Autoridade, Solidariedade e Formação dos
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Autoridade, Solidariedade e Formação dos
Autoridade, Solidariedade e Formação dos Estados Nacionais: as abordagens de Reinhard Bendix e Charles Tilly Luciana Teixeira de Souza Leão 1 Resumo Este artigo busca realizar uma síntese das abordagens de Reinhard Bendix e Charles Tilly sobre a emergência dos Estados nacionais na Europa, com atenção especial para a forma com que os autores exploram a interação entre autoridade e solidariedade. Além disso, apresenta as principais características da linha da sociologia política na qual os autores estão inseridos, qual seja, a sociologia histórico-comparada, destacando a interseção entre teoria e história e o foco dado aos processos de mudança social de longa duração que pautam as preocupações dos estudiosos deste campo. Por fim, conclui com uma breve discussão sobre a relevância desses estudos para a compreensão das dinâmicas sociais do mundo contemporâneo. Palavras-chave: autoridade, solidariedade, Estados nacionais, sociologia histórica. Authority, Solidarity and State-Making: Reinhard Bendix and Charles Tilly’s approaches Abstract This paper intends to analyze Reinhard Bendix and Charles Tilly’s approaches to the state-making process in Europe, with a special focus on the way that these authors explore the intersection between authority and solidarity. Also, it presents the main characteristics of historical-comparative sociology, the field of political sociology that these authors are affiliated to, highlighting the intersection between theory and history, and the focus on large social change processes that guide the efforts of scholars in this field. Finally, it finishes with a discussion about the relevance of these studies to understand the social dynamics of the contemporary world. Keywords: authority, solidarity, national states, historical sociology. 1 Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCS/UFRJ). 56 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 Introdução Os cientistas sociais, quando questionados sobre como é possível que uma infinidade de atores independentes, com interesses e motivações diferentes, possam interagir de formas múltiplas e ainda produzir algo próximo de uma ordem social, tendem a basear suas respostas em modelos que simplificam a complexidade da realidade social. Conforme aprendemos com Weber (2001), a infinitude da vida cultural requer um recorte analítico por parte do observador para que este possa ter qualquer pretensão de interpretação do mundo social. Nesse sentido, as categorias de Estado, sociedade e mercado, e os seus respectivos princípios orientadores – autoridade, solidariedade e interesse – representam uma das tentativas que os cientistas sociais utilizam para pensar a questão da ordem social nas sociedades modernas (Wolfe, 1989; Streeck & Schimitter, 1985). A sociologia política, em especial, por conferir centralidade ao entrelaçamento das formas de organização política com as relações sociais, apresenta diferentes modelos de interação entre as três categorias. Ainda que as interpretações divirjam em relação à centralidade analítica que atribuem para cada uma das categorias, ou em relação à ênfase nas complementaridades ou nos conflitos entre elas, os autores, em sua maioria, utilizam o Estado-nação como unidade de análise básica para estudar a ordem social moderna. A peculiaridade deste modelo reside na equação entre Estado e nação ou, em outras palavras, na sobreposição das fronteiras do Estado às da sociedade. O Estado nacional, contudo, não deve ser confundido com uma forma acabada de organização social, e deve ser interpretado apenas na medida em que se refere a um processo contínuo, sempre condicionado pelas singularidades históricas (Reis, 1998). Nesta linha, o objetivo do presente trabalho é realizar uma síntese das abordagens de Reinhard Bendix e Charles Tilly sobre a emergência dos Estados nacionais na Europa, com atenção especial para a forma com que os autores exploram a interação entre autoridade e solidariedade. Para tanto, inicialmente, apresento as principais características da linha da sociologia política na qual os autores estão inseridos, qual seja, a sociologia histórico-comparada. Procuro ilustrar a interseção entre teoria e história e o foco dado aos processos de mudança social de longa duração que pautam as preocupações dos estudiosos deste campo. 57 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 A partir desta exposição, perscruto a abordagem de Charles Tilly sobre a formação dos Estados nacionais na Europa. Demonstro que este autor prioriza a análise da construção da autoridade e vincula o desenvolvimento da cidadania aos encargos que os soberanos assumiram para custear os esforços de guerra. Em seguida, apresento a formulação elaborada por Bendix, salientando as proximidades e os distanciamentos em relação à perspectiva de Tilly. Abordo, em especial, a importância que este autor atribui à dimensão ideológica e ao entrelaçamento das categorias de autoridade e de solidariedade na emergência do Estado-nação. Por fim, realizo uma breve discussão sobre a relevância destes estudos para a compreensão das dinâmicas sociais do mundo contemporâneo. Sociologia Macro-histórica Comparada – a interseção entre teoria e história Desde o seu alvorecer no início do século XIX a produção sociológica é marcada pela preocupação com as causas e as consequências das grandes transformações sociais que moldam o momento histórico em que estão inseridos os cientistas sociais. Os sociólogos clássicos – Weber, Marx e Durkheim – por exemplo, concentraram grande parte dos seus esforços analíticos na compreensão dos processos de crescente burocratização, industrialização e urbanização característicos de suas épocas (Abrams, 1980). De forma semelhante, estudos relacionados ao desenvolvimento e à modernização dominaram a sociologia brasileira nas décadas de 50 e 60, período em que os impactos do projeto desenvolvimentista do Estado brasileiro já podiam ser plenamente observados (Villas Bôas, 2006). Tal constatação não é surpreendente se considerarmos que toda a construção de conhecimento das ciências sociais é historicamente condicionada. Em outras palavras, os cientistas sociais inspiram-se em experiências históricas concretas para estabelecer conceitos e generalizações, assim como os objetos e os problemas sociológicos são sempre históricos, pois são determinados pela realidade empírica na qual os autores estão inseridos (Reis, 1998). Portanto, como o universo social é inexaurível e está constantemente em mutação, todo o arcabouço teórico das ciências sociais está sujeito a reinterpretações e alterações, e depende de contextualizações históricas e culturais. Em dissonância com esta perspectiva, durante parte do século XX os cientistas sociais procuraram desatrelar-se de suas considerações históricas, e passaram a postular teorias e conceitos com pretensões universalistas, 58 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 desassociadas de tempo e espaço específicos, com o intuito de legitimar a sociologia como uma verdadeira ciência. Particularmente, a sociologia norteamericana das décadas de 50 e 60, liderada pelo funcionalismo estrutural de Parsons e pelo encantamento inicial com as técnicas de survey, foi invadida por aspirações aistóricas (Monsma, 1985). Neste contexto, a explicação para os amplos processos de mudança social passou a se restringir, por exemplo, a enumerar todas as condições que precisariam existir para que um Estado nacional emergisse, negligenciando o processo histórico típico de sua formação. No mesmo período, o debate acerca da modernização era dominado por teorias que traçavam trajetórias e etapas necessárias de mudanças políticas e econômicas para a superação da ordem social tradicional. Os estudos, em sua maioria, descreviam correlações entre variáveis, através das quais pré-requisitos eram estabelecidos, os quais, uma vez alcançados, levariam inevitavelmente à modernização, sem explicitarem nenhuma preocupação com o timing e com as sequências históricas características dos processos de mudança social (Bendix, 1996). As abordagens evolucionistas de modernização pautavam o modelo ideal de “moderno” e de desenvolvimento na experiência da Europa ocidental, descrevendo o caso europeu como um processo contínuo de racionalização do governo, ampliação da participação política e pacificação das massas. Modernização, portanto, passou muitas vezes a ser confundida com ocidentalização e a ser vista como um processo inevitável pelo qual todas as sociedades passariam, e não como um resultado contingente de fatores históricos que não se repetiriam (Tilly, 1975). Como reação a essas tendências, autores como Reinhard Bendix e Charles Tilly, entre outros, buscaram resgatar a importância da perspectiva histórica para a explicação dos processos e das estruturas sociais de longa duração. Segundo Skocpol (2004), os estudos sociológicos pautados na abordagem histórica apresentam as seguintes características: (i) levantam questões sobre estruturas e processos sociais situados concretamente no tempo e no espaço; (ii) priorizam as sequências históricas para explicar os resultados dos processos, ou seja, consideram que a ordem em que ocorrem os eventos afeta os seus resultados; (iii) atentam para a inter-relação de ações significativas e contextos estruturais para explicitar os resultados intencionais e não-intencionais das ações individuais e das transformações sociais; (iv) interessam-se pelas diferenças culturais e sociais das estruturas que analisam; e (v) não veem o passado como uma história com um único desenvolvimento possível ou um conjunto de sequências padronizadas, mas o compreendem como o resultado de um conjunto contingente de fatores. 59 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 Além destas características, o método comparativo configura-se como um aspecto marcante dos estudos da sociologia macro-histórica. Bendix (1996), por exemplo, defende o uso de comparações para a compreensão de uma estrutura pelo contraste com outra, e por lançar luz sobre as dimensões históricas e sociais singulares de cada sociedade. O autor, contudo, ressalta que, ao fazer comparações e contrastes entre fenômenos semelhantes que ocorreram em diferentes sociedades, o sociólogo não deve se esquecer da artificialidade das distinções conceituais e sempre deve confrontar os tipos-ideais com as evidências empíricas. De forma semelhante, Tilly (1984) propõe que amplas estruturas e processos sociais devem ser estudados através de grandes comparações e atenta para os cuidados necessários com esta opção metodológica. Segundo o autor, o pesquisador precisa focar em estruturas e processos específicos de um determinado sistema mundial e propor generalizações baseadas em considerações históricas destes sistemas. Com a intenção de encontrar regularidades nesses processos e estruturas específicos, o pesquisador deve atentar para um número pequeno de casos, observá-los cuidadosamente e certificar-se de que está comparando a mesma unidade de análise no tempo. O método comparativo pode ser usado para diferentes finalidades, variando conforme a relação entre evidência histórica e teoria que cada autor queira estabelecer. Tilly (1984) distingue quatro estratégias possíveis. Primeiro, a comparação abre a possibilidade de ressaltar a singularidade de cada estrutura histórica e sugerir o alcance limitado da teoria. Esta seria a estratégia adotada por Bendix. Em contraste, o objetivo da comparação pode ser encontrar uniformidades entre as unidades analisadas e, portanto, sugerir elaborações teóricas. Em terceiro lugar, o pesquisador pode contrastar a ocorrência de um fenômeno em diferentes estruturas em busca de padrões de variação. O estudo de Barrington Moore se encaixaria neste tipo, pois propõe uma teoria inspirada nas singularidades de cada caso para explicar por que algumas sociedades se tornaram ditaduras e outras, democracias. Por fim, a comparação pode ser totalizante, com a finalidade de contrastar a função de diferentes partes de um sistema para compreender o seu funcionamento global. Em suma, o esforço teórico-comparativo usado pela sociologia macrohistórica é oportuno tanto para buscar explicações teóricas e lançar luz sobre as particularidades históricas, como para estabelecer, a partir dos casos singulares, generalizações (Reis, 1998). Apresentadas as principais formulações propostas pela sociologia macrohistórica comparada, nas próximas seções explorarei os trabalhos clássicos sobre a 60 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 formação dos Estados nacionais europeus de Charles Tilly e Reinhard Bendix, dois autores expoentes neste campo. A formação dos Estados nacionais a partir da ótica de Charles Tilly A principal característica dos estudos de Charles Tilly sobre a formação dos Estados nacionais é a prioridade atribuída ao papel que as guerras e os preparativos para as guerras tiveram no processo de state-making na Europa. Toda a argumentação deste autor sobre a natureza e a estrutura dos Estados nacionais deriva do tipo de aliança formada entre os governantes e as classes dominantes, e do caráter da resistência dos cidadãos comuns à extração de recursos por parte do Estado para a organização do monopólio dos meios de coerção. Conforme demonstrarei a seguir, Tilly não concebe a construção do Estado e a da nação como processos concomitantes, e relaciona o desenrolar do segundo processo como consequência do primeiro. Tilly (1975, 1996) adota uma visão prospectiva para interpretar a formação dos Estados europeus, a qual consiste em eleger um ponto arbitrário de referência no tempo, no seu caso 1500 d.C., para, a partir das condições sócio-históricas específicas desta data, definir os fatores que levaram alguns estados a desaparecer e outros a se consolidar como Estados nacionais. O mérito desta abordagem é atentar para as formas alternativas de organização política possíveis naquele momento – como as cidades-estados, as federações e os impérios – e explicar porque o Estado nacional tornou-se a estrutura política dominante. Segundo o autor (1975), o território europeu em 1500 apresentava algumas condições comuns que permitiram que o processo de formação do Estado no continente fosse bastante uniforme. Em primeiro lugar, os europeus desfrutavam de uma relativa homogeneidade cultural, resultante da convergência de idiomas, leis, religiões, práticas administrativas e agrárias estabelecidas previamente pelo Império Romano. A homogeneidade da população súdita facilitou a unificação dos modelos organizacionais, a promoção da lealdade e da solidariedade entre os diferentes grupos populacionais e a implementação de um sistema de comunicação único, reduzindo os custos de construção do Estado. Segundo, o continente europeu era constituído por uma base camponesa desintegrada, submetida aos senhores de terras, responsáveis por fazerem a mediação entre a população agrária e o soberano. A fragmentação do campo obrigou os governantes a estabelecerem coalizões e a solucionarem conflitos com os senhores de terras, os quais se responsabilizavam por exercer coerção e 61 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 dominação sobre os camponeses. Além do mais, a riqueza produzida no mundo agrário permitiu o desenvolvimento de cidades especializadas no comércio, com grande concentração e acumulação de capital, fator que seria de importância fundamental para a emergência dos Estados nacionais. Por fim, a estrutura política descentralizada e uniforme obrigou os soberanos a subordinarem ou a destruírem resistências políticas locais para firmar o seu poder central. O autor destaca dois atores principais que se opuseram à formação dos Estados nacionais: as assembléias deliberativas das aldeias e diferentes setores da população, como pessoas insatisfeitas com as imposições tributárias, autoridades que foram forçadas a dividir ou a abrir mão de seus poderes, e os demais pretendentes ao poder soberano, como outros príncipes, bispos e cidades livres. Dadas as condições comuns do território europeu, Tilly questiona o que levou ao estabelecimento de uma organização política centralizada, controladora de um território bem-definido e detentora do monopólio dos instrumentos de coerção. Em outras palavras, quais as razões para que os estados europeus tenham convergido para variantes do Estado nacional e não para outras formas alternativas de governo? Segundo o autor (1996), é necessário compreender a interação entre a dinâmica do capital e a da coerção para responder a esta questão. Na Europa de 1500, a situação de guerra era permanente. Os governantes ou tentavam expandir seus territórios e aumentar a faixa da população e de recursos sob o seu comando, ou buscavam proteger suas terras de ataques militares de outros Estados. Guerras, no entanto, exigem a mobilização de amplos recursos para serem empreendidas e, por conseguinte, demandam eficientes mecanismos de extração de recursos da população. Assim, preparar-se para guerras também significava construir uma infraestrutura de tributação, abastecimento e administração para garantir recursos para os empreendimentos militares. Igualmente, caso o soberano fosse bemsucedido nas batalhas, a conquista de territórios implicava a administração das novas terras, ou seja, na extensão da extração de recursos, na distribuição de bens e serviços e até no julgamento de disputas para as novas populações súditas. Nesse sentido, Tilly constata que as estruturas organizacionais centrais dos Estados nacionais foram criadas como externalidades das práticas extrativas, isto é, o autor indica que não houve esforços deliberados e intencionais de implementação de um aparato estatal, mas que este foi constituído como uma consequência nãoplanejada da necessidade de recursos para as guerras. Os Estados nacionais conseguiram reunir em uma única instituição central as organizações administrativas, extrativas e militares. Outras formas de estados priorizaram apenas os esforços de guerra e negligenciaram a administração dos 62 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 territórios ou, no outro extremo, empenharam-se nas atividades comerciais e financeiras sem se preocuparem com a necessidade de formação de exércitos e a preparação para as guerras. Assim, não conseguiram centralizar a autoridade em um território bem-definido da mesma forma que os Estados nacionais. Conforme a escala das guerras aumentava, os recursos essenciais – homens, armas, provisões, e dinheiro – necessários para custeá-las multiplicaramse e os esforços extrativos não eram suficientes para cobrir todos os gastos. Por conseguinte, os governantes que tinham a possibilidade de tomar empréstimos de capitalistas conseguiram concentrar os meios de coerção em maior grau do que os soberanos que dependiam apenas da extração de recursos de suas próprias populações. Assim, Estados que possuíam cidades mercantis em seus territórios, com alta concentração e acumulação de capital, tinham maior disponibilidade de crédito e levaram vantagem na formação de exércitos e, consequentemente, nas guerras. É importante notar que o autor não trata esse processo como algo planejado ou inevitável, mas propõe uma explicação probabilística e explora as alternativas políticas para os Estados nacionais. Segundo Tilly, “é cômodo demais estudar a formação dos Estados como se fosse uma espécie de engenharia, onde os reis e seus ministros seriam os engenheiros projetistas” (1996:74), e lista quatro fatores que impossibilitariam tal “projeto”. Primeiro, os governantes não tinham em mente nenhum modelo de Estado específico, apenas vislumbravam manter e ampliar seus domínios. Segundo, os soberanos não planejaram a criação dos instrumentos organizacionais centrais dos Estados, estes surgiram como produtos secundários das necessidades mais imediatas relacionadas à guerra. Terceiro, o sistema internacional de Estados influenciou a trajetória dos Estados particulares, fator fora do controle dos soberanos. Por fim, o autor evidencia como a luta e a negociação com as classes sociais moldaram de forma significativa a forma dos Estados que finalmente emergiram. Neste ponto, parece fundamental explicitar como Tilly concebe a interação entre a estrutura de classes sociais e as suas relações com o Estado. Segundo o autor, a organização das forças militares, a cobrança de impostos, o policiamento, o controle da oferta de alimentos e a formação de pessoal técnico consistiram em atividades difíceis, onerosas e rejeitadas pela maior parte da população. A resistência a essas atividades aumentou conforme os esforços de guerra e a subsequente necessidade de recursos foram ampliados, o que obrigou os governantes a negociarem com a população para controlar a crescente oposição aos seus governos. 63 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 Daí o autor concluir que as atividades do Estado e as guerras tiveram profundas implicações para os interesses da população, para a ação coletiva e para os direitos dos cidadãos: A intervenção do Estado na vida cotidiana suscitou a ação coletiva popular, frequentemente sob a forma de resistência ao Estado, mas algumas vezes assumindo o caráter de novas reivindicações. Quando as autoridades do Estado tentaram obter recursos e aquiescência, elas, os outros detentores de poder e grupos de cidadãos comuns negociaram novos acordos sobre as condições em que o Estado podia extrair ou controlar, e os tipos de exigências que os detentores de poder ou o povo comum podiam fazer ao Estado (Tilly, 1996:161). Observa-se, portanto, que a negociação pelos direitos de cidadania deriva dos impactos dos esforços de guerra. Segundo Tilly, o governante foi compelido a negociar com a população para conseguir manter suas atividades militares e, no processo, os direitos e os deveres dos cidadãos, assim como os do Estado, foram estabelecidos. O mesmo argumento que o autor utiliza para explicitar os mecanismos que estabeleceram o aparelho administrativo estatal é aplicado para explicar a instituição da cidadania: “O núcleo do que hoje denominamos ‘cidadania’, na verdade, consiste de múltiplas negociações elaboradas pelos governantes e estabelecidas no curso de suas lutas pelos meios de ação do Estado, principalmente a guerra” (Tilly, 1996:164). Em outras palavras, Tilly descreve a obtenção dos direitos de cidadania como encargos não-planejados que os governantes tiveram que assumir para manter e aumentar a empresa da guerra. Similarmente, o autor ilustra a passagem do governo indireto, característico das sociedades tradicionais, para o governo direto, típico dos Estados nacionais, a partir dos esforços de concentração da coerção. Segundo Tilly, um dos fortes incentivos que os soberanos tiveram para estabelecer governos diretos teria sido a necessidade de formar exércitos permanentes recrutados entre a população nacional. O recrutamento doméstico, alternativo à contratação de mercenários, seria uma estratégia para reduzir os custos militares. Igualmente, como os poderes intermediários dificultavam as atividades do Estado e estabeleciam limites ao volume de recursos extraíveis das populações subordinadas, os governantes procuraram eliminar as esferas autônomas de poder para estabelecer uma relação direta com seus súditos. O processo de instalação do governo direto foi acompanhado por esforços de homogeneização da população. A expulsão de minorias culturais e a imposição de um único idioma são exemplos de ações dos governantes nesse sentido. Segundo 64 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 Tilly, as tentativas de homogeneizar a população foram tomadas para facilitar que os cidadãos comuns se identificassem com os seus governantes e porque estes perceberam que a unidade cultural aumentaria as probabilidades de as pessoas se unirem contra as ameaças externas por terem uma identidade comum. Assim, a construção da identidade nacional esteve atrelada aos contrastes estabelecidos com os inimigos externos, razão pela qual o autor se refere a um processo de homogeneização dentro dos Estados e de diferenciação entre Estados característico da construção do Estado nacional. A relação direta entre o Estado e a população implicou que os governantes passassem a ser responsáveis por uma série de provisões para o povo – como moradia, alimentos, educação e justiça – que antes eram de responsabilidade das esferas locais e privadas. Este fato, adicionado às negociações com a população pelos direitos de extração de recursos, levou, conforme já mencionado, os governantes a se comprometerem com uma série de obrigações e provisões de bens públicos, além de garantir direitos individuais e instituições representativas. Nota-se, portanto, que para Tilly a construção do Estado precede a construção da nação. Segundo este autor, inicialmente, o processo de consolidação do controle territorial, diferenciação do governo em relação a outras formas de organizações, centralização e coordenação interna, constituiu os Estados. A construção nacional surgiu apenas pela necessidade de o Estado angariar o consentimento de seus membros para uma extração mais intensa de recursos que, por sua vez, colaborou para a emergência dos Estados nacionais. Na próxima seção, apresentarei a tese de Reinhard Bendix sobre a formação dos Estados nacionais. Para tanto, após uma exposição inicial das ideias deste autor, adotarei uma estratégia comparativa de suas proposições com as de Tilly para, a partir das divergências e das semelhanças entre os autores, tornar a proposta de Bendix mais clara. Reinhard Bendix e a Construção Nacional – proximidades e distanciamentos em relação à formulação de Charles Tilly Em Construção Nacional e Cidadania, Reinhard Bendix combina um detalhado esquema conceitual com considerações históricas para explicar o processo pelo qual autoridade e solidariedade se entrelaçam na construção do Estado-nação. De forma similar a Tilly, este autor concentra-se no processo através do qual uma ordem política fragmentada e dispersa, característica das sociedades medievais, é gradualmente transformada em uma organização política centralizada. No entanto, seu estudo é pautado pela preocupação em evidenciar como a 65 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 centralização e burocratização da autoridade pública e a extensão da cidadania configuraram-se como movimentos concomitantes e interdependentes (Reis, 1996). Neste ponto, sua explanação afasta-se daquela proposta por Tilly, que não considera os dois processos como simultâneos. Os conceitos utilizados por Bendix para explicar a formação do Estado-nação têm forte inspiração em Weber. O autor utiliza a distinção weberiana entre autoridade, como categoria que se refere a relações de mando e obediência – o poder formalmente instaurado pelo Estado – de solidariedade, ou associações, como categoria que envolve afinidade de interesses e reciprocidade de expectativas. Defende, por conseguinte, que “do ponto de vista analítico, a autoridade e a associação constituem esferas de pensamento e de ação interdependentes, mas autônomas, que coexistem de uma forma ou de outra em todas as sociedades” (1996:51). A partir desta distinção, o autor sugere que uma ordem dura enquanto sua legitimidade for compartilhada por aqueles que exercem a autoridade e aqueles que estão subordinados a ela e, portanto, depende das relações sociais derivadas da esfera da união de interesses. Com o respaldo deste quadro teórico, Bendix inicialmente examina o processo de construção da nação a partir da ótica da expansão da cidadania para as classes mais baixas. Segundo o autor, nas sociedades pré-modernas, a autoridade era baseada em uma forma de dominação pautada na posição hereditária e espiritual. Esta atribuição de status, que determinava o controle da terra e a participação nos negócios públicos, excluía grande parte da população da vida política e econômica. Além disso, na ordem tradicional, as relações de autoridade entre a aristocracia e seus subordinados eram sustentadas pelo senso de responsabilidade com os súditos, assim como pela obediência e a lealdade destes à classe dominante. O processo de formação dos Estados nacionais é marcado pelo surgimento de uma ordem pautada em novas reciprocidades de direitos e obrigações e inspirada pela disseminação de ideias igualitárias e pelo processo de industrialização. Na ordem moderna, as relações de classe passaram a ser orientadas por um tipo de “autoridade individualista”, baseada em vínculos impessoais e na lógica meritocrática. A nova ideologia somada à crença nas forças invisíveis do mercado determinou, em um primeiro momento, que apenas aqueles bem-sucedidos economicamente poderiam ter acesso aos direitos de cidadania. Com o desenvolvimento da economia de mercado e da indústria, a percepção de alienação política da classe trabalhadora aumentou, levando as classes baixas a reivindicarem o seu reconhecimento na comunidade política. Nesse sentido, a construção da 66 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 nação esteve atrelada aos processos políticos através dos quais a codificação dos direitos e dos deveres dos membros considerados cidadãos foi gradualmente estendida às classes inferiores. É interessante notar a relação entre igualdade de cidadania e desigualdade econômica e social proposta por Bendix. Na medida em que a igualdade formal perante a lei não levou em consideração as grandes desigualdades sociais que existem em todas as sociedades, diferentes classes possuíam maior ou menor possibilidade de usufruir dos direitos cívicos. Como tentativa de corrigir essa desigualdade, os indivíduos associaram-se aos seus semelhantes a fim de apresentarem suas reivindicações da forma mais efetiva possível. A ironia está no fato de que a formação dessas várias associações tendeu a repercutir e a intensificar as desigualdades da estrutura social, ou seja, Bendix constata que a busca pela igualdade formalmente instituída deu origem, ou trouxe à tona, novas desigualdades. Concomitantemente à extensão da cidadania, a burocratização da autoridade pública moldou a emergência dos Estados europeus. Segundo Bendix, esse processo é marcado pela substituição de uma autoridade governamental, ligada ao poder hereditário e à propriedade, por uma burocracia estatal moderna, fundada nos princípios de hierarquia, impessoalidade e regulamentação legal e administrativa. Nesse novo contexto, o exercício político não é mais atrelado às disputas pela distribuição de poder soberano, como na ordem tradicional, e passa a ser relacionado às lutas pela divisão do produto nacional e pela influência sobre as políticas públicas que afetam essa divisão. Segundo o autor, o acesso crescente ao emprego púbico e as tentativas de interferência sobre a implementação das políticas governamentais, características típicas da burocracia pública moderna, são uma contrapartida para a extensão da cidadania. Isso porque, como todos os cidadãos são iguais perante a lei, as qualificações educacionais devem ser o único critério de diferenciação da possibilidade de emprego público. Similarmente, com a conquista do direito de associação e a ampliação da atuação do Estado, os indivíduos procuram organizarse em “grupos de interesse” para tentar influenciar a distribuição dos recursos públicos. Desta forma, na visão de Bendix, por um lado, a concessão dos direitos de cidadania compensa os indivíduos pelo consentimento em serem governados pelas leis impessoais da comunidade política nacional e, assim, serve de base para a legitimidade do exercício da autoridade moderna. Por outro, a burocracia pública impessoal e hierárquica reflete os efeitos da expansão da cidadania e da estrutura moderna de classes. Os dois processos são indissociáveis e se determinam 67 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 mutuamente. Conforme já mencionado, esta concepção é diferente daquela proposta por Tilly, que concebe a construção do Estado e da nação como processos separados. Um segundo ponto de divergência entre as formulações destes autores diz respeito ao tratamento que concedem ao exercício e à formação da autoridade dos Estados nacionais. De acordo com Tilly, a acumulação e a concentração dos meios de coerção nas mãos dos governantes e a centralização da estrutura administrativa são os dois processos centrais que caracterizam a mudança para a estrutura de poder típica dos Estados modernos. Em seu caso, o exercício da autoridade é analisado, prioritariamente, pela capacidade de uso da força que os governantes adquiriram, ou perderam, no processo de state-making. Bendix, por sua vez, atenta para o poder formalmente instaurado, mas prioriza a necessidade de legitimar esse poder. Em Kings or People, livro dedicado ao estudo dos padrões de autoridade, Bendix relaciona autoridade não apenas à capacidade de exercer coerção, mas também às justificativas que buscam tornar o uso da força legítimo. Assim, por exemplo, a autoridade dos reis estaria relacionada não somente ao monopólio dos meios de coerção em seus territórios, mas principalmente à crença na inviolabilidade de seus poderes e na legitimidade sagrada de suas posições. De forma similar, a legitimidade dos mandatos populares, típica dos Estados nacionais, teria sido alcançada através do apelo a construções simbólicas, como “nação” e “soberania do povo”, e pelo estabelecimento de uma identidade nacional politizada que legitimou o controle civil dos órgãos do Estado. Acredito que a diferença entre o foco nos meios de coerção, característico dos estudos de Tilly, e na necessidade da legitimidade da autoridade, questão prioritária para Bendix, deriva de uma terceira divergência entre os autores: a relevância analítica dada às ideias e aos interesses para interpretar as ações humanas e as transformações sociais. No esquema conceitual elaborado por Bendix, é a dimensão ideológica que viabiliza a constituição da comunidade política ao exercer uma função legitimadora e atribuidora de sentido. Dois exemplos de argumentos de sua obra ajudam a explicitar a importância da ideologia no pensamento de Bendix. O primeiro diz respeito à interpretação da construção da nação na formação dos Estados europeus. Para Bendix, o principal fator catalisador que permitiu o desenvolvimento da cidadania foi a disseminação da ideologia igualitária. Segundo o autor, as ideias são essenciais porque norteiam a ação dos indivíduos e a reciprocidade de expectativas em uma ordem social. Nesse sentido, a legitimidade da autoridade tradicional só passou a ser questionada quando a disseminação das 68 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 ideias iluministas levou a população a pôr em xeque a reciprocidade entre direitos e obrigações da ordem aristocrática. A substituição dos laços tradicionais pelas identidades nacionais, atreladas aos direitos de cidadania, foi o que viabilizou a legitimidade da ordem política moderna. Cabe notar que, na concepção de Bendix, a industrialização é relevante mais porque facilita a difusão das ideias igualitárias do que pelos seus efeitos econômicos. Segundo o autor (1996:99), o modo de produção industrial está relacionado à “alfabetização dos trabalhadores, à divulgação de material impresso entre eles, à concentração física do trabalho, à maior mobilidade geográfica, e à despersonalização do emprego”, fatores que, sob a influência das ideias de igualdade, incitam a mobilização da população. Bendix, dessa forma, afasta-se das teorias de transformação política que qualificam a comunidade política moderna como resultado direto das mudanças econômicas nos modos de produção capitalista. O segundo exemplo pode ser observado em Kings or People. Nesta obra, Bendix parte dos diferentes sistemas de crenças para explicitar as bases e as justificações do poder legítimo em cada civilização. O autor recorre aos fundamentos do Cristianismo, do Confucionismo e do Islamismo para interpretar as diferenças entre as estruturas de autoridade na Europa, na China e no mundo muçulmano. Demonstra que as três tradições políticas recorrem ao apelo a uma ordem superior para legitimar o exercício da autoridade, e que a diferença entre elas decorre de interpretações distintas da relação entre poder transcendental e autoridade, as obrigações dos súditos e as ideias de poder superior. Segundo o autor, é importante compreender as cosmologias religiosas nas quais se legitimou a autoridade política, pois elas afetam todo o desenvolvimento da estrutura de autoridade posterior, ou seja, a compreensão dos fundamentos da legitimidade política que caracterizam uma sociedade em determinada época é fundamental para interpretar a ação dos indivíduos e compreender as transformações sociais subsequentes. Tilly (1984:87-96) é bastante crítico quanto à prioridade dada por Bendix às ideiass e às crenças para explicar o processo de emergência dos Estados nacionais e as diferentes estruturas de autoridade. De acordo com este autor, com tal escolha analítica Bendix negligencia atributos fundamentais da formação dos Estados europeus, como os problemas relacionados com guerras, orçamentos, impostos e reconciliação de interesses conflitantes que os governos tiveram que enfrentar e que afetaram a estrutura de poder resultante. Em particular, quanto ao livro Kings or People, no qual Bendix analisa as mudanças políticas a partir da ótica das classes dominantes, Tilly critica a negligência com os impactos das ideologias sobre a ação 69 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 e a mobilização de pessoas comuns que, segundo o autor, foram de importância central para os padrões de autoridade estabelecidos. Não obstante as diferenças expostas acima, os estudos de Tilly e Bendix compartilham de muitas características em comum. A mais evidente é a prioridade atribuída à perspectiva histórica. Aproximam-se também na medida em que identificam que a peculiaridade dos Estados nacionais europeus reside na combinação de uma dominação burocrática com o consentimento social baseado na cidadania. Assim, embora os autores proponham percursos distintos para o desenvolvimento da autoridade e da solidariedade, as categorias alcançam o mesmo ponto final de entrelaçamento na forma dos Estados-nação. Outra semelhança é a proposta de uma explicação probabilística para o processo de formação dos Estados Nacionais. Como os dois autores moldaram seus argumentos como uma resposta crítica às generalizações abstratas e às teorias deterministas da modernização, a ênfase na contingência dos eventos e da importância das sequências históricas é reforçada diversas vezes em suas obras. Tilly, por exemplo, utiliza a análise prospectiva com a intenção de evidenciar a contingência de fatores históricos que levaram à emergência dos Estados nacionais. Esta escolha é justificada por uma contraposição direta à “falácia do determinismo retrospectivo” das teorias que partem do resultado histórico, os Estados nacionais contemporâneos, e procuram no passado as causas de sua formação. Bendix, por seu turno, em defesa da importância das sequências históricas, critica as teorias evolucionistas nos seguintes termos: Atualmente, há muito mais incerteza sobre os objetivos da mudança social e mais consciência de seus custos. A crença na universalidade dos estágios evolutivos foi substituída pela compreensão de que o momentum dos eventos passados e a diversidade das estruturas sociais conduzem a diferentes caminhos de desenvolvimento, mesmo quando as mudanças de tecnologia são idênticas (Bendix, 1996:35). O uso do método comparativo também é uma característica comum das obras destes autores, ainda que Bendix utilize os contrastes para ressaltar a singularidade das experiências históricas e Tilly, com uma intenção explicativa. Com a apresentação dos estudos de Tilly e Bendix, clássicos da sociologia histórico-comparada, parece lícito afirmar que esta perspectiva nos fornece uma sólida alternativa tanto para as teorias que propõem trajetórias típicas e etapas necessárias de modernização política, quanto para as abordagens funcionalistas sobre a formação dos Estados nacionais. No entanto, para defender a importância desta abordagem para a produção sociológica, ainda é necessário demonstrar a 70 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 relevância da sociologia-histórica comparada para a compreensão de dinâmicas sociais contemporâneas, exercício realizado na próxima seção. A relevância dos estudos da sociologia histórico-comparada para entender o mundo contemporâneo Ao longo do trabalho, destaquei as características e os atributos positivos da perspectiva histórica para os estudos de processos e estruturas sociais, e atentei pouco para as críticas que usualmente são dirigidas à elaboração teórica da sociologia histórico-comparada. Portanto, neste ponto, penso ser necessário expor dois questionamentos recorrentes dirigidos aos estudos da abordagem histórica na sociologia para, a partir deles, defender a importância heurística desta perspectiva para as análises de estruturas e de processos característicos da ordem social contemporânea. Em primeiro lugar, destacaria a crítica realizada por Goldthorpe (2000) dos riscos inerentes ao uso das evidências históricas para estabelecer generalizações teóricas. Segundo este autor, os estudos da macro-sociologia histórica baseiam-se em relatos obtidos de fontes secundárias – em geral, trabalhos de historiadores – que não podem ser considerados dados objetivos. Como as interpretações sobre um mesmo evento histórico podem variar muito, a seleção de qual fonte será usada pelo autor tende a ser muito arbitrária e a variar conforme o ponto que se queira estabelecer. Portanto, na visão de Goldthorpe, os estudos que pretendem propor construções teóricas a partir de uma visão positivista das fontes históricas sempre terão aplicabilidade limitada. Acredito que as críticas de Goldthorpe procedem na medida em que concordo que o uso de exemplos históricos para testar hipóteses teóricas não é um método de validação para explicações sociológicas. No entanto, penso que esta crítica não desqualifica o uso da perspectiva histórica, apenas atenta para a necessidade de uma exposição honesta dos limites das fontes secundárias, dos critérios de escolha entre as diferentes interpretações históricas e, principalmente, do arcabouço teórico sobre qual o pesquisador se apoia para analisar as evidências. Em segundo lugar, a relevância dos estudos históricos de estruturas e processos sociais para pensar questões do presente é muito questionada. Em especial, a importância heurística de trabalhos como os de Bendix e Tilly, que atentam para a particularidade e a contingência da sequência histórica de formação dos Estados nacionais, com foco em processos que aconteceram há séculos atrás, é alvo de muitas objeções. 71 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 Essas críticas estão relacionadas à percepção de que a abordagem histórica, por ser sempre singular, estaria presa às particularidades e seria incompatível com a elaboração teórica. Acredito, contudo, que as obras estudadas neste trabalho comprovam que tal objeção não tem procedência. Ambos os autores procuram transcender a singularidade do contexto histórico que analisam para propor o refinamento de conceitos, teorias e métodos sociológicos existentes. É este o objetivo de Bendix, por exemplo, quando propõe a reavaliação das categorias de tradição e modernidade, formuladas a partir da experiência ocidental, para ajudar a compreender o processo de mudança social em outras partes do mundo. Assim, se hoje parece trivial a noção de que a modernização é um processo contínuo, em que elementos tradicionais e modernos se combinam de forma singular em cada sociedade, é porque estudos como os de Bendix nos ajudaram a perceber a relevância das sequências e das particularidades históricas para o entendimento dos processos sociais. Além disso, é importante lembrar que é a partir da compreensão dos processos históricos que podemos dar sentido à ordem social em que vivemos. Tilly (1984) atenta para este ponto ao destacar como a criação do sistema mundial de Estados nacionais e a formação do sistema capitalista global são os dois grandes processos que caracterizam a nossa época. Para este autor, portanto, a validade de qualquer elaboração teórica sobre amplas estruturas e transformações observáveis no mundo contemporâneo deve levar em conta, direta ou indiretamente, a dinâmica desses dois processos. Outro aspecto relevante das formulações teóricas propostas pelos estudos históricos diz respeito às possibilidades que abrem para inovações metodológicas. Nesse sentido, uma das apropriações mais estimulantes da perspectiva da sociologia histórico-comparada é aquela feita por De Swaan (1988). Com o intuito de explicar o processo de coletivização do Estado de bem-estar social, o autor funde considerações históricas com a teoria da ação coletiva. Esta estratégia metodológica é interessante, pois combina uma explicação para as ações e as motivações dos agentes com o contexto histórico em que os interesses e os problemas da ação coletiva estão inseridos. Assim, De Swaan parte de diferentes níveis de “figuração humana” – apropriando-se do conceito de Norbert Elias – para explicitar os resultados agregados do jogo de interesses e ações das classes superiores em cada estágio evolutivo. Com o objetivo de explicar a formação dos Estados de bem-estar social, o autor parte da premissa de que a pobreza representa um problema de ação coletiva caracterizado pela interdependência entre as classes dominantes e os pobres. Em diferentes períodos históricos, a percepção e o balanço dessa dependência mútua 72 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 se alteram. Inicialmente, a impressão de que a situação precária das classes pobres estaria afetando o bem-estar das elites incentivou ações individuais, como a caridade. No entanto, o resultado agregado das ações isoladas de membros das classes dominantes criou um problema de ação coletiva no nível das cidades, o que incentivou, por sua vez, o estabelecimento de abrigos. Conforme o grau e a consciência de interdependência e as incertezas sobre a eficácia das ações paliativas aumentaram, as elites tiveram mais incentivos para apoiar a ação do Estado como solução para a distribuição eficaz de alguns serviços sociais. Além deste exemplo da obra de De Swaan, cientistas sociais de filiações acadêmicas distintas têm usado o recurso histórico de formas inovadoras para explicar diferentes fenômenos contemporâneos, motivados pela perspectiva de que estes só podem ser entendidos a partir da compreensão do processo histórico que deu forma às dinâmicas sociais atuais (Evans, Rueschmeyer & Skocpol, 1985; Streeck & Thelen, 2005; Pierson, 2004; Lange & Rueschmeyer, 2005; entre outros). É importante ressaltar que, com a intensificação da globalização, a sociologia histórico-comparada em geral e os estudos sobre a formação dos Estados nacionais em particular readquiriram importância fundamental. A crescente movimentação de pessoas, produtos, tecnologias e ideias põe em xeque a soberania dos Estados nacionais que já não monopolizam as mesmas funções e os mesmos poderes de antes. As noções de consenso e legitimidade política, outrora circunscritas às fronteiras nacionais, com o aumento da interconectividade global já não são tão claras (Held, 1993). Igualmente, hoje, a definição e a implementação de políticas públicas, antes exclusividade dos órgãos do Estado, são tarefas compartilhadas com atores da sociedade civil (Reis, 2005). A partir destas observações, somos levados a questionar se estaríamos observando um rearranjo entre autoridade e solidariedade diferente daquele típico dos Estados nacionais. Para responder a esta pergunta é imprescindível olhar para o passado histórico e lembrarmos como os Estados nacionais foram consolidados (Reis, 2004). O arcabouço teórico proposto por Bendix e Tilly, nesse sentido, nos ajuda a refletir sobre o processo histórico típico de formação do Estado-nação, além de nos fornecer ferramentas analíticas essenciais para interpretar as mudanças sociais que estamos observando no presente. 73 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 Considerações finais Neste trabalho, procurei fazer uma síntese das abordagens de Reinhard Bendix e Charles Tilly sobre a emergência dos Estados nacionais na Europa. Demonstrei que, para Bendix, o processo de construção do Estado-nação envolve concomitantemente a burocratização da autoridade pública e o reconhecimento legal de direitos de cidadania aos membros da comunidade política. Já para Tilly, a construção do Estado e da nação são dois processos separados. O autor prioriza a formação do Estado e vincula o desenvolvimento da cidadania aos encargos que os soberanos assumiram para custear os esforços de guerra. Embora os autores proponham caminhos diferentes para a formação dos Estados nacionais, busquei demonstrar que a principal semelhança em suas obras é a conclusão de que a peculiaridade dessa forma de organização política reside na combinação de uma dominação burocrática com o consentimento social baseado na cidadania. Dentre as principais divergências entre os autores, destaquei a importância dada por Bendix à dimensão cultural e ideológica para a formação dos Estados nacionais, fatores que não são centrais para Tilly. Ao longo do trabalho, igualmente, considerei ser profícuo apresentar as principais características da sociologia histórico-comparada, campo em que os dois autores estão inseridos, para contextualizar as suas explicações, assim como para destacar a importância da perspectiva histórica para a prática sociológica. Penso que esse exercício foi fundamental para evidenciar as possibilidades de interseção entre teoria e história, que muitas vezes são vistas como incompatíveis, mas que podem nos dar insights poderosos para interpretar o mundo social. Referências bibliográficas ABRAMS, Philip. 1980. Historical Sociology. New York: Cornell University Press. BENDIX, Reinhard. 1996. Construção Nacional e Cidadania. São Paulo: Edusp. _________. 1978. Kings or People – Power and Mandate to Rule. Berkeley: University of California Press. DE SWAAN, Abram. 1988. In Care of the State – Health Care, Education and Welfare in Europe and the USA in the Modern Era. Cambridge: Cambridge Polity Press. 74 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Volume 9, número 1, agosto 2010 EVANS, Peter; RUESCHMEYER, Dietrich & SKOCPOL, Theda. 1985. Bringing the State Back In. Princeton, NJ: Princeton University Press. GOLDTHORPE, John. 2000. 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