A India-Mae -- a fascinacao do seu misterio.
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A India-Mae -- a fascinacao do seu misterio.
Capitulo IV A India-Mae -- a fascinacao do seu misterio. A Cultura Indiana Nota Preliminar E urn lugar-comum dizer que, quern se debruca sobre o estudo da civilizacao indiana, fica assombrado corn o facto de que esta corn a sua cultura concomitante nascida ha milhares de anos, é ainda hoje viva e pujante(1). Comecada ja nos tempos vedicos (2000-600 A. C.) e continuada pelos rixis, filosofos, sacerdotes e sanyasis nos vinte e cinco seculos seguintes, chegou ate os nossos dias numa tradicao mais ou menos ininterrupta. A historia desta civilizacao é marcada por reaccoes contra certas verdades institucionalizadas ou mesmo pela rejeicao destas, adaptacoes as novas circunstanci as culturais do ambiente que nasciam no decorrer dos tempos. Ela nao se provou imune a absorcao de novos elementos e sujeicao a novas influenci as dos povos corn culturas propri as, que vieram estabelecer-se na India, viajar pelo sub-continente, apreender dos seus sabios, saquear as suas riquezas e conquistar a terra e dominar os seus povos. Outras civilizacoes tao antigas como as da India, por exemplo, a egipci a, a grega, a romana, nao sobreviveram as vicissitudes das mudancas culturais a que ficaram expostas, para chegarem ate os nossos dias, intemeratas na sua pristina identidade (2). " Nao se pode negar que em uns poucos seculos o espirito da unidade cultural espalhou- (1) Ranganathananda Swanty, The Essence nf Indian Culture, The Ramakrishnan Mission, Calcutta, pag. 1. (2) Kabir, Humayun, The Indian Heritage, Asia Publishing House, Bombay, 1962, pag.56. - 112- -se por uma vasta extensao da terra e troncos raciais de varios niveis da cultura fi caram impregnados numa atmosfera comum" (3) Esta unidade deu-lhe uma identidade m ui to caracteristica. As sucessivas invasoes e conquistas, a comecar com as dos Arianos, dos Gregor, dos Hunos, ate as mais recertes come as (los Portuguese Ing,!ests e France. ses , contribuiram para continuas fusoes das tradicOes antigas com novo s elementos das culturas dos invasores. "Hoje o que é conhecido por Indian°, seja uma i dei a, uma pal avra, uma forma da arte, uma instituicao politica ou urn costume social, é uma amalgama de diferentes tons e elementos" (4). Unidade na diversidade e continuidade caracterizam o patrimonio cultural da India. A unidade subjacente a cultura da India, proveniente de vari as fontes, formas e tipos, e urn dos seus aspectos notaveis. El a brota do espirito que une as suas diferentes expressoes "e liga os diferentes periodos da sua hi st6ria ern urn todo organi co" (5). Se esta unidade nao fosse de tal natureza "nao seria possivel explicar os sucessos e as realizacOes espirituais do Hinduismo" (6). A vitalidade e a perpetua energia desta cultura é igualmente admiravel, pois que ela nao so sobreviveu as vicissitudes do tempo mas, ai nda hoje, revel a "uma exuberanci a que promete fazer del a uma das fontes mais frutiferas da futura cultura mundial" (7). Aos filosofos da cultura devemos o esclarecimento da verdade de que nenhuma cultura apareceu ou se desenvolveu a nab ser juntamente corn uma religiao,(8) e a religiao 6 a chave da historia e e impossivel compreender uma cultura a nao ser que compreendamos as suas raizes religiosas "(9). (3) Radhakrishnan, Servapali, The Hindu new of Life, London, Unwin Books, 1963. pag. 13. (4) Kabir Humayun, op.eit., pag.35. (5) Ibidem. (6) Ihidem. (7) Ihidem, pag.36. (8) T.S.Eliot, :Voles inwards the Definition nfl'ulture , Faber Ed, London,1962. (9) Dawson, Christopher_liedieva/ Essays, Image Books, pag.7. - 113- "Tesouro acumulado das verdades espirituai s descobertas pelos rixis", di sse Adi Shankaracharia (10), "a cultura indiana tem um conteudo basicamente religioso". Esta ela edificada sobre a sabedoria vedico-puranico-upanixadica. Elementos da mundividenciabudista e jainista sao muito bem parte dela. Na sua experiencia religiosa os sufis, misticos islamicos e os seguidores hindus da espiritualidade bhakti partilham umaplataformacomum. 0 Cristianismo contribuiu corn varios el ementos do Evangelho e do seu humanism°. A cosmovi sap indiana exprimiu-se atraves de uma rica simbologia, um ritualism° que abrange todos os aspectos da vida social e individual, uma mitologia de profundo significado que é "parte da cultura viva, nap apenas das massas analfabetas mas de todos os estratos da sociedade"(11). Uma outra caracteristica da cultura indiana é que esta nunca foi apenas apanagio das classes ou duma elite, mas penetrou por toda a populacao do subcontinente. A lingua, "nos primordios o Sanscrito que deu origem a varias linguas vemaculas, prakrit" , e a arte, a filosofia e a religiao, os habitos e os costumes sociais, as instituicoes politicas e as organizacties econOmicas foram e ainda hoje sap parte da vida e do ethos do povo indiano, embora cada regiao ou estado modern° tenha criado urn clima cultural caracteristico corn seus cambiantes proprios. Um estrangeiro que visite urn recanto da India ficard surpreendido corn a abilidade de urn homem da aldeia, ainda que corn pouca ou nenhuma instrucao, ern pensar, sentir e comportar-se dentro do quadro das premissas basicas da filosofia e da religiao milenarias; ele observara tambem que "a diferenca entre as massas e as classes nap é tanto de qualidade mas pode bem ser explicada ern termos de informacao e oportunidade" (12). Ao contrario, no Ocidente, ainda recentemente "a diferenca na qualidade entre as massas e as classes era por vezes tao grande que ela muitas vezes abalou a fe na democracia dos mais fervorosos democratas". (13). (10) (11) (12) (13) Shankaracharya A., citado por N.Palkhivala em India's Priceless Heritage, Bombay Bharatya Vidya Bhavan, 1980, pag.29. Ions, Veronica, Indian Mythology, Paul Hamlyn,1968, pag.11. Kabir H., op.cit.,pag.39. Galbraith, John Kenneth, "Introducing India", em India, edited by Frank Moraes and Edward Howe, Vikas Publishing House, Delhi, pag.3. - 114 - Este fenomeno, em grande medida, resulta da continuidade que caracteriza a cultura indiana. Desde os tempos vedicos e puranicos nunca houve quebras violentas e rapidas na tradicao, mas ao contrario, um crescimento, uma expansao, uma evolucao da cultura cujas sementes foram lancadas pelos ascetas e misticos de antanho — rixis, sadus. sanvasis — grelaram e nermeararn entre. toeing as classes e cecclies da soci edq- de cujo espirito inato de toleranoia bem as recebeu, e transmitiu de geracao em geracao dando destarte unidade e continuidade as tradiceies patrias. Bem se pode dizer que a cultura indiana é caldeada por varias religibes e "penetra a vida hindu tal como ela e vivida no mundo em cada canto e recanto" (14). Os hindus consideram a sua religiao como uma parte integral do viver• completo, entretecido com ela. Este viver eles chamaram-no Sanatana Dharma — a maneira de viver estabelecida, permanente e eterna" (15). A razao por que a filosofia e a religiao tern sido intimamente associadas uma outra é que "o objectivo final de ambas é o mesmo, a saber, ajudar o homem a realizar o seu fim supremo que é a libertacao do Samsara (ciclo do nascimento e da morte). A finalidade da religiao é nao apenas refinar as emocCies do homem, mas tambem sublima-las e transformar a sua vida inteira". Por isso, diz S. Radhakrishnan, " o hinduismo nao é urn credo dogmatic° definido mas um conjunto vasto, complexo, porem subtilmente unificado, de pensamento espiritual e realizacao humana (16). As raz5es sociologicas deste fenomeno cultural devem encontrar-se no facto de que antes do advento da recente urbanizacao industrial, a civilizacao hindu repousou e floresceu sobre a estrutura social da aldeia" (17). John K.Galbraith disse que "a aldeia indiana tern a dignidade e a estabilidade (14) (15) (16) (17) Chowdhuri, Nirad C., Hinduism, B.I.Publications, Delhi, 1978, pag. 1. Ibidem, pag.28. Mahadevan, T.M.P., The Religio-Philosophic Culture of India", em: The Cultural Heritage of India, edit. by Ramakrishna Mission, Calcutta, vol.1,pag.165 Radhakrishnan, S., op.eit., pag.17. Deleury G.A., "Popular or "Folk" Hinduism, -- Sociological Background of "Folk" Hinduism", em l?eligious Hinduism, by R.Antoine et al.,St.Paul Publications, 1964, pag.95. - 115- de uma velha cultura (18)". Enquanto a cidade ou a vila era o cenario do poder politico que se alevantava, uma especie de afloramento do acampamento militar, a aldeia permanecu sempre a manifestacao autentica da alma da sociedoade indiana. E a aldeia que moldou a via° e a psicologia do campones que apreendeu qual é o quadro e o modelo ritmico em tudo o que tem vida desde o nascimento ate a morte, desde a morte ate ao nascimento SOmente nesse ambiente cultural — a aldeia — os gurus (mestres), os rixis (misticos), os sadhus e sanyasis (ascetas), ospurohits (sacerdotes), em intercambio espiritual corn as montanhas, florestas, rios, animais e templos, podiam exercer a sua accao de homens de relied° e lideres da cultura, e contribuir para o avanco religioso-cultural, atraves da tradicao da logica e da sua vida". E somente na aldeia e principalmente atraves destes homens da religiao e lideres da cultura que "a religido e a filosofia, a vida e o pensamento, o pratico e o teOrico formaram e ainda "formam o eterno ritmo do espirito. E sOmente aqui que o indiano aprendeu e ainda aprende a surgir da vida ao pensamento e voltar do pensamento a vida num enriquecimento progressivo que é o atingir de niveis cada vez mais altos da realidade" (19). As Matrizes da Cultura Indiana Ainda nab ha muito tempo, o patrimonio cultural das nacoes com um passado milenario. expresso pela sua mitologia, seus rituais, seus simbolos, suas lendas era considerado pelos estudiosos ocidentais como "episOdios imaduros ou aberracOes de uma historia exemplar humana". Tais nacoes pertenciam ao que eles chamavam "mundo primitivo", e as atitudes psi col Ogi cas dessas nacoes eram consideradas como "inferiores, estranhas e desconcertantes" (20). Foi a partir dos grander movimentos culturais deste seculo estudos comparados das religioes, a antropologia cultural, a etnologia, e a psicologia das profundezas, as teorias principalmente de Freud e Jung, as descobertas do surrealismo — que a mitologia, os rituais e os simbolos comecaram a ser olhados como (1 8) Galbraith, (1 9) Radhakrishnan S., op.eit., pag. I7. (20) Eliade, M ircea, Alphs. Dreams and Alysteries, The Fontana Library Theology and Philosophy, pag. 10. I I. pag.3 . - 116- "expressoes do genio particular" de uma nacao, "expressoes privilegiadas das situacoes existenciais dos povos que pertencem a varios tipos da sociedade e sao impelidos por forcas historicas que sao diferentes das que moldaram a historia do mundo ocidental" (21). Urn estudo documentado e serio desses simbolos e mitoloaias. deve levar eventualmente, na opiniao autorizada de Mircea Eliade, a uma "descoberta de novas fontes de inspiracao para a meditacao filosofica". i) India-Mae (Bharat-Mato) Urn mito primordial da humanidade e o da Terra-Mae, Tellus Mater. Os rituais ligados a este mito revel am como a vida nasceu de uma semente escondida num todo "nao diferenciado", ou como ela é produzida ern consequencia da hierogamia entre o ceu e a terra ou, ainda, como ela brotou de uma morte violenta, ern maior parte, voluntari a. Nestes rituais a mulher é assemelhada a terra e o acto sexual ao trabalho da lavoura (22). A mulher é o campo e o homem é o dispensador da semente", escreveu um autor indiano (23). Este mito primordial teve na India uma expressao concreta no culto da Deusa-Mae. 0 conceito da terra como mae é uma das facetas mais duradoiras e vitais da cultura indiana. 0 A tharvaveda tern urn magnifico lino a Prithvi: O Terra, teu centro e teu umbigo, todas as forcas que brotaram do teu corpo -Coloca-nos no meio dessas forcas; bafeja sobre nos. Sou filho da Terra, a Terra e minha Mae. 0 Deus da Chuva e meu Pai; oxala ele me favoreca (24). Nos tempos vedicos Prithvi, a terra, e Dyaus, o ceu eram representados simbolicamente pela vaca e pelo boi, respectivamente. Adorados como deuses da fertilidade, ambos eram considerados corm progenitores de todos os outros deuses e de todos os homens. (21) Ibidem, pag.12. (22) Eliade, M.,op.cit.,pag.156-192. • (23) Citado por Eliade. (24) Embree,Ainslie T., The Hindu Tradition, The Modern Library, N. York, 1966, pag.45, "Earth as motherland". - 117- Nas aldeias do sul da India, entre as massas nao-arianas, houve sempre culto de divindades femininas que o processo lento de arianizacao transformou em consortes de varios deuses e manifestacOes do seu pocler. Dal, nasceram as varias shakti. Assim, Durga, a Mae auspiciosa que protege, perdoa, salva os seus devotos, tao compassiva quao poderosa, e Shakti do deus Siva. Kali, simbolo da natureza inexoravel que cria e ' destrai, pcsaai eras do sou orror :..•parontc, mao materna df... deusa que I eva os hc, ,rnons a sua libertacao. No decorrer dos tempos, principalmente nos alvores do despertar do sentimento nacional no seculo XIX, pensadores, escritores literarios, politicos e religiosos, comecaram a ver na propri a nacao indiana, Bharat, o simbolo da Mae, Matha e do Poder Divino, Shakti, concepcoesestas personificadas pel as divindades (25). Foi a partir dos escritos destes pensadores que se redescobriu e se reganhou a ideia de que a India é uma Mae. ii) 0 Espirito Supremo e Infinito Em toda a filosofia vedico-upanixadica ha um principio fundamental, base de todos os demais, que se filtrou ate as massas corn pouca instrucao, do continente: existe um Espirito, supremo e imutavel que penetra e perpassa pelo universo inteiro. 0 mundo material é apenas uma sua manifestacao. Supremo e eterno, fundamento de toda a real idade, este espirito é conhecido por varios nomes, tais como Brahman, o primeiro principio absoluto e transcendente; Paramatman, o ser supremo, Bhagavan, o bendito, (25) Eis as expressoes de alguns dos grandes pensadores da India: Vivekananda:"A antiga Mae rejuvenecida, a conquistar o mundo pela sua espiritualidade" (Mitra, Sisirkumar, Resurgent India, Allied Publishers Private Ltd., I963,pag.258. Tagore:"Surgida do Coracao de Bengala Tu apareces na tua forma maravilhosa, o Mae! Encantadora do Universo! 0 Tu, a terra, brilhante coin os raios da paz do Sol! Mae e Ama dos nossos antepassados" (Resurgent india,pag.280). Aurobindo:"Cada nacao é uma shakti ou forca ou potencia do espirito que evolui na humanidade ou vive em conformidade corn o principio que o incorpora. India é a Bharata Shakti (Resurgent india,pag.13) "Para Sri Aurobindo India-Mae nao é urn pedaco da terra. Ela a uma Potestade, uma Divindade"(Palkhivala N.,op.cit.,pag.29). - 118- o adoravel, Ishvara, Senhor, Parameshvara, Senhor supremo que governa e domina o universo (26). iii) 0 Homem, manifestacao do Ser Supremo Na concepcao indi aria, o homem "nao pole ser c,onsirlf_'rsdn In10 separado, dP alguma maneira, do universo; muito menos se pode dizer que ele desfruta de urn lugar privilegiado nesse universo" (27). 0 Absoluto é o fundamento, o ponto de apoio imutavel de tudo. A materia, as plantas, os animais, os deuses sao varias modalidades do universo. Todos eles sdo uma especie de exposicao ou parada magica do Ser Supremo que nao afecta a unidade serena do Absoluto (28). 0 homem é apenas "uma das muitas formas em que o Ser Supremo se manifesta neste universo" (29). Por detras e mais ao fundo do estado da consciencia (nab moral mas dos senti dos) do homem, como um individuo distinto dos outros, existe "um principio imutavel que nunca fica envolvi do nos caprichos ou vicissitudes das pereepcaes, desejos e prosseguimentos mundanos de metas e objectivos. Este principio imutavel é inteiramente diferente do que na filosofia escolastica e conheci do como alma humana imortal, poi s que a filosofiaindi ana faz deste principio a propria Realidade Suprema, imortal e eterna. iv) 0 mundo é uma irrealidade, urn maya. Este conceito é um bocado dificil de explicar em virtude de suas vari as conotacoes. Já o Rig-veda apresenta Brahman como o iinico real e o mundo como fal so. 0 mundo é maya, isto é, uma manifestacao de Brahman, puramente ilusori a, causada pela nescienci a transcendental (avidya, ajnana). Noutros lugares maya significa realidade nao manifesta (30). 26) Antoine R., et al.,op.cit.,art."God in Hinduism", pag.73. (27) Dandekar, R.N.,"The Role of Man in Hinduism" em The Basic Beliefs. of Hinduism,pag.115, cit.por Antoine-Buckle, op.eil., pag.107. (28) Antoine, R. et al., op.cil.,pag. 107. (29) Dandekar, R.N.,op.cit. (30) Sharvananda, Swami, The Vedas and their religious teachings", em The Cultural of India, vol.1, pag. 196. - 119- Maya significa ainda um poder divino que permite ao Senhor Supremo descer e operar uma teofania entre os homens (avatar) e asstunir uma forma humana ou outra forma qualquer visivel (31). S. Radhaldwishnan diz que a c,onsciencia religiosa é testemunha da realidade de alguma coisa por detras do visivel, um alem que nos deixa assombrados e nos persegue e que, ao mesmo tempo, nos atrai e nos deixa inquietos, a luz do qual dizemos que o mundo das mudaneas é irreal. Para este filosofo, "a mutabilidade das coisas" — alias um tema bem versado na literatura mundial -- é parte da eonotaedo do conceito maya. Em outras palavras, as coisas deste mundo nao sao eternas. 0 mundo é maya, vai passando; so Deus é eterno. Porem o conceito da irrealidade nao deve ser confundido corn o catheter ilusOrio das coisas. 0 conceito de maya implica antes o significado de empirico. "A experiencia humana nao é, em Ultima anali se, nem real nem eompletamente ilusoria. Apenas porque o mundo da experienci a nao é a forma perfeita da realidade, nao se segue que ele é uma ilusao ou desilusao" (32). Maya deixa-nos ocupados com o mundo de sucessao e finitude. Maya causa-nos uma certa inquietaedo nas nossas almas, febre no nosso sangue. Ele tenta-nos a aceitar como real as bolhas de ar que se quebrardo, teias que sera() desfeitas " (33). v) Karma, Samsara, Moksha, Nirvana A doutrina do Karma, Samsara, Moksha, Nirvana é um corolario da visa° indiana da Real i dade, como o Espirito Supremo que é imanente no mundo e ao mesmo tempo o transcende (34). A doutrina do Karma e da transmigraedo ou reincarnaedo da alma — tao largamente conhecida qua() mal compreendida — esta fundada no principio de que a (31) Antoine, R. et al., op.eit., pag.249. (32) Radakrishnan, S.,Eastern Religions and Western Thought, Oxford University Press. 1958,pag.84-86. (33) Ibidem, pag.94-95. (34) Mahadevan, T.M.P., op.cit,,pag.177-178. - 120- existencia actual é moldada e determinada pelas accoes, Karma, de uma existencia previa que, por sua vez, foi o resultado das accoes de uma existencia anterior e assim por di ante, numa seri e sem inicio de vidas sujeitas ao determinismo cego de retribuicao rigorosa (35). Kama, desejo, é a fonte de Karma, accao. Samsara, significando corrente do regato, é o termo sanscrito que significa transtnigracao ou metempsicose. A alma torna-se vitima de samsaro pnrque, em razdo da Rua ignorancia identifica-se com corpo. , A cosmovisao indianareconhece que ha possibilidade de libertacao do samsara e esta libertaccao, moksha, é o mais alto ideal da existencia humana. A libertacao, moksha, que pro venh a da accao sem desejo, nishkama-Karma, o que é uma contradi cap de termos, é possivel opera-la ou pelo bhakti-marga, oupelojnana-yoga. 0 primeiro é a via de devocao ou a realizacao de Deus no homem, e o segundo, a via do conhecimento de si pr6prio, realizando a verdade dos livros sagrados do Vedanta sob a orientacao dum guia espiritual (36). Se na doutrina vedica, o moksha, é o ideal humano a ser atingido, Buda, o grande contestatario dos Vedas, do seculo VI a.C., ensina que o nirvana é o summum bonum da vida humana. Nirvana, o mais alto estado emocional da espiritualidade e da bem-aventuranca consiste "na sujeicao ao espirito altivo, o dominio perfeito da sede, a paralisia das propri as reservas da energi a criativa, o refrear do curso de samsara no que di z respei to ao destino do indivIduo, o raro atingir do estado de vazio, o desaparecimento do desejo, o estado sem paixao, e a cessacao de todo o sentimento de discordancia." Nirvana significa aniquilacao da paixao, oclio e ilusao (raga, dosa, moha). No seu aspecto positivo nirvana equivale a iluminacao mental concebida como luz, intuicao, estado de se sentir feliz, fresco, calmo e contente, estado de paz, seguranca e auto-dominio. Considerado objectivamente, nirvana é a verdade, o sumo bem, a oportunidade suprema, uma vida regulada, comunhao com o optimo (37). (35) Antoine, R. et al.,op.cit.,art."Hindu Ethics", pag.I08. (36) Mahadevan, (37) Law, Bimala Churn, "Nirvana" em The Cultural Heritage of India, vol. I, pag.547. -121- 0 Budismo nab existe na India como uma seita religiosa. Porem, o pensamento filosofico e religioso budista filtrou-se nas reconditas profundezas da mente religiosa dos hindus de hoje (38). vi) Dharma A etica indiana nab e um codigo de principios morals. Ela é antes uma praxe determinada pelo ambiente social. 0 fim Ultimo a ser afingi do e o desenvolvimento do individuo. Embora o imperativo da lei do karma faz com que a vida humana seja olhada como uma responsabilidade individual, os Dharma sutras (sutras sab uma expli cacao sistematica em formulas muito conci sas de todos os ramos do conhecimento da tradi cab vedica que apareceu durante o periodo da reacao contra os Vedas entre os anos 600 a. C. ate 300 A.D.) tratam do comportamento social das varias classes sociais. Se pelo Moksha ou a liberdade espiritual, o individuo deve aprender a basear a vida inteira sobre o poder e a verdade do espirito, se pelo Kama ele deve ganhar um equilibrio emocional; se o artha é o objectivo de obter seguranca economica e o bem-estar material que se harmoniza com as exigenci as espirituais, o dharma, o quarto objectivo da vida, é a "regra da pratica recta" (39), isto é, da rectidao e da justica que ensina a dar coerenci a e direccao as varias actividades da vida, realizar os seus val ores num mundo em que prevalecem interesses e desejos. vii) 0 espirito da tolerancia e do respeito pela liberdade alheia 0 que di stingue, de uma maneira especial, a cut tura indiana é a continuidade de uma tradicao de valores humanos, com um apelo profundamente espiritual. A longa hi storia cultural da India, corn a unidade e ininterrupcao de trathcoes, nao teria sido possivel na sociedade multiracial se nao prevalecesse o espirito de respeito pela liberdade alheia e da tolerancia pel as culturas, conviccoes e valores dos outros. "Vive e deixa viver" foi a maxima indiana em todas as esferas de relacoes sociais (40). 0 indiano acreditou e ainda hoje acredita que a verdade nunca pode ser o (38) Mookerjee, Satkari, "Buddhism in Indian Life and Thought", em The Cultural Heritage of India,vol.1, pag.575. (39) Radhakrishnan. S., op.cit.,pag.353. (40) Kabir, Humayun, op.eit.,pag.37-39. - 122 - monopOlio de ninguem. A base desta conviccao esta a frase quase proverbial do Rig- Veda: "Que de todos os lados pensamentos nobres cheguem ate nos". Foi da doutrina de Brahman, A tman, Maya, bem como dos quatro fins ou ideais da vida quebrotou uma i nteira mundi vi denci a, esse espirito de tol eranci a, compreensao, paz, boa vnn tack. P ret°nhecimentr, rlla irnensa •ariedade de pelas quai pode realizar o seu Ultimo destino (41). 0 conceito que melhor sintetiza este espirito é ahimsa ou nao-agressao: "Tudo . oquehmfaznivrsopmtdeagosurinvdalém.0 que ele faz por motivos de desapego é born. 0 valor verdadeiro da benevolencia para com todas as coisas", — é este o significado de ahimsa— da fil antropi a e da dedi cacao aos pobres reside no facto de que todos eles ajudam o homem a erguer-se acima das suas tendenci as egoisticas" (42). 0 escritor indo-portugues e a cultura indiana Desde os tempos mais antigos em que os vates e os rixis criaram e nos legaram os Vedas e os Upanishadas , a cultura indiana evoluiu de tal forma que "uma continuidade quase ininterrupta de criacao poetica uma das maiores maravilhas da historia literaria da humanidade" (43) caracterizou esse processo de evolucao. Sem em "cada etapa desta criacao ela provou a sua excelencia, e quando atingiu o seu auge na obra do mestre-cantor da India moderna (Rabindranath Tagore) ela exprimiu de novo a sua alma em comformidade com a linha da vida da sua continua evolucao cultural" (44). Se a India mil enaria abriu a sua alma e a exprimiu ao mundo em rasgos poeticos de sabor retintamente espiritual e religioso, Goa, nao podia deixar de participar desta di sposi cao mental col ecti va i ndi an a ; n as pesso as dos seus habitantes comuns bens (41) (42) (43) Palkhivala, N., op.cit.,pag.46. Antoine, R. et al., op.cit.,pag.108. Mitra, Sisirkumar, op.cii.,pag.259. (44) 'bittern. - 123 - como no escol dos seus pensadores, homens de experiencia religiosa, vates, mestres e outros permifiu que o substrato e requinte da cultura ancestral — "o profundo extracto milenario autoctone" (45) exercesse uma atraccao irresistivel sobre a sua psique. Dado que a cultura indiana, como se disse acima, tern uma tradicao de valores humanos que se exprime numa continua sherhira para o "Ansia as producoes literarias de Goa deveriam espontaneamente conter acenos ao Absoluto. De facto, a hi storia literaria indo-portuguesa tern iniuneras expressOes de tais acenos: anelos por Ishvara, ou hinos a Prithvi, aspiracoes da transmigracao para uma vida eterea, excel sa, admiracao por essas figuras providenciais, aureoladas ern lenda que sao a forca da raca indiana. Neste campo, as producoes literari as em portugues sao, na sua quase totalidade, da autoria de escritores cristaos. E isto parece ser estranho. 0 escritor indo-portugues cristao é uma pessoa cujos antepassados, abracando a religido catolica, finham renunciado, nesse acto, a religido ancestral hindu. Em seguida, ao fim de tres seculos é forcoso reconhecer que o quadro da vida social era este, descrito sumariamente por Almeida Azevedo: "a ignorancia da lingua classica e as preocupacOes religiosas concorrem para que em Goa se tenha por desprezo entre os riativos cristaos, que preponderam na administracao, o estudo das instituicoes hindus" (46). Todavi a, as matrizes da cultura indiana nao podi am ser apagadas do inconsciente do indo-portugues cristao. Algumas premissas fundamentals da filosofia etico-soci al indiana eram — assim o podemos supor com seguranca— parte do seu ethos, tanto quanto o eram as verdades e os principios da fe e da moral ciista, apreendidos como mais excelentes do que aquela filosofia. (45) Ferreira, Manuel, "A cultura de Goa e a literatura de expressao portuguesa", em Estudos /7tramarinos,Rev.Trimestral do lnst.Sup.de Estudos Ultram., 1959,N°3, pag.151 e seg. (46) Azevedo, Almeida, As romunidades de Cod, Lisboa, 1890,pag.59, citado por Santana Rodrigues, "A lnstruccao Publica em Goa", separata da Seara .Nova, 1927. "0 publico que no seu espirito de cristianismo de fronteira ainda se mantinha isolado, ignorando como atitude tudo o que ao hinduismo se referisse" em: Devi- Seabra, A Literatura nclo Porl uguesa, pag.240. - - 124 - Foi no resurgimento do ideal oriental, no ultimo quartel do seculo XIX, que os escritores indo-portugueses fizeram aquilo que Vicente de Braganca Cunha disse do poeta Sanches Fernandes: "procuraram realizar a autonomia literaria da India Portuguesa pelaidealizacAo dos sentimentos indianos; procuraram atar o fio partido das suas tradicoes do berco" (47). Foi a partir dali que a poesia indo-portuguesa, principalmente, comecou a revelar as influencias etnicas e politicas dos seu criadores. "A influencia oriental", continua Braganca Cunha, "fez-se sentir sobre os indo-portugueses. Forcas hereditari as, de que el es ndo tem a plena consciencia, actuam neles. A idade vedica, a idade bramanica, a idade budista, a epoca muculmana aqui deixaram vestigios" (48). Os deuses do panteao indiano nao sao pessoas. Sao tipos, simbolos corn que se exprimiram ideias filosoficas (49), se explicaram fenomenos naturais, se reforcaram crencas politicas e doutrinas respeitantes ao comportamento social. 0 escritor indo-portugues cristAo devia levar em si uma boa dose de saudade cultural do seu passado, da "vasta poli cromi a que esmalta o panorama dos costumes e das almas" (50) da sua terra. E, debatendo-se, de inicio, " entre solicitacOes indianas e europeias"(51), devia sentir que nab havia nada de incompativel entre a homenagem que, da parte dele como cristao, era devida a religiao ou fe catolica e o apelo e a atraccao telitrica que as figuras simbolicas e as doutrinas filosOficas, carregadas de valor arquetipico, da India milenaria, exerciam sobre si, filho dessa mesma India. - JA dissemos noutro lugar que a conversao do goes ao catolicismo significou, desde o inicio, uma separacao dele do mundo hindu e da cultura indiana. Os cristAos de Goa estavam bem pouco familiarizados, ao nivel literario e vivencial, com o patrimOnio cultural da India. Esta heranca cultural era ainda menos conhecida na Europa. Porem, pelos fins do sec. XIX e inicios do seculo XX, indologos europeus como Max Muller, Sir William Jones e outros estavam a envidar esforcos por fazer (47) De Braganca Cunha, Vicente, Literatura Indo-Poriuguesa,Figuras e Factos,Bornbaim, 1926,pag. 7. (48) Ihidem,pag.8. (49) Ions, Veronica, op.cit., pag.11 (50) Lupi, Nita, .1liisica e :lima Da Indio (51) Ferreira, Manuel, /0c.cit. A.G.do Ultramar, 1956, pag.61. - 125 - conhecida na Europa a riqueza duma cultura quatro vezes milenaria que chegava viva ate os nossos dias. Na mente dum europeu havia urn sentido de misterio e admiracao por essa India (52). Ao sopro do "ressurgimento do ideal oriental" (53) diante do escritor indoportugues divisava-se urn campo vasto nara ele se exprimir no idioma luso a riqueza dessse patrimonio que era bem seu. E aqui residia a singularidade da sua contribuicao literaria portuguesa. Filho da india, o escritor indo-portugues, cristab ou nao, embora vivendo ern grande familiaridade corn obras da literatura portuguesa e francesa (54), achava mais consentaneos corn o seu temperamento, os principios da estetica literaria indiana baseada sobre o conceito de rasa segundo o qual "o que é bem feito e perfeito é, sem davida, a coisa mais aprazivel (55). No decurso dos tempos, a tradicao indiana da critica literaria esteve assente sobre o principio de que "o prazer estetico nao é uma satisfacao em um sentido mundano"; ele é antes o "repouso do coracao" ou "o equilibrio, a paz, e a compostura da alma, que é constantemente agitada pelas preocupacaes mundanas e que no (52) de Carvalho, Agosti nho, india Misteriosa, Povos e Costumes Indus, Coimbra, MCMXLVI II . Escreveu tambem India Milenaria, Castas da India, Religioes da India. (53) "Em meados do seculo XIX, Tomas Ribeiro e Cunha Rivara tinham despertado interesse pelos assuntos da India. Alguns anos mais tarde, Suriajy Ananda Rau (1830-1888), foi o precursor de urn rnovimento que prosseguindo corn a revista Luz do Oriente, corn a Revista da India e corn A Voz do Oriente, veio a culminar em 1928 ern Coimbra, corn a fundacao do Instituto Indiano e do jornal India Nova, de Adeodato Barreto, Telo de Mascarenhas e Jose Paulo Teles. Foi a epoca ern que uma geracao — ou pelo menos alguns dos seus melhores elementos—comecou a tomar consciencia da outra parte de si proprios que nao podiam continuar a ignorar e cujas raizes iam buscar a velha civilizacao indiana" (Devi-Seabra„4 Literatura Indo-Portuguesa,pag.240. Disse Goethe: "Que todo o que ha de arrrebatamento, de encanto, de divino e de beleza terreal, se pode reunir num so twine que se chaina—' Xacuntala'(de `Kalidassa . ). Diz-se que esta obra the serviu de inspi raga() no prel Udio de Fausto". "Se me perguntarem qual é a literatura capaz de tornar a nossa vida mais compreensivel, mais universal e, ao mesmo tempo, mais verdadei ramente humana, uma vida nao so para este mundo, mas tambem para o outro eu indicarei a India" Max Muller em de Carvalho, Agosti nho, India Misteriosa, pag. 23. (54) Costa J. A, Peregri no da,., A Expansdo do Goes pelo Alundo, Goa, 1956,pag. 19-20. (55) Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics, published by Macmillan Press, 1975, art igo "Indian Poetics",pag.383, por.V.R. - 126 - momento que passa se recupera pela experiencia artistica". 0 leitor, o apreciador em unissono, ou em perfeita comunhAo corn o poeta e corn o poema, torna-se "um ao nivel do coracao" (sa-hridaya). Foi nesta linha datradicdo vedfintica, a saber, "o prazer estetico é um antegozo da realizacAn espiritual e . toda a rte P desta forma, tura ajiir!a evpirit9.9 1 " ( 66), que R.Tagore escreveu a sua poesia e prosa. Diga-se a proposito que ecos desta estetica indiana de rasa encontram-se ern tais poetas ocidentais como Abercrombie, Richards, Eliot (57). Dal é facil compreender que a literatura poetica indiana particularmente a de Tagore, tem um sabor espiritual. 0 escritor indo-portugues nao ficou exposto as teoriasliterarias ocidentais. Ern Goa era quase inexi stente uma tradicao de estetica literaria. Aqui estaria a razab por que a literatura criativa indo-portuguesa, particularmente a poesia esti "toda ela embebida das linhas hi storicas indianas, de lendas, de mitologia oriental corn acentos aqui e ali da vida bucolica local" (58). Dal, os poetas, sentindo na raiz do seu ser o grito telarico, fundamentaram a sua originalidade na forca inspiracional indiana. " A exuberan ci a, é certo, o ornato excessivo e uma caracteri stica da sensibilidade artistica oriental" (59). As imagens de deuses com muitas mhos e cabecas (60), a escala musical de vinte e duas notas (61), a teoria de emocoes — oito ou nove emocoes que uma obra literaria deve evocar — subjacente a poetica indiana, tudo isto fala da exuberancia da sensibilidade estetica indiana. A necessidade vivencial de se exprimir pela palavra escrita levou o escritor indo-portugues a ganhar, em boa medida, excel enci a no dominio da lingua portuguesa. Para afirmar a sua original idade, el e tinha de revel ar o mundo das suas emocoes, e a sua experiencia estetica dentro da tradicao cultural com os seus valores e significados prOprios, ern que nascera. Em virtude da sua tipica sensibilidade oriental, feicoes singulares estavam destinadas a aparecer na sua obra, feicoes essas que the viriam nao (56) Ibidem. (57) (58) (59) Eliot, T.S.,wi.cit_pag.113. Ferreira Manuel, /0c...cit. (60) (61) Ruy Sant'Elmo, "Prefacio" a Os Deuse.s. de Renares, de Nascimento de Mendonca, Bastord,, 1940, pag.1 . Coomaraswamy, A., The Dance of Shiva, art. "Indian Images with many arms". 'bittern, art."Indian Music", pag.105. - 127 - so da sua visao distinta e individual da condicao humana e da imagem social da India mas do ethos cultural que condiciona e molda essa visao e a sustenta. A Morta de Nascimento Mendonca (*) A Morta é um poema construido sobre a lenda (a que certos escritores tendem a dar foros de historia) de amor e fidelidade de Sita para com o seu marido Rama, segundo a versa° de Romesh C. Dutt, no seu livro Ramayana — The Civilization of India(62). Ei-la em rapidos tacos: Ravana, rei de Ceilao, ouviu a respeito da beleza de Sita e, na ausencia de Rama, raptou-a e levou-a a Ceilao. Apes uma Tonga busca, Rama obteve uma pinta. Aliando-se as tribos selvagens das florestas, fez a travessia e, em seguida, cercou a capital, Lanka, com um grande exercito. Ao fim duma renhida luta, o proprio Ravana, que é descrito como um monstro (Rakxaca) de sete cabecas, saiu e foi morto. Sita foi recuperada por Rama que em seguida regressou a Ayodhya ou Oudh e subiu ao trono de seu pai. Porem, o povo julgou-a asperamente e considerou-a maculada. E Rama, fraco como seu pai, cedeu ao juizo temerario do povo e mandou a sua mulher, pura e fiel, ao exilio. Mas nao havia nenhuma al egri a a espera de Sita. A nuvem de suspeita da parte do seu marido tinha toldado a sua vida. e Sita desceu as entranhas da terra no sulco do campo que the dera origem." Dal, ela é a Morta. Sita tinha lido, de facto. fiel a Rama e fora uma temeridade da parte deste duvidar do caracter da sua esposa. 0 poema é uma descricao do estado de remorso em que se debate a alma de Rama. E so nos aid mos versos do poema que a descricao ganha uma forma dram ail ca. Sita aparece perante o marido como um Fantasma. E, dirigindo-se a ela, Rama diz: Fala . . . dd-me o perdao ... Que tormentos os meus! .. . 0 ambiente oriental em que decorre a accao é todo ilusorio, fruto duma imaginacao intensamente romantica, poetica: em Ayodhya, Rama acha-se como um mistico, as maos cruzadas, num gesto doloroso, adorando o di vino (*) Vide Apendice, Documentos no fim deste capitulo (62) Nota final do poema ,4 Alorta, Tip. Rangel. Bastora, s. d., pag.33. - 128 - Si rya (sol) morredico. No meio do jardim surge tuna Ilha de amores com um pavilhao rendilhado de jade e de ambar, de mannore e sandalo. Choram fontes e irrompem de bosques verdes, envoltos em perfume, minaretes, copulas, innborios que parecem feitos de diamante . . . Rama colhe tuna flor de lotus. comtemnla-a e dirige-se a ela nestes termos Maldita sejas tu, 6 for ardente e linda, Taco de vinho astral que aturde e alucina 6 lotus ideal de suavidade infinda! Entao desfolha a flor e as petalas caiem sobre a agues Em seguida, dirige-se de novo a flor como se a dor do lotus desfolhado o consolasse de tuna dor indizivel. Num solil &Rio que revel a ora desespero e dor, ora melancolia e nostalgia, Rama, o principe, maharaja de Ayodhya compreende afinal: Como o sonho de amor nos adormenta e ilude! Traz a morte consigo o sonho loiro e lindo Se nao ha n'alma um sol que em perfume o transmude Amor, amor, amor! astro de oiro fulgindo!... Passam entao urn grupo de faquires cantando louvores ao deus Kassinata; urn rixi, que comenta sobre a transitoriedade (maya) da vida: Tudo é mentira, mentira, Que o coracilo envenena S6 a Deus, a Paz aspira O minho alma enfim serena. Urn lindo rancho de raparigas, regressando das varzeas, cOnscias do caracter - 129 - passageiro da vida, bem como da doufirna do Nirvana, perfilha uma posicao mail positiva a respeito da vida, nas quadras que seguem: Tudo é mentira: que importa? Amar a Vida, a Beleza, 0 ceptro, a flor, terra e mar: Nunca na esteril tristeza A luz divina apagar. Vem logo a morte, e a alma em pranto Em p6 triste ha-de tornar: Prendamo-la ao sol enquanto Tiver may para voar Uma bailadeira que canta ao ritmo de urn tocador de murdanga (uma especie de tambor) e uma outra que tece umas consideraceies sobre a vida, a Lagoa, os Lotus, o Sol, cada qual proferindo uns di zeres lapi dares sobre a vida, tao bem como asApsaras (Sereias) que dancando nas Aguas asseguram que S6 ao Forte, ao Vencedor Que do a luz, A taca do nosso amor Nosso labio que seduz. Sao varias personagens que povoam este ambiente de fantasia. Aparece em seguida um Botho (sacerdote do tempi o) que, vendo o por do sol recita a gayatrt (oracao ao sol recitado pelo hindu tres vezes ao dia) nester termos: Stirya divino e resplendence Swya que beijas docemente O luz que es pea, 6 luz que es sangue! - 130 - Arranca o sol, dos coracoes Toda a ruim e rasteira erva; Enche-os de flors e de clar5es E neles so a luz conserva. Os Buttes, ou espiritos malignos, aparecem como vozes misteriosas num desfile de personagens tipicas que integram a paisagem humana deste poema dramatic°. Rama sobressaltado, continua o seu soliloquio em dezoito tercetos, em um dos quais diz; E minha alma—ai de mini!—e solidelo e treva, Sangra como o escudo ardente de urn vencido, Madheva! Madheva! Que vagalhao me leva. E, num grito de loucura e desejo, exclama: ...Sita-bay! Sita-bay!...Quern me dera so ve-la. Entao Rama cerra os olhos aterrorizado e, uma mao invisivel vai juntando uma a uma as petal as do lotus desfolhado. Enquanto ressuscita diante dos seus olhos cerrados o seu passado: a vida suave e clara no jangle do exilio, o rapto de Sita, a destruicao de Lanka: da for de lotus surge docemente o fantasma dolorido e lindo de Sita, atavi ada num sari branco, face pada, o cabelo ambarado e fino desfilando ate os joelhos. Rama descerra os olhos e cruzando as maos em adoracao, continua o seu soliloquio, exprimindo em sete tercetos, ora admiracao e entranhado amor pela sua esposa, ora dor e queixume pelos seus actos. E porque foi, Deva! que semeei de abrolhos Meu caminho de seda, a Via-Lactea doce? Porque foi que busquei os Ingremes escolhos? Porque foi que o meu sonho em film° dissipou-se? Enquanto uma bailadeira recorda-lhe o caracter transitorio da vida e os lotus tam bem lhhe di rigem umas pal avras, o fantasma de Sita estremece sUbi to e vi ol en tamente. - 131 - Em seguida, Rama confesses Fui eu que maculei o teu amor inocente Eu busquei no teu corpo as nodoas do Pecado. No teu corpo sem mricula, (-1P amhar tab fino, E bem sei que busquei — ai a negra lembranca! — Do tigre de Lanka o beijo viperino... E como se uma clava do monstro Ralocaca the pesasse no coracab flagel ado, ele exclama: Ah! porque nab esqueco a clava de Ravana?... E a minha dor é como smudra que nao finder. Uma onda de ternura, de remorso, de intensa nostalgia invade o seu espirito de no, de guerreiro de Lanka que ele foi: Lembravas a falar as aguas solucando Na clara fonte humilde e um ribeiro saudoso E a voz dos moluonys, ao sol posto, expirando. Ai que Tonga saudade o coractio me oprime! E tremulo, dirigindo-se ao Fantasma, dolorido: Fala...da me o perdab...Que tormentos os meus !... - Nesse momento, num espectaculo de luz e som — o jardim estremecendo subitamente, a aurora despontando, o arvoredo despertando e as fibres nostalgicas desaparecendo da superficie da agua— o fantasma de Sites volta a face, toda compaixdo - 132 - e piedade, para o esposo desgracado e arrependido que num grito supremo de agonia exclama: Ah ndo subir na luz meu coraclio a Deus!... Quero morrer na paz de uma hora abencoada, D6-me o perddo, Sita! O Sita-bav!... Rama avanca como para abracar o fino e bruno perfil de Sita que aparece sobre uma grande for de lotus. Abre os bravos avancando como que para a abracar. E ela, dolorida e doce, desaparecendo diz: Adeus! Cantam os moluonys, abrem as rosas, e a grande voz harmoniosa da Vida sobe, saudando o Sol. A dentro do estilo e da sensibilidade poetica de Nascimento Mendonca, A Morta é a sua primeira longa exploracao de urn tema tipicamente indiano. 0 poema, cujo texto seguimos ca, foi impresso na Tipografi a Rangel, Bastord, sem n enhum a data. Certamente, é anterior ao outrolongo poema do autor, Vatsala, publi cado postumamente pelo seu filho em 1935. A epopeia Ramayana de Valmilci, como é bem sabido, gira em volta da I enda do amor e da fi deli dade entre Rama e Sita. 0 fun da lenda é o exilio de Rama arrependi do que duvidara injustamente da fi deli dade de Sita durante o seu (de Sita) exilio em Lanka. Nascimento Mendonca explora aqui o tema de arrependimento de Rama e a sua imaginacao al arga este episodio do estado da alma do heroi da epopeia num quadro de cores variegadas e, dir-se-ia, mesmo fantasticas. - 133 - Em A Morta, Rama, afogado no seu pesar, di largas as suas magoas, em soliloquios entremeados de falas de vari as personagens que discorrem filosoficamente sobre o sentido da vida. Sita aparece nao na sua forma real mas como urn fantasma. A Sita de Nascimento Mendonca é uma figura mitizada pelo autor (e antes dele por Romesh Dutt no seu citado livrol. 0 poeta presume que o seu leitor sabe que el a, nascida da terra, funde-se nela, no sulco do campo que the dera origem, depois que caiu vitima da duvida ou suspeita da parte do seu marido. Sita é uma personagem transformada pela imaginacao do poeta. Toda compaixao e piedade para com o esposo desgracado e arrependido, ela aparece di ante de Rama mas somente para em breve se esvair e, finalmente desaparecer dolorida e doce, leve como espuma no limpido azul da manha. 0 poema tern a forma de uma peca ern um acto.Uma serie de personagens dispares — aguas do lago, bailadeiras, coro de faquires, a deusa Prakriti, um rixi, apsaras e outros — integram a peca. Estas personagens ou simpatizam-se com o protagonista no meio do seu drama intimo ou dirigem-lhe palavras de consolacao ou admoestacao. P ara Nascimento Mendonca, o inteiro epi sOclio e uma oportunidade para, no seu idealismo romantic°, tracar urn quadro cal eidoscopico da vida e da cultura da India, e integrar varias ideias da filosofia indiana. Assim a deusa Prakriti recorda a Rama, "pobre alma errante", que So o que é Belo purifica e sara 0 coracilo que a Dor lacera... Um rixi proferindo: Tudo é mentira, mentira Que o coracao, envenena So a Deus, a Paz aspira O minha alma el-111m serener. - 134 - bem como uma bailadeira, a mulher desiludida no amor, recordando: 0 amor lindo, envenena Sonho loiro, logo finda. vem ambnc cnm n lenitivo da cinntrina de maya. Nas vozes dos Buths ou espiritos ha eco da doutrina de metempsicose: E tao longa, longa a Vida Que inda depois de morrer Nab tern alma uma guarida P'ra dormir, nao mais sofrer. Vai a arder numa torrente De fogo astral, de energia Vai subindo eternamente Numa ardente sinfonia. E quando urn dia velhinha A terra morta explodir Ha-de ainda coitadinha Num novo sol refulgir. Nos solilOquios, o poeta poe na boca de Rama a sabedoria que vem da experiencia Amar, sofrer, lutar eis o destino De todo o coraccro heroic° e puro Mas amar é sentir no coracab fremente Urn glorioso sol, urn clank., uma aurora. corn uma densidade emocionate. 0 nosso heroi-maharaja lembra urn desses protagonistas das grandes tragedias da literaturea universal (Otelo, Prometeu, Mac- - 135 - net) que, viumas ue uma mina no seu caracter soirem e como que se realmem no seu sofrimento. Todavia, o sofrimento de Rama nao atinge as alturas do desses protagonistas. Nimbado em idealismo e simbolismo, o sofrimento de Rama leva-o nao a mode mas ao transe. E nesse transe ou elevacao mistica muito conforme com a mundividencia da filososofia indiana que Rama acha a libertacao. Nascimento Mendonca domina perfeitamente o idioma luso. Os seus versos tem ritmo e cor. Porem, a primeira leitura os seu versos parecem antes frases dotadas de urn sentimentalismo exotic() e como que extraidas de um mundo de sonho e fantasia. Mas nab. A concepcdo simbolista de que " a realidade é nao mai s que uma fachada que encerra, ou, urn mundo de ideais e emocoes dentro do poeta, ou, urn mundo ideal para o qual ele aspira" (63) parece estar por detras da criacao artistica de Nascimento Mendonca. Em 1891 Stephane Mallarme definiu a corrente simbolista como a arte de "evocar urn objecto pouco a pouco de forma a revelar uma disposicao ou, em outras palavras, a arte de escolher um objecto e extrair dele um 'estado da alma"(64). Nascimento escolhe o lotus, a flor "que representa o espirito indiano da santidade e da nobreza"(65) para the conferir atributos contrarios: "flor do Amor, venenosa e divina", contendo "a peconha da cobra" e "o dente lacerante "que envenena. Servindo-se deste 'objecto' o lotus, para exprimir as suas emodies, o poeta procura "extrair dele o estado da alma, da sua personagem": Doces flores da Dor, a Vinganca e o Pecado!... Sobre o lar da Vida os lotus reflorindo ...Oh Flores do Desejo, a Morte e a Traicdo!... A poesi a de Nascimento Mendonca transporta o leitor para um mundo ideal. A maneira dos sadhus e rixis da India, o poeta acen a a um outro-mundo fazendo com que ( 63) Chadwick, Charles„Syntholistn, Methuen & Co.Ltd., 1971, pag.8. ( 64) (65) Mallarme, S., Oeuvres Complete.s. , Nair, Ramachandran, pag.869,citado por Charles Chadwick, op.cit.,pag. 1. Three Indo-Attglian Poets, - 136 - Sterling Pub., New Delhi, 1987,pag. 112. o leitor se sinta exilado num mundo imperfeito e irreal, de maya, e aspire por partir, deste para o parai so revel ado no poem& Destarte, Nascimento toca uma das cordas mai s intimas do ethos racico e religioso da India. Metempsicose de Mariano Gracias 0 dogma da transmigracao da alma adoptaram-no na antiguidade o Egipto, a Grecia e a India. Neste Ultimo pais a crenca na transmigacao esta tao arreigada nas mentes dos hindus que pode mesmo dizer-se que é parte da cultura tradicional. A doutrina da metempsi co se é urn co rol ario da doutrina do moksha: o hi ndu cre que a vida é uma serie de transmigracoes da alma ate que o individuo atinja o moksha ou a libertacao final, o paramapurusartha ou o supremo valor humano. Nos diversos sistemas filosoficos o conceito vedico do moksha é conhecido por diversos nomes tais como apavarga, nishreyasa, nirvana, mukti.(66). Na tradicao da filosofia da India observa-se uma preocupacao muito peculiar corn o problema da dor e do sofrimento a tal ponto que Buda adoptou como principio basilar do seu sistema a verdade de que a vida é essencialmente sofrimento. Dal, os pensadores da India antiga propuseram a doutrina segundo a qual moksha significa libertacao da cadei a de nascimentos e morte, do sofrimento, do apego aos objectos do desejo é o supremo valor humano. No pensamento classic° indiano, moksha acha-se definido como aniquilacao compl eta, total e final da dor e do sofrimento. Na tradicao vedantica moksha significa antes a transcenden ci a da vida empirica ou a transcendenci a de todos os limites impostos pela natureza e a realizacao da vida superpessoal. Assim moksha é o regresso do eu-prOprio a vida natural apps superar o seu proprio envolvimento animal com a natureza. (66) Chatterjee, Tara, art."Moksha" em : Journal ol Indian Council of Philosophical Research, Sept-Dec.,1991. vol.9, - 137 - * * Inspirando-se na teoria bramanica que ele cita num terceto, a guisa de uma introducao ao poema, O Ideal é insaciavel como o Amor; e a Ambicd"o é incomensurdvel como o Infinito. So a Morte é salutar, perfeita e purificadora. Mariano Gracias abre o mundo das aspiracoes da alma humana a procura do summum bonum. 0 poeta revel a-se aqui como urn homen que tem o seu ser radicado nas matrizes da India-Mae. Como tal, manifesta a conviccao, ou antes, num arroubo poetic°, exprime a fascinacdo por essa doutrina de transinigracao que ele interpreta ou refigura como uma longa hi stori a de evolucao: uma hi stori a que comeca corn a aparicao da mai s primitiva forma da vida sobre a face da terra — o verme; uma historia dos tempos primevos que se perde nas brumas da Historia. Porem, a evolucao nao e a biologica mas a transcendente e ultraterrena. A imaginacao do poeta apresenta estas i dei as, em sete estrofes cheias de grata e apelo mi sti co. Cada uma del as a urn estadio do ser-em-evolucao, aspirando a um nivel superior da vida ate que afinal aquele que era o ser infimo, o verme, chega a ser a mai s perfeita forma da vida na terra -- a alma humana: 0 verme disse urn dia.. O grande e doce Brdma, Sendo Vos dajustica e da bondade a chama, Destes a todo o ser sorte assim too contraria. E a mim, urn ente igual, me fizestes um paria! Quern me dera ser Jim; que e linda e tern olor! - 138 - E Brama transformou o verme numaflor 0 poema todo é em forma de uma prece dirigida ao grande e doce Brama, o Espirito cupremo e inintrel A fIrCe em cad?. eQtrAfe contem um quein -ne de Eer-ern -evolucao, cheio de descontentamento com a sua propria condicao e um desejo de ser aquilo que ele considera ser sua felicidade: o grau ou a forma superior da vida. Brama acede a todos os pedidos em todos os estadios da evolucao. Porem, quando chega a vez da alma humana, Brama enfrenta o seu desalento por viver "a tortura aguda" da "dor do Pensamento" por ter de sofrer e lutar, e nao haver nada que a conforte. A Alma roga que the conceda "a santa paz da Morte". Porem, Brama queda-se impassivel. Mas eis que surge Buda, 0 grande pensador de largafronte calma, E com o seu Nirvana aniquilou a Alma. Sao os versos-chave do poema. Como tal, Mariano nab elabora o significado da aniquilacao ou nirvana. Parece querer dizer que a Alma afinal ganhou a suprema felicidade neste estado outorgado por Buda. Em razao das suas ricas imagens e o seu apelo mistico, Metempsicose consegue atingir momentos de grande altura poetica" (67), como disse urn critico. 0 verme é uma das formas primi ti vas e menos articuladas da vida na terra. Aqui é simbolo de urn ser nojento e desprezivel — urn paria — privado de todos os di reitos sociais e religiosos que anela por ser uma flor "que é linda e tern olor". A flor é linda. Porem, a sua limitacao existencial e que nao goza de liberdade, por estar "presa ao solo". A falta de liberdade si gni fi ca vulnerabilidade aos assal to s dos (67) Devi-Seabra, op.cit., pag.319. - 139 - que queiram exercer o direito da posse sobre ela, ou mesmo destrui-la. 0 que ela deseja é "subir ao azul, erguer voo", "librar no espaco qual alma de poeta". A liberdade da borboleta é expressa em termos da sua capacidade de "voar de rosa em rosa". Todavia, tal liberdade sem a faculdade de se comunicar com os outros c.omiinirar é cantqr uma impeTfeic5n. A maneira mnis atraente d Uma vez ganho o poder de comunicacao, o ser-em-evolucao, agora um passarinho que chilreia, compreende que a comunicabilidade sem a profundeza e penetracao que vem da contemplacao é uma atrofi a. Ser uma aguia é para o passarinho o seu ideal. Apos a transformacao do passarinho em aguia, a felicidade e a tranquilidade interna do nosso ser-em-evolucao a assaltada pelo desejo de se tornar um ente sidereo, celeste, magnificente, sublime. Dal, a sua prece a Brama: Ah! quem me dera a mim, a imperatriz do Azul, Ser uma estrela a luzir! Oh! Que coisa tao Bela! 0 desejo da aguia é sublimado por Brama que a transforma numa estrela. A ânsi a do infinito nao cessa aqui. A luz, a sublimidade da estrela e fracturada pela discordancia intima de que de nada serve esta luz sem a do Sentimento, Sem o grande clarao do Pensamento! 0 grande Brama acede ao pedi do da Estrel a e transform a-a em Alma Humana. Porem a luz do Sentiment° e do Pensamento longe de outorgar felicidade Alma Humana so the da dor e sofrimento. Estamos chegados a condicao existencial humana. 0 ser-ern-evolucao, agora o ser human°, passou pelo processo do samsara, o processo repetido de nascimento e morte, corn a transformacao — que para Mariano - 140- Gracias é simbolo da transmigracao sucessiva da alma — dum ser num outro. 0 ser-ern-evolucao ganhou "a consciencia do caracter contingente de samsara, do mundo da vida e da existencia, da experiencia amarga de que este mundo é desagradavel e in sati sfatOrio" (68). 6 lima (las mai s belag ofrrpogici3F..s p.oeticas infie-porti.2v2 ,2sas. Dedicada ao grande homem de letras que foi o doutor Antonio Floriano de Noronha, ela resume em linguagem simples e fluida, rica de imaginacao e cheia de verve, um ponto doutrinal basic() da filosofia indiana. Metempsicose Mariano Gracias definiu certo dia a pessoa do poeta como "um ser privilegiado por assim dizer, impessoal e inconfundivel, vivendo num Mundo a parte, fora de vulgaridade comum deste mundo banal e mau; é urn ser quase tocado de Deus a quem tem o privilegio de tratar por tu, publicamente,integrando-se nas prOprias personagens que ousadamente cria e nelas se manifesta. Nao sao de estranhar poi s as suas formas, mutaceies ou modalidades que a prOpria fantasia criadora the impoe num arrojo de inspiracao, retrocedendo ou avancando, nos dominios da Historia, nas manifestaceies da Arte — da Arte sim, pao negro quotidiano, duro de roer, mas salutar e consolador"(69). Metempsicose nasceu dentro desta vivencia e foi uma dadiva em linguagem poetica da expressao portuguesa, dos concertos de trans migractio, samsara, nirvanae do papel de Brama e Buda ern ajudar a alma humana a atingir a felicidade suprema. A proposito vale a pena dizer aqui que ha mai s composicaies indo-portuguesas sobre nirvana. Assim, Paulino Dias tern No Pals de iSlirya (70) urn longo poema intitulado Nirvana, "autenticamente huguesco...de grandes e generosos ideai s expressos ern versos alti ssonantes — sab ao todo 4,800 — onde surgem estranhos simbo- (68) Birnala, Churna Law, /oc.cit., pag. 547 (69) Costa, Caetano Francisco da, .11ariano Gracias, Notas sabre a sua vida e a sua paesiu. Goa, 1952, pag.12. (70) No Pais de Surva, Nova Goa, 1935. - 141 - los orientais e ocidentais". "E uma arrebatadora visa° apocaliptica do mundo em que o desanimo reina (71): E a humanidade vem nos seculos desfeita, viva, soluca aos sois, torce trancas nos mares, cal nns rpvoluciies, parte em mites limareg p'ra novas decepcoes e novos desenganos... E tudo cinza e pó na colera dos anon. A dor é universal, no mundo que nab dorme ha uma intencdo oculta, uma viagem enorme. Mas esta composicao nab lanca nenhuma luz poetica sobre a ideia de nirvana e outras afins da filosofia indiana. Sob o titulo de Nihil-Nirvana, Adolfo Costa escreveu o seguinte soneto: Desta vida os degraus eu you descendo Pois pressinto que a morte se aproxima, Jci nada me sorri, nada me anima, Passo o tempo pensando e new querendo. Cumpro no mundo a lei que vem de cima A qual todo o mortal, mesmo descrendo, E forcoso curvar, e you sabendo Como a foice, bem certo, nos dizima. Quando o frinebre pe• do esquecimento Assentar sobre a minha sepultura Nilo o mandem varrer que o proprio vento. Ha-de parar na longa noite escura; Pois nessa eterna paz do esquecimento So o Nirvana nos beta com ternura. (71) Devi-Seabra, ap. cit.,pag.311-312. - 142 - Tambem este soneto nAo tem nada que ver com o nirvana. Ele apenas contem uma referenda a este ponto no contexto do significado da morte. Os Deuses de Benares de Nascimento Mendonca Os Deuses de Benares (72) é uma novela dramatica, em primeira pessoa, em que o protagonista é urn mow, na flor dos anos, que tendo vivido a vida convulsa da cidade e saboreado as conquistas da Ciencia, as lucubracoes do Pensamento, sente a falta de algo maior. No seu espirito esclarecido pelo sol lucid°, claro, limpido, radiante do racionalismo, e na sua consciencia ha um vacuo que a Razab nab satisfaz. Pensando, entao, em se restituir as suas antigas crencas o moco procura um Rixi para o "ensinar a crer", e para the revelar a Verdade. Nesta disposicao de ammo, aparece-lhe um Deussar Branco, especie de Satanas da Biblia ou MefistOfeles de Goethe que posando-se como seu amigo e mestre, o dissuade do seu intento. Deussar demonstra-lhe que o que o jovem procura nao é a restituicao das crencas perdidas; mas que ele é vitima de uma ilusao do seu egoismo. 0 que o jovem afinal pretende é "imortalidade que rap cab e dentro desse Ideal" que ele se propOe. Jamais podera seguir nas sendas do Rixi poi s o jovem nab é capaz do heroismo espiritual deste que n Ao aspira a imortalidade mas ao nirvana. 0 Rixi é um puro crente, "cre por crer", sem esperanca de qualquer recompensa. Deussar convida o jovem air consigo e promete tornar a sua vida urn hino de triunfo, riso, amor e alegria. 0 jovem recusa o convite. Comeca entao a sua peregrinacao em companhi a do Rixi ou Mahatma, atraves duma floresta, por entre uma paisagem tipicamente indiana — pendoes vermelhos, el efantes batendo nos gongos, a visa() de Kali, a deusa da morte, bailadeiras — (72) Nascimento Mendonca,OsDeuse.s. de Benare.s., Tip.Rangel, Bastora, 1940,64 paginas, corn urn prefacio de Ruy Sant'Elmo,pseudOnimo de Doutor Brito de Nascimento, que foi Presidente da Relac5o de Goa na decada de quarenta. - 143 - delineada poeticamente pelo autor. 0 inteiro drama da jornada do mancebo é constituido de episodios das suas "hesitacOes, confiitos intimos, das visoes alucinadas da vida, do prestigi o tentador da beleza sob os multiformes aspectos que a natureza oferece, do holocausto do Pensamento na ara sacra do seu sincero anseio de purificacao". A certa altura anarece o Deussar, que cnm urns exprecc'an de terrivel cnrrnenin no seu rosto, o convida a provar o amor que, assegurao tentador, "como um imperecivel aroma", the envolvera a alma. No meio deste conflito intimo, o jovem vem a compreender que "o mundo e, corn certeza, a instoria natural da Dor" e pergunta-se a si pr6prio se "o amor nao é porventura imortalidade triunfando sempre da morte". Deussar, que se revela como o flamejante Espirito de todas as conquistas humanas, renova-lhe o convite feito ja no seu primeiro encontro corn o jovem, nomeadamente, de regressarem ambos juntos a Cidade. Ao fim da sua peregrinacao o jovem chega a Kassi, a velha cidade dos tempi os onde centenas de vozes sandam Mahadeva, o senhor da cidade, corn o estribilho: Jai, Jai, Kassinata. Nesta cidade o peregrino encontra-se corn Brama, Vishnu, Kamadeva, o deus do Amor, Vishvacarma, "o Deus que nao morre, que submete a propri a Morte", Shiva, o deus dos exterminios, e outros deuses do panted() indiano. Nenhum deles pode satisfazer a ansi a do Absoluto que ferve na alma do jovem peregrino e explicar-lhe cabalmente como reintegrar o seu ser na Crenca dos Maiores. Enfim, parando diante de Krishna, o jovem abre a sua alma e diz-lhe que vem ern busca da lampada que the alumiava o caminho atraves da noite ern que se perdeu . . .em uma palavra, reaver as Crencas dos Maiores. Apos um curto silencio, pesado, horrivelmente frio, o nosso peregrino pergunta impulsivo e veemente: "Quando sereis comigo, o Deuses dos Maiores?" Entao todas as bocas das estatuas de pedra dos deuses abriram-se e gritaram: "Nunca mais". - 144 - Os Deuses de Benares é uma novels drarnatica em que o autor, como artista, revel a a sua preocupacdo seri a "em decifrar o enigma da alma humana" (73). Uma alegoria da alma humana que, ap6s as suas realizacoes humanas sem um correspondente enriquecimento espiritual, "se sente doente, exausta, disiludida"(74) e parte entao a procura da harmonia espiritual. Os Deuses de Benares traz a memoria essa obra classica da literatura inglesa Pilgrim's Progress de John Bunyan que tem si do descrita como "uma das al egorias mai s agradaveis da vida cristA" (75) apresentada em forma de uma narrativa simbol i ca. Os Deuses de Benares é uma alegoria da vida hindu. India foi, desde tempos imemoriais, um dos centros mais antigos de peregrinacOes (76). E ao Ganges, em particular, a cidade sagrada de Benares que se dirigem os devotos pios do hinduismo para verem a cidade, vi sitarem os templos e se purificarem do pecado nas Aguas lustrais do rio". A inclinacdo natural — quase o instinto — do indiano para peregrinar e urn grande meio de conservar o hinduismo vivo entre as massas. Os proprios peregrinos assistem aospujas (ofertas sacrificiais aos deuses) e procissOes, ouvem urn sem nirmero de preleccoes e preces e leituras das escrituras sagradas e quedam-se mirando os seus deuses esculpi dos ern pedra. As peregrinacoes sao tentativas para chegar ao Inatingivel (77). (73) (74) (75) Ruy de Sant'Elmo, op.cil.,pag.3. ().%. Deuses de Benares, pag.9. (76) Frank N.Magill,Alasterpiece.coffli'orld Literature in Digest Form, First Series, art. Pilgrim's Progress'. pag.748. Encyclopaedia Britannica, art.' Pilgrimage'. (77) Cfr. Antoine-Buckle, op.cil., pag.145 e pag.75. - 145 - Os Deuses de Benares é uma obra postuma do autor, publicada em 1940. Em toda a probabilidade, Nascimento Mendonca traca, na pessoa do "morn, inflamavel e sincero", o seu drama pessoal de um homem que cometera alguns desatinos morais, a perda do seu "sonho juvenil", e agora, no fim da sua vida, queria expia-los a fim de se purificar this suas maculas. E de que melhor al egoria se poctena ele servir para esse rim do que apresentar esse seu drama intimo em forma de uma peregrinacao destinada a reaver "as Crencas dos Maiores"? (78). Esta novela dramatica e, como disse urn critico, " a crise da consciencia que, tendo perdido as crencas, procura readquiri-I as. E o grito do Homem que reconhece a inanidade do Pensamento para responder a todas as curiosidades do Espirito, resolver todas as diividas da Inteligencia, saciar enfim a sua sede do Infinito. " E a tortura dantesca do Homem que, sentindo-se uma fragil construcao destinada a desaparecer, se deixa devorar pelo anseio da imortalidade. Conflito eterno entre o destino da materia e o impul so natui( cm se perpetuar no Tempo" (79). Urn conto e algumas poesias selectas A Ambrosia de Laxmanrao Sardessai De todos os escritores criativos indo-portugueses da comunidade hindu, Laxmanrao Sardessai é, em nossa opinido, o mais notavel e prolifico. Autor de contos e poesias, Sardessai tern urn estilo ditctil, um vocabulario rico e fluido, e a sensibilidade de urn poeta oriental. 0 conto A Ambrosia (80) da-nos o perfil de urn jovem que sai da casa em longa (78) Os Deuses de Benares, pag.5 e 64. (79) Ruy Sant'Elmo, /oc.cit., pag.2. (80) Vide Apendice, Documentos no fim deste capitulo - 146 - jornada, a procura da ambrosia, com o fim de "matar a propria morte". Fatigado da caminhada, fica sequioso. Desfalecido e quase a beira da morte, grita, numa voz fraca, por alguem que the de agua. "Ofegante, de olhos semi-abertos, a lingua de fora, o corpo suarento",tomba junto de um arvoredo e, entao o jovem sente um delicioso licor perpassar pel a garganta e descer ate as entranhas, inundando o seu ser, de sabitafrescura e vida. Extasiado, sente que conseguira beber o mui desejado liquid°. Neste momento de extrema felicidade, o jovem compreende que era um eremita, condoido da sorte do jovem idealista, que estava a ministrar-lhe a agua da fonte. Estamos perante um quadro vincadamente indiano. Os elementos que o integram: urn jovem idealista, existencialmente insatisfeito; a ambrosia o soma dos deuses -para os efeitos de ganhar a imortalidade; o arvoredo; a agua da fonte que mata a sede de urn viandante; o eremita (rixi) : deixam ver como a doutrina do maya, a consciencia do caracter transitorio e curto da vida, o socorro da parte do homem de Deus, ao homo - viator, sac) alguns dos elementos basi cos da vivencia de urn hindu. E interessante notar que Sardessai (Id o titulo Ambrosia, urn termo da cultura greco -- latina e, em nenhuma passagem do conto usa o termo soma da vivencia indiana. Na mitologia indiana, soma era urn licor obtido pela fermentacao do sumo da planta soma. Era parte integral dos sacrificios vedi cos e bebido pelos sacerdotes como sinal da sua aceitacao pelos deuses. Mais tarde tornou-se conhecido como uma divindade primeva, todo-poderosa, que cura todas as doencas e concede riquezas. Assim, assumiu urn significado cosmic° (81) 0 autor parece querer dizer que o homem nao precisa de demandar uma bebida di vina para satisfazer a sede do Absoluto. A Natureza -- a agualimpida da fonte -- tern o condao de reanimar a alma inqui eta e abatida. (81) Ions, Veronica, op. cit., pag. 19-20 - 147 - 1) A India Mae Sanches Fernandes e A Lira da India (82) Corn os olhos postos no quadro da hi stori a, cultura e mitologia indianas, o estro de Manuel Salvador Sanches Fernandes (1886-1915) deixou, entre outros, o poema A Lira da As primeiras linhas sao urn apelo dirigido a si pr6prio ....Vate sonhador destas terras de Aurora onde campeia a Luz e a Poesia se enflora para se inspirar nas Vis5es desses genios pujantes, nos Deuses, Gopicas, Apsaras e Gigantes. As virtudes e as personalidades historicas e mitologicas que adornam o ceu da India milenaria desfil am di ante da sua imaginacao criadora e o poeta compreende que Bharat-Mata é a " deusa das visoes" e instiga a si proprio a considerar a sua forca inspiracional: A India seja o teu deus, seja a lira o teu templo que da bela °rag& saia de ti o exemplo . Porem, frente ao rico patrimonio, o poeta sente-se incapaz de desempenhar a sua funcao-missab de cantor: Como pode cantar meu estro, tremebundo tao ciclOpico ideal , misticismo tdo fund°, com avalanchas d'oim e mitos sublimados, corn reis, encarnac5es, preconceitos doirados, com picas e was's, corn lendas e sacerdotes, seguindo em procisscro luz de cem archotes, ao grande ceu do Bern, ao ceu de alto Virtude. (82) Devi-Seabra, op. cit., Antologia, pag. 131-134 - 148 - Esta incapacidade torna-se aguda com um problema de conscienca que se the pae: E nem pole um cristdo , sem que da crenca muck sublimar os avos na lei do Paganism°. Ndo que a seita bramanica seja um abismo Nilo! Deus é universal; so o modo é que é diverso, por qup Ne giinrdn n fa om volta do 1 . inivorsn A Lira da India é o preito de urn poeta deslumbrado corn a riqueza da India-Mae, descobrindo nela as suas raizes culturais. No intimo do seu ser, ele sente a grande necessidade de se definir e encontrar para alem de todas as circunstancias (83) o seu vasto conceito mistico da vida". Mariano Gracias e o Regresso ao Lar Regresso ao Lar é um poema de 35 quintilhas, corn versos dispostos na seguinte ordem derima: a-b- a-a-b. A guisa de introducao escreve o autor: "No meu regresso de Portugal, apos quinze anos de saudosa ausencia cem nostalgicos anos me pareceram eles 1 - despretenciosamente e com o entusiasmo efusivo de crianca, escrevi estes versos, simples e ligeiros..." Comecando por descrever o seu drama intimo -- a dor pungente que sentiu ao deixar o lar, as desilusOes que sofreu, as lutas e baixezas, desgracas e enganos a que assistiu o poeta exclama numa atitude Vi a mesma Dor no homem e na cousa, Vi o mesmo pranto no cardo e na rocha, E vejo que ainda na paz d'uma lousa A mesma Dor funda, que nunca repousa, Germina, fermenta, rompe e desabrocha! Apos prestar a sua homenagem a Portugal: Deliciosa terra de cantos e amores Como eu to procuro e como to me queres! Terra de guerreiros e conquistadores, De nautas, herois, poetas e lavradores De lindos jardins e de lindas mulheres! (83) Devi-Seabra, op. cit., pag.317 - 149 - o poeta volta-sea India como alguem que, na ausencia do torrao natal, redescobriu a sua beleza e grandeza: Terra bem mais rica do que Portugal, Terra da visiies, do sonho e maravilhos, Terra de Manu, da bela Xacuntala, terra de Vichnu, de Brahma, e Xiva-Raes. e sente - se como uma criancinha no regaco da sua mae: O terra da patria, doce patria minha Por quern longos anos morri de saudade Dá - me a luz antiga, a que eu na alma tinha, E essa al'gria candida de criancinha que nos olhos meus queimou a mocidade.... Dá - me essa ignorancia d'alma simples, pura, Que inda nao mordeu, nos frutos da ciencia, Da - me a crenca antiga d'infantil candura, 2) 0 Homem i) 0 Rishi (84) de Adolfo Costa ou o homem - asceta. 0 heroi mais admirado do povo indiano tern lido e é, o homem de Deus. " 0 homem ideal da india", disse S. Radhalcrishnan, " nao é o homem magnanimo da Grecia, ou o cavaleiro valeroso da Europa medieval mas o homem de espirito, possuido de liberdade que atingiu a visa() intima da fonte universal pela disciplina rigida e pela pratica de virtudes de desinteresse, que se libertou dos preconceitos do seu tempo e lugar"(85) 0 seguinte soneto de Adolfo Costa é urn esboco dense homem de Deus: (84) (85) Costa, Adolfo, Suryana.s. (Poernas), Tip. Sadananda, Nova-Goa, 1937, pag. 70-71 Radhakrislinan, S., Eastern Religions and Western Thought, pag. 381-382. - 150 - Rishi No silencio da noite, pensativo, Enquanto o vento geme nos juncais E ruge o mar, feroz, nos vendavais, E, na treva o rishi contemplativo. Enlevado nos xastras, nobre e altivo, Da sua alma os obscuros tremendais Passam-lhe pela mente, e ele jamais Curva-se ao mundo, sente-se cativo Impassivel na dor como um heroi Ele é no bosque a forca que constroi E a voz que os vedas misticos proclama; Em sua volta cantam moluonis Passam na sombra tigres e reptis, E ele so diz baixinho: - Rama ! Rama! Adolfo Costa identifica quatro qualidades do homem de Deus: ele é contemplativo, nobre e altivo, impassive] na dor e piedoso em comunhao com a natureza. A linguagem é simples e retrata com fidelidade o quadro social da India em que o nxi vive. ii) Viassa de Paulino Dias ou o homem-criador-artista A origem da epopeia Mahabharata esta envolta em lenda. Segundo uma versao, foi o sabio Viassa que o ditou ao deus Ganexa. Segundo uma outra, a propri a pessoa de Viassa seri a filho da ninfa Satyavati seduzida pelo rixi Parasara. Viassa, uma figura com um semblante medonho e cabelos entrancados teria levado uma vida de eremita (86). (86) Ions, Veronica, op. cit., pag. 119-120 - 151 - Num soneto intitulado Viassa Paulino Dias expressa a beleza e a sublimidade da epopeiaMahabharata exaltando o processo artistic° da sua criacio. 0 poeta esboca umatela, dir-se-ia, tridimensional: ao vigor-das-sombras-e-brilhorenihrmidtiano n ttST.rcial ntraves do qua] Re ouvem um fragnr de guerre e gritos de leoes: uma tela-ambiente de grandeza e pavor santo, atraves da qual revela a sua figura ideal: Viassa (87) Eu tive urn sonho. Vi o topo do Himalaia. - Picava-o o vento largo ! E era um fragor de guerra, Choques, gritos de le5es, clarins, ondas na praia - Em volta da Ariavarta, a milagrosa terra Escuro. E so o monte a erguer-se de atalaia. Mas alguem era ai corn o escopro, o malho e a serra, Numa faria que lido abate e nao desmaia, A cortar, a ferir os pedacos da serra. E gritei a tremer, agitado de frio: - Quem é al no pavor que amedronta e assombra, A cortar e a rugir sobre um monte sombrio ? Era enteio o luar um crescents de prata. E ouvi dizer-me alguem pelo meio da sombra: - E Viassa a esculpir o imenso Mahilbhdrata. Viassa debuxa o artista que qual Miguel Angelo, esse tita do cinzel afeicoando o marmore bruto a modelacao da figura e arrancando urn Moises -- exige do "monte sombrio" corn uma pancada do malho o "parla !" . (87) Apud Pope, Ethel, India in Portuguese Literature, Bastora, pag. 264. - 152- O Mahabharata e, na fantasia de Paulin, a figura-voz do soberbo Himalaia, arrancada por um cinzelador, genio de uma rata. 0 soneto revelauma preocupacao, da parte do poeta, corn a beleza formal e o apuro da linguagerh. Nota-se nele "o relevo ao concreto e espacial mas corn elegancia e finura"(88), muito a maneira pnrnasianns. iii) Sivaji (*) de Adeodato Barreto ou o homem-lidere Sivaji é um poema muito singelo escrito por Adeodato Barreto em Coimbra, no ano 1928, em homenagem a este guerreiro celebre do seculo XVII conhecido popularmente como "Napoleao hindu". Shivaji lutou encarni cadamente contra o imperador Aurangzeb. A opressao dos hindus sob os Islamitas é descrita nos seguintes versos: 0 idolo sagrado: a Deusa Bhavani, caiu do pedestal. Nao canta o muruoni nos verdes mangueirais e, nos tanques emflor das ablucaes rituals, tenros lotus a abrir reflexos das estrelas -- murcham de nab beijarem, os corpos das donzelas. Shivaji venceu os mogois. Em seguida, a India caiu de novo vitima de urn outro dominador: E viu-se em cada canto, a espreitar, nab o "fez" mas o "helmet" Engles ... e dal Hoje ha em toda a parte uma &Isla indefinida onsia duma outra vida Entao o poeta pergunta a deusa Bhavani: porque nao das de novo a India, um Sivaji ? (88) Ramos, Feliciano, (*) Barreto, Adeodato, 0 Mishit-la da Literatura Portuguesa, Livro da Vida, pag. 131-133 - 153 - Livraria Cruz, Braga, 1950, pag, 587. Ao glorificar o guerreiro marata, Adeodato Barreto exprime a sua ansia da liberdade e da felicidade, "finsia duma outra vida". iv) Gaudo de Laxmanrao Sardessai e A Casta de Adeodato Barreto ou o homem - filho de Deus. Gaudo (89) Tu es o filho do arecal, Filho dilecto da terra, Filho genuino dos eras pristinas Que a viram desbravada Por teus antepassados Que, pela primeira vez, Cortaram as florestas Aplainaram os acidentes E a colonizaram para te legar, Glorioso legado que, como filho dedicado, Sabes preservar dando-lhe 0 amor que so to podes guardar Na tua alma simples e abencoada. E abnegado es porque o teu coracdo Ndo conhece a recompensa monetaria, Para ti o arecal e o amor Florido e frutificado, E ele, por sua vez, oferece-te Todo o tesouro enterrado. As arequeiras, quaffs virgens delicadas, Abrem sobre a tua cabeca Iniimeros guarda-sois para te resguardar Contra os rigores do sol. E as eirvores de chanfas, Brancas ou amarelas, Perfumam o ambiente da tua herdade, E as correntes da agua, (89) Apud BIMB, 1976, No. 112, pag. 39. - 154 - Serpenteando por toda apane, Beijam corn veneracab os teus pes. Tu cavas e regas, E nunca no teu espirito Das guarida aos calculos materials; 4:8 frug° 1 nos tgiic habitos, Como os rishis, teus avoengos, 0 teu corpo quase nu Simboliza o esplendor da natureza Que, a maneira duma mae, E para ti generosa. O irmdo - ! Quern me dara A ventura de, em tua companhia, Jr cavar ! 0 poema é urn preito de Sardessai ao Gaudd6. Este filho da terra, que pertencra uma casta considerada socialmente atrasada e se cre ser de origem dravida, escorracado pelo invasor aria, segundo reza a tradicao. Sardessai, urn brarnane sarasvate, quica conscio da injustica feita pelos antepassado s a este filho daterra, assume um a atitu de de simpati a e consi derac56,mijito a maneira dos neo-realistas. Numa linguagem telfirica, rica de qualidades descritivas Sardessai exalta-o na sua identidade de "filho dilecto da terra", "filho genuino das eras pristinas que a viram desbravada", canta loas as suas qualidades morais e anela Por retornar as suas autenticas raizes culturais : a agricultura. A Casta (90) Quando o sol entra na choupana escura e vaibeijar na esteira o pobre paria, fica a sua luz, acaso, menos pura ? (90) Barreto, Adeodato, 0 Livro da Vida, pag. 107-108 - 155 - Na-o faleis em costa "ordinaria", ou "baixa" ou "alta" ou "plebeia" ou "nobre": So é alto no mundo quem Deus cobre com a sua grata; SO é grande quem e filho de Deus ! Quando a Desgraca nos bate a porta, a "nobres" e a "plebeus", todos tragamos igualmente a taca da Amargura; Quando a Ventura alegre e prazenteira nos acolhe, entre pobres e ricos nab escolhe; Quando na lgnea pica mortuaria o fogo nos consome, tido aide mats o coracdo do ',aria ! A mesma fonte nos sacia a sede, a mesma varzea nos fecunda o plio que mata a fome: Dizei-me Vas que no varnashrama acreditais, se Deus nos fez nascer assim iguais, como é que ainda ha castas em seu nome ? A Casta de Adeodato Barreto, como é obvio, é uma suplica a sociedade para tratar o paria como filho de Deus e acabar corn o si sterna de castas (varnashrama). 3) Deus o Transcendente e o Imanente. Brahma, a primeira pessoa da trindade hindu, é apresentado pelos misti cos do Vishnuismo, at-raves das suas pregacoes, sob o aspect() de Ishwara, deus que ressuma - 156 - humanismo e miserithrdia e acede as siiplicas dos fieis. Na poesia Fala Ishwara (91) de Adeodato Barreto, este deus misericordioso dirige-se ao seu devoto. Este, por sua vez, procura entrar em comunhao com ele. A di vi n darle revela-se-lhe romp n ger trangrendente e si taneamente imanente, que vive nao "nos espacos" mas "ao alcance dos teus bravos". Ele é sentido em toda a parte: Nlio me sentes na hervinha desprezada que descuidoso, pisas ? No gineceu onde o perfume oculta, envergonhada, a delicada floc ndo me divisas ? 0 poema é uma transposicao em linguagem literaria do conceito vedico-upanixadico de Deus. Adeodato revela-se contemplativo, na linha de Rabindranath Tagore. Quanto a forma, o poeta, fiel ao seu credo de que a "Arte moderna exige que a supremacia da Ideia fulja sempre e que a forma viva circunscrita a sua fimcao secundaria, instrumental" (92) exprime-se em verso livre em forma de slokas. Eu clue° teus passos, Senhor (93) de Laxmanrao Sardessai Eu ougo teus passos, Senhor Na brisa suave da manha, Vejo o esplendor do teu sorriso (91) Ibidem, pag. 99-102. (92) Ibidem, Proemio, pag.18. (93) Apud BIMB, No. 112, 1976, pag. 60 - 157 - Na luz area do sol nascente. As aves e as arvores Acarinhadas pelo vento Comunicam-me o teu canto missterioso, E a chuva abundante Liar da tua A tua generosidade, sinto-a, Senhor, Nos rebentos que saiem espontcineos da terra, E o azul celeste retrata A tua alma universal. Vejo isto E me curvo reverente Perante a tua omnipotencia, Mas quando vejo uma velhinha Carcomida e benta Oferecer a um pobrezinho 0 arroz da tua tijela Lagrimas borbulham nos meus olhos Que retratam o infinito amor De que palpita toda a criacdo. Estamos diante dum poema-arroubo mistico, urn salmo, cheio de candura e simplicidade ao descobrir o Senhor ern todos os fenomenos naturals que o poeta apercebe serem &diva deste mesmo Senhor. - 158 - Apendice Documentos Nasciineiito Meiidonça IJ \ 11 moRT ^ 1 Rmge1 TV1). BasLoi - 1- ) - -- 4;inrrtfrimma `entlartnit iiiii=n114 'ZffirfatiLiiiiitittitauS/ E no parque maravilhoso do palacio de ApSidlti' a ii hora gloriosa e tragica do sol-posto. Rama. o heroe inveneivel de Lanka, eruza as math: n'uni gesto doloroiio; adorn o divino Surya morrente... Lindo na purpurea luz carieiosa o jarilim de Ayo(lhia, cercado de um alto ruurb de marntore tini4stmo de Jaipur. E' no mein d'elle utua vasty Lagoa de jaspe e laivos de esmoralda, donde surge ridente tuna pequeOina Ilha de Amores, corn urn pavilliao rendilhado de jade e ambar, de marruore c sandalc...Irrompeza de busquos verdes, envoltos eat Ler fumes, minatetes, copulas. zimborios quo pareeem feitos de diamante. no derradeire jueto de purpura quo o sot esparze apaixonadatnente sobre a cid:, de marvilhosti. E n luz e emu() o uturnturiv dr uma preee no serene e largo rumor das ramagens. vasto fillchnO vein espiralando, sua -ii,ando 0 ar um ace grito de elefaute. Chalream ehoram fon- tes suavissimas, por toga a parte no jarditu encautado. So o just() e poderoso Maharaja c triste no mein do esplendor divino de Ay6dhia. Envelheeido e desblado, parece aturdi-lo o brilho lace rante dos 500 brilhantes do seu collar. grander como arecas. Entra na lagoa por uma e, , cada (le 5 4 ambar e tartaruga; colhe mud floc de 'otos; coin . templa-a extasiado, e logo, como se um vento de loucura the varresse de rojo o espirito vast. lacerado: Mhidita sejas tu, 6 Flor ardente e linda, Tara de vinho astral que aturde e alucina, 0' LOtos ideal de suavidade infinda! Desfolha mansarnente a flor de lotos e as petalas firms e brancas caem uma a uma sobre a vasty agua immovel que parece beija-las angustiada. Seu olhar é urn clarSo que confrange. Lembra o incendio de Lanky, a cidade de Ravana, dolorosa e terrivel no estertor de milhares de Rakxacas. Devera ter sido assim o seu olhar ardente e angustioso na memoravel tarde do rapto da Esposa castissima ...E como se a dor do lotos desfolhado o consolasse de uma dor ihdizivel : Sohre o lingo da. Vida os !Otos refiorindo Sao eutno sonhos de oiro eta nosso eorac•u; Sao cutup a cobra vii cic capMo 6;10 limbo Os lOtos ideaes em nossa alma fulgindo Flors du Desejo, a 4orte e a Traicao ! Pousa os olhos longa, afilitivaincute sobre as petalas da flor desfolhada. 13' um oilier de dews. pero, de dor, de desgraca irreparavel. E e louco : 0' brando logo azul fremente de te•nura ! 0' veludo real de contactor divinos ! Nao pode macular-te a carne mail impala. Alas de repente o seu duro semblance de guerreiro se ilumina. Urn raio de luz sobe-lhe do coracao aos olhos e se trausforma em lagrimas. Nimba-o urn suave halo de melancolia. de nostalgia profunda : 'In es a flor do Amor, venenosa e divina, E es a flor da Ilusao, que enfeitica e Ah quern sonhou a dor na flor mimosa e fina Que rompe, n'agua azul, da espuma, fen3inina, Que saudade accendeis, o lagos cristalinos, Como n'tun claro ceu rompe, airosa, uma estrela ? No pobre eoracao lugubre e tempestuoso ! Lembraes-me o extinto ainor e Os soaves destinos. Ah Twin sonhou, Deva, no perfume estonteiante Do lotus auroral das lagoas sagradas A peconha da cobra, amarga e fulminante, E no pistilo de oiro o dente lacerante Que envenena sem do as alums confiadas !... 6eios de grata e luz, tao frageis e formosos, Calices de 1.AM), de um vinho enfeiticadu, Quanta vez, quanta vez nos trauses dolorosus' E logo, comp sacudindo um jugo luau e (laud° 1, 111 paSSIldl) H1111)1(10 : Men amor, wen a nor foi urn sot Inannoso. Subre 0 men coracao SCLI surriso suave • UM setestrello ardente a voluptuoso; Olt ! divina MitlMtt n u bs mimosa .I n c ulna Nos nao deram a force; us estus prGeelusus Alaii,doee quo o lung, e, cum() a Ina, punt, —Duces dares do D6r, a Vinganca e o Pecado !... Oh cleusa da Ilusao, inefavel, c grave... ktVp, 7 6 B se queda alanceado e mudo...fthacauta e deslumbra, no derradeiro jacto de sol a jardim maravilhoso enlanguesceadn. Erra no ar urna musica perfumada e languida, um fumo lasso de sandal° e cinamomo. Um jorro de fogo. do uiro liqui lu e fluida purpura cae sobre o marmore sumptuoso do palaeio de Ay8dhia. Florecem laranjeiras no silencio abstrato e divino; palrneiras, nopaes, aloes. toda a estranha e poderosa Vegetactio que etuoldura. divinamente bella, a lagoa, soluca, ratnalhanda, uma film cangao de volupia e souho. Utna docura penetrante e turbadora envolve o castello de marmore e oiro ; parece de aluminio liquido e de alabastro a Lagoa. Dias averiidas de jade pavoes abrern os leques mosqueados, &um ardente adeus ao sol. Choram nas cantimploras de fontes de tnarmore as aquas; gorgulham, solucam languidas. Espiritualisa a paizagem a melodiosa fala de uma flauta pastoril. Ao longe, um grupo fakirs passa cantando ao rythmo de pequeninos pratos de cobra que brilham como aim. 0 que vae na frente, como um gigante. o peito ad, enrolado no alto da cabeca, como uma torre, cabelo aspero, untado de visco da tigueira sa ;rad a . n'um vago, lento, suavissimo marmurio Era de fogo e espuma, e de unbar e do9ura Sua came lilial de lOtos inviolado, Abrindo corm) um sol na minim desventura. Ah nao me larg,a, nao, o coracao magnado A lembranea fatal do seu corpo de Apsara. seu olhnr to negro e o seio perfuwado t Lembrava num arequeira amoravel e rara Que o wen olhnr regava e o men desejo ardente, Uaseata sensual de lava fluida e clara A Flan desejo—ai de mini !—era a soda fremente, vern3elho sari qne a beijava e a cobria Sundalia que a ealcava, humilde e vehemente. 0' Beleza, O Beieza, 6 rosea siufonia n'u:n clan° que eillotiquece, Aiuda shit() em N'nm relampago ant de intensa nostalgia. Um instance o luar amoroso me aquece 0 triste cornea() alueinado e rode... 0' lagrima de Luz no ceu que entenebrece ! Se forte, minim ahna, Uma nuvem de irreparavel desengano the sob,. aos oihos. E sucurnbido : E limpida e calrna, Comoiagua de prata; Em face da morte Se pura e se forte... Coro de fakirs: o souho de actor nos adormenta e flock ! Traz a merle coinsiLro o sonho loiro e lindo nao ha n'alma 11113 so! que em perfume o transmude. JAI, JAI, KASSINATA COIDO Atuor,an3or, amor I asc.ro de oiro fulgindo !... • E a voz do Maior mais luminosa e fine 8 9 Tao perto ja vaes Dos Imes astraes, E o ceu que arrebata; Gota de luar Has de a Deus voltar. Coro de fakirs: —So o (tile é Bello purifica e sara 0 coracrto que a Dor lacera... Hosea a Ventura n'um olhar de A psara, Na rosea luz da Primavera. UM RIX! sommunbalamente JAI, JAI, KASSINATA! E o Major languidatnente Tado c mentira, mentira, Que o coracao, envenena SO a Deus, rt Paz aspira 0' minba alma enfim serena E respirarls 0 silencio, a paz Que as almas Todo o ceu se refletiu ti, pobre gota de o.gua, E titn so instante florin, Como um sob, a tun magna E torna infinitas As almas aflitas Coro de fakirs: Sobe agora n'um elarim JAI, JAI, KASSINATA! rao-se extinguindo as vozes, Ionginquas N 'um lasso, claro perfume; SObe a Deus meu coraeao, Sent utn ai, sem um queixinne JAI, JAI, KASSINATA ! A imagem de Parakriti, n'um pequenino nieho doirado, sob a sombra de uma tigu;:ira : Ai de ti I ai de ti I pobre alma errante, Que buscas a Verdade na tristeza Da Vida multiforme e allucinante A Verdade, a Ventura é a Belleza. Um lindo raneho de raparigas que regressa dos varzeas, n'uma doce a luminosa Tudo e mentira: que importa ? amar e sonhar... Ter n'alma ardente e absorta lJut loiro sob e o boar. 10 Arnar a Vida, a Beleza, 0 sceptru, a fur, terra e mar; Nunea na esteril tristeza A lua divina apagar: amor ilude, envenena, Sonho loiro, logo tinda ; Alma de cobra c de hicna N'om eurpu de Apsara Antes que a dor nos consul-11a Ser urn astru, iluminar, Ser a flor que a dor perfunia, Fogo sant'elmo no mar, Vern logo a inorte, e a alma em pronto Em po triste ha de turnar ; Prendamo-la au sol eingtianto 'fiver azas Para vOar. N'um pagode. pent). 0 ntirriagyiteirt/ Lange win os dodos a mitrelitllga de pelle de talagoia. e a bailadeira canta, sob us Mhos tle carbuuculos, de 11:,(11i, a tenebrosa e sangrenta deusa da morte : Cohr de perlas e sardonias, Firma joia de rainlia, prazer e dii insonias A' alma do homem, pobrezinInt. Sol de inn din, alboduiradu, N'ulo ecu feito de mosaieos ; Palacio de uiru eucantadu, Coin !hlos baleOes areaicos. E n'uin so din ei-lo em terra, Negro e triste ruinaria... Al, Como a velhiee aterra ! Que triste o sol n'agonia !... Vein, Kalli ; sou bela e moo, Pedra fina a refulgir... Ye, I o so) to duce rota Men coracao a florir A LAGOA. Mum murniurm(pu• lembra esuo.ralda sol caindo Muma patella ainor nao Ai, cair, murrer agora, Ao nada imenso levar Urn roseu sopro de aurora, 0 coracao a irradiar. Outra BAILADEIRA, em eujos labios a moeida• de se esvae n'uin derradeirm amarissimo sorrisu: c &Mho vao, Nib 6 lava clue envenena. A ma inch hut que urn \mica.° A agna humilde c serena. imam mellior qae as astern; E os nayas nos arceaes, E amain mellior que as violetas Os Itutuirmos arruzaes. fl.' 13 12 Sabe a espiga pequinina Como é doce ao coragao Vergar madura e divina. P'r'as creanciuhas sem pao. Os Urros, n'um vagO solucar cheio de uma volapis baLsamica e divina Ser flor é dar a quern soffre Um balsamo de War ; E' abrir um Endo cofre P'ra logo ve-lo cantar No fragil calice de oiro Que forca estranha e divina. Arranca a dor urn thesoiro, A noite negra Aguas dikes como plumas, 0' Lagoa clara e lassa, 0' Lna que nos perfumas, A nossa forca, e a grata. As APSARAS, ao longe, sobre urn penedo pie as ondas batem apaixonadamente: Samos brancas, de almas claras, Como cisnes; Lava de der, nao nos tisnes To depressa as formas raras. Somos a Arvore encantada Que cui cada leiva Sorve o sol e o volve em seiva; Valve a seiva cm flor doirada. 0' Sol, beija os labios hurnidos A's Apsiiras, Mail-os seios rijos, tumidos, Mail-as lindas forums raras. E lancando-se no mar gloriosamente nuns: So ao Forte, ao Vencedor Que (la a luz, A taco do nosso amor, Nosso labio que seduz. o SOL, longings° e dime, desappareeendo no tour, n'um derradeiro clarao de sangue e oiro: Luz, luz, luz, eterna luz, Volve o sangue em luz, Senlior ! P'ra ve-lo correr a flux N'tima torrente de amor. IIM BoTHO, vendo o sol por-se no mar em logo recita a yatiatry sublime, e humildemente: Surya divino e resplendence ! 0' sol, doirada, mistica urna ! Sejas bandito eternamente, Surya que beijas docemente Minh' alma, triste tier uoturua. 15 14 Vac a arder Wilma torrente De fogo astral, de energia ; Vae subindo eternainente N'utna ardente sinfonia. 0' to clue a heijas e a fecundas ! 0' luz Tie es pao, o luz que es saugue! So!, que de amor e luz inrindas As alums simples e profnndas, ve-ine eta luz est'alina exangue. E quando tun ilia, A terra aorta explodir, liade ainda, N'uni novo sol refulgir, Arranca, 6 Sol, dos coracOes 'l'oda a ruim c rasteira herva; • Erigr'rialda-os de astros e Enehe-os de flor's e de claraes, E so a luz conserva. UMA voz Tie pare::' vir .la nev rr .la lagOa: Eu fui nos bracos do vento, Linda amante, toda absorta ; No coracno do Maharaja cue o rythmo d'essa , VUo screno c tau lento voteslinda'u•chtremolsia. clue estava morta. ardentes, de doiradas arveolas de fogo Fixa o - - olhar na ponta do nariz; exhala o halito pelas narinas. Florescem entao na becca do guerreiro invencivel at palavras onmipoteutes de urn ti/tetra, telintam corn° guisos, claugoram coon" sinto, Espiritos da Treva, o bulks deseonsolados ! 0' tragicos inahnis nos ventos ululando, Alinas cheias de dOr, coracOe-s golpeiados, Alt, erguei-vos do nada a minim voz de mando. Um se:Tr° de procela perpassa no arvor6do.., Um von voleiru secular trerne, todo se a;ita, derratm, sobre a agua arfante e mormura our pranto perfomado de Bores. VOZES DE BUTHS : E' Lao longa, longa a Vida, Quo inda depois de morrer Nao tent a alma uwa guarida, P'ra dormir, aao mais sotirer. clue lino aroma exhalava Men .corpinho todo a arder; A terra e o ccu perfuwava Meu cor .pinho de Mother Mas quando o sol desponton Sobue as ponuts das Neil o perfume ficoa Das lindas formas Quo iwporta ? utn instance, ardente, Todo o men ser irradiou ; Fui a Luz do sol fremente, A Flor que a Terra alegrou UMA ivito vOz de secular : Tic ; haliffide e three. no ron•• 17 16 Foi no :jungle Os mogarins e as manilhas, Quern as ama como a viuva ? 0' Surya, to nunca brilhas Como nos mezes de chuva 0 MAHARAJA, feliz o meu exilio obscuro. Que lindo o sol, a lua, as agnas na Floresta ! E foi minha alma como um lago calmo e puro, Longe, longe da pompa estonteante que a cresta... comovido e Saild080; Nostalgicos mahrus, 6 buttes desconsolados, Tambem vos fere o amor, tambem vos faz soffrer ; Tendes a dor na voz, e os sonhos desfolhados Lembraes-me um roseo ceu que eu sonhei na Mulher. Meu sonho dissipou-se : era nuvecu doirada Que urn vento tuau varreu do meu ceu religioso; Ai tao longe, too longe a suave alvorada Que eu sonhei, que eu amei, morn rei veuturoso. ...Quando o sol do yea() escaldante enlouquece, Ouco ainda chamar-me as Florestas augustas. Minha morta Dual°, efemera, foresee No haft& e o ramalhar das arvores robustas, —.0' Amigas geniis, o Arvores tranquilas, Claras Almas de luz, 6 Ails ideaes, Que nostalgia abraza as nubladas pupilas, Do exilado na pompa e os thesoiros. astraes ! Unge-vos de esperansa o sol, de paz a lua, 0' APinas que sois rythino e harumnia austera; Na vossa seiva o amor divino e puro estua; 0' thesoiros do outono e luz da primavera L ...A vossa voz me lembra os tigres e as chitelas. Cascatas, arecaes, 6 bulhs desconsolados ! Lembra-me o ceu Perdido, os thesoiros d'estrelas, Lembra-ine a Flor gentil dos ineus souhos doirados. Ai, a Flor auroral que en desfothei raivoso A Flor que foi o sol no men escuro exilio, E foi na minha noite o luar amoroso, E foi no luto e a dor o men suave anxilio ! Desfolbei-a, Devd, mas n5.0 mais a caricia De urn beijo de mulher floriu men corac5o ; E nunca mais a flor nocturna da delieia O Mice abrin ua minima cerracrio. E no passa a lembranca.,4iyencivel e dura Dissolvendo o meu ser.,g!,uma eterna Ai "como é triste ver paco.de.unia artnadura Desfazer-se no fogoatraz de ama fornalha Cerra-lhe os olhos urn torment() itgrule. A Voz DE UM broth. sareastioa : Ai da toliuha ! al da tolinha ! Que busca urn tigre para mar. Ai da tolinha ! ai da tolinha! Que as joias de oiro langa ao mar. 3 19 18' °taut voz, de maltrti, no vonvoici• Um: tigre amour urn. lotus lindo,. Na garra de aco o desfolhou ; E foi rugindo, e foi rugindo,. ninguem Babe se chorou. . Tambem o mar os.rios ama —Aguas de leite, aguas de melE. o seu amor, maldita. charnma, Depressa os volve em. dor e fel. E. ELLE mortifieado•e doido : Or Almas inamortaes, ouvi...tende piedade, Que eu nao•fai nunca urn. tigre, o, whaga sanguinario;. Ea amei a. Bele,za,.adorei a B'ondade ; Foi meu algoz o• orgulho acre e tumultuario.. Fiai o filho do Jangle, inapetuoso , e heroic°, Que ama o Sol,. a Lua, a Beleza int:inks ; Eta forte o men corpo , eu, coracao estoico ; E no men sangue rugia uma lava maldita... E'se queda n'uma reverie vagamente sensual e vagamente dolorida.. UM A voz mysteriosa e tur• badora.: e clr Morrer, sim ! Quando a Gloria to embriaga, Como um vinho de luz, a alma radiosa, Morre sem vacilar ; a Morte afaga A Alma do luctador, forte e amorosa. :km* a Vida, a Beleza, ,o Sol divino, Euche de luz, de sons teu sonho obscuro.; Amar, sofrer, lutar, eis o destino De todo o coracTro heroic() e puro nao tem docura A Vida a bela, Ao coracao que desfalece e chora, Lucta, pobre alma dolorida e impura, E has de explodir n'uma exaltante aurora. Sobe ao ceu, sae ao ceu ardentemente, E quando o Sol as azas, to queimar Has de ao nada cair serenamente Para tornar a amar. lutar, souhar. vouvoleiro secular, .uma voz e grave Abre os olhos ii luz que a terra inunda, Se buspas a Ventura imorredoira ; links a luz que o lamacal fecunda, :Lipka a espiga pequinina e loira. &be na luz,-pobre-nit. Sobe na luz do sot, divinamente ; Se o condor audaz, forte e fremente Que jamais na desgraca cae vencid0. Os LOTOS BRANCOS. nas agluts da lazoa bracos b. parecem de sinopla e os embaiam veludo finissimo : 20 Rasgato-lhe o coracao os ventos a gerner —Quo bratnidos de dor no infrene trovelinho d'elle, Madlieva, clue nem pode tnorrer ! Sabe a espiga pequinina Como é dote ao coracAo Vergar, madura e divina, P'r'as creancinhas sere pao. UM IA5TOS VEEMELHO, voluptuosameute : Amor ! amor ! amor ! o Ilusao doirada, Mimosa como renda ! Para eu nao ver a Der, hiena esforneiada, Poe-me nos olhos a doirada vends. E 0 MAIIAliAJA, Vae no mar proceloso o pilot° sozinho, },3 o pobre coracao nao para nern se esvae. Quern the dera, Deva! um venenoso vinho ? Quern Ihe dera, Deva ! extinguir-se n'um ai ; N'urn adusto penedo em pedacos ficar ; Mas a rnao de Kalli sobre o triste nao cae. n'um sobresalto : Has amar é sentir no wracks fremente Um glorioso sol, urn clarao, uma aurora, Claro Ganges de luz, irisada torrente. Ah, trao o fere a tnorte e trao o devora o mar, Lancou n'elle a procela abrolhos e eardaes, Para ve-lo soffrer ; para ve-lo chorar. amar é palpitar como a Terra sonora Na caricia da Luz, que a Deus o p6 eleva, Ai, amar é viver mil yugas n'uma hors. E e muda a sua dor ; os seus olhos jamais Ulna lagema os turvou de desgraca c sandarle, Nunca o viram brewer hienas e chacaes. E minha alma—ai de mini solidao e treva, Sangra como o escudo ardente de um veucido, —Madheva ! Madheva! que vagalhao me leva. Nunca soube uinguem se em seu peito a bondade De penedo a penedo, o wrack, partido ?— Eu sou como urn pilot° a uaufragar no abismo Levado no tufa°, altivo e dolorido. Rebrame em volta o mar freweute de cinismo liugem os vagalhOes como le6es a arder N'uma jaula de bronze : o negro cataclismo. Como um lotus astral, compassivo se abria, Ou se era sO de fel sua alma e de rualdade. E estendendo rnaos n'um gest° august iusu Quern sabe, Madheva, minha cterna agonia ? Confrauge a sua face torva. lc do luro i o pavor de quern vae morrer n'uni cadafalso. Favor. misteriosa de novo se ouve fatigada : 23 22 Ai de quern soffre e nao Babe A mac do lieu penar. Ai de quem soffre e nao sabe Que a marte o ha de socegar. E Seus olhos desoLados parecem atnaldicaar o formoso marmore do seu palacio, e um grito de desgraca irreparavel explue de sea eoracao flagelado: 0' niurte, o 'none, o luz da minha clesventura ELLS: :Tao esquece o Passado a minim alma sonambula S6 meus olhos cerrei a Esperanga doirada, De um amrila de luz a enfeitigada anabula. En fui a braza, o sol, a lava ensanguentada Que um vento de loucura indomavel fustiga, E as fibres cresta na orbita desordenada. Em vacs, em vao busquei, como uma souibra awiga„. Na pompa o esquecimento e a ventura trauquila Dos lagosao luar, que nao ha quem rnaldiga. Ai no esplendor e o fausto a minha alma vacila, Ccmo palmeira a arder n'um areial muldito, Sob o sopro do sol e o sitnaun que sibila. NOD cite do meu castelo o rutilo granito &bre o meu coragao que uunca pars exhausto, E nao Babe esperar, anaar, ser infinito. 0' sol, o sol, o sol, 6 divino holocaust°, Nunca mais, nunca mais heide ver-te, radios() Toda a Terra florit, e sorver-te n'um hausto. Quando to caes no mar, sangrante e voluptuoso, Uma nuvem cruel de fogo e de amargura Tolda-me o coragao sedento e proceloso. E e VOZ MYSTERIOSG, de uma 'event de funo aromatico, brotando das aguas, compadecida : Temos thesoiros e prazeres N'arn cofre feito de ma estrela triste, dine o que to queres. E ELLE n'um grito de loucura e desejo ! Sita-bay !...Quei• me dera s° ve•la Ouve-se de repente no Tago, que é uma, lhama de oiro, urn murmurio profunclo ; exhalam as aguas um fino perfume de zaios morrentes. Boiam conchas luciolantes a for terra os olhos aterrorisado,.As petalas do lotos desfolhado, zna0 invisivel as vae juntando, lima a WM—. Deante dos olhos cerrados do Maharaja todo o seu Passado resurcita : a viola suave e clara no jangle do exilio : 0 rapto de Sita ; a destruicao de Lanka. Levzira. por Ella. a seu bravo robust() a morte e ❑ desolacao a cidade dos vergeis diVinos. Por Ell. cairam siespedagados as Rakxacas, e ardeu. Lanka. desde 0 sumptuosa palacio de Havana ate o mai humildc tecto de corm°. Uma nuvem de fogo the toldara desde entaao esr irito de ago... E da for de lotos surge docemonte. n'um dilu-• vio de tremulo fulgor, o fantasma dolorido lindo, emaciado e franzino, de sita ...E' o mesmo -rani branco, que the eingia o eorpo trigueiro e ervelto quando i'rithivi, a Terra eternamcmc Torniosa e compassiva, the abrira o sciu pizza a reeeber E' o amain° olhar supplicame a mesma fact: pal- 24 25 Ma. Desce-lhe ate os joelhos o cabelo ambarado e flno...E o sari alvo, da maviosa alvura dos mogaum saimpb, parece feito de perfumes rins, raros, concentrados, que aturdem.... at E ELLE, descerrando os olhos, cruz.ando naps eol adoragao : E n'nm intimo, piofundo queixume : Porque foi que o meu sonho em Nino dissipou-Se ? Num pagode, perte, a bailadeira canta: Tao &ace rompe a luz na nlinba noite escura. Ai o astro a despontar, o lindo plenilunio ! Domina-me, enternece um sonho de venturaDescanca o teu olhar no men negro infortunio, 0' Sitd, o Sitat, 6 meiga sensitiva ! Men doido coragito ten olhar illumine-o. FOste no men verso a sombra compassiva, No meu inverno triste_ a luz qne me embalava, 0' pallida Devi de fronte pensativa Tudo passa, tudo passa, Amor's, sonhos de oiro e gemmas, E a lembranga, toda graga, Das loiras horas supremas. 0' coragllo, tine vergonha ! 'N'utn so instante olvidar Tudo quanto a mente sonha. Extingne-se a voz n'um acre telintar de ironia : s6 o homem sabe amar Tu eras o luar, eu o sol. que escaldava. Meu amor, meu atnoT, a lugubre lembranca Cresta-me o coracO'n'um sOpro acre de lava. Den-me na terra, um con tun alma de creanga, Mimosa e linda como a flew do tamarindo, Como a agua de uma fonte, enamorada e mansa, , Foi-me a vida comtigo um jardim reftorind° No luar amoroso e pure dos tens olhos, Quo no men coracao era unaa estrela abrindo. Os lotus, na lagoa, venenosamente : A mar a came dote e nua, E a boca linda que sorria ; Cuspir na face a branca Lua... E n'um grito`mordaz que risen, como um reboil pago, o amplo e calado luar que enternece : ( Cuspir se a lava ja, esfria... Treme o Fantasma, torce as maos, parece sacudir uma lembranca ma que se the enrolasse no corp. como um wzg ha . No nacar verde-pallido da Lagoa milhures de lotus abrem as corolas lindas...E vendo o Fantasma estremecer subita e violentamente : porque foi, Deva ! que semeei de abrolhos Men caminho de seda, a Via-Lactea done ? Porque foi que buscinei os ingremes escolhos 4 27 • 26. Eu bem sei, Sita-bay, meu lugubre passado. eu que maculei teu amor inocente Eu busquei no teu corpo as nodoas do Pecado. Ai, a febre, o horror da minlm came ardente ! Era .como tun clam de ioncura e vinganga Rugindo no meu se; u'uma amarga torrente. B no ten corpo bruno, 6 suave Creanga, No tea corpo sew macula, de ambar tao fino, Eu bem sei que bnsquei—ai a negra lembranca !— Do Tigre de Lanka o beijo viperino... E na fina voz da bailadeira perpassa uui sopro acre de angustia e de peconha: Mata6-me o coragao. Cerra os olhos maguadds o Fantasma suavissimo...E o Maharaja, come se tuna clays. de Rakxaca the pesasse no wrack, fiagels.do: Ali, porque nao esquego a clava de Ravana?... Eu te vejo, Rahnim; ai ! eu te vejo ainda No lugubre pain da rags deshumana. Eu te vejo, chorar tao desolada e linda Sob o olhar do Rakxaga apaixonado e lasso, E a minha dor a como um smudrz que nac finda. Longa, cants a bailadeira ao rytheio doiradollo #arangui, oheia de ironia malevola a voz finissima : A came, a came–. e basta Que seja Linda e para. E quando a came a casta, Que importa a alma impura ? li Ii 1; E utu instante commovida: , 7",,„; E' de desgraca irreparavel o olhar de Sita. titn arripio a percorre toda; estremece. Dir-se-ia quo urn animal viscoso the tocara a pelle do seio: gotuma pedra caindo turvara um instante o placid() espelho de um lago. Mae volta-Die logo a dove serenidade angustiosa, euvolve-a como um glacido clarao de ternura e melancolia...E elle, lone° : Ai a lernbranga ma de lava fluida e de ago ! Como um nagha se enrosca a minha alma augustiada. Alucina-me, aperta o venenoso lago. Quando um dia, velhinha, Men cabello branqueiar, Quern vita, coitadinha, Minha Wm. beijar ? Sonho ver-te em Lanka, o flOr amargurada, Que loucura, que horror assalta-me a lembra-lo ! Antes me abrisse o peito o fio de uma espada. No tristes areiaes Ninguem langa um so gran, Soprae rijos, terraes Arde-me em lava a fronte e n'um irttimo abalo, N'um sobresalto agudo a minha alma naufraga. Nimba-te a minha dor de urn ensanguentado halo. "•-• 29 Que bracair de.tiovao. ! aLque Yragor de vaga ! Men pensamento é fel e a palavra . , peconha, Como um silvo de cobra e um ingido que esinaga. Nunca mais, nunca mais meu desejo sedento Florin na clara luz de uma caricia pura, Nanca um astro fulgia no men duro torment°. E' pedra o coracao qne nao ama e nao Sopha... 0' incerteza, o' duvida, o' lugubre hiena, Nao cessa o ten uivar na cerracao medonha. Sou oacod'armadura Eu nunca mais amei Solire o peito sem luz, de urn gigante derrotado, Que se desfaz na der de ama lernbranca obscura E n'um grito de ameaca: E eras tu, Sita-bay, men amor inviolado, Porque me assaltas tu a rir na Minim pens ? A bailadeira bate os guisos e canta, no pagode, corn tao dorido modo, que confrange: Meru olhos tristes e ardentes, N'urd halo triste e violace6, Vao em bases, doidamente, 1)e um encantado palacio. Mas a ventara perdida; Nanca, nunca a encontrarei; New se um dia, comovida, n'um leito de rei. E o Maharaja, numa'onda de ternura. de rernorso de intensa nostalgia No men acre verao a smnbra de ama palma, Nos areiaes da Vida o men sonho doirado. So tu eras, Sita, a Esposa da minha alma. Depois, semicerrando os olhos, humildementc. n'uma inestinguivel sede de amor: Mas fala, en to imploro, 6 Lotus dolorido ! Tu que nunca tiveste a rude voz de [nand°, Tinhas na voz o mel de um luar condoido. Lembravas a falar as aguas solugando Na tiara fonte hurnilde,-4a um ribeiro saudoso E a voz dos moluonys, ao sol-posto, expirando. E tu foste em Lanka, 6 fine sor tao : pure, Como um sopro de fiiz, do divino Surya Na treva que confrangee o lamacal impuro. Poisa no coracao ardente e proceloso, Como a sombra no estio, o ten sorriso lindo. Se no men ceu de inverno urn astro Imninoso. Mas o meu coracao foi ccomo gm mar em furia, Foi de pedra,,Deva men noragao violento, E nao mais vi sorrir bus .boca,purparea. Tristes olhos ideaes, co:no urn luar caindo Na noite de pavor, na minha dOr ungi-me ...Como d (lace morrer na mao de Deus sorriudo. '30 31 E se queda somnambulo... trma tristeza larga e dime illumina-lhe o olhar. E o Guerreiro de Lanka treme: nunca o virtu» tremer assim no fragor do mais sangrento combat:. Rasos de agua os seus olhos. a uunca o viram chorar no deserto vasto e arido das suas sem existeucias. Ao longs, um paltari, velhinho d'olhos serenos e claros, de fronte ampla e iluminada, prostra-se extasiado e humilde deante de um nichu de Parakriti, a Deusa Natureza, e docemente : Gemem no ar vozes de rixia recitando uma press.' Parece repfti-la a divina e podercsia vegetacao do jardim maravilhoso...E elle : Ai que longa saudade o comp me oprime ! 0' Arvores gentis, 6 Rixis triunfantes, Lembraes-me o Lar, a Paz, o sonho que redime. So to nunca mentes, 0' Parakiiti, 1)e seius, albentes E ea busco em vao, em vao nos marmores faiscantes, No fausto, a pompa e a luz da grandeza que escalda' A esperanca que escuda os heroicos gigantes. E claro sari... 'l'u es a Roulade, 'ru es a Belleza, A Luz, a Verdade, 0' Mae Natureza ! Embalde busco a luz, o sonho que engrinalda Vossas almas remit, suaves como arminhos... E' de fogo, Rixis, meu sceptro d'esmeralda. E volta-lhe n'um instance a eterna obsessao morosa, a lembranga da alma feminina que se the partin maguada da sua dureza, e que the vae transformando e dissolvendo o espirito de no. E dirigindo-se ao Fantasma dolorido Quero sonhar primaveras e ninhos Na luz da tua voz suave e maguada. Ai, deixa-me esquecer amarguras, espinhos. Por isso to entrego 0 meu coracao, Assim como um cego Entrega o bordao. 1)ispersa-o na terra, No eel] e no mar, Nos robles da serra, No sol e o loan Quero ainda lernbrar na noite macerada Que eu um dia sonhei imaculados ceus, Que eu mu dia fui puro, o Rahniin desolada. E enplicante, n'uma onda de remorso e o desejo immortal e dolorido : Falla...da-me o perdao...Que tormentos os ineus !... Todo o jardim estreusece subitameute, ti ado de uma luz finissima, ehuia de volupia e perfunits turbadores...Derrama, como um balsam°, sobre a terra, uma longa, lenta, rossa caricia. a aurora... inteir=o Sente-se arvors..,do despertando ; u fulhageln densa, verde, suavissima palpita; 'I7retne U vonvoleiro secular ; desaparecem da superficic da higoa as fibres nostalg,icas. E 4 fautasma de Sita, vend° tremular nos olhos do 31abaraja a sua film imagem 6 32 como uma estrela, perdida n'um mar de tempestsde, volts a face, toda compaixao e piedade, para o Esposodesgracadoe arrependido. Estremece. parece evanuir-se nes pritheiras caricias da aurora... N'um grito supremo de agonia elle : nao subir na luz men coracio a Deus Nota final I Quernmoapzdhrsbenoa. Da.-me o perdito, Sitt ! 6 Sita-bay E' profundo o lago onde o fino e brain° pertil heraldico de Sitis apparece sobre urna grande for de lottu3...Elle avanca como para abraci-la; abre tkos brawls macerados nas duras penitencias...E ella. dolorida e dote, leve como espurna no limpido azu I da manhfi elysea desaparecendo : Adeus Canto= os moluonye. Abram as rosas. Ingenua e linda a face do Ceu parece sorrir. E a grande yes harmoniosa da Vida sobe, suave e balbuciante ; como uma nu vete de incenso, saudando o Sol. ...Ravana. King of Ceylon, heard of the beauty of Sita, and in the absence of Rama carried her off... and took her to Ceylon. llama, after a long search, obtained clue of her. lfe made alliance' , witheldrbsofw,cedvrto Ceylon and laid. seize to the capital town, Lanka, with a huge army At last, Ravana himself, who is described as a monster (13,41xaca) with ten heads, came out and was slain, and Sita recovered by Rama and Rama returned to Ayodhya or Oudh and ascended his father's throne. Hut the People judged Sita harshly and considered her tainted. And Rama, weak as his father, yielded sent his pure and faithful wifO to exile But there was no joy in store for Sita. The breath of suspicion had clouded her life and Sita s ank into the earth, the field-furrow, which had given her birth. • (Rama ye iNDIA—Romesh 0 01 VI /.1 CA TI ON OF C. Putt). ;, — - — 2, — ama divindadn hindti, de GOa, e OM',o trine •de DtirgalkSerern,".. Vech.ca . ; a iatureza, Fisposa d,q• Brahxn Parakriii é a personi8.eacao da foY9a. . : Rahnim—Rainha. cabecas. Ravana— Rei de Lanka, nakzara (Monstro) da •pag.'9 ivpresenta o ..4°estnmpa Um meta. 112117d* 4 4aPaad.494• "Sarangut— Instrpmerito Murano d Curdas; bOoado corn um _ aroo." • Sari—, Pauli°. corn quo, .,1* Veategr .,as n9iheret, Wails, ."-..enrolandn,c ens tarn° do uorpo. .4., Smisdrit--, Ocean?. . •.• ' e .. :yistis. indiana a.o }woe cla.Vd ' - • Sita-= A espoza de Rain,. o Ravoyana, nasoida rniraeginsamOds de nm ' . waltz* da Terra Mae. . ,,, , .,. _ , • den • • t 4 # Erratao ., . * • • • apenas as principaes ; • Pag. 18, 4.a quadra esti: 7-439U na luz; pobre asima suturn „ bida, po.-: Sobe na iuz, 4 Onto° . Pag. 18, 4.* qnadra,i1timalinha—venida pot; ventidc • . Fag. n9, 5.'c tercet°, 2.°ive:—ou,uM, por um.' ‘,• -^ • p • • • # • * • • *. , , • • • • • • • • `, • ." • • • t---* " METEMPSVCOSE AO DR : ANTONIO DE NORON ti A 4 . 0 Ideal é insaciavel como o Amor: e a Ambicao incomensuravel como o Intintto. S6 a Morte é salutar, perieita e puriticarlora. (Theoria brahmannica) 0 verme disse um dia:—.6 grande e doce Brahma, Sendo Vos da justica e da bondade a chamma, Df-sies a tod9 o ser sorte assim tao contraria E a mim, um cute igual, me fizestes um parial Quern me dera ser flor, que é linda e tern olorl. • E Brahma transformou o verme n'uma flor. tt—ttilf • ivfARIANO ORACIAS TERRA DE RAJAHS A flor —NAcham-me finds, sim, mas presa ao solo estou! Quem me der' subir to azul, erguer v8o Qual love borboleta l... 6 Brahma viedoso, Dae-me o sumo prazer, o suprassumo gozo De no espaco librar, qual alma de poeta I.... E &llama transformou a flor em borboleta. A iguia entao falou, ironica e magoada: —•Vejo diante de mitp a abobada estreladal... Ah! quem me dera a mini, a imperatriz do Azul, Ser uma estrela assim, do Cruzeiro do Suit Uma ware a luzirl Oh! que coisa tAo E Brahma t ormou a iguia n'tima estrela. A estrela E disse a borboleta arisca e atnbiciosa: —•Triste destino o meu voar de rosa em rosa E, eternamente muda, ouvir os passarinhos lempre a cantar, talvez saudades dos seus ninhos... .Quem me dery cantar assim meiga e suave!. E Brahma transformou a borboleta em ave. E suspirott a estrela, a estrela a mais luzente: —6 poderoso Brahma! 6 Brahma complacentel De que serve esta luz sem a do Sentimento, Sem o grande clarao da luz do Pensamentot... Dae-me, pois, essa luz que s6 de V6s diurana•. E Brahma transformou a estrela em Alma Humana. • E o passarinho dine, em cima da palmeira: -.•Mais alto do que eu voa a iguia ligeira. Ohl como doe ser sublime e grandioso Contemplar, la do espaco, a terra e o mar tormoso Brahma, atendei a qualm, e o Vosso Seio afague-a•. E Brilhhma transformou o passarinho em agnia. A Alma Falou por fim a Alma, em triste desalento: —•Mas que iguda tortura a dor do Pensamento!... Antes eu fosse um verme, um simples infusorio, E da D8r nao subira 0 grande promontoriol... Sofri, lutei... NA° ha nada que me confortel Hoje s6 ambiciono a santa paz da Morte. 35 MARIANO ORACIAS Ah! pudesse eu dormir na funda treva mudat. Brahma nio se moveu. Mas eis que.sdrge Buddha, 0 grande pensador de larga ironic calma, •£ corn o seu Nirviinna aniquilou a Alma. • zwirstsa=zrallIENIMI.a.111111•2117510":•10167140eL Naselmento Zifendoncit AISE/S DE) BENAREs 1940 TIPOO It A Fr A RANGEL, fi 1, t. or Os Douses de Benares Ternerario e format juizo sobre uma obra inedita deixada por urn escritor. De urn modo geral, a obra nao satisfaz o autor. Eta esta perfeita na sua mente; mas, na execugao, pareceu-lhe que falhararn os seus meios de expressio. ngelo, ante a estitua de Moises, significa 0 " parla I " de Miguel A que esse titan do cinzel nao se deu por satisfeito ao completar a sua obra. Afeigoando o mirmore bruto a modelagao da figura, nao the transmitiu o sopro de vida corn que na sua concepcio ele a via animada. Ao contririo; a obra publicada pelo autor pressupoe que eta chegou iquele ponto em que a auto-censura do escritor, bem ou mat, the deu o seu imprimatur. Por esta razao, temeraria e a critica de uma obra inedita, encontrada no espolio de urn escritor. Que prodigio de beneditina paciencia nao operaria o autor, corrigindo, ampliando, refundindo, retocando a sua obra ? Está neste easo "Os Deuses de Benares'' de Nascimento Mendonga. A obra nao foi publicada em vida do autor, e dela existe apenas uma copia, onde se notam atgumas falhas. Pelo talhe da letra, si:nplicidade de alguns erros, troca de caracteres, mews descuidos, parece ter side uma crianga o copista. De quern chegou a perfeigio do poema—Vatsali-na propria base do poets o seu " ultimo canto do Cisne", havia a esperar que alguns desbastes fizesse no original antes de o dar a lume. A exuberincia, é certo, o ornato excessivo, e uma caracteristica da sensibilidade artistica oriental. A•pesar, porern, do que podemos notar de excessiao—que é afloat urn defeito das suas q ualidades—estao patentes na obra inedita " Os Deuses de Benares" os aspectos marcantes da inconfundivel personalidade o riginalidade, profundeza, emotividade. literiria do autor 0 "caso literario—Nascimento Mendonga", é de-veras surpreer.dente. OS D USES DE BENARES OS 'DEUSES DE 'BEN A RES Nascimento Mendonca era, sem citivida, urn escritor, um escritor-artista double de urn pensador. Nao s6 a forma de que se servia, a sua maneira, a das mais belas ; rnas, o fundo das suas obras e sempre alguma coisa de apreciayel. As suas irnageas sao quasi sempre ineditas. imprevistas, bizarras. Pouco ha de vulgar . comum. A facilidade, prontidao, viveza, corn que e!as the acudiam, é ainda uma manifestasao da sua pujante sensibilidade artistica. Prosa ritmica ; plasticidade de expressao; frescura de tintas ; estilo 1: MOS°. Naseimento Mendonsa tinha, em vez de nervos, feixes convulses de fi electricos. Foi corn eles, vibrando na intensidade maxima dos seus ar.-)xismos de artista, que escreveu as suas obras. Surpreendente, na verdade, esta organizacao artistica, que tanta Beteza procluziu, pela &woo do talento, nurn mein em que todos os estimulos the falharam. Como os pelicanos, arrancou, fibra a fibra, do pr6prio peito, a carne palpitante da sua obra ; irrigou-a, nas crises agudas da febre de criar, corn o seu proptio sangue a escaldar ; transmitiu•lhe o fremito dos seus nervos convulsos; deu-lhe o alento vital da sua pr6pria alma. Foi, transfundindo ra sua obra a propria vida, que ele se consumiu, como uma fogueira se consome para dar calor e brilho a chama. E' por isso que a sua " alma de artista resplandt ce na Luz eterna da Beleza imortal que criou. 4 " Os Deuses de Benares e a crise da consciencia que, tendo perdido as creugas, procura readquiri-las. E o grito do Hornem que -.•conhece a inanidade do Pensamento,para . responder a todas as curiosidaJez, do Espirito. resclver todas as clavidis da Ivteligencia saciar enfim a sale de lnfinito E a tortura daritesca do Hornern que, sentindo-se uma fragil c..-nlstrusAo destinada desaparecer, se deixa dev3rar polo anseio de' i,nortalidade. Conflito eterno entre o destino da materia e o impulso espontineo, irreprimivel. do ser em se perpetuar no Tempo. , *. Urn inoso, e,n Ilor, tendo vivido a vida convulsa da cidade, asso- nhoreando-se das conquistas da Ciencia, das lucubragoes do Pensamento, sentiu urn dia essa crise de consciencia. 0 seu espirito, esclarecido polo sol claro, limpido, radiante do racionalisrno, sente a falta de alguma coisa mais. Ha tun vacuo na sua consciencia que a Razao nao preenche. E entao que ele pensa em se restituir as sum antigas crencas. Procura urn Rixi para o " ensinar a crer para the revelar a Verdade. Nesta disposigao de animo aparece-the urn Deussar, especie de Mefistaeles de Goethe, que o dissuade do seu intento. Deussar demonstra-Ihe que o que ele procura, nao é a restituigso das crencas perdidas ; mas, que 6 vitima de uma ilusAo do seu egoism% 0 que ele, afinal, pretende é a—imortalidade, a arnbigao louca de se perpetuar. Jamais podera ser como Rixi, porque o Rix! nAo deseja nada. Ele é o puro crente, " cre por crer " sem esperansa em recompensa alguma ; pois, sabe que o espera o aniquilamento total do err na absorg.ao nirvanica do Todo. Deussar incita-o a voltar para a cidade. Serao intheis todos os seus esforcos para se reintegrar na crenga dos seus maiores. As hesitagoes do mancebo, os seus conflitos intimos, as visaes alucinadas da vida, o prestigio tentador da Beleza sob os multiformes aspectos que a natureza oferece, o holocausto do Pensamento na ara sacra do seu sincero anseio de purificagao ; e, por outro lado, os comentarios satinicos de Deussar, as suas aliciantes solicitagoes para the dar urn sentido super-realista da vida, sao os epis6dios do Drama, conduzidos por mao de urn verdadeiro artista, preocupado seriamente em decifrar o enigma da alma human. "Os Deuses de Benares" nao destoa do profundo, belo, original poema Vatsall, coroa de gloria do admiravel poeta que foi Nascimento Mendonga. 0 Instituto Vasco da Gama, publicando " Os Deuses de Benares" pratica urn acto de benemerencia. urn born servigo prestado as letras. A obra fica arquivada definitivamente no seu Boletim, para recreio espiritual, estudo, incitamento das gerasoes vindouras. Bern haja, pois, a ilustre Direcgao. guy •ntettr4 6. 1.- OS DEUSES DE BENARES I E o Rixi fixou em mim os seus grandes olhos luminosos... Ulna leve aragem the acariciava a pele bruna. Na lonjura uma rOla arrulhava amorosa e nostalgica. Sabre a nossa carne era uma leve soda escura a sombra da figueira sagrada. E eu disseihe suplicante —Serei teu discipulo, Mahatma; ( 1) levarei pelas povoacbes a tua escudela de pedinte; mendigarei poi - ti. Queres ? Pareceu•me hesitar...Urn compassivo sorriso tremulou um instante nos .seus olhos. E eu continuei, fervoroso, suplicando : Aceita.me, nao tens ninguem que peca por ti. Precisas de um discipulo; todos os velhos Mahatmas o tem. E eu preciso um Mestre que ensine a verdade a minha alma cativa de enganos. A sede encheu de areia ardente a minha garganta. E teu sorriso a Agua da fonte nas cumieiras aridas. Serei teu chelii, teu servo, teu discipulo". E eram de piedade os seus olhos. Mas a sua bOca estava muda. Como num claro lago se ye o. seixo pequenino, nos olhos via-se-lhe o coracao virgem e forte. Mas em vao procurava neles resposta as rninhas stiplicas. IJm silbito vapor de enternecimento, e talvez de ironia, embaciava o vidro transparente. E eu: —Tu estas vent° e possucs a verdade. A verdade fez-te inabal:ivel, perfeito, sereno. E's como um cristal raro; betn te vejo a alma. Parece um veludo azul desdobrado sObre urn im.rrnore liso. Nem uma ruga, nem um vinco. As ventanias da vida, que sao Dor, Desengano, Davida, Negacto nao te acabrunham nevi confundern. Ern volta do lago ha muralhas altas, colinas verdes. Nao rota a sua tranqiiila superficic a asa dos tufOes. Defende•a um basalto sagrado. E' a verdade. A fora do jangle de longe a espreita e loge. A ambicao, quando de ti se aproxitna, a como o tigre que esconde a unha aguda, terra os (I) Asceta, super-homem 4, OS DEU SES DE BENARES dentes, Ora a respiracao ao enlacar o clomador nos circos de Deli...Ensina aos homens a tua Lei. Estas velho, Maharaj I Entrega-ma. Eu heide levy-la, corno urn archote, pelas noites cerradas. Ele interrompeu-me, num murmtirio de folhagem nova e redolentc: — eMas quern entregaria uma tocha a urn incendiario ? E eu, impertubavel:. —0 teu poder espiritual, a tua lei nao é o fogo dos extermfnios. Se o fosse, nao me enganava. A tua alma seria uma agua turva, como a do sabio que, buscando um electuario, encontrasse um veneno subtilissimo e irreparave1; como de urn rei que tivesse em uma jaula bem fragil, tigres sanguinarios: —Vens da Cidade. Ha vapores maus, condensados, d- entro de ti. —Mas sou mom inflamavel, sincero. A tua palavra sera a asa para o meu vex); sera a agua para a minha sede. Mal te oico, meu coraca'o ergue-se em sobressalto. E' como o elefante seden-, to quando ouve, longfnqua e macia, a voz das cascatelas. Desperto de urn sono de chumbo, meus sentidos carrilhonam alacres numa esperanca. --Tens sentidos teem comilhos e teem venenos. —Purifica-me. No jangle, ha paharis (1) que dorninam o nagha Teem o mantra (3) que the embota o dente. E tu que subiste o Himalaia, abriste a , alma os sois da Pureza, encontraste a verdade, nao poderas tu, o' servo de Brahmadeva, curar urn doente ?...Na cidade, os garopeiros faziam (Ungar, de capelo aberto, as cobras que sao a Morte; enrolavarn nas nos bravos, num cestinho de bambd as fecharam. E tu, Mahatma, 1 nao podes arrancar - me da carne uma pequena vibora desdentada, para impedir que a sua baba me tolde os sentidos ?... Has•de deixar que se envenene dentro de mim, com o desejo de viver, a Esperanca do resgate ?...Venho cheio de fadiga; — t - Montanh6s• (2) Cobra de capelo. ($) Palavras de feitico• (I) tr OS DEUSES DE BENARES OS DEUSES DE BENARES tenho chagas nos yds. Mas que importa ? Hei. de subir contigo a Grande Via; comtigo irei a Kassi, a Pandarpura, ao Tibet. Nos parans onde o vatsura cozinha e o gado rutnina e o pathan espreita, hei.de lavar-te os pas, compor-te o leite, encher•te a escudela. Pelo caminho, a teu lado, a minha mocidade transfigurar-se-a. Hei de aprender a amar, a crar, a esperar. Mais aces que as cantigas das raparigas de Patiala sera() para mim os murmurios da folhagem nova, das ervas altas calcadas pelos yeados. Mais do que a dos mogareiros do Guzerate, ha-de penetrarA minha ttinica -me e cativar a docura do gado das caravanas. sera leve como espuma, mesmo no frio Dezembro. Irei descalco, e as pedras nao morderao meus pas. 0 sol nao chamuscara a minha pele. E quando, findo o dia torrido, seatir a asa da aragem sObre o peito sera como a Imao das mais, perfuinada nos unguentos das noivas, untando-me a pele de Oleos aromatiaos. Eis o meu sonho —Crianca I Pobre louco ! b Pensaste acaso no amargor do desengano ? E os olhos do Mahatma penetraram-me a alma, como um amigo condoido num palacio em ruina. Mas a sua piedade parecia nao ter braces para abracar a minha miseria. Debrucara-seide tao alto sabre o coracao que implorava, como uma princesa aria, dos seus varandins de jade sabre urn mendigo secriyado de lepra. Eu vinha da Cidade adusta e sumptuosa, da luta sem nome, do incendio sem fim, 0 homem ali, era a maquina impelida pela fome, era o ferro sempre em brasa ; era a carne comida de tilceras, 56b tuna pelucia divinamente suave 1 Ali haviam-me assaltado a luxtiria, a ambicao, o orgulho, a dtivida. 4 Que me restava da alma limpida e imponderavel ? Uma fera sedenta, fechada numa jaula diante de um veio de agua. Era toda gumes a forca que em mim havia sido fecundante e acolhedora. De grandes forjas yinham-me, todos os dias, para os meus instintos, freios, cadeias, grilhetas. A minha liberdade ajoelhava humilhada entre as ayes cativas e as (eras acoimadas do Maharaja de Kapurtala. Agora, g quern me trazia, quern, no jangle secular, por ignorados trilhos ? Havia caminhado coin os fiats e os pan jabis, os pastores e os parias, cozinhando nos parents, som- bra dos tamarindos, o meu arroz. Tada essa rude gente, porta• dora de urn desejo vivaz e fremente, possuia uma alma virgern, macia como o peito das rotas simples, mtirmura, elastica. A sua linguagem era como a das aguias da floresta. Falavam de to da a sua familia, os filhos, o gado, os arrozais. E a sua voz era para mim uma caricia de densa ::.amponesa afagando um veado. Como seria doce gozar a sua intimidade feito discipulo do Mahatma! Era aqui a Beleza, a Grata, o rtibido fervor da vida. A terra, que eu via, que o Mahatma docemente me ensinava a ver, era, na verdade, o parafso sonhado. Aqui tudo rebrilhava e cantava, lembrando o sonho que eu acabara de sonhar no berco e que nunca mais 2ara mim voltara, batendo as asas de oiro atraves do Ioiro ar da minha terra, a hora inefavel em que o gado recolhe as povoaceies sossegadas. E o que mais embalava a minha alma cheia de feridas, o meu corpo • coberto de sangue e p6, o meu pensamento lacerado e roxo, era a certeza de que, nesta ebriedade da vida, ensopacia em lux, polvilhada de ritmos, a alma do homem ainda se conservava candida e simples, transformando a pobreza e a miseria em abun. dancia e contentamento. Eu via os regatos pela primeira vez ; eu via a igua beijando a terra, fecundando o seu veutre de misterio e de magia, resplandendo nas explosael de luz, humilde e divina,—leite correndo de uma teta sagrada para os cardos e as rosas, para o tigre e a pomba. Eis o milagre:--eu recobrava a vista ; a minha alma tinha olhos. E agora, coin° as povoacoes do jangle, eu poderia falar corn os Deuses e dii.er-lhes as minhas penas. E seria completo o meu resgate. A vida do homem era como limpido sulco das correntes, dos pequenos e placidos veios de agua deslizando atraves da verde pluinagem das ervas nascentes. Para ser como essas gentes calmas eu vinha da cidade, zendo na minha carne dolorida o desejo de me reintegrar na crenca dos Maiores. 1. E ter-se-ia transformado aqui este desejo em proposito espiritual, em resolucao disciplinada, reflectida e integrada, como 6 7 OS DEUSES DE BENARES 8 urn sangue vivo, na minha substancia ? Na.c. sei. A magia da vida penetrava-me tao suavemente, que eu preferia sonhar a ter de responder as minazes e ervadas interrogacoes do meu espirito. Aqui cu encontrava Oda a grata do Paraiso correndo a convidar o sol ao primeiro gorgeiar das ayes, trespassando o meu ser e deixando a raiz da minha substancia urn fulvo rastro de luz doirada. 0 meu desejo transfigurava-se talvez. Era agora a ovelha rnansa bebendo a beira dos regatos ; e logo ei-lo mudado em novilho rolando o corpo forte e fremente nas ervas orvalhadas das lezirias. Eu renascia, e haviam de renascer comigo as minhas faculdades, que, de tanto exaltadas, iluminadas, engrandecidas, eu s6 as lograva trazer para o jangle crepusculares e morrentes. Acampando a noite, a sombra das mangueiras, ou dormindo nos plums, eu lembrava as vaias fumegantes e mas, com que haviamos afugentado os Deuses da Cidade, pondo em seu logar ideas, simbolos, aspiracO'es, constantemente, eternamente renovadas por nab poderem encher-nos o vicuo corn normas de consciencia c regras de conduta. Criamos a liberdade, inventamos UM ceu na terra. E a terra havia visto desfeitas milhares de creacoes da nossa vontade cativa, da nossa imaginacao dolorida. E eu disse ao Mahatma : Duvidas, Mestre, duvidas da minha pureza, da pureza da minha alma ? Ves a minha face A minha palavra a para ti como a bailadeira, enjoiada para as festal no pagode. 0 seu sorriso é mentira ; o rubor dos seus labios, deu-lhos o betle. Mas tens a vista forte ; has-de ver-me o coracao se quizeres. Z O sol descia em poente incomparavel. Na terra ardente de Hind ajoelhar-se-iam agora milhares de criaturas, recitando a gaiatri sublime. Eu disse entdo, como um gemido :-Se como o sol, Mahatma ; purifica-me Ele sorriu, estendeu a mao bruna e magra, e entregou-me o seu coco de rner vasio. - - OS DEUSES DE BENARES 9 II Quando todo o parau dormia, na docura de tan luar esplandido, maravilhosamente branco e suave, veio sentar-se a meu lado urn Deussar Branco, urn formoso Diabo, de longos e fulvos cabelos, os olhos negros e penetrantes, a b6ca en6rgica e fina. " 1 Que yens fazer aqui, Mohanlal ? preguntou-me. Deixaste a Cidade de luz e tomaste o caminho do jangle E' o que devias ter feito ha muito tempo : a tua energia morrente exigiam-no. Mas que 6 que vais fazer no jangle em companhia deste pobre velho que dorme a teu lado ? " Venho em busca dos Deuses dos Maiores, respondi. Nao me voltara a satide e a alegria sem que primeiro eu rehaja a crenca que perdi. " Ah I E's um vencido I Essi crenca que procuras rehaver, e a ave azul para sempre moita. Para ti ela nao ressuscitara. Criaste o espirito numa atmosfera de escarneo, do zombaria, de desddm e de 6dio para todos os Deuses. Has de •rtr agora--e 6 bem tarde—que essa atitude 6 indigna de todo ' o homem que pensa... " Sim, admito-o, atalhei inflamado. E arrepeado-me." " Nao te exaltes, continuou ale. Escuta Eu nao digrique as supersticaes religiosas encerram a Verdade Absoluta. 0. que te digo e que elas nao merecem ao homem que pensa esse desdem rancoroso que foi a caracteristica da tua aqitude. Sebre essas supersticoes paira ainda a sombra da Verdade. Mas nao 6 por causa delas que segues Mahatma. Estas doente, exiusto, desiludido. Procuravas na Cidade, corn a realizacao dos teus ideiais, pao para todas as fomes, agua para todas as sedes. Pura ilusao I Quem te havia de outorgar a imortalidad• ? Quem havia de reintegrar-te no sagrado amor a Terra se te endoidava o horror da Morte ? "Ve o Mahatma, disse sinceramente, querc' ser como 61e. Manso e puro como urn veio de agua. " Perdes o tempo. Nessa guerra aos Deuses, nao obedeceste a urn espontaneo movimento da tua alma, ou da tua consciencia. Submeteste-te as manhas ruins da tua vaidade. Findo o corn- OS DEUSES DE BENARES to 1! - OS DEUSES DE BENARES bate, procu rl aste em Budha, na sua divina doutrina, normas de consciencia e regras de conduta. Os teus legionarios fizerarn o mesmo. Depois, incapazes de compreender Budha, derrubaste-o. E nao contente coin isso, nao contente coin o ideal em cujo nome havias lancado o grito de guerra, pedes a imortalidade, que nao cabe dentro desse Ideal, e que a tua propria Razao repugna. z E enlouqueces de horror a morte ?... Deixa essa cobardia ; vern comigo ; iremos pelo jangle juntos, adoras a Terra formosissima que nao conheces, e depois regressaremos juntos Cidade... " Eu Nunca ! bradei. " Estas louco. Rehaver os Deuses... procurar uma moeda de cobre que se perdeu num areal... A possibilidade de encontrar a moeda,nao deshonra talvez o raciocinio de urn mendigo corn fome ", " Mas eu... " Sim, tu... Se te contentas corn precaver-te contra a possibilidade da existencia dos Deuses ; ou que been duro pode ser o... teu castigo, isto, pobre doente, nao a recuperar a crenca perdida, nao e crer ; 6 traficar... E nao estas velho, nao estas cad uco. " " Deixa-me, clamei corn rancor. Quern es tu ?... Vai-te I " Sou teu amigo e teu Mestre. Se fOsses capaz de ser um crente, como aquele pobre Mahatma, que nao aspira a imortali3ade mas ao nirvana, porque ama a Terra, a Vida, a Beleza dos 'nuncios, se fosses capaz de tanto heroism° espiritual, deixava-te. Mas tu vais ser, se ja o n5o 6s, press de enganos. A tua Vida, que podia ser bela, vai ser uma alucinacao, urn delirio. E se a sadde da alma te nab voltar, ai de ti !, sera a Noite eterna em tua consciencia. E's urn renegado ; e assim que te consideraram na Cidade Santa. Agora es quasi urn renegado da Cidade de Luz. Calcaste as crencas dos Maiores ; ser-te-a impossivel abrir para elas, comp um templo, a tua Consciencia ". " Mas deixa-me, deixa•me, insisti furioso. Eu sei o que procuro. Errei, emendarei o meu erro. Irei corn o Mahatma para todos os lugares Sagrados de Hind. Esquecerei a gelatina pelasgica, as Hipoteses Maravilhosas, o pretnio de consolacao que se chama a Cdlula Itnortal. Esquecerei tudo. A tudo hei•de preferir a heranca dos Maiores, os tesoiros da minha Raca. E' urn dever de consciencia. " " A tua consciencia cambaleia ; as tuas faculdades dimi- • nuem. Escuta! E's urn vencido ; urn perdido. Nao podes salvar-te. E 6 meu dever ajudar.te no born caminho. Nao obedeces a urn movimento do teu espirito; es UO33 vitima da fraqueza da tua carne. Mas essa fraqueza 6 acidental, temporaria. Vern comigo. A vida vai ser para ti um hino de tritinfo ; riso, amor, alegria. Vem 1" " Nunca I Nunca 1 gritei aturdido." " Virds, viras.... Se foges agora ao raciocfnio, has-de submeter.te ao meu sarcasmo, a minha zombaria. " , E desapareceu. • III Ao nascer do sol partimos, o Mahatma e eu. Todo o parau havia despertado. Chiavam carros, mahars praguejavarn ; bandos de lavradores passavam falando alto, seguilos de MUille• res silenciosas. Tomamos o caminho do jangle. Anis de Mahatma eu iria, moco thela de 25 anos, a Pandarpura e a Benares, a todos os Logares Sagrados de Hind. Eu era na verdade urn vencido. Todos os meus sonhos haviam desabado miseravrAmente. Morrera em mim o Desejo que fecunda. E do ser escolhido, que sonhara criar na Terra a estirpe dos triunfadores, insensiveis Dor, ao Tedio, 56 restava urn naufrago exausto que o mais leve arfar de agua dcsviava do caminho. De olhos abertos, andando devagar, ao lado do Mahatma, eu sonhava agora o meu novo sonho de resgate, evocando rapida. mente, em bruscos parentesis de loucura a minha obscura e ensanguentada tragedia. Passavatn perto as boiadas enchendo o ar corn a voz ingenua e divina dos chocalhos. Cantava heroismos de pandavas, os epicos guerreiros de eras 5 12 OS DEUSES DE BENARES OS DEUSES DE • BENARES longinquas. ?mores de Krishna, idflios de Apsaras, ao som de pequenos pratos que brilhavam como oiro. E na sua cancfto como num dace chalrar de fonte, finas almas amorosas se erguiam para engrinaldar o aco marcial de gloriosas armaduras. Mas ningut:tu parava a escuta-lo. NTAo era essa coin certeza a hora propicia para a evocacdo dos herois. Boeiros gritavam ; havia alvorocados gorgeios no arvoredo. A luz nascente, como LIMA CalICAO de ave no primeiro voo, na silva tutelar e fecunda, enchia, alagava, ensopava a Vida no desejo sagrado das mais radiosas transfiguracaes, na esperanca e na certeza indomavel de todas as supremas possibilidades. A Dor de ontetn radiava, fundia-se na Alegria da manila. Alas todos os sons se adelgacayarn para chegarem aos !netts ouvidos. Eu sonhava e recordava. A minha recordacao, porem, era urn fantastic° resumo de sonhos mortos, • de antigas dOres inolvidaveis, de lutas, nevroses, delirios. Que procurava cu na terra, meu Deus ? Armara-me para derribar as oligarquias celestes. Mas, buscando trofeus, encontrara cinzas. Aguas de mar profundo, ventos, vulcoes, tudo quis submetido e passivo diante do meu desejo, desnudando aos meus olhos o seu Intimo segredo. Sonhava... delirava... Eu era outra vez na Cidade de Luz corn os lutadores de armaduras invenciveis. Passavam na frente corn gritos de triunfo, entre halalis e fibres. Tom. varn-me corn a ponta das lancas clamando ;—" Luta ou Passa ". Detinham-me no caminho zoinbeteiros :—Luta e goza. V amos conquistar o Sol ; sera no ver5o torrid() como um luar virgem e suavissimo e ha de aquecer os parias no inverno, como uma pelicara. Vem connosco ou mata-te. Por Coda a parte se suprime o fraco, o molesto, o covarde; o desagradavel. E' a Lei. A caca ao homem corn todos os requintes da astdcia e da destreza, embebcdava os fortes. E o meu delirio flamejava como uma grande asa de fogo, faticlica e cruel. Os meus olhos abriam-se dentro da minha alma. E viam corn horror o desenrolar da tragedia. Viatn passar, gladios faiscando ao sol, a legilio dos eleitos. Os pendoes vermelhos como sangue acenavam irresistivelmente :—Vamos imortalizar a Cidade da Luz. AR tudo sera harmonia e claridade.—E as turbas apertavam-se-llies em volta, . rotas e famintas, abrindo o coracAo lacerado as grandes promessas dos que iam conquistar o Sol, submeter Siirya a omnipotencia da sua Vontade. Eu via-os nitidamente, corn os &hos bem ahertos, ouvia o tintinar das suas armas. Todos os olhos fusilavam de ansia, os coracbes batiam alto na esperanca do Milagre. Do rude basalto jorraria a agua para a nossa inominavel Ude ; a laterite que os nossos p6s calcavam transformar se-ia em pao. 'Eu seguia-os de alma aberta, predestinado para a Luta. Nunca mais o terror prenderia as almas, nas suas malhas de peconha. Nunca mais... Queimaram - se na praca as veihos Livros Sagrados, entre pragas e sarcasmos. Derretiam-se as Imagens de aim nas Caias de Moeda. Incendiarios passavam agitando archotes, furiosamente, como soldados arias entrando numa Cidade conquis. tada. Era uma febre de glAria. Os elefantes sagrados batiam nos gongs o sinal do alarme. E eu via canfusamente como k luz de tochas moribundas Sacerdotes de longas vestes arrancando os cabelos e logo, como aturdidos de bangue, seguindo os legionarios. 0 camartela dos iconoclastas* destruia corn uma ftiria divina, cheia de ritmos e de faiscas, todos os altares. As supersticoes seculares, doiradas pela piedade dos humildes, brunidas pela tristeza e esperanca dos submissos, envOlvidas em sedas hieraticas pela Acre e Riqueza, volviam em p6' sob as sandalias dos Lutadores, que as pisavam no mais rtibido fervor da Liberdade e da Vitoria. Ah, coma seria born, extintos todos os ecos da Luta, respirar este ar limpo do p6, que, subindo no ardor dos combates, o turvava e escurecia 1 Deuses... Nunca mais seriam levados nas procissOes come rajas paralfticos, em palanquins de prata. Naa mais viriam, nas longas noites tragicas, roubar os filhos as mais e apagar o riso nas bocas j uven is. So a face imovel de Budha resplandecia sabre os novas altares. Milhares de coracaes se embalavam rla serena - luz do seu olhar. Foi um instante de pacificacio. Surpresos e fatigados, os demolidores paravam a fitar o Budha. Empalidcceram, sorriram. E logo o ruido de urn martelo assaltando o jade toldou o ar. E viu-se entao erguido' sabre a populaca espavorida urn bronze - 1 4 OS DEUSES DE BENARES negro corn olhos de carbtinculos. Era Kali, a Morte. E um grito, que encerrava uma tragedia, subiu ao cett. Os fracos e os pequenos haviam visto a Morte negra, torva, sarcastica, quando o Shimo legionario acabava de derrubar o ultimo Budha de jade. - A loucura contagiosa e soturna, tomava•nos a todos ern seus bravos e no desgrenhava os cabelos. Esse grito longo, ululado, sem esperanca, ensanguentava o horisonte, turvava a voz ardente das fanfarras, como as enxurradas invadindo uma fonte, Embalde os misticas, os feiticeiros, os panditas, velhos sabios de fronte vincada, cobriam corn preciosas rendas a negra face da Deusa. Todos a viam, eram forcados a ve-la, com o s:at solar de cranios brancos e cabecas decepadas ainda sangrando, a sua vermelha lingua pendente, como urn coagulo de sangue... Eu mesmo tomava urn archote. E seguia os incendiarios. Legiao admiravel de predestinados Frontes, bravos, arcaboucos de herois pandavas. Gladios chispavam sob a chapada fulva do sol. Tocavam a sitt(1 do Fitn e da Vinganca. Ressoayarn sinistras gargalhadas. E havia chagas em todos os coracoes. - Em que pensas, cheld ? o Mahatma perguntou-me como sobressaltado. Hesitei, Urn calafrio percorreu a minha carne... Sonito ou delfrio, deveria eu dize-lo aquele que havia de ser o redimidor do meu espirito? Era mais tacit a mentira. E eu menti —Pensava nos Devas de Benares, respond'. —4Cuidas to acaso que, se nos arrancztm os olhos, recobramos a vista ? —Alt, MahMtna exclarnei sucumbido. Quero ouvir da tua bOca a palavra de esperanca. —E escondts-me os teus pensamentos. Assim as bailadei ras escondem corn sedas perfumadas os dolorosos sinais do pecado. Foi entao que the contei o meu sonho tragic° e humilhante. Era como r,e the narrasse todo o meu Intimo passado, arrancando, palavra por palavra do coracao angustiado, os sinais das dares que sabre ele tinham passado, conservando-os ate agora, como o 16do de um charco, gretado pelo sol, conserva no verao os sinais das tiltimas patas que o calcaram ainda , OS D SES DE BENARES vs mido e mole. Falava doridamente, como se me toldasse a voz urn vapor de agonia. E a marcha triunfal dos incendiarios pas. sava ante os seus olhos, corn os archotes fiamejantes. Crescia a Arvore do Milagre, plantada por nossas maos impuras e molhadas de sangue, num solo maldito. Medrava,* crescia, frutificava, E era o fruto de amargura, que a Rua° aceitava, mas o sentiment° contra ele se erguia numa ululante e ensanguenta,da onda, protestando. Afinal n6s nao haviamos encontrado para a rtibida embriaguez dionisiaca o freio apolineo... A minha palavra doida fazia desfilar diante do Mahatma todos o legionarios, brandindo ferros agudos, corn o peito nu, seguidos de feiticeiros e Cantadeiras. —0' Mahatma! Mahatma! eu vejo tudo com os olhos ben abertos. Ele ouvia assombrado a narracao fantastica e tumuituosa do levantamento universal na Cidade de Luz. Sonho ou delfrio, era decerto a imagem do conflito que anarquizara as almas, reflectida na d6r esteril de urn coracao cobarde. Os homens I... Haviam visto o seu logar de parias no tmiverso ; haviam palpado corn macs avidas a Natureza impudica, indiferente a sua d6r. A Maya era a lei im.utivel e suprema 1 Desvenclara-se,.. a verdade. E o sentido do relativo 'acabava por esmagar a nocao abstrata. Todos os Deuses haviam caido no p6 obscuro do esquecimento, que as monies de Junho nao fecundam em nova e radiosa primavera espiritual. Profanados os altares, derribadas as Imagens Sagradas, como a sede de agua nos longos areais de Jesailmir, a sede do divino, supliciava o pequeno e infinito ser humano. Dos maquinismos formidaveis, rugindo sabre a Ci_ dade o seu alucinado desejo, a sua imensa fome de oiro, nao brotava, como o 16tus do 16do das lagoas, o princfpio fraternizador dos coracoes, no dever e na rentincia. Descontente da desgracada posicio zoolOgica a que se havia reduzido, o homem, levantava a fronte rebelde, e estrangulado pela ansia de nao acabar ..como o sapo e o verme, partia em busca de uma garantia da prolongacao do eu para alem da Morte. Almas vulgares, varria-as de r6jo um yenta de loucura. E iH a OS DEUSES DE BENARES 16 OS DEUSES DE BENARES eu, t que buscava eu agora, atras de que inestimavel Mentira corria atraves dos jangles do meu pats ? Um longo atavismo me prendia ao Mahatma. A seus pes me inclinavam, pesando como chumbo, inumeraveis residuos ancestrais, hibernando a raiz da minha substancia. Sentia-me impelido, num branco sonho de pacificacao para a sombra sagrada dos templos de bassi. Era a mao dos meus AvOs, e de todos os Maiores arrastando-rne para o Templo de Oiro, para todos os templos de Benares... t Incoerencia, delfrio, loucura ?... Nao havia em mim heroismo ou resistencia. A Razao havia trabalhado o meu coracao, como urn tigre estracinhando urn veado. E agora, surpreso e humilde, quasi me sentia renascer, lentamente tocado da magia da vida no bafo aromatic° da floresta. Sim, era pela mao da Dor que o homem entrava nos templos para rezar. Em minha volta a Vida gorgulhava alacre, numa espuma de gorgeios e perfumes. Dos fetos as figueiras a seiva corria, como urn sangue feliz e omnipotente. Da raiz a flor, o desejo de river se transformara em harmonia, aroma e beleza. Manso, porem como tuna centopeia, trepava-me a alma a interrogacao do Mahatma Cuidas to que, se nos arrancam os olhos, recobrarnos jamais a vista ? Eu vinha, Bhtimia ! das terras do materialismo e da secle. Ali ficara no p6 da ruinaria, esquecido entre parasitas, como urn esqueleto num covil de tigre, o meu sonho-de-Beleza. Embalde haviamos tentado imp& a idea etica a Natureza improba e bronca. Heroismo, audacia, sacrificios... afinal para que ? Do verme e dos Rishis o destino era o mesmo. 0 Mahatma olhou. -me com piedade, arrancou-me docemente dos meus sombrios pensamentos. Uma indomavel, misteriosa kap, fazia circular a vida em volta de um centro dnico, que, se chama Dor... Andas como urn cego num palacio encantado. Descem, descem, descem as Aguas do rio e nao perguntam o seu destino. E porque haviam de pergunta•lo ? Z Acaso lucrariam em se revoltar ? Bem sabem como apodrecem as suas irmas do charco a beira dos juncais... Segue o teu caminho, porque o teu caminho é breve e lindo. —Perdi-o, respondi ; por isso to sigo. Rudemente batido pelas ventanias da villa, fustigado pela Razao, o meu sonho vinha encontrar no jangle no ./as seivas e rubidos estimulos, e, a. semelhanca de folhagem nova irrompen. do no halali de urn ramo desfolhado, eu ja encontrava nesse pobre sonho transido e triste o primeiro, alvorocado frnpeto de reverdecimento. Lembrava-me as hervas apontando numa fina penugem verde, por entre o capim morto, aos primeir0s beijos da chuva. Seria uma transfiguracao, uma ressurreiclo. Educar-se-ia no exemplo de humilde simplicidade e calma acei. tack, que me dava o homem no jangle. Esqueceria 0 fragor das lutas e a embriaguez das abordagens. Deixaria de ser o argonauta para se debrucar sobte o arado. Ao nascer do sol, cotovia alegre enchendo de cristalinos ritmos a luz nascente ; ao vir da noite chama do lar aquecendo uma familia de aldeoes. IV 0 Pensamento, eis o inimigo. Para eviti-lo arriscar-me-fa a passar a mao pelo fulvo lombo das feras, ao vir da noite, quando um Sopro escuro sobe das florestas e cobre o sol. Tria cuspir no mosaico precioso de uma mesquita na presenca de rajas moiros ; fora eu, moiro, beberia vinho ; sendo bramane banhar-me-ia no sangue de uma vaca. Obsediava-me o desejo de nao ver, de estreitar, como um paria, o horisonte a. minha consciencia cada vez inquieta e ansiosa, quanto mais iluminada e definida. Detestava as fulguracoes alucinantes do Pensamento gravessado pela ddvida, fosforecendo de angdstia, faiscando, ful. gurando, flamulando na dor e na saticlade, atraves da vida, como um aguaceiro trespassado 'por uma lista de, sol. Eu abdicara, por isso ; desertara das trigicas e divinas legides da cidade de Luz. Mas aqui, ao lado do Mahatma, que soubera IS 4 OS DEUSES DE I3ENARES . aceitar a vida corn um heroismo sereno e inviolavel, ondulava em mini, jorrava e tintinibulava urn instante sabre a minha alma um vago, ritmico lampejo de longinquas energias ascencionais. Sonhos de infante batiam as azas de oiro aos meus ouvidos. Definia-se o meu ser, livre ja das tutelar dogmaticas e obesas disciplinas o sentidci da vida hi muito pervertido, palpitava e se intensificava no ardor feliz de uma ressurreicao, como a semente depositada pelo vento na heraia fecundada pelo sol. E p se me abriam os olhos. Eu via, eu queria ver a Terra, iqUeria sentir a vida ardorosa e multiforme, queria reintegrar•me na crenca redimidora e simples dos Maiores. E, em verdade, as Aguas do charco, opacas e doentes, nao reproduzem, como olhosmortos, a Arvore bela que floresce e inclina sabre elas... 0 lOdo nao te reflete, a Beleza da Vida? E a beleza que é ?I como havia eu de sabe-lo 1 Os que se diziam seus Sacerdotes na Cidade so haviam logrado envolve-la em nuvens impenetraveis, vapor de venenos subtilissimos, poluindo-a, na sua dor cobarde, proclamando-se, em nome da Verdade, destruidores do Sonho, da divina Ilusao que fecunda nas almas a semente de todos os heroismos. Nuvens de ansia, de desengano, de 6dio, de cobicas e calculos torpes corriam a face do ceu. z E donde havia de vir, meu Deus, pela Graca e pela Bondade, o vento que as varresse, como os herois vinham, altos e rijos, pela Rainha formosissima, dobrai o arco de Shiva ? Para amar a Beleza—ensinava o Mahatma—era preciso conhece-la, viva e palpitante, cheia de divinas veernencias e de sobrehumanos estirnulos. Para arnar a vida necessario se tornara aspira-la, possui•la corn' todos os sentidos purificados e vivazes, como o sol aspira as Aguas e os aromas da Terra. Era necessario fecundar todo o sofrimento na esperanya das supremas possibilidades. E os meus sentidos despertavam. Eu ja comeova a t , jr. Nao raciocinava, nao pensava. Queria, porem, numa resolucao violenta, mas dulcissima, rehaver para o meu ser a infantilidade que exalta. Abdicando, sem vergonha einquanto outros ainda lutavam, do'oridos, mas imperterritos, eu apenas desejava a cura detinitiva dcs ineus sentidos. Fora o recruta na linha de Rgo, que, sentindo-se ferido, e perdida a esperanya no triunfo, OS DEUSLS DE BENAREs •r- 19- dos primeiros a debandar. Na- o sabia de que lado havia de voltar a face. Urna invisivel mao me impelia corn docura para os jangles da minha terra e para os templos dos Maiores. Ha quantos anos eu nao via uma arvore, nao aspirava o perfume de uma flOr, nao ouvia a fala pastoril e amorosa de uma fonte I Deixara de sonhar mas tambem deixara de vim'. Da sementeira e da colheita ignorava a alegria. Ao despedir•nos da nossa breve infancia, esquecemos todas as grandes cenas familiares : ceifeiras cursando-se a cantar a desgarrada sabre os arrozais loiros, begarins trigueiros, robustos e risonhos calcando feixes de arroz nas eiras; rebanhos bebendo ao sol posto nos rigueiros, as radiosas festas agricolas, todas as alegrias simples da vida. Iamos em busca da Verdade. E eu havia esperado, a arder ern febre, que bravos poderosos arrombassem as portas casa da Verdade sonhada, nao para me embalar, para me erguer mais alto, mas para confirmar a minha fraqueza. Eis-rne emficti calcado, atribulado, exausto, fugindo a Luz, fugindo ao Raciocinio, fugindo ao Pensamento. Eu tinha ja a certeza de que para as almas atentas seria impossivel, finda a Luta dos Gig -antes, marcar o valor aos trofeus apOs cada conquista, tao angustiados tinha visto no regresso os Conquistadores, uma tragica nuvem pairando sempre sabre a sua auclacia. Eis-me, por isso, ao lado do Mahatma, feito discipulo do Mahatma, corn ele vagueando pelas povoacOes montanhezas e betn dizendo, quasi sem saber porque, o ardor da resolucdo fell; que me trouxera, ern busca dos Deuses perdidos, atraves da Beleza e da Docura. Uma stibita revelacao, como uma flar abrindo ao vir do inverno num chao maldito, mos restituiria de certo, apagando na minha carne a tatuagem dos ideais rebeldes que urn dia me haviam exalcado ate ao ceu. Eu pedia agora o que havia arremessado para bem longe como uma grilheta que nos envergonha e urn Orr° que nos diminue. E ansioso, como urn exilado que regressa ao torrao natal e ye distante a curva dos seus montes, eu suplicava :—Vamos a Benares, o' Mahatma! 2 Porque e que te demoras aqui, a dois passos da Cidade Santa? 6 - 711°' OS OS DEUSES DE BENARES 20 V Entramos no .Jangle. Em pleno Jangle. Entro pela primeira vez no tempto, onde tudo e sagrado e extasiante e belo. Do gest°, da atitudc!,, da desinvoltura das bailadeiras vegetais, nansica dos ventos, dos casebres de barro e de col no as florinhas silvestres, tudo 6 grande e casto e voluptuoso e frernente. E' pela priweira vez que as minims maos nuas, ainda ardentes e tremulas, tocatn a carne viva e divina da Terra, o tneu peito encosta-se ao seu, como uma ave frienta no calor do ninho• Despe-se, desenfeita-se, desagrilh6a-se a minha alma para se lavar, para se purificar na agua lustral da vida, neste claro, lumiaoso rio em que as impurezas e as imperfeicOes se transfiguram, se transforman em rittnos, em notas do hino universal. Na longa, 1evc e cariciosa sornbra do Jangle sinto.me ressurgir de mim proprio, como a herva surge do ehao ao vir das prinieiras chuvas de lunho. Vivo num templo onde tudo é Beleza e Harrnonia. Esqueci as casas da Cidade, onde habitam os setins e os vicios, a ambicao e a rnisdria, e onde ao desengonco das formas, a desenvoltura rnais ardente tAnta vez zmpresta um brilho capitoso de seducao e de embriaguez. Aqui revive o cobarde, que veio exangue e lasso das lutas sem nome para entregar a alma a excelsa, esplendida e religiosa poesia da Vida, como aos bravos maternos uma crianca doente. Nao sei se perto de milli esta o Mahatma. Sei apenas que estou mais perto do ceu, quarto mais da Terra me aproxitno. E é no seu halito, seu bafo nupcial e arotnatico, na agreste e divina docura da silva sagrada, que se ernbebe e se subtiliza a minha dor. Os aieus sentidos sao como cordas de oiro, abertos de par em par, para receber o Genio escultural da Beleza. Situ, a Beleza da vida 6 feita das coisas pequeninas, de fealdades, de sacrificios e sofrimentos. As sornbras, os elaroes, as tintas da grande tela jorrarn de t6da a parte do 16clo e do p6, dos 4spinhos e ate do gel°. Fluem e jorrarn da mesma fonte, Aguas ao nnesmo rio, codas, espumas do mesmo mar. Reconheco, Saitamente reacordado para a perc.epcao do simples e do vcr, EUSES DE BENARES 4 at dadeiro, que sdo as miserias, criadoras da Piedade e da Ternura, que embelezam a Vida. Sinto-o agora, e nao sei porque, choro. De urna tao grande, esplendorosa e palpitante realidade fisica 6 tao facil A nossa alma, nela encarnada, reavivada ji em nos o sangue dos Maiores e charnados ao reconhecimento da mais sagrada das tradicoes; sim, 6 tao facil a nossa alma a ascencao as grandes realidades morais. Abrem-se entao suavemente as asas na luz loira, divinal e docemente emotiva e criadora, diante cia Beleza fisica para o voo esplendido da Beleza moral ! Vou subindo, sinto que e uma ascencao redentora, na luz fulva, nesta luz ainda humida e marmura que ernbala as almas e fecunda o chao. 0 sol atravessa, trespassa, alaga o arvoredo ; estende-se cariciosamente sObre os basaltos, como se houvesse de pedir-lhes perdao de os ter crestado e endurecido no verso sera piedade. E se tudo é assombroso, tremenda, formidavelmente colossal e soberbo e ritmico na vida da Floresta, eu nao sinto, comtudo, a enorme e esmagadOra, misteriosa docura da Terra. Os seus con tactos tem a feminilidade voluptuosa e casta das airosas noivas de Hind. As suas palavras, sao grandes e ternas como as de urna mai c as de uma Virgem. E' o estimulo para as lutas quo ennobrecem ; 6 a licao do sonho magnffico e imortal que exalta os coracoes, é a sugestdo da perfeicao espiritual que me veem das hervas e dos robles, das pedras e das Aguas. Entrego me a Terra, e sinto que ela se oEerta a mim, viva e veemente, corno o seio amoroso e imaculado—tao nobre e perfeita na sua grandeza, na sua emotiva docura e no seu inesgotivel amor, que nao conhece tedio, saciedade ou fadiga. Ah, parar, morrer aqui num extase ; fundir-se, diluir-se, renascer atraves de,sse infinito esplendor da Formal E vivem aqui os tigres e os capelos, formosos e terriveis Sacerdotes de Kali, a Deusa da Morte. E a Terra acolhe-os corn os mesmos bravos, estende-lhes as mesmas maos cheias de &divas, leva.lhes talvez a mesma sugestao do Belo.... Nao, nao, o' Pritivi, to nao es impiedosa e cega I Sou eu qug nao desvendo o misterio, sou eu que o torno cada vez mais 'maccessivel, mais denso e escuro e alucinante, o' Terra adoravel ! - — 4 t2 OS DEUSES BENARES U. Mahatma adivinhou os meus pensa. ...E caminhamos. mentos, ou ele proprio se deixou enlevar nesta ebriedade de Vida. E nao Pala.... Da Terra eu so ouvia as grandes palavras de perclio para quern a esquecera nos anos radiosos da sua vida. Todo o meu ser, comovido e surpreso, reclinava enleado no presentiment°, quasi na certeza de que eram para o men sofrimento de hotnem e para as minhas feridas de vencido as consolaciies supremas e o supremo electuario da Forma inumeravel e da Harmonia imaculada. Vinha-me na voz religiosa no vento, erguendo-se como urn cantle° nas naves de um templo, a promessa de uma ressurreicab espiritual, que jarnais tentara esbocar can a tinta da mais palida esperanca no meu sonho alquebrado e morrente. Eu vejo ria Arvore urn corpo que levemente, ritmicamente ondula numa dansa que é urn poema na maravilhosa euritmia da sua forma adolescente e perfeita ; o veio de aqua transforma-se, ante os meus olhos, ern flama de grata, em perfume de cancao sonhadora e exaltante, em licao da rnais elevada e pura harmonia. Esqueco, sob o gracioso baloicar do arvoredo, o anacronico delei. to dos bailados nas festas dos pagocies da minha Cidade, e ressurjo, numa era distante, em que, da pantera as pairneiras, c do gado ao homem, se sentia correr, como utna divina chama de amor e uma hiptiOtica cancao de adolescencia, o mesmo sangue vermelho e forte que tudo unifteava e fundia, numa suprerna, lirial c apoteOtica melodia subindo, subindo sempre, como a voz de um Deus ink° c apaixonado e cotno aroma de urn jarditn fl orido. Eleva-se aqui, deste solo abericoado, uma voz potente e, ao mesmo tempo, fetninina e dOce. E' a magestosa, opulenta, so. berba expressao da Forca e da Grata, embalando c exaltando, como a voz de uma Apsara e de um Poeta. Beijar aqui a Terra, ou ajoelhar-roc para meu desejo. E e utu desejo vivo, alacre, veemente, que me trespassa o coracao, corm um elarao de luz nascente atravessando urn rubi facetado, e sabre o imp coracao floresce, cotno uma bka flebil e Formosa de noiva rajputi, num grande beijo de amor e de volapia. OS DEUSES DE BENARES 33 VI Sob o luar macio, naquela primeira noite de iniciaclo, no jangle, eu sentia meu coracao vibrar num sobressalto agudo. A ponta de uma saudade o despertava como urn lino gume rocando a carne dolorida de um vencido. Na Cidade, que deixara, alguma coisa ficava a preader-me ainda o Desejo. Interrogava-me. Rebuscava a minha alma coal. paharis que revolvem as ruinas de urn muro onde se oards lhes esconde, mal ferida, uma cobra de capelo. Meu Deus 1 quando seria completo o olvido na minha almal. —Nao dormes, chela ? perguntou-me o Mahatma. Estendi-me no chao sabre uma esteira de ; unco, a seu lado, sob as mangueiras altas. Da floresta vinhatn murmurios de beijos, aromas de divinas virgindades alvorogadas na esperanca de urn noivado. Paisagem de magia e voluptuosidade no kite lunar. Suavemente rocada por uma transhicida aza de sortilegio, rumorejava, fremia no folhedo a alma vegetal num extaiie amoroso. Urn marulho de cascatelas distantes envolvia tudo num tenue vet' de perfumes. Cerrei os olhos, embalado na docura de vozes macias, que diziam o sonho fecundo da silva tutelar e sagrada. Erguiam-se lentas as minhas lembrancas, como os feridos ap6s uma batalha, corn nocloas negras de sangue e de vergonha. S6 uma dentre todas sugeria o vulto esguio de uma princeza no meio de urn bando de parias. Dir-se-ia, ao ve-la el.tremecer, que the tocava a pele unida e perfeita o aspero dorso de urn crocodiloVulto familiar de idolatria e loucura, L como poderia esquece-lo ? A sua presenca havia tanta vez levantado ate as nuvens a minha alma abatida, alas ao tocar aquela carne feita de llamas e de langores uma interrogacao havia invadido todos os recantos do meu ser, como um leopardo entrando, ao vir da noite, numa cabana de pastores desarmados.—Perpetuar a Dor, perpetuar a Sede, a Revolta g que mais fazia o amor de urn homem e de uma mu lher ? E nao seria satanico dar a luz, crear na paixio, que enleva, almas filhas da nossa, para tragedias sem fim e sem none ? W5 IMAJ5E5 4E lam' N AKE'S Mas a Apar.c:'o inclinava agura paramim a taca de sortildgio ; vestia as minhas in:. 'as de urn alvor de alvorada. eu invocava todas as tragedias, E de lembranca en, amor. todas as lamas, t3dos os es`asmos Noites de Lscivia sem fim ! Recordava•as como o paria que, doido de sede, bebe sem horror a Agua mortifera de urn pantano. Aquela hoia o Bairro Branco, na cidade, era urn dihivio de luz. Abrian• se as doiradas portas das bailadeiras ; ardiam resinas raras nos pivetes. Calicoes subiam ao ar,, como dos charcos maus sobem espessos vapores plenos de miasmas. Havia languidos apelos na voz das murdangas, solicitacoes a carne sublex'acla por uma rajada de cdu. Entrava-se, absorvia-se a podridio como UM perfume. Bailadeiras de carne rija, que se entregavain a pastores .sabre a herva, traziam para a cidade filhas ao despontar dos seios, na rubra esperanca das riquezas perenes. E todo o Bairro Branco era uma primavera, em que se penetrava corno num pal6cio cheio de perfumadas inaciezas narcotizantes. Pequeninas, casavam-nas, pobres sacerdotisas do pecado, corn arbustos fibres alvissirnas, o tulosse ;segrado, os hibiscus, 3s mogareiros. E eram lindas essas ntipcias infantes corn arbustos e fibres. Depois quando, ao vir da adolescencia, o seu corpo era um nacar entreaberto sob o sari alvissimo, uma Lei antiga e inviolavel fazia delas um filtro erotdgeno para coracaes nodosos como cepos, mocidades enrugadas como ameixas. De rocar nossa carne esfregada corn essencias preciosas vinha desbotada a minha vontade, transido o meu desejo. Para all eu havia levado o coracao, como os bandaris levam a Benares os fiihinhos doentes. E embalde sonhara corno urn gato em Dezembro, alapardar-me ao borralho das lascivias felinas e adormecer. Oh ! esplendor da pele morena ! oh, cheiro de femea tentando e aturdindo ! Todas as asperezas, que uma vida sem esperanca acumulara no meu espfrito, coma as panteras amontoam no covil os ossarios das presas, eu as julgara amaciarem-se na radiacao de juventudes requintadas, ebrias de amor. Sim ; era bem certo, a luxdria desenvolvia a, personalidade, era como um escultor trabalhando em marmore informe. Todo RDEUSES EUSES DE BENARES o Bairro Branco parecia dizer-mo. Nevroses, fraquezas, torpezas, tomavam aqui uma forma tentadora. Mas o Tedio toldava o ar, caia do ceu como unaa fina poalha de vidro nas alms urn instante erguidas sabre a asa do delirio. Eu sentia-me feliz na evocagao do Pecado. —Amor I Amor !... dizia-me o Deussar Branco votando a sentar-se ao meu lado. Z Ja o provaste? Ri, maldize, blasferaa... Ern teda a parte, como um imperecivel aroma, te envolverA a alma. E' a tua fatalidade fisica, o teu destino. 0 lotus, para atingir fiorindo a forma bela que assombra, ha•de mergulhar a raiz no lado das lagoas. Assim o homem, para beber na Taca da Vida o vinho dos supremos extasis, ha-de enlouquecer de amor... Maldize, blasfema. Tira do fundo da tua alma as palavras de como urn cao levanta pilhancas da lama das sargetas... Aquele velho tonto, que to segues, quando ve passar urn cortejo de baths, todo se exalta e remora. E' como se um bando de ayes poisasse de repente sabre uma velha figueira moribunda e solitaria ... Se o visses ! Rishis, Ascetas! Vos outros charaailhes santos, inacessiveis as daces solicitagoes do Pecado. Ai, pobres doentes I e Que faz urn tigre sem dentes e sem garras no meib de urn bando de veadinhos e chitelas ? E' como um . sao que nao morde, born companheiro do gado manso... Deixa-os clamar que o amor é mentira ; deixa-os falar. Tu bem sabes que, misoginos ou feministas so encontram na mulher um delicioso instrumento para perpetuar a especie. E gritam depois que perpetuam a Chaga, a Lepra, o Suplicio... E' verdade, d bem verdade... Mas que remedio? De ouvi.lo, o terrivel Deussar Branco, vivo e Macre, como as Aguas de uma cascata, cada vez se enraizava em mim a certeza de que havia verdades que nunca deveram ter sido conhecida :, Era ten-Is/el o sarcasmo no seu riso. Parecia urn vergaiho de arames avermelhados num fOrno aceso. Falava e ria. E palavra e riso, jorrarido em uma alucinante desordem, vergastayarn-me o coracao arrancando-ihe finas tiras sangrentas. —Bern te vejo, cobarde, eu bem te vejo a alma. E's como um paria atravessando urn deserto imenso e ardente. NI° yes a a6 r OS REUSES DE BENARES sombra de uma palma. Nao ouves o murmario de uma fonte. A agua que bebes é a sangue de tuas veias ; a sombra a que te acolhes e a sombra ma da tua dor. Quedava urn instante, como o narrador que sabe graduar os efeitos. A monstruosa masica do seu riso feria e maguava : —Amor I Arnor !...0 amor para ti ë agora mentira, e foi a concupiscencia insaciavel de urn tisico. Pobre vencido I d Se regressasses a Vida, remergulhasses na alegria da Luta ?... E ria alto, passando do pensamento ao caos, velando a lin. guagem em uivo sarcistico e sangrento. —Oh, como a bcm ter a flexibilidade muscular dos jaguares, o sangue vivo dos leopardos I... Os santos sao a Lepra da Terra ...Anda, vem comigo. E ria, dir-se-ia que a sua boca vasava sabre a minha carne urn fio de metal derretido : —A Luta divina, que volapia Ergue-te ; retoma os teus punhais. Tu nao ve5 as lutas que se travam em volta de ti. Sores invisfveis baterh-se a teu lado corn o heroism° feroz dos pandavas. Tudo luta. 0 ardor dos combates mais dace que o mel. E logo mais docemente Que queres ? Aonde te leva esse desejo cobarde de pada sem brio ? Para a vida simples e natural dos teus av6s, boeiros, pastores de ovelhas, lavradores, boiraguis? E' tarde, meu filho, a bem Lard:. As brasas da lareira extinguem-se ; a familia é urn organisrao ern dissolucao, 6 urn torrao de acucar numa pOca infects... A mulher... mas tu esqueces, tu nao sabes o valor da cantarida magica. E procuras a deusa ingenua, que cura fericlas ao s:u boeiro amanha e engrinalda a dor ao seu artista... T5.o )onge estas dessas velharias, dessa alforreca que dava pelo pomposo nome de moral. 0 contentamento, a alegria, o prazer nao sao agora, como antigarnente, virgens sem pecado, de candida face. Sao uma taca de vinho capitoso e espumante. Enche a tua taca... Vamos...Ergue•te. Ergui-me desvairado. 0 luar manava s6bre as arvores coma uma fluids soda de (1 , .tsejo e de afago. Era como se urn deus soltasse a sua noiva o sari de luz na noite de noivado. E o sari 1. F OS DEUSES DE BENARES 27' cilia -sabre a Terra, maravilhosamente branco, ensopado num sua• vissimo perfume de sonho amoroso adolescente, entre nuvens de sandal°. Havia solucos, queixumes, langores de comibios conceicOes na floresta. A voz da folhagem aveludava-se na docura de urn epitalamio, tremula e suplicante. Mas a minha mem6ria era como uma selva escura onde, no tragic° silencio da noite, feras rugiam e se dilaceravam. Tbda a cidade de Luz surgia aos meus olhos. Marmores, jades, maraviIhas que faziam da Terra urn paraiso. Mas sob a fulguracao da opulencia radiavam, como num mar maldito, ondas de carne lacerada e sangrenta, vindas de nao sei que ao arvoroso lugar de Parias e herois mostravam nos olhos todo o terror das lutas sem esperanca e a angustia das vitorias sem proveito. Alguma No coisa faltava aqui aos homens; todos os sores sofriam. Maw das fanfarras havia gemidos entre gargalhadas t a Dtir do solucearm.SObosftinaFme vivas sabre homem poisavam a sombra viscosa lembrando chagas e branca de uma deusa. Os risos vestiam amargu. a pele ras, como urn musgo efemero veste a aspereza dos basaltos. E sob as palavras mais daces passava, longo e surdo, um rumor de raiva impotente e represada, todo o ardor da rebeldia e da carnagem. A Miseria e a Opulencia, a Abundancia e a Fome bebiam na mesma taca o veneno das lutas e dolorosas agonias. Atravessavam o deserto envoltos em seda ou cobertos de andrajos; mas pelo mesmo vento mau varadas sob a ardencia mortal do mesmo sol de peconha. Caravanas de dor corn elefantes de xaireis preciosos, levando na cauda, acaimada e faminta, uma dolorida matilha de 'Arias, o seu caminho era uma fina poeira de vidro candente, que lacerava os pes rids, e, calcada corn raiva, enchia o ar tornando-o irrespiravel. E embalde sonhavam urn oasis. A Miseria, a Fadiga, a Ansiedade alucinavam. A uns despedagavam-os de Fome as entranhas de outros o coracao era uma chaga avivada eternamente pela garra vidade urn tigre. A Fome do corpo, a Fome da alma, a Dor do Pensamento 0 mundo era, corn certeza, a hisiaria natural da DOS. Eis a 7 28 = yOS DEUSES DB, BENttRES 'OS D USES. DE BENARES verdade, que a todas as almas se impunha, nenhum coracao repelia e em todos os corpos se proclamava. e E a Conquista Final da Omnipotencia humana onde estaria ? Na destruicao do planeta, no aniquilaraento dos seus habitantes? 0 bravo redentor seria talvez o que encaminhase o homem ja atingido o cume, a este fim inglorio, como urn mddico piedoso subtraindo a Vida uma adolescencia comida de lepra. Dos maquinismos formidaveis transfigurando a Matdria nao vinha, nao viria jamais o supremo electuario do resgate. E o Amor ? z Nao seria o oasis sonhado ? z 0 Amor nao era porventura a imortalidade, triunfando sempre da Morte ? Acudiam-me as palavras que os Poetas the diziarn, e eram como resinas raras queimadas em pivetes de oiro nuns altar ; relembrava as palavras dos sabios serenas e fortes. Ah, como nao havia'de ser exaltante e redentora a certeza de que havia em nos um atom, um gra°, uma celula capaz de evitar o desaparecirnento total do nosso set.' ! E uma rosea neblina subia das misteriosas raises da minha substancia, vestia a minha fraqueza l cobriandelvtugmcobardiqeulvmnha carne. Mas o Deussar Branco voltava a sentar.se a meu lado e mais uma vez soltava ao meu ouvido um assobio agudo.—Ah! Ah! A cOlula imortal ! Vamos, falemos nisso. E' a minha especialidade, sabes ? 0 germen imortal. A imortalidade Sim ; ha sores imortais e nao sao Deuses. Crescem, evoluern, dividem•se e nao morrem. Acabatn de subir, subir e param no tam dividem•se retomam a forma inicial e logo rnultiplicados, recomecam a marcha ascendente. Tornam a crescer e tornam a dividir-se. Uma vez, dims vezes, milhares de vezes, infinitamente. Eu...sei isto...E tu ? Ignorava-lo ? creio, nao. Tambdm o sabes. Ha sores imortais, mas nao sao Rishis, nao sao Mahatmas, nao sao chelas de Mahatmas. Que pena. Sao as algas e os cogumelos...unicelulares. Protofitas e protozoarios, lembras-te ? Criaturas de nomes exquisitos, simplissimas e humildes, inferiores a ti, homem cobarde, que te nao aguentas corn a heranca dos .Maiores, doido sonhador do Absoluto, inferiores a rnim, Deussar L a9 herOico, tnensageiro da Luz, demolidor dos idolos, eterno criado de Novo. Tendes o vosso estatuto especifico um tanto inclemente, como se fosse ditado por um Deus bebido. Nao vos permite a subida ao cume para vos dividirdes entre evohes e flores. Nao podeis deixar uma parte do vosso ser, multiplicada miraculosamente a colonizar ao vosso lado, sob o mesmo tecto, emquan to a outra, o vosso prOprio ser, recomeca a evolucao, rehabilitando-se e transbordanclo como uma tags sob uma torneira aberta. Nao o sabias tu ? Ah ! Ah 1 Ah ! Eu cerrava os othos corn raiva. Nada queria ouvir. Mas tat como os personagens implacaveis de urn delirio de alcoolico o Deussar falava sempre mais claro, grave como urn Doutor, sereno como urn puroito. Eu via-the o gesto largo, a bOca cheia de sarcasmo. Parava urn instante e tamborilava com os dedos sabre o ventre nti, assobiando uma cancao sangreuta. A sua ironia, que era como uma lamina de aco, logo se desfazia em sorrisos como pedrarias, em urn fino granizo glacido e irisado.. ---L Mas tu tnaldizes a Morte ? E' por causa da Morte que segues o velho tonto que dorme ai sabre o chp coin as boiadas ? Af esta porque te fizeram ;Abio; e te ram a Rae° e te vestiram e cobriram de luz. a nudez da tua alma. Ai esta. Um poltrao com ulna armadura de gigante... Mas ve ; a Morte honra-te, eleva-te acima do organismo rudimentar, dotado de perenidade, mas incapaz de lapidar uma frase ou de dancar urn valsa. A Mode ! Se tu the visses a face bela, de estacao florida ou de outono cheio de frutos, face da terra beijada pelas primeiras chuvas da moncao nos oiteiros adustos ou na silva tutelar e arnorosa... A causa da Morte d a evolucao das especies E pensavas no Amor... Coras ? Eu bem te vejo. 0 Amor, mesmo acaimado e preso, apertado nos tentaculos do artificio, com regulamentos, etiquetas, grilhetas, disciplinas, o amor para ti d ainda esperanca da embriaguez feliz e fecunda. Mas, 6 filho de Sabi° com a reproduclo sexual que apareceu a Morte. Dessa atraccao a que deves extases, arroubos, delirios, a Morte é irma gdmea. Nao confere, a imortalidade a tua carne, nao. Mas por ela sentes at ao deliquio a docura da Vida, A lascivia centuplica o dinamismo das tuas faculdades. A 30 OS DEUSES DE BENARES carne viva dilue-se, funde-se em aroma, harmonia; imortaliza-se em luz na posse efdmera de Oda a Beleza do sol as hervas, ofertadas a ti numa taca de feitico, a boca da Mulher. Eu, como uma estatua sentia-me pros° ao chao ; nao queria ouvir, e a voz fina e fundente entrava-me na alma num largo sOpro de loucura, e logo transformado em uma oracao de sapiencia esteril e dura ou uma rdstea de sol, viva e ritmica, a beira de um agonizante. Dir-se-ia que um doido proclamava alto, alucinadamente, o Grao-de-Oiro que' juntava em dias lticidos no cdrebro doente, vibrando-lhe na voz a espacos a vida alacre e rumorosa dos jangles de Hind. E de quando em quando o seu Pensamento lembrava a barra de oiro a que houvessem aplicado, nas Casas de Moeda, a marca do contraste, para logo se perder sob nuvens de palavras rebeldes e desgrenhadas, irrompendo em jactos de fogo, que cegavam. Era, urn instante, a lOgica tenaz dos espiritos curtos caindo, como uma pedra de urn andaime alto sabre a cabeca de uma crianca. Logo, porem, a loucura silvava na voz grave, fazia-se lava, desfazia-se em pó. Ele trazia para mim uma idea ja feita aflicao e ansiedade, punha-a diante de mim como um bacilo virulento diante de came ainda viva mas sem o divino dom de resistencia. E eu sentia como que a refraccao das atmosferas altas. — Volta comigo a Cidade, volta, pedia corn docura. Aquele pobre velho, o teu Mahatma, é um vencido. E tu chama•lo Aiestre. Porque ? Vai restituir-te os Deuses ? E' tarde, meu filho. Nao poderzis retroceder. Nos levamos seculos para chegarmos a estas alturas, onde nao ha Rishis nem Deuses. Seculos de Dtivida, de Lutas e de Triunfos... E a tua vida sao quatro dias. Ali, Dc'ras de Benares I Devas de Pandarpura 1 A certeza de que existem é como a tua pele mesma ; ninguem a arranca sem te causar a. morte.... E o Mahatma ? Tanto como eu ele sabe a vadade. Alas d urn cobarde, que mente ; usufrtie a escravidao das alums. E' manso por hipocrisia ; a mansidao atrai os fracos, e os feridos. Vive na sombra para que the nao vejam a ironia nos labios, neon o desesp6ro nos °tilos. Abdicou, mas conserva o amor das vassalagens, o desejo de mando, a Vaidade vestida de camponesa. Vern comigo, OS DEUSES DE BEWARES —Nunca! respondi. --Como se eu te nao conhecesse I Has-de ser meui hi; .de passar-te a nuvem. Eu quero fazer de ti urn homem, renovar a tua actividade cambaleante, limpar o teu c6rebro enfarruscado nas minas da metaffsica, monda•lo das daninhas ervas ancestrais.` 0 teu novo sangue sera todo audacia e fiama. • Has-de amar depois. Serb o criador. Tu ja esqUeceste, tdoja repudiaste o C6u. E--corn que Pena to digo I nao podes ver, nao sabes Or a Terra. Vern comigo, • —Eu ?I Nao 6 por tua causa que hei-de perder Dhelli. Nao medra o trigo Ware os basaltos de Rajputana. —Has-de- ver, disse imperativo e amoravel. Nao podes amputar-te, arrancar da tua •substancia o teu pensamento. Seria • corn se tentasses arrancar a tua pele por causa de uma sarna . Vem.fatigado, cheio do p6 da jornada, maguado e sangrando,.teu. pobre desejo. Amesquinha-se, humilha-se, torna-se infinitamente pequeno para corn pouco se contentar. E' uma Hugo, meg filho, uma Pura ilusao. Da-lhe, a esse desejo eangado de tentar a conquista do coil, di-the tu 6sse pouco. Uma jornada serena e dOce ate Benares, o arroz e o caril nos parans, visitas aos templos, encantamentos do jangle ... E;logo te pedira, - te exigira coisas novas, nos alvorocos requintes. 0 teu desejo nao descanca ; restaura.se, apaga os vestigios d fadiga e avancaE cuidas tu que o espirito do homem, a ambicao do homem, a vaidade do homem, o desejo do homem %do transformame eni pastoras vestidas de saris grosseiros levando as fontes, ao,p6r do sol, os rebanhos mansos ? Tiniram ao longe campainhas de oiro, a voz de uma singa enrubesceu a lua. E, stibito, no azulado c6u nocturno eu senti deslumbrado passar uma grande asa de piirpura relumbrao.clo como a flamea reverberacao de urn desejo. E o silaneio se fez, profundo e como fluido. Esqueci tudo. Uma esponja ensopada em perfumes passou sabre a minha alma, levando t6das `as minhas lembrancas. Pareceu-me que deslisava num sonho para a Morte, envolto em urn sopro de auroras boreais, como sabre um soalho de tartaruga. Devia ser assim a more nas rendas do, berco, embalada pela voz dulcissima do Amor. • 32 OS DEUSES DE BINARES l Todo o sangue me afluia ao coragao vivaz e odorante. A voz da singa era mais fervorosa e turbadora. Eu esperava, como nos circos as criangas ante a jaula dos leiies, que algu ► na coisa grave sucedesse. Ia ver talvez os Deuses dos Maiores nas suas armaduras de logo. Onde estava eu ? Femininos aromas, exalagoes de jardins, bafos de primavera envolviam-me como sedas suavissimas. Na relva tumida de veios de agua cram os vagalumes como uma chuva de pingos de luz irisada e palpitante. Dir-se-ia que a. passagem de uma ranim pandava haviarn espalhado orvalhos de pedrarias, E lentamente um vulto esguio, envolto num sari transhicido de mini se aproxima. Os guisos nos seus pes tilintavam como cristais. Era a beleza infinita da forma encerrando todo o esplendor da Vida. E os pes salad° nus do sari branco sugeriatn petalas de flores. 0 donaire, a leveza, a risonha fragilidade do seu ser penetravam.me tai como o Mitt) enfeitigado de um rosal ern flor. Diante dela nem um desejo .de posse fisica turbaria o coragao do Homem. Como uma palheta de sol rogando um rubim, a seus labios assomou um sorriso ; a sua voz, de uma tenue magia, iluminou a penumbra dke e silente :—Vem comigo, dizia. Buscas o Alem ; a Terra a-te hostil. Ao meu lado has-de sentir que a Vida tao efemera a si mesma basta. Seras como urn ago a quern uma Deusa houvesse dado a vista num jardim vedico. z Quern te impede de sentir a docura da Vida, a carfcia longa e apaixonada e redentora da Natureza ? A D3r do Pensamento ? A Dor é tua creagko de Artista esfomeado e motto de sade. Mas no (undo de sua substancia ha germens de heroism°, alegrias, aspiragoes, desejos, que arrebatam. HA um jou° da energia, que transfigure. Os Maiores fizerarn de ti urn tesoiro enorme. Tu nao es apenas um artefact° ; es um cofre, um escrinio, urn celeiro. Mas ao lado das joias raras, dos rubis e dos berilos, estao as facas, os machados, as langas, os punhais. E conservas os trofeus .mais belos de tantas lutas espirituais, as perfeigoes do ser ao lado dos vicios imundos. So te recordas da vohipia das abordagens. Transformas o Desejo em cobiga, e multiplicas, doida, desesperada, alucinadamente, como urn Deus que perdeir o tino, as tuas Necessidades. A Terra nao te OS D USES DE BENARES 33 basta, a ti so I Quererias amassar o teu pao num sangue solar. E cis-te esquecido de ti mesmo. E os teus triunfos sao vergonhosas derrotas. As tuas conquistas, coroas de espinhos. E eis-te rebelde a maldito, armado ate aos dentes, transformado em tigre assanhado que, mais do que a carne da presa, saboreia a voldpia de matar... Ern tOdas as almas, do paria ao bramane, ha urn sonho de triunfo, uma Oro criadora. So the pode faltar a luz que a fecunde, a mao que limpe de herva daninha o solo onde hi-de medrar a boa semente.... Vein comigo. Eu sou a mulher, a Graca, a Perpetuadora das estirpes altas. A minha palavra sera senipre o fruto ardente da boa vitoria, o filtro das supremas conversOes... Ve-me ; Porque baixas os olhos ? e Nao es acaso o Homem abre bem esses olhos... Eu nao sei como os meus olhos se ergueram ate ela. Via-a, 0 peito inflexivel, cingido por urn chole macio arfava levemente. 0 sari exalava um perfume de indizivel suavidade. E ao fita-la, altos pensamentos redentores se escalonavam no meu espirito, como guerreiros pcindavas, como broqueis feitos de blocos de 301. A enigmatica maravilha da Forma, eu a tinha, pela primeira vez diante dos meus olhos bem abertos, magnifica no seu involucro de luz. Era a primeira vez. E aqui se operava o milagre. Na Cidade nem lograra sorver longamente, como a Terra absorve as primeiras chuvas da moncao, o encanto fisico da Beleza. Fora urn ago palpando pedrarias, tiaras de rainhas, joias de deusas. E agora devassava, num so pequeno ser delicado, o seu misterio rial, no seu aspecto fisico e na essencia da sua alma. E Ela :—Ah ; ves ?...E exalta-te, vem sentar-te a meu lado. Eu sou a criadora. 0 meu sangue, a minha came, a minha alma sacs a pureza, que nada macula. Eu criei os Deuses da Terra... 0 Amor. 0 Amar nao é porventura a garantia da perpetuaclo da Vida ? Nao d a forca misteriosa que enflora a Terra ? E era uma divina miisica o seu sorriso, poisando na minha alma corn a graca de uma asa branca e leveira. Fazia agitar dentro do meu cranio um sonho de gloria e de mando. E como se lesse no mais recondito da minha alma, agora rejuvenescido e palpitante : —Vem comigo...Regressaremos juntos a Cidade. —A' Cidade ! exclamei desalentado. OS DEVSES DE BEARDS E o meu pensamento desceu saitamente da luz dos seus olhos a minha alma coberta de andrajos. g Quem era Eta, meu Deus ?...Eu tinha visto a Mulher, tinha quasi sentido nas minhas rnaos, como uma andorinha, a sua alma ntia e dolorida. Nao ; nunca mais iria atras das ilusoes que, ao contacto das nossas maos, volvern, em cinza e pa. E numa resolucao violenta cerrei os olhos. —Ah, to it'd() queres ver-me ? murmurou Ela numa voz quasi extinta. Mas sei que has-de voltar. Entao...serei tua. 0 desejo de viver hi-de salvar-te. E, passando leve como neblina, espalhava no ar um perfume de grata. Para mim era Ela uma formosa arvore que podia produzir o fruto maldito. Mas o seu claro sorriso deixara a raiz da minha substancia, sem que eu soubesse, urn largo raio de sol. Sentia-o vivo e nnirmuro, chamando-me a vida, obrigando-me a bemdizer a docura, a beleza, a harmonia que me haviam invadido. Aquela virgindade, cheia de aromas e de divinos ritmos era feita talvez para armar o. braco aos Conquistadores de outras eras, mais inflexiveis que o aco dos seus escudos. Mas a minha existencia estava irreparivelmente sujeita a Dor. Oh, se eu pudesse possui-la sem esforco, lzvadas todas as nodoas da minha carne 1 Ela era ao mesmo tempo uma ancao e uma epopeia. Havia na sua voz uma n6voa aromatica, como na das Aguas atr vessando urn jardim florido. E na sua palavra eu tinha visto ful ei r a mais radiosa imagem da Vida, como Lacximi, a doadora d ventura, no fragil e lino calice do lotus. Dir-se-ia que o seu pequeno coracao de ave palpitava submerso no sol. E para e•rirnir a minha emocao diante dela embalde eu procurava a pa avra nas profundezas do meu ser, comp urn mendigo busca uma ► oeda de oiro perdida num areal. E contudo, numa resolucao vi lenta, eu queria apagar da minha mental -la a lembranca do seu perfil de medalha. —Seria a Tentacao ? Seria o Pecado ? 0 que diri o Mahatma se o soubesse ? Via, de olhos fechados, a Terra for osissi ma que me dery a esperanca suprema. A reconstrucao do eu corpo comecara ali ; eu ')ern a sentia. Uma rajada enrijav os meus mtisculos, elasticis.tva o meu ser, punha na minha alm energias imprevistas. E eu, cobarde e ingrato, cedo me deixav prender OS DEMISES BE BENARE5 1 35 pelo Pecado. Quantas vezes, na selva augusta, a voz do Mahatma me dizia, erguendo-se no silencio, tremula e humilde : —Os elefantes rasgam-se quando atravessam espinheiros ; as chitelas passam incolumes. Assim 6 a Vida. Para os humildes humilde e suave. Eles sao a folha leve sObre as Aguas do rio. Sd o seixo mergulha e se enterra no lado. E a Deusa de sari branco nao seria, porventura o orgulho, a Vaidade que abate ? E o Deusar branco tornou a falar-me : —Tu tens medo ? —Medo de que ? —Tens medo de mint ? —Medo 1 de ti !...Aqui a meu lado dorme o Mahatma. —Ah ! tu pertences-me ! Eu sou o Mestre, o disciplinador do teu espirito. E' das minhas veias que corre para a tua alma o sangue que a nutre. Sou o rutilante, o flamejante Espirito de todas as Conquistas humanas ; o Deusar Branco que chameja sebre todas as sagradas revoluc'Oes, como o sol inextingufvel. Eu sou o Espirito da Luz, o Espirito sempre novo, o demolidor de todas as mentiras ruins e de todas as estereis ilusaes...Vens arrastado por uma aspiracao do divino...Mas a onde vais tu ? Nao yes que tomaste o caminho das cobardias malsas, das energias morrentes, das facuiclades crepusculares ? Mas'eu so pensava no Mahatma. Ao romper da manta partiriamos para Kassi. Esqueceria tudo. Junto do Mestre o meu coracao embalado pela sua palavra seria como um ninho de bulbul na ponta de urn ramo subindo e descendo ao sabor de urn vento suave. Relembrava a palsagem imortal, o:arvoredo sagrado, que nos tinha dado a sua amorosa sombra. Haviamos descido a povoacao, o Mahatma e eu, por urn atalho, entre colgaduras de cipas. Ali eu sentira Oda a magia da Beleza que assombra. Eu vira Parakriti, a Natureza, vestida para urn durbar de triunfo, impassfvel como os marmores de Jaipur. t Que era o homem ai, sob as At .vores seculares e as rendas de trepadciras gigantes, pontilhadas de flores como astros ? Que era eu? E o Mahatma Entre os hornens, nessa estrada, que atravessa o coracao de Hind, rio trans• $ 36 OS DEUSES DEv BEN RES bordando eternamente, era isle a figura de um dominador, alta, bruna, serena, inatingivel. E era humano o jangle, as arvores tinliam sorrisos para o vencido ; as pedras se amaciavam sob os seus pes. E haviatnos deslisado desse jangle amoravel para as florestas da Vida que 6 Luta, da Luta que é ou triunfo ou morte. 0 Mahatma emniudecera, e diante dole o meu pensamento era como lampada de: argila em face do sol. Erguiam-se do chao gigantes vegetais, como torres, suanclo de forca e de desejo. Pequeninas plantas pandas, de folliagem exangue, lhes beijavam os pes, desmaiadas nesse longo esforco de florir para o triunfador. As grande trepadeiras lhes subiam pelo tronco, lestas como bailadeiras, em vibracoes de voldpia, para engrinaldar o que nRo sucumbe na luta. Sd tiles criam na alegria como os Deuses...Quando os grandes ventos das monsoes viessem, como deusares invisiveis, dobra-los e acoita-los, encontra•los-iam transbordando do divino desejo de resistir. As chuvas 6speras, vergastando 9s seus bracos, chegar-lhes-iam a raiz solucando de amor, humildes e doces como as Noivas dos Herois. E descemos de vagar, por urn trilho estreito, silenciosamente. Manha de gloria e docura. Transformavam-se as nevois em oiro vermelho, no oriente, ao contacto apaixonado do sol. Despertavam rubles e arbustos, silvados, e bambuais num alvorocado desejo de medrar e florir que vibrava claro ao meu ouvido. E sob esta vibraclio de voldpia passava, lento e macio, como a voz de urn murdanga longinquo, urn profundo, amoroso zumbido. Era mudo o Mahatma a meu lado, e pequeno como eu, Ele e eu eramos coma) a nevoa que a brisa leva na sua pequena asa de seda, sem destine. Ao longe, a longa e tranquila linha dos Himalaias enrubescia e ardia no oiro fluido da manila. Alta e solitaria regiao de meditacao e beatitude. A'quela hora os montes altos, reis da solidao augusta, fosforeciam de urn quimdrico escarlate. As neves cintilavam corm pedrarias, reflectindo a paixao do sol. Lembravam noivas das dinastias siderais, esbeltas e lindas pondo as suas joias para receber o Noivo que chegava com os trofeus das vitorias. E fora entao que uma suave magia me pa- OS DE SES DE BENARES 37 recera soltar a voz a esta divina Terra de Hind :—Vive, deseja a Vida, a Vida sempre mais bela e ardorosa, a vida sempre mais perfeita e profunda. E' no raid° fervor da Vida que te has-de redimir...Aceita a tua Vida corn um premio e uma gloriacacao. Por 'Dais humilde que Ela seja, por mais pobre que Ela te pareca.., E' a Virgern, 6 a noiva, é a Barra-de oiro, que as teas macs de artista hao-de traballiar e a tua alma de homem divinizar no Amor. E' o bloco de marmore donde has-de chamar a luz do mundo as grandes figuras imortais que nele dormem ; a argila informe, em que has-de moldar as Horas de Oiro. E aquela voz na minha alma vazada, num grande jOrro luminoso, sugeria uma fina mao de princesa estendendo urn veludo suave sabre urn solo afrontado pela urze maldita. - VII Eis-nos emfim em Kassi, na velha Cidade dos templos no meio de urn bando de sadus e peregrinos. Desde que de longe a avistamos, centenas de vozes se er• guem alto, numa monodia que tern um nao sei que de piedoso e de pitoresco, saidando Mahadeva, o Senhor da Cidade :—Jei, jei Kassinata 1 Jei, Jei, Kassinala 1 E as vozes sobem chatuando, acompanhados de pequeninos pratos de cobre, que brilham como oiro, finos e tintinantes :—txin-txin-txin•txin I 0 sol vai alto. E sob a chapada fulva da luz brilha,, num deslumbramento imprevisto, a cdpula do Templo de Oiro, consagrado ao Senhor da Cidade. Milhares de templos se erguem da terra, perpetuando a crenca, simples e fervorosa, dos Maiores. Milhares de hornens param, a porta dos pagodes, gritando alto as suas angdstias e as suas dificuldades, oferecendo &divas, regateando, fazendo ou discutindo corn os sacerdotes estranhas propostas pela cura de um filho ou de uma vaca, chamando, protestando, gemendo e assim transformando a Cidade num vasto hospital de almas. Ha sadlius que dormem sabre facas agudas, imoveis e serenos outros, sentados sobre uma pele de leopardo ou de veado parecem como mortos, indiferentes a todo esse turbilhao. OS , DEUSES DE BE ARES n. humano, clamoroso e febril. No meio dee; ha os que traficam corn as coisas do cdu, escrevem mantras milagrosos, exaltam o pavez dos seus amuletos, ensinam os lintnem% a totnarern o banho sagrado no Ganges, que aquela hora d uma grande lamina de prata flamejando. Eu sentara.me fatigado a porta de urn pagode e adormeeera. 0 Deussar Branco volta para mim a sua face zombeteira, sorri, pisca os olhos cheio de uma luz viva e cantante, luz de triunfo e de alegria; e, me diz —0' cheld, 6 discipulo do Mahatma I olha em volta. Ha tantos Santos em Benares ! E o teu é dos piores ; nein sabe ganhar a vida, adorna-la sequer de imprevistas necessidades. Urn punhado de arroz, uma collier de caril, tarnarindo salgado, agua, eis o que satisfaz o seu estoinago. De noite, depois de ter andado ldguas, dorme—nao d verclade sombra de uma arvore, como o gado das boiadas, melhor do que num palaeio, onde ha estofos raros e me vets de arte e a' nossa alma se ensopa docemente na graca da puffier ? . Que procuras aqui ? Elasticizar o teu clesejo, engrinaldar o teu sonho ? Pobre louco I V8 como em tua volta se juntam, numa horrivel promiscuidade, todas as misdrias da carne, tOdas as lepras da alma. Disseram-te que entre as Cidades, Benares, é como a gatatri entn: os hinos vddicos...Mas olha em volta. Aqui todos traficam. Vendern-se os bens do C6u e as alegrias da Terra. E' um grande mera.do de cobardias. Por Oda a parte se grita :— DA-nos vacas, o . Senhor dos Mundos ; dar-to-emos Manteiga ! A palavra faz-se gcmido ou grito de fome ou de cobica. Nao flamula aqui a asa irizada de uma ironia ; nOo faisca o verbo ardente das paixOes radiosas nesta Cidade caduca. E' o Passado que aqui finge viver, como as mtimias, como os museus e as estatuas mal feitas. E to yens para aqui impelido por tddas as miserias como urn cadaver arrastado pela corrente. E's um irnpotente ; nOo conhecet; o divino prazer da resistiThcia. NO° sentes a docura infinita de querer, de querer sempre, de querer como ()nth altiva derrubar os penedos seculares. Apraz-te mais a maciez das penugens, a passividade das hervas, a impotdneia dos manipansos. E' dsce o mein que escolhes para a tua vontade RES OS REUSES DE BEWARES A, 39 combalida e doente...Ergue-te ; deixa o Mahatma. 0 homem é a onda que bate eternamente no penedo do Destino. 0 hotnem o tigre que tent os olhos maiores do que o seu estOrnago... Vamos ; procura as tuas armas e segue-me. E a voz morreu no ar, numa nota de cIarim de guerra, rubida c fremente. NO° sei se o compreendi, mas a sua voz era como o deo de um hino ressoando longa, rubra e ardentemente nas cavernas do meu ser. E contudo eu seguiria o Mahatma atraves das estreitas ruas da Cidade Santa, entre fakirs e peregrinos, parando a porta dos templos e comprando folhas de betle cortadas em tridente de Siva. A essa hora: o espeetaculo a margem do Ganges d de unit pitoresco imprevisto. Milhares de peregrinos, de tOclas as condigoes sociais, riquezas, misdrias, doencas, juventudes, enchem os gaths para o banho sagrado. Ha piras ardendo para a incineracOo dos que rriorrem. SO o cadaver do varioloso naO é dado ao fogo. A varioila d a deusa Sitala. 0 Mahatma, vendo-me parar diante de um nicho consagrado a Kamadeva, o deus do amor, olha-me corn docura, como se quizesse sondar a minha alma e diz-me —Que procuras to ? Porque perguntas os nomes das Imagens Sagradas ? Ha um Deus dnico, e Lyle nOo tern . none, • nab tern forma. Em toda a parte o encontras. E' o ar que respiras, a agua que bebes, o trigo que comes. E' o Milagre que encontras em tddas as coisas, e que faz do mundo o bravo que to serve. Se procuras reintegrar-te na crenca dos Maiores, esquece os milhares de nomes de Deuses, que estas ouvindo. Eu escutava-o embalado pela sua voz tdo mansa e profunda, no meio do clamor perturbante que envolvia a Cidade. V II I A minha primeira noite na.Cidade dos templos foi uma noite de trageclia. No templo de oiro ardiam palidamente os candelabros dos santuarios. Graves sacerdotes de longas barbas recitavam oracoes. Um zumbido, ondulando, subia, trespassava o tecto, levava 49- OS, DEUSES DE BEIARES' aos Sete Swargas o aroma das alms castas florindo na ansia das nitpcias divinas. Era a minha primeira noite no claustro, e eu sentia-me major que cs Prfncipes, mais poderoso que Rama, filho de. Dacarata, filho de Ikxavaku, neto de Surya. Vinha em bu3ca dos Deuses, que havia ultrajado e perdido nos transes mais rubros dos combates na Cidade de luz. E agora, ao fitar as Imagens Sagradas e brunidas pela patina dos seculos, eu era como um naufrago, com a boca cheia de agua, sem poder dizer a Agueles de quern esperava o supremo auxflio uma palavra de humilde e fervorosa piedade. Onde estaria o Mahatma ? Nao o sabia. Deixara.me depois de fixar urn instante os olhos nos meus, corn urn olhar que me havia penetrado ate as rafzes obscuras do meu ser, como urn raio de sol penctra sem esfOrco at ao fundo um lago tranquilo. Longe, ainda tangiarn os murdangas de pele de talagoia. Era a danca nas casas de Prazer. Eram as bailadeiras cingidas de panos ralos, tac . ralos, meu Deus I apertados scholes modelando o busto, as manillas tinindo num riso de voltipia.•Torciam-se de certo nas dart as felinas lascivias, um esfusiamento de brasas nos corpos adoles:entes, quebrados em meneios, que eram ritmo, aroma, seducao infinita. E os guizos—txin—txin 1—desparzin• do-se nos tornozelos em orvalhos, de cores irisadas e mordentes. Enchiam o ar de urn zumbido divinamente d6ce e escal. dante. Mas de records-lo sob o tecto sagrado cu sentia rastos de lesmas sobre a tninha carne envilecida. Cruzei as pernas, numa btidica atiticle, a um canto da cela munnurei uma prece, cerrei os olhos. As horas passavam lentas, como elefantes ajaezados e solenes num Durbar Imperial. De quando em quando os servidores do templo soltavam aos gongs,a voz fluida, cheia de solucos, anunciando a passagem das horas. Cessara ja o clamor das dores humildcs, que bate todos os dias, a porta dos templos de Kassi, como as ondas nos tragicos rochedos da costa do Malabar. De repente, oomo se Bramadeva, tivesse ouvido a stiplica da minha angtistia, eu senti.me envolvido numa nuvem macia e branca, que me erguia ao ceu. OS I1EUSE5 DE BEN4RES VP, ,t 41 E a nuvem foi subindo. Eu pairava sobre o abismo de olhos abertos, tnas incapaz de pensar, de racicionar, de vet -. Ao longe, as risonhas cidades Himalaias de Darjelim ; perto, sabre a minha cabeca, como urn lago de prata fluida, a lua. Aos meus pes era uma alta montanha corn figuras colossais, parenteses de jangle, basaltos negros. A' sombra de arvores sagradas, serenos e trigueiros, Rixis, pareciam sonhar, os olhos fixos na ponta do aariz, exalando o ar pelas narinas. Tigres de Bengala, formosos e terriveis, vagueavam•lhes ao redor corn a mansidao de veados, jaguares lambiam os pes a Bicskus de face adunca, e eu passava entre ales como uma asa, embalado na maciez da nuvem. Ia subindo, transfigurado, at que a nuvem milagrosa me poisou docernente sobre tryn basalto liso e brilhante, sob a copa de um pipal. A noite era toda sortilegio e carfcia. E numa aureola ofuscante vi descer da lua, Brama, o Deus \ da criacao inumeravel, com a ponta do pe na boca, envolto em grosso burel. Deslumbrava, e era a pi-6pda face do sol que eu via. E contudo eu tinha os olhos postos nele como se uma invisivel mao me tivesse arrancado as palpebras para os conservar beta abertos. E ele aproximou-se, como urn elefantc, parou diante de mire e assim falou : —Homem ! Que buscas tu ? Procuras os Deuses, os Gramedevas, Binimia, as Apsaras ? Donde yens, que to sobra o animo para tudo esqueceres ? Que fizeste, dize, dos Livros Sagrados ? Buscas Purxotoma, o mais alto Espirito, Jivabuta, o Priacipio da Vida ? Abre bem esses olhos. Que yes ? Quern 6 que esti diante de ti, criatura insaciada e louca, que partiste o vaso em que bebias a dogura de misteriosas e embaladoras Superstigeies ? Sera Prajapati, o senhor das Criaturas, aquele que da sua vita. lidade superior tirou os Deuses, e criou os hornens e fez a Mode, destruidora das Criaturas ? Ve bem... Serei o Adidaiva, a Divindade Suprema, o que nao tem principio, Ascendente dos Deuses? Dize, Pala. Serei teu Deus, teu Irma°, teu Filho, teu Escravo, ou simplesmente uma ficcao para divertir os teus &los ? Represento e realizo Eu a Perfeigao Suprema ? Ou seras tu, o fragil, o vulneravel, que me has criado a tua imagem, mais vulnerivel, PS DEUSES> DE IENARES mais fragil, e pelo naenos, tao imperfeito como tu t Dize, anda Estou como quem espera ansioso uma revelacao ou urn milagre. Dos meus labios, porem, nao saia uma palavra. Nao germinava no men cerebro a semente estelar de uma idea. Eu era como um charco, onde, sob a chapada fulva do sol morre no verso inclemente, a agua maternal e fecunda. E Ele sacudindo o burel que o envolvia --Vd, disse, ironic° e imperativo. E vi surgir diante dos meus olhos Brama Maya, Oda refulgente nas suas vestes de luz, o busto cingido por urn sch6le estrelado de pedrarias. Segurava na mao direita uma enfiada de perolas, na esquerda a pont& de uma larga faixa de seda coin ayes e feras bordadas a oiro. —Conheces ? inquiriu Brama. E' a Ilustre, e a Vida. Sim, a vida imensa, radiosa, esplendorosa, quer tu nao .sabes viver... E agora, aqui tens Brama- Sakti... Era uma incrivel figura humana, corn os braeos levantados no desejo de enlacar o busto de mulher semi-nua que the fica defronte, sentada a seus pes. SObre as pontas de urn branco debaixo &les, que estao suspensas no ar, uma cobra, que rnorta, enrosca-se em volta de urn ovo, grande como inn cocoa Urn instante os vejo diante de mim e logo se fundem no ar, como uma tenue neblina sabre a qual o nosso sonho houvesse desenhado figuras sobrenaturais. —Viste ?...Agora dize Que sou Eu ? Lembras-te acaso de me teres visto sabre urn estrado de sindalo, sob um docel de verdura, tendo a meu lado Sarasvati, timida e linda, oferecendome o betle nurna .salva de oiro ? Oh, como te havias de lembrar ? Tu esqueceste tudo. 0 orgulho encheu-te de trevas a memoninguem se lembra de Brama. A sua obra a feita. Eu sou uma remota divindade aquem ninguem sacrifica. Nao Ihes sentem o ruiraculoso contacto das maos sempre abertas. Adoram Shiva, o destruidor, porque o temem. Visnum, o protector, porque &le esperam. Eu sou pobre, coitado I Urn deus que nao castiga, nao causa dano ou desgOsto, que, na sua bondade de impotente nao sabe fazer o mal. E' preciso que os Deuses vos deem o pa° e o vinho ; a sadde e a riqueza, filhos e gado, para que sejam lembrados, os; que tudo vos tiram. Adoram a , , DEUSmS DE BEWARES OS REUSES 43 ameixeira por causa de ameixa, a aurora por causa da silva. Mas os velhos Deuses vao-se, apagam-se nas distancias, do os tristes reclusos da Historia. Encontraste-os nos Livros, pesados sombrios, como velhas moedas de cobre num canto ignorado dos museus.....Ah, meu pobre amigo ! Os Deuses sao como esies ricagos decaidos de fortuna, que vein fugir-lhes, corn a Ultiinoeda de oiro, o ultimo dos seus amigos. Apeam-nos do pedestal .de oiro entre gargalhadas e assobios ; como ladroes ignobeis levam-nos escoltados de ironias. ja nao veem us ricos mercadores corn os presentes, admiraveis, as mulheres nao '-ientram nos templos ao sol- posto corn as suas joias mais ricas e o Sari mais precioso pedir-nos urn filho ou a fidelidade do marido. Que somos nos ? Velhas alfaias dos templos, divinos filhos do meda,/visoes talvez da apavorada criatura humana ? ...E quern its tu ? Dritirastra, espOso de Gandari, filho de Subula, rei de .Gemlarva ? Qu Pandu, que desposou Kunti, filho do Sol Quern (Ss tu ? Sells o Puruxa, o Criador ? escutava aturdido e palido. A sombra, caia da divina na minha alma, como areia escura, sufocando•a. Encontrava mais uma vez o Deussar Branco falando na voz del; rindo no seu riso, chispando no seu olhar, e a mesrna formidavel altivez feita de sarcasmos e loucura. E Ele : —Ah, nao me conheces, pobre amigo. Nem te conheces a ti.' Toca-me ao menos corn a ponta dos teus dedos. .Anda. Ajoelhei-me e os meus dedos tocaram aquele corpo enorme.. Era ern mim quasi o medo e a repugnancia corn que se tO-ca o dorso escamoso de urn crocodilo ou a viscosa rnoleza de uma alforreca. E stibito, sem que nada mo fizesse prever, vi desfeito em cinza, aos meus p6s, a Sagrada figura, que era grande e forte como um elefante. Nao sei como o conte...Senti a terra fender-se a rude voz de urn cataclismo. Oh, o horror de tocar corn os pes esse pas divino !, E logo surgem do chao, como dorsos de formidaveis MODStros, enormes rochcdos brancos, vestidos, aqui c ali, de urn fino musgo verde. Estende-se em volta ;a terra Inimida e urn vasto 9 . 44 Os DEUSES DE BENARES lencol de agua se forma, sem uma ruga, como urn lago de leite. Manso e manso a agua vibra num arrepio, e rompem, de repente a superficie, as sete cabecas de Ananta, a sagrada serpente, formando urn docel sobre a cabeca de Vishnu. Aos pas do Deva Loeximitn, a Doadora de Ventura, formosissinta e semi-nua. Ela é a forte e risonha adolescencia, num nimbo de amOr. Do seu umbigo nasce o lotus onde poisa o Deus de quatro faces. sorri, prende-me num olhar que c uma Barra de voltipia : —Ah, zogui 1 Tu es um vencido. Tu, Madua-Rau, feito chela daquele relit° Mahatma ? Vens buscar-me ? Trazes o palanquin de oiro ? Eu sou Rama, eu sou Krishna, eu sou Naraiena e sou Hari. Bastava morrer coin meu none nos labios para se ganhar o ceu. Rama Rama, Satya Nanza gemiarn os moribundos e morriam consolados, morriam felizes. Ainda chamam por mim os que esti.° a tnorrer, nas povoac6es do jangle, nos lugarejos humildes ,nas cabanas dos pastores...Os meses de assvin e cartic sao ainda os meses do meu sono. anquanto durmo, os Deussares erram pelo mundo, assolam-no, semeiam-no da tragica semente do Pecado. Entao sao as festas propiciatOrias, as festas estrondosas, as luminosas festas. No primeiro dia do tneu descanco as mulheres fazem ainda corn bosta;solare a porta da sua casa, os sinais misticos, que vedam a entrada aos espfritos maus. o jejum duraate o dia, e sao os dices' ao vir da noite. Ai dos noivos que casam emquanto eu durrno 1 AI do que cobre de cohno a sua cabana ! Findo o meu sono, espreguico•tne um instante na tepicia maciez do meu leito, e 6 entao Oda a alegria da coiheita nos canaviais. Como finas maos de virgent, tremulas de amor, vem despertar-me as palavras do mantra inolvidavel : —As nuvens dispersaram-se ; a lua cheia aparece em todo o seu esplendor, marivilliosamente branca. Traz para ti a esperanca de putificacao. Para ti vireos corn frescos fruitos da estaglo adoravel! Acorda do teu long°, Longo sono. Acorda, Senhor dos mundos, acorda...E o Sacerdote, nos lugarejos humildes, na orla do jangle, nas povoacOes de pastures, anuncia entIo o momento auspicioso. Tangent os gongs no pagode, e os murdangas de pale de talagoia. Acordo, e a colheita comeca. As canas - - ---c)1USES DE BEN4RES st 4S dularam-se sob as maos das ceifeiras. Vida a aldeia esti em festa. No ar loiro ha ecos, ritmos, aromas de canc6es. 0 cana, via1 caindo so fala de abundancia e de paz. A sua vida, fina e formosa coino poucas, é finda. E ao cair sob as foices insensiveis, ei-lo a transformar-se em doador de paz e contentamento... Mas que te importa isso, Madua-Rau, que te importa isso ? Tu procuras urn electuario, urn remedio para as (ires que criaste, para as feridas que abriste na tua carne. Alt, se soubesses amar ! 0 am& é uma harmonia. E' o desejo da carne feito cancio, o ritmo volvido em Luz. E é mais doce que urn aguaceiro de Setembro trespassaclo pelo sol...Mas que procuras to aqui ? Os Devas dos Maiores ? Pobre louco ! 0 espfrito, que Tu? é Luz, transforma-se crn cinza nos Ascetas. E a cinza desdoira a humanidade. E' o que te ensinaram ; é o que nao soubeste compreender...Ves aquela que esti junto de rnim ? E' urn nacar entreaberto sob o sari diafano. E' a que me salva. Os homens ainda se voltam para mim por causa dela. Como 6 born acariciar corn os dedos abrasados uma pale unida e perfeita 1... E é Vic) doce a lemAh, o beijo, o beijo, numa boca bemfeita branca de um beijo l.... Mas que te digo eu ? Aproxima•se a minha noite. A minha Noite, a Noite imensa e negra. como uma mulher horrivel, uma mulher paria, cheia de lepra ardente, de chagas de fogo. E negra, terrfvelmente negra. seu riso espalha a escuridao. E' escuro o pano que cobre a lepra abrasadora. Ela toca-me com as suas maos impuras. Sao Quern sabe se a os homens que a mandaram para me matar. trouxeste em tua companhia ?... Foge, Madua-Rau, foge. Eu ji , nao pertenco as Cidades de Luz. Seria necessario arrancar-te a pele para que te pudessem vestir a ttinica dos Maiores. Foge. Nunca mais me encontrards. E vi Ananta, a serpente sagrada, erguer-se sObre a cauda, sacudir o duva moribund°, ensaiar um voo e cair morto aos meus peso E 4as palavras de Vishnu faiscavam na minha alma.—E tuck) minha vontade desbotada no servico era cinza e p(5. dos prazeres, putrefeita ao contacto de sensualidades torpes co dizia... V 46 OS DEUSES DE BENARES OS DEUSES DE BENARES Murrnurei baixo corn medo de nao sei que misterioso inimigo, que me parecia as vezes habitar a minha alma, fundir-se na minha carne, transformar-se em meu sangue para me alimentar o cerebro : —" Aqueles que sao livres da luxuria e do 6dio sao mansos e submissos e conhecem a beleza da Alma. Estao perto do nirvana em Brahma ." E como se as palavras do sloka o invocassern apareceu diante de mitn, Kamadeva, o Deus do Amor, desfraldando o sett , pendosavrlh,tendoibra ,un peixe monstruoso, o Makara que Varuna montava nas profundidades sumptuosas do Indico. Vinha Kamadeva montado em um papagaio. E con ele Apsanis formosissimas, o cuao, e o zAtig.io e as brisas plenas de urn aromatic° ar silvestre. Cin• co ROI- es pequeninas escondiam a ponta dos seas dardos, que atraves dos cinco sentidos, trespassam os corn 6 - es. 0 seu arco e de cana coin uma corda de abelbas. Sorriu e disse-me : —Pobre louco ! E's um Rixi, urn puroito, urn Sadhu ? Ha tantos que envenenain o solo sagrado de Hind ! Sao como o escarro de um paria no mosaico dos pagodes. A castidade da sua carne 6 como a fade dos camaleoes. Sao velhas arvores intiteis Ovendo da cal de uma parede nova. Bocas que a force abre. passam uivando nomes de Deuses, para que o viandante as tape corn urn punhado de arroz. Donde yens tu ?..Asceta ?... Sei ! Bicsu que maldiz a came ? Abraeaste•a, desnuclaste-a um dia. E cobriste•a de sodas e joias, para te despertar os instintos arnortecidos. 0 teu desejo foi urn doido pescando perolas nos pauis infectos. Cobarde ! Morreu afogado no ludo. E as perolas ? ! Ah! As perolas !...Que sabes tu da voluptuosidade multiplice, da exaltacao do desejo criado e forte ? Quern es tu ?...E sabes acaso quem sou eu ?...Chamam-me o Destruidor da paz, o Feiticeiro, a Lampada da Primavera, a Brasa crepitante, o Mestre dos Mundos, o que tudo vence, o que todas as almas embriaga. Eu feri Shiva na carne insensivel da sua alma. E Shiva deixou as cinzas de Asceta, amou Parvoti. E entAo estalou em chamas o terceiro olho do senhor de Kassi, c clestruiu•me, abrasou-me, queimouque, reduziu-me a po. Mas 47 ele estava ferido no coracao. JA nao havia pa::, ji nao havia descanco para a sua alma em brasa. Lancou.se as Aguas de Kalinda mas o rio secou. E quando as madres se abrirarn de novo as suas Aguas eram negras como tinta. Pobre Shiva Errou por florestas e ererniterios, e as mulheres dos eremitas seguiam-no, corn as maldicoes dos maridos abandonados, que tornavam o pobre Shiva impotente e fragil. E por fim vencido de paixao s6 regressou para desposar Parvoti. E eu, quando renasci, num milagre de amor, era filho de Krishna, desposei Rati, Ievei a--tentacao ao pr6prio Budha. Estava o Asceta incomparavel sentado a sombra de uma grande c nobre figueira. Meditava, pensava no sublime Jataka. E quando me aproxiraei do seu retiro na pompa e no esplendor das minhas j6ias, iam comigo, ern luminosos ranchos, ao som de flautas invisiveis, as Ap. saris mais lindas. E cantavam de amor e mocidade. A noite emmudecia; a lua, as estrelas, as brisasquedavam.se a escuti-las.... E agora quern sou eu ? 0 Deus que nao morre, qae subrnet& a pr6pria Morte, que cria, fecunda, ilumina, ekalta. E tu pro- . outros Deuses? Se querias ve-los porque 6 que te arran-' curas caste os olhos ? Por Oda a parte s6 a mim me encontraras. E eis Visvacarma diante de mim. Fala-me corn uma dace • ironia : —" Queres um Deus ? Porque nao conservaste os que havias herdado? Ah bem sei, bem sei. Foi a tua razao que os destrocou ; foi o tigre entrando no redil humilde e sossegado dos teus sonhos de timida crianca. Ah esses Deuses que eu vi, saindo dos templos em palanquins de oiro, como usurArios parallticos. Tinham alguns o coracao feito de todas as tuas fraquezas, cheio de todas as vaidades e• ambicoes, que fazem da tua alma uma cisterna corn sapos e escorpioes. Outros eram a Bondade Suprema. E tanto valiam estes como aqueles diante da tua razao indornavel. Andaram nas maos de- fakirs como bolas ern ma-os de criancas. Os Deuses ! Nao lhes obedece o raio que destroi os pagodes.... Que desejas ? A ete•nidade ? Islao te basta sentir a Energia organizadora ; nao te basta sentir a vida ? Queres saber donde yens ? Mas em verdade, nunca o saberAs. Ern vdo buscaras nas Escrituras a face do criador da US IA:USES DE BENAKES •8 gelatina pelasgica, o artista da forma humana. Quern te criou egga 111112 geinpre i nquieta, prdsa de impereciveis aspiracOes ? Paraste no caminho, meio-morto de fadiga, o olhar avido e penetrants, a ouvir da t , oca de styes, dos descrentes, dos cepticos a palavra da verdade, e Que te disseram eles ? Que o arroz do teu jantar se faz ern ti sonho e verbo e pensamento ?... Vai teu caminho, vai. Busca a origeni das origens, a raiz de todo o ser, do visivel e do sonhado. o teu destino. 0 desejo de viver, de perpetuar-se, de fugir a morte fez-se em ti ansia de imortalidade. 0 vapor de agua transformou-se em nuvem, a faisca fez-se incendio. Que remedio ?...Mas os Deuses dos Maiores, deixa-os atras de ti como despojos indteis, velhos escudos e arnezes que servem para entreter os teus Ocios, mas nao te ajudarn a sair vitorioso dos combates. E a voz de Visvacarma, nova e ardente, como urn veio de agua, que, de repente, irrompesse do'seio da Terra a beira de urn ‘monte subia•me a cabeca. Era urn aroma capitoso e violen. to, sabor de vinhCantigo e docura de luar dancando nas Aguas, fustigando, como urn beijo, ao mesmo tempo suave e escaldante, as energias dormentes. Quis falar•lhe ; nao sci se the disse o nome. Mas a sombra fundiu-se na noite, como ulna nuvem batida de vento. Ele havia-me lembrado -0 Deussar Branco e as criacoes do meu sonho adolescente. que, na Cidade, vinham, noite alta, embalar o meu sono. Mas logo me prende os olhos uma visao, sangrenta e magestosa, o Deus dos F xterminios, Shiva, o Bislieshvar, o senhor de tudo, a quern Oda a cidade, que poisa na ponta do seu tridente, consagrada. Todos os Idolos, colocados ao longo do. Vanchseus tchonquidores e guardas. coshi E Shiva assirn me falou : —" Ah, tu n.Io sabes que es Hari, o Homem, o eterno Punish; brilhando como o oiro ou como sol, que rompe num ceu sem nuvens. Tens dez bravos e es a fOrca que destroi os inimigos dos Deuses. No teu- ventre nasceu Brarna e nasceu Madeva, e nasci eu da tua cabeca. Dos cabelos da tua cabeca vieram as estrilas, dos cabelos do teu corpo os outros Deuses e os Assuras ; . OS DEUgES DE BE! ARES 49 Rixis e mundos imortais nasceram da tua came. Os Deuses adoram•te. E tu realizas sObre a Terra todo o divino sonho de grandeza, de triunfo, de imortalidade. Quem te ye, ha-de ver o Deuses, todos os Swargas sao visiveis em tua alma. Tu es o Criador do verbo poderoso e magnifico ; da Palavra que enche e ilumina todo o vacuo, que resume em sons ritmicos e doirados, suavissimos -ou terriveis, mundos infinitos, sonhos do Absoluto e do Inextinguivel, docuras, esplendores, maguas que sat) o trigo da tua alma. Para as dores sem remedio, para a dor do Pensamento, eq ue buscas tu aqui pobre vencido ? 0 verbo, eis o teu Deva ; verbo sempre novo e rebrilhante, taca de sonho e de verdade. Se emmudecesses, o mundo seria urn cemiterio de almas, e os Swargas, os Sete ceus, se despovoariam. Eu bebia a sua voz como um filtro, mas nada percebia. A meu lado o Deussar Branco is dizendo confusamente coisas incriveis e irnprevistas naquele ambiente sagrado : " Os asteroides, ensina ele, podem aglomerar-se em sois ; os sois transformar-se em faunas e floras ; as floras converter-se em gazes, e, no emtanto, a energia em circulagao permanccera ilesa...Numes antropomorficos, enlacados pelo Desejo e Sonho do homem, nunca the imporao as suas leis e os seus ditames. *Al), que procuras tu, Madua-Rau ? A chave da Verdade ? Nunca a encontraras I Conheces, acaso, na sua essencia, a pedra que pisas, o ar que respiras I Cdr, extensao, forma, sabor, aroma, propriedades, virtudes, eis o que apreendemos. E'•te inacessivel a Realidade velada pela Aparencia, como um vaso de vidro escuro oculta a cristalina limpidez da agua. Contentemo.nos corn palavras ; abencoemos. a palavra, que tao admiravelmente veste a nossa ignorancia. Nao sao porventura meros sfmbolos as leis do universo ? Que dizem elas ? Resumem apenas miriades de factos contestes ; fundem em pequenas armas de combate a experiencia amarga ou triunfante dos teus sentidos. sao como uma fusao de metals em uma joia ou uma grilheta, uma lanca ou um arado. Mas nunca entrevemos, atraves delas, a Verdade Absoluta. z Qual a causa da atracCao universal? ...A Materia e as Farcas organizam•se para amar, desejar, lutar. zQue sabes mais, dize ? E buscas os Devas e o Criador dos vo iergwirr- OS bEUSES DBENtTrWv. Divas, a origem dos origens. Ensinar pavOes a ca.ntar seria mais Wit do que buscar a Suprema Causa. Que 6 do teu saber? Que valem os teus conhecimentos ? Exprimem relacoes, nada inais. Essa pedra que arrernessada ao ceu obedece, caindo, a uma lei indomavel, colocada a uma certa distancia da Terra perderia o peso e ficaria suspensa no espago. Nao te ensinaram isto os Mestres ? ! mas rub te disseram a... radio, a causa, a .•. verdade Sonha, meu filho Mas faze do teu sonho urn orvalho de perolas para embelezar a tua Dar. Mas sera o Nirvana o teu sonho derradeiro ? Sonhards acaso no regresso ao estado primitivo, na extincdo da Forma ? Queres tu, o Puruxa implacave', sossobrar no Oceano das coisas ? Que importa ? A humanidade e uma grande e gloriosa figueira. 0 sol, o vento, as brisas the varrem r=s fOlhas mortas. Tu es uma _delas. E todos os dias fOlhas novas a cobrern, novas roupager:s - a vestem."‘ sei se enlouquecia de ouvi-lo. Essa °raga() de sapiencia irritava-me. Parecia que se dirigia a um estudante inhabit. E mansamente, receioso de esquecer os mantras seculares, eu dizia as palavras sagradas. E Bhiami aparecia, obedecendo invocacXo dos Maiores. Eu via-o ao canto do lar e escutava a sua voz amoravel e pura. " Fui eu o Deus do Lar. Ainda me adoram os humildes nos campos e nas montanhas. Dao-me do seu arroz, alta noite, sombra da figueira, leite, c6co, fibres. Mas tu ! d Que queres tu de mim? Vai-te. Na cidade os Divas do Lar sao como os leprosos. Mas estao vingados. A Familia dissolve-se. Os coragaes endurecem. Pen;erte-se o sentido da vida, etnquanto os sabios sondam os abismos. As multidoes enlouquecem de orgulho, esquecem a Terra, sangram na esperanca de criar um ceu• Madua-Rau, pobre louco ! Quantos peixes havera no Mar ? Poderas dizer-me, 6 sabio, o rainier° dos graozinhos de areia das praias do Mar ? Estamos vingados, os pobres Divas do Lar. Trazemos fechadas na mao as alegrias simples e profundas. Conhece-Las ? Ate arias de viver, tao aces, tao finis, tab esbeltas I Mocinhas de Rajputana, cujos ollios sao baladas e os- labios cangOes, o bust° e os seios ram°, grata, encanto. Tornozelos manilhados, sari laNnfeito, o pail' c os mogarins no cabao. r. cozwi gens sem pecado, colhendo flores para o Noivo que vai chegar. Onde estao elas ? Conhece las ? " - E desapareceu no ar, como se urn vento rnzu o levasse. E logo Locximim, colhendo urn lotus me disse : " Fala, dize o teu sonho ... A minha alma é urn cristal em que, ao vir da tarde, o desejo rota como a asa de urna falena ...Quero espalhar-me como urn fumo, ou suave brisa cheia de amorosos queixumes 0 hibiscus e o helianto, nelumbos e nenufares sao os meus servos. Eu sou a Doadora 1e Docura paz ...IMas que hei de dar-te ? A ambicao levou a tua alma como urn tigre leva, ao seu covil, a presa ensanguentada Foste em busca da Celula primordial; procuras agora os Ascetas que sabem as palavras de ressurreigao Que hei de dar-te ? Ergues para mim os olhos cheios de stiplicas. Bebes extasiado o ar que se encheu de perfumes mal cheguei. Bern sei o meu passado. Quando Vishnu vinha ao mundo, coin° filho de Adytia, eu nascia de urn lotus e fui Paclma. Quando die se encarnava em Rama, eu fui Sita, a esposa admiravel. Ao lado de Krishna eu fui Rucuminim, a amoravel, a pura. Sou a Doadora da Beleza, 'da Ventura. Sou o lume, a grac,:a, a paz do Lar. De ver me extasiavam-se os Sabios. Os coristas cantavatn meus louvores. 0 Ganges seguia-me fecundando o. solo rnais pobre. E os elefantes celestes derramavam sabre os meus cabe• los corn as trombas enormes, as Aguas sagradas. Mas que hei de dar te ? Para ti as minhas maos sera° sempre vazias E logo diante de mim Surya, o Deus Sol, aparece, olhos de oiro, maos de oiro, lingua de oiro, num deslumbramento que cega. 0 seu carro a tirado por sete eguas. Para, olha-me corn bondosa ironia, fala : —" Corn Agni e Vayu fui eu da Trindade mais antiga. Chamaram.me Prajapati, o Senhor das criaturas, o Senhor da Vida. Lembras te do Ramayana, de Sajana, filha de Visvacarma, e minha Esposa ? Como o tempo passa ; como tudo morre e se esquece 0 meu esplendor cegava a minha doce companheira_ E Ela abandonou-me. Mas em seu Lugar deixou•me Xaia, a Sombra, que me deu dois filhos, o Creplisculo da Manila e o Creptisculo da Tarde. Visvacarma cortou corn uma (aria. - - - indomita uma porcao da minha came. E as febres lurninosas cairatu chamejando solace a Terra. 4 No te lembras, d Discipulo do Santo ? Nunca !este o Poema? Riste ? Foi dessa came viva e ardente que Visvacarma fez o disco de Vishnu, o tridente de Shiva e as armas que os outros Devas ensanguentaram em coinbates de atnor e cobra.... E a minha paternidade, investigaste-a tu algum dia ? Em verdade, as Vidas tido te satisfazem. Sou filho de Drays, logo • filho de Adytia. Ushas é minha ra[ii e tambdtu minim mulher. Puchan, uesses tempos diitantes, de terror e de esperanca, era tneu mensageiro, e os setts navios de °fro velejavam docemente no ar ". E fixando em mini o seu olhar de lava : z Sou eu acaso o Centro do Universo, 6 Discfpulo de Santo ? Ah, tu pro( lamaste a minha mediocridade de pequena estrela ; mediste a minha velocidade. A minha comitiva e o comentario da minha existencia, levou-te a investigar a minha na caotiea Nuvem Primitiva. Quern sou eu ? Uma monstruosa gota de !?rata derretida chamejando no espaco, urn Deus ? Tu é que pciclias responder-me." E a face do sol, desse divino DadOr de todas as radiosas energias velou-se, manso e manso, como ao vir da noite, quando Xaia, a Sombra, sua. EspOsa, o enlaca nos seus bravos. 4 Quem viria agora, meu Dens ? 0 teu mensageiro talvez para responder as interrogacaes da minha alma ? E ei-lo af, diante de urn pobre cheld, falando grave e magestoso —" Do meu corpo, dizia Indra, nasceram meu Pai e minha Mai. Onde esta.o tiles ? Onde os meus cavalos amarelos ? E o meu carro ? E o meu raio ? E o meu arco-iris ?...Ah, tenho cede. Dal-me a minha Taca de Soma. No dia em que eu nasci duas coisas fiz, que ficaram imortais : empunhei o meu raio e bebi a minha taca. Dai-me a minha Tap.. Eu sou como um peregrino num deserto sem agua. Quero o Soma. Eu s6 pedirei o Soma, a ambr6sia • dos Deuses. Impele-me, como violentas ventanias, e, quando o bebo, as raps humanas parecem.me como uma formiga. Emborco a minha taca e os dois xnundos valem a metade do meu corpo. Sou o Deus, bebedor. Bebo como um toiro sedento. Na festa de Trikadruka bebi o soma e matei Ali, o Dem6nio. Bebo o soma e eis-me erguendo o vasto Ceti no espaco. 0 soma que bebo b como dois ligeiros cavalos puxando um carro e uma coluna sustentando urn tecto. 0 hino dos meus adoradores van entao como uma vaca vai para o seu bezerro... Ah, a embriaguez do swim. a embriaguez da Formosura Bebei o divino soma. Eis o remedio, o supremo electuario. 0 meu elefante branco... Nao ouvi mais. 0 Deussar Branco gritava outra vez como urn possesso : —" Escuta-me, dizia I A minha palavra é como o vinho, embora te negue as antigas IlusOes. Bern sei que a d6ce descancar a alma no seio da mentira, da crenca ingenua e suave, a que os sufis chamam o Erro Antropocentrico. Julgas seres, Homunculo sem nome, a Causa Final de t6da a criacao ? Mas contenta-te corn saber que a Aparencia é a Sombra da Realidade, corn ver, como a ave noturna, a presa na noite cerrada Esquece os Muses Nao te basta a escudela cheia, o laroma dos jasmins, a Forma Bela, os contactos de veludo, a' embriaguez dos combates ? Que buscas mais ? Ha tanto fruto dOce e ardente, que amadura para a tua Fome. A vida e um festim para os teus cinco sentidos. E a DOr, pobre cego, a Der, a Magoa, o Sofrimento, urn aperitivo necessario para as tuas faculdades de homem. Ah, nao sabes comb a d6c,e beber as magoas ern tap de cristal e ametistas, finas e fulgidas ao luar dos sonhos ingenuos ou her6icos sob a caricia escaldante do Desejo e•da Esperanca. Que mais queres tu ? Ve: Quem te procura ? Olha E' Ganga, a Agua Sagrada, a Deusa incomparavel, o Ganges. Escuta a sua palavra fluida e e mbaladora, cheia de ditames e maternais carfcias, ritmos e impetos de epopeia. As coisas que diz 1 A seducao da sua voz, que penetra o stir 1 Escuta ! " E a voz de Ganga, esbelta e formosfssima, se soltou no ar : —" Ah discfputo de Santo Tu yens porventura diner -me primeira aparicao da agua, recordar•me os tempos em que flutuava no seio da atmosfera ? Foi por Ela que apareceram na Terra os primeiros organismos ? Eu sou a Criadora das ayes e dos homens, das feras, das plantas. Eu fecundo os arrozais e frt OS.-/DE L SES fiE BENAREfj CS DEUSES DE BENARE destruo implacavel as povoacoes imiteis. Tambem sou a Morte. E por isso me renegas. 0 teu amor a vida enlouquece•te. Nao ves que se kisses eterno, devorarias os teus irmaos, os teus filhos ou serias por tiles devorado ? Nao te ficaria uma nesga de espaco nem um gran de trigo. Mas deixa-me fugir, deixa-me ir na minha radiosa eureka. Deixa-me ir abracando, beijando por tOda a parte o junco e o nelumbo, as pedras e as plantas. Como e doce sentir a luz dancando no meu seio ! A luz, bailadeira de quimera em um pafs de sonho. Deixa-me ir atraves da terra, tal como leite atraves de uma teta enorme e ttirgida. Ha. tanta bOca dizendo a sua ..fome e o seu desejo de beber ! E nao serei eu acaso o leite de Prithivi, Noiva do Sol ? Leite de piedade e de ternura, bebe-lo e tao depressa o esqueces ! Deixa•me ir. Nao quero ver os teus olhos suplicantes, como dois mendigos a porta de urn avarento. Nao yes quern cliega ? E' Agni, o Fogo. Deixa-me fugir. c Que faro eu aqui ? Estdo of as varzeas de Hind, e os lavradores a minha espera. Irei dizerllies os mantras da fertilidade ". E logo Agiai, grarde e magnifico, aproximou-se de mim. Sou na Terra o Fogo que te aquece, na atmosfera o raio, o Sol no ceu. Os proprios Deuses devem-me o seu esplendor, de mim receberam a Dadiva Suprerna da imortalidade. 0 meu divino influx° é em todas as coisas. Eu posso dar a vida aos mortos. Mas a Razao tolhe-me o bract:). Enrosca-se em volta de mim como uma serpente... Fui o Nurne domestic°, madrugador e alegre. Mal acendiam a chama do lar na luz indecisa das manhas de dezembro, tOda a familia se juntava em volta de cheia de amor e tie assombro...Fui o Nume e o Amigo do Homem, visfvel e familiar. Hospede do bramane e do paria, testemunha da sua accao, sou Conselheiro e Metre. Fui o medianeiro entre os homens e os deuses, o guaida da Lei Etema ". E esvaiu-se no ar. Diante de mim erguiam-se as duas cabecas de Agni-Naralen, quasi que me tocavam as suas sete maces. —.` Sou ainda, disse-me, nas bodas de Hind o Xecundivo, a lampada de born agouro. A Noiva ainda anda em roda do aFh 11, SY Fogo Sagrado. Os mortos sao me entregues e os vivos ainda me oferecem manteiga. Filho do Ceti e da Terra, Irmao gemeo de Indra, vem para mim como noivas saudosas as oracoes dos agnivotras, os sacerdotes do Fogo. Mas o Fogo tambem leva a Morte atraves da vida. Nao viste o Deus corpulento e verm.elho, o Deus corn tres pes e sete cabecas, montado em um carneiro ? Da sua bOca sum linguas de fogo. Suas duas faces representam o Fogo da Terra e o Fogo do Ceti, o calor que é a vida o fogo que destroe. Todos os Deuses, meus Irmaos, sao assim. A Morte é tao sagrada como a Vida. E' preciso saber morrer ; mas é muito dificil aprender a viver, a ter os olhos abertos, os cinco sentidos transformados em escrinios para recolherem todos os tesoiros. Senta-te ao IA de mim em dezembro, ao vir da noite, em urn logarejo do jangle, em qualquer recOncavo Himalaia, e escuta-me. Hei de dizer-te as coisas misteriosas e profundas...Adeus, meu amigo ! La vem Krishna para falar-te do Amor e da Mulher ". E Krishna, poisando-me a mao no ombro : —" Ah, mulheres, mulheres ! dizia-me. Ouve-me, pobr vencido. Se vejo as castas, as virtuosas, as imaculadas, nelas vejo a Mai divina, vestida de virtude, vestida de luz.., Na prostituta da Cidade, sentada na sua varanda cheia de fiores, capitosa e linda, como uma taca de vinho, tambem nela eu vejo a divina Mai que perdeu o seu caminho, tao longe, ai Lao ionge I do seu lar... Mulheres ! Como esquecer as Gopis adoraveis, corn as bilhas cheias de leite, a bAca vermelha de betle, os artelhos cheios de guisos 1 Que lindos ranchos de ayes, nas dancas de ritmo le de luz, ao som da minha flauta plena de sortilegio !..,Lembras-te do que dizia Suka, o Sacerdote ?.— " Como ao fogo, que tudo consome, se nao lanca a culpa de urn incendio assim bias corn os Seres Superiores, que transgridem amando, que pecam bebendo na Taca dos prazeres...Mas eu enganei os maridos do Vraj. Suas mulheres ao vir da noite, partiam do meu leito sem vontade para os seus lares. De caminho para Matura, nao querendo ir mal vestido para dar a morte ao rei de Canca, matei, a beira do rio, o lavadeiro que me ao dava de sua roupa, e levamos, eu e meu • OS DEUSES DE BENARES irmao—lembras-te ainda do Balarama ?—levamos colares e joias a urn joalheiro. Ensinei a mentira e a fraude aos filhos de Pandu. Fui eu que proclamei sem pecado o que mentisse para contratar urn casamento, seduzir uma mulher, salvar a vida ou a fazenda em perigo, ou por causa de urn bramane. Eu seduzi Rada, mulher de Agariagocha, e quando o marido enganado passava junto de n6s, transformei-rne em Kali. E o pobre do marido e a mull er, minha amante, adoraram•me de joelhos, beijaram-me os pes. Fui eu que encontrei no meu carninho aquela mulher corcunda e mal apessoada. Tinha ela o feio nome de Kobja, que lembra uma pedra caindo num pogo profundo. Enterneci-me, compadeci-me da fealdade, que é mais dura de sofrer do que a vergonha de uma addltera. Levantando a sua cabega corn o polegar e o indicador, pisando os seus pes com os mews curei-a, e ela ficou direita, ai tao direita, como uma palmeira. Salvei-lhe o corpo e nao venci o desejo de possui-lo. Eu furtei o sari as raparigas do Vraj, quando entravam no lago nuas. Depois...dancei com alas na famosa, luminosa ronda. Eu ergui sobre urn dedo o monte Govardana para salvar da tempestade a b6a gente do Vraj. Eu venci, num famoso combate, reptil invencivel•; e as suas mulheres, que eram tristes, conheceram a dogura do riso e a dogura do ritmo e a dogura da atitude Bela, dangando ao som da minha flauta. Subjuguei o rei Bhuma , o Naral:a, o poderoso demonio ; e as suas dez mil e cem vidvas, foram ininhas, mais as suas oito rainhas. Fui pai de cento e oitenta mil filhos, e destrui•os todos na memoravel orgia de Pribasha. Lembra-te de que sou o Tempo, que tudo devora„ ate os pr6prios filhos. A minha lenda erotica é alucinante I Lembras•te dela ? Ah, sim, nada esqueceste. Mas percebe-la ? Es tu o seu criador, tu que ainda nao sabes o que é o Tempo. E e. tua alma pOe ao lado dessa lenda radiosa e escura Oda a grandeza espiritual do meu Guita, o poema sublime e divino que o Tempo ainda nao devorou. E's como o avarento que guarda no mesmo cofre o oiro de lei e a moeda falsa. E desapareceu como se tocado pela ponta de uma langa. a OS EUSES DE BENARES Lt L .‘,87 0 Deussar Branco acabara de soltar uma gargalhacia e falavame como um velho Gun's a um discipulo impertinente. —" 1 Que yes tu, Madua-Rau, atraves dessa lenda ? E' o sonho que se agita em todas as caveiras, mais ou menos perfeito, mais ou menos escuro, mais ou menos torpe, mais ou menos barbaro. Transformado, aperfeigoado, purificado ou escurecido, 6 o sangue da tua alma e o mel dos teus sentidos. o mesmo sonho que tu, Madua-Rau, e o 'Aria e o montanhez das aldeias Himalaias levais atraves da Vida. Mas repara Nos bois de charrua e nos leopardos do jangle, sonho de vida foi sempre urn desejo vivaz e limpido, sede que busca a fonte, fome que procura a herva ou a presa. Mas em ti tudo se aumenta e se acirra. E' uma sede que nao quere beber a fonte, uma fome que se ergue hostil e tremenda diante do Tempo e o Espago para os devorar. z Mas que te darn esse vinho de imortalidade, que entorpece e paraliza a energia criadora da Forma inumerivel ? Quem te diz que o marmore das estatuas nao foi herva do monte, ou agua de ribeira ? Quem pode dizer-te que nao es pai e filho de ti mesmo, pai e filho de hervas e arbustos ? z L6do e agua, poeiras e ruinarias nao se fazem em ti verbo e pensamento 1... Escuta•me ; sou o Deussar Branco, o demolidor ;dos idolos. Criei-os urn dia em bronze e em barro. Dei-lhes uma alma. Fartei.me de adorn-los. Levei-os pela mao atraves da Historic do Homem, sempre mais brunidos e mais perfeitos. Dei-lhes dia a dia, ano a ano, a minha pr6pria perfeigao, e por pontifires a Paz e a Guerra,.a Fome e a Abundincia. Eles foram atraves da vida do Homem como os rios que dao de beber ao Trigo e ao Cardo. E destrui-os, cancado de adorni-los, envergonhado, de cair de joelhos diante da sua imobilidade sumptuosa e esteril. Era a propria essencia do teu ser, de meu set -, de todo o ser rialte visivel, procurando novas atitudes, formas novas, estimulos e mentiras mais e mais ageis e vivas. E diante de um Passado,lque era a suprema esperanga, e de um Futuro, que seria a luta mais gigantesca, muito recruta fugju da linha de fogo, procurou refugio num sonho, fOra do tempo e do espago.; ali onde a vida nao é luta, onde nunca se ouviria 58 OS DOUSES DE - BEN RES corn a voz doirada dos singos, os ecos dos combates. Sai dessa jaula, a que das o nome de Templo e vem comigo. Ouviste a voz do Passado, como se o sangue dos teus Maiores estivesse a clamar nas tuas veiaa. Ouve agora a voz do Presente, a minha voz, que deixara. de ser ironica ou zombeteira, quando deixares de ser cobarde ou poderas jamais contentar-te corn o sonho que gelou corn a cinza dos Maiores. Nao o esqueCeras, nao deves esquece•lo. Mas vem comigo. E fomos subindo, o Deussar Branco e eu, o discipulO do Mahatma, eu que lam urn dia o agitador das multidoes e dniolidor dos idolos, agora cativo de todos os sonhos do au a' que o homem, como urn gato ao borralho, se alaparda para adorinecer as suas rebeldes energias espirituais. Foinos subindo as cordilheiras mais altas. Toda a vida esta'ia diante de mini, numa faria indizivel. Os jangles e as cidades, as lezirias e os mares, tudo passava diante dos meus olhos. Mas a minha alma voltava•se ainda angustiada e saudosa, para os Templos de Kassi. Eu havia de voltar corn o Mahatma; purificado e redimido, para as povoacoes do jangle. Recobrado ja o divino dom da vista, embora o Mahatma me houvesse dito centenas de vezes, que me tinharn arrancado os olhos. Mas is seguindo. o Deussar Branco, que me prendia e perturbava. Que novas torturas, eram ainda destinadas para a minha imaginacao doente ? Eu sonhava a reintegracao integral do meu set . na Crenca dos Maiores. Urn vatb panteismo, uma vaga crenca supersticiosa no satisfaziam o ,neu espirito. Torturava-o, a mingua de recursos sentimentais, corn as tenazes de uma logica estreita e dura. Era a vergonha, o esmagamento da minha carne. Vagamente, timidamente, ou supersticiosamente crente, ja eu spnhava antes de chegar a Benares, mesmo na Cidade de L\vg. vpi Subimos o pincaro mais alto e ali paramos.. Eram de urn lado milhares de imagens sagradas, doutro estatuas de Herois, Sabios Pensadores, Poetas, Fildsofos. Pareciarn tocadas de urn sopro de vida. Muitos dosses vultos eram para mim familiares, outros inteirarnente desconhecidos. 0 Deussar Branco is-me GS D SES ADE BENARES r, dizendo apressadamente nomes sonoros ou misteriosos, as suas virtudes, os seus defeitos, os seus vicios. Fazia repovoar o ceu de coisas e criaturas, incriveis, lastimosamente impotentes ou inexcedivelniente odiosos. E ernquanto a sua palavra era um cantico, quando dizia a beleza da Terra e da Vida, palpitante e rumorosa, mesmo ao referir-se as dores que rasgam as nossas alrnas, essa palavra amoravel e fina transformava-se em vergalho quando evocava os habitantes do ceu. Eu ja nao encontrava nele sequer um resto do pedante moderno que me alucinara e me torturara durante a minha jornada, corn as suas palestras de sabio feito em cartilhas baratas de propaganda, o que me fazia lembrar o meu prOprio espirito, quando, na cidade, sonhava a cleificacio do homem. Era o Deussar Branco, que me falava agora na beleza da vida natural e simples, da ruina inesgotavel de todos os grandes sonhos de conquista da Verdade absoluta, da necessidade de transformar a Cidade de Luz ensinando-a a amar a Terra, e colocando-a diante da Natureza. Era ele que se ria do industrialismo revolucionario de tudo quanto concorrera para tornar insaciaveis a Forne e a Ude do Homem. Seduzia-me. Era de-certo a tentacao. lira talvez'que a sua zombaria, a sua fraseologia oca, a sua ciencia a retalho, o seu estilo so logravam afastar-me Olhou-me fixamente e disse : Que pensas meu amigo ? Sonhas ainda a reintegraco total do teu Espirito nas SupersticOes dos Maiores ? t Nao te basta apenas para o teu ser, como ambiente de Vida e de Beleza, a espiritualidade que te cerca ? Queres ser imortal ? Nao o conseguiras. Foste dos primeiros a combate•las. Ninguern te convidou... Num movimento espontaneo da tua Rua() ou da tua vaidade saiste a guerrea-los. E's urn renegado. 4 Como é que pretendes rehave-las agora ? Criaste o teu espirito num ambiente hostil as crencas antigas ; aos sonhos dos avos. Agora dez vezes, cern vezes, mil vezes, se quizeres regressar aos ternplos de Kassi, e mil vezes submeter-te aos ditames das ideas que te parecein supremas, mil vezes as tuas ideas erguer-se-ao, diante dosses II OS DEUSES • BEN1rRES deuses, transfiguradas ou rebeis, para te infligirem os suplicios da Dtivida, para te conduzirem pela mdo da ironia, ou do Raciocinio, da Negacao Absoluta. E eu escutava, enlouquecia e deixava que Ele me torturasse ....Aceitava o suplicio sem um protesto, sem uma palavra, sem um gesto Mas punha os olhos suplicantes nas Imagens Sagradas, delas esperando all mesmo o remodio a minha tortura. E o Deussar continuava —Nem sabes o que ha de belo na Religiao dos Maiores. Dias sabes perfeitamente que eu estou na verdade. E' por isso que emmudeces acabrunhado. Porque é que me tfoges ? Eu quero que a tua Religiao nova seja Alegria, 'Beleza, tsorca, Orgulho. Nao te quero feito Rishi porque nao podes se-lo. Os Ascetas, os Grandes, os verdadeiros Ascetas nascem. Eles sentem ate ao deliquio, na solidao das paisagens, nas monta. nhas altas, que se crguem como templos sabre os casais de lavradores e pegureiros, que as alimentam, sim, eles sentem Oda a docura da Terra; das EstacOes, do ceu estrelado. Eles amam a Terra, a Vida, e tao profundamente, tao divinamente, numa aspiracao suavissima, que resumem Oda a sua vida no Nirva na, a reintegracao na vida universal, na Beleza dos mundos. Tu fugirias do teu Iti:ahatma se por urn luar magnifico, o tivesses visto abandonar a sua esteira de junco e it sentar•se a beira dos regatos a beijar a agua ou a beijar o chao. Eis porque Ele se contenta corn o arroz das esmolas. Mas tu I zQueres tu imita-lo,ifilho de Cidade ? Que idea! Estas doente ; os teus nervos lembram mendigos desmaiando de fome. Volta para o Jangle ; iremos depois para a Cidade. Mas eu continuava corn os olhos postos nas Imagens Sagradas, condoidas telvez_da minha! tortura, do meu inenarravel suplicio. —"I Mas porque nao falas pobre amigo ? preguntou-me o Deussar Branco com piedade. —"Nao pass°, nao devo, nao quero falar. Preciso conZentrar-me...Para mim o recolhimento é a contricao, respondi como doido. Ah I mas nao lograris jamais dessas bOcas de pedra a OS DEUSgS DE BENLARES :t .bx reposta que procuras para as interrogacoes da tua alma doente. Os Deuses que te falam sao as criacOes do teu delirio. Consulta, se quizeres, esses idolos de pedra. E Os habitos do teu espirito arredam de ti a possibilidade de te reclinares na docura inefavel da crenca ingenua e simples... Z Queres ?... Perde-te, embete-te na adoracao dos Deuses para que eles te outorguem a imortalidade bemaventurada. —" Basta, clamei aturdido. Tu es o mensageiro do Mal... —" Pois bem, faze a tua consults aquelas Pedras Seculares. Experimenta... Nao hesitei. Levantei-me angustiado e dirigi.me, suplicante mas resoluto, para as Imagens Sagradas. Aproximei-me da primeira delas. Era urn meco e formoso Deus, que parecia sorrir-me corn uma bondade infinita. Parei, ajoelhei a seus pes e fui murmurando as oracoes, os shlocas, os anintras que sabia, truncadamente, confusamente, aturdidamente, mas corn uma esperanca alta e viva a ensopar numa emocao suavissima a minha alma supliciada. Durante horas, tempo esquecido, Ia fiquei num extase. Esperava... Mas que esperava eu ? Que essa esbelta e forte estatua me falasse e me dissesse as graudes, as supremas palavras de resgate. Mas esperava ernbalde... 0 Deussar Branco estava a rneu lado, sorrindo piedosamente, enternecidamente, compassivamente, e logo me disse : —" Que esperas tu desta pedra ? Fe-la tao formosa e forte, tao heroica e nobre a mao do Homem para perpetuar o seu sonho de Vida radiosa, Desejo fecundo, Agitacao infinita das almas ern ascencao. Esse glorioso Sonho dos Maiores, batendo nas penedias, ao embate das ondas revoltas, ei-lo quasi desfeito, moribundo, exangue a estrebuchar na tua came incapaz de se enrijar num movimento de raiva ou de elasticizar-se num arremesso de lidador, a hora fervorosa e nibida dos cornbates. Vamos, vamos...Vem comigo... Mas eu fitava a estatua suplicante. Parecia•me que os seus olhos de pedra se animavam, que o Deus forraoso e forte, como o desejo ineco, transfigurado em sol de primavera, ia. falar-me. . 62 OS DEUSES DE BENARES —" Senhor ! aqui me tens, a teus pes, transido e desamparado...suplico-te..." —" Homem ! porque me afliges ? Ai tens todos os Deuses dos teus Maiores, todos os Deuses da Humanidade ; alegorias gloriosas, que te veera prosternado diante de mim. Vai seguindo, pede-lhes que te respondam ". E emmudeceu. 0 Deussar Branco, porem, parecia cada vez mais senhor de si. Como um guerreiro entrando em urn pais conquistado, o seu olhar penetrava•me, abalando a minha pobre fe que germinava em chao quasi esteril. —" Vai seguindo, se quiseres, dizia. Os teus pes chagados, cobertos do p6 das estradas, nao podem descan,;ar aqui. Era mais natural, mas o teu destino nao e o repouso, a paz, a docura do sono nas alfombras a beira dos regatos. Ah, como nao seria inefavelmente suave parar aqui, entrar nas aguas espelhantes, que correm a beira do teu caminho e deixar-se acariciar, abracar amprosamente pelas limpidas linfas, com os seus longos bravos de veludo fluido, perfumado pelo junquilho e nendfares. Braces de virgem noivando, apagariam na tua came Oda, a fadiga da jornada num grande, amoroso, fundente abraco. Mas tu vais como urn cego, pela mao do seu Destino ainda mais cego do que tu. Vai ; acompanhar-te ei ". —" Deixa-me it sbzinho, deixa", bradei ja perdido o tino. E segui... Milhares, milhoes de Imagens Sagradas, misteriosas, fantasticas, formosas ou feias, estavam alinhadas diante de mica, como urn exercito numa parada diante de urn general. Ah, se de uma dessas becas me viesse a palavra redentora E o Deussar, como se me houvesse adivinhado o pensamento. " Interroga-as, meu filho. g Quern te proibe ?• 0 medo, o receio, a ddvida, a certeza talvez da.desilusao que te espera ? Bern no fundo da tua alma esta a dolorosa verdade. A fe larga e simples, luminosa e serena dos Maiores ja nao pode viver nesta atmosfera maldita. Que importa ! Bastava-te a ti, no descalabro dos valores espirituais, comecar por criar o amor da Terra, que foi teu berg() e é o teu lar e sera a tua sepultura. Os Rishis, que aspiram a Deus, einbebem-se, perdem-se na adoracao de Prithivi, a Terra multiforme e bela. Eis porque OS DEUSES DE BENARES 1; 63 Eles sao serenos e fortes, e a Davida e a Dor os nao tortura, e Deus vem falhar-lhes, s6b os luares magnificos, nas solidOes augustas, pela boca das hervas, das arvores, dos ventos, das flores...Ainda na voz poderosa e ululante das tempestades, Eles encontram a palavra da Beleza e da Perfeicao Suprema. Aguas de regatos mansos ou de torrentes caudalosas dizern-lhes tAda a poesia e todo o encanto da Vida, divino sortilegio a que desejas fugir, nitro indomavel que me exalta ate ao Ceu g Mas tu queres interrogar essas pedras, pedir-lhes a restituicao das antigas crencas que ajudaste a destruir, entregar-lhes a tua alma, como uma taca vasia, para que te encham de fe ? Vai, pobre amigo, vai...Af estao essas pedras sagradas diante dos teus olhos: Interroga-as..." E eu, desesperado, numa irritac.ao sem nome, pondo dois dedos nos ouvidos : —" Deixa-me, deixa•me..." E parei diante de Krishna, que me pareceu voltar a face sorrindo, corn uma ironia ma. Cal prosternado a beijar o p6. De repente, como se urn largo sopro de vida Macre e forte passasse atra yes de t6das essas imagens, pareceu•me moverem•se, abrirem grandes olhos surpresos, cheios de crispac6es de lume, e urn longo, lascivo, zombeteiro riso ondular, gorgulhar, estrondear no ar, caindo sabre a came da minha alma, nda e transida, como um graniso sabre a came de uma virgem ou de uma crianca. Ia-se-me tudo escurecendo . aos poucos ; os meus olhos apagavarn•se como duas tochas ' levadas atraves de uma chuvosa noite de Junho. Nesse riso, que era agora uma grande, grosseira gargalhada havia uivos de chacais e silvos de capelos, como facas agudas riscando corn voltipia meu peito. Nem sequer ouvia agora a voz do Deussar Branco, nem a do Mahatma, tao acolhedura e profunda. A onde iria eu, meu Deus ? g Para onde fugir ? Nao sei...Mas se daqui a Mr-9a quizessem levar-me arrancando•me do chao a que me prendera como uma talagoia, eu nao iria de certo emquanto nao tivesse ouvido a Palavra Sagrada, a Suprema Palavra que me havia de sarar e purificar. Ja o Deussar Branco me aconselhara : era preciso, era 411111PIPIE 64 OS DEUSES DE BENARES indispensavel, para a tranqiiilidade da minha alma, que interrogasse as imagens sagradas, agora animadas -,de uma vida talvez efemera, mas potente e profunda, cheia embora de uma impiedosa alacridade, que se desentranhava em zombarias e sarcasmos. E, numa resolucao inquebrantavel, ergui-me do chao', fixei um instante as imagens, que ainda se agitavam, banhadas no esplendor de um ocaso glorioso, exclamei : —" 0' Davas dos Maiores 1 Senhores do Universo, que protegestes Rama, criaste a Beleza e a Forca 6 Deuses que eu esqueci na fadiga dolorosa da minhajornada, nos ardentes caminhos da Cidade, nos pantanos onde estagnava o meu desejo adolescente, o meu sonho juvenil ! eu procuro-vos, venho em busca da Jampada que me alumiava atraves da minha Noite em que me perdi..." —" Homem ! que queres to de nos ? Dize, fala mas dine depressa.Deixa para depois as grandes falas solenes que aprendeste na Cidade..." ' —" Deuses 1 eu quero rehaver as crencas dos Maiores..." E quedei de medroso...Um curto silancio, pesado, horrivelmente frio, como se um lencol de gal° envolvesse tudo urn instante... Mas eu, impulsivo, irresistfvel e veemente : —" Quando sereis comigo, 6 Deuses dos Maiores ? E todas essas Incas de pedra se abriram, todos asses olhos chisparam lume, mais vivamente se agitaram as imagens, e a sua voz forte e fremente, como um breve relampago de peconha varou a atmosfera .2undido num Longo, longinquo e alucinante grito: —" Nunca mais ! " A AMBROSIA (C ON TO) pelo Prof. Laxmatiroo Sardessai S6cio Efectivo do tusliluto Menexes Braganca um dia, ere saiu da case, em Tonga jornada, cm busts da J ambrosia que nos Ultimos anos tinha sido o seu ideal e sua obcessao. Irritava-se quando os amigos !he lancassem Sorrisos maiiclosos, ou disscssern que a ainb;6sia nao passava dunes convencao poetics. Outros mdavam do pobre jovem que. cm sua opiniao, vivid no reino de utopias, e em vez de procurer Lima bela noiva c abracar uma profissao rendosa, falava, dia e noire, daarobrOsia. E argumentava apaixonado, em favor dense bem =upremo que p havia de livrar a humanidade do maior flagelo quo a atornienta. desde tempos imemoriais : a More. SO e ambrosia rodera propera felicidade integral, habilitando-a a fruir todas de:icias ~da da vida mundana, perenemente, -sem - nenhum estorvo, SCM .nenhurna sombra de medo, e em Bozos continuos. Seria a ambrosia tuna convencao, urn conceito ilusOrio ? No podia ser Entao sao falsos os Vedas e es Puranas e os poemas epicos que cantam gloria desde licor divino, extraido do seio dos mares pelos proprios deuses? 0 Pamayana raid do 'Puspak ., aeroplane (Ivo hole e urna realidade. A radio, a televisao, a bomba atomica, c outras armas nucleares que mais nao sac sena° a materializacao dos ideals e ilusoes ou utopias poetizadas nos livros sagrados de eras remolds ? Sim, so a ideia e real, porque dela nasce o 'nuncio concreto,. palpavel. A ideia gera milagres, cria misterios. do que o mundo esta cheio e que representam o progress° humane. Vio, a ambrosia, tao falada nos Vedas, tae querida dos deuses, porque hies days a imortalidade, nao pod' scr Lima ilusao uma uropla Pensava . L discuriar, certeza da SUd assim , yorojpw".. 1 326 BOLETI M DO INSTITUTO MEN EZ ES BRAGANcA Corno 6 curia e efemera a vida humana! A morte empolga ludo corn facilidade e destreza assombrosas. Ninguern pode dete-la. A beleza, a force, a opulencia, nada disso pode evitar a sua temerosa garra, garra fatal, que Lorna o bolo corpo human° denrro de instances, urn farrapo que o logo devora ou a terra decompere. A terra esta semeada de belezas. Fla-as no mar, calm° ou proceloso, e no ceu azul ou nublado. As nuvens do firmament°, as ondas do mar, a aqua dos lagos e as flores qua neles desabrocham e baloucam, tecidos de mil cambiantes de cor, perfumes embriagantes, faces de virgens, o canto des eves, tudo isso a tap bolo! Mai a vida humana a infinitarnente curia e fragil para sentir, prover, abracar todas essas delicias, corn que a natureza dotou essa maravilhosa terra. Mas, to esta a .rnorte hedionda, de fauces escancaradas, a vigiar, e espiar cada movirnento conscience ou inconsciente, de entes humanos, e se ela a astute nos seus designios e feroz na sua execucao. Coma mesina calma e insensibilidade arrebata uma crianca dos bravos da sua mae ou apaga o sopro da vida duin filosofo que procura decifrar os mist6rio da vida, da morte, de Deus. E ela surpreende-nos, colhe-nos a quaiquer moment°. 0 automOvel na corrida vertiginosa atropela a crianca que, despreocupada e alegre, atravessa a estrada, e la esta a torte toda poderosa, a extinguir tium relance a chama da vida tenra. Ele tinha presenciado, corn infinite tnagoa, tantas mortes dos seus amigos, vizinhos, parentes, alguns dos quais jovens, corn grandes ambicties e sonhos da vida, colhidos instantaneamente pela E para ctImulo da desgraca, urn dia. garra da morte soberana. quando entrara ern casa, 2ncontrara a sua mae e os seus dois a Desde aquele momento rinha irmSos varados por urn raio do Cu. encetado uma batalha feroz contra a rnorte que desapiedadamente acabava de roubar os seus entes mais queridos. Sim, ele queria mater a prtipria morte! Safu, por isso, de casa ern longa jornada, em busca da ambrosia que, estava certo, algum dia, apanharia ern alguma parte, e depois todos os homens gozariam es delicias eternas da vida! ' E 36 o homem, porque bavia de morrer ? Perguntava a sl prOprio. Passam milOnios e o c6u, a terra e 0 mar, estao eternamente a mover-se. Os rios, os monies, os astros, tudo. ludo animado do movimenro e vida, desconhprp n horror da mom., e o homem que e a criacho sublime de Deus, feito a sua semelhanca, o Inventor de descobertas, so ele, porque hd-de ser a vitima 4 A AMBROSIA 327 dos caprichos da morte que nenhuma lei regula ? 0 homem quis controls-le e descobriu a ambrosia, licor divino que expLIsa da face da terra esse espectro ttrico. Sucracharla era possuidor do do mantra " Sanjivani "que fazia ressuscitar os demonios mortos nas batalhas pelos deuses. E os deuses possuiam a ambrOsia. E agora ele marchava a p0, descalco, arrostando os rigores do Sol, fixando-se urn ou dois dias, ern cads aldeia, interrogando os seuvhabitantes sobre 0 paradeiro da ambrosia. Uns condoidos procuravam dissuadi-lo dessa tarefa ingloria e fatal. Outros trocavam, vendo nele urn louco que, urn belo dia, havia de sucumbir ao excesso de fadigas ou a inanicao ou arremessado como um farrapo pela ventdnia dos desertos., Uma noire, urn bramane, bone e compassivo, hospedou-o em sus casa, e ofereceu-lhe urn copo de leite puro, e em palavras meigas falou assim : " Jovem amigo !. 0 leite que hebes é a ambrosia deste mundo. Porque vais arriscar a tua vidd por uma coisa imaginaria ? E o iovem magoado saiu da case sem tocar naquela behida fresca, rindo - se dd ignor3ncia do bran-lane. E prosse,:rulu 11 -1 sus jornada. Nadel o detinha, nada o desanimaya. Percorreria longas distancias, atravessaria montes e deserlos, e chegaria um dia do tic dos Himalaias onde qualquer " yogui - ou eremita hdvia de apornar-lhe o segredo da ambrosia, corn que havid de redimir a hurnaniddde do flagelo da morte. Decorriam meses e a sus Iona jornada cominuava, de mil perigos, e nao hdvid noticia certa dd ambrosia. Penetrou locais de mail dificil dcesso. Visitou erem:terios onde os Faquires e os Yoguis faziain penitencia. Einrou nos antros de (eras, devdssou vetustos montimentos, conversou corn pessoas que, abstrdindo-se de todd d mdteridlidadi: viviam, quaffs sombras no mundo esniritual do Nirvana 0,1 Brdaad Elas confortavarn-no contanto histOrias dcerca que nunca iinham visto, mas que devia existir ern qualquer lugar secret°, guardadd pelas maos dos deuses. Perdia o medo da morte que dances temid. Dotninava o sett coracAo e os seus instintos Tinha-se identificado Innin corn ambrOsia que nrlo se imnortava corn os snfrwRmos seu ideal, d 0 seu corpo eSidVd magro, siin, mas riio como dS necirds. Amevia 32s 130LETIM DO INSTITUTO MENEZES 1312AGANcit a humanidade, rejuvenescida, imortal coma sua ambrOsia idealizada Assim errou durance iris meses. Urn dia, chegou as faldat. duma montanha onde viu num covil, urn eremita absorto em meditacao. Curvou-se reverente perante o velho singular. 0 homem abriu os olhos, viu o jovem a quern abencoou murmurando: " Seras imortal, meu filho." "Como posso ser imortal, sem a ambrosia que procuro ? " A tua infinita fe fara que enconlres a ambrosia." " Sera isto possivel ?" " Porque nao ? Se o hornem coma sua fé pode alcancar prOprio Deus, porque nao alcancara a atnbrOsia, que é a sua cria E meditando por alguns minutos, o eremita .assim pros seguiu : " Marcha em direccao do norte. Ap6s urn dia de cami nhada encontraras urn deserto. Atravessa-o. No extremo, encon iraras, esculpido numa macica pedra, um pequeno tempi°. Est, sera o terrno da tug viagem e teras a ambrosia que desejas." ? '4 " 0 iovem reanimado por essas palavras do santo eremite marchou na direccao do norte, ansioso por chegar, quanto ante ao templo indicado e alcancar a ambrOsia. Depois duma jornada de dez leguas entrava no deserto. sua decisao e a sua esperanca davam-lhe agora novas forcas qu impeliam pars diante o seu corpo cansado. 0 sol queimava-r Nao havia sombra onde se acolhesse. As nuvens de areia turva vam a atmosfera asflxiante. Em redor nenhuma criatura human, nem ayes. So miragens de agua e muito longe urn arvoredo na faldas do monte a desenhar-se no horizonte turvo. E o iovem marchava agora, lento, corn urn passo pesado tremulo. Eslava sequioso. Lima labareda a arder nas entranhv 0 vento qual ferro ern brasa Iambic o seu corpo esqueletico, preste. a ceder, perante a rajada do vento e a procela da areia escaldantt Mas is-se aproximando do arvoredo onde havia de descobri o tesouro de infinita felicidade : a ambrOsia. Agua! Agua! Clarnava todo o seu ser. Tremia, balouca•, como embriagado mas endireitava•se logo, sacudindo corn esforcr o torpor que perpassava pelos membros. Parecia-lhe agora que i. cair e dormir pars sernpre o sono da eternidade. • • ..1:NA )S1A 329 Mas a lembranca da ambrosia era tao forte que, sob:'essaltado, arremessava para diante corn impulso poderoso, o seu corpo tao ligeiro outrora, mas to pesado agora. "Meu Deus! Vou rnorrer! " gritou numa voz fracas " Quern me thud um pouco de cigua ?" A cinquenta passos pOde lobrigar o arvoredo. Perdia a noc5o das coisas. Tudo se confundia no nevoeiro denso, is perder a consci&icia, os sentidos ja nao podia arrastar-se. Ofegante, de olhos semi-abertos, a Ifngua de for& o corpo suarento. E neste estado tombou precisamente, guard° corn um exiremo esforco, queria dicancar o arvoredo. Decorreram alguns moinentos. 0 jovem sentiu, emao, urn delicioso !icor perpassar pela garganta e descer ate as entranhas, inundando o seu ser, de stibita frescura e vide). Abriu os olhos, extasiado. Neste moment° de extrema felicidade, balbuciou : " ArnbrOsia!" Eque urn eremita condoido da sorte do iovem idealista estava a ministrar-lhe a agua da fonte
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