1 – INTRODUÇÃO
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1 – INTRODUÇÃO
RELATÓRIO LÍBIA EPPG Escola de Políticas Públicas e Governo IUPERJ Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro UCAM Universidade Candido Mendes Rio de Janeiro, junho/julho de 2007 R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 1 1 – INTRODUÇÃO ............................................................................................. 3 1.1 - O Risco líbio...................................................................................................... 3 1.2 – Apresentação ................................................................................................... 6 2 - PANORAMA POLÍTICO ............................................................................. 16 2.1- Introdução ........................................................................................................ 16 2.2- Breve História da Líbia.................................................................................... 21 2.3 - Desafios Contemporâneos do Sistema Político Líbio ................................ 33 2.4 - O Componente Internacional da Política Líbia ............................................ 35 2.5- Conclusões ...................................................................................................... 43 3. PANORAMA ECONÔMICO......................................................................... 45 3.1 Breve história econômica ................................................................................ 45 3.2 Produção, investimento e emprego................................................................ 51 3.3 Inflação, Câmbio, Juro, Crédito e Finanças Públicas ................................... 55 3.4 Setor externo..................................................................................................... 58 3.5 Previsões e incertezas críticas........................................................................ 61 3.6 O Ambiente de Negócios ................................................................................. 62 4 – PANORAMA ENERGÉTICO...................................................................... 67 4.1- Introdução e Pequeno Histórico da Indústria ............................................... 67 4.2- Geologia do Petróleo ...................................................................................... 76 4.3 – Petróleo .......................................................................................................... 79 4.3.1 – Pequena História da Indústria do Petróleo............................................................. 79 4.3.2 – Produção e Reservas ............................................................................................. 90 4.3.3 – Evolução Prevista da Oferta................................................................................... 93 4.3.4 – Presença da PETROBRAS na Líbia ...................................................................... 94 4.3.5 – Downstream............................................................................................................ 95 4.4. -Gás Natural ..................................................................................................... 98 4.5 Energia elétrica na Líbia ................................................................................ 105 5 – PANORAMA MILITAR-ESTRATÉGICO.................................................. 115 5.1-Questões Gerais de Defesa Nacional ........................................................... 115 5.2- O Exército....................................................................................................... 117 5.3- A Força Aérea ................................................................................................ 119 5.4- Marinha........................................................................................................... 120 5.5- A Milícia Popular............................................................................................ 121 5.6 – Mulheres nas Forças Armadas................................................................... 122 5.7- Conclusões .................................................................................................... 123 6. EQUIPE...................................................................................................... 126 R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 2 1 – INTRODUÇÃO 1.1 - O RISCO LÍBIO A Líbia coloca em questão a utilidade das avaliações de risco político como fator determinante para a indústria do petróleo em suas decisões de alocação de investimentos. Apesar de tudo indicar que o atual ciclo político — iniciado há longos 38 anos, sob o comando inconteste de Muammar Gadhafi — já iniciou seu ocaso, ninguém é capaz de prever com segurança como será seu desdobramento no futuro a médio prazo (por exemplo, daqui a cinco anos). A despeito de Gadhafi não ser tão velho assim, de acordo com os rumores e especulações correntes, seu estado de saúde não é bom, conjecturando-se a partir de suas raras aparições, em público e na TV, qual tipo de enfermidade lhe acometeu. O fato é que já se discute abertamente quem será o sucessor do Líder, não obstante não existirem regras claras e constitucionalizadas sobre como se deve dar sua substituição? Certamente não será por qualquer tipo de eleição com participação popular. Se Gadhafi não indicar claramente seu preferido, provavelmente será ouvido um subconjunto da Comissão Geral, do Congresso Geral do Povo, máxima instância política do Estado líbio, mas as regras de decisão a serem seguidas são desconhecidas. Além disso, há uma complicação: Gadhafi há muito tempo não ocupa qualquer cargo no Executivo ou no comando de um partido hegemônico. Exerce uma espécie de liderança “virtual” que, algum dia, terá de ser substituída por uma liderança de fato, institucionalizada ou não. Mas quem tem credenciais para assumir tal posição de comando do país? Os quadros das Forças Armadas já sofreram vários processos de “limpeza” de suspeitos de envolvimento em tentativas de golpe de Estado e de atentados contra a vida do Líder, promovendo-se assim, em paralelo, uma renovação constante dos comandos militares. Por conseguinte, não há liderança castrense com projeção suficiente para se postular como candidato à sucessão. Por outro lado, a sociedade civil — onde os partidos políticos são proibidos e os sindicatos e associações profissionais não têm a função tradicional de conduzir a luta econômica dos trabalhadores organizados — é R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 3 débil e desarticulada. Dela provavelmente não emergirá nenhum pretendente competitivo para a sucessão do Líder. Em outra chave, os integrantes da burguesia líbia sabem que só conseguem prosperar se seus negócios estiverem articulados 1 com — ou tiverem a participação nos resultados de — algum membro da família Gadhafi, ou com os pouquíssimos membros do Executivo que têm real acesso ao Líder para encaminhar decisões de interesse empresarial, como Shukri Ghanem, atual presidente da NOC. Por conseguinte, dos meios empresariais quase que certamente também não surgirão nomes de postulantes ao comando do país. A tecno-burocracia líbia também não seria fonte de nomes credenciados para aspirar ao comando do país, tendo em vista a postura subalterna e com baixa autonomia que marca seu comportamento em geral. Como se sabe, a religião islâmica não tem uma Igreja, com estrutura hierárquica como a católica. Cada sacerdote (shaykh, ou mullah, ou iman) de uma mesquita tem plena autoridade religiosa na sua jurisdição ou comunidade, respeitando as recomendações dos doutores em estudos islâmicos (ulemas ou ayatollahs) quanto às questões de doutrina e interpretação do Corão. Esta falta de hierarquia religiosa associado ao fato de que o Líder é fiel seguidor e obrigou o Estado líbio a observar com rigor os preceitos corânicos — proibindo o comércio e o consumo de bebidas alcoólicas, por exemplo —, mantêm o clero sem oposição ao regime e sem pretensões de participar do processo político. Resta a opção da escolha de um dentre os familiares de Gadhafi, particularmente de um de seus filhos, inaugurando assim uma nova “dinastia”, a exemplo do que tem ocorrido em outras repúblicas árabes (Síria e tudo indica que vai ocorrer também no Egito). Ainda que o nome mais cotado nas apostas dos líbios seja o de seu filho Seif Al-Islam, isso não garante que os princípios institucionais contidos no Livro Verde de Gadhafi e suas idiossincrasias simultâneas contra o capitalismo e o socialismo serão mantidos como base do regime. Seif tem dado demonstrações continuadas de que é a favor de reformas liberalizantes na A profissão dos sonhos de quase todo líbio que fala línguas e tem alguma projeção social é ser intermediário entre potenciais investidores estrangeiros e os familiares ou colaboradores próximos de Gadhafi para superar o cipoal burocrático e viabilizar negócios. Apresentam-se 1 R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 4 Líbia e de que suas posições de política externa não são antiocidentais, como as de seu genitor. No entanto, quando se manifestou nestas direções recentemente, em longa entrevista à TV, o Líder também foi à TV para contestar o filho e reafirmar os valores da “revolução” de 1969. Ninguém sabe ao certo se os outros filhos e filhas também postulam a herança política de Gadhafi, ou se ficariam conformados com as participações que têm em meganegócios nos ramos mais importantes da economia, como as telecomunicações e o petróleo, por exemplo. Se houver disputa no seio da família, certamente esta hipótese de desdobramento do ciclo político atual se complica ainda mais, enfraquecendo o pretenso reformista Seif. De qualquer forma, só se deve apostar na manutenção das “regras” atuais, ainda bastante discricionárias, para obtenção de licenças de exploração ou concessões de produção por falta de meios para prever se haverá mudanças no futuro pós-Gadhafi e quais serão elas. Diante desse quadro, porém, a PETROBRAS não poderia obviamente recair numa posição ingênua e deixar de participar com pragmatismo do movimento geral das petroleiras de todo o mundo interessadas em produzir óleo e gás na Líbia, fazendo este país retornar à posição de destaque que teve nos anos 60 e início dos 70 do século passado, como grande fornecedor de petróleo. Potencial para isso a Líbia tem e oferece muitas oportunidades. Se há elevado risco político e um ambiente de negócios inconvencional, é preciso ter em conta que estas são ameaças comuns para todas as companhias operando naquele país. O problema de Análise de Risco que se põe é: como ponderar as componentes risco político e comercial, de um lado, e risco geológico, de outro? A REISE ainda não aprendeu como equacionar tal questão, mas ela é instigante e merece esforço de pesquisa continuado e reiterado. De qualquer forma, se o risco geológico é convidativo, é razoável fazer uma aposta imaginando que a Líbia caminhará, ainda que de forma não retilínea e no longo prazo, na direção de padrões legais e regulatórios conforme como os praticados nas grandes áreas produtoras do mundo. Que como candidatos a “padrinhos” ou protetores dos negócios das empresas, inclusive das operadoras da indústria do petróleo e do gás. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 5 haverá um mínimo de segurança jurídica, hoje inexistente, nem para as empresas nem para os cidadãos líbios. O governo pode decidir intervir e mudar as regras de um negócio, sem contemplar o pagamento de indenização ou compensação à parte prejudicada. 1.2 – APRESENTAÇÃO O Capítulo 2, do Panorama Político, apresenta uma breve história da Líbia, em cujo passado independente de pouco mais de meio século só há dois períodos: o curto reinado de Idriss I e o regime implantado pelo golpe militar comandado por Muammar Gadhafi. Este último é marcado por várias tentativas de união com outros países vizinhos (Egito, Sudão, Síria,Tunísia, Chade, Argélia, Marrocos e Mauritânia), todas afinal frustradas, por várias experiências de institucionalização da “revolução” de 1969 e por um longo isolamento internacional resultante do intenso protagonismo líbio na cena política mundial, financiando grupos insurgentes e a luta contra Israel e o imperialismo das potências ocidentais, notadamente o estadunidense. O Panorama Político analisa ainda os desafios contemporâneos que a Líbia enfrenta, ressaltando que houve uma mudança de atitude na sua política internacional desde que o Líder decidiu por fim à crise desencadeada pelo lamentável episódio de Lockerbie, nas vésperas do Natal de 1988, quando um avião da PanAm foi abatido no espaço aéreo escocês matando seus 270 passageiros. O atentado foi atribuído aos líbios e isso custou ao país um doloroso embargo comercial e diplomático, decretado pelas Nações Unidas, cujas implicações se refletem até hoje. De 2002 para cá, a Líbia fez várias concessões, inclusive pagando pesada indenização às famílias das vítimas do fatídico vôo, renunciando ao seu programa nuclear e de armas químicas, etc. No presente, a Líbia mantém um perfil baixo em matéria de política internacional, aparentemente mais preocupada em aparecer para a comunidade das empresas de petróleo como um país que deixou para trás o status de apoiador do terrorismo internacional que lhe foi atribuído pelo governo dos EUA. Apesar da precariedade da literatura existente e da pouca profundidade das entrevistas no trabalho de campo da REISE, em função do retraimento dos R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 6 interlocutores líbios — perfeitamente compreensível num Estado policial como é o regime atual — tenta-se neste Capítulo 2 interpretar o fenômeno da liderança “virtual” de Gadhafi, que domina o país sem ocupar qualquer cargo executivo ou de chefia de uma organização política de comando. Os líbios explicam o fenômeno em função da "legitimidade revolucionária" de Gadhafi, não obstante os ingredientes revolucionários do golpe de Estado de 1º. de setembro serem bastante questionáveis. O golpe de 1969 foi dado contra uma monarquia tão jovem quanto decrépita em função da corrupção e do egoísmo de sua elite, que não permitia o acesso da população aos frutos de sua principal riqueza natural. Não havia um ideário político revolucionário, nem articulação das forças golpistas com a sociedade líbia. O rei Idriss I caiu porque não havia quem quisesse defendê-lo. Mas os anos que se seguiram a sua chegada ao poder mostraram que Gadhafi não tinha um projeto de sociedade bem definido a desenvolver, nem revolucionário nem conservador. Seus vários experimentos sociais e econômicos, se bem catalogados são capazes de configurar a Líbia como um imenso laboratório de testes de idéias marcadas pela negação das instituições utilizadas no mundo civilizado. A explicação da liderança de Gadhafi com base na chamada legitimidade revolucionária é menos convincente que a capacidade de aplicar métodos violentos de repressão sobre os adversários políticos. Os escritos de Gadhafi representam a referência essencial para o funcionamento das instituições do país. Em casos de impasse, é o Líder quem arbitra e faz as grandes opções. Por isso mesmo, sua eventual saída da cena política representa grandes riscos para a estabilidade do país. A Líbia pode deixar de ser o Estado policial e repressor, mas relativamente estável, que é, para tornar-se um país política e economicamente instável. Isto significa que a Líbia pode estar à beira de um momento de incertezas e riscos quanto a seu funcionamento e quanto a seu futuro, por não contar com instituições capazes de dar previsibilidade ao processo político. No Capítulo 3, do Panorama Econômico, mostra que o privilégio da existência abundante de hidrocarbonetos em seu subsolo e na plataforma continental torna a Líbia o país mais rico da África em termos de renda per capita ─ cerca de US$ 12,000.00/hab/ano em termos de PPP. Assinala R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 7 também, por outro lado, que a economia da Líbia é altamente dependente do petróleo, que responde por mais da metade da renda agregada do país, 97% da receita de exportação e 93% da receita fiscal do Estado. Em 2006, o valor das exportações de hidrocarbonetos chegou a US$ 38 bilhões, o que representou 76,1% do PIB. Vale notar, ainda, que neste ano a receita fiscal relativa aos hidrocarbonetos foi de 43,6 bilhões de dinares, ou seja, 66% do PIB do país. Como tem uma base material muito modesta (tanto em termos de indústria, como no setor primário), a economia líbia é extremamente vulnerável às variações dos preços de suas commodities: o petróleo e o gás. A Líbia é um país de marcada orientação anticapitalista, que se assemelha mais aos pequenos países exportadores de petróleo do Golfo Pérsico do que aos demais países do Magreb ou a qualquer outro país africano, incluído o vizinho Egito. Em sua evolução pós-independência, a economia líbia sofreu muito com o embargo norte-americano, estendido depois a todos os países pelas resoluções da ONU. Desde a suspensão do embargo e a normalização das relações com os EUA, impulsionada pela elevação dos preços internacionais do petróleo, a economia vem crescendo à taxa média de 6% a.a., não sendo maior possivelmente por sua incapacidade de aumentar a produção e exportação de petróleo e gás. Esta indústria contribuía em 2005, em função dos preços elevados dos hidrocarbonetos, com nada menos que 75% do PIB. O setor público é fornecedor de muitos serviços e, portanto, o governo retém instrumento importante de controle da inflação através dos preços administrados. Ademais, o Estado subsidia a produção e o consumo de inúmeros segmentos, principalmente, alimentos (farinha, óleos vegetais, arroz, etc). Em 2005 estes subsídios atingiram 839 milhões de dinares (US$ 650 milhões), ou seja, cerca de 2,0% do PIB. Nos últimos quatro anos, a variação do nível geral de preços oscilou da deflação de 2,2% em 2004 para a inflação de 3,4% em 2006, A despesa fiscal representou 32,3% do PIB em 2006, enquanto a receita chegou a 71,2% do PIB. Aproximadamente 60% dos gastos públicos referemse a gastos de capital em projetos de desenvolvimento. Como proporção do R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 8 PIB, os gastos de capital do governo chegaram a 16,8% em 2006. Estes indicadores a respeito das finanças públicas somente são viáveis em função do comportamento dos preços dos hidrocarbonetos e do elevado grau de intervenção do Estado na economia líbia. A dívida pública interna e externa representam menos de 5% do PIB. Considerando o megasuperávit fiscal (39% em 2006) e o volume de reservas internacionais (1,5 vezes o PIB em 2006), estas dívidas são desprezíveis. A Líbia tem elevado grau de abertura externa. Em 2006 a relação entre as exportações de bens e serviços e o PIB foi de 77,2%. Na atual conjuntura favorável da economia mundial e com preços de petróleo elevados, as contas externas da Líbia têm apresentado resultados excepcionais. O superávit global do balanço de pagamentos cresceu continuamente, de pouco mais de US$ 3 bilhões em 2003 para mais de US$ 18 bilhões em 2006. Como proporção do PIB, também há tendência de aumento. Este desempenho das contas externas é explicado, principalmente, pelo aumento dos preços internacionais do petróleo. Este preço mais do que duplicou nos últimos quatro anos. Após longo período de embargo comercial, as importações também têm crescido significativamente. O crescimento econômico, o elevado grau de abertura comercial e o baixo grau de industrialização e de desenvolvimento do setor produtivo não-petróleo têm sido as causas do crescimento das importações. A relação entre a importação de bens e o PIB foi de 25,7% em 2006. Vale notar que a tarifa aduaneira é zero, com exceção de tabaco que é de 10%. No capítulo 3 detalha-se as origens das importações e os destinos das exportações líbias. No que se refere ao ambiente de negócios, o marco jurídico-institucional líbio é determinado pela natureza autoritária do Estado e pelo alto grau de sua intervenção na economia. O Judiciário é controlado diretamente pelo poder Executivo e há restrições aos direitos políticos e civis. Os controles na economia estendem-se aos preços de bens e serviços, comércio interno e externo, crédito e mercado cambial. Desde o final dos anos 1990 o governo tem adotado medidas liberalizantes e estímulos para o ingresso de IED. A partir de 2003 novas medidas na mesma direção têm sido implementadas de forma gradual: redução R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 9 dos subsídios, planos de privatização, pedido de acesso à OMC e reformas de mercado para regular as transações entre pessoas. Por outro lado, empresas transnacionais, principalmente, no setor de hidrocarbonetos, estão voltando a operar na Líbia. E, o governo tem também estimulado o turismo, que antes era impossível e hoje é ainda precário. O governo planeja duplicar a produção de petróleo até 2015. As estimativas apontam para a necessidade de investimentos da ordem de US$ 30 bilhões. Empresas estadunidenses (sobretudo ExxonMobil e ChevronTexaco, que estão voltando), européias e de outros países (China, Índia e Indonésia) já estão realizando investimentos no E&P. O Capítulo 4 se estende por muitas páginas porque faz uma descrição bem ilustrada por mapas e diagramas de importantes aspectos históricos da Líbia, interessantes para o entendimento da evolução da indústria do petróleo e do gás no país. Além de detalhada análise das prolíferas bacias sedimentares líbias, o Panorama Energético mostra como evoluíram os contratos utilizados pela NOC- National Oil Company, até a nova versão dos DPSA (Development & Production Sharing Agreement) e os PSC (Production Service Contracts), que estão em vias de serem adotados nas relações com as operadoras estrangeiras. No final de 2006, a área total sob contratos na Líbia era de 730.211 km², contra 472.231 km² no fim de 2004 (+55% nesses três anos de preços elevados). Os contratos se estendem por todas as seis bacias petrolíferas e, da área total, 579.544 km² (79%) se localizam em terra e 150.667 km² (21%), no mar. No momento a quota líbia na OPEP é 1,6 de MMBPD. Ela também almeja aumentar sua quota em função da esperada expansão das reservas provadas do país. As reservas provadas de petróleo da Líbia são hoje de 39,126 bilhões de barris colocando este país em oitavo lugar na classificação internacional (para efeito de comparação, o Brasil se situa em 15º lugar com reservas provadas de petróleo de 11.350 bilhões de barris). Tais reservas concentram-se na Bacia de Sirte (80%), responsável também por 90% da produção atual. De acordo com a Wood Mackenzie Consultants, a Líbia continua “altamente inexplorada” possuindo um “excelente” potencial para R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 10 novas descobertas, uma vez que somente 25% de sua área prospectiva está hoje coberta por acordos com as companhias internacionais de petróleo. A produção de petróleo em 2005 foi de 1.728.000 BPD, colocando a Líbia em 17º lugar na classificação internacional (pouco atrás do Brasil, que ocupava o 14º lugar, com uma produção de 1.985.000 BPD). A atual relação reserva/produção (R/P) da Líbia é 62. O consumo de petróleo da Líbia ainda é relativamente baixo: 278.000 BPD. De acordo com as previsões da ENERGYFILES, um tanto pessimistas, depois de atingir o pico da ordem de dois milhões de barris por dia, por volta de 2010, ocorreria um natural declínio de produção líbia até 2050. Por outro lado, esta previsão antecipa uma grande produção de gás natural, o que deve ser examinado em maior profundidade pelos estrategistas da PETROBRAS, tendo em vista a possibilidade de se encontrar aí oportunidades de suprimento para as plantas de regaseificação de GNL costeiras já anunciadas. As reservas provadas de gás natural em janeiro de 2006 eram da ordem de 53 Tcf. Entretanto, o potencial remanescente de gás natural ainda por descobrir na Líbia é geralmente considerado muito alto, pois suas bacias gasprone ainda são pouco conhecidas, por inexploradas. De acordo com especialistas locais, as reservas de gás poderão atingir algo em torno de 70 a 100 Tcf. A relação reserva/produção é muito elevada, aparentemente superior a 100. Para expandir sua produção de gás, assim como comercializá-lo, a Líbia está procurando a participação e o investimento de companhias estrangeiras. Em anos recentes, novas e importantes descobertas têm sido feitas nos campos de Ghadames e El-Bouri, além de muitos outros na Bacia de Sirte. Existem hoje na Líbia muitos projetos de desenvolvimento de gás natural que incluem: As-Sarah, Nahoora, Faregh, Wafa, o bloco offshore NC-41, AbuAttifel, Intisar e bloco NC-98. Em 2006, a produção de gás natural da Líbia se elevou para 2,1 Bcf por dia, ou 765 Bcf por ano. Esses volumes correspondem, grosso modo, à atual produção do Brasil e equivalem a 58,8 MMMCPD. Desse total, 415 Bcf (54%) eram de gás associado e os restantes 349 BCF (46%) de gás não associado. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 11 Quanto à distribuição geográfica, 563 Bcf (73,5%) eram produzidos em terra e o restante 203 Bcf (26,5%) no mar. De acordo com a IHS, a exploração e a explotação de gás natural na Líbia se encontrariam quase na infância. Apenas seis campos da Bacia de Sirte alimentam a planta de GNL construída no terminal de Marsa El Brega. A Shell e a NOC têm planos para expandir a capacidade dessa planta a médio e longo prazo. Durante 2006, cerca de 65 Bcf de gás se originaram dos campos de gás da Sirte Oil Company, no Bloco 6 da Bacia de Sirte, e foram convertidos em GNL. O potencial para gás natural é muito elevado e continua praticamente inexplorado. Somente 10 Tcf (21,5%) do total de reservas provadas são consideradas desenvolvidas, 16 Tcf (34%) são consideradas subdesenvolvidas e os restantes 20 Tcf são consideradas não desenvolvidas. A produção de gás natural praticamente dobrou em 2005, quando a ENI iniciou a operação do West Libya Gas Project (WLGP). Dois grandes campos alimentam o vasto projeto: em terra, o campo de gás e condensado de AlWafa, localizado na Bacia de Ghadames, e no mar o campo de Bahr Essalam, localizado na Bacia Pelagiana. O gás natural é transportado para a Itália pelo gasoduto denominado Greenstream que passa debaixo do Mediterrâneo, da cidade líbia de Mellitah para a cidade de Gela, na Sicília, com uma extensão de 520 km e o diâmetro de 32 polegadas. O gás transportado origina-se do campo de Wafa, situado em terra, e do campo de Bahr Essalam, situado no mar. No projeto, a ENI atua como operadora com 50% dos interesses, seu sócio é a NOC, com a outra metade dos interesses. A ENI está promovendo a interligação das reservas do Egito com as da Líbia para exportar gás de ambas, em conjunto, para a Itália. Um primeiro acordo entre Egito e a Líbia foi alcançado em 1997, depois da visita à Líbia do presidente egípcio Mubarak. Em 2001 um acordo de associação foi assinado entre a NOC e a estatal egípcia EGPC para construção de um gasoduto e planta de tratamento do gás. A joint venture para essa finalidade assumiu o nome de Arab Company for Oil and Gas Pipelines (ACOG). Existe ainda uma outra proposta para construir um novo gasoduto de 900 milhas do Norte da África para o Sul da Europa, que transportaria gás R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 12 natural do Egito, da Líbia, da Tunísia e da Argélia, via Marrocos, para a Espanha (note-se que já existe uma linha entre a Espanha e o Marrocos). Também a Tunísia e a Líbia acordaram, em 1997, associar-se para construir um gasoduto da área de Mellitah, na Líbia, para uma zona urbana industrial de Gabes, no Sul da Tunísia. Em 1998, a Tunísia e a Líbia assinaram um acordo para fornecimento de gás. Em 1971, a Líbia tornou-se o segundo país do mundo, depois da Argélia (1964), a exportar GNL. No entanto, desde então o programa de exportação de GNL ficou em segundo plano, tendo sua capacidade reduzida em função de limitações técnicas. A planta de GNL no local chamado Marsa El Brega foi construída pela Esso com uma capacidade nominal de 125 Bcf por ano. Entretanto, em função das sanções comerciais a Líbia não conseguiu obter equipamento para separar os líquidos do seu gás natural. Dessa forma a planta de GNL, que exporta para a Espanha, está hoje com a sua capacidade reduzida a 15% da original. Depois do fim das sanções muitas companhias estão analisando o potencial da Líbia com vistas a instalação de plantas de GNL, inclusive a Shell a partir de maio de 2005. A Shell pretende modernizar as instalações de Marsa El Brega e/ou possivelmente construir novas instalações com investimentos que poderão variar entre 105 e 450 milhões de dólares. Quanto à energia elétrica, a atual capacidade de produção da Líbia é de aproximadamente 4,7 GW. Praticamente toda essa geração deriva de plantas termelétricas. No momento a maioria das velhas usinas termelétricas existentes está sendo convertida de derivados de petróleo, sobretudo diesel, para gás natural. Todas as novas plantas de geração termelétrica estão sendo projetadas para uso de gás natural. Secundariamente, a Líbia está empenhada também num estudo de fontes alternativas de energia elétrica para utilização em pequena escala em locais remotos que dificilmente poderiam ser interligados à rede elétrica. Nesses projetos incluem-se alguns de geração eólica e outros de geração solar. Os planos hoje em curso prevêem dobrar a capacidade de geração até 2012. Durante o verão de 2004 a Líbia foi vítima de grandes “apagões” em R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 13 função da incapacidade do parque gerador de atender à demanda. Para prevenir esse tipo de “apagões” e para atender satisfatoriamente ao grande aumento do consumo a companhia estatal do governo da Líbia, GECOL (General Electricity Company), está construindo cinco plantas novas. Uma das principais razões do aumento elevado e constante do consumo reside na política de preços subsidiados para energia elétrica no país. A eletricidade na Líbia custa apenas cerca de um terço do preço que corresponderia aos custos, se a energia primária fosse valorada no nível do mercado internacional. O Capítulo 5 trata do Panorama Militar-Estratégico e começa por assinalar que a Líbia enfrenta relativamente poucas ameaças dos vizinhos com que tem fronteiras. No entanto, desde a chegada de Gadhafi ao poder, o país tem feito grande esforço de armamento e equipamento das suas Forças Armadas. Discute-se, então, o esforço armamentista líbio, suas diferentes vertentes e limitações, para em seguida avaliar a evolução recente das eventuais ameaças externas e vulnerabilidades líbias no cenário estratégico regional e global. Apesar de ser um país relativamente muito bem armado, existem problemas sérios de escassez de pessoal apto a empregá-las. Na Força Aérea, por exemplo, há pilotos mercenários estrangeiros contratados para operar as esquadrilhas de MIG-25 e Mirages. Nas três Armas, há instrutores dos países fornecedores de equipamento para treinar os militares líbios. Há problemas de manutenção causados por falta de estoques adequados de partes e peças, bem como situações de incompatibilidade de uso de materiais bélicos de origens diversas, decorrentes da grande variedade de fornecedores dos mesmos. Uma seção é dedicada às chamadas Milícias Populares e outra à participação das mulheres no serviço militar. Como a Líbia, por conta do fim da crise provocada pelo episódio de Lockerbie, condenou todas as formas de terrorismo, aderiu à Convenção Internacional de Armas Químicas, aderiu ao Segundo Protocolo do TNP, entregou todos os materiais relativos a seu programa nuclear aos EUA e tem adotado uma política de low profile nas grandes crises que se referem ao mundo árabe e muçulmano, reduziu-se consideravelmente o potencial de atrito com os parceiros internacionais e, portanto, em menores ameaças para a R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 14 estabilidade do próprio país. A Líbia hoje tem menos protagonismo na cena internacional do que no passado, mas também menos tensões e riscos internos. Com isso reduziu sua vulnerabilidade militar internacional. No entanto, alguns observadores líbios e estrangeiros se preocupam com a vulnerabilidade da Líbia perante o terrorismo internacional, e em particular perante a Al Qaeda e seus associados. Tais analistas percebem que a existência de uma região desértica, de extensa área e sem controle dos Estados nacionais, representa para os grupos terroristas uma grande possibilidade para treinar militantes, refugiar-se e reagrupar-se eventualmente. Esta circunstância tem sido enfatizada pelas autoridades norte-americanas, assim como pelas autoridades nacionais da região, como sendo a principal fonte de ameaça para a estabilidade coletiva e tem ensejado um crescente nível de cooperação entre os EUA e os países da região. A Líbia possui, de fato, alguns fatores de vulnerabilidade quanto às ameaças terroristas: trata-se de um país com grande superfície, esparsamente povoado, com importantes instalações de produção petrolífera, longas extensões de dutos desde as regiões produtoras até os portos de exportação, alvos ideais para operações de impacto. Apesar de tudo, pode-se afirmar que a Líbia tem vulnerabilidade bastante baixa perante o terrorismo do tipo Al Qaeda, sobretudo quando comparada aos demais países da região, por conta de suas políticas e atitudes pró-Islã e antiimperialistas, que a colocam em uma categoria diferente. Porém, como qualquer país com instalações petrolíferas, apresenta alvos evidentes e vulneráveis, como a Nigéria, propícias para a prática da chantagem. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 15 2 - PANORAMA POLÍTICO 2.1- INTRODUÇÃO A Líbia é um país de grandes contrastes. Por um lado, trata-se de um dos maiores países do continente africano em termos de sua superfície, com 1.775.500 km2, mas, por outro, trata-se de um dos países menos povoados do continente, com apenas cerca de 6 milhões de habitantes e, conseqüentemente, com uma das mais baixas densidades populacionais da África. O território líbio é extremamente rico em petróleo de alta qualidade. O país tem um líder com fama de revolucionário, que abraçou várias causas tidas como antiimperialistas através do mundo, desde sua chegada ao poder em 1º. de setembro de 1969, através de um golpe de Estado. Por fim, trata-se de um país árabe, mas com uma dimensão africana muito importante na sua diplomacia, desde o início do atual regime há 38 anos. Estas seis características — país grande, esparsamente povoado, rico em petróleo, com um regime com fama de revolucionário, árabe e cada vez mais voltado para a África — são elementos constitutivos-chave para entender o quadro político contemporâneo da Líbia. O fato da Líbia ser muito rica em petróleo, mas com uma população muito pequena, disponibiliza recursos de sobra para aturar no plano internacional em geral, árabe e africano, em particular. Um regime fundado num golpe militar sem derramamento de sangue, que continua, durante este longo período de quase quatro décadas, a cantar louvores ao seu momento constitutivo e supostamente revolucionário, produz efeitos e conseqüências importantes sobre os contextos interno e externo da política Líbia. Por fim, o fato de ser simultaneamente um país árabe e africano define os círculos concêntricos das prioridades da atuação da Líbia no contexto internacional. Para resumir um longo argumento em uma frase, a Líbia de Gadhafi é um país que procura exportar seu regime revolucionário desde o golpe de 1969, tentando fazer isto em primeira instância no mundo árabe e em seguida em direção da África. O regime liderado pelo Coronel Gadhafi desde 1969 — a chamada revolução de 1º. de setembro — só pode ser entendido no contexto daquele momento, mas vem marcando a evolução política e social do país de R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 16 maneira profunda até o presente. Para entender este longo processo é fundamental analisar o caráter árabe e muçulmano da Líbia. Quando se faz referência ao mundo árabe e a uma identidade árabe, está-se referindo à existência de um projeto específico e concreto de reconstrução de uma "nação árabe", projeto que teve o período entre-guerras (1919-1939) como momento inicial. Afirmar a existência de uma nação árabe significa reconhecer uma construção social específica e particular, isto é, um projeto político e social concreto que sequer é consensual no espaço geográfico do mundo árabe. Quando o discurso político faz menção a algo chamado "nação árabe", em árabe Umma, emprega-se um conceito que é também usado para referir-se a uma nação ainda mais ampla, a nação Muçulmana. Nesta circunstância, está-se afirmando uma construção social baseada em leituras particulares, com referenciais na história, na etnia, na língua e na religião, reivindicadas como sendo comuns. Tais fatores fizeram a proximidade geográfica, assim como a durabilidade e a intensidade dos contatos entre os povos árabes configurarem uma "identidade árabe" comum. Os movimentos político-culturais — primeiro do partido Baat na Síria e depois, de maneira menos profunda, do Nasserismo no Egito, isto é, dos seguidores do ex-presidente Gamal Abdel Nasser — não foram nada mais do que versões específicas de pan-arabismo misturado com socialismo, na forma de justiça social e econômica, tudo com tempero árabe, ou seja, respeitando as tradições e o papel central da religião na organização e funcionamento da sociedade. Aliás, como observa o grande historiador do mundo árabe Albert Hourani, o projeto pessoal de Gadhafi, desde sua chegada ao poder em 1969 até o final da década de 1990, era impor-se como o substituto do projeto de Abdel Nasser e perpetuador do seu projeto de unificação árabe. No entanto, enquanto lhe sobrava o que mais fazia falta a Abdel Nasser — recursos financeiros —, lhe faltava o que aquele tinha de sobra, isto é, um projeto verdadeiro e um carisma forte, além de uma estrutura política organizada 2 e uma ideologia minimamente consistente e séria. O partido Baat — fundado originalmente na Síria na década de 40 por Michel Aflaq e Salah Al-Din Al Bitar, onde ainda é o partido governante — tem 2 Um partido, no sentido gramsciano. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 17 um projeto essencialmente pan-árabe, no qual se fundem nacionalismo árabe e ideologia socialista. É notável que os dois fundadores do partido Baat seguiam religiões diferentes. Michel Aflaq era greco-ortodoxo, enquanto Salah Al-Din Al Bitar, era muçulmano sunita. Isto indica não apenas que a religião não tinha um papel fundamental no movimento, mas também que diferenças religiosas não interferiam no processo político na região. O projeto de poder do partido Baat tem alcance que não se pode limitar aos contornos territoriais e políticos de apenas um país e, menos ainda, foi pensado de maneira isolada. Mas a idéia de uma "nação árabe" não é consensual sequer dentro do mundo árabe, onde há questionamentos desta "identidade árabe" principalmente de parte de minorias religiosas e étnicas. A referência aqui é às expressivas e numerosas minorias cristãs e judaicas, porquanto ambas não se reconhecem no legado religioso do Islã. A referência é também aos curdos, na região do Golfo, que não se identificam sequer na comunidade cultural e lingüística árabe. Por outro lado, os Estados árabes são diversos de várias formas. Vários deles (Egito, Sudão, Líbano, Iraque, Síria) têm minorias cristãs expressivas — o que diminui a homogeneidade religiosa acima mencionada. Outros têm comunidades judaicas de certa projeção (Iêmen, Tunísia e Marrocos). Tais grupos étnico-religiosos não negam necessariamente a identidade árabe, mas não deixam de afirmar estas outras identidades alternativas ou competitivas. Entre os próprios muçulmanos, que constituem a maioria dos árabes, há uma variedade não apenas em termos das duas grandes famílias religiosas, sunitas e xiitas, mas também em termos de escolas religiosas diferentes dentro do Sunismo, a saber: Hanafi, Hanbali, Maliki, e Shafi´i. Existe também uma grande diversidade étnica e cultural, principalmente na África do Norte onde existe uma forte minoria berbere nos países do Magreb — Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia — e no Iraque, onde existe uma minoria curda. Além destes questionamentos que vêm de baixo, há também um questionamento "por cima" da identidade árabe. Os ativistas islâmicos questionam o caráter limitado da identidade árabe e contrapõem a ela uma identidade mais ampla: a identidade muçulmana. Este último grupo se recusa a restringir a comunidade de identitária somente aos árabes e defende o que se R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 18 chama de pan-islamismo, para incluir todos os muçulmanos, notadamente os de fora do Oriente Médio e da África do Norte. Isto amplia enormemente a comunidade para amplos territórios da África subsaariana, da Ásia e de outras regiões do mundo, mas em contrapartida amplia os fatores de diversidade política e cultural. A reivindicação do pan-islamismo acaba dando espaço aos questionamentos externos da identidade árabe. A iniciativa dos EUA, chamada originalmente de “Grande Oriente Médio”, que visava lançar junto com os demais países industrializados, os alicerces da democracia numa região que se estenderia da África do Norte ao Afeganistão, incluindo a Turquia, o Paquistão e o Irã, foi lida por líderes árabes, como o Presidente Mubarak do Egito, como tentativa de diluir a identidade árabe no seio de uma comunidade muçulmana muito maior. A iniciativa da União Européia, lançada em Barcelona em 1995, chamada de iniciativa Euro-Mediterrânea, também acabou destacando a identidade mediterrânea de alguns países árabes em detrimento de sua identidade de Umma, ou seja, de seu arabismo. Em paralelo, a identidade árabe tem sido construída em função da negação de dois outros referentes: Israel, de forma particular, e o Ocidente, de maneira mais geral. A este respeito, vale mencionar que a criação da Liga dos Estados Árabes ocorreu em 1945, antes da criação do Estado de Israel, e pode ser considerada um momento altamente simbólico, pois ocorreu no auge dos movimentos de libertação nacional nos diferentes países árabes. A criação do Estado de Israel, em maio de 1948, teve importância crucial na formação da identidade árabe. Desde quando judeus da Diáspora, no seio do movimento sionista, tomaram a decisão formal de voltar ao que consideravam sua Terra Santa (ou prometida) com o apoio da comunidade internacional, sobretudo dos países ocidentais vencedores da II Grande Guerra, os árabes — tanto aqueles que habitavam a antiga Palestina quanto os demais — têm estado em antagonismo permanente com o Estado judeu. Mas se a criação do Estado de Israel significou um momento de derrota política e militar para os árabes — que chamam estes eventos de Nakba, ou tragédia —, a auto-vitimização e a percepção de uma conspiração ocidental contra eles só passaram a fazer parte do imaginário árabe com a crise do Sinai em 1956. A R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 19 crise do Sinai foi simbólica por ter juntado Israel com as duas principais potências coloniais na região: a França e o Reino Unido. De fato, a França, que ainda ocupava vários países árabes na África do Norte, e a Grã Bretanha, acusada de ter aberto o caminho para o estabelecimento do Estado de Israel, eram tidas como inimigas dos árabes. Portanto, se a identidade árabe se sobrepunha a outras (os curdos no Golfo, os berberes no Magreb, os cristãos, judeus e muçulmanos, xiitas ou sunitas, em várias partes da região), um dos elementos que fundamentava esta possibilidade era o antagonismo com o Ocidente em geral, e com Israel em particular. Esta trajetória de desenvolvimento da identidade árabe no decorrer do século XX deixa clara a importância do Outro na sua formação e a relativamente pouca importância das características ditas comuns. A reconstrução da identidade árabe desembocou mais em dinâmicas de conflito entre os diferentes Estados árabes do que em dinâmicas de cooperação e harmonia entre eles. Isto sem mencionar as diferenças sub-regionais no seio do mundo árabe. De fato, entre as distinções que marcam os diversos povos árabes destacam-se aquelas existentes entre os que pertencem ao Masreq e ao Magreb, que se manifestam em termos históricos, de distintos dialetos falados e religiões seguidas. A colonização francesa no Magreb e a influência cultural da grande minoria berbere tiveram um impacto significativo sobre a formação dos Estados nesta sub-região, suas relações internacionais e seus dilemas de segurança. A França continua sendo o principal parceiro econômico e político dos Estados magrebinos e o berbere é reconhecido como língua nacional no Marrocos, tendo passado em 2003 a ter estatuto de língua regional na Argélia. No Masreq, a influência do Reino Unido como antiga metrópole colonial sobre os Estados que foram suas antigas colônias é muito menor que a influência da França no Magreb. Mais que isto, o Reino Unido tem sido paulatinamente substituído por uma influência cada vez mais nítida dos EUA na região. Este contexto de construção de uma identidade árabe comum, de estabelecimento de uma causa comum (a causa palestina) e da rejeição de um inimigo comum (o Estado de Israel), representa elemento fundamental para entender a evolução da Líbia desde o golpe de 1969. De fato, desde a R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 20 Revolução do 1º. de setembro — assim é chamado o golpe de Estado contra a monarquia Snoussi — até o final da década de 1990, o Líder — assim é chamado Muamar Gadhafi, que não tem cargo no Executivo, nem em um partido hegemônico — considerou a libertação da Palestina e a união dos árabes como sua prioridade mais alta. Conseqüentemente, o antiocidentalismo, o antiimperialismo e o antisemitismo tornaram-se valores muito importantes e fontes de aglutinação da vontade nacional e de orgulho para a Líbia e seu regime. Uma segunda característica altamente valorizada, desde 1969, tem sido o caráter permanente da revolução. Depois da consolidação das idéias de Gadhafi no chamado Livro Verde — sobretudo no que tange ao princípio da democracia direta, como negação da democracia representativa, que o Líder qualifica de farsa — a Líbia tem sido marcada por uma insistente louvação das vantagens da Revolução, do seu regime político sui generis e de suas instituições típicas, de maneira a convencer os cidadãos nacionais da superioridade do modelo líbio perante os demais modelos: o capitalismo e o socialismo. Revelador a este respeito é o país estar repleto de outdoors com frases do Livro Verde, que sintetizam a doutrina de governo em vigor, mensagens que são repetidas o tempo todo, inclusive pelos cidadãos mais simples. Para apresentar os diferentes aspectos da política contemporânea líbia, a estratégia seguida foi traçar uma breve evolução histórica do país, explorando em particular a importância do século XX, quando o país passou a forjar sua identidade nacional e autônoma em relação aos demais países da África do Norte, para em seguida abordar a revolução de 1969 e as instituições que dela resultaram e que moldam o governo do país até hoje. Duas discussões concluem o capítulo: uma relativa a pouco transparente conjuntura política do país, marcada pelas incertezas quanto ao futuro pós-Gadhafi, e outra quanto a sua política externa nos diferentes círculos: na região do Magreb, no mundo árabe, na África e no mundo. 2.2- BREVE HISTÓRIA DA LÍBIA A Líbia tem dois momentos marcantes e nitidamente distintivos da sua história como entidade autônoma e homogênea. O primeiro, a presença fenícia R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 21 no seu território, por volta de 400 D.C. e que se estendeu por cerca de 500 anos, deixando marcos concretos dos fenícios junto aos dos romanos nesta região do Mediterrâneo. O segundo, situa-se já no século XX, com a luta contra a ocupação italiana, e o surgimento de um líder que se tornou uma referência nacional, Omar Al Mukhtar. Entre estes dois marcos históricos importantes mas distantes, o território e a população da atual Líbia esteve sob o domínio de várias entidades e estruturas políticas, ora baseadas em Damasco, ora baseadas em Bagdá, ora baseadas em Istambul e, em alguns períodos, até baseados em outras grandes cidades da África do Norte, como Cairo, Tunis e mais brevemente Fés. Cairo costumava dominar a região leste do país, a chamada de Cirenáica, vizinha ao Egito, enquanto Tunis costumava dominar a região ocidental, chamada de Tripolitana. Na Líbia antiga, estas regiões tiveram desenvolvimentos históricos separados. Na parte ocidental, é possível afirmar que os primeiros assentamentos fenícios foram erguidos por volta do Século V D.C., em torno do que é hoje chamado de Trípoli. Naquela época, os fenícios, exímios navegadores, precisavam de portos e referências continentais para seu comércio de um lado do Mediterrâneo para o outro, principalmente após o estabelecimento de Cartago. Estabeleceram-se, então, no que é conhecido hoje como Sabratha. Após as Guerras Púnicas, a região Tripolitana passou ao controle do Império Romano, servindo de base de apoio para o comércio entre Roma e a África. Nesta ocasião, o Império Romano tornou este porto, e a vizinha Leptis Magna, em grandes centros urbanos, de cujas ruínas há ainda testemunho magnífico. A região era grande produtora de azeitonas e seu óleo de oliva exportado para todas as partes do Império. Passaram a constituir pólo seguro para sua civilização no lado oposto do Mediterrâneo, tanto assim que Leptis Magna deu até imperadores a Roma. Na Cirenáica, a primeira colonização tinha sido grega por vários séculos, até passar também para o controle do Império Romano. Esta região desenvolveu-se em torno de cinco pólos urbanos, um dos quais sendo a atual cidade de Benghazi, que devido à alta fertilidade de seus solos serviu por muito tempo como área agrícola. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 22 Estes séculos foram períodos de glória e prestígio para o que hoje é conhecido como Líbia, sendo os monumentos históricos remanescentes relevantes e de tal importância que foram dos primeiros a ser reconhecidos pela UNESCO como patrimônio da Humanidade em 1982 (Leptis Magna e Sabratha). É importante salientar o destaque que este momento histórico inicial recebe por parte das autoridades, numa clara tentativa de reinterpretar a história da região e utilizar este patrimônio para realçar as raízes milenares e profundas do povo líbio. No “longo interlúdio” de quase 16 séculos entre o primeiro e o segundo momento gloriosos — de acordo com a narrativa oficial do atual regime líbio —, pode-se destacar alguns momentos-chave, como a chegada do Islã ao país, as sucessivas monarquias que governaram este território e que eram na sua grande maioria oriundas do Masreq, até o início da decadência do Império Otomano e o surgimento de lógicas políticas locais. Estas eram baseadas no que havia sido estabelecido desde as invasões árabes e muçulmanas, e referidas por alguns, de maneira pejorativa e coletiva, como a "lógica tribal". Em 639 D.C., a conquista árabe levou o Islã à Líbia, através de Abdulah Ibn Saad, encarregado por Uqba Ibn Nafi de conquistar o Norte da África. Era o Império Omíada, baseado em Damasco, que liderava os árabes e suas jihads (conquistas e expansões territoriais). A substituição, em 750, do Império Omíada pelo Império Abassida, este baseado em Bagdá, mudou o domínio sobre a Líbia. O Califa Harun Al Rachid nomeou, como Emir da Líbia, Ibrahim Ibn Al Aghlab, que iniciou importantes reformas no território, entre as quais a reativação do sistema de irrigação herdado de Roma. Mas por mais poderoso, duradouro e dominante que fosse — principalmente quando comparado à dinastia Omíada anterior —, o Império Abassida foi continuamente desafiado, tanto no seu flanco oriental, quanto no ocidental. Um desafio relevante foi de natureza xiita, mais especificamente de uma parte chamada de Ismaelita, representado pelos Fatimidas. De fato, por volta de 910, os Fatimidas constituíram-se em Estado na Tunísia e conquistaram o norte da África e, rumo ao leste, o que hoje é conhecido como Líbia. Em 969, eles já haviam conquistado e dominado o Egito — são, aliás, os fundadores da cidade de R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 23 Cairo —, e partiram para a conquista de outras partes do Oriente, como a parte ocidental da Península Arábica, a Síria, embora tenham acabado perdendo o controle da Tunísia, seu ponto de partida original. Com isso, nos séculos X e XI, a Líbia era dominada pelos Fatimidas, já então estabelecidos em Cairo. Uma primeira exceção a estas dominações por parte de dinastias oriundas de outras partes do mundo árabe é o estabelecimento da dinastia Bann Ammar em 1321, dinastia esta que estabeleceu um Estado independente na região de Tripoli. No entanto, em 1401, esta experiência independente chegou ao fim com a volta da dominação da Líbia, mais uma vez por parte da Tunísia, então dominada desde 1228 pela dinastia Hafsi. No final do século XV e início do século XVI, a Líbia começou — como muitas outras partes do mundo — a estar em contato com os conquistadores espanhóis. A primeira ocupação temporária pelos espanhóis da Líbia ocorreu em 1509, mas durou muito pouco, devido à ocupação da Líbia e do resto da África do Norte, exceto o Marrocos, pelo Império Otomano, baseado em Istambul. Vale ressaltar que os Otomanos chegaram à Líbia pela primeira vez em 1517 e em 1551 estabeleceram-se de maneira definitiva. Governaram o país até o início do século XX, embora sua dominação tenha tido uma interrupção entre 1715 e 1833, quando foi proclamado — e esta representa a segunda exceção a sucessão de dominações estrangeiras da Líbia — um Estado independente na Líbia, por Ahmad Karamanli, um dignatário local de confiança dos próprios Otomanos, assim como seus sucessores. No século XX, com o declínio do Império Otomano, houve a invasão e ocupação italianas da Líbia em 1911, a qual teve três conseqüências distintas para o país. A primeira conseqüência direta foi a expulsão definitiva dos Otomanos da Líbia. A segunda, embora após uma invasão marítima e um bombardeio de Trípoli que durou 3 dias, foi que os italianos reataram os elos entre os dois lados do Mediterrâneo que haviam sido a base do primeiro momento de glória da história do que é hoje conhecido como a Líbia, quando fazia parte do Império Romano. Como resultado indireto desta ocupação, houve a definição das fronteiras territoriais do país. Embora tenha sido feita pela lógica das sobras entre as ocupações britânicas, a leste, e francesa, a oeste, tais fronteiras permaneceram intactas até hoje. A Líbia, ao contrário dos R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 24 demais países do chamado Grande Magreb (Mauritânia, Marrocos, Argélia e Tunísia), foi o único país da região a não ser colônia francesa. Com isso, tanto as lutas comuns do passado contra o colonizador, quanto a influência desempenhada pela França nas atuais economias e políticas dos demais países do Magreb estão ausentes da realidade específica líbia. A terceira conseqüência foi que a ocupação italiana teve também o condão de excitar a fibra nacionalista entre os líbios, que adotaram as fronteiras definidas pelo colonizador como sendo suas fronteiras naturais e nacionais, mas rejeitaram o domínio italiano, considerado estranho e invasor. Uma das figuras dominantes daquele período foi sem dúvida Omar Al Mukhtar, originalmente um professor de escola primária, que acabou liderando por quase 20 anos a mais valente e duradoura luta das populações locais contra o colonizador italiano, da mesma forma que o Sheikh Abdelkader havia feito na Argélia contra a colonização francesa, e Abdelkrim Khatabi estava fazendo, no mesmo momento, no Rif, contra a colonização espanhola na parte norte do Marrocos. Sua luta foi pioneira no uso de táticas de guerrilha, valendose do perfeito conhecimento do deserto para fazer ataques-relâmpago contra o exército italiano e esconder-se de volta nas dunas do Saara. Al Mukthar acabou preso e condenado à morte pelo governo colonial, sendo enforcado em 16 de setembro de 1931. Foi reconhecido como o grande líder da luta nacional contra o colonizador italiano e em prol de uma identidade líbia, independente, muçulmana e árabe, mas ao mesmo tempo unida e atuante. A luta de Omar Al Mukhtar plantou sementes fundamentais para a descolonização da Líbia e seu posterior estabelecimento como país soberano e independente quase logo após a derrota italiana na II Guerra Mundial, após um curto período de seis anos (entre 1945 e 1951) durante o qual o norte do país foi administrado temporariamente pelos britânicos, enquanto o sul foi administrado pela França. O filme de 1981, de Moustapha Akkad, intitulado “O Leão do Deserto”, com Anthony Quinn no papel de Omar Al Mukhtar, representa uma excelente introdução ao personagem e a sua luta pela independência. A Casa dos Snoussi, uma das mais importantes e respeitadas da Líbia devido a suas raízes religiosas e seu apelo espiritual, que, além disso, havia participado ativamente da luta armada anticolonial, inclusive articulada com o R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 25 próprio Omar Al-Mukhtar, afirmou-se como principal interlocutor dos administradores britânicos e franceses para negociar a independência do país. De fato, após a derrota italiana, a ex-colônia italiana, dividida em duas administrações diferentes — as duas províncias do norte, Tripolitana e Cirenáica, sob os britânicos, enquanto a província de Fezzan, ao sul, sob os franceses — precisava ser reunificada. Finalmente, a Líbia tornou-se independente em 24 de dezembro de 1951 e Mohamed Idriss Snussi (ou Senussi), ou Idriss Primeiro, foi declarado Rei da Líbia no mesmo ano. Governou o país até ser derrubado pelo golpe de Estado do coronel Muamar Gadhafi em 1969. Seu reino de 18 anos foi marcado por três características: uma crescente e claramente estabelecida aliança com as potências ocidentais, e em particular a Grã Bretanha, a França e os EUA, que receberam privilégios militares, políticos e comerciais, estabeleceram bases militares, e apoiaram a Líbia nas suas negociações com a antiga metrópole, para receber compensações coloniais. A segunda característica do reino de Idriss Primeiro foi o descobrimento do petróleo no país em 1958-1959, transformando o país em um importante produtor e exportador do combustível para os EUA. A terceira característica decorre de certa forma da segunda, e foi o alto nível de corrupção da elite líbia em geral e da dinastia Snoussi em particular. A descoberta do petróleo agravou as disparidades e as tensões entre a elite e o resto da população, de modo que os últimos anos do regime Snoussi foram marcados por sucessivos tumultos, revoltas e distúrbios populares, violentamente reprimidas pelas forças policiais. Merece destaque também os distúrbios antiisraelenses ocorridos no país durante a Guerra dos Seis Dias, entre israelenses e árabes, nos quais a população demonstrou seu inconformismo com o alinhamento da Líbia com o Ocidente, principal apoio de Israel na guerra contra os países árabes. O golpe liderado pelo coronel Muamar Gadhafi se deu no meio de uma grande crise política e moral. A monarquia e seus aliados desfrutavam de forma nababesca e exclusiva da renda do petróleo recém-descoberto no país, enquanto a população não recebia quaisquer benefícios desta nova riqueza. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 26 Enquanto a elite dilapidava os recursos do país em futilidades, a população vivia na mais absoluta pobreza. O líder revolucionário Gadhafi circulava pela capital Trípoli em um fusca — preservado até hoje no Museu Nacional —, em claro contraste com a opulência da frota de Mercedes Benz dos Snoussi. Após o 1º. de setembro de 1969, o coronel Gadhafi passou a presidir o Conselho de Comando da Revolução (CCR) e já em dezembro firmou seu primeiro ato de união com dois outros países: o Egito e o Sudão. Este tipo de iniciativa seria repetida inúmeras vezes a seguir. No decorrer do primeiro ano do novo regime, a Líbia endureceu suas relações com o Ocidente, rompeu acordos e expulsou 15.000 soldados italianos que ainda estavam em seu território por acordo do Rei Idriss I com a ex-metrópole. Em novembro de 1970, a Síria se juntou à União, mas como esta nunca se concretizou de fato, Líbia, Síria e Egito fundaram em abril de 1971 a chamada República Árabe Unida (RAU), que foi aprovada pela população líbia em 1º. de setembro do mesmo ano, por referendo, comemorando simbolicamente o segundo ano da "revolução". Como a RAU não funcionou satisfatoriamente, Egito e Líbia estabeleceram sua própria união, separada da Síria, em 2 de agosto de 1972. No quarto aniversário do golpe, mais uma vez aproveitando os símbolos da revolução, a Líbia nacionalizou 51% das empresas petrolíferas estrangeiras. Porém, por não ter sido envolvida no ataque conjunto da Síria e do Egito contra Israel, que deflagrou a Guerra do Yom Kippur, em primeiro de dezembro de 1973, a Líbia rompeu sua união com o Egito. Em janeiro de 1974, foi a vez da Tunísia estabelecer uma união com a Líbia de Gadhafi, que também não durou muito tempo. Em 6 de janeiro de 1981, foi a vez do Chade ser objeto de nova tentativa de união com a Líbia. Com isso, foram proclamados os Estados islâmicos do Sahel, mas, em novembro do mesmo ano, tal união foi dissolvida. Em agosto de 1984, foi a vez do Marrocos. No tratado de Ujda, criou-se a União Árabe-Africana entre a Líbia e o Marrocos, que nunca foi efetiva e que o próprio Gadhafi declarou caduca após a visita do primeiro-ministro israelense Shimon Peres ao Marrocos em agosto de 1986. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 27 Em 16 de fevereiro de 1989, a Líbia passou a fazer parte do Tratado de Marrakech, que criou a União do Magreb Árabe (UMA), junto com a Tunísia, a Argélia, o Marrocos e a Mauritânia. Este tratado, que ainda está em vigor, tem sido pouco efetivo no fomento ao comércio entre seus membros e no incremento da integração entre eles. Embora tenha uma sede, um secretáriogeral e um secretariado permanente, a UMA não funciona e sequer seus líderes se encontram regularmente. Um dos principais motivos para a baixa efetividade é sem dúvida a espinhosa questão do Saara Ocidental, que opõe a Argélia ao Marrocos, mas também o fato dos membros da UMA terem observado as sanções da ONU contra a Líbia no decorrer da década de 1990 (episódio que será explorado logo a seguir) teve também um impacto negativo sobre as perspectivas do relacionamento entre os países magrebinos. A mágoa líbia se deve ao fato de que a Tunísia foi um dos primeiros países a aplicar as sanções da ONU e o conjunto dos membros da UMA de certa forma se beneficiaram do bloqueio econômico imposto às exportações da Líbia. Deve-se assinalar que em abril de 1974, Gadhafi abriu mão de suas funções político-administrativas em favor do primeiro-ministro Abdessalam Jalloud. No ano seguinte, ocorreu uma das múltiplas tentativas de golpe de Estado contra o violento e repressor regime implantado por Gadhafi na Líbia, liderada por El Mechichi, um integrante do CCR que contava com o apoio de metade dos demais conselheiros do Comando. Foram todos eliminados. Em 2 de março de 1977 houve uma virada que constitui marco fundamental na evolução do regime líbio. Sob a liderança de Gadhafi, o CCR foi dissolvido e foram criados os Congressos Populares de Base, que são os elementos essenciais da democracia direta preconizada no Livro Verde. Logo a seguir, os Congressos Populares de Base, reunidos, decretaram um novo nome para o país: Jamahiria Árabe Popular e Socialista. Há uma importante sutileza neste nome: a tradução de "república" para o árabe é Jomhuria. Ao optar por Jamahiria, Gadhafi procurou distinguir-se dos Estados democráticos tradicionais e suas instituições representativas, usando o conceito de Jamahiria — que tem origem nas palavras popular e massa, na língua árabe — para traduzir suas idéias diferenciadas sobre as instituições que deveriam governar a Líbia, conforme o Livro Verde. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 28 Esta reforma dentro da revolução foi completada simbolicamente dois anos depois, no décimo aniversário da "revolução” (1979), quando o Líder proclamou a separação oficial e completa entre o Estado e a revolução e anunciou a criação dos comitês revolucionários. Outro marco importante se deu em 31 de agosto de 1988, quando o Exército e a Polícia, como instituições, foram dissolvidos e substituídos por milícias populares, mantidas muitas estruturas anteriores e seu caráter repressor da oposição e o emprego de métodos violentos (prisões arbitrárias, ausência de julgamentos, desaparecimentos etc.). Logo a seguir, Gadhafi acusou os comitês revolucionários de estarem por trás de vários assassinatos de oponentes políticos e os dissolveu. Mas eles foram recriados adiante, apartados do Estado, mas envolvidos com a segurança interna. Em outubro de 1992, foram postos em prática novos experimentos político-administrativos: a Líbia foi dividida em 1500 comunas de autogestão e em fevereiro de 1994, o calendário lunar foi adotado como oficial e o único aceito no país. Mais significativo ainda, a Lei Islâmica, ou Sharia, foi adotada formalmente e reconhecida como a lei básica para o Direito de Família. É importante salientar, no entanto, que o resto das leis, inclusive do Direito Comercial, tem inspiração nos códigos franceses e italianos e, em menor proporção, na legislação anacrônica do Império Otomano. A revolução de setembro de 1969 foi-se radicalizando ao longo do tempo e teve também um importante componente cultural na Líbia, traduzido pela ruptura com os valores e costumes do Ocidente e a reafirmação dos traços da identidade árabe. Livros considerados representativos da cultura ocidental foram banidos do país, e as bibliotecas e livrarias tornaram-se notavelmente empobrecidas, resumindo-se à bibliografia em torno do Livro Verde: ele próprio em várias edições diferentes, suas explicações e comentários enaltecedores. A imprensa ocidentalizada foi silenciada. Em julho de 1985, milhares de instrumentos musicais considerados ocidentais foram queimados e destruídos em praça pública por significar símbolos do colonialismo cultural, enquanto bens culturais e instrumentos musicais tradicionais árabes, inclusive de outros países, foram reafirmados e resgatados. A posse ou importação de instrumentos musicais considerados R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 29 ocidentais foi proibida na Líbia até recentemente e a transgressão destas proibições era considerada um sinal de desafio cultural aos princípios da revolução. No Livro Verde, Gadhafi estabeleceu as bases e princípios da democracia direta e participativa, sem intermediários de representação política, tais como partidos políticos, deputados eleitos etc. O sistema montado pelo Líder articula-se em três níveis: ● na base, onde existem os Congressos Populares de Base (CPB), que têm jurisdição regional. Os 468 CPBs existentes são instituições consultivas, que propõem leis e apresentam requisitos orçamentários, e sua região ou distrito de abrangência chama-se Mahalat. É aberto a todos os indivíduos que simplesmente vivem em uma região ou distrito específico. Os CPBs estão reunidos de maneira permanente. A presença e participação dos moradores nos CPBs são muito baixas. Os Congressos Populares são dirigidos por Comitês Populares, uma espécie de comissão executiva, cujos membros são designados pela assembléia dos CPBs — informalmente, há indicações feitas pelos integrantes dos comitês revolucionários, conforme apresentado mais adiante. É importante ressaltar que tanto neste nível de base, quanto nos níveis superiores, a representação tribal está refletida nestes comitês de modo que os membros das tribos mais importantes estejam incluídos e que a postulação de suas demandas seja assegurada. Ao passo que a autonomia destes CPBs pode ser questionada, é importante salientar que o regime efetivamente os utiliza como câmaras de reverberação, seja para avaliar a popularidade de suas medidas, seja para legitimar outras. A este respeito, vale mencionar que no decorrer dos últimos anos os CPBs rejeitaram duas medidas propostas pelo próprio Gadhafi: a possibilidade de educação das crianças em casa, ao invés de na escola, e a abolição da pena de morte. Em ambas situações, as CPBs se posicionaram de maneira contrária a projetos apresentados pelo Líder supremo. ● o segundo nível do sistema político líbio articula-se em torno dos Conselhos Municipais, ou Shaâbia, que eram 26, e que são constituídos dos membros dos Comitês Populares, de órgãos especializados que administram as empresas estatais e de organizações profissionais ou sindicais. Aliás, todas R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 30 as companhias públicas são dirigidas pelo que é chamado também de Comitês Populares, encabeçados por secretários. Os vários Comitês Populares da Shaâbia indicam os membros dos Comitês Gerais do Povo (CGP). Existem CGPs para cada grande área sócio-econômica do país. Cada Shaâbia é liderada por um secretário, cujo mandato é de quatro anos, mas que, na essência, é flexível, pois este pode tanto ser reconduzido várias vezes, quanto ser cassado no meio do mandato. Ele tem responsabilidades políticoadministrativas equivalentes a de um prefeito. ● o topo da pirâmide do sistema político é ocupado pelo Congresso Geral do Povo (CGP), que se encontra ordinariamente em março de cada ano e que seria o equivalente ao parlamento em uma democracia ocidental. Neste nível também, a identidade tribal desempenha um papel importante, tanto na proporção da representação quanto na formação de alianças. O CGP é constituído de representantes dos CPBs e dos secretários das associações profissionais e empresariais. Há também um Comitê diretor do CGP, cuja autoridade máxima possui responsabilidades equivalentes às de um primeiroministro no sistema parlamentarista. São os membros do CGP, e somente eles, que deliberam sobre questões de segurança nacional, de política externa, de orçamento nacional e do petróleo. O equivalente do Poder Executivo, encarregado de executar aquilo que os congressos populares decidem é chamado de comissões ou comitês populares. No nível do CGP, há a Comissão Popular Geral, que era constituída de 20 secretários, mas que a partir de 2000 foi reduzida a 7 membros com o intuito de transferir para as Shaâbias as responsabilidades das demais secretarias. Tal Comissão Popular do CGP desempenha as funções que se costuma atribuir ao Gabinete Ministerial nos regimes tradicionais, ou seja, é o Poder Executivo de fato no nível nacional. Além da estrutura acima apoiada nos Congressos Populares de Base, de caráter estatal, há também uma estrutura paralela, de caráter político, totalmente independente e autônoma daquela concebida para gerir o Estado em suas várias instâncias: a dos Comitês Revolucionários (CR), que possuem funções específicas nas áreas de inteligência e policiamento, e que são um instrumento de recrutamento de elites em todos os níveis. Os CRs são abertos R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 31 a todos que acreditam no Livro Verde e servem para mobilizar as massas, difundir as mensagens da liderança e defender o regime contra todos os tipos de inimigos, principalmente os grupos internos de oposição. As reformas do regime revolucionário não ocorreram dentro da grande harmonia e do consenso que o governo líbio afirma existir. No decorrer dos últimos anos, vários atentados e tentativas de assassinato de Gadhafi ocorreram, resultando em cada vez mais freqüentes violações dos direitos humanos por parte da repressão aos suspeitos praticada pelas autoridades. O regime tem convicção que muitas das tentativas foram praticadas com apoio externo, sobretudo o patrocínio de órgãos de segurança dos EUA. Como exemplo da oposição radicalizada contra o regime, no ano de 1980, 10 opositores de Gadhafi que viviam no exílio foram executados e essas execuções de líbios no exterior continuaram por vários anos. Um dos opositores assassinados mais famoso foi o coronel Hassan Eskhal, cunhado de Gadhafi, morto em 1985. Em outubro do ano seguinte, Gadhafi anunciou que todos os oponentes do regime que estivessem fora do país deveriam voltar à Líbia, mas sem garantir uma anistia nem qualquer processo de abertura política que pudesse representar salvaguardar para os exilados. As ONGs estrangeiras de defesa dos direitos humanos afirmam que prisões líbias estão cheias de opositores, principalmente militares, que de alguma forma acabaram acusados de atentar contra a vida e o regime de Gadhafi. Mais de 2.000 militares foram presos após as rebeliões militares de Tobruq, em agosto de 1980. Em outro episódio significativo, em maio de 1984, a Frente Nacional para a Salvação da Líbia atacou a caserna de Bab Azizyya e experimentou violenta reação. Seus integrantes foram presos. Em seguida, houve uma grande onda de prisões de suspeitos de oposição. Em outubro do mesmo ano, uma nova tentativa de ataque contra a vida de Gadhafi foi desmantelada, além de um outro atentado com carro-bomba em Misurata, que fracassou no mesmo mês. Em outra articulação política contra o regime, em junho de 1995, houve importantes confrontos entre a polícia e militantes islâmicos em Benghazi, que resultaram na morte de 10 pessoas e na prisão de centenas de outros. Em setembro do mesmo ano, tais confrontos se repetiram, desta vez com a morte R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 32 de 10 policiais e 20 militantes islâmicos. Em julho e agosto de 1996, aconteceram novos e prolongados distúrbios na região de Benghazi, liderados pela guerrilha islamita. Nestes longos episódios de violência política e repressão policial, uma das maiores tragédias humanitárias ocorreu em 28 de junho de 1996, quando um motim na prisão de Abu Salim resultou na morte de centenas de presos — algumas fontes estimam que morreram até 1.200 presos, embora as autoridades reconhecessem apenas 8. Esta mesma prisão foi marcada, quase 10 anos depois, por novo motim e outra dura repressão, que resultou na morte de pelo menos um preso e pelo menos 9 feridos. Em setembro de 1996, num jogo de futebol em Trípoli, Al Saadi, um dos filhos de Gadhafi, foi vaiado pelo público, o que levou seus guardas a atirarem contra as arquibancadas, matando 20 pessoas e ferindo mais de 40. Em setembro, nova tentativa de golpe de Estado, com mais de 50 oficiais envolvidos, foi abortada no último momento e resultou em numerosas prisões de militares e civis suspeitos de colaboração na fracassada iniciativa golpista. Em janeiro de 1997, 8 líbios, entre os quais 6 militares, foram executados por espionagem a favor dos EUA. Além disso, de acordo com a organização Human Rights Watch, centenas de indivíduos povoam as prisões líbias por participação em atividades políticas totalmente pacíficas. A maioria deles foi condenada com base na Lei no. 71, que proíbe categoricamente qualquer atividade individual ou de grupo cuja ideologia se oponha de alguma forma aos princípios da chamada revolução de 1969. Aqueles que infringem a Lei 71 correm o risco de serem condenados inclusive à pena de morte nela prevista. Atividades tais como simplesmente encontrar representantes de governos considerados inimigos podem levar à pena capital. Human Rights Watch fala também de aproximadamente 250 políticos desaparecidos. 2.3 - DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DO SISTEMA POLÍTICO LÍBIO O regime líbio deve-se confrontar com vários desafios no decorrer dos próximos anos. Apesar do Líder não ter idade avançada, rumores sobre a fragilidade de seu estado de saúde dominam Tripoli, inclusive nos meios R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 33 diplomáticos e empresariais transnacionais. Com isso, especula-se abertamente sobre o processo sucessório e a pergunta essencial é: quem vai ser o sucessor? Os líderes tradicionais da revolução, que ajudaram Gadhafi a chegar ao poder, estão todos mortos, presos, exilados no exterior ou sem poder de influência nenhum, numa espécie de exílio interno. Shukri Ghanem, que era um dos indivíduos mais fortes do regime e que até 2006 era o todo poderoso primeiro-ministro, acabou precipitando-se no sentido de realizar as reformas necessárias e foi deslocado do principal cargo do país para um outro, ainda bastante significativo: o de presidente da NOC, a companhia petrolífera estatal. Ainda tem muito poder, mas sem a centralidade e a importância política do cargo anterior. Nas Forças Armadas, Gadhafi tem sido bastante habilidoso para não permitir a nenhuma liderança se afirmar no seu seio, tornando-se significativa. Assim, as limpezas sistemáticas que sucederam as diferentes tentativas de golpe de Estado ou de assassinato de Gadhafi resultaram em uma renovação permanente do corpo de oficiais das Forças Armadas. Isto não significa, de forma alguma, que não haja risco de intervenção militar, como ficará claro no quinto capítulo deste Relatório. No entanto, sua probabilidade não é alta. Com isso, muitos analistas apostam nos filhos de Gadhafi como seus futuros sucessores. Estas sucessões hereditárias têm-se tornado normais no mundo árabe, com uma "quase dinastia" já estabelecida na Síria e outras se perfilando no Egito e na Líbia. No caso disto se confirmar, o filho mais atuante e mais cotado de Gadhafi é Seif Al-Islam, que dirige a quase oficial organização não governamental Fundação Gadhafi para o Desenvolvimento (FGD). A FGD tem tido uma atuação importante tanto na Líbia quanto fora do país nos últimos anos. No plano internacional, a FGD teve um papel importante na mediação e resolução de uma crise de reféns ocidentais nas Filipinas. Desempenhou também um papel moderador importante na resolução da crise de Lockerbie e no estabelecimento de uma solução conciliatória e aceitável para todos. No plano nacional, a FGD foi muito importante na libertação de 132 presos por crime de opinião em março de 2006, contribuindo com isso para a distensão e a normalização da vida política no país. Com isso, Seif acaba R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 34 ocupando uma posição muito peculiar: ele é, de certa forma, intocável por ser filho de Gadhafi; ao mesmo tempo, aproveita-se desta posição para moderar algumas atitudes do regime do pai e é considerado por muitos como um duro crítico do governo. Com isso, ele pode estar adquirindo as credenciais necessárias para impor-se como um legítimo líder do país após a morte do pai. Em agosto de 2006, Seif fez um discurso extremamente liberal na televisão e criticou a corrupção, a falta de democracia e de liberdade de expressão, defendendo ao final a adoção de uma nova constituição. O discurso levantou esperanças e perplexidade entre a população e os observadores da cena política líbia. Então, Gadhafi fez questão de se dirigir à nação através da televisão para criticar o discurso do filho e reafirmar os valores da revolução de 1969. Como resultado, Seif enfadou-se com o pai e deixou o país durante vários meses, indicando com isso seu afastamento em relação a Gadhafi e sua posição crítica dentro do regime. Tudo isso dá a Seif credenciais substantivas para suceder ao pai caso seja aberta a sucessão dentro de breve e Gadhafi não o faça a indicação de um nome diferente para ocupar a liderança. Outros filhos de Gadhafi são cogitados nas especulações, mas sempre como hipóteses mais remotas do que Seif. Por fim, outra possibilidade de evolução do sistema político líbio teoricamente possível seria a chegada ao poder de um dos inúmeros grupos de oposição. De fato, existem muitos grupos de oposição clandestina ao regime. Alguns atuam dentro de país e outros estão no exílio. Mas a eficiência do aparelho policial e de segurança interna, associada à existência de recursos financeiros abundantes nas mãos do regime para subornar e premiar denunciantes tornam esta possibilidade inviável no futuro próximo. 2.4 - O COMPONENTE INTERNACIONAL DA POLÍTICA LÍBIA A dimensão internacional faz parte da revolução de Gadhafi. O Livro Verde tem como terceiro componente o internacional e, desde os momentos iniciais do regime atual, o Líder tem-se empenhado nas lutas de diferentes povos oprimidos no mundo, e da África em particular, assumindo com isso posições claras de enfrentamento das nações hegemônicas no cenário R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 35 internacional, que lhe causaram bastantes problemas na região e no mundo. No Livro Verde, assim como no seu Comentário do Livro Verde e no seu Discursos Políticos — compêndio onde todos os discursos do Líder são reunidos — Gadhafi deixa claro que o molde de seu pensamento é o nacionalismo árabe, cujo núcleo central problemático é a questão palestina. Conseqüentemente, o anti-sionismo e o antiimperialismo são componentes fundamentais da política externa líbia pós-golpe de 1969. Esta nova fase corresponde a um grande protagonismo por parte do país nos planos regional, árabe, africano e internacional. Assim, como já visto anteriormente, o novo regime da Líbia engajou-se em várias iniciativas de união com outros países árabes que também tinham projetos "revolucionários". Estas uniões tinham sempre como propósito estabelecer o núcleo inicial do que seria mais tarde a nação árabe unificada. Na questão palestina, por exemplo, a Líbia passou a fazer parte da “Frente de Resistência e Desafio”, junto com a OLP, a Argélia, a Síria e o Iêmen. Junto com estes parceiros, Gadhafi foi contra o reconhecimento de Israel e, conseqüentemente, contra qualquer negociação com aquele país, isto apesar de seu rompimento com Yasser Arafat em 1980. Foi sem surpresa, então, que ele não apoiou os acordos de Oslo de 1994 entre Israel e os palestinos. Na África, a luta da ANC na África do Sul, do MPLA em Angola e outros movimentos independentistas e de libertação nacional tidos como progressistas e lutando contra o Ocidente e seus aliados no continente, receberam o apoio material e financeiro da Líbia. A terceira frente de atuação da Líbia eram os movimentos de oposição a diferentes regimes no mundo árabe — mas não apenas naquela região — considerados reacionários ou tidos como alinhados com o Ocidente. Líderes destes movimentos oposicionistas que queriam derrubar os governos conservadores receberam não apenas asilo e apoio institucional, mas também recursos financeiros da Líbia: na África do Sul do apartheid, na América do Sul dos regimes militares alinhados com os EUA, na luta contra o que Gadhafi considerava as monarquias corruptas do Golfo Pérsico. Não era raro ver soldados da Líbia junto com soldados de Cuba nas mesmas lutas, contra os mesmos inimigos. Outras iniciativas denotativas deste engajamento do regime de Gadhafi ao redor do mundo era seu apoio aos R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 36 muçulmanos da Frente Moro, nas Filipinas, assim como seu apoio, até 1983, à Frente Polisário, no conflito do Saara Ocidental, opondo o Marrocos aos independentistas da frente. A política africana de Gadhafi teve duas facetas, aliás, parecidas com as facetas do relacionamento de Gadhafi com o mundo árabe: por um lado, a Líbia apoiou vários movimentos de libertação nacional na África, mas, por outro lado, a Líbia teve também uma política intervencionista no continente. Em 1979, 1980 e em 1983-84 a Líbia interveio no Chade. Mas em 1987, houve uma intervenção no sentido contrário, quando o Chade atacou e ocupou a faixa de Auzu na Líbia. No entanto, a Líbia rapidamente expulsou o Exército do Chade daquela região e restabeleceu seu controle sobre ela. Em 30 de agosto de 1989, a Líbia e o Chade firmaram finalmente um acordo de paz, nos termos do qual resolveram de maneira definitiva o contencioso territorial. Com Uganda, houve também uma tentativa de intervenção líbia em 1979, mas com a queda do regime do Idi Amin Dada, as tentações cessaram em relação aquele país. Tudo isso indica a importância da África para a política externa líbia. Por outro lado, quando as sanções da ONU foram impostas à Líbia, os países árabes em geral e a UMA, em particular, não se solidarizaram com a Líbia. Mas os países africanos demonstraram grande solidariedade com o regime de Gadhafi: a Organização da Unidade Africana (OUA), na sua Cúpula de Uagadugu (Burkina Faso), lançou um ultimato à comunidade internacional no sentido de suspender o boicote aéreo em relação à Líbia, gesto que nenhum país árabe jamais tomou. Além do mais, os analistas líbios perceberam um desprezo e um desdém por parte dos países árabes do Oriente Médio que os países africanos nunca demonstram em relação às iniciativas diplomáticas líbias. Acrescente-se a isso as sucessivas decepções com os países árabes do Oriente Médio, inclusive os palestinos, quando os mesmos iniciaram um processo de normalização das suas relações com Israel, no decorrer da década de 1990. Estes fatores e a evolução dos fatos acabaram levando a Líbia a reavaliar suas opções de política externa e a eleger o cenário africano como sendo sua mais alta prioridade. Foi neste sentido que o país desempenhou um R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 37 papel fundamental na dissolução da OUA e sua substituição pela União Africana (UA), muito mais atuante e institucionalizada que a organização multilateral anterior. Recentemente, para reforçar suas posições na entidade, antes da Cúpula da UA, em final de junho/início de julho de 2007, Gadhafi visitou vários países africanos e defendeu a criação dos Estados Unidos da África. Mas esta tendência na direção de ocupar-se da África como um todo, não significa o total abandono da via árabe pela política externa líbia. Em abril de 2007, recentemente portanto, Gadhafi lançou a idéia de constituição de uma segunda dinastia Fatimida, isto é, de uma estrutura estatal abrangente, organizada e dirigida a partir do centro do Magreb, e que se expandiria rumo ao Oriente Médio com o objetivo de constituir uma nação árabe unida, forte e conquistadora. Mas nem só de uniões e alianças são feitas as relações da Líbia com seus vizinhos. Há seqüelas de vários episódios como o ocorrido em setembro de 1985, quando 100.000 estrangeiros, entre os quais 30.000 tunisinos, foram expulsos sumariamente do país. Em novembro de 1995, milhares de imigrantes ilegais foram expulsos do país. Particularmente visados foram os sudaneses (30.000 a 40.000), os egípcios (em torno de 7.000) e os palestinos (em torno de 5.000). Estes últimos foram visados em virtude da assinatura dos acordos de Oslo entre e OLP e o Estado de Israel, acordos que eram vistos por Gadhafi como uma traição de Yasser Arafat e uma capitulação dos palestinos diante dos israelenses. As relações mais tumultuadas da Líbia de Gadhafi têm sido com os EUA. Já nos primeiros meses da revolução de setembro de 1969, o novo regime tratou de cancelar algumas vantagens que o reinado de Idriss I dera aos cidadãos e empresas ocidentais, em geral, e aos do EUA, em particular. Em dezembro de 1979, a embaixada americana em Trípoli foi apedrejada pela população civil, e o mesmo ocorreu com a embaixada francesa em fevereiro de 1980. Em 1984, as relações diplomáticas da Líbia com o Reino Unido foram rompidas após tiros partidos da embaixada líbia em Londres terem matado uma policial britânica e ferido vários transeuntes. E em 1985, vários ataques terroristas que ocorreram em torno do Mediterrâneo, em particular a crise dos R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 38 reféns do navio Achille Lauro em novembro de 1985, na qual um refém foi executado pelos seqüestradores da embarcação, o que levou vários países ocidentais a acusarem o regime de Gadhafi de estar por trás do terrorismo internacional. Em conseqüência destes eventos e da estridência do discurso de Gadhafi contra os EUA, em 7 de janeiro de 1986, o governo estadunidense rompeu relações econômicas com a Líbia. Em março de 1986, cresceu o nível de tensão com os EUA, por conta das manobras da Marinha americana no Golfo de Sirte. Para mostrar sua capacidade de resistência, a Líbia respondeu com fogo de mísseis Scud, e alguns destes caíram na Itália, perto de uma base americana naquele país. A conseqüência direta desta escalada militar foi que em 15 de abril, houve um ataque aéreo americano contra Benghazi e Tripoli, em total violação ao direito internacional, sem que os dois Estados tenham declarado guerra, e visando não apenas destruir pontos nevrálgicos da infraestrutura da Líbia, como atingir pessoalmente o próprio Gadhafi, bombardeando sua casa. Trinta e sete pessoas morreram, entre os quais uma filha adotiva do Líder. Em 1989, os EUA acusaram a Líbia de construir uma usina de armas químicas em Rabta, usina esta que um incêndio queimou em 14 de março de 1990. Em abril de 1996, os EUA acusaram a Líbia, mais uma vez, de estar construindo uma usina de armas químicas de destruição em massa, só que desta vez em Tarjunah. Mas se o bombardeio norte-americano de 1986 parecia o pior ponto da crise, a chamada crise de Lockerbie mostrou que tudo poderia ser bem pior ainda. As investigações relativas à queda de um Boeing da PanAm — ocorrida em 21 de dezembro de 1988, em Lockerbie, na Escócia, no vôo que ligava Londres a Nova Iorque, matando todos seus 270 passageiros — levou os governos britânico e norte- americano em novembro de 1991 a acusar o regime líbio de estar por trás do atentado. Isto resultou num quase completo isolamento internacional da Líbia, inclusive com resoluções do Conselho de Segurança da ONU contra o país, que não foram contestadas sequer pelos membros da UMA, como foi antes mencionado. Em agosto de 1990, a França acrescentou mais uma acusação contra a Líbia, desta vez era por ter fomentado o atentado contra o DC-10 da R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 39 companhia aérea UTA em 10 de setembro de 1989, que caiu no Niger e matou 170 passageiros. Em abril de 1992, o Conselho de Segurança da ONU acabou impondo um embargo aéreo e militar contra a Líbia. Em resposta a estas acusações e ao crescente isolamento do país, na sua reunião de março de 1992, o Congresso Geral do Povo condenou todas as formas de terrorismo internacional e interrompeu o uso de vários fundos de apoio a grupos estrangeiros, inclusive palestinos. Apesar disso, em agosto de 1993, EUA, Grã Bretanha e França lançaram um ultimato à Líbia para entregar os dois líbios acusados dos atentados de Lockerbie antes de primeiro de outubro. Em vez de aceitar o ultimato, em setembro, a Líbia anunciou aceitar que os dois líbios fossem levados diante de uma corte escocesa, abrindo a porta para uma solução intermediária e negociada para a chamada crise de Lockerbie. Apesar dessa abertura líbia, em dezembro de 1993, o CS da ONU votou o congelamento dos vôos dos aviões líbios fora do país. Em março de 1997, a Líbia, em nova tentativa de se aproximar e melhorar suas relações com o Ocidente estabeleceu relações diplomáticas com o Vaticano. As arrastadas negociações com as autoridades norte-americanas e britânicas levaram a uma solução intermediária, que se concretizou no estabelecimento de uma corte escocesa em um território considerado neutro — a Holanda, mais especificamente, em Camp Zeist — e na entrega dos dois cidadãos líbios formalmente acusados do atentado, Abdel Basset Ali Al Megrahi e Lamin Khalifa Fhima, às autoridades holandesas em abril de 1999. Em junho de 2001, Megrahi foi condenado a 27 anos de prisão enquanto Fhima foi inocentado pela Corte composta por três juizes escoceses. Desde então, Megrahi recorreu da sentença em várias instâncias, inclusive européias, e em junho de 2007 uma comissão especial escocesa para a verificação e o controle dos processos judiciários acabou dando-lhe ganho de causa e exigindo que seu caso fosse remetido para a Corte Suprema escocesa. Mas o processo judiciário representou apenas uma parte da resolução da chamada crise de Lockerbie. De fato, em paralelo à via judiciária, os EUA e a Líbia engajaram-se numa negociação política concluída em maio de 2002, através da qual a Líbia ofereceu US$ 2,7 bilhões de indenização para as famílias das vítimas, ou o equivalente a US$ 10 milhões por família, para R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 40 resolver o contencioso jurídico. Nestes termos, 40% do montante seriam desembolsado pela Líbia quando as sanções da ONU contra o país fossem canceladas, 40% seriam desembolsados quando as sanções comerciais norteamericanas também fossem canceladas, enquanto os 20% restantes seriam desembolsados quando o Departamento de Estado Norte Americano retirasse a Líbia da sua lista de Estados que apóiam o terrorismo. Mas as compensações para as famílias eram apenas uma parte da negociação política: a Líbia também se comprometeu a não apoiar o terrorismo de qualquer origem e reconheceu a responsabilidade de seus serviços de inteligência pelo atentado de Lockerbie. Todas as condições já foram preenchidas, inclusive aquelas relativas ao processo bilateral entre a Líbia e os EUA. Em 2003, a Líbia renunciou às Armas de Destruição em Massa e tem cooperado com as potências ocidentais no combate ao chamado terrorismo internacional. A Líbia também assinou o Protocolo Adicional do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), mediante o qual a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), pode monitorar as centrais nucleares do país e pode efetuar visitas-surpresas a qualquer local suspeito de abrigar atividades nucleares, com um aviso prévio de apenas 24 horas. Na ocasião, a Líbia entregou às autoridades norte-americanas todos os tipos de material ligados direta ou indiretamente ao seu antigo programa nuclear. A Líbia tornou-se também um Estado signatário da Convenção Internacional das Armas Químicas. Como resultado disso tudo, em maio de 2006, a Líbia e os EUA restabeleceram relações diplomáticas completas e se comprometeram a nomear embaixadores para dirigirem suas respectivas missões diplomáticas. Em 30 de junho do mesmo ano, os EUA deixaram de considerar a Líbia como um Estado que protege o terrorismo, gesto que abre várias portas de cooperação da Líbia com os EUA. Uma crise atual com a União Européia refere-se ao chamado caso das crianças contaminadas com HIV em Benghazi. Cinco enfermeiras búlgaras e um médico palestino estão presos pelas autoridades líbias desde 1999 e condenados à morte por terem supostamente contaminado 426 crianças líbias com o vírus do HIV. As autoridades líbias afirmam ter confissões dos seis R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 41 acusados enquanto a União Européia e algumas organizações de defesa dos direitos humanos como a Human Rights Watch afirmam que as confissões não são válidas por terem sido extraídas sob tortura dos acusados. Esta impugnação das confissões sob tortura parece ter algum fundamento, uma vez que em 2005 a própria Corte Suprema da Líbia mandou o processo de volta aos tribunais inferiores para novo julgamento. No último mês de maio, um acordo parece ter sido alcançado pelas autoridades líbias e as autoridades da União Européia mediante o qual as enfermeiras búlgaras seriam libertadas e o caso arquivado, mediante o pagamento de uma indenização pelos europeus, mas, até agora, este acordo ainda não foi firmado. Por fim, a Líbia tem tentado desempenhar um papel de mediador na crise do Darfur, principalmente no que se refere às relações entre o Sudão e o Chade. Como mencionado anteriormente, a Líbia de Gadhafi interveio em diferentes momentos na recente história do Chade, seja durante os regimes de Hissein Habrem, de Gokuni Uedei ou, ainda, sob o atual presidente Driss Deby. No entanto, hoje, Gadhafi é aliado tanto de Deby quanto de Omar al Bashir, do Sudão. A solução do conflito do Darfur, porém, não é simples. Ambos os governos têm atuado reciprocamente no sentido de derrubar o outro via apoio, inclusive financiamento, de rebeldes contra o regime oponente. Em março de 2007, Gadhafi conseguiu convencer os dois governos a suspenderem as hostilidades mútuas e a resolverem suas diferenças pela via pacífica. No entanto, o fato das tensões entre os dois regimes se originarem na crise do Darfur tem dificultado a missão de Gadhafi. Este dá total apoio ao governo sudanês de Al Bashir na sua recusa a uma intervenção da ONU no Darfur. Oferece como alternativa uma missão de intervenção militar de paz com soldados dos países da União Africana. Simultaneamente, o Chade tem sido pressionado — e aceito as pressões — de várias potências ocidentais, e da França de Sarkozy em particular, para receber uma força de intervenção internacional com objetivos simultaneamente humanitários e de proteção dos campos de refugiados darfurianos no Chade. Com isso, as mediações de Gadhafi e da Arábia Saudita, que vão no mesmo sentido, têm poucas possibilidades de sucesso. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 42 Muitos consideram que no fundo da disputa por Darfur está a suposição geológica de que seu subsolo abrigue jazidas de petróleo ou gás. A hipótese não é ratificada por especialistas. 2.5- CONCLUSÕES O sistema político líbio é dominado pela figura do Líder, Muammar Gadhafi. Sua onipresença é total, apesar de não ocupar nenhum cargo oficial no Estado nem liderar um partido hegemônico, inexistente no panorama político líbio. É um fenômeno, que os líbios explicam em função de sua "legitimidade revolucionária" que poucos no país ousam questionar. Isto, não obstante os ingredientes revolucionários do golpe de Estado de 1º. de setembro serem bastante questionáveis. O golpe de Gadhafi foi dado contra uma monarquia tão jovem quanto decrépita em função da corrupção, do esbanjamento da renda do petróleo e da privação da população que não tinha acesso aos frutos da extração de sua principal riqueza natural. Não havia um ideário político revolucionário, nem articulação das forças golpistas com grupos, ou mesmo tribos, da sociedade líbia. O rei Idriss I caiu porque não havia quem quisesse defendê-lo. Mas os anos que se seguiram a sua chegada ao poder mostraram que Gadhafi não tinha um projeto de sociedade bem definido a desenvolver, nem revolucionário nem conservador. Seus vários experimentos sociais e econômicos — já estatizou os meios de produção, tornou as empresas cooperativas, para posteriormente devolvêlos à iniciativa privada; já encampou o controle das transnacionais do petróleo e agora está buscando atraí-las de novo; já fechou o país ao turismo, por pura xenofobia aos não árabes e agora quer reabri-lo — se bem catalogados são capazes de configurar a Líbia como um imenso laboratório de testes de idéias pessoais, mal fundamentadas teoricamente e marcadas pela negação das instituições utilizadas no mundo civilizado, sejam por sedimentação histórica daquelas que deram bons resultados, seja por invenção do gênio humano. A explicação usual dos líbios que estão na Líbia, da legitimidade revolucionária, é pouco convincente. Ou é menos convincente que a capacidade de aplicar métodos violentos de repressão sobre os adversários políticos. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 43 Os escritos de Gadhafi representam a referência essencial para o funcionamento das instituições do país. Suas idéias estão na base do sistema político nacional. Em casos de impasse, é o Líder quem decide e faz as grandes opções. Por isso mesmo, sua eventual saída da cena política pode representar grandes riscos para a estabilidade do país. A Líbia pode deixar de ser o Estado policial e repressor, mas relativamente estável, que é, para tornarse um país política e economicamente instável. Isto significa que a Líbia pode estar à beira de um momento de incertezas e riscos quanto a seu funcionamento e quanto a seu futuro, por não contar com instituições capazes de dar previsibilidade ao processo político. Não se quer dizer que o pós-Gadhafi será necessariamente instável, mas sim que se trata de uma fase de incertezas e riscos. Afinal, a Síria, com um regime tão repressor e tão personalista quanto o líbio, com o desaparecimento de Hafez Assad, o país passou por uma transição, não preparada, de maneira relativamente tranqüila. Enquanto a Costa de Marfim, com um Estado mais aberto e menos repressor, onde o ex-presidente Felix Houphouet Boingny preparou com cuidado sua sucessão, passa por uma grave e profunda crise que necessitou inclusive uma intervenção de forças internacionais para garantir a manutenção da paz. Conclui-se, portanto, que a questão sucessória na Líbia pode, mas não deve necessariamente, levar o país à instabilidade política e social. Infelizmente, com a inexistência de uma imprensa livre, a falta de uma produção acadêmica com diversidade de opiniões e com as dificuldades observadas nas entrevistas da missão de campo da REISE — onde se pode sentir o peso do que é o Estado policial líbio na própria universidade — não se pode objetivar melhor uma avaliação dos riscos políticos presentes na atual conjuntura Líbia. Mas que os há, não resta dúvida. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 44 3. PANORAMA ECONÔMICO Por não participar da maioria das agências e organizações multilaterais (FMI, BIRD, OMC, etc.) e adotar um regime econômico sui generis, inclusive na estruturação do seu setor público, conseqüente com os princípios do Livro Verde de Muamar Gadhafi, a Líbia não oferece boas estatísticas econômicas aos analistas. Como se sabe, praticamente não há atividade editorial e livreira na Líbia. Os jornais seguem linhas de opinião oficiais. Além do Livro Verde e do Corão, as poucas livrarias oferecem apenas livros estrangeiros de culinária, de turismo e de fotografias. Deste modo, há pouca ou nenhuma informação econômica circulando e nada de cunho crítico ao governo pode ser publicado. Grande parte das informações utilizadas nesta parte do Relatório foi, portanto, colhida em fontes secundárias. A missão incumbida do trabalho de campo também não teve acesso a publicações especializadas ou a funcionários que detivessem dados transparentes sobre a economia líbia. Transparência, aliás, não constitui um valor para as autoridades líbias. O país tem economia mista, com orientação predominantemente estatista — o Livro Verde rejeita simultânea e igualmente o Socialismo e o Capitalismo com argumentos religiosos e políticos —, não obstante existirem também atividades exploradas segundo o sistema capitalista e em regime cooperativista. A propriedade privada chegou a ser abolida, mas foi restaurada. O grau de proteção dos direitos de propriedade é muito baixo, inclusive no que tange aos imóveis, podendo um proprietário ser expropriado sem indenização, sem possibilidade de recurso à Justiça e sem maiores justificativas. Se protestar pode ser preso. A família Ghadafi é veladamente considerada envolvida nos grandes negócios, como por exemplo, nas telecomunicações, além, naturalmente, dos relativos aos hidrocarbonetos. 3.1 BREVE HISTÓRIA ECONÔMICA A Líbia tem território de 1,8 milhões km2, população de 5,9 milhões de habitantes e é, em tese, o quarto maior país da África, como mostra o Quadro R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 45 3.1-I seguinte. Entretanto, as áreas desérticas ou quase desérticas são 90% do território. Estima-se que a terra arável não ultrapasse a 1% da área total do país. A população, por seu turno, está concentrada nas áreas urbanas (85% da população total) próximas ao Mar Mediterrâneo e, mais especificamente, nas duas maiores cidades: Trípoli e Benghazi. O país tem pequena população nômade e semi-nômade no sul do país, no deserto do Saara. Em conseqüência das condições desfavoráveis de clima e solo, o país importa 75% dos alimentos consumidos. O Produto Interno Bruto da Líbia, de US$ 73 bilhões (PPP), é 0,11% do PIB mundial. A renda per capita do país (PPP), de US$ 12,204 , é a mais elevada da África. Em termos comparativos, vale notar que as rendas per capita (PPP) da Argentina e do Brasil são de US$ 15,936 e US$ 9,108, respectivamente. A economia da Líbia é altamente dependente do petróleo, que responde por mais da metade 3 da renda agregada do país, 97% da receita de exportação e 93% da receita fiscal do Estado. Em 2006, o valor das exportações de hidrocarbonetos chegou a US$ 38 bilhões, o que representou 76,1% do PIB. Vale notar, ainda, que neste ano a receita fiscal relativa aos hidrocarbonetos foi de 43,6 bilhões de dinares, ou seja, 66% do PIB do país. Os indicadores sociais são relativamente altos pelos padrões africanos e de países em desenvolvimento. O IDH da Líbia é de 0,798, ou seja, o país ocupa a 58ª posição no ranking mundial (total 177 países). O nível de pobreza é relativamente baixo e o nível de educação é elevado. As condições de saúde e habitação também são favoráveis. A expectativa de vida é de 74 anos e a taxa de alfabetização de 88%, bastante altas para os padrões africanos. A base material do país é peculiar visto que, de um lado, há expressivas reversas de hidrocarbonetos (40% das reservas de petróleo da África) e, de outro, há grave problema de abastecimento de água. Descontado o fato de que a Líbia é país de marcada orientação anticapitalista, pode-se argumentar que se assemelha mais aos pequenos países exportadores de petróleo do Golfo 3 Como se demonstrará adiante, as estimativas do FMI para a participação do setor petróleo e gás na economia líbia variam de 27% a 74%, conforme o critério de apuração, se a preços constantes de 1997 (quando os preços do petróleo estavam em patamares muito baixos) ou a preços correntes. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 46 Pérsico do que aos demais países do Magreb ou a qualquer outro país africano, incluído o vizinho Egito. QUADRO 3.1-I DADOS BÁSICOS – 2006 Território, mil km2 População, milhões PIB preços correntes US$ bilhões PIB per capita preços correntes US$ PIB PPP US$ bilhões PIB per capita PPP US$ PIB PPP, participação mundial % Expectativa de vida (2000-05) (anos) Taxa de alfabetização (2005) (%) Fontes: IMF, World Economic Outlook Database. Abril 2007. World Bank, World Development Indicators Online. 2006 1760 5,9 50,3 8430 72,9 12204 0,11 74 88,0 Os territórios que atualmente compõem a Líbia foram conquistados pelos romanos no primeiro século da Era Cristã e tornaram-se parte do Império Bizantino. As cidades mediterrâneas do norte do país, nas regiões da Tripolitania e da Cirenaica, tornaram-se ativos entrepostos comerciais. No século VII, os territórios foram invadidos pelos árabes que deram os fundamentos culturais e religiosos vigentes até hoje no país, através da difusão do islamismo e do seu idioma. No século XVI, houve o apogeu do Império Otomano, ocasião em que os turcos ocuparam áreas que iam do estreito de Gibraltar até o Golfo Pérsico, incluindo todo o norte da áfrica. Foi sob os turcos que as principais regiões da atual Líbia foram reunidas sob uma única administração. Quando da decadência do Império Otomano, a Líbia beneficiou-se de relativa autonomia. No início do século XX, as rivalidades internacionais dos países europeus e a incapacidade dos otomanos de controlar o território foram determinantes para a invasão da Líbia pela Itália em 1911. Iniciou-se, então, a fase de Colônia, em que as cidades costeiras continuavam fundamentalmente como entrepostos para o comércio marítimo no Mediterrâneo. Porém, contrariamente aos demais países africanos — tanto da costa oriental quanto ocidental —, a frágil base material da Líbia não permitiu sua R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 47 integração ao antigo sistema colonial. As populações do interior, boa parte constituída de nômades, viviam da economia de subsistência. Há registro de que a imigração italiana chegou a 100 mil pessoas neste período. A influência italiana é ainda remanescente no país, sobretudo no comércio exterior, na arquitetura belle époque, art nouveau e déco das cidades costeiras, como Trípoli, na hoje escassa presença da língua italiana e na desproporcionalmente grande quantidade de pizzarias existentes. Este período termina ao final da II Grande Guerra Mundial, com a derrota da Itália e o movimento de independência dos países africanos. A Líbia é ocupada por tropas francesas e britânicas de 1945 até 1951. Em 1951, ocorreu a independência e o país adotou o regime monárquico. No período pós-independência, a história econômica líbia é marcada por trajetória que muda de curso significativamente, conforme subperíodo considerado. O primeiro vai da independência, em 1951, até a descoberta e produção de petróleo no final dos 50s/início dos 60s. Nesta época, a Líbia tem um dos mais baixos níveis de renda per capita do mundo, que reflete a fragilidade da sua base material e uma formação histórica de país colonial. Conforme descrito em detalhes no Capítulo 4, do Panorama Energético, a descoberta do petróleo em Zelten em 1959 é o marco inaugural do processo determinante da moderna história econômica da Líbia. Inaugurou-se, então, o ciclo de expansão da economia do país que vai até o final dos anos 1970. Neste período houve acelerado crescimento da renda (14,2% a.a.), graças à expansão extraordinária da quantidade produzida e exportada de petróleo, tornando a Líbia um dos mais importantes fornecedores mundiais deste energético. As crises do petróleo de 1973 e 1979, com brutal elevação de seu preço internacional, foram choque positivo que também impulsionou a economia líbia. O Gráfico 3.1-I seguinte mostra que taxas de crescimento de dois dígitos foram freqüentes nas décadas de 60 e 70. No entanto, a extraordinária expansão econômica dos anos 1960 não reduziu o nível de pobreza da grande maioria da população, pois se manteve a enorme concentração da riqueza e da renda. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 48 GRÁFICO 3.1-I PIB, TAXA DE VARIAÇÃO REAL ANUAL 1961-2006 (%) 50,0 40,0 30,0 20,0 10,0 0,0 19 61 19 64 19 67 19 70 19 73 19 76 19 79 19 82 19 85 19 88 19 91 19 94 19 97 20 00 20 03 20 06 -10,0 -20,0 -30,0 Gross domestic product, constant prices, var. % PIB, var. %, média móvel 3 anos Fonte: IMF, World Economic Outlook Database. Abril 2007. No meio deste ciclo de expansão ocorreu o golpe militar de 1969, liderado pelo coronel Gadhafi que depôs o rei Ídris, estabeleceu um regime que se pretende original, marcado por forte autoritarismo e pelo culto à personalidade do “Líder”, o qual se mantém até os dias de hoje. Como constatou a missão REISE para o trabalho de campo em Trípoli, há três tipos de outdoor na cidade: os que portam fotografias do Líder em diversas poses, os alusivos ao 37º aniversário da Revolução e os que ostentam mensagens de propaganda do regime, sobretudo afirmando que “sem segurança interna não pode haver liberdade”. Os novos grupos dirigentes deram inicialmente orientação socialista à economia do país, abolindo a propriedade privada dos meios de produção — hoje restabelecida em certos setores —, criando novas empresas estatais e nacionalizando propriedades estrangeiras, com destaque para as empresas de petróleo. Em 1972 os partidos políticos foram proscritos. A riqueza gerada pelas exportações de petróleo foi o instrumento econômico que permitiu a Líbia assumir posições radicais na arena internacional, principalmente, quando se tratava de assuntos próprios ao R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 49 mercado internacional de petróleo e aos processos políticos no mundo árabe. A Líbia tornou-se um dos mais pró-ativos membros da OPEP. Em conseqüência, na década dos 80 houve uma escalada de atitudes radicais e de confronto com os EUA e o mundo desenvolvido que resultaram no isolamento do país, conforme descrito em detalhes nos Capítulos 2 e 4 deste Relatório. Como se observa no Gráfico 3.1-I anterior, um novo ciclo econômico doméstico tem início em 1980 e se estende até 2002, determinado em grande medida pela longa “anemia” dos preços do petróleo, como mostra o Gráfico 3.1-II seguinte. Este ciclo é de estagnação e, até mesmo, de retrocesso da economia líbia, excluída do comércio internacional de sua principal commodity pelo embargo ditado primeiro pelos EUA e depois adotado também pelas Nações Unidas. A taxa média anual de crescimento real do PIB no período é negativa (-0,66%). Ademais, a estratégia de diversificação da estrutura produtiva, intentada ao longo das últimas três décadas, fracassou. GRÁFICO 3.1-II PIB E PREÇO DO PETRÓLEO 1961-2006 70,00 50,0 60,00 40,0 50,00 30,0 20,0 40,00 10,0 30,00 0,0 20,00 -10,0 -20,0 0,00 -30,0 19 60 19 63 19 66 19 69 19 72 19 75 19 78 19 81 19 84 19 87 19 90 19 93 19 96 19 99 20 02 20 05 10,00 Petróleo cru, média simples Dubai/Brent/Texas (US$/barril) PIB real, var. % Fonte: IMF, World Economic Outlook Database. Abril 2007. No final dos anos 90 aparecem os primeiros indícios de mudanças na orientação econômica do país. Em 1997, o governo estabelece novo quadro jurídico-institucional para regulamentar o IED no país, como o objetivo de atrair R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 50 capitais para o setor de hidrocarbonetos e sinalizar mudanças de estratégia no sentido de maior abertura econômica do país. O último ciclo econômico, que perdura até o momento, tem como marco determinante a sustentada elevação do preço do petróleo a partir de 2003. Nos últimos quatro anos a economia líbia cresceu à taxa média anual de 5,7%, ligeiramente inferior à taxa média de longo prazo (1961-2006) de 6,1%, e maior que as taxas médias de crescimento dos países desenvolvidos e do conjunto da economia mundial, como mostra o Quadro 3.1-II seguinte. Em relação ao conjunto dos países africanos, a Líbia tem desempenho superior ao da média regional. No entanto, comparativamente ao conjunto dos países em desenvolvimento, a Líbia tem desempenho inferior à média, influenciada pela China, Índia e outros emergentes. Vale destacar que, segundo projeções demográficas para os próximos anos, a taxa de crescimento populacional da Líbia (1,8%) é maior do que a taxa média mundial (1,0%), mas inferior à projetada para o conjunto dos países muçulmanos. QUADRO 3.1-II CRESCIMENTO DO PIB REAL 2003-06 (%) 2003 2004 2005 2006 Média Mundo 4,0 5,3 4,9 5,4 4,9 Países desenvolvidos 1.9 3.3 2.5 3.1 2,7 Países em desenvolvimento 6,7 7,7 7,5 7,9 7,5 África 4,7 5,8 5,6 5,5 5,4 Líbia 5,9 5,0 6,3 5,6 5,7 Fonte: IMF, World Economic Outlook Database. Abril 2007. 3.2 PRODUÇÃO, INVESTIMENTO E EMPREGO O setor de hidrocarbonetos é predominante na economia da Líbia. Representa 27,7% do PIB, como mostra o Quadro 3.2-I seguinte. Como o setor é pouco intensivo em mão-de-obra, sua participação no emprego total é modesta (2,7%). Tendo em vista a orientação ideológica exótica da economia líbia, bastante estatizada, não é surpresa que os serviços públicos, inclusive de R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 51 saúde e educação, respondam pela maior geração de emprego (51,0%) no país. Os serviços públicos também são responsáveis pelos maiores investimentos na formação bruta de capital fixo. QUADRO 3.2-I IMPORTÂNCIA RELATIVA DOS SETORES % Produção (PIB) Investimento (FBCF) Emprego 2005 2005 2004 Petróleo e gás 27,7 12,5 2,7 Serviços públicos, incl. saúde e educação 17,0 17,6 51,0 Comércio, hotéis e restaurantes 12,6 0,5 11,1 Transporte, comun. e armaz. 10,0 10,6 3,8 Agricultura, pesca e extr. vegetal 8,6 9,2 7,1 Indústria de transformação 4,1 3,6 11,8 Outros 20,0 46,1 12,6 Total 100,0 100,0 100,0 Fonte: IMF Country Report No. 07/148, May 2007, p. 5-7. Nota: Distribuição do PIB a preços constantes de1997. Distribuição do investimento a preços correntes. A frágil base material da Líbia está expressa, também, na pequena importância relativa da indústria de transformação no conjunto das atividades econômicas. Este setor responde por cerca de 4% da geração de renda e dos investimentos. Dentre os principais ramos industriais, os destaques são petroquímica, ferro, aço, alumínio, alimentos, têxteis e cimento. Destaca-se o papel protagônico do setor de hidrocarbonetos. A contribuição do setor para a formação bruta de capital fixo no ano de referência do Quadro anterior foi relativamente modesta porque em 2005 ainda não se faziam sentir os novos investimentos programados em exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás — parte dos quais não é retida no país, pois parcela expressiva da renda paga aos fatores aí empregados vai para o exterior — e, sobretudo, aqueles previstos para a infra-estrutura (dutovias, tancagem, etc.), refino, plantas de processamento de gás, termelétricas, etc. A geração de emprego e renda deste setor também dará contribuição mais significativa do que a observada em 2004, em função da intensificação das atividades em geral (construção, E&P, etc.) do setor de hidrocarbonetos. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 52 Outra observação importante é que o peso relativo do setor de petróleo e gás está muito subestimado no Quadro 3.2-I anterior, porque os dados sobre distribuição do PIB estão valorados “a preços constantes de 1997” (próximo, portanto, do vale dos preços de hidrocarbonetos, ocorrido em 1998). Houve fortes mudanças de preços relativos nos últimos dez anos, principalmente, entre os preços do setor de hidrocarbonetos e o resto da economia, como discutido mais adiante. Portanto, quando se consideram estas mudanças, ou seja, quando se calculam as participações relativas com valores “a preços correntes”, chega-se a resultados muito distintos. A preços correntes, a participação do setor de hidrocarbonetos no PIB aumenta de 56% em 2002 para 74% em 2005, como mostra o relatório recente (p.4) do FMI. No ciclo recente de expansão, o setor de hidrocarbonetos tem crescido a taxas maiores do que as taxas de crescimento do PIB do setor não-petróleo, como mostra o Gráfico 3.2-I a seguir. Com exceção de 2006, em todos os anos, o setor de hidrocarbonetos tem sido mais dinâmico que os demais setores da economia Líbia. GRÁFICO 3.2-I CRESCIMENTO REAL DA PRODUÇÃO SEGUNDO O SETOR (%) 2004-06 20,0 17,7 15,0 10,0 5,0 5,9 2,2 9,3 7,4 5,0 4,1 8,3 6,3 5,5 6,1 5,6 4,4 2004 2005 2006 5,7 4,5 0,0 2003 PIB Hidrocarbonetos Média Não hidrocarbonetos Fonte: IMF Country Report No. 07/149, May 2007, p. 5-7. Nota: Estimativas preliminares para 2006. Os dados disponíveis não permitem analisar a evolução econômica da Líbia segundo a ótica dos gastos. No entanto, há evidências a respeito da taxa de investimento. De acordo com o órgão líbio, equivalente ao ministério de planejamento, citado pelo FMI, em 2005, o volume total de investimentos R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 53 (formação bruta de capital fixo) foi de 4807 milhões de dinares (US$ 3.7 bilhões), enquanto o PIB foi de 54540 milhões de dinares (US$ 42 bilhões), o que apontaria para uma taxa de investimento de apenas 8,8% (FMI, op. cit., p. 4 e 6), valor que se supõe subestimado. Examinando as contas públicas, verifica-se que os gastos de capital do governo chegaram a 16,8% do PIB em 2006, a maior parte dos quais devem corresponder à formação bruta de capital fixo tendo em vista que o Estado líbio não faz grandes inversões financeiras nem tem de efetuar grandes reduções de passivos. Além disso, numa economia em que o setor privado é bastante modesto, cabe ao Estado uma grande responsabilidade pelos investimentos fixos, como os grandes projetos de infra-estrutura em curso: estradas, ferrovias, telecomunicações, irrigação e abastecimento de água. Na economia líbia, a demanda externa líquida (exportação menos importação de bens e serviços) é o fator mais dinâmico de expansão da demanda agregada. A este propósito, dois fatos são relevantes: (i) elevado grau de abertura, visto que em 2006 as exportações de bens responderam por 78% do PIB, enquanto as importações de bens e serviços representaram 31% do PIB; e, (ii) elevado superávit da balança comercial de bens (US$ 25,9 bilhões em 2006) e déficit relativamente pequeno da balança de serviços (US$ 2,2 bilhões em 2006). Como percentagem do PIB, a demanda externa líquida (valores correntes) tem crescido continuamente desde 2003, como mostra o Gráfico 3.2-II seguinte, com uma média no período situada em 37,4%. Obviamente, a exportação de petróleo desempenha o papel de motor do crescimento no atual ciclo de expansão. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 54 GRÁFICO 3.2-II PARTICIPAÇÃO DA DEMANDA EXTERNA LÍQUIDA NO PIB (%) 2003-06 50,0 43,6 40,0 30,0 47,1 37,4 33,1 25,8 20,0 10,0 0,0 2003 2004 2005 2006 Média Fonte: Elaboração própria com base em IMF Country Report No. 07/149, May 2007, p. 22. Cálculo com valores correntes. Nota: Estimativas preliminares para 2006. A receita fiscal do governo central é superior a 70% do PIB. A produção e a exportação de petróleo e gás são praticamente as únicas bases de tributação utilizadas na Líbia. O setor público responde pela maioria dos gastos na economia e é através do Estado que funciona predominantemente o esquema de apropriação do excedente econômico. 3.3 INFLAÇÃO, CÂMBIO, JURO, CRÉDITO E FINANÇAS PÚBLICAS A total dependência da economia da Líbia ao petróleo implica enorme vulnerabilidade externa estrutural. Nos ciclos de forte demanda de petróleo, como o atual, a Líbia se beneficia do aumento das exportações e da melhora dos termos de troca, em função da elevação dos preços internacionais do petróleo. A atual conjuntura internacional tem sido particularmente favorável à Líbia. Os indicadores macroeconômicos de curto prazo indicam claramente a situação de estabilidade com crescimento econômico do país. Como dito anteriormente, o setor público é fornecedor de muitos serviços e, portanto, o governo retém instrumento importante de controle da inflação através dos preços administrados. Ademais, o Estado subsidia a produção e o consumo de inúmeros setores, principalmente, alimentos (farinha, R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 55 óleos vegetais, arroz, etc). Em 2005 estes subsídios atingiram 839 milhões de dinares (US$ 650 milhões), ou seja, cerca de 2,0% do PIB. Nos últimos quatro anos, a variação do nível geral de preços oscilou da deflação de 2,2% em 2004 para a inflação de 3,4% em 2006, como mostra o Quadro 3.3-I seguinte. Em grande parte isso se deve à estabilidade da taxa de câmbio nos últimos anos (1,30 dinares por US$), garantida pelo elevado superávit do balanço de pagamentos. A estabilidade cambial funciona como instrumento de controle da inflação, principalmente, em economias com elevado grau de penetração das importações como é o caso em questão. O resultado é que praticamente não há pressão inflacionária. QUADRO 3.3-I INDICADORES MONETÁRIOS (em %) 2004-06 2003 2004 2005 2006 Taxa de inflação (IPC) % -2,1 -2,2 2,0 3,4 Taxa de juro, depósito um ano, % 5,5 4,5 4,5 .. Petróleo líbio (preço US$/bbl) 28,2 36,9 51,9 62,5 Taxa de câmbio (dinares / US$) 1,28 1,30 1,31 1,31 Meios de pagamento, var. % 8,1 9,2 29,2 20,2 Crédito para a economia, var. % 6,6 -0,7 4,5 6,2 Crédito para o setor privado, var. % -1,1 1,1 0,8 1,6 Fonte: Elaboração própria com base em IMF Country Report No. 07/149, May 2007, p. 19. Nota: Estimativas preliminares para 2006. A política monetária é moderada. A taxa de juro nominal em 2005 (depósito de um ano) foi de 4,5% frente à inflação de 2,0% naquele ano, taxa de juro essa que tem-se mantido relativamente estável. Tendo em vista a fragilidade e falta de sofisticação do mercado financeiro líbio, a questão monetária mais relevante é a expansão dos meios de pagamento. Em 2005-06 esta expansão foi entre 3 a 4 vezes superior ao crescimento do PIB nominal. Por outro lado, os créditos para o conjunto da economia e para o setor privado têm- se expandido a taxas relativamente baixas. A situação fiscal é extraordinariamente confortável tendo em vista o mega-superávit do setor público, como mostra o Quadro 3.3-II a seguir. Este superávit tem crescido continuamente nos últimos anos, atingindo 38,6% do PIB em 2006. Esta tendência tem dois fatores explicativos. De um lado, há o R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 56 crescimento da receita fiscal em decorrência da elevação dos preços do petróleo. De outro, há aumento do valor absoluto das despesas totais, mas redução destas despesas como proporção do PIB. Para ilustrar, em 2006 a receita fiscal aumentou 25,9% e a despesa aumentou apenas 12,2%. QUADRO 3.3-II FINANÇAS PÚBLICAS - Setor Público Consolidado 2004-06 (% do PIB) 2003 2004 2005 2006 53,9 Receita total 58,5 68,6 71,2 47,1 Setor petróleo e gás 50,6 63,7 65,9 6,8 Setor não-petróleo 7,9 4,9 5,3 43,4 Despesa 43,3 34,9 32,3 14,8 Saldo 17,4 30,0 38,6 Fonte: Elaboração própria com base em IMF Country Report No. 07/149, May 2007, p. 19. Nota: Estimativas preliminares para 2006. A despesa fiscal representou 32,3% do PIB em 2006, enquanto a receita chegou a 71,2% do PIB. Aproximadamente 60% dos gastos públicos referemse a gastos de capital em projetos de desenvolvimento. Como proporção do PIB, os gastos de capital do governo chegaram a 16,8% em 2006. Estes indicadores a respeito das finanças públicas somente são viáveis em função do comportamento dos preços dos hidrocarbonetos e do elevado grau de intervenção do Estado na economia líbia. O ponto central é o papel protagônico dos hidrocarbonetos para as finanças públicas. Em 2006, o government take sobre petróleo e gás representou 92,6% da receita fiscal total. Por outro lado, isto evidencia a enorme fragilidade estrutural da economia líbia e de suas contas públicas em relação ao preço internacional do petróleo. A Líbia não tem desequilíbrios de estoque associados à dívida pública interna e externa. Ambas representam menos de 5% do PIB. Considerando o mega-superávit fiscal (39% em 2006) e o volume de reservas internacionais (1,5 vezes o PIB em 2006), estas dívidas são desprezíveis. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 57 3.4 SETOR EXTERNO A Líbia tem elevado grau de abertura externa. Em 2006 a relação entre as exportações de bens e serviços e o PIB foi de 77,2%. Portanto, a evolução econômica do país depende sobremaneira das suas contas externas. Na atual conjuntura favorável da economia mundial e com preços de petróleo elevados, as contas externas da Líbia têm apresentado resultados excepcionais, como mostra o Quadro 3.4-I seguinte. O superávit global do balanço de pagamentos cresceu continuamente, de pouco mais de US$ 3 bilhões em 2003 para mais de US$ 18 bilhões em 2006. Como proporção do PIB, também há tendência de aumento. Este desempenho das contas externas é explicado, pela elevação da quantidade exportada de petróleo e, principalmente, pelo aumento dos preços internacionais do petróleo. Este preço mais do que duplicou nos últimos quatro anos. QUADRO 3.4-I EXPORTAÇÕES DE PETRÓLEO E BALANÇO DE PAGAMENTOS 2003 2004 2005 2006 3,1 Saldo balanço de pagamentos US$ bilhões 4,6 15,4 18,7 13,0 Saldo balanço de pagamentos % PIB 15,2 37,0 37,1 14,2 Hidrocarbonetos, exportações, FOB, US$ 19,5 30,4 38,3 1,53 Petróleo cru, produção, milhões de barris, diário 1,62 1,69 1,75 28,2 Petróleo, preço (US$/bbl) 36,9 51,9 62,5 Fonte: Elaboração própria com base em IMF Country Report No. 07/149, May 2007, p. 19. Nota: Estimativas preliminares para 2006. Conforme assinalado anteriormente, o padrão de comércio extremamente concentrado no petróleo também evidencia a vulnerabilidade das contas externas. Em 2006, a Líbia exportou US$ 38,831 milhões em bens, sendo que os hidrocarbonetos responderam por US$ 38,251 milhões, ou seja, 98,5% do total, como mostra o Quadro 3.4-II seguinte. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 58 QUADRO 3.4-II CONTAS EXTERNAS 2003-06 (US$ milhões) 2003 2004 2005 2006 5158 Conta corrente, saldo 7410 17325 24419 6292 Balança comercial, bens e serviços 10165 18240 23728 7447 Balança comercial de bens 11642 20072 25905 14647 Exportações de bens 20410 30948 38831 14159 Petróleo e gás 19533 30448 38251 -7200 Importações de bens -8768 -10875 -12925 -1155 Serviços -1477 -1832 -2177 540 Renda (líq.) -246 -281 45 -1673 Transferências (líq.) -2509 -634 646 -316 Conta de capital e financeira -1830 72 -4544 -1720 Erros e omissões -944 -1975 -1188 3122 Saldo 4637 15422 18687 Fonte: Elaboração própria com base em IMF Country Report No. 07/149, May 2007, p. 22. Nota: Estimativas preliminares para 2006. Após longo período de embargo comercial, as importações também têm crescido significativamente. O crescimento econômico, o elevado grau de abertura comercial e o baixo grau de industrialização e de desenvolvimento do setor produtivo não-petróleo têm sido as causas do crescimento das importações. A relação entre a importação de bens e o PIB foi de 25,7% em 2006. Vale notar que a tarifa aduaneira é zero, com exceção de tabaco que é de 10%. Os principais itens de importação são máquinas e equipamento de transporte, insumos e produtos alimentícios. Ou seja, a fragilidade estrutural da economia da Líbia evidencia-se na importação tanto de bens de capital, quanto de bens de consumo duráveis. Como já mencionado, a Líbia importa 75% dos produtos alimentícios consumidos no país. As bebidas alcoólicas são proibidas. A conta de serviços é deficitária. No entanto, este déficit é pouco expressivo frente ao superávit da balança comercial. A conta de renda de fatores tem dois elementos principais: as despesas referentes às remessas de lucros e dividendos por empresas estrangeiras atuando no país e a receita de juro decorrente da aplicação das reservas internacionais do país. O saldo da conta de renda tende a ser pequeno, ora positivo, ora negativo. As remessas de lucros são, principalmente, de empresas que atuam no setor de hidrocarbonetos. Este valor tem crescido continuamente R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 59 nos últimos anos em decorrência do aumento da produção e da receita. Em 2006, chegou a US$ 2,3 bilhões. A conta financeira tem comportamento irregular. Houve superávit de US$ 72 milhões em 2005 e déficit de US$ 4,5 bilhões em 2006. Em 2005-06, o principal item de receita foi o investimento externo direto que aumentou de US$ 1,5 bilhões em 2005 para US$ 1,9 bilhões em 2006. Os saldos globais positivos e crescentes têm permitido o aumento contínuo das reservas internacionais nos últimos quatro anos: de US$ 19,5 bilhões em dezembro de 2003, para US$ 75,6 bilhões em dezembro de 2006. A relação entre as reservas e as importações também aumentou continuamente no período 2003-06. Houve, portanto, redução da vulnerabilidade financeira externa do país. A maior parte do comércio exterior da Líbia é com países da Europa Ocidental, sobretudo os da bacia do Mediterrâneo. Por estar tão próxima, a Itália é o principal país comprador do petróleo e do gás líbios, e contribui com aproximadamente 40% das receitas de exportação da Líbia. Outros dois países europeus, Espanha e Alemanha, são destinos, cada um deles, de 10% das exportações da Líbia. No que se refere às importações, os principais países de origem das compras externas líbias também são europeus, ainda que haja maior diversificação geográfica. Itália e Alemanha responderam por 11,9% e 9,3%, respectivamente, do valor importado de bens em 2005. Nos últimos anos, os países europeus têm perdido posição como fornecedores de produtos para a Líbia em favor de exportadores dos países do Sudeste da Ásia. Em 2005 os Estados Unidos responderam por apenas 3,0% do valor total importado pela Líbia, mostrando que os efeitos da suspensão do embargo não são imediatos. A situação das contas externas da Líbia reproduz o mesmo padrão observado em vários países em desenvolvimento, sobretudo da América Latina e da África, no passado recente. A elevação do preço das commodities a partir de 2003 tem permitido a melhora significativa das contas externas, das finanças públicas e da situação macroeconômica da Líbia, sem, no entanto, reduzir sua extraordinária vulnerabilidade externa. O resultado é que as contas R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 60 externas, as finanças públicas e o desempenho econômico dependem, fundamentalmente, do preço internacional do petróleo. Portanto, restam para a Líbia algumas perguntas fundamentais: até quando durará a era do petróleo e do gás como principal fonte de energia primária consumida no mundo? Preocupações sérias com o efeito-estufa e o surgimento de combustíveis líquidos substitutos podem abreviar este prazo? Os patamares de preços do petróleo e do gás permanecerão elevados no futuro? 3.5 PREVISÕES E INCERTEZAS CRÍTICAS Tendo em vista a total dependência da Líbia em relação ao preço internacional do petróleo, os cenários de longo prazo são condicionados, fundamentalmente, por esta variável exógena. O cenário de base do FMI para a Líbia supõe a estabilidade do preço do petróleo exportado pelo país em nível próximo de US$ 62 o barril para o período 2007-11, como mostra o Quadro 3.5I seguinte. QUADRO 3.5-I PROJEÇÕES PARA 2007-09 2007 7,9 7,2 25,6 24,6 -33,5 75,6 2008 2009 2010 2011 8,1 6,9 6,4 6,8 8,5 2,8 2,1 1,9 25,7 25,6 24,9 24,1 27,6 26,7 26,5 24,9 -31,0 -31,7 -31,9 -33,6 95,1 117,2 141,3 167,8 PIB, var. % Inflação, deflator do PIB % Saldo conta corrente do balanço de pagamentos (% PIB) Saldo setor público (% PIB) Saldo primário setor público não-petróleo (% PIB) Reservas internacionais (US$ bilhões) Reservas internacionais 30,0 33,5 36,4 38,6 (meses de importações bens e serviços) Preço do petróleo líbio (US$ por barril) 59,1 62,9 62,7 62,5 Petróleo cru, produção milhões barris/dia 1,89 2,13 2,36 2,60 Exportação de petróleo, US$ bilhões 39,1 46,9 52,0 57,1 Fontes: Fonte: Elaboração própria com base em IMF Country Report No. 07/149, May 2007, p. 22. Nota: Estimativas preliminares para 2006. 40,3 62,0 2,88 63,0 A desaceleração moderada da economia mundial e a estabilidade do preço internacional do petróleo não devem provocar redução da taxa de crescimento econômico da Líbia a partir de 2007. A expectativa é que as reformas liberalizantes na esfera produtivo-real, com maior atração de empresas estrangeiras e privatização, resultem em aumento dos investimentos. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 61 O quadro de estabilização macroeconômica deve continuar com taxas de inflação baixas e decrescentes, contas externas confortáveis e finanças públicas superavitárias. O superávit do balanço de pagamentos deverá manter-se relativamente estável em torno de 25% do PIB. A estabilidade do preço internacional do petróleo e o aumento da quantidade vendida ao exterior permitirão receitas crescentes de exportação. Neste sentido, vale notar que a intenção do governo é duplicar a produção de petróleo até 2015. Para isto, estima-se que serão necessários investimentos da ordem de US$ 30 bilhões. A expectativa é que parte destes investimentos seja proveniente do exterior na forma de investimento externo direto por meio de joint ventures. A incerteza crítica está, naturalmente, no front externo e refere-se à evolução do preço internacional do petróleo. No entanto, vale destacar que há fatores endógenos importantes que afetam a qualidade do ambiente de negócios na Líbia. Estes fatores relacionam-se não somente à evolução econômica como também ao processo político e às condições institucionais do país. 3.6 O AMBIENTE DE NEGÓCIOS O marco jurídico-institucional que baliza o ambiente de negócios na Líbia é determinado pela natureza autoritária do Estado e pelo alto grau de sua intervenção na economia. O Judiciário é controlado diretamente pelo poder Executivo e há restrições aos direitos políticos e civis. Os controles na economia estendem-se aos preços de bens e serviços, comércio interno e externo, crédito e mercado cambial. Desde o final dos anos 1990 o governo tem adotado medidas liberalizantes e estímulos para o ingresso de IED. A partir de 2003 novas medidas na mesma direção têm sido implementadas de forma gradual: redução dos subsídios, planos de privatização, pedido de acesso à OMC e reformas focadas na expansão do mecanismo de mercado para regular as transações entre pessoas. É bem verdade que o processo de privatização não parece ter avançado desde seu anúncio em 2003. Por outro lado, empresas transnacionais, R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 62 principalmente, no setor de hidrocarbonetos, estão voltando a operar na Líbia. E, o governo tem também estimulado o turismo, que antes era impossível e hoje é ainda precário. No conjunto de medidas recentes podem ser destacadas as seguintes: • restrição ao monopólio estatal da importação para produtos petrolíferos e armamentos • proibições de importação de bens foram limitadas a um conjunto de 10 produtos • fortalecimento da supervisão bancária e modernização do sistema de pagamentos • modernização do sistema de arrecadação de impostos • redução dos impostos sobre o consumo • expansão do sistema de juntas comerciais orientadas para facilitar a abertura de negócios • redução do preço da energia elétrica • redução do limite mínimo para investimento externo direto (IED) no setor não-petróleo de US$ 50 milhões para US$ 1,5 milhão • controles mais seletivos quanto ao IED em setores de comércio e importação • IED no setor não-petróleo deve ser feito por meio de joint ventures com um mínimo de 35% de participação local O governo planeja duplicar a produção de petróleo até 2015. As estimativas apontam para a necessidade de investimentos da ordem de US$ 30 bilhões. Empresas estadunidenses (sobretudo ExxonMobil e ChevronTexaco, que estão voltando), européias e de outros países (China, Índia e Indonésia) já estão realizando investimentos no E&P. No que se refere aos fundamentos macroeconômicos, o quadro é favorável tendo em vista as perspectivas de crescimento da renda, o controle da inflação, as finanças públicas superavitárias e as contas externas robustas. No geral, a Líbia apresenta condições macroeconômicas favoráveis e bem superiores às de muitos países em desenvolvimento da África e da América Latina. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 63 A análise do ambiente de negócios na Líbia é dificultada pelo fato de que dados não existem ou não estão disponíveis. Assim, para ilustrar, a Líbia não consta do painel de 175 países que são examinados pelo Banco Mundial na publicação Doing Business. O mesmo acontece com a publicação do Fórum Econômico Mundial de Davos, Global Competitiveness Report, que abrange 125 países. Não obstante, vale mencionar que a infra-estrutura é certamente uma das principais restrições existentes na Líbia. Não é por outra razão que o governo tem promovido investimentos nesta área. No que se refere à institucionalidade, a própria transição para um sistema de mercado mais livre envolve riscos e incertezas derivados do processo de learning by doing. A fragilidade do aparelho de estado da Líbia para lidar com as mudanças institucionais em curso também aparece como incerteza crítica. O único indicador abrangente a respeito do ambiente de negócios da Líbia é o Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, que abarca 157 países. O índice médio mundial é 60,6 e o da Líbia é de 34,5 como mostra o Quadro 3.6-I seguinte. A situação da Líbia é menos favorável do que a do Brasil quando se consideram todas as condições que afetam o ambiente de negócios, com exceção da questão monetária e da inflação. Entretanto, o ponto a destacar é que no conjunto de 157 países do painel, Líbia está na antepenúltima posição, ou seja, somente outros dois países (Cuba e Coréia do Norte) têm índices de liberdade econômica inferiores ao da Líbia. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 64 QUADRO 3.6-I ÍNDICE DE LIBERDADE ECONÔMICA 2007 Líbia 34,5 20,0 29,6 87,8 23,5 78,9 30,0 20,0 10,0 25,0 20,0 Índice geral Liberdade para negócios Comércio exterior Tributação Gastos do governo Questão monetária e inflação Investimento externo Setor financeiro Direitos de propriedade Corrupção Mercado de trabalho Brasil 60,9 53,3 64,8 88,6 88,8 72,6 50,0 40,0 50,0 37,0 63,8 Fonte: The Heritage Foundation, Index of Economic Freedom Nota: Painel = 157 países. O ambiente de negócios também é particularmente desfavorável devido à corrupção. O Relatório Anual da organização Transparência Internacional de 2006 coloca a Líbia na 122ª posição em um painel de 159 países, no mesmo bloco em que se encontram Bolívia e Equador. Segundo o Índice de Liberdade Econômica do Heritage Foundation tem havido melhora gradual do ambiente de negócios na Líbia nos últimos três anos, como mostra o Gráfico 3.6-I seguinte. Esta melhora reflete não somente a confortável situação macroeconômica como também as reformas que estão sendo implementadas gradualmente pelo governo. GRÁFICO 3.6-I LIBERDADE ECONÔMICA, EVOLUÇÃO DO ÍNDICE 1998-07 20 07 20 06 20 05 20 04 20 03 20 02 20 01 20 00 19 99 19 98 19 97 19 96 40 35 30 25 20 15 10 5 0 Fonte: The Heritage Foundation Nota: O ano refere-se à data de publicação do relatório. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 65 As deficiências institucionais e o regime político fazem com que para navegar no ambiente de negócios do país seja recomendável — poder-se-ia dizer, necessário — ter um parceiro líbio, seja um sócio ou, como se autointitulam, um “padrinho”. Este parceiro deve ser capaz de circular com desenvoltura nos círculos de poder, particularmente junto à família do Líder Ghadafi, cujos filhos e parentes também participam das decisões tanto “a favor” quanto “contra” os negócios, podendo viabilizá-los ou torná-los inexeqüíveis. Evidentemente há uma escala de cobrança de comissões que depende do tipo e tamanho do negócio. Os candidatos a “padrinho” visitam as empresas transnacionais oferecendo-se para intermediar contatos e relações. Em muitos negócios a presença de um sócio local é exigida, mas sua participação nos resultados não tem correlação com o investimento que teria (ou não teria) que fazer. As mudanças estruturais estão sendo implementadas de forma gradual, ao mesmo tempo em que permanecem as deficiências da infra-estrutura, a fragilidade das instituições e a inoperância do mecanismo de mercado. Ademais, a vulnerabilidade externa estrutural do país não deve alterarse significativamente no horizonte de médio e longo prazo tendo em vista a ênfase na duplicação da produção de petróleo e as dificuldades quanto à diversificação da economia. Além das incertezas críticas, vale notar que a Líbia tem duas sérias restrições para a diversificação da estrutura produtiva: o reduzido tamanho do mercado interno e a pobre dotação de fatores (recursos naturais, exceto hidrocarbonetos). Por fim, não se deve descartar a questão da instabilidade política, tendo em vista a natureza do regime político. A sucessão de Ghadaffi pode criar a “janela de oportunidades” para mudanças no bloco dirigente e, com isso, gerar tensões no processo político interno. Estas tensões podem desdobrar-se em mudanças abruptas nas condições econômicas do país. Deve-se frisar que após 37 anos no poder, não exercendo nenhum cargo executivo no governo, o Líder Ghadafi não desgastou sua autoridade. Imagina-se que será sucedido por algum de seus filhos, mas não se sabe exatamente qual. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 66 4 – PANORAMA ENERGÉTICO 4.1- INTRODUÇÃO E PEQUENO HISTÓRICO DA INDÚSTRIA No início da Segunda Guerra Mundial, o Eixo (Alemanha–Itália) planejara assumir o controle do Oriente Médio, para cortar o suprimento de petróleo para os aliados. Nesta determinação estratégica, os alemães invadiram o Cáucaso enquanto as tropas italianas, sob o comando do General Graziani, depois reforçadas pelas tropas alemãs sob o comando do General Rommel, saíram da Líbia, então colônia italiana, também em direção ao Oriente Médio, como ilustra o Mapa 4.1-I seguinte. Mais tarde, as tropas do Cáucaso acabaram sendo aniquiladas pela União Soviética e as do norte da África foram definitivamente detidas, já dentro do Egito, perto da fronteira com a Líbia, pelos contingentes britânicos, sob o comando do General Montgomery, na histórica batalha de El-Alamein, cujos detalhes podem ser vistos nos hiperlinks (The Battle of al-Alamein e El Alamein. Boa parte dos tanques alemães e italianos teria sido imobilizada, não por Montgomery, e sim, paradoxal e ironicamentemente, por falta de combustível. Este episódio trouxe alguns ensinamentos. Em primeiro lugar, reforçou o fato da fundamental importância estratégica do petróleo em qualquer conflito bélico do passado, do presente e do futuro. Depois, há que se refletir sobre a omissão italiana de não explorar conveniente e competentemente o petróleo das bacias sedimentares de suas poucas colônias. De fato, os tanques de Graziani e Rommel acabaram ficando sem combustível quase em cima dos prolíficos campos petrolíferos da Líbia, que viriam a ser descobertos a partir da década de 50, principalmente pelas empresas americanas, transformando esta região numa das mais importantes províncias produtoras de petróleo do mundo. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 67 MAPA 4.1-I FRENTES DE INVASÃO DAS TROPAS DO EIXO NA 2a. GUERRA A Líbia é um país de dimensões médias, ocupando em sua parte emersa cerca de 1.750.000 km², situado na parte central do norte da África, entre o Egito e a Tunísia, conforme ilustra o Mapa 4.1-II seguinte. Sua costa no Mar Mediterrâneo estende-se por 1.800 km. A Líbia é o quarto país em área entre os países da África e o 15º entre os países do mundo. Porém, mais de 90% do território líbio constitui-se de terras semidesérticas e desérticas que compõem o eco-sistema do Sahara. A parte mais habitada é a estreita faixa litorânea, a beira do Mar Mediterrâneo, entre as cidades de Trípoli, a capital, e Tobruk, no oriente, já quase na fronteira com o Egito. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 68 MAPA 4.2-II LOCALIZAÇÃO DA LÍBIA NO NORTE DA ÁFRICA A população líbia é de pouco menos de 6.000.000 de habitantes (menor que à população do Município do Rio de Janeiro), constituída fundamentalmente por Árabes e Berberes. Além do petróleo e do gás natural, o país produz escassos recursos minerais e agrícolas. Devido ao processo de desertificação, os líbios enfrentam sérios problemas para manter-se autosuficiente em alimentos e em água. A Líbia ocupa uma posição geográfica estratégica, na parte central do Mar Mediterrâneo, muito próxima dos países europeus, principalmente os do sul da Europa, dos países africanos e dos países do Oriente Médio, conforme ilustra o Mapa 4.1-III a seguir. Desfruta, assim, localização altamente favorável do ponto de vista logístico e de acesso aos mercados europeus para os quais exporta petróleo e gás natural em condições bem mais vantajosas do que aquelas do Oriente Médio. A partir dos anos 50, no sul da Líbia, através dos poços perfurados no deserto pelas companhias de petróleo norte-americanas, descobriram-se grandes reservatórios de água doce fóssil, proveniente de aqüíferos profundos. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 69 MAPA 4.1-III BACIA DO MEDITERRÂNEO POSIÇÃO ESTRATÉGICA DA LÍBIA Fonte: National Geographic Através de datações por isótopos, determinaram-se idades para estas águas variando entre 7.000 e 38.000 anos atrás, quando aparentemente o clima do Sahara era completamente diferente. Existem quatro áreas, em bacias sedimentares, com interesse para extrair água subterrânea. Na Bacia de Kufra que fica no sudoeste da Líbia, ocupando uma área de 350.000 km², foi descoberto um aqüífero a 2.000 m de profundidade com reservas da ordem de 20.000 km³ de água doce. Nas bacias de Sirte e de Murzuk também existem reservas significativas de água doce, sem contar com outras áreas menores. Em função disso e das extremas dificuldades para irrigar terras agrícolas, a Líbia desenvolveu o Projeto GMR (Great Man-Made River), orçado em mais de trinta bilhões de dólares e programado para ser desenvolvido em cinco fases ao longo do tempo. No momento, está sendo completada a Fase III. O projeto inclui a perfuração de numerosos poços profundos para a produção de água doce no deserto, a construção de estações de armazenamento e recalque, bem como a construção de uma rede de canais, R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 70 em boa parte constituída por grandes dutos enterrados, para levar água doce à toda faixa costeira, de Trípoli a Tobruk. O líder político, Muamar Gadhafi (ou Al-Qadhafi) costuma dizer que o Projeto GMR será a “Oitava Maravilha do Mundo” e deverá resolver por longo tempo a questão da irrigação da faixa costeira, como mostrado no Mapa 4.1-IV seguinte. MAPA 4.1-IV PROJETO GMR DE ADUÇÃO DE ÁGUA Fonte: The Man Made River - Libya Para se ter uma idéia das dimensões das adutoras do Projeto GMR, é apresentada a seguir a Fotografia 4.1-I, onde seções de uma delas são transportadas por carretas que caberiam perfeitamente em seu círculo. Durante os anos 80, a BRASOIL, subsidiária da PETROBRAS, se envolveu com a possibilidade de participar desse projeto através da execução de algumas fases como, por exemplo, a perfuração dos poços no deserto. De sua participação resultou um contencioso de alto valor, só recentemente resolvido, com ônus financeiro relativamente modesto para a PETROBRAS em relação ao que era demandado, mas com perdas para a imagem da Companhia. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 71 Quanto às fontes de energia, a Líbia conta apenas com o petróleo e o gás natural. Até o momento não se conhece jazida de carvão nem de urânio. Não existem potenciais hidroelétricos e sua capacidade de cultivar oleginosas e produzir biocombustíveis em escala comercial é também inexistente. FOTOGRAFIA 4.1-I SEGMENTOS DE ADUTORA DO GMR A Líbia guarda marcos de diversas civilizações que floresceram em seu território desde eras remotas, destacando-se, desde a Antiguidade até o presente, os fenícios, gregos, romanos e mais recentemente os otomanos. Já em 1911, os italianos derrotaram os otomanos, em Trípoli, ficando a colônia Líbia sob o controle de Roma até 1943, com a derrota na Segunda Guerra Mundial. A Líbia passou, então, ao controle da ONU até atingir a independência em 1951, com a monarquia restaurada numa sociedade pobre, que tinha como única atividade econômica uma agricultura de subsistência na região costeira. Em 1969, através de um golpe militar, o coronel Gadhafi assume o governo da Líbia, instalando posteriormente um sistema político baseado nas doutrinas do Livro Verde, resultantes da combinação do socialismo com as leis sociais e políticas do Islã e com a chamada Terceira Teoria Universal, descritas no Panorama Político (Capítulo 2). A exploração de petróleo na Líbia intensificou-se no final dos anos 50, depois das descobertas efetuadas na Argélia. Conforme detalhado na seção R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 72 4.3, as importantes descobertas feitas a partir de 1957, tornaram a Líbia extremamente atraente para investimentos das principais companhias petrolíferas multinacionais, até os movimentos de nacionalização dos anos 70 e as sanções impostas à Líbia pelas Nações Unidas nos anos seguintes. Nesta época, a PETROBRAS, através da BRASPETRO, também operou durante algum tempo na Líbia, explorando blocos na Bacia Paleozóica de Murzuk e na Bacia Mesozóica de Sirte, com resultados decepcionantes. A história da indústria do petróleo na Líbia, conforme detalhado na seção 4.3 adiante, abrange quatro fases: (1) a das grandes descobertas e dos regimes de concessões altamente vantajosas, entre as décadas de 50 e 60; (2) a das tentativas de nacionalização, restrição da ação das multinacionais e estabelecimento dos EPSA (Exploration and Production Sharing Agreement) entre 70 e 80; (3) das sanções norte-americanas e depois internacionais, com a retirada de muitas empresas estrangeiras nos anos 80 e 90 e (4) a atual fase, com o estabelecimento dos EPSA IV. O forte protagonismo político do líder Gadhafi, contrário aos EUA, que segundo a imprensa internacional envolvia também o financiamento de ações terroristas — como os atentandos comandados pelo venezuelano Carlos “o Chacal” — levaram aquele país a romper relações diplomáticas e comerciais com a Líbia. Depois, em 1988, com o lamentável atentado de Lockerbie, na Escócia, quando a explosão de um avião da Pan Am — cuja autoria foi atribuída a terroristas líbios — causou a morte de 270 pessoas, foram impostas sanções drásticas pelas Nações Unidas, por pressão norte-americana e britânica, que afetaram toda a economia da Líbia, incluindo a indústria do petróleo, durante muito tempo. A Líbia penou um longo isolamento pela comunidade internacional. Em 5 de abril de 1999 4 , mais de dez anos após a explosão do avião da Pan Am, a Líbia extraditou dois homens 5 , suspeitos do ataque terrorista. Como resposta, as Nações Unidas suspenderam em parte as sanções impostas desde abril de 1992. Em abril de 2003, o Ministro do Exterior da Líbia anunciou 4 Country Analysis Brief, Libya - Energy Information Administration - DOE, de março de 2006. Há versões de que na verdade foram escolhidos dois líbios inocentes, como bodes expiatórios, um dos quais já teria sido libertado por falta de provas, para “salvar a face”. Tais 5 R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 73 que o país aceitara a responsabilidade civil pela ação de seus nacionais, na ação de Lockerbie. Em setembro de 2003, o Conselho de Segurança da ONU suspendeu completamente as sanções, mas os EUA mantiveram-nas. Em fevereiro de 2004, após a declaração da Líbia que iria abandonar seus programas de Armas de Destruição em Massa (Weapons of Mass Distruction – WMD) e firmar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (Nuclear NonProliferation Treaty – NNPT), os Estados Unidos finalmente suspenderam a proibição de seus cidadãos de viajar para a Líbia e autorizaram as companhias petrolíferas norte-americanas — com interesses antecedentes às sanções — a negociar seu retorno ao país. No dia 23 de abril de 2004, os Estados Unidos cessaram suas sanções econômicas contra a Líbia com uma declaração do Secretário de Imprensa da Casa Branca que dizia: “As empresas norte-americanas estão autorizadas a comprar ou a investir no petróleo e outros produtos da Líbia. Os bancos comerciais e os serviços financeiros norte-americanos também estão autorizados a participar e apoiar estas transações.” No mesmo dia, a companhia petrolífera estatal da Líbia, NOC - National Oil Corporation, anunciou sua primeira remessa de uma carga de petróleo para os Estados Unidos, em mais de vinte anos. No dia 28 de junho de 2004, os Estados Unidos e a Líbia reataram formalmente suas relações diplomáticas, interrompidas desde maio de 1981. Finalmente, em 20 de setembro de 2004, o Presidente Bush assinou a Ordem de Serviço 12543, eliminando todas as restrições restantes e abrindo caminho para que as companhias americanas de petróleo voltassem a negociar seus antigos contratos e eventuais direitos sobre reservas na Líbia. A ordem também revogou qualquer tipo de impedimento para a importação de produtos refinados. É difícil ignorar as coincidências entre as mudanças de posição política em relação à Líbia do mundo ocidental, e dos Estados Unidos em particular, e os interesses estratégicos das empresas petrolíferas transnacionais, sobretudo as baseadas nos EUA. versões aventam a hipótese, inclusive, de que a Líbia de fato nada tinha a ver com o atentado. O governo da Síria, sim. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 74 O levantamento destas sanções coincidiu com a forte elevação do preço do petróleo no mercado internacional, fazendo com que a Líbia passasse a receber muitas divisas, principalmente com a exportação de petróleo, sua maior e principal riqueza. O país está produzindo atualmente cerca de 1,7 MMBPD de petróleo, em grande parte exportado (85%). Considerando o valor do barril da ordem de US$60.00, isso corresponde a cerca de US$ 2,7 bilhões ao mês, ou cerca de US$ 32 bilhões ao ano. Em conseqüência, a Líbia está acumulando reservas cambiais e crescendo a taxas superiores a 6% a.a nos últimos anos. Apesar deste crescimento, a taxa de desemprego continua muito elevada. Não existe estabilidade jurídica na Líbia — à boca pequena, o povo diz que quem faz a lei e a muda é Gadhafi —, com freqüentes decisões arbitrárias do governo em relação aos contratos firmados, e há situações de rigidez burocrática que representam dificuldades para atrair mais investimentos estrangeiros e promover o crescimento econômico. Existem alguns sinais de que a Líbia gostaria de efetuar reformas econômicas liberalizantes, com redução da atuação do estado na economia. Em 2003, o Presidente Gadhafi disse que o setor público deveria ser abolido, falando em privatização do petróleo e de outros setores da economia. Mas não se falou mais disso, sendo provável que lançou a idéia da abertura da economia do petróleo, naquele então, para facilitar as decisões relativas à suspensão das sanções. A Líbia está investindo na diversificação de sua economia para reduzir sua extrema dependência do petróleo, quase que a única fonte de renda fiscal. Os investimentos estão sendo feitos principalmente na agricultura, turismo, indústria da pesca, mineração e gás natural, além naturalmente do Projeto GMR, com investimentos de bilhões de dólares. Também busca oportunidades de investimentos no exterior, inclusive no Brasil. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 75 4.2- GEOLOGIA DO PETRÓLEO Esta seção está baseada no excelente artigo sobre a geologia de petróleo da Líbia: Libya: petroleum potential of the underexplored basin counters – a twenty-first-century challenge 6 , de autoria do consultor D. C. Rusk. Um volume recuperável de mais de 50 bilhões de barris de petróleo e de 40 Tcf de gás já foi localizado em cerca de 320 campos descobertos na Líbia nas bacias de Sirte (também chamada de Sirt ou de Sírtica), Ghadames, Murzuk e Tripolitânia. Cerca de 80% desses volumes foram descobertos entre o final dos anos 50 e o final dos anos 70. Desde então, por uma série de razões ligadas ao bloqueio econômico do país, a exploração tem-se mantido em níveis de intensidade e de tecnologia inferiores. Em função disso, certamente ainda restam importantes objetivos exploratórios relacionados a trapas profundas, sutis e complexas. Conseqüentemente, Rusk considera que ainda restam elevados potenciais de descobertas na Líbia. Potenciais que poderiam ser localizados através do aprofundamento de estudos geológicos e geofísicos, inovação e uso de tecnologia de ponta. Recomenda, finalmente, concentrar esforços em grandes áreas das bacias produtoras, onde objetivos mais profundos ainda não foram testados. Os esforços exploratórios da Líbia, que se iniciaram na segunda metade dos anos 50, foram excepcionalmente bem sucedidos na Bacia de Sirte, onde com a perfuração de 1.600 poços pioneiros descobriram-se cerca de 250 campos, com reservas originais da ordem de 45 bilhões de barris de óleo e 33 Tcf de gás. Nesses números incluem-se 18 dos 21 campos gigantes descobertos na Líbia possuindo reservas originais da ordem de 37 bilhões de barris de óleo. Na Bacia de Ghadames, com a perfuração de 260 poços pioneiros, descobriram-se 35 campos com cerca de três bilhões de barris de petróleo recuperável de reservas originais. Com os 62 poços pioneiros perfurados em In Memória nº 74 da AAPG, intitulada “Petroleum provinces of the twenty-first century”, págs. 429 a 452. 6 R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 76 Murzuk encontraram-se 11 campos, incluindo dois gigantes, com reservas originais da ordem de dois bilhões de barris. Os esforços exploratórios na Bacia offshore de Tripolitânia, também foram bem recompensados. Quatorze novos campos de óleo, gás e condensado foram descobertos com a perfuração de 50 pioneiros. As reservas originais são estimadas em dois bilhões de barris de óleo recuperável e oito trilhões de pés cúbicos de gás. A localização dessas bacias acha-se indicada nos Mapas 4.2-I e II seguintes. O primeiro é uma figura meramente esquemática, enquanto o segundo corresponde a um mapa geológico mostrando as bacias sedimentares da Líbia. MAPA 4.2-I BACIAS SEDIMENTARES DA LÍBIA - I Fonte: Warlick International: Libya Upstream Oil & Gas Market Report 2007 Observe-se que os nomes das bacias e a grafia dos mesmos podem variar de autor para autor. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 77 Rusk comenta também que: “apesar dos grandes esforços exploratórios, as quatro bacias produtoras ainda se encontram em estágio apenas emergente quanto à sua maturidade exploratória. Dois aspectos indicam os vastos potenciais ainda existentes na exploração de oportunidades na Líbia: (1) a existência de numerosas áreas nos alinhamentos produtores ainda com baixa densidade de poços; e (2) grandes áreas, principalmente no centro das bacias onde os objetivos mais profundos foram atingidos por apenas poucos poços.” MAPA 4.2-II ARCABOUÇO ESTRUTURAL E PRINCIPAIS BACIAS De acordo com as observações da NPA Satellite Mapping, a Líbia fica bem no centro da Margem Continental Norte-Africana e desenvolveu uma R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 78 história tectono-estratigráfica multifásica controlada pelos processos da tectônica de placas dessa margem desde a Orogenia Pan-Africana. As principais bacias são as paleozóicas de Ghadames, Murzuk e Kufra na região central e meridional da Líbia, e as bacias mesozóicas e cenozóicas de Sirte, da Tripolitânea e da Plataforma da Cirenaica, localizadas na porção setentrional e litorânea. Detalhes extremamente importantes para o melhor conhecimento da geologia da Líbia e de seu potencial para a produção de hidrocarbonetos estão apresentados em Anexo 2-I, ao final deste capítulo. 4.3 – PETRÓLEO 4.3.1 – PEQUENA HISTÓRIA DA INDÚSTRIA DO PETRÓLEO A história da indústria do petróleo na Líbia tem aspectos diferentes daquelas de outros países. Em primeiro lugar, há que se considerar o relativo atraso das primeiras descobertas. Boa parte do petróleo do Oriente Médio foi descoberta entre as duas grandes guerras, enquanto o da Líbia somente foi descoberto no final dos anos 50, bem mais recentemente. As grandes descobertas da Argélia ocorreram a partir de 1953 e praticamente ocorreram na fronteira com a Líbia. Os primeiros esforços exploratórios somente foram efetuados na Líbia a partir de 1956, sendo o primeiro campo descoberto em 1957 pela Esso. Em 1961, a Esso já estava exportando petróleo através de um oleoduto e de facilidades portuárias adequadas. A euforia das descobertas de petróleo na Líbia, no entanto, foi provocada pela descoberta, logo depois, por várias companhias multinacionais, de grandes campos na Bacia de Sirte. Em pouquíssimo tempo a Líbia se tornou um grande produtor de petróleo destinado à exportação. Ressalte-se que o petróleo líbio é de excelente qualidade, produzido a custos baixíssimos em campos terrestres e que a Líbia fica bem mais próxima dos países europeus do que o Oriente Médio. Em 1967, com a guerra entre Israel e o Egito, e o fechamento do Canal de Suez, os petroleiros carregados com petróleo do Oriente Médio tinham que fazer a circunavegação da África para chegar à Europa, enquanto a Líbia R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 79 exportava diretamente de seus portos situados a curta distância dos terminais europeus do Mediterrâneo. Os anos 60 foram anos de euforia para a indústria de petróleo líbia. O golpe de 1969 levou Ghadafi ao poder, mas pouco afetou a indústria de petróleo nos primeiros momentos. A partir da criação da OPEP ainda nos anos 60, porém, — com o reforço das tendências de nacionalização que surgiram em todos os países árabes produtores de petróleo — os anos 70 seriam marcados por iniciativas unilaterais por parte do governo líbio em relação às petroleiras multinacionais, para aumentar o government take, consideradas arbitrárias e estatizantes. Em torno de 1977, a Líbia era o 7º maior produtor de petróleo do mundo. Entretanto, sua posição declinou a partir do início dos anos 80, em parte em função das cotas de produção estabelecidas pela OPEP, em parte devido aos movimentos de nacionalização e em parte devido às sanções norte-americanas e depois também internacionais, que implicavam na suspensão de contratos de fornecimento a países consumidores e na interrupção de investimentos nos campos produtores. Por volta de 1986, a Líbia era somente o 15º maior produtor de óleo. O governo, através do Ministério do Petróleo, mostrava-se interessado em oferecer concessões a um número grande de companhias diferentes, para induzir elevados níveis de produção e de exportação. De fato, porém, os contratos de concessão conduziriam para uma progressiva nacionalização das operações e ao esfriamento das companhias estrangeiras. Em menos de 10 anos, o government take da Líbia passou de apenas um quarto do valor da produção para nada menos que três quartos. O governo da Líbia obtinha essa compensação na forma de compartilhamento da produção (na conhecida fórmula do PSA - Production Sharing Agreement). Nos primeiros contratos, a Esso conseguira condições bastante favoráveis. Em 1969, nada menos do que 33 companhias estrangeiras operavam com relativo conforto na Líbia. Nos anos 70, no entanto, os termos dos contratos foram endurecendo e consolidou-se a NOC - National Oil Corporation que, em 1970, formou a empresa LIPETCO - Libian Petroleum Corporation. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 80 Nesse mesmo ano, a jurisdição da NOC foi expandida pela legislação nacionalizante, pois as operações das companhias estrangeiras subsidiárias da Esso, da Shell e da ENI foram transferidas para o controle da NOC. As operações estatizadas incluíam: o gerenciamento da exportação e importação, da operação dos ativos, da distribuição e venda de produtos brutos e derivados, e dos subsídios dos preços na Líbia. Em 1971, essas operações se fundiram numa única companhia, chamada Brega Company, que também comercializava petróleo e gás no exterior por conta do governo da Líbia. Uma nova campanha estatizante começou em dezembro de 1971, quando a Líbia nacionalizou a participação da British Petroleum num empreendimento no Campo de Sarir, denominando British Petroleum-Bunker Hunt Sarir, em retaliação ao governo inglês pela falta de ação num problema que estava ocorrendo no distante Oriente Médio. Essa ação do governo Gadhafi, considerada abusiva, levou a uma querela jurídica entre a British Petroleum e o governo da Líbia. Somente por volta de 1974 alcançou-se um acordo entre as partes, acabando a British Petroleum por receber uma compensação financeira e o governo da Líbia por nacionalizar definitivamente o empreendimento. Em 1972, o governo conseguiu uma participação de 50% nos empreendimentos do grupo italiano ENI-AGIP e, em 1973, iniciaram-se conversações semelhantes com a companhia Occidental. No mesmo ano, a NOC foi autorizada a comprar 51% dos empreendimentos da Occidental. O grupo Oásis, constituído pela Continental Oil Company (1/3 do capital), pela Marathom Petroleum (1/3 do capital) e pela Amerada Petroleum Company junto com Shell (cada qual com 1/6 do capital), era, à época, um dos maiores produtores da Líbia. O grupo Oásis também concordou em ceder 51% de seu capital ao controle acionário da Líbia em agosto de 1973. No dia primeiro de setembro de 1973, comemorativo do quarto ano da Revolução, a Líbia anunciou unilateralmente que assumiria 51% de todas as companhias remanescentes, com exceção de alguns pequenos operadores 7 . 7 É inevitável a comparação das ações de Muhamad Gadhafi, há 30 anos, com as recentes medidas de Hugo Chávez e Evo Morales, aumentando o government take e criando empresas mistas, inclusive quanto ao uso de datas simbólicas para a adoção de atos nacionalizantes. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 81 Algumas companhias estrangeiras tentaram fazer frente ao governo líbio, contestando essas medidas, mas logo descobriram que as mesmas faziam parte de uma política pública muito determinada e que não haveria como não submeter-se àquela fase de nacionalização. A Shell foi uma das empresas que se recusou a aceitar a participação de controle da Líbia no grupo Oásis. Em conseqüência, suas operações foram totalmente nacionalizadas, em março de 1974. Pouco depois, outras companhias relutantes foram também nacionalizadas, entre elas: Texaco, Califórnia-Asiatic Company e LibyanAmerican Oil Company. Estas companhias somente receberiam compensações financeiras parciais pela perda dos respectivos patrimônios em 1977. Essa seqüência de eventos, juntamente com o boicote econômico estadunidense e o rompimento de relações, convenceu muitas companhias estrangeiras a tomar a decisão de abandonar a Líbia nos anos 80. Em 1981, saiu a Esso, seguida pela Mobil em 1982. Outra rodada de nacionalização ocorreu em 1986, quando o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, anunciou sua intenção de pedir às companhias norteamericanas para cessar suas operações na Líbia. Naquele tempo não ficou claro se as companhias restantes venderiam seus patrimônios à NOC, com grandes prejuízos, ou simplesmente transfeririam seus interesses para companhias européias, não afetadas pelas sanções do presidente norteamericano. Até meados dos anos 80, a NOC permanecera formalmente subordinada ao Ministério do Petróleo. No entanto, o papel do Ministério era meramente burocrático, concentrando-se todo o poder sobre a indústria na mão da direção da NOC, exercida por gente de toda a confiança do líder Gadhafi. Finalmente, em 1986, ocorreu a dissolução do Ministério do Petróleo ficando a NOC vinculada diretamente ao gabinete governamental, com grande autonomia operacional. A atual estrutura organizacional do setor de hidrocarbonetos do governo da Líbia é ilustrada no Gráfico 4.3-I seguinte. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 82 GRÁFICO 4.3-I ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DO SETOR HIDROCARBONETOS Fonte: Secretariat of Energy Desde 1974, todos os contratos negociados com a Líbia eram feitos em termos de compartilhamento da produção (production sharing). Esses contratos eram negociados e gerenciados pela NOC, e destinavam a esta nada menos do que 81% da produção dos campos marítimos e 85% da produção nos campos terrestres. Quanto a descobertas de óleo, destaca-se primeiramente aquela de ElBouri, um campo localizado offshore na costa oeste da Líbia, com uma produção inicial estimada em torno de 60MBPD. O megacampo foi descoberto e desenvolvido pela ENI em 1976, à profundidade de 8.700 pés, e estima-se que contenha dois bilhões de barris de óleo recuperável. A primeira fase de desenvolvimento do campo, que custou dois bilhões de dólares, foi completada em 1990, com o campo produzindo 150.000 BPD até meados de 1995, quando se seguiu um declínio relativamente acentuado da produção. Esse declínio foi atribuído em parte à impossibilidade de importar equipamentos para o desenvolvimento complementar do campo, por causa das sanções da ONU. Reporta-se também que em El-Bouri existam grandes volumes de gás natural associado. Após a descoberta do campo de El-Bouri, ocorreram descobertas em vários blocos da Líbia. De uma maneira geral as mais significativas foram R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 83 aquelas efetuadas na região de Murzuk, bacia paleozóica situada em pleno Deserto do Saara, algumas centenas de quilômetros ao sul de Trípoli, conforme indicado no Mapa 4.3-I seguinte. É digno de menção o fato da PETROBRAS já ter explorado blocos nessa bacia sem resultados positivos. Hoje o campo de El Sharara, localizado nesta bacia, por exemplo, está produzindo cerca de 200.000 BPD. A Repsol YPF lidera um consórcio europeu, junto com a OMV, a TOTAL e Norsk Hydro, que opera e gerencia esse campo. Inicialmente esperava-se que El Sharara produzisse por volta de 1998 cerca de 200.000 BPD de óleo muito leve (44° API) e doce (menos de 0,6% de enxofre), mas, por vários problemas, incluindo dificuldades no oleoduto que levava o óleo até o terminal no Mediterrâneo, tal meta só foi atingida mais tarde. MAPA 4.3-I LOCALIZACAO DA BACIA MURZUK E DO CAMPO EL SHARARA R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 84 Em outubro de 1997, um consórcio internacional liderado pela britânica LASMO, junto com a ENI e um grupo de cinco companhias sul-coreanas, anunciaram uma grande descoberta de petróleo (com volumes recuperáveis em torno de 700 MMB), no bloco NC-174, 465 milhas ao sul de Trípoli, também na bacia paleozóica de Murzuk. A LASMO, que acabou sendo comprada pela ENI, em 2001, estimava que a produção desse campo — denominado Elefante — custaria em torno de um dólar por barril. O famoso campo de Elefante deveria ter entrado em produção no ano 2000, com cerca de 50.000 BPD, utilizando um oleoduto de 30 polegadas para transportar o óleo para o norte. No entanto, o início da produção atrasou devido a obstáculos burocráticos e somente se iniciou em 2004, com cerca de apenas 10 MBPD. A plena capacidade do campo de Elefante, de 150 MBPD deve ter sido atingida no final de 2006. Em agosto de 2003, a TOTAL anunciou o início da produção do campo de Al Jurf, situado offshore no bloco 137, estimando-se uma produção em torno de 40.000 BPD. A TOTAL possui 37,5% dos interesses nesse campo, junto com a NOC (50%) e a companhia alemã Wintershall (com 12,5%). Em outubro de 2004, a Wintershall disse que investiria cerca de 400 milhões de dólares na Líbia para explorar novos campos de óleo e gás. A NOC comanda um grupo de companhias subsidiárias menores que, em conjunto, dão conta de cerca da metade da produção atual de petróleo líbio. A maior delas é a Waha Oil Company (WOC), criada em 1986 para controlar as operações do que fora antes o grupo Oásis (Conoco, Marathom, Shell e Amerada Hess). A produção da WOC foi profundamente afetada pelas sanções, pois os equipamentos utilizados nos campos de petróleo eram todos de fabricação norte-americana e a operadora não podia adquirir sobressalentes. Como resultado, a produção dos campos caiu de cerca de 1 MMBPD em seu pico, nos anos 80, para em torno de 350 MBPD no presente. Depois da Waha, a mais importante subsidiária da NOC é a Arabian Gulf Oil Company (AGOCO), com sua produção se originando principalmente dos campos de Sarir, Nafoora/Augila e Messla. A produção da AGOCO em 2003 era superior a 400.000 b/d. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 85 Duas outras grandes subsidiárias da NOC são a Zuetina Oil Company (ZOC) que opera os cinco campos de Intisar, no bloco 103 da Bacia de Sirte, e a Sirte Oil Company (SOC), originalmente criada em 1981 para tomar conta dos empreendimentos da Esso na Líbia. Em 1986 a SOC assumiu também os empreendimentos da Grace Petroleum, uma das cinco companhias americanas obrigadas a deixar a Líbia. A SOC opera o campo de Raguba na parte central da Bacia de Sirte. Na ausência das companhias americanas, a Líbia passou a depender fortemente das companhias européias como a espanhola Repsol-YPF; a italiana AGIP; a austríaca OMV; a alemã Wintershall e a francesa TOTAL, além da canadense Petro-Canada. Em julho de 2003, receberam autorização para trabalhar na Líbia a companhia indiana ONCG, uma companhia turca e uma companhia da Ucrânia. A exploração e a produção de petróleo na Líbia ainda são regidas pela Lei nº 25, de 1955, que foi revista e emendada em 1961, 1965 e 1971, além dos regulamentos decorrentes. Até o fim dos anos 60 existia um sistema de concessões sem participação direta do Estado. Como dito anteriormente, a partir de 1973 foram incorporados decretos estabelecendo a participação do estado através dos Exploration and Production Sharing Agreements (EPSAs) que viriam substituir as concessões. Em agosto de 1979, através da Decisão nº 10, a NOC foi autorizada a negociar e gerenciar os EPSAs com companhias privadas de petróleo ou a realizar a exploração por sua própria conta. Os EPSAs permanecem como base para o licenciamento atual e estão sujeitos à aprovação do Comitê Geral do Povo, uma mera formalidade. O EPSA I, primeira versão, foi lançado em 1974 e promove o compartilhamento da produção bruta entre as partes. Foi substituído pelo EPSA II, em 1981, que melhora os termos contratuais a favor da NOC. O EPSA III foi introduzido em 1988, com termos contratuais mais flexíveis e introduzindo uma fórmula de recuperação dos custos. Mesmo assim, a produção bruta continua sendo compartilhada entre as partes. Em 2004, a NOC introduziu o EPSA IV que vem sendo utilizado com sucesso nas últimas três rodadas de R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 86 licitação efetuadas na Líbia. O EPSA IV prevê detalhes como bônus de assinatura, programa mínimo de trabalho e compartilhamento da produção. Em 2005, as companhias do grupo Oásis e a Occidental conseguiram recuperar seus velhos interesses na Líbia depois de 20 anos de sanções econômicas. Também em 2005, o Sr. Shokri Ghanen — ex-ocupante de cargo equivalente ao de primeiro-ministro e, no passado, muito envolvido nas negociações que conduziram ao fim das sanções; portanto, alguém muito ligado ao líder Gadhafi — foi nomeado presidente da NOC e vem sendo muito ativo na introdução de reformas estruturais do setor. Exerce seu poder com grande autoridade e distância dos operadores. A primeira das últimas três rodadas, regidas pelo EPSA IV, foi realizada em janeiro de 2005, quando foram alocadas 15 áreas e muitos blocos isolados para várias companhias internacionais de petróleo, inclusive a PETROBRAS, conforme descrito em detalhes na seção 4.3.4, adiante. O compromisso total de investimento em exploração foi da ordem de 298 milhões de dólares e os bônus de assinatura, somados, atingiram 133 milhões de dólares, com uma média de 8,9 milhões de dólares por bloco. O grupo vencedor assumiu compromissos para perfurar 24 poços exploratórios e efetuar a aquisição de 3.000 km² de sísmica 3D e 24.000 km de sísmica 2D. As companhias concordaram em dar à NOC percentagens sobre a produção bruta variando entre 61% e 89%. Os blocos mais concorridos foram os da porção offshore da Bacia de Sirte. A segunda rodada de licitação, sob a égide do EPSA IV foi encerrada em novembro de 2005. A NOC conseguiu assinar contratos relativos a 23 pacotes de blocos. Atraiu 51 companhias internacionais. O total de bônus de assinatura foi de 103 milhões de dólares, com programas mínimos envolvendo grandes levantamentos geofísicos e a perfuração de numerosos poços. A terceira rodada foi encerrada em dezembro de 2006. A NOC conseguiu 10 contratos adicionais. Os bônus de assinatura se elevaram para 88 milhões de dólares, com extensos programas exploratórios mínimos. Enquanto as rodadas do EPSA IV têm sido muito boas para a NOC — em matéria de arrecadação de bônus de assinatura, compromissos de R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 87 investimentos e de participações — a maioria dos “vencedores” das rodadas está com dificuldades para transformar esses contratos em centros de lucros efetivos, ainda que considerando o elevado preço atual do petróleo. Somente grandes descobertas nesses blocos tornarão a empreitada economicamente rentável a posteriori. Os melhores blocos estariam localizados no mar e algumas companhias como a Hess, a Repsol e a Woodside planejam iniciar seus testes offshore ainda em 2007 (Libya - Land of Emerging Opportunities) Hoje, muitas companhias internacionais de petróleo estão engajadas em contratos de produção e exploração, associadas com a NOC ou suas subsidiárias, dentre as quais: AGIP, BG, Chevron, ENI, ExxonMobil, Gazprom, Hellenic Petroleum, Hydro, Impex, Joint Oil, Mitsubish, Mitsui Oil, Liwa Energy, Nimir Petroleum, Nipon, OMV, OVL, Oil Search, Occidental Petroleum, Pertamina, PETROBRAS, Petro-Canada, Repsol, RWE-Dea, Sonatrach, Shell, Statoil, Tatneft, Tikoku, Total, Veba, Veremex, Woodside and Wintershall. A NOC está realizando, com alguma lentidão, estudos para o lançamento dos DPSAs (Development & Production Sharing Agreement) que seriam fundamentalmente contratos para o desenvolvimento complementar e/ou a revitalização de velhos campos de petróleo. Os planos têm sido atrasados porque o comitê de negociação dos DPSAs ainda está debatendo os critérios para escolher os campos maduros para novas fases de desenvolvimento. Também estão sendo considerados os PSCs (Production Service Contracts), muito utilizados no México. Essas fórmulas estão sendo adaptadas e serão lançadas em breve, devendo ser disputadas pelas empresas estrangeiras. No final de 2006, a área total sob contratos na Líbia era de 730.211 km², contra 472.231 km² no fim de 2004 (+55% nesses três anos de preços elevados). Os contratos se estendem por todas as seis bacias petrolíferas e, da área total, 579.544 km² (79%) se localizam em terra e 150.667 km² (21%), no mar. O Mapa 4.3-I seguinte, mostra a atual distribuição dos blocos objeto de contratos firmados anteriormente, bem como os licitados nas últimas três rodadas. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 88 MAPA 4.3-II LOCALIZACAO DOS BLOCOS CONCEDIDOS NA LIBIA Fonte: IHS Quanto ao presente, a empresa de consultoria IHS, em fevereiro de 2007, afirmava que a Líbia está emergindo depois de quase 20 anos de sanções comerciais como um dos países mais atrativos para investir em exploração e produção, o que está evidenciado pela feroz competição para obtenção de blocos nas mais recentes rodadas de licitação. A E&P de petróleo e gás natural, o refino e a distribuição do petróleo e do gás, bem como o GNL são os elementos mais fortes da economia da Líbia, respondem por 95% de sua receita cambial e 70% dos recursos fiscais. Em 2006, a Líbia gerou cerca de 30 bilhões de dólares somente com a exportação de petróleo e de gás natural. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 89 A política de preços e de produção de óleo praticada pela Líbia, que em 1962 se juntou à OPEP, está alinhada com a política daquela organização. A produção de petróleo, 80% do total destinado à exportação, declinou durante a primeira metade dos anos 70 em função da ação da OPEP e da política do governo da Líbia. Depois subiu ligeiramente, mas caiu em 1980 quando a OPEP reduziu as quotas dos países membros. Em março de 83, a Líbia aceitou a quota da OPEP de 1,1 MMBPD. Em 1984 a quota ficou em 990 MBPD e em 1986 chegou a 1,137 MMBPD. No momento a quota líbia é 1,6 de MMBPD. 4.3.2 – PRODUÇÃO E RESERVAS Comparando-se os dados sobre a indústria de petróleo da Líbia procedentes de várias fontes — EIA, BP-Statistical Review e ENI-WOGR — encontram-se freqüentes discrepâncias. Decidiu-se, neste trabalho, adotar como fonte principal a WOGR-ENI, complementadas por outras, quando necessário 8 . As reservas provadas de petróleo da Líbia são de 39,126 bilhões de barris colocando este país em oitavo lugar na classificação internacional, logo atrás da Arábia Saudita, Iran, Iraque, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Venezuela e Rússia. Nesta mesma classificação, o Brasil se situa em 15º lugar com reservas provadas de petróleo de 11.350 bilhões de barris. Isto significa que a Líbia possui reservas de petróleo cerca de 4 vezes maior que as do Brasil. A evolução das reservas de petróleo da Líbia acha-se indicada no Gráfico 4.3-II seguinte. 8 Os dados aqui apresentados foram obtidos da World Oil and Gás Review 2006 e referem-se à situação da Líbia no ano de 2005. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 90 GRÁFICO 4.3-II EVOLUÇÃO DAS RESERVAS LÍBIAS DE PETRÓLEO Como detalhadamente descrito na seção 4.2 anterior e no Anexo ao final deste capítulo, tais reservas concentram-se na Bacia de Sirte (80%), responsável também por 90% da produção atual. De acordo com a Wood Mackenzie Consultants, a Líbia continua “altamente inexplorada” possuindo um “excelente” potencial para novas descobertas, uma vez que somente 25% de sua área prospectiva está hoje coberta por acordos com as companhias internacionais de petróleo. A produção de petróleo em 2005 foi de 1.728.000 BPD, colocando a Líbia em 17º lugar na classificação internacional, pouco atrás do Brasil, que ocupava o 14º lugar, com uma produção de 1.985.000 BPD. Ou seja, a Líbia produz menos que o Brasil — apesar de suas reservas bem maiores — abaixo, portanto, de suas reais possibilidades, por falta de investimentos no setor. O Gráfico 4.3-III seguinte apresenta a evolução da produção e do consumo de petróleo da Líbia. Observe-se que em 1980 a produção de petróleo líbio era praticamente a mesma que a atual, reduzindo-se para cerca de 1 MMBPD em decorrência das sanções e da retirada das companhias de petróleo internacionais na segunda metade dos anos 80. Nos anos 90, a R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 91 produção se manteve no patamar de 1,5 MMBPD, voltando a crescer, já na presente década, com o fim das sanções e o retorno dos investimentos estrangeiros. O consumo mostra um crescimento contínuo à taxa mais ou menos constante. GRÁFICO 4.3-I A atual relação reserva/produção (R/P) da Líbia é 62, situando o país em sétimo lugar numa classificação internacional segundo este indicador, logo após o Iraque, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Iran, Venezuela e Arábia Saudita. O Brasil, com uma R/P de 15, aparece em 12º lugar nesta mesma classificação. O consumo de petróleo da Líbia ainda é relativamente baixo: 278.000 BPD, colocando o país em 43º lugar, numa classificação de consumo. Nesta mesma classificação o Brasil se situa em 8º lugar, com um consumo de mais de dois milhões de barris por dia. Entretanto, o consumo per capita da Líbia — de mais de 17 barris pos habitante ao ano — é dos mais elevados do mundo, colocando este país em quinto lugar, logo após Arábia Saudita, Estados Unidos, Canadá e Holanda, e bem à frente de países como Coréia do Sul, Taiwan, Japão, Espanha, França e Alemanha. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 92 Recorde-se que o consumo per capita no Brasil é de apenas 4,4 barris por habitante ao ano. 4.3.3 – EVOLUÇÃO PREVISTA DA OFERTA O Gráfico 4.3-III contem as previsões da Energyfiles quanto à produção futura de petróleo na Líbia. De acordo com essas previsões um tanto pessimistas, depois de atingir o pico da ordem de dois milhões de barris por dia, por volta de 2010, ocorreria um natural declínio de produção líbia até 2050. Por outro lado, esta previsão antecipa uma grande produção de gás natural, o que deve ser examinado em maior profundidade pelos estrategistas da PETROBRAS, tendo em vista a possibilidade de se encontrar aí oportunidades de suprimento para as plantas de regaseificação de GNL costeiras já anunciadas. GRÁFICO 4.3-III PROJEÇÕES DA PRODUÇÃO DE PETRÓLEO E GÁS DA LÍBIA Fonte: Energyfiles R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 93 4.3.4 – PRESENÇA DA PETROBRAS NA LÍBIA A PETROBRAS já operou contratos de exploração na Líbia, logo após a criação da BRASPETRO nos anos 70. Para conseguir seu objetivo de obter blocos para exploração na Bacia de Sirte, a BRASPETRO concordou em explorar também blocos na então desconhecida, improdutiva e distante Bacia de Murzuk, onde chegou inclusive a perfurar poços secos. Isso tudo ocorreu em plena fase de nacionalização das firmas multinacionais na Líbia A BRASPETRO também se envolveu com o projeto do Grande Rio feito pelo Homem (GMR) na fase de perfuração dos poços para a produção de água. Havia à época graves deficiências de logística para se trabalhar e viver na Líbia (fornecimento de alimentos e outros bens essenciais para o pessoal de campo), além dos conhecidos e crônicos problemas para obtenção dos vistos e para a passagem pelas barreiras na entrada da Líbia. Passada aquela fase, a PETROBRAS se afastou da Líbia, só retornando em fins de 2004/início de 2005. Na primeira rodada com utilização do EPSA IV, realizada no início de 2005 a PETROBRAS venceu e obteve contrato para exploração de um bloco localizado offshore, próximo de outros campos produtores. A PETROBRAS e a Oil Search Limited, empresa com sede em Papua-Nova Guiné, estabeleceram uma joint venture para explorar blocos oferecidos pelo governo da Líbia e investirão ao menos 21 milhões de dólares nesta fase, que deverá estender-se por cinco anos 9 . A PETROBRAS deverá ser a líder e operadora do negócio, ficando com 70% dos investimentos e dos resultados, contra 30% de seu sócio. A área conseguida pela PETROBRAS denomina-se Área 18, é constituída por quatro blocos totalizando 10.307 km², localizados na costa noroeste da Líbia, em águas que variam de 200 a 700 metros de profundidade. Sua localização pode ser visualizada no Mapa 4.3-II anteriormente apresentado. Essa área conseguida pela PETROBRAS é considerada favorável, pois já existem grandes campos produtores de petróleo e de gás na vizinhança on shore, como, por exemplo, El-Bouri, Al-Jure e Bahr-Essalam, entre outros. Existe possibilidade, portanto, da área 18 conter reservas de hidrocarbonetos 9 Comunicado da PETROBRAS, divulgado no dia 2 de janeiro de 2005. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 94 economicamente viáveis. Se for declarada a comercialidade, a NOC concederá um período de mais 25 anos para produção. Assim, a partir de 2005, a PETROBRAS ampliou sua atuação na África e marcou seu retorno à Líbia. No entanto, para consolidar sua presença ainda incipiente na Líbia — ampliando-a numa região de reconhecido potencial ainda inexplorado — a PETROBRAS deve examinar a possibilidade de participar, direta ou indiretamente, de outros empreendimentos de infra-estrutura de que o país é carente: construção de habitações populares, construção de estradas, conversão de termelétricas a diesel para gás natural, novas termelétricas a gás, plantas de GNL, entre outros. Não se deve olvidar, também, que a Líbia talvez tenha interesse em remodelar e repotenciar carros de combate adquiridos do Brasil no passado e que se encontram fora de serviço. É outra “chave” com que a PETROBRAS pode “abrir portas”, sobretudo se operar com o apoio da Presidência da República e do Ministério de Relações Exteriores. 4.3.5 – DOWNSTREAM Em 1986, os campos produtores da Líbia já tinham seus petróleos escoados através de uma complexa rede de dutos que conduziam aos cinco principais portos exportadores no Mediterrâneo: Marsa al Burayqah, Aas Sidra, Ras al Unuf, Marsa al Hariqah e Az Zuwaytinah, conforme ilustrado no Mapa 4.3-II seguinte. O terminal de Sidra ainda é o maior exportador, com cerca de 30% do total. Os dutos para esses terminais servem a mais de uma companhia e o petróleo assim chega aos terminais já em forma de misturas. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 95 MAPA 4.3-II SISTEMA DE OLEODUTOS DA LÍBIA De acordo com a EIA e a Citac Libya 10 , existem no país cinco refinarias com capacidade nominal total de aproximadamente 380.000 BPD significativamente maior do que o consumo interno de petróleo (da ordem de 280.000 BPD). São elas: (1) a refinaria Ras Lanuf, de exportação, construída em 1984 e localizada no Golfo de Sirte, com capacidade de refinar 220 MBPD; (2) a refinaria de Az Zawiya, construída em 1974, localizada no noroeste da Líbia, com capacidade de processar 120 MBPD; (3) a refinaria de Tobruk, com a capacidade de 20 MBPD; (4) a refinaria Brega, a mais velha, localizada perto de Tobruk, com capacidade de 10 MBPD; e (5) a refinaria de Saril, com capacidade de 10 MBPD. 10 MBendi Profile: Libya – Oil and Gas: Oil Refining – Overview R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 96 Aparentemente, essas plantas são em parte obsoletas, pouco sofisticadas em matéria de extração de derivados de qualidade e estão consumindo energia em excesso quando comparados seus rendimentos com os de refinarias modernas. Algumas das refinarias líbias produzem derivados aquém das especificações requeridas por muitos países consumidores. Por exemplo: gasolina sem chumbo tetra-etila, gasolinas reformuladas e derivados de baixo teor de enxofre não podem ser obtidos nestas plantas. As refinarias mais antigas ressentem-se seriamente das limitações tecnológicas, que não puderam ser superadas no período das sanções, em que era vedada a importação de equipamentos. Algumas unidades apresentam problemas sérios de manutenção e necessitam de reparos. Além das refinarias domésticas, a Líbia participa em refinarias localizadas na Europa. A companhia Oilinvest, braço internacional da NOC, possui uma rede de refino na Europa com 300 MBPD de capacidade, a partir da qual produz e distribui derivados na Itália, Alemanha, Suíça e, desde 1998, no Egito. A companhia Tamoil Itália, baseada em Milão, controla cerca de 7,5% do mercado italiano de postos de gasolina e vendas de lubrificantes através de uma rede de 2.200 postos de serviços Tamoil. É interessante observar que essa estratégia de garantir mercado e agregar valor ao cru nacional foi utilizada pela Venezuela e, possivelmente, também por outros paises produtores. Em 1995 novas unidades entraram em operação na refinaria Ras Lanuf. Uma é de reforma catalítica, com capacidade de 3.300 BPD. Outra é de hidrotratamento de nafta com a capacidade de 5.666 BPD. A Líbia está realizando esforços para modernizar e aperfeiçoar seu sistema de refino, além de estar interessada no aumento de sua produção de gasolina e outros produtos leves. Aparentemente, a Líbia estaria planejando a construção de uma nova refinaria com a capacidade de 20.000 BPD na localidade de Sebha, para processar petróleo bruto da Bacia de Murzuk. O perfil de produção dessa refinaria já estaria estabelecido. A Líbia também estaria planejando a construção de mais uma refinaria para exportação com a capacidade de 200 MBPD, que seria localizada em Misurata. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 97 São projetos em que a PETROBRAS seria bem-vinda como parceira, seja no investimento, seja na comercialização da produção, com a possibilidade de um swap na área de E&P, pois é hábito dos líbios conceder blocos em contrapartida de investimentos em infra-estrutura. 4.4. -GÁS NATURAL A expansão contínua da produção de gás natural continua com elevada prioridade para a Líbia por duas razões principais: ● pretende-se, com sucesso limitado até aqui, utilizar mais o gás natural no lugar do petróleo — por exemplo, para geração de energia elétrica ou GNV, liberando mais petróleo e derivados para exportação— e, ● deseja-se monetizar as grandes reservas de gás natural, expandindo suas exportações, particularmente para a Europa, onde tem vantagens comparativas, como faz a Argélia. As reservas provadas de gás natural em janeiro de 2006 eram da ordem de 53 Tcf. Os Gráficos 4.4-I e II seguintes mostram, respectivamente, a evolução das reservas e da produção de gás natural na Líbia. Entretanto, o potencial remanescente de gás natural ainda por descobrir na Líbia é geralmente considerado muito alto, pois suas bacias gasprone ainda são pouco conhecidas, por inexploradas. De acordo com especialistas locais, as reservas de gás poderão atingir algo em torno de 70 a 100 Tcf. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 98 GRÁFICO 4.4-I EVOLUÇÃO DAS RESERVAS DE GÁS NA LÍBIA (Tcm) A reserva provada líbia, de aproximadamente 1,5 TMC, se comparada, na mesma unidade de volume, com as do Brasil (reserva de 320 BMC, 5 vezes menor) e a Bolívia (reservas de 757 BMC, cerca de metade), deixa clara a importância de suas dimensões. Ainda assim, a Líbia não se situa entre os primeiros vinte países, nem quanto às reservas, nem quanto à produção de gás, porque este ramo da indústria é muito incipiente no país. A relação reserva/produção é muito elevada, aparentemente superior a 100, o que colocaria a Líbia entre os primeiros lugares logo atrás do Qatar, do Iran e da Nigéria. Mas isto se deve ao pequeno denominador. Para expandir sua produção de gás, assim como comercializá-lo, a Líbia está procurando a participação e o investimento de companhias estrangeiras. Em anos recentes, novas e importantes descobertas têm sido feitas nos campos de Ghadames e El-Bouri, além de muitos outros na Bacia de Sirte. Existem hoje na Líbia muitos projetos de desenvolvimento de gás natural que incluem: As-Sarah, Nahoora, Faregh, Wafa, o bloco offshore NC-41, Abu-Attifel, Intisar e bloco NC-98. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 99 GRÁFICO 4.4 – II EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO DE GÁS NATURAL NA LÍBIA (Bcm) Em 2006, a produção de gás natural da Líbia se elevou para 2,1 Bcf 11 por dia, ou 765 Bcf por ano. Esses volumes correspondem, grosso modo, à atual produção do Brasil e equivalem a 58,8 MMMCPD. Desse total, 415 Bcf (54%) eram de gás associado e os restantes 349 BCF (46%) de gás não associado. Quanto à distribuição geográfica, 563 Bcf (73,5%) eram produzidos em terra e o restante 203 Bcf (26,5%) no mar. De acordo com a IHS, a exploração e a explotação de gás natural na Líbia se encontrariam quase na infância. Apenas seis campos da Bacia de Sirte alimentam a planta de GNL construída no terminal de Marsa El Brega. A Shell e a NOC têm planos para expandir a capacidade dessa planta a médio e longo prazo. Durante 2006, cerca de 65 Bcf de gás se originaram dos campos de gás da Sirte Oil Company, no Bloco 6 da Bacia de Sirte, e foram convertidos em GNL. 11 Tendo em vista algumas incongruências dos dados de produção fornecidos pela WOGR-ENI adotou-se o conjunto de informações sobre produção oferecidos pela IHS, agora em pés cúbicos. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 100 O potencial para gás natural é muito elevado e continua praticamente inexplorado. Somente 10 Tcf (21,5%) do total de reservas provadas são consideradas desenvolvidas, 16 Tcf (34%) são consideradas subdesenvolvidas e os restantes 20 Tcf são consideradas não desenvolvidas. A produção de gás natural praticamente dobrou em 2005, quando a ENI iniciou a operação do West Libya Gas Project (WLGP). Dois grandes campos alimentam o vasto projeto: em terra, o campo de gás e condensado de AlWafa, localizado na Bacia de Ghadames, e no mar o campo de Bahr Essalam, localizado na Bacia Pelagiana. O gás natural é transportado para a Itália pelo gasoduto denominado Greenstream que passa debaixo do Mediterrâneo, da cidade líbia de Mellitah para a cidade de Gela, na Sicília, com uma extensão de 520 km e o diâmetro de 32 polegadas. O gás transportado origina-se do campo de Wafa, situado em terra, e do campo de Bahr Essalam, situado no mar. No projeto, a ENI atua como operadora com 50% dos interesses, seu sócio é a NOC, com a outra metade dos interesses. O Mapa 4.4-I esquemático ilustra a localização dos pontos mais importantes do projeto. As Fotografias 4.4-I e II mostram a plataforma de lançamento do gasoduto e a instalação portuária do projeto. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 101 MAPA 4.4-I PROJETO WLGP E O GREENSTREAM Fonte: ENI Worldwide FOTOGRAFIA 4.4-I PLATAFORMA DE LANÇAMENTO DO GASODUTO R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 102 .FOTOGRAFIA 4.4-II TERMINAL PORTUÁRIO DE MELLITAH O Mapa 4.4-II, esquemático, e o Gráfico 4.4-III seguintes ilustram o perfil batimétrico do gasoduto submarino MAPA 4.4-II PERFIL BATÍMÉTRICO DO GREENSTREAM GRÁFICO 4.4-III R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 103 O WLGP adicionou 1 BCFPD na produção líbia de gás natural e durante 2006 o WLGP produziu o equivalente a 300.000 BPD de petróleo. Os custos do desenvolvimento do projeto foram de 5,6 bilhões de dólares. O gás e os líquidos produzidos dos dois campos são transportados até as instalações de Mellitah para o processamento. Existem planos de ampliar o sistema do Greenstream de 445 para 740 MMcf/d a curto prazo. A companhia italiana Edison Gas se comprometeu num contrato take-orpay a comprar boa parte do gás proveniente da Greenstream para a geração de energia elétrica na Itália. Antes da Edison, a companhia italiana Energia Gas e a francesa Gaz de France também se haviam comprometido com a compra do gás da Líbia. Por causa do projeto WLGP a ENI se envolveu no desenvolvimento de outras jazidas. A ENI está promovendo a interligação das reservas do Egito com as da Líbia para exportar gás de ambas, em conjunto, para a Itália. Um primeiro acordo entre Egito e a Líbia foi alcançado em 1997, depois da visita à Líbia do presidente egípcio Mubarak. Em 2001 um acordo de associação foi assinado entre a NOC e a estatal egípcia EGPC para construção de um gasoduto e planta de tratamento do gás. A joint venture para essa finalidade assumiu o nome de Arab Company for Oil and Gas Pipelines (ACOG). Existe ainda uma outra proposta para construir um novo gasoduto de 900 milhas do Norte da África para o Sul da Europa, que transportaria gás natural do Egito, da Líbia, da Tunísia e da Argélia, via Marrocos, para a Espanha (note-se que já existe uma linha entre a Espanha e o Marrocos). Também a Tunísia e a Líbia acordaram, em 1997, associar-se para construir um gasoduto da área de Mellitah, na Líbia, para uma zona urbana industrial de Gabes, no Sul da Tunísia. Em 1998, a Tunísia e a Líbia assinaram um acordo para fornecimento de gás. Em 1971, a Líbia tornou-se o segundo país do mundo, depois da Argélia (1964), a exportar GNL. No entanto, desde então o programa de exportação de GNL ficou em segundo plano, tendo sua capacidade reduzida em função de limitações técnicas. A planta de GNL no local chamado Marsa El Brega foi construída pela Esso com uma capacidade nominal de 125 Bcf por ano. Entretanto, em função R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 104 das sanções comerciais a Líbia não conseguiu obter equipamento para separar os líquidos do seu gás natural. Dessa forma a planta de GNL, que exporta para a Espanha, está hoje com a sua capacidade reduzida a 15% da original. Depois do fim das sanções muitas companhias estão analisando o potencial da Líbia com vistas a instalação de plantas de GNL, inclusive a Shell a partir de maio de 2005. A Shell pretende modernizar as instalações de Marsa El Brega e/ou possivelmente construir novas instalações com investimentos que poderão variar entre 105 e 450 milhões de dólares. 4.5 ENERGIA ELÉTRICA NA LÍBIA De acordo com as informações da EIA a demanda de eletricidade da Líbia deverá aumentar nos próximos anos o que implicará um investimento de bilhões de dólares em nova capacidade de geração. A atual capacidade de produção da Líbia é de aproximadamente 4,7 GW (gigawatts). Praticamente toda essa geração deriva de plantas termelétricas. No momento a maioria das velhas estações termelétricas existentes está sendo convertida de derivados de petróleo, sobretudo diesel para gás natural. Todas as novas plantas de geração termelétrica estão sendo projetadas para uso de gás natural. Tudo isso ocorre dentro do plano de aumentar as exportações de petróleo através do incremento do uso do gás no mercado interno. Secundariamente, a Líbia está empenhada também num estudo de fontes alternativas de energia elétrica para utilização em pequena escala em locais remotos que dificilmente poderiam ser interligados à rede elétrica. Nesses projetos incluem-se alguns de geração eólica e outros de geração solar. Os planos hoje em curso prevêem dobrar a capacidade de geração até 2012. Durante o verão de 2004 a Líbia foi vítima de grandes “apagões” em função da incapacidade do parque gerador de atender à demanda. Para prevenir esse tipo de “apagões” e para atender satisfatoriamente ao grande aumento do consumo a companhia estatal do governo da Líbia GECOL (General Electricity Company) está construindo várias plantas novas, a saber: (1) The Western Mountain Gas Turbine Power Plant; (2) The Zawiya Power Plant Gas Turbine Extension; (3) The North Benghazi Combined Cycle Power R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 105 Plant; (4) The Zawiya Combined Cycle Power Plant; e (5) The West Trípoli Power Plant Extension. Uma das principais razões do aumento elevado e constante do consumo reside na política de preços subsidiados para energia elétrica no país. A eletricidade na Líbia custa apenas cerca de um terço do preço que corresponderia aos custos, se a energia primária fosse valorada no nível do mercado internacional. A GECOL aceita participação estrangeira nos grandes projetos de geração. Em 2001 o grupo italiano ENEL foi considerado como vencedor de uma concorrência para o projeto Western Mountain, mas aparentemente não chegou a acordo com o governo líbio. Alguns grupos russos também se prontificaram a participar de algumas plantas térmicas, como a de West Trípoli. Em 2003 alguns grupos coreanos também iniciaram negociação nesse sentido. Deve-se esperar para breve, entendimentos com os chineses que estão muito ativos na África como um todo, buscando acesso ao suprimento de petróleo e gás através de financiamentos generosos de projetos de infra-estrutura, inclusive de energia elétrica. Além do grande incremento previsto para a capacidade de produção da GECOL — que controla toda a cadeia produtiva do setor de energia elétrica da Líbia — existe também um programa orçado em mais de um bilhão de dólares para melhorar e expandir a rede de transmissão em todo o país. Alguns grupos estrangeiros, principalmente espanhóis, estão sendo contratados para participar desses trabalhos. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 106 ANEXO 2-I INFORMAÇÕES SOBRE A GEOLOGIA DA LÍBIA AS BACIAS SEDIMENTARES E SEU POTENCIAL A Bacia de Sirte é considerada uma província petrolífera de destacada importância mundial (world-class petroleum province), junto com a Bacia Offshore da Tripolitânia (também denominada Plataforma Pelágica), que se estende próximo à fronteira da Líbia com a Tunísia, formando um importante componente na prospectividade da região. Esse sistema mesozóico-cenozóico recebe carga de hidrocarbonetos de folhelhos geradores extremamente ricos do Cretáceo Superior e, possivelmente, do Oligoceno, alimentando todo tipo de reservatório, desde um embasamento fraturado até os reservatórios siliciclásticos e carbonáticos mesozóicos e cenozóicos, em trapas formadas por blocos basculados, dobras horst e até recifes. Além disso, existem também prospectos paleozóicos particularmente importantes, após as recentes descobertas nas bacias de Ghadamis e Murzuk. Nessas bacias, os geradores são silurianos preenchendo reservatórios que vão do Cambriano ao Permo-triássico, em trapas formadas por anticlinais falhados, blocos falhados e acunhamentos estratigráficos na borda das bacias. A Bacia de Kufra no sudeste da Líbia é atualmente considerada como de alto risco assim como a Plataforma de Cirenaica com sedimentos paleozóicos e cenozóicos. A Bacia de Sirte é uma bacia extensional, aparentemente controlada por falhas transcorrentes, que teriam se formado no fim do Jurássico. As principais descobertas se relacionam a blocos basculados e dobramentos associados principalmente na borda leste do rifte. Bancos de carbonatos e recifes se relacionam a dobramentos de pequena amplitude principalmente sobre a parte central e oeste do rifte. A bacia sedimentar mais importante da Líbia é sem dúvida a Bacia de Sirte, ocupando uma grande área na porção central e setentrional do país 12 . 12 Esta bacia é detalhadamente descrita no trabalho The Sirte Basin Province of Libya – SirteZelten Total Petroleum System, de autoria de T. S. Ahlbrandt, publicado no Boletim 2002-F do Serviço Geológico dos Estados Unidos R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 107 Esta Bacia ocupa o 13º lugar entre as principais províncias petrolíferas do mundo e nela já foram encontrados mais de 36 bilhões de barris de óleo recuperável e mais de 37 Tcf de gás. A bacia possui uma área aproximadamente do mesmo tamanho da Bacia de Williston (com cerca de 490 mil quilômetros quadrados). De acordo com os dados geoquímicos existentes, esta Bacia contém um único sistema petrolífero dominante: o Sistema Sirte-Zelten. Os folhelhos cretáceos da Formação Sirte constituem a principal rocha geradora da bacia. Os reservatórios constituem-se de diversos tipos de rocha de diferentes idades, desde rochas pré-cambrianas fraturadas — os reservatórios clásticos cambroordovicianos (Arenito Gargaf) —, arenitos do Cretáceo Inferior (Arenito Sarir), arenitos paleocênicos da Formação Zelten, até os recifes carbonáticos eocênicos. Foram encontrados na bacia mais de 23 grandes campos de petróleo e 16 campos gigantes. A produção, tanto dos reservatórios clásticos quanto nos carbonáticos, é geralmente associada à estruturas falhadas (horsts) relacionadas à junção tríplice dos três braços da bacia: o braço de Sarir, a Leste; o braço de Sirte, ao Norte e o braço de Tibesti, a Sudoeste. Combinação de trapeamentos estratigráficos em combinação com esses blocos altos formam campos gigantes, como, por exemplo, o de Messla e Sarir. O Mapa A2-I seguinte mostra, esquematicamente, a situação dos principais campos de óleo e de gás (bolinhas verdes assinalam os centros geográficos dos campos) relacionados ao sistema petrolífero Sirte Basin 2043. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 108 MAPA A.2-I CAMPOS DE ÓLEO E GÁS – BACIA SIRTE Fonte: USGS Assessment Data. Extraído de T. S. Ahlbrandt, op. cit A Bacia de Sirte reflete as deformações decorrentes de um processo de refteamento desenvolvido no Cretáceo Inferior e o preenchimento por espessas camadas sedimentares sin-rifte durante o Cretáceo até o Eoceno. Existem também depósitos pós-rifte de idade Oligocênica e Miocênica. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 109 Os hidrocarbonetos atingiram toda a gama de reservatórios, geralmente através de migração vertical ou subvertical ao longo das grandes falhas. Evaporitos do Eoceno Médio, depositados em condições pós-rifte, forneceram um excelente selo para o sistema petrolífero Sirte-Zelten. Na porção offshore da Bacia de Sirte, já no Mediterrâneo, ocorre subdução no Nordeste do limite da província em águas de 2.000m de profundidade, conforme ilustram os Mapas A.2-II e III seguintes. MAPA A.2-II ARCABOUÇO TECTÔNICO DA PORÇÃO OFFSHORE DA BACIA SIRTE Fonte: T.S. Ahlbrandt, op. cit. OBS: o arcabouço tectônico da porção offshore se estende entre a Líbia e o sul da Europa (Itália e Grécia), debaixo do Mar Mediterrâneo. Em vermelho as ocorrências de rochas ígneas. O Perfil geológico assinalado AA¹ consta da Figura 4.11 da obra de Ahlbrandt. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 110 MAPA A.2-III PERFIL GEOLÓGICO AA¹, Fonte: T. S. Ahlbrandt , op. cit. OBS: ver locação do perfil AA´no Mapa anterior. Perfil, construído a partir da interpretação de uma linha sísmica, mostrando uma colisão de placas, com subdução, depois da Planície Abissal Iônica, ao sul d Grécia, antes do Arco Helênico. O sistema de blocos falhados típico da Bacia de Sirte é bem visualizado na seção geológica, aproximadamente Leste-Oeste indicada no Gráfico A.2-I seguinte. Esta seção na porção ocidental da Bacia mostra o estilo estrutural com horsts e grabens limitados por falhas normais, semelhante ao do Recôncavo Baiano. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 111 GRÁFICO A.2-I ESTILO ESTRUTURAL DE UMA SEÇÃO GEOLÓGICA BACIA DE SIRTE Fonte: T. S. Ahlbrandt, op. cit. O Diagrama A.2-I seguinte mostra a coluna estratigráfica na parte central da Bacia de Sirte, correspondente aos braços de Sirte e Tibesti. Observe-se a posição dos geradores da Formação Sirte no Cretáceo Superior, próximos ao topo do Senoniano (Sirte Shales). Os complexos trapeamentos estruturais e estratigráficos típicos da Bacia de Sirte são assinalados na seção geológica esquemática do Diagrama A.2-II seguinte. Nela estão indicadas acumulações de petróleo múltiplas, ás vezes complexas, na Bacia de Sirte. A distribuição e a qualidade dos reservatórios na Bacia de Sirte estão diretamente relacionadas aos eventos tectônicos que se estabeleceram na região e se associam a três seqüências respectivamente pré-rifte, sin-rifte e pós-rifte. Na atual configuração de Bacia de Sirte, que se aprofunda do Oeste para Leste e também na direção offshore, as características dos reservatórios podem variar significativamente de acordo com a profundidade. A distribuição e a qualidade dos reservatórios na Bacia de Sirte estão diretamente relacionadas aos eventos tectônicos que se estabeleceram na região e se associam a três seqüências respectivamente pré-rifte, sin-rifte e R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 112 pós-rifte. Na atual configuração de Bacia de Sirte, que se aprofunda do Oeste para Leste e também na direção offshore, as características dos reservatórios podem variar significativamente de acordo com a profundidade. DIAGRAMA A.2-I Fonte: T. S. Ahlbrandt, op. cit. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 113 DIAGRAMA A.2-II Fonte: T. S. Ahlbrandt, op. cit. O único gerador da Formação Sirte fornece óleo para uma série de reservatórios que vão desde o embasamento fraturado até o CambrianoOrdoviciano, o Triássico, o Cretáceo Inferior, o Paleoceno e o Eoceno. O petróleo atinge todos estes reservatórios migrando através das falhas que limitam os horsts. Os reservatórios carbonáticos, principalmente de idade Terciária, contêm 42% do petróleo da bacia e os reservatórios clásticos, de idade principalmente pré-Terciária contêm 58% do petróleo. Os carbonatos do Grupo Zelten contêm 33% do petróleo até hoje descoberto. Os clásticos do Cretáceo Inferior (arenitos Nubian ou Sarir) contêm 28% e os clásticos Cambro-Ordovicianos dos Grupos Gargaf, Hofra ou Amal contêm 29% do petróleo até hoje descoberto. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 114 5 – PANORAMA MILITAR-ESTRATÉGICO A Líbia enfrenta relativamente poucas ameaças dos vizinhos com que tem fronteiras. Embora tenha experimentado situações de conflito armado com o Chade, o Egito e — em condições ainda menos claras — com a Tunísia, os dois ataques mais sérios contra o país no século XX vieram de potências ocidentais. O primeiro foi em 1911, quando a Itália afirmou-se como potência colonial, o segundo em abril de 1986, quando os EUA bombardearam, sem declaração de guerra e em clara violação ao direito internacional, as cidades de Trípoli e Benghazi. Com Israel, inimigo por eleição de seu governo, a Líbia nunca teve embate direto. Não há, no momento, qualquer ameaça externa latente contra a Líbia. No entanto, desde a chegada de Gadhafi ao poder, o país tem feito grande esforço de armamento e equipamento das suas Forças Armadas. Neste capítulo, discute-se o esforço armamentista líbio, suas diferentes vertentes e limitações, para em seguida avaliar a evolução recente das eventuais ameaças externas e vulnerabilidades líbias no cenário estratégico regional e global. 5.1-QUESTÕES GERAIS DE DEFESA NACIONAL Antes do golpe de Estado que levou Gadhafi ao poder em 1969, falar de segurança nacional na Líbia referia-se essencialmente à proteção do Rei Idriss, seu regime e suas prioridades. A proteção contra as ameaças externas não era de forças armadas próprias, preparadas e dotadas de recursos bélicos adequados, mas sim através de alianças e pactos firmados com as potências ocidentais. Vale a pena mencionar o Tratado de Amizade Líbio-Britânico de 1953, que garantiu aos britânicos o uso da base aérea de Al Adem, perto de Tobruq, que havia sido por eles utilizada durante a Segunda Guerra Mundial. Tratado similar, assinado em 1954, deu o mesmo direito aos EUA na base aérea de Wheelus, agora chamada de Uqba Ibn Nafi, perto de Tripoli. Ambos tratados permitiam às duas potências ocidentais manter contingentes armados e operacionais na Líbia. Com isso, o monarca podia se dar ao luxo de reservar seus recursos e suas energias para lidar com as ameaças internas à R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 115 estabilidade, principalmente aquelas oriundas das profundamente divididas forças armadas nacionais. Por isso, uma das primeiras iniciativas de Gadhafi quando chegou ao poder foi a ab-rogação dos tratados do antigo regime com britânicos e norteamericanos. Mais do que isso, houve uma mudança de prioridades e a Líbia passou a mobilizar forças e capacidades não só para sua própria defesa como também para apoiar os demais países árabes na luta contra Israel. O tamanho das forças armadas foi duplicado, mas de maneira razoável e levando em consideração que os vizinhos da Líbia não eram hostis. A partir de 1973, isto mudou, primeiro devido à frustração de Gadhafi por não ter sido consultado pelo Egito e pela Síria sobre a Guerra do Yom Kippur, e aos sucessivos fracassos das suas tentativas de união com vários países árabes, conforme detalhado no Capítulo 2- Panorama Político. Além disso, duas mudanças ocorreram em 1973: por um lado, o aumento do preço do petróleo colocou novos e substanciais recursos nas mãos de Gadhafi; por outro lado, a União Soviética estava preparada a vender as armas que o Ocidente se recusava a entregar. Com o objetivo de contribuir para a luta dos países árabes contra Israel, participando de maneira direta e concreta — situação que nunca ocorreu até hoje —, a Líbia começou a acrescentar aviões-caça MIG-25, de fabricação soviética, à sua força aérea até então constituída de aviões Mirage, de fabricação francesa. Também passou a comprar muito mais tanques do que seu Exército poderia operar e a equipar sua Marinha não apenas com embarcações eficientes de patrulhamento, mas também com submarinos. Assim, entre 1973 e 1983, a Líbia gastou o equivalente a US$ 28 bilhões em compras de material bélico, dos quais nada menos do que US$ 20 bilhões junto à extinta União Soviética e seus aliados do Leste Europeu. Mas, apesar da retórica oficial, o máximo que a Líbia fez em termos concretos de luta contra Israel foi entregar partes de seu considerável arsenal bélico a movimentos e forças não regulares de sua escolha, que lutam diretamente contra Israel. No entanto, estas novas relações comerciais com Moscou, em torno de material bélico, nunca se traduziram em uma aliança militar entre os dois países e menos ainda na existência de bases militares soviéticas no país. Cabe R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 116 registrar, quanto a este ponto, que o Livro Verde refuga tanto os regimes capitalistas, quanto os comunistas e socialistas. As suspeitas de vários serviços secretos ocidentais de que a Líbia serviria para armazenar armas que seriam eventualmente usadas pela União Soviética em operações na África, também revelaram-se totalmente infundada. O serviço militar obrigatório, necessário para expandir os contingentes necessários para manipular tantas armas, só foi imposto na Líbia em 1978. Apesar da existência de inúmeros técnicos e instrutores soviéticos para ensinar o uso destas armas, a Líbia continuou tendo problemas para utilizar todo seu arsenal de maneira adequada. Além disso, devido às múltiplas fontes de importação de armas e de problemas de manutenção e de munições, havia severas limitações para tornar operacional o enorme potencial das armas adquiridas. De maneira geral, os 20 primeiros anos de Gadhafi no poder foram marcados por um aumento das tensões com seus principais vizinhos. Houve o que os militares chamam de guerras de baixa intensidade com a Tunísia e o Chade — com este em vários períodos —, e no final da década de 1970, as forças armadas líbias permaneceram por muito tempo em estado de alerta devido a uma iminente guerra contra o Egito, apenas uma vez concretizada, em 1977. Outro foco de atenção eram os Estados do Sahel que, devido as suas pobreza e fraqueza, representaram por muito tempo um alvo fácil da cobiça por parte dos líbios. No entanto, os interesses de ex-potências coloniais ocidentais impediram consistentemente que tais projetos de expansão prosperassem. O Ministério de Defesa deixou de existir na Líbia em 1991. Posteriormente, outros 12 ministérios também foram extintos na reforma de 2000. 5.2- O EXÉRCITO Em 2002, o exército líbio tinha 45.000 soldados, dos quais 25.000 eram temporários por serem conscritos. Os reservistas chegam a 40.000 e são organizados no seio de uma milícia popular. Sua missão essencial é a defesa das fronteiras nacionais, mas serve também de força de desdobramento R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 117 rápido. Sua doutrina é uma mistura de influência egípcia, adotada após o golpe de 1969, quando o Egito de Nasser representava um modelo para o nacionalismo árabe, e de conceitos de exército popular, do tipo o chinês. Tanto o embargo de armas imposto pela ONU, devido à crise de Lockerbie, quanto o crescimento da Guarda Revolucionária têm prejudicado o crescimento e o fortalecimento do Exército. A força terrestre líbia é composta de 7 distritos militares e 5 guardas presidenciais, sendo que estas foram criadas em uma importante reestruturação das Forças Armadas ocorrida entre 1994 e 1995. A estrutura do Exército é a seguinte: 21 batalhões de infantaria, 10 batalhões blindados, 22 batalhões de artilharia, 15 batalhões de forças especiais e 8 batalhões de defesa aérea. Mas até então, o Exército líbio tinha uma estrutura tradicional que separava os batalhões de tanques dos batalhões mecanizados, e os batalhões da artilharia, da infantaria e da defesa aérea. Isto fazia com que as unidades fossem juntadas de maneira ad hoc, e dificultava a operacionalização do Exército quando isto era necessário. No entanto, a antiga estrutura era mais adequada para as operações no deserto. Até o golpe de 1969, a maior parte dos oficiais líbios — inclusive o próprio Gadhafi — era formada na academia militar de Benghazi, que havia sido criada com a colaboração e assistência dos britânicos. Após o golpe, a academia de Benghazi foi desmantelada e uma nova academia foi criada em Tripoli, nos mesmos moldes, mas refletindo as novas prioridades, Os batalhões do Exército líbio são presentes principalmente na Costa do Mediterrâneo, em locais ativos desde a Segunda Guerra Mundial, assim como nas fronteiras com a Tunísia e mais concentradas nos limites com o Egito. Outras presenças notáveis são em pontos rumo ao sul, em particular em Sabha e no extremo sul, em Al Kufra. Até 1987, a Líbia possuía em termos estatísticos, um dos exércitos mais modernos do mundo. Sua mobilidade era considerável em função da alta capacidade de transporte. Com 3.000 tanques, a Líbia tinha a décima força de blindados do mundo. No entanto, e apesar dessas importantes vantagens, o Exército apresentava graves deficiências. Uma das principais era a incapacidade dos soldados líbios de fazer uso adequado das armas modernas, R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 118 apesar dos inúmeros técnicos e assistentes estrangeiros. Outra, em função do grande número de fornecedores de armas, inclusive o próprio Brasil, de manter estoques adequados de peças, do que resultaram sérios problemas de manutenção e eventualmente até de incompatibilidades entre as diferentes armas. 5.3- A FORÇA AÉREA A Força Aérea (FAL) foi a última força a ser implantada. A Líbia possui uma Força Aérea, em termos de equipamentos e sistemas, extremamente moderna e sofisticada. No entanto, sua capacidade de usá-la é muito variável. Enquanto em termos de combate aéreo, a FAL não tem demonstrado grande eficiência e efetividade nas poucas oportunidades que teve de atuar — tendo inclusive dificuldades para interceptar aviões, voar de noite e enfrentar o inimigo —, em termos de capacidade de transporte, a Força Aérea demonstrou altos padrões de desempenho nas oportunidades em que foi necessária, notadamente na campanha contra o Chade. A FAL é composta de 22.000 soldados, incluindo 15.000 conscritos, o que representa um enorme contraste com o período anterior ao golpe de 1969, quando tinha apenas 400 oficiais e soldados. Possui 426 aviões de combate e 52 helicópteros armados efetivos, assim como uma grande capacidade ociosa em termos de infra-estrutura militar aérea. É dividida em: um Comando de Defesa Aérea e um batalhão de Apoio em Batalha. Um esquadrão de bombardeio médio, três esquadrões de interceptação e combate, 5 esquadrões de apoio terrestre, um esquadrão de contra-insurgência, nove esquadrões de helicópteros e três brigadas de defesa aérea. Sua principal base é a de Uqba Ibn Nafi (antiga base americana de Wheelus) perto de Tripoli, nas quais estão localizados a maioria dos caças MIG e os bombardeiros TU-22. Outras bases aéreas, com alguns aviões MIG e outros Mirage, estão em Benghazi, na fronteira com o Egito. Existem dois níveis de academias militares da FAL. Por um lado, a academia de Zauia, criada em 1975, providenciava uma formação completa. Por outro, existem os chamados colégios militares, que dão uma formação básica de piloto e a qual precisa ser complementada em Zauia, ou na base R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 119 aérea Uqba Ibn Nafi, ou ainda no exterior. Durante a Guerra Fria, a maioria dos instrutores nestas academias era do Leste Europeu, principalmente da Iugoslávia. Os contratos de compra de aviões incluíam cláusulas de treinamento de pessoal para o uso adequado do material bélico adquirido. Por fim, alguns aviões militares líbios são pilotados por pilotos profissionais (mercenários) de outras nacionalidades, particularmente da África do Sul, da Rússia, da Coréia do Norte e do Paquistão. 5.4- MARINHA Observadores de assuntos militares afirmam que a Marinha líbia é vista como o “patinho feio” das Forças Armadas do país, apesar de seu material moderno, principalmente seus submarinos e navios de combate sofisticados, que lhe permitiriam, na teoria, uma atuação mais do que honrosa em situações de combate marítimo. Quando Gadhafi chegou ao poder, em 1969, a Marinha consistia de um corpo de 200 oficiais e soldados, enquanto as estimativas para o início da década de 2000 eram de mais de 9.000 soldados e oficiais. Além da sua missão tradicional de defender e patrulhar as costas do país, a partir de 1970, a Marinha passou também a combater o contrabando e aplicar as leis alfandegárias. Para Gadhafi, a Líbia precisava de uma Marinha forte para defender sua soberania no Golfo de Sirte, considerado um ecossistema excepcionalmente rico tanto em termos de fauna e flora, quanto em termos de recursos minerais e energéticos. Além disso, o Líder considerava importante seu país ter capacidade de desembarque anfíbio, tanto em termos defensivos (para defender suas instalações em alto mar), quanto ofensivos (perante a Tunísia e principalmente o Egito). Como em relação às duas outras Armas, após o golpe de 1969, a Líbia foi substituindo a Grã Bretanha como principal fornecedor de seu material naval bélico por outros parceiros. Imediatamente após a chegada de Gadhafi ao poder, os primeiros fornecedores de material naval da Líbia foram a Grécia e o Egito, que foram logo substituídos pela União Soviética. No entanto, outros R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 120 países — como o próprio Reino Unido, a França e a Itália —, continuaram a fornecer armas para a Marinha líbia. As poucas informações disponíveis sobre a Marinha líbia atestam que Tripoli é sua principal base, ao lado de Benghazi. Uma base de reparos de navios foi estabelecida em Al Khums, enquanto em Ras Al Hilal, estabeleceuse uma base para submarinos. Mas todos estes esforços não conseguem superar a falta de pessoal qualificado para lidar com as características sofisticadas das embarcações, nalguns casos consideradas desnecessárias. Da mesma forma, os problemas enfrentados pelas outras Armas, no que se refere à manutenção e compatibilidade de materiais de diferentes origens, se colocam também para a Marinha. 5.5- A MILÍCIA POPULAR Na reunião do Congresso Geral do Povo de março de 1984, estabeleceu-se o serviço militar obrigatório para todos os líbios de uma certa idade, homens e mulheres, condicionado apenas a que sejam fisicamente capacitados. Este novo estatuto não cancelou o estatuto de 1978, que estabeleceu o serviço militar obrigatório para os homens entre 17 e 35 anos, com duração de três anos no Exército e 4 anos na Marinha e na Força Aérea. Assuntos militares passaram a fazer parte dos programas educacionais nas instituições de ensino de todos os níveis, embora o treinamento especializado em estratégias de guerra deveria ser restrito às elites das Forças Armadas. Os estatutos aprovados em 1984 dividiram o país em regiões de defesa e estipularam que os habitantes de cada região seriam responsáveis por defendê-la. Cada escola pública passou a depender de uma unidade militar específica e cada aluno era suposto passar dois dias por mês treinando e especializando-se em questões de defesa, desde a manipulação de armas até o uso de granadas e do material de comunicação das Forças Armadas. Além disso, cada aluno é suposto passar um mês por ano na unidade militar correspondente à sua escola. Estas mesmas regras se aplicam a todos os funcionários públicos e das empresas estatais, assim como aos trabalhadores das fábricas. O objetivo dessas regras era garantir a mobilização contínua da R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 121 população além de mantê-la em estado de alerta permanentemente, ciente da vulnerabilidade do país e das ameaças que o cercam. Não há estimativa do contingente das milícias populares, mas em tese toda a população adulta, em condições físicas adequadas, deveria estar apta a entrar em operação em caso de necessidade. 5.6 – MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS Desde seus primeiros dias no poder, Gadhafi tem insistido na necessidade da participação das mulheres na defesa nacional, também como uma operação simbólica de afirmação de sua importância na sociedade líbia. Gadhafi acreditava que as mulheres líbias eram injustiçadas e subjugadas na sociedade, numa atitude conservadora, reacionária e em oposição aos preceitos do Corão. Tal posição tem sido combatida tanto pelos setores mais tradicionalistas e conservadores da sociedade líbia quanto por muitas das próprias mulheres. De fato, uma instituição militar que tinha sido aberta em 1979 em Tripoli destinada exclusivamente para a formação de mulheres teve que ser fechada em 1983, após a fuga de várias alunas e sua revolta por estarem naquela instituição. Neste sentido, o estatuto aprovado pelo CGP em março de 1984, que estabeleceu explicitamente o serviço militar também para mulheres, representa um caso interessante: foi o próprio Gadhafi que apresentou o projeto de resolução à reunião do CGP, mas seu projeto acabou sendo rejeitado. Gadhafi, inconformado com a posição conservadora do CGP, incentivou “manifestações espontâneas” de mulheres contra aquela decisão, e acabou revertendo a posição do CGP, que finalmente deliberou instituir o serviço militar obrigatório para mulheres. No entanto, tal serviço obrigatório para mulheres não é rigorosamente aplicado e representa mais uma norma de princípio da qual as mulheres podem se beneficiar. O fato é que o próprio Gadhafi tem usado, há muito tempo, mulheres especialmente treinadas na sua guarda pessoal, sendo que num certo período a mesma foi composta quase que exclusivamente por mulheres, durante alguns anos. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 122 Aliás, está é uma tradição encontrada em muitos países africanos, sobretudo até o século XIX, onde os obás e reis preferiam confiar em soldados. Mulheres. 5.7- CONCLUSÕES Nos últimos anos, a Líbia tem tentado modificar sua inserção no cenário político internacional. O ponto de inflexão pode ser a crise que decorreu do atentado de Lockerbie e que levou o país a um grande isolamento no cenário internacional, em função das resoluções da ONU, que foram zelosamente observadas por seus vizinhos mais próximos, isto é, pelos países da Magreb. Isto significa, sobretudo, maior conformismo aos acontecimentos no plano internacional, que antes eram enfrentados segundo uma lógica prédefinida autônomamente e pouco pragmática. Assim, como foi assinalado em detalhes no Capítulo 2, do Panorama Político, além de ter feito concessões importantes na questão de Lockerbie, a Líbia condenou todas as formas de terrorismo, aderiu à Convenção Internacional de Armas Químicas, aderiu ao Segundo Protocolo do TNP, entregou todos os materiais relativos a seu programa nuclear aos EUA e tem adotado uma política de low profile nas grandes crises que se referem ao mundo árabe e muçulmano, quando não desempenha um papel mediador entre as partes. Foi assim na crise dos reféns ocidentais nas Filipinas e na tentativa de aproximar as posições dos governos do Chade e do Sudão, no que se refere à crise do Darfur, no Leste do Sudão. Em termos estratégicos militares, isto se traduz em menos áreas de atrito com os parceiros internacionais e, portanto, em menores ameaças para a estabilidade do próprio país. Com isso, a Líbia hoje tem menos protagonismo na cena internacional do que no passado, mas menos tensões e riscos internos. Em suma, pode-se afirmar que a Líbia hoje conseguiu reduzir sua vulnerabilidade militar internacional, graças à moderação da sua política externa e não em função do poder de aparelho militar e de defesa. No entanto, alguns observadores líbios e estrangeiros se preocupam com a vulnerabilidade da Líbia perante o terrorismo internacional, e em particular perante a Al Qaeda e seus associados. Para eles, o fato de todos os R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 123 vizinhos da Líbia terem sido vítimas de atentados da Al Qaeda e seus associados nos últimos anos, põe a Líbia em foco como uma eventual próxima vítima, o que representa situação de grande vulnerabilidade a esta ameaça. Tal preocupação líbia é ratificada pelas políticas norte-americanas para a região, no que se refere ao combate ao terrorismo. De fato, as sucessivas manobras militares conjuntas das forças armadas norte-americanas com as dos Estados da África, tanto árabes quanto africanos, visam dar poder às forças armadas da região para lidar com o que é considerado uma grande ameaça por parte dos EUA: a existência de uma grande região desértica, de extensa área e sem controle dos Estados nacionais, e que representam para os grupos terroristas uma grande possibilidade para treinar militantes, refugiarse e reagrupar-se eventualmente. Esta ameaça tem sido enfatizada pelas autoridades norte-americanas, assim como pelas autoridades nacionais da região, como sendo a principal fonte de ameaça para a estabilidade coletiva e tem ensejado um crescente nível de cooperação entre os EUA e os países da região. O conseqüente projeto de estabelecimento de um comando norteamericano para a África subsaariana — rumores crescentes indicam a Mauritânia como o local escolhido para a base deste novo comando — demonstram claramente o grau de relevância que tal ameaça representa na perspectiva do governo Bush. Tal posição norte-americana reforça a percepção líbia da eventual existência de uma ameaça terrorista contra ela, embora uma presença reforçada e institucionalizada dos EUA na região do novo foco de predileção da política externa da Líbia, a África, não deixa também de constituir um novo fator de perturbação. A Líbia possui, de fato, alguns fatores de vulnerabilidade quanto às ameaças terroristas: trata-se de um país com grande superfície, esparsamente povoado, com importantes instalações de produção petrolífera, longas extensões de dutos desde as regiões produtoras até os portos de exportação, alvos ideais para operações de impacto. Tal avaliação sobre a vulnerabilidade líbia ao terrorismo internacional não leva em consideração o fato de o país ter claras posições antiimperialistas R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 124 e de certa forma antinorte-americanas, que até hoje ainda não ativou sua representação diplomática em Washington, nem aceitou os acordos de paz de Oslo entre palestinos e israelenses, o que é bastante distintivo em relação a seus vizinhos norte-africanos. Além disso, a Líbia é muito mais ortodoxa com respeito à prática da religião muçulmana. Por mais aleatórios que sejam os movimentos terroristas, eles não atacam todo e qualquer alvo, tendo preferências por países com costumes ocidentalizados e que são vistos como aliados dos EUA, ainda quando estes países são muçulmanos (Marrocos, Argélia, Tunisia e Egito). A Líbia não se encaixa absolutamente dentro desta definição. É verdade que o regime de Gadhafi tem tido, desde a segunda metade da década de 1990, vários confrontos com grupos islâmicos radicais, principalmente na região de Benghazi, o que indica que aos olhos dos mais radicais, todas as políticas e atos do governo líbio não são suficientes para torná-lo totalmente aceitável. Apesar de tudo, pode-se afirmar que a Líbia tem vulnerabilidade bastante baixa perante o terrorismo do tipo Al Qaeda, sobretudo quando comparada aos demais países da região, por conta de suas políticas e atitudes, que a colocam em uma categoria diferente. Porém, como qualquer país com instalações petrolíferas, apresenta alvos evidentes e vulneráveis, como a Nigéria, propícias para a prática da chantagem. R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 125 6. EQUIPE Coordenação Geral: Luiz Alfredo Salomão Editoria Política: Nizar Messari Editoria de Economia: Reinaldo Gonçalves Editoria de Energia: Giuseppe Bacoccoli Editoria Militar: Nizar Messari Revisão e Edição Final: Paulo Romeu, Eliza Marques e João Ruas Analistas de Informação: Eliza Marques e João Ruas Pesquisa nos Meios de Comunicação Eletrônicos: Eduardo Pacheco e Thiago Petra Auxiliar Técnico: Marcos Freitas Secretárias: Márcia Buttel e Graziela Lima R.E.I.S.E – Rede Externa de Inteligência Sobre Energia 126