Full text - Sociedade Brasileira de Cefaleia

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Full text - Sociedade Brasileira de Cefaleia
ARTIGO DE REVISÃO
Migrânea e o pequeno cérebro
Migraine and the small cerebrum
Maurice Vincent
Vincent M. Migrânea e o pequeno cérebro. Migrâneas cefaléias. 2008;11(3): 201-216
“O pequeno cérebro não está envolvido apenas
com a coordenação”
Embora Herophilus (335-280 a.C.) seja usualmente citado como quem pela primeira vez reconheceu o
cerebelo (do latim, "pequeno cérebro"), como uma estrutura distinta, Aristóteles o fez anteriormente (A História dos Animais, livro I, parte XVI, 350 d.C.). Galeno
(131-200 d.C. ) chamou o verme cerebelar de the worm
-like outgrowth, Luigi Rolando (1773-1831) concluiu que
o cerebelo era uma estrutura motora, e Marie-JeanPierre Flourens (1794-1867) finalmente ligou o cerebelo
à coordenação.1,2 O anatomista e fisiologista tcheco
Jan Evangelista Purkyn (1787-1869), quem primeiro chamou atenção para as fibras subendocárdicas que levam o seu nome no coração, reconheceu pela primeira
vez as formas distintas de impressões digitais humanas,
inventou o oftalmoscópio e descreveu os neurônios na
camada média do córtex cerebelar, células com seu
axônio único e longos dendritos, hoje conhecidas como
células de Purkinje.3,4 Estas células, fonte do output
cerebelar, inibem os núcleos cerebelares mediante a liberação sináptica de ácido gama-aminobutírico
(GABA). Por outro lado, recebem conexões excitatórias
das células trepadeiras, principalmente a partir da oliva
inferior e das células granulares. Juntamente com as
células de Purkinje, existem no córtex cerebelar as células
granulares e dois tipos de interneurônios inibitórios, as
células de Golgi e as células em cesto.5 A estrutura do
cerebelo é comparativamente simples, uniforme e específica, com células dispostas em camadas bem arranjadas e interconectadas por microcircuitos de padrão arquitetônico repetitivo.6 Macroscopicamente, o
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cerebelo tem uma distribuição em folhas nos mamíferos e nas aves.5
Em relação às suas funções, sabe-se cada vez mais
que o cerebelo está envolvido em outras funções que não
simplesmente a coordenação motora, 7 tais como
cognição,2 memória verbal8 e aprendizado de habilidades motoras.9 Na recém-descrita síndrome cerebelar
cognitiva afetiva (cerebellar cognitive affective syndrome CCAS), os pacientes apresentam uma combinação de
distúrbios em funções executivas, cognição espacial, distúrbios de personalidade e perturbações na fala.10,11 Tais
anormalidades foram identificadas numa série de 20 indivíduos com diferentes doenças confinadas ao cerebelo.2
Usando tensor de difusão em ressonância magnética,
Okugawa et al. encontraram uma redução da anisotropia
fracionada nos pedúnculos cerebelares médios na
esquizofrenia, sugerindo que uma desconexão cerebelar
pode também desempenhar algum papel nesta doença.12
Reforçando ainda mais a possibilidade do cerebelo ter
outras funções além da simples coordenação motora,
anormalidades cognitivas indicando a presença de
disfunção frontal executiva podem ser encontradas em
diferentes tipos de ataxias cerebelares espinhais (SCA).13
MIGRÂNEA: UMA DOENÇA DO SISTEMA
NERVOSO CENTRAL QUE ENVOLVE O CEREBELO
A migrânea é uma desordem comum. Cerca de
10%-12% da população sofre da migrânea com variações segundo a idade e o gênero, sendo as mulheres 34 vezes mais afetadas do que os homens.14,15 O impacto pessoal e social da migrânea é muito elevado, pois a
doença atinge principalmente a fase adulta jovem. De
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acordo com o Global Burden of Disease Scale da Organização Mundial da Saúde, a migrânea se equivale
às doenças que conferem os mais elevados graus de
incapacidade, como psicoses, demências e tetraplegias.16
Estima-se que as migrâneas possam provocar um prejuízo de até 17 bilhões de dólares por ano nos EUA,17
com elevado absenteísmo e queda da produtividade.
As migrâneas interferem na vida profissional e afetiva,
prejudicando o desempenho e o lazer.18 Os enxaquecosos frequentemente desenvolvem fobias a compromissos, temendo assumir responsabilidades que depois não
possam cumprir.
Os ataques de migrânea, com duração entre 4 e
72 horas, ocorrem a intervalos variados. A dor é unilateral, na maior parte das vezes latejante, localizada mais
frequentemente nas regiões anteriores do crânio, sendo
intensa o suficiente para interromper a atividade rotineira dos pacientes. A intensidade piora com a atividade,
fazendo com que os pacientes procurem o repouso,
muitas vezes no leito. Náuseas, vômitos, foto e fonofobia
são frequentes e contribuem para a sensação de grande
mal-estar durante os ataques. Muitos pacientes podem
procurar atendimento de emergência durante as crises
particularmente intensas. Uma série de anormalidades
neurológicas focais transitórias denominadas "aura" (do
grego, brisa), na maioria das vezes visuais, mas também
sensitivas, motoras ou afásicas, pode ocorrer durante
alguns ataques da doença, na maior parte das vezes
antes da fase dolorosa.19 A Sociedade Internacional de
Cefaléia (IHS) classifica as migrâneas como "migrânea
sem aura" (EsA) e "migrânea com aura" (EcA), da dependência da presença de sintomas compatíveis com aura
enxaquecosa.20(*)
AS TEORIAS VASCULAR E NEURONAL:
DE ONDE VEM A MIGRÂNEA?
Os mecanismos responsáveis pelas migrâneas ainda permanecem em grande parte obscuros. Entretanto,
o conjunto de evidências acumuladas até o momento
demonstra que a doença é uma afecção neurológica
primária.21 Durante muitos anos houve polêmica quanto à origem da migrânea, polarizando os defensores
da chamada "teoria vascular", de um lado, contra os
simpatizantes da "teoria neuronal", de outro.22 Tornou(*) O termo "migrânea" é usado por muitos estudiosos no Brasil
como sinônimo de enxaqueca, assim constando na versão brasileira dos critérios diagnósticos internacionais para as cefaléias.
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se claro, porém, que no sistema nervoso central reside,
sem dúvida, a fonte da doença. A teoria vascular ganhou força após os achados iniciais de John Graham
(1909-1990) e Harold George Wolff (1898-1962),
mostrando que a ergotamina, um agente vasoconstrictor,
era capaz de diminuir a dor ao mesmo tempo em que
reduzia a pulsação das artérias temporais, contraindoas.23 Setenta anos atrás, uma explicação vascular para
a migrânea parecia facilmente aceitável, mas provas
em contrário acumularam-se ao longo do tempo. Mesmo há muitos anos a explicação "vascular" parecia
simplista demais. De acordo com Fitzsimons and
Wolffenden, Foster Kennedy escreveu, já em 1931, sobre a migrânea oftalmoplégica: "…it is not easy to follow
the dynamics by which the totality of migraine could be
brought about by arterial spasm alone… By spasm of
what artery can one explain the paralyses… often needing
days, and occasionally weeks, in which to recover?"24
Não obstante, a teoria que procurava explicar a origem da migrânea nos vasos popularizou a expressão
"cefaléia vascular". Segundo as idéias vigentes à época, a vasoconstrição produziria a aura, e a vasodilatação
seria responsável pela dor. A primeira evidência claramente contrária a esta teoria foi obtida a partir da observação de que as anormalidades circulatórias não
acompanhavam as fases de aura e dor ao longo do
tempo.25 Logo, a possibilidade de que o cérebro anormalmente hiperexcitável provavelmente originaria as
crises enxaquecosas se tornou mais aceitável,26 sendo
sua ocorrência determinada em parte por causas genéticas.27 A hiperexcitabilidade pode ser confirmada,
por exemplo, pela maior susceptibilidade do córtex dos
enxaquecosos à indução de fosfenos induzidos por
estimulação magnética transcraniana.28 Assim, eventuais anormalidades circulatórias são meros epifenômenos
durante a crise de migrânea, estando na intimidade do
sistema nervoso, muito provavelmente no córtex cerebral, a real anormalidade que predispõe os pacientes
aos ataques recorrentes da doença.
A DEPRESSÃO ALASTRANTE DE LEÃO
Sir William Gowers, em 1906, anteviu, com incrível astúcia, que algum fenômeno cerebral alastrante
deveria provavelmente ocorrer como parte da fisiopatologia da doença: "The process which precedes the
headache of migraine is very mysterious, whether it is
referred to the eye or the arm; there is a process of intense
activity which seems to spread, like the ripples in a pond
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MIGRÂNEA E O PEQUENO CÉREBRO
into which a stone is thrown. But the activity is slow,
deliberate, occupying twenty minutes or so in passing
through the centre affected".29 A "depressão alastrante"
(DA) é um fenômeno inicialmente descrito por Aristides
Azevedo Pacheco Leão,30 em 1944.31 Trata-se de uma
onda alastrante de despolarização associada a uma
redução da atividade cortical que dura alguns minutos
e que se espalha com uma velocidade aproximada de
3 mm/min.
Em 1945, Leão e Morrison sugeriram pela primeira
vez que a DA poderia estar relacionada à fisiopatologia
da migrânea, embora eles tenham imaginado, erradamente ao conhecimento atual, que a aura talvez fosse
um evento vascular: "Much has been written about vascular
phenomena both in clinical epilepsy and the presumably
related condition of migraine. The latter disease with the
marked dilatation of major blood vessels and the slow
march of scotomata in the visual or somatic sensory sphere
is suggestively similar to the experimental phenomenon
here described, in spite of the fact that known scotomata
are still felt to be vasoconstrictor in nature".31 Leão também postulou que alterações circulatórias ocorriam em
associação com as ondas de DA.32 Posteriormente, alterações circulatórias alastrantes compatíveis com a DA
foram descritas em enxaquecosos, fazendo a possibilidade da DA constituir um importante elemento na fisiopatologia da migrânea ainda mais atraente. Assim, a
DA é acompanhada por uma hiperperfusão inicial, seguida por uma prolongada e pronunciada hipoperfusão.33 Desta forma, admite-se que o cérebro hiperexcitável na migrânea provavelmente facilita os paroxismos de fenômenos DA-compatíveis, cada um deles eventualmente desencadeando a cascata de eventos neurofiosiológicos que caracterizam o ataque de migrânea.
Imagens funcionais recentemente obtidas de forma elegante e convincente dão suporte à possibilidade da DA
constituir o fenômeno fisiopatológico mais provável como
origem das crises de migrânea.34 O sistema trigêminovascular, na verdade o substrato neuroanatômico sobre
o qual os ataques se desenvolvem, é composto pelas
fibras trigeminais que inervam as meninges e a maioria
das artérias cranianas, além das terminações centrais
no núcleo caudal do trigêmeo. Este sistema neuroanatômico é ativado pela DA,35 levando ao extravasamento de plasma e vasodilatação, compondo uma
reação na dura-máter conhecida como inflamação
neurogênica.36 A capacidade dos chamados triptanos,
uma classe de antienxaquecosos agudos agonistas
5-HT 1B/1D, de bloquear a inflamação neurogênica e
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reduzir a liberação de neuropeptídeos centralmente deu
suporte à defesa de seu uso como eficientes remédios
contra a migrânea.37-39
COMO O CEREBELO PODE ESTAR
ENVOLVIDO NA MIGRÂNEA?
O desenvolvimento do conhecimento nos últimos 10
a 15 anos acerca da genética de algumas formas dominantes de migrânea reiterou o envolvimento do cerebelo
na fisiopatologia da doença. As células de Purkinje expressam os mesmos canais de cálcio que estão implicados na fisiopatologia da migrânea hemiplégica familiar40 e de algumas ataxias.41,42 Entretanto, a relação entre o cerebelo e a migrânea ainda não é completamente
conhecida. A literatura sobre o assunto ainda é relativamente restrita. As relações entre o cerebelo e a migrânea
devem ser consideradas sob três aspectos:
a) Alterações cerebelares presentes nas formas comuns de migrânea – migrânea com aura (EcA) e migrânea sem aura (EsA).
b) Envolvimento cerebelar em subtipos cerebelares
particulares como a migrânea basilar.
c) Aspectos cerebelares nas formas enxaquecosas
autossômicas dominantes e doenças afins.
Estes três pontos são revistos separadamente a
seguir.
Alterações cerebelares nas formas comuns
de migrânea
Apesar de alterações do equilíbrio e vertigem terem
sido reconhecidas na migrânea, não há muitos trabalhos que tenham se dedicado especificamente à função
cerebelar e/ou vestibular entre ou durante as crises de
migrânea.
A estática e o equilíbrio postural podem ser estudados utilizando-se dispositivos específicos para registro da
área de oscilação e a sua amplitude, em qualquer direção.43 A medida do balanço do corpo usando plataformas do tipo force-displacement detecta, portanto, anormalidades na estática.44 Quando a instabilidade aumenta com os olhos fechados, os pacientes sofrem de alterações vestibulares, uma vez que a estática é dependente
da propriocepção e da visão para compensar a perda
vestibular.45 Embora alguns relatos pareçam sugerir a
possibilidade de algumas reações posturográficas serem
específicas para alterações cerebelares ou vestibulares,
o fato é que aparentemente a posturografia não permite
um diagnóstico topográfico definitivo.
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Para estudar este ponto, Baloh et al. realizaram exames em dez controles, dez pacientes com perda vestibular bilateral e dez pacientes com atrofia cerebelar, bem
como em dez controles saudáveis.46 A amplitude, velocidade e frequência das oscilações nos sentidos ânteroposterior e látero-lateral foram medidas com os olhos
abertos e fechados. As medidas com os olhos fechados
mostraram maior sensibilidade para discriminar pacientes de controles. Pacientes com atrofia cerebelar ou perda vestibular não diferem na sua performance, uma vez
que a amplitude e a velocidade das oscilações em ambas
as direções, ântero-posterior e látero-lateral, aumentaram de forma proporcional. O teste da estática mostrou
ser o melhor paradigma de diferenciação, mas a sensibilidade e a especificidade podem ser inadequados para
conclusões definitivas.
Ishizaki et al. usaram uma plataforma de força para
realizar estabilometria em 33 pacientes com cefaléia, livres de tratamento e fora dos ataques, comparando-os
com controles assintomáticos. Eles estudaram 8 pacientes com EcA, 13 com EsA e 12 indivíduos com cefaléia
do tipo tensão (CTT).47 Os posturogramas foram obtidos com os olhos abertos (OA) e olhos fechados (OF).
Além disto, "quocientes de Romberg" para todos os
parâmetros foram obtidos como as razões OF/OA. Não
houve nenhuma diferença com os olhos abertos. Com
olhos fechados, entretanto, o equilíbrio nos enxaquecosos
foi significativamente pior do que nos controles. Os quocientes de Romberg foram sistematicamente maiores para
todos os parâmetros nos enxaquecosos quando comparados a controles. Os resultados na CTT não foram estatisticamente diferentes dos controles.
Harno et al.48 publicaram um estudo detalhado a
respeito de funções vestibulocerebelares na migrânea.
Eles avaliaram 36 pacientes (24 EsA e 12 EcA incluindo
migrânea basilar, migrânea hemiplégica esporádica,
migrânea hemiplégica familiar, e migrânea com aura
visual exclusiva) e controles assintomáticos utilizando
videooculografia, eletronistagmografia com testes
calóricos, audiometria e posturografia estática usando
estabilômetro. Apenas 17% dos enxaquecosos apresentaram resultados normais em todos os testes, sendo que
39% tiveram nistagmo anormal (p=0,02), com uma tendência a maior gravidade no grupo de EcA. Os enxaquecosos mostraram uma diminuição na acurácia dos
movimentos oculares sacádicos com mais movimentos
hiper- ou hipométricos quando comparados a controles
à eletronistagmografia. A extensão e a velocidade das
oscilações eram maiores no exaquecosos. Para justificar
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os movimentos hipo- e hipermétricos e as outras alterações oculomotoras, os autores concluíram que a disfunção
oculomotora é causada por alterações no sistema nervoso central focadas no cerebelo ou tronco cerebral.
Rossi et al. também estudaram as desordens de equilíbrio em pacientes com cefaléias utilizando estabilometria,
mas suas medidas foram muito diferentes.49 Eles testaram 67 pacientes virgens de tratamento, sendo 35 com
EcA, 32 com CTT "prevalente" (destes, 12 com "CTT episódica e EsA", 10 com CTT episódica apenas e 10 com
CTT crônica exclusiva), comparando-os a 20 controles
assintomáticos. A EcA não foi estudada. Todos os indivíduos foram examinados interictalmente. Os resultados
foram baseados em quatro diferentes tipos de padrões
estabilométricos, de acordo com alterações proprioceptivas cervicais, um teste de mordedura positivo e alterações em inputs visuais. Eles concluíram que uma anormalidade proprioceptiva de origem periférica estaria
presente nos pacientes com CTT. A metodologia confusa
e os desfechos escolhidos impedem a real interpretação
de seus achados.
Existe apenas um relato de posturografia em plataforma realizado durante um ataque de migrânea, demonstrando disfunção no equilíbrio sob condições de
deficiência visual e somatosensorial.50
Estudando a coordenação nos membros superiores, Sandor et al. procuraram por anormalidades cerebelares na migrânea usando um sistema computadorizado
de registro tridimensional de movimentos. Estes autores
registraram movimentos à manobra dedo-nariz em enxaquecosos e encontraram hipermetria em enxaquecosos,
mais pronunciada na EcA, sugerindo disfunção no cerebelo lateral.51
Não é raro que pacientes enxaquecosos se queixem de anormalidades vestibulares. Cerca de 2/3 são
sensíveis ao movimento e 1/4 pode apresentar vertigem
paroxística.52 Na família relatada por Baloh et al., os
indivíduos tinham vertigem episódica, migrânea e tremor essencial.53 Cutrer e Baloh, analizando 70 mulheres
e 21 homens com diagnóstico de tonteira associada a
migrânea, retirados de uma população de 5 mil pacientes com tonteiras, encontraram sinais de disfunção vestibular. Embora uma história familiar positiva e um passado de cinetose na criança não contribuam formalmente
para o diagnóstico de EsA, anormalidades vestibulares
estão associadas a este tipo de cefaléia.54 Comparando
200 pacientes com migrânea não selecionados, 80 pacientes encaminhados por causa de sintomas indicativos
da necessidade de exames neurootológicos e 116 paciMigrâneas cefaléias, v.11, n.3, p.201-216, jul./ago./set. 2008
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entes com CTT, a história positiva para cinetose e sintomas vestibulares foi significativamente mais prevalente
nos enxaquecosos.55
A função vestibular e o equilíbrio parecem susceptíveis a influências visuais na migrânea. Numa série de 21
pacientes com vertigem, instabilidade postural, tonteira
e desorientação espacial desencadeados e/ou agravados por influência visual, tais como movimentos de multidões, movimento de imagens de cinema, ou caminhar
em corredores de supermercados, dois foram identificados como tendo migrânea basilar, e sete tinham diagnóstico presente ou passado de migrânea.56 Disfunção
visual foi demostrada na migrânea entre ataques no que
se refere ao processamento de movimentos e espaçotemporal.57 Enxaquecosos têm alterações no campo visual e funções de contraste visual diferentes; quando comparados a controles,58 têm menor sensibilidade visual à
perimetria do tipo SWAP59 e detectam mobilidade mais
dificilmente.60 O input visual pode também interferir nas
anormalidades de equilíbrio relacionadas ao cerebelo.
Estudando o equilíbrio secundário a atrofia vermiana e
alcoolismo, Sullivan et al. mostraram que a visão pode
melhorar a estática significativamente.61 Uma vez que a
visão na migrânea pode também apresentar alterações
subclínicas, é possível que um input visual anormal também possa contribuir para algumas das anormalidades
da coordenação detectadas na migrânea, mas isto ainda não foi formalmente estudado.
Sintomas cerebelares em formas específicas
de migrânea
Disfunção cerebelar tem sido reconhecida em relação a formas especiais de migrânea por muitos anos. A
expressão "migrânea cerebelar" foi usada em algumas
publicações antigas alemãs62,63 e tchecas.64 Revendo este
último trabalho, Fitzsimons e Wolfenden concluiram que
o paciente com 22 anos descrito, que tinha migrânea
hemiplégica com ataques durando por mais de uma
semana com febre, rigidez cervical, hemiparesia, hemianopsia, alucinações, torpor e coma, sinais meníngeos
e cerebelares era, na verdade, semelhante aos seus casos de migrânea com edema cerebral e ataxia.24
Em 1961, Edwin R. Bickerstaff descreveu o que ele
chamou de basilar artery migraine,65 tornando a expressão "migrânea basilar" popular entre os neurologistas.
Quatro casos foram descritos por ele, três meninas com
13, 13 e 14 anos, e um menino de 14 anos de idade.
Ataxia estava presente no caso 1 (“she became ataxic on
attempt to walk”), 2 (“her gait becomes so ataxic that she
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has to lie down”), e 4 (“at the same time he had rotational
vertigo and became extremely ataxic”). A palavra "ataxia"
não foi mencionada no caso 3, mas ele disse que “she
became unsteady on her feet”. Bickerstaff não especulou
porque a ataxia deveria estar presente e, curiosamente,
não citou em seu trabalho nenhuma referência. De acordo com o conhecimento da sua época, Bickerstaff estava convencido de que a dor e a aura eram provocadas,
respectivamente, por vasodilatação e vasoconstricção:
“The most probable explanation is that the headache is
due to excessive dilatation of extracranial and dural vessels,
and that in many this is preceded by constriction of certain
intracranial cerebral vessels resulting in transient ischaemia
in the territory of these vessels, with the production of the
familiar aura.” Ele acrescentou que “the premonitory
symptoms would be different and would reflect brain-stem
dysfunction or, if the upper part of the basilar artery at its
division into posterior cerebrals is affected, dysfunction of
both occipital cortices.”
A migrânea basilar tem sido considerada como mais
prevalente em adolescentes do sexo feminino com histórias familiares muito positivas. Sintomas como ataxia,
vertigem, disartria, acúfenos e distúrbios da consciência
ocorrem como parte do ataque. Golden e French reviram oito crianças com "migrânea da artéria basilar" que
tinham sintomas desde muito jovens.66 Uma menina tinha ptose aos 7 meses de idade, um menino sofria de
ataques recorrentes de fraqueza na perna direita e faleceu aos 44 meses devido a uma infecção respiratória
seguida de rabdomiólise. Nenhuma anormalidade foi
encontrada no sistema nervoso ao exame necroscópico.
Um menino de 2 anos "parecia atáxico", apresentando
crises recorrentes sem sequelas permanentes. Palidez, drop
attacks, diaforese e letargia foram observados nestas
crianças. Segundo os autores, todas as crianças com idade suficiente para andar tinham ataxia da marcha, que
era muito mais marcada do que a ataxia apendicular
nos membros superiores, chamando atenção para o
grande traço atáxico nesta família.
Alterações circulatórias e episódios de isquemia supostamente relacionados à migrânea do tipo basilar têm
sido relatados. Numa mulher de 25 anos com história
de ataques desta forma de migrânea, os exames de
neuroimagem mostraram lesões hipodensas nos hemisférios cerebelares.67 Tais infartos também têm sido relatados no tálamo68 e em áreas occipitais.69 Seto et al.
mostraram redução reversível significativa do fluxo sanguíneo cerebral regional no córtex temporal, occipital e
hemisfério cerebelar à direita usando SPECT com Tc-99m
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HMPAO.70 Esta paciente, de 33 anos, diagnosticada
como sofrendo de migrânea basilar, foi previamente examinada por angiografia e perdeu a consciência durante
a admissão. Em um caso relatado em 1994, Muellbacher
e Mamoli descreveram o caso de uma mulher de 37
anos com "migrânea basilar" e longos períodos de inconsciência. Ela permanecia alerta apenas durante
estimulação e queixava-se de "cefaléia occipital intensa
associada a náusea, vômitos, fotofobia, vertigem, voz
arrastada, rigidez nas pernas e parestesias nos quatro
membros". O exame neurológico mostrou membros
atáxicos, uma fraqueza generalizada dos membros, sinal de Babinski à direita, sem rigidez de nuca.71 No caso
relatado por La Spina et al., uma mulher de 25 anos que
aparentemente sofria de migrânea com aura, alterações
circulatórias foram verificadas em regiões occipitais, mas
o cerebelo não foi mencionado no artigo. Embora o
diagnóstico tenha sido considerado como "migrânea da
artéria basilar", a descrição do quadro clínico e o exame
neurológico carecem de detalhes.72
Conhecendo os mecanismos genéticos recentemente descritos para um grupo de enfermidades relacionadas a migrâneas autossômicas dominantes, provavelmente muitos casos de migrânea descritos como associados
a "doenças cerebelares" ou classificados como "migrânea
basilar", como os descritos por Golden e French, provavelmente possuem uma das desordens em canais iônicos
geneticamente determinadas.
Migrânea hemiplégica familiar e
enfermidades cerebelares afins
Foi Liveing quem primeiramente chamou atenção
para a possibilidade de hemiplegia na migrânea.73
Carroll, Jelliffe (1905) e Clarke (1910) relataram seis
pacientes em uma família com ataques de migrânea
apresentando sintomas motores dimidiados transitórios
que duravam horas a dias.74 A migrânea hemiplégica
familiar (EHF) agrupa doenças autossômicas dominantes caracterizadas por ataques de migrânea com aura
do tipo hemiplégica. Muitos sintomas associados podem
fazer parte do quadro clínico, como, por exemplo, ataxia,
verificada em 1/3 dos pacientes.75
Em 1996, mutações no gene CACNA1A, responsáveis pela migrânea hemiplégica familiar tipo 1 (EHF-1)
foram descritas no cromossoma 19.76 Esta descoberta
ocorreu logo após a observação de que pacientes com
Cadasil, uma desordem genética causada por anormalidades no gene NOTCH3, também no cromossoma 19,
tinham migrânea com muita frequência.77,78 No mesmo
206
ano, Elliott et al. descreveram uma família com movimentos oculares anormais consistentes com disfunção
vestibulocerebelar e atrofia vermiana. A análise de ligação genética revelou um marcador comum em todos os
membros da família no cromossoma 19. Eles chegaram
à conclusão de que a EHF e a degeneração cerebelar
eram geneticamente relacionadas e chamaram atenção
para a ocorrência de alterações da motilidade ocular e
degeneração cerebelar tanto na EHF quanto nas ataxias
cerebelares hereditárias paroxísticas.79 O gene CACNA1A
codifica a subunidade α1A (CAV2.1) do canal de cálcio
P/Q voltagem-dependente. Este canal se expressa em
todo o sistema nervoso central, particularmente nas células de Purkinje do cerebelo, onde ele promove a despolarização induzida por correntes de Ca++.80,81 As consequências de várias mutações do tipo missense no gene
CACNA1A podem resultar tanto em ganho quanto em
perda de função do canal de cálcio P/Q humano, conforme demonstrou um estudo acerca de quatro diferentes mutações em canais α1A recombinantes em células
humanas renais embrionárias (HEK 293 cells).82
Sugerindo que, de fato, mutações no gene CACNA1A
são responsáveis pela susceptibilidade genética da migrânea, um modelo animal em camundongos, utilizando a
técnica knockin mouse com a mutação R192Q da EHF1, produz um ganho-de-função no canal de Ca++ que
resulta num limiar mais baixo para elicitação de depressão alastrante, que passa a se propagar com uma velocidade 150% maior.83
A possibilidade do gene CACNA1A estar envolvido
nas migrâneas com auras não hemiplégicas foi estudada, mas nenhuma prova foi obtida até o momento neste
sentido. Em algumas famílias, porém, existem indivíduos
que carreiam mutações, como, por exemplo, a mutação
I1822L, e que podem experimentar ataques de migrânea
com aura sem aura hemiplégica.84 Cerca de 2/3 dos
pacientes com EHF podem experimentar ataques de
migrânea sem hemiplegia. A genética das formas mais
comuns de migrânea parece mais complexa e ainda não
é completamente conhecida. Sabe-se, porém, que as
mutações relacionadas à EHF não são causa de EcA e
EsA.85
Após a descoberta dos mecanismos genéticos da
EHF, tornou-se claro que apenas 50% das famílias apresentavam as mutações conhecidas no cromossoma 19.
Assim, o conhecimento sobre um segundo tipo de EHF
logo se tornaria evidente.86 A genética da EHF tipo 2
tornou-se clara quando as mutações destas famílias foram identificadas na subunidade 2 de um canal de Na++/
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MIGRÂNEA E O PEQUENO CÉREBRO
K+ presente em astrócitos.87 Na EHF-2, as mutações ocorrem no gene ATP1A2 do cromossoma 1q23, que codifica uma subunidade de uma ATPase Na++/K+. Para a
substituição G301R descrita por Spadaro et al., o fenótipo, o primeiro com anormalidades cerebelares na EHF2, inclui migrânea hemiplégica, convulsões, coma prolongado, hipertermia, déficit sensitivo e sinais cerebelares
permanentes ou transitórios, tais como ataxia, nistagmo
ou disartria.88 Finalmente, na EHF-3, a mutação do tipo
missense (Gln489Lys) foi encontrada no gene SCN1A
do cromossoma 2q24, que codifica um canal de sódio
neuronal voltagem-dependente.89
Os mecanismos por trás do complexo de sintomas
ligados aos genes CACNA1A, ATP1A2 e SCN1A, envolvidos respectivamente com as EHF do tipo 1, 2 e 3, permanecem um tanto obscuros. Deve-se notar que, independentemente do tipo de canal iônico envolvido – cálcio (EHF-1), sódio/potássio (EHF-2), ou sódio (EHF-3),
todas as mutações resultam em hiperexcitabilidade e podem se relacionar a migrânea hemiplégica, epilepsia e/
ou doenças atáxicas. O papel da hipersensibilidade é
também reforçado pelo fato de uma mutação no transportador de glutamato EAAT1 (excitatory aminoacid
transporter 1 ) se relacionar também à ataxia episódica,
migrânea e hemiplegia alternante. O EAAT1A2 é um transportador de glutamato glial, também conhecido como
GLAST, e se expressa particularmente no cerebelo e no
tronco cerebral. Examinando pacientes com ataxia episódica (AE) e EHF sem mutações nos genes CACNA1A ou
ATPA2, procurando encontrar mutações no gene SLCA3,
um gene que codifica o transportador de glutamato
EAAT1, Jen et al. encontraram em um paciente com AE,
que apresentava convulsões, migrânea e hemiplegia
alternante, uma mutação heterozigota.90 Este paciente
era um menino de 10 anos de idade que tinha episódios
de ataxia, hemiplegia e convulsões. Os episódios, que
poderiam durar vários dias, pareciam desencadeados
por uma doença febril. Com a idade de seis anos, após
um resfriado, ele apresentou uma cefaléia bilateral intensa por algumas horas, seguida por três dias de uma
cefaléia intensa, dimidiada à direita, acompanhada por
hemiparesia esquerda e hemianopsia homônima. Os sintomas progrediram por 24 horas, após as quais ele perdeu a consciência, recuperando-se lentamente ao longo
de cinco dias. Uma ressonância magnética de crânio
mostrou atrofia cerebelar leve e uma hiperintensidade
em FLAIR no hemisfério direito. Outro episódio similar,
mas desta vez contralateral e acompanhado por afasia,
ocorreu seis meses depois. O exame neurológico eviMigrâneas cefaléias, v.11, n.3, p.201-216, jul./ago./set. 2008
denciou "ataxia de tronco leve e hiperreflexia generalizada". Mutações no EAAT1 levam à redução da capacidade de recaptar glutamato. A hiperexcitabilidade neste
paciente poderia, especulativamente, reproduzir as mesmas condições fisiopatológicas presentes nas canalopatias
relacionadas à EHF, ataxias episódicas ou progressivas
e coma após trauma craniano leve, facilitando fenômeno da depressão alastrante e as várias expressões fenotípicas a ela relacionadas.
As mutações no gene CACNA1A são também envolvidas com doenças cerebelares, especificamente a
ataxia episódica tipo 2 (EA-2) e a ataxia espinocerebelar
tipo 6 (SCA-6). Embora a SCA-6 tenha sido associada a
pequenas expansões da trinca de nucleotídeos CAG na
extremidade 3' do gene CACNA1A e mutações pontuais
sejam responsáveis pelas doenças alélicas relacionadas
à EA-2,75,91-94 a genética relacionada a estes fenótipos
pode variar.95
Ataxias episódicas
As ataxias episódicas (EA) são tipicamente caracterizadas por incoordenação recorrente desencadeada
pelo exercício, estresse ou cansaço, com uma resposta
favorável à acetazolamida. Em 1992, três casos de
"ataxia paroxística familiar" com herança dominante foram descritos.96 Os pacientes eram crianças com episódios recorrentes de ataxia súbita, durando minutos a
horas, com nistagmo interictal. Três anos mais tarde, um
gene no cromossoma 19 foi identificado com sendo relacionado à ataxia cerebelar paroxística, chamada hoje
de EA-2.97 Uma série de mutações já foi identificada
como sendo relacionadas a esta doença.91,98,99 Foi sugerido que a perda completa da função do canal de
cálcio P/Q seria a base fisiopatológica da EA-2.100 A
Ataxia Episódica Tipo 1 (EA-1), conhecida como ataxia
episódica com mioquimia, está relacionada a mutações
em um canal de K+ codificado no cromossoma 12p13 e
se caracteriza por episódios de ataxia de intensidade
variada e mioquimia.101
Existem outras mutações envolvidas com ataxia periódica. Em 1996, Damji et al. escreveram a respeito da
"ataxia vestibulocerebelar periódica", denominada à
época PATX.102 Steckley et al. publicaram um trabalho
em 2001 sobre uma família canadense com uma ataxia
episódica autossômica dominante não relacionada à
EA-1, EA-2 e PATX, com instabilidade postural, vertigem e zumbidos. Quatorze entre 16 indivíduos disseram
ter cefaléia. Outros sintomas incluíam náuseas, mioquimia,
diplopia e turvação visual. Em um dos pacientes, a
207
MAURICE VINCENT
cefaléia era descrita como frontal, sem que outros detalhes tenham sido descritos na publicação.103 Em 1985,
Kvistad et al. descreveram sete sujeitos de uma família
norueguesa com ataxia cerebelar não progressiva iniciando na infância, caracterizada por retardo no desenvolvimento da marcha e da fala, hipotonia, incoordenação,
ataxia da marcha, tremor de intenção, vivacidade de reflexos e espasticidade leve, nistagmo, baixa estatura e pé
chato. Alguns pacientes apresentaram atrofia do verme
cerebelar à neuroimagem.104 Esta forma de ataxia infantil
recessiva não-progressiva foi investigada em uma família
norueguesa em indivíduos de 4-59 anos de idade e
mapeada em 2003 no cromossoma 20q11-q13.105
Ataxia espinocerebelar
As ataxias espinocerebelares são ataxias moderadas, não-paroxísticas, de início tardio, caracterizadas
pela combinação de degeneração cerebelar progressiva levando a incoordenação e outros sintomas cerebelares associados a sinais de acometimento da medula
espinhal, tais como perda da sensibilidade proprioceptiva
e vibratória.106 Existem muitas ataxias espinocerebelares,
numeradas de acordo com a anomalia genética a elas
associadas. Embora o quadro clínico possa variar em
algum grau, usualmente o laboratório é necessário para
o diagnóstico.42 A forma SCA-6 é a forma relacionada
ao gene CACNA1A da EHF-1.107 Logo após a descrição da anormalidade genética associada à EHF/EA-2,
os mecanismos da SCA-6 foram desvendados.108 Diferentes mutações têm sido associadas a este fenótipo, algumas vezes associados à EHF.109 A SCA-6 é devida a
21 a 27 expansões da sequência de três nucleotídeos
CAG na extremidade 3' no gene CACNA1A. Os pacientes podem apresentar uma miríade de sintomas cerebelares, como disartria, tremor e nistagmo de vários tipos.110
Pode haver ainda marcada atrofia à ressonância magnética.111
Coma e migrânea
Uma das condições associadas à EHF e ao gene
CACNA1A é o chamado "coma após trauma craniano
leve" (CATCL).112 Fitzsimons e Wolfenden publicaram em
1985 o relato de uma família com o que disseram ser
"one of the most consistently extreme forms of migraine
reported in the literature".24 Os membros afetados tinham
migrânea hemiplégica, febre, pleocitose no líquido
cefalorraquidiano, ataxia cerebelar induzida por ataques
de migrânea, e coma secundário a trauma craniano leve.
Durante a fase de recuperação, os pacientes também
208
podiam apresentar ataxia cerebelar. Ataxia permanente
com atrofia cerebelar foi também notada. Outros casos
de coma ligados à migrânea foram reconhecidos subsequentemente. No heredograma descrito por Munte, os
indivíduos apresentavam episódios de coma com sinais
meníngeos associados a febre, bem como sinais cerebelares persistentes. O coma podia durar muitos dias,
sendo prejudicado por trauma craniano leve, trabalho
intenso ou angiografia.113
Tipicamente, os pacientes com a mutação T666M
no gene CACNA1A apresentam este grave fenótipo,114
mas não exclusivamente, pois o cromossoma 1 também
tem sido relacionado a esta anormalidade.115 Os pacientes podem apresentar coma secundário a trauma
craniano, por vezes prolongado, acompanhado de edema cerebral.24,113,114,116-118 A mutação S218L está relacionada a edema cerebral intenso após trauma.119 Os
pacientes com este tipo de doença, independentemente
da mutação, apresentam diferentes combinações de
coma, migrânea, febre com pleocitose no líquido cefalorraquidiano e anormalidades cerebelares.
É interessante ressaltar que a amnésia global transitória (TGA), uma desordem potencialmente relacionada
à depressão alastrante,120 pode ser induzida por trauma
leve também, exatamente como o coma pode surgir em
alguns pacientes com as formas genéticas de migrânea
potencialmente relacionadas a enfermidades cerebelares.121 Em três casos de TGA descritos por Sakashita et
al., estudados com SPECT, o fluxo sanguíneo cerebral
regional estava aumentado no córtex occipital e no
cerebelo. Além disto, a vasorreatividade à acetazolamida
estava alterada nestas regiões. O córtex occipital é relevante na migrânea, pois é nele onde mais provavelmente a depressão alastrante se desenvolve. O caso de número 4 da série de Fitzsimons & Wolfenden era uma
paciente do sexo feminino que, como descrevem os autores, "collapsed following a trivial head injury on a bench,
and then remained in bed several days because of lethargy,
severe headache and slurred speech". Os autores consideraram o caso como "enxaqueca cerebelar pós-traumática".24 Outra condição onde a DA pode desempenhar algum papel é o trauma craniano, não apenas em
alguns casos de EHF, mas também em distúrbios visuais
desencadeados por trauma. Na chamada "migrânea do
futebolista", os pacientes relatam anormalidades do campo visual após traumas no esporte.122,123 Estas anormalidades podem ser a consequência de DA induzida no
córtex pelo trauma. Aliás, o próprio trauma pode desencadear migrânea de vários tipos.124 Usualmente, a migrâMigrâneas cefaléias, v.11, n.3, p.201-216, jul./ago./set. 2008
MIGRÂNEA E O PEQUENO CÉREBRO
nea relacionada ao esporte, secundária a trauma, acomete principalmente homens jovens. Mesmo quando o
trauma é leve, os sintomas podem ser muito marcados.125
Ataxias e quadros enxaquecosos
Sintomas cerebelares na migrânea hemiplégica familiar foram reconhecidos por Ohta et al. em 1967 . Eles
descreveram migrânea hemiplégica em quatro membros
de uma família na qual duas pessoas foram diretamente
examinadas. O caso 1 era o de um homem de 59 anos
que teve o primeiro ataque de migrânea na idade de 10
anos. Após 24 anos sem crises, ele apresentou um segundo ataque, seguido por crises que ocorriam de uma
a duas vezes por mês. Este homem tinha "hemiplegia e
uma desordem sensitiva" do lado esquerdo, mas às vezes à direita. Escreveram os autores a este respeito:
"hemiplegia and sensory disorder to the left side, but
occasionally to the right. (…) His gait became difficult and
unsteady and he has fallen many times during the last three
years". O exame neurológico evidenciou "mild dysarthria
with scanning nature", além de incoordenação nos membros. O caso 2, filho do caso 1, foi descrito como um
homem de 30 anos de idade que apresentou ataques
uma a duas vezes por mês desde os 28 anos de idade.
A descrição de "fraqueza no lado esquerdo da face e
lado direito do corpo" chama atenção neste caso. Embora as lesões dos nervos VI e VII não tenham sido mencionadas no artigo, a presença de uma hemiplegia alterna
indica a presença de uma anormalidade no tronco cerebral indicativa de uma síndrome de Millard-Gubler.
Durante o exame, nistagmo horizontal à mirada lateral
foi observado, "sugerindo sinais cerebelares", nas palavras dos autores. Foi também notada instabilidade na
marcha "ao caminhar em linha reta". Ohta et al. chamaram atenção para sinais cerebelares, mas foram incapazes de explicar a sua origem. Não obstante, eles citaram a descrição prévia de "ataxia vestibulocerebelar" em
1963.126
Na famílila descrita por Young et al., 11 pacientes
em quatro gerações apresentaram migrânea hemiplégica, degeneração retiniana, surdez e nistagmo em várias combinações.127 Dois tinham retinite pigmentosa e surdez sensório-neural, bem como nistagmo, um deles sendo também atáxico.
Em 1971, Codina et al. descreveram oito membros
de uma família espanhola, três dos quais apresentaram
nistagmo à mirada horizontal e sinal de Romberg.128
Em 1980, Zifkin et al. descreveram mãe e filho
(probando), ambos com migrânea hemiplégica, com
Migrâneas cefaléias, v.11, n.3, p.201-216, jul./ago./set. 2008
achados cerebelares proeminentes.129 O probando experimentou o seu primeiro ataque com a idade de 12
anos, logo após um curto período de inconsciência provocado por trauma leve. Especulativamente, pode-se
considerar este episódio de inconsciência como "coma
induzido por trauma craniano leve" associado ao gene
CACNA1A.112 Quando examinado com a idade de 16
anos, o probando no relato de Zifkin relatou "horizontal
gaze-paretic nystagmus, constant fine head tremor, and
moderately severe postural and fixation tremor of the
hands". Os autores consideraram o tremor como sendo
do tipo essencial. O paciente apresentou ainda hemiplegia, hemianopsia, nistagmo à mirada horizontal e
falha da fixação em suprimir o reflexo vestíbulo-ocular.
Sua mãe era uma mulher de 48 anos que teve o seu
primeiro ataque de migrânea hemiplégica também após
um trauma leve aos 12 anos de idade. As crises se repetiram uma ou duas vezes por mês até a idade de 31
anos, quando desapareceram espontaneamente. Dois
episódios ocorreriam após esta idade, sendo que ela
também desenvolveu tremor nos membros superiores e
na cabeça. Ao exame, este tremor era mais pronunciado à direita. As anormalidades neurooftalmológicas foram as mesmas verificadas no seu filho. Os autores sugeriram que as anormalidades nos movimentos oculares destes pacientes poderiam representar "uma degeneração isolada mais do que sequelas por vasoconstrição
prolongada". Eles também suspeitaram, corretamente,
de alguma alteração genética autossômica dominante
como provável explicação para o fenômeno.
Cerca de 20% dos pacientes com migrânea hemiplégica possuem deficiências cerebelares leves permanentes.130 Uma família com EHF, ataxia e episódios de
psicose paranóide aguda com ansiedade e alucinações
visuais foi descrita.131 Na família relatada por Battistini et
al., o probando, uma mulher de 71 anos, apresentou
episódios recorrentes de hemiparesia e parestesias desde a idade de 17. A sua primeira crise de migrânea
ocorreu aos 59 anos, associada a febre. Ela foi subsequentemente admitida ao hospital três vezes devido a
ataques de 2-3 dias de duração associados a alteração
da consciência e febre. Por volta dos 60 anos de idade
ela passou a apresentar marcada instabilidade postural.
Aos 66 foi verificada a presença de ataxia cerebelar leve.
Ela apresentava ainda turvação visual, cefaléia, confusão mental intensa e febre (38ºC). Houve melhora com
o uso de acetazolamida. Outros membros da família
tiveram sintomas semelhantes em combinações distintas,
começando em idades diferentes. Em dois membros da
209
MAURICE VINCENT
família, além da EHF, sintomas cerebelares permanentes
de início tardio foram verificados. Os exames por ressonância magnética mostraram atrofia cerebelar com alargamento dos sulcos cerebelares.132
Não apenas famílias com EHF podem apresentar
ataxia cerebelar e atrofia, mas também pacientes com
EA-2 podem eventualmente apresentar migrânea nãohemiplégica, que surge após o início dos sintomas
atáxicos. Em 13 famílias estudadas por Jen et al., entre
40 pacientes afetados, 23 tinham migrânea segundo os
critérios da Sociedade Internacional de Cefaléias.91 Uma
vez que apenas três indivíduos apresentaram hemiplegia
paroxística, as cefaléias eram predominantemente do tipo
não-hemiplégicas. Em outra família com EA, alguns indivíduos tinham hemiplegia sem cefaléia e outros tinham
migrânea hemiplégica.133 Pacientes com EA podem apresentar sintomas cerebelares permanentes interictalmente,
tais como nistagmo, e apresentar atrofia cerebelar. Os
fenótipos destas doenças podem variar entre famílias diferentes bem como entre membros da mesma família.
Numa família japonesa com a mutação T666M no gene
CACNA1A, o paciente número 1, por exemplo, apresentava principalmente um quadro cerebelar associado
a febre e coma, durante o qual apresentava hemiplegia
e uma postura distônica do membro superior afetado.
Uma discreta ataxia da marcha estava presente entre os
ataques. O paciente número 2 sofreu coma súbito e febre quando tinha 3 anos de idade, apresentando um
episódio de hemiplegia durante a recuperação. Aos 12
anos de idade ele experimentou um episódio de cefaléia
e hemiplegia. O paciente número 3, uma mulher de 39
anos e mãe dos pacientes 1 e 2, teve apenas sintomas
cerebelares leves, incluindo nistagmo induzido por movimentos conjugados horizontais do olhar, sem migrânea,
hemiplegia ou EA. O paciente número 4 tinha cefaléia
sem hemiplegia, o quinto sofria de migrânea hemiplégica,
coma, febre e ataxia progressiva, o paciente número 6
apresentava ataxia da marcha e fala arrastada.114 Na
família portuguesa estudada por Alinso et al., a mesma
mutação R583Q no gene CACNA1A foi associada aos
fenótipos de migrânea hemiplégica com e sem sinais
cerebelares, ou ataxia cerebelar permanente progressiva sem migrânea. Quatro dos pacientes com EHF desta
família relataram trauma leve como desencadeante das
crises. Curiosamente, a ataxia também podia ser desencadeada por trauma cefálico leve.107 Numa família recentemente descrita, crises convulsivas foram verificadas
em pacientes com mutação no gene CACNA1A independentemente de ataques de EHF.134 Sintomas episó210
dicos acetazolamida-responsivos, típicos de EA-1, foram
relatados em SCA-6. Isto sugere que as desordens cerebelares relacionadas a canalopatias variam no seu
fenótipo. A associação de migrânea, coma, atrofia
cerebelar com ataxia e retardo mental também foi documentada em uma mutação "de novo".135
AS ALTERAÇÕES CIRCULATÓRIAS
Alterações circulatórias podem ocorrer no cerebelo
durante ataques de migrânea. Após a administração de
sumatriptano , um agente antienxaquecoso agudo com
ação vasoconstritora, agonista serotoninérgico 5-HT1B1D, foi verificada a ocorrência de infarto cerebelar, mostrando que esta região é provavelmente suscetível à
isquemia quando comparada a outras áreas do sistema
nervoso.136
Crawford e Konkol publicaram o caso de um menino de 6 anos de idade que estava assintomático até
sofrer uma queda ao brincar, aparentemente sem consequências imediatas.137 Ele apresentou dormência na mão
esquerda e cefaléia uma hora depois, durante a noite
subsequente, e teve vômitos. Ao exame, uma hemianopsia
homônima esquerda foi detectada, bem como um apagamento do sulco nasolabial, uma hemiparesia leve à
esquerda com assimetria de reflexos profundos e sinal
de Babinski. Tanto o exame neurológico como uma
tomografia computadorizada realizada um mês depois
foram normais. Sua mãe sofria de ataques frequentes
de dormência e incoordenação na mão esquerda, que
eram seguidos de cefaléia intensa desde a idade de 5
até os 23 anos. Seu pai tinha história de coma prolongado após trauma craniano enquanto jogava futebol
quando era adolescente. No segundo dia de hospitalização, um SPECT revelou redução do fluxo sanguíneo
na distribuição da cerebral média direita e no hemisfério
cerebelar ipsilateral, sugerindo diasquisis cerebelar. A
história desta família mostra novamente de que forma
coma com trauma leve, migrânea e doenças cerebelares
podem estar ligados e expressar-se de maneira diferente em indivíduos diferentes com o mesmo substrato genético.
O caso relatado por Lee et al. foi o de uma paciente de 28 anos, que tinha uma história de cinco anos de
cefaléias de longa duração (1-2 dias), predominando
do lado esquerdo, antecedidas por parestesias e fraqueza dimidiadas do lado direito.138 Os fenômenos associados incluíiam hemiparesia direita, disartria, ataxia,
tonteiras, turvação visual, anorexia, náuseas, fotofobia,
Migrâneas cefaléias, v.11, n.3, p.201-216, jul./ago./set. 2008
MIGRÂNEA E O PEQUENO CÉREBRO
fonofobia, e ocasionalmente epistaxe e vômitos. Examinada durante uma crise, os achados foram, nas palavras do autor, "right cerebellar dysfunction, right
hemiparesis, sensory dysfunction in the right limbs, upbeat
nystagmus on upward gaze, and ataxia". Durante os períodos intercrises, apresentava hemiparesia direita discreta, nistagmo horizontal, disfunção cerebelar direita leve
e hipopalestesia distal nos membros inferiores. A TC e a
RM de crânio foram normais. O SPECT durante um ataque mostrou uma redução de 15% no fluxo sanguíneo
cerebral regional no córtex frontal direito e no cerebelo
do mesmo lado, além de um aumento de 10-15% no
córtex frontoparietal. Um dia depois de um outro ataque, o SPECT pós-ictal evidenciou as mesmas alterações
de perfusão nas mesmas áreas, juntamente com um aumento de 15% no fluxo sanguíneo cerebral regional no
núcleo caudado do lado direito. O SPECT realizado dez
dias mais tarde foi normal. Os autores consideraram que
a diminuição da perfusão no cerebelo provavelmente
estava relacionada à aura enxaquecosa.
ALTERAÇÕES ESTRUTURAIS NO CEREBELO
Poucos estudos se dedicaram especificamente a alterações anatômicas na migrânea. Em 2005, Dichgans
et al. realizaram espectroscopia por ressonância magnética (1H-MRS) procurando anormalidades na EHF-1. Eles
estudaram 15 pacientes (6 homens e 9 mulheres) em três
famílias com a doença, 11 dos quais apresentavam anormalidades cerebelares, e os comparou a 17 controles
assintomáticos.139 Uma vez que a atrofia cerebelar presente em alguns casos de EHF é mais pronunciada no
verme cerebelar superior, eles usaram a espectroscopia
por ressonância para investigar esta área em particular.
A análise morfométrica evidenciou uma distribuição de
tecidos significativamente diferente no voxel cerebelar
superior, com menos substância cinzenta, menos substância branca e mais líquido céfalo-raquidiano, o que
não foi verificado nos córtices parietal e visual. As mudanças de metabólitos foram redução do N-acetil-aspartato (NAA), aumento do mioinositol (mI) e redução do
glutamato (Glu). Novamente, estes metabólitos não se
modificaram nas áreas corticais estudadas nos lobos
parietal e visual. Os autores consideram que a redução
de NAA é uma comprovação da diminuição neuronal.
Este trabalho contrasta com os achados publicados por
Sappey-Marinier et al., que não encontraram anormalidades no NAA em seis pacientes do sexo masculino com
EA-1.140 Todavia, o pH estava aumentado no cérebro e
Migrâneas cefaléias, v.11, n.3, p.201-216, jul./ago./set. 2008
no cerebelo, normalizando após a administração de
acetazolamida. As razões PCr/Pi e ATP/Pi eram baixas
no cérebro e normais no cerebelo sem tratamento, ambas
diminuindo após a administração de acetazolamida.
Além disto, metade dos sujeitos apresentou altos picos
de lactato em ambas as estruturas, independentemente
do uso da acetazolamida.
Alterações estruturais têm sido descritas também na
SCA. Sasaki et al. realizaram um estudo de necropsia em
uma paciente do sexo feminino com SCA que desenvolveu linfoma não-Hodgkin e faleceu aos 61 anos.141 Ela
apresentava disartria discreta, nistagmo horizontal à mirada lateral, hipermetria ocular, pequena hipotonia nos
membros, ataxia nos membros e no tronco e uma deficiência sensitiva superficial nos dedos das mãos e dos pés.
Uma atrofia cerebelar discreta foi notada à TC. A análise do DNA mostrou repetições do triplet CGA no gene
CACNA1A. O seu cerebelo apresentava atrofia nas folhas e no verme, um pequeno decréscimo nas células
granulares e no número de células de Purkinje para 1/3
a 1/4 do tamanho normal, especialmente no verme,
muitas fibras em cesto vazias, e redução no número de
dendritos na camada molecular. Estes autores citaram
dois relatos japoneses, um por Takahashi et al. sobre uma
mulher de 54 anos com história de ataxia progressiva
dominante na família e que morreu de um câncer retal
aos 65 anos. A autópsia demonstrou alterações degenerativas limitadas ao córtex cerebelar com perda neuronal e gliose no núcleo olivar. O outro trabalho citado foi
o de Muzusawa et al. acerca de uma atrofia cerebelar
herdada com padrão dominante em um homem de 84
anos cuja neuropatologia evidenciou apenas uma degeneração cerebelar cortical pura.
Em 2005, Takahashi et al. publicaram o relato de
uma autópsia realizada em uma mulher de 19 anos que
sofreu turvação visual aguda durante a menstruação,
seguida de distúrbio da marcha, vermelhidão facial,
disartria, dor difusa, cefaléia, náusea e vômitos. Posteriormente apresentou crises convulsivas sucessivas, status
epilepticus e coma, vindo a falecer após o desenvolvimento de coagulação intravascular disseminada e hipotensão. Sua mãe tinha retardo mental discreto, ataxia
cerebelar e história de migrânea não-hemiplégica. Um
irmão sofria de migrânea, uma irmã tinha retardo mental e não andou antes da idade de 2 anos e meio. Aos
7, esta irmã tinha hemiplegia direita, turvação visual,
cefaléia e náusea, seguidas de convulsões e coma, com
recuperação posterior. Outros ataques continuaram a
ocorrer, e a RM mostrou atrofia cerebelar pronunciada.
211
MAURICE VINCENT
A autópsia no probando revelou atrofia cerebelar vermiana, especialmente no lobo anterior. Foi notada grande
degeneração cortical cerebelar, redução da camada
molecular, das células de Purkinje e das células granulares, juntamente com proliferação das células gliais de
Bergmann.142
No estudo de duas famílias com edema cerebral
tardio e coma após trauma craniano leve realizado por
Kors et al., três indivíduos (um dos casos fatal) foram
investigados quanto à presença de mutações no gene
CACNA1A. Dois pacientes pertenciam à família com EHF,
e o outro era a filha de um paciente com migrânea hemiplégica esporádica.112 O exame histopatológico mostrou edema cerebral difuso com herniação uncal, tonsilar
cerebelar e necrose. Alterações degenerativas crônicas
no córtex cerebelar, mais pronunciadas no verme, foram
notadas, consistindo em perda de células de Purkinje,
com proliferação de astrócitos de Bergmann e gliose
cortical. As células de Purkinje remanescentes tinham
edema pronunciado e deformidade nos dendritos. Edema distrófico ("torpedos") de alguns dos axônios das
células de Purkinje foi notado na camada granular.
COMENTÁRIOS FINAIS
Os dados disponíveis sugerem que o cerebelo está
intimamente envolvido na migrânea. Não apenas a EcA
e a EsA podem cursar com alterações cerebelares, mas
principalmente os pacientes com EHF estão sujeitos a
disfunções cerebelares pronunciadas. A sintomatologia
cerebelar pode ser episódica, sugerindo uma alteração
neuropatológica transitória no cerebelo, como a depressão alastrante; ou se apresentar como quadros constantes e progressivos. Neste caso, um influxo anormal de
Ca++ secundário a canais Ca++ defeituosos significativamente expressos em células de Purkinje favoreceria a
apoptose, provavelmente de uma forma progressiva e
cumulativa.
O conhecimento atual parece, portanto, indicar que
o cerebelo está envolvido na fisiopatologia da migrânea.
As perguntas permanecem, porém, ainda sem respostas:
1) As formas mais comuns de migrânea, a EsA e a
EcA, também estão relacionadas a anormalidades cerebelares importantes ou apenas leves e subclínicas?
2) Estas alterações podem ser anatomicamente
detectadas em pacientes com migrânea?
3) Se presentes, estas alterações se correlacionam
com aspectos clínicos tais como frequência, duração e
intensidade das crises?
212
4) Qual é o real significado do envolvimento
cerebelar na migrânea?
Por enquanto, o mistério do envolvimento do pequeno cérebro na migrânea ainda é de percepção parcial,
restando muitos aspectos ainda a serem desvendados.
Agradecimento
O autor agradece ao Dr. Fernando Kowacs pela revisão do artigo e sugestões para a versão final.
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Endereço para correspondência
Dr
incent
Dr.. Maurice V
Vincent
Consultório Barra da Tijuca
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Migrâneas cefaléias, v.11, n.3, p.201-216, jul./ago./set. 2008

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