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55 O Museu do Desenho da Criança1: um estudo da produção gráfica infantil “Todas as pessoas grandes já foram crianças um dia, mas poucas se lembram disso” (Saint Exupéry, s.d., n.p.). Amanda Delfino MIRANDA Betania Libanio Dantas de ARAUJO Deborah da Costa de SÁ Erika SIOTANI Larissa Cella Hirai FUJISAKA A coletora G., 5 anos Resumo: O Museu do Desenho da Criança é um projeto desenvolvido na Unifesp em Práticas Pedagógicas Programadas, relacionando coleções de desenhos de crianças, na perspectiva de novas relações entre os estudos teóricos sobre o assunto e observações sobre a cultura da infância. É uma pesquisa qualitativa; a comunicação é estabelecida por meio de desenhos e conversas informais, entre crianças e universitários participantes do projeto. Os desenhos são tomados em sua expressividade e cuidamos para que outras informações sejam trazidas por seus criadores: os próprios criadores das imagens. Designar, projetar, planejar, sonhar, desenhar, imaginar e contar é a trajetória que acompanhamos no encontro com essas crianças e conhecemos esses mundos na 1ª e na 2ª infâncias. Palavras-chave: Desenho. Criança. Museu. Artes Visuais. Coleta. Todos os autores deste artigo participaram da PPP Museu do Desenho e são estudantes do curso de Pedagogia/Unifesp: Amanda Delfino Miranda, Ana Carolina Cardoso da Silva, Carlos Eduardo de Camargo, Cristina Selma Duarte Viana, Deborah da Costa de Sá, Erika Siotani, Juliana Nunes Hitzschky, Larissa Cella Hirai Fujisaka, Lilia Oliveira Rodrigues dos Santos, Nathalia Giannini Queiroz, Paola Donato Teixeira, Rosangela R. V. de Oliveira, Stefane Silva, Stela Cristina Costa, Vinicius Expedito Mena de Oliveira. Trabalharam na finalização do artigo: Deborah da Costa de Sá e a Prof.ª Betania Libanio Dantas de Araujo. 1 Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 56 O Museu do Desenho da Criança: a study on the infant graphical production Amanda Delfino MIRANDA Betania Libanio Dantas de ARAUJO Deborah da Costa de SÁ Erika SIOTANI Larissa Cella Hirai FUJISAKA Abstract: O Museu do Desenho da Criança is a project developed by UNIFESP’s Práticas Pedagógicas Programadas, relating compilations of children’s drawings in the perspective of new relations between theoretical studies on the subject and observations about the culture of childhood. This is a qualitative research; communication is established through drawings and informal conversations between children and college students participating in the project. The drawings are appraised by their expressiveness, and we ensure that other information is brought by their creators: the very creators of the images. Designating, designing, planning, dreaming, drawing, imagining and counting are the path we follow with these children, and we know those worlds in 1st and 2nd childhoods. Keywords: Drawing. Child. Museum. Visual Arts. Collection. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 57 1. INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo apresentar a Prática Pedagógica Programada1 Museu do Desenho, do curso de Pedagogia na Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, realizado entre 2011 e 2012. O seu propósito é dar visibilidade às crianças e conhecer as suas criações por meio de suas falas que narram histórias de fantasias, medo, tristeza, desejos, sonhos, realidades, conhecendo as estéticas infantis na construção da imagem por meio da liberdade de criação. A PPP Museu do Desenho2 consistiu em recolher desenhos de diversas Escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, bem como coletas livres, para análise, visando compreender o que as crianças atualmente desenham, quais são os traços e formatos recorrentes, as diferenças entre percepções de diferentes regiões e nacionalidades, o impacto das mídias e dos papéis de gênero na manifestação e no processo criativo das crianças. É formada por estudantes do curso de Pedagogia da Unifesp, que ajudaram a construir este artigo. Tais coletas visaram compreender quais traços e formatos eram recorrentes, as diferenças entre percepções de diferentes regiões e nacionalidades e os papéis de gênero na manifestação do processo criativo desses sujeitos, pois o desenho é um importante registro de percepções, desejos, comportamentos e interpretações de mundo. Os desenhos infantis são de diversos espaços, foram feitos sem intervenção dos adultos e a sua coleta gerou os encontros de leitura, debate e construção de um blog. Iniciamos com o estudo do concurso elaborado por Mário de Andrade, que, em 1935, como diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, organizou um concurso de desenhos. O procedimento, nesse conAs Práticas Pedagógicas Programadas (PPP) participam da estrutura curricular do curso de Pedagogia e são experiências na educação formal ou não formal por meio de vivências, estudos com a elaboração de um produto final socializado com os colegas e coordenado por um professor. 1 2 Coordenada pela Prof.ª Dra. Betania Libanio Dantas de Araujo, professora da Unidade Curricular Fundamentos Teórico-práticos das Artes Visuais. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 58 curso, consistiu em não interferir no processo criativo da criança, e as formas escolhidas foram traçadas espontaneamente, sem interferência de figuras prontas ou influência de um adulto. Depois de finalizado o desenho, quem recolhia as criações indagaria à criança o que havia sido retratado e, no verso de cada folha, anotava-se a descrição dita, juntamente com a data da criação, o gênero, a idade e a nacionalidade do infante. As crianças, em especial as de pouca idade, são silenciadas e não percebidas como seres históricos, criadores de cultura, frequentemente interpretadas como meros reprodutores. Merecem respeito e estímulo para autonomia criativa, reconhecendo tais produções enquanto registro da inventividade e historicidade, manifestação artística, poética, cultural. Quando uma criança desenha, passa para o papel a sua impressão de mundo. E, como seres singulares que somos, carregamos em cada um de nós uma percepção de mundo diferente, influenciada pelos contextos sociais em que vivemos pelo histórico de vida, entre tantas alusões à cultura, observa Amanda Delfino3. Para cada pessoa, um mundo; e, para cada mundo, uma série de referências advindas apontadas no papel. Percebemos o desenho da criança como resultado de um registro visual, com formas e cores gerindo em seus traços a relação existente entre o mundo em que vivemos e todo o universo simbólico que constituímos, derivando desenhos com elementos retirados da realidade e aumentados a traços de imaginação. É possível acompanhar, através do desenho da criança, processos de transições relacionadas a sua vida, sejam questões biológicas (referentes ao crescimento em diferentes fases da vida), culturais, por mudanças espaciais (como mudança de casa, cidade) ou mudanças na estrutura familiar. Amanda Delfino percebe que os elementos que aparecem no desenho infantil podem identificar a força dessas transições: 3 Grande parte dos autores citados são estudantes do curso de Pedagogia da Unifesp e participaram da PPP Museu do Desenho em 2012. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 59 Ao observar o desenho de uma criança, podemos considerar as seguintes questões: quais elementos estão presentes no desenho? Quais elementos se repetem? Quais desaparecem ou se transformam? Entrar em contato com tais produções nos leva a refletir sobre o conceito de infância, a origem e o desenvolvimento do processo criativo e as múltiplas possibilidades de vivenciar identidades, ou seja, ser, estar e descrever o que nos cerca é narrar e construir o mundo ao mesmo passo que construímos a nós mesmos, seja através de uma dissertação, uma canção, seja por um desenho. Ter acesso a essa experiência dialética traz consigo a possibilidade de penetrar em universos particulares, verdadeiros “jardins secretos” repletos de uma poesia que ganha vida quando ouvimos de seus criadores a história que entrevemos por entre folhas feitas de grafite e cor. 2. DESENVOLVIMENTO Traços interrompidos: o desenho como passagem pela primeira infância A infância não é apenas uma nomenclatura sobre determinado período biológico humano; é o entendimento sobre valores e comportamentos que esperamos dos sujeitos dentro desse recorte específico. Em diferentes tempos históricos, o conceito de infância foi impactado pelas normas das instituições escolares. Na Idade Média, por exemplo, não havia o conceito de infância, e as classes escolares não eram separadas conforme a idade, sendo considerado adulto todo aquele que estava apto a exercer sua função social, seu ofício. Esse sistema de classes no século XVI buscava meios de sistematizar a aprendizagem dos alunos, categorizando, conforme Baduel, “sua idade e desenvolvimento” – sendo esse último o fator de maior importância. Nos séculos XVI e XVII, os estudantes não eram vistos com bons olhos diante da sociedade cortês, que os interpretava como figuras marginalizadas, arruaceiras e propagadoras da desordem social; assim, houve uma pressão aos educadores para reforçar a necessidade de atender a expectativas civilizatórias. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 60 No início do século XIX, separavam-se os “homens feitos” dos menores, mas, só ao fim de tal século, surgiu o conceito de segunda infância. A cartilha “Nova escola para aprender a ler, escrever e contar”, de Manoel de Andrade de Figueiredo, foi impressa em 1722, em Lisboa. Segundo Casimiro (s/d), esse material contava com exercícios de caligrafia e aritmética, preceitos religiosos, mensagens morais, exortações acerca da higiene e demais métodos de ensino. Desse modo, podemos observar que a distinção entre a fase adulta e a fase infantil incumbiu educadores de transmitirem uma variedade de conteúdos e valores aos seus alunos. Se nos atermos às expectativas recentes da Educação Infantil por parte da sociedade, notaremos que o modo como encaramos os conteúdos curriculares, as propostas pedagógicas e até mesmo o próprio conceito de infância é fruto de transformações históricas e sociais; logo, a pressão para que as crianças se familiarizem o mais precocemente possível com a cultura letrada, a escrita e o cálculo não se configura em uma demanda específica de nosso tempo. O domínio sobre tais técnicas é benéfico, pois oferece ferramentas para o desenvolvimento e registro de manifestações da inventividade, como escrever e arquivar suas próprias histórias, universos particulares. Entretanto, a manifestação do lúdico e da criatividade não se dá apenas por essas vias disponíveis no sistema escolar, sendo o desenho e a corporeidade (como em jogos de dança ou interpretação) exercícios valiosos de interação e composição, geralmente relegados ao segundo plano como entretenimento frívolo de menor importância dentro do currículo escolar (ARIÉS, 1986). Materiais como lápis de cor, giz de cera, massa de modelar, aquarela e tinta guache são associados quase que imediatamente à primeira infância, período em que há uma maior abertura para essas experimentações; isso explica o valor desses itens como práticas com um prazo de uso determinado pela idade. Dessa forma, um adolescente é visto como imaturo por desejar usufruir desses objetos. Quanto mais se aproximam os primeiros anos do Ensino Fundamental, maior é o reforço para que os desenhos sejam trocados pela caligrafia; a diferença é que, muito embora uma criança seja recompensada e elogiada por uma caligrafia bem executada, ela não será desestimulada a escrever se a sua letra B não sai exataEducação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 61 mente como a letra da professora ou do livro didático. Um processo oposto ocorre com o traço do desenho infantil: quanto mais ele se afasta das formas ideais de representações gráficas, mais desestimulada será a criança por não saber “desenhar corretamente”. Adiante, o estímulo já escasso para desenvolver o próprio traço é substituído pelo preencher de figuras impressas para colorir, o que, por sua vez, deve ser realizado com padrões predefinidos de disposição de cores. Uma árvore pintada de azul ou um desenho preenchido com apenas duas cores pode intrigar tutores e professores. Um sujeito que se debruçou sobre a importância do ato de desenhar como manifestação do indivíduo na fase infantil foi Mário de Andrade, que, entre 1935 e 1938, atuou no Departamento de Cultura do município de São Paulo, trabalhando na elaboração de parques infantis destinados a filhos de operários com idades entre 2 e 12 anos, proporcionando às crianças que ali passavam atividades como ginástica, dança e desenho. Nesse período, organizou um concurso para angariar desenhos para análise. As instrutoras responsáveis por inspecionar e recolher essas produções foram instruídas a não sugerir temas, corrigir ou intervir sobre qualquer um dos desenhos. A pesquisadora Gobbi (2005, p. 02) escreve acerca desse episódio: Mário de Andrade, para observar os desenhos criados na infância, desde a mais tenra idade, constrói uma forma de estudo que poderia ser chamada de etnografia dos desenhos, que não foi sistematizada, encontrando-se espalhada em seus escritos, documentos, anotações e cartas. Procura conhecer e revelar os assuntos, os traçados, as formas e outros elementos ao descrever, dialogar e levantar dados diversos sobre os desenhos em si, associando a isso a data de criação, o sexo, a idade, a nacionalidade dos pais de quem os criou. Além disso, também concebia os desenhos como resultados e soluções pessoais das crianças, aproximando-os dos campos das artes. A coleta realizada pela estudante Cristina Viana em uma Escola de Educação Especial em Deficiência Intelectual da Rede Estadual de Guarulhos contou com desenhos de jovens de treze a dezesseis anos. A temática recorrente aborda cenas do cotidiano familiar e da vivência escolar, além de anseios, como no desenho Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 62 de uma aluna de treze anos que desenhou um carro e justificou: “Esse é o carro da minha mãe, mas só quando ela conseguir comprar”. Enquanto isso, durante a coleta realizada em uma escola de Educação Infantil de São José dos Campos, a aluna Stela Costa notou uma diferença temática entre os papéis de gênero nos desenhos das crianças de cinco e seis anos: “entre os meninos, o tema mais recorrente são carros e, entre as meninas, paisagem”. Essa diferença também foi acentuada em uma Escola de Educação Infantil no Centro de São Paulo, sobretudo com meninas de cinco e seis anos com ascendência oriental, conforme retrata Deborah Sá: “Nota-se a evidenciação dos signos da feminilidade”. Além da pressão para a interação social, as crianças de outras nacionalidades recém-chegadas ao Brasil são estimuladas ao ingresso na cultura letrada, como o garoto de ascendência peruana, conforme relata Debora Sá: C. tem cinco anos e nasceu no Peru, desenhou as letras U, F, E e D e explica como as desenhou. Disse que seu pai comprou um caderno onde colore as letras. Nota-se uma postura quieta, fala baixo, tem forte sotaque e não entregou o desenho. O descaso e a indiferença com que muitos educadores dispensam ao desenho infantil possuem vínculo com a forma que enxergamos o currículo escolar, a educação nos anos iniciais, o papel da escola e, sobretudo, como interpretamos o que é dito, percebido e formulado por crianças. Incentivar a prática do desenho, ao contrário do que se supõe, não impede o letramento, o pensamento abstrato e a escrita; em verdade, oferece segurança para que a criança se familiarize com seus processos cognitivos e, ao fim, fomente sua perspicácia. Designar, projetar, planejar, sonhar Os desenhos das crianças apresentam perspectivas de um mundo interno e externo que envolve, por exemplo, o ambiente ou espaço em que vivem ou enxergam a sua maneira. Vinicius de Oliveira observa que as crianças também podem representar em seus Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 63 desenhos aquilo que desejam participar em suas vidas cotidianas para além do que está no papel. Através de seus desenhos, Mirela anseia que o seu mundo externo, em especial a escola, seja o seu ambiente familiar, talvez porque em casa não existam crianças com as quais possa brincar. O único espaço que tem para realizar e estimular brincadeiras e interações é a escola. Ela anseia encontrar outras crianças tendo todo o tempo para brincar. Essa é uma temática recorrente em seus desenhos, incluindo, sempre, as mesmas amiguinhas em cenários que se modificam. São tempos de agora esses das crianças sozinhas em suas casas, e, enquanto brinca, Mirela desenha os desejos de encontrar crianças e brincar. Nas coletas realizadas, notamos que a maioria das crianças entre 6 a 12 anos apresenta uma mesma temática: desenhos de casas com telhados, janelas e portas; ao redor das casas, aparecem árvores ou flores; há, ainda, um céu com nuvens e um sol. Essas crianças já estão na escola aprendendo a escrita e começam a abandonar o ato de desenhar – talvez essa temática prevaleça com desenhos assimétricos. Foi percebido, também, que os adultos tendem a desenhar essa mesma temática quando solicitados, uma vez que, assim como o Pequeno Príncipe, certa vez foram encorajados ao insucesso. Esse tipo de desenho pode ser aquele que marca a fase da escola e permanece nas suas lembranças até os dias de hoje. Desenhar, imaginar e contar ejamos a coleta de desenhos realizada por Erika Siotani. É V de uma criança de seis anos, chamada Julia, cujos desenhos foram produzidos em sua residência. Essa criança tem uma grande vivência com a natureza, pois reside em um sítio, o qual sempre é retratado em seus desenhos. Para cada desenho, existe uma história contendo sempre um “Fim” ao término. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 64 Segue, como exemplo, uma história feita pela Julia em um dos seus desenhos: A dona borboleta foi visitar seus amiguinhos vaga-lume, abre a porta vaga-lume quero entrar, a dona borboleta entrou e falou com seus amigos. O que vocês estão brincando? Estamos brincando de pega-pega, pode brincar, você é minha convidada, mas ela tinha que ir embora estava muito cansada de brincar. Tchau amigos. Fim. Figura 1. Julia, 6 anos. Essa maneira de a criança interpretar seu desenho manifesta o seu comportamento; essa criança gosta de brincar e incorpora no desenho a sua perspectiva de brincadeira. Em seus desenhos, Julia destaca muitos insetos, flores, pássaros, a natureza e apresenta o seu ambiente: uma área rural de São Paulo. A criança, através de seus desenhos, mostra-nos suas fantasias e imaginação, bem como demonstra a disposição. Cabe a nós termos a capacidade de ouvi-la e vê-la desenhar para que possamos compreender o processo imaginativo na elaboração de seus desenhos. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 65 Primeira infância As crianças da primeira infância desenvolvem desenhos dos momentos vividos, de seus desejos, do que mais gostam e de seus locais de preferência. Algumas desenham com traços ainda indefinidos; as mais velhas acumulam imagens do seu dia a dia, construindo modelos de representação, ressalta Lilia dos Santos. Já na segunda infância, as crianças repetem os seus traços vendo colegas desenhar, surgindo a brincadeira de competição “quem desenha o que”; enfim, um gosto por desenhar que pode cada vez mais ganhar vida e histórias. Esses traços, infelizmente, podem se perder com o passar dos anos, com as responsabilidades que a vida lhes encarrega. Mas, no fundo, elas nunca deixam de sonhar. Paola Donato e Ana Cardoso prosseguem suas percepções acerca das crianças da segunda infância: or estarem no período de transição da infância para a P adolescência – que pode ser conflitante entre o que eles querem e o que lhes é cobrado –, passam a ter mais vergonha de desenhar e se apegam muito aos supostos erros. Isso pode ser relacionado ao fato de a sociedade cobrar inconscientemente e até conscientemente o que julga ser perfeito; assim, as crianças reproduzem o que escutam no seu entorno. Mas o que é perfeição? Como se chega a ela? Será que ela existe? Isso pode ser um ponto negativo, pois as crianças, desde pequenas, reproduzem e querem a perfeição seguindo um padrão estabelecido. Ao saírem desse padrão, os desenhistas sentem-se inseguros e com vergonha – já que, nessa idade, eles param de desenhar o que sabem e passam a desenhar o que veem. Ao reproduzir a realidade em seu desenho e pelo fato de este não ficar tão parecido com o objeto desenhado, começam as cobranças interna e externa. Esse conjunto de fatores pode levar à falta de vontade de desenhar. Por isso, existem muitos adultos e até mesmo crianças que não desenham (e que deixaram de desenhar cedo). Podemos concluir que a sociedade é a maior fonte de inspiração para o desenho e, também, a maior vilã ao reprimir as produções das crianças. Fica claro que a repressão acontece em qualquer forma de expressão, inclusive no desenho. A livre expressão deveria ser vivida. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 66 O comportamento através da arte Larissa Fujisaka descreve as percepções pulsantes de sua ida a duas escolas de Educação Infantil: É incrível a história e experiência que cada criança traz consigo. A maneira que cada uma expressa suas ideias, sua criatividade, seus medos e suas vontades é encantadora. Quando se dá à criança um lápis e um papel, ela se sente livre para explorar e, acima de tudo, representar sua vida e realidade, sendo que a ingenuidade e a imaginação fazem com que, de uma maneira muito particular, se sintam capazes de desenhar tudo, deixando que um traço se transforme em um castelo e círculos, em sol, rostos, corpos e animais. O que podemos observar é que o traço da criança é tão admirável que passa a ser libertador: a disposição das imagens, as cores, as linhas e as formas (todas feitas sem nenhuma intervenção) formam um equilíbrio que combina todos os sentimentos. Sobre sua coleta, Juliana Hitzschky afirma: Os meninos (Caio 2 anos, Rafael 4 anos, Guilherme 5 anos, Rodrigo e Victor ambos com 8 anos) foram muito espontâneos. Embora tenham desenhado rapidamente, ficaram satisfeitos com suas produções. Porém, Nicole, 12 anos, única menina dessa coleção, demorou a concluir e, por algumas vezes, utilizou a borracha para corrigir os traços que julgava imperfeitos. Após explorarem o traço com o lápis 6B, disponibilizei outros materiais, como lápis colorido e canetinha hidrocor, Larissa Fujisaka descreve pertinentes observações sobre o que presenciou durante a coleta: Os pequenos (entre 3-4 anos) ainda têm forte influência da garatuja. Conforme vão crescendo, vão dando mais firmeza e racionalidade ao traço. Notamos claramente essa passagem ao acompanhar as idades: nos desenhos das crianças de até quatro anos, vemos que são mais presentes as formas abstratas4. Já nos maiores, as formas tomam mais precisão, mostrando que o desenho deixa de ser “infantili4 O termo “abstrato” utilizado aqui busca ilustrar a visualidade da imagem construída pela criança, mas não trata de um procedimento consciente desta. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 67 zado” e entra no mundo dos adultos, ou seja, acabam tornando-se estereótipos. É extremamente curioso como a personalidade é exposta através da arte. Quando demos os materiais para eles, todos entraram em seus próprios mundos: a maioria dos meninos do primeiro ano (6-7 anos) desenhou dinossauros, lutas, sangue e todos os amigos (meninos) juntos, representando a força e uma possível autoafirmação com relação ao sexo masculino [...]. Muitas crianças desenharam também a família unida e, em suas descrições, diziam o quanto gostavam dos pais e irmãos e quanto brincavam com eles. Notamos, também, que, em certos desenhos, há imagens soltas, sem a diferenciação de “chão” ou “céu”, “dia” ou “noite”, “chuva” ou “sol” [...]. Encontramos, em outros, figuras postas nas margens que não acompanham a linha do desenho, como o sol de ponta cabeça e a distribuição dos corpos pela folha, que não possuem uma ordem certa; isso se dá porque, nessa idade, como a criatividade está no seu ápice, a criança se vê livre para desenhar sem um ponto fixo; por isso, vai “girando” a folha ao redor de seu trabalho. Fujisaka acrescenta que o melhor momento aconteceu quando foram analisados os trabalhos e conversou-se com cada criança. “Pedimos a elas que falassem um pouco sobre os desenhos e contassem que história havia ali”. É emocionante entrar, através do desenho, na realidade de cada uma, descobrindo os medos e anseios de uma forma incrivelmente particular. Alguns traziam histórias e explicações engraçadas; outros inventavam tudo na hora. No entanto, cada um se expressava de um jeito único. Na primeira escola visitada, havia um garoto que preencheu quase toda a folha com lápis de cor, tendo um cuidado extremamente delicado em deixar algumas partes em branco, para dar mais sentido, para ele, ao seu desenho. Foi-lhe perguntado: “Por que você desenhou tudo isso?”. Ele respondeu: “Porque eu consigo”. Assim, dentro de tantos “porquês”, ele simplesmente conseguiu transmitir sua capacidade de uma maneira incrivelmente humilde. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 68 Figura 2. João Luiz, 5 anos: “Sol, porque é legal. O sol parece um ovo, eu acho bonita a gema dele”. A arte e a Educação Especial Compreender as necessidades de uma criança especial é tão fascinante quanto aprender com ela. É nesse contexto, livre e democrático, que as crianças da Educação Especial são capazes de ensinar o quanto podemos estar equivocados. Produzir arte foge a muitos postulados teóricos. Não se trata de execrar os conceitos necessários aos estudos; trata-se de aceitar a criação como forma de aprender, ampliar o que se aprende e entender a criança em sua essência. Estes trabalhos foram coletados em classe de Educação Especial em Deficiência Intelectual da Rede Pública Estadual, na cidade de Guarulhos, por Cristina Viana: Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 69 Figura 3. Fernando – 16 anos. Retrata animais (onça, leão, cachorro) e a mais nova aluna da classe, Maria Júlia. Figura 4. Fernando. Trata-se de um personagem de videogame, o qual ele não soube nomear. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 70 “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.” Stefane Silva coletou desenhos de estudantes não videntes: “É uma nova perspectiva sobre nossos olhares para a vida, muitas vezes apagada diante da imensidão de possibilidades que o mundo tem a nos oferecer”. Ao observamos sem sentirmos suas cores, seus tons e nuances, calamo-nos para deixar que o outro fale e nos dê pistas de outras percepções e aprendizagens. Lucas desenha o Gato de Botas frequentemente, e a hipótese é de que tenha memorizado, pelo tato, um livro com figuras em relevo. Como sabemos, quanto maior é o detalhamento de linhas, maior é a complexidade em compreender a imagem. Se tentarmos fechar os olhos e imaginar o toque de uma imagem em relevo, vamos perceber a dificuldade de percebê-la. Sem vê-la, percebemos nela inúmeras linhas, apontando para diversos lados. É possível que cheguemos à exaustão sem compreendê-la. Figura 5. Lucas – 13 anos. Gato de botas. Fernando Costa tem baixa visão e traz referências televisivas do personagem Goku do desenho animado Dragon Ball. Observemos como soluciona o personagem ao seu modo; o desenho é cultivado pela cultura televisiva. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 71 Figura 6. Fernando Costa – 21 anos. “Goku e uma mulher segurando um leão”. Ao lado direito, o personagem do desenho animado. Um ambiente envolvido nos desenhos A coleta desses desenhos foi feita na cidade de São José dos Campos, numa escola municipal de Educação Infantil; apresentamos um desenho da coleta. Nela, foram coletados desenhos do Infantil I (entre 3 a 4 anos) e do Infantil III (entre 5 a 6 anos) por Stela Costa. Foi observado que os alunos do Infantil III apresentaram maior prazer em desenhar, considerando que estes já exercem mais atividades de linguagem e matemática e desenham livremente, sendo o momento de criação mais espontâneo que obtido por eles. Uma descoberta interessante foi perceber que, em duas turmas, os desenhos e temas foram muitos parecidos, envolvendo acontecimentos da escola; entre os meninos, o tema mais recorrente são carros; entre as meninas, paisagens. Apenas um desenho ficou fora desse quadro. Uma menina de 6 anos apresentou um acontecimento diferente do rotineiro pessoal. Enquanto desenhava, contava o que havia ocorrido: todos os dias, ela vai de carro para a escola com o seu irmão e sua mãe; porém, nesse dia, o carro estava no conserto e, pela primeira vez, fora para Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 72 a escola de ônibus. Ela, então, desenhou o ônibus e, enquanto desenhava, contava os detalhes que este trazia e ia colocando no papel. Desenhou as rodas, o cobrador, o motorista, o fio que se puxa para solicitar a parada o ônibus, o lugar reservado para pessoas com deficiência. Ela estava maravilhada por ter andado de ônibus. Figura 8. Mirella. Do realismo fortuito ao realismo visual Nessa coleção, Juliana Hitzschky explorou as diversas fases dos desenhos de acordo com cada idade. Segundo o estudioso Luquet (1969), a criança tem traços diferentes em cada faixa etária; isso diferencia sua maneira de simbolizar o que desenha. Essas fases, segundo Luquet, são: realismo fortuito, realismo fracassado, realismo intelectual e realismo visual. Com essa coleção, pude perceber as fases propostas por Luquet nos desenhos de cada faixa etária, do realismo fortuito (desenha sem intenção, é a fase das garatujas) ao reEducação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 73 alismo visual (desenha o mundo de acordo com a sua vontade, mas também pode ocorrer submissão mais ou menos infeliz à perspectiva). Stela Costa. Inicialmente, para a criança, “[...] o desenho não é um traçado executado para fazer uma imagem, mas um traçado executado simplesmente para fazer linhas” (LUQUET, 1969, p. 145). Figura 9. Guilherme, 5 anos, desenhou um homem indo ao cinema com uma sacola de pipoca. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 74 Figura 10. Victor, 8 anos, desenhou uma caminhonete. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para Cristina Viana, a proximidade com crianças portadoras de necessidades especiais na última década possibilitou a oportunidade de aprender sobre elas e com elas. Incluir nessa aprendizagem de educador o caráter do desenho livre, objeto das Práticas Pedagógicas Programadas – Museu do Desenho, dimensionou o que é aprender. Deborah Sá atentou para a abordagem com a produção, criação e inventividade estética das crianças. De modo geral, tudo o que uma criança sente, deseja ou teme é considerado pelos adultos como supérfluo ou dissimulado. “Com as coletas que realizou, foi possível observar o quanto adultos tolhem o livre traçado, a escolha de cores e impõem o modo ‘certo’ de se desenhar”, acrescenta. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 75 Pouco a pouco, a criança é desestimulada, acreditando que não sabe desenhar “direito” por tantas respostas negativas diante da indiferença quando compartilha suas produções. Não raro, adultos tem receio e vergonha de mostrar para alguém seus “rabiscos” por fugirem do realismo e gráficos digitalizados; continuar a prática de desenhar é se permitir a expressar o movimento do corpo (porque desenho também é corporeidade). Desenhar é como dançar – há aqueles que têm tanta vergonha de seus movimentos que preferem fazê-los em um lugar reservado longe dos olhares curiosos. Vale arriscar trazer a público alguns passos e traços dessa caligrafia do improviso, coreografada em ritmos e sons que compõem um pouco de nós: o desenho. Stela Costa começou a trabalhar na educação infantil e perguntava porque todos os dias havia desenhos. Eu, na minha primária concepção, pensava em não colocar tantos desenhos para os meus alunos quando fosse professora; decerto, a escola privilegia as atividades de matemática e linguagem. Depois do projeto, pude enxergar o quanto os desenhos ajudam a criança a se expressar, a se comunicar, a desenvolver a coordenação motora e a criatividade e, principalmente, a brincar. Agora, ela observa as crianças com as quais trabalha e vê com quanto prazer desenham e o quanto elas desenvolvem desenhando. Quando for professora, incentivará inúmeros momentos para o desenho. Para Juliana Hitzschky: Ter a oportunidade de observar os desenhos das crianças de uma maneira que nunca havia visto antes e perceber que os desenhos possuem uma progressão de traços de acordo com a faixa etária das crianças é a instância desta pesquisa, uma vez que eles podem simbolizar sua realidade e explorar sua criatividade através do desenho. O desenho infantil compõe-se de elementos cognitivos das crianças que os criam e o quão necessário se faz essas criações durante suas vidas. O contato com as crianças, a partir do Museu do Desenho, mudou a maneira de olhar os desenhos infantis para Larissa Fujisaka. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 76 A expressividade gráfica de uma criança não é valorizada, porém é impressionante observar como a criatividade e os sentimentos são demonstrados de forma tão única e humilde. Dei-me conta do quão importante é trazer para a sala de aula atividades relacionadas a desenhos e expressão, para que, assim, cada criança seja capaz de desenvolver-se de forma livre. Estamos no terceiro ano do Museu do Desenho5 e essa é uma frente de pesquisa necessária para a construção de novas reflexões sobre a expressividade da criança, novas práticas na construção de experiências artísticas que valorizem o desenvolvimento de estilos individuais e a construção de documentação e acervo para as escolas, universidades, professores e crianças do nosso país. REFERÊNCIAS ALBANO, Ana Angélica. Espaço do desenho: a educação do educador. São Paulo: Loyola, 1999. ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. Nova escola para aprender a ler, escrever e contar. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/ fontes_escritas/1_Jesuitico/nova_escola_aprender.htm>. Acesso em: 5 fev. 2012. COX, Maureen. O desenho da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007. GOBBI, Marcia A. Foi respeitada a expressão da criança quando disse o que fez: Mário de Andrade e os desenhos das crianças pequenas. I Seminário Educação, Imaginação e as Linguagens Artístico-Culturais, 5 a 7 de setembro de 2005. Disponível em: <http://www.gedest.unesc.net/seilacs/crianca_marciagobbi.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2013. 5 São produções dos grupos de PPP em 2011, 2012, 2013 os seguintes blogs e o vídeo: Museu do Desenho. Disponível em: <http://museudodesenho.wordpress.com/>. Acesso em: 27 out. 2014. Museu do Desenho da Criança. Disponível em: <http://museudacrianca.wix.com/museudacrianca>. Acesso em: 27 out. 2014. Museu do Desenho. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=a0Cb3LQCUOE>. Acesso em: 27 out. 2014. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014 77 LOWENFELD, Viktor. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1977. LUQUET, G. H. O desenho infantil. Porto: Livraria Civilização, 1969. MEREDIEU, Florence de. O desenho infantil. São Paulo: Cultrix, 1974. ÍNDICE DE FIGURAS Introdução – A coletora - G, 5 anos Figura 1 – Julia, 6 anos. Figura 2 – João Luiz, 5 anos: “Sol, porque é legal. O sol parece um ovo, eu acho bonita a gema dele”. Figura 3 – Fernando – 16 anos. Retrata animais (onça, leão, cachorro) e a mais nova aluna da classe, Maria Júlia. Figura 4 – Fernando. Trata-se de um personagem de videogame, o qual ele não soube nomear. Figura 5 – Lucas – 13 anos. Gato de botas. Figura 7 – Fernando Costa – 21 anos. “Goku e uma mulher segurando um leão.” Ao lado direito, o personagem do desenho animado. Figura 8 – Mirella. Figura 9 – Guilherme, 5 anos, desenhou um homem indo ao cinema com uma sacola de pipoca. Figura 10 – Victor, 8 anos, desenhou uma caminhonete. Educação, Batatais, v. 4, n. 1, p. 55-78, 2014