a função especular
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a função especular
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 POETAS QUE FALAM DE NÓS: A FUNÇÃO ESPECULAR DA POESIA EM VICTOR HUGO Ana Luiza Rocha do Valle (UNICAMP) 1 Resumo: Segundo alguns críticos, questões autobiográficas fortes parecem rondar as leituras do conjunto Les Contemplations, obra do poeta francês Victor Hugo. A partir da análise de um dos poemas desta obra e do prefácio a ela, escrito pelo próprio Hugo, propomos neste ensaio um olhar que se detenha mais na questão metapoética. Não se trata de desprezar vivências do poeta, mas, de evidenciar seu trabalho com a linguagem, através do qual nos são postas questões intrínsecas a todo ser humano. Refletimos brevemente sobre as relações a serem estabelecidas com a poesia pelos leitores contemporâneos de Hugo e, posteriormente, por nós, da pós-modernidade. Passada a era romântica e alterados os valores sociais e estéticos, será ainda possível que nos vejamos no espelho das “contemplações”? Serão as opiniões do escritor e as situações por ele vividas, fatores limitantes à interpretação? Propomos uma leitura que ultrapasse o biografismo sem, necessariamente, ignorar a biografia: que a vida de Victor Hugo seja apenas uma nuance da poesia-espelho. Poesia esta em que cada leitor se defrontará com os próprios caminhos “do berço ao túmulo”. Palavras-chave: Metapoesia, Victor Hugo, Biografismo. Introdução XIV Demain, dès l’aube, à l’heure où blanchit la campagne, Je partirai. Vois-tu, je sais que tu m’attends. J’irai par la fôret, j’irai par la montagne. Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps. Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées, Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit, Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées, Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit. Je ne regarderai ni l’or du soir qui tombe, Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur, Et quand j’arriverai, je mettrai sur ta tombe Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur. (Victor Hugo, 3 septembre 1847) « Ma vie est la vôtre, votre vie est la mienne, vous vivez ce que je vis; la destinée est une. Prenez donc ce miroir, et regardez-vous-y » « C'est l'existence humaine sortant de l'énigme du berceau et aboutissant à l'énigme du cercueil » (Victor Hugo, 1856) As memórias de uma alma; o livro de um morto. Assim nos são apresentadas “Les Contemplations” de Victor Hugo, em prefácio do próprio escritor. Porém, o mesmo prólogo que expõe a alma individual alerta-nos para a indissociável relação da poesia com muitas outras vidas que não a do 1 E-mail: [email protected]. Seção Estudos, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 99-103, jan./jun. 2011 99 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 poeta; “Est-ce donc la vie d'un homme? Oui, et la vie des autres hommes aussi. Nul de nous n'a l'honneur d'avoir une vie qui soit à lui” (HUGO, 1856 ?, p. 1, grifo meu). A despeito de toda a dificuldade de enquadrar um poeta entre os diversos “movimentos” e ismos da Literatura, pode-se dizer que Victor Hugo consta como figura importante na tradição de poesia romântica. Como se vê no poema apresentado, Hugo prezava por questões formais arquetípicas, embora isso não exclua necessariamente a preocupação com o conteúdo. Mas, não é do diálogo com a tradição que trata o prefácio citado, tampouco da configuração formal. Seguindo a lógica de uma estrutura muito característica de seu tempo (versos metrificados em alexandrino e rimados), o leitor pode incorrer em deslize a respeito do tema. Como em muitos textos da época, lêem-se, à primeira vista, os temas da melancolia e do amor. Disse-nos Edgar Allan Poe em sua Filosofia da Composição: [...] ‘quando’, insisti, ‘esse mais melancólico dos temas [a Morte] se torna o mais poético?’ (...) ‘Quando se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de amante despojado de seu amor’. (POE, 1999, p. 107, o segundo grifo é meu) Como não fora às questões estruturais da tradição com a qual dialoga sua obra, assim também não é ao tema do amor que se refere o poeta em seu prefácio, ou, ao menos, não só a ele. É com a condição humana em si, do berço ao túmulo, que falam “Les Contemplations”. No Livro IV (intitulado Pauca Meae) – o qual contém o poema aqui abordado – o poeta nos apresenta outra possibilidade de voz para a melancolia tratada por Poe: é um pai quem veste o luto. Tal interpretação, se já sugerida pela crítica devido a questões biográficas, é endossada pelo subtítulo do Livro IV: (Quelques vers pour ma fille). Guy Jacquemelle (2011) define-o como o livro do luto. Ele nos sugere, então, que a morte, por afogamento, da filha do escritor, Leopoldine, seja a razão das diversas “reações” emotivas expressas nos dezessete textos desse conjunto: Hugo médite sur cet abîme qui sépare hier d'aujourd'hui. Il y exprime tour à tour sa révolte contre la cruauté du destin (trois ans après), sa nostalgie ( elle avait pris ce pli, elle était pâle et pourtant rose) . Parfois aussi il semble se soumettre à la volonté divine (A Villequier) . La douleur causée par la mort de sa fille Léopoldine semble inconsolable (Demain, dès l'aube, à l'heure où blanchit la campagne). (JACQUEMELLE, 2011, s.p.) Se, de um lado, o prefácio não elimina o caráter autobiográfico do texto; de outro, ele indica ao leitor a função especular da poesia. Assim, os elementos biográficos são importantes, mas não exclusivos: eles pertencem à vida de Hugo como às de tantos outros homens. Análise e conclusão Em termos estruturais, o poema é composto por doze versos distribuídos em três quartetos cuja métrica é a mais aplicada ao poema francês do século XIX: o verso alexandrino. As rimas são intercaladas, sendo uma metade de rimas pobres – substantivos rimam entre si – e a outra, de ricas (substantivo pensées e adjetivo croisées; verbo attendre e advérbio longtemps, verbo tomber e substantivo tombe). O trajeto do enunciador começa na aurora, no clarear do campo. O termo aube, muitas vezes traduzido por aurora, é constantemente utilizado pelo autor desde o Livro I da série “Les Contemplations”. Por analogia à sua oposição à noite, a aurora representa o início do caminho e também o início da vida em Seção Estudos, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 99-103, jan./jun. 2011 100 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 contraposição ao fim e à morte. Em outros poemas, ela é associada à primavera e à juventude: “O jeunesse! printemps! aube! en proie à l'hiver!” (HUGO, 1856?, p. 79). Do clarear ao escurecer, o eu - lírico caminha por fases e obstáculos da vida. E, se aí podemos ver Victor Hugo de fato a caminho de um cemitério a deixar flores sobre o túmulo de sua filha, o percurso e a dor já não pertencem somente a ele. Numa leitura um pouco mais ousada, vêem-se no poema a trajetória humana e também a estrutura principal de todo o conjunto “Les Contemplations” até o Livro IV. A compilação começa com o que Jacquemelle chamou de “le livre de la jeunesse”, cujo título é justamente “Aurore” (termo semanticamente muito próximo a “aube” e, em comparação a este último, mais associado ao nascer do dia do que ao fim da noite). Passa ainda pelo amor, pelos sonhos e lutas político-sociais antes de chegar ao luto. Luto esse que o próprio Hugo diz, em seu prefácio, ser o único verdadeiro: a perda dos entes queridos. Nosso personagem parte cedo do campo e perpassa floresta e montanha numa corrida contra o tempo. Ele tem aqui uma atitude abrandada em relação ao outros poemas do mesmo livro. Embora a maioria mantenha esquemas similares de rimas e a métrica alexandrina, “Demain, dès l’aube” é mais curto e condensado, não se estendendo a memórias específicas nem a reclamações aos céus. Como se lê na segunda estrofe, os olhos estão fixos nos pensamentos, sem nada distinguir em volta. Nesse ponto, pode-se considerar o poema em questão como exemplar da ideia de poesia-espelho, dado que os pensamentos são o foco e não os fatos exteriores. Entenda-se aqui, por poesia-espelho, a função de uma arte que pretende, de algum modo, refletir o espectador/leitor e provocar-lhe uma reflexão. O poema pode conter, simultaneamente, as vozes de um eu-lírico ficcionalizado, do próprio Hugo enquanto autor e do leitor que o complementa. Seria uma maneira de chamar o leitor à reflexão de questões a um tempo individuais e coletivas, externas e muito interna. Como diante de um espelho, somos estimulados a ver nossa própria imagem tal como ela é vista por outros. É a paradoxal proposta de autorreflexão sem que seja possível desprender-se da alteridade: como já nos disse Hugo na introdução deste ensaio, a nenhum home cabe a honra de ter uma vida só sua. De volta ao poema, a partida anunciada é certa, indubitável e marcada pelo ponto final que foge à convencional cesura na sexta sílaba. O argumento para justificá-la, tão cedo, tão certa e independente do caminho e dos obstáculos (J’irais par la forêt, j’irai par la montagne), começa com alguém que espera e termina por confessar a necessidade do caminhante: Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps. Mas, é na segunda estrofe que nos deteremos com mais calma, por sua já anunciada relação com a função especular da poesia. Hugo pede que nos vejamos nesse espelho e é no momento de caminhar como no poema – (...) les yeux fixés sur mes pensées, Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit, Seul, inconnu (...) – é nessa pausa em relação a todos os fatores externos que o olhar cuidadoso se torna mais possível. Pois, ainda que sejam diferentes as situações entre as vidas humanas, o olhar interno e a necessidade de lidar com as questões de “berço e túmulo” são intrínsecos à condição humana. Assim, insiste o poeta: Ce livre contient, nous le répétons, autant l'individualité du lecteur que celle de l'auteur. Homo sum. Traverser le tumulte, la rumeur, le rêve, la lutte, le plaisir, le travail, la douleur, le silence; se reposer dans le sacrifice, et, là, contempler Dieu; commencer à Foule et finir à Solitude, n'est-ce pas, les proportions individuelles réservées, l'histoire de tous? (HUGO, 1856 ?, p. 1) No poema seguinte, haverá a contemplação divina e o implorar – que se possa ao menos chorar visto não serem permitidas as reclamações – mas, aqui, o homem está só e desconhecido. Estranho ao ambiente e a si mesmo, deformado em certa medida pelo caminho físico e pela dor emocional (le dos courbé, les mains croisées). Ele já não grita, posto que ainda não implore, sua atitude é um caminhar irretornável em busca de um reencontro que não se fará. Para o leitor contemporâneo de Hugo, em que Seção Estudos, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 99-103, jan./jun. 2011 101 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 individualidade e fluxo de consciência tornam-se centrais na literatura, esse olhar interno foi, certamente, de fácil reconhecimento. Já para os pós-modernos, além da autoconsciência, a ausência de Deus no reflexo pode ser facilitadora. Portanto, “Demain, dès l’aube” talvez seja um ponto de encontro com o leitor atual mais interessante do que “À Villequier”, por exemplo. Neste, a relação com o divino fica explícita e é posta como questão essencial do humano. De volta ao último verso da estrofe, encontramos o duplo dia-noite que rege todo o conjunto da obra: Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit. Convém aqui lembrar duas passagens do já citado Prefácio a “Les Contemplations”, uma em que Victor Hugo pede que se leia a obra como “o livro de um morto” e outra que identifica o “abismo” que divide o primeiro volume – Autrefois – e o segundo – Aujourd’hui como um túmulo. O verso fecha a pausa com nova referência à individualidade do poeta – seu distanciamento progressivo do “dia” em direção à “noite” – e encaminha-nos à estrofe seguinte, em que há mais elementos “específicos”, no sentido de reportarem a uma situação particular. A marca mais forte dessa particularidade é a cidade de “Harfleur” que situa geograficamente as ações, mas, ainda assim, é pequena se comparada ao poema como um todo, especialmente se considerarmos que Harfleur aparece como mais uma circunstância ignorada pelo eu-lírico em sua dor. Assim como as montanhas e florestas percorridas, a noite que cai e as flores que serão postas no túmulo, a cidade e seus barcos são mais peças de cenário: elas situam a cena, sem necessariamente determinar o que se passará nela. O poema termina com a homenagem corriqueira e singela de depositar flores ao túmulo: flores essas – urze e azevinho – que são bastante comuns na Europa. Nesse gesto, pode-se ver a proteção frequentemente associada à urze enquanto o azevinho traz uma representação delicada da contraposição morte-vida que percorremos até então: ele é conhecido ornamento de Natal – festa intimamente ligada à noção de vida e, mais particularmente, ao nascimento, ao início. Um eu percorre caminhos físicos e sentimentais ao longo do poema para homenagear um ente querido. Em segundo momento, pautados na biografia de Hugo, vemos o poeta a lamentar a morte da filha e protegê-la eternamente. Arriscamo-nos então, a buscar no espelho outro nível de leitura: pelos cenários diversos da vida, a poesia une-a à morte. Se o poeta pareceu escolher a noite e o fim, a poesia nos coloca frente à contradição da “flor” de Natal no túmulo. Para além do espelho, o mundo poético pode também ser visto, então, em sua função eternizadora: assim, embora o poeta se considere um morto, a vida prevalece insistente ainda que sobre o túmulo. Cabe lembrar também que o poema seguinte a “Demain, dès l’aube” é considerado – como dito em referência a Guy Jacquemelle – um passo na etapa da resignação. Após o Livro IV, o conjunto “Les Contemplations” contém ainda dois livros inteiros, em que se restabelece o trajeto; são eles: En Marche e Au bord de l’infini. Ousamos mais uma vez, ao trazer Victor Hugo até os leitores pós-modernos e dizer-lhes que façam o exercício do espelho antes da crítica ao “autobiografismo”, que procurem a eternidade da função especular na poesia, guiados pelo protesto do poeta: Ma vie est la vôtre, votre vie est la mienne, vous vivez ce que je vis; la destinée est une. Prenez donc ce miroir, et regardez-vous-y. On se plaint quelquefois des écrivains qui disent moi. Parlez-nous de nous, leur crie-t-on. Hélas! quand je vous parle de moi, je vous parle de vous. Comment ne le sentez-vous pas? Ah! insensé, qui crois que je ne suis pas toi! (HUGO, 1856 ?, p. 1) Pede-se cautela e sensibilidade, pede-se que leia além da individualidade biográfica do poeta e reveja aurora e crepúsculo, primavera e inverno, azevinho e túmulo em seu próprio reflexo. Seção Estudos, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 99-103, jan./jun. 2011 102 A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516 REFERÊNCIAS HUGO, Victor. Demain, dès l’aube, à l’heure où blanchit la campagne. In : HUGO, Victor. Oeuvres poetiques II. Bruges: Éditions Gallimard, 1967. HUGO, Victor. Préface. In: HUGO, Victor. Les contemplations. Gallica, Bibliothéque Numérique de la Bibliothéque Nationale de France. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7310>. Acesso em: 24 jun. 2011. JACQUEMELLE, Guy. Les 6 livres des contemplations. In: JACQUEMELLE, Guy. A la Letrre. Disponível em: <http://www.alalettre.com/victor-hugo-oeuvres-contemplations.php>. Acesso em: 18 jun. 2011. POE, Edgar Allan. Filosofia da composição. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Globo, 1999. SITE MATISSE LETTRES. Étude de La Préface. Disponível em: <http://www.matisse.lettres.free.fr/contemplations/ lapreface.htm>. Acesso em: 25 jun. 2011. Seção Estudos, Uberlândia, ano 4, n. 7, p. 99-103, jan./jun. 2011 103