalism"), while the human being realizes 12 Culture may rise only by relation, i.e. it is a relational product: written and oral communication, that is sound and symbol, are not such by emission, but by reception, not owing to their "make sense", but through their "consense". And this latter depends on recognition and sharing (that are relational acts). That is why sociology is empirically relational. 13 In my opinion, instead, it is suitable to underline that multiculturalism is inscribed within a definite framework, where philosophical-cultural relativism and multicultural citizenship become synergistic and give a peculiar answer to the crisis of the lib-lab outline of the society, which supported the western Countries from the Peace of Westphalia onwards. The lib-lab outline, having its far ancestor in Thomas Hobbes, bases on two complementary pillars: from the one side, the proprietary individualism (and the related market liberties) (lib side) and, from the other side, a political power that exercises the monopoly of strength, and that rules the society in a way that no one can violate the other's liberty, and all the individuals have equal opportunities to compete in the market (lab side). It is well known that the lib-lab outline is in crisis for a long time, finding no alternatives yet (Donati 1999). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 itself in its own cultural community (the "politics of difference"), leaves a void between these two spheres. Multiculturalism is equivocal and ambivalent because, if from the one side it underlines the uniqueness of the human being, from the other side it makes it incommunicable from the cultural point of view. Nevertheless, its insistence about the radical alterity of the Other (Monceri 2006) pushes us to better understand the difference between the recognition of the human being and the recognition grantable by human beings to not-human beings. The point is that multiculturalism promises a recognition that it cannot realize, because it has a very strict and reductive idea of recognition. In fact, the multicultural recognition is conceived as a one-sided act of a collective mind, which ascribes an identity basing on a self-certification or on a claim of identity, which satisfies neither a veritative nor a gratitude (thankfulness) principle. In the social practice, instead, we see that recognizing the Other (as an individual, but also as an "other culture") is a human act only if it is a validation act (that sees the Other's verity), inscribed in a circuit of symbolic exchanges (gifts). Multiculturalism does satisfy neither of these two requirements. It does not search for the reasons that legitimate the difference; it does not establish that circuit of mutual gifts that is necessary for the social practices and for the experiences of everyday life to realize a human form of recognition. So it does not help to understand the reasons why this latter is necessary to produce a human civilization. To make this step, it is necessary that multiculturalism provide itself with a more adequate reflexivity in the processes of recognition14. What reflexivity? As from Hobbes, recognition always starts from a violent clash between identities. Fichte underlines, instead, that recognition springs from the subjects' need to relate one another (this is maybe the closest version to the lay sense of recognition)15. Hegel formulates a "synthesis" (that still guides the majority of the present theories of recognition), according to which recognition is a dialectical process, which consists of a fight against the Other and a desire to find a new relationship with him at the same time. A formulation that describes history as a sequence of clashes, in peace and war, always as a violence. Yesterday, it was referred to the relation between modernity and pre-modernity; today it explains the so-called clash of civilizations. To go beyond the Hegelian idea, included the most recent revisions (A. Honneth) and the hermeneutical critics (P. Ricoeur), we must search for a new model of rationality of the act (and process) of recognition. 14 Under that light, it may be useful to understand reflectivity, both in M. S. Archer's (2003) and in B. Sandywell's (1996) meanings. 15 "No matter who you are - so everyone could say - if you have human features, you too are a member (Mitglied) of such a great community; (...) no one exists in vain for me, as long as it shows the mark of reason on its face, even if it is a coarse and crude expression" (...) "in any case it is sure, (...) my heart will be united to yours by the most beautiful of the ties, the one of free and mutual share of good" (Fichte 2003, p. 90). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 Essentially, the failures of multiculturalism represent a drive to search for a new reflexivity of society on to itself. Such reflexivity must be able to express "unity in diversity", according to post-Hobbesian and post-Hegelian solutions. A society that thinks itself as multicultural can get some comparative processes going, spurring a deeper understanding of the cultural identities and of their relations. But we need a new paradigm of rationality to manage such novelties. 4. In search of possible alternatives: is interculturality a solution? 4.1. Culture and rationality. The search for alternatives to multiculturalism as an ideology and a collective imaginary should be aimed to solve two big issues. The fist one is about the liberty of the human being towards the socio-cultural structures. The other issue is about the need to configure the public sphere, so it will be - at least in some fundamental values - a "common world" to its dwellers. We point out that these two issues are linked together, because a shared public sphere needs liberty of people16. In its turn, personal liberty leads to the recognition of the principle of moral and juridical equality of people as human beings, and of their related rights of citizenship, to be assured. The doctrine of multiculturalism, as already said, does not solve these two problems, because it considers the person as embodied and embedded in its culture of origin, and it does not pursue any common world, but only the respect and tolerance "at a distance" between cultures. Both those lacks refer to the deficit of relationality, proper of multiculturalism. In which direction should the alternatives to multiculturalism be sought? Up to now, the solutions have been sought in two main directions. From the one side, there was the attempt to deal with the cultural difference by cultural means, i.e. adopting a (culturalist) position that searches for the convergence between cultures through new cultural forms. From the other side, there was the attempt to show that the meeting between cultures depends from the rationality of the individual actors. The first position generally suffers from a hypersocialized vision of the social actor, the second one of a hyposocialized vision of the human being. Let us see them: (a) The culturalist (or conventionalist) position, according to which the moral feelings are culturally originated, believes that the solutions should be found in the preservation of 16 Rightly A. Sen (2006) has called attention to the difference between a public sphere based on freedom and consensus and one based on cultural communities of ascriptive character (the ones transmitting a cultural tradition from one generation to the other, basing on the fact that an individual is born in such culture). But Sen does not clarify how the liberties enjoyed by equal individuals can build up a common public sphere. He criticizes multiculturalism in the name of an open society (according to the lib-lab model of institutionalized individualism), which seems to be as imaginary as the multicultural one. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 cultures and in the building of a conventional common platform, permitting them to coexist, that is to come alongside with each other. The suggestions, somehow or other, consist in elaborating new conventions and pacts between social groups, to the various degrees of cultural conflicts. It is supposed to come to an agreement between the various cultures through "contracts", on the model of the international conventions. This position suffers from the same problems of multiculturalism, because it considers the actors and their choices to be necessarily defined by the cultural context, and that only a conventional consent "from above" could re-orient the single actors. In substance, it has a "holistic" and hypersocialized character. Those who adopt such position will sooner or later contradict themselves, since the idea of "translating" a culture into another so to achieve a full reciprocal understanding comes to be considered as impossible and rejected (Shimada 2006). (b) The rationalist position (Enlightenment, in various versions), instead, is the one according to which the moral feelings have a rational origin (Boudon 2006). Here, reason comes before identity (as claimed by Sen 1999). In this way, the solution to the cultural conflicts should be found in the direction of a dialogue, based on the encounter of the individuals' "good reasons". Here is the perspective of interaction models and rules, which may lead to a lowest common denominator between cultures, thanks to the use of reason from the part of those participating in the situation. Such common denominator may be of different kind (it may appeal to human nature, natural law, recognition of the innate rights of persons and peoples or nations, or to something else). For the rationalists, the "common feeling" making cultures coexist must be an expression of the moral feelings of the individuals, and it must lie on individual motives of rational action. Stated in the right terms, the debate between culturalists and rationalists has made no big steps forward. From the one side, the culturalist position ended, not rarely, in nourishing various forms of anti-Humanism, of trans-Humanism or even fundamentalism. From the other side, modern rationalism, in its various expressions, has not been able to assure dignity to the human being, and to protect the human essence within the socio-cultural context (not only the human essence within the individual). The search for solutions is stalemate. It is evident when it comes about the theme ofliberty of the human being (agency) towards the so cio-cultural structures. For the culturalists, the person is a product of the society; it is entirely socialized by the society, so that the cultural debate stops in front of the declarations of the different identities. For the rationalists, the person is a pre-social individual that socializes itself basing on its own internal propensions, so that the cultural debate takes place making the identities nominalistic. The contemporary human being is needful to leave cultural determinism through reason. But reason at its disposal is insufficient. Multiculturalism undermines all the existing forms of rationalism: instrumental, substantial, procedural and deliberative. The western rationality is put in crisis and cannot find any argument in front of the requests of the ones Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 not recognizing it (that are not only abroad, but also within the West). Should we renounce to reason? 4.2. In search of a common world: the theory ofinterculturality. Today, there is a possible way out thanks to interculturality. With this term, we generally mean a coexistence way basing on dialogue and the open debate between different cultures, which renounce both to the dominance of one on another (assimilation or colonization) and to the division without mutual communication (balkanization). One appeals to the "intercultural communication". Certainly, the intercultural communication has a lot of credits, but also some manifest limits. Its main credit is to affirm that there is an intermediate space between the "full comprehension" within every single culture, and the "complete non-involvement" between cultures. In this way, it avoids the idea that a common world is impossible because of the dualism between the full comprehension (reachable only within a single cultural community) and the non-involvement (the complete alterity between different cultural communities), as claimed by the cultural relativists. Nonetheless, it meets with the limit of not being able to manage the borders between the three domains (intra-cultural, inter-cultural and multicultural), if not as pure communication. Another credit of the intercultural position is to underline that the debate between cultures may constitute a positive and useful exercise of values' investigation (an exercise inside people's ability of axiological research: Touriñan López 2006). But such axiological exercise, which may be considered as a way for persons to give themselves reasons for their lifestyles, does not explain how individuals may find some common reasons. Other Authors underlined the benefits of intercultural integration as "conviviality of differences". In particular, Stefano Zamagni (2002, pp. 240-266) suggested a quite elaborate model of intercultural integration, based on five principles: 1) the primacy of the person as regards both the cultural community and the State; 2) the recognition that liberty, as selfrealization, needs the relation with the other as a value in itself; 3) the principle of neutrality as impartiality (not indifference) of the State towards the cultures "brought" by their dwellers; 4) the principle of integrating ethno-cultural minorities within a common national culture, in order to which the (lay) State has to adopt "a nucleus of inalienable values" (liberty, human dignity, respect for life, minimum welfare) that, being as such, are valid for all the human beings, no matter for their cultural belonging; 5) the fifth principle is that of a "conditioned tolerance": the State, in the name of the citizen's rights (that, unlike the human's, have no natural law basis), has to assign resources to the various cultural groups, in proportion to their engagement in making themselves keepers of an integration project, based on the fundamental rights of the human being. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 The intercultural model proposed by Zamagni is certainly shareable and full of interesting hints. Nonetheless, it presents some limits. I am pointing out just one of them: it refers the intercultural project to the national culture (its nation-state and its political constitution), while the latter becomes more and more problematic vis-à-vis the globalization processes. To be realized, the intercultural model needs a context of sociological reflexivity referred to the cultural globalization. In my language, it exacts a meta-reflexive subject and a new societarian reflexivity. My purpose is to show that the intercultural solution cannot be understood - as done by someone nowadays - as a sort of "mitigated multiculturalism", sweet, moderate, which looks for the agreement between cultures, pushing individuals towards common reasons that are just external and not internal to the single cultures. To be effective, the intercultural solution needs a deeply reflexive reason, able of rooting the ultimate values to a solid and common ground. This is the real problem: where to find this reflexive reason? 4.3. Inter cultural comprehension needs a relational interface: the problem ofboundaries (semantics of difference). Cultures debate today within the public sphere, having no clue on how it is possible to have something in common apart from the mere interest. This happens because the different cultural identities are not able to dialogue between them in terms of identity. The modern western society invented some devices to treat the clashes of interest through the market, and the clashes of opinion through the rules of the political democracy. But it has not found the instruments to treat the clashes of cultural values. The latter must then be addressed within the framework of the relationships between religion and culture, because this is the context where the instruments to handle the clashes of values should be found. The problem must be framed considering that, in a democracy, the single religions should be able to distinguish between their internal dogmatics and what they can and must submit to their reciprocal confrontation in the public sphere, namely in the civil society, which legitimates the democratic political system (Donati 2002). In such a frame, the key-problem is the one of boundaries between the different faiths (religions) and the public sphere. The public sphere needs a common reason, reachable only if the various religions are innerly reflexive enough to distinguish between reasons given to interlocutors in the public sphere, and their faith (their inner dogmatics). This is not an exercise up to the individual persons, but it involves religions, thought as cultures. People's inner reflexivity is not enough, it is necessary to make religion reflexive, and so the culture in which it is embodied. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 In other words, here there is a process of morphogenesis both of socio-cultural structures (the elaboration of new symbolic and relational patterns) and of agency (the selfreflexive activity of people in their free acting), through the interaction of the individuals. The intercultural theory may stand only if it is possible to realize such complex morphogenetic process. To perform such operation, it is necessary that people put in action a Reason, which no religion (as a culture, not as a faith) can entirely posses all alone, going across them (it is trans-cultural). It is their own reason to exist as religions in the public sphere (i.e. particular systems of values), beyond every single faith that, being a faith, is innerly incomparable17. The interstitial area between religious faith and public sphere is the area of religions, meant as cultures that have to be interpreted and acted by the human subjects. Multiculturalism stops on the threshold of this interstitial area. It supposes a coexistence between cultures (religions) without seeing how they can interact one another and act in the public sphere, as to contribute to shape a common reason. To understand how it is possible, we must observe that, appearing as a culture, the religion depends, from the one side on faith (transcendental reality), from the other side on how the human nature (of the person) expresses itself in the life-world relations. The theory of interculturality may be a solution beyond multiculturalism, only with some assumptions. Here are the main ones: first, it must be assumed that the culture does not absorb the human nature (Belardinelli 2002); second, it must be assumed that the citizenship cannot absorb the homme: third, it must be assumed that people's living experience in the life worlds may find some forms of agreement (empathy, comprehension: Gomarasca 2004) that, being pre-cultural and pre-political, may modify the cultural expressions (included religion as a culture, not as a faith). So, the faith in transcendental realities becomes a device helping meta-reflexivity (of the individual and the relational context altogether). In this way, the reason's reflexivity may exceed its purely reproductive ("communicative") and decontextualized ("independent") forms18. There are two alternatives: either we drop reason as a veritative principle (of recognition), or we should make efforts to "widen the range of reason". The so-called "limited rationality" is an empirical condition (of individuals and functional systems), it is neither the mankind's nor the civilization's destiny. That means that the expansion of reason may be rational, namely it may happen basing on matters related to a more comprehensive reason, not basing on dogmatic or extra-rational reasons. I will talk of it in the next passage. 17 Here, I refer to the well-known distinction between faith and religion proposed by Karl Barth, without accepting his theory of an intrinsic opposition between them. In the perspective of the relational sociology, it does not mean to put them in opposition, but instead to see their inner and necessary relationality. 18 As for the various forms of reflectivity (communicative, independent, meta-reflexive, fractured or disabled): cf. Archer (2003). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 5. Secularity guided by a "relational reason" (relational anthropology) as an alternative to multiculturalism: in search of a new "common world". 5.1. Which secularity in the public sphere? In North America, multiculturalism serves to justify a public sphere where everyone has the right to appear with its own identity, without relegating it to the private, though no one is legitimated to support it as the only and true identity. In continental Europe (in the Countries with no Anglo-Saxon tradition), instead, multiculturalism is interpreted in a different way, which I would call "statist". This quite peculiar version of multiculturalism is usually translated into political programs, where the State should assume a "lay" position (i.e. to exercise an active neutrality) in front of the pluralism of values and identities, of the ways to think, to live and to die. The State must not only recognize, meaning to let them enjoy freedom, but also help and support diversities (for instance, concerning the sexual preferences and the subjective identities of gender) through an interventionist welfare state. Paradoxically, to say "multicultural society" means, to many people, not only that cultural identities cannot be neither judged nor compared, i.e. they should make no difference in the public sphere, but, more than that, that they should all be publicly supported by interventions of "equal opportunities". Even with different shapes, in front of the conflicts between cultures (sometimes especially within the western modernity, as concerning hetero vs. the so-called homosexual marriage) on the two sides of the Atlantic, the State's secularity is demanded more and more as a decisional principle in the public affairs. But what is "secularity"? What does it mean to assume a "lay position"? To make it easier, there are two answers. (i) In the original sense (going back to the first Christianity), secularity (laity) means "spirit of distinctions", providing autonomy to the secular realities towards the supernatural ones, without breaking their relation; like this, secularity leads to rational argumentation and to meeting (not to clash or to mutual denial) between different positions, as between faith and reason. With this meaning, secularity consists in providing public reasons that everyone may understand, even if not necessarily share. (ii) In the modern sense (after Hobbes), secularity means to set aside from a religious point of view. With this meaning, it corresponds to the assumption of an agnostic point of view; secularity bec omes secularism, which implies a break between secular and supernatural realities; the breaking of the relation between secular and not-secular realities becomes an ideology in itself, and secularism becomes laicism (as shown by the French case: see the Stasi Commission Report 2003). In the EU version (where the welfare state is notably stronger and more pervading than in North America), multiculturalism is intended more and more as an ideology Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 supporting the second meaning of secularity, that is the active secularization of the public sphere. Its strength lays on its ability to manage the difference between secular and notsecular (ultimate, i.e. religious) realities, basing on a symbolic binary code, which erases the relational character of their distinction. But this is also its weakness. Hence, its inner crisis and the inability to solve problems that comes from the cultural conflicts. In the perspective of a reflexive interculturality, to give a lay answer to cultural pluralism does not mean to put all cultures on the same level, because this solution, with its big wicked effects, is neither theoretically nor practically viable. Secularity does not mean indifference towards cultures, but ability to examine every culture in the light of the human rights, namely the distinctions of a reason that can reach the deepest human truths and, as such, pertains to human beings as such, not just to a part of them. The answer to the mere fact of pluralism (multi-ethnical and pluricultural society) does not consist in avoiding, annulling or equalizing all differences in the public sphere, creating a context (wholly formal and rhetorical) of "equal opportunities", but in being able to synergically and reciprocally manage the differences. This means to have a lay mentality in dealing with cultural relations. Secularity does not mean to let do everything, on the only condition that the actors do not violate the other's liberty. Such a principle is self-destroying. Secularity means tolerance, meant not only as a mere "let do", that is a negative liberty, but instead as assertion of positive principles of mutuality, brotherhood, solidarity towards the neighbour with its legitimate differences, the ones that are an expression of the human. This is just the opposite of secularity, meant as ethical neutrality and breaking of the relation between reason and religion/faith. 5.2. The relational unity between faith and reason. Joseph Ratzinger (2003, p. 166) wrote that: «The former relational unity, nonetheless never completely indisputed, between rationality and faith has been torn. The farewell to verity can never be definite. The range of reason must widen once again...». In this expression, so rich in contents and hints, there is - in my opinion - the keystone of the question. Nevertheless, it should be underlined that we are still far from the comprehension of its meaning19. I cannot stop here to discuss whether the torn has been caused (before or then, more or less) by reason or faith respectively. The problem, on which I am concentrating, is the following one: what is meant by "relational unity" between faith and reason, but also between religion and culture? Certainly, it is the unity of a difference. But how do we conceive this difference? 19 For a wider setting of the problem, I take the liberty of referring to Donati (1997). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 5.3. Semantics ofdifference, relational reason and common world. It is necessary to elaborate a new theory of difference (as for personal and social identity), permitting us to understand it and manage it in a relational way. To observe a difference is to trace, or to map, as I would say, a distinction. To talk of relational unity between two terms implies to see their distance (distinction) as a boundary relation. The boundaries' management depend on how the differences between terms are conceived and handled. Modern science recognizes two kinds of operations: dialectic and arithmomorphic operations20. I suggest adding a third kind: distinction as a relational operation, conceiving difference through a relational interface21. Since distinction is a reflexive operation, we should refer to the ways reflexivity surveys and judges differences. I would distinguish between three fundamental ones: dialogic, binary and relational (triangular) reflexivity. These are three semantics of difference (see figure 1), which are three different ways to conceive and manage boundaries (boundary as a point of contact/clash, as separation of two domains, as a relation emerging from the disposed combined of refero and religo). I put on the side the theories claiming that it should be and must be possible to "cancel boundaries" because, in that case, there would be a central conflation between the two terms. I) Dialectic or dialogic semantics: the difference is conceived as a gap, under continuous conflicts or negotiations, being more or less able to find an accord or a synthesis. The idea is the one of an Ego-Alter relation, which identities have a boundary where they meet (and eventually clash), and where they discuss and negotiate their own identities. What is "between" them is a sort of externality for the one or the other. It concerns which of the two terms may take possession of it or, instead, how they may share it or make it a space of input-output (one another) sharing. Between Ego and Alter, there is no sharing of specific identities, but rather an assertion of two identities comparing with each other. Reciprocity, 20 A dialectic concept is a concept which boundaries are not strictly defined, because it lays partly with other concepts on their respective boundaries (in a sort of "twilight"). Namely, the concept of democracy may have several partly overlapping meanings. To them, it could not be applied the principle of not-contradiction of the classical logic (according to which B cannot be A and not-A at the same time; instead, if B is a dialectic concept, it can be part of A and not-A at the same time). An arithmomorphic concept, instead, is a discrete concept, therefore being strictly definable. For instance, numbers (1, 2, n), symbols (z, y, etc.), the concept of triangle or circle. Computers operate with the most arithmomorphic of the distinctions, the one between zero and one. Their characteristic is to be clearly distinguishable one from the other, because they have no defined boundaries and they are not overlapping. According to the logic positivists, these are the only concepts qualified to operate in the world of science. So it is clear why the positive (technical) reason is basically arithmomorphic. 21 The relational concepts, unlike the arithmomorphic ones (that are divided by a blank space: "the one or the other"), share with the dialectic ones the fact to have boundaries that overlap and cross with other, even opposite, concepts. But - unlike the dialectic concepts (which boundary is a shady space) - they are characterized by the fact that the space dividing them is made of a relation, with personal and sui generis powers and properties, not modifiable at will or by dealing, because such relation is a not-fungible qualification, with the characteristics of an emerging effect (generable only on certain conditions). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 152 meant as a symbolic exchange between Ego and Alter, does not require the recognition of a common identity; it may happen just near their boundaries, but not in their inner identity. Cultural unity is possible only if one may find an Alter-Ego in the other, at least under some aspects (namely, about the co-inciding part along the boundaries). Such is the Habermasian solution, according to which the civic values define the common boundaries between different cultures. The difference is perceived as a problematic experience of an Ego desiring to achieve a commonality with an Alter-Ego, frustrated because of the gap, always rising again, with Alter. The search of a common world takes the shapes of a dialectic, maybe discoursive (e.g. the discoursive ethics suggested by J. Habermas), which can find only temporary and situated solutions, because in principle Ego and Alter have a divergent and clashing identities. Such semantics support the way that reflexivity is meant in the literary field (Sandywell 1996). It prevails in narrative, hermeneutic and semiological social disciplines. II) Binary semantics: the difference is conceived as a discrimination and incommunicability. The boundary between Ego and Alter is a sharp distinction (division); it is a separation, an incompatibility, an impossibility to share mutual inputs and outputs. Distinction is defined as a discrimination between a class of phenomena and the (negative) complement of that class, which can coexist with purposes or not, depending on the kind of system operating the distinction. Division generates asymmetry (i.e. as a logic of the distinction system/environment). Alter is the denial of Ego and cannot be "included" by Ego (and vice versa). These semantics are those supporting the theory of autopoietic and selfreferential systems, of mechanist, functional and automatic nature (Luhmann 1984). In such version, culture is a mere by-product of the hypercycles of interactive communication. So, there is no chance for a real common world, but only contingent mutual expectations between Ego and Alter. What they share is only the way of turning the world (their experience of it) into a common problem, in order to try to face the paradoxes of the systemic functional Reason. III) Relational semantics: the difference (the gap, the space dividing Ego and Alter) is conceived as a relation. Such relation is not an interaction that may be defined as free in the void. It is not mere communication. It is structured. It has a shape that emerges from the properties of the relation's terms, because it can raise only from them under particular conditions. The relation is constitutive both of Ego and Alter, meaning that Ego's identity is shaped through the relation to Alter, and viceversa. The boundary is certainly a field of conflict, of clash, of negotiation, but it is also a mutual belonging, a constitutive element of both of them. Hence, the recognition of a real alterity (not of an Alter-Ego), because relation calls distance, in some aspects even separation, but at the same time it calls sharing between two uniquenesses (and not two reflections), keeping their impenetrability without synthesis. Alterity does not mean irreconcilable contradiction, insofar as Alter is another Self ("the other Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 153 as myself", says Ricoeur, not as a same one, but as an ipse). If Ego and Alter coincided and were assimilable one another (= idem), the relation would fall (disappear). If, on the other side, the relation were completely external and unrelated to Ego and Alter, we would fall on the two former cases (semantics I and II). The cultural debate must look at the relation that, even if in different ways, constitutes Ego and Alter, without conceiving it, as in the latter Hegel, to be destined to a synthesis. The western culture used, up to today, the first two semantics, wavering between them. I am convinced that, in a globalizing climate, and as provided by the disastrous experience of multiculturalism, a third kind of semantics is emerging. I (dialectic semantics) Difference as a gap (border) between Ego and Alter in which there is at the same time a clash and a sharing between them (Habermas)22 Ego Alter II (binary semantics) Difference as autopoiesis and incomunicability between Ego and Alter (Luhmann) Ego )/( Alter III (relational semantics) Difference as dissimilar way to live a relation, which is constitutive both of Ego and Alter (Donati) Ego (£) Alter Figure 1- Semantics of difference between cultural identities. The third kind of semantics, namely the relational one, points out the cultural differences as they are generated by a "common world" (that "includes" Ego and Alter), which is different and regenerated (re-differentiated) through some forms of relational differentiation - more or less fit to the situation - between Ego and Alter. The aim to make cultural differences/diversities not only compatible, but also relationally significant, cannot be obtained from dialectic and binary semantics. It needs a relational code. The secularity of the public sphere (and of the State) does not emerge, due to the fact that it is necessary to answer to the growing cultural pluralism brought by migrations. Instead, it corresponds to an original and primary fact, namely the different inflexions of the human reason (on the side of Ego and Alter). Secularity is the same reason 22 In the book The inclusion of the other, Habermas claims that "inclusion does mean neither assimilative engrossing nor narrow-mindedness towards the diverse. Inclusion of the other rather means that the community's boundaries are opened to everyone: even - and above all - to those mutually extraneous and willing to remain extraneous". Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 for existence of the human being, which builds its own personal and social identity through the cultures it meets. Secularity is the justifying reason of cultural pluralism, when it rises from the very social relations. To analyse thoroughly this point, it is necessary to turn to a relational semantics that permits us to see the unexplored aspects of human rationality: the relational reason. What does it consist of? 6. The relational reason: widening the human reason through social relations. 6.1. Understanding the relational reason. Relational rationality is the faculty through which the human being sees the reasons (‘good motives') concerning inter-human social relations (inherent neither in individuals as such, nor in socio-cultural systems). The simultaneo us presence of different cultures spurs the widening of the individual rational (axiological) choices within the individual reflexivity. But this is not enough to configure inter(culturality) as a social relation. To achieve the "inter" as a common ground, the public sphere needs a rationality able to give account of the differentiation between cultures as a relational one. In other terms, cultural identities are different because of their different "way" to interpret and live the relation to common values. The way refers to the reason's instrumental and normative dimensions, while "values" refer to the reason's axiological and purposeful dimensions. The so-called policy of equality of differences, which neutralizes or makes relations indifferent, may only generate new differences, finding no relational solution, but only new forms of dialectic or separation. The example of marriage is meaningful. If marriage is considered from the point of view of the equality of individual opportunities, gender identities (male and female) are made indifferent, because their relation (the male-female relation) has no peculiar reason to affirm and promote. There is no more need to talk of male (i.e. paternal) and female (i.e. maternal) symbolic codes, because it is just their relation that has been annulled. Similar considerations are worth for the difference between monogamic and polygamic marriage. For the ones supporting the policy of equal opportunity (the lib-lab policy, which even A. Sen relies on), these are just two relations, offering different opportunities to the individuals, and nothing more. They do not touch the sense and shape of the marriage relation as such. In the relational perspective, instead, we find human values (and rights) only if we affirm the rights to differences (of relations!). To make social relations in-different, taking away the differential reasons pertaining to each genus, means to cancel what is unique and specific to that kind (or form) of relation. It means to annihilate its value as a sui generis reality. For instance, in what pertains to the marriage example, to speak of a "unisex marriage" does cancel the nuptial value inherent in the relation of marriage (and its consequences), since two persons of the same sex cannot Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 have the same relation that exists between a man and a woman. In relational terms, the unisex relation does not constitute a "couple" able to give birth to a family, properly speaking, insofar as it is another kind of relation with different relational reasons (they may be reasons of friendship, mutual aid, eroticism, and so on). The reasons of the human relations are those which correspond to the dignity of the human being. Such reasons are latent, and they may develop a criticism of the cultural drifts, both of anti-humanism, of trans-humanism and of traditionalist fundamentalism. In order to support an interculturality able to create consensus on the basic human values, it is necessary to adopt a relational paradigm able to see and articulate the reasons shaping the inter-human, what is "between" the subjects. The field of bioethics offers several examples: the embryo's right to life, the child's right to a family, the right of an education fit for a human being, and so on. These are all relational rights, because these are rights to relations (neither to things nor to services). Relations have their reasons, which the individuals may not know in an explicit (discursive, linguistic) way, but which they understand depending on the kind and level of their reflexivity, insofar as they can see the reasons of relations implied by the fact of being human, in the natural realm sooner than within culture. The so-mentioned cultural mediation can overcome the obstacles of prejudice and intolerance, only if people are able to relationally combine values, giving them some relational reasons. Relational reason is able to value cultural differences without hiding them; this is why it is able to overcome the forms of distinction between cultures, which have been dominant in the past (i.e. the segmentary differentiation in primitive societies, the stratification of cultures by social stratum/ status in premodern societies, the functionalist differentiation in the first modernity). These are all forms of differentiation unable to reach a shared public reason within a globalized society. Relational reason shows us the alternative of the relational differentiation, namely the creation of a religiously qualified public sphere, where religions might play the role of defining the public reason, since they steer people into a reflexive comprehension of their cultural elaboration within the vital worlds. Such reflexive understanding relies upon an expansion of reason, feeding and increasing it. Therefore, it is possible to go beyond modern western rationality, which is still standing at the distinction between instrumental and substantial rationality23. According to this distinction, the relation to cultural values is not-rational. It may just be affective or 23 'Instrumental rationality' is conceived as the one that, given certain aims, focuses on the means to realize them; the means are technical instruments to achieve 'values' which, by their nature, are indisputable and incommunicable (Max Weber's polytheism of values). The instrumental reason searches for convenience, utility, efficiency, while 'substantial rationality' is the one that focuses on values as ultimate concerns subjectively defined by the agent/actor. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 156 traditionalist, because the very values are not-rational. Relational reason comes to tell us that just the opposite is true. It shows the different modalities through which Ego can relate with values, besides as with the Other, not basing on feelings, moods, emotions, irrational preferences or acquired uses, but basing on reasons that do not consist of "things", but of goods (values) linked to properties and qualities of the present and future relations. These are the relational goods. Here I suggest to revise the theory of rationality as it was formulated by Max Weber. Human rationality cannot be reduced to the two types theorized by Weber, i.e. Zweckrationalität and Wertrationalität, at least as they have been interpreted by the social sciences during the last century. These two concepts are full of ambiguities. As a matter of fact they have led to innumerable confusions. Zweckrationalität refers to the calculation of the means useful to achieve a goal/target, but the goal can be seen also as a means, so that the observer cannot distinguish between what is a means and what is a goal. Therefore the concept becomes useless. Wertrationalität refers to the value as it is subjectively understood by the social actor/agent, but the value can be either an objective good, valuable in itself, or a mere subjective choice or preference. The concept does not allow any distinction between the two. That is why the reformulations of the Weberian theory of rationality made by many authors (such as T. Parsons and J.C. Alexander, who have translated them into the couple instrumental rationality vs normative rationality) proves to be wholly unsatisfactory and misleading. In order to overcome these shortcomings, I propose a redefinition of rationality as a faculty of human agency constituted by four components or dimensions (which must be interpreted within the relational version of AGIL). 1. The component of instrumental rationality, which refers to the requisite of efficiency; it concerns the means; and, as such, it is the adaptive dimension (A) of thought and action; its analytical correlate is the economic dimension of rationality, while its empirical macrostructural correlate is the economic market. 2. The component of goal oriented rationality, which refers to the situated goals; it concerns the achievement of definite targets (efficacy), and therefore it is the goal-attainment dimension (G) of rationality; its analytical correlate is the political power, while the empirical macrostructural correlate is the political system (the state). 3. The integrative dimension of rationality, which refers to the dimension that links the other three dimensions of the human reason; it is the normative dimension I in the AGIL scheme; it decides about the internal morality of rationality and preserves its autonomy towards its environment; it is the rationality of the relation in itself; that is why I call it Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 relational rationality (or, in German, Beziehungsrationalität) which means that it is the nomos building dimension of rationality24. In other words, social relations do possess reasons that do not pertain either to the individuals or to the social systems. Individuals and systems may not know these reasons, and certainly they do not possess them. The dimension of relational reasons has as its analytical correlate the social bond, while its empirical macrostructural correlate is civil society defined as an associational world. The value dimension of rationality corresponds to the L dimension, i.e. the directive distinction that guides human agency towards what has a value in itself (what is an end in itself, what has a dignity in itself, or what lies behind the actor's ultimate concerns, at the border with the ultimate realities). This is the component of value rationality, or axiological rationality (or, in German, Würderationalität), the rationality of what has a true worth, what is worthy and good in itself. One should be well aware that value rationality refers not to a situated goal (the Wert, which has or can have a price, as it is in the Weberian Wertrationalität), but to a value which has no price, that no price can buy25. Axiological rationality is not contingent upon the situation. It inheres to the dignity of what deserves unconditional respect and recognition (Würde) in so far as it is distinctive of what is human (VS what is non-human or inhuman). Therefore it concerns first of all the human person as such (not the individual's behaviour)26. Its analytical correlate is a value per se, i.e. a symbolic reference to what is not negotiable, what is distinctive of a person or a good in respect to other realities. Its empirical macrostructural correlate is the religious system, whereas religion must be understood as a cultural phenomenon different from the religious faith (which is transcendent in respect to culture, since faith transcends human action and marks the border between L as a culture and the supernatural world). 24 The moral norm is what, at the same time, binds (connects) the other three dimensions (A,G,L) and distinguishes the relative autonomy of any social relation from other kinds of social relations (according to MINV/ESAG scheme: Donati 2011). For example, the relational rationality of the family as a social relation consists in connecting its human dignity (L) with its situated goals (G) and the instrumental means to achieve them (A). So that the autonomy of the relation-family is configured as distinct from other types of social relations which are not family. although they can have some dimensions in common with it. 25 Vittorio Mathieu (2004) rightly suggests to distinguish between Wert (the value of what has a price or monetary equivalent) and Würde (the value which has no price, i.e. anything that cannot be treated as a means and no money can buy). Anyway, he does not see the value of the inter-human relation, and therefore he fails in indicating the relational reason which links (mediates) the value in itself (axiological reason) and the other dimensions of rationality. 26 The value rationality (or axiological rationality) is inherent to the process of recognition properly understood in its three aspects: 1) as a cognitive identification of an object; 2) as a validation of the truth it bears with it; 3) as gratitude or thanks giving. On these semantics see Donati (2007). Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 158 Goal oriented rationality (rationality of 'values' as situated goals) \ I Instrumental rationality Relational rationality (rationality of resources and means to achieve the goals) \ (rationality of the relation which links the other dimensions L,A,G) L Axiological rationality (Würdera tionali tät) (Rationality as a gratuitous recognition of what has an inalienable dignity, i.e. what is a good in itself) Figure 2 - The "complex of reason" (or: the human reason as a complex faculty). The four dimensions of the Reason (instrumental, goal oriented, relational, and value oriented to what is worthy in itself) are the constitutive dimensions of what I call the "complex of the (human) reason". Or, if you like it, the reason as a complex human faculty. I synthesize this way to understand the human reason in a scheme (figure 2) that must be read and interpreted in the light of the relational paradigm (Donati 2011). Within this paradigm, every component is essential in order to have the emergence of a full human reason, both as a theoretic and practical faculty. The recognition, understanding, explanation and implementation of what is 'rational' are outcomes of that complex faculty which we call reason as seen from a relational standpoint. From the sociological point of view, the human reason is a social emergent phenomenon. As a matter of fact, a purely 'individualistic' reason does not exist. Rationality cannot be a faculty operating outside social relations. Reason is a faculty which emerges from the operation of its constitutive abilities and potentialities. The latter have their own different properties. Reason is a faculty which comes out as an emergent effect from the combination, interaction and interchange among the four fundamental dimensions which constitute it (figure 2). Those forms which we call "procedural rationality" and "deliberative rationality" are expressions of particular combinations among the above four dimensions (figure 2). Here I cannot comment upon these (and other) forms of rationality for lack of space. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 6.2. How does relational reason operate? Relational reason is that human faculty that operates: (i) with relations (namely, in the perspective of relations, not of individuals or systems), in a contextualized way, in the perspective of culture as an expression of a community; it is made of relations that are put into practice or could be practiced basing on the values of such culture; (ii) for relations (namely, in view of improving relations that promote some definite values of such culture); (iii) in relations (namely, through relations, acting - practically and analytically - on existing relations, in order to create new ones). On the whole, relational reason comes into existence every time that the reason for action includes the good ofcommon action. Relational reason is therefore the reason of a cultural mediation, intended not yet as "betrayal" (F. Crespi) or "paradoxicality" (the paranoia of J. Derrida and N. Luhmann) of people's free natural acting, but as the expression of the need of the human living experience to be naturaliter contextualized within a relation, to be directed towards a mediation, to operate through a mediation. Relational reason is that faculty, proceeding through four components (aims, means, rules, values), relating them inside and with their "environments". We may distinguish the relational reason when it operates inside (theoretical reason = intentions, means, rules, values) and outside (practical reason = heteronomy, instrumentality, autonomy, gratuitousness) (Donati 2011). In such a framework, values are necessarily on the border between reason and its transcendental environment (faith). On such border, reason, culture and faith necessarily interact. Values should be seen not as models to maintain and preserve (in an inertial vision of the social system, as done by Talcott Parsons), but as propellers of social relations. Cultural values are not only bonds and limits (with zero energy and maximum function of control), but also resources and perspectives of sense (having a proper energy, often more entropic than negentropic). With his theory of incompleteness of formal systems, Gödel taught us two things: (i) each system needs to relate to an other than oneself, to find a situational and formal completeness [in the formulation of this Author, the formal needs the informal (intuition, creativity)]; (ii) the "total completeness" comes from the relation between all the systems (or rather, it lays on the relations between the systems' relations). This is worth also for reason, when considered as a system oriented to knowledge and practical action. If we conceive of reason as a reflexive faculty of the human being, consisting on the ability of one's I to converse with its Selfon its own I and the world, then to expand reason Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 means to expand such reflexive ability (choosing aims, means, rules and values) through relations implied with the Self and the world, through its own Self. Thus permitting the person to root its own cultural identity inside its own human nature, expanding outside it in the culture, and interacting with it in the various spheres of life, where the I bec omes Me, We, and You27. The Greek Logos says: "know yourself", as it was written in the front of the temple of Apollo at Delphi. The exortation nosce te ipsum (Saint Augustine) has become the focus of introspection in the Christian spirituality. Relational reason observes that such self-reflexive precept risks to fail and to fall off into subjectivism. It makes us understand that, without the Other, the I cannot know itself in a fully human way. Therefore, the Logos should make itself relational and recognize that: "without You, who are Other than Myself, I cannot know myself (where You is both the Other human being at the level of the immanent existence horizontally - and God at the transcendental level - vertically). Relational reason shows that there is no opposition between Me as the Other (Idem) and Me as a sole and unique being (Ipse), as claimed by some philosophers; instead, there is synergy, because the singleness of the person (ipseity) emerges from the background of what is common (sameness). To talk of relational reason is to enter the reflected thought (reflexivity). It requires changing the observational point of view, being no more the one of the single terms or of a presumed "system", but that of a relationship. It means to enter into another order of knowledge (the order of relationality). Relational reason offers good reasons, autonomally understandable by everyone irrespectively of his/her specific religious faith, because they refer to the development of the human nature as a reality provided with own properties and powers as regards culture, even if culture should combine with nature28. What makes "good" the agent/actor's reasons is their relational character as referred to the human, where "human" stands for what can be only an end in itself, never a means to other than itself, because it refers to the speciesspecific quality of the human person, perceivable and recognizable by everyone. 6.3. Relational reason offers the necessary mediations for a veritative recognition of the cultural identities. The citizenship we need must allow people, families, social groups and communities, belonging to it, to combine their own culture (and religion) with a growing differentiation of the individual (due to the various circles of identities intersecting in him/her). Thus, the individual should be put in the position to identify its own belongings and to determine the hierarchy of his/her ultimate concerns. 27 Me as a social agent in primary relations, We as a corporate identity, and You as an individual actor in a social role (cf. Archer 2003). 28 In the Catholic doctrine, these are the so-called preambulafidei. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 If everybody, whatever his/her culture/religion, may identify in the slightest of a common world, this world cannot consist neither of a state citizenship neutralizing social relations, nor of a multicultural citizenship making the relations between culture indifferent, because identity depends on relations. The common world is the necessary mediation elaborated by the reason (commonly shared by the human beings), so that every single person may live in the public sphere, even being of different religion or faith. Only in the interface of the inter-subjective relation, reason recognizes the reasons of faith, and faith recognizes the reasons of Reason. Only through their relational values, Reason may open to faith and vice versa. The lack of relational mediation puts all religions, and not only Christianity, into crisis. We may see it through the growing entropy of all the world's religions. Christianity is certainly the one that has absorbed and expressed the most the spirit of distinctions, thus the most differentiated inside as regards the use of reason. It is inside, and not outside Christianity, that anti-Humanism and trans-Humanism do generate (for the eastern religions, these terms ha ve little or no sense). The differentiating reason of western modernity produced multiculturalism as an ideology. Only relational reason may cure the consequent pathologies, drifts, deviations and implosions. The common world is secularity inside the natural law, but it may be caught only updating the notion of natural law by means of relational reason. The attempts to redefine the natural law by means of orders of recognition of the past, as the ancient ones of narrative feature and the modern ones of proceduralism (Ferry 1991), are no more suitable. Secularity needed by multicultural societies consists of a new spirit of distinctions, which does treat social relations neither as dialectic oppositions, nor as binary ways to discriminate human persons. Such a spirit must transform social relations in an experience of recognition within a complex circuit of mutual gifts. This is a relational spirit, because it uses relational semantics of distinctions, as actions inspired by the rule of reciprocity. In this way, it generates a secularity, which is a recognition of the relation between different identities, as a free act of gift and acceptance of its responsibility (in fact, the gift is an answer to former gifts, and it leads to a reciprocation). The question of the recognition of different cultures implies three steps, related between them: the attribution of an identity, its validation and a sense of gratitude (thankfulness) for its existence. These three steps represent the gift circuit that, differently from the animal realm, is a constituent of the human's sociability. Human recognition would not be possible if the identity was not a relational one, and if the common world was not relationally constituted. Finally, it is clear that the biggest and more specific performance of the relational reason is the one of solving the inner difficulty of multiculturalism (namely, the problem of Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 recognition), through the relational observation and action: recognition is observed and acted as a gift circuit. The relational expansion of reason can be understood by all cultures, included the eastern ones. It assumes a particular meaning when it is deeply rooted to the Christian idea of human life and of the existence in general, because of its specific trinitary symbolism. The adoption of this perspective allows society to exceed the limits of liberal tolerance. While liberal tolerance is without relations, the Christian one passes through relations. The Christian one is able to understand the sense of all faiths and religions, and of the relations that they can create between them by means of the human (lay) reason. Its reason lies on the fact that a principled tolerance may be flexible about means; it is a form of rationality able to combine value with differentiated rules and instruments. This is, in fact, the relational reason. The route of the relational reason does not assert neither a monistic uni-verse, nor a multi-verse without any order, nor an undifferentiated pluri-verse, but an ordered interverse, a world of diversities oriented one another, on the standard of a reciprocal rationality, fit for a convergence on common experiences and practices, which are independent from the single culture as a symbolic product (included the language). 7. Synthesis and perspectives. The vicissitudes of multiculturalism show that we live in a world, in which the Hobbesian solution of the social order is no more suitable. Institutionalized individualism (individualistic liberalism), assessed by the Hobbesian solution, falls into crisis. There is no more a political power (Leviathan) that may guarantee individual liberties, neutralizing the cultural (and religious) conflicts within the public sphere. The ideology of multiculturalism is not a solution to the ethical void which widens in proportion to the fall of the Hobbesian national State. Which are the alternatives? A "universal culture" is not thinkable as a world culture (corresponding to the world system) in a functionalist meaning. The current debate on the difficulties to achieve a theoretical universalism in culture (Browning ed. 2006) clearly demonstrates it. The Christian thought may certainly propose its own vision of universalism, basing on its social doctrine (Crepaldi 2006). But, without a relational interface, the Christian vision is inevitably perceived as particularistic. A universal culture is possible, instead, as the spirit of an ethically qualified secularity, constituted as a common world, which may be drawn through the relational reason, in relationally differentiated social spheres. Beyond the deficits of multiculturalism, the solution could be provided by a renewed secular sense of culture, as a common learning space through practices of daily life, where mutual recognition sets aside from the world of signs and cultural traditions, in order to Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 grasp the primary experiential sense of the inter-human. In such a situation, the lay character could assume the connotation of an independent reason, looking at the sense of human relations, without depending on justifications based on the sole faith (namely, committed to dogmatics inside the single religion). In order to let such a secularity emerge, it is necessary that people and cultures learn to operate differences, no more in a dialectic or binary way, but through a relational symbolic code, according to which the autonomy of subjects is not a separation (or continuous clash between them), but a choice ofthe "environment" to depend on. Relational reason should have the task to avoid every kind of conflation in the cultural conflicts: top-down conflations (as in the case of Jacobin assimilationism), bottom-up conflations (as in the theory of an unlimited community of discourse), and central conflations (peculiar of the relationism that we find in the pragmatics of a coexistence understood as a conflation or hybridization of cultures). When relationally intended, secularity promises a new coexistence between cultures, not based on the waiver to their content of civilization, but on its renewal, through the recognition that one's own identity is relationally constituted through the relation to the Other. This idea is the backdrop of what I call societal constitutionalism. Today, many people are willing to recognize that, to say it in the words of Joseph Ratzinger (2005, 1 aprile), the self-limitation of the "positivist reason" (even adapted to the technical ambit) implies a mutilation of the human being. Non-believer laymen, atheists and agnostics claim it too. Everyone, today, put the evils of a globalized society down to the technical reason, and to the domination of an economy pushed forward by a science without ethics. Certainly, the positivist reason is neither universal, nor complete, nor sufficient to itself. The roots of reason are wider ones. It is shown by the fact that the globalization is stimulating new "local" cultures. To see these roots, dipping in the man's nature, it is necessary to produce what has been called by Max Weber "cultural breakthrough". Christianity has done it during two millennia, getting done a qualitative leap of the world's process of rationalization. But today it is frozen. This is because the couple faith-reason is no more able to de-mythicize false idols. To do it, it should structure the unity of such difference in a relational way, through the relational reason. That is the only way for reason, which grew on the Judaic-Greek-Christian roots, to operate a new cultural breakthrough. We need new roots to survive. We must find a new imagination, which is together sociological and transcendental, in order to support a meeting between cultures, being able to get to the root of man's dignity, namely God himself. The project to give back Christian roots to Enlightenment has no possibility, if we do not look to the reasons of the social relations. To think of reason as a Logos may be helpful to the individual to provide a new access to culture, and to the intercultural debate, but it cannot be closed inside the religion of Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www .fafich .ufmg.br/ memorandum/ a24/ donati065 Donati, P. (2013). From multiculturalism to interculturality: through the relational reason. Memorandum, 24, 133-167. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 the Book. It must open up to historically contextualized human relations. It has to learn from everyday life practices in so far as they are enlightened by a reflexive reason fully relational. There is a lot to learn from a reason able to expand itself towards those ultimate realities that cannot be reckoned, that are not technical-scientific, bringing inside them the deepest sense of the human. We should be aware that this target requires a relational development of reason. Social relations contain the reasons that operate the mediation between the religious faith and the public reason. Not willing to exceed the limits of my sociological competences, I tried to argument here the theory, according to which the way we observe the relation between man and God, mediated by the Logos, needs a renewal. It is the connection (relation!) between the mankind (perfect) and the divinity (perfect) of Jesus Christ that must be inquired again, since these are neither two juxtaposed realities, nor immediately coinciding with the only Person29. To understand such relation, which is the keystone of the co-existence of so many and different "reasons" (cultures), it is necessary to resort to a reflexive semantics of difference (between the human reason and its supernatural environment, as between cultural reasons), which is a relational semantics. This is the meaning of the claim according to which religious faith can and shall liberate reason from its blind spots. References Archer, M. S. (2003). Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge: Cambridge University Press. Belardinelli, S. (2002). La normalità e l'eccezione. Il ritorno della natura nella cultura contemporanea. Soveria Mannelli, Itália: Rubbettino. Benhabib, S. (2002), The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Princeton: Princeton University Press. Boudon, R. (2006). Una teoria giudicatrice dei sentimenti morali. MondOperaio, 11(4-5), 108123. Browning, D. (Ed.). (2006). 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Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/donati05 1 Crepaldi, G. (2006). Globalizzazione. Una prospettiva cristiana. Siena, Itália: Cantagalli. Currie, R. J. (2005). The Bounds of the Permissible: Using 'Cultural Evidence' in Civil Jury Cases. Canadian Journal ofLaw and Society, 20(1), 75-86. Donati, P. (1997). Pensiero sociale cristiano e società post-moderna. Roma: Editrice Ave. Donati, P. (199). Oltre la crisi dello Stato sociale: dal codice inclusione/esclusione al codice relazionale/non relazionale. Sociologia e Politiche Sociali, 2(3), 195-220. Donati, P. (2002). Religion and Democracy: The Challenge of a "Religiously Qualified" Public Sphere. Polish Sociological Review, 138(2), 147-173. Donati, P. (2007). Ri-conoscere la famiglia attraverso il suo valore aggiunto. In P. Donati (a cura di). Ri-conoscere la famiglia: quale valore aggiunto per la persona e la società? (pp. 2562). Cinisello Balsamo, Itália: Edizioni San Paolo. Donati, P. (2008). 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Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07 Resenha: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos Review: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos Marina Massimi Universidade de São Paulo Brasil Leite, M. V. V. (2007). Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos (16 v.). Montes Claros, MG: Unimontes. A Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos publicada em 2007 e patrocinada pela Prefeitura de Montes Claros, pela Unimontes e pela Fundação Nestlé do Brasil e organizada pela professora Marta Verônica Vasconcelos Leite, nos apresenta um conjunto de dezesseis volumes reunindo o patrimônio cultural da cidade, produzido por intelectuais nativos ao longo dos cento e cinqüenta anos de história. A organização da Coleção teve como principal objetivo suprir a demanda das bibliotecas públicas e escolares de Montes Claros e região, onde essas obras sempre eram procuradas, mas só existiam em coleções particulares. Evidenciar como um centro urbano cresce ao produzir cultura é exemplo concreto de quanto H. Arendt (1954/2003) afirma ao definir cultura como expressão da "vida humana como tal necessitando de um lar sobre a terra durante sua estada aí" (p. 262). Este lar terreno se torna um mundo "quando a totalidade das coisas fabricadas é organizada de modo a poder resistir ao processo vital consumidor das pessoas que o habitam, sobrevivendo assim a elas. Somente quando essa sobrevivência é assegurada falamos de cultura" (idem). Arendt remete-nos ao significado etimológico original da palavra, latina, cuja raiz é o verbo colere que significa cultura, habitar, cuidar, criar e preservar, sendo originalmente associado às atividades da agricultura e ao cultivo da terra. Acompanhando o pensamento de Arendt podemos ver como uma cidade, onde um grupo de pessoas estabelece sua habitação e modo de sobrevivência é lugar também produtor de cultura. Neste momento atual em que tantas cidades brasileiras correm o risco de se tornarem principalmente lugares de consumo, a proposição da presente Coleção evidencia a existência de experiências sociais e culturais que afirmam sua identidade na direção contrária. Com efeito, na Coleção Sesquicentenária, encontramos produções de intelectuais nativos da cidade de Montes Claros que se debruçam no conhecimento de sua realidade local segundo diversas perspectivas: a da história, a da memória, a da produção literária que tematiza a realidade local por objeto. Compõe-se assim um mosaico rico e colorido de cuja leitura emerge a vitalidade cultural e social da cidade e da região. Trabalho exemplar em sua Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07 Massimi, M. (2013). Resenha: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos. Memorandum, 24,168-171. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07 composição e edição, também no que diz respeito a ações de conservação do patrimônio cultural do país, visando auxiliar na consolidação das identidades locais, resgatando a memória e constituindo-se como material educativo cuja transmissão tem em vista a formação das jovens gerações. Inicialmente, destaca-se um conjunto muito consistente de trabalhos historiográficos: Montes Claros: sua História, sua gente e seus costumes, de autoria de Hermes Augusto de Paula, dividido em três volumes. Editado em 1979, o livro, como o autor destaca em seu prefácio "foi escrito em quatro, nos intervalos da labuta profissional" e pretende ser uma coleção de fatos históricos ocorridos em sua terra natal. Divide-se em seis partes: principais fatos históricos (vol. 1, pp. 3-38); geografia histórica (vol. 1, pp. 41-161), personagens principais da vida do povo (vol. 1, pp. 163-285), miscelânea histórica (vol. 1, pp. 287-310), genealogia (vol. 2, pp. 3-220), antologia montes-clarense (vol. 2, pp. 221-285), costumes e lendas (vol. 3, pp. 3189). As Efemérides Montesclarenses, de Nelson Vianna, divididas em dois volumes, como afirma o mesmo autor, são resultado de anos de pesquisas em arquivos, jornais, revistas, livros, depoimentos orais, correspondências, e de todas as fontes possíveis sobre a história do município de Montes Claros de 1877 a 1962. Montes Claros: breves apontamentos históricos, geográphicos e descriptivos é a edição fac-símile da monografia de Urbino de Sousa Vianna sobre o Município de Montes Claros. Impressa em Belo Horizonte em 1916, foi apresentada à Câmara Municipal de Montes Claros que à época a adquiriu em número de cem cópias. A monografia fora elaborada para suprir a necessidade da própria administração local quanto ao conhecimento histórico do município e da região. Traz informes acerca da história propriamente dita; da instrução e da cultura, do mundo judiciário, da geografia, da flora e da fauna, dos mineirais, da economia, da religião e do folclore. Raízes de Minas, de Simeão Ribeiro Pires, foi elaborado em 1979 e premiado em concurso sobre história mineira. O autor, engenheiro civil, relata que tendo residido na região da divisa entre Minas Gerais e Bahia durante a obra de prolongamento da ligação ferroviária norte-sul do Brasil, te ve seu interesse despertado pela história de algumas figuras significativas da história local (os Condes da Ponte ou membros da Casa da Ponte), de modo que a escrita do livro condensa as pesquisas por ele realizadas para responder a este interesse. História Primitiva de Montes Claros, de Dário Teixeira Cotrim, publicada originalmente em 2003 pela Editora da Universidade de Montes Claros, propõe uma pesquisa atual e aprofundada sobre as origens da história da cidade e da região do Médio São Francisco. Em suma, com este primeiro conjunto de obras, pode-se reconstruir através a história da historiografia de Montes Claros e região. A Coleção Sesquicentenária propõe também a reedição de documentos referentes à memória e cultura local. Foiceiros e Vaqueiros, de 1956 e de autoria de Nelson Vianna (também ilustrador do texto), agrimensor e morador de Montes Claros ao longo de trinta anos, é uma coletânea de narrativas acerca de fatos e pessoas do local. Narrativas colhidas em relatos orais de informantes encontrados em muitos casos durante o desenvolvimento de suas Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07 Massimi, M. (2013). Resenha: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos. Memorandum, 24,168-171. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07 1 atividades profissionais, e reelaboradas e transcritas pelo autor, constituindo-se como rica interface entre cultura coral e escrita, transmitindo memória e construindo a cultura. Janela do sobrado: memórias, de João Valle Maurício, publicado pela primeira vez em 1992, é também a obra de "um contador de casos" que resolveu "escrevê-los"; colocando-se do mesmo modo na interface entre oralidade e escrita, que tão profundamente e peculiarmente marca a cultura brasileira. Contar casos, nos diz o autor, implica ser de certo modo "memorialista", sendo os casos contados "lembranças abraçadas em pedaços de emoção"; ou, em outros termos, "memórias da minha gente, da minha terra, da minha vida". Tendo o mesmo objetivo de "contar histórias", Montes Claros era assim..., de Ruth Tupinambá Graça, foi escrito em 1986: trata-se de conjunto de "lembranças guardadas" de festas, celebrações, lugares e personagens da cidade, mosaico da riqueza da cultura popular, vivenciada e narrada pela escritora. Serões Montesclarenses, do cronista Nelson Vianna, originalmente composto em 1962, propõe um "passeio pela Montes Claros do passado", apresentando memórias da vida passada da cidade. Nelson, o personagem de Haroldo Lívio de Oliveira (1995) coleciona crônicas publicadas em O Jornal de Montes Claros pelo autor e constitui-se expressão significativa da imprensa regional mineira. Já em Rebenta Boi, de 1958, Cândido Canela recolhe líricas inspiradas no mundo da vida do interior mineiro e que também procuram utilizar-se da linguagem popular. Para a compreensão dos termos mais usados, no fim do livro o autor propõe um vocabulário. A Menina do sobrado de Cyro dos Anjos, publicado pela primeira vez em 1979, é o volume mais famoso da Coleção Sesquicentenária, narrativa autobiográfica de um dos intelectuais de Montes Claros mais significativos no plano nacional. Nesta obra, o autor realiza uma original reflexão autobiográfica e memorialística acerca de sua formação e de seu universo cultural e social de pertença. Memória, história, autobiografia: documentação importante também para os psicólogos interessados em apreender as modalidades de subjetivação, próprias da cultura e moldadas ao longo da história. Exemplo concreto de uma ação inteligente e eficaz orientada para a preservação e a proposição de uma dada tradição cultural, a Coleção Sesquicentenária de destaca por evidenciar a riqueza desta tradição local e seu valor universal. Referências Arendt, H. (2003). Entre o passado e o futuro (M. Barbosa, Trad.). São Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1954). Leite, M. V. V. (2007). Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos (16 v.). Montes Claros, MG: Unimontes. Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07 Massimi, M. (2013). Resenha: Coleção Sesquicentenária Montes Claros 150 anos. Memorandum, 24,168-171. Recuperado em____de__________,______, de www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07 Nota sobre autora Marina Massimi é Professora Titular e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Departamento de Psicologia e Educação. Avenida Bandeirantes, 3900, CEP 14040-901, Ribeirão Preto (SP) / Brasil. E-mail: [email protected] Data de recebimento: 29/08/2012 Data de aceite: 08/09/2012 Memorandum 24, abr/2013 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP ISSN 1676-1669 www.fafich.ufmg.br/memorandum/a24/massimi07