Sebastiao Uchoa
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Sebastiao Uchoa
SEBASTIÃO UCHOA LEITE 1 Sebastião Uchoa - (Timbaúba, 31 de janeiro de 1935 — Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2003) foi um poeta, ensaísta e tradutor brasileiro. Em Recife estudou direito e filosofia, foi professor, trabalhou na Rádio Universitária, participou de Estudos Universitários e do grupo de O Gráfico Amador e co-dirigiu o suplemento literário do Jornal do Comércio. Mudou-se em 1965 para o Rio de Janeiro, onde fez parte do grupo da revista José, tendo trabalhado em diversas editoras, na Enciclopédia Mirador Internacional (com Antônio Houaiss e Otto Maria Carpeaux), na Funarte e no IPHAN. Sebastião Uchoa Leite publicou os seguintes livros de poemas: Dez sonetos sem matéria (1960), Antilogia (1979), Isso não é aquilo (1982), Obra em dobras (que reúne os anteriores, além de Dez exercícios numa mesa sobre o tempo e espaço, Signos/gnosis e Cortes/toques, 1989), A uma incógnita (1991), A ficção vida (1993), A espreita (2000) e A regra secreta (2002). Publicou também os livros de ensaios Participação da palavra poética (1966), Crítica clandestina (1986) e Jogos e enganos (1995), além de ter traduzido várias obras, como Alice no país das maravilhas e Através do espelho, de Lewis Carroll, Crônicas italianas, de Stendhal, Signos em rotação, de Octavio Paz, O momento futurista, de Marjorie Perloff, e Poesia, de François Villon. Em 1980, ganhou o prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro Antilogia. Este prêmio foi ganho outras duas vezes, na categoria tradução, em 1998 com Crônicas Italianas de Stendhal (junto com Rodolfo Ilari - por Brevário de Estética e José Paulo Pais - por Asce - Os Salvadores de Deus) e em 2001 com Poesia de François Villon. Sebastião Uchoa Leite, é um poeta para poetas. Sua morte prematura consternou o meio literário brasileiro. Na ocasião, Ferreira Gullar destacou suas qualidades éticas e o requinte de seu fazer poético, a despeito das divergências estéticas que tivesse com o falecido poeta. 2 Metassombro Sebastião Uchoa Leite eu não sou eu nem o meu reflexo especulo-me na meia sombra que é meta de claridade distorço de intermédio estou fora de foco atrás de minha voz perdi todo o discurso minha língua é ofídica minha figura é a elipse de Antilogia, 1979. 3 Biografia de uma Idéia Sebastião Uchoa Leite ao fascínio do poeta pela palavra só iguala o da víbora pela sua presa as idéias são/não são o forte dos poetas idéias-dentes que mordem e se remordem: os poemas são o remorso dos códigos e/ou a poesia é o perfeito vazio absoluto os poemas são ecos de uma cisterna sem fundo ou erupções sem lava e ejaculações sem esperma ou canhões que detonam em silêncio: as palavras são denotações do nada ou serpentes que mordem a sua própria cauda Publicado no livro Antilogia (1979). In: LEITE, Sebastião Uchoa. Obra em dobras, 1960/1988. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro enigma) 4 Sangue de Pantera Sebastião Uchoa Leite negra e inalterada por trás das grades lembro seus olhos parados não era mais um olhar era uma idéia de Isso não é aquilo, 1982 5 Esboço Sebastião Uchoa Leite Se você pensa que poesia é escamoteação acertou. Metafísica é a meta dos mandriões Mas se pensa que é um escaveirado corrupião: acertou também. Linguagem é a mira dos idiotas. 1984 6 Outro Esboço Sebastião Uchoa Leite A serpente semântica disse: não adianta querer significar-me neste silvo. Meu único modo de ser é a in sinuosidade e a in sinuação. Não é possível pensar a verdade Exceto como veneno. 1984 7 Enigmóides Sebastião Uchoa Leite espelho ao avesso sobre o abismo já sou mais isso do que eu mesmo reflexo antevisto do caos amórfico informe e vasto sonho malérico 1989 8 Envoi Sebastião Uchoa Leite digam ao verme que eu guardei a forma e a essência felina de meus amores decompostos in A uma incógnita, 1990 Questões de método Sebastião Uchoa Leite (Carta a Regís Bonvicino) um monte de cadáveres em el salvador —no fundo da foto carros e ônibus indiferentes— 9 será isso a realidade? degolas na américa central presuntos desovados na baixada as teorias do state departament uma nova linha de tordesilhas qual a linha divisória do real e do não real? questão de método: a realidade é igual ao real? o homem dos lobos foi real? o panopticum? o que é mais real: a leitura do jornal ou as aventuras de indiana jones? o monólogo do pentágono ou orson welles atirando contra os espelhos? De Isso não é aquilo (1982) 10 Precisamos Sebastião Uchoa Leite de inteligências radar e sonar para captação de formas. A poesia é um repto. Não (necessariamente) um conceito. Uma identificação de ecos por onde o ininteligível se entende. De Cortes/Toques (1985) 11 Anotação: A obra lírica Sebastião Uchoa Leite certa vez vindo da lateral do campo de santana e entrando célere, na azeredo coutinho direção: arquivo como um josef k qualquer deparei-me com algo da espécie dita "humana" de cócoras pondo ali seu ovo atravessei e pensei que ali era 12 a obra no sentido literal. De A ficção vida (1993) A ficção morte Sebastião Uchoa Leite penso em meu pequeno fim ouvirei zumbidos? sugado pela zona de vácuo? ou zero-corpo polidimensional subindo ao teto espiando-me de cima os outros em torno vozes mentalmente exaladas dizem ouvir-se um trinado muito alto sem zumbidos mas aí adeus morro de susto outra vez dentro da morte 13 Antimétodo 2 Sebastião Uchoa Leite pouco a pouco embaralho tudo e nada sou meu próprio espantalho fujo de mim mesmo finjo-me da minha própria esfinge perdido em meu próprio labirinto sou o que sou ou minto? será isso uma regra secreta? Plaisirs d'amor Sebastião Uchoa Leite na transilvânia em esquife esquálido só acordo nos pesadelos dos mortais normais minha norma é não ser mas ao vê-la a efígie em medalha 14 adoeço da mortalidade embarco espalho ratos em meu rastro enfim te avisto em reflexos a mão sobre o peito exangüe enlouquecendo desse sangue transporto-me para o teu quarto unhas em pique dentes em ponta mas quando o galo canta desapareço em chamas Numa incerta noite Sebastião Uchoa Leite calculo as ruas que atravesso vendo a copa das árvores guiado pelas folhagens profusamente imerso na vertigem inversa da hemorragia verde do ciciópico olho vegetal que me contempla 15 Realidade Sebastião Uchoa Leite não a das clínicas imaginários dos pesadelos gritaram o meu nome três vezes dormi outra vez sussurro ao pé do ouvido uma das minhas irmãs "já dormiu demais" acordei no outro dia insonhado era a mera realidade Antipoética de Houdini Sebastião Uchoa Leite atado pelos pulsos na cama arranco os fios à noite? mal acordo e sou o arranca-fios! estude os nós tudo é desatável pela atenção paciente sou houdini o mágico mas jamais afundaria nas águas acorrentado numa pedra 16 Uma traição (o sobrinho) Sebastião Uchoa Leite "vou sentar-me" — falei — "para conversar melhor" ato contínuo chamou a assistente "você é um traidor" eu disse riu isso não é o som e a fúria ri também estive só por vários fios e acordei nesse aquém Vigília sonora Sebastião Uchoa Leite aplicou-me um indutor na veia embora eu pedisse água veia crê em soníferos? insônia eletrônica a noite toda uma insônia bípica "ao menos não me assassinaram" cintilei às cinco no êxtase lúcido da vigília do sono 17 As irmãs Sebastião Uchoa Leite indagou se eu a reconhecia que era sério concluí breve vieram do recife as duas uma é sólida transmite matéria densa a outra é insólida escala nuvens etéreas a terceira é uma faísca elétrica. vivo "na macia atmosfera do mundo da mulher" Insônia Respiratória Sebastião Uchoa Leite antes nunca ouvira o invisível poema do respirar: não ouvira nada só o silêncio dos órgãos mas o segredo da vida era isso quando ninguém se lembra do corpo que de fato é feito da mesma matéria 18 A Morte dos Símbolos Sebastião Uchoa Leite demônios tigres punhais serpentes enforcados corvos espelhos labirintos mandalas livros caixas relógios mapas chaves números mágicos duplos metamorfoses monstros vamos destruir a máquina das metáforas? Publicado no livro Isso Não É Aquilo (1982). 19 Anotação 18: A Vida Sono Sebastião Uchoa Leite cabeceio tonto ao monitor acordo em visgo pálpebras de pedra letras bêbadas de âmbar e entro barco ébrio de tantos roncos pernas bambas o boxeur erguendo-se da lona sono-dança do intelecto entre as idéias o diabo logos fixa as peças do texto-sono 1992 Poema integrante da série Anotações. In: LEITE, Sebastião Uchoa. A ficção vida. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993 20 As Categorias Límpidas Sebastião Uchoa Constroem tocas em margens de córregos e riachos, e passam quase toda a vida na água em busca de larvas e insetos e cutucam sedimentos de aluvião com os bicos. Os machos têm espora afiada e oca nos calcanhares, que se liga a uma glândula venenosa na coxa. Os organismos ovíparos formam ovos no corpo e óvulos muito protoplasmáticos onde o plano de clivagem não consegue penetrar e dividir a extremidade vegetativa, ou seja, a clivagem meroblástica caracteriza vertebrados terrestres répteis ou pássaros. Caldwell enfatizou o caráter reptiliano desses mamíferos paradoxais, mas navegadores europeus por muito tempo foram ludibriados por taxidermistas chineses e por costuras de cabeças e troncos de macacos às partes traseiras de peixes. Porém não se conseguiu achar emendas ou costuras. O enigma interno sendo ainda maior, contudo, os primeiros evolucionistas franceses insistiram em que a anatomia não podia mentir: os ovos, eles bradavam, acabarão por serem encontrados um dia (naquele tempo ainda não se encontrara glândulas mamárias). Saint- 21 Hilaire manteve acesa a chama da oviparidade. Caldwell solucionou um mistério específico, intensificando, porém, o problema geral. A natureza clamava pelas categorias límpidas, pois é impossível vencer num mundo assim: ou se é um primitivo prima facie ou especializado por uma simplicidade implícita e oculta. 1991 Poema integrante da série Informes. In: LEITE, Sebastião Uchoa. A ficção vida. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993 22 Cortes/Toques Sebastião Uchoa Van Gogh cortou a orelha O Pequeno Hans tinha pânico de cavalos Landru queimava mulheres Manson & Família Riscaram Pig com o sangue das vítimas No subúrbio do Rio acharam Mulher tapada numa cisterna Papéis jornais recortes Grandes entulhos e um canal É difícil entender a desordem Há um ano ela olhava o mar desta janela Nefesh Nafs Atman Que quer dizer alma? Bombons envenenados no Japão Parece a corcunda de Kierkegaard Um toque de dedos rápido O prazer de alfinetes Aqui é o limite: atenção Como o punctum de uma foto A orelha cortada é uma sinédoque. 1984 Poema integrante da série Cortes/Toques, 1983-1988. In: LEITE, Sebastião Uchoa. Obra em dobras, 1960/1988. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro enigma) 23 Depois de Borges Filológico Sebastião Uchoa Amarelo amarillo amariello yellow As flores amarelas Os amores amarelos Os sorrisos amarelos As desculpas amarelas Inveja Ciúmes Melancolia Bílis O pó das coisas Que amarelecem com o tempo: Papéis Folhas Líquidos Humores O próprio pó do tempo. 1984 Poema integrante da série Cortes/Toques, 1983-1988. In: LEITE, Sebastião Uchoa. Obra em dobras, 1960/1988. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro enigma) 24 Digitações Sebastião Uchoa A poética é uma máquina Há um código central Em que se digita ANULA É a máquina do nada Que anda ao contrário Da sua meta A repetição é a morte Noutro código lateral Digita-se ENTRA E os cupins invadem o quarto 1990 Poema integrante da série Máquina de Signos. In: LEITE, Sebastião Uchoa. A uma incógnita, 1989/1990. São Paulo: Iluminuras, 1991 25 Fragmentos Cósmicos Sebastião Uchoa Todo sistema tende A um grau crescente de desordem Onde depositar O lixo cósmico? Informação é matéria prima A paciência é elástica Inflar bem lento e explodir Como no Big Bang 1990 Poema integrante da série Máquina de Signos. In: LEITE, Sebastião Uchoa. A uma incógnita, 1989/1990. São Paulo: Iluminuras, 1991 Máquina Sebastião Uchoa Máquina de signos Gnosis de si mesmo Nós cegos de nomes Rota de desígnios Ou máquina do sono Que revira o corpo Tudo gira em torno Do nada onde somos 1990 Poema integrante da série Máquina de Signos. In: LEITE, Sebastião Uchoa. A uma incógnita, 1989/1990. São Paulo: Iluminuras, 1991 26 Não me Venham com Metafísicas Sebastião Uchoa o corpo e a matéria em prosa aqui e agora nada de primeiros motores nada de supremos valores isso fica para os filhos da pátria nem francisco de assis nem santa teresinha amai-vos uns sobre os outros nada de temores e tremores nem de noite escura da alma a prosa é preferível "sei de um estilo penetrante como a ponta de um estilete". flaubert é só isso Publicado no livro Antilogia (1979). In: LEITE, Sebastião Uchoa. Obra em dobras, 1960/1988. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro enigma) 27 Numa Incerta Noite Sebastião Uchoa Calculo as ruas que atravesso Vendo a copa das árvores Guiado pelas folhagens Profusamente imerso Na vertigem inversa Da hemorragia verde Do ciclópico olho vegetal Que me contempla 1991 Poema integrante da série Incertezas. In: LEITE, Sebastião Uchoa. A ficção vida. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993 28 Pequenas Idéias Fixas Sebastião Uchoa coisas limpas de ar condicionado sem pesadelos escritos rasos le mot juste objetos diretos colocados precisões do ostinato rigore lancetas bisturis agulhas conceitos vermes "la consciencia me sirve de gusano" grafitti críticos "somos o carnaval das multinacionais" observações ao acaso "um leão é feito de carneiros devorados" do poeta da idéia fixa coisas secas escritos de gravetos greves inscrições de w.c. "uma coisa é certa poeta de privada vive inspirado na merda" Publicado no livro Isso Não É Aquilo (1982). In: LEITE, Sebastião Uchoa. Obra em dobras, 1960/1988. São Paulo: Duas Cidades, 1988. (Claro enigma) 29 Poemontagem para Augusto dos Anjos Sebastião Uchoa sombra magra de esqueleto esquálido ossos destroços se carcomem o homem úmeros números negros de homem húmus um grande verme passeia essa epiderme agregado abstrato abstrações abstrusas criptógama cápsula e ventres podres dentre as tênebras de obscuro orbe qual minha origem? pergunto na vertigem sonda hedionda assombra a minha sombra essa futura ossatura e agras vísceras incógnitas criptas do ovo primitivo plasma do cosmo treva do nirvana homem engrenagem da língua paralítica no orbe oval de gosmas amarelas eu perdido no cosmos corpo inerme de mim diverso um coveiro do verso Publicado no livro Antilogia (1979). 30 Ludwig im Traum Sebastião Uchoa Wittgenstein não entendia Os poemas de Trakl Provavelmente Georg entenderia Ainda menos Os filosofenas de Ludwig Ainda assim Ludwig financiou-o Não é o amor que move o Sol Muito menos as estrelas O filósofo sabia mas O saber Preferia calar (1994) in a espreita (Ed. Perspectiva, 2000) 31 Outro puzzle Sebastião Uchoa Não me busquem nos baús De aranhas metafísicas Não estou dentro A lo mejor, soy otro (Como disse Vallejo) À grande dor de estar vivo (Como disse outro espécime) Prefiro o ignoto Hic fuit!* Não assino nada (1997) in a espreita (Ed. Perspectiva, 2000) *a expressão latina, Hic Fuit, remete a livro de Ovídio (43 A.C- 17 A.C) - Remedia Amores - que, em contraponto didático ao anterior Arte de Amar, é uma reflexão sobre o desapaixonar-se: et loca, saepe nocente; fugito loca, conscia vestri concubitus; causas illa doloris habent. "hic fuit, hic cubuit, thalamo dormivimus illo; hic mihi lasciva gaudia nocte dedit!" os lugares são frequentemente nocivos; evita os lugares que assistiram a vossa paixão: podem causar sofrimento. "aqui esteve ela, aqui se deitou, dormimos naquela quarto, aqui me levou ao êxtase durante uma noite de prazer!" Protegido pela Lei do Direito Autoral LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, modificado e que as informações sejam mantidas. 32
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