territórios de maioria afrodescendente
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territórios de maioria afrodescendente
TERRITÓRIOS DE MAIORIA AFRODESCENDENTE: Segregação Urbana, Cultura e Produção da Pobreza da População Negra nas Cidades Brasileiras Henrique Cunha Jr.* Maria Estela Rocha Ramos** Resumo A situação social econômica e cultural da população afrodescendente tem sido tratada como um denominador comum da pobreza das áreas periféricas das cidades brasileiras. No entanto, entendemos que trata-se de um problema de caráter específico e que merece considerações sociais, históricas e urbanas específicas. As relações sociais contidas na rede de relações envolvendo a população afrodescendente e eurodescendente brasileira fazem parte de um capítulo da história brasileira inserido na dominação ocidental e na produção do racismo brasileiro. Racismo definido no campo das relações históricas como um sistema de dominação e de desqualificação social da população afrodescendente e não o racismo definido como sistema de ódio entre as raças. Diríamos como um racismo sem raça e de representações sociais de dominação com processos de desqualificações que são multifocais, abrangendo a cultura, a população, o espaço urbano e todas as relações institucionais e sociais desta população. Focalizamos as relações de produção da pobreza da população afrodescendente partindo da história do pós-abolição, da produção social da desqualificação para o trabalho capitalista e da constituição de espaços urbanos dependentes de políticas públicas de segregação espacial. Não estamos interessados apenas na produção da pobreza isolada do protagonismo social e das lutas e conquistas destas populações. Trabalhamos a partir da realidade vivida por esta população, com enfoque histórico, das constatações da ocupação de espaços urbanos e das transformações das cidades brasileiras, principalmente em Salvador e Recife. Neste sentido procuramos compreender a produção da cultura como a força das identidades e dos sentidos que esta cultura tem nas relações sociais da sociedade local e nacional. Tratamos o enfoque teórico com base na afrodescendência e na produção de territórios de maioria afrodescendente, tendo como base a dinâmica da produção do espaço urbano e da história sociológica. Palavras-chave: afrodescendência, afrodescendentes cultura negra, pobreza urbana, territórios Introdução A sociedade brasileira apresenta desigualdades sociais profundas, inseridas num processo histórico brasileiro de exclusão social que inicia desde o período escravista, com a própria escravidão que durou quase quatro séculos, e que permanece nos dias atuais. As imposições * Professor Titular da Universidade Federal do Ceará / Instituto de Pesquisa da Afrodescendência (IPAD Brasil) Email: [email protected] ** Arquiteta e Mestre em Urbanismo / Instituto de Pesquisa da Afrodescendência (IPAD Brasil) E-mail: [email protected] 1 de pobreza, no entanto, não se reduzem apenas à concentrações de renda. A questão passa pela dominação geopolítica e histórica entre europeus e não-europeus, isto é, são reveladas pelas relações entre brancos e negros. Dado um racismo sem raça e de representações sociais de dominação que ocorre no Brasil, este é facilmente detectável nas formas como ocorrem as relações de produção entre as regiões que compõem o Sul e as regiões que compõem o Norte do país. Dos investimentos federais referentes à implantação da República, destacamos os planejamentos das cidades, entendendo o espaço urbano um eficiente suporte físico que reflete as relações de negociações, acordos e conflitos, poder e dominação, dado por um urbano que apresenta um caráter geopolítico de micro e macro estruturas, etnicamente determinadas. Assim, à medida que o país passava do estado imperial ao estado republicano, o Brasil assume um projeto de nação que renega a população negra, aplicando diversas frentes de atuação contrárias aos interesses desta população. Sucintamente, destacamos alguns destes fatores: no plano ideológico, colaboraram neste processo as representações sociais associadas às teorias raciais “científicas” que projetaram a construção de uma consciência nacional de inferioridade dos negros e de superioridade dos brancos. Temos, ainda, os ideais do pensamento pautado no positivismo, liberalismo e universalismo, partindo dos princípios civilizatórios eurocêntricos. Na prática, este pensamento culminou na expulsão das populações negras dos centros urbanos através das remodelações urbanas modernizadoras que buscavam uma imagem metropolitana de uma urbanidade refinada à moda européia. Estas transformações radicais nos centros urbanos foram justificadas pelas práticas eugênicas chamadas de higienistas, relegando a população negra, habitante dos cortiços e casas de cômodo das áreas centrais às áreas mais distantes dos centros urbanos e/ou a áreas desprovidas de infra-estrutura e equipamentos públicos (RAMOS, 2007). Ao se pensar em mediações contra a pobreza, entendemos que um dos quesitos das desigualdades sociais que incidem no Brasil, principalmente sobre a população negra, parte do espaço urbano, não só pela oferta desigual de serviços públicos que incidem sobre os territórios ocupados pelas populações negras (principalmente infra-estrutura urbana), mas também pela forma como o espaço urbano é pensado ideologicamente, projetado e construído, afastado das formas culturais de apropriação e produção do espaço urbano por estas populações. 2 Estes territórios “negros”, ocupados majoritariamente por população negra ou que são norteados pela dinâmica sócio-cultural desta população, são conceitualmente denominados de territórios de maioria afrodescendente, revelando-se no espaço geográfico como base dos processos de construção das identidades e das relações históricas e sociais das populações negras (CUNHA JR., 2001; 2007). É pertinente informar que há uma estimativa de que 70% da população negra residam em áreas “informais” como as favelas, ocupações ou invasões (PAIXÃO, 2003) e em moradias autoconstruídas, imprimindo aí suas inscrições históricas e sócio-culturais na organização destes territórios, uma vez que estes territórios afrodescendentes são fundamentados pela “lógica da necessidade” e pela lógica cultural. Esta lógica peculiar, embasada pelos princípios filosóficos e civilizatórios de matriz africana, aparece na utilização dos interstícios urbanos das cidades (espaços resultantes das segregações urbanas). Estes princípios projetados nos territórios afrodescendentes configuram diversas formas de organização espacial, tanto nos seus espaços internos das moradias, quanto nos espaços externos, constituindo espaços coletivos semi-públicos (espaços construídos coletivamente) possibilitados por negociações acordadas entre os moradores, vizinhos e familiares. Neste ínterim, explicitamos algumas instituições e relações sociais e culturais que se estabelecem nestes espaços semi-públicos das vilas, avenidas, passagens e becos, cantos e esquinas destes territórios: famílias matriarcais, relações de compadrio, respeito pela experiência dos mais velhos, a existência e a relação com o plano metafísico, a valorização da coletividade, a vinculação com o território, entre outras, legitimando efetivamente a formação de identidades. Entendemos esta força das identidades como produção da cultura que se revela pelo protagonismo social e das lutas e conquistas das populações negras, evidenciadas por estas formas de sociabilidade de compartilhar o território nas suas formas de produção e apropriação do espaço urbano pela população negra, criando verdadeiras cidades que foram surgindo paralelamente ao tecido urbano oficial, dando início aos territórios de maioria afrodescendente. No entanto, estas formas peculiares são processadas pelo Estado e por grupos sociais das elites econômicas e de poder como uma desqualificação social, que foge ao planejamento hegemônico das cidades. 3 Nas cidades brasileiras, a tônica espacial dominante prima pelo individualismo e determina padrões de ocupação, de uso e de comportamentos que passam por uma estética e imagem eurocêntricas e trata o espaço urbano a partir de referências tecnicistas e formais, excluindo possibilidades de modos de vida particulares, empurrando estas populações para estágios de exclusão social. Esta exclusão que impede ou dificulta o acesso às infra-estruturas urbanas e às condições de melhoria de vida, também não reconhece as possibilidades do espaço urbano atuar como instâncias educativas que se tornam referências positivas na formação cotidiana dos indivíduos, complementando a educação informal ao longo da vida, em que a maior parte desta aprendizagem ocorre de forma casual e coletiva, permeada das referências históricas e sócio-culturais locais. O espaço, além de suporte físico das vivências, é vivido afetivamente, carregado simbolicamente de significados: O processo formador do indivíduo está situado na consciência de si, do seu entorno, da sua localidade (CUNHA Jr., 2001) Além da desqualificação social propiciada pelas condições do espaço urbano como fator importante da produção das desigualdades submetidas aos afrodescendentes, há também a desqualificação social dada pela falta de qualificação profissional. Temos atualmente discursos conectando a pobreza urbana e a falta de emprego, estando estes concentrados em torno da qualificação profissional. Temos que, no início do século passado, para as necessidades técnicas e profissionais da época, a população afrodescendente detinha todas as qualificações profissionais de um país que entrava em processos de industrialização. Entretanto, ocorre que a base técnica e tecnológica da sociedade foi se modificando e, possivelmente, a população afrodescendente não pôde acompanhar a mudança em relação à qualificação necessária das profissões. Neste sentido, seria importante analisarmos o porquê deste descompasso técnico e tecnológico. A distribuição espacial das possibilidades de formação profissional nas cidades do país ao longo do século passado é um ponto de reflexão para pensarmos tal desajuste (CUNHA JR., 2007). 2. De onde falamos Partindo das experiências das populações negras demarcadas pelas memórias e vivências da vida cotidianas e práticas culturais coletivas dos territórios afrodescendentes. Assim, trazemos uma proposta de rupturas conceituais, históricas e políticas nas abordagens sobre o espaço 4 urbano e das áreas de maioria afrodescendente. Falamos no âmbito da cultura, de uma perspectiva particular dos lugares de descendentes de africanos. Falamos dos lugares marcados pelas heranças africanas e não de um outro lugar qualquer, genérico e inespecífico. Falamos dos lugares que moramos e das experiências sociais que nos cercam. Inserindo um enfoque conceitual que traz nova perspectivas: a forma de como falamos e o lugar de onde falamos, utilizamos o conceito da Afrodescendência que tem por base a história e os processos de formação de identidade afrodescendente. As populações resultantes de imigrações forçadas devido ao sistema de produção do escravismo criminoso têm uma história em comum no Brasil. São originárias de um território de formação histórica e cultural comum que é o continente africano, a história e a cultura africanas. Esta população estabelece novas relações sociais e sofre as transformações condicionadas, de certa maneira, pelo sistema escravista e depois pelo capitalismo racista. Nestes processos sociais produzem novas identidades que resultam de uma origem comum e de uma história de contornos comuns. Afrodescendência é um conceito de base étnica dado pela história sociológica dessas populações. Os contornos desta identidade afrodescendente são de natureza política e cultural. Este conceito visa substituir o conceito de raça biológica ou social dado às dificuldades que os conceitos relativos à raça têm produzido para a humanidade. Os racismos são produtos do uso do conceito de raça. É estrutural ao racismo a manutenção do conceito de raça como demarcador das diferenças entre os seres humanos. Devido aos prejuízos sociais constantes causados pelo uso do conceito de raça e ao fato de este estar sempre referido à cor da pele ou por outros demarcadores biológicos, que elimina ou relativiza a importância da história, é que não mais utilizamos o conceito de raça sócia, como construção teórica de natureza histórica, é que utilizamos o conceito de Afrodescendência (CUNHA Jr., 2001). Deste modo, podemos expor a resistência política e o protagonismo social e histórico das populações negras. Detectamos que a pobreza material se mostra característica, dados pelas desigualdades sociais impostas a estes territórios. No entanto, a riqueza das histórias de vidas que encontramos entre os moradores não provém da relação com esta pobreza e sim com valores éticos e morais provenientes dos princípios cilizatórios africanos. A saga histórica de grupos negros está nas realizações sociais, sobre uma base cultural delineada por desejos individuais e coletivos, dada pela história, pela cultura, pela proximidade e pelo pertencimento a um lugar. 3. Territórios de maioria afrodescendente 5 Conceitualmente definimos territórios de maioria afrodescendente como aqueles espaços urbanos habitados pela parcela maior de população afrodescendente que se conformam histórica e socialmente a partir do processo da política de dominação e do desenvolvimento das culturas de base africanas (CUNHA JR., 2001). Seguimos os nossos estudos destes territórios por um método de embasamento históricosociológico, analisando as pessoas, os grupos, as famílias, a cultura, as memórias, enfim, as vivências da vida real e não da vida idealizada, estilizada. Nos territórios afrodescendentes, os espaços urbanos não constituem espaços aleatórios, indiferente ou abstratos. São territórios urbanos produzidos socialmente, estando presentes através das histórias e memórias coletivas e vinculados a uma realidade concreta vivida cotidianamente, onde se é possível identificar o caráter simbólico dos espaços impregnados de afetos, sensações e lembranças. As afrodescendências estão presentes nas memórias urbanas refletidas em nosso imaginário social, alimentadas pelas manifestações afrodescendentes presentes no cotidiano das nossas cidades, compondo suas próprias estéticas. Trazendo algumas formas das expressões urbanas das manifestações culturais que ocorrem em territórios afrodescendentes, facilmente encontradas em cidades como Salvador e Recife, temos as danças como o maracatu, a congada, o reisado, as festas e cortejos religiosos, práticas da arte dos despachos, as feiras e mercados informais, os serviços ambulantes como as profissões de rua como os sapateiros, os barbeiros e trançadeiras, artistas e artesãos, as lavagens de largo, definidos por comportamentos particulares no espaço público, entre outras, constituindo um conjunto de repertórios culturais que se processam nos territórios afrodescendentes (Figuras 01, 02 e 03). 6 Fig. 01 - Cortejo da Vila Operária na Liberdade, onde as mães-de-santo se preparam para lavar a vila com água de cheiro, enquanto cantam. Fig. 02 e 03 - Imagens dos moradores no Cortejo da Vila Operária na Liberdade, em Salvador Fonte: Fotos dos autores 7 Estas manifestações afrodescendentes produzem sujeitos de uma história social, em que o individuo é responsável pela sua atuação, na realização de si e da coletividade, mantendo interatividade e vínculo a estes territórios (RAMOS, 2007b). Além das manifestações culturais esporádicas que propiciam vivenciar e de visões de mundo particulares, há as dimensões das rotinas cotidianas (Figuras 04, 05, 06, 07 e 08). Fig. 06 - Ebó Fig. 04 - Baiana de acarajé Fonte: Internet Fig. 05 - Trançadeiras Fig. 07 e 08 - Moradores utilizando as calçadas de forma lúdica Nesta valorização das afrodescendências e de suas memórias no espaço urbano através das evidências das vivências como forma de realização urbana dos afrodescendentes, em suas práticas e nos territórios urbanos produzidos por suas populações, pode-se pensar e propor cidades mais tangíveis às realizações urbanas concernentes aos diversos grupos sociais negros como forma de combate às desigualdades sociais e à pobreza, incorporando estes modus vivendi nas políticas públicas que atuam sobre o espaço urbano, ao reverso das históricas políticas públicas de desafricanização dos espaços urbanos brasileiros. 8 4. Para concluir A desqualificação social da população negra ocorre por diferentes nuances. Uma delas está contida nas políticas públicas nos territórios de maioria afrodescendente, onde são impostas condições da precarização da vida coletiva. É ainda como reflexo do estigma da escravidão e de um racismo corporativo que o poder público tem tomado a postura de abandono aos bairros negros. Em busca de fazer uma leitura de cidade que não considere somente as referências de análise eurocêntricas (eixo greco-romano/europeu), mas um estudo do urbano que parte dos princípios sociais africanos, entendidos aqui como reveladores da cultura afrodescendente desenvolvida em seu processo histórico brasileiro, encontramos formas de apropriação do espaço particulares que são reveladas pelas memórias, experiências e vivências urbanas afrodescendentes. Estes espaços não configuram um lugar qualquer, genérico e inespecífico. Demarcam especificidades culturais e históricas que são orientados por princípios sociais africanos regendo os territórios afrodescendentes, promovendo sobre o espaço o senso de coletividade, conformando territórios de sociabilidade cotidiana construídos coletivamente através de práticas sociais que permanecem ou se renovam entre os afrodescendentes, sendo elementos fundamentais para a realização da população negra. Para nosso entendimento, trazer a afrodescendência, enquanto conceito e método, torna-se complementar (e fundamental) para se compreender as cidades brasileiras. No entanto, o urbanismo tem em suas proposições, na sua forma hegemônica, inibir tais presenças e promover um apagamento desta memória urbana, ou confrontá-la como folclorização. Apesar destes fatores históricos, compreendemos um protagonismo histórico e cultural dos afrodescendentes que se revela através de formas de apropriação e produção de partes da cidade, expressando formas peculiares de resistência ao controle da cultura dominante. A produção do espaço urbano formal está fundada em propostas formuladas que visam mudar ou desvalorizar estas apropriações e experiências do urbano, deprimindo vivências que fogem a um modelo-padrão dominante de comportamentos, de sociabilidades e de relações espaciais. Temos a proposta de integrar estas práticas sociais, apropriação e produção do urbano pela população negra, como valores de um conhecimento social, aos valores do conhecimento 9 formal (acadêmico, científico ou institucional) e incorporar este conhecimento social acumulado à produção do espaço urbano. Entendemos que a realização das especificidades culturais no espaço urbano é essencial para a produção de identidades e para a auto-afirmação dos grupos sociais, assumindo o sentido de qualificação social para o enfrentamento dos processos de subordinação e subalternização, em busca de emancipação sócio-econômica, sobretudo para os afrodescendentes. Referências Bibliográficas CUNHA JR., Henrique. Africanidades, Afrodescendência e Educação. Revista Educação em Debate, Ano 23, V. 2 - Nº. 42, Fortaleza: FACED/UFC, 2001. p. 05-15. ___________________ Afrodescendência e Espaço Urbano. In: CUNHA Jr., H.; RAMOS, M. E. R. (orgs.). Espaço Urbano e Afrodescendência. Fortaleza: UFC Edições, 2007. PAIXÃO, Marcelo. Desenvolvimento Humano e Relações Raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. RAMOS, Maria Estela Rocha. Origens da segregação espacial da população afrodescendente em cidades brasileiras. In: CUNHA Jr., H.; RAMOS, M. E. R. (orgs.). Espaço Urbano e Afrodescendência. Fortaleza: UFC Edições, 2007. (a) _____________ Território Afrodescendente: Leitura de cidade através do bairro da Liberdade, Salvador (Bahia). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Salvador: PP-GAU/UFBA, 2007. (b) 10 11 INTERVENÇÃO FEMININA NA LUTA CONTRA A POBREZA estudo realizado junto de comerciantes informais da cidade de Maputo – Moçambique Por Sónia Frias1 1. Introdução No mundo pobre e em particular nas cidades, as mulheres tornam-se hoje, cada vez mais participantes economicamente, agindo no mundo do trabalho para além da esfera doméstica, e contribuindo de forma muito evidente para a sobrevivência familiar. Este é um fenómeno relativamente recente e nalguns países resultou muito directamente dos modelos de descolonização enquanto noutros foi acelerado pela aplicação dos Structural Adjustment Programs (SAPs). O grupo de mulheres que estudei em Maputo, a capital de Moçambique, não são excepção no que respeita à dinâmica deste processo. Grande parte delas – sobretudo das mais velhas – transferiram-se para Maputo nos anos que se seguiram á independência e foram com o tempo aprendo a adaptar-se à vida e às estruturas da cidade. São por isso de origem camponesa e esse facto espelha-se nalgumas das suas opções e atitudes ainda que noutras se note uma clara adaptação ao mundo urbano. Todas vendem. Vendas nas ruas, pelo chão as mais pobres e nos mercados informais aquelas com mais experiência e empreendedorismo. Sabem explicar que o envolvimento mais marcante das mulheres em negócios informais aconteceu em dois momentos distintos da história recente do país. O primeiro em finais da década de 1970 e o segundo em finais da década de 1980. Em finais de setenta, assistia-se a uma ruptura na gestão das estruturas produtivas e a uma quebra continuada da produção agrícola que afectava o país e em especial os núcleos urbanos. A falência no fornecimento de víveres afectava particularmente as cidades, sobretudo a capital, situada no sul do país, longe das principais Cooperativas agrícolas. Por essa altura a cidade começou a ressentir-se da falta de alimentos e a insegurança alimentar tornava-se numa ameaça séria sobretudo para as famílias mais pobres. 1 Professora Auxiliar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade Técnica de Lisboa. email: só[email protected] 12 Em 1987, mantendo-se a guerra e agravando-se cada vez mais as dificuldades que o governo enfrentava no tocante à gestão política e económica do país, acaba por ser implementado um SAP. Se dez anos antes o que faltava à população de Maputo eram bens alimentares, agora faltava dinheiro. Consequência da aplicação das medidas de ajustamento foram um pouco por toda a África as privatizações, o desemprego (sobretudo urbano), e reduções várias no âmbito das estruturas e programas de apoio social aos mais carenciados. Em qualquer destes momentos, as mulheres, confrontadas com a incerteza da fome, inventaram soluções inesperadas num esforço para garantirem a sobrevivência e a qualidade de vida das suas famílias sobretudo a dos filhos. Urgia por isso encontrar uma solução rápida e eficaz. Entre uma pequena cultura de quintal e uma rede de conhecimentos bem colocados politicamente, algumas mulheres conseguiam aceder esporadicamente a alguns produtos que cozinhavam e posteriormente vendiam, discretamente, num circuito de vizinhança. Contudo, dada a escassez desses produtos, esta era claramente uma estratégia de curto prazo. Rapidamente as mulheres se viram na necessidade de pensar em alternativas. Muitas tinham uma rede de parentes camponeses a residir em aldeias próximas de Maputo e apesar da guerra e de todo um conjunto de outras dificuldades que lhe acresciam (e sobre as quais nos deteremos adiante), algumas cedo se propuseram sair da cidade e procurar auxílio junto desses familiares. Levavam-lhes produtos da cidade – querosene, cobertores, fósforos que trocavam por produção da machamba (horta). Começou deste modo a tomar contornos muito definidos o comércio informal propriamente dito. Mais tarde muitas mulheres começaram a alargar a sua rede de fornecedores para além da parentela. Ao dominarem melhor a dinâmica dos negócios passaram a fornecer-se em províncias mais distantes onde encontravam uma maior variedade de produtos, a preços mais convenientes. Desta forma deixavam de depender tão estreitamente do apoio da família camponesa, atenuando-se laços de responsabilidades reforçadas por via desta reaproximação. Posteriormente, um segmento destas vendedeiras começou a especializar-se no comércio de outros produtos que compravam já não noutras províncias de Moçambique, mas nos países vizinhos. Ainda em franco desenvolvimento, o comércio de produtos alimentares mantém-se até ao presente como um negócio do foro feminino. Os homens que em Maputo começam hoje a aderir aos negócios informais, escolhem, por uma questão de separação de lugares de género, trabalhar com outros produtos. Durante muito tempo, as actividades das mulheres foram praticadas de forma muito dissimulada. Era importante, e elas sabiam-no, manter este seu empreendedorismo muito 13 discreto, desconhecido dos seus marido e se possível da família mais alargada e mesmo da vizinhança. A fim de evitarem o confronto familiar, por um lado, e de esconderem o desrespeito que, por meio das suas actividades sentiam exibir pela ordem tradicional relativa aos lugares e papéis de homens e mulheres, fizeram da casa, em especial das cozinhas, a cobertura perfeita para os primeiros negócios, crucial na estratégia para manterem as suas actividades invisíveis e silenciosas. Partindo de um conjunto de saberes e competências domésticas, a compra de alimentos e o processamento de comida – tradicional e culturalmente tidos como parte integrante das competências femininas - e usando a descrição do lar, geralmente concebido como um universo muito restrito, castrador da intervenção e da criatividade, um lugar que condiciona as mulheres a um conjunto de comportamentos altamente padronizados e rotineiros e onde não há espaço para a reflexão e a construção de saberes, as vendedeiras que conhecemos, acabaram, em tempos de crise, por se revelar profundamente criativas e competentes. Numa análise retrospectiva, reconhecemos os esforços que em Moçambique a Frelimo2 tentou empreender nos campos do combate ao tribalismo, ao tradicionalismo, tanto quanto ao nivelamento socio-cultural das populações, da emancipação das mulheres ou mais concretamente a respeito da igualdade de direitos de homens e mulheres. Apesar dos ventos de mudança proclamados pela subida ao poder, de um partido de perfil socialista, na prática a realização dessa mudança apresentou-se quase inexistente porque foi difícil de assumir e de se realizar e a organização social manteve-se orientada segundo as normas tradicionais, quer no mundo do trabalho, quer ao nível das relações familiares, nomeadamente ao nível das relações de casal. Os primeiros negócios: as primeiras dificuldades 2 O Partido que assumiu o governo após a independência. 14 Com o tempo e o desenvolvimento dos negócios a o fluxo de entradas e saídas da cidade, as ausências cada vez mais prolongadas – se de início as mulheres se esforçavam para ir e vir ao campo no mesmo dia, com o tempo, a confiança o treino e a ambição que iam adquirindo na realização negocial – aumentava o número de negociantes que, em busca de melhores oportunidades de negócio, se deslocava a pontos cada vez mais distantes da cidade, facto que começou a dificultar as viagens de ida e volta no mesmo dia. Ausentes de suas casas por mais de um dia, os pretextos de que se socorriam para justificarem junto dos maridos e familiares próximos as suas ausências acabavam por limitar-se e a acção das mulheres acabou necessariamente por ir tomando visibilidade. Uma grande maioria dos homens não conseguiu tolerar a ideia de que as suas mulheres se dedicavam ao comércio e auferiam a partir daí um rendimento próprio. Na realidade, por ocasião das primeiras suspeitas a respeito das sucessivas ausências das mulheres, e perante a forma dissimulada como elas se organizavam, quase todos os maridos (e a própria sociedade) assumiram que as mulheres se dedicavam à prestação de favores sexuais a outros homens com o fim de conseguirem obter os produtos e o dinheiro que faltavam em casa. As prolongadas ausências das mulheres, assim como o sucesso que têm conseguido obter, desde cedo orientaram mais o imaginário para o campo da aventura e transgressão do que do trabalho e do esforço. O desemprego, ao remeter muitos destes homens para uma condição de vazio ocupacional, acabou por criar-lhes um vasto conjunto de problemas. Se pensarmos que, actualmente, o trabalho é também, um poderoso factor de integração e inclusão social, um desempregado, sobretudo se se mantiver nessa situação durante um intervalo de tempo relativamente duradoiro (como é o caso dos homens em questão), para além de se ver economicamente limitado, pode acabar também por se ir assumindo pessoal e socialmente excluído, até mesmo marginalizado por não conseguir preencher um dos requisitos necessários para que seja reconhecido como um indivíduo de valor e participante num mundo – o do trabalho - que aprendeu a entender como peça fundamental do processo de realização dos homens. É por isso compreensível que em Maputo como em qualquer cidade europeia, o desemprego de longa duração possa actualmente constituir-se para além de um factor de desintegração económica, também um factor de desintegração psicológica, social e cultural. 2. Empowerment e mudança 15 Em poucos anos pelo seu engenho e o seu empenho este grupo de mulheres acabou por conseguir um elevado grau de sucesso nos seus empreendimentos. A quebra no fornecimento de bens alimentares à cidade tornava o tráfico de produtos da terra uma actividade particularmente bem sucedida. Este fenómeno tomou tal relevância que hoje, em Maputo, tal como acontecerá em muitas outras grandes cidades africanas a intervenção feminina na economia (ainda que paralela) já se pode considerar uma vantagem em termos de mudança. Na verdade, num número crescente de casos, em Maputo, uma substancial fatia dos rendimentos familiares são hoje garantidos pelas mulheres, dado que o desemprego masculino e os salários muitos baixos não permitem que os homens, que apesar de tudo continuam estatisticamente a constituir o maior número de indivíduos com empregos formais, continuem de facto a chefiar, em termos económicos e decisórios o agregado familiar. Por via dos seus empreendimentos um bom número destas mulheres acabou por conseguir alguma autonomia económica por relação aos homens, em especial aos seus maridos ou aos pais o que acaba por ter consequências práticas em termos do desafio que se põe à perpetuação impoluta da ordem tradicional e das práticas costumeiras, nomeadamente no que respeita , como já referimos, aos lugares e responsabilidades sociais de homens e mulheres. Embora a política das unidades domésticas possa ser relativamente calma nas comunidades rurais, torna-se mais agitada com a urbanização porque o controlo da comunidade tradicional sobre o comportamento das mulheres se torna menos rígido e porque as mulheres começam a contar como força de trabalho. As mudanças que neste âmbito já se começaram a fazer sentir, tendem a alterar a perspectiva das relações entre os géneros, nomeadamente as tradicionais de dependência das mulheres por relação aos homens, assim como a perspectiva sobre o valor dos laços de afinidade e obrigações entre homens e mulheres mas sobretudo e nos casos que pudemos observar em Maputo, mesmo entre as famílias e até ao nível da própria estrutura comunitária. Custos da Sobrevivência e do Sucesso Neste texto não procuramos explorar o fenómeno económico em que se constitui a economia informal em si, mas alguns dos novos fenómenos sociais que têm vindo a desenharse, fruto do seu significativo desenvolvimento. De entre esses fenómenos, as questões relativas aos estatutos e poderes de homens e mulheres nas sociedades, nomeadamente nas sociedades em desenvolvimento, apresentam-se como 16 algumas das mais interessantes, muito em especial no que concerne à composição dos tradicionais puzzles relativos às diferenças entre os sexos. No ambiente em que agora estas pessoas viviam, a cidade, a organização familiar e mesmo social exige novas lógicas de atitude e de acção e as mulheres perante a crise e as dificuldades a ela inerentes, sentiram-se forçadas a agir para além dos seus lugares, o que na prática implicou que começassem por desafiar o modelo tradicionalista de acção, limitador e desadequado ao momento. A nossa reflexão projecta-nos para a ideia de que se a economia informal foi uma semente de mudança no que se refere às questões relativas aos lugares sociais das mulheres, mas o ambiente urbano foi mais do que isso, foi o terreno especialmente adequado à frutificação e desenvolvimento dessa semente. Hoje o nosso grupo de mulheres continua a lidar com muitas dificuldades no que respeita às questões relacionadas com a sobrevivência familiar. Continuam ligadas a um padrão de valores muito claro sobre o lugar e as responsabilidades de cada elemento no seio de uma família, confessam contudo já não terem a disponibilidade de outrora para lidar com regras de parentesco rígidas e com a intervenção constante dos mais velhos das famílias dos maridos 3 na gestão do seu núcleo familiar mais restrito. Têm consciência de que a sua vida mudou. A cidade tem nisso um papel implacável. A necessidade de trabalhar e uma nova consciência da sociedade e do mundo dificulta-lhes cada vez mais a manutenção de um modelo de vida mais tradicional que ainda resiste, em especial, no campo, mas com o qual os ritmos e a organização urbana não se compadecem. As famílias Este desencontro sobre responsabilidades e actividades de mulheres e homens tem tido sérios impactos ao nível das relações de casal e da desestruturação de famílias. Logo que começámos o nosso trabalho no terreno apercebemo-nos por exemplo de que um elevado número mulheres vendedeiras nos mercados, não têm marido, vivem em regra com os filhos que ficam a seu cargo. Este facto, tem vindo a avolumar o número de famílias monoparentais e tem contribuído indubitavelmente para a visibilidade de um fenómeno, o das Famílias Chefiadas por Mulheres (FCMs), fenómeno que tem vindo a preocupar o governo e que requer esforços no que toca à reflexão sobre políticas de apoio a estes núcleos familiares. 3 No sul de Moçambique predomina a organização familiar de base patriaracal. 17 As FCMs, são famílias identificadas (tal como acontece um pouco por todo o mundo) como um dos grupos sociais mais vulneráveis dado que são famílias cuja sobrevivência e manutenção dependem de uma mulher, normalmente a mãe, que é também a fonte principal de apoio económico. O número de FCMs em muitos países da África subsariana, parece estar continuamente a aumentar (Handa et al. 1999), e segundo indicam os dados de vários organismos, o maior número de mulheres chefes de família são mulheres solteiras, seguindo-se depois as viúvas e as mulheres casadas sobretudo aquelas cujos maridos emigraram por motivos de trabalho. São raros os trabalhos que fazem referência a mulheres separadas ou divorciadas. É certo que parte avultada dos estudos existentes sobre esta questão se relaciona, na maioria dos países, com o êxodo masculino e como é óbvio com o seu impacto em ambiente rural. Em Moçambique, as razões que a maioria dos autores reconhecem para o aumento das FCMs, ligam-se ainda actualmente à guerra e à emigração dos homens que saem à procura trabalho para as minas da África do Sul, parecendo não se dar ainda importância de relevo à migração das populações para as cidades, nomeadamente para a cidade capital. A guerra, terá deixado um número substancial de viúvas, mas a emigração de moçambicanos para trabalhar nas minas do país vizinho4, tem vindo, ao longo das últimas décadas, a ser fortemente refreada pelas autoridades sul-africanas no seguimento da implementação de políticas restritivas da imigração. Esse facto tem levado a uma significativa redução da emigração masculina 5 para a África do Sul, e terá de certa forma redireccionado, pelo menos alguma margem desse fluxo migratório para Maputo, persistindo por isso uma elevada percentagem de mulheres a chefiar famílias em meio rural. Em meio urbano, a situação toma um perfil algo diferente. O número de mulheres solteiras, casadas e viúvas parece ser, em termos proporcionais, menor do que no campo, e o número de separadas e de divorciadas aparenta, pelo contrário, ser bastante maior. Vejamos alguns dos factores que se pode conceber terem alguma influência nesta situação: 4 A emigração de mão-de-obra masculina de Moçambique para as minas da África do Sul foi durante várias décadas uma realidade. O fenómeno tornou-se de tal forma importante que, para além dos impactos económicos que implicou, chegou também a tomar contornos sócio-culturais particularmente interessantes passando a ser considerado não um ritual mas certamente uma marca de passagem dos jovens que partem rapazes e regressam homens adultos. 5 Os emigrantes moçambicanos para as minas eram maioritariamente oriundos das províncias de Maputo e Gaza, as províncias do sul do país. 18 • a falta de empregos ou de subsídios sociais, o que limita económica e socialmente muitos homens e afecta a sua auto-estima uma vez que, sem possibilidades de, por meio de um trabalho remunerado conseguirem cumprir algumas das funções de chefes de família, passam a sentir-se desprezados e feridos na sua virilidade, tornando-se ao que parece, incapazes de reagir de outra forma que não a de procurarem conforto na inércia, no consumo de álcool ou na violência doméstica; • o crescente envolvimento das mulheres no mundo do sector informal e as consequências desse envolvimento ao nível da sua consciencialização sobre o aumento do seu poder económico, da sua autonomia, uma maior autoconfiança. Desta forma e extrapolando a partir da situação das vendedeiras com quem trabalhámos, temos que, pelo menos nos últimos anos e ao contrário do que parece registar-se em meio rural, muitas das FCMs na cidade, começam a ser chefiadas por um crescente número mulheres separadas ou divorciadas. Se a intervenção das mulheres no campo dos negócios tem vindo, segundo elas próprias defendem, a ser cada vez mais estimulada pela necessidade económica, o facto é que essa intervenção começa a transformar a estrutura de algum modelo social (para além da económica) de uma cidade e uma sociedade ainda fortemente ruralizadas mas já inquestionavelmente em transição. Um dos preços dessa transição espelha-se no aumento do número de separações e divórcios, de famílias chefiadas por mulheres, de famílias fragmentadas e de mães solteiras, uma vez que, o valor e a importância que sobretudo as mulheres mais novas parece darem ao facto de terem um marido, é cada vez menor. Os filhos continuam a constituir-se para elas num bem procurado e insubstituível, mas a sua capacidade para manterem uma aliança matrimonial segundo os moldes em que a maioria dos homens insiste em assumir, parece estar a baixar. 3. Mães e filhos Dada a mudança operada nas vidas das mulheres em estudo – o ganho de autonomia económica e pessoal, os novos saberes e os novos poderes - poderia esperar-se que, também às suas ambições para os filhos e para as filhas, se tivessem alterado por relação à tradição. 19 A par com as alterações que se verificaram nas suas vidas desde que se passaram a dedicar aos negócios, e da noção que o desenvolvimento desses negócios lhes terá proporcionado sobre a importância de se saber ler, escrever e contar para se vingar na vida, e mais ainda, sobre o valor das habilitações escolares no que concerne ao acesso a um emprego formal, teoricamente mais bem pago, e socialmente mais bem visto, seria lógico pensar-se que, pelo menos a maioria destas mulheres demonstrasse grande empenho na instrução dos filhos. Na prática, verifica-se de facto que a maioria das mães em questão, tem consciência da importância de mandarem os filhos à escola, mas também pudemos verificar que as taxas de abandono escolar são elevadíssimas, seja entre rapazes como entre as raparigas, sendo no entanto, e como é mais comum em contextos de pobreza, claramente mais elevadas entre as raparigas, e que as mães não exercem realmente grande pressão para que os filhos prossigam os estudos. As razões do elevado abandono escolar feminino, prendem-se numa grande maioria de casos com situações de gravidezes precoces. A influência do meio urbano não parece ter neste caso, efeitos particulares por relação ao tradicional entendimento e vivência da sexualidade que, ao que tudo indica continua, tal como no campo, a ser muito livre e pacificamente tolerada. As próprias mães parece aceitarem que seja quase inevitável que uma jovem adolescente, com doze, catorze anos, acabe por relacionar-se com rapazes da sua idade ou mesmo com jovens adultos e que acabe assim, naturalmente, por engravidar. Embora haja raparigas que abandonem a escola pelo simples facto de não quererem continuar a estudar, o facto é que uma grande maioria delas abandona a escola quando sabe que está grávida. Mesmo as que abandonam a escola sem que a razão se prenda com uma gravidez, têm fortes probabilidades de engravidar também precocemente. Uma vez em casa, as jovens, comprometem-se a ocupar-se das tarefas do lar e a cuidar dos irmãos mais pequenos quando estes existam. São poucas, aquelas que aceitam passar a trabalhar com as mães nos mercados. Na realidade a maioria das mulheres confessou-nos que, os seus filhos e filhas têm normalmente vergonha do facto de as mães serem vendedeiras, uma actividade que consideram socialmente desprestigiante e muito estigmatizada. 20 Na verdade, as vendedeiras, mesmo em caso de muito trabalho e necessidade, raramente contam com a colaboração das filhas ou dos filhos. Nem sequer lhes requerem essa ajuda. Em regra é mais fácil que contratem alguma rapariga oriunda de famílias mais pobres para as ajudarem. Nas vozes destas mães, os filhos e filhas são vítimas da conjuntura: do insuficiente acompanhamento materno; do desinteresse e atitude dos pais; da desintegração familiar (quando se referem ao facto de serem separadas, divorciadas ou viúvas); da violência social, da falta de empregos. A brevidade com que muitas falam das actividades em que se ocupam os filhos durante o dia, trai de algum modo o seu desconforto (e eventualmente um sentimento de culpa ou até de incapacidade para agir), quando sabem que, na sua maioria os seus filhos passam demasiado tempo sozinhos e sem qualquer vigilância, e que por isso, sobretudo os rapazes, passam horas a gingar (a deambular) pelas ruas, podendo tornar-se assim presas fáceis nas teias da marginalidade. A maior parte das nossas entrevistadas teme que os filhos se envolvam em pequenos bandos de criminosos, e que se transformem em ninjas, o nome dado aos jovens marginais (rapazes), àqueles que preferem roubar a trabalhar e que para além dos assaltos e de outra violência que possam exercer, se revelam também indivíduos sem quaisquer valores, que não respeitam nem regras, nem pessoas, sejam elas mulheres, crianças ou os mais velhos. Qualquer mãe tem vergonha de ter um filho ninja, no entanto, se algum dos seus filhos se transforma num marginal, ela atribui pesarosamente a culpa, à História do presente. Conclusões A pesquisa indica que os esforços assumidos pela maioria daquelas que mais cedo se dedicaram a estas actividades, fizeram numa primeira fase parte de uma estratégia de segurança alimentar mas que, mais recentemente, tem acabado por dar outros frutos tornandose, mais clara e especificamente numa estratégia de geração e aumento de recursos próprios, afinal num verdadeiro instrumento de empowerment pessoal e social. Apesar de todo este sucesso, pudémos aferir que não deixam de lidar com um conjunto de dificuldades pessoais muito específicas, relacionadas com a solidão, com íntimos sentimentos de culpa pelo desafio á ordem costumeira, com o desrespeito social e com a falta de reconhecimento do seu esforço por parte dos familiares (em especial dos maridos e dos filhos). 21 As dificuldades por que passaram deram-lhes no entanto uma nova ideia da dimensão do mundo e, de alguma forma até, o orgulho de verem reconhecido o valor, em termos do impacte social, que as suas actividades acabaram por ter no presente. Haverá certamente outras implicações com efeitos a considerar a médio e a longo prazo. Em termos de trabalho competirão com os homens, e poderá desta forma, vir talvez a ser activado todo um conjunto de oportunidades de que usufruirão não apenas para as famílias mas para a própria sociedade que, ganhará um cada vez maior número de elementos treinados, para outros projectos de mudança. 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Este trabalho foi apresentado no Colóquio Internacional (Des)envolvimento contra a pobreza e obteve o apoio financeiro da Fundação para o Desenvolvimento da UNESP – FUNDUNESP e contou com a generosa hospitalidade dos organizadores para hospedar os membros pesquisadores estudantes do GPHEC. 24 O objetivo deste ensaio é apresentar a proposta metodológica do GPHEC 7 sobre os determinantes da pobreza na América do Sul. Trata-se, portanto, do resultado de estudos preliminares sobre a pobreza que redundou na elaboração de uma hipótese de trabalho, ou mais precisamente, de uma proposta metodológica para abordar a complexa questão dos determinantes da pobreza na América do Sul na história econômica contemporânea. A relevância social da questão vem ganhando nova dimensão e significado, na medida em que poderá tornar-se elemento central nos debates sobre integração regional no âmbito da recém criada (05/2008) União das Nações Sul-Americanas – UNASUL. 2. América do Sul TABELA I AMÉRICA DO SUL: população. Est. 2006 Países População Est. 2006 01. Argentina 39,1 02. Bolívia 9,4 03. Brasil 188,9 04. Chile 16,5 05. Colômbia 46,3 06. Equador 13,4 07. Guiana 0,8 08. Paraguai 6,3 09. Peru 28,4 10. Suriname 0,5 11. Uruguai 3,5 12. Venezuela 27,2 Total: 380.3 Fonte: a) Atlas National Geographic, p. 16. A América do Sul estende-se do istmo do Panamá até o estreito de Drake, ao sul. É composto por 12 países independentes e 2 colônias (Ilhas Malvinas e Guiana Francesa), conforme quadro abaixo. Possui uma população total de 380 milhões de habitantes em seus 17,8 milhões de km². TABELA II AMÉRICA DO SUL: PIB estimativa 2004 Países PIB US$ milhões 7 Grupo de Pesquisa em História Econômica e Social Contemporânea – GPHEC da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP Campus de Araraquara. www.fclar.unesp.br/grupos/gphec 25 01. Argentina 153.014 02. Bolívia 8.773 03. Brasil 596.000 04. Chile 94.105 05. Colômbia 97.718 06. Equador 30.282 07. Guiana 786 08. Paraguai 7.343 09. Peru 68.637 10. Suriname 3.136 11. Uruguai 13.215 12. Venezuela 110.104 Total: 1.183.113 Fonte: a) Atlas National Geographic, p. 16. b) PIB do Brasil, fonte IBGE. A maior densidade populacional encontra-se no Equador com 47 habitantes por km²e a menor encontra-se nas Ilhas Malvinas com apenas 0,25 hab./km².No que tange aos idiomas utilizados pelas populações do subcontinente, verificamos uma enorme gama de idiomas e dialetos. Temos o espanhol, o português, o francês, o holandês, o inglês, o guarani (Paraguai), o crioulo (Guiana Francesa), o javanês (Suriname), o quíchua (Peru entre outros), o aimará (Bolívia) guaicuru (Argentina) e vários idiomas indígenas (Brasil entre outros). 3. Pobreza O conceito de “pobreza” define a parte da população que vive com uma renda entre um a dois dólares por dia. Segundo a CEPAL (2006), o enfoque utilizado para estimar a pobreza consiste em classificar como “pobre” uma pessoa quando sua renda é inferior a da linha da pobreza. O equivalente mensal em dólares das linhas da pobreza mais recentes varia entre 45 e 157 dólares nas áreas urbanas, e entre 32 e 98 dólares nas áreas rurais. Segundo Estenssoro (2003: 81), “as análises sobre a pobreza distinguem geralmente entre a pobreza absoluta e a pobreza relativa. A pobreza relativa (desigualdade) diz respeito a unidades de análise que são pobres em relação a outras unidades mais ricas. Já a pobreza absoluta caracteriza exclusivamente a situação da unidade analisada, sem haver comparações. Assim, pobreza absoluta existe quando a vida dos envolvidos se vê afetada por carências físicas ou sócio-culturais (...) Pobres são então aqueles que não podem satisfazer suas necessidades materiais ou sócio-culturais mínimas ou fundamentias.” Na avaliação do Banco Mundial (2001) a pobreza está associada principalmente a três fatores: localização numa área pobre; baixa escolaridade e família numerosa. Tanto o Banco 26 Mundial quanto o BID adotam a perspectiva do rendimento, ou seja, a pobreza é definida quando um ser humano se encontra abaixo da linha da pobreza. O Banco Mundial estabelece como linha da pobreza o rendimento de US$ 1 por dia por pessoa. Já o BID entende que a linha da pobreza está situada em US$ 2 por dia por pessoa. A CEPAL, entretanto, possui uma abordagem mais ampla, na medida em que considera a pobreza como a privação de diversos elementos que inclui educação, saúde, alimentação, serviços e inserção no mercado de trabalho. O PNUD também possui uma abordagem bastante ampla reconhecendo em seu conceito de pobreza até moradia e situação de saúde, ou seja, o PNUD examina a totalidade das condições que permite a um individuo e sua família participarem da sociedade sem privações e sem necessidades. A América Latina foi palco de grandes transformações sócio-econômicas no período recente. Tais mudanças foram impulsionadas, de um lado, pela mutação no padrão de desenvolvimento do capitalismo mundial, denominada por globalização ou mundialização do capital, e, de outro lado, pelas medidas de ajuste estrutural e propostas do consenso de Washington, implementadas, em menor ou maior grau, em todos os países da América Latina a partir dos anos 1980. O panorama social da América latina na virada do século é complexo. Quase metade da população vive em condições de pobreza. Em 2000, por exemplo, a América Latina possuía uma população estimada em 516 milhões de habitantes dos quais aproximadamente 215 milhões estavam em situação de pobreza. Certamente a concentração da renda é um importante agravante da pobreza. O coeficiente de Gini é geralmente aceito como medida de concentração de renda. Os dados da tabela III, apresentados pela CEPAL para alguns países da América do Sul, demonstram que a situação social desfavorável de alguns países é agravada por uma realidade de altos índices de concentração de renda. Até 2002, podemos identificar o Brasil e a Bolívia, como os países mais problemáticos neste quesito, cujo grau de concentração de renda é classificado como “muito alto”. A maior parte dos países se encontram na estratificação alta e média de concentração de renda. A exceção honrosa fica apenas para o Uruguai. TABELA III AMÉRICA DO SUL: COEFICIENTE DE GINI DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA: 2000-2002 (países selecionados) PAIS ÍNDICE DE GINI ESTRATIFICAÇÃO 27 Brasil 0,639 Bolívia 0,614 Argentina 0,578 Paraguai 0,570 Colômbia 0,569 Chile 0,559 Peru 0,525 Equador 0,513 Venezuela (Rep. Bol.) 0,500 Uruguai 0,455 Fonte: CEPAL. Panorama Social de América Latina 2006. Muito alto Muito alto Alto Alto Alto Alto Alto Médio Médio Baixo As transformações experimentadas pelo mundo todo no final do século passado foram impulsionadas, em parte, por pressões exercidas pelos novos sujeitos sociais. Se de um lado, a classe trabalhadora se viu diante de novos desafios tanto organizacionais quanto da própria pauta de luta, os empresários, por seu turno, mudaram o ambiente na medida em que as novas corporações ganharam características totalmente novas. Dito de outro modo, as reformas neoliberais que varreram o mundo tiveram como um de seus determinantes as novas exigências e necessidades das novas corporações de escopo (Braga, 1997) e exigem um ambiente econômico e político que contenha abertura de mercados, desregulamentação das relações do trabalho, flexibilização institucional, estabilidade cambial, etc. O chamado mundo do trabalho sofreu profundo abalo na virada do século e a elevação nos níveis de desemprego e informalização das relações trabalhistas certamente tiveram um papel relevante no que tange à evolução da pobreza. Com efeito, as forças racionalizadoras, liberadas pela chamada terceira revolução industrial, são mais intensas do que as forças geradoras de emprego. Os dados para a América Latina são enfáticos nesse sentido. Conforme a tabela IV, se em 1990 a taxa de desemprego era de 6,2%, em 2002 atingia a taxa de 10,7%. As mudanças não foram apenas quantitativas, mas também assumiram um caráter qualitativo no sentido de mudar o perfil do mercado de trabalho. Segundo o relatório da CEPAL (2007: 130), “el proceso de globalización y transformación productiva en curso desde hace algunas décadas no solo ha supuesto una reorganización profunda de los sistemas productivos, la estructura ocupacional y los mercados de trabajo a escala mundial, sino que ha planteado nuevos e importantes desafios para la investigación y el diseño de politicas em el ámbito del empleo.” Um indicador das profundas transformações é sem duvido o percentual de trabalhadores assalariados com contrato formal. Segundo os dados da CEPAL, se em 1990 havia 46,7% de trabalhadores formais, em 2002 este percentual decaiu para 41,7%, ou seja, menos da metade dos trabalhadores latino-americanos possuem o estatuto de trabalhadores 28 formais com amplas conseqüências no âmbito dos diretos e da cidadania. No que tange ao desemprego, com exceção da Bolívia e do Peru, todos os demais países experimentaram elevações expressivas nos níveis de desemprego. Outro aspecto relevante do rol de reformas é sem dúvida o processo de privatizações que ocorreu em todo o continente latino-americano, pois impactaram, em alguns países, diretamente no nível de emprego. Segundo Chesnays (1995: 9) “o movimento de centralização e concentração vem se desenvolvendo há mais de dez anos de um modo sem precedentes, impulsionado pelas exigências da concorrência aos grupos mais fortes no sentido de arrebatar das firmas absorvidas suas fatias de mercado e reestruturar e ‘racionalizar’ suas capacidades produtivas, sendo favorecidos e facilitados pelas políticas de liberalização, de desregulamentação e de privatização”. Segundo o relatório do NPP/EAESP/NPP (2001: 15), “foi na Inglaterra que as privatizações se tornaram a espinha dorsal da reforma do Estado. Logo depois que assumiu a chefia do governo britânico, Mrs Thatcher submeteu o Estado inglês a um rigoroso regime de emagrecimento, iniciado com a dispensa de parte do funcionalismo inglês e que desembocou num ambicioso programa de privatizações.” TABELA IV AMÉRICA LATINA: TAXA DE DESEMPREGO (países selecionados) PAÍS ANO % ANO % Argentina 1990 6,0 2002 18,0 Bolívia 1989 9,4 2002 6,6 Brasil 1990 4,5 2001 10,9 Chile 1990 8,8 2000 11,0 Colômbia 1991 9,4 2002 17,6 Equador 1990 6,2 2002 9,2 Paraguay 1990 6,4 2000 11,7 Peru 1997 10,3 2001 7,3 Uruguai 1990 9,2 2002 17,2 Venezuela (RB) 1990 9,9 2002 16,4 América Latina 1990 6,2 2002 10,7 Elaborado a partir de CEPAL: panorama social 2006, pp. 116, 126, 131, 132 29 A política econômica adotada pelo governo da Primeira Ministra Margareth Thatcher caracterizou-se por uma agenda que tinha no seu centro a abolição dos controles sobre os fluxos de capitais financeiros, somada à contração da emissão monetária, aumento das taxas de juros, corte dos gastos públicos, amplo programa de privatizações, além do fim de restrições às importações e das reformas nas relações de trabalho. Tais medidas rapidamente ganharam o caráter de paradigma. A sociedade latino-americana vem experimentando, desde pelo menos meados dos anos oitenta, algumas mudanças profundas, representadas de um lado pela abertura política, e de outro, pela crise econômica, oriunda fundamentalmente do esgotamento do padrão de financiamento da acumulação e de mudanças estruturais. Se somarmos a esse legado, três questões fundamentais como: a) transformação estrutural por que passava o capitalismo, (Ianni, 1992; Piore & Sabel, 1984) relacionada à terceira revolução tecnológica (microeletrônica, informática, robótica, novos materiais, novas energias, etc); b) a quasehegemonia do ideário neoliberal na Europa e nos Estados Unidos, (Sader, 1995) e c) a derrocada do socialismo real, simbolizada pela queda do muro de Berlim (Kurz, 1992); teremos um quadro representativo dos dilemas e mudanças que sacudiram a América Latina na virada do século. Na América Latina o ideário neoliberal encontrou sua mais acabada expressão e sistematização no encontro realizado em novembro de 1989 na capital dos Estados Unidos, como “consenso de Washington”. Segundo Anderson (1995), é fundamental ressaltar que a globalização recente do capitalismo implicou, entre outras coisas, a implementação de um conjunto de medidas e de recomendações de política econômica e de política externa semelhantes em quase todos os países do mundo. Dentro desse conjunto de medidas, as mais relevantes incidiram sobre os seguintes aspectos: a) disciplina fiscal; b) priorização dos gastos públicos no sentido de combate ao déficit; c) reforma tributária; d) liberalização financeira; e) flexibilização do regime cambial; f) abertura comercial; g) estímulo ao investimento direto estrangeiro; h) privatização; i) desregulamentação das relações de trabalho e j) regulação da propriedade intelectual. A política de estabilização, reconhecida pelos Governos como aspecto mais importante no curto prazo, e na medida em que tem na âncora cambial seu aspecto decisivo, tornou deliberadamente a política externa e toda a política governamental refém dos ingressos do capital financeiro internacional. Assim, os países da América Latina adotaram o chamado programa de ajuste estrutural que surgiu no início dos anos 1980. Segundo Mora-Alfaro (2007:19), “um programa de ajuste estrutural é a condição imposta pelo FMI e pelo Banco 30 Mundial a um país para outorgar-lhe respaldo financeiro destinado a enfrentar um grave problema de pagamentos internacionais. Trata-se de uma receita única e de pretensa validez universal aplicada independente da situação particular de cada país. (...) Os programas de ajuste estrutural compreendem medidas estabilizadoras, que reduzem a demanda, e de medidas estruturais, que atuam sobre a oferta. Tenta corrigir o déficits excessivos do setor público e da balança de pagamentos.” Na avaliação de Chesnays (1995: 16), “com exceção de um pequeno número de ‘novos países industrializados’ que haviam alcançado, antes de 1980, um grau de desenvolvimento suficiente para se adaptar (...) aos novos ritmos da produtividade do trabalho (...) os países em desenvolvimento já não são mais, como na época ‘clássica’ do imperialismo, países subordinados, reservatórios de matérias-primas ou de mão-de-obra barata (...) Eles já não oferecem nenhum interesse.” Entretanto, todo o processo de desenvolvimento capitalista, de investimentos diretos estrangeiros, de fusões e aquisições e de privatizações, apontam no sentido de que alguns países da América Latina, com destaque para o Brasil, o México e a Argentina são exemplos tais de exceções. No Brasil, a abrupta política de abertura comercial e desregulamentação financeira abriu caminho para uma mudança na estrutura da economia. Tal processo foi seguido de maneira cambiante pelo Governo Itamar Franco e aprofundado pelo Governo Fernando Henrique Cardoso até o final da década de 1990. Segundo Gonçalves (1999: 134), no governo FHC é que se constata, pela primeira vez na história econômica recente do país, um nítido e forte processo de desnacionalização, que vem acompanhado da perda de posição relativa, tanto das empresas estatais quanto das empresas privadas nacionais. Para a análise expressada pelo PNUD, “a inevitabilidade da globalização, isto é, de uma expansão e aprofundamento dos fluxos internacionais de comércio, finanças e informação, num mercado global único e integrado, não significa que este processo esteja conduzindo ao melhor resultado em termos de crescimento e desenvolvimento humano, principalmente se observarmos que ele ocorre de maneira discriminatória e prejudicial para os países pobres.” (Estenssoro, 2003: 126) Na nova configuração histórica do capitalismo, as categorias desenvolvimento e subdesenvolvimento ganham novos significados. É possível supor que a visão clássica de Celso Furtado, relacionada à heterogeneidades estruturais tenha sido abalada pelo avanço atual do capitalismo na periferia. Sem embargo, no atual capitalismo mundializado, subdesenvolvimento pode significar, entre outras coisas, superpopulação relativa explosiva; crescimento desmesurado da chamada hiper-periferia das grandes cidades, que se expressa em 31 desenfreado crescimento das favelas; crescimento da violência organizada; e por fim, de índices extravagantes de pobreza e de indigência. Os dados da tabela V sobre o panorama social dão conta de que o total de pobres da América Latina cresceu sistematicamente de 1980 até 2002, passando de 135 milhões para 221 milhões, tendo apenas revertido a tendência em 2004, quando o número de pobres caiu para 217 milhões. Já o número de indigentes saltou de um total de 62,4 milhões em 1980 para 97,4 milhões em 2002. Em números relativos à população, a pobreza cresceu de 40,5% em 1980 para 44,0% em 2002 e a parte da população indigente saltou de 18,6% para 19,4%. TABELA V AMÉRICA LATINA: POPULAÇÃO TOTAL POBRE E INDIGENTE 1980-2004 (milhões) ANO POBRES INDIGENTES 1980 135,9 62,4 1990 200,2 93,4 1997 203,8 88,8 1999 211,4 89,4 2002 221,4 97,4 2004 217,4 87,6 Fonte: Relatório da CEPAL: Panorama Social de América Latina 2006.Nações Unidas, 2007, p.60. 4. Proposta metodológica: É preciso lançar mão das reflexões e das variáveis macroeconômicas organizadas pelo economista inglês John M. Keynes para dar início à construção de um experimento científico em ciências sociais capaz de apresentar uma hipótese sobre os fatores determinantes da variação da pobreza na América do Sul. Para a construção de tal experimento é preciso indagar e identificar quais as variáveis que determinam a variação da pobreza, ou seja, levantar uma hipótese sobre os fatores causadores da pobreza na América do Sul. É plausível supor que a variação da pobreza (Pb) está associada à variação da renda (Y) e da variação na qualidade de vida da população (Qv), ou seja: ∆Pb = ∆Y + ∆Qv, Isto posto, é preciso saber o que determina a variação da renda (∆Y) e a variação da qualidade de vida da população (∆Qv) para tecer uma reflexão sobre a variação da pobreza. Temos de antemão que supor que a variação da qualidade de vida está fortemente associada à variação dos gastos sociais (G). Falta saber quais os fatores que determinam a variação da renda (Y) da população. 32 A teoria econômica keynesiana foi sistematizada por Paul Samuelson de modo a tornála de fácil visualização e até de fácil utilização para a reflexão. Desse modo, a determinação da renda (Y) é geralmente associada à seguinte formulação: A variação da renda (∆Y) é determinada pelo Consumo (C), mais o investimento (I), mais os gastos do governo (G), mais as exportações (X), menos as importações (M), ou seja: ∆Y ⇐ ∆(C + I + G + X – M) A fórmula acima, que é geralmente aceita nas ciências econômicas e sociais, estabelece quais as variáveis que determinam a variação da renda, que é a variável fundamental, na nossa hipótese, para se determinar a variação da pobreza. Cabe, então, identificar quais as determinações dos itens C, I, G, X e M para então termos uma primeira aproximação ao nosso problema. É razoável supor, que a variável consumo (C) da classe trabalhadora é determinada pela variação dos salários (w) e dos benefícios sociais (Bs), ou seja, é possível supor, que a renda e a sorte dos membros da classe trabalhadora está fortemente associada aos salários pagos (massa de salários) e aos benefícios sociais existentes que compõe uma espécie de salários indiretos (moradia, educação, saúde, previdência, etc), ou seja, C ⇐ W + Bs, Vamos supor também que os W e os Bs são determinados fortemente pelo nível de emprego (N) e a luta de classes ou lutas sociais travadas pelos trabalhadores e o “povo” em geral para elevar suas conquistas e assim melhorar suas condições de vida. Desse modo, chegamos à fomulação, que merece destaque, de que os salários W e os benefícios sociais Bs são determinados por N e pelo estado das lutas sociais, portanto: C ⇐ N, lutas sociais (Ls), Depois de verificarmos a variável consumo (C), vamos lançar um olhar para a próxima variável da nossa primeira fórmula, o investimento (I) para lançar hipótese sobre suas determinações. Como é de conhecimento geral, na teoria keynesiana o investimento (I), ou o gasto dos capitalistas, é determinado pela relação entre as variações da taxa de juros (i) e da chamada eficiência marginal do capital (EMK), [ou lucro (l`)]. A variável poupança (S) é também de relevância no caso de se saber a ∆I, e no caso dos países da América do Sul, é preciso considerar a poupança externa, ou seja, os investimentos externos, os empréstimos etc, que gerarão remunerações com impactos que abordaremos mais adiante. No momento vamos supor que os juros (i), a poupança (S) e a FBK, ao determinarem o nível de investimento (I) terão um impacto forte na determinação do nível de emprego (N). É preciso 33 considerar também que as variáveis i, S e o l`, dependem da política econômica adotada, que por sua vez depende do tipo de governo, enfim da complexa esfera da política, que aqui esta identificada como lutas sociais (Ls). Neste quesito, é possível chegar às mesmas considerações se migrarmos para o campo do marxismo, onde os lucros, juros (e também a renda da terra) são formas de manifestação do excedente econômico, ou mais-valia, que é determinada pela taxa de exploração da força de trabalho (mais-valia sobre capital variável m/v), que por sua vez é determinado pela luta de classes. Assim, por diversos caminhos possíveis, chegamos à formulação de que a determinação do investimento (I), está fortemente associada luta social (Ls). Desse modo, a idéia elaborada por Karl Marx sobre a relação do excedente econômico com as lutas sociais ajuda a compreender o aspecto da hipótese ora em construção: a ∆Y depende essencialmente da ∆I e este tem forte influência das lutas sociais, na medida em que, as mesmas interferem na determinação do excedente econômico, ou seja: ∆I ⇐ ∆Ls Passemos agora para a variável relativa aos gastos públicos (G). Vamos supor que os gastos públicos estão associados à variação da arrecadação e ao tipo de governo, mais precisamente, às políticas sociais imprimidas pelos governos, que determinará o volume de gastos em educação, saúde, previdência, habitação, etc, ou seja, os benefícios sociais (Bs) existentes a disposição da população. Assim, os gastos sociais (G) tornam-se uma variável fundamental para se aferir a variação da pobreza. As exportações (X), por seu turno, são determinadas, entre outros aspectos, pela política cambial, pela política externa adotada, pela produtividade do trabalho e pela situação do ciclo econômico. E as importações (M) são associadas ao grau de abertura econômica M/PIB, do crescimento econômico, das tarifas alfandegárias, etc. Assim temos que o saldo da balança comercial é de grande importância, pois, termos um fluxo de renda positivo ou negativo que rebaterá necessariamente na variação da pobreza (∆Pb) de um país ou região. Chegamos então a um momento em que podemos separar o que está nas pontas das cadeias de determinação da explanação acima, ou seja, o nível de emprego (N), as lutas sociais (Ls), os gastos sociais ou gastos do governo (G) e a balança comercial (∆BC). Assim, se analisarmos a variação das quatro variáveis, teremos um indicador, no sentido de análise, da variação da pobreza (∆Pb). Então, pode-se formular a hipótese provisória de que a variação da pobreza depende da variação do nível de emprego, das lutas sociais, da variação dos gastos sociais e da variação da balança comercial e chegamos à formulação que sintetiza nossa hipótese preliminar: 34 ∆Pb ⇐ ∆N, ∆Ls, ∆Gs, ∆BC, ou seja, se analisarmos as variações de N, Ls, Gs e BC, teremos um indicativo da variação da pobreza (Pb). Nossa hipótese estaria apresentada e completa se nossa análise fosse recair sobre os “países desenvolvidos”. Segundo a visão clássica de Celso Furtado, é sempre salutar a busca de inovações ou adaptações da macroeconomia para os países não-desenvolvidos. Portanto, é preciso ousar e adequar a fórmula elaborada a partir de Keynes para a realidade da América Latina. Países da América Latina são exportadores líquidos de capitais na forma de remessas de juros (i), de lucros (l`), royalties (r), direitos de assistência técnica (dat), etc. Deste modo, são historicamente, ou estruturalmente, deficitários na conta de serviços. Portanto, é preciso incluir a conta de serviços no cálculo. Desse modo, temos: ∆Y ⇐ ∆[C + I + G + X – M ± l` ± i ± r ± (dat)], Sendo [+ X – M ± l` ± i ± r ± (dat)] o saldo do Balanço em Transações Correntes (BTC), temos finalmente: ∆Y ⇐ ∆[C + I + G + (± BTC)], para países subdesenvolvidos, emergentes ou outra designação equivalente. Assim, chegamos finalmente a nossa hipótese de trabalho de que a variação do nível de emprego (N), das lutas sociais (Ls), dos gastos sociais (Gs) e do saldo do balanço em transações correntes (BTC), determinam a variação da pobreza (Pb). Portanto, ao pesquisar a variação dos mesmos, chegaremos finalmente à determinação dos fatores determinantes da variação, ou elevação, da pobreza no período considerado, ou: ∆Pb ⇔ ∆N, ∆Ls, ∆Gs, ∆BTC. Concluindo, é plausível supor que ao analisar as variáveis nível de emprego, lutas sociais, gastos sociais e resultados do balanço em transações correntes, e, depois confrontá-las com a evolução dos índices de pobreza, poderemos confirmar nossa hipótese sobre os fatores determinantes da evolução da pobreza nos países da América do Sul. 5. Bibliografia: AFFICHARD, J. & FOUCAULT, J.B. de (1992). Justice Sociale et Inégalités. Paris: Éditions Esprit. AFFICHARD, J. & FOUCAULT, J.B. de (1995). Pluralisme et Équité. La Justice Sociale dans les démocraties. Paris: Éditions Esprit. 35 ALBUQUERQUE, Cristina M. P. Processus de Légitimation dês pratiques de service social: exercice d’une “technicité prudentielle” dans la construction quotidienne de légitimités contextualisées. 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DOENÇAS DA POBREZA E SANEAMENTO AMBIENTAL NA MICRORREGIÃO SALINAS/TAIOBEIRAS (MG) Samuel do Carmo LIMA Maria Araci MAGALHÃES Natália Oliveira SANTOS Marina Lelis RIBEIRO Marco Túlio MARTINS Resumo A ausência do saneamento ambiental tende a acarretar a disseminação das doenças que estão associadas ao abastecimento deficiente de água, condições precárias de moradia, falta ou ineficiência de esgotamento sanitário. São diversas as doenças adquiridas pelo ser humano devido às condições ambientais e sócio-econômicas deficitárias, conhecidas como doenças negligenciáveis ou doenças da pobreza. Dentre estas podem-se destacar as doenças de transmissão hídrica e as transmitidas por inseto vetor. O objetivo deste trabalho é analisar o saneamento ambiental dos municípios, condições socioeconômicas das populações, e verificar as ações de saúde pública relativas ao controle da esquistossomose, além de outras verminoses na microrregião Salinas/Taiobeiras - MG, norte de Minas Gerais, composta por 16 municípios. Os dados de exames coprológicos para detecção de Schistossoma mansoni e de outros parasitas, no período de 2000 a 2007, foram obtidos junto à Gerência Regional de 39 Saúde de Montes Claros. Os dados referentes ao saneamento ambiental foram retirados do SIAB (sistema de informação de atenção básica) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) organizados em tabelas, gráficos e mapas, utilizando-se o TABWIN, ferramenta de espacialização de dados, disponível no DATASUS/MS. A precariedade do saneamento ambiental e a falta de higiene constituem risco para a saúde da população. Os municípios mais carentes de saneamento ambiental, redes de abastecimento de água tratada (Curral de Dentro, Ninheira e Montezuma), de esgotamento sanitário (Taiobeiras, Rio Pardo de Minas, Vargem Grande do Rio Pardo e Ninheira) e coleta de lixo (Padre Carvalho, Santa Cruz de Salinas, Ninheira e Novorizonte) são os que possuem maiores incidências de verminoses. Assim, para o estabelecimento de medidas preventivas e de controle, faz-se necessário compreender os fatores sócio-ambientais que as propiciam e as perpetuam, mas principalmente, que os governos municipal, estadual e federal tomem como prioridade a saúde pública, investindo mais recursos na prevenção e no saneamento ambiental. Palavras chave: Saneamento Ambiental, Doenças, Pobreza, Microrregião Salinas/Taiobeiras Abstract: The absence of the environmental sanitation can to cause the dissemination of the diseases that are associates to the deficient water supplying, precarious conditions of housing, lack or inefficient sanitary exhaustion. The diseases acquired for human because of deficit ambient and partner-economic conditions are known as neglected poverty or diseases of poverty. The Neglected diseases are a group of tropical infections which are especially endemic in poor populations. Among them, those wich have hydric transmission or transmited by a vector insect can be highlighted. The purpose of this study is to analyze the environmental sanitation of the cities, socioeconomic conditions of the population and to verify the gestures of public health for the control of schistosomiasis and other micro worm in Salinas / Taiobeiras - MG, north of Minas Gerais, composed of 16 municipalities. The data of tests for detection of coprologics Schistossoma mansoni and other worm, within the period of 2000 to 2007, were obtained from the Regional Health Management of Montes Claros. The data on environmental sanitation were withdrawn from the SIAB (information system of basic care) and from the IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistic) organized in tables, graphs and maps, using the TABWIN, tool for spatial data, available on DATASUS / MS. The precariousness of environmental sanitation and the lack of hygiene consist in a risk to the health of the population. The municipalities of poor environmental sanitation, supply networks of treated water (Curral de Dentro, Ninheira and Montezuma), basic sanitation (Taiobeiras, Rio Pardo de Minas, Vargem Grande and the Rio Pardo Ninheira) and garbage collect (Padre Carvalho, Santa Cruz de Salinas, Ninheira and Novorizonte) are those that have more impact of schistosomiasis worm. Thus, for the establishment of preventive measures and control, it is necessary to understand the socio-environmental factors that provide and perpetuate, but mainly, that the municipal, state and federal governments take as a priority public health, investing more resources in the prevention and environmental sanitation. Key words: environmental sanitation, diseases, Poverty, Salinas/Taiobeiras Microregion 1. INTRODUÇÃO O abastecimento deficiente de água, condições precárias de moradia, falta de esgotamento sanitário podem ser a causa de muitas doenças. Dentre estas, pode-se destacar as doenças de transmissão hídrica e as transmitidas por inseto vetor, conhecidas como doenças negligenciáveis ou doenças da pobreza. Tais doenças caracterizam-se por assolarem a parcela 40 menos favorecida de uma população. São provocadas, geralmente, pela falta ou ineficiência dos serviços básicos de saúde e falta de saneamento ambiental. Conforme o artigo 42 - do código de saúde do Estado de Minas Gerais (1999), saneamento ambiental é o conjunto de ações, serviços e obras que objetivam garantir a salubridade ambiental por meio do abastecimento de água, coleta de lixo, tratamento e disposição adequada dos esgotamentos sanitários, drenagem de águas pluviais, controle de animais vetores, hospedeiros, reservatórios e sinantrópicos, dentre outras medidas. O presente trabalho tem por objetivo identificar às doenças da pobreza, o saneamento ambiental, as condições socioeconômicas das populações, bem como as ações de saúde pública relativas ao controle dessas doenças na microrregião Salinas/Taiobeiras - MG, norte de Minas Gerais. 2 MATERIAL E MÉTODOS Realizou-se um levantamento bibliográfico para obtenção do embasamento teórico do assunto e conhecimento da área de estudo. A pesquisa bibliográfica ajudou a contextualizar o assunto, em seus aspectos gerais e naquilo que orientasse as definições metodológicas para a pesquisa, principalmente em trabalhos já elaborados na área de estudo e cujos conteúdos estivessem diretamente relacionados à pesquisa proposta. Neste sentido, foram consultadas bibliografias variadas, tabelas e mapas elaborados pela da Superintendência de Epidemiologia - MG, DATASUS, dentre outros. Os dados referentes à microrregião Salinas/Taiobeiras - MG foram obtidos junto à Gerência Regional de Saúde de Montes Claros - MG e referem-se aos exames coprológicos, para detecção de Schistossoma mansoni e de outros agentes etiológicos, no período de 2000 a 2007, realizados pelos municípios dessa microrregião sendo disponibilizados em meio digital. Inicialmente, foram convertidos para o Excel, organizados e tabulados para a elaboração de gráficos e mapas, utilizando-se a ferramenta de espacialização de dados TABWIN, de uso gratuito, disponível no site do DATASUS/MS. Os dados referentes ao saneamento ambiental foram retirados do SIAB (sistema de informação de atenção básica) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) organizados em tabelas e analisados. 3 RESULTADOS E DISCUSSÕES 41 3.1 Caracterização da Microrregião e Localização A constituição federal de 1988 normatiza, no artigo 198, o SUS (Sistema Único de Saúde), “[...] as ações de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único” Pereira, (2007). Tendo como norteadores os princípios da universalização, da eqüidade e da integralidade, desenvolve o processo de regionalização da saúde, com base em políticas públicas organizadas para o atendimento nos níveis municipal, microrregional e macrorregional. Conforme o PDR (Plano Diretor de Regionalização), o estado de Minas Gerais utiliza a categoria região vista como o espaço para organização de redes assistenciais de serviços segundo níveis de atenção à saúde, ou seja, com perfis de oferta de serviços diferenciados e distribuídos, demográfica e espacialmente, de acordo com os diferentes níveis de incorporação tecnológica (ambulatorial e hospitalar) níveis municipal, microrregional e macrorregional. Malachias (2005). Neste espaço territorial, encontram-se municípios que são polarizados por outros em função da sua infra-estrutura de atendimento instalada. Segundo Pereira, (2007) [...] podemos identificar uma hierarquização dos serviços de saúde no Norte de Minas, a posição de Montes Claros como Macro Pólo Regional é justificada pela variedade e oferta de serviços de maior complexidade. Montes Claros-MG exerce influência como pólo de atração macrorregional para a microrregião Salinas, tendo o município de Salinas-MG como pólo microrregional. Os pólos microrregionais exercem força de atração na demanda por serviços do nível da atenção secundária, ofertando alguns poucos procedimentos de Alta Complexidade Tecnológica, que necessitam maior proximidade do usuário e ainda oferta vários procedimentos de Média Complexidade, Malachias (2005). A microrregião de Salinas está inserida na mesorregião Norte de Minas, com população em torno de 211.158 habitantes, estimada em 2006 pelo IBGE e encontra-se dividida em dezesseis municípios, possuindo uma área total de 17.837,277 Km2 (cf. figura 1). A microrregião é drenada pelas bacias hidrográficas dos Rios Jequitinhonha e Pardo, as quais estão localizadas nas porções nordeste de Minas Gerais e possui grande quantidade de córregos e ribeirões, na sua maioria de vazão temporária, devido às estiagens. 42 Figura 1: Localização da Microrregião de Saúde Salinas/Taiobeiras – MG A microrregião Salinas-Taiobeiras possui clima tropical e semi-árido, predominante quente por quase todos os meses do ano. Caracteriza-se por um período de seca marcante no inverno, com chuvas mal distribuídas. O verão, por sua vez, é marcado por chuvas torrenciais e espaçadas. A microrregião apresenta solos férteis e riquezas minerais, sua vegetação oscila do cerrado à caatinga e pequenas áreas de florestas. A microrregião de Saúde Salinas/Taiobeiras-MG é composta por 16 municípios: Berizal, Curral de Dentro, Fruta de Leite, Indaiabira, Montezuma, Ninheira, Novorizonte, Padre Carvalho, Rio Pardo de Minas, Rubelita, Salinas, Santa Cruz de Salinas, Santo Antônio do Retiro, São João do Paraíso, Taiobeiras e Vargem Grande do Rio Pardo. O município de Salinas exerce polarização sobre outros municípios da microrregião por sua capacidade instalada e potencial de equipamentos urbanos e de fixação de recursos humanos especializados. Na área da saúde, apresenta capacidade histórica, atual e potencial de absorção de fluxos populacionais gerados pela demanda por serviços médico-assistenciais. Há uma carência de hospitais na região. Somente 4 municípios possuem leitos hospitalares para internação: Taiobeiras (82), Salinas (81) e São João do Paraíso (58) e Rio Pardo de Minas (42 leitos). Em cinco municípios há aparelhos de raio x: Montezuma, Rio Pardo de Minas, Salinas, São João do Paraíso e Taiobeiras. Há aparelho de ultra-som em três 43 municípios: Salinas, São João do Paraíso e Taiobeiras. Em 6 municípios há aparelhos de eletro-cardiograma e eletro-encefalograma: Ninheira, Rio Pardo de Minas, Salinas, São João do Paraíso e Taiobeiras e Vargem Grande do Rio Pardo (cf. Tabela 1). Tabela 1 Equipamentos e Serviços de Saúde nos municípios da microrregião de Salinas/Taiobeiras, 2005 Número de Estabelecimento Ultras Morb. Raio Estabelecime s com Leitos Eletro H. X ntos Internações som 2007 Municípios Públic Privad Públic Privad Público Privado Total Total Total Total o o o o Berizal 3 0 0 0 0 0 0 0 0 8 Curral de Dentro 3 0 0 0 0 0 0 0 0 12 Fruta de Leite 3 0 0 0 0 0 0 0 0 11 Indaiabira 6 0 0 0 0 0 0 0 0 12 Montezuma 3 0 0 0 0 0 0 1 0 6 Ninheira 4 0 0 0 0 0 0 0 1 11 Novorizonte 5 0 0 0 0 0 0 0 0 10 Padre Carvalho 2 0 0 0 0 0 0 0 0 13 Rio Pardo de Minas 12 1 0 1 0 42 0 1 2 63 Rubelita 8 0 0 0 0 0 0 0 1 12 Salinas 14 6 1 1 53 28 1 3 3 100 Santa Cruz de 1 1 0 0 0 0 0 0 0 8 Salinas Santo Antônio do 5 0 0 0 0 0 0 0 0 10 Retiro São João do Paraíso 7 1 1 0 0 58 1 2 3 40 Taiobeiras 15 2 1 0 82 0 1 2 3 64 Vargem Grande do 3 0 0 0 0 0 0 0 2 6 Rio Pardo Fonte:IBGE,Assistência Médica Sanitária, 2005 Malha Municipal digital do Brasil: Situação 2005, Rio de Janeiro, 2006 3.2 As doenças da Pobreza na Microrregião de Salinas Existe uma grande diversidade de doenças infecciosas, causadas por parasitas, agentes etiológicos vivos, adquiridos em algum momento pelos hospedeiros a partir do meio ambiente externo. Sabroza, et.al. (1989). As doenças infecciosas são marcadores de processos ecológicos que participam ao menos duas populações, a do hospedeiro e a do parasita (Anderson & May, 1982 apud Sabroza, et.al. 1989). 44 Com relação às doenças infecciosas, percebe-se que cada grupo social adquire a doença e a elimina de acordo com sua condição fisiológica, comportamental e financeira. Dessa forma, o risco de o indivíduo adquirir a doença e falecer, depende, na maioria das vezes, da posição econômica que o mesmo ocupa na sociedade, ou seja, o patógeno, ao encontrar um organismo debilitado por carências nutricionais, encontra maiores possibilidades de proliferação do que num indivíduo saudável. As possibilidades de tratamento para um indivíduo de maior poder aquisitivo são maiores, por poder pagar planos de saúde, tratamentos particulares, especializados e sem delongas, facilitam o controle da doença. Nesse sentido, explica-se o fato de as doenças infecciosas serem caracterizadas como doenças da pobreza. Pode-se, ainda, reconhecer que para essas populações mais pobres, os riscos ambientais são maiores, pela insalubridade e falta de saneamento ambiental nos locais de moradia. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) foi criado originalmente para medir o nível de desenvolvimento humano dos países a partir de indicadores de educação (alfabetização e taxa de matrícula), longevidade (esperança de vida ao nascer) e renda (PIB per capita). O índice varia de 0 (nenhum desenvolvimento humano) a 1 (desenvolvimento humano total) (PNUD,2003). Os municípios com índices entre 0,500 e 0,799 são considerados de médio desenvolvimento humano; na microrregião de estudo todos os municípios estão dentro desta categoria. Somente Salinas e Taiobeiras apresentam um IDH superior a média da microrregião que é de 0,646, conforme figura 2 (PNUD 2000). O PIB expressa o valor monetário global dos bens e serviços finais produzidos em determinado território e em um período de tempo específico. O PIB per capita da microrregião é R$2.509,35 (IBGE/2003), muito baixo, comparável ao dos estados mais pobres do nordeste brasileiro (cf. Figura 3). 45 Figura 2 - Índice de Desenvolvimento Humano de Minas Gerais, 2000 (PNUD 2000) Alta renda ██ + R$ 18.000 ██ + R$ 16.000 ██ + R$ 14.000 Média renda ██ + R$ 12.000 ██ + R$ 10.000 ██ + R$ 8.000 Baixa renda ██ + R$ 6.000 ██ + R$ 4.000 ██ + R$ 2.000 46 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_estados_do_Brasil_por_PIB_per_capita Figura 3 - PIB per capita dos Estados Brasileiros Ainda assim, esta referência econômica é muito abstrata, porque desconsidera a dimensão da distribuição da renda gerada, não captando as desigualdades sociais do espaço territorial. A pobreza na região pode ser muito maior que a expressa por esse índice, que representa melhor as tendências econômicas do que o nível de bem-estar social da população. As políticas públicas para a saúde são criadas com vistas a propiciar maior acesso da população ao atendimento da saúde, procurando minimizar as desigualdades existentes. Para tanto, são criadas as normatizações nos âmbitos federal, estadual e municipal. Atendendo as normatizações da secretaria de saúde do Estado de Minas Gerais no que concerne ao plano de controle da esquistossomose e outras verminoses, foram realizados exames coprológicos na microrregião de saúde Salinas. O método utilizado para avaliação de Schistossoma mansoni, dentre outros parasitas, foi Kato-Katz, que é um método qualiquantitativo, muito usado para o diagnóstico de helmintos. Pode-se identificar em grande parte da população examinada na microrregião, as verminoses causadas por parasitas como a ascaris lumbricóides, ancylostoma, schistossoma mansoni, taenia saginata, taenia solium, denotando, dessa forma, os baixos níveis de qualidade de vida, bem como serviços de saneamento ambiental, pois estes proliferam em ambientes de baixos índices higiênicos. Popularmente conhecida como lombriga, a ascaridíase é uma parasitose causada pelo verme nemátode ascaris lumbricóides. A contaminação por esse parasita ocorre através do consumo de alimentos e água que estejam contaminados por seus ovos. A pobreza aumenta a suscetibilidade às doenças. A falta de água potável, nesse caso específico, propicia a disseminação dessa verminose. Sendo assim, cabem intervenções públicas destinadas à redução da miséria e expansão da cidadania. Em todos os municípios que realizaram os exames coprológicos na população, constatou-se a infecção pelo parasita da ascaridíase, com exceção de Rubelita, que somente realizou exames em 2007, porém sem infecção. De 2001 a 2004, os municípios que apareceram com maior prevalência foram Berizal, Ninheira, Novorizonte, São João do Paraíso e Vargem Grande do Rio Pardo, com mais de 2% de prevalência de ascaridíase. Ressalta-se o Município de Berizal em 2002 que teve prevalência de 12,5%. Desses municípios, somente Ninheira e Vargem Grande do Rio Pardo permaneceram nesta condição no período de 2005 a 2007, sendo que este último teve uma prevalência de 29,3%, em 2006. 47 Os municípios de Salinas e Montezuma não realizaram os exames cropológicos, senão em 2007 e apresentaram alta prevalência para ascaridíase, 5,6% e 8,7% respectivamente. Tabela 2 Prevalência de casos de ascaridíase na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004 Municípios 2001 P P.E. Berizal 4.040 Indaiabira 7.505 Montezuma 6.577 Ninheira 9.435 Novorizonte 4.678 Rio Pardo de Minas 27.233 Rubelita 10.209 Salinas 36.915 Santa Cruz de Salinas 4.843 Santo Antônio do Retiro 6.736 São João do Paraíso 21.082 Taiobeiras 27.815 5877 Vargem Grande do Rio 4.540 916 Pardo % 0,3 0,9 2002 P P.E. 4.087 8 7.558 1100 6.583 9.477 803 4.724 27.534 1144 10.241 37.073 4.878 36 6.803 21.196 2029 27.534 5444 4.596 1115 % 12,5 0,5 9,7 1,2 0 4,6 0,5 2,3 2003 P P.E. 4.144 1782 7.629 2117 6.606 9.534 642 4.776 47 27.674 1597 10.256 37.234 4.909 2040 6.876 21.278 2544 27.674 1102 4.666 1154 % 1,0 0,8 2,0 8,5 2,0 0,4 1,4 0,5 1,3 P 4.196 7.688 6.609 9.588 4.828 27.812 10.281 37.395 4.945 6.944 21.362 27.812 4.730 2004 P.E. 1090 3855 1989 92 2169 1306 2544 1445 608 Tabela 3 Prevalência de casos de Ascaridíase na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007 Municípios 2005 P P.E. Berizal 4.321 1695 Indaiabira 7.831 2292 Montezuma 6,620 Ninheira 9.718 2331 Novorizonte 4.949 Rio Pardo de Minas 28.124 7392 Rubelita 10.318 Salinas 37.765 Santa Cruz de Salinas 5.025 Santo Antônio do Retiro 7.097 São João do Paraíso 21.550 4158 Taiobeiras 28.124 Vargem Grande do Rio 4.882 1002 Pardo % 0,1 1,3 3,0 2,8 0,3 1,2 2006 P P.E. 4.388 1022 7.906 3075 6.637 9.781 2545 5.007 2873 28.287 5313 10.341 37.956 5.062 1347 7.180 145 21.652 2628 28.287 3309 4.958 1740 % 1,1 1,0 2,4 0,1 1,1 1,2 1,9 2,0 0,0 29,3 2007 P P.E. 4.451 1700 7.979 3020 6.651 2453 9.845 1316 5.069 609 28.445 4525 10.362 585 38.141 1846 5.098 1316 7.259 1402 21.751 1321 28.445 5580 5.032 1603 % 0,7 0,9 8,7 7,1 0,0 1,0 0,0 5,6 0,9 0,2 1,5 0,3 1,0 48 % 0,1 1,0 0,2 1,0 0,7 0,0 3,2 0,1 5,2 A ancilostomose, também conhecida por amarelão, é causada por vermes Nematódeos de espécies: Necator americanus e Ancylostoma duodenale. As formas adultas desses parasitas instalam-se no aparelho digestivo humano, e fixam-se na porção que compreende o intestino delgado, nutrindo-se de sangue do hospedeiro e causando um tipo de anemia, (FONSECA 2008) conhecida por Anemia ancilostomótica. (MASPES &TAMIGAKI 1981). Essa doença é transmitida através da penetração de larvas infectantes na pele de um indivíduo em contato com ambientes suscetíveis, principalmente o solo, contendo fezes contaminadas por ovos que eclodem e desenvolvem as larvas. A ancilostomíase também é comum na microrregião Salinas e suscita o debate sobre as interfaces entre condições de vida, pobreza e saúde. Em todos os municípios que realizaram os exames coprológicos na população e constatou-se infecção pelo parasita da ancilostomose, com exceção de Santo Antônio do Retiro, que realizou exames em 2006 e 2007 e Rubelita, que somente realizou em 2007. De 2001 a 2004, os municípios com maior prevalência foram Berizal, Indaiabira, Ninheira, Novorizonte, Rio Pardo de Minas, São João do Paraíso, Taiobeiras, Vargem Grande do Rio Pardo, com mais de 2% de prevalência de ancilostomose. Desses, somente Berizal, Novorizonte, Taiobeiras, Vargem Grande do Rio Pardo tiveram queda na prevalência de ancilostomose no período de 2005 a 2007. O município de Salinas, que realizou exames somente em 2007, teve alta prevalência de ancilostomose, 10,2%. Destaca-se o município de Ninheira que baixou seu índice significativamente de 15,8 em 2005 para 0,2% em 2007. Tabela 4 Prevalência de casos de Ancilostomose na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004 Municípios Berizal Indaiabira Montezuma Ninheira Novorizonte Rio Pardo de Minas Rubelita Salinas 2001 2002 2003 P P.E. % P P.E. % P P.E. 4.040 - 4.087 8 12,5 4.144 1782 7.505 - 7.558 1100 1,2 7.629 2117 6.577 - 6.583 - 6.606 9.435 - 9.477 803 16,6 9.534 642 4.678 - 4.724 - 4.776 47 27.233 - 27.534 1144 8,1 27.674 1597 10.209 - 10.241 - 10.256 36.915 - 37.073 - 37.234 - % 1,7 0,8 2,8 2,1 4,3 - 2004 P P.E. 4.196 1090 7.688 3855 6.609 9.588 1989 4.828 92 27.812 2169 10.281 37.395 49 % 0,8 2,1 0,0 0,0 5,0 - Rio Pardo de Minas Santo Antônio do Retiro São João do Paraíso Taiobeiras Vargem Grande do Rio Pardo 4.843 6.736 21.082 27.815 5877 3,4 4.540 916 7,5 4.878 36 0,0 4.909 6.803 - 6.876 21.196 2029 14,2 21.278 27.534 5444 2,8 27.674 4.596 1115 4,8 4.666 2040 2544 1102 1154 0,3 13,9 9,7 2,9 4.945 6.944 21.362 27.812 4.730 1306 2544 1445 608 Tabela 5 Prevalência de casos de Ancilostomose na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007 Municípios 2005 P P.E. Berizal 4.321 1695 Indaiabira 7.831 2292 Montezuma 6,620 Ninheira 9.718 2331 Novorizonte 4.949 Rio Pardo de Minas 28.124 7392 Rubelita 10.318 Salinas 37.765 Santa Cruz de Salinas 5.025 Santo Antônio do Retiro 7.097 São João do Paraíso 21.550 4158 Taiobeiras 28.124 Vargem Grande do Rio 4.882 1002 Pardo % 0,3 4,6 15,8 5,2 1,2 0,9 2006 P P.E. 4.388 1022 7.906 3075 6.637 9.781 2545 5.007 2873 28.287 5313 10.341 37.956 5.062 1347 7.180 145 21.652 2628 28.287 3309 4.958 1740 % 1,3 2,5 13,5 0,06 7,3 0,0 0,0 4,9 0,0 0,6 2007 P P.E. 4.451 1700 7.979 3020 6.651 2453 9.845 1316 5.069 609 28.445 4525 10.362 585 38.141 1846 5.098 1316 7.259 1402 21.751 1321 28.445 5580 5.032 1603 % 2,0 1,5 5,7 0,2 0,0 3,0 0,0 10,2 0,0 0,0 3,3 0,1 0,0 A esquistossomose mansônica é uma doença transmissível causada pelo parasita (Schistossoma mansoni) e é provocada através do contato entre o molusco infectado pelo parasita e o homem. A sua expansão é facilitada por movimentos migratórios, obras de irrigação, barragens, condições de vida precária da população, hábitos higiênicos inadequados, acesso de um modo geral às águas contaminadas. Os estudos relativos aos dados de esquistossomose na microrregião de Salinas-MG evidenciam tratar-se de área endêmica, contudo, a situação epidemiológica da esquistossomose na microrregião tem melhorado nos últimos anos, com índices de prevalência cada vez menores. Registra-se o fato de alguns municípios estarem deixando de cumprir as metas pactuadas no Programa de Controle da Esquistossomose, não realizando os inquéritos coprológicos nem as medidas profiláticas, ou realizando-as em população menor que seria necessária. 50 20,0 6,3 5,7 6,1 Em todos os municípios que realizaram os exames coprológicos na população constatou-se infecção pelo parasita Schistossoma mansoni, o que confirma ser essa uma região endêmica de esquistossomose. De 2001 a 2004, foram realizados exames em todos os municípios, com exceção de Rubelita, Salinas e Santo Antônio do Retiro. Todos apresentaram índices acima de 2%, exceto Novorizonte e Rio Pardo de Minas que em 2004 apresentaram 0,0 e 0,9%, respectivamente. Somente Rio Pardo de Minas, Taiobeiras e Vargem Grande do Rio Pardo tiveram queda na prevalência de esquistossomose no período de 2005 a 2007. Os municípios de Salinas e Montezuma realizaram os exames coprológicos apenas em 2007, o primeiro com índice de 6,3% (alto) e o segundo com índice de 1,1% (baixo). Tabela 6 Prevalência de casos de Esquistossomose na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004 Municípios 2001 2002 2003 2004 P P.E. % P P.E. % P P.E. % P P.E. Berizal 4.040 - 4.087 8 37,2 4.144 1782 8,4 4.196 1090 Indaiabira 7.505 - 7.558 1100 5,7 7.629 2117 4,6 7.688 3855 Montezuma 6.577 - 6.583 - 6.606 - 6.609 Ninheira 9.435 - 9.477 803 11,7 9.534 642 5,7 9.588 1989 Novorizonte 4.678 - 4.724 - 4.776 47 6,3 4.828 92 Rio Pardo de Minas 27.233 - 27.534 1144 5,0 27.674 1597 3,7 27.812 2169 Rubelita 10.209 - 10.241 - 10.256 - 10.281 Salinas 36.915 - 37.073 - 37.234 - 37.395 Santa Cruz de Salinas 4.843 - 4.878 36 5,6 4.909 2040 7,5 4.945 1306 Santo Antônio do 6.736 - 6.803 - 6.876 - 6.944 Retiro São João do Paraíso 21.082 - 21.196 2029 17,8 21.278 2544 9,4 21.362 2544 Taiobeiras 27.815 5877 2,1 27.534 5444 2,3 27.674 1102 2,0 27.812 1445 Vargem Grande do 4.540 916 6,6 4.596 1115 4,8 4.666 1154 2,4 4.730 608 Rio Pardo % 4,2 5,0 16,4 0,0 0,9 9,2 8,2 4,0 1,6 Tabela 7 Prevalência de casos de Esquistossomose na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007 Municípios Berizal Indaiabira Montezuma 2005 2006 2007 P P.E. % P P.E. % P P.E. % 4.321 1695 3,6 4.388 1022 7,7 4.451 1700 5,6 7.831 2292 4,7 7.906 3075 2,9 7.979 3020 2,9 6,620 - 6.637 - 6.651 2453 1,1 51 Ninheira Novorizonte Rio Pardo de Minas Rubelita Salinas Santa Cruz de Salinas Santo Antônio do Retiro São João do Paraíso Taiobeiras Vargem Grande do Rio Pardo 9.718 2331 8,7 9.781 2545 7,9 4.949 - 5.007 2873 1,0 28.124 7392 0,6 28.287 5313 1,7 10.318 - 10.341 37.765 - 37.956 5.025 - 5.062 1347 6,0 7.097 - 7.180 145 10,3 9.845 5.069 28.445 10.362 38.141 5.098 7.259 1316 609 4525 585 1846 1316 1402 6,3 0,5 0,3 1,0 6,5 5,7 13,0 21.550 4158 4,4 21.652 2628 3,5 21.751 1321 5,7 28.124 - 28.287 3309 1,2 28.445 5580 1,1 4.882 1002 1,5 4.958 1740 1,0 5.032 1603 1,9 A teníase é adquirida por Taenia saginata, ingerindo carne de bovino crua ou mal cozida, infectada pelo Cysticercus bovis. A teníase por Taenia solium é adquirida pela ingestão de carne de suíno crua ou mal cozida, infectada pelo Cysticercus cellulosae. A cisticercose humana é adquirida pela ingestão acidental de ovos viáveis da Taenia solium (HAIDA et. al. 2007) Na microrregião Salinas é comum a criação de porcos caipiras e existem rebanhos contaminados, tornando-se relativamente fácil encontrar pessoas que adquiriram essa verminose. As complicações orgânicas advindas dessa doença causam transtornos neurológicos irreparáveis como, por exemplo, a epilepsia, devido ao limitado acesso aos cuidados de saúde, informação, saneamento e alimentação adequada. Tabela 8 Prevalência de casos de Teníase na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2001-2004 Municípios 2001 2002 2003 2004 P P.E. % P P.E. % P P.E. % P P.E. Berizal 4.040 - 4.087 8 0,0 4.144 1782 0,8 4.196 1090 Indaiabira 7.505 - 7.558 1100 0,2 7.629 2117 0,4 7.688 3855 Montezuma 6.577 - 6.583 - 6.606 - 6.609 Ninheira 9.435 - 9.477 803 1,2 9.534 642 0,0 9.588 1989 Novorizonte 4.678 - 4.724 - 4.776 47 6,3 4.828 92 Rio Pardo de Minas 27.233 - 27.534 1144 0,2 27.674 1597 0,1 27.812 20169 Rubelita 10.209 - 10.241 - 10.256 - 10.281 Salinas 36.915 - 37.073 - 37.234 - 37.395 Santa Cruz de Salinas 4.843 - 4.878 36 0,0 4.909 2040 0,0 4.945 1306 Santo Antônio do 6.736 - 6.803 - 6.876 - 6.944 Retiro São João do Paraíso 21.082 - 21.196 2029 0,2 21.278 2544 0,2 21.362 2544 Taiobeiras 27.815 5877 0,1 27.534 5444 0,1 27.674 1102 0,2 27.812 1445 % 0,2 0,2 0,05 0,0 0,4 1,2 - 52 0,3 0,1 Vargem Grande do Rio Pardo 4.540 916 0,6 4.596 1115 0,8 4.666 1154 0,3 4.730 608 0,3 Tabela 9 Prevalência de casos de Teníase na população da microrregião de Salinas/Taiobeiras (MG), 2005-2007 Municípios 2005 P P.E. Berizal 4.321 1695 Indaiabira 7.831 2292 Montezuma 6,620 Ninheira 9.718 2331 Novorizonte 4.949 Rio Pardo de Minas 28.124 7392 Rubelita 10.318 Salinas 37.765 Santa Cruz de Salinas 5.025 Santo Antônio do 7.097 Retiro São João do Paraíso 21.550 4158 Taiobeiras 28.124 Vargem Grande do 4.882 1002 Rio Pardo % 0,5 0,2 0,2 0,8 - 2006 P P.E. 4.388 1022 7.906 3075 6.637 9.781 2545 5.007 2873 28.287 5313 10.341 37.956 5.062 1347 7.180 145 % 0,9 0,3 0,2 0,0 0,9 0,0 0,9 2007 P P.E. 4.451 1700 7.979 3020 6.651 2453 9.845 1316 5.069 609 28.445 4525 10.362 585 38.141 1846 5.098 1316 7.259 1402 % 0,6 0,2 2,8 0,6 0,0 0,5 0,0 0,1 0,1 0,2 0,7 21.652 2628 2,6 21.751 1321 1,1 - 28.287 3309 0,0 28.445 5580 0,03 0,6 4.958 1740 0,0 5.032 1603 0,1 No período de 2001 a 2004, não foram realizados exames apenas nos municípios de Montezuma, Salinas, e Santo Antônio do Retiro. Neste período, somente Novorizonte apresentou alto índice de teníase, acima de 2% em 2003. No período de 2005 a 2007, somente dois municípios apresentaram prevalência de teníase acima de 2,0%. São João do Paraíso, com 2,6% em 2006 e Montezuma com 2,8, em 2007. 1.3 Saneamento Ambiental na Microrregião de SalinasTaiobeiras A economia clássica deu ênfase ao papel da acumulação de capital no desenvolvimento econômico e pouca atenção aos aspectos humanos e sociais. Uma grande proporção da população que vive em regiões mais pobres ou em áreas pobres de regiões mais ricas está mais suscetível a doenças e a morte prematura. A concepção de que as doenças podem ser um entrave ao crescimento econômico, não leva em consideração que a pobreza é também o resultado de um desenvolvimento desigual (PRATA 1994) 53 Com o inicio da produção industrial, o remanejamento populacional trouxe boa parte da população do campo para a cidade, impulsionando assim o processo da urbanização, que por sua vez demanda criação de infra-estrutura adequada que suporte a nova realidade. Entretanto, a infra-estrutura das cidades já não comporta a quantidade de pessoas, e seus lixos gerados pelo consumo inconsciente de bens, que na maioria das situações, nem sempre são necessários. Com isso, o risco de aquisição de doenças infecciosas e parasitárias é ainda maior, pela disseminação e proliferação de agentes etiológicos, causadas pela má manutenção dos lixos dos esgotos e do abastecimento de água. Essas doenças atingem, geralmente, a parcela mais pobre da sociedade que vive nas periferias das cidades, na maioria das vezes negligenciadas pelas políticas públicas, tanto na questão estrutural de saneamento ambiental, quanto na questão do acesso à saúde e à educação de qualidade. Para o estabelecimento de medidas preventivas e de controle dessas doenças, que atingem os mais pobres, faz-se necessário compreender a sua geografia, os fatores sócioambientais que as propiciam e as perpetuam. Também, é necessário que os governos municipal, estadual e federal tomem como prioridade a saúde pública, investindo mais recursos na prevenção e no saneamento ambiental. A precariedade do saneamento ambiental e a falta de higiene constituem-se risco para a saúde da população. Na microrregião de Salinas/Taiobeiras, os municípios são carentes de saneamento ambiental. Em 2000, os mais carentes de redes de abastecimento de água tratada eram Curral de Dentro, Ninheira e Montezuma. Os mais carentes de redes de esgoto sanitário eram Taiobeiras, Rio Pardo de Minas, Vargem Grande do Rio Pardo e Ninheira; e os mais carentes de coleta de lixo eram Padre Carvalho, Santa Cruz de Salinas, Ninheira e Novorizonte. Em termos de abastecimento de água, dois municípios apresentaram índices menores que 30%; sete municípios encontram-se entre 31 e 60%. Os melhores indicadores de abastecimento de água, com índices superiores a 60%, eram os municípios de Berizal, Novorizonte, Padre carvalho, Salinas, Taiobeiras e Vargem Grande do Rio Pardo (cf. Tabela 10). Nove municípios apresentavam coleta de lixo para menos de 30% de sua população; seis municípios coletavam para 31 a 60% da população e somente Taiobeiras coletava o lixo de mais de 60% da população. No que tange à rede de esgoto instalada, quatro municípios não disponibilizaram os índices; os demais apresentaram índices inferiores a 16,5% e somente Salinas possuía rede de esgoto instalada acima de 40% (cf. Tabela 10). 54 Nota-se, por esses dados, a precariedade de sistemas de saneamento ambiental e de políticas públicas para a região. Isto também pode ser visto pelo IDH dos municípios em 2000. Sete municípios possuíam IDH abaixo de 6, nove municípios tinham índices entre 6 e 7 e nenhum município atingia índice maior que 7 (cf. Tabela 10). Tabela 10 Estruturas de saneamento ambiental e IDH dos municípios da microrregião de Salinas/Taiobeiras, em 2000 Coleta de Rede de água Rede de esgoto Municípios Lixo IDH (%) (%) (%) Berizal 78,7 41,8 16,4 0,599 Curral de Dentro 28,3 42,6 0,597 Fruta de Leite 56,1 22,7 0,586 Indaiabira 48 19,7 12,9 0,571 Montezuma 31 27 18 0,589 Ninheira 29,1 12,9 0,6 0,604 Novorizonte 64,2 14,7 0,648 Padre Carvalho 70,6 4,8 0,618 Rio Pardo de Minas 41,5 35,2 0,2 0,633 Rubelita 40,8 27,3 5,9 0,660 Salinas 73,7 57,0 43,3 0,699 Santa Cruz de Salinas 43,1 12,1 4,7 0,599 Santo Antônio do Retiro 45,3 19,6 16,4 0,601 São João do Paraíso 50,3 38,3 0,8 0,644 Taiobeiras 76,0 70,7 0,1 0,699 Vargem Grande do Rio 63,7 30,1 0,4 0,598 Pardo Fonte: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/2000 Em 2007, com relação ao abastecimento de água tratada, apenas cinco municípios realizavam atendimento de mais de 70% de suas populações: Padre Carvalho (97,1%), Taiobeiras (82,9%), Berizal (81,0%), Salinas (77,0%), Rubelita (74,7%). Cinco municípios realizavam atendimento com água tratada de 50 a 70% de suas populações: São João do Paraíso (69,5%), Vargem Grande do Rio Pardo (61,7%), Santo Antônio do Retiro (61,5%), Novorizonte (55,6%) e Montezuma (52,6%); enquanto seis municípios realizavam atendimento de menos de 50% de suas populações: Curral de Dentro, Fruta de Leite, Indaiabira, Ninheira, Rio Pardo de Minas, Rio Pardo de Minas e Santa Cruz de Salinas (cf. Tabela 11). Com relação à coleta de lixo, somente dois municípios atingiram mais de 70% de atendimento à população: Taiobeiras (83,6%) e Berizal (74,6%). . Cinco municípios 55 atendiam entre 50 e 70% de suas populações: São João do Paraíso (64,8%), Salinas (63,0%), Rubelita (61,1%), Curral de Dentro (58,8%) e Padre Carvalho (56,6%). Nove municípios continuavam a ter menos que 50% de suas populações atendidas com coleta de lixo: Fruta de Leite, Indaiabira, Montezuma, Ninheira, Novorizonte, Rio Pardo de Minas, Santa Cruz de Salinas, Santo Antônio do Retiro, Vargem Grande do Rio Pardo (cf. Tabela 11). Tabela 11 Estruturas de saneamento ambiental e IDH dos municípios da microrregião de Salinas/Taiobeiras, em 2007 Rede de Coleta de Rede de Municípios água Lixo esgoto IDH (%) (%) (%) Berizal 81,0 74,6 21,0 0,599 Curral de Dentro 21,8 58,8 7,3 0,597 Fruta de Leite 41,9 25,0 0,4 0,586 Indaiabira 39,3 29,8 16,3 0,571 Montezuma 52,6 36,2 26,9 0,589 Ninheira 48,0 21,1 3,8 0,604 Novorizonte 55,6 21,1 1,4 0,648 Padre Carvalho 97,1 56,6 0,9 Rio Pardo de Minas 37,5 36,9 0,03 0,633 Rubelita 74,7 61,1 53,9 0,660 Salinas 77,0 63,0 57,0 0,699 Santa Cruz de Salinas 47,8 29,7 18,5 0,599 Santo Antônio do Retiro 61,5 22,0 25,0 0,601 São João do Paraíso 69,5 64,8 0,9 0,644 Taiobeiras 82,9 83,6 0,0 0,699 Vargem Grande do Rio 61,7 44,7 0,5 0,598 Pardo Fonte: Ministério da Saúde - Sistema de Informação de Atenção Básica - SIAB http://www.datasus.gov.br/siab/siab.htm, acesso em 01/08/2008 Parece que rede coletora de esgotos não é prioridade nesses municípios. Talvez por ser uma das infra-estruturas de saneamento ambiental mais caras, somente dois municípios possuíam mais que 50% de suas populações atendidas com rede de esgotos: Salinas (57,0%) e Rubelita (53,9%). Dois municípios atendiam em torno de 25%: Montezuma (26,9%), Santo Antônio do Retiro (25,0%). Berizal atendia a 21%, Curral de Dentro atende a 7,3% e os demais menos de 5%. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 56 Se entendermos que saúde não é apenas a ausência da doença, mas qualidade de vida em todos os aspectos, podemos ter certeza de que em saúde pública isto se relaciona diretamente às políticas públicas, o que realmente falta nos municípios da microrregião de Salinas/Taiobeiras, no Norte de Minas Gerais. A transição epidemiológica ainda não chegou ao Norte de Minas. Continua-se a morrer de doenças infecciosas e parasitárias. A condição de pobreza da maioria da população, aliada à grande carência de equipamentos de atendimento à saúde e a falta de saneamento ambiental estabelecem as condições que determinam uma grande prevalência de doenças infecciosas e parasitárias, também chamadas doenças da pobreza. A população mais pobre da microrregião de Salinas/Taiobeiras adoece e morre desassistida, por falta de sistemas de atenção à saúde mais eficientes e por falta de saneamento ambiental. Em todos os 16 municípios constatou-se infecção por ascaridíase, ancilostomose, teníase e esquistossomose na população, o que confirma ser essa uma região endêmica para essas verminoses. Certamente, para atenuar esta situação, será preciso mais do que investimentos nos sistemas de atenção à saúde, que são muito precários na região; ainda, mais do que implantação de sistemas de saneamento ambiental, será preciso dar dignidade humana a essas populações, elevando o seu nível de vida, por uma melhor distribuição de renda, com maior acesso à educação. Tudo isso se espera de governos comprometidos com programas sociais, mas também de uma sociedade mobilizada, lutando por justiça social. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, R. M. & MAY, R. M. E. Population Biology of infectious disease. New York Springer – Verlag. 1982. BARUZZI, R.G. Geografia médica das helmintíases. In: LACAZ, et al. Introdução à geografia médica do Brasil. São Paulo: EDUSP, p. 305-349, 1972, 568p. 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A; PINHEIRO, M. S. F; FRANÇA, M. N, Guia para Normalização de Trabalhos Técnicos Científicos: projetos de pesquisa, trabalhos acadêmicos, dissertações e teses. 5ª Ed. rev. e ampl. Uberlândia: UFU, 2006. Agricultores: lavouras do saber, lavouras da vida ou um processo de produção da superação da pobreza via produção do saber apropriado. 8 Rosana Vieira Ramos Professora do Departamento de Educação da UFLA 8 Este trabalho é parte da pesquisa para efeito de doutoramento realizado no Depto de Administração Economia/UFLA,/MG. 59 Introdução: Esse trabalho apresenta uma (possível) análise da experiência de produção e apropriação do saber de senso comum e do conhecimento científico vivida por agricultores no município de Poço Fundo/MG. O trabalho de campo decorreu de uma estreita convivência com os agricultores em sua residência, lavouras, reuniões e assembléias da Associação dos Pequenos Produtores de Poço Fundo e da Cooperativa de Agricultores Familiares de Poço Fundo e região. Trata-se de uma abordagem de pesquisa qualitativa de caráter etnográfica considerando-se os estudos de Malinowski (1978), Abarello et al (1997), Lüdke e Marli (1986), Fazenda (1989); Geertz(2001) entre outros. A pesquisa buscou revelar a dinâmica central e os temas geradores do saber apropriado por esses agricultores. O terreno da construção teórico-prática: O saber dos agricultores em foco contém o saber de experiência dos pais e antepassados e, também, parte de experiências produzidas pelo conhecimento científico. Partimos da proposição de Freire (1992) que pondera o seguinte: “Saber só de experiências feito’, como diz Camões, é exatamente o saber de senso comum. Discordo dos pensadores que menosprezam o senso comum, como se o mundo tivesse partido da rigorosidade do conhecimento científico”i. Com Santos (2001, 2002, 2003) consideramos a separação existente entre o saber de senso comum e o conhecimento científico; uma separação imposta pela a ciência. Esse autor pergunta: como se pode romper com esta separação? Em seus estudos, vislumbra uma possível união entre saber de senso comum e conhecimento científico o que dá sustentação às elaborações constantes nesse trabalho. Assim, nosso objetivo geral é analisar o processo de produção do saber apropriado por agricultores nas relações sociais e culturais que se vinculam ao saber de senso comum e o conhecimento científico. Especificamente, buscamos: (1) analisar o processo de produção e organização do senso comum na cultura camponesa, identificando as práticas apropriadas; (2) analisar as relações de produção do saber dos 60 agricultores em suas experimentações, avaliações e apropriação do conhecimento científico; (3) estabelecer relações entre o saber apropriado e a de superação da pobreza. Os agricultores fizeram, e permanecem fazendo, dois importantes aprendizados: um é a experimentação, avaliação – adoção ou negação – criação, recriação ou adaptação do saber camponês e do conhecimento científico; outro, ocorreu quando romperam com uma possibilidade (um destino?) de pobreza e exclusão e transformaram suas condições de vida e trabalho em vida digna e trabalho digno. Encontram-se inseridos no mercado internacional como exportadores de café orgânicoii e café convencional sem agrotóxico. São conhecidos e visitados por outros agricultores, por pesquisadores, visitantes nacionais e estrangeiros. Originalmente os frutos do saber camponês, que não foi apagado, voltam como lições que podem ser afirmadas ou negadas. Mas não deixam de ser fundamentos do saber produzido hoje. Temos como premissa a proposição de que o saber camponês é o saber de senso comum “fundante” nesse processo. E que, pela via do questionamento e da adoção seletiva do conhecimento científico o saber camponês se manteve traduzindo um modo de viver e fazer gerado na observação cotidiana da natureza, na recriação da tradição familiar e comunitária e na apropriação de parte do conhecimento científico. Esse saber produziu indagações e curiosidades singulares, experimentações e observações próprias. Lidou com situações-limite iii e soluções construídas. Em sua produção foram realizados: estudos com temáticas geradas na necessidade cotidiana; encontros entre agricultores e com pessoas de referência de dentro e de fora do grupo; troca de experiências. Além disso, os agricultores valeram-se de vários instrumentos de acesso ao conhecimento científico, tais como: livros, revistas, televisão, computadores e Internet. E, ainda, contaram com a presença de pesquisadores e estudantes de universidades e institutos de pesquisa, técnicos de ONG e de certificadoras. Viagens internacionais de intercâmbio também fazem parte desta trajetória de construção do saber. 61 Se existe apropriação do conhecimento científico na produção do saber desses agricultores, perguntamos: como se deu essa apropriação? Como usam o conhecimento científico a seu favor? Como negam o conhecimento científico considerado inadequado? Como misturam o saber camponês e o conhecimento científico? Entendemos que as relações entre senso comum e conhecimento científico são dialógicas. Contém um movimento que passa por observação e experimentação, configurando-se no ir-e-vir, de ser e se fazer no cotidiano. Essa dinâmica gera o que estamos denominando de saber apropriado. Apropriado no sentido de terem tomado posse, de fazerem seu o saber de experiência feito e o conhecimento científico. Apropriado, também, porque adequado aos seus interesses e modos de viver na sociedade. É esse processo que inspira a realização desse estudo. A seguir, trazemos as contribuições teóricas sobre senso comum e conhecimento científico para dar conta dessa compreensão Senso comum e conhecimento científico: aproximações possíveis na cultura camponesa No percurso teórico realizado para compreendermos o que é saber apropriado conceituar “senso comum” e “conhecimento científico” adotamos Paulo Freire (1981, 1985, 1992) ao entender que o saber de senso comum é o “saber de experiência feito” e que, este, contém a possibilidade de sua própria superação pela via da práxis social. Com Santos (2001, 2002, 2003) enfatizamos que se trata de um saber de senso comum que ao se aproximar do conhecimento científico torna-se um saber de senso comum “novo, prático esclarecido ou emancipatório”. Já, Moscovici e Hewstone (1984), tratam senso comum como “saber de primeira mão”, que se transforma na aproximação do conhecimento científico. Em uma outra vertente desse percurso teórico, cabe uma oura pergunta: o que é ciência? Santos (2003, p. 15) destaca que a ciência moderna tem na racionalidade uma de suas determinantes; assim, “[...] conhecer significa quantificar. As qualidades intrínsecas do objeto são desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que 62 eventualmente se podem traduzir”. Assim “rigor nas medições”, as quantidades, revelam o objeto do conhecimento. Nesse paradigma, o método é a vida, e a vida é racionalidade. Dividir, classificar, definir regularidades ou relações sistemáticas entre o que se separou significa conhecer e fazer ciência. Para Moscovivi (1984), a ciência é elucidação, é sistematização, serve para refinar o senso comum, transforma pela razão o que foi acumulado pela tradição. Entretanto, de acordo com Santos (2003, p. 16) [...] o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso comum. É que, enquanto o senso comum, que se traduz no conhecimento prático, a causa e a intenção convivem sem problemas, na ciência a determinação da causa formal obtémse com a expulsão da intenção. A esse rompimento, o autor denomina de primeira ruptura epistemológica, ou aquela que funda a ciência. Além dessa, propõe uma segunda ruptura epistemológica, que é segundo ele, a ruptura da ruptura, ou a aproximação da ciência com o senso comum. Em suas palavras [...] a dupla ruptura procede de um trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência, (SANTOS,2002, p. 45). Analisando a relação entre senso comum e ciência, Moscovici & Hewstone (1984) falam da geração de uma epistemologia popular que tem como objeto de estudo particular o senso comum, um dos focos desse estudo. Interessa-nos compreender como o homem comum se faz sábio amador, segundo Moscovici & Hewstone (1984); considerando, nesse caso, os agricultores de Poço Fundo. São esses os sujeitos que no cotidiano buscam fazer aproximações do senso comum com a ciência. Para isso, passamos a considera-los usando a noção de cultura e, nela, a especificidade da cultura camponesa como dimensão fundante do processo de produção do saber apropriado. Construindo o conceito de cultura, Chauí (2003) discute a relação entre cultura 63 popular e ciência. Sendo a ciência e o conhecimento científico associados à cultura de elite, a autora problematiza esta dicotomia e também coloca em questão o prestígio adquirido pela ciência, vista como discurso competente. Apoiados nessa autora, é possível considerar as lutas decorrentes das desigualdades geradas pela legitimação da ciência como discurso competente que, simultaneamente, produz a incompetência do saber popular. A perspectiva de Chauí (2003), na qual a cultura é avessa à unificação, permite a compreensão do saber popular como discurso competente, em que pesem análises que subtraem legitimidade desse saber. Ao se fazer, fazendo o mundo, os sujeitos sociais fazem cultura. É o que entende Freire (1980, p.54), em sua análise de processo, quando afirma: “a cultura só é enquanto está sendo. Só permanece porque muda. Ou, talvez, dizendo melhor: a cultura só dura no jogo contraditório da permanência e da mudança”. Tratamos, ao modo de Freire (2001), a cultura como um “que fazer global”, a partir do saber de experiência feito, que se supera na ação de criação e recriação do mundo. Para ele, o mundo é ato criado pela práxis humana. É produto do trabalho do saber ou da cultura, no sentido original de cultivar (plantar, fazer “agricultura”) e no sentido histórico de relação de luta e exploração, além de ser também possibilidade de solidariedade e reciprocidade nos diferentes modos de estar-no-mundo e fazer-o-mundo. Buscamos perceber os processos a partir de diferentes combinações de relações tecidas entre os sujeitos, designadamente a forma como eles criam e recriam o saber vivido em experiências e práticas cotidianas, nas respostas dadas a “situações-limite”iv – conceito usado por Freire (1983; 1992; 2002), ao se referir às situações em que os sujeitos sociais se defrontam com obstáculos impostos pela realidade diante dos quais podem se submeter ou subverter. Ao subverterem superam o obstáculo. O inacabamento do mundo nos permite a criação, a re-criação e o inusitado, a permanência e a mudança. Freire (1979, 1981, 1985, 1992, 2003) ancoram esta discussão e 64 orientam a análise do vivido e transformado pelos agricultores de Poço Fundo Nesse contexto, os estudos de Brandão (1980, 1986 e 1999) e de Woortmann e Woortmann (1997) fundamentam a análise da cultura camponesa, situando-a no processo de produção do saber camponês. Em seus estudos, Brandão (1980, 1986, 1999) observa que a prática da reciprocidade que ocorre na relação do ser humano com a natureza, vitalizando um ciclo de dar-receberretribuir é parte do processo de produção do saber camponês. Nesta relação, criador e criatura, ao cultivar a terra e produzir cultivos, o agricultor produz também cultura e sua própria reprodução como sujeito. Nesta direção, segundo Woortmann e Woortmann (1997), há uma relação entre a produção da cultura como ação recíproca do ser humano que aprende atuando na natureza e a natureza que ensina quando observada e cultivada. Esses autores, ao tratarem a categoria “natureza e saber sobre a natureza”, tecem vinculações entre a ação humana expressa no trabalho do saber que se funda no trabalho das idéias. O trabalho sobre a natureza é informado, antecipadamente, por um “trabalho das idéias, o trabalho do saber, acumulado e em constante processo de atualização” (WOORTMANN e WOORTMANN, 1997, p. 36) Ainda, segundo, Woortmann e Woortmann (1997), há uma diferença importante entre agricultura camponesa e agricultura capitalista, moderna. Essa última pretende “corrigir” a natureza que está errada: “corrige o solo”; faz adaptação das plantas e animais ao solo, ao clima; não respeita as combinações de plantas e os ciclos naturais, tendendo a colocar as demandas do mercado acima dos limites da natureza. Para os camponeses, a natureza ensina e está correta, o trabalho do ser humano sobre a natureza é, para eles, aprender com a natureza, sobre sua diversidade, seus diferentes tempos e ciclos, sobre o tipo de terra e as plantas que dali nascem, animais que ali crescem, suas combinações, oposições e complementaridades. 65 Relações geradoras do saber apropriado Paulo Freire (2003) destaca a importância da temática na produção do conhecimento. A temática é contextual e não deve ser vista como fragmentos ou unidades isoladas. Nesse estudo, buscamos localizar os “temas” e “palavras geradoras” na convivência com os agricultores. No momento da pesquisa exploratória, foram recolhidos os temas que geraram as questões norteadoras das entrevistas, conversas e temas que geraram as categorias de análise utilizadas. Na produção do saber dos agricultores e agricultoras os contextos, as práticas e os conteúdos estão imbricados, indissociáveis. São intenção e gesto, trabalho das idéias e trabalho das mãos, pés e sentimentos, valores e ações correlatas, incompletude que busca o “aprendizado eterno” no cotidiano. Estamos tratando de um saber que é e está sendo gerado com raízes na terra, na família, na história de organização da comunidade, da associação e da cooperativa, na produção e exportação do café diferenciado e, no projeto de sociedade almejada. Com quem aprenderam? Perguntamos. Não há um professor “específico”, um lugar determinado, uma situação pontual de produção do saber. Pessoas, situações, formas de organização são referências importantes nesse processo, afirmam os agricultores. Porém, destacam com primazia o aprendizado que ocorre na relação de produção do saber existente de agricultor para agricultor, o aprendizado com a terra, a planta, o fruto colhido e o produto vendido. Esses, não são conteúdos estanques, pelo contrário, contém dinâmicas de relações construídas e práticas de produção do saber que são elementos constitutivos do saber ora analisado. A metodologia da produção do saber se funda na troca de experiência entre agricultores, na observação e na experimentação. Seu Raimundo fala do aprendizado do agricultor com outro agricultor: “Aqui não é competição, se a gente aprendeu alguma coisa a gente passa aquilo adiante, se a gente aprende e guarda para si não vai ajudar nada, se 66 agente passa adiante aquilo vai dar muito fruto” Essa fala é expressão do que estamos denominando de relações sociais horizontais no processo de produção do saber apropriado. Essas relações são dialógicas, ocorrem em um duplo movimento que singulariza a troca. Tomé, diz que “são várias pessoas, juntando vários conhecimentos, juntando várias experiências praticadas por pessoas e chegamos onde nós estamos hoje – em um projeto bastante avançado nesse sistema de produção”. Os pioneiros abriram caminho como costuma-se dizer: não havia “tecnologia”, “uma fórmula pronta” para o sistema de produção orgânica, a “pesquisa de universidade ainda é pobre nesta dimensão orgânica”, ponderam eles. Muitos consideram que aprenderam sozinhos, observando e experimentando, estabelecendo uma relação estreita de acompanhamento às ações e reações ocorridas entre a ação humana, a dinâmica da terra, da planta e o fruto colhido. Aprender “sozinho” não estanca o processo de ação compartilhada, associada, cooperada, vivida nos espaços de organização na associação e da cooperativa – os grupos de bairro, as reuniões de primeiro domingo do mês, e nas assembléias. No processo de produzir o saber apropriado usam o “método” da observação permanente. Nela, vão de reconhecendo dos indicadores apresentados pela terra e pela planta. Observam “pesquisam”, como dizem ;“palmo a palmo” de terra, planta por planta, situação por situação onde “cada caso é um caso”. Dos dados colhidos nesta observação decidem o que fazer, como fazer e já sabem porque fazer. Aprenderam, o porquê fazer, fazendo a relação entre o observado e os resultados, fazendo experimentações. Tais experimentações podem estar sendo feitas em sua lavoura, ou na lavoura do vizinho; a troca de experiências possibilita o ensaio, o risco trocado. Cada agricultor, porém, não escapa do risco particular, porque como eles mesmos afirmam. “Cada caso é um caso”. Essa dinâmica ganhou corpo e se transformou em um processo de produção do saber que vem sendo apropriado por cada agricultor e pelo 67 conjunto deles. A terra e a planta: temas geradores do saber Eles afirmam: que aprendem com a terra e com a planta. A planta principal focalizada é o cafeeiro. O café é fruto enquanto vinculado ao “consumo só para o gasto”, cultivado na temporalidade da agricultura camponesa. Passa a ser fruto e produto na temporalidade da agricultura sem agrotóxico é, quando o café passa a ser mercadoria e passa a “comprar tudo’. Consideramos que práticas da agricultura camponesa permanecem mas, nelas são agregadas, seletivamente, práticas da agricultura moderna (ou convencional?), e práticas da agricultura orgânica. A terra, ainda, é o “reino” que produz os frutos da “libertação”, nela a comunidade se faz. E comunidade significa “laço de luta, laço de solidariedade, laço político” que o “estrangeiro” não consegue compreender ou traduzir, mas quando compreende valoriza e assim a noção de comunidade se transforma em valor agregado ao produto “re-significando” as relações que semearam, cultivaram, colheram e comercializaram o produto café vendido no mercado (dito) justo ou fair trade. Esse mercado vem conferir, via inspeção e certificação, se os vínculos e práticas das relações de produção são familiares, solidárias e de cooperação, de inclusão de mulheres, justiça e preservação ambiental. A terra produz os frutos do trabalho, do suor. Mas a terra também é produzida, no sentido de melhoramento da fertilidade; eles dizem: “nos estamos melhorando nossa terra” A terra orgânica é viva, é terra familiar, local e planetária; preservada. Sendo viva, a terra nutre a planta, significando equilíbrio ou desequilíbrio. É diferente da terra na agricultura convencional que “usa a terra apenas como substrato para manter a planta em pé”, constitui, portanto, uma ruptura que produz a diferença da agricultura 68 sem agrotóxico e orgânica da agricultura convencional que corrige a terra e usa “veneno” para controlar pragas, doenças e plantas consideradas indesejáveis e daninhas. Da terra depende a saúde da planta, do fruto, o alimento do produtor e consumidor. Dela depende a vida. “Uma coisa que não pode sair da mão do pequeno é o pedacinho de terra”, diz Seu Raimundo. Terra também é “coisa”, matéria concreta, bem e mercadoria que é negociada de preferência entre parentes e, em último caso, com “gente de fora”. Como bem ou patrimônio, está na “mão do pequeno” produtor e, por ser pequena, é um “pedacinho” transforma o proprietário em “pequeno” também. Esse “pequeno” se torna “grande” no processo de conquista da capacidade produtiva, na força da organização e no projeto de preservação da terra-planeta. Mas, em Poço Fundo “não tem latifúndio”, “não tem fazendeiro”. Os maiores proprietários têm até 100 hectares de terra, os “pequenos” têm entre 2 e 40 hectares de terra. Terra expressa uma teia de relações sociais. As relações de parceria no uso da terra são baseadas nas relações de parentesco ou de propriedade da terra. Os pais criam os mais variados arranjos para garantir a permanência dos filhos na terra. As famílias têm parcelas de terra próximas ou distantes da residência, em parceria com os filhos e parentes ou com outros proprietários de terra. Há acordos verbais, acordos registrados na associação, parceria de 50%, “a meia”, 30%, 40%, “o patrão (dono da terra) entra só com a terra, o parceiro forma o cafezal e divide a colheita” segundo o acordado na parceria. O “pequeno” produtor é proprietário, é “patrão temporário” quando contrata pessoal para a colheita e pode fazer parcerias no uso de sua terra. A parceria é um contrato que ocorre dentro ou fora da família, pode ser um contrato necessário quando a terra do pai ainda não foi dividida entre os filhos quando o agricultor pode expandir sua área plantada, mas não pode comprar outra área de terra ou ainda quando ele não é proprietário de terra há nisso, um aprendizado. 69 Os filhos, futuros herdeiros, podem viver, construir sua casa na terra do pai quando ainda não se deu a partilha do patrimônio, nesse caso ocorre doação de terra de pai para filho ou filha. O pai pode ainda “separar um cafezinho”, separar uma pequena área de lavoura de café, para o filho pequeno, adolescente ou jovem. Os filhos maiores cedo começam a assumir serviço na lavoura do pai ou naquela designada como “sua” lavoura, para aprender a cuidar, “tomar gosto” pela lavoura e como força de trabalho familiar, ou força que “ajuda” diria, Woortmann e Woortmann (1997). Dependendo da idade e do tempo disponível porque a escola é prioridade em relação ao trabalho na lavoura. O pai pode, ainda, comprar terra para o filho “que se casou, logo precisam de mais terra para sustentar duas famílias”. O pai assume a responsabilidade de “sustentar” a ampliação da família; retorna o valor da família extensa, típica da agricultura camponesa. Conhecer a terra pelo olhar, pelo toque, pela observação das plantas que nascem espontaneamente, pelos “bichos” que se encontram dentro e fora da terra, pela florada do café e pela qualidade do produto – estas são outras lições que podemos descrever. Altitude e fertilidade adequadas foram herança do planeta terra no lugar onde se encontram as lavouras desses agricultores; a fertilidade da terra oscila na balança do cuidado ou “des-cuidado” do agricultor, o não uso agrotóxico e uso de adubo químico. A altitude poderá vir a ser prejuízo se o aquecimento global alterar o clima local. Prevenidos, já discutem esse assunto e fazem os primeiros ensaios de sombreamento do café. Já experimentaram leguminosas, como árvores “boas para sombreamento”; mas esta é uma introdução de conhecimento de “fora” para dentro; uma prática de experimentação. A leguminosa serve também para adubação verde. Do trabalho de observação verificam que as plantas do lugar como jacarandá, gema de ovo, ipê e pereira dão sombra e protegem a “planta” – o cafeeiro. O saber de senso comum não dispensa, como fiel da balança, a análise técnica do solo feita em laboratório. Eles fizeram cursos e aprenderam a fazer interpretação destas análises de 70 análise de solo. Ensinam e orientam os “companheiros”. Nitrogênio, fósforo e potássio – NPK – são apenas três elementos químicos importantes para a nutrição. Existem, dizem eles, de 17 a 42 nutrientes importantes para a planta. Adubo 20-05-20 é o “pacote” que alimenta a planta com apenas três nutrientes. Mas, além de necessidades nutricionais diferentes, as características da terra apresentam grandes variações; Pedro diz: é preciso “pesquisar o tempo inteiro [...] tentando descobrir a diferença de uma planta para outra, de uma terra para outra”, a terra do sol nascente é diferente da terra do poente, terra do lombo do morro é diferente da grotinha, a primeira é fraca, a outra é fértil. Pedro continua ensinando: “isto vé diferente do trabalho com agricultura convencional [...] “já é um pacote: os mesmos tratos que usa em uma lavoura daqui é receitado pra outras regiões do país” e, crítico conclui: “isso é enganação, porque a terra, a distancia de alguns metros, ela muda completamente”. Não é preciso ser agrônomo, ou técnico, mas é preciso “ter bom senso” e muita capacidade de observação para definir o quê fazer. A adoção da análise de solo é uma apropriação do conhecimento científico, os resultados são usados em combinação com outros indicadores da fertilidade do solo resultantes do saber de senso comum. Solo argiloso, retenção de água, quantidade de matéria orgânica, terra compactada, terra não compactada, tipo de vegetação “que vai saindo’, cor da terra – são sinais que permitem uma outra análise e interpretação. Esta é uma “sabedoria da natureza”. Observando, o agricultor aprende. Existem plantas que indicam “terra boa” e plantas que melhoram a terra. No lugar de terra fraca, Pedro ensina semear mamona, deixar o pé ficar criado, depois cortar, picar e jogar no meio da “rua” [entre as fileiras do café] serve para “arrebentar o solo”, “guachuma”, sai quando a terra está compactada, “terra dura”,lugar de pisoteio de gado. Ela tem raiz dura, concorre com o café destruindo a lavoura. Lucas ensina a “ver” e analisar o solo observando-se o aparecimento de plantas como caruru, picão, orapronobre, fazendeiro, cerralha, itapueraba aparecem, “entram na lavoura”, é 71 sinal de terra boa, fértil; se aparecem quachuma e quabeira, ao contrário, é sinal de terra com deficiência nutricional. Minhoca, todo mundo sabe-só dá em terra “saudável”- adubo químico e agrotóxico combatem a minhoca. O estado de conservação do solo também é reconhecido – basta “olhar”. Desse olhar, do acompanhamento sistemático e do trato no tempo adequado pode-se, por exemplo, evitar erosão da terra. Os tempos da chuva ou da seca são tempos que exigem práticas distintas de cultivo e cuidado com a terra. A capina não pode deixar a “terra muito limpa”, ou seja: há também um termo adequado para a capina. Animais como tatu e outros bichos, que retornam, porque antes haviam desaparecido, são bem-vindos, porque anunciam a vitalidade e a diversidade contida na terra “feita” pelo saber que faz dela reserva de valor econômico, social, cultural e ecológico. A terra produzida é aquela em que os agricultores estão estabilizando a fertilidade da terra. É mescla de terra camponesa cultivada desde os tempos dos avós sem “veneno” e terra convertida; é a terra viva, saudável. Fruto do trabalho do saber e do fazer dos agricultores e agriculturas associados. Lugar de plantar e arrancar saberes que implicam conservação e mudança de práticas costumeiras e práticas introduzidas experimentadas e repetidas, negadas e criadas, recriadas. Eles asseguram: “nós fazemos nossa terra”. Terra feita no cotidiano e ao longo dos anos. Esse saber é ato articulado, aprendido nas relações familiares, nas relações de vizinhança, dos agricultores entre si, suas organizações e relações com o mundo. Esta terra é terra que ensina, é dádiva. A estreita relação entre a terra, a planta e o fruto retribuem a ação dos homens e mulheres que na compreensão desta dádiva se vinculam a ela – a terra - na prática da reciprocidade. Observação e experimentação fazem dos agricultores aprendizes com esta terra. Nela nascem e crescem as plantas que também ensinam. Esta terra nessas mãos deixa de ser substrato físico e, passa a ser o lugar do equilíbrio biológico possível, resgatado por mãos humanas. 72 A terra produzida é pesquisada, por eles, palmo a palmo, planta por planta, ano a ano; dando-se a conhecer por aqueles que escolheram compartilhar a vida com ela. É natureza, “coisa de Deus”, é “sagrada”, “cuidada” vai ficar para os filhos, os netos, é presente e futuro – conservada não vai ser esgotada. Seu valor é econômico, cultural, social e ecológico. Mas de que adianta dinheiro, riquezas? Muitos se perguntam. Seu fruto tem valor maior, é universal, não é só local é internacional, assegura qualidade de vida para quem produz e para quem consome. É lavoura acompanhada pela presença constante do “agri-cultor” – aquele que cultiva a terra – e lê todos os seus sinais: desde a beleza das plantas às manifestações de desnutrição e doença. “A planta mesmo ensina a gente”, afirma Sr. Filipe. A planta é outro tema gerador do saber apropriado. Segundo eles, a planta, nesse caso o café, até se parece com os seres humanos, mal nutrida, com fome, adoece. A convivência com plantas espontâneas, que nascem à volta da planta principal, indica as condições de fertilidade ou deficiências de fertilidade da terra. Essas são plantas espontâneas, e não são daninhas; são indicadoras: dão sinais sobre a situação da terra, ensinam; são interpretadas. Não são eliminadas com defensivos, são manejadas; podem servir de cobertura verde para o solo em determinados períodos do ano, ou são cortadas com enxadas ou roçadeira e servem de cobertura morta, cobrindo a terra protegendo-a do impacto do sol ou chuva, contribuindo para o aumento da vida no solo ou ainda, podem ser incorporadas ao solo enriquecendo-o. São amigas, não inimigas como são tratadas na agricultura convencional na qual são eliminadas com “veneno”. Os pássaros que retornam, espalham sementes e povoam a terra multiplicando as plantas, naturais do lugar e as plantas que vieram de lugares outros para se transformarem em adubação verde, sombreamento, corretivo do solo ou cuidados com a fertilidade para que a terra se mantenha equilibrada ou mesmo para a recuperação de terras desgastadas. Existe uma relação estreita entre a planta e a terra. É o que podemos ver na fala de 73 Filipe, quando ele faz vinculações entre aspectos da terra e da planta que “ensinam”. A “medida” da qualidade da terra é conhecida pelos agricultores, também, por esta observação. Os indicadores observados vão do tamanho da planta que é correspondido pelo tamanho do “sistema radicular”, explicam Tomé, Thiago e Dona Emília, ou seja: “da mesma forma que ela cresce para baixo ela cresce para cima”. Além disto, acompanham “o comportamento ímpar” da reação da planta ao ambiente. Plantas “deitadas” dão sinal de terra compactada, onde o sistema radicular não consegue descer. A presença de pulgão manifesta falta ou excesso de algum nutriente. A diversificação de plantas favorece o desenvolvimento equilibrado da planta, ela ensina de maneira “sábia” o que está faltando ou sobrando, basta o ser humano, também de maneira “sábia”, agir segundo os sinais que a planta apresenta. O conceito de plantas daninhas – vindo do conhecimento científico - foi totalmente alterado, elas são plantas indicadoras da situação da terra, elas chegam a “dizer” o “que está faltando ou sobrando e onde nós devemos agir”, afirmam eles. Pragas e doenças também ganham novo sentido quando tratados com tanta proximidade. Ferrugem e bicho-mineiro são típicos do cafeeiro e aqui não são combatidas de forma direta com aplicação de qualquer defensivo, são “tratadas” de forma indireta, através da planta equilibrada. O pé de café “saudável” convive com o bicho mineiro e a ferrugem, esses sim, ainda vistos como “praga” adquirida “de fora”, do café convencional, podem causar dano econômico, mas a forma de tratá-lo muda - do “combate” para a convivência. O trabalho nesse caso, muda de foco, os agricultores deixam de focalizar as “pragas e doenças” e focalizam a nutrição e o equilíbrio da planta, decorrente do equilíbrio da terra. Nos casos graves o café pode ser “banhado”, eles fazem os mais variados “banhos” naturais ou industrializados, orgânicos. Lucas fala do cuidado preventivo com relação à ferrugem, usando hidróxido de cobre, em “banho de contato”. Outras doenças são conhecidas como ácaro, cigarrinha e, “phoma”. Mas não se faz controle das doenças pelo combate, elas são vistas 74 como sinais, uma forma de “avaliação” indicativa do quê deve ser feito. Se para esse agricultor, existem, no mínimo, 17 nutrientes diferentes necessários ao equilíbrio da relação existente entre a terra e planta; a falta de um deles, a falta combinada de um ou mais, ou por outro lado o excesso implica em sintomas diferentes. Cada nutriente “mostra a planta de uma forma”, por exemplo: a “carência de zinco provoca folhas compridas retorcidas com nódulos muito perto o que atrapalha radicalmente a produção. Carência de fósforo, “aparece a rama apical muito dura e armada”, fósforo é nutriente do sistema radicular, se esse não está se desenvolvendo bem , a “planta não puxa” nutrientes, fica “emperreada”. Se a terra está com “ph baixo pode provocar requeima da planta, é o excesso de alumínio que queima as boquinhas das raízes” e, diz ele: “assim por diante”, como quem afirma, de novo que “cada caso é um caso”. A cor da planta também é interpretada: café amarelado tem deficiência de boro, de zinco, explica Thiago. Além disso, há sinais no corpo da planta: a “guia fica mais curta” isto implicará em produção desigual. Mas além de nutrientes, a planta precisa também de “trato”, uma planta amarela pode estar faltando adubo, mas também pode estar faltando capina. “Mudou a folha pode saber que está com problema. A gente aprende com a planta”, como já afirmou Filipe. A cor e a beleza da planta não só encantam, mas são sinais “levados em consideração”: planta está sadia e equilibrada. Uma planta dependente de nutrientes químicos pode significar, também, um agricultor dependente, considerando-se a situação daqueles que usam adubo e insumo das indústrias agro-químicas. “Independência” em relação a estas multinacionais é uma bandeira de luta desses agricultores. Além da cor, a situação da planta é analisada, também pelo tamanho da folha, pelo comportamento, podemos dizer; “se retraída”, “folhas fechadas” – “sintomas de fome, de necessidade de nutrientes”. Quando se vê na folha “vigor, folha aberta, escura, cor bonita” se pode afirmar a “saúde” da planta. Matheus, Paulovi e Dona Emília relacionam a “saúde” da 75 planta ao processo de saúde do ser humano. A planta “é como a gente”, saudável se bem nutrida ou doente, “fraca”, mal nutrida; alimento em excesso causa congestão e outras complicações; é preciso saber a medida adequada. Eles fazem um estudo minucioso, um acompanhamento detalhado e permanente. Nesses “experimentos”, cada variedade de café é avaliada, isso define também o tipo de manejo – às vezes é preciso roçar, outras, capinar, outras ainda, é preciso “entrar com o subsolador”. Tomé,continua dizendo: “necessariamente, você tem que estar movimentando esse tipo de solo, então é um estudo mesmo que é feito”. Trata-se de um processo de apropriação do conhecimento científico que é desenvolvido pela observação permanente e pela experimentação intencionada, estudada. O SABER APROPRIADO: lições que mudaram a situação de pobreza Os agricultores sujeitos da produção do saber apropriado viveram e vivem um processo de permanente aprendizado que gesta e torna vivo esse saber. Trata-se de um processo aproximação e ruptura, repetição com observação e experimentação, criação, recriação; adotação total ou parcial, ruptura ou negação total ou parcial do saber de senso comum e do conhecimento científico. Como vimos, são temas geradores das relações que produzem o saber apropriado: os sujeitos e suas relações sociais, a terra, a planta, o fruto e o produto.. As mudanças produzidas na vida desses agricultores revelam uma saída da condição de pobreza, isolamento no local, desvalorização do produto de seu trabalho, como vimos nas descrições e análises do Diagnostico (1994) para o acesso à condição de vida digna, expansão de sua sociabilidade reforçando laços e vínculos locais que garantem a solidariedade e reciprocidade interna à família, ampliada em suas organizações de grupos de bairro, grupos de representação política, comercial e troca de experiências que se articulam nos níveis local, nacional e internacional. Na relação com a natureza, essa é compreendida como meio ambiente em que os mesmos se incluem ora como atores, ora como observadores contempladores, observadores participantes, ora como experimentadores, “pesquisadores” – sujeitos ativos. Esta relação se faz, não pela subordinação e domínio da natureza pelos seres humanos, mas pela respeitosa relação em que os últimos podem aprender com a natureza de forma interativa. As situações-limite: pobreza, desvalorização dos produtos da agricultora familiar, adoção da tecnologia de produção do café orgânico e sem agrotóxico, a fragilidade da 76 associação – no início “ “choveu e ventou”- quase fecharam as portas, a produção orgânica sem mercado diferenciado, a inserção no mercado internacional, a certificação e a exportação do produto são experiências de superação do limite. Foram ou ainda são ponto de inflexão, ponto de mudança. No Brasil e no mundo, as mudanças ocorridas em Poço Fundo podem ser vistas como mudanças locais, parciais, conquistas localizadas e limitadas, mas são mudanças reais, lutas demarcadas dentro de limites reais e possíveis, movidas pelo propósito de conquistas maiores, planetárias, tendo em vistas as novas gerações, a humanidade. São um exercício possível, visível, reconhecido nas lavouras do saber: lavoura da vidas. Onde há colheita dos frutos do trabalho da família, da comunidade, das organizações, do café exportado. Trata-se de um processo vivido no presente e de um devir intencional e um modo de se colocar a caminho. Ser por estar sendo, conforme Freire. Transparência e simplicidade, intenção e gesto fundados, no saber de senso comum traduzido no saber de experiência feito, podem ser atribuídos a uma dimensão do saber apropriado, mas esse apresenta grande densidade e multiplicidade de formas práticas, que descrevemos de maneira parcelar nesse trabalho. Procuram a teoria no interior da prática (do saber de camponês) e a prática de teoria (do conhecimento científico) articulando diferentes dimensões do ato de conhecer que costura momentos distintos ou complementares entre adoção e adaptação; ruptura e criação (ou recriação). Em cada uma dessas dinâmicas, ou em todas elas, vai se dando a validação dos resultados do saber experimentado para que se realize a apropriação desse saber. Tal apropriação não se estanca finalizada, é inacabada. Se enraíza nos princípios da ética da vida saudável e do planeta preservado - para as gerações do presente e do futuro. O futuro é devir, mas não é frouxa promessa daqueles que esperam o que virá; é fruto plantado no presente para ser colhido depois da floração, no tempo adequado da maturação; é fruto cultivado hoje com muito cuidado e muito trabalho. Dão prova e reafirmam em falas, práticas e relações entre si, com o meio ambiente e com os “outros” – “de dentro” e “de fora” – parceiros ou não; que não é mais possível acreditar que os seres humanos ocupam um lugar tão privilegiado no planeta que possam fazer dele o que quiserem; ensinam uma epistemologia fundada no entendimento dos seres humanos como parte do meio ambiente e em complexa relação de interdependência. Nesta, é maior a dependência do humano em relação à natureza, tal dependência é vista como valor e não como ameaça. Assim, o reino vegetal, animal e mineral ensinam ao “reino” humano a coabitação no planeta em relação de interdependência. 77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Hucitec, 1993. 275 p. AGUIAR, A. R. C. Saber Camponês e mudança técnica: um estudo de caso junto a produtores do bairro rural de Cardoso, Poço Fundo – MG. 1992. 148 p. Dissertação (Mestrado em Administração Rural) - Universidade Federal de Lavras, Lavras. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Municípios mineiros. Belo Horizonte. Disponível em: <http://www.almg.gov.br/index.asp? grupo=estado&diretorio=munmg&arquivo=municipios&municipio=51701>. Acesso em: 14 mar. 2008. AZEVEDO, M.; LIMA, P. ; SPÍNDOLA, J. ; MOURA, W. Conversão de cafés convencionais em orgânicos. Informe Agropecuário, Café Orgânico. 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Objetiva a auto-sustentabilidade, a maximização de benefícios sociais, a minimização do uso de energias não renováveis, a eliminação do uso do agrotóxico e outros insumos artificiais tóxicos, organismos geneticamente modificados, radiações ionizantes, dentre outros. Prioriza a preservação da saúde humana e ambiental. Estes entre outros, critérios normativos mais importantes, são exigidos e controlados de acordo com esta normativa em todos os processos de produção, embalagem, armazenamento, transporte e comercialização. iii Conceito usado por Freire (1983; 1992; 2002), explicitado mais adiante. iv Ver explicitação na interpretação de Vasconcelos e Brito (2006, p.179). v A entrevista com Márcia Martins, agrônoma, autora de uma tese de doutorado, realizada em Poço Fundo, citada nesta pesquisa é aqui considerada como dado “testemunho” deste e de outros achados do que estamos chamando de saber apropriado por estes agricultores. vi Paulo, 43 anos de idade. Bairro Barreiro. Casado. Tem dois filhos ( 15 e 17 anos de idade). Produz café orgânico e sat.( “aproximadamente”30.000 pés de café).Terra própria: 50 ha. 82 TRABALHO INFORMAL E HETEROGENEIDADE NA RMBH E MUNICÍPIO DE MONTES CLAROS: APROFUNDAMENTO OU ALTERNATIVA EM RELAÇÃO À POBREZA?9 FERREIRA, Maria da Luz A.10 O texto tem como objetivos analisar quais são as motivações que leva os trabalhadores a ingressarem e permanecerem exercendo atividades informais. A estratégia metodológica utilizadas foi a análise dos dados da pesquisa “Desigualdades Sociais, Qualidade de Vida e Participação Política, pesquisa por amostragem probabilística da Região Metropolitana de Belo Horizonte e do Município de Montes Claros, em comparação internacional, e dos dados 9 Este texto ampara no IV capitulo da minha tese “Trabalho Informal e Cidadania: heterogeneidade social e relações de gênero” defendida no doutorado em Ciências Humanas (Sociologia e Política) da UFMG em 2007. 10 Professora de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UNIMONTES e Faculdades Santo Agostinho. 83 de seis grupos focais realizados em Montes Claros, sobre a temática do trabalho informal. Foram analisadas variáveis como: sexo, escolaridade, estado civil e renda. Os resultados apontam que o setor informal comporta uma heterogeneidade, já que é composto tanto por trabalhadores que estão nele inseridos, tanto por sobrevivência, quanto por alternativa de vida, podendo ao mesmo tempo contribuir para o aprofundamento da pobreza como também ser uma alternativa de trabalho em relação a mesma. 1. Introdução Tem sido recorrente nas análises dentro da Sociologia do Trabalho o aumento do setor informal (Rivero, 2000; Cacciamali, 1999; Vasconcellos, 1994; Pamplona, 2001). Além das discussões dentro da literatura, pode-se observar no cotidiano das cidades um grande número de pessoas exercendo atividades informais. Este texto tem como objetivos analisar quais foram as motivações que leva um grupo de pessoas a ingressarem em atividades informais. Objetiva ainda investigar se o trabalho informal tem contribuído para o aprofundamento da pobreza, ou se tem se – devido a grande heterogeneidade que marca o setor – tornado uma alternativa para amenizar a mesma. A metodologia utilizada compõe-se da combinação da metodologia quantitativa e da metodologia qualitativa. Assim foram utilizados dados dos surveys realizados na Região Metropolitana de Belo Horizonte e do Município de Montes Claros em 2005, e de grupos focais realizados em Montes Claros, em 2007 sobre a temática supracitada. Na realização da pesquisa quantitativa11 foi utilizada para a seleção dos entrevistados a amostragem probabilística por conglomerado, cuja amostra foi composta de 1520 indivíduos, sendo 1122 RMBH e 398 no Município de Montes Claros. 11 No tratamento dos dados quantitativos obtivemos a colaboração dos professores José Jorge Santana do departamento de ciências exatas e Sheyla Borges do departamento de Ciências Sociais os quais agradecemos. 84 Na parte qualitativa, foram utilizados depoimentos de 06 grupos focais 12 realizados com homens e mulheres com idades até 30 anos e acima de 50 anos, cujo objetivo foi captar como estes colaboradores avaliam as suas atividades no setor informal. 2. O Setor Informal: Enfoques na Literatura Brasileira As primeiras tentativas de conceituação do setor informal iniciaram-se no final dos anos 60 e inicio dos anos 7013. A partir desse momento, foi inaugurada uma terminologia que situava a informalidade como parte da estrutura econômica, ou seja, pertencente à estrutura produtiva onde se localizariam as atividades de pequeno porte, contrária às atividades formais, que são compostas de empresas de grande porte (Pamplona, 2001). Destacam-se na literatura brasileira duas vertentes analíticas: por um lado, os autores que defendem a perspectiva econômica que partem do pressuposto de que o aumento do setor informal é um fenômeno estrutural do modo de produção capitalista. Associam-no à concepção marxista e identificam os integrantes do setor informal como aqueles pertencentes ao exército industrial de reserva, que, apesar de estarem em idade e condição ativa, encontram-se disponíveis no mercado para serem explorados pelo capital. Neste contexto, os trabalhadores informais, perante a dificuldade de conseguirem emprego no setor formal, seriam obrigados - para sobreviver - a sujeitar-se a qualquer tipo de atividade. (Cacciamalli, 1999; Fuentes, 1998; Malaguti, 2000). Por outro lado, a abordagem de cunho social, que considera as formas de organização informal da produção uma escolha consciente para a maior parte dos componentes deste tipo de atividade. Dentre os autores que privilegiam esta vertente, destacam-se Vasconcellos (1994), Vidal (1996), Martins & Dombrowski (1996), Siqueira (1997), Reinecke (1999), Nunes (1999) e Rivero (2000). 12 Para Morgan (1997), o grupo focal é uma derivação da dinâmica de grupo, ou seja, aproveitamento metodológico do grupo, cujo objetivo de realização é trazer a tona os processos que os grupos vivem a partir de sua própria dinâmica do grupo, de modo a revelar toda a problemática da interação social.Quanto à utilização o autor esclarece que o grupo focal tem sido utilizado: 1)Como principal fonte de dados; 2) Como fonte suplementar de dados, quando combinado com survey. Pode também ser utilizado como pré-teste de um questionário; 3)Como uma combinação de métodos sem hierarquia. Em relação à composição, os grupos focais podem ser: 1)Homogêneos: as pessoas são semelhantes e têm uma relação semelhante com o tópico que está sendo discutido. Grupos compostos do mesmo modo. 2)Segmentados: sexo, raça idade etc. 3) Mistos: é preciso ter cuidado porque dependendo do assunto, as pessoas não se misturam, ex: classe. 13 Neste período, técnicos da Organização Internacional do Trabalho realizaram duas pesquisas sobre a temática da informalidade: uma na África, sobre o Quênia, e outra na República Dominicana. Quem primeiro utilizou o conceito foi Keith Hart, em 1971, a partir dos resultados da pesquisa realizada no Quênia. Além destes, destacam-se também estudos realizados pelo Programa Regional Del Emprego para a América Latina Y el Caribe – PREALC. 85 Geralmente esses autores consideram que os trabalhadores, ao optarem pela informalidade, o fazem de forma racional, calculando algumas vantagens como possibilidade de auferir ganhos maiores do que recebiam no mercado formal, flexibilidade da jornada, acesso contínuo a parcela dos rendimentos, inexistência de chefia e possibilidade de ascensão social. O ingresso no setor informal costuma acontecer, na maioria das vezes, depois de saída voluntária do mercado formal. 3. Trabalho Informal e Heterogeneidade na RMBH e Município de Montes Mlaros: aprofundamento ou alternativa em relação à pobreza? 3.1 Perfil socioeconômico dos trabalhadores informais Na análise por sexo, o Gráfico 1 mostra que, do total de trabalhadores informais do Município de Montes Claros, 46,2% são mulheres e 53,8% são homens. Na RMBH, 45,8% são do sexo feminino e 54,2% são do sexo masculino. Apesar da semelhança dos percentuais, quando comparados ao conjunto da população, observam-se diferenças, já que, em Belo Horizonte, 53% da população é constituída de mulheres e 47% de homens. Em Montes Claros, 52% são do sexo feminino e 48% são do sexo masculino14. 56 54 52 50 48 46 44 42 40 54,2 45,8 53,8 46,2 M ulher RM BH Hom e m M onte s Claros GRÁFICO 1 – Sexo dos trabalhadores informais (%) Fonte: RMBHH e Município de Montes Claros – 2005 Com relação à faixa etária, observa-se pela Tabela 1 que a maior parcela dos trabalhadores informais concentra-se na faixa entre 31 e 49 anos, tanto na RMBH quanto no Município de Montes Claros, encontrando-se percentuais de 47,7% e 43,5%, respectivamente. 14 Dados disponíveis em Sistemas de Indicadores Urbanos, 2000. www.sistemadeindicadoresurbano.br. Data do acesso 10 de agosto/2007. 86 Já a faixa de 18 a 30 anos representa 30% e 37,7% dos pesquisados nas referidas cidades, respectivamente. Na faixa de idade de 50 anos ou mais, encontramos 22,3% dos pesquisados na RMBH e 18,8% no Município de Montes Claros. Os dados revelam, portanto, que não há grande discrepância na composição etária dos trabalhadores informais nas duas cidades. Embora exista uma variação nos percentuais, a variável apresenta o mesmo comportamento no que diz respeito à distribuição dos trabalhadores em cada uma das categorias estabelecidas por faixa de idade15. Tabela 1 - Idade dos trabalhadores informais Idade RMBH Freq % 18 a 30 anos 115 30 31 a 49 anos 183 47,7 50 anos ou mais 86 22,3 Total 384 100 Fonte: RMBH e Município de Montes Claros – 2005 Montes Claros Freq % 55 37,7 63 43,5 27 18,8 145 100 O levantamento do perfil dos trabalhadores informais levou em consideração o fato de terem ou não filhos. A grande maioria dos entrevistados, tanto da Região Metropolitana de Belo Horizonte quanto do Município de Montes Claros, tem filhos. As porcentagens são de 70,7% e 73,5%, respectivamente, que têm filhos, e 29,3% e 26,5% que não têm filhos, como demonstrado na Tabela 2. Tabela 2 – Trabalhadores informais quanto à caracterização familiar (com ou sem filhos). Possui RMBH Montes Claros Freq % Freq % filhos Sim 271 70,7 107 73,5 Não 112 29,3 38 26,5 Total 384 100 145 100 Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005 Quanto ao número de filhos, os dados do Gráfico 2 mostram que a maior porcentagem se verifica nos que têm de três a cinco (25,5% dos trabalhadores da RMBH e 47% dos de Montes Claros). Dos que declararam ter mais de cinco filhos, a porcentagem é relativamente baixa (3,5% na RMBH e 7% em Montes Claros). 15 A pesquisa se endereçou à população de 18 anos e mais. 87 47 50 38 40 30 29.3 25 18 20 27 23.7 25.5 10 3.5 7 0 Ne nhum Dois RM BH M ais de cinco M ontes Claros GRÁFICO 2 – Quantidade de filhos dos trabalhadores informais (%) Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros 2005 Direcionando nossa análise para o estado civil dos trabalhadores informais, verificamos, pelos dados da Tabela 3, que a maioria, tanto na Região Metropolitana de Belo Horizonte, quanto em Montes Claros (MOC), é de trabalhadores casados (45,3% e 48,7%, respectivamente). Na RMBH, 29% declararam ser solteiros e, em Montes Claros, 28,4%. As pessoas que vivem em união estável são 14,6% na RMBH e 13,5% em Montes Claros. A tabela mostra ainda que 7% (RMBH) e 6% (MOC) são divorciados e há uma pequena parcela de viúvos (4,2% e 3,5%, respectivamente). Tabela 3 – Estado civil dos trabalhadores informais RMBH Montes Claros Freq % Freq % Solteiro (a) 111 29 41 28,4 Casado (a) 174 45,3 71 48,7 União estável 56 14,6 20 13,5 Divorciado (a) 27 7 9 6 Viúvo (a) 16 4,2 5 3,5 Total 384 100 145 100 Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005 Estado Civil Embora a maternidade ou paternidade não esteja necessariamente relacionada ao casamento e/ou ao fato de se morar junto (em união estável), a família nuclear, composta por pai, mãe e filhos, é responsável por 70,7% das ocorrências de filhos na RMBH e 73,5% em MOC. 88 56,7 60 50 20 ,9 16,4 16,8 5,7 4,3 2, 1 10 16 20 ,4 30 25 ,7 34 ,9 40 0 M enos 1 a 3 SM M ais de M ais de M ais de de 1 SM 3 a 5 SM 5 a 10 10 SM SM RM BH M onte s Claros GRÁFICO 3 – Renda mensal dos trabalhadores informais em salários mínimos (%) Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005 Considerando a variável renda mensal dos trabalhadores informais, o Gráfico 3 mostra que a maior parcela desses trabalhadores se encontra nas faixas entre um e três salários mínimos (34,9% dos entrevistados da RMBH e 56,7% dos de Montes Claros). O gráfico aponta ainda que 20,4% e 16,4%, respectivamente na RMBH e em MOC, recebem o equivalente a mais de três e menos de cinco salários mínimos, e 16,9% e 16,8% recebem mais de cinco até 10 salários mínimos. Considera-se, então, que não existe uma grande diferença ao compararmos os trabalhadores da RMBH e de MOC, nas faixas entre três e cinco e mais de cinco até 10 salários mínimos. Entretanto, quando comparamos o percentual de trabalhadores que recebem acima do valor de 10 salários mínimos, percebe-se que este segmento está mais presente na RMBH (25,7% dos trabalhadores informais) do que em Montes Claros, onde apenas 5,7% estão nessa faixa de rendimentos. Vale ressaltar que, no universo investigado, há também os trabalhadores com renda mensal muito baixa, equivalente a menos de um salário mínimo, mas estes são minoria, representando 2,1% e 4,3% na RMBH e em Montes Claros, respectivamente. Isso corrobora a discussão feita na seção anterior, de que o setor informal é heterogêneo, ou seja, comporta tanto pessoas movidas pela estratégia de sobrevivência, quanto aquelas movidas pela alternativa de vida. A consideração da escolaridade dos entrevistados torna-se necessária para uma melhor compreensão da realidade de suas vidas. À medida que se tem uma escolaridade 89 maior, há teoricamente mais chances na vida, em geral, e no mercado de trabalho em particular. O Gráfico 4 mostra que, na RMBH, os trabalhadores informais têm uma escolaridade variada, com maior concentração no ensino fundamental incompleto (35,6%). Os que completaram o ensino fundamental perfazem o percentual de 8,8%, e a faixa de escolaridade de ensino médio compreende 23,2% que completaram esse nível de ensino e 5,3% que não o completaram (largaram os estudos ou ainda estão cursando o nível médio). O índice de pessoas com ensino superior é de 25,5%, e os trabalhadores sem escolaridade são 1,5% do total dos entrevistados. 35,6 40 35 30 25 36,8 40 35 25,5 24 30 23,2 25 20 20 15 10,9 15 8,8 5,3 10 16,3 1,5 5 5,9 6,1 10 5 0 0 Não Fund. Inc estudou Fund. Com. Médio inc. Médio com. Superior Não Fund. Inc estudou Fund. Com. Médio inc. Médio com. Superior GRÁFICO 4 – Grau de escolaridade dos trabalhadores informais da RMBH (%) GRÁFICO 5– Grau de escolaridade dos trabalhadores informais de Montes Claros (%) Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros – 2005 Em Montes Claros, pelos dados do Gráfico 5, percebe-se que a maior parcela das pessoas que exercem atividades informais está concentrada nível de escolaridade do ensino médio completo (36,8%), seguida pelos que declaram ter o nível fundamental incompleto (24%) e pelos que têm ensino superior ou mais (16,3%). O gráfico atesta que 10,9% dos trabalhadores concluíram o ensino fundamental, 6,6% não completaram o ensino médio e 5,9% não estudaram. 3.2 O trabalho informal na RMBH e em Montes Claros: estratégia de sobrevivência ou alternativa de vida? Pressupondo-se que na Região Metropolitana de Belo Horizonte e em Montes Claros, como em quase todos os centros urbanos do país, a informalidade é 90 caracterizada pela heterogeneidade, ou seja, o “determinismo” econômico dos trabalhadores que se encontram na classificação “estratégia de sobrevivência”, a abordagem social será relacionada aos trabalhadores componentes da categoria “alternativa de vida”, ou seja, aquelas pessoas que, mesmo tendo oportunidade de estar no setor formal, preferiram a informalidade, ou que levam em conta outros fatores, não só a sobrevivência, para ingressarem e permanecerem nesse setor. Contudo, faz-se conveniente relembrar que, por ser o setor tão heterogêneo, na maioria das vezes, do ponto de vista empírico, fica difícil traçar uma linha diferenciadora entre a estratégia de sobrevivência e a alternativa de vida. 3.2.1 O que dizem os dados dos surveys da RMBH e de Montes Claros A estratégia analítica adotada pretende verificar os motivos que levam as pessoas a exercerem atividades informais e estabelecer algumas comparações entre trabalhadores do setor formal e trabalhadores do setor informal. Assim, escolhemos duas variáveis que possibilitam a comparação entre os referidos setores. A primeira variável empregada para comparação é a renda média mensal, segundo a forma de trabalho. Os dados do Gráfico 6 mostram que trabalhadores do setor formal têm, em média, rendimentos superiores aos dos trabalhadores informais. Do total dos entrevistados, 44% da ocupação formal e 34,8% da ocupação informal declararam receber renda correspondente a mais de um e menos de três salários mínimos. Na faixa correspondente a mais de três até cinco salários mínimos, encontramos 23,8% das pessoas que exercem atividades formalizadas e 20,4% das que exercem atividades informais. Entre aqueles que recebem o equivalente a mais de cinco até 10 salários mínimos, encontramos 18,8% dos trabalhadores formais e 16,9% dos informais. A exceção fica por conta da faixa equivalente a mais de 10 salários mínimos, onde o gráfico supracitado aponta que 25% dos trabalhadores informais e 11% dos formais estão inseridos nessa faixa salarial. Os dados explicitam que, embora, na maioria das vezes algumas pessoas estejam inseridas no setor informal, elas são movidas pela estratégia de sobrevivência. Mas, na maior faixa de rendimento (equivalente a mais de 10 salários mínimos), verifica-se que o percentual de pessoas formalmente ocupadas (11%) é inferior ao percentual observado para os trabalhadores informais (25%). Isto sugere que algumas pessoas se inserem no setor informal movidas pela alternativa de vida. 91 A pesquisa revela que não há grande discrepância de rendimentos entre os trabalhadores ocupados formalmente e informalmente. Ocorre que, à medida que a renda aumenta, como no caso das faixas de mais de três até cinco e mais de cinco até 10 salários mínimos, os percentuais ficam mais próximos. Entre os que têm renda equivalente a mais de 10 salários, os trabalhadores informais são maioria em relação aos formais, confirmando o que foi discutido anteriormente, isto é, a heterogeneidade que é característica inerente da informalidade. 44 45 40 34,8 35 30 25 20,4 25,6 23,8 18,8 16,9 20 11 15 10 5 2,2 2,5 0 M e nos de 1 SM 1 a 3 SM M ais de 3 M ais de 5 M ais de a 5 SM a 10 SM 10 SM Ocupação inform al Ocupação form al GRÁFICO 6 – Renda média mensal em salários mínimos segundo forma de ocupação em Belo Horizonte (%) Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005 Analisando a renda média mensal, por ocupação, no Município de Montes Claros, observamos pelo Gráfico 7 que, dos que recebem rendimentos entre um e três salários mínimos, 56,5% estão ocupados informalmente e 64,6% estão no mercado formal. Também entre aqueles que têm rendimentos equivalentes a mais de três até cinco salários mínimos, a porcentagem de trabalhadores formais é maior (20% no mercado formal e 16,3% no mercado informal). Entretanto, os dados apontam um aspecto interessante nas faixas de mais de cinco até 10 salários mínimos e mais de 10 salários mínimos: nessas faixas, a tendência é aumentar a porcentagem de pessoas que exercem atividades informais, pois 17,1% dos trabalhadores informais e 10,8% formais declararam receber o equivalente a mais de cinco até 10 salários mínimos e 5,7% dos informais e 1,4% dos formais têm rendimentos superiores a 10 salários mínimos, a exemplo do que ocorre em Belo Horizonte. 92 Entretanto, não se pode deixar de considerar que, ao exercer atividades informais, os seus componentes têm apenas aquele rendimento, perdendo alguns benefícios que são garantidos no mercado formal, como férias, 13º salário, vale-transporte, etc. 64,6 70 56,9 60 50 40 30 16,3 20 10 4,1 20 17,1 3,1 10,8 5,7 1,5 0 M e nos de 1 SM 1 a 3 SM M ais de 3 M ais de 5 M ais de a 5 SM a 10 SM 10 SM Ocupação inform al Ocupação form al GRÁFICO 7 – Renda média mensal em salários mínimos dos trabalhadores segundo forma de ocupação em Montes Claros (%) Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros - 2005 Os dados dos Gráficos 6 e 7 possibilitam duas hipóteses: 1) provavelmente os trabalhadores informais que têm renda média acima de cinco salários mínimos são pequenos empresários e exercem atividades formais e informais; 2) a maior parcela dos trabalhadores está concentrada na faixa de rendimentos entre um e três salários mínimos, evidenciando que, qualquer que seja a cidade, uma grande parcela de pessoas está percebendo rendimentos muito baixos. Tabela 4 – Jornada de trabalho semanal segundo a forma de trabalho Cidade RMBH Jornada de trabalho semanal Mais de 20 a Mais de 40 Até 20 horas Total 40 horas horas ocupação F % F % F % F % Informal 50 15,5 149 40,8 164 43,7 363 100 Formal 11 3,8 97 30,9 205 65,3 313 100 Tipo de Montes Claros Informal 18 13,3 49 36,3 68 50,4 135 100 93 Formal 2 2,7 17 23 55 Fonte: Pesquisa da RMBH e Município de Montes Claros – 2005 74,3 74 100 A segunda variável refere-se às horas semanais de trabalho. Observa-se, na Tabela 4, que a parcela de trabalhadores informais apresenta-se maior que os trabalhadores formais, na jornada de trabalho de até 20 horas: 3,8% no mercado formal e 15,5% no informal, na RMBH, e 2,7% (formal) e 13,3% (informal) em Montes Claros. Essa tendência também foi verificada entre os que têm uma jornada de mais de 20 a 40 horas, em que o percentual de trabalhadores informais é maior do que o de formais, tanto em Belo Horizonte (40,8% e 30,9%), quanto em Montes Claros (36,3% e 23%). Entretanto, quando a jornada de trabalho aumenta, tende a aumentar a proporção de pessoas que exercem atividades formais em relação àquelas que exercem atividades informais (43,7% e 65,3% para os trabalhadores da RMBH e 50,4% e 74,3%, respectivamente, para Montes Claros). Uma possível explicação para o fato de os trabalhadores formais serem maioria na faixa de jornada de mais de 40 horas semanais pode ser encontrada na Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), que regulamenta a jornada de trabalho formal em 44 horas semanais. Embora concordemos com os pesquisadores de que nesta área não é possível traçar, do ponto de vista empírico, uma linha diferenciadora entre a estratégia de sobrevivência e a alternativa de vida, ficou comprovado empiricamente que não há muita diferença nos padrões de consumo das pessoas que estão na informalidade em relação àquelas que estão na formalidade. Talvez a diferenciação que favoreça os componentes do mercado formal seja o fato de este assegurar uma série de direitos (aposentadoria por tempo de serviço, férias, décimo terceiro salário, entre outros), que não são garantidos aos trabalhadores do setor informal. 3.3 Vantagens e desvantagens do trabalho informal: a visão dos sujeitos Quando questionada sobre os motivos que a levaram a escolher um trabalho sem carteira assinada, em vez de trabalhar no mercado formal, obtivemos a seguinte resposta de uma colaboradora: A vantagem de trabalhar informalmente é que você pode fazer seu horário. De manhã toma conta da casa e a tarde sai pra vender. O horário quem faz é você. E, 94 dependendo também de quando você começa a trabalhar, as pessoas começam a te conhecer e vão até a sua casa. Então, tem essa vantagem, às vezes você atende suas clientes em sua casa. O horário quem faz é você, se você quiser ganhar mais, você vai trabalhar mais; se achar que esse mês está fraco pode descansar mais. Não é como no trabalho formal, porque a pessoa, querendo ou não, tem que ir. (Colaboradora 29 - casada, 25 anos – ensino fundamental completo). A flexibilidade do horário é considerada como uma vantagem pela Colaboradora 29, tanto em relação à organização do processo de trabalho em si, mas, fundamentalmente, devido à possibilidade de conciliar as atividades informais (vendedora) com as suas responsabilidades com a casa. Nesse contexto, por não ter que cumprir um horário rígido, ela considerou essa flexibilidade como uma vantagem, pela condição de “decidir” o horário em que vai trabalhar na casa ou na rua. No meu caso mesmo, você tem possibilidade de ter melhores salários, você tem possibilidade de fazer sua jornada de trabalho, escolher qual horário você quer trabalhar, tem a questão da especialização, você se preocupa mais em se especializar, se preocupa mais em estudar, e eu acho que quando você está no mercado de trabalho formal você é pago pra fazer determinado serviço, muitas vezes você não tem a oportunidade de estar exercendo outras funções. No mercado informal não, você tem que se desdobrar, fazer de tudo um pouco, isso eu vejo como positivo. (Colaborador 24 – solteiro, 29 anos – ensino superior completo). Este aspecto foi considerado por quase todos os componentes dos grupos focais. Além deste, outros elementos foram apontados pelos colaboradores como vantagens no setor informal em relação ao mercado formal: o fato de a renda auferida no setor informal ser mais alta do que aquela obtida exercendo a mesma função e se submetendo às regras da formalidade, como o cumprimento de horários, a existência de um patrão, entre outros. O fato de a informalidade não oferecer qualquer tipo de garantia legal para aqueles que nela estão inseridos faz com que eles tenham que utilizar a criatividade, sempre buscando aperfeiçoar-se para o desempenho de suas atividades profissionais. Portanto, essa situação de incerteza em relação ao futuro foi considerada como um elemento motivador para a busca de especialização constante, sobretudo no ramo de prestação de serviços. Neste, especialmente para quem está no ramo da informática, há necessidade de atualização constante para acompanhar as exigências e/ou demandas do mercado, como considerou o Colaborador 24. Entretanto, o setor informal é composto tanto por pessoas que estão inseridas por “opção”, como também por aquelas que foram “obrigadas” a ingressar nesse tipo de 95 atividade, para garantir a sobrevivência. Assim, considerando essa heterogeneidade, foram citadas, também, algumas desvantagens no exercício de atividades informais. A desvantagem que leva a gente a ficar inseguro. É um compromisso que a gente não pode fazer, é uma coisa muito insegura, eu não sei se amanhã a minha condição física, se eu vou conseguir tirar aquele tanto que eu fiz o compromisso. A gente fica com medo de fazer uma dívida. Às vezes a gente tem a necessidade de fazer a dívida, mas fica inseguro, porque a gente não tem certeza do que vai tirar. No mês que vem de repente acontece uma surpresa e a gente fica sem saber. (Colaboradora 35 – solteira, 22 anos – ensino médio incompleto). Pela fala da Colaboradora 35, fica clara a situação de risco que caracteriza as atividades informais. Ela destaca a insegurança como uma desvantagem e cita duas razões: a primeira é que, na condição de trabalhadora informal, ela não tem tanta facilidade para fazer qualquer tipo de financiamento 16 e/ou crediário, já que os estabelecimentos bancários e comerciais exigem comprovação de renda. As pessoas com contrato de trabalho formal não enfrentariam esse tipo de dificuldade. A segunda razão apontada por ela é em relação ao total do rendimento a ser auferido com o trabalho. Pode haver um mês em que ela tenha um rendimento que dê para arcar com compromissos e/ou despesas contraídas, mas em outro mês a situação pode ser diferente. É interessante observar pelo depoimento, em que pese a algumas vantagens contidas em outras falas, que a maior desvantagem do trabalho informal é não ter qualquer tipo de segurança, portanto, não poder contar com uma renda todo mês, por exemplo. A única vantagem de trabalhar é chegar ao final do mês e ter o seu dinheirinho. Informalmente pra mim é horrível, porque minha coluna é terrível Eu fico sentada fazendo unha, quando eu levanto, na verdade eu não levanto, eu fico encurvada, então eu sinto que quando eu estou fazendo unha eu estou só agravando a minha coluna. Então tem coisas que você faz que mexem com o seu ego. Quando estou fazendo unha, por exemplo, eu penso que já estou com 57 anos e olha só o que eu posso fazer. Outras vezes você faz e não fica recompensada, puxa vida “eu poderia ter feito melhor”, mas a vista não deixou, a coluna não deixou. Na verdade, aí algumas pessoas vão e elogiam, enchem o seu ego, essa é uma recompensa, mas recompensa mesmo só o dinheirinho. Porque na verdade, a verdade é a seguinte, eu não gosto de trabalhar. Eu trabalho porque eu preciso, porque quando eu tinha, eu já tive uma condição financeira melhor, eu era só dona de casa, nunca fui madame, mas sempre fui dona de casa. Nunca achei tempo ocioso um problema, sempre fui ótima companhia pra mim mesma. A única vantagem que eu vejo em trabalhar é poder ganhar meu dinheiro, é só isso. (Colaboradora 16 – divorciada, 57 anos – ensino médio completo). 16 Apenas alguns bancos, como o Banco de Nordeste, têm algumas modalidades de crédito exclusivas para as pessoas que estão inseridas no setor informal. 96 A fala da Colaboradora 16 deixa transparecer toda a sua angústia, pois ela já teve um emprego no mercado formal, onde trabalhou por vários anos, e, depois, quando foi excluída, já com idade avançada, não conseguiu reingressar. Assim, o setor informal foi uma saída, já que não teve alternativa de trabalho para garantir a sobrevivência. Portanto, a fala dela se encaixa na tese defendida por Hirata e Humphrey (1989) de que “nos períodos de crise, um declínio do emprego formal seja acompanhado pelo crescimento do trabalho por conta própria e sem carteira assinada” (p.71). A fala da colaboradora permite-nos acreditar que, quando as mulheres saem do emprego formal, elas têm maior dificuldade de retorno. Um desdobramento interessante das falas acima é que, ao considerarem a situação de incerteza e insegurança do setor informal, as pessoas chamam para si a responsabilidade com o resultado. Apesar de entenderem que a informalidade é caracterizada por vantagens como possibilidade de auferir renda maior, controle sobre o horário e o processo de trabalho, etc., ao mesmo tempo se colocam como subordinadas a elas mesmas, na medida em que o fato de trabalharem mais ou menos vai ter conseqüências que terão que ser assumidas. Ao contrário, as pessoas que estão inseridas no mercado formal são subordinadas a várias regras, mas não têm “responsabilidade” com o provimento do seu salário, pois suas funções são de produção, e a função de administração (salários) é exercida pelo patrão. 3.4 O trabalho informal: o sentido da “escolha” Observa-se pelas falas que não existe um consenso em relação ao ingresso no setor informal, o que confirma a característica de heterogeneidade apontada pela revisão da literatura. Na realidade, essas falas configuram duas situações de ingresso: em primeiro lugar, identificamos alguns que declararam terem sido forçados a ingressar nesse tipo de atividade, por falta de oportunidade de trabalho no setor formal. Dentre os fatores alegados para essa exclusão podemos destacar - a partir de algumas falas - o aumento do desemprego, a baixa escolaridade e a idade avançada. Portanto, falta de qualificação e de escolaridade limita a competitividade no mercado formal; conseqüentemente, empurra as pessoas para a informalidade. E se isso acontece até para 97 quem é jovem, a situação fica mais grave para as pessoas que estão próximas da terceira idade. Na verdade, não foi uma opção, foi mais forçado. Como eu moro de aluguel, a gente tinha que completar a renda lá em casa. Eu fiquei por muito tempo, coloquei muito currículo, mas discordo quando dizem que quando a gente está no meio não é mais fácil. Eu trabalhei oito anos de carteira assinada e nem por isso eu arrumei outro emprego. (Colaboradora 27 - casada, 21 anos – ensino médio completo). O depoimento da Colaboradora 27 mostra que o seu ingresso no setor informal foi em decorrência da sua exclusão do setor formal. Ela alega o fato de ter que contribuir com a renda familiar como a principal razão do seu ingresso na informalidade. A sua fala denota toda a insegurança que é característica da atividade informal, bem como a sua falta de qualificação profissional para competir em igualdade de condições com outras pessoas no mercado formal. Eu estou não por escolha, a vida inteira eu fui auxiliar de contabilidade, trabalhei regularmente em um escritório de contabilidade, mas há alguns meses que eu fiquei desempregada e permaneço desempregada porque tem uma coisa esquisita que está acontecendo hoje, os jovens não têm oportunidade porque não têm experiência, aos 40 você já é velha e aos 50? Porque eu estou com 57. Aí o meu problema é agregado ao fato de eu ter muita experiência e quando você tem experiência você precisa de uma faixa salarial melhor, a experiência e o excesso de idade. (Colaboradora 16 – divorciada, 57 anos – ensino médio completo). A fala da colaboradora mostra que tanto a idade avançada quanto a falta de qualificação são fatores que limitaram as chances de reingresso no mercado formal. Ela tem o curso técnico em contabilidade e exerceu a profissão por vários anos, mas não continuou o seu processo de qualificação. Quando perdeu seu emprego no mercado formal não conseguiu outro emprego. Um aspecto interessante que deve ser ressaltado é que a colaboradora traz consigo, junto com a falta de esperança, a consciência de que, além da falta de qualificação, o fator idade é limitador para algumas pessoas, tanto as mais velhas, como ela, que já tem 57 anos, “que tem muita experiência”, quanto os mais jovens, “que têm pouca experiência”. Ou seja, o mercado não absorve os jovens e tampouco absorve as pessoas mais velhas, fenômeno já observado na literatura sobre o tema. O ingresso no setor informal se configurou como uma estratégia de sobrevivência para a colaboradora, na medida em que ela declarou não ter tido alternativa para garantir o seu sustento básico senão ingressar no mercado informal. 98 Eu acho que, na condição em que me encontro hoje, foi mesmo, como se diz, obrigação. Não é uma escolha, se tivesse como, se você pudesse conciliar esse serviço nosso com a carteira assinada, seria excelente pra nós.Você trabalhar em casa, fazer seu serviço com a carteira assinada seria pra nós o mundo perfeito, você está abrangendo tudo. Você está pegando família, pegando tudo. E não tem aquela problemática toda de sair de casa e deixar pra trás, chegar à noite. Igual a nós que temos marido, infelizmente, às vezes devido à criação, a mulher tem sempre que ser submissa ao marido. Se a humanidade exige e nós queremos dar, mesmo mandando, ( igual sou eu que mando), isso é realidade. Você pode estar trabalhando lá fora, a sua cabeça realmente está na sua casa. E se houver uma oportunidade, uma chance pra nós de conciliar serviço de casa, esse trabalho informal com a carteirinha assinada, seria perfeito. (Colaboradora 10 – casada, 57 anos, ensino médio completo). Estes depoimentos comprovam que o ingresso desses trabalhadores no exercício de atividades informais não se deu em função de uma escolha, ao contrário, foi em função da sobrevivência. Essas pessoas perderam seus empregos no mercado formal e, como não encontraram outro emprego, foram obrigadas a entrar na informalidade, como forma de garantir o sustento para elas e suas famílias. Outro elemento importante é que o setor informal é de fácil acesso e não demanda maior especialização. Contudo, apesar de certa resignação com a atividade atual, percebe-se que essas pessoas acalentam o desejo de algum dia ser absorvidas por postos de trabalho do mercado formal. A segunda configuração é justamente o inverso desta: são pessoas que, mesmo tendo a oportunidade de ingressar no trabalho formal, optaram por trabalhar no setor informal. Assim, a exclusão (perda do emprego formal) ou a auto-exclusão (saída voluntária) foram às motivações que impulsionaram esse grupo de pessoas a ingressar no setor informal. Os depoimentos sugerem que, de um modo geral, os trabalhadores têm uma visão positiva do trabalho exercido, pois não cogitam deixar essa atividade para ingressar em outra formalizada. Portanto, o que se percebe é uma forte valorização do trabalho informal como fator definidor de ingresso e/ou permanência nesse setor. Eu já fiz de tudo: já vendi, já fui pedreiro, mas o que eu gosto mesmo é de pintar. Eu acho que essa é a minha vocação. É o que eu gosto e é a minha vocação. Eu consegui o meu primeiro emprego sozinho, trabalhei numa firma sem ser fichado. Eu preferi trabalhar a estudar, por isso eu tenho a quarta série. Depois eu fiz cursos por correspondência, aqueles do Instituto Universal Brasileiro, mas também não deu certo porque os materiais eram muito caros, tive que largar também. Aí, eu arrumei um trabalho informal porque eu ganhava muito mais. O mercado informal dava mais lucro do que o mercado formal. Aí, eu fui tomando mais gosto pela 99 pintura, mas eu optei pela pintura porque eu ganhava mais. (Colaborador 3 – 54 anos – ensino fundamental completo). No depoimento do Colaborador 3, nota-se que sua opção foi em função de sua falta de qualificação, já que ele não teve oportunidade de estudar, mas aprendeu a pintar e fez da pintura a sua escolha de trabalho. Ele se insere na motivação “estratégia de vida”, não por ter racionalmente optado pelo trabalho informal, abandonando o mercado formal, mas por ter tido sorte de escolher uma função dentro da construção civil que ainda é muito valorizada na cidade. Assim, embora ele declare que não teve qualificação profissional para competir no mercado formal, se considerarmos as suas condições - falta de estudo e idade avançada -, ele tem uma renda razoável em comparação com as faixas salariais encontradas na cidade. Bem, eu posso estar dividindo minha vida em etapas. Porque quando eu era mais novo eu tinha um sonho de trabalhar de carteira assinada, assim na fase dos 15, 16 anos, quando realmente eu tive a oportunidade de trabalhar no mercado de trabalho formal. Aí eu comecei a fazer assim como se fosse um contrapeso, medir as vantagens e as desvantagens. . No meu caso, assim, eu comecei a ver que ganharia mais trabalhando no mercado informal e felizmente eu sempre gostei. No meu caso específico, eu sempre tive a oportunidade de crescer muito rápido no serviço. Eu acredito assim e por isso eu passei a acreditar que o mercado informal acaba te dando mais oportunidades de estar crescendo dentro da empresa. Com 16 anos eu tive a oportunidade de ser gerente de um supermercado Meu patrão até chegou pra mim, eu lembro até hoje, falando assim, eu posso assinar a sua carteira, só que com carteira seu salário vai ser xis, se você trabalhar de forma assim, sem nenhum contrato, você vai ganhar mais, vai trabalhar mais, lógico, né?! Mas só que você vai ter um rendimento maior, seu serviço também vai ser mais flexível. (Colaborador 24 – 29 anos – ensino superior completo). Dois fatores devem ser observados para analisar as visões positivas desses colaboradores sobre a escolha pelo ingresso no setor informal. Por um lado, a renda auferida no trabalho atual, já que ambos apontam que têm rendimentos superiores aos que receberiam no mercado formal; por outro lado, o desejo de autonomia profissional. A possibilidade de definir racionalmente o seu crescimento e/ou aperfeiçoamento profissional constitui fator impulsionador da escolha por esse tipo de trabalho. Ao considerarmos elementos como independência financeira e autonomia, o exercício de atividades informais não pode ser correlacionado aos impedimentos do mercado formal, em decorrência de a pessoa ter sido excluída deste. Ao contrário, o ingresso foi motivado pelo desejo de autonomia profissional, tanto em termos da possibilidade de receber maiores rendimentos, quanto do desejo de crescer profissionalmente, porque essas pessoas 100 vislumbram no setor informal, até por não haver outros tipos de garantia - que, certamente, estariam presentes no mercado formal -, um impulso para estar sempre “correndo atrás”. Além desse conjunto de razões que motivaram a escolha pela informalidade, apontaram como motivos: a possibilidade de flexibilizar a jornada de trabalho, objetivando ter mais tempo para se dedicar ao estudo, por exemplo, e também a dificuldade de lidar com as regras da formalidade. Eu já tive oportunidade de trabalhar em vários lugares de carteira assinada, só que no meu caso é diferente do que eles falaram, porque eu já tive a oportunidade de ter um salário maior trabalhando de carteira assinada, só que eu não quis porque a jornada de trabalho era muito extensa e ia atrapalhar meus estudos. (Colaborador 22 – 22 anos – ensino superior completo). É interessante observar, a partir dos depoimentos dos Colaboradores 19 e 22, que a atividade que desenvolvem, na atualidade, não é a primeira experiência de trabalho, pois passaram por outros tipos de trabalho e deixaram “voluntariamente” esse trabalho para ingressar na informalidade. Eles estão nessas atividades por diversas razões, denotando assim certo espírito empreendedor, representado pela autonomia e liberdade que, em tese, são características inerentes ao setor informal. Para esses colaboradores, a possibilidade de autonomia, mesmo que fictícia, compensa a falta de algumas garantias que teriam no mercado formal. Assim, ao fazerem essa opção, fizeram valer os seus projetos individuais, pois a “autonomia decorrente da flexibilidade de que os agentes dispõem sobre o tipo e o tempo do trabalho que realizam permite que eles reelaborem suas experiências, tanto através de determinações recebidas, como em função daquilo que eles consideram desejo e vontade” (Vidal, 1996, p.117). O depoimento abaixo é bastante profícuo para corroborar essas afirmações. Bem, no meu caso eu tive a oportunidade também de trabalhar com carteira assinada, eu queria experiência, mas eu não gostei, não pelo salário, mas pela mesmice, você não tinha a oportunidade de ser criativo, fazer alguma coisa diferente, você não tinha essa oportunidade, e eu odeio regras. Então eu achei que trabalhando informalmente eu tinha alternativas, eu poderia fazer alguma coisa, e exige mais de você, você tem mais vontade de correr atrás, de criar alguma coisa, um produto ou alguma coisa assim. Então, graças a Deus, eu escolhi essa área, porque se eu estivesse trabalhando na área em que eu tive oportunidade hoje eu não estaria aqui fazendo faculdade. Nessa experiência que eu tive, eu comecei a acomodar, então, depois que eu saí, eu falei, puxa vida, eu fiquei esse tempo todo aí eu achei melhor informalmente, pra não acomodar, porque senão eu ficaria lá até hoje, não teria produzido nada. Então, eu sou informal por opção. (Colaborador 19 – 24 anos – ensino médio completo). 101 Essas declarações sugerem que, para esses colaboradores, a busca de autonomia aparece como uma estratégia que visa responder ao aumento de rendimentos, à flexibilidade de horários e, conseqüentemente, à não subordinação a patrões, como fatores que motivaram o ingresso e permanência no setor informal. Entretanto, em seus depoimentos, não se percebem as inseguranças e angústias comumente presentes nas análises das atividades informais: o que levam em conta é, justamente, uma motivação para sair da rotina, da mesmice, para não se acomodar. Assim, o ingresso não é pautado pela subordinação à lógica do mercado (sobrevivência), mas se torna uma alternativa de vida. 4. Considerações Finais A guisa de conclusão podemos considerar que o setor informal se caracteriza por uma heterogeneidade, que comporta pessoas que estão inseridas devido a exclusão do setor formal e pela incapacidade de ser reabsorvido no mesmo. Estas atividades contribuem para o aprofundamento da situação de pobreza que estes indivíduos se encontram, como também pessoas que exercem atividades informais movidas por outros aspectos, como flexibilidade de horários, ser o próprio “patrão”, possibilidade de auferir maiores rendimentos. Enfim, constatamos pelo exame da literatura sobre a temática e pela análise dos dados empíricos que – pela heterogeneidade que marca o setor informal – este não pode ser um fator responsável pelo agravamento da pobreza, pois se uma parcela dos seus componentes – que pode até ser maioria – estão nele por estratégia de sobrevivência, pela exclusão dos postos de trabalho formal, existem também aqueles que poderiam estar no setor formal, mas que optaram por trabalharem na informalidade. Assim ao mesmo tempo em que o setor informal contribui para agravar a situação de pobreza, ele também pode se tornar uma alternativa eficiente de combate a mesma, na medida em que – como foi comprovado pelos dados empíricos – existem pessoas que recebem um rendimento maior no setor informal do que receberiam se estivessem no setor formal. 5. Referências CACCIAMALI, Maria Cristina. Informalidade contemporânea na América Latina. Rio de Janeiro. IPEA, 1999. 102 FERREIRA, Maria da Luz A. Trabalho Informal e Cidadania: heterogeneidade social e relações de gênero. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas (Sociologia e Política), da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007 FUENTES, Maritzel Rios. Setor Informal e Reestruturação Produtiva. Paraná-Curitiba: Secretaria de Estado de Emprego e Relações de Trabalho, 1998. GASKEL, George. Entrevistas individuais e grupais. In BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som: Um manual pratico. Petrópolis, RJ, 2002. HIRATA, Helena; HUMPHREY, John.Trabalhadores desempregados: trajetórias de operárias e operários industriais no Brasil. In Revista Brasileira de Ciências Sociais n.º 11. Vol. 4 out, 1989. KLEIN, Emílio. Emprego e Heterogeneidade do Setor Informal. In Classes e Movimentos Sociais na América Latina. Sônia Laranjeira (org.) São Paulo: Hucitec, 1990. MALAGUTI, Manoel Luiz. Crítica à Razão Informal: A imaterialidade do trabalho. 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Cedeplar/UFMG. * Cedeplar/UFMG. 104 Na literatura internacional tem havido um consenso que a falta de acesso à escola, a evasão e a repetência constituem três grandes problemas enfrentados pelos sistemas educacionais contemporâneos. São problemas que atingem, sobretudo, as primeiras séries do ensino fundamental, principalmente nas escolas dos países menos desenvolvidos. No Brasil, o problema do acesso à escola, nesse nível de ensino, está prestes a ser solucionado. Contudo, o país ainda tem taxas de repetência e de evasão que estão entre as mais altas do mundo. Esse artigo visa a identificação e análise dos determinantes da probabilidade de ocorrência de um desses eventos: a evasão escolar. Foram utilizadas bases de dados longitudinais (fruto de uma parceria firmada entre o Cedeplar e o INEP), além do Censo Escolar de 1999. O método utilizado foi o dos modelos hierárquicos logísticos longitudinais. A coorte de alunos foi acompanhada desde sua matrícula na 4ª série em 1999 até 2003, quando deveria concluir a 8ª série. São alunos matriculados em algumas escolas situadas em alguns estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ou seja, regiões brasileiras que apresentam os piores indicadores educacionais. Através dos modelos estimados, verificou-se que os fatores relacionados à escola têm pequeno impacto sobre a evasão. Ao contrário, o background familiar, mensurado pelo nível socioeconômico, teve um papel mais significativo. Esse resultado condiz com uma conclusão presente no Relatório da Unesco (2008). Segundo o Relatório, mesmo as boas escolas, se localizadas nos países em desenvolvimento, são incapazes de reter o aluno na escola, caso ele esteja submetido a uma situação de extrema pobreza. Os resultados obtidos permitem inferir que a saída do aluno do sistema escolar está fortemente associada à sua inserção no mercado de trabalho, evidenciando a necessidade de políticas públicas de combate à pobreza e, consequentemente, de políticas educacionais que favoreçam a permanência do aluno na escola. Mais especificamente, permanência com promoção nas sucessivas séries. 1. Introdução É consensual, na literatura internacional, que a falta de acesso à escola, a evasão e a repetência constituem três grandes problemas enfrentados pelos sistemas educacionais contemporâneos. Esses problemas atingem, sobretudo, as primeiras séries da educação fundamental dos diversos países, principalmente daqueles menos desenvolvidos. No Brasil, o problema do acesso à escola, no ensino fundamental, está em vias de ser solucionado. Em 2006 a taxa de escolarização para as crianças de 7 a 14 anos correspondeu a aproximadamente 98% (PNAD, 2006). Contudo, o país ainda tem taxas de repetência e evasão que estão entre as mais altas do mundo. Nesse artigo, ênfase é dada à evasão escolar, cuja taxa nacional equivaleu a 6,8% em 2003. O desenvolvimento desse artigo baseou-se na análise da trajetória escolar de uma coorte de alunos matriculados na 4ª série do ensino fundamental, em 1999, pertencentes a escolas situadas nas áreas urbanas de microrregiões localizadas em alguns estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país. Ou seja, o estudo abrange escolas das regiões que 105 apresentam os piores indicadores educacionais do país. Os alunos foram acompanhados até 2003, ano em que deveriam concluir a 8ª série. Os principais objetivos do estudo são a identificação e análise dos determinantes da probabilidade de ocorrência da evasão, entre a 4ª e a 8ª série. A suposição é que alunos com baixo nível socioeconômico possuem maior probabilidade de evadir do sistema escolar, uma vez que precisam entrar na força de trabalho mais precocemente para complementar a renda domiciliar. Foram utilizados os bancos de dados “Avaliação de desempenho: fatores associados” e Ficha Histórico Escolar, ou “Ficha B”, frutos de uma parceria firmada entre o CEDEPLAR e o INEP; além do Censo Escolar de 1999. O método analítico utilizado foi o dos modelos hierárquicos logísticos longitudinais. A estimação dos modelos se baseou na Função de Produção Educacional - FPE – cuja especificação indica que o desempenho do aluno é uma função dos insumos familiares, dos insumos acumulativos das escolas/pares e de outros insumos relevantes, além da sua habilidade natural. Diferentemente das variáveis-resposta comumente utilizadas (resultados de testes aplicados), o resultado educacional foi medido pela variável evasão escolar. Outra inovação relacionada à estrutura formal da FPE refere-se à estrutura dos dados existentes. Devido à estrutura hierárquica dos dados educacionais foram estimados modelos logísticos hierárquicos longitudinais de três níveis: nível 1, intra-alunos; nível 2, inter-alunos e; nível 3, entre escolas. No primeiro nível, a variável-resposta é uma função do tempo (série) associado à ocorrência do evento e de fatores relacionados aos alunos, que mudam ao longo do tempo; no segundo, das características fixas dos alunos e, no terceiro, dos fatores relacionados às escolas. Um dos méritos desses modelos é que eles permitem verificar como as variáveis num determinado nível afetam as variáveis nos demais níveis. Nessa investigação, ainda que a análise realizada para a coorte não contemple o ensino fundamental na sua totalidade, pois as séries estudadas variam da 4ª a 8ª, a expectativa é que os resultados obtidos contribuam efetivamente para um melhor direcionamento das políticas educacionais (públicas ou internas às escolas) no sentido de se reduzir a ocorrência desse evento no sistema educacional brasileiro. Esse artigo está organizado em cinco seções. A primeira, essa parte introdutória. Na segunda, são feitas algumas considerações sobre a evasão escolar no ensino fundamental 106 brasileiro. Na terceira é apresentada a metodologia de análise e dados. A quarta contempla os resultados e discussão e, a última, as considerações finais. 2. Evasão escolar no ensino fundamental brasileiro: algumas considerações Muitos estudos têm apontado que a falta de acesso à escola, a repetência e a evasão são alguns dos principais problemas enfrentados pelos sistemas educacionais contemporâneos. Estes problemas afetam, principalmente, os alunos matriculados nas primeiras séries do ensino fundamental e que freqüentam escolas localizadas nos países em desenvolvimento (sobretudo nas áreas rurais). No Brasil, o Censo Demográfico de 2000 apontou para uma tendência à universalização no acesso à escola, para o ensino fundamental. Os dados censitários mostraram uma cobertura de quase 95% para as crianças de 7 a 14 anos. Dados mais recentes (PNAD, 2006) mostraram que a taxa de escolarização18 para os estudantes desse grupo etário equivaleu a quase 98%. Considerando que a questão do acesso à escola está em vias de ser solucionado, nos últimos anos a atenção dos pesquisadores brasileiros tem sido direcionada basicamente para os problemas da repetência e da evasão. COSTA-RIBEIRO (1993), analisando dados dos censos escolares para a década de 80, percebeu que havia uma grande distorção entre a população na faixa etária de 7 a 14 anos e a população matriculada no ensino fundamental. Em algumas séries, existiam mais alunos matriculados do que o total de crianças na idade correspondente à série. Posteriormente, utilizando dados das Pesquisas Nacionais de Amostragem por Domicílios (PNAD’s), alguns autores (KLEIN, 1995; FLETCHER, 1997) constataram que o problema apontado por Costa-Ribeiro estava associado à repetência, que retinha as crianças na escola. Estes autores, através do modelo Profluxo (desenvolvido para o cálculo de taxas de transição para as sucessivas séries), perceberam um outro importante aspecto: a evasão escolar estava fortemente associada à reprovação, no sentido de que após sucessivas reprovações as crianças abandonavam a escola. É consenso que as taxas de repetência estão relacionadas à baixa qualidade do ensino. Nesse sentido, alguns estudos têm focado esse problema tão acentuado no sistema de ensino brasileiro. O trabalho desenvolvido por SOUZA (2001) centra-se na questão da baixa qualidade do ensino, expressa pelas altas taxas de repetência e evasão. Seu estudo é restrito ao estado de São Paulo. Ela refere-se às políticas adotadas a partir de meados da década de 80 no estado, entre elas, a implementação do ciclo básico, ou promoção automática. 18 A taxa de escolarização corresponde à percentagem de estudantes de um determinado grupo etário em relação à população do mesmo grupo etário. 107 A autora desenvolve seu trabalho abordando o polêmico debate relacionado à incompetência do professor, estudando a perspectiva dos professores com relação a ações de uma educação continuada. Questiona a ênfase dada ao argumento da incompetência do professor como principal explicação para o mau desempenho do sistema educacional. Segundo o argumento, a principal estratégia a ser adotada para melhorar a qualidade do ensino é aumentar a competência dos professores através de programas de educação continuada. Ela contesta o pensamento dominante, considerando que a educação do professor não pode ser tomada como a única causa da baixa qualidade do ensino no país. Argumenta que são necessárias condições de trabalho adequadas para o desenvolvimento do trabalho de magistério, além da reformulação de planos de carreira dos professores e salários decentes. Destaca também que devem ser considerados outros importantes fatores como a pobreza, o desemprego, o sistema de habitação e saúde, entre outros. A qualidade do ensino tem sido mensurada, principalmente, através de testes padronizados de rendimento ou através do desempenho escolar do aluno. Neste contexto, nos anos recentes tem crescido o número de estudos, no país, analisando o desempenho acadêmico dos alunos matriculados no ensino fundamental (entre eles, RIOS-NETO, CÉSAR e RIANI, 2002; MACEDO, 2004; RIANI, 2005; PEREIRA, 2006). Nesse estudo, ênfase é dada ao problema da evasão escolar. O GRÁF. 1 mostra o comportamento das taxas de evasão ao longo das séries do ensino fundamental, para o ano de 2003. Observa-se que as taxas aumentam gradativamente ao longo das séries, sendo mais elevadas na última série do ensino fundamental. Os valores mínimo e máximo para esse indicador são 1% e 12,5% respectivamente, sendo a taxa total igual a 6,8%. GRÁFICO 1 Taxas de evasão por séries, ensino fundamental: Brasil, 2003. 108 15,0 12,0 9,0 6,0 3,0 8ª série 7ª série 6ª série 5ª série 4ª série 3ª série 2ª série 1ª série Total 0,0 Fonte: MEC/INEP, 2003. O relatório da UNESCO (2008), baseado em dados educacionais para o ano de 2005, destaca que as causas da evasão são múltiplas e complexas, abrangendo situações específicas dos diversos países, fatores particulares do aluno e o nível das redes de ensino. Entre os problemas das redes de ensino, são citados a falta de recursos e de segurança nas escolas, o excesso de alunos nas salas de aula e a falta de qualificação dos professores. Foi relatado que nos países em desenvolvimento, mesmo as escolas bem equipadas são incapazes de evitar a evasão, se o aluno estiver submetido a uma situação de pobreza ou miséria. Mas foi frisado que diante dos problemas enfrentados pelo aluno (pessoais, familiares, financeiros, de trabalho) as escolas podem evitar sua saída do sistema ao dar-lhe o apoio necessário para lidar com as dificuldades externas à sala de aula. 2.1 A evasão escolar na coorte sob estudo: algumas questões Nesse artigo, a principal pretensão é identificar, através da estimação de modelos hierárquicos longitudinais, os principais fatores explicativos da ocorrência da evasão entre a 4ª e a 8ª série, na coorte sob estudo. Pretende-se verificar até que ponto esses fatores contribuem para um melhor entendimento do problema, no ensino fundamental. Os seguintes questionamentos podem ser levantados: i) Em que medida a probabilidade de evasão para um aluno específico é afetada pela proficiência dos seus colegas de escola? 109 ii) Na identificação dos determinantes da ocorrência do evento de interesse, são consideradas variáveis associadas à trajetória escolar passada e contemporânea do aluno. Em que medida tais variáveis contribuem para aumentar ou reduzir a probabilidade de ocorrência do evento? iii) Entre as variáveis relacionadas ao background familiar e à escola, quais são mais importantes para reduzir a probabilidade de saída do aluno do sistema escolar? iv) Qual o efeito do contexto socioeconômico regional sobre a ocorrência da evasão no ensino fundamental? Uma importante contribuição desse artigo está relacionada às respostas às questões levantadas. 3. Metodologia e dados O desenvolvimento desse artigo baseou-se no acompanhamento de uma coorte de alunos matriculados na 4ª série do ensino fundamental, em 1999. Essa coorte foi acompanhada até 2003, ano em que os alunos deveriam concluir a 8ª série. Esses alunos pertenciam à escolas situadas nas áreas urbanas de microrregiões localizadas em alguns estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Ou seja, o estudo abrange escolas das regiões que apresentam os piores indicadores educacionais do país. 3.1 Metodologia O método analítico utilizado foi o dos modelos hierárquicos logísticos longitudinais. A estimação dos modelos se baseou na Função de Produção Educacional - FPE – cuja especificação indica que o desempenho do aluno é uma função dos insumos familiares, dos insumos acumulativos das escolas/pares e de outros insumos relevantes, além da sua habilidade natural. A especificação do modelo é apresentada na sequência. 3.1.1 Especificação do modelo incondicional Os modelos de regressão hierárquicos partem do pressuposto que há uma estrutura hierárquica nos dados. Cada um dos níveis, na estrutura hierárquica, é representado por um sub-modelo, que expressa o relacionamento entre as variáveis dentro de um determinado 110 nível, além de especificar como as variáveis num nível influenciam os relacionamentos que ocorrem noutros níveis. Nesse artigo, os modelos hierárquicos estimados são logísticos, sendo que a variávelresposta refere-se à probabilidade de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental. Para modelar essa probabilidade, foi utilizado o valor “1” para denotar a ocorrência do evento e o valor “0” caso contrário. Para verificar a dimensão da variação entre as escolas na probabilidade de evasão num determinado ano letivo t, inicialmente os modelos de nível 1 e 2 foram estimados sem a inclusão de covariáveis. O modelo de nível 1 foi assim especificado: η ij = β 0j (1) No nível 2 a equação correspondente é: β 0j =γ 00 + u0j (2) A substituição de (2) em (1) resulta em: η ij = γ 00 + u0j (3) Sendo: i = 1, 2, ... , I unidades de nível 1 (alunos); η ij γ 00 j = 1, 2, ... , J unidades de nível 2 (escolas); = o log da chance de sucesso (ocorrência do evento) para o aluno i, na escola j; = o parâmetro da parte fixa do modelo, que corresponde ao log-odds médio de evasão entre as escolas; u 0 j = o efeito aleatório relacionado ao nível 2 (das escolas). Através da estimação do modelo incondicional é possível estimar a variabilidade relacionada com cada um dos níveis. No modelo logístico, cujos erros aleatórios seguem uma distribuição binomial, a variância do nível 1 não é constante. Em geral, considera-se o valor π2/3 = 3.2919. Nesse caso, o coeficiente de correlação intra-níveis, é assim calculado: uoj uoj + (π 2 / 3) (4) Parte dessa variabilidade pode ser explicada através da inclusão de covariáveis nos diferentes níveis. 19 Ver: Snijders e Boske (1999). 111 No caso específico desse artigo, as equações anteriores foram estendidas para incorporar três níveis, que refletem a estrutura de dependência existente nos dados longitudinais utilizados. O nível intra-alunos (nível 1) refere-se às mudanças relacionadas ao aluno, ocorridas ao longo do período. Nesse nível, a dependência entre as observações ocorre em função do mesmo aluno ser medido “n” vezes ao longo do estudo. O nível inter-alunos (nível 2) possibilita verificar quais mudanças individuais ao longo do tempo diferem entre os alunos em função de suas características fixas. Nessa estrutura hierárquica, os fatores intraalunos estão aninhados nos fatores inter-alunos. Como os alunos estão aninhados dentro das escolas, tem-se um terceiro nível relacionado aos fatores. Novas especificações são apresentadas com a inclusão das variáveis nesses níveis. 3.1.2 Especificação do modelo condicional A trajetória temporal da evasão pode ser descrita pela equação de nível 1 abaixo: η ij = β 0 j + β 1 j S ij (5) Como estudos têm apontado que em geral a evasão acontece após uma ou sucessivas reprovações na série, é conveniente incluir na regressão uma variável referente ao resultado escolar obtido pelo aluno no ano anterior à ocorrência do evento. A variável aprovação foi incluída na regressão, para fins de controle. A equação resultante tem o seguinte formato: η ij = β 0 j + β 1 j S ij + β 2 j Aij (6) Nesse nível são incluídas também as variáveis relacionadas aos alunos que explicam a variação em η ij . O vetor das variáveis que variam ao longo do tempo foi denominado X. Com a inclusão desse vetor, tem-se a presente equação: η ij = β 0 j + β 1 j S ij + β 2 j Aij + β 3 j X ij (7) Os coeficientes β 0 j , β 1 j , β 2 j , β 3 j neste modelo de nível 1 tornam-se as variáveis-resposta nas equações para o nível 2. O pressuposto é que o intercepto, o parâmetro da trajetória temporal e o parâmetro relacionado ao vetor de variáveis que variam ao longo do tempo variam entre os alunos, em função das suas características fixas. Denotando-se o vetor com as características fixas de Z, o modelo de nível 2 é assim re-especificado: η ij = β 0 j + β 1 j S ij + β 2 j Aij + β 3 j X ij + β 4 j Z ij (8) Ao incluir os fatores associados à escola, cada coeficiente “β” da equação (8) torna-se uma variável-resposta no modelo de nível 3. Esse modelo, que contém um vetor com as variáveis de nível 3 permite verificar o efeito dos fatores escolares sobre a evasão. Tem-se o seguinte modelo final: 112 η ij = γ 00 + γ 01W j + γ 10 Sij + γ 20 Aij + γ 30 X ij + γ 40 Z ij + γ 11SijW j + γ 21 AijW j + γ 31 X ijW j + γ 41Z ijW j + uoj + u1 j Sij + u 2 j Aij + u3 j X ij + u 4 j Z ij (9) O logaritmo da chance de sucesso para o aluno i e o valor previsto da probabilidade são, respectivamente: ϕ ij η ij = log 1 − ϕ ij e ϕ ij = 1 1 + exp{ − η ij } (10) Importante ressaltar que a estimação dos modelos de regressão foi feita através do software MLWIN, versão 1.1. 3.2 Dados e variáveis Três foram as bases de dados utilizadas: i) “Avaliação de desempenho: fatores associados”; ii) Ficha Histórico Escolar, ou “Ficha B” e; iii) Censo Escolar de 1999. As duas primeiras são frutos de uma parceria firmada entre o CEDEPLAR e o INEP. As variáveis inseridas nas regressões são listadas a seguir. 3.2.1 Variáveis incluídas na modelagem econométrica Variável-resposta A variável-resposta foi mensurada ao nível do aluno. Ela mede a probabilidade do aluno evadir do sistema escolar entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental, no período de 1999 a 2003, para as escolas das UF’s da amostra. Na modelagem dessa probabilidade, utilizou-se o valor “1” caso o evento tenha ocorrido e “0” caso contrário. Covariáveis Nível 1 a) Série: série relacionada à evasão. Foram considerados os seguintes biênios: 1999/2000; 2000/2001; 2001/2002 e 2002/200320. Observou-se se o aluno evadiu no segundo ano de cada biênio e a série cursada no primeiro ano do biênio. Assim, a última série relacionada à evasão foi a 7ª. 20 Considerou-se evadido o aluno que não efetuou sua matrícula na escola num determinado ano letivo entre 1999 e 2003, não retornando no(s) ano(s) seguinte(s). Como 1999 foi o ano-base, todos os alunos se matricularam nas escolas, nesse ano. Assim, a evasão na coorte só foi verificada a partir de 2000. Como a ocorrência do evento num ano está associada a um resultado escolar ocorrido no ano anterior (aprovação, reprovação, afastamento por abandono), o evento foi considerado como de fluxo; daí, a construção dos biênios para modelar a série cursada. 113 b) Trabalho: variável indicadora igual a “1” se o aluno trabalhou entre 1999 e 2002 e igual a “0” caso contrário. c) Aprovação: variável indicadora com valor igual a 1 se o aluno foi aprovado na série cursada antes da ocorrência do evento e valor igual a 0, caso contrário. Nível 2 a) Sexo: variável indicadora, assumindo os valores “1” e “0”, para mulheres e homens respectivamente, e cuja categoria omitida é o sexo masculino. b) Cor: foram criadas duas categorias: branca/amarela e outras (mulato, negro e indígena). A categoria omitida, que assume o valor “0” é outras. c) Repetência: variável indicadora que assumiu o valor “1” se o aluno repetiu alguma série antes da 4ª e “0” caso contrário. d) Nível socioeconômico - NSE: Foram construídos dois indicadores (método homals), a partir da posse dos seguintes bens duráveis: rádio, televisão a cores, vídeo-cassete, geladeira, freezer, máquina de lavar, aspirador de pó e automóvel. Além disso, considerou-se a existência (ou não) de empregada doméstica no domicílio. 1) Ind. NSE_1: Esse indicador se destaca por mostrar uma relação positiva entre a posse de bens duráveis/empregada e a primeira dimensão. 2) Ind. NSE_2: Esse indicador é caracterizado por apresentar uma relação forte e negativa entre não posse dos bens básicos (rádio, tv e geladeira) e a segunda dimensão. Nível 3 a) Estrutura básica: foram construídos dois indicadores, a partir das variáveis que indicam a existência ou não dos itens: quadra, laboratório de informática, sala de tv/vídeo e biblioteca. 1) Ind. Estrutura_1: Indicador caracterizado por mostrar uma relação negativa entre a existência dos itens na escola e a primeira dimensão. 2) Ind. Estrutura_2: A existência de laboratório de informática na escola é o componente de maior poder explicativo nesse indicador. b) Sistema de segurança: dois indicadores foram construídos a partir dos itens: existência de vigia (turno integral), controle de entrada de estranhos e sistema de proteção contra incêndio. 1) Ind.Segurança_1: Esse indicador se caracteriza por apresentar uma relação negativa mais forte entre a existência dos itens listados e a primeira dimensão. 2) Ind.Segurança_2: O componente de maior poder explicativo nesse indicador é a existência de sistema de proteção contra incêndio na escola. 114 c) Escolaridade dos professores: Variável contínua referente total de professores com nível superior no ensino fundamental, na escola. d) Matrículas de alunos na 4ª série: Variável contínua referente total de matrículas efetivadas 4ª série (ano-base), nas escolas da amostra. e) Matrículas de alunos promovidos da 3ª para a 4ª série: Variável contínua referente total de matrículas de alunos promovidos da 3ª para a 4ª série (ano-base1999), nas escolas da amostra. f) Proficiência média da escola: foi calculada a proficiência média da escola (média dos testes padronizados de português e matemática), para os anos de 1999 a 2002. Variável contínua, referente ano t-1, associada à ocorrência do evento no ano t. g) Total de salas: Variável contínua referente total de salas existentes na escola. h) Região: foram construídas variáveis indicadoras para as regiões Norte (escolas do Pará e de Rondônia), Nordeste (escolas de Pernambuco e de Sergipe) e Centro-Oeste (escolas de Goiás e do Mato Grosso do Sul), sendo a categoria omitida a região Nordeste. 4. Resultados e discussão 4.1 Aspectos descritivos Entre 1999 e 2003 houve uma redução expressiva dos alunos da coorte. Na tabela seguinte, consta o total de alunos matriculados por ano e série, além dos casos de evasão e transferência. A idéia é mostrar o fluxo de alunos entre 1999 e 2003, explicitando os fatores que resultaram na redução da coorte no período. TABELA 1 Fluxo de alunos segundo matrículas, evasão e transferências, 1999 a 2003 115 SÉRIE/ANO 4ª série 5ª série 6ª série 7ª série 8ª série Matrículas Evadidos (não matric.) Transferidos Evadidos + transferidos 1999 10562 0 0 0 0 10562 2000 737 8197 0 0 0 8934 2001 72 1274 5875 0 0 7221 2002 8 268 1075 4452 0 5803 2003 0 44 245 806 3393 4488 0 1230 1230 398 1298 1696 416 1142 1558 276 1001 1277 313 1115 1428 Fonte: Ficha B – CEDEPLAR/INEP 1999/2003. Em 1999 a coorte inicial era composta por 10.562 alunos. Em 2003 pode ser constatado que a coorte tinha apenas 4.488 alunos. Os dados evidenciam que a redução da coorte no período deveu-se ao grande número de casos de transferência e evasão. Verifica-se que a maior parte das transferências aconteceu nas séries iniciais (4ª e 5ª), sendo que a ocorrência da evasão foi mais significativa em 2001. Na TAB. 2 é apresentada a distribuição percentual de alunos segundo a situação de evasão. TABELA 2 Distribuição percentual de alunos, segundo a situação de evasão, entre a 4ª e 8ª série, por UF’s, 1999 a 2003 Situação aluno / UF não evadido evadido aprovado evadido reprovado evadido por abandono Total PE 72,68 18,03 8,67 0,62 2412 SE 77,34 17,83 4,73 0,11 931 MS 97,71 1,53 0,66 0,10 1967 GO 92,28 5,50 1,89 0,32 1853 PA 87,26 8,76 3,85 0,13 2339 RO 95,47 3,11 1,32 0,09 1060 Total 86,71 9,19 3,83 0,27 10562 Fonte: Ficha B - CEDEPLAR/INEP 1999/2003. Na última coluna da tabela constata-se que, do total de alunos presentes durante todo o período, considerando-se a totalidade das escolas, aproximadamente 13% evadiram entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental. A maioria dos casos de evasão foi verificada nas escolas das UF’s da região Nordeste. Em contrapartida, os menores percentuais de evasão foram observados entre os alunos das escolas do Mato Grosso do Sul e de Rondônia. De acordo com KLEIN (1995) o aluno pode evadir, no ano t+1, após aprovação, reprovação ou afastamento por abandono na série k, no ano t. Pela tabela acima, observa-se que o percentual de evadidos aprovados foi superior ao percentual de evadidos reprovados em todas as UF’s. Esse resultado requer uma análise mais aprofundada sobre os determinantes da evasão escolar. Em geral, espera-se que a maioria dos casos de evasão ocorra após a reprovação numa determinada série, fato não observado entre os alunos da coorte analisada. 116 No GRÁF. 2 são apresentadas as séries com o maior registro de evasão, no período. A visualização gráfica revela um padrão de evasão diferenciado nas diversas séries e UF’s. Observa-se que o maior percentual de evasões ocorreu na 5ª série, para a totalidade dos alunos das UF’s. O estado do Mato Grosso do Sul se destacou por apresentar a maior porcentagem de casos, nessa série. A próxima série com o maior percentual de casos foi a 6ª. Esse percentual foi mais significativo na região Nordeste e no estado de Rondônia. GRÁFICO 2 Evasão por séries, segundo UF’s, 1999 a 2003 60,00 50,00 40,00 30,00 20,00 10,00 0,00 PE 4ª série SE 5ª série MS GO 6ª série PA 7ª série RO 8ª série Fonte: Ficha B - CEDEPLAR/INEP 1999/2003. Os resultados dos modelos estimados são apresentados a seguir. 4.2 Probabilidades de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental Na identificação dos determinantes da probabilidade de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental, foram consideradas variáveis de alunos fixas e variáveis no tempo (característica típica de dados longitudinais), além das variáveis de escola. O ponto de partida é a estimação do modelo incondicional, especificado na TAB. 3. As estimativas relacionadas aos coeficientes intra-níveis indicam que a variabilidade entre as escolas é elevada, sendo um pouco menor em relação à variabilidade existente entre os alunos dentro das escolas. Na TAB. 4 são apresentados os resultados para os modelos estimados. TABELA 3 Resultado do modelo incondicional, para a probabilidade de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental. 117 Parâmetro Estimativa Desvio-padrão % variabilidade atribuída aos níveis * Efeito fixo Intercepto: β1j -3.181 0.124 * Efeitos aleatórios Entre escolas: vij 2.117 0.267 39.15 Inter-alunos: uij 3.242 0.166 49.63 Intra-alunos: e0ij 1.000 0.000 Fonte: Elaboração própria. Fonte de dados básicos: CEDEPLAR (2005) e Censo Escolar de 1999. TABELA 4 Modelos estimados para a probabilidade de evasão entre a 4ª e a 8ª série do ensino fundamental, para alunos das escolas selecionadas (Ficha B), segundo a Série*. Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3 Modelo 4 Coef. d.p Coef. d.p Coef. d.p Coef. d.p * Efeitos fixos Intercepto - 0.13 -1.875* 0.169 -1.788* 0.17 - 1.395 0.980* 5 7 1.651* 4ª série - 0.02 -0.202* 0.099 -0.266* 0.09 -0.116 0.220 2.244* 1 9 5ª série - 0.01 -0.270* 0.106 -0.313* 0.10 -0.179 0.146 0.618* 6 7 6ª série - 0.01 -0.642* 0.126 -0.657* 0.12 - 0.144 0.345* 5 6 0.559* 7ª série 0.000 0.00 0.000 0.000 0.000 0.00 0.000 0.000 0 0 Aprovação -1.448* 0.078 -1.439* 0.08 - 0.086 0 1.410* Trabalho 0.201* 0.084 0.144*** 0.08 0.165* 0.098 8 ** Cor -0.062 0.07 -0.036 0.077 0 Sexo -0.140** 0.06 - 0.075 9 0.149* * Indicador NSE_1 -0.016 0.03 -0.015 0.037 cm 5 Indicador NSE_2 -0.062** 0.02 - 0.031 cm 8 0.064* * Repetência antes 0.115*** 0.07 0.071 0.076 4ª 1 Ind.Segur_escola 0.108 0.122 1 Ind.Segur_ - 0.121 escola2 0.333* Ind. 0.156 0.124 Estrut_escola1 118 Ind. Estrut_escola2 Matrículas 4ª série Matríc.4ª promov. Professor nív. Sup. Qtde. salas Norte Centro-Oeste Nordeste Profic.média escola * Efeito aleatório Entre escolas: v1k 2.353 Inter-alunos: u1jk 21.187 Intra-alunos: e0ijk 0.068 0.31 6 0.31 3 0.00 1 - 2.560 0.317 2.470 0.000 0.000 0.315 0.827 0.008 0.808 0.30 8 0.16 9 0.00 9 - 0.025 0.108 0.006 0.009 -0.005 0.009 0.020* ** 0.032 1.445* 1.817* 0.000 0.007 0.012 1.310 0.195 0.000 0.000 0.905 0.009 0.027 0.303 0.302 0.022 Coef.cor entre 41.69 43.76 42.88 28.48 escolas Coef.cor inter86.56 alunos Fonte: Elaboração própria. Fonte de dados básicos: CEDEPLAR (2005) e Censo Escolar de 1999. * Número de escolas (N) = 151; Número de alunos (N) = 9.671. Importante frisar que na análise descritiva foi observado que a maioria dos casos de evasão na coorte aconteceu após a aprovação na série anterior. Para checar esse aspecto dos dados, foram especificados modelos controlando-se pela aprovação na série cursada no ano letivo anterior. Assim, é possível fazer um importante diagnóstico sobre o comportamento do evento ao longo do período. Os modelos 1 e 2 incluem as variáveis de nível 1. No modelo 1 evidencia-se que a probabilidade de ocorrência da evasão é menor nas séries iniciais em relação à 7ª série, apesar do único coeficiente significativo ser o associado à 6ª série. No modelo 2 foram incluídas as variáveis relacionadas ao aluno que variam no tempo (aprovação e trabalho). O coeficiente da variável de controle aprovação aponta para uma correlação forte e negativa entre aprovação e evasão. Esse comportamento está de acordo com 119 as expectativas, porém, contradiz os resultados apresentados na análise descritiva. Conforme esperado, há uma associação positiva e significativa entre a variável trabalho e a evasão. Os fatores associados ao aluno, que são fixos no tempo, foram acrescentados no terceiro modelo (nível 2). Diante dessa inclusão, a principal alteração ocorrida em relação ao modelo anterior foi a redução da significância estatística da variável trabalho. Como esperado a priori, as meninas apresentaram uma menor probabilidade de evadir da escola, em relação aos meninos. Caso o aluno tenha repetido alguma série antes da 4ª, maior essa probabilidade. Apenas um dos indicadores de nível socioeconômico, o índice NSE_2, teve seu coeficiente significativo. Esse resultado indica que alunos cujas famílias são desprovidas dos bens básicos (rádio, tv e geladeira) apresentam uma maior probabilidade de saírem do sistema escolar. Com a inclusão dos fatores escolares no quarto modelo (nível 3), as variáveis anteriormente incluídas mantiveram a significância estatística, sendo que a única exceção foi verificada para a repetência anterior à 4ª série, que tornou-se estatisticamente insignificante. Pode ser constatado que entre os fatores diretamente relacionados às escolas, apenas o indicador associado ao sistema de segurança existente (índice de segurança 2) e a escolaridade do professor (nível superior) foram relevantes para explicar a probabilidade da evasão.O componente de maior poder explicativo nesse indicador é a existência de sistema de proteção contra incêndio. Em geral, escolas com menos recursos não são dotadas desse sistema, o que permite inferir que a sua existência está relacionada às melhores escolas. As estimativas para as indicadoras regionais mostram que o contexto socioeconômico da região em que a escola está inserida influencia fortemente a decisão do aluno quanto à permanência ou não na escola. Nesse modelo foi incluída também a proficiência média da escola, cujo coeficiente não teve significância estatística. Observando-se os valores da parte inferior da tabela, admite-se a existência do efeito aleatório para o intercepto de todos os modelos, comprovado por sua significância estatística. Portanto, há variabilidade significativa entre as escolas no que se refere à probabilidade de evasão dos alunos. Nota-se que essa variabilidade foi reduzida no último modelo em função, basicamente, dos fatores escolares. Deve ser ressaltado que no modelo incondicional e no primeiro modelo estimado a parte aleatória inter-alunos era altamente expressiva. Com a inclusão das variáveis que variam ao longo do tempo, a variabilidade atribuída a esse nível tornou-se insignificante. Foi testada a presença de efeito aleatório para o nível socioeconômico familiar, porém, verificou-se que o efeito dessa variável sobre a ocorrência da evasão é o mesmo nas diferentes escolas. Daí, manteve-se o coeficiente como tendo apenas uma parte fixa. O comportamento 120 da evasão ao longo das séries pode ser melhor visualizado no gráfico seguinte, elaborado com base nas probabilidades estimadas. GRÁFICO 3 Probabilidades estimadas de evasão entre a 4ª e a 8ª série, segundo a série cursada, para os alunos das escolas da amostra (Ficha B) 18,00 16,00 14,00 12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 7ª série 6ª série 5ª série 4ª série 0,00 Fonte: Tabela 4. Pode ser constatado, pelo formato da curva, que a probabilidade de evasão aumenta ligeiramente entre a 4ª e a 5ª série, decresce substancialmente na 6ª, sendo bem mais elevada após a conclusão da 7ª série. Esse resultado pode estar sugerindo uma associação mais forte entre evasão e mercado de trabalho, pois nas séries finais do ensino fundamental o aluno tem uma idade relativamente mais avançada, fato que favorece sua inserção nesse mercado. 5. Considerações finais Os dados revelaram que foi elevado o percentual de evadidos na coorte. Diferentemente do que foi verificado para o país, em que as taxas de evasão aumentaram gradativamente ao longo das séries, na análise descritiva foi visto que os percentuais de casos registrados oscilaram bastante entre a 4ª e a 8ª série. Com a estimação dos modelos pretendeu-se identificar, entre as diversas variáveis, aquelas mais fortemente relacionadas à ocorrência da evasão. Mais especificamente, pretendeu-se responder aos questionamentos feitos na parte inicial desse artigo. A discussão seguinte é baseada nas respostas à tais questões. 121 Foram levantadas quatro questões. A primeira refere-se ao efeito da proficiência média da escola sobre a ocorrência da evasão. Os resultados revelaram que o desempenho dos colegas da escola não teve nenhum efeito sobre a ocorrência do evento para um aluno específico. A segunda questão está associada à influência (positiva ou negativa) das variáveis associadas à trajetória escolar passada e contemporânea do aluno sobre a probabilidade de ocorrência do evento. As variáveis consideradas foram a repetência antes da 4ª série e a situação de trabalho do aluno (se ele trabalhou em algum ano letivo entre 1999 e 2002). Essa investigação explicitou, no primeiro caso, que a trajetória escolar passada do aluno não está dissociada da sua trajetória escolar corrente. Era de se esperar que se o aluno tivesse repetido algum ano letivo antes da efetivação da sua matrícula na 4ª série, maior a sua probabilidade de evadir entre a 4ª e a 8ª série, uma vez que estudos têm mostrado o impacto negativo da repetência nas séries iniciais sobre o resultado escolar futuro. Contudo, essa expectativa não foi confirmada. No segundo caso, foi constatada a influência negativa do trabalho sobre o resultado escolar. Caso o aluno tenha trabalhado em algum ano letivo entre 1999 e 2002, menor a sua probabilidade de permanência na escola, revelando a dificuldade em se conciliar trabalho e estudo. Importante lembrar que os alunos das escolas amostradas estudavam no turno diurno. O terceiro ponto levantado referiu-se à importância dos fatores de background familiar e escolares para a redução da probabilidade de evasão. Com base nos modelos estimados, é possível afirmar que o background familiar, mensurado pelo nível socioeconômico, teve um peso determinante sobre a evasão. Alunos cujas famílias não tinham nem os bens duráveis básicos na sua residência estavam mais sujeitos a sair do sistema escolar. Os resultados obtidos permitem associar esta saída à participação em atividades laborativas. Ou seja, a situação socioeconômica da família está fortemente relacionada à evasão escolar. Foi verificado que os fatores escolares tiveram pouco efeito sobre a ocorrência do evento. Os dados mostraram que ainda que o aluno esteja matriculado numa boa escola, sua probabilidade de evadir do sistema escolar é mais fortemente afetada por sua situação socioeconômica. Esse resultado observado para a coorte confirma conclusão presente no relatório da UNESCO (2008) sobre a evasão, para as escolas localizadas nos países em desenvolvimento. Segundo o relatório, mesmo as escolas bem estruturadas desses países não conseguem reter o aluno, caso ele esteja submetido a uma situação de pobreza. 122 O último questionamento referiu-se ao efeito do contexto socioeconômico regional sobre a ocorrência da evasão no ensino fundamental. Verificou-se que o ambiente socioeconômico da região em que a escola está inserida tem forte impacto sobre o acontecimento do evento. A probabilidade de evasão é bem maior para os alunos matriculados em escolas da região Nordeste, em relação às demais regiões analisadas. Mais uma vez, esse aspecto evidenciado pelas regressões mostra que o evento ocorre com maior probabilidade nas regiões mais pobres. Acredita-se não ser pretensioso afirmar que este artigo contribuiu de forma efetiva para o melhor entendimento do evento em questão, mediante o uso de dados e técnica longitudinal. Enquanto a análise descritiva revelou que a evasão na coorte aconteceu na maioria das vezes após a aprovação do aluno numa série, a análise de trajetória revelou que se o aluno é aprovado a cada série sucessiva, menor sua probabilidade de evadir da escola. Além disso, com base nos dados descritivos, poder-se-ia supor que a evasão é bem mais elevada nas séries iniciais, entre a 4ª e a 8ª. Contudo, no acompanhamento da coorte ao longo dos cinco anos percebeu-se que, ao se controlar pela aprovação, a tendência é que a probabilidade do aluno evadir do sistema escolar seja maior após a conclusão da 7ª série. Esses resultados confirmam a importância de um estudo longitudinal para os dados educacionais. BIBLIOGRAFIA ALBERNAZ, A., FERREIRA, F.H.G., FRANCO, C. Qualidade e equidade no ensino fundamental brasileiro. Pesquisa e planejamento econômico, Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, v. 32, n. 3, p.453-476, Dez.2002. BRYK, A. S., RAUDENBUSH, S. W. Hierarchical linear models: applications and data analysis methods. 2.ed. Newbury Park, California: Sage, 2002. 485p. CENTRO DE DESENVOLVIMENTO E PLANEJAMENTO REGIONAL - CEDEPLAR. Avaliação de Desempenho-fatores associados. Relatório entregue ao INEP, 2005. COSTA RIBEIRO, S. A educação e a inserção do Brasil na modernidade. Cadernos de Pesquisa, Local de publicação, n. 84, p. 63-82, fev. 1993. FLETCHER, P. As dimensões transversal e longitudinal do Modelo Profluxo. Ministério da Educação e Cultura, 1997, mimeo. FLETCHER, P.R; RIBEIRO, S.C. 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Luci Helena Silva Martins 21 Introdução Culpados pela ausência, por serem pobres, o debate que referenda as representações sobre a pobreza no Brasil – tal como está colocado no imaginário local e em parte das análises das ciências sociais e nas políticas de enfrentamento da pobreza – avalia que esses cidadãos não participam como devem, não se organizam, são tutelados, não reivindicam, não atuam ou exercem cidadania social, econômica ou política, além de estarem privados de uma rica vida cultural, ainda que não raro sejam os que mais autênticos a produzam. O círculo vicioso onde o pobre é colocado, como parte de um imaginário que despoja a pobreza da dimensão da ética e da justiça (TELLES, 1992), é alimentado pelos políticos profissionais que utilizam deste cenário como bandeira para as próximas candidaturas e reeleições. É um círculo vicioso fundado na desigualdade econômica, na massificação cultural e na sub-cidadania social e política, cuja origem, causas e conseqüências remontam ao projeto da modernidade que, no Brasil, enraizou-se desde os tempos coloniais. E a culpa, já se ouviu, é porque não temos povo. Há uma tendência a relacionar democracia e cultura política: o Brasil não seria suficientemente democrático porque não tem povo. O que nunca teve é considerado culpado pela ausência, como se o Estado não tivesse responsabilidade nesse cenário, ao ser eficiente no propósito de apartar 21 Professora do Departamento de Política e Ciências Sociais da Unimontes, do curso de Serviço Social e PPGDS. Coordenadora do Observatório Social: Cidadania e Direitos Humanos e do Laboratório de Tecnologias Sociais e de Metodologias de Redes (FAPEMIG) 126 coletividades das instâncias deliberativas. A questão, nesta pesquisa, esteve, portanto, assim equacionada. Teoricamente ou cientificamente os conceitos ou tipologias nem sempre respondem ou coincidem com a realidade histórica local. Em termos históricos e políticos, as instituições “propriamente políticas” tutelaram a pobreza e dizem-se condicionadas por determinismos estruturais, inibidas que estão na sua capacidade de ação política, sendo esta a posição a assolar, também, as ciências sociais e as entidades representativas das coletividades, como os sindicatos, partidos ou instituições públicas. Afora as minorias, e de raros sujeitos políticos ativos no campo da ética, presentes nos partidos, sindicatos e associações profissionais, integrados à rede movimentalista da sociedade civil, formada por iniciativas plurais, a grande maioria dos partidos e sindicatos burocratizou-se, atuando sem projetos de reformas estruturais ou alternativas políticas para o conjunto social. As greves são raro instrumento de luta social ou organização política, e não se questiona mais, nos espaços públicos em cena, a hierarquia social, as diferenças salariais, a subordinação dos trabalhadores manuais, homens e mulheres, ao trabalho e ao emprego, o que demonstra uma insensibilidade moral neutralizada, i.e, faltam recursos éticos, na sociedade industrial. A idéia de que o trabalho dignifica, qualquer trabalho, neutraliza questionar as diferenças, o salário mínimo, as desvantagens, e os locais em que cada qual está disposto na hierarquia social. Todo esse quadro Hannah Arendt (1983, p. 13) já sugeria quando falava das contradições de uma “sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta”. Na sociedade moderna e funcional a luta pelo trabalho e não contra o trabalho tornou-se a alternativa proposta pelos teóricos em geral, e pelos líderes políticos e sindicais, o que no limite legitima a sobrevivência pautada na luta pelo trabalho, regra que permite a manutenção da sociedade capitalista, da livre concorrência do mercado 127 e seus laços sistêmicos com o estado burocrático e patrimonialista. Os pobres, indigentes ou miseráveis, fazem parte desse quadro como o aglomerado dos sem-teto, sem-terra, sem títulos para governar, sem escolaridade, oportunidades, lazer, saúde ou trabalho. São a parcela-dos-sem-parcela, como os identifica o filósofo Jacques Rancière (1996), apartados do poder da fala, do dissenso e da política. No Brasil, a questão da pobreza também se liga à discriminação racial. Dados regularmente divulgados pelo IBGE e IPEA mostram que a pobreza brasileira é majoritariamente negra. Junto de brancos pobres, os afro-descendentes ocupam os lugares mais discriminados pela sociedade e as estatísticas os identificam nos presídios, nas chacinas de indigentes das grandes cidades, nas famílias chefiadas por mulheres, negras, pardas ou brancas pobres, nas filas dos serviços sociais públicos ou de desempregados. Esses sujeitos negados estariam presos ao mundo da necessidade, incapazes que são de ação política, quando, desempregados ou em situação de risco, necessariamente voltam-se para a busca da sobrevivência, transformados que estão em homo laborans. Ainda assim, como sugere H. Arendt, são tênues (e obscuros) os limites entre a necessidade e a liberdade. Muitos desses sujeitos negados, vivendo nesse limite entre privação, miséria e indigência, conseguem se erguer como sujeitos políticos, organizando formas de poder alternativo, por meio de centros comunitários e de projetos associativos ou voluntários, solidários entre si, auto-organizando a si e aos seus, superando inclusive divisões, nacionalidades e identidades. Nesse artigo sugerimos que o que nos preocupa não são os pobres, e sim o fato de que os pobres não sairão da pobreza, enquanto nossos países forem tão injustos. O justo não é deixar que pobres, negros, índios ou mulheres resolvam sozinhos os problemas criados por uma cultura política autoritária e problemática. Isso seria o individualismo em estado puro e se, nessa pesquisa, relativizamos o método marxista, como adiante 128 explicaremos os motivos, tampouco validamos o individualismo no sentido neoliberal do termo. Ação Política, Neoliberalismo e (In) Justiça Social Confluindo com processos de democratização, o neoliberalismo é força negativa e violenta que impede as conquistas sociais, duramente conquistadas em países dependentes. Construído como ideologia a ser principalmente exercida em países em desenvolvimento ou dependentes, o neoliberalismo permite que os países centrais continuem exercendo protecionismo de seus mercados, como se estivem em condições de igualdade num presente em que não se reconhece os danos causados por imperialismo, colonialismo e neocolonialismo. Processos muito atuais permitem que alianças entre potências estrangeiras, multinacionais e governos locais explorem as riquezas naturais dos povos e países pobres, expulsando “os pobres” de suas regiões, colocando-os em situação de risco, exclusão, guerra civil, vulnerabilidade e pobreza extrema. Mundialmente enfraquecendo as lutas sindicais e as conquistas sociais, o neoliberalismo quis se legitimar como mundialmente superior ao estado interventor. Acentuando as desigualdades sociais, nos anos 90, há uma revisão do estado neoliberal e a proposta de uma terceira via, nem interventora, nem neoliberal, “melhor”, dirão seus defensores, do que as duas formas anteriores, ora keynesiana, ora neoliberal. Tudo isso dentro da forma democrática de governo. O que está em jogo são disputas por significados. Quem deve garantir direitos e cidadania? A resposta preferencial do Estado e da sociedade: em geral, o trabalho. A política ou as políticas sociais perdem lugar em detrimento da economia e do mercado. 129 De acordo com H. Arendt, com o advento da modernidade, espaços públicos e espaços privados passaram a constituir o social, e a dimensão do social inferiorizou a política, inibindo também a reflexividade. A autora demonstra que o espaço público e o espaço privado estão na origem da constituição do social e ambos protegem dimensões importantes da condição humana. Diz a autora que o advento do cristianismo, e a ascensão da república romana, engoliram a política e permitiram a ascensão do social, na sua dimensão privada. Quando o homem político grego é traduzido para o latino homem social, restou a submissão, a subordinação do mesmo diante da unidade do templo cristão. Há um momento histórico em que essa experiência generalizada do UM leva ao totalitarismo, experiência sem precedentes na história da humanidade, atualizada agora como “totalitarismo neoliberal” (OLIVEIRA, 1999). A violência e a ausência de reflexividade resultaram no sentimento e no dever da Unidade, e na sentença de não pertencimento, de não reconhecimento ao outro do direito à existência. Hannah Arendt (1983,1993) explica que quando o homem político grego foi traduzido para o homem social no idioma latino, adveio com isso a ascensão do social sobre o político. O social uniformizou a todos, e impôs a submissão do homem político ao indivíduo em face com Deus, subordinado ao templo, símbolo da unidade cristã. O cidadão já não é mais chamado para participar da elaboração da Lei, no contexto da pólis grega ou do que dela poderia evoluir. A ética cristã difere da ética grega no sentido de que a primeira abrange o conhecimento e atuação sobre a vida pública, e a segunda faz o indivíduo voltar-se para dentro de si, para se ver com Deus. Essa passagem subordina a política à unidade do social e à autoridade do templo cristão, sendo que a pólis perde a dimensão simbólica da democracia. 130 Louis Dumont (1985) faz uma bela reconstrução da gênese do individualismo moderno e explica que o individualismo opera uma revolução no indivíduo-fora-domundo para o indivíduo-no-mundo. São séculos de espera para esse indivíduo encarnarse na história, participando dos processos de construção do presente e futuro. Contudo, o mesmo individualismo permite a superexposição do ego, com a dimensão privada se impondo ao social, e o espaço público também é tomado pelo personalismo e individualismo. De acordo com Max Weber, a ética cristã, protestante, conflui com a do trabalho e impulsiona o individualismo cristão e o capitalismo. Com isso, novamente a superexposição do ego, a vitória dos capacitados, escolhidos pelo dedo de Deus. Segundo H. Arendt (1983), a ação política é o que diferencia os homens dos animais. Implica na liberdade, no diálogo, no pluralismo e na interação entre os homens. Para essa autora, a política é um dos princípios da democracia. Um país autoritário/totalitário pode matar a fome, permitir acesso à educação e a outros direitos civis, o que permite pensar que todos os direitos podem ser concedidos de cima para baixo, menos o direito político, de ação política. Esse direito supõe contrapor-se ao Estado, limitando-o, controlando-o e dirigindo-o, no sentido de determinar os gastos e investimentos públicos. 131 O Estado moderno, como sabemos, ocupa o lugar da pólis grega e da unidade do templo cristão. Revolução do sujeito, não impede uma superioridade da burocracia estatal. Argumentando sobre as vantagens da mão invisível do mercado, o estado moderno nasce liberal, e assim o é, em geral, mas observadas as particularidades de cada país, até meados da crise de 29. O estado interventor (Vargas no Brasil) interpela o modelo liberal, e o modifica, estabelecendo uma aliança entre capital e trabalho de forma que se organize a acumulação capitalista. Sustenta-se assim até meados de 1970, momento de formação e consolidação do capitalismo global. Essa ascensão do estado moderno permitiu ao mesmo tempo, a concentração de meios de controle da opinião pública e dos significados que permitiriam estabilizar o capitalismo e a centralidade do trabalho. É sabido que as ciências sociais surgem para dar explicações e proporem metodologias concretas para o desenvolvimento dos sistemas sociais e políticos. A teoria crítica como modelo de investigação sugere atenção para os significados em disputa nos tempos de globalização. Participando desta disputa, nossos autores sugerem que a ação política está intimamente ligada à defesa dos direitos humanos. A ação instrumental do Estado, visando poder e lucro, não é necessariamente a política desejada. Sendo assim, importa reconhecer que a política não é exclusiva do Estado: é anterior a ele e está disseminada na sociedade, desde que democrática. A relação estado e sociedade supõe, portanto, reconhecer que a sociedade não é una, deve-se superar a ilusão da unidade, que dissolveria nela as diferenças, a pluralidade, a fragmentação e a heterogeneidade dos processos de socialização e igualmente o reconhecimento mútuo de direitos, e do direito a ter direitos (LEFORT, 1987, p. 68). 132 A ação, por sua vez, está disseminada aonde quer que se defendam os direitos, de ir e vir, de morar, de viver sua sexualidade em liberdade, de opinar, de ler, de imprimir, de exercer a profissão, sobre o próprio corpo, de ter oportunidades de educação, saúde, acesso ao mercado de trabalho, à terra, a um meio ambiente saudável, aos MCM, aos espaços de organização política, como associações autônomas, sindicatos e partidos. O que está em jogo, contudo, na democracia são disputas por significados que possam garantir o controle sobre o social, em detrimento de outros que questionem o ordenamento social e o lugar ocupado por cada qual nesse sistema injusto. Em geral, as disputas são por poder, que envolvem recursos, ora de interpretação, ora naturais ou financeiros, por vezes, não renováveis e escassos. È notável que os espaços públicos comportam essa disputa por significados. Quem os impõe geralmente ocupa o lugar vazio do poder democrático: o Estado ou a mídia. Esses atores definem a forma democrática permissível à sociedade contemporânea. Alguns significados se impõem a outros, a depender da qualidade da representação política e do controle social exercido pela vontade popular, por meio da opinião pública. Já o neoliberalismo foi construído como ideologia a ser, principalmente, exercida em países dependentes, pois os países centrais continuam exercendo protecionismo de seus mercados, e nesse debate, pouco se fala da responsabilidade dos países ricos sobre as tragédias que se abatem sobre os países e povos em histórica desvantagem. A culpa é sempre do perdedor e do mais fraco, como se essa fraqueza não fosse resultado da força do outro. O problema também se dá pela interiorização da culpa pelos povos oprimidos que, de tão massificados, passam a acreditar que têm menos, que podem menos, que foram feitos para sofrer. 133 O que está em jogo são disputas por significados. O estado policial e a ética do trabalho em geral são as respostas para os problemas sociais. O reconhecimento de que não há trabalho para todos, levou alguns estados modernos a administrar políticas de bem-estar social, uma delas, a RMI, Renda Mínima de Inserção, política francesa que desvincula salário e cidadania. A atualidade da crise política tenciona a centralidade do Estado e do Trabalho, enquanto pólos reguladores da sociedade. Há com o neoliberalismo, o retorno à centralidade do mercado, como pólo regulatório, sendo que o Estado abdica do papel de interventor. Por outro lado, a dinâmica da acumulação capitalista enfraquece estados nações, acirrando os conflitos internos e a generalização da violência, acentuando o que Arendt chama de “banalidade do mal”. Tudo isso levam à crise do estado democrático de direito. Os teóricos da sociedade e da política passam a construir modelos de democracia abertos à evolução dos valores éticos. Significados como democracia deliberativa propõem a radicalização da política, por meio de fóruns, assembléias, OPs, conselhos, contudo, esses significados circulam tanto na fala dos movimentos sociais, quanto na fala de técnicos do FMI, que não obstante suas medidas autoritárias, citam esses mesmos teóricos da esquerda democrática. Os direitos sociais 134 Alguns teóricos da política ressaltam a importância da Revolução Democrática operada na consciência dos homens e na estruturação da lei, provocada pelas Declarações dos Direitos do Homem. (Lefort, 1987, 51-55). Lefort critica Marx por não perceber que a Revolução burguesa (democrática) instaurou um novo princípio ao contrapor ao poder do Estado, um limite, o dos direitos. Marx considerava-os simples mostra do individualismo burguês. O Estado de Direito, de acordo com Lefort (1987, p. 56) “sempre implicou uma possibilidade de oposição ao poder”, contraponto histórico ao Direito do Estado. A Concepção de Direitos. Para nossos autores, direitos são a linguagem que organiza o social. A gramática que nos liga ao Outro. (...) “são também uma forma de dizer de mundo, de formalizar suas experiências e o jogo das relações humanas” (TELLES, 1998, p. 45). Nesse sentido, sugere Vera Telles: “A palavra que diz o direito e se pronuncia sobre a ordem do mundo pode ou está sendo reinventada e reelaborada” . Direitos são históricos e devem ser compreendidos a partir da palavra que os pronuncia. Dependem da dimensão ética alcançada pela sociedade. São um dos princípios geradores da democracia, o fundamento político do sistema. (LEFORT, 1987, p. 57). Não se dissociam da consciência dos direitos, de sua institucionalização, e da luta para garanti-los. Mas, quais os limites dos Direitos do Homem? Do que dependem? Nossos autores sugerem que os direitos dependem da consciência dos direitos e de sua institucionalização. (LEFORT, 1987, p. 57). Não dependem somente do Estado, mas da palavra que os pronuncia, dos sujeitos que os defendem. (ARENDT, 1993) Do reconhecimento público da alteridade (direitos à igualdade e à diferença). Do respeito à privacidade e a liberdade de escolha e de interpretação. 135 Os direitos necessitam do espaço público para obterem reconhecimento. Por isso as chamadas minorias (são poucos os que de fato se organizam, expressando a consciência dos direitos), os negros, os trabalhadores, os sem terra, as mulheres, os indígenas, homossexuais e ambientalistas expõem demandas generalizadas, vão ao público para denunciar um dano e serem reconhecidos pela lei e pela sociedade. Não basta a lei, os direitos devem ser instituídos como uma forma de reconhecer aos homens a justiça, a igualdade no acesso aos bens necessários para a vida, e ao respeito à igualdade e à diferença no âmbito do social. Queremos chamar a atenção para a pobreza, diferença vista como natureza, do mesmo nível que a diferença entre brancos e negros, ou entre homem e mulher. O argumento é que sempre teve pobres. O que justifica pensar nisso como uma injustiça social? Há uma via de interpretação que relaciona o espaço público e espaço privado com a constituição do social. Em países injustos não há essa diferenciação entre público e privado. A lógica do privado invadiu o espaço publico. Por exemplo, a família, durante séculos, foi considerada espaço privado, movido pela lógica despótica (o déspota era o pai). No Brasil, o privatismo da família foi levado ao âmbito público, o poder foi dividido entre as famílias de proprietários: negros e mulheres em geral não acessaram o poder público, mas mulheres e mesmo crianças proprietárias de escravos exerciam seu poder, sob forma de maldade, no âmbito privado. Os escravos conseguiram fazer uma abstração teórica e recorreram ao Estado (a Lei) para se proteger contra o arbítrio dos donos. (CHALHOUB, 2002) 136 A questão do Estado, portanto, é posterior a política. A cidadania desde os gregos se define pela participação do cidadão na forma de governo, mas a política vem antes da lei. A forma democrática é, por sua vez, a única que aceita a existência dos conflitos, lutas e demandas heterogêneas da sociedade. Na democracia, o lugar do soberano está sempre vazio, por natureza. A construção democrática é, portanto, a única que supõe a legitimidade dos conflitos sociais, por não submetê-los a vontade única de um estado ditatorial, ou de um mercado totalitário, cuja regra é transformar cidadãos em consumidores ou em restos humanos, sem comida ou água potável, vivendo de dejetos ou em condições de insalubridade. Regime do consenso e do dissenso, em si conflituoso, a democracia vem perdendo para o mercado capitalista. O mercado impõe diretrizes que impedem a construção democrática. Para Francisco de Oliveira (1999), com o neoliberalismo, há uma colonização do espaço público, descrito como “totalitarismo neoliberal”. Essa colonização age pela destituição da fala, pela anulação da política, pela neutralização das diferenças e da injustiça social. Conclusões 137 Parece impossível pensar numa sociedade complexa sem mercado e estado. Contudo, a dificuldade está em relacionar liberdade de mercado e direitos humanos. O desafio está em relacionar Estado, cidadania e pluralismo. Quem tensiona essa discussão, ponto norteador da teoria política tanto antiga quanto contemporânea, são os atores da sociedade civil que, a partir dos anos 60, manifestaram-se contra os regimes autoritários e/ou totalitários, iniciando o renascimento das lutas sociais e a resistência dos movimentos sociais diante das experiências de autoritarismo, totalitarismo e ditadura tanto na Europa (Polônia, França, Praga) quanto na América do Sul. Cohen e Arato, discípulos de Habermas, e Leonardo Avritzer (2000, 1994), no Brasil, atualizam esse debate em torno do conceito de sociedade civil, para dar conta de experiências históricas que possibilitariam articular o ideal das esquerdas, ao integrar os movimentos sociais, as ações autogestionárias, como formas de ação direta, ao status de ação política legítima, ainda que estas não alcancem poder deliberativo, ou decisório − status almejado por aqueles teóricos. Importante ressaltar que os autores dessa vertente viram nos anos 80 e 90, a possibilidade de elevar o ideal da esquerda, reescrevendo a teoria social a partir da integração dos acontecimentos históricos do século XX, pondo à prova a teoria considerada guia e norte da esquerda de vanguarda, marxista. Há um reconhecimento explícito de que o ideal da revolução foi solapado pelas experiências do socialismo real, denominado por H. Arendt de sistema totalitário. Somente com a reinvenção do espaço público, com a inclusão de atores plurais e heterogêneos, poderemos unir novamente o ideal das esquerdas, e retomar utopias de solidariedade entre os povos, superando modelos que aceitem o autoritarismo social, a violência generalizada, a apropriação do público, a pobreza naturalizada. 138 São desafios que nos obrigam a trazer de volta o ideal da república, que só poderá ser democrática (BIGNOTTO, 2000). Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Brasília, Forense, 1983. ARENDT, Hannah. A dignidade da política. Ensaios e conferências. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1993. AVRITZER,L. (org.). Sociedade Civil e Democratização. BH, Del Rey,1994. AVRITZER, Leonardo. Teoria Democrática e Deliberação Pública. Lua Nova, São Paulo: n. 49, 2000 BIGNOTTO, Newton.(org). Pensar a República. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. CHALHOUB, S. Visões da Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002 DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e terra, 2002. _________. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. (in) Dagnino, E. (org). Anos 90. Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994. DUMONT, Louis. O individualismo. Uma perspectiva crítica da ideologia moderna. Rio de Janeiro. Rocco, 1985. LEFORT, Claude. A invenção democrática. Limites da dominação totalitária. São Paulo: Brasiliense, 1967. OLIVEIRA, F. PAOLI, M. C. (ORG.) Os sentidos da Democracia. Políticas do dissenso e hegemonia global. São Paulo: Vozes, 1999. 139 RANCIÉRE, Jacques. O desentendimento. Política e Filosofia. São Paulo, Ed. 34, 1996. TELLES, V. Cidadania inexistente: incivilidade e trabalho.SãoPaulo: USP, Tese de Doutoramento, 1992. POBREZA, POLÍTICA E DISCURSO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER EPISTÊMICO DOS POBRES 140 ANELITO DE OLIVEIRA PPGDS/UNIMONTES “Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las”. Michel Foucault, 1977 1. Antes de mais nada, até mesmo para fazer jus ao tema desta comunicação, gostaria de situar meu próprio discurso, colaborando, na medida do possível, para uma recepção adequada ao problema que enuncia. Trata-se de um discurso fomentado no espaço das ciências humanas, mas não no seu centro. Fomentado na sua periferia, que é também o seu limite, ali onde a “epistème” que orienta esse espaço entra em crise. Não é um discurso totalmente das ciências humanas, de acordo com a classificação das agências públicas encarregadas de regular a pesquisa no Brasil, mas um discurso que emerge de um campo anexado às ciências humanas, um território, um fragmento de espaço, que, para muitos, figura como um adereço das ciências humanas, uma “mais valia” humana, digamos. Emerge, esse discurso, do campo das letras. Todavia, situar este discurso nesse campo, embora denuncie já sua difícil situação científica, não é suficiente para quem o pronuncia na pós-Modernidade, como sintoma assumido de esgotamento do projeto discursivo da Modernidade. No indiano Homi Bhabha (1998) e no brasileiro Silviano Santiago (1978), ambos marcados pela experiência da 141 “estrangeiridade”, põe-se em relevo a complexidade dessa situação, que se traduz, objetivamente, na invenção de novos conceitos, capazes de alargar o campo das letras, como o de “interstício” e o de “entrelugar”, que anunciam um modo no mínimo instigante de compreensão, respectivamente, da relação com a tradição colonialista e da condição sociocultural latino-americana. São autores ligados às letras, como se sabe, formados pelas letras, mas o que produzem não pode ser enquadrado nesse campo apenas, não pode ser reduzido a uma disciplina. Tampouco pode ser enquadrado tranqüilamente noutro campo abrangido pelas ciências humanas e sociais: a filosofia, a história, a sociologia etc. Trata-se de uma produção que extravasa, ao mesmo tempo, o campo natural dos seus autores e os campos afins. Por si só, essa produção acusa, inicialmente, uma discórdia interior, há muito colocada na área de letras, informa-nos que o objeto desse campo não são apenas as literaturas e as línguas ou as literaturas como literaturas e as línguas como as línguas, enquanto dimensões fechadas em si mesmas. Dessa forma, informa-nos, essa produção, que literaturas e línguas constituem, para esses autores, mais algo como um “objeto aqui”, aquilo que Lacan entendia por “símbolo”, o que deve ser submetido à análise objetiva. Aos olhos de um “letrólogo”, como se poderia chamar, de modo brincante, o estudioso das letras, o que se apresenta a cada passo ou simultaneamente – e solicita problematização – tem um aspecto triádico: é código, mímesis e estilo. Ou seja: é uma língua, um artefato literário ou um artefato estético, dimensões que se definem a partir de um critério social, não pessoal. Uma língua é um código fertilizado e consolidado por uma comunidade; um texto literário é uma representação, uma mimetização, uma imitação, de tipos e ações que se encontram num determinado tempo e lugar, uma “suprassunção”, lembrando o termo de Kant, uma elevação, tornada possível, animada, por aquilo que constitui seu fundamento social; uma arte – teatral, pictórica, musical, fílmica etc – consiste na estilização daquilo que é experienciado numa determinada coletividade, às vezes pela coletividade também, consciente ou 142 inconscientemente, mas, de todo modo, sempre em relação com uma coletividade. A este fato se deve o encanto provocado em multidões, ontem como hoje, tanto pelo teatro de um Shakespeare quanto pelo artesanato do Jequitinhonha. A arte – nunca é demais recordar, porque tanto se esquece – é um instante de singularização de uma experiência que não pertence apenas a um indivíduo, a um artista, mas a toda uma comunidade, a um grupo de indivíduos que compartilham visões comuns sobre a “vie quotidienne”, recorrendo aqui ao conceito de Henri Lefebvre tão produtivo na análise empreendida pela americana Kristin Ross num livro que elucida, de maneira surpreendente, a relação entre literatura e sociedade na Comuna de Paris, na França dos idos de 1870. A arte enuncia, portanto, algo que pertence a um grupo de indivíduos que se identificam com determinados modos de viver, praticam determinados ritos, cultivam determinados costumes, existem segundo algumas verdades comuns. Estas especificações justificam a demarcação de espaço, pelas agências de pesquisa, no campo das letras, uma divisão do que, para os observadores em geral, seria a mesma coisa, passível de ser operacionalizada cientificamente por qualquer especialista em lingüística, literatura ou artes. Todavia, para Capes e CNPq, por exemplo, a pesquisa sobre línguas cabe ao lingüista e a pesquisa sobre literaturas e artes cabe aos titulados nessas áreas, o que acabou resultando numa fértil interdisciplinaridade, num intercâmbio entre pesquisadores das duas áreas. Na margem das ciências humanas e das letras, onde se encontram, distingue-os o malestar na ciência, especialmente em face da vontade de verdade socrática de que ainda se reveste a idéia de ciência até nas humanidades em crise. 2. 143 Que a ciência, um discurso da certeza, é necessária, não há dúvida, mas é igualmente necessária uma ciência da ciência, um discurso sobre o processo de conhecer que culminou no conhecimento que se nos apresenta como científico na sociedade contemporânea. É o que transparece em trabalhos fertilizados às margens das ciências humanas, diretamente devotados à teoria do conhecimento, como os de Derrida, de Boaventura de Sousa Santos, Terry Eagleton e Milton Santos. Elejo, como ponto de partida para estas considerações sobre uma relação que me parece altamente inquietante neste novo século – a relação entre pobreza, política e discurso –, um autor seminal, a quem devemos – inclusive vários dos aqui citados – uma insubordinação fundamental ao poder da ciência, à ciência enquanto exercício de poder, uma atitude anticientificizante. Essa atitude mostra, sobretudo, que o científico não é cientificizante, no sentido de que não constitui uma cega apologia da ciência, tampouco, claro, do objeto que procura compreender. Refiro-me a Michel Foucault (2006: 203-222). Num ensaio de 1977, “La vie des hommes infâmes” [“A vida dos homens infames”], Foucault se empenha em trazer à lume algumas vidas que foram alijadas da sociedade francesa em seu tempo, meados dos séculos XVII e XVIII. Vidas consideradas nocivas ao “corpus” social, portadoras de “enfermidades” que poderiam “contaminar” a todos e, no limite, arruinar a sociedade. Entre essas “enfermidades”, encontra-se a agiotagem, implicando o logro financeiro: um indivíduo porta um mal que consiste em cobrar caro pelo dinheiro que vende, com todos os “ingredientes” de pressão inerentes, de certa forma, às relações capitalistas. Não pode, em função disso, viver em sociedade, e, por conseguinte, a ciência, digo: o discurso produzido na academia naquele contexto, não dá notícia sobre esse indivíduo, silencia-se sobre sua existência. Ao fazê-lo, esse discurso denuncia sua posição política conservadora, comprometida com a ordem social estabelecida, comprometida com o modo como se exerce o poder nessa ordem. 144 O limite desse discurso, o ponto em que ele esbarra, é já, portanto, sua política, cuja feição autoritária entra em contradição, obviamente, com o senso crítico que constituiria o fundamento da racionalidade moderna. Como se sabe, a criticidade a toda prova seria, de acordo com uma das fontes do pensamento filosófico moderno – as “Meditationes” de René Descartes (1991: 155-224) – um atestado de esforço de neutralidade do sujeito cognoscente. O silêncio sobre os “infames” diz que, para a ciência daquele tempo e lugar, não era mais a verdade que estava em questão, mas exatamente a suspensão da verdade em favor da conveniência, estratégia peculiar à política, questão cara a Hannah Arendt. E é à medida que é a política vem ao caso, que é de política que se trata, que o poder se apresenta como fim. Aos olhos de Foucault, de fato, a penalização dos homens que nada valiam, consistindo antes de mais nada em proclamar sua invalidade, fundamento de sua exclusão, relacionava-se, sobretudo, com o poder. O que diziam, seu discurso, afrontava o poder, eram infâmias contra o poder instituído na esfera pública, regulador dos micropoderes que performavam aquela sociedade. Não diziam, seu discurso, não era, portanto, qualquer coisa, uma gratuidade, algo desprovido de “logos”. Não é qualquer coisa, obviamente, que desconcerta o poder, mas especialmente aquilo que constitui um saber, que porta uma determinada ordem de idéias, que configura um “logos”, um discurso. Assim o é porque, ainda pensando na esteira de Foucault (2000), estamos numa sociedade de discurso, porque a sociedade moderna é uma sociedade de discurso, estruturada pelo discurso. Nessa sociedade, o discurso é uma senha de acesso a todos os lugares, especialmente aqueles mais privilegiados economicamente, de tal forma que os sem-discurso estão automaticamente excluídos, impedidos de acessar aquilo que lhes seria, aprioristicamente, de direito, constituindo, portanto, aquela comunidade dos “sem parcela” que Jacques Rancière entende como a comunidade fadada a fazer política, a forçar uma divisão mais justa dos bens sociais. Mas, por outro lado, nada significa que os com-discurso estejam automaticamente incluídos porque os discursos, numa mesma sociedade, não têm, claro, o mesmo valor, uns valem mais que outros. Tal valor se define pelo grau de verdade, considerada em relação à ordem social: certos discursos são considerados mais verdadeiros que outros porque estão de acordo com a ordem social vigente. São fiéis a essa ordem no que diz respeito, precisamente, à atenção àquilo que Foucault considera como uma das condições de possibilidade do discurso: a interdição, o silêncio sobre certas dimensões da realidade. Calam sobre aquilo que essa ordem cala, comportam-se, portanto, de maneira que convém a essa ordem. Aqueles que se comportam de maneira inconveniente, falando o que não convém à ordem social estabelecida, 145 são automaticamente desvalorizados, estigmatizados como pouco verdadeiros ou mesmo mentirosos, infames. Daí o paradoxo: ter discurso, ter “logos”, não significa ter lugar, estar incluído, numa sociedade do discurso como a brasileira, nem ontem nem hoje. Avermelhados, escravizados, bestializados, trabalhadores, descamisados, bolsistas – são algumas das designações da coletividade pobre ao longo da história do país. E não há dúvida que, dos primeiros índios avistados por Caminha (1977: 88) – “afeiçam deles he seerem pardos maneira dauermelhados” – aos beneficiários das bolsas do Governo Lula, o Brasil avançou no sentido de superar a pobreza material incongruente com sua enorme riqueza natural. Pobreza que, como já está bastante claro, nunca foi resultante do modo de vida da maioria dos brasileiros, limitados que são no que diz respeito à exploração do seu meio ambiente, mas exclusivamente do modo injusto de gerir, pelas elites socioeconômicas, toda a gama de recursos naturais com que o país foi agraciado. Como conseqüência direta dessa injustiça, destaca-se a má distribuição da renda oriunda desses recursos, de tal forma que aqueles que produziam e produzem nunca foram – e continuam não sendo – devidamente recompensados, chegando mesmo a ser impossibilitados de comer um pouco do que plantam. A permanência dessa injustiça é que torna mais prudente dizer que o país avançou no sentido de superar a pobreza do que dizer, de modo entusiasmado, que o país já superou a pobreza material. Como se sabe, ainda são cerca de 50 milhões de brasileiros sobrevivendo na pobreza material, e, a exemplo de todas as outras épocas na história do país, não se trata de uma massa inerte, mas de uma força oculta que abala a superfície republicana, afigurando-se-lhe uma espécie de trauma. De fato, a pobreza material brasileira é, fundamentalmente, a contraparte da República estabelecida em 1889, um problema aguçado pela abolição “pro forma” da escravatura e para o qual os idealistas republicanos não deram uma solução, deixando-a a cargo do porvir. 146 3. Discurso fundamentado no liberalismo, em termos políticos, e no positivismo, em termos filosóficos, é, até certo ponto, óbvio que o republicanismo daquele fim de século XIX não se inquietasse seriamente com a pobreza material, dando-lhe um estatuto de antagonismo social insuportável com os supostos novos tempos, num país pós-monarquista. Inquietar-se com essa pobreza, com a indigência dos ex-escravos exposta pelas ruas de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, com tanta gente sobrevivendo em condições subumanas, significaria aceitar que as idéias realmente estavam “fora do lugar”, conforme a célebre expressão de Roberto Schwarz, crítico de literatura que, imbuído de referenciais sociológicos e estéticos, logrou excelentes resultados ao analisar o período a partir da obra de Machado de Assis. Significaria, no mínimo, relativizar a primazia absolutizante das idéias em face da realidade social e, por conseguinte, o reconhecimento do teor complexo dessa realidade, uma complexidade que tinha no seu âmago, como seu motor, a conversão de coisas em pessoas, de objetos em sujeitos, como se pode entender a passagem da condição de escravo para liberto. Operar essa complexidade exigiria, claro, um esquema teórico rigoroso capaz de, na hermenêutica da realidade, ir muito além das simplificações do positivismo e do liberalismo, compreendendo não os efeitos dos efeitos, mas as causas dos efeitos e os efeitos das causas, o que implicaria, necessariamente, uma ultrapassagem da ordem do visível, da superfície em que se estrutura o discurso republicano. Ultrapassando essa ordem, o discurso republicano encontraria a pobreza material, sua contraparte, aquilo que, pensando em Freud, pode-se tratar como “recalcado”. De fins do século XIX para cá, não tem sido poucos os esforços para trazer à tona a pobreza material para o centro do “logos” que ordena a dinâmica social brasileira, para o centro do discurso que modula as ações dos diversos sujeitos, para o interior, pode-se dizer ainda, da máquina de produção da racionalidade cotidiana. Tiveram lugar, esses esforços, e continuam 147 tendo, nas letras, na sociologia, na história, na antropologia etc e, mais importante que elencar seus responsáveis, é tentar compreender por que a pobreza material, sob a qual se encontra parte tão expressiva da população, ainda é algo deslocado nesse “logos” ordenador do social, não totalmente abarcado por esse “logos”. Deslocado no sentido de que não atua, de modo decisivo, na conformação desse “logos”. Natural seria, em face desses esforços, que esse “logos”, ecoado pelo Estado brasileiro através de suas políticas públicas, não tratasse a pobreza material como um corpo estranho, como algo a ser extirpado em nome do desenvolvimento social, mas como parte integrante do seu “corpus”. Com esse tratamento, o “logos” oficial revela, sobretudo, que não assimilou devidamente as contribuições de um Joaquim Nabuco, um Euclides da Cunha, um Gilberto Freyre e um Josué de Castro, nas quais é evidente o “poder simbólico”, para usar o conceito de Bourdieu, dos pobres. Tal poder consiste numa riqueza imaterial, contraponto contundente à pobreza material, que o “logos” oficial resiste em reconhecer como algo legítimo, uma racionalidade outra, mas igualmente racional. Esse reconhecimento significaria, em primeiro lugar, uma confirmação, pelo Estado, de uma verdade estarrecedora, sempre evitada: a da existência de dois países no Brasil, um real, cultivado por pessoas – pobres, em sua maioria - e outro oficial, ostentado pelo discurso de alguns – ricos, em sua maioria. Assim, em nome de uma unidade meramente discursiva, o Estado opta, historicamente, por continuar operando com as simplificações teórico-políticas que embasaram a instauração da República no país. A reversão desse processo é fundamental à medida que fere, naturalmente, a questão identitária, que, conforme a elucidação de Heidegger, está imbricada na noção de comunidade: identidade se define como aquilo que é comum a um determinado grupo de pessoas. Não há o pobre, isoladamente, nem aqui nem alhures; há os pobres, que vivem sob determinadas condições materiais e imateriais, donde resulta todo um saber, todo um conjunto de tradições, modos de ser e estar no mundo que 148 constituem, nos muitos territórios espalhados pelo espaço brasileiro, seu poder epistêmico. Separados a partir de critério étnico, de gênero e classe social, esses pobres se irmanam sob a tarja genérica da pobreza, que, de fato, acaba se lhes afigurando como a grande “parede”, o grande obstáculo, comumente intransponível, na sociedade brasileira. Sua experiência da pobreza não resulta, de um modo geral, em silêncio: são os mais falantes, fazem o carnaval diário no país. Todavia, seu poder simbólico é utilizado objetivamente, desde o início do projeto republicano no país, para referendar o poder real das elites políticas e econômicas. Converter esse poder simbólico em poder real, a ser exercido na instância pública, é tarefa que exige a participação da Universidade, enquanto instituição que tem como missão o esclarecimento, uma missão que, no bom sentido, está interligada à defesa da humanidade. Neste caso, trata-se de defender a sempre ameaçada humanidade dos pobres. REFERÊNCIAS BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Miriam Ávila et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. CAMINHA, Pero Vaz de. A carta de Pero Vaz de Caminha. In: Nossos clássicos. Estudo crítico de J. F. de Almeida Prado, texto e glossário de Maria Beatriz Nizza da Silva. Rio de Janeiro: Agir, 1977. 2ed. DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Nova Cultural, 1991. FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Estratégia, Poder-Saber. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Org. Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 2ed. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2000. 6ed. 149 RANCIÈRE, Jacques. O começo da política. In: O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996. ROSS, Kristin. The emergence of social space: Rimbaud and the Commune Paris. Minneapolis: Minnesota Press, 1994. SANTIAGO, Silvano. O entrelugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. 150 i ii iii iv v vi