1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UFRO Departamento de Ciências Jurídicas – DCJ ESTADO MODERNO características e conceito elementos de formação instituições políticas natureza jurídica atualidades Vinício Carrilho Martinez (Dr.)1 2013 1 Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais; Doutor em Ciências Sociais pela UNESP e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito, é jornalista. 2 Partes deste trabalho foram publicadas em revistas e sites especializados; no entanto, espaçadamente, todos os itens foram publicadas no site Gente de Opinião: http://www.gentedeopiniao.com.br/colunista.php?news=104. A iniciativa é parte de um projeto de extensão universitária desenvolvido no Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia, no ano letivo de 2013. Portanto, é um projeto institucional. O objeivo foi sempre expandir, popularizar e tornar acessível, gratuitamente, o conhecimento pertintente à política, ao Estado e ao Direito. Literalmente, tratava-se, desde o início, de “atualizar” o conhecimento (a espitemologia política) para que pudesse ser virtualizado (Lévy, 1996). Para facilitar a consulta, o texto está dividido em vários capítulos postados relativamente em ordem cronológica – a não ser nos casos em que a lógica sequência dos temas deveria ser garantida – e também em duas grandes subdivisões: 1. Fundamentos das disciplinas; 2. Estado de Direito. 3 Resumidamente, trata-se de um amplo resumo articulado que recupera os elementos e as características do Estado desde a sua formação, observando-se historicamente a partir do Estado Moderno. Para efeito didático, o texto está dividido em itens específicos. No livro, veremos o conteúdo específico que compõe o objeto de análise da Teoria Geral do Estado, bem como uma configuração preliminar acerca da política, do poder e do Estado, seus elementos e variações limitadas e que os celebram como conceitos clássicos. O trabalho tem uma finalidade exclusivamente didática, a fim de que possa ser lido como manual para iniciados em Ciência Política e Teoria Geral do Estado e, por isso, não se trata da proposição de teses inovadoras. Há ainda um destaque maior quanto aos elementos e conteúdos de natureza jurídica, a fim de que se possa ler no Estado Moderno uma estruturação política, institucional e jurídica particular. O livro pode ser utilizado tanto nas disciplinas relacionadas à Ciência Política e Teoria Política, quanto especificamente em Teoria Geral do Estado. Além de muitos outros conceitos, clássicos e contemporâneos, o texto se propõe percorrer determinados elementos, como: Ciência Política; Teorias do Estado; Estado Moderno; Estado de Direito; República; Estado Democrático. 4 Dedico este trabalho à minha esposa, Fátima, pelas incontáveis discussões e sugestões aqui incorporadas – e pelo meu amor; à minha mãe, Dalva, pelo carinho de sua criação e pelo amor de mãe; ao meu, Saturnino, e meu irmão, Wagner, que já partiram, mas que preparam o seu retorno para breve. Também dedico o trabalho a todos os colegas de trabalho pelos debates e acareações, bem como aos meus alunos que, com sua participação, levaram-me inúmeras vezes a ponderar novamente sobre muitas questões e suas verdades restritas. Ao amigo Chico Lemos, pelo espaço cedido no site Gente de Opinião – sempre com total lisura, sem nenhuma forma de censura. Aos meus professores que me fizeram chegar até aqui. 5 PARTE I FUNDAMENTOS DAS DISCIPLINAS 6 FUNDAMENTOS DAS DISCIPLINAS Estudar a política é estudar os clássicos e isto nos é fundamental porque esses autores e suas obras revelam ou nos ensinam o caminho para desbravarmos alguns dos principais segredos e mistérios da condição humana – sobretudo se aceitarmos a ideia de que o homem é um animal político que só se realiza no fazer-política. Neste caso, trata-se de visualizar, por exemplo, o que torna o homem um ser sociável por excelência, mas que só se completa como zoon politikón. A natureza tem muitos animais sociais, incluindo o homem que é um ser tendente à sociabilidade; mas apenas o homem é um animal político. Ou seja, além de ser social, o homem é – em um plano superior de sua organização social, mental – capaz de criar um tipo mais específico de organização: as instituições políticas. A sociabilidade pode ser adquirida (como moral, por exemplo) ou herdada, pelas tradições, como um a priori. Contudo, somente a política resulta da razão como fabricação humana. Teoria Geral do Estado A Teoria Geral do Estado é uma doutrina que foi sistematizada no século XIX, na Alemanha, por Jellinek. Comparativamente, a Ciência política corresponde à investigação empírica do poder, já no clássico Renascimento italiano do século XVI, iniciada por Maquiavel. A Teoria Geral do Estado (TGE) se apoiaria nas análises do chamado realismo político, mas com o objetivo de superar as restrições impostas pela Filosofia do Estado. Com isso, a TGE passaria a observar os elementos de permanência e constância na formação do Estado. Epistemologicamente, são abordagens muito distintas e isso se observa desde a formação do objeto científico de pesquisa: o poder, para a Ciência Política; o próprio Estado, para a TGE. No início, o Estado como sociedade política organizada é visto como indutor do direito; em meados do século XX, com Kelsen, o Estado é equiparado ao direito. Por fim, especialmente no pósSegunda Grande Guerra, a tese de que o direito deve regular o Estado – limitar o poder – ganha muita força, inclusive com amplo reflexo no direito internacional, com a criação do ONU (1946) e a proclamação da Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. Por esta construção teórica e conceitual que vem se afirmando há um século e meio podemos compreender as primeiras noções acerca do aparelho estatal: o Historicamente, o Estado manifesta continuamente duas de suas atividades ou características mais atuantes: ora se presta à dominação ora se volta à opressão. o Estado é uma organização institucional específica que sistematizou, centralizou o Poder Político. o Estado é a instituição mais forte (status) que preside a organização social. Além dessas características, ainda podemos dizer que o Estado: exerce o monopólio do uso legítimo da força física; é baseado no centralismo e no monismo jurídico (monopólio da produção legislativa); é a instituição política por excelência. De modo simplificado, para muitos o Estado se limita à União, uma vez que só a União tem soberania – os demais entes da Federação teriam apenas uma autonomia limitada e residual: o que não interessa à União compete ao Estado-membro e assim, sucessivamente, ao Município. Para Deleuze (2005): O Estado é a soberania. Entretanto, a observação de que o Estado – além de ser uma instância privilegiada de poder – deve ser estudado como artefato científico foi entrelaçada por Jellinek. 7 TEORIA POLÍTICA CLÁSSICA O tema que dá título ao texto, como todos os clássicos, não se esgota em uma única abordagem e nem se submete apenas a esta ou àquela escola de interpretação. Uma abordagem histórica, mas liberal, terá, por exemplo, em Bobbio (2000), um desfecho apontando os avanços da conquista da liberdade; outra, igualmente a partir do pensamento clássico, mas de corte crítico-marxista, abordará a legitimidade do poder (Coutinho, 2011). Entretanto, há uma tradição na análise da política – como esfera autônoma das realizações humanas – que recorre à Grécia clássica de Platão e de Aristóteles (século V. a. C.) para definir um entendimento analítico (científico). São destacados três pontos: I - A política em si, como prática (Arete2 = adaptação perfeita, excelência, virtude); II - A elaboração de uma teoria; III - A implicação de uma filosofia. As reflexões de Platão sobre os tipos de governo, justiça, virtude, estabilidade política marcaram todo o pensamento político. Basta-nos pensar na Prudência de São Tomás de Aquino3 ou na virtù em Maquiavel (1994). Em todo caso, com Platão, pela primeira vez, relacionaram-se as instituições, as atitudes e as ideias com os processos e os resultados. Além do mais, pode-se dizer, “metaforicamente”, que Aristóteles já se indagava sobre a Razão de Estado, ao diferenciar o Chefe da República do chefe de família — organizar o Estado não era o mesmo que cuidar de uma família numerosa. Há uma “diferença específica” entre tais poderes — para Aristóteles, a família é quem “satisfaz as necessidades da vida”: “Assim, a família é a sociedade cotidiana formada pela natureza e composta de pessoas que comem, como diz Carondas, o mesmo pão e se esquentam, como diz Epimênides de Creta, com o mesmo fogo” (Aristóteles, 1991, p. 03). A sociedade é, em si mesma, já um resultado: um conjunto de casas forma uma aldeia e a cidade surge da família retirada de sua natureza4. O “governo da sociedade humana”, portanto, nada mais é do que o das “famílias organizadas”. As cidades devem conservar a existência e buscar o bem-estar. Este é o “desígnio de sua natureza”. O homem sem esta “natureza cívica” é um ser sem leis que só “respiraria a guerra”, como “ave de rapina pronta a cair sobre os outros” (“autoconservação no estado de natureza”). Esses homens que vivem sozinhos, ou são Deuses ou são brutos — daí a “função civilizatória” do direito: “O discernimento e o respeito ao direito formam a base da vida social e os juízes são seus primeiros órgãos” (Aristóteles, 1991, p. 05 – grifos nossos). Como o Estado é formado por famílias5, convém tratar do “governo doméstico” ou despótico. Este poder seria dividido entre despotismo (senhor/escravo), marital (marido/mulher), paternal (pai/filho). Só muito tempo depois, no Renascimento de Maquiavel e da formação do Estado-Nação, é que se separou a política da moral e, posteriormente, havendo a dicotomia entre Estado e 2 Note-se que aríete significa um instrumento de guerra medieval. A maior corrupção de um governo livre é desviar-se deste Bem Comum, classificando-se como governo tirano e despótico: “Daí ameaçar o Senhor tais governantes por Ezequiel (34,2): ‘Ai dos homens que a si mesmos se apascentavam (como procurando os seus próprios interesses) – porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores” (Aquino, 1995, 128-129). 4 Hoje, diríamos que a sociedade é uma associação de famílias que foram desnaturadas, retiradas de sua condição original, isto é, a sociedade é uma construção artificial, uma construção política como Polis. 5 Em Roma seriam os patrícios. 3 8 sociedade. O industrialismo – no pós-acumulação primitiva (Marx, 1977)6 – reforçaria a sugestão de autonomia da esfera política. Com maior destaque para nove elementos de confluência: 1. Base Racional para o Pensamento e Ação: a Teoria Política consiste na busca sistemática do conhecimento fidedigno sobre os assuntos relacionados com a esfera pública, com o objetivo de melhorar as condições da vida humana no interior da associação política. 2. Âmbito da Política: compartilhamento das instituições públicas, como res publica, commonwealth (Comunidade de Nações). Trata-se, de modo preciso, da fixação de um coletivo político – o que, em tese, de acordo com a Teoria Geral do Estado, a partir do Moderno, implicou na delimitação do território ou elemento físico do Estado. 3. Unidade Básica de Análise: a Teoria Política clássica estabeleceu a Polis como unidade básica de análise. Por ser a unidade política de referência mais ampla no mundo antigo, inspirou nos modernos a ideia de se analisar a totalidade política. Uma Teoria Política tão ampla quanto a realidade a ser investigada. 4. Conceito de Ordem: se a sociedade política é um todo, a conclusão implica em um conceito de ordem. O que também se confere no reconhecimento de uma classe determinada de estruturas políticas analisáveis e que envolvem, entre outros, a distribuição de funções e as formações institucionais vigentes. Como toda relação de poder tem pontos de conflito, a Teoria Política se propôs a analisar a origem desses conflitos e os princípios de justiça que devem reger todo sistema político. O que, por fim, levou à necessidade de se estudar a desordem, como desequilíbrio na sistemática de aplicação dessa mesma justiça. 5. Método Comparativo: o método comparativo permitiu ampliar o mapa conceitual e os cenários políticos relacionados, bem como estabeleceu uma gama maior de alternativas. 6. Busca da Perfeição Absoluta: a comparação revelou uma diversidade incrível de fenômenos políticos, elevando-se a proposta de determinar a melhor formação constitucional, tal qual eleger a mais desejável e a que serviria de modelo eficaz, como se fosse possível e desejável alçar a política no sentido de um absoluto7. 7. Relação entre Teoria e Prática: procurava-se desenvolver o Estado Ideal, reduzindo-se as experiências políticas a proporções manejáveis e que estivessem de acordo com uma nova ordenação, de modo que qualquer analista pudesse visualizar as estreitas relações do conjunto político prescrito. A preocupação ou convicção fundamental sobre a melhor forma de governo baseava-se no propósito (de ordem prática) de que a teoria pudesse clarear e modificar a realidade sempre transformável. 8. Amálgama de elementos: solidificou-se uma tradição na análise dos elementos constantes, fundamentais e isto aproximou a Teoria Política da Teoria Geral do Estado, sobretudo quanto ao estudo do(a): i. natureza, origens e finalidades do Estado; ii. a Teoria do Contrato Social; iii. a relação entre Igreja e Estado (Estado Laico); iv. a soberania (Razão de Estado); v. a relação Estado/sociedade (Estado-Nação); vi. a melhor forma de governo; vii. implicações do direito natural (ou Prudência) sobre a política (Vera, 2005). 6 Marx analisa a função de mera repressão social desempenhado pelo Código Penal do século XVI: “Marx se refere ao Código penal de Carlos V (A Constitutio criminali Carolina), aprovado em 1532 pela Dieta imperial de Regensburgo. Este código se caracterizava pelo extremo rigor de suas penas” (Marx, 1987, p. 717). 7 Vale a lembrança de que até hoje a Constituição de Weimar é celebrada como um marco do Estado Democrático, imaculada, mas raramente é defenestrada pela análise crítica de que teria conteria o preceito jurídico permissivo do Estado de Exceção do nazismo. Em Hobbes, nunca é demais relembrar, a soberania é um absoluto. 9 O nono elemento, no mundo moderno, confere com a tarefa de fortalecer o Poder Legislativo como um preceito básico, inaugural do moderno pensamento político liberal, mas, que em seguida se configurou como regra elementar para todo o Estado contemporâneo. Isto também se vê no conceito de Comunidade Civil ou commonwealth: “Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo, ou seja, do Legislativo, é impossível conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior, ou que um outro além do poder supremo faça as leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil” (Locke, 1994, p. 160 – grifos nossos). De modo direto, ainda podemos pensar que desde então o Poder é orgânico, exatamente, porque é social8 e isto reflete a capacidade humana para se propor formas de organização social que nem sempre se esgotam no uso da coerção. Assim, o Poder Social é a capacidade humana: Constitutiva ou própria à fabricação de resultados que afetem outros; Sistêmica de realizar objetivos coletivamente vinculatórios; Organizacional de disciplinar e modelar desejos, ações, discursos e a própria subjetividade; Racional e voltada à dominação, em busca de resultados precisos. Desde este ponto da inflexão teórica temos uma concepção organicista de Estado, no tocante a duas vertentes: i) no modelo absolutista da soberania (Hobbes, 1983); ii) como reflexo da necessidade de haver controle social diante da desagregação social provocada pelo industrialismo (Durkheim, 1999). Por fim, devemos pensar que as formações denominadas de organicismo estatal ou de Estado Orgânico guardam suas principais referências em dois grandes momentos da história da Teoria Geral do Estado: a) os clássicos da antiga Grécia; b) os contratualistas, no Renascimento. 8 A afirmação quer dizer muitas coisas, uma vez que a soberania do Estado sobre a sociedade – como pressuposto de um poder que se exerce de modo absolutista – não considera ou não valoriza adequadamente/significativamente o povo como elemento de formação do próprio Estado. Também afirmações do tipo “O Estado é direito” (Kelsen, 19989) assinalam somente aspectos formais do próprio Estado (como a normatização do Poder Público, em determinado território) sem considerar o elemento material (Povo). Para Kelsen, o Estado é uma “ordem da conduta humana”, dotado de poder para que suas ordens sejam cumpridas por todos. Desse modo, o Estado é, ou uma parte ou, o próprio ordenamento jurídico. Ou seja, o Estado tem a natureza de direito. Os indivíduos estão sujeitos ao Estado. Em relação ao monismo, sua crítica se inclina a constatar que nenhum Estado soberano poderia admitir contestação a sua estrutura normativa, sob o risco de invalidar a defesa nacional de sua soberania (Kelsen, 1986). 10 TEORIA POLÍTICA E CIÊNCIA POLÍTICA A Teoria Política é mais ampla do que a Ciência Política, pois inclui modelos filosóficos e argumentos éticos, além de guardar uma relação extensa de noções e perspectivas de difícil comprovação, como ideias, visões de mundo e utopias generalistas. Já a Ciência Política implica em verificação real, na replicabilidade dos próprios argumentos, teses, problemas, axiomas, incluindo os métodos e de coleta e de análise de dados. Pela análise da Teoria Política interliga-se a esfera da política à totalidade do real, da realidade social – o que, em tese, exige que se articule a antropologia (política), a sociologia (política) e as demais ciências humanas a fim de se obter uma contextualização mais abrangente e precisa da realidade política. A Teoria Política, portanto, apresenta-se como uma articulação global do conhecimento e com a pretensão de verificar a política a partir de análises sistêmicas, globais, articuladas. A política surge como conjunto. Já a Ciência Política procederia à dicotomização da análise social, instituindo objetos de verificação bastante preciso e até limítrofes a determinadas ocasiões ou fenômenos políticos, como no caso da análise de sistemas eleitorais: A teoria política –uma disciplina filosófica – não se submete à estreita divisão acadêmica do pensamento social hoje dominante, que faz distinção entre “ciência política”, “sociologia”, “antropologia”, “economia”, “história” [...] pretende compreendê-los como processos dinâmicos determinados pela práxis, situados no devir histórico e que, por isso, têm sua gênese no passado e apontam para o futuro [...] Gramsci, em suas reflexões de teoria política, fez uma importante distinção entre “grande política” (alta política) e “pequena política” (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas [...] Poderíamos dizer que, enquanto a teoria política se ocupa da “grande política”, a “ciência política” tem como objeto questões de “pequena política” [...] Uma relação com a ética, com juízos de valor, é assim momento ineliminável da teoria política (Coutinho, 2011, p. 09). A Teoria Política é uma teoria do devir político. Ciência Política A Ciência Política marcou sua entrada na seara científica, como novo marco na epistemologia política, com o uso dos métodos da ciência empírica. Na passagem da ciência natural ao fenômeno político, o empirismo transformou-se em historicismo no bom sentido; no sentido de que não há análise política segura sem o apego e a referência clara da história. Ainda podemos dizer que a Ciência Política se interessa pelo fato político, contudo, este fato pode ter sido gerado por um fator teórico ou ideológico, e assim também se debruça o cientista político na análise do discurso político e das ideologias que movem a arena política. O que nos leva a pensar que o cientista político ainda se interessa pela epistemologia política (“conhecer o conhecimento político”). Com esta posição melhor demarcada distanciou-se da matriz originária da Filosofia Política, em vários sentidos: 1. Mas, sobretudo, se entendermos que a Filosofia é descrição, projeção, teorização do bom governo, da ótima República. 2. Como fundamento último do poder (obedecer ou não? A quem obedecer?). 11 3. 4. 5. 6. 7. 8. Trata-se da natureza e da função do dever de obediência. Portanto, reflete o debate sobre a legitimação do poder. Além do mais, a delimitação do poder também está em pauta. Nesta linha, os temas centrais do poder seriam o compromisso, a obrigação e o dever. Buscar o sentido da Política, como atividade autônoma da condição humana e que difere do direito e da moral. Nesta concepção, por exemplo, distingue-se entre motivação individual e Razão de Estado; observando-se a prevalência ora da ética da responsabilidade, ora a ética da convicção. Como referência epistemológica, lógica, metodológica, ainda podemos falar da Filosofia Política como discurso crítico: pressupostos, métodos científicos de aferição da verdade, pretensa objetividade. Como metaciência, a Ciência Política trata do conhecimento oriundo da verificação empírica, o mundo real e não o imaginário da ética, como estudo empírico do comportamento político. A Filosofia Política é prescritiva: a ótima República. A Ciência Política é descritiva ou explicativa. Trata da política como realmente é, em abordagem de um realismo político. A política na análise da veritá effettuale: a verdade prática dos fatos. A Filosofia Política, como justificação do poder, tem relações estreitas com a Ciência Política: Hobbes escreve uma gramática da obediência, mas também uma análise empírica (prática) do poder. Hegel não oferece uma distinção muito simples e clara entre realidade e ideologia do poder (e do Estado: presente na história como Espírito Absoluto). Estão em movimento tanto a “representação histórica” quanto a “legitimação ideal do Estado”. A Ciência Política deve se pautar pela descrição histórica dos métodos de legitimação. A relação entre Filosofia e Ciência Política talvez seja ainda mais evidente quando tratamos do objeto de análise, qual seja, o próprio conceito de Política: Não há Ciência Política sem conceituarmos a Política. As análises atuais das relações políticas têm início com a demonstração de uma Teoria Geral do Poder. De tal modo que a Filosofia Política se confunde com a Teoria Geral da Política. Porém, como análise do discurso, as diferenças são menores: A Filosofia Política relata o discurso da ciência e do cientista da política. A Ciência Política reforça a análise do discurso dos que têm poder. Nas várias modalidades em que se aproximam e se distancia a Filosofia da Ciência Política, há fenômenos que se complementam: divergência, convergência, indistinção, integração recíproca. A Ciência Política é não-valorativa. A Ciência da Política Uma resenha da Ciência Política, indicando algumas de suas intenções, como nova escritura política, é óbvio, traria modificações ousadas e mais contundentes aos escritos políticos. Esta combinação entre escritos e escritura política também é uma forma de se analisar a epistemologia política nascente no Renascimento, com Maquiavel. 12 Para Aristóteles, mesmo a necessidade presente em situações críticas não comportaria exceção, porque deveriam ser “medidas rigidamente aplicadas a todos”, além dos necessários conselhos que se prestariam aos governantes. Suas ponderações foram desvirtuadas? Se tomarmos a experiência nazista como baluarte, então, pode-se dizer que a Razão de Estado e a transposição da necessidade em Estado de Necessidade ignoraram os conselhos de prudência e de cautela dados por Aristóteles. Por isso, vale avaliar melhor o que Aristóteles disse sobre essa questão que imiscui problemas de ordem privada com decisões de ordem pública. Para tanto, Aristóteles terá um papel ativo nesta pesquisa, como clássico e com “especificidade” quanto ao tema da “politização das necessidades”. A formação do conceito de Política POLÍTICA: do grego politikós, diz respeito a tudo que se refere aos assuntos da cidade, ao cidadão, ao que é civil e público (ou social e sociável – ainda que possam ser tomados por sinônimos, o social e o político estão profundamente interligados). No livro A Política, Aristóteles formula o primeiro tratado sobre a natureza, as funções, a divisão do Estado e as formas de governo, como a arte ou ciência do governo (Kybernets). Desta natureza política surgiram significados complementares: a) A política como sujeito: - domínio territorial (poder) - monopólio legislativo (efeito erga omnes) - controle dos meios de produção b) A política como objeto: - conquistar, reformar, manter o poder estatal c) Relação com o poder: - para Hobbes, o poder é consistente aos meios para alcançar vantagens. i) o poder pode ser o domínio sobre o outro ou sobre a natureza; ii) como posse sobre os meios para se obter vantagens iii) como poder político recebe denominação variadas (relação entre súditos e Estado; comando e obediência) iv) para os gregos havia três formas básicas: 1) Poder paterno: familiar 2) Poder despótico: senhorio 3) Poder político: cidade/cidadão d) Quanto ao poder sobre o outro: I – Poder econômico: domínio dos recursos e dos bens materiais determinam a compra da força de trabalho. II – Poder ideológico: força de convencimento, capacidade de imposição de certos argumentos por parte de uma pessoa investida de autoridade. III – Poder político: poder coativo por excelência. Posse dos instrumentos de exercício de força física. e) Como Poder Supremo, essas três formas de poder mantem as bases das sociedades desiguais, entendendo-se o poder político como capacidade de subordinação dos demais. Nesta perspectiva, apenas a força física impede a desobediência e a insubordinação. f) Na Teoria Social o exercício do poder é descrito como um sistema: o Organização das forças produtivas 13 o Organização do consenso o Organização da coação Para Gramsci alternam-se momentos de consenso (sociedade civil) e momentos de domínio (Estado – sociedade política) g) A compreensão clássica distinguia entre: I – Dominium: poder econômico II – Imperium: poder político h) A força é um dos elementos presentes no poder político - a exclusividade do uso da força, por um grupo, caracterizado o monopólio e a imposição aos demais, irá demonstrar o poder político. - em paralelo à tipificação (criminalização, penalização) dos atos de resistência. - na Teoria da Soberania de Hobbes, o particular renuncia ao uso da força física em prol do corpo político. - para o marxismo, todo Estado é uma forma de ditadura, em que uma classe se impõe às demais. - para Max Weber, o Estado é uma empresa institucional no exercício do monopólio do uso legítimo da força física (a coerção física legítima) i) O sistema político é exigido no monopólio da força física Efeitos do monopólio da força física: I) Exclusividade: consiste em debelar, criminalizar grupos armados rivais. II) Universalidade: distribuição de bens e de recursos a todo o grupo. III) Inclusividade: significa que existem dois níveis de regras – uma para os cidadãos e outra para os agentes do poder político que obrigam ao seu cumprimento. O máximo de inclusividade é obtido no Estado Totaliário (politização integral das relações sociais). j) Os fins – objetivos – da política são traçados e datados pela realidade e necessidades de cada grupo social específico. Neste sentido, os meios preponderam sobre os fins, como atitude tradicional da política. - Contudo, a extrema ratio, a razão extrema do poder político, é a Razão de Estado. - Mediante o uso da força, pode-se dizer que seja a preservação do poder. - Ou seja, fazendo-se uso da força, procura-se preservar o monopólio do uso da força. - A Razão de Estado poderia ser definida como o fim último da seguridade da ordem pública (internamente) e da soberania (nas relações internacionais). - A ordem seria o objetivo final; mesmo para os revolucionários que promovem a desordem para obter outra ordem. - Para Aristóteles, o objetivo da política é o viver-bem. - Como Bem Comum, o fim da política é organizar a sociedade para organizar a sociedade para compartilhar seus benefícios, isto é, a ordem. 1. A política apontada para o poder é um fim em si mesmo: quando meio e fim se encontram, tem-se poder para manter e conquistar ainda mais poder. 2. O pragmatismo jurídico nos EUA prescreveu a felicidade como fim do Estado, quantificando em dólares o mínimo necessário. 3. O poder como potência é o fim de alguns Estados: URSS – EUA – China. k) Então, a política pode ser vista como: I – Ciência: a ciência que estuda o poder 14 II – Arte: a arte do conhecimento III – Ofício: as obrigações de quem governa IV – Valor: a política desencadeia valores como urbanidade, civilidade. V – Normatividade: ainda que não haja leis isentas, fixas, uniformes no que concer à política. VI – Ação/consciência: a consciência do ator/observador da política está atrelada ao fenômeno ou processo. VII – Guia de consciência/convivência: (histórico) aprender como foi no passado; como são hoje as regras? (normativo); como poderão ser no futuro? (teleológico). Mas, a política não é um corpo de normas, como se fosse um sub-capítulo do direito político. A política é virtù, a virtude política para fundar Estados e poupar o poder. A política ainda é uma concepção de homem – do que decorre a Antropologia Política. A política é uma profunda noção de comportamento, como Ética Política. Como economia política trata de questões globais, de relevo social e econômico. Neste aspecto, há algumas obras/autores que se destacam: - Ética a Nicômaco (Aristóteles) - Formações Econômicas Pré-capitalistas (Marx) - O Estado e suas fontes do Direito (Del Vecchio) - Antropologia Política (Balandier) l) Ainda se destacam alguns temas/áreas que podem ser observadas, sem ser uma lista completa: Estrutura e formas de governo Legitimidade e governabilidade Fontes de legitimação do Estado e do poder Direitos e deveres dos cidadãos Relações entre indivíduos/Estado O caráter positivo (“natural”, racional, arbitrário) das leis A natureza e o alcance da liberdade A obrigação política A natureza e as formas da justiça Causas, razões e legitimidade do mando m) Do que decorrem três correlações com a ciência propriamente dita: 1. A Política como Ciência: que observa os fatos políticos empiricamente, como planos, metas, projetos, estratégias políticas. 2. A política como atividade reflexiva: no que se refere a todo indivíduo que se relaciona diretamente com o poder; o que reflete na vida comum dos demais. 3. A filosofia política que se apropria dos métodos da Ciência Política e faz sua própria investigação, como, por exemplo, análise de discurso, valoração de ideais e ideologias, proposições políticas. 4. A Ciência Política não só elabora Teoria Política, como se ocupa de regras de ação humana; neste sentido, a Ciência Política é uma ciência normativa. n) Por fim, uma das principais questões da Epistemologia Política: validação do conhecimento político a partir da observação de fenômenos causais de ordem política, 15 como o poder, resguardando-se o tratamento empírico adequado, necessário, mas sem desconsiderar a universalidade presente em toda a ciência normativa. o) Afinal, O QUE É A POLÍTICA como Ciência? A necessidade de se estudar a política como disciplina e não necessariamente como militância, é apresentada por David Held e Adrian Leftwich no artigo Uma disciplina de política? (em Que es la política? La actividad y su estudio): O que na realidade estão pedindo é que nos abstenhamos de participar na política, isto é, em decisões acerca do emprego e distribuição dos recursos em relação com assuntos que são muito importantes para nossas vidas. Em si, não estão tratando de fomentar, defender ou de ilhar a política, estão tentando suprimi-la. Portanto, estudar política é estudar criticamente a história das possibilidades e as possibilidades da história (Leftwich, 1992, p. 264 - tradução livre). As intensas manifestações populares que tomaram conta das ruas no Brasil, por exemplo, embaladas pela onda política internacional que mobilizou milhares de estudantes no Chile e pelo Movimento dos Indignados, na Espanha, com o lema “Da indignação à rebelião”, exigem outra política. 16 O QUE É A POLÍTICA? Veremos outr breve descrição da política, uma espécie de guia para estudantes de primeira hora na arte do convencimento e do exercício do poder. Este guia pode/deve ser lido por acadêmicos, trabalhadores, professores, empregadas domésticas, eleitores, servidores públicos, profissionais liberais e mais ainda pelos governantes. Afinal, o que é a política? Por política se entende uma porção, um recorte amplo de atividades humanas. Ou seja, a política é o exercício de atividades essenciais à realização do ser humano. Neste raciocínio, a política é a efetivação da condição humana. Política é a arte do convencimento para que se exerça o poder de comando e assim se aprimore a condição humana; a possibilidade de se conviver em sociedade, sobretudo quando há conflito de interesses. Portanto, a política é um guia para a ação humana (Kibernets). Pois, não há homem que desconheça a política (zoon politikón). O homem é um animal político. Mas, além disso, a política é: O bom governo, quando se governa com honestidade. Governar para o bem público. Governar com liberdade, quando os envolvidos desenvolvem a plenitude da isonomia (princípio da igualdade que está na base do direito) e da isegoria (capacidade de pensamento, reflexão e de livre expressão). A arte ou a ciência de se governar a cidade, com urbanidade. A capacidade de decisão diante de qualquer circunstância da vida pública ou privada. O exercício do poder ou da dominação. O exercício da cidadania, no regime democrático. O reflexo da ética, como regras de comportamento social, como ethos ou costumes públicos bem desenvolvidos e assegurados. Uma prática social do poder assegurada por lei. Porque a política está definida, regulamentada no direito positivo; como direito político, está inscrito e descrito na Constituição. O pensamento jurídico envolto na proporcionalidade; como capacidade de se encontrar soluções válidas, eficazes para problemas coletivos e urgentes. A política partidária expressa uma sociedade dividida em partes, e cada parte defende sua ideologia, seu ponto de vista, seus interesses. Por isso, na relação política em que se opõem contendores, defendem-se visões de mundo discordantes, opostas e até antagônicas. Contudo, há algo que a política não é, por definição. A política não é sinônimo da corrupção, uma vez que a corrupção é a deturpação de toda a política. A política é a arte dissuasiva que conserva a sociedade; a política promove a constituição da sociedade. Portanto, a política é o avesso da corrupção, pois a corrupção é a negação da vida social, da vida em grupo; como corrupção da própria sociedade, a política seria a negação do zoon politikón e acabaria definida pelo seu contrário – o que, evidentemente, não é lógico e nem racional. A política é A expressão política não tem uma definição exata e muito menos simples; ao longo da história humana adquiriu significados diversos e empregos os mais variados. Política tem um sentido diverso, complementar, amplo e complexo, desde sua origem na Cidade-Estado. Além de um vínculo, a política é um objeto esquivo, indefinível, polissêmico, interminável (Vera, p. 57). 17 Para o grego clássico, no entanto, política deriva dos vocábulos polis, politeia, politica, politiké. Em suma implica em: ê polis: a Cidade, a região, a reunião dos cidadãos que formam a cidade; ê politeia: o Estado, a Constituição, o regime político, a República, a cidadania (como direito dos cidadãos); ta politica: plural de politikós, refere-se às coisas públicas, tudo que é inerente ao Estado, à Constituição, ao regime político, à soberania; ê politiké: techné – a arte da política (Prêlot, 1964, p. 07). O emprego do vocábulo, em inglês, ainda traz outras atribuições. Talvez num sentido já adaptado a muitas necessidades estruturais e da conjuntura política ocidental moderna, já se relaciona entre os objetivos políticos, a própria regulação da governança e a fixação do espaço público (definido independente da vida privada): Politics: a política é relacionada com o exercício do poder. Poderia ser traduzido como “processo político” ou “articulação política”. Os atores políticos encontramse em conflito de interesses ou de visão de mundo e por isso interatuam entre si. Policy: a política surge como decisões ordenadas em prol de um fim político. Poderia ser traduzido como “políticas públicas”, as escolhas realizadas para resolver problemas e carências. Polity: trata-se da dimensão institucional da política. Tem-se aqui o universo político formado pelas ações e construtos humanos. Pode-se pensar como politeia ou “institucionalidade política”, ou conjunto de instituições e de regras desenhadas para modelar a interação política (Vera, 2005, p. 58). Ainda implica em dizer, lato sensu, que o animal é social, mas só o homem é político. A política, portanto, como tarefa ou fabricação humana é uma intenção, um produto da razão e guarda racionalidade em si, é expressão de uma lógica que constrói uma visão de mundo. Desse modo, a política relaciona meios e fins, é um objeto, uma relação e ao mesmo tempo traça objetivos e fins que devem ser perseguidos coletivamente. A escolha dos meios aplicados a esses fins, para se alcançar o que se quer, portanto, é uma escolha política. A definição dos meios a fim de se alcançar determinados fins, nunca será uma escolha neutra: Pode-se estudar a política, por conseguinte, em dois níveis – o dos fins e o dos meios. O primeiro diz respeito a necessidades básicas, que podemos classificar como físicos, mentais e sociais [...] Nesse nível, a política tenta descobrir regularidades nos fins e nas necessidades que os criam [...] Por outro lado, trata-se de processo em que a razão é aplicada inicialmente à experiência para explicá-la e, em seguida, controlá-la ou moldá-la segundo as finalidades [...] O processo é racional no sentido de constituir uma tentativa para estabelecer um padrão ordenado de relações de causa e efeito entre fenômenos, e utilizá-lo intencionalmente [...] Tal exame de finalidades e da maneira como elas se desenvolvem e são formuladas fornece base aos estudos políticos no segundo nível, isto é, das condições e processos de cooperação em grupos ou associações, como o Estado (Greaves, 1969, p. 215-216). 18 Como vimos, a política é essencialmente uma atividade racional. A política é inerente, imanente ao homem, mas esta condição humana só se revela no fazer-política. Sem que se expresse politicamente, a essência não se revelará e de uma condição inerente, civitatis activae, a política apenas se resguarda em mera virtualidade (virtus): o que “pode” vir-a-ser. Como latência, em sentido limitado, restrito de virtus, sem expressar “publicamente” a política, o homem social não estimula suas virtudes, seus valores políticos. Sem a política, as virtudes permanecem privadas, não conhecem o espaço público. Por isso, a política tem um claro sentido publicista, voltado ao espaço público, à cidade, ao Estado ou, como queriam os romanos, à res publica¸à coisa pública. Para completar a condição política, a virtus precisa se converter em virtù; o valor da ação política precisa dominar o furor humano (já nos ensinavam Petrarca e Maquiavel): “Vertù contra furore / Prenderà l’arme, e fia ‘l combatter corto” 9 (Maquiavel, 1979, p. 94). Em busca de uma mensagem humanista mais clara, nos dirá Maquiavel que a ganância, a soberba do poder incontrolado (esse mesmo que se alimenta da vingança das penas cruéis) são a porta do fracasso. Trata-se de um verso romano e nos diz que a virtude da política, como virtù, depende da prudência e da inteligência, como forma de controle da violência, do furor, dos "arroubos", do agir intempestivo. Desde os gregos clássicos e sua polis sabemos que a política é um valor humano intrínseco e, portanto, não apenas um instrumento dos demais valores. A política não é totalmente neutra ou instrumental, é, em si, ao mesmo tempo, uma expressão da personalidade humana. O político por si é uma parte da situação total, com a qual temos de contar. A política planta seus próprios fins ideais que temos de considerar e alcançar se for possível. A ordem, a justiça, a integração, o equilíbrio, a seguridade, o bem comum são aspirações, desideratos da vida humana e tem seu lugar na escala de valores humanos. Constituem a especial responsabilidade dos estadistas, para quem se apresentam como valores de significação vital. Se temos a tarefa de empreender a edificação de um Estado, temos que supor esses valores como tipologia dessa sociedade que queremos servir (Merriam, 1986, p. 66). Arete, virtus e corpus A política, enfim, quando consagrada na condição humana, quando transformada de virtus (virtualidade) em virtù (virtude), será a própria excelência humana: A excelência em si, arete como a teriam chamado os gregos, virtus como teriam dito os romanos, sempre foi reservada à esfera pública, onde uma pessoa podia sobressair-se e distinguir-se dos demais. Toda atividade realizada em público atinge uma excelência jamais igualada na intimidade; para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença de outros, e essa presença requer um público formal, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais... (Arendt, 1991, p. 58). A antiga filosofia cristã favorecia a perspectiva integrativa entre excelência e prudência: Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens [...] O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas 9 O valor tomará armas contra o furor; que a luta se espraie bem depressa! 19 não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las [...] Encontrar um vinculo entre os homens, suficientemente forte para substituir o mundo, foi a principal tarefa política da antiga filosofia cristã; e foi Agostinho quem propôs educar sobre a caridade não apenas a <irmandade> cristã, mas todas as relações humanas (Arendt, 1991, pp. 6263). Porém, advertia Arendt, a ampliação da esfera privada representada pela figura central da família refluía os impactos positivos que poderia exercer na conformação/confirmação do próprio espaço público: O caráter apolítico e não-público da comunidade cristã foi bem cedo definido na condição de que deveria formar um corpus, cujos membros teriam entre si a relação que têm os irmãos de uma mesma família. A estrutura da vida comunitária tomou por modelo as relações entre os membros de uma família porque estas eram sabidamente não-políticas e até mesmo antipolíticas. Jamais existiu uma esfera pública entre os membros de uma família, e era portanto improvável que viesse a surgir da vida comunitária cristã se esta fosse governada pelo princípio da caridade e nada mais (Arendt, 1991, pp. 63-64). Isto confirmaria a necessidade da vida presente (necessitas vitae praesentis), ainda que nem sempre corrobore a construção do espaço público. Ainda que a lição mais prudente na própria descrição bíblica seja de uma prudência que se construa para a vida do homem público, seja do chamado homem médio. Vejamos uma das mais difundidas transcrições que reforçam este prisma: "Eis que eu vos mando como ovelhas no meio de lobos. Sede pois, prudentes como a serpente e simples como as pombas". (Mt 10,16). Esta lição não pode muito bem refletir na vida privada ou pública, na comércio e na política, entre adversários e vizinhos? Isto é transformar a virtus em virtù, em domar a ação pela virtude. O arete é aquela intenção política que reúne a força dos demais para agir pela polis, que controla a agressividade, que canaliza e direciona a impetuosidade, transformando gravetos isolados e frágeis em um único bastão de força conjunta. A política é o arete que deve romper o isolamento familiar, privado, transformando o homem em coletivo, rompendo o isolamento, em espanhol, o aislamiento, para que não existam mais ilhas sociais. É óbvio que a análise da política nos leva a repensar conceitualmente o que é poder. 20 JELLINEK E O ESTADO DE DIREITO O Estado brasileiro deve aprender com o passado As manifestações públicas por todo o país, envolvendo centenas de milhares de pessoas, são garantidas pela Constituição e devem nos levar a refletir honestamente sobre o Estado brasileiro. O fenômeno da Multidão que atinge o país, depois de percorrer o mundo todo (Oriente e Ocidente), traz à tona as justificativas do atual modelo político adotado pelo Estado brasileiro. No plano externo, vigoram as relações a partir do que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito Internacional. No âmbito interno, o Estado de Direito ainda anda às turras com a Justiça social, reverberando mais ideologias neoliberais do que políticas públicas respeitáveis10. Em todo caso, podemos/devemos pensar as bases jurídicas de onde provém o próprio modelo jurídico do Estado de Direito europeu e que serviu de base à Constituição da República Brasileira. Para esta análise, emprestamos algumas análises e conceitos do iminente jurista alemão Georg Jellinek, em que a soberania recai sobre o Estado e não sobre o povo; restringindo-se desde o século XIX, portanto, o significado da soberania popular. Sendo o Estado uma corporaçao assentada num determinado território e dotado de um poder de mando, nao se percebe muita preocupação com a legitimidade política dos poderes constituídos. Do que já se deprende que uma das principais preocupações não é exatamente a tese da Autolimitação do Poder Político e nem com a ordem jurídica não-aristocrática. A Teoria do Estado em Georg Jellinek Além de um teórico precursor do Estado, Georg Jellinek (1851-1911) foi um jurista alemão e filósofo do direito. É reconhecido como o fundador da disciplina de Teoria Geral do Estado, pois até sua obra ser conhecida aplicava-se uma leitura ora idealista (Filosofia do Estado de Hegel, por exemplo) ora negativista (ideologias do Estado, no exemplo da tradição marxista). Sua maior contribuição está, portanto, na tentativa de se realçar as bases de uma disciplina ou ciência que verificasse elementos de formação e de continuidade das estruturas e mecanismos do aparato estatal. A partir de sua obra mais específica sobre Teoria Geral do Estado (2000), os elementos políticos de composição do Poder Político, que se sagraram historicamente, passaram a ser investigados quando se analisava o fenômeno estatal: povo; território; soberania. É preciso ressaltar, neste momento, que o Estado centraliza o Poder Político, mas há outras instituições e comunidades políticas que conformam o Poder Político. A Multidão, atualmente, seria um desses agrupamentos com caráter político, além das associações políticas que lutam pelo controle do Estado ou, ao contrário, os primeiros grupos humanos que detinham o controle social sobre o Poder Político – antes, portanto, da fundação do próprio Estado. Ainda é preciso lembrar que, para o jurista alemão, a soberania recai sobre o Estado e não exatamente sobre a nação. Bonavides (2012, p. 71) traz a definição que Jellinek faz do Estado, como “a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de mando”. Para Dallari, comparativamente, Estado é a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território (2012, p. 122). Não só a soberania pertence à nação, para o jurista brasileiro, como a nação é sinônimo de povo, resguardado pela ordem jurídica legítima (bem comum). 10 Nessas manifestações de rua, a maioria dos populares não é contra a realização da Copa/2014 no Brasil. É contra a corrupção em torno das obras da Copa e, obviamente, contra o fato de que a educação e a saúde não são tratadas com o mesmo vigor e disposição para ingestão do dinheiro público. 21 Na análise que propusemos no texto, o direito germânico salientado por Jellinek é oportuno de ser resgatado porque nos permite observar a articulação entre direito e cultura. Como bem diz Jellinek: “...a princípio o Estado germânico é uma associação de povos a quem falta a relação constante com um território fixo, o enlace permanente do território com o povo só muito lentamente se levou a cabo em sua história” (2000, p. 307 – tradução livre). Neste sentido, faltava ao Estado Germânico e ao Estado Feudal um enlace entre povo e território, ou seja, o que se chamou de adensamento e de identidade cultural. A base do poder era móvel, não havia plena identificação entre o Poder Público e o território, bem como ainda se lidava com grande variedade de costumes e de interesses. Não é fácil de se supor, mas a desordem política e a resistência ao poder central produziam inclusive a mobilidade física do Príncipe. Vejamos, novamente com Jellinek (2000), o exemplo da Alemanha: A residência do Príncipe era algo completamente contingente e independente da organização do Estado. Por conseguinte, faltava-lhe desde o início a centralização. A dificuldade de organização para um povo que se estendeu por um vasto território e carece de um centro, é ainda maior em uma época em que as comunicações eram rudimentares e predominava a economia agrícola (Jellinek, p. 307). Por fim, outra vez comparativamente ao Império Romano, há um dualismo na base política e jurídica: “O reino germânico nasce, pois, como um poder limitado; por conseguinte, desde seu início traz consigo um dualismo: o direito do Rei e o direito do povo, dualismo jamais superado na Idade Média11” (Jellinek, 2000, p. 308). Assim, quando comparado à herança política romana é ainda mais evidente a existência dessas dicotomias no acento do poder: Onde quer que dominasse a Constituição municipal romana, acentuandose a substantividade política das cidades, algumas chegam em certas ocasiões, como na Itália, a alcançar uma absoluta independência. Posteriormente, e dotadas de privilégios reais, fundam-se na Alemanha e na França cidades que chegam a conseguir, ao menos parte delas, um caráter de corporações soberanas. Por isto, a divisão dual da natureza do Estado significa por sua vez a atomização do poder público, e toda a história dos Estados da Idade Média é ao mesmo tempo uma história do ensaio para chegar a vencer este desmembramento ou, ao menos, para minorar suas consequências (Jellinek, 2000, p. 309 – tradução livre). Este modelo do direito público romano, em parte, manteve-se na legislação estatal posterior, e em parte foi demovida. A compreensão de que o poder não pode ser afrontado, sob pena de morte, manteve-se atuante. De outro modo, a própria proximidade entre direito e cultura, no direito germânico, também se verificou na ideia de participação popular. Resumidamente, trata-se da evolução e da transformação por que passaram o direito de resistência e de participação: O único modo de tornar possível o exercício da soberania popular é a atribuição ao maior número de cidadãos do direito de participar direta e indiretamente na tomada das decisões coletivas [...] O melhor remédio 11 Em outro momento, como a reforçar o já dito: “...o Estado nos aparece como um duplo Estado em que o príncipe e as Cortes têm cada um seus funcionários particulares, tribunais e até exército e embaixadores” (Jellinek, 2000, pp. 309-310). 22 contra o abuso de poder sob qualquer forma – mesmo que “melhor” não queira realmente dizer nem ótimo nem infalível – é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis. Sob esse aspecto, os direitos políticos são um complemento natural dos direitos de liberdade e dos direitos civis, ou, para usar as conhecidas expressões tornadas célebres por Jellinek (1851-1911), os iura activae civitatis constituem a melhor salvaguarda que num regime não fundado sobre a soberania popular depende unicamente do direito natural de resistência à opressão (Bobbio, 1990, pp. 43-44). O instrumento de governo libertário, desde Cromwell (1599-1658)12, é o primeiro exemplo de um documento constitucional moderno; o próprio nome revela sua ambição e natureza. Ele mesmo expressou claramente o que esperava desse documento: “Em todo governo, disse, tem que haver algo fundamental, semelhante à Carta Magna, permanente, invariável” (Heller, 1998, p. 178)13. No curso da história dos direitos público-subjetivos, por sua vez, teríamos de retomar a contribuição de Rousseau e a Revolução Francesa, quando se instituiu a educação pública obrigatória – como forma de melhor divulgar os ideais revolucionários republicanos. Ora, a República seria o melhor freio institucional e regimental ao Poder Político. Portanto, desse período até à modernidade decorre a perspectiva de que o Estado deveria conhecer alguns limites quanto à projeção do poder político – o que se convencionou chamar de Teoria da Autolimitação do Estado: (Jellinek, 2000, p. 309-310). O próprio Estado Moderno seria um tipo ideal, uma vez que se pode ver diferenças exorbitantes se tomarmos exemplos históricos para efeito de comparação. De todo modo, o conceito de tipo ideal foi emprestado do jurista europeu. O que se revela claramente, pois esta concepção republicana do poder é compartilhada pela ciência do direito de Jellinek (2000), ao expor a urgência de se configurar a própria Teoria da Autolimitação do Estado. No seu encalço, a versão clássica de Zippelius corresponde ao Estado de Direito, como: “a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (1997, pp. 377). Outros juristas ainda lembram Jellinek e as instituições normativas: “a Constituição designa o conjunto de normas jurídicas que definem os órgãos supremos do Estado, determinam a forma de sua criação, sua relação recíproca e seu âmbito de atuação, como também fixam a posição do indivíduo em relação ao poder do Estado” (Peña, 2003, p. 61). No caso brasileiro, as Teorias do Estado deveriam dar cobertura especial ao preâmbulo da Constituição, bem como supõem-se analisar pormenorizadamente os artigos 1º ao 4º, pois o artigo 5º trata dos direitos individuais. A própria Constituição articula as Teorias do Estado, transformando em artigos os preceitos do moderno Estado Democrático. Na CF/88 desfila a história política do Estado e da sociedade: do liberalismo à democracia; do liberalismo aos preceitos socialistas. Por fim, há quem sustente que falta sentido à discussão e à terminologia porque no Estado Moderno não há liberdade sem a intervenção ou predisposição estatal ao seu reconhecimento. Não há sentido em insistir no caráter público da liberdade pelo simples fato de 12 Com a guerra civil inglesa, Cromwell formou uma tropa de cavalaria que seria a base de suas ações em campo de guerra. Liderando a causa causa parlamentar, concomitantemente ao comandante do exército (New Model Army – uma gerança renascentista da cavalaria árabe?), acabou por derrotar as forças do Rei Carlos I da Inglaterra e assim pôs fim ao poder absoluto da monarquia britânica. 13 Heller empresta a citação de Jellinek, 2000. 23 que não existem liberdades privadas fora do Estado. Em todo caso, pode-se frisar que o liberalismo foi positivado como direito humano apenas no pós-Revolução Francesa: Para a ideologia liberal o indivíduo é um fim em si mesmo, e a sociedade e o direito não são mais do que meios postos a seu serviço para facilitar a realização de seus interesses. A este respeito, certamente recorda-se que o mito mais representativo desta ideologia é Robinson Crusoe, que é “o herói do individualismo em ação”. A partir dessas coordenadas, os direitos individuais são considerados em sentido eminentemente negativo como garantia da não ingerência estatal em sua esfera: é o que Georg Jellinek denominará status libertatis e Georges Burdeau liberdadeautonomia (Luño, 2003, p. 35 – tradução livre). De todo modo, a influência de Jellinek ainda se manifesta em outro jurista alemão de grande vulto e repercussão internacional: Hans Kelsen (1998). O chamado positivismo de Kelsen não resolveria adequadamente a superveniência da Razão de Estado, tal qual o liberalismo de Bobbio não teria maior eficácia: o resultado seria a formação atualíssima de um Estado Penal Internacional. O século XX se caracterizou pela consolidação de um sistema de Estados nacionais e pela superação do jus publicum europeum, com a criação da Liga das Nações e da ONU. O eurocentrismo cedeu espaço ao globalismo – o ideal de Kant da Paz Perpétua estaria mais próximo, como uma espécie de “profissão de fé cosmopolita” rumo ao “direito público da humanidade”. Enquanto o direito internacional se referia à relação entre Estados. O direito cosmopolita tratava da relação entre de Estados e indivíduos (estrangeiros). O autor alemão rejeitava a Teoria Dualista do Direito – separando-se entre direito interno e direito internacional –, opondo-se a Jellineck, por exemplo, e trazendo uma formulação nova para a interpretação de Kant. O direito nacional de todos os Estados nacionais soberanos seria elemento de um todo, partes de uma “ordem parcial”. O direito internacional, portanto, seria a unidade objetiva do conhecimento jurídico”, o suporte para uma concepção monista (Teixeira, 2011). Pelo traço da história, vemos que na origem este seria um princípio (aliado à separação dos poderes) mais fortes quanto à defesa da liberdade do cidadão, afastando tanto quanto possível (ante o jugo da força física dos príncipes) a ação ofensiva e repressiva do Estado: No entanto, o poder era suficientemente forte para proteger o cidadão e para garantir o direito, também era suficientemente forte para oprimir o cidadão e dispor arbitrariamente do direito [...] As instituições do moderno Estado constitucional e de Direito nasceram, em grande parte, como resposta ao desafio de um absolutismo absoluto. Neste sentido, a história da liberdade do cidadão é uma história da restrição e do controle do poder de Estado [...] Este procura um compromisso entre a necessidade de um poder do Estado homogêneo e suficientemente forte para garantir a paz jurídica e a necessidade de prevenir um abuso de poder estatal e de estabelecer limites a uma expansão totalitária do poder do Estado, assegurando na maior medida possível as liberdades individuais (Zippelius, 1997, p. 384). 24 Porém, de lá para cá, houve essa inversão ou reconversão ideológica, com o princípio atuando a favor do instituidor do Estado14 e não do povo, só a favor do Estado, quando se faz necessário estancar sua sanha e seu avanço sobre os interesses da coletividade 15. De lá para cá, a Administração Pública teria, então, se convertido em Administração Pública Corporativista e com isso passaria a defender tão-somente os próprios interesses (ou da fração da burguesia que a financia). Contudo, há muitas formas políticas estranhas ao Estado, mas não há ordem ou política sem direito. A Multidão recupera as ruas como espaço público e nos obriga a repensar o Estado como instituição política que centraliza o poder público e, por vezes, mantem-se longe do clamor e das demandas populares. Por tudo isso é necessário investigarmos atentamente de que política e poder é composto o Estado Moderno. 14 Aliás, o texto já traz implicitamente essa noção, ao grafar que àquela altura o poder já era suficientemente forte para oprimir o cidadão. 15 A escorchante cobrança de impostos é só um dos exemplos possíveis. 25 O QUE É PODER entre a epistemologia política e a experiência empírica Para o ditado popular, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Então, poder é simplesmente ordenar e obedecer? Nesta relação apenas um manda e outro obedece? Esta definição corresponde à definição de Poder Público? No senso comum da política – e este pensamento não está de todo errado, apenas incompleto –, o poder é a capacidade de impor sua vontade, de determinar que o(s) outro(s) façam muitas vezes o que é contra seu interesse ou que deixem de fazer o que gostariam de realizar. Para o bem, para o mal, o poder é sempre determinação, acatamento, realização. Não há sociedade sem poder, por mais simples que seja, como contrato de dois ou um pouco mais de indivíduos, sempre haverá obrigações de fazer ou de não-fazer. Em todo caso, ainda é preciso discutir a(s) forma(s) como este poder é efetivado, quem se submete a ele e o quanto pode ser útil e benéfico (ou não) à coletividade. Ou seja, poder é uma relação. Seja para massacrar, seja para libertar um povo, o que sabemos – empiricamente, historicamente – é que o poder é uma construção social. Só faz sentido falar do poder como relação social, ampla, conectada à sociedade. Não há poder fora da sociedade; não há poder que se realize unicamente dentro do Estado e das suas instituições, partidos ou agências, bem como das corporações e sem que haja conexão social. Mesmo o poder limitado no tempo-espaço de uma corporação, que restringe seu contato social, é um poder social que quer evitar maiores aproximações da corporação com o restante da sociedade, ou seja, este poder restritivo tem como principal função mitigar a relação social. Mas, não deixa de ser um poder social, ainda que se queira o afastamento da sociedade. O poder é uma construção social É mais do que certo que o poder é uma relação, mas é uma relação que envolve sujeitos e substantivos, trata-se de uma experiência empírica e não metafísica, seja entre senhor e escravo, homem/mulher, pai/filho, empregador/empregado, governante e governados. Mas como se constitui esta relação em que a política se define como uma experiência empírica do poder? Se o poder é uma relação (determinação, acatamento, realização), é preciso ter em conta a efetivação desse poder, suas formas de manifestação e de realização. Mesmo o poder como virtualidade (virtus = potência) precisa apresentar condições reais de efetivação. O poder não pode ser reduzido a uma experiência psicológica, em que uma personalidade quer se impor a outros indivíduos – e ainda que isto seja verdadeiro. Como relação, o próprio poder decorre de experiências, estruturas e dinâmicas sociais anteriores. Para Maquiavel (1979), apesar do homem de virtù (de virtudes políticas aplicadas ao poder) almejar a conquista e manutenção do poder, do Estado ou do Império, suas virtudes dependem do contingenciamento da política. Neste sentido, pode-se dizer inicialmente que haja um poder embasado em virtudes (virtù). Note-se que são as virtudes próprias da política, em que “os fins justificam os meios”, são todas as virtudes que servem à conquista, organização, manutenção e ampliação do poder. De modo quase geral, alimentado pelo senso comum, acredita-se que Maquiavel produziu um manual sobre o poder, como conquistar e manter o poder, sendo quase um manual de autoajuda para políticos – especialmente os sem-escrúpulos. No entanto, Maquiavel, como criador da Ciência Política, produziu um manual sim, um clássico sobre a formação da Razão de Estado. Maquiavel e o poder como virtù Muito simplificadamente, virtù – como antiqua virtus – equivale à Ética Pagã (individualismo aplicado à política: quem detém o poder?). Mas, em sentido mais amplo, numa 26 fórmula de poder: virtù = Força + Vigor + Astúcia + Estabilidade (o status do Estado). Isto Maquiavel (1979) descreveu em todos os seus escritos, de uma forma ou outra; todavia, foi no livro O Príncipe em que sistematizou sua análise científica da política. Para Maquiavel, não importa muito o dever-ser da política, mesmo o “sonho” com a República (em Comentários à Primeira Década de Tito Lívio) é uma realidade em que se faz uso dos “fins para justificar os meios”. Esta é a grande diferença em relação à filosofia política clássica. Maquiavel criou a Ciência Política não porque usou ou deixou de usar a palavra política (como o fizera Aristóteles, no livro A Política), mas sim porque empregou os modernos métodos científicos na análise da realidade política. O idealismo de Maquiavel “pode” ser a República (um dos maquiavelismos), mas não há puericultura, uma vez que se for preciso utilizará da mentira, da traição, do assassinato premeditado, do engodo para alcançar o primado do Bem Público. Daí a Razão de Estado (status, no latim antigo: a extrema firmeza que interessa ao príncipe da política para manter o Estado coeso). Desse modo, vemos que a Ciência Política criada por Maquiavel é absurdamente realista, promovendo um choque de realidade na especulação moralista, legalista ou religiosa, do que se espera da política, como o fizera Santo Thomás de Aquino na análise da Prudência16. Às vezes, na maioria das vezes, é preciso fazer o Mal para se obter o Bem Público. Quanto ao Príncipe, quer queiramos ou não, quer Maquiavel tenha ou não tenha dito ou descrito claramente se e como usaria a palavra “política”, o fato relevante – aliás, o único fato relevante – é que a análise que fez da política instituiu a chamada Ciência Política. Foi o primeiro a aplicar o realismo e o empirismo (bem antes de Francis Bacon) na análise da política, do poder e do Estado (status). Com Maquiavel aprendemos que o empirismo aplicado nas ciências humanas provém do esforço da cognição da história. Comparativamente, devemos saber que os sumérios (hoje Iraque), que criaram a escrita cuneiforme, não “conheciam o conhecimento político” (epistemologia) para descrever a Polis como os gregos; contudo, foram os criadores da Cidade-Estado ou Estados soberanos, como Ur, Nipur e Lagash. Os gregos são herdeiros das instituições da Suméria e não contrário; apesar de os gregos terem criado o conceito de Polis, foram os sumérios que lhe instituíram a realidade. Ter iniciado a prática da política institucional confere o status de precursores aos sumérios, assim como a análise de Maquiavel sobre a política (tenha ou não usado a “palavra”) lhe atribuiu a primogenitura da Ciência Política. No fundo, análises que se prendem ao uso de certas “palavras”, que insistem em sua presença, são análises ortodoxas (bíblicas, fundamentalistas), e que pouco afetam a investigação científica relevante. Só há validade científica no emprego das “palavras” quando, por meio da etimologia, buscamos o conceito e seu alcance e não a tergiversação. Será que Maquiavel tratou da virtù ou foi Petrarca? Esse tipo de conhecimento realmente é relevante? Alguém com seriedade acadêmica duvida que Maquiavel construiu as bases do realismo político com a investigação da virtù? Há pouca sabedoria na dúvida de que Maquiavel revestiu a análise da política sob a virtù. O que importa saber é que Maquiavel empregou todos 16 A prudência está na vida social, que evita a dispersão, conduz ao Bem Comum e reforça a solidariedade social: “Por onde é necessário ao homem viver em multidão, para que um seja ajudado por outro [...] Isso podendo, diz Salomão (Pr 11,14): ‘Onde não há governante, disipar-se-á o povo” (Aquino, 1995, pp. 127-128). Para São Thomas de Aquino, o Bem Comum seria tarefa do homem e da sociedade. A maior corrupção de um governo livre, portanto, é desviar-se deste Bem Comum, classificando-se como governo tirano e despótico: “Daí ameaçar o Senhor tais governantes por Ezequiel (34,2): ‘Ai dos homens que a si mesmos se apascentavam (como procurando os seus próprios interesses) – porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores” (Aquino, 1995, 128-129). 27 os esforços possíveis a seu tempo para analisar a política em sua essência (virtù) e foi este realismo político que instituiu a Ciência Política. O príncipe da política Em todo caso, n’O Príncipe, Maquiavel tratou de uma lógica do poder em análise objetiva, histórica, da razão que explica e sustenta o poder em sua concretude. A mais conhecida frase sobre o poder, superando qualquer pensamento genial de Aristóteles, por exemplo, assegura que “os fins justificam os meios”. Não nos importa saber se ele próprio gostaria ou não que as coisas se dessem desse modo, se seria possível outra forma para definir o alcance do poder. Importa acima de tudo saber que esta regra do realismo político independe de qualquer análise subjetiva trazida por nossa moralidade política. Aliás, antes de mais nada, é preciso saber que Maquiavel refere-se ao poder do Estado e não se expressa aos poderosos de plantão como se lhes desse uma justificativa para massacrar o povo. Quem lê seu principal livro sabe localizar, perfeitamente, outras tantas afirmações de Maquiavel a fim de que o poder seja dominado com prudência e sabedoria dosadora da força. Basta-nos lembrar o pensamento que guardou de Petrarca: “O valor tomará armas contra o furor; que a luta se espraie bem depressa!”. Não seja tolo, não abuse da sorte ou da força bruta, e terá poder por muito tempo. Este homem de virtù, o político virtuoso, é capaz de manter o poder do Estado organizado, coeso, funcional. É a este fenômeno que se chamou de (auto)conservação: ...Nicolau Maquiavel se desliga de todas as premissas antropológicas da tradição filosófica ao introduzir o conceito de homem como um ser egocêntrico, atento somente ao proveito próprio. Nas diversas reflexões que Maquiavel realiza sob o ponto de vista de como uma coletividade política pode manter e ampliar inteligentemente seu poder, o fundamento da ontologia social apresenta a suposição de um estado permanente de concorrência hostil entre os sujeitos: visto que os homens, impelidos pela ambição incessante de obter estratégias sempre renovadas de ação orientada ao êxito17, sabem mutuamente do egocentrismo de suas constelações de interesses, eles se defrontam ininterruptamente numa atitude de desconfiança e receio (Honneth, 2003, pp. 32-33 – grifos nossos). A primeira modernidade, séculos XV e XVI, em consonância com a formação das bases do Estado Moderno, centralizado, organizado, pronto para a expansão e conquista, teve um núcleo comum, uma base ideológica ou justificativa muito eficiente, e é isto que se chama de Razão de Estado. Maquiavel foi o precursor desta guinada entre a ética ou moral da política a uma visão substancialmente realista da vida política. Foi este realismo político que o levou a pensar a virtù como aquela capacidade humana (especialmente do Príncipe) de articular e de manter o poder em favor da sobrevivência do grupo — a Razão de Estado18 (Honneth, 2003, pp. 32-33). Mas há diferenças mais ou menos sutis com outros pensadores do Estado Moderno, pois Hobbes, por exemplo, tivera a vantagem do tempo (centralização de Estados, a exemplo de Portugal, e das descobertas ultramarinas) e de novos conhecimentos científicos a seu favor, a exemplo da física e da concepção do chamado mecanismo: desdobramento do racionalismo em 17 Ação social orientada aos fins. Daí a necessidade de se aprofundar o conhecimento acerca da virtù, a fim de conhecermos melhor esta substância viva da Razão de Estado (tanto quanto também para entendermos melhor o porquê da ação social, em Max Weber). 18 28 favor de sistemas organizados, mais tarde incorporados na fabricação da grande indústria. Além disso, chamaríamos a atenção para o fato de que o Estado Moderno estava em plena formação, e sem contar o advento ou incremento das bases estruturais do capitalismo19: Mas não são somente as experiências históricas e políticas da constituição de um aparelho estatal moderno e de uma expansão maior da circulação de mercadorias que dão a Hobbes vantagens sobre Maquiavel; em seus trabalhos teóricos, ele já pode se apoiar no modelo metodológico das ciências naturais, que nesse meio tempo conquistou validez universal graças à pesquisa prática bem-sucedida de Galileu e à teoria do conhecimento filosófica de Descartes [...] Para Hobbes a essência humana, que ele pensa à maneira mecanicista como uma espécie de autômato movendo-se por si próprio, destaca-se primeiramente pela capacidade especial de empenhar-se com providência para o seu bemestar futuro (Honneth, 2003, p. 34). Neste sentido, a teoria do contratualismo traria ou seria a justificativa (a explicação, o convencimento lógico e moral) necessária à Razão do Estado (desculpa, razão ou demonstração lógica do porquê de o Estado existir), assim como o homem de virtù (Príncipe) é o sujeito que melhor conduz e comanda (condottiere) a máquina de poder público20. Em sentido complementar, pelo aferimento do contrato social, o homem abandonaria o estágio primitivo de sua organização social e aí passaria realmente a experimentar o sabor/dissabor político. Então, em termos de Razão de Estado, Poder significa a capacidade de manifestar força, de alterar a potência, de impor e de provocar dominação, mobilizando sujeitos, expectativas e demandas numa relação hierárquica de subordinação, com ou sem o uso da força, a fim de que se cumpram determinadas normas e diretrizes, e que seja capaz de produzir os resultados almejados pelo soberano. É óbvio que não há poder sem que a potência tenha se desvencilhado do repouso em que se encontrava – sob esse argumento, poder é sempre movimento. A potência do poder também pressupõe vontade. Hobbes e o contrato com o poder soberano Para Hobbes (1588-1679), é preciso ter regras claras que operacionalizem ou condicionem a soberania. Desse modo, em Hobbes, o Estado é o Leviatã, um monstro bíblico, uma fortaleza sobre-humana capaz de subjugar a todos os indivíduos, graças a sua força descomunal. Para representar tal força do Estado, Hobbes utilizou-se de uma imagem bíblica – um potente, selvagem e indomável crocodilo (Livro de Jô – 40, 41). Já sabemos que Hobbes é um dos grandes autores da Filosofia e da Ciência Política e que esteve muito interessado na discussão da soberania estatal, mas antes dele está Bodin – este sim, conhecido como o clássico pensador do tema soberania: Bodin passou para a História do pensamento político como o teórico da soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da natureza do Estado não foi inventado por ele. “Soberania significa simplesmente poder supremo”. Na escalada dos poderes de qualquer sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a 19 Metodologicamente em sentido oposto, também seria proveitoso revisitar a justificação dada por Durkheim à divisão do trabalho social. 20 Comparativamente, em Weber (1999), o Estado equivale a um amálgama sócio-político que tem o direito (na verdade, monopólio) de usar da coerção e da violência; contexto em que a lei positiva é a própria legitimidade legal. 29 um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum outro – e esse poder supremo, “summa potestas”, é o poder soberano. Onde há um poder soberano, há um Estado (Bobbio, 1985, p. 95). Bodin, por sua vez, estaria embasado em outros juristas medievais, que também haviam se debruçado sobre este tema: “Já os juristas medievais, comentaristas do Corpus Júris, tinham traçado uma distinção entre as ‘civitates superiorem recognoscentes’ e as ‘civitates superiorem non recognoscentes’ – só estas últimas possuíam o requisito da soberania, podendo ser consideradas Estados, no sentido moderno do termo” (Bobbio, 1985, p. 95). Em sentido prático, na definição do poder, Hobbes foi mais supremo do que Bodin, uma vez que, Bodin admitia certos limites ao poder absoluto do soberano. Bobin recomendava: “a observância das leis naturais e divinas e os direitos privados” (Bobbio, 1985, p. 107). Para Hobbes, todavia, ou o poder é supremo ou é impotente, simplesmente porque não há (não pode haver) limites à própria soberania. A soberania é infatigável porque o homem egoísta deve ser forçado a viver em sociedade, e a vida social deve-se totalmente à soberania estatal. Assim, em uma frase, pode-se dizer que a soberania do Estado é ilimitada e é fundamental porque os homens lutam por seus interesses, incapazes da vida em comum, se não forem obrigados a tal; a soberania é necessária porque os indivíduos não são capazes de se reportar ao coletivo. É de fundamental importância que o Estado seja um ente presente, onipotente para conter tanto a agressividade quanto o egoísmo natural dos homens, uma vez que o Rei é só um (homem) e não seria capaz de mobilizar tantas forças ao mesmo tempo. Hobbes vê o homem como uma máquina, em que o funcionamento resulta de um encadeamento a partir da incidência de movimentos externos que estimulam outros movimentos internos. Para Hobbes, a realidade é um conjunto de corpos em movimento. Mas Hobbes diverge de Descartes, pois o “eu existo” depende de um “eu penso”; mas Hobbes quer saber de onde vem o pensamento. Para Hobbes, a origem de todo pensamento é a sensação (empirismo) — no nosso caso, desejo e “sensação de poder”. Para explicar o poder como se fosse um “estado tendencial”, Hobbes formulou o conceito de conatus (endeavour). A vida é um “movimento vital”, animada pelo “sistema sanguíneo” e conatus nada mais é do desejo que se desdobra em paixões e vontades (desejo transformado em ato). Por outro lado, são reações internas do corpo estimuladas por movimentos de corpos externos (primeiro sensações, depois imaginações). Mas conatus também é pensamento: e pensamentos são movimentos internos provocados por outros externos, sob a forma de “sensações, fantasmas, imaginações, recordações”. Há ligações mecânicas entre pensamentos, como se fossem “comboios de pensamentos”, em associações de movimentos e de significações. Daí virá a linguagem e a comunicação: um “discurso mental” que se transforma em “discurso verbal”. Há uma sequência de ações e de transformações entre “estado de natureza” e Estado Político – uma conexão de sentimentos que se inicia com o desejo íntimo de sobreviver (conatus ou endeavour). Conatus é, então, uma força genética que impulsiona o comportamento, um “começo interno”, um desejo. Este desejo tanto é “canalizado” para o poder quanto para a sobrevivência (conservação) — a conservação que ainda exige afirmação e (conhecimento) crescimento de si mesmo. Então, conatus é esse “desejo pela autoconservação” (compulsão). Pelo conatus, somos todos levados a vencer e isto gera conflitos: miséria para o perdedor; felicidade para o vencedor. Portanto, é o “desejo de sobrevivência” que nos leva à paz, pois se todos lutarem entre sim, sem o contrato social, muitos pereceram sem necessidade. 30 Do Homo homini lupus (“o homem é o lobo do homem”) e Bellum omnium contra omnes (“a guerra de todos contra todos”) à soberania do Estado, houve alienação e não delegação de poderes. A soberania se impõe pela Razão de Estado e pelos arcana imperii (“segredos guardados nas arcas do império”). Portanto, soberania é onipotência: o poder não pode estar dividido. E onipotência implica num poder absoluto, único, indivisível, irresistível, uma vez que o soberano (onipotente) não tem deveres, só funções: Está acima das leis e acima dos direitos, porquanto faz as leis e outorga direitos. Por sua vez, o poder soberano é inegociável: “não há meia soberania”; indivisível: “não há direito de secessão”; inalienável: “não se abre mão”; inesgotável: “não há previsão de término”; ilimitada: “não pode ser contingenciada”. Então, a soberania se resume (não que se limite) ao “poder de vida e de morte”. Mas, o conceito de Estado (racional), assim formulado, apesar desse poder absoluto, guardava ao cidadão o direito de se defender e de resistir, se sua vida estivesse ameaçada (inclusive ou sobretudo pelo Estado). Daí que o soberano é a “razão em ato” e aí se vê em Hobbes um racionalismo também absoluto: o commonwealth pode se transformar numa máquina azeitada, racional, ordenada e governada pelo poder soberano, igualmente racional. Afinal, “o pacto sem a espada não passa de palavras ao léu”. Este commonwealth pode ser traduzido/entendido como “Deus mortal”, ora também chamado República ou Civitas em latim. Porém, a soberania não admite superlativos. O poder como soma-zero Nesta forma de se ver o poder, o resultado mais claro é a ocorrência de uma soma-zero, pois o poder de um é necessariamente a negação do poder do outro, sem que os dois possam ganhar seja o que for com a própria relação imposta e garantida pelo poder. Na geometrização do poder, soma-zero implica em dizer que: “Se X tem poder, é preciso que em algum lugar haja um ou vários Y que sejam desprovidos de tal poder. É o que a sociologia norte-americana chama de teoria do ‘poder de soma zero’: o poder é uma soma fixa, tal que o poder de A implica o não poder de B” (Lebrun, 1984, p. 18 – grifos nossos). A maior dificuldade está, exatamente, em superar esta equação da soma-zero do poder. É preciso ver como se daria esta passagem do mando simples (de A para B) para uma relação de comando, com valor agregado ao poder social. Como capacidade de realização por meio de relações impostas ou constituídas, como mito ou realidade comum, analisar o poder implica em refletir em termos de meios e fins ou recursos, substâncias e o próprio exercício do poder, as formas de atuação, de justificação. Recursos e exercício do poder O poder tem uma espécie de fórmula de obtenção de meios e de recursos para sua eficácia. Tanto quanto em relação aos “fins que justificam os meios” (Maquiavel, 1979) tanto no exercício da proporcionalidade de que os “os meios devem se adequar aos fins” (Weber, 1999). Na formulação mais conhecida, segue que: Poder é colocar A na posição de B ou, então, impedi-lo disso. Para que A tenha poder, B deve ser destituído dessa pretensão, da mesma forma como não pode haver dois soberanos, pois aí nenhum seria de verdade. Poder significa a capacidade de manifestar força, de alterar a potência, de impor e de provocar dominação, mobilizando sujeitos, expectativas e demandas numa relação hierárquica de subordinação, com ou sem o uso da força, a fim de que se cumpram determinadas normas e diretrizes, e que seja capaz de produzir os resultados almejados pelo soberano. O poder não pode ser dividido, seccionado, devendo ser uno e indivisível (Maquiavel e Hobbes). Como vimos, a isto se chamou de “soma-zero” do poder. Para ultrapassar este limite o poder deve ser um instrumento de comando que agregue valor social. Como Poder Político, mas 31 sob a justificativa da Razão de Estado (a razão política de ser do Estado), o Estado existe para dar salvaguarda à vida social. O poder é mais do que uma soma-zero De fato, o poder não é tão simples e não é apenas esta soma-zero, em que para um ganhar o outro tem, obrigatoriamente, de perder. Na metáfora da economia, pode-se dizer que não há valor agregado, sem mais-valor; ainda que esta ideia de mais-valia também seja negativa, em todo caso, há geração de um novo valor, numa espécie de soma-mais-um. Em outra metáfora, a soma-zero do poder corresponde a um ciclo vicioso e o poder que agrega valor é um círculo virtuoso. Neste caso, a Filosofia Política nos auxilia na busca de racionalidades que construam, logicamente, novos constructos e organogramas de soma de valor agregado ao poder. Filosoficamente, o poder é sinônimo de capacidade e de potência (Mora, 2001). Potência sinaliza a tese clássica que advém do direito romano, de acordo com a nomenclatura do potestas in populo. A potência repousa. Capacidade implica em “poder suficiente” ou “potência disposta à ação”. A capacidade mobiliza. Entretanto, o poder absorve um sentido ativo (de atividade); portanto, de ação. Mas, o poder (força) ainda pode ser visto por um duplo sentido: 1. Poder é força: capacidade de fazer algo; “levar a cabo uma ação” (poder ativo). 1.1 O poder ativo é a faculdade de produzir resultados. Não só mobilização, mas ação que implique em algum resultado efetivo (a omissão também pode produzir resultados). 2. Poder é resultante: quando o próprio poder vier a sofrer alterações, mudanças (poder passivo). Quando se instituem, por exemplo, outras regras de arregimentação do poder instituído. 2.2 O poder passivo é uma capacidade inerente dos instrumentos de poder, a fim de receber e absorver novas regras de limitação do próprio poder. Todo poder acaba vinculado e todo vínculo estabelece limites. Da filosofia política à ciência política propriamente dita, há uma mudança de prisma, de perspectiva, em que o poder deixa de ser tratado como gerador de impacto ou de atribulações na ordem da epistemologia política, como problema do conhecimento aplicado à política, para se converter em realismo político, em experiência empírica do poder. Assim, o poder tem uma divisão básica, clássica em ciência política, na forma do: Poder Econômico: manifesta-se quando as relações de produção ganham destaque e as fortes pressões econômicas costumam dar o tom na definição do direito. Destacam-se os grupos de pressão, mas acima de tudo a própria divisão em classes sociais, com o poder econômico certamente reduzido da classe trabalhadora frente à burguesia, nestas que são, historicamente, as classes fundamentais. Poder Ideológico: em certa medida se aproxima da definição de dominação carismática, de Max Weber, especialmente se pensarmos no exercício do poder por meio da convicção de uma opinião pública. Como força atual, os meios de comunicação se destacam em primeiro plano, como no passado já foi a Igreja Católica. Nas décadas de 1960-70, o sociólogo francês Regis Debray (1993) denominou este avanço midiático sobre o poder como Estado Sedutor. 32 Poder Político: em regra, define-se como sendo o Estado. Instituído como a instituição a priori, o Estado reúne, organiza todo o poder capaz de reportar com força política suficiente para definir ou mudar as regras sociais de convivência. O Poder Político, todavia, também se manifesta na agremiação de guardiões do clã e em muitas outras formas de organização da vida social. De modo simples, a corrente clássica associa o Poder Político, em regra, à característica de monopólio do uso da força física (Weber, 1979). Não há poder desarmado, que não se sustente no controle e no uso da violência organizada e isso vale em todos os quadrantes: Hobbes [...] “Pactos sem a espada são meras palavras” [Mao Tse-Tung] “o poder brota do cano de uma arma”. Certamente, Marx estava ciente do papel da violência na história, mas esse papel era para ele secundário [...] a “ditadura do proletariado” – francamente repressiva nos escritos de Marx – vem após a revolução e destina-se, como a ditadura romana, a durar por um período estritamente limitado [...] “Toda política é uma luta pelo poder, a forma básica do poder é a violência”, disse C. Wright Mills, fazendo eco, por assim dizer, à definição de Max Weber, do Estado como “o domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer dizer, supostamente legítima [...] “O Poder”, disse Voltaire, “consiste em fazer com que os outros ajam conforme eu escolho”; ele está presente onde quer que eu tenha a oportunidade de “afirmar minha própria vontade contra a resistência” dos outros, disse Max Weber, lembrando-nos da definição de Clausewitz, da guerra como “um ato de violência a fim de compelir o oponente a fazer o que desejamos” [...] De acordo com John Stuart Mill, “a primeira lição da civilização (é) aquela da obediência” [...] A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos (Arendt, 1994, pp. 14-18-31-32-33-35 – grifos nossos). O fato é que a realidade do poder instituído e igualmente presente na vida comum do homem médio traz perquirições acima e fora da média. Neste sentido, o texto será ampliado para outras formas de manifestação do poder, além dessas três formas consideradas como clássicas. Desse modo, podemos emprestar de Kelsen alguns elementos acerca do Poder Jurídico. Poder Jurídico: capacidade (potência, possibilidade) ou competência de regulação da política presente/prevista na norma jurídica: Quem elucidar o direito como norma elucidará o Estado. A força coercitiva deste nada mais significa que o grau de eficácia da regra de direito, ou seja, da norma jurídica. O Estado, organização do poder, para Kelsen, se esvazia de toda a substantividade. Os elementos materiais que o compõem – território e população – se convertem, respectivamente, na típica e revolucionária linguagem do antigo professor vienense, em âmbito espacial e âmbito pessoal de validade do ordenamento jurídico (Bonavides, 2012, p. 44). 33 Sem substância, ou seja, povo e território, o Estado resta como abstração jurídica que se materializa apenas na aplicabilidade (ou não) da norma. Assim, se o Estado é norma, o poder está contido na norma (afastando-se do poder tanto o povo, quanto as instituições). Este Poder Jurídico seria equivalente ao poder da política que já foi normatizado. O que aqui se denominou de Poder Jurídico ou de normatização do poder, e de modo ainda mais institucional e formal, recebe no âmbito do direito público a denominação de Poder Extroverso. Poder Extroverso: é a capacidade do poder político constituir, unilateralmente, obrigações para terceiros, ultrapassando seus próprios limites, ao instituir a regulamentação, fiscalização e fomento de ações públicas, como o policiamento e a cobrança de impostos. Por isso, também poderá ser definido como um poder lastreado pelas instituições públicas, de gerenciamento do Estado e da vida social. É um poder típico das instituições do Estado. Poder Institucional: no sentido estrito, o Estado produz instituições que devem servir à organização do Poder Político. Porém, no sentido amplo, em que associamos política e direito, a partir das principais instituições públicas, o próprio poder institucional tem de ser visto além de uma mera nomenclatura. Precisa ser tomado como relação social construída entre a epistemologia política – como conhecimento da política e que produz modificações políticas efetivas – e a experiência empírica do poder, em que, do mesmo modo, no âmbito republicano, o conhecimento da política deverá gerar um valor que possa ser agregado. Esta combinação geraria uma profunda relação entre poder e valor, mas como valor iminentemente público – o que se entende como Poder Público. Ocorre, no entanto, que este novo homem republicano é, na verdade, o velho homem grego reinventado. O poder legítimo dá origem à normatividade, como poder capaz de constituir novas bases jurídicas. A República, por sua vez, decorre de processos revolucionários, como capacidade de constituir o novo poder e um outro direito. Poder Constituinte: o novo poder é uma espécie de poder político in natura, é um poder popular que se converteu em normatividade. Como poder constituinte originário é um intenso poder político; na forma de poder constituinte derivado atua como poder popular que já se transformou em normatividade, a exemplo da Constituição Política. Assim, mesmo definindo-se o poder como exercício da dominação, o povo tem capacidade política de modificar a vontade expressa no Estado ou instaurar outra ordem. O poder é a capacidade de interferir no caminho/condução normal, natural, regular dos sentidos originalmente previstos. Neste sentido, o poder já é um mito. Esta ideia de poder atemporal, como mito criado ao seu redor do poder, auxilia a perceber a profundidade de alguns significados e símbolos envolvidos. No exemplo do nazismo isto é claro, pois mesmo ali havia um contrato social sob a roupagem jurídica do Estado de Direito. O que também nos leva a pensar que existem elementos compartilháveis entre todos os mitos, um deles seria o poder atemporal e que se aplica como ameaça às gerações futuras. Poder Atemporal: a diferença é que o contrato jurídico que encontra suas bases fora da razão, por sua vez, encontrará as “certezas” em fontes não compartilháveis e nem justificáveis, a exemplo dos mitos que alimentam todas as formas de irracionalidades sociais. Na Alemanha, por exemplo, Armínio (Arminius, em latim, ou Hermann, em alemão) foi um líder tribal e grande guerreiro (16 a.C. – 21 d.C.) e depois acabou editado como mito ariano pelo nazismo. Antes da instrumentalização nazista, contudo, Bismarck – o Napoleão da Alemanha – já havia empregado toda a força necessária à unificação do Estado nacional na Alemanha, no século XIX. Sustentados pelo Mito de Armínio, milhares de pessoas julgaram-se superiores, capazes de formular um mundo que lhes pertencia e que deveria ser imposto aos demais. É óbvio que o 34 nazismo foi uma criação racional, especialmente sua base jurídica (Schmitt, 2006), mas, a não ser para os nazistas, não há justificação racional para seus atores sociais. O direito nazista, antes de ter construída sua base jurídica (ou concomitantemente), encontrou sustentação mitológica, neste caso irracional. Depois, o direito nazista procurou apoio em uma pretensa cientificidade (Müller-Hill, 1993) que, logicamente, não tinha sustentação verificável, isto é, não se coadunava com a humanidade: pela lógica, não pode haver uma experiência lógica para os nazistas e outra para os “inferiores”. Todo mito também é mantido por símbolos fortes de poder. Poder Simbólico: o poder, de certo modo, também é estabelecido por uma rede completa de relações circulares que unem estruturas e práticas pela mediação do habitus21, definindo-se limites de validade — um tipo de nexo conceitual entre estruturas e práticas. O Poder Simbólico é definido como poder circular — a citação é muito utilizada, mas vale retomar: No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos adentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de “círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma” – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (Bourdieu, 1989, pp. 7-8). Neste caso, a maior crítica repousa no fato de que todo poder simbólico é um poder real – ou então não é poder. Logo, é preferível tratar do poder de fato. E um poder de fato, como uma espécie de carne viva do poder, como poder nu (Einstein, 1994b), é o típico poder dos militares. É importante ressaltar a obra de Einstein porque se trata de um físico e não de um cientista político, que se interessa pela política (muitas vezes como “resultado” da própria aplicação tecnológica: este é o caso da acusação de que Einstein teria contribuído para o desenvolvimento das teorias que levaram à construção das Bombas A, mais tarde lançadas no Japão). Einstein não simpatizava com a ideia de que os militares dirigissem as pesquisas científicas ou de que elas passassem para sua jurisdição, sob o pretexto da segurança nacional. Essa submissão, dizia, criava um pensamento militarista na sociedade civil. E, em decorrência, gerava-se uma espécie de “poder nu” ou “poder bruto” — tal qual a expressão que empresta de Bertrand Russel (aliás, o prefaciador de Escritos da maturidade). Esse poder reduzia os homens a mero “capital humano” ou “material humano”, e por isso Einstein também criticava o “marxismo teórico”, em que julgava haver uma “militarização do social”: a revolução. Não se pode esquecer que Einstein é um pacifista nos moldes de Ghandi, daí condenar a violência política. Portanto, há uma recusa do poder militar. Poder militar: conhecido como manu militari, é um típico poder de exceção, de cunho fascista, repressor, ditatorial, em que vigoram os meios de exceção e o terror que não consegue escamotear a ilegalidade. Este Estado de não-Direito extemporâneo leva o lema francês presente na Guerra da Argélia: A legalidade pode ser inconveniente. Salvo exceções, o nível ou padrão 21 Conceito de habitus: constitui-se “em um sistema de estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes. Em outras palavras, princípios de geração e de formação de práticas e de representações que podem ser objetivamente reguladas e regulares sem serem fruto estrito de obediência a regras ou obedecerem à ação orquestradora de um regente. Espécie de social introjetado e recriado pelo aparelho mental de cada indivíduo, o "habitus" é um entroncamento entre a coerção do social que estrutura e é estruturado por cada ser humano” (grifos nossos). Veja-se em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104- 93132006000200013&script=sci_arttext&tlng=pt. Ou ainda, definindo-se habitus como a contradição entre o analógico e o dialético. 35 civilizatório da sociedade moderna não suporta mais o Manu militari, esta mão militar que executa a legalidade no paredão do embrutecimento e estranhamento político. É passado o tempo da execução de ato ou obrigação pela força pública. Este também seria o caso do regime da Estratocracia (stratus = militar). Via de regra fechado militarmente, este recinto político se converte em ideologia – no caso, propriamente uma Ideologia Autocrática: “Ideologia, propriamente entendida, deve, em primeiro lugar, indicar um certo nível de racionalidade e universalidade; em segundo lugar, deve desempenhar um papel no amoldamento da realidade social” (Castoriadis, 1985, p. 11). O Poder Militar, certamente, receberá uma congruência de outras tantas formas e recursos de Exceção. Poder de Exceção: vem do latim excipio (tomar, apanhar); indica algo que foi apanhado, extraído de seu lugar de origem e/ou de sua referência, da mesma forma como alienar, quando se retira, perde algo que lhe é próprio (a perda de si, do controle sobre...). Em suma, temos aqui uma clara restrição. No aspecto político, trata-se de uma medida político-administrativa que rompe com a normalidade — surpreendentemente, rompe-se com a normalidade do Estado sem pretensamente abalar esse mesmo Estado. No caso específico do Estado de Exceção (substantivo e adjetivo), ainda se trata de evidente suspensão de direitos. Protege-se o Estado suspendendo as garantias individuais e institucionais que subsidiavam a democracia e a soberania popular. Neste sentido, é uma medida do poder político que se volta contra a guerra civil ou revolução social — age-se contra a liberdade quando a normalidade institucional e a ordem do Estado estão sob forte ameaça22. Sob a forma clássica do Estado de Sítio23, a previsão coercitiva é temporária, mas como visa sanar a anormalidade pode se perpetuar, desde que o próprio Estado julgue que as causas que lhe motivaram ainda permaneçam — aí o estado de alerta não seria desligado24. Esta definição de luta do Estado contra a guerra civil tem origem na Revolução Francesa: état de siége, como Estado de Sítio. De acordo com a Teoria Política Clássica seria como a descrição do Estado lutando contra a sociedade — um contrassenso porque o contrato social não fora programado para se voltar o poder contra a sociedade. Se há crise institucional deve-se reestruturar o Estado, não abater a liberdade e os direitos fundamentais. Contemporaneamente, trata-se de uma luta do Estado contra setores significativos da sociedade e também implica que a luta de classes não se converteu em luta de ideias (em luta ideológica) ou porque houve um retrocesso. A ideia de guerra também se traduz por comoção, abalo, perturbação, “revolta popular”. Comoção que vem de emoção: émouvoir. Quer dizer que se submete o poder político e a sociedade a um movimento perturbador, capaz de abalar o sentido prévio de coletividade — utilizando-se a auto-conservação. Assim, uma parte da sociedade se revolta (volta-se contra o Estado) e outra, em represália, volta-se contra esta, em nome do todo. Historicamente, vê-se o golpe de Estado contra a revolta popular: O com da comoção indica uma forte emoção conjunta, o desespero e o apelo dos que se encontram unidos diante do desgosto, da ameaça, do medo, ou da dor [...] Mas o estar-junto não é suspenso apenas em sua versão física, reunião, mas também em sua versão escrita, virtual, comunicativa: suspensão do sigilo de correspondência, da liberdade de imprensa, da liberdade de informação [...] O Estado faz uso, ele se apropria das forças recônditas individualizadas no momento de comoção 22 Se fosse o caso, a medida de exceção poderia ser adotada para combater o crime organizado. Na Constituição brasileira está previsto no art. 137. 24 Esta foi a argumentação jurídica que balizou tanto o fascismo quanto o nazismo, na 2ª Guerra. 23 36 — aquele lapso fugaz, extraordinário, que rompe com as cadeias discursivas, jurídicas e temporais (Ghetti, 2006, p. 293). Por isso, significa a suspensão da realização do direito em nome das regras de direito (sacrifica-se o legítimo ao formal). Significa, igualmente, a suspensão da realização do direito (Justiça) às regras do poder (soberania). Privilegia-se o chamamento ao império das leis em detrimento da Justiça. Trata-se de um poder muito mais instrumentalizado (poderoso), intenso, ao mesmo tempo em que se revela flexível, aclimatável, amalgamável às circunstâncias e excepcionalidades que circunscrevem a este poder e à organização social. Temos os casos presentes dos golpes de Estado e das ditaduras constitucionais. Portanto, nossa esperança é investir em meios justos, como recursos de um poder civilizatório. Poder Civilizatório: O Direito como motor do processo civilizatório indica que, historicamente, a racionalização é uma tendência irreversível que se aprofunda na condução interior dos atos humanos: do mito à religião e, desta, à “ciência provedora de um sentido de vida desmistificada”. Não há sociedade, nem mesmo sob o nomadismo, que não tenha fixado regras seguras e rígidas de convivialidade. A organização do Poder Social baseada em regras sociais e/ou normas jurídicas: a crescente racionalização inerente ao processo civilizatório, justamente, tende a converter as regras sociais em normatização jurídica. Se o positivismo jurídico não é mais a força jurídica majoritária, isto apenas realça a mobilidade do Direito no contexto das transformações sociais. Investir no Poder Público Contra todas essas investidas do poder nu devem ser asseguradas de forma inequívoca as garantias políticas e institucionais de um Poder Popular. No dizer de Capella, a processualística não pode ser substituída pela legitimação mítica do poder: Tais expectativas, pelas que lutaram gerações de pessoas, aparecem ante as consciências de todos como aureoladas juridicamente, como hegemônicas. Justificar sua violação ou sua restrição exigirá, pois, um esforço (discursivo) especial por parte de quem atente contra elas: tal é, em realidade, sua magra couraça, mas, que ao mesmo tempo, facilita que os indivíduos insistam na legitimidade e na justiça de suas pretensões quando estas aparecem como o conteúdo de um direito de cidadania. Em realidade, para denegar essas pretensões legítimas, o poder há de recorrer, de um modo ou de outro, à doutrina do “estado de exceção”: uma doutrina que, levada ao limite, exige a legitimação mítica (Capella, 1998, p. 143). As cláusulas pétreas em defesa do Estado Democrático, da Justiça, dos direitos fundamentais seriam exemplos claros das medidas sintetizadas e aureoladas juridicamente, como hegemônicas – em defesa de um poder popular, social e democrático. Por isso, a melhor e mais simples forma de defesa da soberania é restaurar o poder popular. Poder Popular: isto é, o Poder Popular implica nas contramedidas usadas na defesa dos valores, direitos e instituições populares, públicas, democráticas. Nesta linha de argumentação, podemos entender a cidadania como o poder popular que se organiza ou se insurge contra todas as formas de exceção, opressão ou exclusão tentadas pelos aparelhos ideológicos ou aparatos repressivos do próprio Estado. Há inúmeros exemplos, como as lutas pela descolonização, contra a segregação racial e de enfrentamento às leis injustas (Desobediência Civil). Entretanto, toda 37 forma de poder prevê alguma organização social e a capacidade de utilizar a força (se necessário) para manter a coesão social necessária. A forma mais intrínseca, quase que atávica deste poder que praticamente garante a sobrevivência da sociedade é denominada, no mundo moderno, de Razão de Estado Exprimindo-se a própria razão de o Estado existir, o Estado existiria para assegurar condições razoáveis, confortáveis de organização ao tecido social. Desde os clássicos, sabemos que o Estado não deve existir para que os “poderosos” possam se locupletar do poder. Com isso também vemos que Ciência e Filosofia Política estão sempre de mãos dadas e esta relação já nos permite averiguar outros elementos que compõe o Estado. 38 ADENSAMENTO CULTURAL Em uma linha: adensamento cultural implica em transformar a cultura, como as relações familiares, “de sangue”, em política, em estruturas de poder e de comando. Entretanto, a questão é tão decisiva que se não houvesse determinado grau de adensamento cultural não haveria Estado-Nação, porque sem elos culturais e sociais de relevo e profundidade o próprio sentido de nacionalidade seria fugidio e sem isto, é óbvio, não haveria o porquê das nações modernas como base subjetiva de afirmação do Estado-Nação. A nacionalidade e o nacionalismo são essenciais, no fim das contas, ao surgimento do Estado Moderno, ora como resposta às violentas lutas pelo controle do Poder Político, ora em defesa da soberania contra os inimigos externos. Um pouco de história Na Inglaterra, em meio à guerra civil e intensa luta política, Hobbes escreveria o Leviatã: um tipo de Estado super-humano. O filósofo da política e do Estado inglês, Tomas Hobbes, ainda recomendaria o endeavour ou conatus, como forma de unificar o Estado único. Conatus é desejo natural de sobrevivência (Angoulvent, 1996). Para sobreviver, os indivíduos organizamse coletivamente e a formaçao de grupos sociais de pertencimento é a primeira expressao política da condição humana. Para efeito de sua sobrevivência, o homem desenvolve a sociabilidade, a política como organização social e, por fim, o Estado. Apesar de ainda contar com muitas restrições, o tipo histórico do Estado-Nação foi se formando por adensamento ou simples conquista política, numa trajetória que iria do paroquialismo ao “não-localismo”: A fusão de grupos similares em segmentos socioculturais não locais ocorria com maior rapidez onde um grupo de senhores ou um senhor consolidava suas posses por meio do matrimônio, do intercâmbio, do comércio e da guerra [...] A consolidação política era possível de alcançar somente por meio da destruição do poder soberano dos numerosos senhores locais [...] A busca de fontes independentes de riqueza levou ao “casamento” do poder real com os grandes mercadores [...] o rei converteu-se em um sócio ativo das empresas mercantis. O comércio substituiu a agricultura como chave do poder (Wolf, 2003, p. 206). Como se vê, desde o início o Estado Moderno, sua soberania e seu direito se sustentaram pela força da razão, superando-se em transformação o desejo de sobrevivência marcado pela libido inicial – esta é a maior obra da Razão de Estado, emprestar racionalidade ao desejo humano de poder. Na Razão de Estado, tem-se um desejo que se materializa em instituições e institutos visíveis e compreensíveis por todos. Assim, contra a insegurança social e a falta de sentido na civilização do pré-Renascimento, para Hobbes, a soberania ou Razão de Estado encontraria máximas ou regramentos lógicos de poder. Não há tempo a perder com o direito baseado na vingança, na dor, no ódio, porque é preciso construir o Estado e assegurar que os cidadãos compreendam e legitimem esta que é a maior construção da humanidade. A soberania, como espírito de autoconservação, exige respostas maduras, racionais do Estado e de seus arquitetos. Desse modo, em meio a tanta diversidade e adversidade, para forjar a estrutura lógica e racional25, monista26 e normativa27 do Estado (com um direito uno e coerente), outras “irracionalidades” deveriam ser contornadas, subjugadas, como: 25 Se o objetivo é centralizar e fortalecer o poder central a fim de que se possa enfrentar os inimigos internos e externos do grupo humano de um determinado território, então, o direito de resistência, distensão ou sedição deve ser coibido. Pela lógica, o poder central deverá racionalizar as estruturas que conformam o poder e se ainda se 39 Fortes elementos de subjetividade cultural, religiosa. Desafios colocados pela sedição. Dificuldades inerentes à integração político-administrativa. Poder baseado em laços familiares – parentesco. Pluralismo jurídico. Costumes locais. Estranhamento à concentração do poder e racionalização do espaço público (Administração). Acumulação primitiva: pressão política do poder econômico da burguesia insurgente. Miséria social e êxodo rural. Os Mitos de formação política (como Armínio, na Alemanha; Rômulo e Remo na Itália), por exemplo, teriam se converter em elos e relações propriamente políticas. Além de toda a arquitetura política racionalizada sob o cetro do Estado Moderno, ainda se pode dizer que atuaram duas concepções éticas, diversas mas complementares, tanto na formação estatal quanto no direito moderno: Ética Protestante: voltada a acumulação primitiva do capital. Ética Pagã: própria à conquista do poder (“os fins justificam os meios”). As éticas do poder nascente seriam o invólucro subjetivo que faltava para justificar a concentração da força e do poder. Da cultura ao Estado Ético A junção das duas éticas (protestante e pagã), no aspecto mais propriamente político, resultou na formação do que se denominou de Estado Ético. Não há definição social, não há construção política que não tenha recebido o certificado da razão, ainda que escondida sob o manto da dominação e dos mitos. O ápice desta inteligência política seria, portanto, a ética formulada pelo Estado: o Estado não seria apenas o profusor de uma ética superior, o Estado é a síntese dos mais elevados elementos éticos – a inteligência superior a serviço de todo o espírito humano (Bobbio, 1989). Hegel desenvolve essa perspectiva institucional atribuindo ao Estado uma instância ou nível superior às classes sociais e aos conflitos sociais inerentes. Um Estado Ético “paira” sobre a realidade, pois deve ser imparcial, irredutível às contradições sociais e suas demandas classistas antagônicas e excludentes. Por isso, pode-se dizer que é um modelo de Estado que se quer indiferente às diferenças sociais e, assim, promovese como intervencionista no âmbito moral. O problema é que o Estado Ético, como “instância superior da organização social”, cria uma superestrutura política que “coloniza” e aprisiona as relações sociais de acordo com os desígnios do poder hegemônico. Em todo caso, nessa linha de argumentação, não haveria nada mais racional, sublime, do que o Estado. Independente dos desvios e abusos de crendice no Estado Ético, como moral superior da Humanidade, não há como não ver aí a conclusão ideológica da transformação do adensamento cultural em política. objetiva a obtenção de fontes de financiamento para o Estado e suas empreitadas, logo, a racionalidade capitalista será aplicada ao Poder Político. 26 Nesta fase absolutista, o poder central não encontrava limites ao manejo de suas forças, daí a Teoria da Soberania assegurar ao Príncipe um poder absoluto (majestas). Somente no século XVIII surgiria a convicção de que o poder deveria ser controlado, sobretudo a partir da tripartição dos poderes. 27 Teríamos de esperar pelo século XIX para conhecer o controle jurídico do Estado, afirmando-se a tese da personalidade jurídica e do Estado de Direito. 40 Por isso, o adensamento cultural corresponde à formação do Poder Político como uma organização social em estágio superior; implica na passagem do poder social ao nível em que a política se transcorre em torno de amigos e inimigos. De forma direta, unificando-se o centro de comando, a cultura represada no poder social se vê metamorfoseada em Poder Político. A cultura política no Brasil No Brasil, há adensamento cultural? É o suficiente para vermos a conversão das demandas sociais em políticas públicas? A própria cultura política popular está de acordo com seus interesses? É claro que são questões instigantes e não merecem respostas simplistas, no entanto, a partir de alguns aspectos da realidade brasileira é que iremos construir o conceito de adensamento cultural. Pode-se dizer que o Estado Nacional brasileiro tem dois grandes grupos de problemas: a) técnico – expresso na desigualdade regional e no desenvolvimento econômico, ambos baseados na saúde econômica e que, atualmente, está estagnada; b) cultural – a formação classista que sempre segregou ricos e pobres, brancos e negros, sulistas e nortistas. Tecnicamente, o Estado precisa retomar o crescimento da economia, culturalmente, precisamos distribuir melhor nossas riquezas; só com a economia mais forte, empregando-se, incluindo-se milhões de pessoas poderemos combater o racismo, a indiferença social, o egoísmo. É claro que com tanta exclusão e apartamento social o adensamento cultural se vê prejudicado. Contudo, só com educação conseguiremos criar uma massa crítica capaz de avaliar as soluções técnicas para os problemas globais. Só a educação será capaz de abalar uma cultura secular, em que o povo somente apreciava, sem entender, o que se dizia fazer em seu nome. Sem educação, não criaremos condições para fortalecer a sensação sublime da emancipação. Aqui apelidada de libertação da ignorância, a emancipação torna os significados compreensíveis, os símbolos decifráveis. Sem educação, a razão se mantém como privilégio de poucos, pois o bom senso, o esclarecimento vem sim da educação. Sem que se democratize o acesso à razão, a sensação de ser integrado é negada. Com educação, as pessoas poderão por si esclarecer o que lhes interessa, pondo fim à tutela política. Por isso, a educação é a mágica que liberta. O poder tem códigos e senhas, e sem educação não se acessa seu interior e nem se decifra seu mecanismo. Sem esta inclusão de novos significados para os velhos códigos da política, veremos crescer por muito tempo o rol da criminalização que acerta em cheio a sociedade brasileira. Os poderosos, sem controle democrático, limitam-se a digladiar pelos “castelos do poder” e alguns atingindo outros produzem leis que não tratam da educação popular, mas sim da criminalização social. Sem a democracia que se inicia, exatamente, pela democratização do entendimento real do significado extensivo das principais questões (educação), não se compõe com clareza os marcos civilizatórios que separam o certo do errado. Sem a democratização da educação de qualidade, o povo continuará órfão das sensações republicanas. Sem educação de qualidade, e isto significa modificar o alcance e o conteúdo do que se ensina, tanto as elites quanto o povo continuarão sem separar o público do privado. Sem educação de qualidade e para todos, a sensação de ser republicano será sempre um privilégio de poucos bem formados e educados pelo espírito público – o que é muito pouco para mudar o Brasil. Sem esta educação, implica dizer que a nacionalidade é um eterno benefício de minorias: para uns poucos, o Brasil é um bom país; para os de sempre, a maioria, vive-se a negação da cidadania. 41 Pensar a educação em direitos (como educação republicana), é óbvio, remete a pensar o direito à educação – mas é mais ou menos visível (historicamente) como não haveria direito à educação sem que houvesse muita luta e é aí que a educação em direitos a precede, na forma da luta política pelo reconhecimento de direitos — inclusive a luta pelo reconhecimento da educação como um direito social fundamental. A experiência da educação republicana nos EUA nos trouxe algo importante: reconhecer que o efeito essencial da educação é a “crença na perfectibilidade”. Esta crença pode mover o povo em direção ao Estado-Nação, principalmente se nesse curso está claro o sinal de que a educação será uma luta contra as desigualdades, partindo-se do direito à isonomia republicana: “Nas palavras pronunciadas por John Adams em 1765 – isto é, antes da Declaração da Independência – ‘Sempre considerei a colonização da América como a abertura de um grandioso desígnio da providência para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero humano sobre toda a terra” (Arendt, 1992, p. 224). Não há densidade cultural onde reina a ignorância das instituições públicas. Mas, de nada adiantaria este adensamento cultural sem que houvesse uma efetiva centralização do Poder Político. 42 O ESTADO É UMA ESCRITURA POLÍTICA Entre sociedade e Estado, bem como entre Poder Social e Poder Político, há diferenças substanciais e que devem ser frisadas. Portanto, o objetivo geral deste item é demarcar algumas dessas nuances e aprofundar o questionamento histórico acerca da passagem das sociedades primitivas à estrutura política organizada em torno do Estado como o conhecemos atualmente. Desta forma, a seguir, veremos uma estrutura política necessária, fundacional do Estado Antigo, mas marcada pela sua condição natural: a origem social do Estado. A Origem Social do Estado O Estado, apesar de ser uma criação humana – decorrente da inerente condição do zoon politikón –, não surgiu da noite para o dia. Assim, é necessário observarmos que há uma história, um adensamento cultural, um fluxo institucional e por isso precisamos observar o Estado como parte da ontologia política. Se o Estado é um produto humano, quer dizer que é derivado da razão, como ato intencional, e isto nos inclina a ver o Estado como resultado de um aperfeiçoamento de instituições políticas anteriores. Portanto, o Estado é resultado – antes de ser meio ou fim –, e o fato de vermos resultados indica que há uma ontologia política. Para este intuito de reconhecer a transformação da política em Estado, vamos abordar a formação do Estado, as principais teorias envolvidas neste processo e, em especial, a formação do Estado Antigo. Mas, antes de seguirmos este passo institucional da humanidade é preciso reforçar o conhecimento que difere Estado e sociedade, Poder Social e Poder Político. Por que o homem criou o Estado? Foi esse ato criador que nos transformou em animais sociais e políticos? É nossa capacidade de criarmos sociedades organizadas e Estados que nos caracteriza como humanos e, assim, nos diferencia dos demais animais sociais, como abelhas e castores? Antropologia do “Estado de Origem” 28 Tomamos consciência de que era necessária a vida social e depois demos um passo decisivo rumo à criação ou elaboração do Direito – como forma de regular quem se relacionava com quem, de que forma, onde, quando e porque se agiria deste ou daquele modo. O Direito, inicialmente, é o conjunto das interações sociais, que no espaço urbanizado se transforma em ação e relação política. Essas múltiplas interações, no entanto, vêm racionalizadas (discutidas, ponderadas, pensadas, “definidas”) e apresentadas formalmente29 por um grupo também substancial de pessoas: “o(s) grupo(s) dominante(s)”. Neste aspecto, o Direito é social; pois o Direito decorre das necessidades sociais que também se transformam ao longo da história – e ainda que tenhamos de (re)lembrar que se trata de um tipo de necessidade primária, isto é, a necessidade da sobrevivência. Então, desse modo, como fato social (desde suas primeiras ocorrências significativas na longa história da humanidade, e mais precisamente a partir do fortalecimento do Homo faber30), o Direito não deve ser confundido com certo conjunto de regras a ser seguido, sob pena do emprego exclusivo da sanção e da coerção. 28 Antropologia Política seria a expressão mais correta e poderia ser simplificada como o ramo da Antropologia que se detém a analisar as formas iniciais, fundacionais do poder (social), e como área em que se destaca o Poder Político assegurado pela estrutura do Estado. 29 São regras formalizadas porque seguem uma forma, uma maneira recorrente de serem tratadas, além de um ritual que envolve tanto sua produção quanto sua execução. 30 Imortalizado pelo Mito de Prometeu, o Homo faber promoveu a transformação do homem selvagem em ser social. 43 A possibilidade do uso da sanção pelo Direito (quer seja premial, quer seja punitivo) decorre da necessidade anterior da organização social – necessidade agora entendida como fruto, princípio da vida social e das regras jurídicas regulatórias. Para bem e para mal, o Direito decorre das principais necessidades sociais que vigoram em determinada época histórica. É fácil perceber como a necessidade do Direito antecede a qualquer ideia de coerção e ao próprio Estado. É como se disséssemos que o Direito é uma necessidade primária, de tão presente que estava na origem das primeiras sociedades organizadas; assim como é elementar na organização da vida moderna. Por fim, se ainda é necessária uma breve definição, podemos dizer que: Direito é um conjunto de doutrinas, elaborações teóricas e conceituais, de sentidos, de valores econômicos, culturais e políticos, de regras sociais e de normas jurídicas (o próprio ordenamento jurídico), quer sejam regras impositivas ou reguladoras, quer sejam normas orientadoras ou dirigentes de condutas, mas sempre oriundas e prescritas pelas classes sociais ou pelos grupos econômicos e políticos dominantes e/ou hegemônicos. Como se vê, o Direito (Poder Social) tanto está além quanto precede o Estado (Poder Político). O Estado, nesta fase inicial, será simplificado como a instituição por excelência, detentor do poder necessário (nem sempre legítimo) a fim de empregar a coerção e a dominação política, econômica e social31. Assim, nem o Estado e nem o Direito são entes ou instituições neutras, imparciais ou indiferentes à realidade social e política que os cercam. Só há sentido falar em Direito “se” e “enquanto” continua a ser aceito socialmente, nunca fora do contexto social e político que lhe assegura validade, credibilidade e aceitação. Quando vem de fora para dentro, não é Direito, autoridade; como poder heterônomo, é imposição autoritária de uma determinada vontade. O Direito, pela lógica simples, deve expressar a vontade, as razões do grupo que o origina. Ao produzir a sociedade, o Homo faber - que aparece no Mito de Prometeu - produziu as primeiras formas jurídicas, aquele Direito com total validade social. Enfim, o que explica e justifica a criação do Estado pelo Homem? HIPÓTESES SOBRE A ORIGEM DO ESTADO Veremos um total de 14 hipóteses com relação à origem do Estado, além das sugeridas por Hobbes e Vico, e da ideia de que o Estado surge para satisfazer a necessidade de sobrevivência dos indivíduos e dos grupos sociais, como analisadas em outro tópico. Com isso, não se quer dizer que estas sejam todas as hipóteses possíveis, mas sim que são hipóteses razoáveis, verificáveis – algumas, inclusive, nos dias atuais. Assim, passemos a analisar essas possibilidades. 1. Exploração econômica entre classes sociais divergentes É a clássica concepção marxista, socialista acerca da Formação do Estado. Serve-nos como exemplo nossa própria realidade social, pois o Estado teria por finalidade assegurar que o Poder Econômico permanecesse concentrado nas mãos da classe dominante. Lembremo-nos de que, historicamente, não mais do que 1% (um por cento) da população detém mais de 50 % da renda nacional ou da riqueza produzida por todo o povo e que, ao contrário, os 50 % (cinquenta por cento) mais pobres não acumulam muito mais do que 5% (cinco por cento) da renda bruta. O Estado, portanto, nos serviria apenas para garantir essa desigualdade e essa extrema concentração de renda: “F. Oppenheimer [...] define todos os Estados conhecidos pelo fato da dominação de 31 No caso brasileiro, o Direito é postulado pelo Estado – entendendo-se o Direito agora simplificadamente como “conjunto de normas sociais dotadas de coerção”. Mesmo que nem todo o Direito seja produzido pelo Estado, de alguma forma todo o Direito deverá receber sua autenticação ou reconhecimento estatal, quer seja como chancela premial, quer seja como ação punitiva. 44 uma classe sobre a outra para fins de exploração econômica” (Balandier, 1969, p. 141). Em uma expressão clássica e consagrada, o Estado deve assegurar o domínio da burguesia sobre o proletariado. 2. Associação voluntária Neste caso, é como se não houvesse grandes discussões de valores, opiniões divergentes quanto à natureza do Estado, com o povo chegando a um comum acordo sobre a institucionalização do Poder Político. Isso é comum à maioria das associações civis, mas também ilustra a chamada forma típica de organização do Estado. Pois, gradualmente, os grupos envolvidos vão chegando à conclusão de que o Estado ou é necessário ou lhes serviria adequadamente. Pode ser o caso concreto de associações de Estados menores para formar uma estrutura política destacada, a exemplo da transformação das confederações em Estados soberanos e autônomos, como a Confederação Helvética (que originou a Suíça) e os EUA (se bem que, neste caso, a base da Federação é a própria Revolução Americana). 3. Dominação de uma potência superior Um Estado que existia até ontem e passou a ser dominado por uma potência e se criou outro Estado. A exemplo do ocorrido com a invasão americana ao Iraque, pois o Estado de Saddan Hussein não existe mais e, em seu lugar, o povo iraquiano edificou outra estrutura estatal. A eleição de uma Assembleia Constituinte, elaborando a primeira Constituição após a guerra é o primeiro passo, uma vez que a Constituição Federal traçar o perfil e a estrutura básica desse outro Estado iraquiano. Diz-se que, para saber como funciona um país (Estado), deve-se ler a sua Constituição. Em resumo: “R. Linton, por exemplo (...) encara essencialmente dois meios de construção dos Estados: a associação voluntária e a dominação imposta em razão de uma potência superior” (Balandier, 1969, p. 141). 4. Com conquista rápida ou insidiosa Nesta modalidade de conquista, exclui-se toda capacidade de resistência, pois o objetivo é não dar chance alguma de defesa ao ofendido e assim ocupar seu território e conquistar seu povo. Novamente, vale o exemplo da ocupação do território iraquiano pelas forças americanas e aliadas, um processo que não levou mais do que poucas semanas, entre o desembarque e a chegada à periferia de Bagdá. Após esse tipo de ocupação e conquista, então, é que se inicia a formação do novo Estado, sobre os escombros da cultura anterior. Como diz Balandier (1969): Os Estados podem vir a existir seja pela federação voluntária de duas ou mais tribos, seja pela subjugação de grupos fracos ou grupos mais poderosos, que acarreta a perda de sua autonomia política (...) R. Beals e H Hoijer consideram ainda, com menos reservas, que o direito exclusivo de recorrer legitimamente à força e à coerção – pelo qual se define o poder governamental – “só aparece com o Estado de conquista” (p. 142). Vê-se que se trata de um Estado associado à coerção, como Estado de Conquista. 5. Quando há diferenciação não-igualitária entre os indivíduos Se há uma diferenciação não-igualitária é porque pode haver uma diferenciação igualitária? Podemos ser diferentes em alguns aspectos, mas iguais em outros? É óbvio que sim, pois homens e mulheres são diferentes biologicamente, mas plenamente equiparados do ponto de vista jurídico (já na questão social, política e econômica, são profundamente desiguais). Os Estados que embainham em lutas de classes são típicos nesta análise: “R. Lowie [...] Observa ele que as condições internas bastam ‘para criar classes hereditárias ou aproximadamente 45 hereditárias’ e, mais adiante, o Estado primitivo, e nota que os dois fatores principais – a diferenciação não igualitária e a conquista – ‘não são necessariamente incompatíveis” (Balandier, 1969, p. 142). Na hipótese aventada, o Estado teria sido criado para garantir diferenças sociais, hierárquicas entre as pessoas, entre os sexos (de acordo com a conhecida divisão sexual do trabalho), mas também teria sido elaborado a fim de que as desigualdades (entre elas a econômica) fossem ainda mais acentuadas. O Estado deveria garantir privilégios e não direitos ou, então, dotar apenas alguns de amplos privilégios – em detrimento dos demais -, como acontecia nas monarquias e nas aristocracias. Aliás, está presente a ideia de dividir ou diferenciar para conquistar, bem como é a matriz explícita do clássico machismo patriarcal. 6. Quando há uma tendência natural para a organização dos Estados Indica a possibilidade de que, naturalmente, alguns povos fossem conduzidos pela força da organização social a estruturar seus Estados, porque a complexidade social – em determinada fase de sua evolução – os levaria a isso. Talvez fosse o caso dos Astecas no México que, à época da chegada dos espanhóis, já possuíam uma intrincada organização social, adiantado nível de desenvolvimento tecnológico e imensa bagagem cultural – o que lhes permitiu construir aquedutos e beneficiar o povo com o saneamento básico. Um estágio social e cultural, portanto, muito mais desenvolvido do que Paris, por exemplo, que ainda despejava o esgoto no meio-fio das ruas. Agora, não há garantias de que os Astecas iriam construir um Estado como se via nos principais centros urbanos europeus. Se sua cultura tivesse tido a chance de prosperar, sem serem aniquilados talvez sim: Numa época muito antiga e num meio muito primitivo, não era necessário romper os laços de parentesco para fundar um Estado político. Com efeito, ao mesmo tempo que a família e o clã durante um número incalculável de séculos existiram associações, como os ‘clubes’ masculinos, as classes de idade ou as organizações secretas, independentes do parentesco, que evoluíam por assim dizer numa esfera muito diferente da do grupo de parentesco e eram capazes de assumir facilmente um caráter político, quando não o apresentavam desde o seu aparecimento (Balandier, 1969, p. 143). Em outro exemplo, muitas tribos africanas à época da colonização Europeia, contando com milhares de indivíduos, também indicam outra hipótese. Pois, teriam ou não evoluído suas sociedades para formas mais elaboradas de organização política, como o Estado? Nesta situação, o Estado poderia ter uma origem familiar, de base comum ou pelo menos que fosse semelhante à maioria dos casos. 7. Valorização de associações militares anteriores O Estado teria sido reformado a partir de associações militares, ou seja, um grupo se organizou militarmente, em primeiro lugar, e com isso encontrou mais força ou meios objetivos para estruturar o novo Estado. Seria o caso de todos os grupos militares que têm êxito em sua empreitada e, como movimento, revolucionam as bases políticas precedentes. Há inúmeros exemplos, como Gengis Kam e a unificação da Mongólia, mas pode-se pensar na Revolução Cubana e na posterior construção do Estado socialista de Cuba. 8. Há predominância de hierarquias sociais: regime de castas O Estado teria sido criado apenas e unicamente a fim de manter a estrutura social e cultural de acordo com as bases iniciais em que se deu a formação dessas sociedades. A estrutura de 46 castas, como ainda se vê na Índia, sem que haja nenhuma possibilidade de mudança social mais profunda, restrita à mobilidade horizontal, em que os membros das castas inferiores não chegam a ocupar posição relevante nas castas superiores é um exemplo bastante concreto. A nota seguinte resume este sentido: Lowie, portanto, deve apelar para fatores menos extensamente distribuídos [...] Alguns de ordem interna: a valorização das associações militares, ainda que seja apenas de caráter sazonal, como no caso dos índios cheyennes; a predominância das hierarquias instauradas segundo a posição; como nas sociedades polinesianas; a presença de personagens vigorosamente sacralizados, que fundam uma autocracia associando ao seu empreendimento a ‘auréola do sobrenatural’ (Balandier, 1969, p. 143). A função do Estado, nesta perspectiva, restringe-se à opressão social e cultural. Destacam-se, portanto, os fatores internos, tal qual as necessidades primárias. 9. Pode haver desenvolvimento interno ou regional Uma situação com características particulares, em determinadas condições históricas e geográficas, teriam estimulado um povo em especial a construir uma razoável estrutura política à sombra do Estado. Pensemos na China e na enorme exposição do povo e da sociedade aos seus inúmeros vizinhos (como os Mongóis – um povo sabidamente guerreiro): M. Fried sugere que se diferenciem nitidamente os Estados primários dos Estados secundários ou derivados. Os primeiros são os que se puderam formar, graças a um desenvolvimento interno ou regional, sem a intervenção do estímulo de outras formações estatais preexistentes; são os menos numerosos: os do vale do Nilo e da Mesopotâmia – centros das mais antigas sociedades de Estado -, os da China, do Peru e do México (Balandier, 1969, p. 144). Nessas condições, em que até a geografia favorecia os contatos (amigáveis, mas também hostis), os chineses encontraram uma solução eficaz à sua defesa. Monumental como sua cultura e território, os chineses construíram as grandes Muralhas da China para se defenderem – as muralhas que, a essa altura, já circundavam o Estado Chinês. Neste sentido, as Muralhas da China também são uma oferenda ao Estado32 – pois nunca se viu um Estado tão fortificado quanto este. Por isso, também seriam chamados de Estados Primários (ou primeiros ou primitivos). 10. Quando há secessão ou desmembramento (violento ou pacifico) Os exemplos são variados, mas pode-se ter em mente a regra básica de que, em virtude da guerra civil, fragmentou-se e se dissolveu a estrutura e a organização social antiga para se formar um outro Estado. A exemplo da ex-Tchecoslováquia que virou República Theca e Eslováquia, e que indicam uma fragmentação pacífica, assim como a ex-URSS. São exemplos singulares a República da Irlanda (Eire), o Estado do Vaticano, o Estado de Israel 33. Já a antiga Iugoslávia sofreu com a terrível guerra civil até se repartir em Estados menores, como 32 Equiparada talvez às muralhas que protegiam Tróia, diante das forças militares esmagadoras da Grécia antiga. Este caso ainda envolto muito mais em mitologia do que em indicações históricas e ainda que existam indícios, como pinturas da época, sinalizadores. 33 Com territórios cedidos, desmembrados do antigo espaço geográfico a que se vinvulavam. 47 Sérvia, Croácia, Bósnia – indicando um desmembramento violento até a total dissolução do antigo Estado. No início da dissolução, ainda havia um pequeno território designado como Iugoslávia, mas em seguida este território se dissolveu por completo, de forma que não mais existe o território da Iugolsávia. No Brasil, tivemos a tentativa da Guerra dos Farrapos ou Farroupilha. Para alguns autores, no fundo, os fatores essenciais se resumem a quatro: Examinando o caso dos reinos e impérios africanos, H. Lewis identifica alguns dos processos que contribuíram, de maneira induzida, para a sua constituição: 1) a conquista, rápida ou insidiosa, que opera em detrimento de unidades políticas enfraquecidas (reinos da região interlacustre na África oriental); 2) a guerra, que provoca, pelo jogo das vitórias e derrotas, nova divisão política (Gala, na Etiópia); 3) a secessão, resultante da ambição dos agentes locais do poder central (Mossi) ou da revolta contra o tributo (Daomé); 4) a submissão voluntária a um poder estrangeiro considerado eficaz (Shambala, na Tanzânia) (Balandier, 1969, p. 144). 11. Por submissão voluntária surge um outro Estado Isto ocorre quando um povo abre mão de sua soberania (não necessariamente de seu território e nem de toda a autonomia) para fazer parte de outro Estado, teoricamente, mais forte ou desenvolvido. É o caso patente de Porto Rico. 12. Quando há heterogeneidade étnica ou há culturas diferentes A exemplo da Confederação Helvética, em que se reuniram muitos grupos ou tribos, e do que resultou o Estado da Suíça. Cada região ainda hoje tem um dialeto próprio e ainda que estejam submetidos ao Estado central, mantém certa autonomia ao planejarem e executarem a democracia direta nos chamados cantões. 13. Um dos grupos é mais organizado e se opõe aos demais Como se vários grupos ou várias famílias de uma mesma região, com o mesmo status, convivessem em determinado espaço até que uma delas (por algum motivo) se destacasse e conduzisse à formação do Estado. Podemos tomar o exemplo do Estado Romano, tendo por base e origem as famílias patriarcais. 14. Um dos grupos tem líderes carismáticos e servem como modelo Lembrando-se que o carisma advém de uma ascendência religiosa e que a reverência popular se dá em função desse líder ser considerado um messias ou aquele que traz a verdade, a luz, o caminho da verdade: Uma variante das interpretações que se poderiam dizer relacionais, da gênese dos Estados Primitivos, é proposta por A. Southall, que encara a heterogeneidade étnica e cultural, num quadro regional, como condição propícia à realização do processo. A interação de etnias diversificadas, de estruturas sociais contrastadas, as predispõe a ajustar-se numa estrutura de dominação/subordinação além da qual as formas do poder estatal tem a possibilidade de se constituir. Segundo Southall, duas circunstâncias são favoráveis a essa evolução. Um dos grupos em presença já possui uma organização política eficaz em grande escala; dispõe dos meios que permitem organizar politicamente um espaço ampliado e acaba impondo sua supremacia às microsociedades com as quais se acha em relação. Um dos grupos encerra líderes de tipo carismático, e estes se tornam os 48 chefes solicitados pelas sociedades vizinhas ou ‘modelos’ pelos quais elas organizam o poder interno, subordinando-o. Num caso é a competência a dirigir um espaço político ampliado, no outro é a qualidade do líder que possibilita o estabelecimento de uma estrutura de dominação. Estaria, então, formado o germe estatal (Balandier, 1969, p. 145). Portanto, o líder carismático nada tem de populista, como estamos habituados a ver no Ocidente e no Brasil. Pode-se reler a história de messias como Maomé e Moisés ou a trajetória dos vários Aiatolás. Para alguns, obtém-se o mesmo efeito com Dalai Lama. A maioria dos Estados teocráticos tem essa forte presença de líderes carismáticos. ainda vemos que há uma nítida competência cognitiva para organizar e para liderar, na forma de Estados baseados na dominação tradicional e carismática (M. Weber). Por fim, restariam formas mais fortuitas, impuras, muito ocasionais, sem referências tradicionais que a literatura especializada pudesse apontar com mais constância. 49 O QUE É O ESTADO? A corrente majoritária no mundo jurídico associa o Estado à ideologia do Bem Comum, sacramentando-se com a definição trazida pela encíclica Pacem in Terris, em 1963. O senso comum também referenda este pensamento, como diriam nossas mães: “O Estado é um conjunto de pensamentos e ideais mais ou menos iguais dos que lutam por uma vida melhor para todos”. A lógica não traria conclusão diferente, afinal, por que razão o homem criaria uma instituição tão poderosa quanto o Estado para lhe fazer o Mal? Todavia, a análise das relações de poder não demonstra exatamente isso, pois há classes sociais e grupos de interesses que instrumentalizam o Estado, levando-o a agir de acordo com motivações menos nobres. O Estado brasileiro, por exemplo, apesar dos avanços institucionais, normativos e políticos, ainda reflete o passado patrimonialista. O Estado Patrimonial guarda como segrego de alcova o fato de que as impurezas da cultura das elites dominantes são estendidas a todo o conjunto da cultura nacional. Historicamente, o Estado remonta à Suméria, atual Iraque (7000 a.C.). As primeiras formas de Estado, o chamado Estado Antigo, eram baseadas exatamente na exploração da explosão da violência, a fim da conquista e da dominação (com penalidades igualmente lastreadas em repressão e violência)34. Para a antiga Filosofia do Estado, Aristóteles e Platão, o Estado surge como a melhor forma para se organizar a sociedade; como organização política para a justiça. Porém, alguns sofistas acreditavam ser o Estado apenas “o interesse do mais forte”, encontrandose o Estado basicamente ligado ao poder. Em todo caso, mesmo que se ocupasse de grupos de interesse específicos, o Estado não seria uma oligarquia – acreditavam os gregos –, uma vez que vários grupos em disputa equilibrariam a balança da justiça. Indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com uma vita activa que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15). Mas, como definiu Hannah Arendt, de modo preciso, a vita activa é sinônimo de ação política e esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia35, isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Na Idade Média, o Estado passou a ser tido como instância de poder inferior à Igreja; sendo algo frequentemente Mau (Santo Agostinho) ou como mero reflexo da Igreja (Tomás de Aquino). Do Renascimento em diante, como status (Maquiavel36) e contrato (Hobbes), o Estado se separou gradativamente da Igreja: a soberania temporal37 se afirmou na transição para o primado do Estado (laico). Com Spinoza, o Estado sintetiza a liberdade, “a comunidade de homens livres, mas livres porque vivem no Estado segundo o decreto comum”. Neste sentido, o Estado é o equilíbrio entre religiões, ideologias, classes e indivíduos. Na Ilustração, o Estado é o caminho da razão e a libertação do obscurantismo (despotismo esclarecido). Já o romantismo alemão acabou por associar o Estado à Nação, em que o Estado encarnaria o próprio espírito nacional – e como se não houvesse, por exemplo, contradições entre a 34 Consulte-se em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/6620/o-estado-de-direito-gregario. O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”. 36 É Maquiavel quem utiliza pela primeira vez o vocábulo Estado, em que o Estado, (status = forte), é uma fortaleza, firme, constante. 37 A Soberania é um dos elementos de formação do Estado Moderno, contudo, a soberania temporal, como separação do poder da Igreja, é um dos seus rudimentos mais importantes. 35 50 sociedade e a família (Mora, 2001). Em todo caso, surgiram noções, ideais, elementos e instituições que perduram até hoje: O Estado é status, força que garante a permanência, estabilidade, durabilidade da organização social (Maquiavel) O Estado e suas leis correspondem ao pacto ou contrato anterior (Hobbes) O Estado sacramenta a “vontade geral” (Rousseau) Como componente do Estado, o povo não é um meio político (Kant) O fortalecimento da moral coletiva é o objeto do Estado, como espírito público (Hegel) O Estado é “a organização da sociedade que garante a liberdade” (Spinoza) O dever fundamental é garantir o cumprimento dos direitos fundamentais (constitucionalismo) Para a Sociologia Política do Estado, o Poder Político tem cada vez mais sido relacionado ao capital, como exemplo de sua temporalidade. Contudo, o Estado pode ser tido como uma instituição geral que congrega muitos elementos e outras instituições-parte: 1) Instituições de suporte dos meios de violência e de COERÇÃO 2) Suas instituições são geograficamente delimitadas, como SOCIEDADE 3) A institucionalização das normas sociais e das regras jurídicas gera uma CULTURA POLÍTICA compartilhável Neste leque, o Estado é definido como organização social que produz cultura política por meio da coerção. No entanto, configura-se um paradoxo insolúvel, entre liberdade e coesão social: “A teoria tradicional preocupava-se com o alcance dos poderes discricionários do Estado” (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 258). Mas, a realidade obrigou a uma segunda concepção “infra-estrutural”. Isto é, o poder do Estado é medido a partir de sua capacidade de colaborar com os vários grupos sociais que o compõe. Este poder colaborativo ainda atuou como limitador ao poder despótico do Estado. Na interpretação da Filosofia Jurídica do Estado, o leque é amplo, de Hegel a Kant, de Del Vecchio a Duguit. Hegel definiu como Estado Ético: “realidade da ideia moral”; “substância ética consciente de si mesma”; “síntese do espírito coletivo”; “instituição acima da qual paira somente o Absoluto: a arte, a religião, a filosofia”. Em Kant, o Estado surge como “a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”. Para Del Vecchio é “a expressão potestativa da Sociedade”; “o Estado é o laço jurídico ou político ao passo que a Sociedade é uma pluralidade de laços”. Em Burdieu: “o Estado se forma quando o poder assenta numa instituição e não num homem. Chega-se a esse resultado mediante uma operação jurídica que se chama a institucionalização do Poder” (Bonavides, 2012, p. 66-67 – grifos nossos). Também é possível ir além e visualizar a política-social, como o exercício de uma força política capaz de proporcionar interação e sociabilidade: Há atualmente a necessidade de ‘deflacionar’ seja a políticacompetência, seja a política-interesses para conquistar de novo um observatório capaz de voltar a conectar a competência política e os interesses com o quadro do conjunto das instituições e dos procedimentos jurídicos nos quais funciona o Estado Moderno, e também com o quadro dos valores culturais de onde nasceu a liberdade moderna (Cerroni, 1992, p. 12 – grifos nossos). 51 Neste sentido, o Estado deveria atuar como vetor político de elevação dos critérios de racionalização e imprimir valores próprios ao processo civilizatório, e a partir de ideias e ideais como República, Democracia, Estado de Direito, Liberdade, emancipação, consciência e responsabilidade pública. Em todo caso, inicialmente, ainda podemos entender o Estado como um tipo privilegiado de comunhão política, seja como força potestativa, seja como aliança de classes. Mais frequentemente é definido como o Poder Político organizado, sendo centralizado na forma de um poder unitário. O que implica em afirmar que o Estado é um poder único e centralizado (mesmo sob a forma da Federação e dos Estados autônomos). O Estado também é a instituição por excelência responsável pela organização das demais – o que ressalta a importância da divisão de funções – para a administração e controle do poder – e congrega como elementos funcionais o povo, o território e a soberania. Mas isso não explica muita coisa, pois é preciso, por exemplo, discutir em que consiste a soberania, a quem e de que modo se organiza esta soberania, em que bases territoriais e culturais abriga-se determinado povo. Em todo caso, como instituição por excelência, o Estado conhece a outra forma complementar de exercício do Poder Político, além da regulação da política – neste caso quando opera como Poder Público. Se o Estado é o Poder Político centralizado (esta também seria uma definição para soberania), o Estado também é o Poder Público que se manifesta como organicidade e funcionalidade administrativa. É como se dissesse que o Poder Público é uma forma especial de conversão do Poder Político, atuando como prestação de serviços essenciais ao público, ao povo, e à administração do próprio Estado. Assim, o Estado é a conversão do poder in natura – inerente a qualquer organização social – em poder organizado para a dominação. Então, Estado é a transformação da política em ato regimental do poder de se estabelecer a própria dominação. O que permite entender que o Estado promove a ordem jurídica por meio da coação física. Mas, acima da força física, o Estado é a organização política que faz brotar a norma jurídica onde só havia a força. Contudo, o Estado é a instituição que se prima pelo exercício legítimo da força física e do monopólio legislativo. O efeito prático é a criação da hegemonia exercida sobre a força física e demais mecanismos de controle social. Este é o “fator hegemônico” que açambarca a todos, em toda a cadeia produtiva da sociedade. Nas sociedades capitalistas, nas democráticas e nas republicanas, é o fenômeno que ainda contabiliza a educação como instrumento de requisição do “direito a ter direitos”. Assim, efetivamente para que hegemonia não seja sinônimo de monopólio, o emprego do termo hegemonia deveria seguir o princípio grego: O termo hegemonia deriva do grego eghestai, que significa “conduzir”, “ser guia”, “ser líder”, ou também do verbo eghemoneuo, que significa “ser guia”, preceder, “conduzir”, e do qual deriva “estar à frente”, “comandar”, “ser o senhor”. Por eghemonia, o antigo grego entendia a direção suprema do exército. Trata-se, portanto, de um termo militar38. Hegemônico era o chefe militar, o guia e também o comandante do exército. Na época das guerras do Peloponeso, falou-se da cidade hegemônica para indicar a cidade que dirigia a aliança das cidades gregas em luta entre si (Gruppi, 1978, nota 01). 38 E como serviu bem às alegações da Razão de Estado, da modernidade em diante! 52 Desse modo, o Estado é a instituição que exerce o monopólio (legítimo) da força física, mas também deveria ser o guia e o suporte dos institutos democráticos e republicanos. O que nos leva a concluir que o Estado é mais do que um contrato de poder ou de dominação, mesmo porque a dominação pode rapidamente se converter em opressão e até expropriação ilegítima de bens, valores, tradições e de graves violações de direitos. É certo que uma escolha política anterior determinou o Estado – se foi por meio de um contrato, esta é outra questão; porém, ao mesmo tempo, o Estado é a instituição capaz de transformar a política em norma e regimento. Desse modo, o Estado faz conviver e legitima as regras sociais e as normas jurídicas. Portanto, o Estado é o poder organizado para a dominação, para o fato de que a política impõe finalidades, meios e consequências. Vendose que o Estado é o árbitro entre meios e fins políticos. Portanto, utilizar a ágora para aniquilar a liberdade e o próprio Estado de Direito é como retroagir a um Estado pré-moderno, abrindo brecha a muitos usos/abusivos do poder. O que nos leva a concluir como em Hannah Arendt que o Estado Constitucional é regulado pela soberania popular: O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um governo controlado pelos governados, restringido em suas competências de poder e em sua aplicação de força. É indiscutível que a restrição e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do indivíduo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço (Arendt, 1998, p. 75). A principal função pública do Estado é assegurar regularidade à organização social que lhe deu origem. A fim de assegurar o controle social – instaurando níveis suportáveis de desregramento e infrações sociais, como normais – o Estado conta com a Administração Pública. Por isso, o Estado ainda é Administração Pública e gestão de políticas públicas. De modo amplo, definindo-se o Estado como organização social para a normalidade, pode-se ver que o Estado regulariza os embates políticos e ideológicos e assim limita juridicamente os conflitos de interesse. Obviamente, o que é normal ou não será estabelecido pelos grupos dominantes em exercício no próprio Poder Político. Por fim, o Estado é uma forma especial de organização da política, da normatização jurídica e das relações sociais. De tal forma que o Estado se converte em soberania política, jurídica, organizacional. Portanto, ainda pode-se dizer que o Estado, como poder soberano, sofre uma divisão e passa a conhecer outras formas de limitação ao poder central, por meio da soberania interna e externa. Desde as formas iniciais à compleição mais atual do Estado Moderno, percebe-se a racionalidade crescente como componente lógico da política centralizada. 53 COMPONENTES OU ELEMENTOS DO ESTADO Portanto, define-se o Estado como o Poder Político organizado em torno, basicamente, de três elementos: povo, território, soberania39. Aliás, esta sequência é essencial, pois sem que um agrupamento étnico tivesse adquirido determinado nível de adensamento e identidade cultural, tornando-se sedentário em primeiro lugar, não haveria território a ser definido (o governo se fundamenta na gestão desta soberania); tudo seria apenas uma porção de terra maior ou menor, e sem esta categorização não haveria porque defender a soberania de algo que não pertence ao povo, como seu território. Em todo caso, de modo sumário, pode-se dizer que o Estado é formado por elementos de duas categorias de natureza diferente: 1) Elementos Objetivos a. Elemento Humano (Povo) b. Elemento Físico (Território) 2) Elemento Subjetivo (Soberania) Mas, por que tratamos de estruturas essenciais ou estudamos elementos básicos de formação do Estado, como componentes obrigatórios na análise do cientista político e do jurista? Essas “estruturas” são destacadas, ao invés de outras, por duas razões: a) especificamente para diferenciar a formação política alcançada com a instituição do Estado de outros modelos de organização – ainda que politizados, mas que não adotem os componentes estatais; b) porque todos os Estados desde então apresentaram esses elementos comuns. A partir da análise desses elementos de formação do Estado, por exemplo, diferencia-se a instituição que concentra o Poder Político (Estado) de outras comunidades políticas, como as comunidades de natureza ou primitivas, os clãs, as lideranças tribais, os conselhos de anciãos, em que, apesar de eminente e até intensa atividade política, não se conhece exatamente a concentração do Poder Político40. Pelos mesmos motivos distingue-se o Estado de todas as formas “politizadas” mas não estatais, algumas até mesmo ilícitas (como o crime organizado) ou de natureza revolucionária, a exemplo das Forças Aramadas Revolucionárias da Colômbia – FARCs. Neste sentido, como exemplos da necessária avaliação da concentração do Poder Político, podemos tomar como exemplo o enorme esforço de Gengis Khan para organizar seu povo e conseguir a concentração do Poder Político, em torno de uma liderança soberana. O líder, que levaria à unificação da Mongólia, invocava o dever supremo à nação como característica bem definida nos grandes construtores de Estados: “Se o meu corpo morre, deixa o meu corpo morrer, mas não deixe morrer o meu país” (frase atribuída a Gengis Khan). O próprio Maquiavel debateu-se arduamente para ver a Itália unificada, depois Hobbes, em luta para não sucumbir à guerra civil na Inglaterra. Por isso, delimitou-se historicamente que os elementos distintivos do Estado são em número de três: povo, território, soberania. Para uma análise institucional e jurídica mais estendida ou complementar à análise histórica, com foco no atual estágio do Estado Democrático, entretanto, devemos pensar em todos os seus elementos. Na verdade, para melhor compreender o sentido global do Estado Moderno é preciso resgatar a 39 Entendendo-se o governo como administração ou gestão do Poder Político a fim de se atender aos desígnios da soberania institucional. 40 Exemplo muito interessante desse tipo de organização e de manifestação política, intensamente vinculatória entre as demandas de um grupo com o mundo exterior, verificou-se na década de 1990, em Chiapas/México, com os zapatistas. A estrutura de poder mantinha um porta-voz institucional, legitimado, que era o subcomandante Marcos, mas sempre atento e vinculado em suas ações às manifestações e determinações do conselho de anciãos que sintetizavam o espírito do povo indígena. 54 Teoria Geral do Estado, como parte da Ciência do Direito, o próprio conceito de Ciência Política e as estruturas sociais e culturais anteriores à formação do Estado-Nação. Para em seguida, após análise da Santíssima Trindade do Estado Moderno (Povo-Território-Soberania), buscar a compreensão maior das estruturas que compõem o Estado Atual. Em suma, formado por elementos objetivos e subjetivos, materiais e históricos, o Estado é uma instituição que se diferencia das demais fabricações humanas porque tem na organização do poder uma meta infalível. Como já vimos, sem povo, território e soberania não há Estado, ainda que possa ser pujante a política (como em comunidades tribais), a conquista territorial e a manutenção do poder (a exemplo das formações mafiosas). Entre tantas outras divergências jurídicas, morais, sociológicas e políticas, os elementos de formação do Estado são uma constante na formação política, inicialmente no Ocidente, a partir do Renascimento e da constituição do Estado-Nação, e depois espalhando-se por todo o globo terrestre. Não há hoje no mundo Estado que não reconheça, inclusive constitucionalmente, a exigência desses elementos como essenciais à administração do Poder Político em seu território e sob a retaguarda do povo. Por isso, deve-se analisar os elementos de formação do Estado separadamente e em maior profundidade. Estado Moderno e poder organizado Antes, contudo, cabe retomar parte da história de formação do próprio Estado Moderno. Em resposta ao processo de expansão do capital no continente europeu, manifestando-se pela necessidade de haver uma unificação do poder, com maior centralização e concentração de forças, o Estado foi firmado como este guia a fim de que os interesses de classe estivessem mais equilibrados. O Estado centralizado, no contexto do século XV, era atinente aos propósitos do absolutismo. O rei, como salvaguarda da soberania, não poderia sofrer restrições sob pena de o poder central não se ver mais como poder concreto. Para este fim, foram desenvolvidas algumas instituições e modulações sociais e culturais: 1) unificação da língua e exigência de uma moeda comum (símbolos nacionais); 2) formação de uma burocracia profissional, com destaque para a administração racional do poder central; 3) organização de um poder militar capaz de reunir as forças públicas; 4) centralização política e monopólio legislativo; 5) oficialização de comunicados e informes gerais, institucionais, a fim de que houvesse uma maior regulamentação/regularização (a normatização leva à normalização); 6) definição de um sistema tributário como requisito para manter a arrecadação regular de fundos necessários à manutenção do Estado e de seu aparato organizacional. De modo decisivo, impositivo, em 1648, o Tratado de Westfália colocaria fim à Guerra dos Trinta Anos, demarcando pela primeira vez o território como elemento de regulação da soberania dos Estados. O tratado regulamentou a organização política alemã e determinou limites territoriais especialmente para França, Alemanha e Suíça. O que, certamente, permite-nos ver como se estruturam o que podemos denominar de elementos políticos de formação do Estado. Em síntese, pode-se definir o Estado como a unificação e centralização do Poder Político. Entendendo-se o poder, basicamente, como resultante de variáveis ou características de afirmação. Portanto, como fundamento do Estado, o poder é: Relação Posse Dominação Organização Potência (virtus) Capacidade (potência em movimento) 55 Instrumento (meio para ...) Finalidade: a) poder social; b) valor egoísta Estrutura: órgãos, instituições Hierarquia Disciplina Coerção (erga omnes) O poder, em uma frase, é o resultado da ação política. Porém, o que significa esta frase aparentemente tão óbvia? Elementos políticos de formação do Estado Por definição, o Estado é uma instituição totalizadora, completa e fechada: “Caracterizado essencialmente pela ordenação jurídica e política da sociedade, o Estado constitui o regime de associação humana mais amplo e completo de todos os que se conhecem na história da humanidade” (Borja, 1998, p. 394 – tradução livre). Neste sentido, reagindo como um “todo”, como totalidade política e institucional, o Estado não deve admitir dissidências, dissensões e por ser um sistema fechado não se encontra aberto para questionamentos. A ideia de ser uma instituição completa indica que se trata de uma instituição que, teoricamente, não precisaria de reparos substanciais, mas apenas de manutenção, havendo permanência da base e de seus principais implementos. Como instituição totalizante o Estado asseguraria sua própria sobrevivência com a imposição de toda a força política e moral que conseguisse encontrar (faria valer a regra de que “os fins justificam os meios”). À necessidade de se empregar esses recursos denominou-se de Razão de Estado e ao estofo jurídico que o protege legalmente dos demais Estados, deu-se o nome de soberania, como poder absoluto sobre seu povo, em determinado território. Para um jurista conservador e pragmático como Austin, não se trata de justificar qualquer forma arbitrária de sustentação do poder, mas sua noção de soberania política (una e ilimitada41 juridicamente) pode ter sugerido a muitos tal presunção do poder. De forma resumida, seu pensamento revelou que: O soberano [...] deve possuir dois atributos essenciais, a saber, indivisibilidade e ilimitabilidade [...] O soberano deve ser uma unidade [...] Além disso, não poderiam haver limitações à soberania, pois tais limitações só resultariam da obediência a um poder externo [...] ou seriam auto-impostas, em cujo caso só poderiam corresponder a limitações morais e não legais e, portanto, como matéria de direito positivo, poderiam sempre ser ignoradas [...] Pois Austin afirma que todas as chamadas “leis” constitucionais que tratam da estrutura do poder soberano não são realmente legais, pois quem é soberano será determinado, em última instância, pelo fato de obediência. Ele também afirma que quaisquer tentativas de restrições impostas pelo Parlamento ao poder legislativo, seja qual for a força moral de que possam se revestir, são realmente inoperantes no direito estrito. Isso significaria, por exemplo, que uma cláusula num estatuto, segundo a qual uma emenda só deve ser efetuada por um procedimento especial – como, por exemplo, por uma maioria de dois terços, ou com a sanção de um referendo, ou com o consentimento de algum outro órgão – não é realmente lei, mas, no 41 Para o detentor do Poder, o comando do Direito, aparentemente, é ilimitado. 56 máximo, o que Austin chama “moralidade positiva” (Lloyd, 2000, p. 220221 – grifos nossos). Portanto, o elemento político mais distintivo do Estado é a capacidade de organização do poder, inicialmente enquanto organização social – um tipo de poder social em que a diversidade e a hierarquização poderiam ser incipientes – e, posteriormente, ainda mais no Estado Moderno e sob a forma própria do Poder Político, quando se passou a entender o Poder Político também como organização social, mas sobretudo como forma de dominação. Esta dominação política substituiria, inclusive, outras formas de dominação, como a religiosa (mágica) ou apenas tradicional e carismática. Por Poder Político se entende tecnicamente o “domínio das formas e das modalidades de governo”. De modo mais amplo, no entanto, assim como a família (o 1º grupo de socialização), o Estado desempenhará um papel fundamental na socialização; desde a própria preservação das demais instituições até a inserção dos indivíduos adultos, em idade de maioridade moral e política, nas principais atividades de cunho político (Azambuja, 2001). Neste sentido, o Estado, como poder organizado, é a realização da sociedade política. Contudo, nesta transformação evolutiva, civilizatória, a fase seguinte consistiria em impor restrições ao Poder Político, exatamente como este fizera em relação às mitologias do próprio poder. O direito que provoca um efeito constrangedor ao ímpeto de mera subjugação do povo, em tese, é um elemento de autoproteção social contra o Estado. Mesmo sob a forma do Poder Político, que já subentende uma organização regular, sistêmica da atividade política, o poder passaria por limites interpostos com mais rigor. Com a interposição de elementos jurídicos ao modelo inicial do Estado (Poder Político) os cidadãos passaram a conhecer dos direitos, ao contrário de quando eram subjugados e só obedeciam a deveres instituídos por outros (Bobbio, 2000). Organização funcional do Poder Político Por fim, na delimitação deste tópico geral de formação do Estado, pode-se dizer que desde o início, o Estado Moderno se modelou por duas condições básicas: centralização do poder político e organização profissional das forças e capacidades necessárias à Administração Pública. E é este sentido de forte organização que é ressaltado por Konrad Hesse (1998) e Hermann Heller. Divergindo do clássico Jellinek (2000), Heller (1998) vê na organização um elemento significativo, central do Estado, absolutamente não-subjetivo, configurando-se a seguinte estrutura funcional: a ordenação/organização de um povo, em determinado território, ressalta a necessidade de haver organização própria do poder, na forma de órgãos públicos. De acordo com sua definição: O Estado se considera como um grupo territorial de dominação: o Estado se diferencia de todos os outros grupos territoriais de dominação por seu caráter de unidade soberana de ação e decisão. O Estado está acima de todas as demais unidades de poder que existem em seu território pelo fato de que os órgãos estatais “capacitados” podem reclamar, com êxito normal, a aplicação a eles exclusivamente reservada do poder coativo, e também porque estão em condições de executar suas decisões frente aos que se oponham a elas, com o uso de todo o poder físico coativo disponível na organização estatal e de maneira unitária [...] O Estado é soberano unicamente porque pode dotar sua organização de uma validez peculiar frente a todas as demais ordenações sociais, vale dizer, porque 57 pode atuar sobre os homens que com seus atos lhe dão uma realidade muito distinta do que fazem as demais organizações [...] O Estado não é uma ordem normativa; tampouco é o “povo”; não está formado por homens, senão por atividades humanas [...] O Estado, enfim, tampouco pode ser identificado com os órgãos que atualizam sua unidade de decisão e de ação [...] Por tal motivo, a organização estatal é aquele status renovado constantemente pelos seus membros, ao que se juntam organizadores e organizados42. A unidade real do Estado cobra existência unicamente pelo fato de que um governo disponha de modo unitário sobre as atividades unidas, necessárias para a autoafirmação do Estado (Heller, 1998, p. 301 – grifos nossos). Assim, Heller contrapõe-se a Jellinek (2000), negando-se a identificar as pessoas que possuem poder com o próprio Estado: “Desde há muito tempo as chamadas teorias realistas do Estado querem reduzi-lo às pessoas que detém o poder e cuja realidade física é tangível, identificando-o, pois, com os órgãos de dominação” (Heller, 1998, p. 302). Portanto, se o poder é relação, pode-se dizer que o Estado é organização. Veremos os tópicos assinalados separadamente e de modo a aprofundar os conceitos, recuperando a importância da Ciência Política e da Teoria Geral do Estado, além dos conceitos básicos de poder e de Poder Político. Analisar o Poder Político, por sua vez, é privilegiar a análise do Estado, uma vez que o Estado Moderno é a forma mais característica de condensação do Poder Político. 42 Status como uma espécie de pacto de adesão, comunhão, em que obedecemos ao desejo comum e assim concebemos o projeto de convivialidade em uma estrutura política forte, decididamente organizada e pronta ao exercício de um forte poder de atração. 58 DEFINIÇÕES DE ESTADO A seguir, há indicações ou definições que se aplicam ao Estado como instituição permanente da Humanidade ou em suas modalidades mais convencionais, como Estado Moderno, Estado de Direito, Estado Constitucional e Estado Democrático de Direito. As definições ou proposições que não carregam indicação bibliográfica são reflexões do autor, ou seja, não são citações. O objetivo é apenas de fixar conceitos ou facilitar a primeira abordagem de assuntos complexos. Inicialmente, pode-se dizer que o Estado é Primordial (urstaat43): 1. Corresponde à organização centralizada e hierarquizada do Poder Político. 2. É a corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de mando (Jellinek, 2000). 3. É uma ordem da conduta humana (Kelsen, 1998). 4. Para Hegel, o Estado é a síntese dos mais elevados elementos éticos (Bobbio, 1989). 5. É o devir da razão (Deleuze, 2005, p. 23). Para Aristóteles, a finalidade do Estado é a Polis. Pode-se dizer, “metaforicamente”, que Aristóteles já se indagava sobre a Razão de Estado: 6. Em geral, chamamos interesse público tudo o que é regulado pelas leis para a conservação dos Estados [...] O mais importante meio para a conservação dos Estados, mas também o mais negligenciado, é fazer combinarem a educação dos cidadãos e a Constituição” (Aristóteles, 1991, p. 217-218). Nesta mesma lógica, vemos algumas reflexões e lições de Cícero, vendo que o Estado é a República, como forma de não se permitir o uso de meios de exceção: 7. a) Os fundadores de Estados estão próximos da divindade; b) A felicidade está na perfeita Constituição Política; c) Na República predomina a Justiça; d) A maior necessidade é a virtude; e) O trabalho e a virtude levam à glória; f) Governar a República é converter a teoria em prática; g) O Governo com justiça eleva a “herança da humanidade”; A virtude está em combater as injúrias e a iniquidade (Cícero, s/d). Diferentemente, firmando uma Ciência Política ou ciência do Estado, que não fosse mais refém da Filosofia do Estado, Maquiavel retrata o Estado como uma instituição forte, definitiva (status). Para Maquiavel, o homem de virtù é aquele que é capaz de formar alianças que perduram na formação dos Estados: 8. Entretanto, aquele que depende menos da sorte conserva-se mais no poder [...] Mas, para me deter naqueles que pelo próprio valor e não pela sorte se tornaram príncipes, declaro ser os mais excelentes Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu e outros semelhantes [...] E examinando suas obras e suas vidas, constata-se que da sorte só receberam a 43 A história da civilização Suméria ilustra a evolução da ideia de governo urbano e sua posterior transformação A primeira fase (3360 a 2400 a.C.) coincide com a construção de Cidades-Estados fortificadas. Já a segunda fase (2400 a 2350 a. C.) narra o surgimento do primeiro Estado Antigo documentado: “Então, o repentino surgimento de um homem importante inaugura uma nova fase [...] O reinado de Sargão I não se baseou na relativa superioridade de uma Cidade-Estado sobre outra: ele estabeleceu um império unificado, integrando as cidades num todo [...] Com Sargão I surgiu um verdadeiro Estado, com autoridades leigas e sacerdotais completamente separadas [...] Se o poder estatal se originou dos desafios e das necessidades especiais da Mesopotâmia, era dever do governante organizar grandes obras de irrigação, controlar as enchentes, reunir mão-de-obra para fazer tudo isto e ainda conseguir soldados. Quando as armas se tornaram mais complexas e caras foi preciso maior profissionalismo” (Roberts, 2003, pp. 90-91). 59 oportunidade que lhes proporcionou a matéria em que puderam introduzir a forma que lhes agradava. Sem tal oportunidade o valor de seus espíritos se teria perdido e sem tal valor a oportunidade teria surgido em vão44 (Maquiavel, 1996, p. 67). Neste sentido, o Estado é um mito. O mito do Estado é aquele de uma força movedora e executora de tarefas infatigáveis em razão de objetivos maiores: 9. O mito não pode ser descrito como uma simples emoção porque é a expressão de uma emoção. A expressão de um sentimento não é o próprio sentimento — é a emoção tornada imagem (Cassirer, 2003, p. 64) Mas, todo Mito precisa de realidade e é isto que Maquiavel precisou. Porém, contrariamente, como processo de institucionalização do poder, o Estado surge apenas uma criação de um tipo específico de sociedade, não se constituindo em condição humana: O mundo moderno, ao contrário, é construído à base de um poder como dominação. Excluindo-se as sociedades primeiras — sociedades: 10. Sem fé, sem lei, sem rei [...] Inversamente, toda sociedade não-primitiva é uma sociedade de Estado (Clastres, 1990, p. 143). Para o moderno mundo civilizado do Ocidente, o Estado é pacto e coerção. Consequentemente, a soberania pertence ao Estado Absolutista: 11. Aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença (Hobbes, 1983, p. 107). Em contexto e sentidos não muito divergentes Hobbes, Francis Bacon acreditava no Estado-nação, mas também justificou teoricamente o absolutismo. Além disso, Bacon produziu uma pequena obra Nova Atlântida é mais um tipo de anti-república: 12. Pois, bem o Estado vos concedeu licença para permanecerdes em terra pelo espaço de seis semanas [...] Por isso, não vos preocupeis, o Estado vos manterá durante o tempo que ficardes, nem tampouco precisais abreviar a estadia por isso [...] E se tiverdes qualquer outro pedido a fazer, não oculteis. Pois percebereis que, qualquer que seja a resposta, não ficareis sem a nossa proteção (Bacon, 2005, p. 228). Mais especificamente, em Locke, vimos que a extensão do poder civil decorre da profundidade e da fertilidade do commonwealth, capaz de refrear a ameaça e de se opor à tirania. Em síntese, o Estado como poder civil é o grande objetivo político da humanidade. Mas, Locke ainda definiria o Estado Laico: 13. É que o Estado não pode atribuir nenhum novo direito à igreja como também não, inversamente, a igreja ao Estado. Assim, a igreja, quer o magistrado a ela adira ou a abandone, permanece sempre a mesma que antes, uma sociedade livre e voluntária [...] O poder civil é o mesmo em toda a parte e não pode conferir uma autoridade eclesiástica maior a um príncipe cristão do que a que pode conferir a um príncipe pagão, isto é, não pode conferir nenhuma [...] Ninguém, nenhuma igreja e até nenhum Estado tem, pois, qualquer direito de atentar contra os bens civis de outrem nem, sob pretexto da religião, 44 A esta passagem, segue-se o seguinte comentário de Napoleão, como general: “O valor acima de tudo”. 60 de o despojar das suas posses terrestres. Quem pensar de outra maneira, gostaria que pensasse no número infinito de processos e de guerras que assim proporciona ao gênero humano; no incitamento à pilhagem, ao assassínio, aos ódios eternos: em nenhum lado a segurança ou a paz e menos ainda a amizade, poderão se estabelecer e conservar entre os homens, se houvesse de prevalecer a opinião de que a soberania se funda na graça e que a religião deve propagar-se pela força e pelas armas (Locke, 1987, pp. 97-99). Ao definir a legitimidade, Rousseau quer conservar o justo direito da resistência, no Estado Civil. Ironicamente, o Estado deveria lhe assegurar o direito de reclamar da desigualdade imposta pelo próprio Estado: 14. Se seguirmos o processo da desigualdade nessas diferentes revoluções, verificaremos ter constituído seu primeiro termo o estabelecimento da lei e do direito de propriedade; a instituição da magistratura, o segundo; sendo o terceiro e último a transformação do poder legítimo em poder arbitrário [...] ver-se-iam os direitos dos cidadãos e as liberdades nacionais apagarem-se pouco a pouco e as reclamações dos fracos serem consideradas como murmúrio sedicioso [...] É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, elevando-se aos poucos sua horrenda cabeça e devorando tudo o que percebesse de bom e de sadio em todas as partes do Estado, conseguiria por fim esmagar sob seus pés as leis e o povo, e estabelecer-se sobre as ruínas da república. Os tempos que precederiam esta última mudança seriam períodos de agitações e de calamidades [...] pois em todo lugar onde reina o despotismo, cui ex honesto nulla est spes (Rousseau, 1988, p. 81-84). A Revolução Francesa celebraria a liberdade radical, contra toda e qualquer forma de tirania, o que se conheceu como Estado Legal: 15. A liberdade, a igualdade, a justiça são os princípios necessários daquilo que não é depravado; todas as convenções repousam sobre elas como o mar sobre sua base e contra suas margens [...] na França não há poder, falando sensatamente; só as leis comandam, seus ministros impõem-se a obrigação de prestar contas uns aos outros e todos juntos à opinião, que é o espírito dos princípios [...] Os poderes devem ser moderados, as leis implacáveis, os princípios irreversíveis45. A opinião é a conseqüência e a depositária dos princípios. Em todas as coisas o princípio e o fim se tocam onde estão prestes a se dissolver. Há uma diferença entre o espírito público e a opinião: o primeiro é formado pelas relações de constituição ou da ordem, e a opinião é formada pelo espírito público (Saint-Just, 1989, p. 50-52). Por vezes, alegando-se a necessidade da organização da própria força política, o Estado se converte em absolutismo e ainda que esteja envolto em algum direito. O Estado-Força transforma a necessidade em Estado de Necessidade: 16. Quem quer que queira reinar sobre os homens busca rebaixá-los, surrupiar-lhes a resistência e os direitos, até tê-los impotentes diante de si, feito animais [...] Tudo o que se come é objeto de poder46 (Canetti, 1995, p. 208- 218). 45 46 Liberdade, Igualdade, Justiça formam o tripé da doutrina dos Direitos Humanos. A próxima guerra mundial será por água? 61 Por tudo isso, o Estado Moderno é uma construção, ficção ou artificialidade da vida moderna e, como Estado Racional, é um equivalente de poder que se mantem pela razão: 17. O Estado exerce o monopólio do uso legítimo da força física (Weber, 1979) 18. A modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada, típica do feudalismo, pelo Estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência, de uma administração burocrática racional. A modernidade cultural implica a secularização das visões do mundo tradicionais [...] e sua diferenciação em esferas de valor [...] até então embutidas na religião: a ciência, a moral, o direito e a arte (Rouanet, 2002, pp. 237-8). Já quanto ao Estado Moderno ser fruto do capitalismo, alega-se que: 19. A Razão de Estado compõe-se de uma articulação orgânica de povo, território e soberania. 20. O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa (Marx & Engels, 1993, p. 68). 21. O Estado moderno – na qualidade de sistema de comando político abrangente do capital – é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global (Mészáros, 2002, p. 123-5). A partir da Revolução Industrial, mas, sobretudo, no pós-Segunda Guerra Mundial, constitui-se em escala global um Estado Cientificista, como um conjunto complexo e contraditório, em que se operam a afirmação histórica do direito à educação e a negação do “direito à exclusão”. A modernidade representava a fase mais desenvolvida da divisão social do trabalho, momento em que se articulam, ajustando-se às necessidades diversas da produção industrial, o trabalho manual e o intelectual, na forma da função homogeneizadora e da função diferenciadora. O papel do Estado seria, portanto, o de regular os contratos estabelecidos e garantir seu cumprimento. 22. Para Durkheim, a competição capitalista não é o elemento central da ordem industrial emergente, e algumas das características sobre as quais Marx pusera grande ênfase, ele via como marginais e transitórias. O caráter de rápida transformação da vida social moderna não deriva essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma complexa divisão de trabalho, aproveitando a produção para as necessidades humanas através da exploração industrial da natureza. Vivemos numa ordem que não é capitalista, mas industrial (Giddens, 1991, p. 20). Estado e Direito tem uma Função Homogeneizadora, mas antes de tudo o Estado de Direito é força: 23. Não somente a força é a companheira inseparável do direito, mas é da força que surge o direito [...] Mas logo se descobriu que era geralmente mais econômico não pretender a completa aniquilação do adversário; daí surgiram as instituições da escravidão, os contratos e os tratados de paz, primeiras formas de direito. Todo tratado é, com efeito, uma ordem que determina um limite para o poder do conquistador (Durkheim, 2003, p. 51 – grifos nossos). 62 É difícil falar-se de um Estado anticapitalista, mas, como Estado Socialista, ou embalado pelo socialismo, pode-se falar de uma origem ideológica do direito socialista, para usar de uma frase, haveria possibilidade de se pensar um “socialismo jurídico”: 24. As reivindicações resultantes dos interesses comuns de uma classe só podem ser realizadas quando esta classe conquiste o poder político e suas reivindicações alcancem validade universal sob a forma de leis. Toda classe em luta precisa, pois, formular suas reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações jurídicas. Mas as reivindicações de cada classe mudam no decorrer das transformações sociais e políticas, são diferentes em cada país, de acordo com as particularidades e o nível de desenvolvimento social (Engels & Kautsky, 1991, p. 65). De outro modo, por isso também é possível dizer-se que o Estado é um fenômeno cultural: 25. O Estado corresponde à atualização dos valores comunitários por intermédio do Poder, e da legitimação concomitante do Poder graças à atualização dos valores vividos pela comunidade (Reale, 2000, p. 375-6). Pode-se acreditar que o Estado é a síntese da vida moderna, ou seja, trata-se da estrutura do Estado Moderno que sobrevive nos dias atuais: 26. Estado é a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território (Dallari, 2012, p. 122). Juridicamente, o Estado de Direito se define como estruturas ou garantias institucionais contra o Poder Político, isto, como segurança jurídica de que não haverá abuso do poder: 27. O Estado de Direito é uma ordem político-jurídica formada pelo Império da Lei, pela consagração dos direitos individuais e separação dos poderes. 28. Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinandoo à ordem jurídica que consagram (Malberg, 2001, p. 449-461). Do direito regulador do Poder Político, a partir da afirmação da tese da divisão dos poderes, consagra-se o conhecido Estado-Juiz. Na modernidade, o Estado-Juiz se interpõe entre a forma-Estado (coercitiva, repressiva, sob o capital) e a forma-Direito consensual: 29. A lei, por si, pode apenas, e sempre sob a condição de se apoiar na vontade social preponderante, estabelecer essa limitação, por assim dizer, negativa: que se não façam vigorar normas incompatíveis com as suas, derivadas de outras fontes, de tal maneira que fiquem sempre salvas a coerência e a unidade orgânica do sistema (Vecchio, 2005, p.5657). Historicamente, confunde-se razoavelmente o Estado Constitucional à luta pelo direito. Em todo caso, há uma correspondência com a necessidade de se afirmar as garantias jurídicas na Constituição: 63 30. O Estado Constitucional implica um comprometimento do Estado administrador pelos órgãos legisladores, um “auto-comprometimento do Estado”, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado como tal, “direitos subjetivos, públicos” (Radbruch, 1999, p. 167-168). 31. Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder (Miranda, 2000, p. 86). O Estado é organização. Desde meados do século XX, a estrutura estatal vem sofrendo embargos propriamente democráticos ao poder central, em que o Poder Político surge em correspondência à sociedade: 32. A organização estatal é aquele status renovado constantemente pelos seus membros, ao que se juntam organizadores e organizados (Heller, 1998, p. 301). Na atualidade, como concepção jurídica, o Estado é definido como modelo paradigmático de organização e de exercício do poder: 33. É um modo especialíssimo de organização do pensamento jurídico, de racionalização do poder, de organização e de enquadramento das relações humanas (Alland & Rials, 2012, p. 702). O Estado Democrático de Direito tem aproximadamente quatro décadas. Trata-se do Estado de Justiça, como definido por Elías Díaz: 34. Socialismo e democracia coincidem em nosso tempo e institucionalizam-se conjuntamente com a proposta do chamado Estado democrático de Direito: o socialismo como resultado da superação do neocapitalismo próprio do Estado social de Direito [...] Isto significa que o velho Estado de Direito, sem deixar de seguir sendo-o, terá que se constituir em Estado de justiça [...] Estado de Justiça tem, sem dúvida, um sentido muito mais abstrato. Ambos os termos só podem considerar-se intercambiáveis se os entendemos no sentido de que o Estado democrático de Direito é hoje o Estado de Justiça, quer dizer, o Estado que aparece atualmente como legítimo, como justo, em função precisamente de alguns determinados valores históricos que são a democracia, o socialismo, a liberdade e a paz47 (Díaz, 1998, p. 133-134). No Estado Democrático de Direito, desde a década de 1970, em luta pelo direito e contra o fascismo recalcitrante, afirmou-se a somatória entre Estado de Direito e democracia (liberalismo+socialismo): 35. O moderno conceito de Estado Democrático de Direito atrelou-se conceitualmente ao socialismo e à Justiça Social (Canotilho, s/d). 36. O Estado Democrático de Direito é formado pelo: a) princípio da constitucionalidade, que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, como a garantia de atuação livre de regras da jurisdição constitucional; b) princípio democrático que, nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, 47 É óbvio que o Estado de Exceção não coaduna com nenhum desses valores e pressupostos, e ainda que possa ser aventado em sua defesa será sempre uma ação ilegítima. 64 pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º); c) sistema de direitos fundamentais que compreende os individuais, coletivos, sociais e culturais (títs. II, VII e VIII); d) princípio da justiça social referido no art. 170, caput, e no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social [...]; e) princípio da igualdade (art 5º, caput, e I); f) princípio da divisão de poderes (art. 2º) e da independência do juiz (art. 95); g) princípio da legalidade (art. 5º, II); h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII) (Silva, 1991, p. 108). Muito mais do que norma (longe, portanto, do normativismo e do pragmatismo jurídico), o Estado Democrático de Direito tem por princípio básico o direito que serve à Justiça. Várias seriam essas condições como direitos essenciais, inalienáveis e intransferíveis (sejam individuais, sejam sociais e coletivos): 37. (i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos [...] (iv) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma participação, em igualdade de condições, na legislação política (Habermas, 2003, 167). Quanto se coaduna a efetivação dos direitos fundamentais sociais às garantias tradicionais do Estado de Direito, temos a abertura para outra dimensão político-social, pois: 38. O Estado Democrático de Direito Social é a organização do complexo do poder em torno das instituições públicas, administrativas (burocracia) e políticas (tendo por a priori o Poder Constituinte), no exercício legal e legítimo do monopólio do uso da força física (violência), a fim de que o povo (conjunto dos cidadãos ativos), sob a égide da cidadania democrática, do princípio da supremacia constitucional e na vigência plena das garantias, das liberdades e dos direitos individuais e sociais, estabeleça o bem comum, o ethos público, em determinado território, e de acordo com os preceitos da justiça social (a igualdade real), da soberania popular e consoante com a integralidade do conjunto orgânico dos direitos humanos, no tocante ao reconhecimento, defesa e promoção destes mesmos valores humanos (Martinez, 2013). Na atual fase do assim chamado Estado Pós-Moderno, há elementos que se solidificaram e outros que se inscreveram modificando as estruturas envelhecidas, uma vez que: 39. O Estado Democrático de Direito Internacional, conceitualmente, leva a efeito a Unidade na Diversidade da Humanidade. Também denominado de Estado Pluriétnico ou Estado Democrático de Terceira Geração, assegura relevância jurídica à natureza pluriétnica do espaço público. De modo complementar, pode-se dizer que o direito internacional tem um reflexo interno, pois o Princípio da Autodeterminação dos Povos deveria ser observado como recurso da autonomia requerida pelas culturas. Esta modalidade de Estado Pluralista reconhece e se pauta pela tolerância, diversidade, localismo, descentralização e autonomia (Wolkmer, 2001). 65 Como Estado Pós-Moderno, ao contrário da sistematização da cultura e do Poder Político, a instabilidade institucional desafia três séculos de história do poder: 40. Essa instabilidade é dramaticamente acentuada pelo declínio do monopólio da força armada, que já não está nas mãos dos governos (Hobsbawm, 2007, p. 87). 41. Para os Estados Unidos, é a primeira vez, desde a Guerra de 1812, que o território nacional sofre um ataque, ou mesmo é ameaçado [...] Pela primeira, as armas voltaram-se contra nós. Foi uma mudança dramática [...] A Inglaterra não foi atacada pela Índia, nem a Bélgica pelo Congo, nem a Itália pela Etiópia, nem a França pela Argélia (Chomsky, 2002, pp. 11-12). 66 ANTOLOGIA POLÍTICA DO ESTADO RAZÃO O Estado e o Direito como criações humanas Com relação à origem social do Estado, vamos nos basear nas interpretações de dois dos maiores expoentes da Ciência Política: Thomas Hobbes e Giambatista Vico. Hobbes é considerado o pai do Estado Moderno, ou simplesmente teórico do absolutismo, e Vico foi quem primeiro definiu a história como ciência. Com essa inspiração, podemos retomar a eterna questão acerca da origem da política: em que aspecto nossa engenharia humana nos diferencia dos demais animais sociais? Todos os animais sociais produzem política, como nós? Em primeiro lugar, se a resposta fosse afirmativa teríamos de admitir que há diversos ou vários Estados na natureza, uma vez que a política seria natural a todos os animais sociais. O que não é verdade, pois se há muitos animais sociais, de todos, o homem é o único animal político. Hobbes nos dirá que a origem do Estado está na necessidade da sobrevivência e no medo de que sozinhos somos incapazes disso. Hobbes dirá o seguinte: “O fim último, a causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita” (Hobbes, 1983, p. 103 – grifos nossos). Antes da criação do Estado, como reserva maior do poder e da soberania, como se davam as organizações sociais em torno do poder? Ainda em Hobbes, vemos que: “Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida” (Hobbes, 1983, p. 103 – grifos nossos). Então, diante disso, o Estado deverá responder com o acréscimo ou implemento da segurança pública. Acertadamente, desde o pensamento clássico grego, política e polícia tem a mesma raiz, a mesma ontologia, uma vez que a política (o Estado) deve assegurar exatamente a segurança. Fora desse contexto o Estado perde sentido histórico, deixa de ser Polis. Por outro lado, por que há necessidade da organização política em torno do Estado, se já somos compelidos à vida social desde a constituição das famílias? Viver socialmente não bastaria para suprir as necessidades humanas? Basear nossas cidades e sociedades em outras espécies, igualmente organizadas em vida social, não seria suficiente para conseguirmos a paz, a harmonia, a segurança que queremos? Imitar a vida natural, neste caso, não seria um bom método político, especialmente hoje em que as sociedades modernas e complexas estão exageradamente conturbadas? Neste sentido, em que a vida social possa imitar a natureza, depois de Hobbes, a análise de Giambattista Vico (1668-1744) parece bastante interessante e sugestiva, pois que o chamado estado familiar não era uma construção política muito bem definida: Vico parte do estado das famílias, embora posterior ao “estado ferino”, que pode ser interpretado como uma historização, ainda que fantástica, do estado de natureza hobbesiano, no qual o homem é o lobo (idest, “fera”) do homem; assim, do estado de famílias, que é um estado ainda pré-político, a humanidade passa ao Estado político, que nasce sob a forma de república aristocrática com a conjunção dos chefes de família, para só então chegar, em um segundo período, à república popular (Bobbio, 2000, p. 119). De certo modo, pode haver esta comparação entre os muitos animais sociais – na linha de uma biologia política ou de uma política da natureza -, como se a biologia pudesse emprestar 67 ensinamentos à vida social humana complexa e à política do Estado. Afinal, há outros tipos de sociedades: É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem socialmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o benefício comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo (Hobbes, 1983, p. 104). O próprio Hobbes enunciará seis razões para diferenciar o estado de natureza do próprio Estado, como organização preliminar do Estado Político: “Primeiro, que os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio48, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece” (Hobbes, 1983, p. 104 – grifos nossos). Ou seja, o homem vive em sociedade, mas não passa um segundo sem que esteja cobiçando o poder – sua vida social, em hipótese alguma, é desinteressada, dirigida ao conforto dos outros. Ao contrário, o ódio leva ao confronto com os outros. Antes de tudo e de todos, está o que cada um quer: o homem é egoísta. Depois está a diferença entre o querer dos indivíduos isoladamente e a sociedade global: “Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem comum. Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar prazer do que é eminente” (Hobbes, 1983, pp. 104-5). Entre esses animais sociais não há competição e disputas pelo poder – a não ser quando lutam com outras espécies a fim de as subjugar. Mas, entre os homens, a regra é exatamente a comparação e a acusação, que levam à disputa e à regra da acumulação: “Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão, elas não veem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que os outros para o exercício do poder público” (Hobbes, 1983, pp. 105). A disputa política, como bem se sabe, raramente é honesta, limpa, sem o uso da regra de que na guerra vale-tudo – não raramente, há mistura da vida pública com a vida privada, em que os desejos mais mesquinhos se avolumam sobre o interesse público. Em quarto lugar, está o poder da comunicação: “[...] alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem” (Hobbes, 1983, pp. 105). Todos nós, hoje em dia, sabemos como a mídia pode ser nefasta e perversa, recusando-se a cumprir o papel social destacado pela Constituição Federal. Mas Hobbes também já sabia e advertia para o uso prejudicial da palavra. As demais espécies organizativas, ao se associarem, assim o fazem para buscar meios de satisfazer a própria vida. O homem é insatisfeito em tudo, em todos os aspectos: “Quinto, as criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é 48 Será que este conjunto de “qualidades” humanas não é suficiente para se dizer que o homem é egoísta? 68 tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado” (Hobbes, 1983, pp. 105). As vaidades do poder devem ser consideradas em sua grandeza por aqueles que procuram levar a prudência para o recinto da política. Com isso, podemos ver que nosso pacto ou contrato social é mero artifício – para que as coisas não fiquem ainda piores – ao passo que a vida social das demais espécies decorre da natureza. Buscamos a vida social para diminuir o impacto de nossas fraquezas pessoais, a sociedade deve amenizar os danos da mediocridade: Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do benefício comum (Hobbes, 1983, pp. 105). De todas essas diferenças decorre ou sobressalta a ideia de que, para nós tanto a sociedade quanto o Estado superveniente, são obras e criações artificiais e só assim se mantém, com repetidas réplicas de ações comuns – a repetição de ações no interior das instituições políticas torna possível crer nessa organização. Com o que, ainda podemos indagar: se na natureza vigoram as leis da sobrevivência e do poder dos mais fortes (nem sempre fisicamente), seguir o livre curso da natureza, deverá realmente nos levar à paz? Por fim, seguindo Hobbes, podemos entender que se a natureza humana não concorre para a paz, então, o Estado deverá estar baseado no terror – o terror de que a vida individual não seja possível, o terror que deve dobrar as vontades do homem político egoísta e indiferente à virtù: É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos (Hobbes, 1983, pp. 106). Assim, temos que o Estado soberano, esse Leviatã – (biblicamente, um crocodilo gigantesco) representa a maior organização do poder na Terra, bem como a maior ameaça à desobediência das regras impostas –, é a personificação do Deus Moral, só abaixo do Deus Mortal. Entretanto, que razões ou conjunto de implicações nos teriam trazido ao Estado como o conhecemos, na forma de uma organização tão complexa e intrincada? Seria mesmo apenas o temor de que o egoísmo humano nos legaria à desgraça total enquanto espécie? Veremos que, além desse fator psicológico, há hipóteses variadas que podem auxiliar na explicação e no entendimento dos muitos fatores que dão ou deram forma ao Estado. Algumas dessas hipóteses nós já vimos, como por exemplo, a própria ideia de necessidade de organização social para a obtenção de maiores possibilidades de sobrevivência dos grupos humano. No entanto, outras teorias e exemplos práticos ou históricos (do passado e do presente) também serão acrescentados. Enfim, passemos às principais hipóteses acerca da origem do Estado. Vico: a história como ciência 69 Vico constrói uma filosofia da história apresentada por uma teoria cíclica das formas de governo. Essa perspectiva cíclica de tomar a história não deixa de propor uma espécie de “desencantamento do mundo”. Esse desencantamento civilizatório (mesmo que ciclicamente retorne-se à barbárie), acompanha um seguimento maior do Renascimento, que é a aposta na construção da política como método racional, próprio da lógica matemática. Vico apresenta uma trilogia que parte de Roma: aristocrática, democrática, monárquica. Este sequenciamento, porém, leva-o retornar a um “estado bestial” (stato ferino) em que não há sociabilidade. Nesta fase, seríamos seres totalmente associais. Por outro lado, há diferenças claras entre os três tipos de estado natural (que se colocam acima da bestialidade humana inicial). Entre o “estado bestial” e o nível das repúblicas há a fase intermediária das “famílias”. E aí, novamente, o desencantamento é uma razão progressiva e este cursor da história se inicia com o mito. A origem dessa razão precursora estaria na vergonha e na moral abalada e o matrimônio e a sepultura nasceriam dessa religião ou mito. Para Vico, este já seria o estado de natureza, posterior ao estado bestial. Portanto, o estado de natureza é um estado social primitivo (mas não bestial) e corresponderia à autoridade econômica (oikos: casa) ou familiar. Só que a família era um conjunto de clientes (cliens): filhos, servos, vassalos. Esta forma de autoridade social se basearia em uma situação objetiva de desigualdade: 1) desigualdade natural entre pais e filhos; 2) a que mais denota análise, uma desigualdade entre duas classes de homens: os poderosos (já saídos do bestialismo) e os serviçais (seres inferiores submetidos ao estado mais primitivo). Este quadro social, entretanto, alimentaria a rebelião dos escravos, agora movidos pelo desejo de liberdade, ao mesmo tempo em que forçaria os pais das famílias (constituídas de “senhores superiores”) a se unificarem para dominar as rebeliões. A primeira forma de Estado, portanto, seria esta “república aristocrática” (coincidente em Weber na forma da “dominação patriarcal”) e teria por base a desigualdade entre patrícios e plebeus: os primeiros, que gozavam de direitos privados e públicos e, os demais, que não tinham status jurídico definido. Deste impulso histórico o homem teria chegado à “república popular”: a segunda fase da autoridade, portanto, originou-se com a requisição do direito de rebelião ou luta de classes. Toma o princípio de que “é natural que o servo deseje ardentemente escapar da servidão”, mas a origem é histórica: Quando essa luta termina, isto é, quando os plebeus alcançam em primeiro lugar o direito de propriedade, depois o direito às núpcias solenes e legítimas (“connubia patrum”), por fim os direitos políticos (que Vico faz coincidir com a Lex Publilia, de 416 a.C., com a qual “a república romana reconheceu sua transformação, de aristocrática em popular”), dá-se passagem da primeira para a segunda forma de república (Bobbio, 1985, pp. 121-2). A Segunda República para Vico tem início com a luta pelo reconhecimento de direitos, e isto numa era antes de Cristo: lutas desesperadas de oprimidos pelo reconhecimento de seus direitos. Depois, Goethe diria: “Quem está com o direito, espera, e a hora virá” (1997, p. 418). A divisão dos períodos históricos de Vico, por sua vez, segue a tradição egípcia: era dos deuses, dos heróis e a dos homens: 1) Estado das Famílias: “homem primitivo era mal desperto do sono da animalidade”. 2) Sociedades Heroicas: dominadas por homens fortes, rudes, violentos, mas que são os verdadeiros fundadores de Estados (homens de virtù, para Maquiavel), dão passagem do estado de natureza para o estado civil. 3) Era dos Homens: república popular 70 ou monarquia (duas espécies do mesmo gênero). Sua perspectiva histórica também pode ser dividida de acordo com as fases da alma: percepção, fantasia, razão (o ápice da humanização). Vico também estabeleceu três formas de jurisprudência: 1) sabedoria divina ou “teologia mística” (mystae: definida por Horácio como própria dos “intérpretes dos deuses”); 2) jurisprudência heroica – a qual Homero remete à “reputação dos antigos jurisconsultos” (cavere: acautelar-se para provar em juízo a própria razão; de iure respondere: “encontrar cautelas relativas aos contratos”); 3) jurisprudência humana: “guarda a verdade desses fatos e inclina benignamente a razão das leis a tudo aquilo que demanda a igualdade das causas” (Vico, 1999, p. 407). Jurisprudência quer dizer que levamos a Prudência para o direito e que se decide de acordo com alguma forma de sabedoria. Ao que corresponderiam três formas de autoridade: a) divina; b) heroica; c) humana: “oculta no crédito de pessoas experimentadas e de singular prudência nas coisas da ação e de sublime sabedoria nas coisas inteligíveis” (Vico, 1999, p. 409). Vico também lembra a necessidade de evitarmos a armadilha das facilidades do poder já indicadas por Lívio: Saepe spectabat ad vim (“tendia sempre à violência”). Fato que respondia com o próprio Lívio, mas tendo a prudência como receita: “O uso da violência incita à revolta popular” (Vico, 1999, p. 409 – grifos nossos). Novamente, a necessidade da jurisprudência. Esta última modalidade de ação política, baseada na prudência dos “mais sábios e experimentados”, coincidia com a “autoridade do conselho” dos jurisconsultos romanos, e que se diziam “autores”. Certamente, uma forma superior de basear a autoridade (e o poder) não mais sob indivíduos que se pensam simples pupilos e que estão sob a autoritas tutorum. Por fim, concomitantemente, há três espécies de razão: 1) divina; 2) Razão de Estado; 3) razão natural: aequum bonum ou aequitas naturalis — esta própria da multidão, mas movida pela “motivação dos justos” (hoje seria bom senso?). A visão histórica de Vico é progressiva e cíclica, mas incorre em um tipo de visão regressiva: a passagem de uma constituição histórica a outra implica sempre em degeneração. Quando o curso da história se esgota, retorna-se ao ponto de partida, esse ricorso (um revés do corso da história) é tomado de exemplo da queda do Império romano e a chegada da Idade Média: “retorno à barbárie” ou “Segunda Barbárie”. Pois, aí teríamos retornado à fase das famílias. A definição do feudalismo, como era das trevas, segue este sentido de ricorso, retrocesso histórico. Há muitas causas dessas transformações históricas, mas a raiz, entretanto, está na “barbárie das ideias”, a razão libertina, a própria “razão iluminista”. Dessacralizando a natureza e a história (sem telos), perde-se o “temor reverencial” e o homem retorna à selva de instintos. Com isto, Vico em muito se antecipou ao que chamaríamos de crise civilizatória. Trata-se do princípio da força viva que a humanidade cria para si própria. Sobre o método histórico, escreve Vico: “Os fatos da história conhecida [...]’ devem se ‘referir a suas origens primitivas, divorciados das quais eles até então pareceram não ter uma base comum, continuidade nem coerência” (Wilson, 1986, p. 10)49. A história é continuidade com coerência. A filosofia da história de Vico é cíclica e sua fonte de inspiração é o retorno à Antiguidade clássica greco-romana. Em sua filosofia, reparte a história em três tempos: a) história dos deuses; b) história dos heróis50; c) história humana. A terceira fase é composta de guerras civis semelhantes às lutas de classes e à conquista de um direito escrito — superior ao direito natural. Este processo trifásico ocorreria em espiral. Vico fala em três tipos de direitos, de 49 50 Além disso, Vico dissera que sua força esteve em explicar a formação do direito humano. Bárbaros, mas poetas, governados pela aristocracia. 71 governos e de autoridades, até que apresenta sua tese histórica evolutiva que engloba a Razão de Estado: A segunda foi a razão de Estado, chamada pelos romanos “civilis aequitas”51, a qual Ulpiano dentre as Dignidades [...] nos referiu como não sendo naturalmente conhecida por todos os homens, mas por alguns poucos experimentados no governo, que saibam distinguir o que pertence à conservação do gênero humano. Da qual foram naturalmente sábios os senados heroicos, e, acima de todos, o romano, prudentíssimo nos tempos da liberdade tão aristocrática, nos quais a plebe era efetivamente excluída do trato da coisa pública, bem como da popular, por todo o tempo em que o povo nas públicas atividades se fez governar pelo senado, como ocorreu até os tempos dos Gracos (Vico, 1999, pp. 411-2 – grifos nossos). Como vemos, a Razão de Estado era tarefa da aristocracia dominante, mas sempre próxima do povo: “...a civil equidade tudo submetia naturalmente àquela lei, rainha de todas as outras, concebida por Cícero com a mesma gravidade da matéria: “Suprema Lex populi salus esto”52 (Vico, 1999, p. 412). A corrupção da política (como ideal grego de liberdade e autonomia), entretanto, está na inversão da predileção da vida pública pela privada, ou seja, na subversão do público pelo privado (p. 413). O suporte da Razão de Estado, então, estaria na Aequitas naturalis (equidade natural): “E a equidade civil, ou razão de Estado, foi entendida por poucos sábios de razão pública e, com a sua eterna propriedade, é conservada como secreta dentro dos gabinetes” (Vico, 1999, p. 415). A Razão de Estado envolve o conhecimento dos segredos do Estado (arcana imperi). Para Vico, a Razão de Estado não é a forma de governo ou de autoridade civil mais evoluída. Pois, teria início com a luta pelo reconhecimento de direitos. Não é a mais evoluída, mas poderia ser tida como a principal porque o homem já estaria em outro nível de sua evolução política, na fase do pós-luta por conservação. Diferentemente de toda a tradição política, portanto, a Razão de Estado não corresponde à lua por conservação do próprio Estado, mas sim à luta por emancipação de uma classe social de seus indivíduos igualmente fundadores, mas escravizados. Assim pode-se dizer que se organizou a luta pelo reconhecimento dos sujeitos, das demandas, das classes, das ações da “maioridade” e para que se legitimasse a “motivação dos justos”, inibindo-se a corrupção e os usurpadores. A Razão de Estado é uma procura por explicações racionais (ou não) para justificar a ocorrência do Estado Moderno. Em todo caso, cabe ressaltar que autores e escolas clássicas destacaram-se na consideração de que o Estado é uma criação, uma intenção evidente de determinados grupos humanos. Este “querer” o Estado, por sua vez, decorre de um adensamento na ordem da cultura política. 51 52 Equidade civil. “A salvação do povo seja a lei suprema”. 72 CONCENTRAÇÃO DO PODER POLÍTICO O Estado, como uma forma particular de organização e de centralização do Poder Político, recebeu no Renascimento (talvez até antes disso, na acumulação primitiva) duas fortes inspirações: a ética pagã (libertando-se o poder da ética) e a ética protestante (liberando-se o poder da religião). No primeiro caso, em nome do Estado, sob a justificativa de se construir a Razão de Estado, todos os recursos de poder poderiam ser livremente manejados. Para o segundo aspecto, como forma de financiamento do próprio Estado, a economia precisava ficar livre de todos os entraves morais e, assim, o lucro que antes era pecado (usura) passou a ser investigado como qualidade e distinção. A ética protestante serviria ao capitalismo nascente, na verdade, legitimaria seus interesses e costumes. A ética pagã seria aplicada mais diretamente aos elementos políticos que exigem respostas diretas do Estado. As duas formas de ética do poder encontrar-se-iam na forma do Estado monista e centralizador/indutor da acumulação de capitais, em que atuam as forças centrífuga (para o poder econômico estendido pela expansão ultramarina do capital e pela Rota da Seda) e centrípeta (para o poder estatal, que deve aglutinar forças e não dispersá-las). A esta articulação entre capital, Estado e sociedade, deu-se o nome de capital disruptivo (Mészáros, 2002). Uma das marcações mais distintas da modernidade é o fato de ter eivado de sentido todos os valores sacros não submetidos ao desenvolvimento do próprio capital: “todos os homens são passíveis de tornar-se homines sacri, se descartam ou até se matam sem se culpar e sem serem punidos, [...] ‘o homem moderno é um animal cuja política põe em questão sua própria vida de ser vivo” (Enriquez, 2004, p. 45). O único poder sacro, a partir de então, seria o poder de Estado e sob suas vestes estariam depositados os interesses em financiar a expansão colonialista, bem como assegurar a inviolabilidade do território. Por isso, as duas pontas de lança do Estado Moderno são: colonização e soberania (interna e externa). Hobbes é um dos grandes autores da Filosofia e da Ciência Política e esteve muito interessado na discussão da soberania estatal, mas antes dele está Bodin: Bodin passou para a História do pensamento político como o teórico da soberania. Contudo, o conceito de soberania como caracterização da natureza do Estado não foi inventado por ele. “Soberania significa simplesmente poder supremo”. Na escalada dos poderes de qualquer sociedade organizada, verifica-se que todo poder inferior é subordinado a um poder superior, o qual, por sua vez, se subordina a outro poder superior. No ápice deve haver um poder que não tem sobre si nenhum outro – e esse poder supremo, “summa potestas”, é o poder soberano. Onde há um poder soberano, há um Estado (Bobbio, 1985, p. 95). Para os defensores do Poder Político unificado, todo poder seria usado na definição, delimitação e defesa do Estado. No período absolutista, o Príncipe representava este poder supremo, no período revolucionário e iluminista o summa potestas seria o lastro da soberania popular. Soberania é “Razão de Estado” Isto é o retrato da “dominação absoluta” que se iniciou em Maquiavel e se tornou clara a partir de Hobbes. Além da materialidade do poder, especialmente visível nas forças armadas de dominação do próprio povo, o Estado precisava ser visto e considerado como um ente acima de 73 queixas, a salvo de represálias, como verdadeira encarnação da fé pública. O Estado Moderno desde seu início cativou condições de atavismo, de secularização, de encarnação da alma do povo (um tipo de Espírito Absoluto em que a fé pública não pode ser abalada). Nesta moderna mitologia, pela primeira vez na história da Humanidade, uma das fabricações do homem (o Estado) seria alvo de construção mitológica. Não há mito mais sacramentado do que o do Estado. O mito do Estado que herdamos assinala o poder presente na Razão de Estado como constitutivo da vida social. Este princípio legítimo da dominação (presente no mito) é o que confere soberania ao Príncipe, supostamente legítimo. Este poder da Razão de Estado submete todos os sujeitos ao direito, uma vez que é o produtor das próprias regras que garantem sua imposição; sendo que o direito legítimo, é óbvio, é assim considerado como aquele que melhor resguarda os interesses dos que governam o Poder Político. No século XVI, a Monarquia já se tornara absoluta e legisladora, outorgara-se o vigor capaz de atribuir, cancelar, instituir e redistribuir os direitos. Desde o século XVI, portanto, o soberano, na forma da Razão de Estado, vem forçando a passagem da massa disforme, da Multidão, à condição de um todo orquestrado (mas, de cima para baixo). Poder-se-ia alegar, porém, que após o século XIX o direito53 passou a regular o soberano (tornando-se limitado, o que era absoluto); mas, é preciso lembrar que mesmo o Estado mais democrático não abre mão de formas ditatoriais de poder, a exemplo do direito de exclusão presente nas formas de exceção — uma indicação de que a Razão de Estado continua seduzindo atenções. O que ainda nos diz que Hobbes acertou na veia ao propor esta questão ao Estado Moderno: E, para medirmos a inovação assim introduzida, basta recorrermos à frase de um teólogo do Século XII: ‘A diferença entre o príncipe e o tirano é que o príncipe obedece à Lei e governa o seu povo em conformidade com o Direito [...] A teoria da Soberania libera o poder do Príncipe de tais limitações (Lebrun, 1984, pp. 28-29 – grifos nossos). Neste sentido, o tirano bem pode ser o Poderoso Chefão, a serviço do Estado ou de sua Família, liberto das amarras morais da lei. Contudo, desde a afirmação do Estado Teológico, bem descrito por Thomás de Aquino, o teólogo do século XII, ainda que em estado de tirania, o dirigente deve observar a regra básica de que suas ações não podem se voltar contra o contrato jurídico de que se alimenta a fé do povo. O Estado não pode ameaçar a fé pública, como condição de verdade política, e que lhe foi conferida pelo povo na celebração do contrato político. A indústria ou inteligência da direção política requer que se afine e aprimore o bom senso, realçando-se três condições: Primeira, que a multidão se estabeleça na unidade da paz. Segunda, ser essa multidão, unida pelo vínculo da paz, dirigida a proceder bem [...] Terceira, requer-se que, por indústria do dirigente, haja abundância suficiente do necessário para o viver bem (Aquino, 1995, 167). O dirigente do Estado deve ser um provedor. Todavia, com ou sem a chancela do bom senso, o pensamento absolutista acerca do poder marcou indelevelmente a Razão de Estado: poder soberano é o poder absoluto. Nenhum meio de manutenção do poder pode ser excluído, seja para a regra, seja para as suas exceções, os fins justificam os meios. Atualização do debate 53 Assim, direito é a presunção de potencia; lei é a presunção de que há força. 74 Com o Estado-Nação sob fogo cerrado (a ex-Iugoslávia e a ex-URSS são exemplos concretos), a própria soberania popular procura amparo em outras referências de poder, como no apreço das localidades. Essas localidades, que não correspondem a regionalismos e nem a folclores ou ethos (costumes sociais éticos), marcam o espaço físico em que o sujeito de múltiplas relações se encontra. Melhor dizendo, é o espaço físico em que o sujeito está, mas não necessariamente que ali ele se encontre (consigo mesmo, com seu ethos). Na síntese do Estado Moderno atual, a Nação já se desprendeu do Estado. No século XXI, Estado e sociedade (Nação) andarão cada vez mais divorciados, falando e respondendo por linguagens diferentes, trocando entre si símbolos irreconhecíveis um para o outro, assim como o sujeito múltiplo, de pouca referência ou de baixa entropia nacional, descolou-se de sua origem e viu a nacionalidade perder o voo — e como a Nação resta-lhe aguardar a lista de espera: Se os Estados do século XXI agora preferem fazer suas guerras com exércitos profissionais, ou mesmo através da terceirização de serviços bélicos, não é apenas por razões técnicas, mas porque já não se pode confiar em que os cidadãos se deixem ser recrutados, aos milhões, para morrer no campo de batalha em nome de seus países. Homens e mulheres podem estar preparados para morrer (mais provavelmente para matar) por dinheiro, ou por algo menor, ou algo maior, mas, nos lugares onde se originou o conceito de nação, não mais pelo Estado nacional (Hobsbawm, 2007, p. 96). Entre tantos fatores de crise institucional apontados, pode-se destacar uma espécie de crise de dominação pública. Não há Estado Global à vista ou, ao contrário, todos os Estados padecem da quebra do paradigma do Estado Moderno: território, povo, soberania (reconhecimento). De certo modo, isso condiz com a fragilidade do controle social atual, sem envolvimento e participação política: Pois, neste processo de expansão de concentração, o poder de controle conferido ao capital vem sendo de fato re-transferido ao corpo social como um todo, mesmo se de uma forma necessariamente irracional, graças à irracionalidade inerente ao próprio capital. Que o deslocamento objetivo do controle seja descrito, do ponto de vista do capital, como “manter a nação como refém”, não muda nada o próprio fato (Mészáros, 1989, pp. 26-27). Além do fato de haver uma crise interna de ausência de controle e externa, que varia e se multiplica em fatores e atores, há uma interpelação clássica que se fazia a Clausewitz e o direito de guerrear: toda guerra deve ser autorizada pelo Império. Por isso, John Rawls prefere falar em povos do que em Estados: Outra razão pela qual uso o termo “povos” é distinguir o meu pensamento daquele a respeito dos Estados políticos como tradicionalmente concebidos, com os seus poderes de soberania incluídos no Direito internacional (positivo) pelos três séculos após a Guerra dos Trinta Anos (1618-48) (Rawls, 2001, p. 33). O fato perturbador é avaliar até que ponto estaremos mais protegidos (se isto já não for um sentimento do passado) como povo ou como Estado. Ou, em outras palavras, o povo será 75 mais feliz sem a organização do Poder Político que se firmou desde o surgimento do Estado Moderno? Distintamente, o Estado Moderno é a própria racionalização da política. 76 INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO O Estado corresponde ao governo de um povo em determinado território, sendo que este governo pode ser democrático ou autocrático (desde os regimes totalitários até a visão marxista de que o Estado é um escritório da burguesia). Contudo, antes de avançar no conceito, talvez seja mais pedagógico apresentar uma noção geral acerca da história do Estado, para em seguida verificar a filosofia e o objetivo jurídico do aparato estatal. Para resumir, traremos apenas alguns tipos ideais: 1) Estado Moderno; 2) Estado liberal clássico; 3) Estado de Direito; 4) Estado Democrático. 1) Estado Moderno: antes da configuração clássica assentada na Paz de Westfália (1648), Hobbes já retratava de forma imperiosa o que seria reservado à soberania como reserva de forças do Estado centralizado. A Razão de Estado já fora anunciada por Nicolau Maquiavel (de certo modo ligado ao Estado-Nação), mas em Thomas Hobbes a soberania é avocada como essencial, indissolúvel, ilimitada54. Em Hobbes, trata-se de um Estado Policial, voltado à necessidade de se assegurar a vida a cada cidadão. No entanto, o Estado é uma construção política que visa assegurar a segurança elementar à organização civil (desde o século XV55). E é nisto que se dá uma reta razão, como esforço de combinação do pensamento (racionalidade) com a política (necessidade de ter no Estado o suporte do espaço comum de convivência). Nasceria a Razão de Estado. 2) Estado liberal clássico, Estado Gendarme ou Guarda-Noturmo: reserva a prestação da Segurança Pública e outros serviços essenciais ao Estado e descarta os demais serviços (sociais) aos recursos individuais disponíveis, aos interesses de mercado ou à sorte de cada um. No pensamento inaugural do liberalismo de John Locke (séculos XVI-XVII), o Estado Gendarme é responsável pela segurança e pela civilização que daí decorre; como Guarda Noturno, o Estado é o vigilante que assegura a passagem da guerra ao convívio organizado. Enfim, para Locke, o estado de guerra é oposto ao estado de natureza56: E temos aqui a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, que, embora alguns homens confundam, são tão distintos um do outro quanto um estado de paz, boa-vontade, assistência mútua e preservação, de um estado de inimizade, maldade, violência e destruição mútua [...] Quando a força deixa de existir, cessa o estado de guerra entre aqueles que vivem em sociedade, e ambos os lados são igualmente submetidos à justa determinação da lei; porque agora eles têm acesso a um recurso, tanto para reparar o mal sofrido quanto para prevenir todo o mal futuro” (Locke, 1994, pp. 92-93). 54 Ainda podemos dizer que a soberania não conhece superlativos, nada lhe é superior, como poder supremo: indivisível, indispensável, não-oponível. 55 Ou, antes disso, no curso da acumulação primitiva, como se depreende da crítica de Marx (1977 & 1987). 56 O estado de natureza é: “Um estado, também, de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu senhor e amo de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade, tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco, por uma designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um senhor” (Locke, 1984, p. 83). 77 3) Estado de Direito: após a centralização do Poder Político (apontada desde Maquiavel e Hobbes), a separação dos poderes e a atenção à vontade geral (Montesquieu e Rousseau) viriam assegurar que o poder seria melhor controlado, evitando-se todo possível regresso ao autoritarismo. O período revolucionário (Revolução Americana e Francesa, no século XVIII) inauguraria um debate acerca da soberania popular, como forma de regular/legitimar o poder e limitar o próprio sentido de soberania como poder absoluto. A formatação do Poder Judiciário, com toda a série de garantias à administração da Justiça, ainda traria o resguardo necessário do Estado-Juiz. O controle jurídico que se fez exercer sobre o poder confirmou o chamado Estado de Direito (na Alemanha do século XIX). 4) Estado Democrático: no pós-guerra, que se iniciara na Primeira Grande Guerra e se confirmara na Segunda Guerra Mundial, verificou-se a urgência de se construir outras salvaguardas à soberania popular. Primeiro, salvaguardas que contivessem a infusão de guerras injustas ou o cometimento de crimes contra a humanidade, como fora o nazifascismo; depois, para que se construíssem bases efetivamente democráticas e que aprofundassem as formas de participação na construção da cidadania. Para tanto, a Constituição de Bonn, na Alemanha de 1949, foi seminal. O século XX construiu a democracia de massas, o século XXI deverá apresentar muitas transformações em seus institutos políticos e jurídicos. Como se percebe, o Estado tem elementos de definição, mas o percurso histórico nos revela que tais elementos sofrem transformações, a começar da soberania. Então, o que é o Estado? Inicialmente, pode-se dizer que o Estado é a instituição por excelência que organiza e governa um povo, soberanamente, em determinado território. Contudo, o Estado é uma construção lógica e política, com clara densidade cultural e com reflexos jurídicos, baseada num pacto de não-agressão e que gera um contrato de convivência. Este contrato lógico decorre de uma relação causal entre Nomos57 e Logos (entre Lei e Pensamento: raciocínio lógico-dedutivo), afinal é um constructo racional que se verifica pela articulação coerentemente entre a política, a linguagem e a razão. Portanto, há um processo político que se organiza mediante o desencadeamento de ações políticas e procedimentos institucionais regulares. Se no pensamento absolutista58 (copiado pelo positivismo jurídico) é correto afirmar que “O que agrada ao soberano tem força de lei59”; no mundo contemporâneo, por sua vez, a soberania repousa no próprio Poder Político. No passado de Hobbes (em meio à guerra civil ameaçadora com o retorno ao estado de natureza), o Estado Forte (Leviatã) é de fato o “medo construído”. Pois, o Absolutismo, presente nesta premissa, corresponde à teoria do direito que comporta a opressão da liberdade natural (potestas superiorem non recognoscens60). Por esta teoria organicista do poder, o Estado representa um organismo vivo, em que, em alguns momentos, cabe falar da autopiese e, em outros, da simples heteronomia. Longe de ser descontrolada, a partir do século XIX, a soberania sofre cada vez mais a regulação pelo direito, ressurgindo como soberania popular, em cumprimento aos ideais de humanização do Poder Público, absorvendo outra dose de restrição ao manejo do poder, e já se antecipando à cidadania democrática (para além do 57 Quando realmente submetido ao direito, este contrato político é melhor designado por Estado de Direito. Com a soberania como forma de poder absoluto. 59 Luís XIV (1643-1715), na França, declararia: “O Estado sou eu”. 60 Como soberania do Poder Político: poder supremo que não reconhece outro acima de si. 58 78 exercício do monopólio do uso legítimo da força física, como queria Max Weber). Hoje, sabe-se perfeitamente que o Estado também decorre de uma intencionalidade política presente na cultura. 1) Estado: é também definido como Poder Político. 2) Instituição: são organizações e/ou mecanismos de regulação e de calibragem das relações sociais. 3) Governo: a governabilidade é uma condição para que o Estado seja eficaz, no sentido de que o governo é o conjunto de instituições subordinadas ao Poder Político que efetivam atividades de administração dos negócios públicos, como saúde e educação pública. 4) Povo: não se trata de um amontoado de indivíduos (massa), muitas vezes forçados a viver juntos por ordem e pressão de outro Estado. Também as diferenças – muitas absurdas –, como no Brasil, dificultam a formação de um sentimento comum, unificador entre tantos grupos, classes, estamentos e camadas sociais. O povo é uma unidade cultural e social, ideológica e política (sentir-se parte de uma Nação) e não apenas uma representação jurídica. Este sentido de unidade política inda nos falta como Nação. 5) Território: apesar de comumente ser representado por uma parcela de terra, não se limita a isto, pois o território inclui a plataforma continental, as embaixadas e prédios oficiais construídos em outros países, além de navios e aviões embandeirados. 6) Construção lógica: subentende-se que haja coerência entre as partes de um todo; por exemplo, entre as premissas (maior e menor) e a conclusão de uma determinada demonstração lógica. 7) Densidade cultural: quer dizer que não basta ao povo viver em um mesmo território, se não houver elos de ligação cultural entre seus membros. De certo modo, diz-se que o Brasil é um país (Estado) sem Nação, porque as diferenças e crenças sociais e políticas são tão gritantes (além do abismo da miséria e do analfabetismo) que é como se vivessem vários povos de língua comum (aliás, os sotaques indicariam uma parte visível ou sonora desta clivagem). 8) Reflexos jurídicos: quer dizer que se observa o fluxo corretamente entre política e direito, isto é, a força que realmente impulsiona o direito é a política (organizada ou não), pois o Poder Legislativo apenas expressa os anseios e os interesses predominantes. Portanto, todo direito tem origem na política (e ainda que o direito político seja superveniente e regulador da própria motivação política). Porém, há um reflexo jurídico claro, à medida em que os meios políticos passam a ser controlados, regulados, de acordo com os fins juridicamente e, anteriormente, definidos (em lei constitucional). 9) Pacto de não-agressão: o designado estado de natureza, como se fosse um status quo ante à ordem política, implica em caos social volumoso, em que não há garantias à sobrevivência, como se fosse uma realidade in natura, sem a proteção de qualquer mecanismo jurídico e social. O Estado, então, é um pacto de sobrevivência, sem agressão gratuita, sem violação dos direitos básicos. 10) Contrato de convivência: se temos que, desde a origem grega, política implica em polidez social, logo, é de se concluir que a atividade política (assim definida) é um mecanismo de aprimoramento e de revigoramento geral. As pessoas convivem melhor quando são politizadas, por terem maior consciência de si e dos outros (de seu entorno). 11) Relação causal: quer dizer que há uma causa (necessidade de sobrevivência) e que o Estado já é um efeito. O Estado não é uma constante na história da Humanidade, basta ver que muitos povos (organizados) desconhecem a ordem estatal. O Estado é resultado da construção da civilização e não causa; o Estado é parte importante do processo 79 civilizatório, mas não é o motor de toda a racionalidade; o Estado é indutor de civilidade, mas não é a síntese perfeita do Espírito Humano, como em Hegel (Bobbio, 1989). 12) Nomos61: de amplo significado, pode-se pensar que nomos é o liame do homem a seu grupo; no caso da forma-Estado, há uma intrínseca ligação entre os indivíduos, sua cultura (Nação – nomos62) em determinado local (território). 13) Logos: inicialmente interpretado como PALAVRA (grego) escrita ou falada, em seguida, designaria razão, conhecimento. 14) Lei: é um substrato do direito; como uma parte do todo (direito), às vezes mais, às vezes menos significativa. A lei é uma forma de se circunscrever o direito. A lei também é uma fonte do direito, como a cultura, os Princípios Gerais do Direito e os costumes. 15) Raciocínio lógico-dedutivo: quer dizer que a conclusão de nossa investigação é coerente, que não há falha na construção e na demonstração de nossos argumentos. A dedução de nossos argumentos é válida, se for lógica, pois dedução vem do latim deductione, que significa "conduzir" ou "extrair" (como se extraísse a lógica). Por exemplo, é lógico adequar a escolha dos meios de execução aos fins desejados. 16) Política: atividade essencialmente humana que nos diferencia dos demais animais, pois muitas outras espécies desenvolvem a inteligência social, mas só o homem é capaz de construir projetos políticos para suas cidades, como local de efetivação do zoon politikón. Por meio da política (a vita activa, a CONDIÇÃO HUMANA DA PLURALIDADE63) o indivíduo se faz cidadão. 17) Linguagem: capacidade humana de adquirir e de exprimir sistemas complexos de comunicação. Há um contexto especial de sua intersecção com a política, desde a capacidade de livre-comunicação (ou isegoria, como queriam os gregos), formando-se a autonomia diante da lei (auto+nomos) e da articulação política, como convencimento lógico a partir de um argumento superior, em que da igualdade entre os pares (isonomia) afirma-se o mais apto (meritocracia). 18) Razão: no sentido mais simples é razão (ratio) o que é lógico, mas há uma “reta razão”, como diz Hobbes, em que a razão e a dedução lógica são aplicadas na construção do artifício do próprio Estado. Neste caso, fala-se de uma Razão de Estado, a razão como motivação real de existência do Estado. Hobbes traz uma justificação racional do Estado, como um momento decisivo na secularização da política, a formação da ultima ratio, quando “os fins justificam os meios”. 19) Processo político: entenda-se que a atividade política, como o poder, é uma relação, isto é, as ações comunicam-se, modificam-se, por meio da interação e esse processo (seriação de longo prazo) ainda implica na característica de que a política é de natureza coletiva e contínua. O Estado pode não ser democrático, mas não haverá solução de continuidade do processo político. 61 Quando realmente submetido ao direito, este contrato político é melhor designado por Estado de Direito. No Egito antigo eram divisões territoriais, um nomos da terra, a localidade em que o ser, o cidadão se realizava. 63 “Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação [...] A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especialmente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões <viver> e <estar entre os homens> (inter homines esse), ou <morrer> e <deixar de estar entre os homens> (inter homines esse desinere)” (Arendt, 1991, p. 15 – grifos nossos). 62 80 20) Ação política: ações humanas são aquelas que têm resultado efetivo e, se são de cunho social, como ações sociais, quer dizer que se manifestam correlatamente nas ações e nas dimensões de outros indivíduos (quer queiramos ou não, quer saibamos ou não). Como ações políticas, implica em dizer que a escolha entre meios e fins – na relação política – não é uma escolha isenta; às vezes não é uma escolha tão lógica como gostaríamos, contudo, trará resultados para todos os envolvidos no processo político. 21) Procedimentos institucionais regulares: se pensarmos na imensa dimensão que a burocracia tem em nosso cotidiano já seria suficiente. Enretanto, temos de visualizar que determinados procedimentos são essências na configuração das regras do jogo político, desde a escolha de mesários idôneos até a aplicação da Lei da Ficha Limpa. Depois de constituído o poder, em outro exemplo, o mandatário deve reger-se pelos princípios gerais do direito, da moral e de uma ética política (sob pena de responder pelos crimes de responsabilidade pública). 22) Pensamento absolutista64: Hobbes é quem melhor sintetiza esse período da história do Estado. Em suma, a ideia de uma soberania absoluta é necessária a fim de que o Estado conhecesse a fase inicial da concentração do poder. (Daí a tese absolutista). Sem o poder concentrado, organizado, forças políticas rivais seriam grave ameaça ao Poder Político. 23) Positivismo jurídico: Em Auguste Comte, o positivismo é um movimento filosófico, uma matriz metodológica, uma filosofia de vida: como correção, ordem, progresso, eficácia da organização social. O positivismo jurídico é uma corrente ou teoria do direito em que se procura explicar o fenômeno jurídico a partir (exclusivamente) das normas jurídicas positivadas. 24) Mundo contemporâneo: via de regra, entende-se como o tempo mundano presente, atual. Todavia, é preciso não esquecer que o presente é formado pelo passado, pelo que se faz (ou deixa de fazer) no presente e pelos sonhos, desejos e aspirações que se tinha anteriormente. O presente, portanto, não é estático e nem tão atual como nos parece à primeira vista. Por isso, ainda recebe o codinome de Modernidade Tardia, como um passado-presente. 25) Soberania: ser soberano é não conhecer limites que lhe sejam impostos de fora ou do alto. É reunir condições, poder, para agir com o máximo de autonomia. Então, soberano é o Estado e autônomo (ou não) é o indivíduo ou o Estado-membro. A soberania, entretanto, tem inúmeras divisões práticas e jurídicas. 26) Poder Político: como foi dito, o Estado reúne as principais características do Poder Político, faz-lhe a síntese. Porém, o Poder Político estará presente em todas as organizações sociais, coletivas, políticas em que houver um claro propósito político. 27) Hobbes: foi um filósofo inglês (1588-1679) celebrado como clássico fundador da Teoria do Estado. Apresentou suas principais construções teóricas acerca das necessidades e da capacidade de governabilidade dos Estados, basicamente em dois livros: Leviatã e Do Cidadão. Também formulou uma teoria do conhecimento, mas é muito mais atual na leitura da Teoria da Soberania. 28) Guerra civil: equiparado ao estado de natureza, foi o período em que Hobbes, muito abalado com sua própria sobrevivência, procurou explicar por meio da lógica aplicada à política dos reis o que o povo precisava para não sofrer as mazelas da guerra generalizada. Chamada de “última razão dos reis”, sua teoria conferia o poder absoluto aos príncipes para colocarem fim à guerra de todos contra todos. 64 Com a soberania como forma de poder absoluto. 81 29) Estado de natureza: Em Hobbes, é uma condição de desordem e mortandade geral, em Locke (como pensador do liberalismo clássico), entretanto, significa “um estado de igualdade, reciprocidade, onde ninguém tem mais do que os outros, são seres criados da mesma espécie e da mesma condição, e que desfrutam das vantagens da natureza”. 30) Estado Forte: é parte da estrutura estatal presente, intervencionista, em oposição ao Estado mínimo, pouco regulador, e que se viu a partir do neoliberalismo na segunda metade do século XX. 31) Leviatã: Em Hobbes, a figura mística, bíblica, de um imenso crocodilo é utilizada para simbolizar o poder do Estado. Um humano sozinho, desarmado, seria capaz de enfrentar um crocodilo do Nilo, pesando mais de uma tonelada, com seis metros de comprimento? 32) Medo Construído: como diz Max Weber, o indivíduo anseia pela dominação porque é a garantia de sua existência. Outra coisa bem diferente é o que faz o Estado com a prática do “medo construído”, uma vez que, cria-se, planeja-se a instabilidade, um caos controlado, para depois apresentar-se a ideia da força como único meio de regulação e de controle social. Já foi denominado de Terrorismo de Estado, em que o Estado é provocador de práticas terroristas contra uma parcela de seu povo. 33) Absolutismo: teoria política que defendia ao monarca todo o poder de controle sobre o Estado, além de ser o regente da vida comum do homem médio. 34) Premissa: é o ponto de partida (premissa maior) ou intermediário (premissa menor) de uma demonstração lógica ou matemática: “Todo homem é um ser político” (maior). “João é homem” (menor). Logo (conclusão): “João é um animal político”. 35) Teoria do direito: uma concepção própria da construção dos argumentos jurídicos, designando princípios e diretrizes comuns a todos os ramos do direito, e em que se procura analisar o direito como um todo organizado, ordenado e lógico. Do que deriva a compreensão do significado basilar desempenhado pelos Princípios Gerais do Direito. 36) Opressão: se é certo que todos os povos organizados conhecidos, sem exceção, conheceram a organização social e a dominação política, porque sem isto não haveria condição de sobrevivência comum, outra questão bem diferente é supor que a opressão das vontades fosse necessária. Portanto, a opressão é a negação do direito, da liberdade e de todas as garantias de que a dominação exercida por um determinado governo será legítima. 37) Liberdade natural: inicialmente, tratava-se da Teoria Política da liberdade presente no estado de natureza (ou estado de guerra): fazer tudo que se quisesse, sem ser responsável por nada. Em seguida, passou a ser parte de outra cosmologia, como se fosse uma dádiva da natureza e, assim, a liberdade seria o primeiro dos direitos. Porque sem liberdade não há vida. Desse modo, a liberdade se converteria em direito natural. 38) Teoria organicista do poder: o que nos interessa neste caso específico é apontar que o Estado foi e ainda é designado a partir de Teorias Organicistas, com clara analogia a formas de vida inteligente, desde o Estado Leviatã (crocodilo), até a representação do Tio Sam (caricatura que personifica os EUA). 39) Organismo vivo: do mesmo modo que se tratou por muito tempo de uma estática social – como se os mecanismo sociais uma vez definidos não pudessem ser revistos –, depois, no compasso de espera da Revolução Industrial, formularam-se diversas concepções organicistas, sendo uma dessas o Funcionalismo, de Durkheim. O Estado, a sociedade são organizações (organismos) que devem funcionar de forma encaixada, azeitada pelo direito, pela moral. 82 40) Autopiese: semelhante à natureza, em que as células podem se duplicar, o indivíduo consciente de si e do que fazer, é capaz de multiplicar o conhecimento e as práticas sociais e políticas instituidoras da realidade política republicana, democrática, justa. 41) Heteronomia: do grego Hetero + Nomia: outro + lei. Quer dizer que a regra vem de fora (o Estado para o direito posto) ou do alto (Deus para o direito natural). 42) Século XIX: o aprofundamento da democracia que se verificou no século seguinte, no século XIX já reconhecia o fomento dos movimentos populares, a começar da formação do operariado organizado, do sindicalismo, e de uma consciência social que aliaria o Mundo do Trabalho (como direito coletivo) à política. O trabalho é algo muito importante, essencial à formação do homem, para ficar sujeito ao jugo de uma única classe social. 43) Regulação pelo direito: também definido como medium-direito, esta regulação pelo direito precisa ser entendida como parte da luta do “mundo da vida” ao requerer/enfrentar o monopólio legislativo e coercitivo, em benefício da globalidade dos interesses sociais, exigindo-se muito mais legitimidade do que mera legalização da repressão. O médiumdireito precisa ser afirmado como constructo da legitimidade e do reconhecimento intersubjetivo dos agentes/sujeitos de direito. 44) Soberania popular: tem-se por este conceito a ideia-base de que a soberania (antes ilimitada, como poder heterônomo), agora, é restrita ao incremento do poder de acordo com os interesses sociais, globais, de toda a comunidade política. É uma tese que se inicia com Rousseau e tem por fundamento a legitimação do Poder Político. 45) Humanização do Poder Público: tal qual se verificaria com a “humanização da pena” (humanização do direito), o exercício do Poder Político deveria ser ampliado para além dos horizontes da eficácia do poder coercitivo, uma vez que o papel civilizatório manifesto pelo Estado e pelo Direito deveria ser destacado em primeiro lugar. 46) Restrição ao manejo do poder: o sistema de freios e contrapesos, a ampliação da reserva legal, a responsabilidade objetiva cobrada do Estado são desdobramento da primeira restrição política, imposta pela “regra da bilateralidade da norma jurídica”. 47) Cidadania democrática: em apoio paralelo à cidadania ativa (participativa), a democracia democrática tem a vantagem de reunir as principais conquistas do pensamento democrático clássico (como a alternância do poder), com todo o esforço de proteção jurídica trazida pelo conjunto complexo dos direitos humanos. 48) Monopólio do uso legítimo da força física (coerção): o aparelho repressivo do Estado é inerente ao controle político, soberano, como poder supremo do Estado sobre seus indivíduos, e quer receba o nome de heteronomia (poder erga omnes da lei) quer seja debatido como poder extroverso (capacidade administrativa do Estado, como se vê no Poder de Polícia). Porém, muitos outros mecanismos de controle social (a cultura) e a necessidade de promoção social (como na garantia dos direitos público-subjetivos), além dos desafios apresentados pelos séculos XX-XXI, exigem muito mais do Poder Político do que a mera repressão/contenção. 49) Max Weber: o sociólogo alemão é considerado um dos maiores pensadores do século XIX. Com Karl Marx e Emile Durkheim formam o trio mais influente da sociologia. No sentido do texto, entretanto, pode-se destacar que Weber teve um papel decisivo na formulação da Constituição de Weimar (1919) e que sua definição de democracia plebiscitária (construção de um saber nomológico, de leis gerais) ganhou muitos adeptos e seguidores. 83 50) Intencionalidade política: nem todos os povos – por mais que possamos valorizar a qualidade e o aprofundamento de sua organização social e cultural, como os Astecas e muitas tribos africanas – tiveram a intenção de se organizar em um aparelho coercitivo de Estado. O conhecimento antropológico esclareceu esse processo inúmeras vezes. 84 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO São muitas as fases históricas de evolução/desenvolvimento estatal: Estado antigo, Estado Corporativo (medieval), Estado Moderno, Estado Liberal ou Capitalista, Estado Constitucional e Estado Democrático. Especialmente na fase alcançada a partir de 1950, o Estado Moderno configurou uma realidade bastante modificada pela incidência do direito positivo e legitimado. Neste sentido, o direito interfere/intervém na estrutura política. Neste longo processo houve uma modificação imperativa no poder, no Estado e no direito. Quanto ao poder egoísta, imposto pela relação inicialmente resignada aos interesses dos que detém o poder, transformou-se em poder legal. Gradativamente, por exemplo, há uma transformação da força física (violência) em regulação social e jurídica. Concepção Jurídica de Estado Observando-se a evolução da concepção jurídica que se acerca do Poder Político podemos verificar a história da evolução do próprio Estado. Como concepção jurídica, o Estado é um modelo paradigmático de organização e de exercício do poder; como instituição maior, o Poder Político é autor e sujeito de direitos. Há duas grandes escolas para interpretar esse fenômeno político: 1) concepção extensiva de Estado – assevera que toda organização mais complexa de poder pode ser qualificada de Estado; 2) concepção restritiva de Estado – noção em que o Estado constitui uma das formas particulares de organização do poder. A primeira visão confunde o Estado e a sociedade política. A segunda perspectiva tem no Estado um modo especial de organização do pensamento e da ação política, capaz de racionalizar juridicamente o poder e de organizar e enquadrar as relações humanas. Como fenômeno histórico (racional e organizacional), o Estado é uma construção jurídica especial (artificial). Portanto, distingue-se da Polis grega, da civitas romana e também do Império. Como o direito, o Estado é uma ficção jurídica (como normatização do poder) que se segue à luta política por afirmação da soberania. Etimologicamente, o Estado provém do latim status – de stare – ficar de pé, ser firme e forte. Sob este conceito (stato para Maquiavel), diferencia-se da expressão grega Koinomia politique ou das expressões latinas res publica e civitas. Na França, o termo Estado foi confirmado/grafado em maiúsculo por Charles Loyseau. Surgiu simultaneamente entre o termo/conceito e o fenômeno político. Bodin também colaborou significativamente com a sistematização do conceito. O fenômeno estatal revela-se, enfim, resultante de três movimentos: i) concentração do poder; ii) secularização; iii) abstração jurídica. O primeiro ponto irá definir a soberania (com o rei soberano) e a unidade territorial. A secularização reforçaria a soberania, uma vez que a laicização aponta para a separação entre Estado e Igreja. Isto diminuiu a pressão externa sobre o governo do Estado, corroborando com a soberania do poder secular. O terceiro aspecto revela que o Estado é resultado da abstração do poder; primeiro dissociando-se a vida privada da norma e sua figura pública; depois, modernamente, distinguindo-se entre a instituição dos governantes, órgãos de Estado e os governados submetidos ao poder dos primeiros. Este poder de institucionalização do titular do poder permite a estabilidade e a permanência do poder estatal. Ao se ressaltar vícios e virtudes chega-se à conclusão de que o Estado não é uma necessidade lógica (até porque há povos sem Estado), mas sim histórica. Quer sejam os dilemas antigos, clássicos (imprimir-se eficácia ao poder estatal), quer sejam os problemas modernos e contemporâneos (soberania externa, lobbies), ambos revelam um paradoxo: apesar de todos os entrechoques e fatores de dissolução do poder estatal, o Estado continua sendo a matriz, o esquema ideal de exercício do poder. O sucesso da forma-Estado pode 85 ser quantificado: 51 Estados na ONU, em 1945, e mais de 191 atualmente. O próprio direito de secessão (a partir da Autolimitação dos Povos) conduz à criação de outros Estados. A observação da bivalência do Estado – como ente jurídico e histórico – revela que os defensores da Razão de Estado preveem que o Poder Político estaria além do alcance efetivo da norma jurídica, por se tratar o Estado de um fenômeno essencialmente político65. A Razão de Estado, como necessidade de se justificar o aparato estatal, coloca a instituição-Estado fora do alcance das regras jurídicas, especialmente por se tratar da limitação do poder. As regras jurídicas aplicadas à sobrevivência do Estado são, portanto, regras especiais, ocasionais, excepcionais: de exceção. Em sentido oposto, quando apreendemos o Estado como instituto de personalidade jurídica, abrem-se duas posições: 1) Positivismo Jurídico: tem-se que o direito é produzido pelo Estado e só existe por esta via; nenhum direito é então anterior nem superior à entidade estatal. Exemplo marcante é encontrado numa decisão de 1927, da Corte Permanente de Justiça Internacional: “As regras de direito, que vinculam os Estados procedem, portanto, da vontade destes”. 2) Alteridade Jurídica: contrariamente à primeira posição – de identidade entre Estado e direito –, esta aponta a alteridade ou a não-identificação66. Esta segunda versão – de que não há justaposição – remonta ao século XIX, na Alemanha, e foi utilizada pela primeira vez sob a expressão Rechtstaat67 ou Estado de Direito (na cultura jurídica francesa). Nesta visão, o Estado é limitado (em poder) por regras jurídicas preexistentes e superiores à ordem política. Inicialmente concebido como limitação ao poder arbitrário por órgãos do Estado – depois como subordinação dos atos administrativos à lei –, a noção de Estado de Direito é agora entendida como enunciação de direitos subjetivos que o Estado deve respeitar (ou obrigação de não-fazer, não-violar, não-mitigar ou agravar conquistas de direitos). De modo amplo, pode-se dizer que o Estado está obrigado a respeitar as regras de proteção dos direitos humanos. Assim, é possível inferir que o Estado de Direito restringe a soberania do Estado. Diante do direito internacional, o Estado obedece a condições de oponibilidade ao conjunto dos outros sujeitos de direito internacional. Como coletividade a ser reconhecida juridicamente – interna e externamente –, o Estado deve reunir alguns elementos: povo, território, aparato governamental (exercício da soberania). Elementos de formação Esses elementos estão destacados no Primeiro Parecer, de 29/11/1991, da Comissão de Arbitragem para a Paz na Iugoslávia (hoje extinta): “O Estado costuma ser definido como uma coletividade que se compõe de um território e de uma população, ambos submetidos a um poder político organizado”. O povo constitui o fundamento orgânico, vivo do Estado; a unidade do povo implica na formação do sentimento de Estado-Nação (ou de Estado Multinacional, se for o caso). De todo modo, trata-se de definir a soberania nacional como dimensionamento do caráter homogêneo impresso pelo Poder Político. Quanto ao território basta que seus contornos sejam suficientemente claros (sejam contínuos ou não). A governabilidade, como condição de soberania, revela-se como eficácia do poder (internamente) ou independência (no plano externo). O conjunto dessas condições constitui fatos-condições, ou seja, fatos em cuja realização o direito vincula certo número de consequências. Satisfeitas essas condições, o povo deve exigir respeito – sobretudo dos demais Estados - aos direitos fundamentais, como o direito à integridade 65 O Estado pode ser uma ficção jurídica, mas é uma realidade política. A relação do Estado com o direito é uma relação entre a autoridade e a alteridade. 67 Pode ter o sentido de Estado Legal ou Estado Constitucional, como Poder Político delimitado/regulado pela lei e pelo direito. 66 86 territorial. Com isto, destaca-se a capacidade de uma determinada coletividade política provocar reconhecimento internacional a fim de que se afirme como Estado. Entendendo-se o reconhecimento como condições de oponibilidade subjetiva da coletividade estatal. O reconhecimento é ainda um poder discricionário, por duas razões: 1) Nenhum Estado é obrigado ao reconhecimento; 2) pode-se subordinar o reconhecimento a determinadas condições, como o respeito à democracia e aos direitos humanos. O ato declaratório do reconhecimento não pode ser antecipado e, além disso, denega-se o reconhecimento ao Estado que tenha se utilizado da violência para se afirmar. O problema real é que lutas de anticolonização costumam ser violentas e o Estado formado em seguida pode pacificar as relações sociais. Enfim, é possível ver efeitos políticos e jurídicos no reconhecimento: politicamente, determina a viabilidade do Estado na arena internacional; juridicamente, permite ao Estado manter relações intersubjetivas positivas, estabelecendo relações diplomáticas. O que ainda revela que o Estado é uma pessoa jurídica que se beneficia de um atributo discriminante: a soberania. Como sujeito de direitos está apto a arcar com obrigações e a ter direitos; como pessoa jurídica só poderá agir por intermédio de indivíduos habilitados a representá-lo. O conjunto de direitos, obrigações, competências ou poderes constitui o que se chama de capacidade jurídica. Tanto a personalidade quanto a capacidade jurídica do Estado são originárias e iniciais. Soberania A soberania (derivada da realidade expressa pelo conceito de summa potestas) não significa que seja ilimitada (como no passado), mas sim que não se admite nenhuma autoridade acima dele (a não ser a lei criada pelo próprio Estado e pelo conjunto de valores expressos pelo estágio civilizatório da Humanidade). No plano internacional, a soberania é limitada por seu próprio exercício, uma vez que será sujeito às regras de direito internacional a que aderiu espontaneamente. De acordo com o acórdão de 17/08/1923, CPJI, da Corte Permanente de Justiça Internacional: “A faculdade de assumir compromissos internacionais é precisamente um atributo da soberania do Estado”. A igualdade jurídica entre os Estados é prevista no artigo 2º, §1º da Carta das Nações Unidas, de 194568. Internamente, a soberania pode ser definida positivamente como a soma de certo número de prerrogativas do poder soberano (ou seja, pelo quantum de poder). A soberania do poder é heteroilimitada – não podendo ser limitada de fora para dentro ou de cima para baixo. A soberania implica diretamente na ideia de funções do Estado, uma vez que o Poder Político seria organizado em razão de um determinado fim – por alguma razão. O que nos leva a definir o Estado de acordo com situações e exigências determinadas. Sobressaindo-se ao estado de natureza – anomia –, o Estado deveria garantir a ordem, inibir a violência e a justiça privada. Daí em diante – até se assentar como Estado Jurídico – conhecemos outras fases e formas: do Estado Policial ao Estado Comerciante, regulador, intervencionista, pós-liberal. Desse modo, como derivação da soberania do Poder Político (summa potestas), o poder seria repartido de acordo com funções específicas: 1) poder soberano, inclusive para definir outras funções/atribuições estatais (jure imperii); 2) atividades de gestão/gerência (hoje seria governabilidade) que não impliquem em prerrogativas soberanas (jure gestionis). Em outra síntese, as funções precípuas do Estado (desde Montesquieu) são: fazer a lei, executá-la e de julgamento. Precisamente, nesta ordem. 68 Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: 1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros. 87 Por uma questão óbvia – ao substrato jurídico do Poder Político –, pode-se concluir que há uma cronologia entre as funções: o Poder Executivo só pode aplicar a lei depois de sua promulgação (pelo Legislativo) e o Judiciário só poderá fiscalizar a ambos após a emissão da vontade da lei e da ação concreta do poder. Conforme o Poder Judiciário se organizava enquanto função da soberania, elevava-se a consciência social acerca da lei (judicialização) e vice-versa, uma vez que, as demandas sociais são o elã da luta política pelo direito. Ainda notabilizamos que não se trata, isoladamente, do simples poder de juris-dictio, como poder de julgar, pois contrai antes de tudo o poder de dizer a lei, de acordo com a capacidade de interpretação das normas, da determinação de seu sentido e da verdade legal (Princípio da Verdade Real) avocada pelo Estado Jurídico. A cada Estado, entretanto, compete regulamentar como se efetivará esta divisão das funções políticas/organizativas do Poder Público, como se tem na decisão de 27 de junho de 1986, da Corte Internacional de Justiça, no Caso das Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua e contra esta (Alland, 2012). Vemos, enfim, uma luta jurídica progressiva para se superar a noção do poder pelo poder, redefinindo-o como poder normatizado, regido, delimitado pelo direito. Pela modificação do poder também se analisa a evolução histórica da forma-Estado. Poder como interesse O poder como interesse revela que, aquele que aspira ao poder, considera-o como um meio (poder instrumental) para atingir certos fins – ou deseja-o por motivos simplesmente mesquinhos, para usufruir de seu prestígio (sensação de poder). Por fim, é o diapasão de toda organização social até hoje existente. São problemas/dilemas individuais ou ético-políticos a conquista, a manutenção, a regulação e o exercício do poder. Poder e força O poder como força é a capacidade ou a possibilidade de agir e de produzir efeitos. Refere-se a indivíduos e a grupos humanos (como Poder Político) ou a fenômenos naturais (poder de absorção). Em sua relação aos objetivos sociais, trata-se do poder do homem sobre o homem. Como relação que se estabelece com o poder, o homem é tanto o sujeito quanto o objeto do poder. De todo modo, o poder é uma relação triádica: a) o indivíduo ou o grupo que orquestra o poder; b) o indivíduo ou o grupo a quem se dirige o poder; c) a esfera do poder (todos os envolvidos são conectados/transformados pelo poder, gerando outros atores e nova dinâmica ao poder). Como dinâmica, o poder está sempre em movimento, transformando-se. Por fim, como poder atual, ainda se considera que o poder como capacidade de determinar o comportamento de outrem é posta em ação. Como ato, o poder corresponde à passagem do estado de potência à condição de ato político efetivo. Como potencial, o poder é um conjunto de possibilidades, como capacidade de determinar o comportamento dos outros. Poder Social Como sociabilidade, o poder é uma capacidade sistêmica; a capacidade dos sistemas sociais (portanto, uma propriedade impessoal) de produzir relações sociais e realizar objetivos coletivamente vinculatórios ou, então, reduzir a complexidade ou os níveis de entropia social, por meio da disciplina (uniformização dos comportamentos pelas instituições) e do controle social. O poder pode ser uma busca intencional, em que se exerce autoridade, violência ou outra força vital (como o temor reverencial) a fim de influir, solidificar ou modificar determinadas instituições, dinâmicas e sistemas sociais. Poder legal Como poder regulado por lei – Estado de Direito –, o Poder Legal coloca-nos um dilema atual: o próprio conceito de Estado de Direito é conteúdo e objetivo do Estado ou, ao contrário, apenas a forma e a maneira de realizá-lo? Como doutrina do direito, o Estado de Direito delimita 88 o Poder Político, mas, além disso, traz regulações necessárias à vida comum do homem médio. Neste caso, atua como substrato de sua consciência (cultura e consciência jurídica) – não apenas como regras estatutárias, mas como a priori moral e organizacional dos espaços de convivialidade. É um poder (moral, jurídico, político) que decorre da vontade geral, da coletividade do povo, da relação do povo consigo, por meio da lei e como racionalidade jurídica. Em suma, o Estado de Direito (como base institucional do Poder Legal) estabelece o “governo em conformidade com a vontade geral racional”: a sociedade deve participar da determinação dos objetivos do Estado. Sobretudo para que o Estado só intervenha na vida civil mediante leis expressas: regras universais. É um objetivo Iluminista. Poder Regulamentar O poder como regulamento é a capacidade que “algumas autoridades administrativas têm de ditar regras de direitos”, ou seja, decisões jurídicas com caráter geral, impessoal (Alland, 2012, p. 1350). Trata-se da mesma função material do Estado de ditar regras (função própria, específica do Poder Legislativo), bem como se vincula a normatiza o cumprimento dessas regras pela autoridade executiva. Esta diversidade é compensada por uma unidade orgânica do sistema jurídico que disciplina as atribuições (como poder da norma). Não são leis; os regulamentos reservam-se ao regime dos atos administrativos. Portanto, podem ser objetados pelos administrados como atos ilegais. Na França, por exemplo, a lei é a única regra de direito legítima, pois expressa a vontade geral. A lei seria disciplinar. O Poder do direito Sobretudo no século XX, mas já apontado no século XIX, o poder do direito se materializou como Poder Político. Identificado como Estado de Direito, o poder seria regulado por lei e o Estado Moderno seria convertido em Estado Constitucional, o governo dos homens – determinante nos tipos passados de Estado – converter-se-ia em governo das leis. O Estado de Direito é o poder das leis. Por isso, os conceitos políticos e constitucionais fundamentais mantêm-se duráveis, mas como estruturas ou construtos jurídicos também são elaborados em função de determinados contextos intelectuais, sociais e históricos diferenciados. Não são somente lutas semânticas, mas sim lutas políticas não-comportadas e nem contidas por regras acadêmicas. Em todo caso, há princípios que devem ser verificados: 1) Princípio da primazia da Constituição e de sua garantia jurisdicional; 2) Submissão da administração e da justiça à lei e ao direito; 3) Reserva de lei que proíbe ao Executivo agir sem uma base legislativa suficientemente regulamentada; 4) Princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais; 5) Separação dos poderes; 6) Segurança jurídica; 7) Ordem jurídica democrática e seus corolários morais e legais (precisão, clareza e objetividade das normas jurídicas, proteção da confiança legítima69, princípio da nãoretroatividade); 8) Responsabilidade do poder público; 69 O princípio da proteção da confiança legítima decorre da ideia de que o Estado de Direito desempenha uma função hermenêutica. Evidencia a manutenção de determinados atos administrativos, mesmo sendo antijurídicos, pois se verifica a expectativa legítima (do administrado) de que esses atos permitirão a estabilidade do sistema. Direciona-se para o futuro da administração (previsibilidade), em que o administrado se vê regulado com certa legitimidade (tranquilidade, imutabilidade da situação em que o administrado se encontra). Pode ser ainda que a regra imoral reforce o sentimento de legalidade. 89 9) Princípio da proporcionalidade; 10) Direito a recursos e garantias processuais. A noção formal do Estado de Direito se baseia nos princípios de constitucionalidade e legalidade. A percepção material do Estado de Direito corresponde à garantia de que a Constituição contém regras que disciplinam e são inspiradas pelos princípios já enumerados. Porém, ainda se verificam diferenças no conteúdo, na natureza e na função: a) Pode-se falar de uma noção política descritiva, quando se qualifica um Estado em que a Constituição define os elementos do seu conteúdo (formal e material). É um tipo de Estado. b) Há uma noção de direito positivo e tem a função de ancorar esses princípios na Constituição, especialmente se há falta de base legal. É um princípio constitucional. c) Por fim, como noção política normativa funciona como ideal, objetivo políticojurídico coletivamente desejável. É uma ideia de Estado. Juridicamente, o poder também se manifesta como direito e a força como capacidade regulamentar. O direito como realidade complexa No século XX, o direito surgiu como um conjunto complexo (sistema) de normas jurídicas e de regras sociais (direito positivo e costumes) que atuam na normalização (normatização) das relações sociais e jurídicas, na vida comum do homem médio (controle social) e na organização do Poder Político (poder unificado), como expressão da soberania popular (Vontade Geral), e muitas vezes em desafio às discrepâncias sociais e jurídicas, ao antidireito, e a fim de se reafirmar a legitimidade e a perfectibilidade do Estado Racional (como utopia de direito passível de Justiça e não mera ficção). 1. SÉCULO XX: o direito no século XX movimentou-se em dois grandes sentidos, sob o controle do capital financeiro, mas igualmente como produto de resistência na forma do direito coletivo e difuso. O século XX ainda é um marco na passagem das tradições da modernidade clássica para o que se chamou de pós-modernidade (com o enfraquecimento do mesmo Estado gerador de direitos sociais). 2. DIREITO – resulta da luta política em torno da afirmação da soberania popular, muitas vezes contra o próprio Estado. O direito, portanto, equivale à transformação do dever de obediência em garantias e liberdades para se requisitar e conquistar outros direitos. 3. COMPLEXO (complexus) – designa uma rede, uma teia de relações ou de significados que se articulam em escala global. 4. SISTEMA – conjunto ordenado/sistematizado de regras e de normas coerentes entre si, eficazes (eficientes), abstratas, universais (gerais) e legitimadas pela vontade geral dos indivíduos/sujeitos de direito (individuais e coletivos). 5. NORMAS JURÍDICAS – são normas “autorizadas” (outorgadas ou promulgadas) pelo Estado a fim de que o direito seja positivo (para que o direito atue como meios reguladores, como filosofia de vida, em que o positivismo seja um caminho reto, positivo). 6. REGRAS SOCIAIS E JURÍDICAS – são regras do convívio, muitas limitadas ou instigadas pela moral prevalecente, em determinado contexto e de acordo com as características apoiadas pelo grupo social predominante ou hegemônico. 7. DIREITO POSITIVO – direito posto, como direito imposto pelo Estado. No Brasil, pela dicotomia muitas vezes notada entre o direito e a realidade social, o direito posto raramente é 90 um direito interposto, em comunhão e de acordo com o consenso. Também pode ser o direito escrito “codificado”, salvo algumas exceções, como do direito administrativo e da CLT (que é uma Consolidação das Leis Trabalhistas). 8. COSTUMES – vem de ethos: padrões de convivialidade (ética). Interliga-se à cultura, mas não a substitui como sinônimo. 9. NORMALIZAÇÃO – tanto a norma social quanto a regra jurídica procuram afirmar o que o senso geral de convivência define como normal (padrão social), em oposição ao anormal (patologias sociais, como as psicopatias). 10. NORMATIZAÇÃO – imposição de regras jurídicas que seguem um padrão de normas comuns e aceitas por todos. 11. RELAÇÕES SOCIAIS – são relações que resultam da regularidade nas ações sociais (como ação em que o sentido subjetivo do indivíduo ou dos sujeitos está referido à conduta de outros indivíduos/sujeitos envolvidos pela relação jurídica). O afeto e a amizade podem ser exemplos de relações sociais, ao passo que o aperto de mãos indica uma ação social. Há uma nítida diferença de intensidade. 12. VIDA COMUM – chamado de o “mundo da vida” inclui os padrões habitualmente aceitos, além de todo o sistema de normas e de regras que surgem e se articulam a partir do Mundo do Trabalho (formal e informal), das relações familiares e privadas e do espaço público da política (no que se refere à política tradicional, às vezes oficial, mas também aos poros em que se articulam a insatisfação e a revolta). 13. HOMEM MÉDIO – aquele indivíduo/sujeito que atua, vive, colabora/participa do mundo da vida comum, quase que anonimamente, que expressa uma consciência mediana (senso comum) acerca do direito e do poder; mas, que está sob o alcance integral do Poder Político (do Estado que formula o direito que regula a vida das pessoas comuns e ao próprio Poder Público). 14. CONTROLE SOCIAL – relacionam mecanismos de organização social que impedem a desordem, a desarticulação social e que se verificam nas discrepâncias que ameaçam a estabilidade social. 15. PODER POLÍTICO – comumente, refere-se ao Estado como instituição por excelência. Contudo, o Poder Político é uma organização do poder de comando, sendo o Estado ou um conjunto de Estados (commonwealth) ou mesmo uma organização coletiva (a exemplo dos colegiados presentes nas comunidades primitivas). 16. PODER UNIFICADO – o poder assim definido, derivado do processo de laicização (como indutor do crescente Princípio da Tolerância, em função de maior isonomia e objetividade ou racionalidade das relações políticas), ainda se apresenta como resultado direto do Estado Laico; separando-se o poder secular do poder sagrado, obriga-se ao Estado não-diferenciar, negativamente, entre seus concidadãos70. 17. SOBERANIA POPULAR – ao contrário da Teoria Clássica da Soberania que tem forte presença no pensamento de Hobbes (summa potestas – potestade71), a soberania popular pressupõe que o Estado, como Poder Político, seja exercido democraticamente, de acordo com os interesses sociais e populares, além de ser um poder regulado pelo direito 70 São princípios da soberania no Estado Atual: a exclusividade, universalidade, inclusividade Refere-se à soberania como o poder próprio, inerente, específico do Estado e que se apresenta como evidente supremacia sobre os indivíduos e as sociedades de indivíduos que formam sua estrutura social, e, a par disso, é independente de todos os outros Estados. 71 91 democrático (este sentido é bem claro na expressão do legislador português, ao referir-se ao Estado de direito democrático). 18. VONTADE GERAL – os clássicos da Teoria Política se referiam à soberania popular como Vontade Geral; porém, não se aplica como somatória das vontades particulares porque a lei (como direito positivo) é resultado do entrechoque entre vontades particulares (lobbies) – na arena política –, especialmente no Parlamento, e que atingem um grau de maturação – universalidade – graças à sublimação, depuração, abstração das próprias razões e motivos que originaram o projeto legal72. 19. DISCREPÂNCIAS SISTÊMICAS E JURÍDICAS: todo sistema (por mais organizado que seja) precisa de oxigenação a fim de que se adapte às mudanças sociais e assim atenda às novas exigências coletivas. O que permite este movimento social são justamente as discrepâncias. Todavia, se a entropia é superior ao nível de acomodação e à capacidade de absorção, as mudanças (antes requeridas) transformam-se em distopias. 20. ANTIDIREITO – é preciso não esquecer que o antidireito nos leva direto para um tempo pretérito, para um passado meio sombrio, de pouca luz, como se estivéssemos em meio às trevas do Estado de (não)Direito. É preciso lembrar que o antidireito é sinônimo de antes do Direito, ou seja, o tempo, a fase ou o momento onde predominava o uso da força, com a negação veemente de muitas condições políticas – a exemplo das garantias que seriam prestadas aos adversários, mas que hoje, graças à negação dessas garantias, acabaram por transformar os dissidentes em inimigos. Pois bem, o antidireito e o direito positivo transparente – mas estanque na defesa do patrimonialismo – são exemplos da mais pura negação do Direito73. 21. LEGITIMIDADE – aproximando-se do conceito/sentido expresso tanto na soberania popular quanto na ordem jurídica democrática, a noção de legitimidade do Estado preserva conteúdos complementares: 1) Sem a conotação social, o direito é instável e, portanto, gerase uma insuperável insegurança jurídica; 2) Sem sociabilidade, o direito se reduz ao monismo de subsunção, o direito que provém do Estado tende a se identificar com o poder estabelecido; 3) Ao servir à Razão de Estado, o direito se desincumbe da obrigação de servir à sociedade. 22. PERFECTIBILIDADE – nenhum sistema é perfeito, mas como medium, o direito tende ao aprimoramento, à perfeição sistêmica, especialmente se observarmos no longo prazo, desde sua separação da moral, dos preceitos religiosos, e até se afirmar como regras gerais, abstratas. 23. ESTADO RACIONAL – a partir de Max Weber, entende-se como um processo de contínua e crescente racionalização da vida pública, o que implica em dizer que também o Poder Político não mais se isentará do alcance de regras igualmente racionais. Por fim, pode-se dizer que o Estado é um agente ativo do processo civilizatório, uma vez que o Poder Político é resultado do direito e, sob esse controle, produz novas leis. 24. UTOPIA DE DIREITO - quando se busca a verdade e a Justiça, o Direito tem que ser muito mais do que uma figura de linguagem: por melhores que sejam as intenções, é preciso 72 A lei, resultado dessa abstração de realidade, após o longo processo de depuração/transformação em que se submete no Poder Legislativo, em seguida, será aplicada conforme o procedimento jurídico designado como subsunção: a norma eleva-se sobre a realidade que lhe deu origem, abstraindo-se de suas implicações históricas imediatas, formalizando-se a ação de uma norma abstrata, em direção ao mundo real. 73 Infelizmente, no Brasil, o tom que prevalece é o pastel, ou seja, nem isso, nem aquilo, nem cá, nem lá, esse tom apagado que não encanta ninguém, essa aquarela liquefeita em demasia e que só permite o improviso: o máximo do improviso é a tal lei que não pega. 92 relembrar que o brilho cega, ou seja, a Justiça não pode ser substituída pela iconoclastia da Justiça. A utopia pode transformar a realidade, mas tem que ser uma utopia possível – a limitação da expressão está em que esse direito nuançado que temos hoje não consegue reduzir as mazelas sociais das classes menos privilegiadas, populares e ainda vemos o pensamento corrente de que há uma espécie de excesso de direitos. O que é contrassenso, senso comum, limitado às aparências, pois, se somos iguais perante a lei, não há direitos demais (a não ser que se tome isso por privilégios). 25. JUSTIÇA – por Justiça se entenda inicialmente o Princípio da Equidade (como equilíbrio social) em que os mais fracos são tratados/preservados dos riscos e das ações diretas daqueles que detém o poder: tratar os iguais, igualmente; os desiguais, desigualmente. Na regra geral há a isonomia, mas diante do desequilíbrio social, cabem recursos/instrumentos de recomposição sistêmica (como o discrímen: regras que discriminam para proteger os desafortunados). 26. FICÇÃO – o direito é uma ficção porque se trata de criação humana, é uma invenção (como intervenção no curso regular da vida social), um artificialismo que substitui as ações humanas não reguladas e regidas pelo direito, como a vingança privada. O século XX também foi o marco decisivo na transformação do Estado Liberal, sob a democracia e o socialismo. As décadas de 1950 e 1970 foram decisivas na configuração de uma tipologia do Poder Político não mais restrito aos interesses do grande capital. Como Estado de Direito Justo, atribuindo-se uma relação entre Estado, Direito e Ética, pode-se dizer que se encontra em fluxo um processo de hominização e socialização em que se rearticulam o Social e o Político. Na restauração democrática que se seguiu ao Salazarismo e Franquismo instigou-se um conteúdo ético ao Poder Político. Estado e Ética Sabemos perfeitamente que o homem é um animal político e não apenas social. Esta parece ser a intenção de Aristóteles ao afirmar o zoon politikon, pois muitos outros animais também são sociais, mas sem serem políticos. As abelhas e sua fascinante organização social, a partir da intrincada e elabora colmeia, provoca fascínio há milênios – foi um símbolo adotado até mesmo por Napoleão Bonaparte. O gado de forma geral é composto de animais sociais, quando vivem agrupados, porém sem que tenham qualquer outro princípio organizativo, sem sequer se defender organizadamente, coletivamente. O gado mesmo vivendo aos milhares dispara em desabalada ao menor sinal de perigo, sem se preocupar com a autodefesa - talvez, à exceção do Búfalo. De todo modo, mesmo não havendo maior coordenação social ou não sendo possível generalizar a característica social, algumas formas de vida pré-humanas (plantas74, insetos, mamíferos) e até os humanoides75 têm ou tiveram suas vidas baseadas no desenvolvimento de mecanismos sociais elementares: Estes mecanismos chegam a ser descritos pelos biólogos, através de conceitos como “apetite social”, “interatração”, “cooperação inconsciente”, tendência automática para a ajuda mútua”, “tolerância à presença de outros”, “competição consciente”, “sociabilidade” etc [...] É verdade que subsiste o problema de como separar, caracterizar e 74 Esta é a simbiose que as plantas também se mostram capazes de desenvolver. Como vimos, o homem pré-histórico procurava recuperar seus feridos de caçadas e combates. Não seria isso um sinal de solidariedade? 75 93 interpretar o que é “social” nas formas pré-humanas da vida [...] Tudo que se pode perceber é um gradual desenvolvimento de atributos sociais, o qual indica um substrato de tendências sociais em todo o reino animal. Desse substrato social a vida social emerge pela operação de diferentes mecanismos e sob várias formas de expressão, até alcançar o presente clímax nos vertebrados e nos insetos (Fernandes, 1977, p. 27). Outros animais, no entanto, já reúnem melhores condições de organização, como abelhas, formigas e castores – com divisões internas das funções sociais. Lobos, leões, cachorros selvagens africanos ou chipanzés76, além dessa organização para viverem em sociedade, já possuem certa inteligência social, pois são capazes de organizar a caça coletivamente. O revezamento entre as funções de ataque e liderança no cerco final à caça, entre o chamado lobo alfa e outros membros da equipe de assalto é um exemplo claro dessa inteligência social. Denominamos de inteligência social essa capacidade de agir coletivamente que resulta em maior capacidade de interação social. Portanto, inteligência social se refere à capacidade para manejar apropriadamente situações pessoais e interpessoais da vida diária, tendo em conta finalidades igualmente societárias. Daí que interação social, por sua vez, pressupõe níveis positivos mínimos de sociabilidade, ajuda mútua e interdependência recíproca. O homem, como é fácil perceber, reúne essas três dimensões, ou seja, é social, sociável, societário, tem apurado senso de inteligência social77 e é um animal político: especialmente ao externar e executar determinados níveis de poderio social78. De todos os animais, o homem é o único capaz de racionalizar sobre o que é ser social, além de ser dotado de raciocínio lógico que lhe permite agir politicamente, bem como refletir criticamente acerca dos seus próprios níveis de inteligência social: o que também implica em práticas sociais que resultam em transformação política - práxis. Quanto a esse homem social e político, pode-se falar que desenvolveu em milhares de anos uma poderosa teleologia, ou capacidade projetiva das transformações sociais e políticas futuras. E é certo como isto é parte do empuxo decisivo para desenvolver a inteligência social e o raciocínio lógico do homem. Lembremos ainda da importância decisiva que teve o movimento de pinça, com o movimento articulado entre o dedo indicador e o polegar: um exemplo nítido do componente biológico da inteligência social. Essa condição intelectual que o homem aprimorou a partir da experiência política, essa possibilidade de abstração e reflexão do viver social e do fazer política, define a própria dimensão social do político. Isso envolve uma relação que vai da ação política à reflexão do político, da criação de instrumentos práticos de ação política às categorias mais abstratas que envolvem o político: a exemplo dos Direitos políticos, como se viu fortalecer com o Estado Moderno. Sucintamente, talvez se devesse dizer de uma dimensão social de implicações jurídicas e políticas, pois: É o conjunto de pessoas que gozam, pela condição comum em que se encontram, da mesma posição com relação aos Direitos e deveres políticos. Pelo fato de usufruírem conjuntamente desta posição, elaboram e praticam formas de gestão da mesma que configuram, justamente, 76 Esses desenvolveram intrincada estratégia de caça coletiva, inclusive contra outros macacos menores. É preciso ressaltar que o conceito de inteligência social ainda pressupõe a influência das emoções e até das chamadas intuições. 78 Entendemos Poder Social como nossa imensa capacidade de organização social, domesticando a violência (Arendt, 1994). 77 94 como comunitárias ou, ao menos, como representativas (Bobbio, 1993, p. 1214). Essa intelecção da política permitiu ao homem sobressair-se socialmente, aprimorando seus equipamentos sociais, ao romper e ultrapassar os limites sociais primários. De uma vida eminentemente social, o homem transformou seu hábitat no complexo conceito e realidade da iminente sociedade civil79. Para nós humanos, outrora animais resumidos à vida social primária, limitados à condição natural da vida social (e ainda não expressamente política), agora só é interessante a vida social se adstrita a uma objetivação política. Mas o que é sociedade civil80? Esta locução é originária dos antigos romanos, para quem antes do Estado existia uma societas civilis como referência a uma sociedade formada sob garantias legais e como objeto de utilidade comum, como dizia Cícero [...] Nos anos 90, os cientistas sociais norte-americanos começaram a chamar civil society a tudo que era controlado e financiado pelo Estado (Borja, 1998, p. 934). A sociedade civil romana lembra um pouco os nossos grupos humanos gregários, pareciam sinalizar o que chamamos no texto de interação social originária. De certa forma, o texto nos remete a uma tentativa de entender alguns mecanismos e o porquê dessa gradual passagem processual de transformação do social no político. Essa racionalidade política potencializa o social, o querer e o suportar a vida em sociedade, em grupo, é o que permite a criação da sociedade civil. Por ora, vamos entender racionalidade política como a meta traçada por um verbo: traçar implicações claras para a atividade política, ainda que nem todos os resultados sejam a própria concretização do projeto inicial. Também o conceito de socialização jurídica pode nos ajudar nessa tarefa: 1. A palavra socialização jurídica foi criada em 1836. Ela figura no dicionário alfabético e analógico da língua francesa (Robert) com dois sentidos: a) o fato de desenvolver relações sociais, de formar um grupo social, em sociedade (didático); b) o fato de colocar sob regime comunitário, coletivo (1846) [...] 2. O conceito de socialização jurídica aproxima-se do que J. Carbonnier (1978) chama de “processo de juridicização” experimentado pelo indivíduo na sociedade, processo que ele considera ao mesmo tempo próximo e distante daqueles através dos quais o indivíduo é socializado e moralizado. Encontramos igualmente [...] a expressão “formação da consciência jurídica” ou desenvolvimento da consciência jurídica” para designar o conteúdo da socialização jurídica (Arnaud, 1999, p. 743). É lógico, mas cabe notar que se encontram em relação intrincada a Sociedade, a Política, o Direito, e é esta capacidade de interagir o social e o político que faz do homem um animal social capaz de agir politicamente. Como racionalidade aplicada ao social, a política será um 79 Muitos animais vivem em sociedade ou em organização social maior do que um simples bando, mas só o homem conheceu a sociedade civil. É interessante notar como qualquer imagem de uma sociedade civil de animais é carregada de intenso preconceito, como vemos no filme O Planeta dos Macacos – na primeira versão. No filme, é clara a imagem de uma sociedade civil irascível. 80 Para Marx e Gramsci, a sociedade civil equipara-se à infraestrutura econômica. 95 pharmakón e esse fenômeno ocorre em toda sociedade que tenha evoluído para a sociedade civil - no sentido ocidental de sociedade. Porém, não podemos esquecer que há características próprias a algumas sociedades, a começar por todas que não perfazem o exato padrão da sociedade industrial de massas. Em muitas sociedades indígenas, por exemplo, não há uma noção de Direito como nós a conhecemos, com subsunção e coerção. Portanto, deve-se ter clara a distinção entre regras sociais e Direito. Nas sociedades indígenas, se não há subsunção (quando o caso concreto é confrontado à regra geral e abstrata81), os conflitos só podem ser resolvidos e absorvidos no interior do grupo como um todo – no plano geral e concreto da cultura do grupo social. Diferentemente do Direito, as regras sociais tendem à unanimidade e o Direito pode ser baseado em consensos muito provisórios. Além do que, nessas sociedades não-ocidentalizadas, não se opera a coerção a partir de uma instituição como o Estado, mas sim no mundo concreto, na cultura inclusiva do grupo social. Em síntese, denominamos de subsunção cultural a esse processo em que o Direito se resolve na cultura, imiscuindo-se aos conflitos e às soluções sempre coletivas e participativas, no interior dos grupos. Nesse grupos sociais, trata-se de viver o Direito, de resolver os problemas coletivamente, de reavivar as normas jurídicas, de reapresentar e indagar a todos os presentes se as regras pré-estabelecidas se aplicam ao caso concreto, ao caso em questão ou não. E isto é muito diferente de apenas representar a situação de fato, buscando comparar a norma ao caso específico, viver o direito e não somente representá-lo por meio do advogado. Enfim, é como se dissesse que se deve re-apresentar a norma social e não só representar sua existência. Nesse item, podemos concluir que todo animal político é social, além de possuir apurado senso de inteligência social: excluindo-se aqui o caso crônico dos psicopatas. Porém, ainda é de se lembrar que mesmo o chamado ermitão é aquele sujeito que experimentou a vida social e depois a abandonou, em troca da reclusão ou de maior privacidade82 – num nível intermediário de afastamento social estão alguns monges ou religiosos. Também podemos dizer que nem todo animal social é político ou que tenha capacidade intelectual para agir socialmente – para este sentido, devemos analisar os casos de todas as formas sociais de vida rudimentares ou de menor condição societária. Portanto, de toda análise, decorre que o homem é um animal social e político, ou seja, o processo de hominização se dá nesta passagem gradual, mas constante do social ao político, e depois com a transformação das regras sociais em Direito. Em resumo, o homem político é o homem social que se instiga diretamente à prática do poder, é aquele sujeito que declara e destaca sua intenção de fazer política de forma imediata, sem mediações, demonstrando consciência da necessidade da prática política. Enfim, a passagem do político ao jurídico implica uma nova fase da consciência coletiva, como um tipo ou margem da consciência pública. Com a fixação do Estado de Direito, teoricamente, houve um controle dos poderes do Estado e um maior requerimento pela coisa pública, pela República: essa consciência pública apelidada de salus publica83. Mas, note-se que mesmo a salus publica não implica necessariamente na figura do Estado, pois é muito fácil perceber como o Estado pode ser um mero exercício da opressão. Naquelas sociedades 81 Esta regra supõe que o mesmo Direito que servirá de anteparo ao fato concreto, é ele mesmo um Direito subtraído de suas origens sócio-políticas: como se as origens do Direito moderno não perpassassem pela política, a exemplo do Poder Legislativo. 82 Aliás, só há sentido em falar de privacidade se há sociabilidade, e é óbvio que não há o privado se não há o social, o público. Pois, desse ponto de vista, o público e o externo condicionam o privado, o interno. 83 Somente neste caso é que se pode falar que a sociedade civil não está em contraste com a ética e com a alteridade. 96 indígenas, já referidas, há forte concepção e cooperação para a coisa pública, mas se desconhece totalmente a instituição do Estado. Em nossas sociedades, ao contrário, tanto o Estado quanto o Direito se caracterizam muito mais pela prática da dominação e da opressão. Aliás, há esse tipo de dominação e opressão porque não se desenvolveram nas sociedades industriais, apropriadamente, os princípios da alteridade. De certo modo, trata-se de promover um (re)encontro do Direito, da ética e da política com a cultura e com os modos sociais apresentados pela vida social moderna. É isso que trataremos de modo sucinto a seguir. A Formação da alteridade Política Mas o que é alteridade política? Vimos uma condição inicial, imprescindível dessa alteridade em Dussel, que é o respeito à integridade da vida biológica, tal qual prescreve o princípio da dignidade da pessoa humana, e que por sua vez é o mais profundo alicerce do componente ético da vida social. Aliás, a ética entendida aqui como a garantia primária da vida social: como preservação do que está vivo, entre nós, no grupo, na coletividade. Poderíamos pensar em vários níveis ou articulações diferentes: desde a interação social clássica (na sociologia coincide com a solidariedade, ajuda mútua), até a dimensão política postada na transformação do idiotes (desde a Grécia clássica, visto como o cidadão apático, submisso, meramente cumpridor de seus Direitos e obrigações, não-questionador) em um cidadão ativo, participativo, inquiridor da verdade, do Direito, da justiça. Trata-se do mundo da ética, da maioridade e da maturidade política, em que se pratica e se promove a dimensão pública, coletiva da política, sem apatia, egoísmo ou corrupção de qualquer natureza. Como nos diz Nogueira: Não é por acaso que a palavra grega politikós, com a qual se designa tudo aquilo que é próprio da política (politiké), significa também polido, cortês, delicado. Não é por acaso que o termo grego polis, de onde vem política, se estende no latim urbe, de onde vem urbano, que tanto diz respeito a cidade quanto a urbanidade, civilidade, afabilidade. Nem mesmo a palavra polícia (do grego politeía e do latim politia) escapa dessa raiz: tem a ver não tanto com repressão, como pensamos hoje, mas com a atividade administrativa dedicada a tutelar e proteger a coletividade e suas partes [...] na antiga Grécia a comunidade (koinonia) reunia os indivíduos singulares (ídion) e quando o indivíduo exagerava na sua singularidade a ponto de cancelar qualquer vínculo comunitário, o ídion virava idiotes (palavra com que os gregos designavam o absolutamente singular, aquele que não tem nada em comum com os outros e por isso não se comunica ou oferece algo). Mais tarde, o idiotes derivou “plebeu”, daí para “ignorante”, com o que se aproximou do “idiota” que conhecemos hoje (Nogueira, 2001, p. 28-29 – grifos nossos). Neste caso, serve-nos a alteridade política como uma necessária, urgente, fundamental “psicologia do entendimento do usuário (quem são esses sujeitos da rede social e da vida política? O que queremos deles?)”, mas agora em um tipo de abordagem universal: não um usuário, mas “os usuários que queremos”, porque também se trata de um conjunto complexo (“o que se tece em conjunto”). Portanto, trata-se obrigatoriamente de uma ação coletiva que também se constitui numa noção elementar à interação social e à interface política e teleológica, pois é facilmente percebido que não interage adequadamente bem, na vida social ou política, aquele 97 que não está preparado para encontrar os demais, os outros, próximos ou distantes de si mesmos. Encontrar o outro, na rede social e na vida política, é aprimorar, redimensionar, ou simplesmente edificar, solidificar nossa própria alteridade: o nosso desentranhamento, o nosso desenvolvimento interior para entender, absorver, alterar, tanto o mundo interno quanto o externo. Como diz Rolnik (1994): Para desenvolver este tipo de interrogação, proponho que nos situemos no âmbito de uma ecologia da subjetividade para problematizarmos o conceito de “outro” implicado tanto na noção de democracia, quanto na noção de homem como cidadão: o outro, deste ponto de vista, é uma unidade (um indivíduo), juridicamente circunscrita, composta por um conjunto de Direitos e deveres definidos por lei. Aliás, este mesmo conceito de outro está presente na palavra “ética” que tem sido igualmente evocada no discurso que se reivindica como democrático, ao lado da palavra “cidadania”: o conceito de ética, deste ponto de vista, refere-se ao respeito pelos Direitos e deveres de todos, respeito pelas leis que regulamentam tais Direitos e deveres [...] No entanto, a realidade não se restringe ao visível, e a subjetividade não se restringe ao eu: num outro plano, invisível, o que há é uma textura (ontológica) que vai se fazendo de fluxos e partículas que constituem nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos e partículas com os quais estão coexistindo, somando-se e esboçando outras composições. Tais composições, a partir de um certo limiar, geram em nós estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva de nossa atual figura (p. 158-160). A pessoa democrática é aquela que procura o Outro e este pode ser inominado (quando se toma o público ou a categoria superdimensionada de interesses difusos como na República) ou invisível (simplesmente desconhecido porque não há proximidade, mas só conexão pelo fato de ser humano). Essa invisibilidade essencial à vida pública (até mesmo para que se tenha mais imparcialidade e normatividade: menor personalismo), na rede social será um espectro, uma possibilidade demonstrável pela imaterialidade própria à rede de sociabilidades. Ainda com Rolnik (1994): Assim a alteridade e seus efeitos, embora invisível, é real: nossa natureza é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de deviroutro. Se considerarmos que a processualidade é este devir-outro – ou seja, a corporificação, no visível, das diferenças que vão se engendrando no invisível – ganha maior consistência a ideia de que a processualidade é intrínseca à(s) ordem(ns) que nos constitui(em) (p. 161). Desse ponto de vista, a teleologia política e a interação social deveriam nutrir, fomentar uma nova base para o próprio relacionamento humano de fundo ético, participante, mobilizador da vida pública ou quando em público. Rolnik fala no “homem da ética”: O homem da ética que nos habita (mesmo que, quase sempre, muito timidamente) é o vetor de nossa subjetividade que transita no invisível: é ele quem escuta as inquietantes reverberações das diferenças que se 98 engendram em nosso inconsciente e a partir daí nos leva a tomar decisões que permitam a encarnação de tais diferenças em um novo modo de existência, tanto no sentido de fazer novas composições, quanto no sentido de desmanchar composições vigentes. É o homem do inconsciente: operador da produção de nossa existência como obra de arte. Ele também guia nossas escolhas, só que selecionando o que favorece e o que não favorece a vida, tendo como critério a afirmação de sua potência criadora – daí porque chamá-lo de “ético” (p. 166). Por fim, é o próprio caos, entendido como a ausência de uma estrutura rígida, definida ou definitiva e, portanto, mesmo que entendido o processo como “estrutura social” que, por exemplo, estará mais próximo desse movimento que rearticula e re-engendra permanentemente as suas próprias bases. Ou seja, essa condição mutável, não-nivelada, descontínua, fragmentada, imersa na rede social de subjetividades formada pela junção dos sujeitos e resultante das ações e intenções decorrentes da política, é definida, portanto, de acordo com a vontade ou disposição (navegação) dos infinitos participantes sociais. E é esse fluxo que permite ao Direito (bem como às demais instituições) ser modificável socialmente. Para nós (políticos, teóricos ou não, tendo-se consciência disso ou não), sempre será muito cara essa metáfora da topologia mutável da rede social para definir o cidadão (com base na autonomia e na legitimidade das ações deslanchadas no “espaço público”), assim como em Rolnik a base da argumentação do homem ético está pautada na modernidade: Construir uma subjetividade em que se encontra o mais ativo possível o homem da ética é estar próximo daquilo que vimos através da concepção contemporânea da Física: é um tipo de homem que entendeu que ordem e caos são indissociáveis e que aquilo que inquieta sua consciência é uma diferença engendrada no caos; por isso esta inquietação para ele não é o aterrador sinal de sua possível destruição, mas o apelo de uma necessidade de criar que se impõe no invisível campo dos afetos, e ele se dispõe a acolher este apelo – mais do que isso, ele deseja acolhê-lo (p. 169). Mas, como entender a sociedade civil como princípio de alteridade sem que haja o componente do Estado e do Direito? De modo muito genérico, portanto, ainda nos restam duas questões para afirmar nosso campo de debate: A sociedade é uma natural construção humana ou essa abstração da vida material só veio a se realizar com a sociedade civil? Seja como instrumento, seja como processo teleológico humano-genérico, a política sempre esteve presente em todo o percurso do processo de nossa hominização? Concluindo, podemos dizer que essa alteridade política discutida, e que envolve autonomia, ética, Direito e responsabilidade, propõe uma maioridade política a todos os envolvidos. Afinal, quando o Homo faber tomou a decisão de deixar de ser bando, simples predador e caminhou para o conhecimento (orientado por Prometeu), não tinha em mente uma sociedade inclusiva, realmente global e um Direito que respeitasse plenamente as regras de convivialidade? 99 Parece-nos que sim e por isso cabe ao Estado, por intermédio de seus agentes, que não apenas tutela ou presta assistencialismos, tanto quanto cabe ao cidadão que compreende essa dinâmica inter-relação entre a sociedade, o Direito e a Política, porque esse conjunto deve servir a todos e não apenas a si mesmo como meio de obtenção de vantagens pessoais. De certo modo, equivale a dizer de uma sociedade civil em que a política é levada a sério, com cidadãos maiores de idade, a fim de propor e processar a Política e o Direito. Nessa imbricação entre Direito, Política, Ética há subsunção da violência e da coerção no diálogo, na comunicação, na negociação, na legitimação global. Afinal, sem isso não há maioridade política, social ou jurídica. Formações Típicas e Atípicas do Estado Além do que viemos analisando, ainda pode-se dizer que há formação de Estados seguindo fórmulas típicas e atípicas (Dallari, 2000). A) Forma típica Aqui temos a união de Estados ou o desenvolvimento posterior de certa sociedade, até atingir a forma de uma Federação, a exemplo dos EUA. De certo modo, também pode ser por desdobramento ou derivação de um Estado anterior, a diferença é que, neste caso, a origem do novo Estado será o Estado antecedente e não propriamente a associação voluntária entre pessoas e grupos. Vemos facilmente que há maior constância de fatores observáveis, e que os casos são mais rotineiros. Portanto, há maior possibilidade dessas formas de Estados se desenvolverem. Trata-se da criação de uma organização unitária com autonomia local. B) Formas atípicas Já as formas atípicas, como o próprio nome diz, não são comuns e nem o desdobramento das funções públicas desses Estados é rotineira ou facilmente catalogada. Temos como exemplos diretos os casos do Estado de Israel e do Estado do Vaticano: ambos com a 2ª Guerra como cenário político. 100 AXIOMAS DO ESTADO MODERNO O Estado, desde as primeiras reflexões objetivas, tem provocado debates acerca de seus axiomas, afirmações, quase-sentenças acerca do Estado – especialmente o Estado Moderno –, mas que requerem alguma reflexão. Se o axioma não se comprova, entretanto, merece um pensamento sobre suas conclusões. O Estado é força: jus puniendi (bellum omnium contra omnes84) O Estado é soberania (Mas, “a soberania só reina sobre aquilo que consegue interiorizar”) A preocupação do Estado é conservar (a Razão de Estado luta pela autoconservação85) O Estado é um estrato86 (o Estado transforma o Nomos em Logos) O Estado é um condutor (condottiere87) O Estado é um regulamento “Uma das tarefas fundamentais do Estado é estriar o espaço sobre o qual reina, ou utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço de um espaço estriado” (Deleuze, 2005, p. 59). O Estado soberano é o que detém o poder de exceção No contratualismo de Hobbes o Nomos é um tipo de “contrato comprometedor”, um contrato em que todos se comprometem com objetivos similares, também se constitui da linguagem rumo ao direito: “O contrato é um diálogo, um logos trocado e compartilhado que, de fato, é transformado em nomos” (Angoulvent, 1996, p. 50). Veremos, entretanto, que Nomos pode ter um significado diverso, na verdade, algo como o sedimento do mundo da vida, da vida comum do homem médio sobre o qual se constrói a cidade, a polis, o logos, a lex. Em termos antitéticos teríamos a seguinte construção: cidade – Polis – cultura – lei versus campo – Nomos – agricultura – costumes. Em todo caso, o contrato em Hobbes, é só um pacto unilateral, porque não tem a regra da bilateralidade da norma jurídica. Para o intérprete do Nomos da Terra, sob o absolutismo, todo poder emana do Estado e a ele voltará. O Estado Absoluto é o que garantirá, absolutamente, a salvaguarda necessária (seja qual for) de Nomos e Logos serão um só, assim como Estado e Direito são meio e fim em si mesmos. O soberano encontra um Nomos, como se a lei derivasse do espírito nacional, constituindo-se num direito pressuposto que corrobora a ação do poder (e este poder poderá ser de exceção, desde que se justifique os fins da Razão de Estado). Todo o poder a quem detém o poder. O Nomos ainda implica em uma Ciência do Estado, como se a polis ainda encontra-se uma explicação racional, nomológica88, perfeitamente concebível a partir da transformação do 84 Guerra de todos contra todos. Toda luta pela autoconservação é uma luta política (Honneth, 2003). 86 Estratocracia (stratus = militar). Mas, o governo do Poder Político, como estrato, não precisa necessariamente se amoldar ao manu militari, como governo militar versus governo civil. 87 Historicamente, nas origens da máfia siciliana, designava-se condottiere como o chefe, o capo, da malta de mafiosos ou líder de grupo de soldados mercenários. De certo modo, é esta verificação que levou a designarmos, no Brasil, de Estado Paralelo. 85 101 Nomos. Para Max Weber, Nomos também tem um significado preciso, como regra naturalracional. A sociologia para Weber é a ciência do saber nomológico ou que busca um saber nomológico (Nomos = regra, norma, regulamento de ação humana e de cunho social, da ação social). Assim, teríamos algumas possibilidades, a fim de compreender a sociologia como um sistema de regras de saber social, mas logicamente arquitetado: a) Sistema lógico de regras sociais; b) Sistema de regras lógicas vigentes; c) Sistema de saber lógico; d) Sistema de regras de saber lógico. Aplicando-se este sentido ao direito e à política, especialmente com Carl Schmitt, leitor e intérprete de Weber e da concepção de que o Estado (Moderno) exerce o monopólio legítimo da força física (violência), temos que o Poder Político é uma construção racional e que deve se verter em poder do controle social. Pela nomologia de Max Weber, o Estado não é um estrato porque segue governado por uma parte, um estrato social, como estratocracia, mas sim porque uma parte pode administrar como se fosse o todo. O Estado não precisa se converter em estratocracia para se qualificar como soberano ou mesmo como estrato: “O Estado é a soberania. No entanto, a soberania só reina sobre aquilo que ela é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente [...] o Estado de fato é o devir da razão [...] O nomos é a consciência de um conjunto fluído: é nesse sentido que ele se opõe à lei, ou à polis, como o interior, um flanco de montanha ou a extensão vaga em torno de uma cidade (“ou bem nomos ou bem pólis)89” (Deleuze, 2005, p. 23). Apascentar como administrar o todo, sendo uma parte, mas como se fosse o todo-representado e sem sucumbir às tentações de desviar o todo aos interesses da parte empoderada. Aliás, empoderamento implica em ação coletiva de poder. É, portanto, no sentido expresso em que se associa política e força física (virilidade, em Maquiavel) que se constituirá o Nomos da Terra, como princípio ordenador do direito que sustenta e legitima o poder soberano do Estado Moderno. Nem o Estado, nem a lei violam a origem natural, nacional, racional em que se constituiu o poder – afinal, sempre teremos a famosa tríade de Povo + Território (Nomos) = Soberania (Logos). A principal lei nos diz que o homem é sociável, portanto, toda lei que não violar este sentido natural à sociabilidade (Nomos) será lógica (Logos). Se o Estado é uma consequência desta regra, como escolha racional para melhor administrar os próprios meios de socialização, então, toda lei (lex) perpetrada pelo aparelho estatal (polis) será equivalente, em princípio, ao Nomos, como urstaat (o Estado de Origem, primordial, porque na origem está a sociabilidade). Por fim, trata-se de um Estado Primordial, essencial, porque sua função é manter as bases de sociabilidade elevadas, uma vez que, ele Estado já decorre dessa lei, como contrato global em que se erige um poder para tratar exatamente dos meios para arregimentar membros à obra social coletiva que corresponda à necessidade da socialização. O memorial do Estado traz uma história em comum; como legado da vida comum do homem médio, não há como dissolvê-los pois são um só90. 88 A Humanidade tem regras inerentes, imanentes, lógicas que desembocariam na escolha e no desenvolvimento racional da forma-Estado. 89 Depois, na nota 44: “Apascentar (nemô) não remete a partilhar, mas a dispor aqui e ali, distribuir os animais. Somente a partir de Sólon, Nomos vai designar o princípio das leis e do direito (Thesmoi e Dike), para depois ser identificado às próprias leis. Numa época anterior, há antes uma alternativa entre a cidade, ou polis, regida pelas leis, e os arredores como lugar do nomos [...] nomos não é cidade, mas campo pré-urbano, platô, estepe, montanha ou deserto” (Deleuze, 2005, p. 52). 90 “Os Estados sempre têm a mesma composição; se há uma verdade na filosofia política de Hegel, é que ‘todo Estado contém em si os momentos essenciais de sua existência” (Deleuze, 2005. p. 58). O que é essencial ao Estado é essencial a seu povo, o que é logos em uma ponta é nomos na outra. 102 O Nomos é a soberania (absolutista) que se enraiza Entre os séculos XVI e XIX, há formação e declínio do que se denominou de "época interestatal do direito internacional". O resultado teórico e histórico do originário Estado-Nação, caminho igualmente percorrido pelo Estado Moderno, foi uma enorme concentração de poderes – um tipo de absolutismo institucional denominado de Estado de Polícia. Tratava-se de uma estrutura de Estado policialesca em que se vigiava não só a soberania, a vida pública, mas, sobretudo, a moral privada. Certamente, um germe do Estado Totalitário que vimos surgir no século XX na Europa. Trata-se de uma expressão criada pela historiografia indicando um fenômeno histórico e político preciso, circunstanciado e remonta aos historiadores constitucionais alemães da metade do século XIX. Já a origem epistemológica da palavra “polícia” vem do termo grego “politeia91” e do latim tardo-medieval “politia”92. Para Aristóteles, “politeia” significava a sua Constituição e para Santo Tomás de Aquino, o ordenamento global da vida humana. A importância operativa e sistêmica do termo polícia, pela ação estatal, só foi aparecer nos Estados da Renascença, na Itália e, principalmente, na França, no Ducado de Borgonha — momento em que a expressão implicava claros fins políticos e cumprimento dos deveres públicos e cívicos dos súditos. Da Borgonha passa para a Alemanha, obtendo aí difusão e grande sucesso, mas já não tinha mais a intenção de segurança na esfera pública: Foi radicalmente diverso o papel desempenhado pela Polizei nos territórios alemães. Aqui ela tornou-se o instrumento de que se serviu o príncipe territorial para impor sua própria presença e autoridade contra as forças tradicionais da sociedade imperial [...] Na transição de uma estrutura constitucional formada tipicamente “por castas”, como a imperial do século XVI, para uma organização do poder concentrado em cada um dos Estados territoriais, como se verificou em alguns dos territórios alemães durante o século XVII, é fácil entender que o problema central para o príncipe territorial, que se apresentava historicamente como fulcro dessa passagem, fosse o da necessidade de criar para si um espaço autônomo, uma esfera soberana própria, tanto em relação ascendente como descendente (Bobbio, 2000). Estado de Polícia, então, corresponde ao Estado Absoluto, controlado e regulado por leis, e mesmo que não sejam leis formuladas como expressão tácita da soberania popular. De qualquer forma serão leis, com preceito claro de que deverão ser cumpridas e mesmo que não sejam leis promulgadas, como entendemos atualmente. Vejamos mais uma vez como se deram as sucessivas passagens do Estado Medieval em Estado Moderno e deste para o Estado Absoluto (às margens do capitalismo efervescente): A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma situação de divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos dos privilégios feudais) para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade de vínculos ao poder (ainda que na diversidade de direitos e deveres) [...] Sobretudo no século XVIII, a lei prevalece sobre o costume como fonte do Direito e esboça-se o movimento de codificação, reforça91 Como Constituição de direitos representativos de uma polis ou instrumento organizador das leis e dos fundamentos constitutivos dessa polis. 92 Muitas polícias são ainda chamadas de politia. 103 se a justiça, consolida-se a função pública, criam-se exércitos nacionais e o Estado intervém em alguns setores até aí ignorados da cultura, da economia e da assistência social. Incrementa-se, entretanto, o capitalismo, primeiro comercial, depois industrial, e a burguesia revela-se o setor mais dinâmico da sociedade (Miranda, 2002, 44). De certa forma, poderíamos chamar a isto de constitucionalização do Estado Moderno, ou de uma segunda fase do Estado Moderno (Estado Absoluto). Nesta fase, começa a ser erigida a concepção política de que o poder político do soberano deveria ser regulado. Porém, dadas as novas forças econômicas insurgentes (propriamente capitalistas), o Estado de Polícia acabou por se caracterizar como um Estado Absoluto impuro, ao mesmo tempo mais organizado, mas, mais flexível, menos-radical, mais-heterodoxo93. Não é à toa que se pensa esse processo político e econômico a partir do século XVII, depois da centralização de muitos Estados europeus, e quando já se encontravam em plena acumulação primitiva, expansão marítima e colonização, baseadas na extração de riquezas de outros povos e continentes. Tanto o mercado produtor (as colônias) quanto o mercado consumidor (a Europa) precisavam ser regulados, a fim de que se contivesse o processo de pilhagem e as guerras continentais. A esta altura, o domínio marítimo já fora melhor estabelecido e pouco tempo depois a Primeira Revolução Industrial revelaria toda a potência que vinha sendo gestada pela burguesia. Portanto, talvez esta fase final do absolutismo (segunda fase do Estado Moderno) pudesse ser apelidada de constitucionalização do capital. Mas, a Terra, literalmente, seria aberta à exploração e também por isso Bacon irá dizer que Saber é Poder, aquele conhecimento que explora as raízes mais profundas das substancias, dos recursos humanos. Em uma palavra: natureza. A tecnologia permitiria ao homem reencontrar a Terra, ressignificar a natureza, retomar a continuação da nomologia. O Nomos da Terra O Homem do Renascimento tomou para si a natureza, mas pela primeira vez assenhoreou-se da Terra, de todo o globo, inspecionando seus esconderijos. Esta era a base cognitiva de seu direito natural. No Renascimento, por Nomos, trata-se de um "direito da origem" e o estabelecimento de uma "ordem concreta”. A ideia de nomos tem um caráter espacial94, fundacional. Não se limita à ideia de lei, pois se trata de: "ato originário que funda o direito [rechtbegründenden Ur-Aktes]’ (NE, 16). Esse ato de fundação se apresentaria sob a forma da ordenação de um espaço específico. Mais precisamente, trata-se de ‘um ato de ordenação e de localização, constituinte e espacialmente concreto" (NE, 47)95. Como ato originário que funda o direito, o Nomos interliga direito e espaço. É a medida que funda os demais critérios de medida subsequentes. O Nomos da Terra, como direito internacional, é o princípio fundamental de distribuição do espaço na Terra (o que, certamente, remete à soberania, como forma assegurada, pacientada de se ocupar e sedimentar o Poder em determinado território: de forma unívoca, inequívoca). Nomos da Terra é constituição e parcelamento de terra e sua ordenação fundamental. Se é certo que se trata da delimitação territorial, como referencial do Povo, é igualmente correto pensar que o Renascimento 93 Já sabemos que o Nomos é visceral, radical por definição, pois é lógico o poder que não abdica de suas instituições, é legítimo o Poder Político que contempla suas fundações, que se “enraíza” na motivação originária, que volta ás raízes. 94 O que indica, razoavelmente, a possibilidade de fixação do território, na conhecida trilogia de Povo, Território e Soberania. 95 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2008000200004. 104 redistribuiu a Terra, de acordo com o direito de soberania dos Estados Absolutos. É como se dissesse que a colonização fosse autorizada pelos critérios fundacionais do Nomos da Terra. Outra conclusão lógica é que o Estado Absoluto autoriza um poder absoluto – até mesmo porque não há soberania que não seja absoluta. O poder de exceção, portanto, seria um tipo de redundância, uma vez que não se tem exceção (tudo será regra) onde o Estado detém o monopólio legislativo sobre o uso da força. Ou, mais especificamente, porque o Estado age em nome de um sentido e significa maiores: a autoconservação do povo no território delimitado (Nomos soberano). Assim, o Estado Absoluto surgiu como um constructo: construção racional e nacional. O Estado é esta clara aliança entre Logos e Nomos, num claro processo de desencantamento do mundo em que se articulam política, linguagem e direito96. Por isso, para Hobbes, Weber e Carl Schmitt, o Leviatã é o guardião da liberdade, do direito natural que deve legitimar toda forma de controle social necessária à contenção do povo em seu determinado território e como salvaguarda contra ações externas. O Estado Moderno soube capitalizar o Nomos, legitimando a exploração (interna e externa) a colonização como se derivassem de um direito atávico. 96 O que agrada ao soberano tem força de lei. O Leviatã é o “medo construído” e o Absolutismo aparece como uma teoria do direito à opressão da liberdade natural para se constituir em liberdade civil. Só há legitimidade onde há soberania estatal e esta vela pela “segurança” da vida civil (uma das promessas do Estado Moderno descumpridas na atualidade). 105 A ARQUITETURA DO ESTADO MODERNO As Pontes dos séculos XVIII e XIX97 são fortificações ou pontes-Estado. O Estado Moderno ao mesmo tempo em que atrai com força centrípeta, aproximando distâncias entre indivíduos e Estados, mantem-se seguro, a uma distância segura, calculada. Em todo caso, são pontes que transpuseram os obstáculos da modernidade. Ao mesmo tempo em que se aprofunda, em busca de um sentido que religue duas realidades, localidades separadas, indivíduos e individualidades distantes, a ponte se espraia em direção ao horizonte. Por isso, é uma típica ponte-Estado do século XVIII. Que segredos estariam guardados nos subterrâneos da Razão de Estado? Abaixo, esta segunda ponte se apresenta pronta para a Guerra, mas também é a casa da política e da administração, religando-se o poder temporal com o poder religioso (como se vê na imagem da catedral no lado direito da foto). Já os arcos desta terceira ponte, abaixo, revelam força e beleza, ou melhor, a beleza da força. Dá-nos a ideia de que o Estado é uma construção sublime, arquitetado para religar como poder mágico. É um Estado místico, religioso, quer seja como relegere, quando podemos reler as escrituras políticas, quer seja como religare, religando-se laços de solidariedade inerentes à Razão de Estado: o imposto é suportado porque religa as pessoas nos que têm de essencial; 97 A análise das pontes do século XVIII é de Anne Querrien, socióloga e urbanista francesa, e é citada por Deleuze (2005). 106 pagamos o Estado para que esteja do nosso lado. Este conjunto legitimaria a solidariedade imposta pelo Estado e, por isso, o Estado Laico precisa criar suas próprias crenças, a começar da crença na sua força irresistível, como ponte-Estado, entre Estado-soberano e seres domesticados pela política. O preço para pertencer à Polis é perder a autonomia e assim não transpor os arcos do triunfo político com consciência política. Pode-se participar da Polis, com consciência, mas desde que a consciência não seja tanta que leve à crítica ao Estado. Especificamente, os Arcos do Triunfo foram construídos por Napoleão, em Paris, entre 1806 e 1836. A arquitetura do poder, entretanto, não seria uma homenagem ao general, mas sim o triunfo do próprio Estado, uma vez que o Estado Moderno surgiu com a derrocada de Napoleão Bonaparte. Por esta lógica, conclui Hegel, o Estado de Napoleão sintetizava a realização da razão (Châtelet. 1993). Em parte, esta superação pode ser vista na substituição dos exércitos de mercenários de Napoleão Bonaparte (os decembristas) por exércitos regulares e, obviamente, pelo soterramento da ideia de Imperialismo, simplesmente, porque o Estado Moderno requer soberania interna e externa. O chamado lumpemproletariado teve papel decisivo na Revolução Francesa de 1789, como seguidores de Hobbes – uma gente decisiva e decidida a não-perder o acesso à história. Os netos e bisnetos desses sujeitos voltaram a ser invocados, como mercenários, por Napoleão Bonaparte (1769-1821). Chamados de decembristas, formavam fileiras com milhares de soldados-mercenários. Nas revoluções operárias de 1848, na Europa, o lumpem esteve aliado ao proletariado, bem como Comuna de Paris (1871), considerado o primeiro governo popular da história. É evidente que esta instabilidade ideológica não serviria aos esforços de dominação do Estado Moderno e também porque o Estado Moderno precisava se afirmar como base de um novo mundo de significados políticos: “A centralização do Estado, de que necessita a sociedade moderna, só surge das ruínas da máquina governamental burocrático-militar forjada em oposição ao feudalismo” (Marx, 1978, p. 122 – grifos nossos). Institucionalmente, o Estado Moderno precisava ser apresentado como “obra política bem acabada”, como um conjunto de institutos e instituições de apoio. Contudo, como projeto constitucional, o Estado Moderno se afirmaria na Revolução Francesa: A liberdade, a igualdade, a justiça são os princípios necessários daquilo que não é depravado; todas as convenções repousam sobre elas como o mar sobre sua base e contra suas margens [...] na França não há poder, falando sensatamente; só as leis comandam, seus ministros impõem-se a obrigação de prestar contas uns aos outros e todos juntos à opinião, que é o espírito dos princípios [...] Os poderes devem ser moderados, as leis 107 implacáveis, os princípios irreversíveis98. A opinião é a consequência e a depositária dos princípios. Em todas as coisas o princípio e o fim se tocam onde estão prestes a se dissolver. Há uma diferença entre o espírito público e a opinião: o primeiro é formado pelas relações de constituição ou da ordem, e a opinião é formada pelo espírito público (Saint-Just, 1989, p. 50, 51, 52). Historicamente, no entanto, esta lógica política se construiu com Hobbes. O filósofo inglês é um pensador do período clássico do Renascimento e, em certo sentido, é um homem do seu tempo – ao depositar, por exemplo, as esperanças de construir o poder com base na razão. (O Estado Moderno seria um projeto da razão). Se o homem é o lobo do homem, somente uma razão superior poderá alquebrar a inclinação para a ofensa do direito e esta razão (ou reta razão) é a soberania. Portanto, o contrato social deve seguir as orientações desta mesma razão como indicador da construção da paz social. Porém, o contrato social de Hobbes não se compadece em direito criminal e não pode ser abonado como justificativa do uso abusivo do poder (Mészáros, 2002, p. 123-5 – grifos nossos). O Estado Moderno precisa(va) atrair amigos (força centrípeta) e repelir inimigos (centrifugação). Nesse sentido, a tradição da própria Teoria Política identifica na violência o eixo da correlação entre os oponentes do Estado – uma relação facilmente justificável, se pensarmos que o Estado Moderno é fruto da razão. Neste sentido, a mesma ponte da política religa ou repele. Uma caracterização precisa é fornecida pelo Dicionário de Política (organizado por Norberto Bobbio) sobre o conceito de POLÍTICA, em seu 6 sub item, intitulado "A POLÍTICA COMO RELAÇÃO AMIGO-INIMIGO": __ Entre as mais conhecidas e discutidas definições de Política, conta-se a de Carl Schmitt99 (retomada e desenvolvida por Julien Freund), segundo a qual a esfera da Política coincide com a da relação amigoinimigo [...] Para dar maior força à sua definição, baseada numa oposição fundamental, amigo-inimigo, Schmitt a compara às definições de moral, de arte, etc, fundadas também em oposições fundamentais, como bommau, belo-feio, etc. [...] Logo se nota que o elemento distintivo está em que se trata de conflitos que, em última instância, só podem ser resolvidos pela força ou justificam, pelo menos, o uso da força pelos contendores para por fim à luta [...] são os conflitos em que, confrontados os contendores como inimigos, a vita mea é a mors tua (1993, p. 959-60). Esse traço de violência permanente na política se deve ao fato dos conflitos não serem resolvidos de forma definitiva, apresentando apenas momentos de tréguas passageiras, armistícios. Bobbio (em O futuro da democracia) é sintético: “A vida política se desenvolve através de conflitos jamais resolvidos em definitivo, e cuja resolução acontece mediante acordos 98 A liberdade, a igualdade, a justiça formam o tripé dos Direitos Humanos. Bobbio (em O futuro da democracia) ressalta que Carl Schmitt acabou se envolvendo em uma intensa polêmica antidemocrática (1986, p. 134) e continua na crítica (em Direita e esquerda), afirmando que Schmitt é um representante da “direita reacionária leiga” (1995, p. 77). Além do que, Bobbio critica no autor a “indébita violação ou contaminação de planos diversos, com as duplas verdadeiro-falso, belo-feio, etc.”, na comparação da dupla “amigo-inimigo” na definição de política (1995, p. 75). 99 108 momentâneos, tréguas e esses tratados de paz mais duradouros que são as constituições”100 (1986, p. 132). Mesmo os períodos de armistício, suspensão temporária do estado de guerra, não são suficientes para solucionar ou “eliminar” a violência reinante na política, sem que haja uma total eliminação das “reservas secretas” ou interesses exclusivos e particularizados, porque nesse estado apenas se prepara outra guerra. O Estado Moderno é uma arquitetura da razão e deveria ser visto como pacificador, mas, por pela razão simples de não servir a todos do mesmo modo e de modo suficiente, a relação com o poder estatal cria e recria adversidades e adversários. Na verdade o Estado como um todo é um produto do querer humano, ou seja, de sua razão aplicada à política e isto fortalece este “querer” que o Estado Moderno atuasse equilibradamente em relação a todos – o que não é possível. 100 Como justificativa para essa interpretação da violência e dos conflitos na política, Bobbio traça um paralelo com o surgimento do Estado, em que lados antagônicos se opunham continuamente: “Este contraste entre a figuração e a realidade pode ser bem exemplificado pela não coincidência entre a ininterrupta continuidade do conflito secular, típico da idade moderna, que opõe camadas e monarca, parlamentos e coroa, e a doutrina do estado, baseada sobre o conceito de soberania, de unidade de poder, de primado do poder legislativo, e que vai sendo elaborada naquele mesmo período de tempo por obra dos escritores políticos e de direito público, de Bodin a Rousseau, de Hobbes a Hegel” (1986, p. 132). 109 PRINCÍPIOS DO ESTADO MODERNO (contemporaneidade) Antes da crítica necessária ao Estado Moderno, e buscando a didática, pensemos num tipo de “Estado Funcional”, agora baseando-nos nas sugestões que muitos doutrinadores constitucionalistas apresentam acerca destas características e funções institucionais. As funções, nós sabemos, vêm da clássica separação dos poderes e sintetizam-se assim: 1) legislativa: lembremos que, além de editar as normas de Direito, o Poder Legislativo também deve fiscalizar o executivo; 2) administrativa: veja-se que o executivo, utilizando-se do sistema de freios e contrapesos, também pode propor projetos de lei – invocando a necessidade de agilizar os trabalhos de um legislativo moroso; 3) judiciária: vamos gravar que este deveria ser o mais equilibrado dos três poderes, mas que sofre a pena das ingerências do Executivo, sobretudo com as nomeações dos juízes do Supremo Tribunal Federal. Mas como é que o legislativo pode permitir a mutação das medidas provisórias em condição permanente – será recebendo verbas suplementares? Quanto ao executivo, é certo que o Presidente da República indique seus próprios juízes? Ou seja, não é por acaso que o judiciário enfrenta tamanha pressão pela criação de um controle social externo. Nessa arenga do poder, é óbvio que não pode haver tantas trocas de favores, pois um Estado não pode funcionar nessa base: seus beneficiários imediatos acabam digladiando-se, sobretudo quando veem minguar as rações e sem que haja possibilidade de satisfazer a volúpia dos mais fortes ou dos mais violentos. Já as características podem assim ser resumidas: a) complexidade: enorme emaranhado e multiplicidade de atos e funções de significado público (centralização, distribuição, controle e articulação de funções e órgãos públicos); b) institucionalização: racionalização ou “constitucionalização da política” e da administração, visando à consecução da gestão pública (de outro modo, dir-se-ia burocratização e multiplicação exagerada da ação normativa)101. Tratase ainda da dissociação entre a pessoa, a chefia, a autoridade e o poder que exerce; c) racionalização: fundamentação do poder no direito, permanência, continuidade e qualificação do poder como ofício e não como dominação pessoal (uso do poder para fins públicos); d) coercibilidade: sintetiza a capacidade jurídica da soberania em garantir o monopólio da força física. O Estado procura organizar a segurança pública dos indivíduos e das instituições, monopolizando o uso da força (vimos como se transforma no Estado Grande-Irmão que lê, ilegalmente, até e-mail das pessoas); e) autonomia: para a defesa, integração e direção da sociedade, as instituições especializadas (burocracia) adquirem autonomia dentro dos limites da lei (discricionariedade). O Estado organiza a burocracia e a administração pública para o seu próprio gerenciamento e isso necessita de uma maior margem de autonomia para estas instituições (mas, por que no Estado Empresa não há liberdade ou participação popular?); f) continuidade: a sedentariedade dos agrupamentos humanos estimulou a permanência ou durabilidade das próprias instituições – diz-se que há permanência do poder político porque há continuidade na relação espaço/tempo, relacionando sedentariedade e soberania; g) previsibilidade: se há constância na observação das instituições e dos feitos públicos, ocorre uma previsão coletiva de que no futuro próximo não deve haver mudanças radicais; h) mitologia e Nomos da Terra: a mística do Bem Público alimenta o Mito do Estado; i) território: delimita a sede material do poder. No território é que se materializa a Nação, transformando-se o nomos 101 Lembremos que os Estados de traço ou ranço nazi-fascista promovem um processo de aculturação baseado no culto à personalidade, que é exatamente a indissociação entre a personalidade pública (o governante) e o cargo que ocupa ou função que exerce. Há uma sobreposição do primeiro sobre o segundo, isto é, a negação veemente desta característica democrática. 110 em logos, pois o território estipula a permanência do Poder Político (como local de interação social, conserva a identidade do povo; j) desenvolvimento: o Estado pode reconhecer seu desenvolvimento de formas distintas e isto inclui a regressa institucional. Pode ser de modo isolado, oposto ou interdependente. Isolando-se, temos o exemplo do Mediterrâneo, oposto é o tipo de Estado islâmico e da Europa Cristã, por fim, como interdependente, há o exemplo da Colonização, uma vez que não há Colônia sem Metrópole. O Estado Constitucional também se patenteou como Estado de Direito, mas sob a forma jurídica de que, além de uma estrutura de Direito Constitucional (com ou sem Constituição formal e escrita), seriam reconhecidos direitos fundamentais. De lá para cá, as regras básicas do jogo democrático são as seguintes: “...regras estas que se caracterizam pela rotatividade do poder, pelo sufrágio universal, pelo respeito às decisões da maioria, pela defesa dos direitos da minoria...” (Bobbio, 1986, p. 32). De forma extensiva, o Princípio Democrático deve ser analisado sob o prisma da eletividade, rotatividade, responsabilidade, transparência, tolerância, publicidade, referendo e participação popular. Uma forma simples de visualizarmos a ciência do direito como teoria social é pensar que o Estado de Direito nada mais é do que uma construção jurídica que deve modelar o poder público, atribuindo responsabilidades ao próprio Estado. Todavia, a ciência do direito, como perspectiva científica mais elaborada, mais de acordo às sociedades diversificadas, complexas – em que há transbordam as contradições, constrições e em que as dilações sociais colocam-nos desafios, obrigações, responsabilidades individuais e coletivas além das previsões otimistas (quando ingênuas) e positivistas: quando se tem no direito posto a resposta pronta ao inusitado. Para tanto, é preciso estabelecer o entendimento inicial para um ideário de ciência, direito, sociedade, modernidade, ciência do direito, complexidade, regularidade x inusitado. Na fase atual do Estado Moderno, temos de associar os elementos fundamentais que estão presentes na República, Democracia e Federação: 1. República e Federação: Predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade; legitimidade; salus publica - saneamento da estrutura do Estado (contas públicas) implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo. 2. Sociedade Democrática: Democracia Política – como vimos com Bobbio (1986) trata-se da formalização e defesa das “regras do jogo”: a) predomínio da vontade da maioria, b) defesa das minorias, c) alternância no poder, d) sufrágio universal (coincide com uma dimensão do Princípio Democrático). — legalidade democrática ampliada: deferência e consentimento à autoridade, e não autoritarismo ou simples culto ao poder. 3. Socialismo Democrático: Trata-se de uma forma de governo e de gestão da economia em que vige a Democracia Econômica, e em que imperam determinados elementos sociais, jurídicos e políticos com força imperiosa, tais como: constitucionalização dos direitos difusos e coletivos; inclusão social; distribuição de renda; socialização do consumo; socialização progressiva dos meios de produção (nacionalização e estatização do capital estrangeiro – diminuição do controle patronal sobre o fluxo econômico); socialização da renda da terra e/ou do lucro das empresas; respeito aos direitos e interesses dos trabalhadores; poder popular; mobilidade e dinamismo social; elevação dos níveis de consciência pública (do 111 egoísmo ao social, do privado ao público, do indivíduo à cidadania) – maturidade/embasamento lógico-racional da crítica social. Para reafirmar esta teoria, a CF/88 excluiu a possibilidade de revisão constitucional, por meio de emendas constitucionais das seguintes prerrogativas: a) Federação; b) separação dos poderes; c) princípio democrático; d) direitos individuais. Outra análise decorrente do Estado Moderno segue a seguinte lógica: A articulação do Estado, aliada aos imperativos metabólicos mais internos do capital, significa simultaneamente a transformação das forças centrífugas disruptivas num sistema irrestringível de unidades produtivas, sistema possuidor de uma estrutura de comando viável dentro dos tais microcosmos reprodutivos e também fora de suas fronteiras [...] Portanto, enquanto se puder manter tal dinâmica expansionista, não há necessidade do Leviatã hobbesiano [...] É assim que se redefine de maneira viável o significado do bellum omnium contra omnes hobbesiano no sistema do capital, presumindo-se que não haja limites para a expansão global [...] O Estado moderno – na qualidade de sistema de comando político abrangente do capital – é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global. Neste sentido fundamental, o Estado – em razão de seu papel constitutivo e permanentemente sustentador – deve ser entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele contribui de modo significativo não apenas para a formação e a consolidação de todas as grandes estruturas reprodutivas da sociedade, mas também para seu funcionamento ininterrupto (Mészáros, 2002, pp. 123-5 – grifos nossos). É inegável a existência dos princípios norteadores do Estado Moderno, da sua formação histórica até os dias atuais, no entanto, é preciso pensar se realmente são princípios norteadores de um pensamento republicano ou se restam prisioneiros por interesses não confessáveis. Para esta análise, tomemos apenas o exemplo do desenvolvimento tecnológico e econômico, tal qual previsto no inciso XXVII, do art. 7º da CF/88: proteção em face da automação, na forma da lei. Desse ponto de vista, a regulamentação do processo de automação deveria prever alguns pontos102: a) Fornecimento de informação prévia por parte da empresa dos seus projetos de automação: A lei deve proteger o trabalhador dos efeitos negativos da automação e deve obrigar à informação prévia por parte da empresa ao respectivo sindicato dos trabalhadores quanto aos projetos substitutivos de tecnologia. b) Estabelecimento de “hierarquia de natureza social” nos projetos de automação das empresas. Deve-se estabelecer “hierarquia de interesse social” no processo de automação, de modo a obrigar as empresas a iniciarem processos de automação pelos setores de maior penosidade, periculosidade e insalubridade. 102 Disponivel em http://www.ambito-jjuridico.com.br/pdfsGerados/artigos/4831. 112 c) Determinação da negociação coletiva: O ideal é que a automação seja resultado da negociação entre a empresa e o Sindicato representativo dos trabalhadores da empresa. d) Controle do ritmo do trabalho: Um dos efeitos mais claros do processo de automação para os trabalhadores que permanecem na empresa é o aumento do ritmo de trabalho, com fortes efeitos negativos em termos da saúde e segurança no trabalho. e) Plano de Demissão Voluntária: É importante que a futura regulamentação da automação determine a obrigatoriedade da fixação de Planos de Demissão Voluntária (PDV) e dos critérios que deveriam nortear estes planos. f) Obrigatoriedade de contratação dos trabalhadores destinados às centrais coletivas de reciclagem e realocação de mão-de-obra: O artigo 2º do PL de Fernando Henrique (o Projeto de Lei Nº 2.902, de 1992) diz: “Os Sindicatos das categorias econômica e profissional, mediante convenção coletiva de trabalho em comum acordo, manterão Centrais Coletivas de Reciclagem e Realocação de Mão-de-Obra...”. Contudo, a futura regulamentação deveria prever também, mas não o faz, que a empresa tem a obrigação de contratar prioritariamente os trabalhadores enviados para os Centros de Requalificação. g) Contribuição obrigatória da empresa que automatiza ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT): cobrança de um determinado percentual sobre o último salário do trabalhador, que será pago pela empresa e destinado ao FAT. h) Nos setores intensivos em mão-de-obra, os encargos relativos ao sistema deverão ser transferidos da folha de salários para o faturamento (valor adicionado). O objetivo desta medida é tornar a contratação de mão-de-obra economicamente mais competitiva que sua substituição por máquinas e equipamentos. i) Ampliação das parcelas do seguro desemprego para os trabalhadores atingidos pela automação. j) Penalização às empresas que descumprirem a lei. A melhor penalização seria a obrigatoriedade da reintegração dos trabalhadores atingidos pela automação. l) Impedimento temporário da automação por força maior: a regulamentação deve delegar ao poder executivo o poder de decretar o impedimento temporário da automação em determinada atividade econômica por força maior, decorrente de crise econômica e dos impactos sociais por ela gerados. A automação é um fenômeno do mundo contemporâneo, tem transformado os processos produtivos em todos os setores da economia: indústria, comércio, serviços, agricultura, pecuária, extração mineral e vegetal. Em parte porque é um processo irreversível, a automação deve ser alvo de nossa reflexão e crítica social. Em todo caso, como gravame social, além da desarticulação das garantias do mundo do trabalho, pode-se afirmar que o direito que não se submete à ciência é mera manifestação do poder – livrando-se, por exemplo, da história e do movimento instaurador da luta social. O direito sem luta não existe, a não ser como ideologia – na forma da negação da ciência. Colocase, portanto, inicialmente, a reversão do entendimento do direito como controle social, a serviço das sociedades controlativas, a exemplo das iniciativas instauradas pelo Estado Penal. Outro fator que ameaça a integridade do Poder Político, se tomamos a soberania popular por base, é a apatia e o inegável desinteresse pela política. Forçosamente Cidadão É possível ou positivo forçar alguém a realizar alguma coisa, ainda mais se for contra sua vontade ou se contrariar seu estado de inércia, ou seja, a natural vocação de nada-fazer? O corpo 113 em repouso tende a permanecer em repouso; se nada for feito, se nenhuma força agir a fim de que se movimente, pela lei da inércia, não há indicação de que possa se colocar em ação. Esta lei da física é uma das que se aplica, metaforicamente, à análise social e à compreensão da qualidade da cidadania. A outra lei da física clássica bem aplicada à realidade social, especialmente a realidade brasileira, é a entropia. Por esta dedução, o corpo em repouso não produz entropia – ou pouco afeta o seu movimento. No caso da sociedade brasileira, os corpos em repouso são os nossos, nós, os cidadãos de bem. Mas, ao contrário, a entropia, a confusão, o caos social são formados, forçados por aqueles que querem privatizar, se apossar do que é público, de tudo o que o povo outrora era o verdadeiro proprietário. Uma conclusão possível, ainda que nem tão positivista, mas lógica, é de que o cidadão do sofá, o cara, a pessoa que acessa o mundo real unicamente pela TV – mudando de canal toda vez que sua consciência é afrontada – deve, urgentemente, movimentar-se para mudar a qualidade das relações humanas ao seu redor. Sem isto não há como mudar a qualidade da política. Sem que o cidadão do sofá saia de sua zona de conforto, sem que se sinta a indignação diante do malfeito, não há sociedade que se organize para ser menos caótica e problemática. Nossos problemas, como cidadãos ativos, são os mesmos problemas que se verificam na sociedade como um todo. Estamos todos interligados. Na verdade, o que sofremos como cidadãos decorre da quantidade de tempo que passamos no sofá, contemplando a vida lá fora. A chamada vida comum do homem médio, a vida da maioria esmagadora dos leitores desse texto, é marcada, quando não definida, por todos aqueles que detestam a política. Para a infelicidade geral, se não gostamos da política, há os que a adoram, que têm fascínio pelo poder. Infelizmente, para os que se sentam complacentes no sofá, há os que manipulam o mais famoso dos “analfabetos políticos”. Quem é esse sujeito? É o cidadão do sofá. Porque, ao contrário, da apatia e da inércia do passado, o cidadão do sofá ainda é antissocial, quase um cínico-social porque a vida “lá fora” pouco lhe interessa. O máximo de interação que conhece passa pela telinha e pelo plim-plim. A cidadania ao controle do zapping; depois do intervalo as considerações finais sobre o sentido da vida; o jogo democrático que se parece com um game; a vida pública no Brasil é um quase over-game; o cínico-mentiroso retoca a maquiagem, emposta a voz como na locução de rádio e ainda pinta as unhas das mãos para fechar sua aparição de caras e bocas na TV. Então, neste caso específico, em que a inércia de alguns provoca o mal-estar global, não é legítimo que se force o indivíduo a se transformar em sujeito de direitos? Para deixar sua condição negativa, de não-ser-cidadão-efetivo, entretanto, o Estado não pode tudo sozinho. No Brasil, o Estado obriga ao voto, como direito-dever de exercício do poder, mas isto não é suficiente. Aliás, há algum tempo, a obrigatoriedade do voto tem levado a inúmeras distorções como a venda de votos e a contratação de cabos eleitorais mercenários, sem nenhuma identificação ideológica e partidária. Enfim, o cidadão desperto também precisa fazer seu papel, precisa acordar aquele amigo, companheira, familiar, conhecido que ainda não abandonou a comodidade do sofá ou que assiste a cidadania desfilar na tela plana ou de plasma. Quem está pasmo é o cidadão que não se conforma em ser plasmado pela inatividade. Ao contrário de apenas assistir, placidamente, a vida pública ser corrompida, é preciso ser testemunha da mudança de alguns, porque ainda que poucos, aos poucos, os cidadãos acordados serão muitos. Por isso, é preciso forçar a suposta liberdade dos que não-querem-ser, para que a dignidade de todos seja uma realidade. Equivale a forçar o cidadão a ser honesto. 114 DEFINIÇÃO JURÍDICA DE ESTADO Nossa concepção global é de que o Estado Moderno sofreu inúmeras transformações em suas bases e estruturas – a exemplo de que, inicialmente, a soberania era absoluta e, hodiernamente, receita-se a limitação jurídica ao poder –, porém, os elementos essenciais permanecem constantes. Os elementos que pouco ou nada se modificaram remetem à exigência de que não há Estado independente sem a identificação e o reconhecimento de que há um povo específico (auto referenciando-se), em determinado território, e com capacidade de se gerir com autonomia e soberania. Além disso, a definição jurídica do Estado, na atual fase em que se encontra o Estado Moderno, remete à autolimitação (pelo direito) e à heterolimitação da soberania interna pelo direito internacional (a exemplo da imposição dos chamados crimes contra a Humanidade). Entretanto, para avançar é necessário retomar algumas características do Estado nascente na modernidade clássica. Estado Moderno O Estado Moderno é devedor, em sua fórmula inicial, ao pensamento político-jurídico desenvolvido pelo filósofo inglês Thomas Hobbes. Para Hobbes, a soberania é uma construção política e decorre de longa formação histórica, decorrendo da necessidade de autoconservação e, por isso, não pode ser ameaçada pela tirania ou possibilidade do uso/abusivo do poder que ameace a paz social, arduamente conquistada. Em Hobbes, o contrato socio-jurídico não pode ser utilizado de modo reativo, vingativo, abusivo contra os interesses não-aceitos pelo governo tirano. Contudo, Hobbes escreve uma teoria absolutista da soberania, mas não uma autorização para o exercício absolutista, tirano do poder. Estado de Direito A teoria da autolimitação do poder, apesar de ser uma concepção teórica, tem de ligar com elementos jurídicos precisos e institutos controlativos claros e objetivos do poder. Como parte dos elementos que compõem a delimitação do poder, devemos citar os seguintes: coação + norma + obrigação bilateral. Sob a proteção das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º da CF/88) a forma federativa de Estado não pode ser abolida, pois que subsume-se aí outra fórmula de segurança democrática: democracia + Estado de Direito + Divisão dos Poderes. Se estendermos o pensamento jurídico para o lastro do Estado Democrático de Direito, então, deveremos salientar alguns elementos complementares: predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade; legitimidade; salus publica - saneamento da estrutura do Estado (contas públicas) implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo. Sob os auspícios do Estado de Direito se entenda que a autonomia e soberania serão condicionadas por autolimitação e heterolimitação. Esta capacidade jurídica que assegura ao Estado agir conforme claros preceitos jurídicos indica a necessidade de retomarmos as principais teorias da personalidade jurídica: a) teoria que somente reconhece como pessoa o homem e nega ao Estado a personalidade jurídica; b) teoria que só admite para o Estado a personalidade jurídica, mas lhe nega a essência de pessoa moral; c) teoria que reconhece o Estado como pessoa moral e jurídica; d) teoria que personifica também a nação (variante francesa) e define o Estado como a nação juridicamente organizada (Azevedo, 2009, p. 102). 115 O poder regulado, sem dúvida, significa que se reconhecem mutuamente, concomitantemente, o Poder Político e o Poder Jurídico. Nesta junção que seria, também, a congratulação entre legitimidade e legalidade. Em outras palavras: Poder legal é aquele apenas instituído por lei; poder legítimo é aquele que, instituído por lei, é jurídica e moralmente correto. Cumpre lembrar que legitimidade é a coincidência entre os anseios do povo com os objetivos do poder [...] O poder do Estado é, portanto, poder jurídico, sem perder seu caráter político [...] O Estado, entidade abstrata, ficção jurídica, faz sentir sua presença por meio dos agentes públicos (pessoas físicas) e por meio de pessoas jurídicas (Azevedo, 2009, p. 102-103). Por outro lado, se esta formalidade é essencial – até mesmo como capacidade de criação da ficção jurídica a que se condiciona o Estado –, é ainda mais preciso, sobretudo no pós-1945, que haja efetividade na defesa do direito democrático e no alargamento da visão intimista presente nos direitos individuais e no liberalismo e individualismo jurídico. Isto ainda reforça a necessidade de que competência e capacidade jurídica e política estejam muito esclarecidas e definidas – em termos de exercício e de manifestação do poder – quando tratamos da atualidade do Estado Moderno. O Estado manifesta a soberania também pela jurisdição e a competência é o instituto definidor do âmbito de exercício da atividade jurisdicional. Pela capacidade jurídica, lê-se que todo homem é capaz de direitos e de obrigações. Por competência, entende-se o poder jurídico atribuído pela pessoa jurídica a seus órgãos; é uma delimitação do raio de ação. Ou seja, ambas, referem-se à limitação da soberania política (restritiva ao Estado) e extensão da soberania jurídica (expansiva dos direitos, garantias, liberdades e também das responsabilidades). Também é uma forma de se entender a comunicação necessária entre poder legal e poder legítimo. Fundamentos do Direito e coletividade política Um dos pressupostos dos direitos coletivos é de que o direito de um se comunique ao direito dos demais, pois só assim se verifica a continuidade, a comunicação e a extensão de pressupostos jurídicos comuns à coletividade. Porém, inicialmente: A natureza das coisas, no entanto, determina que a preservação dos direitos individuais de todos condiciona a uma limitação recíproca os direitos individuais [...] Por outro lado, conjuga-se a esta doutrina que a regra de direito deve ser sempre a mesma em todos os tempos, em todas as nações e em todos os povos [...] Produto de longa elaboração, a doutrina individualista encontrou decisivamente sua forma precisa e acabada na “Declaração dos Direitos” de 1789: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” (Duguit, 2006, pp. 11-13). Para Duguit, a solidariedade ou interdependência é a capacidade humana por excelência (o homem é social por natureza e não devido a artifícios, como Contrato Social): A solidariedade humana pode absorver as solidariedades locais, regionais, ou nacionais, de forma que o homem possa se considerar um cidadão do mundo? É ainda possível realizar este anseio, considerando todas as guerras, discriminações e ferocidades que o ser humano vem praticando? Sim, porque os povos livres podem superar tudo isso (Duguit, 2006, p. 22). 116 Talvez a única observação que fizéssemos, como adendo a esta nota, é que as hordas, ao contrário das famílias e das cidades, é que haviam de lidar com a luta pela própria conservação, pela sobrevivência, como auto-conservação individual e/ou grupal. Mais ou menos como o estado bestial de Vico (1999). Já as cidades, Nações ou Estados (mesmo que na forma de IlhasNações), ver-se-iam imbricadas na Luta pela Autoconservação (Honneth, 2003), sem que ainda estivesse notadamente presente a intersubjetividade. É, em parte, o caminho sugerido por Rouanet ao tomar o Princípio Universal de Habermas para buscar amparo e legitimidade em temas que foram muito caros ao Iluminismo, tal qual ainda seriam hoje em dia: O indivíduo só existe em interação, mas essa interação pressupõe o reconhecimento da dignidade e da integridade de cada participante. O homem tem direitos como indivíduo, que não podem ser cancelados pelos direitos da comunidade. Entre esses direitos do homem como indivíduo, e não apenas como membro da comunidade, está o direito à auto-realização, segundo seu próprio estilo e sua própria concepção de felicidade [...] Quanto ao descentramento, a ética discursiva o redefine, expurgando-o de suas características individualistas. O descentramento se dá quando os indivíduos abandonam o mundo vivido e entram num processo de argumentação coletiva. Nesse momento, eles se situam em relação ao mundo vivido, numa perspectiva de excentricidade, de exterioridade [...] É toda uma comunidade argumentativa que rompe as relações espontâneas que seus membros mantinham entre si no mundo vivido e que assume uma postura judicativa e crítica com relação à sua própria sociedade [...] Coloquei o direito ao descentramento no cerne da moralidade iluminista, pois é ele que permite ao indivíduo completar sua psicogênise, acedendo ao estágio do pensamento crítico, e realizar plenamente a palavra de ordem kantiana — sapere aude — pensando por si mesmo, qualquer que seja a opinião de seu vizinho, da sua cidade ou de seu país (Rouanet, 2002, pp. 223-225). Este alinhamento de valores e de ações teriam o grande mérito de incutir o reconhecimento da intersubjetividade, da alteridade (descentramento) como itens permanentes da luta política pelo reconhecimento à inclusão. Na citação de Bobbio, o correto é que se observasse o Estado de um ponto de vista clássico, ou seja, como imperativo de poder social. Este é o eco que vem do passado constitucional dos próprios Estados: Qualquer contexto em que a consideremos; na horda primitiva, personificada num chefe ou grupo de anciãos; na cidade, com o chefe de família; nos grandes países modernos, considerada no conjunto mais ou menos complexo de grupos — príncipes, regentes, reis, imperadores, presidentes, parlamentos, etc. —, a autoridade sempre constitui um fato social da mesma ordem. Há diferença de grau, mas não de natureza (Duguit, 2006, p. 32). Assim, Estado é só uma diferença em termos de autoridade política, status, poder e comando, e não propriamente derivação da Pólis dos gregos clássicos, como ressonância da isonomia e da isegoria. Por outro lado, e parece claro a esta altura, na ausência do Estado ou sob 117 a ação da anarquia de comando do poder, o próprio Princípio da Autoridade Política pode estar subsumido, imiscuído pela mera arrogância de autoridade, em que se aceita com complacência uma grave confusão entre atitude de poder que não corresponde a nenhuma responsabilidade social. Além disso, vimos/vemos a deposição do novo e a reposição do antigo e esquecido, do pré-moderno, da conversão abissal de tradições sagradas e tradicionalismos irracionais; bate-se intensamente hoje com xenofobias, governos de exceção, movimentos multicores, mas reacionários, racistas, preconceituosos; vem desmantelando sistematicamente as redes e os sistemas públicos de proteção social. 118 LEIS DE FÁBRICA: não houve um Renascimento Jurídico O objetivo deste item é indicar que o Estado Moderno não promoveu um Renascimento Jurídico. Ainda que possamos falar de uma Renascença (nas artes), de um revigoramento do homem, de suas representações, de seu imaginário a partir do Direito à Educação e, é evidente, de um Renascimento Econômico e de suas forças produtivas, não houve um adensamento jurídico alternativo. Pois, juridicamente, o Renascimento foi apenas o antepasto da acumulação primitiva de capitais necessários ao livre desenvolvimento das revoluções nacionais (Estado Moderno) e da própria Segunda Revolução Industrial, um século à frente. As Leis de Cerceamento, parafraseando Marx, constituíram-se no primeiro “ato histórico-jurídico da burguesia”. A chamada Lei de Fábrica surgiu muito tempo depois (1833). Neste sentido, o Estado Moderno nasceria marcado pela luta de classes, como segurança jurídica do capital, expropriação e espoliação do camponês e não, como se pensa, em defesa da segurança do cidadão. Os marcos jurídicos do Estado Moderno, portanto, são regulados por direitos de classe e sua soberania representa a salvaguarda dos interesses da burguesia nacional. Como veremos, foram necessários cinco séculos de espera para ver alguma expressão jurídica de Justiça Social. Contudo, para melhor visualizar o que não foi feito juridicamente, em termos de desenvolvimento da própria “tecnologia jurídica”, veremos primeiro alguns impactos/reflexos da influente atividade econômica do mesmo período. Renascimento econômico Marx destacou que a servidão havia desaparecido da Inglaterra em fins do século XIV. Mas foi um longo processo de exploração/expropriação e “crescimento da economia para fora”, constituindo-se no próprio Renascimento Econômico: acumulação primitiva; empuxo e formação do Estado Moderno; navegações e descoberta de novos territórios e mercados que formaram a estirpe do mercantilismo, a partir do século XVII: Nos séculos XVI e XVII, a rápida expansão dos espaços econômicos, que teve por base a incorporação das novas massas territoriais ao sistema europeu pelas grandes descobertas, e a funcionalidade que esse processo adquiriu na economia mercantilista (exploração das riquezas coloniais, rápido crescimento do comércio etc.) favoreceram a acumulação primitiva de capital e facilitaram a estruturação do moderno Estado Nacional (Lessa, 2005, p. 58). Foi este o próprio circulo virtuoso que geraria, na outra ponta, a Segunda Revolução Industrial, com: forte/dinâmico sistema financeiro; modernização agrícola; competitividade no comércio de lã (sobretudo no mercado externo). Porém, como se viu, este ímpeto de crescimento, modernização e tecnificação produtiva é um resultado que foi plantado desde o século XV. Em seguida, como marco divisório, os Atos de Navegação (1651) corroboraram com a derrocada da supremacia marítima holandesa e em benefício da Inglaterra. Outro evento importante, decisivo desse processo virtuoso em que se encontrava o Renascimento Econômico, veio com a Revolução de 1688 ou Revolução Gloriosa — sucedendose à ditadura de Cromwell (1653-1658): favoreceu a ascensão burguesa; trouxe forma de controle político sobre a monarquia; gerou condições propícias a um novo ciclo virtuoso da economia; expansão do comércio; prosperidade agrícola; unificou o mercado nacional; houve hegemonia na exploração dos mares; grande aproveitamento dos recursos energéticos (carvão); 119 ênfase comercialista na política mercantilista; acumulação acelerada de capitais a fim de detonar o processo pioneiro dessa modalidade de industrialização emergente. Ao que se somaram outros efetivos, como: fechamento dos campos e transformação dos pequenos proprietários em trabalhadores livres; espírito empreendedor de boa parcela da sociedade inglesa da época; internalização das principais inovações tecnológicas nas atividades produtivas; abertura das primeiras linhas férreas e a invenção do barco a vapor. Além da incorporação de outras tecnologias: “No caso, a introdução dos teares movidos a vapor, em substituição aos teares manuais, juntamente com as máquinas para o processamento do algodão e com as fiandeiras, foram as inovações que deram início ao industrialismo moderno” (Lessa, 2005, pp. 60-61). O escoamento de tamanha manufatura foi possível graças ao intercâmbio comercial existente entre as colônias inglesas e com outras potências: A convergência singular dessas dinâmicas que se desenrolaram desde o século XVI na Inglaterra fez desse país o único na Europa com as condições políticas, econômicas e sociais necessárias ao desenvolvimento inicial da indústria e, portanto, do capitalismo industrial. Mas o aprofundamento da Revolução Industrial dar-se-ia com o alargamento das condições de oferta de recursos que até o final do século XVII eram escassos ou de manipulação excessivamente cara, como o ferro, cujos artefatos — especialmente as armas — eram demandados prioritariamente pelo Estado (Lessa, 2005, p. 61). Outras inovações foram a introdução da locomotiva a vapor e a edificação de estradas de ferro, mas a isto se somava a penúria, a miséria das populações expulsas de suas terras e casas, e de suas tradições. A reação a tudo, no entanto, não tardou nos grandes centros urbanos, levando à aparição de movimentos de reação à industrialização, ao surgimento de lideranças trabalhistas de um operariado de consciência crescente e auxiliado pelo nascimento dos movimentos de reivindicação socialista, já a partir de 1830. A correspondência no setor de serviços (“economia invisível”) indicaria índices elevados de crescimento, pois que era “a roldana que fazia girar o ciclo econômico” (Lessa, 2005, p. 64). A movimentação política e econômica deveria se fazer sentir em uma legislação inovadora, que associasse direito e garantia do trabalho, primeira conquista jurídica/trabalhista do trabalhador, como resultado de sua mobilização para enfrentar as agruras e severas intensidades de exploração do trabalho (incluso o trabalho infantil e de mães amamentando ou grávidas perto da “hora do parto”). Um destaque progressista em termos de convivência social que só apareceria com o Iluminismo. O não-renascimento jurídico Contudo, antes que o Século das Luzes fizesse suas promessas de liberdade e de maioridade, foram séculos de exploração à frente, com extensa e reiterada utilização de Leis de Cerceamento ou Cercamento: Além disso, desde o século XVI, acontecia na Inglaterra a substituição da pequena propriedade pela grande propriedade, imposta pelas leis de cercamento. Essas leis, estabelecidas pelos reis Tudor, acabavam com as extensões de terras abertas, utilizadas comunitariamente por camponeses, determinando o cercamento e venda desses campos. Com isso, cada vez mais formavam-se grandes propriedades que produziam mercadorias para o comércio e criavam ovelhas para o fornecimento de lã para a indústria 120 têxtil [...] Essas leis de cercamento forneceram, além de matérias-primas para a Revolução, mão de obra para as cidades, ou seja, para as manufaturas em expansão. Os camponeses, que perderam as terras comuns e eram até obrigados a vender suas terras, não tinham condições de viver no campo. Dirigiam-se então para as cidades, onde trabalhavam, em péssimas condições, nas futuras indústrias. Assim, a Inglaterra possuía mão de obra disponível para a Revolução103. Com leis abusivas e política repressiva como suporte, as táticas do cerceamento eram explicitamente negativas ao “direito consuetudinário” e exploradoras do campesinato, bem a serviço da acumulação de capitais e que “obrigavam” a conversão dos camponeses em mão-deobra barata para o trabalho industrial: O movimento dos cercamentos (enclosure), campos utilizados comunitariamente pelos camponeses livres, passaram a ser cercados pelos landlords: os latifundiários ingleses. Isto provocou um enorme êxodo rural e a formação do proletariado como exército industrial de reserva para alimentar o industrialismo nascente104. Neste primeiro momento, pode-se dizer que o industrialismo “libertou” os camponeses das amarras que o prendiam ao senhor feudal com a ajuda dos comerciantes e burgueses. Porém, em seguida, novos grilhões foram rapidamente preparados, pois a ordem econômica exigia muito mais acumulação do que já se vira até então. Portanto, o movimento econômico que gerou de início a "liberdade negativa” aos camponeses não teve por objetivo estendê-la até a isonomia e equidade. Em pleno Renascimento, portanto, as amarras da tradição começavam a se soltar, mas sob a ação de leis típicas de um Estado de Exceção: “Uma lei de 1533 constata que certos proprietários possuem 24.000 carneiros, impõe-lhes para limite a cifra de 2000105” (Marx, 1977, p. 25). A este curso se seguiu a finalização das propriedades comunais, por força de lei — Bills for enclosures for commons (Lei de cercamento das terras comuns): A propriedade comunal, inteiramente distinta da propriedade pública [...] era uma velha tradição germânica, conservada em vigor no seio da sociedade feudal [...] as violentas usurpações [...] começaram no último terço do século XV e se prolongaram para além do XVI [...] A forma parlamentar do roubo cometido sobre as comunas é de “leis sobre o fechamento das terras comunais” (Bills for enclosures for commons). São, na realidade, decretos por meio dos quais os proprietários de terras se presenteavam a si mesmos com os bens comunais, decretos de expropriação do povo (Marx, 1977, pp. 34-35). Na nota 16 deste capítulo, Marx retoma algumas minúcias do citado processo de expropriação, citando um trecho do relatório intitulado A Political Inquiry into the Consequences of Enclosing Waste Lands (A pesquisa política sobre as consequências do cercamento de terra não cultivadas): “Se quiserdes que os caseiros trabalhem, diziam eles, conservai-os na pobreza. 103 Veja-se em: http://www.colband.com.br/ativ/nete/cida/linh/temp/modri03.htm. Veja-se em: http://dgta.fca.unesp.br/docentes/dede/antigos/EconomiaBrasileira/Evol_Agricultura.pdf. 105 Marx acrescenta um comentário sugestivo: “Thomas Morus, em sua Utopia, fala do estranho país ‘onde os carneiros comem os homens” (Marx, 1977, p. 25 – nota 5 do capítulo). 104 121 O fato real é que os arrendatários se arrogam assim todo o direito sobre as terras comunais e delas fazem o que bem lhes parece” (Marx, 1977, p. 35). A estrutura mesma do modo de produção pré-capitalista não auxiliava aos camponeses, nem mesmo quanto ao sentido político da formação de uma consciência pró-ativa (Eagleton, 1999, pp. 44-45)106. Depois, Marx reconstrói parte da história do direito trabalhista inglês, de corte claramente burguês e de exceção: A legislação sobre o trabalho assalariado [...] foi inaugurada na Inglaterra em 1349 com o Statute of Labourers de Eduardo III. A este estatuto corresponde em França a ordenação de 1350, promulgada em nome do Rei João [...] Foi proibido, sob pena de prisão, pagar um salário mais elevado que o estabelecido legalmente: porém, incorre em pena mais severa, o que recebe o salário superior ao fixado, do que aquele que o paga. Assim, as secções 18 e 19 do estatuto de aprendizagem de Elizabeth punem com dez dias de prisão o patrão que faz pagamentos além do limite legal e com vinte dias o operário que o aceita [...] Um estatuto de 1630 estabelece penas ainda mais duras e autoriza mesmo o patrão a obter o trabalho pela tabela legal, por meio da violência corporal [...] As coligações operárias foram incluídas na categoria dos maiores crimes desde o século XIV, até 1824 (Marx, 1977, pp. 66-67 – grifos nossos). O custo de se arrancar pela raiz qualquer identidade, resistência, tendência ao inconformismo, foi o desenraizamento, a desterritorialização. No sentido de obrigarem ao abandono de seus lares, convicções, tradições, “direitos” e imporem a conversação à modernidade capitalista, exploração desmedida e “urbanização forçada” de levas de milhares de famílias camponesas, as Leis de Cerceamento podem ser classificadas como leis motivacionais do Estado Moderno de Exceção: O último procedimento de um alcance histórico, que se empregou para expropriar aos cultivadores, se chama clearing of states, literalmente: “roçada dos bens de raiz”. No sentido inglês não significa uma operação técnica de agronomia; é o conjunto de atos de violência por meio dos quais se desembaraça dos cultivadores e de suas moradias, quando eles se encontram sobre os bens de raiz destinados a passar ao regime da grande cultura ou ao estado pastoril (Marx, 1977, p. 42). Este desenraizamento obsessivo, truculento, imposto verticalmente pelo Estado, nada mais faria do que sacramentar a lógica do capital burguês e do grande latifundiário: “O capital é trabalho morto [...] O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista” (Marx, 1985, p. 189). Nem mesmo o direito renascentista por definição, o direito à educação (já sob a batuta da universalidade), escaparia a este sentido pró-capitalista que estamos apontando para o direito nascente no Estado Moderno. Como direito não-laico, o direito à educação surgiu para servir como um poderoso meio de controle social erigido pelo Estado Moderno: 106 Weber teria uma leitura curiosamente próxima a este sentido, quando se refere à perda de “espaço econômico” dos alemães para os poloneses, justamente por causa de sua precária articulação política (Conh, 1989). 122 Martinho Lutero apelou “para os vereadores de todas as cidades da Alemanha, para que estabeleçam e mantenham escolas cristãs [...] A educação obrigatória e universal foi estabelecida na Genebra calvinista em 1536 e o discípulo escocês de Calvino, John Knox, “plantou uma escola e uma igreja em cada paróquia.” [...] A educação obrigatória está vinculada, historicamente, não só à invenção e desenvolvimento da imprensa, à ascensão do protestantismo e do capitalismo, mas também ao crescimento da própria ideia de naçãoestado (Ward, 1973, pp. 62-63 – grifos nossos). Nessa toada, em meados do século XIX, como consequência do industrialismo imposto pelo êxodo rural, com base no Renascimento Econômico inglês, as condições de trabalho não se mostravam melhores do que antes: “A jornada de trabalho variava entre 12, 14 e 15 horas, com trabalho noturno, refeições irregulares, em regra no próprio local de trabalho, empestado pelo fósforo. Dante sentiria nessa manufatura suas fantasias mais cruéis sobre o inferno ultrapassadas” (Marx, 1985, p. 198 – grifos nossos). Algumas tentativas de enfocar a igualdade e a isonomia datam do Iluminismo (“humanizar o direito”), como vemos no livro Observações Sobre a Tortura, de Pietro Verri (2000): é uma narrativa das barbáries da Razão de Estado, ainda que feitas em “razão do Estado”. É um livro representativo do Iluminismo do século XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a Milão de 1630. No fundo, nos crimes cometidos, vemos refletir-se a alma das pessoas e da sociedade em que vivem. Já com os tipos penais, e com as penas consequentes, temos o nível de organização da cultura, o formato que o povo conseguiu imprimir ao Estado. Por isso, os crimes e as penas são fontes ricas, preciosas, para quem quer demonstrar o que a sociedade é capaz de produzir e em que nível se encontra nesse longo processo civilizatório. Abolir a pena de morte e a tortura, portanto, é “civilizar” a pena, o apenado, a vítima e o penalista. Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (p. 113). O maior problema, no entanto, é que o obscurantista não é capaz de entender o que Cícero diz (em sua síntese da razão), quanto mais a assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão107. Lei de Fábrica: esboço de uma interpretação materialista do renascimento A primeira dessas medidas/garantias, especificamente no chamado “mundo do trabalho” seria chamada Lei de Fábrica: As primeiras medidas de proteção do trabalho seriam tomadas para beneficiar a classe trabalhadora apenas em 1833, quando o parlamento inglês votou a Lei de Fábrica, que estabelecia a proibição do trabalho de crianças menores de 13 anos por jornadas superiores a nove horas por dia. Em 1847, nova legislação trabalhista proibiu jornadas diárias com mais de 10 horas para os menores de 18 anos e para as mulheres. Apenas em 1874 foi promulgada a lei que estipulava a jornada diária de dez horas para trabalhadores adultos do sexo masculino (Lessa, 2005, p. 63). 107 Veja-se a íntegra do artigo em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5123. 123 Essas medidas de segurança ou de garantia do direito (havia pressão social, do operariado e também socialista/comunista) em prol da “expectativa de direito” (“direito a ter direitos”: Bobbio, 1992) por parte da classe trabalhadora era o início de uma onda de resistências aos efeitos trazidos pela Segunda Revolução Industrial – especialmente a partir da Inglaterra. Note-se, em parte pelo que já vimos, que tratamos a luta de classes como uma relação antagônica, contraditória e oposta entre as classes fundamentais; especificamente no capitalismo essas classes são burguesia e proletariado. Mas há outras classes, como o lumpemproletariado e a pequena burguesia e até frações de classe, também em luta, como: burguesia industrial X agropecuária ou financistas versus industriais. Uma relação de oposição pode implicar apenas em uma situação de conflito controlado, a exemplo do que se vê entre oposição e situação, relação mediada pelo Princípio do Contraditório: comum ao debate parlamentar (trabalhistas X conservadores) ou à relação jurídica. Será uma relação antagônica quando a conflituosidade e a animosidade ganharem um nível muito superior de beligerância, antecipando-se à negação, porque os discursos ou ideologias estão em franco e aberto conflito: as visões de mundo se tornaram insuportavelmente diversas. Por fim, será uma relação contraditória porque, aquela negação anunciada estará em ação, o que implica que — apesar da mútua necessidade de existência entre os pólos em disputa (“não há diálogo de mudos ou de surdos”) — a vida de um acarreta obrigatoriamente a exclusão/eliminação do Outro. Diferentemente da dialética oriental (positivo versus negativo), a dialética ocidental marxista impõe a ocorrência da negação. Assim, a um processo dialético por contradição é obrigatória a ocorrência de uma tese (situação), antítese (oposição) e de suas respectivas superações em uma síntese (que não é nem a tese, nem a antítese, mas que contém parte das duas, transformadas, revigoradas em um dado novo, em outro contexto). A síntese, portanto, como substrato das duas ocorrências anteriores, será a nova tese — o que implicará em outra antítese e assim por diante. Nesta fase, pode-se dizer que houve superação da própria luta de classes, pois sem que uma das classes fundamentais tivesse sobrevivido, necessariamente, a outra teria de se transformar em algo diverso daquilo que fora até então: as revoluções, portanto, transformam a própria luta de classes que as alimentou até aquele momento. Na síntese apresentada por Engels temos uma (re)visão histórica e crítica feita por Marx: “O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha” [...] O verdadeiro pai do materialismo inglês é Bacon. Para ele, a ciência da natureza é a verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da ciência da natureza [...] Toda ciência se baseia na experiência e consiste em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a experimentação são as condições fundamentais desse método racional [...] Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do geômetra [...] Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos – argumenta Hobbes partindo de Bacon -, os conceitos, as ideias, as representações mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos despojado da sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que dar nomes a estes fantasmas [...] Locke, na sua obra [...] Ensaio sobre o Entendimento Humano fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes [...] 124 Assim se expressa Karl Marx referindo-se às origens britânicas do materialismo moderno (Engels, s/d, pp. 10-12). Em seguida, Marx formula, no dizer de Engels, uma crítica mais rotunda acerca do conatus ou endeavor de Hobbes (1983). No fundo, uma crítica de base à ideia da reta razão (Angoulvent, 1996), porque a razão nunca seria reta se mais adiante sempre se colocassem obstáculos, diatribes108, estranhamentos do mundo material — atuando como sufocação das subjetividades: Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma ideia real. Não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças [...] Toda a paixão humana é movimento mecânico que termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem [...] O poder e a liberdade são coisas idênticas [...] Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor do seu princípio fundamental: o de que os conhecimentos e as ideias têm a sua origem no mundo dos sentidos (Engels, s/d, p. 11). Em parte, este é o esforço analítico principiando pelo materialismo histórico, tendo-se a acumulação primitiva e a colonização (ultramar) como suportes extratores de riquezas que originaram ou “suportaram” o Estado Moderno — em seguida, ainda socorre-se especialmente do “papel político-institucional” exercido pelo Estado-Nação. Portanto, cabe bem uma distinção/complemento quanto à dialética, especificamente para que possamos destacar o papel do Estado na condição/condução das suas superestruturas: direito, educação, “função pública”. Então, vejamos um relato sobre o Renascimento, a partir da perspectiva do Materialismo Histórico: As fortunas da Espanha, da Holanda, da Inglaterra, da França foram obtidas, não somente com o trabalho excedente de seu proletariado, não somente destroçando sua pequena burguesia, mas também com a pilhagem sistemática de suas possessões de ultramar. A exploração de classes foi complementada e sua potencialidade aumentada com a exploração das nações. A burguesia das metrópoles se viu em situação de assegurar uma posição privilegiada para seu próprio proletariado, especialmente para as camadas superiores, mediante o pagamento com lucros excedentes obtidos nas colônias [...] Espoliando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos concedem simultaneamente seu apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais mais reacionários e parasitas de exploradores nativos [...] A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das etapas intermediárias, transforma-se na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse modo, está em consonância com a luta do proletariado nas metrópoles [...] O capitalismo tem o duplo mérito histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as partes do mundo com os laços econômicos [...] No entanto, o capitalismo não tem condição de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua 108 Leia-se mais, em: http://www.ricardocosta.com/pub/advogados.htm. 125 expansão continua sendo os estados nacionais circunscritos com suas aduanas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram faz tempo os limites do Estado nacional, transformando consequentemente o que era antes um fator histórico progressista numa restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais que explosões das forças produtoras contra os limites estatais, que se tornaram limitados demais para elas (Trotsky, 1990, p. 71-73-75). Este texto de Trotsky sobre a colonização, o imperialismo e o papel do Estado-Nação europeu na exploração das colônias, foi escrito em 1939. As revoluções foram intensas não só no aspecto material (acumulação primitiva, inversão de capitais), mas igualmente nas “mentalidades”: “Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas” (Marx & Engels, 1993, p. 68). Para Marx, o papel do Estado Moderno nunca foi de relevância muito superior ao que vimos em alguns de seus interlocutores e comentadores: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx & Engels, 1993, p. 68 – grifos nossos). Em momento de reflexão semelhante, Marx ainda dirá, entrelinhas, que o juiz crê que para chegar à verdade, é preciso aplicar a subsunção e, como se aplica a isto reiteradamente, acaba por atribuir à subsunção a própria força da verdade objetiva dos fatos sublimados, colimados pela ocorrência histórica e não pela retórica. O juiz termina por acreditar mais nas aparências e nas formalidades do que no direito e nos fatos: As relações, na jurisprudência, política etc. — convertem-se em conceitos na consciência; e por eles não se situarem acima dessas relações, os conceitos das mesmas, em suas cabeças, são conceitos fixos; o juiz, por exemplo, aplica o código e por isso, para ele, a legislação é tida como verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua mercadoria; pois sua ocupação tem a ver com o geral (Marx, 1984, p. 134). Por isso, pela ausência de realidade substancial que funcione como anteparo ao achaque à consciência do aplicador do Judiciário (e agindo quase que por inércia, osmose, sob o efeito direto da subsunção), a partir do Estado Moderno, não poderia ter havido um típico Renascimento do Direito. De modo complementar também se destaca o Estado Moderno como fixador material/ideológico do “sistema capitalista” já a partir do Renascimento. Em suma, tratase de uma leitura complementar, crítica/realista acerca do Renascimento e da Renascença, pois, nem todas as ideias, vocações ou habilidades puderam (re)nascer livremente. De lá para cá, no que concerne precisamente às múltiplas manifestações da Razão de Estado no mundo contemporâneo, podemos salientar que há duas grandes correntes teóricas a serem observadas: CORRENTES: Liberais (Grotius e Locke); Realistas (Maquiavel e Vico) máxima realista: A paz só é possível quando a guerra não é necessária máxima liberal: A guerra só é necessária quando a paz não é possível A ordem e o direito internacional deveriam restringir e, ao mesmo tempo, garantir a soberania e a Razão de Estado. No entanto, para os realistas, a Razão de Estado só se mantém segura com o emprego da violência: 126 Como o objetivo do Estado é sua própria sobrevivência, aqueles que se identificam com essa corrente tendem a dedicar-se ao estudo dos meios e mecanismos empregados pelos estados para conservar e acumular o poder necessário à sua própria sobrevivência enquanto Estado. Como o Estado é o responsável final por sua própria sobrevivência, o emprego da força militar e, em decorrência, a guerra e a preparação para a guerra são, em última instância, o instrumento essencial do Estado nas relações internacionais (Albuquerque, 2005, p. 30 – grifos nossos). Para os idealistas ou liberais, a necessidade de conservação não se converte, obrigatoriamente, em Luta por Conservação (Honneth, 2003); antes se verte em cooperação. Com isto, evita-se a transformação da necessidade em Estado de Necessidade (ou Estado de Guerra, como ocorreu com a formação do Estado Moderno): Assim sendo, quando a necessidade de conservar ou acumular riquezas passa a esbarrar, necessariamente, na violação da necessidade de terceiros, seja para conservar, seja para acumulá-las, a cooperação se torna indispensável e, por sua vez, aumentando as oportunidades de convivência, aumentam as razões de conflito [...] a inevitabilidade da convivência leva à necessidade de cooperação e à inevitabilidade do conflito, e a superação racional do conflito pela cooperação leva à construção da ordem política (Albuquerque, 2005, p. 27 – grifos nossos). Os liberais buscam subordinar os conflitos à racionalidade normativa: a racionalidade humana permite evitar o emprego da violência e os seus riscos inerentes, aprendendo-se com as experiências e a comunicação política inaugurada pelos mecanismos mediadores. Os atores (ou indivíduos envolvidos: pessoas ou grupos de interesse econômico) devem converter os conflitos de interesses em normas (mesmo que sem a participação legitimadora do Estado). As normas, então, funcionariam como meios e procedimentos capazes de evitar, solucionar ou limitar os conflitos (Albuquerque, 2005). Todo Estado (a exemplo do Estado de Cortes, pré-Renascentista e anterior ao Estado Moderno) luta por autonomia e soberania (centralização e unidade política em que não cabe superlativo). Esta é a era da luta por conservação ou sobrevivência (Honneth, 2003) a que se seguirá a espera pela fase do reconhecimento diplomático dos demais Estados: É essa articulação que Maquiavel sublinha, de tal modo que estamos sempre postos na presença de vários termos simultâneos e constrangidos a pensá-los em função de suas relações, isto é, das ações e reações que exercem uns sobre os outros [...] Em suma, somente a constelação dos fatos é significativa: não podemos considerar o comportamento dos súditos senão em relação ao do príncipe e viceversa, e é o fato de suas relações que constitui o objeto do conhecimento (Lefort, 2003, pp. 44-45 – grifos nossos). Weber demonstrará muito bem esta relação/passagem do Estado Moderno à Razão de Estado, a partir do exemplo do Estado nacional alemão. Da perspectiva da eterna luta pela 127 manutenção (conservação, sobrevivência) nasce uma imbricação entre economia e política e isto as faz desembocar, associadamente, na Razão de Estado. Luta e Razão de Estado, portanto, estariam absolutamente entrelaçadas enquanto tipos ideais em Weber: Não é a paz e a felicidade que devemos legar aos vindouros mas sim a eterna luta pela manutenção e aperfeiçoamento do nosso modo de ser nacional [...] Os processos de desenvolvimento econômico são também em última instância lutas de poder [...] E o Estado nacional não representa para nós algo indefinido, que se imagina estar elevando tanto mais alto quanto mais a sua essência fica recoberta por névoas místicas, mas a organização mundana do poder nacional. E nesse Estado nacional o critério de valor definitivo que vale também para o ponto de vista da política econômica é para nós a “razão de Estado”. Ela não significa para nós, ao contrário de um estranho mal-entendido, a “ajuda do Estado” no lugar da “ajuda própria”, a regulamentação estatal da vida econômica no lugar do livre jogo das forças econômicas. O que queremos exprimir, ao falarmos de razão de Estado, é a reivindicação de que o interesse de poder econômico e político da nossa nação e do seu portador, o Estado nacional alemão, seja a instância final e decisiva para as questões da política econômica alemã (Weber, 1989, p. 69 – grifos nossos). A ausência de um Estado dos Estados tem como consequência direta a ausência de uma autoridade mediadora entre os contendores; os pactos e acordos multilaterais auxiliariam nesta mediação, assim como os contratos políticos que permitiram ao Estado Moderno subtrair o patrimônio dos súditos/cidadãos em situações de necessidade. Mas, a ausência de autoridade (Estado dos Estados: função exercida pela Igreja Católica na Idade Média) também poderia gerar guerras de conquista, quando houvesse: a) disputas diretas por territórios; b) Estados que procuram se armar preventivamente; c) Estado em disputa para fixar ascendência ou supremacia (Albuquerque, 2005, p. 12). É interessante como Kant e Weber se aproximam deste ponto: a paz como preparativo da guerra. Renascimento Político: Estado Moderno A monarquia feudal, em decorrência da instabilidade inerente a sua estrutura política, acabou por gerar os princípios e Bases do Estado Moderno: conflitos franco-ingleses; angloescoceses; dos conflitos franco-flamengos do século XIV à Guerra dos Cem Anos. Suas duas faces forçaram a isso: de um lado paz, justiça e religião; de outro, guerra. As estruturas forjadas ao Estado Moderno naquela época, guardadas as atualizações e proporções, vigoram até hoje: Ao final do século XIII, ocorre uma mudança decisiva que contém em germe a evolução futura e a transformação da monarquia feudal no que se pode denominar Estado moderno, pois esta forma de Estado é o ancestral direto, sem descontinuidades, do moderno Estado europeu atual (Le Goff, 2006, p. 405 – grifos nossos). As necessidades do Estado (ou Estado de Necessidade) autorizam o espólio dos súditos, como antigamente se fazia para financiar as guerras de conquista (Cruzadas) ou “auxiliar” o suserano. O Estado moderno se reservou o “direito de apelar” para se defender de suas necessidades: 128 Em seguida, já que o Estado se reserva o direito de apelar em caso de necessidade aos bens de seus súditos, é preciso que esses bens existam e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da violência feudal e a flutuação dos variados tipos de terra que favorecem o feudalismo, o Estado vai por intermédio de seus juízes permitir e proteger o desenvolvimento da propriedade individual109 (Le Goff, 2006, p. 406 – grifos nossos). Historicamente, um passo fundamental foi dado pela centralização de Portugal, já o financiamento do Estado Moderno, internamente, deve-se à cobrança de tributos pelo trânsito livre, uma evolução do outrora “resgate de pilhagem” (Marx, 1984, p. 89): O aparecimento do ouro e da prata americanos nos mercados europeus, o desenvolvimento progressivo da indústria, a rápida expansão do comércio e a conseqüente prosperidade da burguesia não-corporativa e do dinheiro deram as essas medidas um significado diferente. O Estado, que era cada dia menos capaz de dispensar dinheiro, mantinha a proibição das exportação de ouro e prata por razões de ordem fiscal (Marx, 1984, pp. 89-90). Após esse processo inicial, com a segunda fase do desenvolvimento europeu, veio o Fausto inglês: “A nação marítima mais poderosa, a Inglaterra, mantinha sua preponderância no plano comercial e na manufatura. Nota-se aqui a concentração em um só país” (Marx, 1984, p. 90). Sob este aspecto, a modernidade de Marx também se rendeu como herdeira àquela primeira fase da modernidade: colonialismo. Legalização da Luta de Classes Assim, a inovação social, tecnológica, econômica, política e cultural (ideológica) de um dos marcos do avanço/consolidação capitalista europeu, iniciada no século XV e com repique no século XIX, certamente iria trazer modificações de ordem jurídica. Como diriam Marx e Engels (2003), um devido ajustamento entre infra e superestrutura. No caso específico do Estado Moderno, pode-se salientar a ocorrência da “laicização da política”: a) exclusão da religião (diante da Razão de Estado); b) diluição radical do imbricamento entre moral e política; c) aceitação “irregular e lenta” da perspectiva da modernidade: “o outro lado” (Ribeiro, 2001). Outro destaque é a luta intestina entre o reconhecimento versus a conservação e a dominação: Em outro passo [pode-se argumentar que] o direito não é constituído propriamente por relações sociais em geral, ou mesmo pelas relações de produção e de troca, mas por um sistema acabado de relações, por um sistema de relações caracterizado por um interesse de classe e defendido pela classe dominante (Naves, pp. 30-31). É certo, entretanto, que não se acomete mais da ingenuidade de se supor um Estado Ético, na linha proposta por Hegel. Portanto, o Princípio da Igualdade jurídica, como certa construção do Estado Moderno, especialmente o modelo que se afirmaria com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (mas a de 1793), não ofereceria perspectiva muito diversa: 109 Neste sentido, já estariam surtindo largos efeitos as chamadas Leis de Cerceamento, obrigando camponeses a deixarem seus lares e suas terras. 129 Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais” herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais. Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um. Ele atua assim entre outras coisas como uma forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal (Eagleton, 1999, pp. 48-49). O que Marx indagava era acerca da igualdade diante das próprias desigualdades sociais que só fazem aflorar as potencialidades de poucos. Por isto, igualmente, a ideia da legitimação de um estado de desigualdade estrutural, a partir do Estado Moderno, não lhe agradava. Como também lhe soava estranha qualquer proposta ou possibilidade de uma legalização da luta de classes: Essa legalização da luta de classes significa que as formas de luta do proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que o direito e a ideologia jurídica estabelecem [...] As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento desestabilizador, quer “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica (Naves, 1991, pp. 20-21). Com interpretação semelhante, Lênin daria uma pista de que maneira o Princípio da Igualdade exigiria uma resposta fora/além do âmbito do Estado Moderno: Compreende-se a importância da luta do proletariado pela igualdade e pelo próprio princípio de igualdade, contanto que sejam compreendidos como convém, no sentido da supressão das classes. Mas, democracia quer dizer apenas igualdade formal. E, logo após a realização da igualdade de todos os membros da sociedade quanto ao gozo dos meios de produção, isto é, a igualdade do trabalho e do salário, erguer-se-á, então, fatalmente, perante a humanidade, o problema do progresso seguinte, o problema da passagem da igualdade formal è igualdade real baseada no princípio: “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades” (Lênin, 1986, p. 123). Lênin, partindo do Engels d’A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, sistematizou assim as premissas do Estado de forma geral (e, é claro, também do Estado Moderno): O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis [...] Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível [...] Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes (Lênin, 1986, pp. 09-10). 130 Desse modo, o “jovem Marx” reforçaria esta advertência crítica: “Hegel não deve ser censurado por ter descrito a essência do Estado moderno, como ele é, mas por ter imaginado que aquilo que é constitui a essência do Estado” (Reichelt, 1990, p. 15)110. No mesmo sentido, já apontava o próprio Marx: A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica, profunda e completa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e mais geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do direito — este pensamento extravagante e abstrato acerca do Estado moderno, cuja realidade permanece no além [...] o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno não atribui importância ao homem real ou unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória (Marx, 1989, p. 85). É nítida a crítica de Marx a uma possível Teoria Geral do Estado baseada neste ideal que possa permear as “estruturas jurídicas” vincadas no também ideal Estado Moderno. Estado “pós-Iluminista” Se não houve um Renascimento Jurídico, pode-se ver um Estado ou direito pósIluminismo? Como sabemos, esta legalização da luta de classes ocorreu mais tardiamente, a partir da Lei de Fábrica e após, já sob os efeitos do clássico Estado de Direito, no contexto do século XIX como salientou o também alemão Robert von Mohl — com uma maior “judicialização do poder político” (Canotilho, 1999). Sob esse efeito da concepção jurídica de uma ordem mundial, sobretudo no pós-guerra de 1945, nasceria o Estado Democrático de Direito (Silva, 2003)111: Desde Pablo Verdú (a primeira monografia, Estado Liberal de Direito e Estado Social de Direito, data de 1955) e Elías Díaz (com seu livro Estado de Derecho y sociedad democrática, de 1966), o moderno conceito de Estado Democrático de Direito atrelou-se conceitualmente ao socialismo e à Justiça Social. Esta ligação é tão forte que também foi chamado de Estado de Justiça, por Elías Díaz112. Por outro lado, há mais uma relação de contradição política nascida com o Renascimento, do que de pura dominação, em que se avoluma um longo e tortuoso processo de luta entre conservação de poder, de um lado, e reconhecimento de novas demandas e direitos, de outro, no exemplo mais notório da contraposição entre burguesia e proletariado. Curiosamente, uma das lições que se apreendem com o “jovem Marx” decorre da crítica ao dogmatismo políticojurídico, de esquerda ou de direita. O que melhor se aprende no “jovem Marx” é o caminho da 110 Refere-se à edição “MEW” ou Marx-Engels Werke, Berlim, Editora Dietz. Ou, como pensava seu mentor, o espanhol Pablo Lucas Verdú: Estado Democrático de Direito Social. 112 Em: http://jusvi.com/artigos/29284/1. 111 131 utopia, mesmo que este seja apenas um singelo nalgum-lugar. O que também se apreende de Marx é a necessária investigação das condições reais em que o Povo se encontra; sem o que as análises conceituais não passam de ideologias do poder. 132 POVO POBRE, MAS HONESTO Para pensarmos a estrutura básica do Estado, desde sua fundação no século XVII até a atualidade, realmente devemos reter a sequência de povo, território e soberania, pois é o povo que se fixa em determinado território e aí estabelece sua soberania. Todos os grupos constituem-se em Povo e em Estado? Alguns grupos humanos formam-se em comunidades, mas não se constituem em sociedades políticas, na forma de Estados que organizam o Poder Político. Ou seja, são grupos humanos que se organizam em termos de poder social, como comunidades políticas – porque têm lideranças, convivência pública – mas não se estruturaram em sociedades políticas desenvolvidas como temos nos Estados. O chefe ou líder político representa o espaço e o convívio público, mas não há a ideia de representação, de poder delegado, em que se abdica do próprio exercício do poder político: O chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder 113, e a figura (mal denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é a da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral” (Clastres, 1990, 143 – grifos nossos)114. Assim, há uma concepção que tem muito que ver com o princípio da organização social, com a perspectiva de que a cultura pode se revestir de poder político (como nós entendemos o próprio direito na forma do controle social) e nem por isso vir a se erigir na forma conhecida do Estado e do direito moderno: Segundo Southall, duas circunstâncias são favoráveis a essa evolução. Um dos grupos em presença já possui uma organização política eficaz em grande escala; dispõe dos meios que permitem organizar politicamente um espaço ampliado e acaba impondo sua supremacia às microssociedades com as quais se acha em relação. Um dos grupos encerra líderes de tipo carismático, e estes se tornam os chefes solicitados pelas sociedades vizinhas ou “modelos” pelos quais elas organizam o poder interno, subordinando-o. Num caso é a competência a dirigir um espaço político ampliado, no outro é a qualidade do líder que possibilita o estabelecimento de uma estrutura de dominação. Estaria, então, formado o germe estatal (Balandier, 1969, p. 145 – grifos nossos). Está clara a descrição dessa capacidade cognitiva do homem em se organizar e propor formas de liderança. A questão estaria em investigar se a dominação político-jurídica seria equidistante em termos dos envolvidos nas hastes do poder. Mesmo para a Antropologia, o Estado serviria apenas para garantir essa desigualdade e essa extrema concentração de renda: “F. Oppenheimer [...] define todos os Estados conhecidos pelo fato da dominação de uma classe 113 Entendido poder como organização, e não como manifestação da violência (Arendt, 1994). Note-se que esses grupos sociais, a que se denomina vulgarmente de sociedades primitivas, indígenas, não conheceram o Estado como nós conhecemos. 114 133 sobre a outra para fins de exploração econômica” (Balandier, 1969, p. 141). Ainda com Balandier (1969): Os Estados podem vir a existir seja pela federação voluntária de duas ou mais tribos, seja pela subjugação de grupos fracos ou grupos mais poderosos, que acarreta a perda de sua autonomia política [...] R. Beals e H Hoijer consideram ainda, com menos reservas, que o direito exclusivo de recorrer legitimamente à força e à coerção – pelo qual se define o poder governamental – “só aparece com o Estado de conquista” (p. 142). O fenômeno da dominação de classes foi consagrado no período denominado de acumulação primitiva, sobretudo na Europa herdeira das Rotas da Seda, mas não é uma exclusividade. Em sentido amplo, a categoria povo, como elemento de formação do Estado é aceita com a instituição do Estado Moderno; porém, o povo como condição política transformadora da realidade antecede em muito a esse período. Historicamente, depois da célebre declaração romana de que “o poder pertence ao Povo”, Vico foi um intérprete importante dos atos humanos no contexto histórico. Portanto, além de um atributo jurídico, povo é uma realidade política que supõe a instauração de direitos e a transformação da realidade política. Na perspectiva histórica, Vico foi resgatado por Michelet (1798 — 1874), mas também admirado por Marx e, contemporaneamente, James Joyce e Isaiah Berlin. Para Michelet, Povo é uma construção social e econômica, sobretudo na sociedade capitalista e, com receio sobre suas propriedades, a burguesia logo acionava as forças públicas como defensoras de um direito de exclusividade, o direito de propriedade: “Como? O Povo é assim?” [...] “Rápido, aumentemos a polícia, armemo-nos, fechemos as portas, passemos o ferrolho [...] Também nesse campo os criminalistas dominaram a opinião [...] Aí estão, artistas, vossos modelos... O bizarro, o excepcional, o monstruoso, eis o que procurais [...] A esses relatos pitorescos acrescentam teorias profundas pelas quais o Povo, a dar-lhes ouvido, justifica a si mesmo a guerra movida à propriedade [...] Devo escavar a terra e encontrar as bases profundas desse monumento; a inscrição, vejo-o bem, está oculta, escondida lá embaixo... Para escavar não tenho enxada, nem pá, minhas unhas bastarão [...] Queria chegar ao fundo da terra. Mas, desta vez, não é um monumento de ódio e de guerra civil que gostaria de exumar [...] “Legibus fidus, non regibus”. Fiel às leis, não aos reis [...] Para citar um exemplo, eles não quiseram ver que a questão penitenciária dependia da questão da instrução pública115 [...] Parece que os remédios específicos não faltaram. São cerca de cinquenta mil no Bulletim des lois [...] A crítica do presente pelo passado, pela comparação variada dos Povos e eras diferentes [...] A depressão e a degeneração são apenas exteriores. O conteúdo subsiste. Essa raça sempre teve vinho no sangue; até naqueles que parecem mais extintos, encontrareis uma centelha [...] Entraves exteriores e vida forte que reclama de dentro: esse contraste produz muitos movimentos falsos, uma discordância nos atos, nas palavras, que choca à primeira vista [...] A economia de palavras beneficia a energia dos atos [...] o que é sonho no jovem transforma-se no ancião em reflexão e sabedoria [...] As mulheres do Povo, particularmente, forçadas mais do que as outras a ser a providência da família e do próprio marido [...] com o tempo chegam a atingir um espantoso grau de maturidade [...] Conheci algumas [...] já não pertenciam à sua classe, nem a outra qualquer: estavam acima de todas. Eram extraordinariamente prudentes, penetrantes, até 115 Trata-se da nota de pé de página, n. 01, à página 121, de O Povo, de Michelet, conforme citado. 134 mesmo em assuntos dos quais não se poderia suspeitar que tivessem qualquer experiência [...] Disso resultou uma mudança profunda nas ideias e na moralidade. O homem constrói sua alma de acordo com a situação material (Michelet, 1988, pp.115-129 – grifos nossos). Sob a égide do capital, todas as formações sociais comandadas pelo Estado Moderno seriam exclusivistas e determinadas a arrecadar a coerção em benefício unicamente de seus privilégios? Economicamente, talvez a resposta seja sim; juridicamente, contudo, há distinções de que se ocupam os juristas e os legisladores desde o Estado Moderno até a edificação do Estado de Direito. Então, o que é Povo? Institucionalmente, povo é uma parte da população capaz de participar e interferir – politicamente – nos principais processos eleitorais e democráticos de um Estado. Por Povo podemos entender um conjunto de indivíduos que se constituem em comunidade para realizar determinados interesses comuns. O Povo, então, reivindica a formação de um Poder Político que lhe garanta a requisição de um direito adequado às suas necessidades e aspirações. Povo é o conjunto dos cidadãos, no sentido de conjunto de eleitores. Mas, politicamente, Povo é o conjunto dos cidadãos ativos e institucionalizados (eleitores, contribuintes, cidadãos registrados e com certidão de nascimento) que fazem parte de um país, uma nação, uma coletividade política com a forma de Estado. Há esta diferença, em especial atenção ao conjunto dos eleitores (que é a definição jurídica de Povo) porque o Povo é um instituto político, jurídico, institucional que, inclusive, dá forma ao Estado, como elemento essencial de sua configuração. Já a população pode/deve incluir todas as pessoas, é quase um atributo estatístico, como somatória de todos os indivíduos, sejam cidadãos ativos ou não, como no exemplo da enorme categoria social de trabalhadores e não-trabalhadores; incluem-se todos os admitidos ou reconhecidos pelo Estado, aqueles em que se atesta a existência formal, mas também aqueles com os quais se perdeu a comunicação institucional, formal e que vivem à “sombra do reconhecimento oficial”. Além dos inseridos regularmente no sistema social pelo Poder Político, podemos pensar nos sem-teto, nos dependentes químicos, nos miseráveis e abandonados nas cidades e nos campos, além dos Povos da natureza, índios, extrativistas que se embrenharam nas matas, esquecendo-se da vida civil, ou os que nem foram tocados pelo Estado, como os índios não-aculturados. As amostragens do tipo IBGE, por exemplo, recolhem ou indicam um perfil da população brasileira, pois tenta-se mapear todas as “raças”, nações parciais que formam a grande nação brasileira, jovens e adultos, homens e mulheres, com muita ou pouca escolaridade. Temos, portanto, um perfil da população. Em um plebiscito ou referendo teremos um perfil do Povo, pois com o resultado da eleição pode-se verificar qual o perfil político do Povo, o que se pensa majoritariamente acerca de determinadas instituições públicas (somos a favor ou contra o desarmamento do Povo?); bem como nas eleições sabe-se qual a configuração política e ideológica do Povo, se mais à direita ou mais à esquerda, se mais progressista ou conservadora, se mais reformista ou radical em razão de determinados temas. Quando se elege um perfil de candidato como o de Maluf, excluindo-se a possibilidade de compra de votos ou de voto de cabresto, pode-se concluir que parte do eleitorado (parte do Povo) acredita em políticos que não são exemplos lapidares do pensamento republicano. Quando se trata da cultura também se faz alusão à cultura popular, como se fosse a cultura do Povo; no entanto, o Povo aqui está sendo utilizado como sinônimo de população uma 135 vez que abrange a formação da identidade de todos ou da imensa maioria das pessoas que formam a base social de uma nação. Em outro sentido da cultura, mais claramente intencionado, a ideia geral é o de que verifiquemos os reflexos ou repercussões diretas na condução e na estrutura política de uma nação. Ou seja, se toda cultura traz efeitos ou condições e condicionamentos políticos, então, a cultura de Povo se refere à ação de transformação da vida social, quer seja pela cultura, como “política diária, costumeira”, quer seja pela política institucional. A nação, como nos dizia o historiador Renan, é um plebiscito diário, incondicional em que depositamos nossa confiança, nossa fé, nossas esperanças em ver nossos próprios sonhos e perspectivas mais próximos da realização. Na nação, convivem Povo e população, o oficial e o informal, o público e o privado, o individual e o coletivo, o institucional e o cultural. Na nação, ao contrário do Estado, os elementos da subjetividade e até da irregularidade cultural e individual manifestam-se com muito mais clareza. Pela nação, o que nos une é a crença, a fé, o desejo de partilhar experiências comuns, coletivas, ou que sejam individualizadas, mas no intuito de que possam ser copiadas (como ocorre na presença do “herói nacional”). Há um desejo, uma necessidade, um reconhecimento simbólico (bandeira) e vocal (língua oficial), um apelo à identidade cultural (orgulho de ser brasileiro). No caso do Brasil teríamos a mesma formação social e cultural na definição do Povo Brasileiro? Outra questão, mais complicada, é definir o Povo brasileiro – algo que merece um capítulo em Cultura Brasileira. O Brasil é um caso à parte Em nosso caso, há variantes importantes que devem ser anunciadas, formamos uma cultura em que sobrevivia a escravidão mesmo sob o comando capitalista. Isto seria possível porque o mercado consumidor era considerado a Europa; o que desobrigava a existência de mão de obra livre, como fonte de consumo e de estímulo à produção: Há tipos e mitos com os quais se revela alguma forma de "carnavalização" da situação, acontecimento ou impasse. É óbvio que "Jeca Tatu", "Macunaíma" e até o "homem cordial" podem ser vistos como signos de denúncia, ênfase distorcida, caricatura do que poderia ser o "brasileiro", a "identidade do brasileiro", o "símbolo" de uma população que se demora a adquirir a figura de "povo", a figuração de "cidadão". Podem ser sátiras com as quais os "novos tempos" rejeitam os "velhos tempos", o "presente rejeitando o "passado", o "moderno" caricaturizando o "arcaico". São taquigrafias com as quais se parodiam, rejeitam ou carnavalizam os indivíduos e as coletividades que se teriam formado no longo da história. Mais ainda porque o homem cordial, Jeca Tatu e Macunaíma são emblemas de um mundo no qual o "trabalho" é castigo, sofrimento, danação e alienação, tudo isso naturalizado ou ideologizado pela cultura de castas formada ao longo da história da escravatura (Ianni, 2001). A história do Povo é cheia de “mas” e de “aliás”. Uma síntese das interpretações desenvolvidas por esses autores se encontra nos seguintes livros: Evolução do Povo Brasileiro, de Oliveira Vianna; Interpretação do Brasil, de Gilberto Freyre; A Evolução Industrial do Brasil, de Roberto C. Simonsen; Evolução Política do 136 Brasil, de Caio Prado Júnior; e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (Ianni, 1994, p. 41). No Brasil ao revés da lógica, por disposição legal e política, desde a colonização, fomos instados a ordem por latifúndios que se distanciavam um dos outros em muitas léguas, e sem que pudessem ser habitadas. O HOMO COLONIALIS, o Brasileiro nato tinha por referência de sociabilidade o próprio núcleo em que vivia. Cada família era uma república partidária. Este sentimento que Vianna buscava no povo, ele encontrou nas elites, era um complexo democrático de Nação, mas excluindo-se pequenos grupos, no restante sempre houve um sentimento satrapista, senhorial, patriarcal. E quem era o Homo colonialis? Pedro Malazartes é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos [...] É o tipo feliz da inteligência despudorada e vitoriosa sobre os crédulos, os avarentos, os parvos, os orgulhosos, os ricos e os vaidosos, expressões garantidoras da simpatia pelo herói sem caráter [...] O episódio mais tradicional é a venda de uma pele de cavalo, de urubu ou outro pássaro vivo, tido como adivinho, por anunciar o jantar escondido pela adúltera e expor o amante como sendo um demônio (Cascudo, 2001, pp. 351-352). A maldade de Malazarte, por exemplo, deve servir de compensação financeira ao trabalho do irmão, este que não fora pago e que ainda teve “uma lasca de couro tirada do lombo”. A atitude mal-sã, na primeira crônica sobre Malazarte, é ainda uma resposta à humilhação sofrida no trabalho, em razão do princípio da hierarquia e da subordinação (quanto a este princípio, não se sabe se mudou da escravidão, para cá). O que se diz de Malazarte, encaixa nesse veio da “brasilidade”, no jeitinho que dá em tudo (ou quase tudo): “Uma casal de velhos possuía dois filhos homens, João e Pedro, este tão astucioso e vadio que o chamavam Pedro Malazarte” (Cascudo, 2004, p. 174). (Ter astúcia é, justamente, o que recomendava Maquiavel ao Príncipe). No Brasil, faz o típico “herói sem fronteiras”, certamente, mas que também forma um par muito bom com o herói sem caráter. O fato é que há uma dificuldade em ser “exato”, há mesmo um desconforto em definir-se o brasileiro em poucas palavras, pois sua cultura de miscigenação é tão grande quanto o território. Não encontramos em nossa elite modelos de urbanidade tradicional, com interiores ainda pré-modernos, convivendo com enormes ares de fronteiras, como terra sem lei. Via de regra o que se esconde, é que vivemos um modo de vida dissoluta, uma mistura de preconceito social e cultural, sobrevivemos imersos nessa negação sistemática estrutural enraizada, que gera a sensação de imperfeitos míseros resultados de uma cultura mutilada. Sempre é oportuno destacar que a análise comparativa, reflexiva, dedutiva desses períodos, indica a forma como o Brasil entrou na modernidade (e que tipo de entrada foi essa). Porém, os vários discursos explicativos (políticos, ideológicos, institucionais) que daí resplandecem são múltiplos e por vezes equidistantes ou contraditórios, pois tanto surgem propostas analíticas socialistas (como Florestan Fernandes e Octavio Ianni) quanto conservadoras (Hélio Jaguaribe, João Ubaldo Ribeiro). Há diferenças políticas entre o povo e as elites? 137 Diz-se no senso comum que os pobres são mais honestos. É o que agora também se vê em pesquisa realizada no Brasil: Para 82% dos entrevistados "é fácil desobedecer às leis no Brasil"; 79% responderam que "sempre que possível o brasileiro opta pelo 'jeitinho' ao invés de obedecer a lei"; e 54% avaliaram que "existem poucas razões para uma pessoa como eu obedecer a lei." O QUE FEZ DE ERRADO NOS ÚLTIMOS 12 MESES? Segundo a pesquisa, 72% dos entrevistados afirmaram que atravessaram a rua fora da faixa de pedestres ao menos uma vez nos últimos 12 meses; 60% disseram ter comprado CD ou DVD pirata; 22% estacionaram em local proibido; 3% admitiram ter pagado propina a policiais ou funcionários para não levar multa; e 3% afirmaram ter levado itens de uma loja sem pagar. ACHA QUE SERIA CONDENADO SE... Sobre a eficácia da Justiça, 80% acharam que seriam punidos se furtassem artigos baratos; 79% se dirigissem após beber e 78% se estacionassem em local proibido. Comprar produto pirata (54%) e atravessar a rua fora da faixa (52%) são as condutas que, na opinião dos entrevistados, são menos passíveis de punição116. Uma das reações mais conhecidas e difundidas pela cultura comum do homem médio recebeu agora a chancela da pesquisa: os pobres são mais honestos. Esta parcela majoritária do povo brasileiro, diz o senso comum, tem apenas a “palavra” para se fiar e se esta faltar não tem, literalmente, mais crédito para trabalhar, consumir. Agora é preciso ter clareza sobre outros dois 116 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/04/23/quanto-menor-a-renda-e-a-escolaridade-maior-orespeito-a-lei-diz-estudo-da-fgv.htm, acesso em 23/04/2013. 138 pontos: se há um corrupto, é porque há um corruptor; existe a grande e a pequena corrupção, o que as diferencia é o potencial de dano, não o ato desonroso em si. Neste sentido, o famoso gato que “rouba” energia é tão prejudicial quanto a ação do governante que desviou recursos da iluminação pública – o que se altera é o valor estimado. Mas, ambos devem ser combatidos porque recaem na conta de luz do povo, mais exatamente na conta dos que pagam suas contas. Em todo caso, apesar de não haver anjos e nem inocentes no âmbito da cultura popular, também se percebe no dia a dia que, apesar da tolerância à corrupção (tolerância negativa) ter-se difundido endemicamente pelo país, mulheres e “povo pobre” preferem as relações mais normais, menos abaladas pela corrupção; isto porque, como elo frágil das relações sociais, em casos de corrupção, eles, o pobre e a mulher, são sempre prejudicados, ainda mais espoliados. A tolerância (negativa) à corrupção só beneficia o corrupto cínico, aquele que diz, para justificar suas ações, que “todos têm seu preço”. Em todo caso, a tolerância à corrupção é tão grave quanto a corrupção em si, a exemplo da expressão popular muito difundida: “se estivesse lá, também roubaria”. O que ainda reforça a mágica da política corrupta, no pior estilo do “rouba, mas faz”. Ou até mesmo a expressão mais marcada pela história, mas que expressa muito bem a lógica política que relaciona os pobres e as elites dominantes: “é dando que se recebe”. Pela esmola, o mais pobre e vulnerável abdica da reivindicação, do protesto, dos seus direitos. Na ausência de um direito que se baseie na moral, consagra-se a corrupção como guia e meta; quando, na verdade, deveriam ser instigadas, toleradas somente as ações honestas, sendo estas entendidas como condutas republicanas, as que preservam a “coisa pública”, ao invés de dilapidar o patrimônio do povo. Isto porque, é óbvio, a corrupção dilapida apenas o patrimônio do povo, enriquecendo as elites que já são ou eram abastadas. Enfim, tudo é tolerável, salvo os intolerantes (aqueles que não toleram a tolerância, isto é, as regras do jogo democrático – e a democracia não prospera na corrupção). Em Bobbio (1992), essa noção está presente na fusão entre tolerância negativa e intolerância positiva: A tolerância positiva consiste na remoção de formas tradicionais de repressão; a tolerância negativa chega mesmo à exaltação de uma sociedade anti-repressiva, maximamente permissiva [...] Não é que a tolerância seja ou deva ser ilimitada. Nenhuma forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as ideias possíveis. A tolerância é sempre tolerância em face de alguma cosa e exclusão de outra coisa [...] O único critério razoável é o que deriva da ideia mesma de tolerância, e pode ser 139 formulado assim: a tolerância deve ser deve estendida a todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente, todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes (pp. 212-213). A intolerância positiva, portanto, é ação de desagravo, em desforço e desfavor do malfeito, e deve estar voltada contra tudo que estiver em desacordo com o sentido público. Neste caso, a intolerância é positiva porque, ao negar a corrupção, exalta-se a defesa exatamente daqueles (povo pobre) que mais precisam do Poder Público e de um direito que respalde o fortalecimento da República. Por isso, não tolerar a corrupção é uma forma de se consagrar a intolerância negativa, quando se desabona uma ação intolerante – e a corrupção talvez seja a ação social mais intolerável para o povo: o indivíduo marcado pela cultura comum do homem médio brasileiro. Como se sabe, Estado é um conjunto institucional formado pela articulação umbilical entre povo, território e soberania. Portanto, vejamos de que território se trata. 140 TERRITÓRIO Áreas ocupadas na Amazônia e controladas por forças paramilitares internacionais, sob a roupagem de uma ONG, indicam ou não perda evidente de soberania nacional? Segundo o general Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, já se configura um verdadeiro Estado Paralelo: [...] só na região da Amazônia, já existem mais de 100 mil ONGs. A maioria não é fiscalizada e atua livremente na região. Especialista em assuntos da Amazônia desde que entrou para a reserva, em 2001, o general Lessa já esteve à frente do Comando Militar da Amazônia, do Comando Militar do Leste e foi presidente do Clube Militar117. O Território é um dos elementos essenciais, de fundação e que asseguram a existência do Estado. Não há Estado sem território. O território é a base material, mas também fortalece a identificação geográfica, como base geográfica do poder, e ainda é um marco simbólico: “o solo sagrado da pátria”. Na concepção política do território destacam-se questões relativas à geopolítica e à esfera política em que a soberania do Estado é definida sobre seu território. Maquiavel é um marco nesta dimensão, uma vez que delimitou a passagem histórica do EstadoCidade ao Estado Nacional. Pode-se dizer, inicialmente, que o território (do latim territorium) serve de limite à sua jurisdição e é “o país propriamente dito”. No Brasil, ainda, recebe a cautela do Código Penal118 (Neto, 2009, p. 58). Compreende: solo, subsolo, ilhas marítimas, ilhas fluviais e lacustres, plataforma continental, mar territorial, espaço aéreo e mares interiores (Friede, 2010, p.56). Território é a delimitação da ação soberana do Estado (Dallari, 2000). Definindo-se como geopolítica, território é onde o Estado executa o Poder Político e exercita a soberania. Sinteticamente, são componentes do território: Mar territorial Terra firme – com as águas recorrentes Subsolo Plataforma continental Espaço aéreo Mar territorial são as águas que banham a terra firme, as costas do território do Estado. É uma zona contígua ou adjacente variável, de 12 a 200 milhas. Na doutrina defensiva, nos séculos XVIII e XIX, media-se o mar territorial pelo alcance das peças de artilharia: ub vis, ibi ius. Atualmente, com a Declaração de Montevidéu (Primeira Conferência Latino-Americana sobre Direito Marítimo), de 1970, a fixação brasileira em 200 milhas baseia-se na necessidade da segurança nacional, na repressão ao contrabando e no controle da navegação estrangeira. De acordo com a Conferência sobre o Direito do Mar (1958), definiu-se que a soberania do Estado alcança “uma zona de mar adjacente às suas costas, designada sob o nome de mar territorial”. O Brasil aderiu a esta política de soberania nacional, ressalvado o direito de passagem inocente, como simples trânsito sem motivações pesqueiras ou militares. Durante muito tempo, a codificação sobre o uso dos mares foi apenas costumeira. Só em 1958 é que ganhou novo regime jurídico: 1) Convenção sobre o mar territorial e a zona contígua. 117 118 http://celiosiqueira.blogspot.com.br/2011/12/amazonia-general-lessa-denuncia-ongs.html, acessado em 18/04/13. Artigo 5o, §§ 1o e 2o. 141 2) Convenção sobre o alto mar. 3) Convenção sobre pesca e conservação dos recursos vivos do alto mar. 4) Convenção sobre a plataforma continental. A questão é que o mar não seria mais visto apenas como rota de navegação, mas sobretudo pelo fator econômico. Antes mesmo da grande Convenção de 1982, já se criticava a ideia do mar como res communis (pois não haveria qualquer elemento condominial); melhor seria tratar o mar como res nullius (insuscetível de apropriação e sobre o qual os Estados têm responsabilidades determinadas). Tentava-se a transposição de preceitos do direito civil. Porém, desde 1982, ganhou força a convicção de que se trata de res communis. A Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar entrou em vigor em 1994, mas o Brasil já havia aderido (Lei n. 8.617/93), reduzindo-se a largura do mar territorial a 12 milhas e adotando o conceito de zona econômica exclusiva (180 milhas restantes). O artigo 7º, § 1º da Convenção de 1982 trata das águas interiores – uma ficção jurídica, porque carecem de interesse internacional, como baías e outras áreas situadas aquém da linha de base (assumem a natureza de águas internas). O Estado lhe exerce soberania ilimitada; não há direito de passagem inocente. Se há navios de guerra estrangeiros em seus portos, ao Estado costeiro resta a imunidade da jurisdição cabível ao estrangeiro. Esta noção não se aplica aos navios mercantes, apenas a praxe da não-interferência. O subsolo e a plataforma continental – vide a extração do Pré-Sal – são indicadores do território porque há uma definição tridimensional da soberania. Quanto ao subsolo, considerase que “o vértice se acha no centro da Terra”. A plataforma continental é uma extensão da massa terrestre. Em 1951, a Comissão de Direito Internacional definiu-a como o leito do mar e o subsolo das regiões submarinas contíguas às costas, mas situadas fora da zona do mar territorial, até uma profundidade de 200 metros (Rezek, 2011). São aplicados os Princípios da Liberdade e da Inapropriabilidade. Na definição do espaço aéreo, a soberania do Estado alcança a altitude necessária à sua defesa e proteção. Na Conferência de Chicago (1944), definiu-se a liberdade de voo ou trânsito inofensivo de aeronaves civis, exceto sobre áreas militarizadas. O espaço cósmico, desde a Comissão para o Uso Pacífico do Espaço Extra-atmosférico (1958 e 1961), é limitado pelo Princípio da Inapropriabilidade. Em 1967 a ONU interditou a colocação de armas de destruição em massa. A política estadunidense de Ronald Reagan, denominada de Guerra nas Estrelas, além de afrontar o dispositivo da ONU, ofendia a soberania de todos os Estados. As exceções ao poder de império do Estado são a extraterritorialidade (a exemplo dos navios de guerra) e a imunidade dos agentes diplomáticos. A definição de Navio data da Convenção de 1982 e exige que a embarcação tenha sempre um nome, porto de matrícula, determinada tonelagem e nacionalidade (bandeira nacional). São de dois tipos básicos: navios mercantes (geralmente particulares); navios de guerra (pertencentes às forças armadas de um Estado, com armamentos, oficiais identificados e com tripulação submetida à disciplina militar). Gozam de imunidades em portos ou mares estrangeiros. De acordo com a concepção jurídica do território, incluindo-se Jellinek (2000), é clara a afirmativa de que não há Estado sem território, como base física e permanente do poder. Em sua demonstração histórica evolutiva, a teoria do território-patrimônio não distinguia o direito público do direito privado (direito das coisas). Define-se claramente como teoria patrimonial, em que não se separava nitidamente imperium e dominium e assim o território era tido como coisa do Estado. O território era considerado propriedade dos senhores feudais e depois passou a ser 142 propriedade do Estado. A tese do dominium define o território como propriedade do Estado; já o imperium conserva o caráter essencialmente político da soberania sobre o território. A teoria do território-objeto define o território como direito real de caráter público – um direito especial, eminente, soberano. Em sua exterioridade, o território é objeto frente ao Estado, parte do direito de propriedade, mas agora definido como direito de propriedade deste. O Estado pode utilizar o território para atender os fins designados politicamente, ao mesmo tempo em que se exclui toda ação estrangeira (tal qual a concepção do direito de propriedade). Atribuise, no entanto, um poder jurídico exclusivo do Estado sobre seu território119. Seguindo-se a teoria do território-espaço, ficou clara a distinção requerida entre propriedade e território, pois o território não é uma extensão material e sim parte da essência do Estado. O poder do Estado não é um poder exercido sobre o território, como coisa, propriedade (dominium), mas sim poder no território (imperium). O território é “o palco da soberania estatal”. Em resumo: Como a autoridade do Estado com respeito ao território é de teor pessoal, não havendo aqui que falar de dominium, poder sobre coisas, senão de imperium, poder sobre pessoas, o poder do Estado de obrigar as pessoas no território se faz de maneira exclusiva, se se trata de Estado soberano e unitário; ou, na hipótese federativa, de Estado composto, em colaboração com o Estado soberano, ao qual se acha sujeito o Estado-membro, conforme adverte Jellinek (Bonavides, 2012, p. 111). Trata-se de um poder exercido sobre pessoas e não sobre coisas e/ou propriedades, como parte do ser e da pessoa jurídica do Estado (Malberg, 2001). Contudo, algumas controvérsias perduram, como o condominium que se formou no Sudão Anglo-Egípcio, como protetorado britânico do século XIX e com exercício conjunto da soberania entre Egito e Grã-Bretanha, formando-se o território que hoje é o Egito, a Líbia e o Sudão, até 1956, quando se deu a separação dos territórios. Por fim, a teoria do território-competência, na Escola de Viena, com Kelsen (1998), tem no território “um elemento determinante da validez da norma”; uma espécie de “diocese do poder estatal”, em que o território é definido como âmbito de validação da norma, como “delimitação espacial da validez das normas jurídicas”. A soberania estatal sobre os territórios, atualmente, é limitada pelos valores e interesses globais, a exemplo do patrimônio cultural, histórico e natural120. A aquisição do território do Acre pelo Brasil, da Bolívia, marcou a tentativa de se colocar fim aos conflitos armados na região. Em 1903 foi assinado um tratado em Petrópolis, mediante uma indenização de dois milhões de libras esterlinas – além de pequenas concessões territoriais no Mato Grosso –, concedendo-se o território ao Brasil. Além disso, o país se comprometeu a construir a famosa ferrovia Madeira-Mamoré. Em busca de resolver graves problemas econômicos, a compra do Alaska da Rússia pelos EUA, na segunda metade do século XIX (1867), revelou-se perturbador, porque se descobriu que o território era rico em jazidas de petróleo. Hoje em dia, porém, esse tipo de aquisição territorial não seria tão facilmente proclamada, uma vez que impõe clara perda de domínio territorial (a não ser pelo exemplo de Porto Rico). 119 Clara limitação seria dada pela ONU, por exemplo, quanto aos crimes de guerra, de genocídio. Como direitos da humanidade, a proteção especial deveria resguardar a memória da humanidade de ações como a do Talebã que destruiu estátuas de pedra, datadas do século IX, de Buda (as maiores do mundo, com 53 metros), no Afeganistão, em 2001. 120 143 A proteção internacional do meio ambiente, evolução e princípios A normatização jurídica específica sobre o tema ambiental deve-se à sobrecarga da interdependência. A ação ou omissão estatal ocasiona reflexos majorados em ambientes de outros Estados e sobre sua própria população. Assim, o planejamento comum teria um ganho global. Essa normatização configura o aprimoramento dos direitos humanos de terceira geração: meio ambiente saudável. As normas ambientais são de caráter instrutivocomportamental, mais do que impositivas de obrigações de resultado (soft law). Algumas disposições remontam ao século XIX, com claro sentido preservacionista da fauna, da flora e dos rios. Nos anos de 1950, ainda como direito esparso, a preocupação já estava dirigida à crescente poluição da indústria química e aos dejetos nucleares. Em 1972 celebrou-se a grande Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente (Estocolmo). Disto resultaram dezenas de Resoluções e Recomendações, incidindo na Declaração de princípios norteadores de convicções comuns dos Estados participantes. A Convenção relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (1972) é o primeiro documento que proclama o Direito da Humanidade. Tem por objeto a proteção de bens jurídicos que pertencem à Humanidade. Os Estados soberanos em que esses bens se encontram são meros administradores fiduciários. O patrimônio cultural e natural (artigos 1 e 2) é protegido como integrante da biosfera, como valores criados pelo homem ou porque sejam inerentes à natureza: Artigo 1 (Patrimônio Cultural) - MONUMENTOS: obras arquitetônicas universais, estruturas de natureza arqueológica, cavernas, inscrições. - CONJUNTOS: grupos de construção isolados ou reunidos. - LUGARES NOTÁVEIS: “obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza”; inclusive lugares arqueológicos. Artigo 2 (Patrimônio Natural) - “Monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas”. - Formações fisiológicas e fisiográficas: hábitat de refúgio para espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção. - LUGARES NOTÁVEIS NATURAIS: de valor excepcional para a ciência ou do ponto de vista da beleza natural. De todo modo, são resguardados por sua importância científica, natural, cultural, estética. De sua definição, não constam as obras de arte não-monumentais, como livros, partituras e obras de arte representativos do espírito humano. Por outro lado, é óbvio que o conteúdo do Museu do Louvre pertence ao imenso acervo da cultura mundial. A conservação dos originais é, pois, exigência da memória humana, por constituírem valor único e insubstituível. Porém, a conservação de obras raras depositadas em museus e bibliotecas ainda espera a revisão da própria Convenção – quando se entender realmente fazerem parte do patrimônio mundial (artigo 8º – Comitê Intergovernamental). Em suma, constituem um interesse mundial excepcional. Rio 92 Na Conferência apelidada de Rio92 estava posto o binômio que preconizava a conjugação do desenvolvimento com preservação. Em 1992, no Rio de Janeiro, concluiu-se a Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Desta resultaram duas Convenções (mudanças climáticas; diversidade biológica) e duas Declarações (florestas; 144 uma geral) e um grande planejamento de ação global (Agenda 21). Cinco anos mais tarde, a própria ONU reconheceria e deplorou o atraso na implantação da Agenda 21. Contudo, as atenções se voltavam para o desenvolvimento sustentável: aquele que busca o desenvolvimento sem sacrificar seu próprio cenário. Definiram-se os tópicos centrais do desenvolvimento preservacionista – e este seria o papel esperado do Estado, a quem cumpre a responsabilidade da preservação ambiental. Entendendo-se o território como ambiente. No Rio de Janeiro se objetivaram os direitos das gerações futuras, fixando-se como deveres – os seguintes princípios: prevenção121; precaução122; cooperação internacional. A Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992) regulou a preservação da biosfera, a harmonia e o equilíbrio ambiental. Aplica-se, no plano internacional, o Princípio da Solidariedade entre todos os povos e destes com as gerações futuras. Trata-se da preservação da qualidade de vida, no presente e para o futuro. O objetivo de curto prazo era superar os níveis de degradação ambiental da época. Em 2005, 1350 cientistas de 95 países publicaram um relatório perturbador: - um bilhão de pessoas não tinham acesso à água potável e três bilhões não tinham saneamento; - entre 10% e 30% das espécies de anfíbios, aves e mamíferos estão ameaçados de extinção; - entre 20% e 35% dos recifes e manguezais já tinham sido destruídos. A Comissão Mundial para o Desenvolvimento Econômico (ONU-1987) definiu o desenvolvimento sustentável como um direito das futuras gerações, com base em dois conceitos: 1) NECESSIDADES: prioridade ao atendimento dos pobres do mundo todo; e 2) LIMITAÇÕES: impostas pela tecnologia ou organização social à exploração dos recursos naturais. Os mercados não podem mais regular o desenvolvimento sustentável. Em 2007, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (GEO4) indicou que a privatização dos recursos naturais e dos serviços públicos é o pior caminho a seguir. Cabe, pois, ao Concerto Universal das Nações (a partir do Estado-Nação) cuidar dos direitos das futuras gerações. Isto remete à Conferência sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972). A partir da experiência do Rio de Janeiro (1992) foi aprovada uma Convenção Climática (1994). O foco central era a biodiversidade: “fundamento biológico da diferença”. A Humanidade se fortificaria com a preservação das diferenças culturais e naturais, assim como se empobrece com a desigualdade social. Nenhuma espécie de ser vivo ou genoma pode ser monopólio de ninguém – é o legado da Humanidade. Porém, nos EUA e na Europa, as patentes de organismos biológicos alterados geneticamente são regulares, especialmente para espécies transgênicas. Aqui, dever-seia aplicar o Princípio da Precaução com a inversão do ônus da prova, porque os agentes econômicos é que devem provar a inocuidade dos experimentos genéticos. Em 1998, no Japão, aprovou-se o chamado Protocolo de Kyoto, acerca da redução percentual e variável conforme as regiões e os níveis de desenvolvimento, sobre a emissão de gases poluentes – entrando em vigor em 2005. Em 2007, em Bali (Indonésia), realizou-se a 13ª Conferência do Clima, como preparativo da renovação dos intentos protocolados em Kyoto (metas fixadas para 2013). Na década de 1990, o neoliberalismo dava a tônica e a Convenção de 1992 não foi adiante no enfrentamento dos valores econômicos estipulados pelas grandes corporações internacionais. Essas empresas, as que mais degradam o meio ambiente, não foram sancionadas por seus Estados e nem pelo direito internacional. 121 122 Quando há certeza científica dos danos ocasionados. Não há certeza de que possa haver danos ambientais. Mas, com forte suposição, in dubio pro meio. 145 A Convenção sobre o Direito do Mar (1982) afirmou direitos fundamentais da Humanidade sobre mares e oceanos. Trata-se da exploração e do aproveitamento dos recursos dos fundos marinhos e subsolos – para além dos limites da jurisdição do Estado-Nação. Incorporou-se o Princípio da Conservação Comum ao Meio Marinho. Para alguns, trata-se da afirmação dos direitos humanos de 4ª Geração: 1ª Geração = direitos civis e de cidadania; 2ª Geração = direitos econômicos, sociais e culturais; 3ª Geração = Direito dos Povos – direito internacional; 4ª Geração = direitos fundamentais da Humanidade. É o documento mais longo da história do direito internacional. O artigo 136 trata como patrimônio universal o leito do mar, os fundos marinhos e o subsolo – além dos limites da soberania. Denomina-se a “Área”. Domínio Público Internacional São os espaços em que a sua utilização suscita o interesse de muitos Estados ou de toda a comunidade internacional. Cuida-se aqui do mar, dos rios internacionais, do espaço aéreo, do espaço extra-atmosférico e do ambiente antártico. Pelo escasso interesse econômico suscitado, o Polo Norte não recebeu tratamento jurídico extensivo. Ao contrário do Polo Sul, ali não há massa terrestre – apenas água congelada. Normalmente é visto mais como uma rota aérea alternativa (Europa-extremo oriente). É visto como espaço de livre-trânsito, equiparado ao alto mar. A chamada Teoria dos Setores, sempre por atos unilaterais (não-questionados), e incorporando-se o Princípio da Contiguidade, serviu para se invocar o domínio das ilhas próximas à área (800 km do ponto de convergência): do litoral norte do Canadá, da Dinamarca, da Noruega e da Rússia. A ANTÁRTICA, por sua vez, é uma gigantesca ilha coberta de gelo. As pretensões nacionais de domínio também foram se acentuando, com base em quatro teorias: a) TEORIA DOS SETORES: o continente seria dividido em inúmeras fatias triangulares (com maior proximidade o Chile e a Austrália; mas igualmente o Paquistão e até a Islândia). b) TEORIA DA DESCOBERTA: Grã-Bretanha e Dinamarca por sua tradição marítima exploratória. c) TEORIA DO CONTROLE: aplicar-se-ia ao litoral antártico (EUA). d) TEORIA DA CONTINUIDADE DA MASSA GEOLÓGICA: Argentina. O Tratado da Antártica (1959) recebeu a adesão brasileira em 1975 – hoje são 45 países participantes. O regime jurídico do tratado expõe a não-militarização da região, mas não trata da renúncia e nem do reconhecimento do domínio de qualquer das partes envolvidas. Proibiu-se as manobras militares, qualquer tipo de fortificação ou o lançamento de resíduos radioativos. A Antártica deve ser usada para fins pacíficos, pesquisas e preservação de recursos biológicos (artigo 9º, § 2º). Em 1991, o Protocolo de Madri preservava a Antártica contra toda forma de exploração mineral por 50 anos. Destarte, é fácil concluir que um povo precisa estabelecer a plena soberania sobre seu território. 146 SOBERANIA A espionagem digital de segredos do governo federal, por instituições dos EUA, aniquila a soberania nacional? De modo simples e objetivo, a soberania implica no poder supremo, absoluto, superior: “um poder de dizer-se tal - qual”, de mandar. Por isso, não se diz de um “poder de comandar”, porque, neste caso, seria um poder de dividir o comando, “mandar com”, isto é, um poder de mandar com alguém não é um poder soberano, mas sim repartido. Vemos uma demonstração “organicista” do poder repartido, na figura estilizada de um indivíduo humano. Por sua vez, o poder soberano é inegociável: “não há meia soberania”; indivisível: “não há direito de secessão”; inalienável: “não se abre mão”; inesgotável: “não há previsão de término”; ilimitada: “sem-limites”. Então, a soberania se resume (não que se limite) ao “poder de vida e de morte”. A soberania ocorre quando o príncipe, imperador, soberano ou mesmo o governante (na democracia) ou general (na ditadura) editam o direito por intermédio do Estado. Em primeiro lugar, o direito ou a lei nada mais são do que a expressão fria, calculista do poder. Assim, o poder pertence àqueles que se ocupam do Estado naquele momento, enquanto grupo ou classe que domina o Estado, como “classe dominante” e que, portanto, passam a produzir um direito que lhes interessa. Em segundo lugar, se os detentores do poder (e processadores do direito) tiverem virtude, valor, prudência e astúcia, irão produzir leis que tragam obrigações e deveres ao povo, mas que lhes reservem apenas privilégios. Por fim, sua glória se revelará somente quando o povo não perceber que as leis são carregadas dessas imperfeições, isto é, quando o próprio povo estiver cego para ver que só lhe cabem deveres e que aos príncipes e barões só restam privilégios. De outro modo, quando o povo se apercebe de que está sendo ludibriado, então, o soberano tem que agir com vigor, mas um vigor suficiente para admoestar os adversários e assim novamente conduzi-los à cega obediência. Portanto, sob a ótica de quem detém o poder (soberano seria redundância) “o povo está sempre jungido ao jugo”, em que o direito é a expressão mais deletéria, abstrata, subsumida da excrescência do poder. Portanto, são características da soberania: Poder acima dos outros: poder supremo e uno. Não admite superlativo. Não é um poder temporal – não tem data de validade No passado remoto, o Príncipe faria tudo para manter o Estado unido, hoje é o governante. Na defesa da Razão de Estado, o soberano deve manter o Poder Público. Todo Estado soberano é um Estado regulador da moral pública, como Estado Interventor na cultura, moral. Alguns são mais, outros menos. Em suma, o Estado soberano é centrado (voltado para seus próprios problemas), centralizado (com um único poder central), centralizador (exerce-se pela força centrípeta), unificado (uno, indivisível) e apto (com recursos morais e materiais) para manter a unidade e a força do Poder Político. O Direito de Príncipes e Magnatas Para os mecanicistas ou organicistas, o poder soberano implica nos “elos da soberania”. No fundo, é como se quisessem dizer que tudo converge para o poder, para os elos do poder. Certamente, há uma hierarquia entre esses elos, entre o soberano e o povo: real possuidor, mas não destinatário da soberania. Há fases ou gomos de uma enorme correia de transmissão. Esta correia do poder que une os que mandam e os que simplesmente obedecem inclui obviamente o direito e o próprio Estado. Porém, também nesta correia de transmissão, há um elo mais fraco: o 147 povo tutelado. Não há mediação entre quem manda e quem só obedece, numa das pontas está o feitor do soberano e na outra, o tutelado. A ilusão do povo está em acreditar que este feitor (mero emissário do poder) possa representá-lo com legitimidade e parcimônia. Na primeira ficção jurídica, o povo abriria mão do seu poder, “por não conseguir governar o tempo todo” (afinal, alguém tem que trabalhar), trocando a chamada soberania popular pela segurança prestada pelo Príncipe. Por fim, a outra parte desta mesma ilusão é pensar que o poder tenha parcimônia: realmente, trata-se de uma ficção jurídica e ideologia política porque nada na história política dos povos conhecidos, endossa esse pensamento. Contudo, deve-se ver no direito uma relação de bipolaridade e que esta é sua alternativa para o “devido controle do poder” — pois dá para sustentar que esta bipolaridade do direito se resume a isto: de um lado, os que obedecem; de outro, os que mandam. Novamente os que procuram parcimônia no poder e no direito terão um desafio pela frente, pois o povo sabe do que fala: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Então, qual parcimônia? É somente o caso de uma resignação sábia: “há crítica e repreensão silenciosa”. Para os que pregam inadvertidamente que “o direito é parcimonioso”, ainda podemos dizer que “o poder dos magnatas não pode ser magnânimo”. É difícil conciliar, por motivos mais do que lógicos e óbvios, a dupla magnata/magnânimo (dadivoso) seria uma altercação do bom-senso e ignorar o bom-senso não é algo dizível e nem razoável: as punições costumam ser mais do que duras. No entanto, há grandes alterações entre o passado e o presente, entre o direito que socorre e serve aos poderosos de ontem e de hoje, entre os príncipes de outrora e os magnatas modernos? De certo modo, isso explica porque um ex-juiz condenado a décadas de prisão (por corrupção e muitos outros crimes contra a fé pública) sai caminhando do Tribunal, para aguardar o julgamento dos recursos em liberdade. Podemos dizer que o direito é feito pelo feitor do soberano e que o carrasco é seu executor, mas a ilusão do feitor é exatamente esta: acreditar que ele é o soberano. Enfim, de certo modo, por isso se diz que “o poder é uma ilusão” e o direito mesquinharia. Agora, de lá para cá, entre esse modelo de Estado Moderno-colonial e a assim chamada “sociedade da informação” o que, de fato, mudou? Mudou o fato de que os feitores de antanho, hoje, estão revestidos de uma forte ideologia que é crer que o direito possa trazer pacificação social numa sociedade cindida em classes sociais. Hobbes e o Poder Soberano Em todo caso, quer seja um empréstimo apropriado ou não quanto à soberania ameaçada por delinquentes ou inimigos, Hobbes seria mais explícito quanto à própria soberania necessária à Razão de Estado, ou seja, no lugar do Homem de virtù deve consubstanciar-se realmente o Estado como soberano. Portanto, o poder, ainda que absolutista, é menos pessoal ou personalizado e mais seguro a todo o povo: 1. Em primeiro lugar, aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, sem sua licença. 2. Em segundo lugar é evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto com seus súditos, porque teria ou que celebrá-lo com toda a multidão, na qualidade de parte do pacto, ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles. 3. Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes ou será deixado na condição de guerra. 148 4. Em quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer dos seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. 5. Em quinto lugar, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos. 6. Em sexto lugar, compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e doutrinas que são contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias. Portanto compete ao detentor do poder soberano ser o juiz, ou constituir todos os juízes de opiniões e doutrinas, como uma coisa necessária para a paz, evitando assim a discórdia e a guerra civil. 7. A sétima razão diz que: todo o homem pode saber quais os bens de que pode gozar portanto esta propriedade, dado que é necessária à paz e depende do poder, é um ato desse poder, tendo em vista a paz pública. 8. Em oitavo lugar, pertence ao poder soberano a autoridade judicial, quer dizer, o direito de ouvir e julgar todas as controvérsias que possam surgir. 9. Em nono lugar, pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com outros Estados. 10. Em décimo lugar, compete à soberania a escolha de todos os conselheiros, ministros, magistrados e funcionários. 11. Em décimo primeiro lugar, é confiado ao soberano o direito de recompensar com riquezas e honras, e o de punir com castigos corporais ou pecuniários, de acordo com a lei que previamente estabeleceu. 12. Por último [...] Ao soberano compete pois também conceder títulos de honra, e decidir qual a ordem de lugar e dignidade que cabe a cada um (Hobbes, 1983). A soberania é o poder de exceção A grande diferença entre os possíveis bandidos do passado e os usurpadores atuais do poder é que, no passado idílico, os mercenários respondiam aos seus generais e, na atualidade, empresas de matar como a Blackwater (assenhoreando-se do Iraque) atuam como civis e não respondem ao comando do Estado: literalmente, como nunca se viu na história, a máquina de guerra está acima da lei. Curiosamente, a soberania se apresenta melhor exposta sob os regimes de exceção, pois aí o poder aflora totalmente, como poder nu, no dizer de Einstein (1994). Soberano é aquele pode se colocar “fora” da lei: “O paradoxo da soberania assim se enuncia: ‘o soberano está ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’ [...] A especificação ‘ao mesmo tempo’ não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei” (Agamben, 2002, p. 23). Em resumo: exceção é um conceito limítrofe, “conceito de esfera extrema”, por isso sua definição não se configura na normalidade, mas sim no limite, no caso ulterior à legalidade. Seguindo-se Agamben (2002), e aplicando-se a tautologia (ele chama de paradoxo da soberania), pode-se dizer que a lei está fora dela mesma, afinal a autoridade não precisa do direito para criar o direito (basta-lhe o poder). O controle pluripotenciário123 ou institucional (divisão e controle dos três poderes), no fundo, também não responde satisfatoriamente à necessidade específica que gera exceções e que traz imbricações para a soberania. Diante da anormalidade, é preciso a ação eficaz do poder soberano — daí a dificuldade de se limitar a competência: 123 Poder-se-ia pensar na proteção do direito internacional, a fim de que não ocorressem abusos demasiados na aplicação do “direito de exclusão”, já a partir da Paz perpétua de Kant. Porém, exemplos recentes como da Guerra dos Bálcãs e a invasão do Iraque, mostram-nos o oposto. 149 Se houver êxito na descrição das competências conferidas para o estado de exceção – seja por meio do controle recíproco, seja pela delimitação temporal, seja, enfim, como na regulamentação jurídico-estatal do estado de sítio por meio da enumeração das competências extraordinárias -, a questão da soberania será reprimida em um passo importante, mas, obviamente, não resolvida (Schmitt, 2006, p. 12). O poder é mantido em detrimento do direito porque o Estado de Exceção é um “Leviatã fora da ordem”, em grave luta por autoconservação. A essência da soberania é a luta por autconservação do Estado. Por isso, não-contraditoriamente, a competência excepcional busca a lógica da normalidade para definir que a exceção pretende evitar o caos jurídico: o que não elimina a ironia124. De todo modo, em consequência, defende-se o status quo, o establishment como indicador do poder soberano. Isto transformou a teoria do direito à exclusão em uma teoria sistêmica do status quo; apesar da redundância, não por acaso, status (firme) derivou a figura do próprio Estado, ou seja, a teoria da exceção procura a paz na Razão de Estado. Seguindo esta linha, para Carl Schmitt, a dominação estatal está baseada no monopólio decisional acerca do próprio uso do poder/coerção. Apesar da teoria da exceção se valer da lógica formal (mas provocando-nos com o raciocínio indutivo), a razão em que se baseia o Estado de Exceção não é a razão da autonomia e sim a Razão de Estado que acomete e subjuga a todos. De acordo com o raciocínio da exceção, basta ter suficiente razão/coerção. Portanto, dado que há o poder que se quer estabelecido, a exceção não está fora, mas dentro da regra e de sua lógica — “para poder excluir, a regra de exclusão teve de ser incluída”: A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral [...] A norma se aplica à exceção desaplicandose, retirando-se desta [...] Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex capere) e não simplesmente excluída [...] Deleuze pôde assim escrever que “a soberania não reina a não ser sobre aquilo que é capaz de interiorizar 125” (Agamben, 2002, p. 25 – grifos nossos). Também é desta configuração que advirá o conceito de soberania: Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção Permanente, dirá solenemente Carl Schmitt (2006, p. 07). Mas, o que deve fazer o soberano em caso de extrema necessidade? A resposta à pergunta é igualmente uma resposta dada por Bodin e retomada por Schmitt: Até que ponto o soberano se submete à leis e se obriga diante das corporações? [...] Bodin responde no sentido de que promessas são vinculantes, porque a força obrigacional de uma promessa repousa no Direito Natural; porém, no caso de necessidade, cessa a vinculação segundo os princípios naturais gerais. Em geral, ele diz que, frente às corporações ou ao povo, o governante está obrigado somente enquanto o cumprimento de sua promessa for de interesse do povo, mas ela não se vincula si la necessite est urgente (Schmitt, 2006, p. 09 – grifos nossos). 124 125 Faz-se a “suspensão do Estado de Direito” para evitar o caos jurídico. Refere-se ao Deleuze dos Mil Platôs. 150 Com isto, diz Schmitt, Bodin inseriu a decisão no conceito de soberania. Por isso, a resposta à indagação de quem é o soberano na condição de exceção, já traz em si a resposta à questão de quem é a suma competência nestes casos: o soberano absoluto. Porém, a questão da exceção se ressente toda vez que se quer saber quem é o detentor do poder absoluto: Em uma locução mais usual, perguntava-se quem teria a presunção, para si, do poder ilimitado. Por isso, a discussão sobre o estado de exceção, o extremus necessitas casus [...] Em razão disso, também se pergunta quem decide sobre as competências constitucionais não regulamentadas, ou seja, quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à questão da competência (Schmitt, 2006, p. 11). Vico também afirmou a superioridade da exceção. Neste sentido, para Vico (1999), superior aos limites impostos pela norma jurídica, a exceção se torna princípio e baliza, o fim em si mesmo que requer imediata e plena aplicação. Na verdade, saber que os casos de extrema necessidade (exceção) estão ou não previstos em lei, é uma questão menor, porque a decretação do Estado de Exceção suspende toda a fruição do ordenamento jurídico. Então, mesmo a previsão legal será suspensa e, se não houver previsão legal, com mais motivação a exceção será decretada. Atualmente, o que se chama de Estado Global nada mais é do que a globalização vista como um longo e amplo processo histórico-coletivo de negação de um suposto Direito Global, e que veio se formando desde o século XVI. Este processo se fortaleceu no século XVIII (com as Revoluções Americana e Francesa: a primeira mais republicana, fundante de um Estado-Nação; a segunda mais proletária e, depois, igualmente sangrenta e até conservadora). No século XIX, contou-se com a inclusão de um movimento operário organizado (ou mais organizado do que ao tempo das “barricadas” de 1848 por quase toda a Europa) e de um outro feminista (de Chicago para o restante do mundo). No século XX, apenas para recordar, este processo ainda tinha energia para aderir e congregar outras tantas forças sociais, como: requerer a autodeterminação dos povos, os “direitos humanitários” (especialmente no pós-Segunda Grande Guerra), além de contar com as minorias (inclusive dos “deficientes, mutilados e amputados" entre 1939-45), o meio-ambiente, o desenvolvimento tecno-científico. Durante séculos vimos ascender por boa parte do mundo novo e do Velho Continente formas intensas e determinadas de luta pelo reconhecimento de demandas, direitos e inserção social na dura batalha pela transformação global e que levasse aos mais diversos tipos, formas e mecanismos de reconhecimento das diversidades sociais. Anteriormente, a globalização dos direitos havia nos trazido a perspectiva da interação, do reconhecimento, da expansão do próprio direito: sobretudo sob a alcunha dos direitos humanos. Neste sentido caminham os quase sempre enumerados exemplos das lutas operárias (da Revolução Mexicana à tomada do poder em Cuba: 1959), do movimento feminista, do movimento estudantil no maio de 68, da Revolução dos Cravos, num só dia em Portugal: 25/04/1974. Mas o que temos no século XXI, além da agonia desse fluxo de conquistas e de seus combatentes? No século XXI, o que mais afronta a soberania é o poder econômico das empresas e grupos transnacionais, o capital especulativo e os atos de terrorismo individual ou de grupos como a Al Qaeda. Com o que vimos, podemos dizer que a soberania é realmente a capacidade de mobilizar as forças políticas necessárias, sem distinção da moral, para sanar os problemas que afligem a Razão de Estado. Portanto, neste prisma, a soberania pode aplicar forças que são próprias do Estado de Exceção. No final da ação, após a decretação da intervenção forçosa do poder, dir-se-á que a exceção está fora do alcance do Estado de Direito, uma vez que todo o ordenamento 151 encontrar-se-á suspenso. Detém a soberania aquele que pode criar e manejar o poder de acordo com sua vontade e que, ao final das contas, pode dizer o direito: Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor [...] O “ordenamento do espaço”, no qual consiste para Schmitt o Nómos soberano, não é, portanto, apenas “tomada da terra126” (Landnahme), fixação de uma ordem jurídica (Ordnung) e territorial (Ortung), mas, sobretudo, “tomada do fora”, exceção (Ausnahme) (Agamben, 2002, pp. 26-27). À primeira leitura, o Ser Soberano orquestra a própria vida como melhor lhe aprouver. Soberano é não ser obrigado a seguir as ordens de outrem, a agir com liberdade, autonomia, independência, sem ser tutelado, administrado, controlado por outras pessoas, instituições e/ou Estados. Por isso, é comum identificar-se, confundir-se soberania com independência, como se todos que são independentes fossem soberanos e vice-versa. Afinal, um Estado incapaz de se manter economicamente estável, sem depender dos outros, não será um Estado soberano. Se há propriedades particulares na Amazônia ocupadas por forças militares mercenárias, com sede nos EUA, isto implica que perdemos nossa soberania enquanto país? Ou será que perdemos a soberania apenas naquela região? Podemos manter metade ou um pedaço de território e ainda dizer que somos soberanos naquela região, mas que no todo estamos dominados, submetidos? Quando a Polícia Pacificadora, no alto dos morros no Rio de Janeiro, instala bandeiras do Brasil, estará admitindo que, a partir daquele momento, readmitiu a soberania naquela localidade e que, antes, não era soberano por ali? O crime organizado internacional, o tráfico de pessoas, isto também não desbaratina a soberania de um país? Além disso, é preciso saber que a soberania se aplica à Razão de Estado, ou seja, há um núcleo que fortalece a identidade, uma reserva moral para formar a Nação, uma justificativa política e jurídica para que o Estado exista e é isto que deve ser preservado sob todas as formas; para manter a soberania, isto é, a integridade da Razão de Estado, “os fins justificam os meios”. O tema é complexo e todas essas relações e intersecções são difíceis de julgar de modo direito. Em sentido complementar, a soberania que se constrói na legalidade deve colocar freios e limitações ao uso/abusivo do poder. Soberania Jurídica A soberania surgiu como um dos conceitos fundamentais na moderna ideia de lei. O soberano, portanto, é aquela pessoa ou órgão (Poder Legislativo) que age como legislador supremo numa dada comunidade. O Estado é uma noção mais geral do que a de soberano, representando a comunidade como organização jurídica, e simbolizando assim todas as várias manifestações da comunidade legalmente organizada. É sentida a necessidade de atribuir essa autoridade a alguma fonte mais permanente, ou seja, o próprio Estado. O aspecto interno da soberania é o do supremo legislador. Em seu aspecto externo, por outro lado, a posição é muito semelhante a do monarca absoluto ao abrigo de um sistema tradicional de direito (poder absoluto, no passado, e Poder Extroverso, atualmente). Um dos objetivos positivistas é estabelecer a autonomia da lei como um sistema de normas positivas cuja validade pode ser determinada dentro da estrutura básica do próprio sistema jurídico (presunção de legitimidade, 126 Interessante pensar que o soberano é aquele que “toma a terra em primeiro lugar”, demarca-a e aí estabelece o nomos, a norma atribuída ao território a esta altura delimitado. 152 presunção de veracidade). Além disso, a ideia de direito positivo parece também acarretar a noção de uma regra estabelecida (positum) por algum legislador humano identificável (coercibilidade). A lei estaria apta a possuir essa autonomia sem recorrer à autoridade externa127. Em síntese, o positivismo (incluindo o positivismo jurídico): É normativo. É positivo (filosofia positiva). É herdeiro do Cartesianismo e do Iluminismo. É um posicionamento contrário ao fanatismo. “É a verdadeira filosofia do povo”. Reforçou a perspectiva do Nós — a ideia de indivíduo era abstrata demais. É (foi) uma busca pelo "bom senso universal". Orienta para abandar as especulações e a metafísica. Apresentou-se, primeiramente, como Física Social. É o prenúncio ou a primeira pronúncia da Sociologia. É uma filosofia da ciência, uma espécie de moral e uma nova religião. Aplica o método das ciências naturais às ciências sociais. É uma doutrina que investiga leis, suas constâncias e relações: A teoria imperativa (imperative theory of law - imperatividade) equivale realmente a dizer que a lei é aquilo que o soberano ordena e que, por outro lado, nada pode ser lei que não tenha sido ordenado pelo soberano. O positivismo jurídico (dogmatismo, legalismo, monismo) expressaria uma unidade auto-suficiente da lei (tautologia). Porém, como observou o juiz Holmes, “a vida do direito não se baseia na lógica, mas na experiência” (Path of the Law - do juiz Oliver Wendell Holmes Jr.128). Toda norma legal que imponha uma obrigação (em contraste com as normas que meramente permitem ou autorizam certos atos) deve ter uma sanção agregada. A própria sanção é, no entanto, mera descrição de certas normas concretas na base da hierarquia legal, as quais fornecem um fundamento legal para a aplicação da força em determinados casos. Para Kelsen, uma sanção não é ameaça de força ou sua aplicação concreta, mas, simplesmente, a “concretização” final da série de normas que faz com que esse resultado físico seja autorizado no sentido jurídico (Lloyd, 2000, p. 240)129. O ponto de vista de Kelsen é que esse sistema monístico é não só desejável, mas, de fato, operativo, pois os Estados aderemlhe substancialmente, num grau que se coaduna com o princípio do mínimo de efetividade (erga omnes, exigibilidade, auto-executoriedade). Controle externo da soberania: o positivismo de Kelsen O século XX se caracterizou pela consolidação de um sistema de Estados nacionais e pela superação do jus publicum europeum, com a criação da Liga das Nações e da ONU. O eurocentrismo cedeu espaço ao globalismo – o ideal de Kant da Paz Perpétua estaria mais próximo, como uma espécie de “profissão de fé cosmopolita” rumo ao “direito público da 127 Discípulo de Bentham, John Austin (positivismo legal) apreciava a ideia de que a validade legal não se assenta na ordem moral e é distinta desta última. 128 Possner, Richard A. (ed.) The Essential Holmes. Chicago - London. Tradução de Lauro Frederico Barbosa da Silveira. The University of Chicago Press. 1992. p. 160-177. 129 Toda norma legal que imponha uma obrigação (em contraste com as normas que meramente permitem ou autorizam certos atos) deve ter uma sanção agregada. A própria sanção é, no entanto, mera descrição de certas normas concretas na base da hierarquia legal, as quais fornecem um fundamento legal para a aplicação da força em determinados casos (Lloyd, 2000). 153 humanidade”. Enquanto o direito internacional se referia à relação entre Estados. O direito cosmopolita tratava da relação entre de Estados e indivíduos (estrangeiros). O autor alemão rejeitava a Teoria Dualista do Direito – separando-se entre direito interno e direito internacional –, opondo-se a Jellineck, por exemplo, e trazendo uma formulação nova para a interpretação de Kant. O direito nacional de todos os Estados nacionais soberanos seria elemento de um todo, partes de uma “ordem parcial”. O direito internacional, portanto, seria a unidade objetiva do conhecimento jurídico”, o suporte para uma concepção monista. O que traria unidade ao sistema do direito seria a norma fundamental do direito internacional. Com isto, o que mais o distanciava da teoria dualista é o fato do direito internacional ser relegado a um tipo de moral, ou direito natural, distanciando-se o direito internacional de um verdadeiro direito - o – direito positivo. Para Kelsen, o Estado é uma “ordem da conduta humana”, dotado de poder para que suas ordens sejam cumpridas por todos. Desse modo, o Estado é, ou uma parte ou, o próprio ordenamento jurídico. Ou seja, o Estado tem a natureza de direito. Os indivíduos estão sujeitos ao Estado. Em relação ao monismo, sua crítica se inclina a constatar que nenhum Estado soberano poderia admitir contestação a sua estrutura normativa, sob o risco de invalidar a defesa nacional de sua soberania. Se o Estado é um conceito (ente) substancialmente político não seria em si uma substância jurídica e todas as soberanias estariam ameaçadas. Ao passo que, reunindo em um sistema único todas as regras do direito positivo, a soberania do Estado (de todos os Estados) se revelaria idêntica à positividade do direito. Esta comunidade de Estados, personificação do ordenamento jurídico mundial, como Estado mundial, é sinônimo de civitas maxima. As oposições entre regras de direito interno e regras de direito internacional, neste modelo, não seriam contradições lógicas, mas sim antinomia entre uma norma inferior e outra de natureza superior. Fazendo-se prevalecer um princípio básico do direito: a lei superior derroga a lei inferior. Assim, se para a concepção objetivista, o conceito ético de homem é a humanidade, para a teoria objetivista do direito, o direito só pode ser internacional, universal, e por isso ético. A expectativa objetivista seria garantir positividade ao direito internacional. Além do que a Teoria da Autolimitação do Poder (“regra da bilateralidade da norma jurídica”), sem que o Estado precisasse recorrer a uma ordem superior, não foi observada por Kelsen. Outra contradição está em admitir que “não há capacidade de decisão política sem se considerar elementos meta-jurídicos – como ideias éticas e políticas. Em todo caso, a teoria pluralista e a concepção objetivista de Kelsen assinala que a “unidade da soberania” (como “unidade do conhecimento”) deve ultrapassar os limites do EU estatal, sob o espírito universal, em que as efemérides do “espírito de cada um” (ente político-jurídico) deve se realizar, objetivando-se, uma vez que supera-se o subjetivismo de cada-um-só. Disto resulta outra contradição: “o direito se torna a organização da humanidade e aí se identifica com uma ordem moral suprema”. Fora do sistema puro do direito, direito e moral se apresentam sem distinção. Sua civitas maxima foi pensada a partir de todos os problemas da comunidade política do século XX, essencialmente em não se impor como unidade jurídica aos Estados soberanos. Mas, termina projetando ao direito internacional as mesmas características do Estado nacional: uma ética-universal e uma consciência humana universal. É isto o que o Estado representa para cada indivíduo em sociedade. É de se acentuar que o seu modelo de globalismo jurídico está na base da concepção universalista dos direitos humanos, quando preceitua-se que a formação de instituições jurídicas 154 supranacionais recorre à “unidade da experiência humana”, de uma moral validável universalmente e da vinculação de todos os Estados, quer queiram, quer não – mesmo os nãocivilizados. Seu objetivo era eliminar a justiça privada do âmbito das relações internacionais: o direito internacional seria o direito da comunidade interestatal. Do que decorre outra noção nuclear: a necessária centralização da administração da justiça em um tribunal internacional. O que confirma a ideia de que o direito é o monopólio da força em uma ordem coercitiva. A analogia doméstica revelaria que o Estado mundial garantiria a paz, tal qual se vê no esforço empreendido pela Federação nos EUA e nos Cantões suíços. Seu globalismo, enfim, é essencialmente jurídico. Mesmo para que tivesse eficácia fosse necessário que se criasse uma polícia internacional (jus puniend global). O que ainda equivaleria à restrição ou destruição da soberania estatal. A força dessa convicção está no fato de que o direito é também uma “ideologia de poder”. A ONU teria criado uma estrutura internacional de segurança recíproca. Porém, o Conselho de Segurança Pública perderia juridicidade, pois a concentração de poder desembocaria em decisões políticas. Quando escreveu sobre isso, em 1954, Kelsen alertava inclusive para que os vencedores da Segunda Guerra julgassem os crimes de guerra neste embrião de Tribunal Penal Internacional. Afinal, para Kelsen, “o direito é força”. Acreditava que a criminalização pessoal dos agentes da guerra evitaria outros conflitos bélicos. Contudo, assim Kelsen retornava às noções medievais de punibilidade do justus hostis e ainda negava o Princípio da Legalidade. Os detratores da guerra sabem que agem de forma absolutamente imoral e, por isso, devem ser julgados, independentemente de lei anterior que defina a ação como crime. Kelsen anteciparia as bases jurídicas e morais que passariam a ser invocadas na estruturação do Estado Penal: normas penais em branco (criminalização moral, independentemente de lei anterior que o defina) e polícia internacional a serviço do Império. Em todo caso, vislumbra-se ao menos a intenção de se demover o livre curso das forças incontroláveis da exceção130. Partindo-se do Positivismo Jurídico, especialmente de Hans Kelsen, o direito é tido como sinônimo de lei. Essa ideia do direito como um apanhado puramente dogmático de normas, decorre da visão monista do direito, ou seja, todo direito válido decorre única e exclusivamente do Estado. De outro modo, não podemos nos esquecer de que o pluralismo conceitual que recobre o direito é fruto exatamente da ocorrência da multiplicidade social (da dinâmica social) e que, portanto, o campo jurídico é sempre social, isto é, mais vasto do que a delimitação jurídica dos próprios eventos sociais. Desse ponto de vista, não se trata de uma discussão fútil a que procura ordenar alguns significados viáveis, aceitáveis, legítimos do direito; por isso, também não há neutralidade axiológica. Mas, como afirmava Kelsen, temos de observar o “princípio da supremacia da norma” – “a lei é obedecida porque é a lei”. Kelsen objetivava libertar o direito (a lei) dos elementos que lhe são estranhos, como o social, o político, o econômico. Esta proposição de uma teoria pura do direito quer ver o direito fora do contexto, ou seja, em “condições ideais de aplicabilidade”. A soberania racional A soberania foi definida no contexto do Estado Racional, ou seja, o monopólio político e jurídico não mais provém das tradições, do passado remoto, porque são decisões 130 Mesmo em Kelsen, a soberania se ajusta ao direito. O Estado de Direito tem a profundidade equivalente à aspiração à Justiça: “ordem juridicamente centralizada segundo a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas à lei” (Kelsen, 1979, p. 35). 155 racionais do legislador. Trata-se, então, de um projeto de poder consciente, como soberania racional. Os indivíduos são portadores do direito de segurança e assim devem ser protegidos pela lei; anteriormente, os mesmos indivíduos estavam atados por laços de sangue e, como membros de uma comunidade, pertenciam a nações sem soberania. Assim, o Estado soberano é uma ordem jurídica que governa uma criação comunitária consciente, racional e desejada. Para a comunidade, a teoria da soberania permitiu a consciência do dever de organizar o governo de forma soberana. Na definição de Bodin: “O Estado define-se como um governo de muitas famílias e daquilo que lhes é comum, dotados de poder soberano e conduzido legitimamente” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 222)131. A soberania significa, portanto, o mais alto poder de comandar. Do latim majestas, resume-se como poder absoluto e perpétuo. Impera o sentido de que o soberano não está limitado de forma alguma, às próprias leis; é o ponto forte do Estado de Exceção. Elevando-se acima do senso de justiça (ou da tradição), é certo dizer que o direito retira sua força da soberania. De tal modo que a soberania é um poder de dominação formalmente supremo. Desde Bodin – sobretudo no Estado de Necessidade – o próprio direito de produzir outros direitos decorre da soberania como plenitude do poder e não requer qualquer legitimação adicional. Como unidade, o Estado é uma ordem pacífica unitária, uma vez que a base da legitimação do direito interno está na conquista da independência interna e externa. Não há soberania sem liberdade integral de ação. A soberania não é, pois, uma consequência, mas antes de tudo uma qualidade política. O Estado é uma unidade de poder que tem o monopólio para impor o direito estatal por meio da força (coerção): “Só o poder cria o direito. O justo e o injusto nascem por meio do Estado soberano” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 228 – grifos nossos). Quem pode criar o direito, tem o poder de transformar o justo no injusto – e vice-versa. O poder soberano é aquele que tem um poder ilimitado sobre o povo, em determinado território. O conceito jurídico de soberania (competência soberana) engloba o direito de tomar decisões obrigatórias para os outros. O conceito político de soberania (plenitude de poder) implica apenas no poder de comandar os outros. Tem soberania externa quem é sujeito do direito internacional público e estabelece acordos e tratados com outros Estados. Na soberania interna, o Estado é identificado como a autoridade suprema perante seus cidadãos. Sob uma soberania orgânica, pode-se perguntar quem exerce internamente o poder supremo: o monarca ou o povo (soberania popular). Como soberania absoluta, há uma competência suprema no exercício do poder. Na soberania relativa se descreve a regulamentação do poder e a organização das funções públicas que servem ao interesse comum (o Judiciário e a polícia). Como soberania positiva se designa a margem de ação do Estado. Já a soberania negativa indica o espaço de liberdade política concedida pelo direito (historicamente, a liberdade negativa vem sendo demarcada desde a Carta do Rei João Sem Terra). Modernamente, para Austin – também citado por Gerster – são idênticas as soberanias jurídica e política. Com Hart – ainda próximo de Austin – a soberania não se constrói somente com obediência, costumes e comandos. O poder só (como poder nu) não basta; a obrigatoriedade intrínseca do direito é uma regra positivada. Portanto, o soberano deve se ater a certas regras, deve respeitar certas prescrições de procedimento. Com o que ainda se verifica um caráter vinculante intrínseco do direito, em que a soberania expressa a ordem jurídica democrática: “Assim, não é soberano aquele que possui o poder em sua plenitude máxima, mas sim aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 242 – grifos nossos). Nesta soberania profunda, a legitimidade do poder – como mecanismo de 131 A ideia de que o governo e o Estado derivam da organização familiar do poder também está em Vico (1999). 156 controle do Estado de Direito – está na distribuição da Justiça Social. Desse modo, há uma presunção de legitimidade nas decisões; na soberania jurídica profunda está a autoridade do Estado e não só a força do Estado. Mas, ainda há que se reportar que na soberania profunda (ordem jurídica democrática) o potestas in populo não é um adereço do poder, sendo expressão do poder social. Portanto, soberano é o povo que expressa sua vontade contida no poder social. Não há soberania sem legitimidade – o poder de impor uma vontade sem restrições é tirania e o apelo à força pode indicar, exatamente, a perda da soberania como capacidade de exercitar o governo. Quanto mais autoritário, mais desesperado para se manter o poder já violado. Não podemos esquecer, porém, que o Estado Moderno teve ampla justificativa como força e coerção, como jus puniendi. 157 ESTADO GUARDA-NOTURNO poder de punir: jus puniendi O Estado Moderno tem como característica acentuada o exercício do poder de controle social e de repressão às tentativas de sedição. Esta condição foi predominante durante muito tempo, uma vez que o poder central, para se manter como governo e administração do Poder Político, constituindo-se em ação efetiva do Estado soberano, precisava repelir todas as ações que rivalizassem com sua estrutura de poder. Para esta análise tomaremos obras da literatura que se expressam pelo realismo de que são porta-vozes. A literatura que denuncia as sombras do não-direito O Último Dia de um Condenado, romance de Victor Hugo (2002), é um libelo a favor da liberdade – muito mais abrangente, portanto, do que uma trincheira contra a pena de morte. É um clássico que permite inúmeras leituras e nos faz pensar/sentir/reviver a total insegurança/insensatez/incoerência do sistema social e estatal em que vivemos. Salta aos olhos como é pequena a alma que rege o espírito público quando vocacionado à violência. É necessário repensar a crença no chamado Estado Guarda-Noturno132: aquele que dizia velar pela segurança de todos. Sob o ângulo da Teoria Política contemporânea, esse Estado Guarda-Noturno traz uma espécie de Estado Gendarme e, de quebra, vem o fim da crença na segurança do Estado. Trata-se do fim da perspectiva de que o Estado é capaz de assegurar tranquilidade, paz, interação e socialização para os mais acomodados, para os seres comuns ou, então, a tal ressocialização para os mais ineptos. O Estado Guarda-Noturno, entretanto, quando não cumpre essa meta da segurança mínima, vê-se inundado de projetos neoliberais, vê-se invadido e ocupado pelas ideologias privatistas e é por causa da insegurança que se cria o Estado Guarda-Costas: quem pode pagar mais, tem maior proteção, pois que a segurança, de direito fundamental, transforma-se em objeto de consumo – da mesma forma, quem tem poder de consumo também pode se proteger. Isto é, pobres de nós que acreditamos nesse Estado Inseguro. O Estado-Gendarme133 é ele próprio inepto e por inúmeras razões: não há como ter um policial, um gendarme, para cada cidadão, para cada pessoa. Diria, no entanto, que é mais grave, pois, ainda que fosse possível, isto não seria útil, razoável, não traria benefícios a ninguém. Aliás, seria nossa maior desgraça, porque basta pensar que, pior do que um Estado com poucos policiais é ter um Estado repleto deles – os policiais a vigiarem a tudo e a todos. Tudo na dose certa? Nesse caso, o Estado Policial é o Estado repressor, controlador, abusivo, violento, autoritário. Não se trata de um “ou-ou”, ou violência ou repressão, porque a repressão só pode ser violenta. Trata-se de ver que, se o Estado se transformou no Estado Vingador, no Estado Vingativo, isso é um péssimo sinal, sendo sinal de que aí grassa a dor, a tortura, o medo, a vingança, o terror, a ameaça, a insegurança, a mera repressão, a apatia – depois o questionamento, a resistência, a desobediência: e mais repressão. Não há coisa pior do que essa insegurança jurídica e política: Afirma-se que há segurança para os cidadãos, tendo-se em vista que as preceituações legais estabelecem como todos devem pautar a sua conduta, a fim de evitar as sanções estabelecidas, no caso dum descumprimento dos deveres que as leis impõem. Mas haverá maior insegurança do que uma determinação sem limites, através da legislação, 132 133 Essa expressão foi utilizada pela primeira vez por Lassale, ao final do século XIX (Canotilho, s/d, p. 92). O do acompanhamento policial em que tudo e todos são suspeitos, como é todo regime fascista. 158 do que é permitido ou proibido, além do mais realizada por um certo poder que se dispensa de provar a própria legitimidade? Este poder, ao contrário, se presume legítimo, a partir do fato de que está em exercício e chegou à posição desempenhada, seguindo os processos que ele próprio estabelece, altera e, de todas as formas, controla a seu bel-prazer (Filho, 1999, p. 37-38). De forma prática, quanto mais se pede a polícia nas ruas, mais longe estamos da segurança, pois é o sinal claro de que as ruas (o espaço público) foram tomadas unicamente pela violência, pela barbárie. E, nesse caso (é coisa da lógica), mais violência não trará a paz...só mais violência. Assim, ao contrário, o caminho seria termos mais educação, mais lazer, mais ocupação, mais cultura, mais vida pública, mais responsabilidade social, maior comprometimento e maior participação – de pobres e ricos e altos e baixos. Para salvaguardar essa mensagem, na voz de um condenado à pena de morte, Victor Hugo se pergunta se o sistema tem vida ou alguma inteligência (aqui representadas na figura dos juízes que condenam o sujeito ao cadafalso). Sua resposta viria num lamento lacônico: “Não. Eles veem em tudo isso apenas a queda vertical de uma lâmina triangular e pensam sem dúvida que para o condenado não há nada antes, nada depois” (Victor Hugo, 2002, p. 46). Mas, como o Estado de Direito se limitará à pura vingança? Para Victor Hugo, é possível indicar, o sistema parece não ser nada mais do que essa encarnação da maldade, essa corporificação das penas, dos apenados e dos penalistas. Victor Hugo já indicava algumas ranhuras do biopoder, quando o poder se inscreve na carne, quando não mais se satisfaz com a simbologia e passa a se calcificar na figura do agente da punição. Comparativamente, n’A Colônia Penal, Kafka irá rasgar a pele dos presos, tatuando a derme, rasgando profundamente a alma de cada detento. De modo semelhante, Victor Hugo conseguirá relatar mais vivamente o biopoder do que o panóptico de Foucault. O biopoder, portanto, é o poder em carne e osso, vivo como o sangue, mas sem fluxo: Esse bom carcereiro, com seu sorriso benévolo, suas palavras afáveis, seu olho que lisonjeia e vigia, suas mãos grossas e largas, é a prisão encarnada, é o Bicêtre fazendo-se homem. Tudo é prisão à minha volta. Reconheço o cárcere sob todas as suas formas: sob a forma humana assim como sob a forma de grade ou de ferrolho. Esse muro é prisão de pedra; essa porta é prisão de madeira; esses carcereiros são prisão em carne e osso. A prisão é uma espécie de ser horribilíssimo, completo, indivisível, metade edifício, metade ser humano (Victor Hugo, 2002, p. 82). Sempre se soube que quem controla a carne, controla a vida. Em resumo, nesse Victor Hugo há um sistema punitivo como reverberação de uma “bondade mal-sã” (o sadismo embalado em cortesia). À espera da definição do dia em que a sentença da morte seria executada, o prisioneiro revela esse sentimento, como se ainda dissesse que o pecador vem bem vestido: “É hoje! O diretor da prisão em pessoa acaba de me visitar. Perguntou-me no que ele poderia ser-me agradável e útil, exprimiu o desejo de que eu não tivesse do que me queixar, dele ou de seus subordinados, informou-se com interesse sobre a minha saúde e como eu havia passado a noite. Ao me deixar, chamou-me de senhor! É hoje!” (Victor Hugo, 2002, p. 81). 159 Assim, é fácil ver como o sistema nada recupera, pois ele próprio é irrecuperável. Mas é notável como Victor Hugo nos diz isso de forma quase poética, ou seja, no melhor estilo do “romantismo realista e engajado”: “Ah! Como é infame uma prisão! Há nela um veneno que macula tudo. Tudo é conspurcado, até mesmo a canção de uma menina de quinze anos! Se encontramos um pássaro, haverá lama em suas asas; se colhemos uma bela flor e a aspiramos: ela fede” (Victor Hugo, 2002, p. 78)134. Kafka Tatua o Biopoder Na Colônia Penal (1993), conto de transição, Franz Kafka sinaliza (no enfoque proposto no texto) um marco, uma inscrição material na “literatura engajada de denúncia do biopoder”: a literatura engajada na crítica social e institucional (interpessoal), e que se utiliza da metáfora do corpo vivo, em carne e osso, vendo-lhe fluir o sangue, para diagnosticar/vaticinar que o poder nos atormenta até as entranhas, até a medula (em alguns casos, há uma metástase incontrolável). De qualquer forma, pela leitura do texto do Kafka advogado, fica patente como o poder está alojado (ou ocupa?) num biótipo; do contrário, que outro significado ainda mais oculto seria revelado no “ato de se tatuar as ordens/deveres/punições junto à derme dos condenados”? Para que inscrever profundamente nas carnes dos condenados135? No caso do condenado que dirige as cenas e as atenções principais, Na Colônia Penal, a ordem não cumprida será estampada para que reflua toda e qualquer futura admoestação: “Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo — o oficial apontou para o homem — será gravado: Honra o teu superior!” (Kafka, 1993, p. 39). E como se trata de desafio ao instituído, o caso será resolvido em julgamento sumário, sem a processualística que só abalaria “o bom andamento das coisas”. Em resposta a um ilustre visitante, o policial/torturador não mede suas palavras: “O explorador queria perguntar diversas coisas, mas à vista do homem indagou apenas: — Ele conhece a sentença? Não, disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações. Mas o explorador o interrompeu: — Ele não conhece a própria sentença? [...] — Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne” (Kafka, 1993, p. 39-40). O suplício, a deturpação de todo princípio do direito e a ampla violação dos direitos humanos confirmam como funciona a dinâmica do Estado não-Democrático, do Estado de Exceção, desse verdadeiro Estado de Execução: “— As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável” (Kafka, 1993, p. 41). Então, o próprio biopoder será outra metáfora, a revelar outras tantas situações/relações ainda mais recônditas? Trata-se de desvelar o Estado de não-Direito, as graves violações dos direitos fundamentais. Metáfora da metáfora, o conto se revela como um possível caminho de condução à verdade, sobretudo acerca do status quo e dos interstícios dos institutos de dominação/repressão. Porém, há aí também uma dialética e ora se contempla o rito do poder (a 134 E não há forma melhor de fechar do que lembrar, apesar dos pesares, que depois de sua leitura nossa alma sai fortificada, porque nossas prisões e nossos algozes tornam-se mais visíveis e previsíveis. O sentimento de ler o gênio é insuperável, indescritível, insofismável, porque se trata de um romance insubstituível, que deve ser estudado, apreendido e não apenas lido ou, o pior, consumido – o sentimento que resultou dessa leitura, realmente, é constituído ou reflete as belas letras que lhe dão guarida. 135 Curiosa a relação que se pode estabelecer entre as tatuagens habituais dos presos, revelando até níveis hierárquicos ou valentia decorrente dos crimes cometidos e ali “desenhados”: não deixam, nunca, de ser desenhos do poder. 160 tatuagem na carne e na mente) e ora sua resistência: essa sempre iniciada na indiferença. Vejamos os dois sentidos ou os dois casos: “O comandante, com a visão que tinha das coisas, determinava que sobretudo as crianças deviam ser levadas em consideração [...] Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu camarada!” (Kafka, 1993, p. 55). Essa é uma descrição dos mecanismos internos, psíquicos, do sadismo em seu pleno funcionamento. Agora vejamos como se aposta na indiferença, a negação que tanto provoca/desestabiliza o status quo já enfraquecido: Quando o antigo comandante vivia, a colônia estava cheia de partidários seus; tenho em parte a força de convicção dele, mas me falta inteiramente o seu poder; em vista disso os adeptos se esconderam, existem muitos ainda, mas nenhum o admite. Se o senhor for à casa de chá hoje, ou seja, num dia de execução, e ficar escutando em volta, talvez ouça apenas declarações ambíguas. São todos adeptos, mas sob o atual comandante e seus atuais pontos de vista, eles não me servem para coisa alguma (Kafka, 1993, p. 53). Aliás, será essa uma descrição do que motiva a negação do direito à indiferença? Aí se desnuda e se esclarece outra metáfora: reconhecer a indiferença é afastar a cumplicidade. O poder, agora que estamos mais esclarecidos, diz-nos atentamente que não lhe interessa o sujeito participativo ou o mero adepto, mas só o cúmplice. Por fim, a última grande metáfora nos revela, talvez, como é intenso/custoso – mas devendo ser definitivo – o “enterro da repressão”. Porém, é de se lembrar, suas marcas sempre ficam expostas como indicativos de que o biopoder é o nosso habitat natural: “Tinha uma inscrição com letras muito miúdas. Para poder lê-las o explorador precisou se ajoelhar. Dizia o seguinte: “Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determinado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai!” (Kafka, 1993, p. 77). São lamúrias da opressão – aliás, uma ironia: “as queixas lamuriosas da opressão”. A lápide descritiva do biopoder - a aposta certeira de que o mal habita a todos - é nossa consciência, é o lembrete presente para a vida toda; pois é preciso lembrar, repetir à exaustão, para não voltar! Pietro Verri: uma Terrível Combinação Literária Um livro que deveria ser alçado à cabeceira, principalmente de quem busca no Estado um instrumento de regulação das condições mínimas da justiça (sem esquecer que vivemos em uma sociedade de classes, cindida em contradições), é o famoso Observações Sobre a Tortura, de Pietro Verri (2000): uma narrativa das barbáries do Estado, ainda que feitas em “razão do Estado”. Trata-se de um livro que luta por um quádruplo: razão, verdade, justiça, dignidade. Não há razão sem verdade, nem justiça sem dignidade (não é digno de fé quem não age pela verdade; não tem razão quem não é justo). Observações Sobre a Tortura é um livro representativo do Iluminismo do século XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a Milão de 1630. É uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie praticada pela tortura, pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela ignomínia e pela cupidez. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte do desvelamento. 161 No fundo, nos crimes cometidos, vemos refletir-se a alma das pessoas e da sociedade em que vivem. Já com os tipos penais, e com as penas consequentes, temos o nível de organização da cultura, o formato que o povo conseguiu imprimir ao Estado. Por isso, os crimes e as penas são fontes ricas, preciosas, para quem quer demonstrar o que a sociedade é capaz de produzir e em que nível se encontra nesse longo processo civilizatório. Portanto, abolir a pena de morte e a tortura é “civilizar” a pena, o apenado, a vítima e a sociedade. É como se dissesse que só se utiliza da força bruta aquele que é incapaz de alguma prova ou demonstração de inteligência: o uso desmesurado da força é a prova maior da fraqueza de espírito que domina a (in)consciência mediana – perde a consciência quem domina pela violência. Nesse turno, a tortura é o atentado mor ao desenvolvimento racional, social, cultural, pessoal e coletivo. Aliás, a violência é a marca efetiva da ausência de qualquer espírito vital, vivendo-se aí no núcleo da barbárie. E justamente por isso, como alegar-se que a crueldade pode dar luz à razão? Não pode, é certo, e essa tem sido a tônica da defesa da razão contra a força e o obscurantismo – Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (Verri, 2000, p. 113). O maior problema, no entanto, é que o obscurantista não é capaz de entender o que diz Cícero (em sua síntese da razão), quanto mais a assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão. Nesse aspecto, nessa incessante busca pelo esclarecimento, pela verdade, pela razão e pela justiça, Verri pode ser alinhado a Victor Hugo (n’O Último Dia de um Condenado), mesmo porque Victor Hugo deve ter lido Verri - tal qual Kafka deve ter lido a ambos, para escrever A Colônia Penal. Conclusivamente, nos três, vê-se como o indivíduo violento é obscurantista: “Com isso, parece conclusivamente demonstrado que a tortura não constitui um meio para descobrir a verdade, mas é um convite para que tanto o culpado quanto o inocente se declarem culpados, o que constitui um meio para confundir a verdade, jamais para descobri-la” (Verri, p. 89). Devemos lembrar que revelar a verdade sempre ocasiona alguma punição e, então, muitas vezes, obriga-se à sua ocultação: “Em suma, a verdade proscrita não pôde manifestar-se em lugar algum; os ladridos da superstição e a insolente ignorância a obrigaram a permanecer oculta” (p. 75). Por fim, ainda diria que, não resta dúvida, a leitura fluente desses autores, num movimento contínuo, é algo muito impactante, chocante, contundente. É preciso ter o próprio espírito fortalecido para tal empreitada, a fim de que, ao mesmo tempo, saiba-se tratar de literatura, mas sem descuidar de sua historicidade e veracidade. É preciso atenção para não desconsiderar as belas letras, porém mais ainda para não sucumbir à depressão ou à tentação da fúria que resulte da leitura indignada: não se pode ler apenas com o estômago, ainda que se sinta a acidez e os vários baques. A tríplice leitura resulta de um jogo complexo, movimentado, em que o desgosto pode ameaçar, mas ao que não se deve ceder, pois seria a negação do próprio intuito de quem os escreveu. Aliás, qualquer rancor que se sinta é como dizer que Verri, Hugo e Kafka não tiveram êxito em suas obras, é sucumbir aos sentimentos combatidos pelos próprios autores. Talvez o melhor a ser feito pelo leitor, após essa terrível combinação literária, fosse escrever e relatar seus próprios sentimentos – promover sua catarse, liberar qualquer espírito sombrio, como um sinal de que a luta está tendo resultado. Porque, o melhor remédio contra o arbítrio continua sendo a escrita, e isso pela simples razão de que as belas letras combatem toda 162 forma de obscurantismo. Neste caso, os três, em comum, denunciaram as sombras que encobrem nossa menoridade emocional, racional, humana, pessoal – denunciaram o anoitecer da razão. Daí a dificuldade de que nossos sentimentos, após a leitura, possam (devam) provocar indignação na alma, mas sem que a isso se siga alguma forma de ira, de desespero ou de desconsolo. Penso que a exata medida entre os extremos será a verdade...e o que é que eles buscavam senão a verdade? Nos três, também equipara-se a liberdade à vida, não ao direito à vida como se tem habitualmente, mas à própria vida, essa do dia-a-dia (não como recurso literário, estilístico, conceitual), mas sim a vida em carne e osso, com seu fluxo constante e intenso de energia vital que nos põe de pé. Trata-se, portanto, da superação de qualquer nível de formalidade no tocante à dignidade da vida – é a literatura engajada ao espírito público, pois o Estado de Direito deve ter belas letras. Contudo, para dirimir divergências, a estrutura social seria dividida em classes sociais e isto aumentaria a capacidade controlativa do Estado. 163 A DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO na configuração do Estado Moderno Na passagem da centralização do Poder Político para a fase de expansão do poder econômico, colonialismo, tanto o direito quanto o Estado passaram a receber incrementos em sua finalidade. Já havia ocorrido a acumulação primitiva136, em que Estado e direito serviram à expropriação do camponês, do colono, do servo e se iniciava o momento em que o capital precisava de oxigênio para garantir sua projeção e hegemonia na Europa. A conversão da economia em força centrífuga garantiria que os Estados olhassem para além-mar, mas, internamente, o antigo servo se converteria em trabalhador urbano, servindo da primeira mão de obra do capitalismo nascente. O adensamento cultural, neste caso em especial, teria um desdobramento jurídico. Letramento Jurídico no Renascimento Ao mesmo tempo em que o Estado Moderno vinha tecendo sua centralização, as forças econômicas procuravam respirar além-mar com a expansão ultramarina (força centrífuga, expansiva, do Capitalismo Mercantil). O enriquecimento interno seria essencial ao desdobramento da miscelânea de poderes na unidade do Estado-Nação e isto se faria com base na acumulação primitiva: primeiramente pela obrigação imposta pelas leis de cercamento (ou cerceamento); externamente pelo estabelecimento de rotas de navegação e pela descoberta, e sucessiva colonização de novos continentes: a aculturação levaria ao assenhoramento. O exército permanente e a burocracia de caráter contínuo garantiriam a administração financeira do Estado. Esta articulação, sob a análise materialista do período de fortalecimento do Estado Moderno resultaria em conclusões diversas (e adversas para determinadas classes sociais envolvidas): O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência (Marx, 2003, p. 05). 136 Curioso lembrar que romancistas vitorianos já retomavam a cultura popular como forma de crítica à realidade social e econômica que se avolumava na cumulação primitiva do capital europeu. Aí nasceria o mito de Fausto e o direito ao capital. Marlowe (1564-1595), no seu Fausto, parte de um texto alemão precedente, de contos e fábulas sobre adeptos de seitas ocultas. Surge, portanto, no imaginário da Idade Média inglesa e em meio à acumulação primitiva que reforçaria as despensas do Renascimento e do capitalismo originário. Foi um dos maiores dramaturgos sob o reinado de Elizabeth I. O contexto da peça recai sobre o diabólico pacto de sangue com o capital (retomado por Balzac e Goethe). Em um suposto retrato de Marlowe, quando estaria com 21 anos, lê-se uma instigante inscrição, um tanto profética: “O que me alimenta, me destrói”. O pecado do capital é a condição humana que se põe na acumulação primitiva, às vésperas do Estado Moderno: “Se negamos ter pecado, a nós próprios nos enganamos e nenhuma verdade existe em nós” (Marlowe, 2006, p. 39). O estado do capital vai macular a alma de fausto: “Que mundo inteiro de prazer e lucro, de grão poder, onipotência e honra, ‘Stá prometido ao estudioso artífice!” (Marlowe, 2006, p. 40). Depois de receber os dois anjos, Bom e Mau, Fausto os desafia a trazer o capital para contratar mercenários: “Espíritos trarão quanto eu deseje? [...] Direi que à Índia voem pelo ouro [...] Contar segredos de estrangeiros reis [...] Fundos terei para recrutar soldados” (Marlowe, 2006, p. 41). A Razão de Estado não conhece a moral da nacionalidade. 164 O Letramento Jurídico que se construiria no Estado Moderno deveria reconhecer o poder central e suas características: relação de sujeição de caráter unitário; ordem jurídica única; poder estatal centralizado. A mudança na supremacia papal tem o ponto culminante na outorga da bula Unam sanctam, de Bonifácio VIII, em 1302. Esta reforma trouxe como consequência a emancipação política quase definitiva do poder político em relação à Igreja. Neste momento histórico, Dante Alighieri (2006, pp. 35-36) escrevia sua Monarquia e ali já principiava a razão como mote renascentista. A razão se aplicaria à política, como forma extrema de organização, controle do poder centralizado. No século XIV, as corporações estamentais converteram-se em grupos internacionais (do clero, dos Cavaleiros e dos burgueses), rompendo-se as amarras políticas territoriais. A expressão Estado se converteu em unidades de poderes contínuos e organizados, com apenas um exército permanente, uma hierarquia de funcionários, uma única ordem jurídica unitária, impondo aos súditos o dever geral de obediência. A consequência imediata da concentração dos instrumentos de mando e de corpos militares, burocráticos, políticos e econômicos é a formação de uma unidade de ação política (fenômeno que surge no norte da Itália); surgindo assim o monismo de poder, relativamente estático, diferencia-se de modo característico do Estado da Idade Moderna. O instrumento mais eficaz à independência e à unidade do poder central foi a hierarquia das autoridades137. O Renascimento operou-se por uma centralização de poder (e expansão econômica) a partir da Itália, e aí se pode falar, então, de Estado Moderno. No início da Idade Moderna, o Estado teve que se encarregar de tarefas que antes cabiam à família, à Igreja ou às instituições locais. A necessidade de um poder maior exigia novas técnicas de adaptação à modernidade. Eram matérias e técnicas relacionadas à comunicação de modo geral (a partir de Gutemberg, no século XV) ou, mais especificamente, à administração da Justiça e à cultura nacional. Um Estado que não se adaptasse às revolucionárias inovações tecnológicas, estaria condenado à decadência. As técnicas, especialmente com o refinamento da burocracia, trouxeram a unificação de procedimentos técnicos (também culturais) porque o Estado passava a alcançar uniformemente a todos os seus cidadãos (erga omnes). Com isto, estaria ordenada a hierarquia de modo regular, segundo competências administrativas delimitadas, com funcionários especializados, mas ainda nomeados por um superior, sendo economicamente dependentes: a meritocracia não estava neste palco. Entretanto, esses funcionários deveriam voltar-se de modo contínuo à preocupação central com o público, cooperando desta forma com a formação consciente da unidade nacional. Também graças à hierarquização vertical e horizontal do serviço público, a organização pode defender-se por todo o território: abarcando seus habitantes num só poder e domínio regular (universalizante, generalizante, coercitivo e fortalecido pela exterioridade), com outros ritos sócio-políticos, com certa previsibilidade e de consequências mais presumíveis, planejando (com estratégia e táticas apuradas) e planificando ações relevantes e/ou essenciais à edificação do Estado-Nação. O Estado-Nação só seria independente, militar e politicamente se fosse capaz de produzir com autonomia uma unidade jurídica universalizante. O passado recente estamental havia 137 Na base de um Estado Racional que vinha nascendo, também já apontava no horizonte, a soberania. Mas, a soberania, desde o início, viria atormentada de paradoxos: a atração de forças antagônicas (centrípeta e centrífuga) e a presença/exigência natural de um mínimo de autonomia: “Um dos paradoxos da política consiste em que tem de ter soberania, porém, por sua vez, essa soberania tem que estar sujeita à crítica e à apelação intelectual e moral [...] Depende da prudência dos estadistas evitar situações em que os cidadãos tenham que eleger entre obedecer a Deus ou aos homens, preferir a morte ou a perda da liberdade, converter a traição em heroísmo patriótico, confundindo a prioridade de seus valores” (Merrian, 1986, p. 111 – grifos nossos). 165 demonstrado uma extraordinária debilidade e desagregação jurídica, com a grave consequência de acarretar uma, igualmente, grave e insuportável insegurança jurídica. Por outro lado, sob o Estado-Nação, a colaboração da burocracia do serviço público, segundo o princípio da divisão do trabalho social138 e da especialização de tarefas, elevaria os níveis de eficácia e de eficiência. Este seria um dos últimos constructos de ação técnica e política do Estado-Nação e já suportada por uma ordenação e ordem jurídica racional e programada. Portanto, já estamos bem mais próximos da modernidade e, com o que, ainda mudaria a natureza jurídica do chamado ordenamento jurídico moderno. Esta série de mudanças seria reforma ou revolução? Neste instante, o direito passaria a responder plenamente ao desenvolvimento do capital, sendo reflexo da divisão social do trabalho. Com empréstimo da análise da sociologia clássica, percebe-se que o Estado construiu uma legalidade adaptada à divisão social de classes. Esta base legal, por sua vez, teria um substrato ético. A ética protestante do trabalho, portanto, assentava-se em dois pilares: a) como ideologia influenciava o proletariado nascente, para que trabalhasse com afinco e nobreza (o trabalho como atividade-fim, como valor quanto a fins); b) como idolatria vestiria os desejos dos capitalistas para investir e fazer crescer, como provedores que guardariam de forma ascética o produto do trabalho alheio e, o principal, sem que isto se confundisse com a usura. À Igreja Católica caberia o voto de pobreza, pois aqui o lucro atrairia investimentos na produção, mais postos de trabalho, prosperidade social e isso, é óbvio, não poderia ser pecado venial. A acumulação de capitais passaria a ser a tônica, pois, daria glórias às obras do Senhor: o trabalho dignificava, tanto quanto o empregador-acumulador seria doravante o provedor de todos139. A superioridade moral da vida vinha atrelada, portanto, à capacidade de se sustentar com os salários (que vem de sal, do suor do próprio rosto) resultantes do próprio esforço e sendo auferido, é claro, pela capacidade individual de (in)sucesso140. Da divisão social que serve ao Estado Cientificista O aprimoramento da crescente divisão social do trabalho decorre da racionalização do processo de produção. Em suma, é o capitalismo dependente da divisão social do trabalho, como sua fonte de energia e impulsão, isto é, sem divisão social do trabalho de pouco adiantariam os esforços intelectuais e ideológicos propostos ao Estado Cientificista. Para Émile Durkheim, a modernidade representa a fase mais desenvolvida da divisão social do trabalho em que se articulam, ajustando-se às necessidades diversas da produção industrial, o trabalho manual e o intelectual, na forma da função homogeneizadora e da função diferenciadora. O papel do Estado seria, portanto, o de regular os contratos estabelecidos e garantir seu cumprimento. Para Durkheim, a competição capitalista não é o elemento central da ordem industrial emergente, e algumas das características sobre as quais 138 Ou seria mais acertado dizer-se divisão social do trabalho? Uma visão romanceada desse processo benemérito que está por trás do empreendedor pode ser vista no livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, na personagem de Jean Valjan. 140 Este seria o claro recado do liberalismo clássico, no famoso §27 do Segundo Tratado sobre o Governo Civil: “Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade [...] Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens [...] Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade” (Locke, 1994, p. 98). 139 166 Marx pusera grande ênfase, ele via como marginais e transitórias. O caráter de rápida transformação da vida social moderna não deriva essencialmente do capitalismo, mas do impulso energizante de uma complexa divisão de trabalho, aproveitando a produção para as necessidades humanas através da exploração industrial da natureza. Vivemos numa ordem que não é capitalista, mas industrial (Giddens, 1991, p. 20). Também inspirado no liberalismo (princípio da liberdade “Minha liberdade começa onde termina a sua”), Durkheim irá associar liberdade a um conjunto de regras. Para ser mais preciso, mais moderno, poder-se-ia dizer: “só se é livre no direito”. É interessante notar que, tal qual Marx, Durkheim falará de uma autoridade moral superior da coletividade: “De fato, uma regra não é apenas uma maneira habitual de agir; é, antes de mais nada, uma maneira de agir obrigatória, isto é, que escapa ,em certa medida, do arbítrio individual [...] pois a única personalidade moral que está acima das personalidades particulares é a formada pela coletividade” (Durkheim,1999, p. X). Esta coletividade, sob o capitalismo e a modernidade, deveria imprimir coesão e regularidade (“solidariedade orgânica”). Para Durkheim, a divisão do trabalho é evolutiva (desenvolve-se a solidariedade moderna), quando para Marx é opressiva e alienante. De toda forma, para ambos, a grande indústria é o polo dessa forma de definir a modernidade. Por sua vez, a grande indústria surgiria como parte dos conflitos da “sociedade moderna” que se abria a partir da Idade Média. Como nos indica Durkheim, no período da Idade Média, o direito ao trabalho era resguardado um tanto quanto diferente do próprio curso do capitalismo moderno: “Assim, os patrões eram proibidos de frustra-lo de seu direito ao trabalho”, fazendo-se assistir por seus vizinhos ou mesmo por suas esposas” (Durkheim, 1999, p. XX). É óbvio que Durkheim via o direito ao trabalho, mais não percebia a luta de classes em torno da espoliação do trabalho. Outro dado interessante na modernidade de Durkheim era o papel destacado às corporações profissionais, como mediadoras da relação social e, neste sentido, é fácil perceber que a modernidade demora muito a recuperar a ideia de “probidade profissional” (basicamente, no século XIX). O direito administrativo Francês é um marco. Entretanto, para Durkheim, as corporações na Idade Média já anunciaram a chegada da Burguesia ou terceiro estado: De fato, durante muito tempo Burguês e “gente de ofício eram uma só coisa” (Durkheim, 1999, p. XXVIII). Também irá dizer que, na Alemanha, Burguês e citadino eram sinônimos. O direito urbano era o direito do lucro: “Por isso as palavras forenses ou mercatores serviam para designar indiferentemente os habitantes das cidades, e o jus civile ou direito urbano é frequentemente chamado de jus fori ou direito do mercado” (Durkheim, 1999, p. XXVIII). No fundo, para Durkheim, a modernidade que saia dessa relação com as corporações, soava-lhe, como só poderia ser, corporativa (Durkheim, 1999, p. XX). Mas, para Durkheim, corporação e grande indústria estão em litígio no início, pois a primeira ainda primava pela reserva de mercado. Contudo, depois em pleno curso capitalista (mesmo antes da Revolução Francesa), as corporações já partiram para a dimensão territorial, com alcance Nacional — é preciso lembrar que, por força da força da laicização, já se formara o Estado-Nação, como matriz do próprio Estado Moderno. O Estado é capaz de regular a luta de classes? 167 O Estado Moderno, sob esta perspectiva, nasceu colecionando os conflitos e a luta política entre as classes fundamentais (burguesia e proletariado). Refletindo o século XIX – mas que vale para fases iniciais – Durkheim designou de direito contratual, o direito que deveria reger a divisão social do trabalho: ...é fácil determinar qual é o papel do direito restitutivo a que essa solidariedade corresponde: é o conjunto dos direitos reais. Ora, da própria definição que dele foi dada, resulta que o direito de propriedade é seu tipo mais perfeito [...] A relação entre a divisão do trabalho e o direito contratual não é menos acentuada. De fato, o contrato é, por excelência, a expressão jurídica da cooperação [...] Ora, essa reciprocidade só é possível onde há cooperação, e esta, por sua vez, não existe sem a divisão do trabalho (Durkheim, 1999, pp. 92-100 – grifos nossos). Durkheim refere-se a Descartes: “A filosofia cartesiana impõe-se como a nova filosofia, inaugurando o pensamento moderno” (Rosenfield, 2005, p. 16). Porém, se esta dúvida não é de ordem moral, é porque também não se aplica às raízes, vale dizer, não se questiona nem mesmo a modernidade que lhe deu forma, nem o capitalismo que lhe deu a forja: “Essa dúvida, aliás, não é perigosa, pois não tem por objeto a realidade moral, que não está em questão, mas sim a explicação que uma reflexão incompetente e mal informada proporciona desta” (Durkheim, 1999, XLIX). Em seguida, irá declarar-se amplamente racionalista quanto ao “moderno método da investigação científica”: “Para submeter à ciência uma ordem de fatos, não basta observa-los com cuidado, descrevê-los, classificá-los; mas, o que é muito mais difícil, é preciso, além disso, segundo o método de Descartes, encontrar o meio pelo qual são científicos, isto, é descobrir neles algum elemento objetivo que comporte uma determinação exata e, se possível, a medida. Nós nos esforçamos por satisfazer a essa condição de toda ciência” (Durkheim, 1999, p. XLIX). Diferentemente de Marx, para Durkheim, a divisão do trabalho social (sob o capital) é indubitável, um caminho natural, necessário, sem volta. A divisão do trabalho é uma lei e o próprio desenvolvimento social se incumbirá de fazer-se cumpri-la. As especializações profissionais seriam mero resultado desse processo (Durkheim, 1999, p. 02). Neste sentido, Weber também havia diagnosticado que os intelectuais já não têm mais total controle sobre suas bibliotecas — criticando a análise de Marx acerca da “divisão do trabalho social”. Durkheim também não vê a divisão do trabalho no aspecto estritamente econômico, mas como se fora realmente o curso natural da vida ou a necessidade da imposição de um método científico: positivismo. Mas como fundamentação desse mesmo método, no início, valem todos os argumentos possíveis, inclui-se certo biologismo: “...a lei da divisão do trabalho se aplica tanto aos organismos como às sociedades; pode-se inclusive dizer que um organismo ocupa uma posição tanto mais elevada na escala animal quanto mais as suas funções forem especializadas...um fenômeno de biologia geral” (Durkheim, 1999, p. 03). De qualquer modo, a divisão do trabalho é o mote do capitalismo e da sociedade moderna — apenas “um fenômeno de biologia geral”. Durkheim também será um confesso admirador da delimitação das áreas do saber, a estrita especialização: “O homem de bem de outrora já não é, para nós, senão um diletante, e recusamos ao diletantismo todo e qualquer valor moral; vimos, antes, a perfeição no homem competente que procura, não ser completo, mas produzir, que tem uma tarefa delimitada e que a ela se dedica, que faz seu serviço, traça seu caminho” (Durkheim, 1999, p. 05). A superioridade do Estado Moderno seria atestada por sua capacidade jurídica. 168 ESTADO ORGÂNICO Para que a coerção seja reconhecida como legítima, para que produza efeitos jurídicos e políticos, enfim, para que possa tão-somente ser delimitada (e resguardada) pela norma jurídica, a coerção precisa ser aceita como direito. Também por isso se confunde o exercício do monopólio jurídico da coerção como sendo a própria finalidade estatal – e não como meio de organização e de controle social. Esta confusão ainda leva ao pensamento de que o Estado tem força ilimitada. Na verdade, a soberania jurídica indica, exatamente, que o Estado sofre inúmeras restrições. O direito inclui costumes, ideal de igualdade, isonomia e desejo de participação e isto já inibe o poder como retrocesso moral. A opinião pública internacional pode obrigar à tomada de restrições e pressionar por embargos globais, como na África do Sul e no México, dos zapatistas. Além disso, há limitações internas ao próprio poder (entre os grupos ou elites que disputam o controle do poder). Neste sentido, diz-se que o Estado é um sistema de ordens. Isto quer dizer que cooperação e coerção são necessárias e equivalentes. O Estado é assim uma forma particular de associação e que representa – como principal expoente – as tradições da comunidade. O Estado é responsável por uma lealdade mística do grupo; propicia canais de comunicação em que se exprimem suas lideranças e acentua a formação de uma mística em torno do poder público (o que coincide com o direito como ficção). Desenha-se o Estado como associação. Desse modo, fala-se de uma similaridade genérica de elementos de formação, e ainda que a qualidade de permanência da estrutura política seja questionada diante da solvência de tantos Estados. O que permanece e o que se modifica? O Estado – definido como Leviatã – que se confunde com a sociedade em sentido global, no entanto, tem as instituições sociais como suas criaturas. Ao se entender que o Estado é a sociedade em unidade, subentende-se que detenha o controle da retidão moral. Também por isso, não se confunde de forma nenhuma com a instituição governo, pois este é instituto ou ação de governar apenas as instituições operativas das funções de gestão e da capacidade de execução das políticas públicas (nisto coincide com o Poder Executivo). Outra diferença está no fato de que a defesa da soberania, por exemplo, compete aos três poderes. Não é à toa que as condições mais críticas para o Poder Político, como no caso da declaração de guerra ou Estado de Sítio, necessitam da chancela do Parlamento e do Judiciário. Por sua vez, a fim de se afirmar o Estado para além do governo, é fácil notar que a própria ideia que congrega a supremacia moral do Estado o detecta como ente absoluto, à perfeição, como Estado Ideal, uma vez que obriga todos ao dever de obediência. Este Estado Ideal é destacado por sua capacidade de ação em compasso de heteronomia (ou supremacia moral). O Estado Ideal, contudo, é o Estado real em que se operacionaliza a força moral e a coerção física. O ideal se transforma em realidade fática. O Estado Ideal, produtor de leis adequadas, lógicas, em que prospera o direito como instrumento da Justiça, é o Estado real que temos pela frente todos os dias, com acertos e erros. Talvez com mais erros do que acertos, mas é a realidade que serve de parâmetro ao Ideal. Na definição de Burke – como associação em permanência –, “o Estado é uma sociedade entre vivos, mortos e dos que estão por nascer” (Greaves, 1969). Esta é a força na crença de que sozinhos, armados apenas de autonomia, logo pereceremos. Esta escolha nem está à disposição. 169 O Bem Comum ou a racionalidade política – são tratados como sinônimos, pois só loucos criariam algo para lhes prejudicar – fundamentam-se nas tradições que devem se corporificar na teleologia (futuro = expectativa, confiança, credibilidade). Na conclusão de Hegel: poder é direito. O maior problema, neste caso, é limitar a autoridade de direito à autoridade de fato; confunde-se obediência com legitimidade. Na verdade, o bem social é tão indeterminável quanto existem vontades e consciências individuais. De Kant a Hegel, o Estado como Poder Político é uma criação natural da vida social e deriva do caráter do povo. Portanto, não pode ser modelado por qualquer vontade individual. Esta tradição iluminista responde ao individualismo (renascentista). Este tipo de Estado – como organismo social – ocorre em sociedades que desconhecem o autogoverno e que tem seu poder central muito forte e centralizado autoritariamente, a exemplo da Alemanha do século XIX. O Homem nasce membro do Estado (é fruto da exterioridade e anterioridade do fato social, como em Durkheim). Assim, a maior limitação desta perspectiva é desconsiderar a imigração como fenômeno político. Se fosse tão orgânico, não haveria naturalização. O que se vê, historicamente, é que o Estado muda profundamente de natureza e de caráter político; muda sua Constituição, seu território, seu nome. O que também permite indagar “Que mudança metafísica corresponde à metamorfose política?”. Por isso, o Estado deve ser tratado como um sistema de cooperação entre homens que querem/precisam realizar determinados fins. Como organismo vivo, o Estado constitui certos padrões no querer e na forma de organizar as ações com vistas aos objetivos. Mesmo que seja para garantir o predomínio ou enlevo do capital e/ou de elites políticas, em certo contexto ou na infraestrutura social global, como organismo, o Estado precisa se colocar de acordo com as subjetividades sociais, ou perderá toda sua legitimidade. Ainda que seja para o exercício da dominação (ou opressão de classe, em certos casos), o Estado não pode se deslocar do rol que referencia os objetivos gerais. Sem um mínimo de quórum social, a cooperação entre homens para agir em concerto se converte em sedição. O Estado, para se manter como referência e instrumento principal de articulação entre o geral e o particular, entre a norma e a autonomia individual, precisa controlar o livre arbítrio, a livre escolha pela nova nacionalidade ou terá de enfrentar a sedição. Neste caso, a imigração se converte na controversa realidade política do direito de asilo. E aí, não só o julgamento político interno será desfavorável (chegando-se à guerra civil), como o julgamento moral da opinião pública internacional será implacável. No final do século XX, os países do Leste Europeu em desconstituição política, como na dramática ex-Iugoslávia, são exemplos notáveis. No século XXI, os frágeis Estados do Ocidente também são exemplares, mas a Síria, em guerra civil e a Turquia, a um passo da distensão política, são casos reveladores. 170 PERSONALIDADE JURÍDICA DO ESTADO Personalidade jurídica é a capacidade/faculdade jurídica que atribui um determinado poder a fim de que se faça algo. Mas, para compreendermos adequadamente o conceito, inicialmente, é preciso afirmar que, por personalidade jurídica do Estado subentende-se uma espécie de ficção jurídica. É a faculdade ou capacidade de agir do Estado para se impor como Poder Público. Na verdade, uma corruptela do direito privado. Segundo De Plácido e Silva, por personalidade entende-se a: “Denominação propriamente dada à personalidade que se atribui ou se assegura às pessoas jurídicas, em virtude do que se investem de uma qualidade de pessoa, que as torna suscetíveis de direitos e obrigações e com direito a uma existência própria, protegida pela lei” (2002, p. 606 – grifos nossos). do latim: personalitas, de persona (compete a determinada pessoa). (em oposição ou mera distinção a qualquer outra pessoa). personalidade civil: advém do nascimento com vida (nascituro). capacidade de agir – possibilidade de agir. A personalidade jurídica decorre de determinadas capacidades, ou mais especificamente da faculdade de agir. Faculdade: “Derivado do latim facultas, de facul ou facilis (fácil), possui, ampla e genericamente, o significado do poder que se tem para que se faça alguma coisa, seja de ordem física ou de ordem moral [...] A faculdade jurídica, pois, exprime o próprio exercício do direito subjetivo da pessoa, exteriorizado pela facultas agendi (faculdade de agir)” (De Plácido e Silva, 2002, p. 344 – grifos nossos). Portanto, decorre de uma capacidade bem específica: Facultas agendi: “a faculdade de agir”141. capacidade de exercício dos direitos subjetivos. A ação do cidadão requer a retração do Estado. O principal objetivo interposto pelo Estado de Direito, mediante a teoria da personalidade jurídica, é não-violar o direito por ele criado ou admitido, como é o caso dos direitos humanos recepcionados. Em seguida, para sacramentar a necessidade de que o Estado deveria agir em certa sintonia, formulou-se a obrigação de servir à sociedade. Assim, o Estado toma de empréstimo uma construção lógica do Direito Civil e deve refletir a noção de personalidade jurídica, como complexo de faculdades e direitos que o homem possui em potencial. Qualidades atribuídas à pessoa e que a tornam apta para adquirir direitos e contrair obrigações. Contudo, cabe esclarecer que a facultas agendi, essa faculdade jurídica, não é sinônimo da obrigação de cumprir o que quer que tenha sido estabelecido. A obrigação é, antes, o resultado do exercício dessa mesma faculdade: a condição de estabelecer vínculos, de forma livre e autônoma. A facultas agendi do cidadão decorre, enfim, da obrigação de o Estado não-violar os mesmos direitos que o cidadão requer mediante sua faculdade de agir. O conflito social, na ordem jurídica, não só é regular, como é necessário. Com o que se vê que Estado e poder constituem-se em realidade quando se efetiva a unidade política que respeita a pluralidade de interesses, aspirações, ideologias e visões de mundo: uma fusão política temporária, nunca definitiva, porque sempre é baseada na pluralidade. O que ainda deve oxigenar as visões mais estáticas acerca do positivismo jurídico que enfeixa a tese da personalidade 141 Constitui opção, inclusive, do direito de não-fazer, de abster-se de agir. Diferentemente da omissão, pois aqui há a presunção da obrigatoriedade do dever de agir. 171 jurídica do Estado. Trata-se de uma unidade de índole funcional e não um critério ou meio de unificação total. Como mecanismo de regulação econômica, o Estado tem ainda o caráter de assistência vital, intervindo e regulando as mais notáveis condições da vida comum do homem médio. O que o caracteriza como o ideal Estado Democrático: como sujeito uniforme de domínio racional, capaz de recepcionar os conflitos e atuar no interior da auto-organização da sociedade industrial. Esta condição em que se posiciona o Estado na era industrial revela que não há paridade entre a vontade estatal e a formação da unidade política, exatamente porque outros sujeitos coletivos de direito atuam mais firmemente no contexto global. Ao passo que, em regra, “Unidade Política, Estado, Coletividade” tendem a formar o mesmo eixo de coexistência. Enfim, esta conexão entre direito e política será determinada pela ordem jurídica necessária, determinada e não-discricional (Hesse, 1998). Teorias da Pessoa Jurídica Para Savigny, um publicista alemão, do século XIX, a personalidade jurídica nada mais é do que uma ficção jurídica que migra do direito privado ao direito público: a) Estado reconhece os sujeitos de direitos, nas pessoas capazes; b) comunidades jurídicas (direitos + obrigações) são pessoas jurídicas. Para o jurista alemão, os sujeitos de direitos são indivíduos conscientes; o Estado, por sua vez, constitui-se de sujeitos de direitos artificiais (o Estado é um agrupamento de interesse coletivo que supera a limitação histórica do jus puniendi). Em outra concepção, na escola realista, não há necessidade de uma criação ficcional, uma vez que o Estado precisa, obrigatoriamente, ser definido juridicamente. Em todo caso, decorrem algumas consequências da aceitação da ideia de que o Estado tem personalidade jurídica: a) a possibilidade de tratamento jurídico dos interesses coletivos; b) impedimento à ação arbitrária do Estado, por meio de mecanismos jurídicos; c) o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações; e d) o estabelecimento de limites jurídicos claros e precisos na atuação do Estado com o particular (Júnior, 2001). Neste caso, o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações é uma obviedade. Pois, quando não há esse “reconhecimento” o Estado é autoritário/totalitário e nesse contexto só há deveres – sobretudo o dever de obediência. Sem direito, sob o império dos deveres autocráticos, não há faculdade de agir, nem em concerto nem isoladamente. No Estado de Direito, em que há democracia, destaca-se em primeiro lugar a noção do próprio direito (a afirmação do direito e a segurança do indivíduo resultam da transferência de potência que provém do direito). Assim, principalmente, há o direito de recusar o dever injusto ou se afirma o dever de garantir a operacionalidade desse mesmo direito (agora um direito público, “de alcance e significados coletivos” – republicano, portanto - e não restrito aos limites dos direitos individuais). Algumas causas da Personalidade Jurídica do Estado A primeira constatação é de que o Estado possa se constituir em pessoa jurídica e, assim, a escola do contratualismo assegura que o povo é uma unidade. Para o positivismo de Kelsen, a norma é a única realidade jurídica. Dessa qualidade, o Estado transfere a personalidade (comum aos indivíduos) ao Estado. Portanto, o Estado é um produto de convenção coletiva – por imposição da lei. De certo modo, o Estado cria a norma capaz de conferir personalidade ao próprio Estado (se o Estado cria a norma que o sustenta, acaba por criar a si mesmo). Na perspectiva do organicismo biológico, o Estado é tido como exemplo a ser seguido, como se fora uma pessoa grande. Na onda do organicismo ético de Jellinek, o Estado condensa a capacidade criada pela vontade da ordem jurídica. Parte-se da premissa de que os cidadãos têm 172 capacidade jurídica, como pessoa física, e por isso são sujeitos de direitos. Considera-se que o direito estabelece relações entre os indivíduos e que, se o Estado é uma unidade coletiva (síntese da consciência coletiva), logo, o Estado tem personalidade jurídica. Em sentido contrário, sobretudo no século XIX, alegava-se que o Estado pouco diferia do governo. Inclusive na crítica marxista (Lênin, 1986), diz-se que só há vontade sobre o Estado, uma vez que predomina a personalidade dos governantes (portadores da subjetividade estatal). A relação de dominação se complementaria com a (ilusão da) cooperação de serviços públicos. Diz-se que o Estado se impõe a todos, mas torna-se apenas de quase todos. O que difere, evidentemente, de tornar-se de todos. Neste sentido, a personalidade jurídica é abstrata: de quase todos. E, sendo de quase todos, pode negativamente representar a vontade jurídica de alguns: sejam grupos ou classes. Neste sentido, a visão jurídica do Estado corresponde à visão política dos governantes. Por fim, perscrutando a teoria da Finalidade do Estado, subentende-se que o povo elabora os estatutos do Estado, atribuindo-lhe a titularidade da soberania (personalidade jurídica) e preserva o fundamento democrático. Poder Político e Reserva de Justiça Sob a égide do Estado Democrático de Direito Social, a relação político-jurídica do Estado Democrático de Direito é bem expressa por meio de uma Constituição escrita, rígida e dirigente e, por isso, é óbvio que devem ser leis democráticas e, portanto, justas. Trata-se enfim, de regime garantístico142 de direitos, liberdades e garantias (Estado Constitucional em defesa da democracia e do direito de auto organização143). Para Canotilho (s/d), controlar o poder político sob o império das leis significa “o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações144”. Em resumo, o Estado detém capacidade jurídica concreta porque reúne as condições (capacidade) de propiciar alguma unidade institucional. Na verdade, hoje, “o reconhecimento de que o Estado tem direitos e obrigações” é uma obviedade. Pois, quando não há esse “reconhecimento”, o Estado é autoritário/totalitário e nesse contexto só há deveres – sobretudo o dever de obediência. No Estado de Direito em que há democracia, destaca-se em primeiro lugar a noção do próprio direito (a afirmação do Direito e a segurança do indivíduo resultam da transferência de potência que provém do Direito). Assim, principalmente, há o direito (dever) de recusar a obrigação injusta ou se afirma o dever de garantir a operacionalidade do Direito Justo. No conceito de Estado de não-Direito, é curioso e revelador pensar que a negação esteja presa ao centro, ao interior do próprio conceito, como se fosse possível pensar em um adireito, como não-direito, negando-se a possibilidade de que possa haver direito. A personalidade jurídica presente no Estado de não-direito, portanto, é algo bizarro, absolutamente estranha à lógica em que o direito pressupõe a faculdade de agir. Como pode-se agir se não há direito e garantia para tanto? A personalidade jurídica democrática O expresso sentido de autocontrole do poder, a fim de contornar a sedução das forças autocráticas, foi ratificado pela Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (1969) e aprovada pelo Brasil, especialmente a partir de seu artigo 27, ao apontar 142 Como regime de garantia e suporte dos direitos, mas agora entendido como corolário de instrumentais técnicos (direito de petição, por exemplo) e políticos (democracia). 143 Uma Constituição promulgada solenemente e que constitui uma reserva de justiça (reserva de valor democrático, republicano) quanto aos direitos, deveres, obrigações e garantias de preservação do próprio interesse público. 144 Teoricamente: “Sujeição do poder a princípios e regras jurídicas” (Canotilho, s/d, p. 231). Na ordem prática da política, o regime democrático é obstáculo eficiente ao fascismo, da mesma forma como práticas autocráticas não beneficiam ou instigam a democracia e seus procedimentos. 173 para as condições ou casos válidos, no tocante à SUSPENSÃO DE GARANTIAS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO: 1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado-parte, este poderá adotar as disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social. 2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos seguintes artigos: 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 6 (proibição da escravidão e da servidão), 9 (princípio da legalidade e da retroatividade), 12 (liberdade de consciência e religião), 17 (proteção da família), 18 (direito ao nome), 19 (direitos da criança), 20 (direito à nacionalidade) e 23 (direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos. 3. Todo Estado-parte no presente Pacto que fizer uso do direito de suspensão deverá comunicar imediatamente aos outros Estados-partes na presente Convenção, por intermédio do Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos, as disposições cuja aplicação haja suspendido, os motivos determinantes da suspensão e a data em que haja dado por terminada tal suspensão (grifos nossos). Controle social da personalidade jurídica Os Direitos Humanos são universais porque são tidos por naturais, naturalmente pertencentes ao ser humano. Na ótica do direito, constituem parte da pessoa humana antes mesmo dela ter sua personalidade jurídica assegurada ou decretada pelo poder do Estado em que tenha nascido. Em suma, costuma-se declarar para efeito de determinação jurídica e divulgação popular que pertencem a todos nós independentemente de credo, raça, sexo, idade, poder aquisitivo, ideologia política, consciência moral etc. Nesse contexto, e contando a própria estrutura institucional do Estado de Direito, é correto afirmar que o povo não tem personalidade jurídica145, mas, nem por isso - transferindo a soberania popular ao Estado -, o povo se desvincula do interesse público, uma vez que afirma sua vontade política coletiva por meio da constituição de um governo soberano e responsável juridicamente pela administração dos negócios e dos interesses públicos. Revela-se a própria essência e ânsia da constitucionalização da política, e que será melhor realizada, tecnicamente falando, tanto quanto esse controle de poder for capaz de operar a institucionalização do próprio poder constituinte – o que deverá delimitar a violência em torno da Constituição da República e Democrática. Em suma, opera-se a passagem da luta política visceral (radical, literal, carnal) à fase da luta institucional (operativa, organizativa, instrumental) em torno do Estado já democratizado, coletivizado, desprivatizado. Na prática, isso implica dizer que uma consciência jurídica difundida, reconhecida e, ao menos relativamente previsível (como consciência jurídica globalmente respeitada, requerida e reiterada), não pode – por força da lógica – gerar uma estrutura política ou um poder político autocrático e que a torne indefesa diante de alguns interesses políticos inconfessos146. Assim: 145 Ainda que possa agir por meio de inúmeros agentes e sujeitos coletivos de direito. Teoricamente: “Sujeição do poder a princípios e regras jurídicas” (Canotilho, s/d, p. 231). Na ordem prática da política, o regime democrático é obstáculo eficiente ao fascismo, da mesma forma como práticas autocráticas não beneficiam ou instigam a democracia e seus procedimentos. 146 174 A articulação das dimensões do Estado de direito e do Estado democrático no moderno Estado Constitucional Democrático de Direito permite-nos concluir que, no fundo, a proclamada tensão entre “constitucionalistas” e “democratas”, entre Estado de direito e democracia, é um dos “mitos” do pensamento político moderno. Saber se o “governo das leis” é melhor do que o “governo dos homens” e viceversa é, pois, uma questão mal posta: o governo dos homens é sempre um governo sob leis e por meio das leis. É, basicamente, um governo de homens segundo a lei constitucional, ela própria imperativamente informada pelos princípios jurídicos radicados na consciência jurídica geral147 (Canotilho, s/d, p. 231). Desse modo, quando, na história da Humanidade, a complexidade social era superior à capacidade reguladora do Estado, ele próprio, o Estado, viu-se obrigado a refundir as instituições do poder e assim criou-se a República, a Democracia, o Estado de Direito e a Federação. Este conjunto complexo, por sua vez, alimenta a soberania jurídica, a ordem jurídica democrática e condicionam indelevelmente a personalidade jurídica do Estado Democrático. O Estado é o Poder Político por excelência, mas no Brasil apresenta vícios exclusivos. 147 Donde se percebe que as teorias ficcionista e realista da personalidade jurídica do Estado formam um todo, mas que são analisadas separadamente para se garantir maior qualidade pedagógica. 175 O PODER POLÍTICO no país, corrompe-se até o conceito O Poder Político é o poder de comando, de governo; é o poder como formulação, exercício e controle da soberania política. Quando olhamos a realidade brasileira e da América Latina, entretanto, toda a construção epistemológica – de entendimento e suporte racional das principais instituições políticas – parece ruir sem lógica. Toda a orquestração inteligente, arquitetada com coerência e sintonia, que deveria surgir da análise dos instrumentos que suportam o Poder Político se desmorona. No lugar do entendimento surge uma tremenda confusão e desordem institucional, pois aqui teoria política na prática é outra. Na vida comum do homem médio, os instrumentos do poder não servem ao povo, mas sim ao próprio poder. E é isto que confunde até os iniciados na análise do poder, do direito e da teoria política. Talvez realmente seja uma missão impossível redigir um manual de Ciência Política e de Teorias do Estado que o povo consiga acompanhar. A dificuldade, todavia, não está na linguagem, mas sim na capacidade do autor explicar que nem tudo que ele lê, de fato ocorre e, ao contrário, que nem tudo que ocorre, deveria ser como é. Costuma-se dizer que, se na prática a teoria é outra, é porque a teoria está errada, ou seja, uma explicação que não encontra suporte na realidade dos fatos parece inconclusa, desprovida de realismo, longe da verdade dos fatos. Em política, sobretudo nas instituições políticas brasileiras (e na América Latina), comumente se vê o oposto: a realidade é outra porque até mesmo os conceitos foram deturpados e o que se critica como política, em suma, é a corrupção da política. Neste caso, portanto, a teoria está correta, apenas estamos analisando pelo lado do avesso, incapacitados de compreender pela inversão provocada no fenômeno. Infelizmente, habituou-se tomar a corrupção institucional e conceitual como se fora o recurso normal, validável e ainda se quer adequar a teoria política a este efeito perverso da realidade política nacional. O inescrupuloso, inclusive, apoiaria o raciocínio da corrupção da política, pois ainda teria o referendo de uma teoria política do cinismo. Poder Político Originariamente, a Antropologia Política nos mostra que o Poder Político poderia ser de um grupo oude uma assembleia, a exemplo dos conselhos de anciãos que orientam as ações de seus representantes, desde as gens, ou entre os índios, até as modernas assembleias legislativas. Outra estrutura do Poder Político é o encargo do soberano, mais comum ante a longeva história do abuso de poder, está no uso que fazia o rei ("o Estado sou eu" – lembremos de Luís XIV, na França), ou então o Estado atual, em que se dividem as funções de gestão política. O Poder Político organizado na forma estatal, portanto, seria uma variável dentre várias. Para nós que vivemos na América Latina, resta a dúvida de que só o Executivo parece ser um poder de fato e talvez não passe mesmo de nomenclatura, pois soberano é quem manda, ou seja, quem destina o dinheiro, as forças políticas e os recursos da máquina administrativa. Talvez o Estado Capitalista seja mesmo apenas um engodo e esta divisão de poderes não passe de fantasia ou ideologia liberal. Contudo, temos de diferenciar nossas premissas – se faremos uma análise como se vê desde Montesquieu e então temos três poderes que se completam mais ou menos harmonicamente. Pensemos em Estados definidos, organizados, como Suíça, Áustria, Alemanha e no papel desempenhado pelo Tribunal Constitucional. Neste caso, a soberania é uma só, é una, e será o poder repartido apenas como forma de controle interno exercido sobre o próprio poder. A soberania é prevista nas constituições modernas como pertencentes ao povo de cada país, sendo manifesta por meio da democracia 176 direta, a exemplo dos Cantões suíços, ou em determinados momentos, nos plebiscitos e referendos, como visto no Brasil, ou então por meio de uma assembleia legislativa. Isto constitui a soberania popular. Em todo caso, a divisão dos poderes nada mais fez do que avançar a chamada soberania legislativa (Parlamento) como forma de se restringir, punir os possíveis abusos de poder cometidos pelo Executivo. A divisão de poderes, entretanto, serve para inibir, impedir que também o Legislativo cometa desvios (forjando emendas constitucionais contra o Judiciário, numa espécie de ditadura legislativa) ou, então, para que o Judiciário não se arvore em legislador (uma das críticas assumidas por causa da crescente judicialização da política, no exemplo do mensalão – mas, onde está a ilegalidade do julgamento do mensalão?). Historicamente, a ação do Parlamento, contra um Executivo muito forte (dotado de toda a soberania), coincide com o surgimento do Estado Liberal – Locke já falava de uma divisão de poderes, em que o Judiciário decorreria do Legislativo. Mas antes dele, desde o Rei João Sem Terra ou com a lei de Habeas corpus, e os demais direitos civis, o próprio direito foi utilizado como instrumento de garantia da divisão dos poderes e como forma eficaz de seu controle. Desse modo, há uma divisão de poder sim, porque o Executivo desde então não pode tudo ou contra todos, precisa barganhar suas ações com os outros poderes e ainda zelar pela legitimidade e legalidade de suas ações. Mas, também se trata de uma divisão de funções – e não propriamente de poder – se pensarmos que o poder de mando, nas democracias liberais, pertence ao povo (com os efeitos da soberania popular). A soberania depositada no Poder Político, juridicamente, pode ser vista na extensão do poder erga omnes acumulado na lei. É o direito que exerce a “coerção contra todos” e não o Poder Político. Neste sentido, a soberania pertence ao direito e não ao Executivo ou ao Legislativo. E nem mesmo pertence a soberania ao Judiciário, que tem apenas a função de intérprete legal. O Poder Político pode até ser a fonte do direito, porém, a partir da fase de superação do modelo de Estado Absolutista (em que a soberania é do Soberano: rei ou órgão de poder) e desde que haja autocontrole do poder, não pode o Estado criar o antidireito em nome de sua soberania legislativa. Esta é uma das restrições ao Poder Político enfeixado no soberano que vem sendo articulada desde o século XIX: não pode o Estado criar um antidireito que desobrigue o poder e permita-lhe agir como de interesse de poucos; não pode o Estado formular uma desculpa legal que torne sinônimos o governo (como função transitória de poder) e o próprio Estado (como entidade meio de estabilidade política e institucional). Uma das garantias do Estado de Direito é exatamente a divisão dos poderes e a garantia de que nenhum dos três poderes utilizar-se-á do Estado contra a sociedade e seus cidadãos. Brasil e América Latina No Brasil, pela série histórica de desvios, de desmandos e de abusos de fato e de poder, do Executivo sobre os demais poderes, às vezes até duvidamos de que existam outros poderes (o AI-5 da ditadura militar, de 1967, de triste lembrança, é um exemplo marcante, assim como o Estado Novo, de Getúlio Vargas). Ou, recentemente, com os exemplos da PEC 37, que limita a capacidade investigativa do Ministério Público, beneficiando a corrupção política e de outra quesubmete decisões do Supremo Tribunal Federal para análise final e possível alteração pelo Congresso Nacional (PEC 33). A soberana decisão do STF perderia validade jurídica em todo seu conteúdo; em razão de interesses políticos partidários ou de grupos de pressão, seria criado um direito que se adéqüe aos interesses do governo de plantão e não ao Estado e ao povo. Este é um exemplo de ditadura legislativa e infelizmente foi dado pelo Brasil – o nazismo, ao criar a Lei de Plenos Poderes, encontraria no Legislativo brasileiro uma ressonância em estrutura legal. 177 Na Argentina, parte do conselho superior da magistratura será eleita – em atitude eleitoreira, populista – e também terá efeitos semelhantes ao que se ameaça criar no Brasil. No mesmo contexto dos abusos de poder ou golpes contra a ordem jurídica democrática, a Constituição do Paraguai prevê o impeachment, mas não exatamente em toque de caixa. No dia 22 de junho de 2012 o presidente Fernando Lugo foi destituído do cargo, condenado por “mau desempenho”, em processo de impeachment que durou 36 horas. A Bolívia, desde sua independência em 1825, recebeu cerca de 150 tentativas de golpes de Estado ou tomadas de poder não constitucionais, como se tivesse um presidente eleito a cada 14 meses. Em 1979, o país teve três presidentes. Entre 1978 e 1982 foram nove dirigentes. Isto ocorre porque a democracia sempre foi tímida na América Latina, seja em governos de direita ou de esquerda; a politização das lides políticas nunca foi regida pacificamente, porque o Executivo sempre decretou variados tipos de golpes contras as instituições democráticas e populares. Porém, quando mais uma vez olha-se para a história política da Humanidade vemos outras construções que não são apenas simbólicas, mas realmente recursais da divisão de poderes. Veja-se a força instituída ao Legislativo nos países parlamentaristas (repartindo-se o Executivo em dois: com Chefe de Estado e Chefe de Governo, separadamente) ou a força decisiva/descritiva do poder, assumida pela Suprema Corte nos EUA. Mesmo as leis de exceção, aprovadas após o 11/09, tiveram de ser chanceladas, interpretadas pelo Judiciário. A Suprema Corte não analisou, por exemplo, se a quinta emenda terá sua ação restringida por tais leis. E enquanto isso não ocorre as leis de exceção merecem debate jurídico, lá e aqui. Estas são formas efetivas, reais de se ver/pensar a soberania popular que se equilibra na divisão dos poderes, ora se fortalecendo o Parlamento, ora vertendo-se sob a ação independente do Poder Judiciário. Desse modo, se a teoria pode e deve ser melhorada é porque não está errada, isto é, a teoria política prevê a perfectibidade, um ajustamento com o melhor dever-ser do poder e não é uma mera ideologia (um falseamento, encobrimento dos sentidos que impede a apreensão mais adequada do fenômeno social); ocorre, então, que a prática deve ser convulsionada por uma análise crítica. Na prática, a teoria está ajustada a uma realidade funcional e não exatamente preparada para atuar na sua deformação; em tese, a prática corrompeu todos os laços com o intuito organizativo da sociedade (como poder social) e do Estado (como Poder Político). Por fim, pode-se dizer que a soberania é única, com o Estado regulado pelo direito; Estado este que não pode atuar contra as normas de contenção do próprio poder (criando o antidireito para anular as regras democrática de autocontrole do Poder Político) e nem contra a sociedade e seus cidadãos. Para facilitar essa tarefa, há a divisão de poderes, a fim de que a soberania não converta as prerrogativas do Executivo – o poder que manipula concretamente os recursos políticos e econômicos – em abuso de poder. Na teoria política correta temos uma soberania e vários poderes; mas, na prática corrupta, viceja um poder que se traveste de soberano. O Acerto de contas realizado contra as antigas tradições, acabou por opor o Estado de Cortes ao Estado legal, como foi apelidado pelos franceses revolucionários. 178 A DIVISÃO ESPACIAL DO PODER POLÍTICO O tema não traz uma implicação imediata à realidade brasileira, ainda que a Federação esteja estampada no nome do país: República Federativa do Brasil. Em todo caso, como convite, após a leitura, é preciso aplicar este conhecimento ao nosso contexto político-administrativo. É importante lembrar que o Poder Político implica em toda forma coletiva de organização do poder, como forma e mecanismo de organização e de controle social, a exemplo dos colegiados tribais (de anciãos) e o próprio Estado soberano. Também precisamos distinguir entre formas de geração dos Estados (desmembramento, anexação pacífica ou violenta), tipologia estatal (Estado Laico, Estado Moderno) e a classificação e distribuição espacial do poder. Uma vez que já se apresentou conceitualmente a melhor observação acerca do Poder Político, como organização política com vistas a exercer o controle e o exercício pleno (monopólio) do poder, quer seja em grupos de lideranças ou colegiados (grupos tribais), quer seja sob o Estado soberano, resta sabermos o que se entende por classificação espacial do Poder Político. A primeira distinção a se fazer sobre a disposição espacial do Poder Político unificado é entre Estado Unitário (simples) e Estado Composto (Estados Unidos148). I. UNITÁRIO: há absoluta centralização do exercício do Poder Político; concentra-se a tomada de decisões; há descentralização administrativa em baixo relevo, mas não se desdobra a capacidade organizativa do próprio poder. Pois, a autoridade administrativa decorre do poder central. Neste sentido, o Poder Legislativo é exclusivo. Como exemplos, temos o Uruguai, o Chile, o Paraguai e Portugal. II. COMPOSTO: trata-se da união ou associação de vários Estados ou entes políticoadministrativos sob a direção de um único poder diretivo. Entretanto, há uma variedade de formas assumidas: 1. UNIÃO PESSOAL: conservando sua soberania, dois ou mais Estados unem-se sob um único governo. Simon Bolívar foi presidente simultaneamente da Bolívia, da Colômbia e do Peru. No século XX, como reflexo do Imperialismo, há a União Congo-Bélgica149 (1885-1908). Ex-Zaire, atual República Democrática do Congo150 (imerso no trauma da guerra civil entre Tutsis e Hutus), o assim chamado CongoBelga esteve sob a possessão pessoal de Leopoldo II da Bélgica, até 1908. 2. UNIÃO REAL: dois ou mais Estados guardam autonomia e soberania internas, mas se unem para ter uma representação diplomática unificada, comum, a exemplo do ocorrido entre Áustria e Hungria (1867-1919). 148 Não é à toa que se denominou de Estados Unidos da América. A Inglaterra não foi atacada pela Índia, nem a Bélgica pelo Congo, nem a Itália pela Etiópia, nem a França pela Argélia (que a França também não reconhecia como uma “colônia”) (Chomsky, 2002, pp. 11-12). 150 Em confronto que teve início em 1988, foram mortos mais de 4 milhões de pessoas e ainda sofrem outros 3,5 milhões de refugiados. Oficialmente, a guerra terminou em 2003, mas o país ainda é palco de conflitos e tem uma crise humanitária das piores do mundo. Apesar de ser rico em diamantes, ouro e outros minerais preciosos, milhões de congoleses sofrem de doenças, fome e de uma terrível perseguição a partir do Leste do país (Kivu do Norte e Kivu do Sul). Em 1994, a vizinha Ruanda também conheceu o genocídio: mais de 1 milhão de tutsis foram assassinados pelos hutus. Depois, em 1996, o governo tutsi foi restabelecido e invadiu o Congo para atacar os hutus e isto (re)iniciou a guerra, envolvendo Ruanda, Angola, Uganda, Zimbábue e Namíbia. No Congo, mas pode-se dizer que em muitas outras partes do mundo, as táticas empregadas esgotam-se no uso/abusivo dos meios de exceção. O aliciamento de crianças com engodos e justificativas que mais parecem ameaças também são “armas ideológicas” usadas pela Razão de Estado. 149 179 3. UNIÃO INCORPORADA: há fusão de dois ou mais Estados visando a formação de um único ente político, como na união entre Escócia, Inglaterra e Irlanda para se obter o Reino Unido da Grã-Bretanha (Araújo, 2006). 4. CONFEDERAÇÃO: associação de vários Estados com soberania no plano interno e autonomia no externo (é claro que é vedada qualquer aliança com inimigos de algum dos entes políticos participantes). Unem-se em pactos para certos fins, como os EUA (1781-1787) e a Confederação Helvética (1815-1848). Dentre as confederações, vale destacar em mais detalhes, outras FORMAS ATÍPICAS DE ESTADO: Confederação Helvética: A Suíça (capital Berna) é um Estado Federal desde 1848. Oficialmente Confederação Suíça, trata-se de uma república federal de 26 Estados (Cantões). Ao longo do século XIX a ConFederação Helvética progrediu para se tornar uma democracia. Semelhante a outras “federações”, a Suíça tem duas câmaras parlamentares (Senado e Câmara Federal), um governo federal e um tribunal de Justiça Suprema. A hierarquida do Poder Político é assim observada: em primeiro lugar está o sistema Federal; em segundo, o cantonal; em terceiro, o sistema comunal. O Governo Central vela pelas relações políticas com o exterior, a economia nacional, as Forças Armadas. O poder cantonal tem aparato policial, sistema de saúde e educação independentes. Já o Governo é exercido por um Conselho Federal (poder executivo, eleito indiretamente) pelo Conselho Nacional e Conselho dos Estados (Parlamento Suíço). A Carta Federal de 1291 é o documento de fundação da ConFederação Helvética. Confederação americana: este período da história dos EUA (1783-1815) caracteriza-se pela independência e união das treze colônias para formar um Estado livre. A derrota foi reconhecida pelo Reino Unido em 1783. Até 1787, quando redigiram a Constituição americana, formavam um ConFederação (à espera de se assumirem efetivamente como Estado). A Carta de Direitos foi aprovada em seguida e George Washington foi o primeiro presidente, em 1789. Confederação hispânica: Na Carta da Jamaica de 1815, Simón Bolívar lançou as bases para se formar uma conFederação hispano-americana. No romance O General em seu Labirinto – retrato melancólico de alguém açodado pelo desterro –, G. G. Márquez traçou os últimos tempos de Bolívar. Os Emirados Árabes Unidos (EAU) formam uma conFederação de Estados de grande autonomia, situada no sudeste da Península Arábica (Golfo Pérsico). Chamados emirados, os sete Estados que a compõem, são: Abu Dhabi, Dubai, Sharjah, Ajman, Umm al-Quwain, Ras al-Khaimah e Fujairah. A capital é Abu Dhabi (segunda maior cidade). Lutando contra o domínio português e britânico, em 1853, os Xeques da Trégua assinaram um tratado de "trégua marítima perpétua", com o Reino Unido. Em 1930 iniciaram as primeiras investigações petrolíferas e em 1962 foi exportado o primeiro carregamento direito de Abu Dhabi. Os sete Xeques da Trégua, junto ao Bahrain e ao Qatar, tentaram formar uma união de emirados árabes. Nesta fase, Bahrain e Qatar tornaram-se independentes, respectivamente, em agosto e setembro de 1971. Até então, os sete estados ainda não haviam declarado suas independências, mas firmaram sua soberania juntos. Abu Dhabi e Dubai formaram uma união provisória, entre os dois emirados, prepararam uma Constituição, e em seguida chamaram os 180 mandantes dos outros cinco emirados para firmarem um acordo geral. Nesta data, os emirados independentes passariam a Emirados Árabes Unidos. Reino Unido: O Reino Unida da Grã-Bretanha é um país insular soberano. Tratase de uma união política formada de quatro nações: Escócia, Inglaterra, Irlanda do Norte e País de Gales. 181 5. FEDERAÇÃO: é uma união ou associação de Estados que mantém unificada a soberania no plano externo, mas com doses diferenciadas de autonomia interna (comparativamente, entre Brasil e EUA, por exemplo). De todo modo, os Estadosmembros têm seus poderes, direitos e deveres prescritos e delimitados por uma Constituição Federal. Entre 1871-1918 alguns Estados do Império Alemão (Baviera, Saxe) possuíam o direito de legação ativo e passivo151. Até hoje os Cantões suíços podem estabelecer relações comerciais com outros Estados soberanos. 151 O direito de legação ativo implica em enviar representante diplomático, bem como o direito de legação passivo (recebê-lo), é exercido por meio de observadores autônomos do Estado soberano. 182 6. O ESTADO FEDERAL ainda pode ser formado por agregação (EUA, Alemanha, Suíça) e desagregação ou segregação, quando um Estado Unitário resolve se descentralizar (ex-Iugoslávia). Sua estrutura de disposição administrativa pode ser 1) Dual, com a separação rígida de competências (no sistema bicameral, por exemplo) ou 2) Corporativo, em que há competência comum ou concorrente. Nesta forma especial de disposição espacial do Poder Político, ainda há referência quanto a ser 1. Simétrico (EUA), com homogeneidade cultural e desenvolvimento equilibrado entre seus entes ou 2. Assimétrico (Suíça/Canadá), apontando-se grande diversidade de língua e cultura. Há uma estrutura orgânica do poder (os Estados membros aparecem como um simples reflexo do poder central) e de integração (pela integração nacional prevalece a preponderância do Governo Central). No caso brasileiro há que se ressaltar o fator de equilibração do poder (em harmonia, os entes federados devem reforçar as instituições). A tríplice estrutura do Estado brasileiro (União/Estados/Municípios) facilita a administração de território tão vasto. O Estado Federal brasileiro ainda prevê: a) Descentralização Políticoadministrativa: A CF/88 prevê núcleos de poder político, concedendo autonomia para os referidos entes políticos; b) Repartição de competências: garantindo a autonomia entre os Estados-membros (entes federados), assegura-se o equilíbrio da Federação; c) Constituição rígida como base jurídica: a Constituição rígida de 1988 garantiu a distribuição de competências entre os entes autônomos. Por fim, há que se destacar que inexiste o direito de secessão. Trata-se do princípio da indissolubilidade do vínculo federativo (art. 34, I da CF/88), além de que o art. 60 § 4º, I determina que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado (por ser cláusula pétrea). A soberania do Estado Federal prevê que os Estados-membros, a partir do momento em que passam a ingressar na Federação, perdem a soberania, passando a ser autônomos. Em nosso caso, determinou o constituinte que a forma estatal fosse de uma República Federativa do Brasil. O Estado soberano é o que mantém autonomia interna, com independência e soberania externa. 183 7. ATIPICIDADES. Estado semi-soberano: aquele que se submete ao império do direito internacional e tem parte de sua soberania restringida. Estados de autonomia reduzida: têm reduzida capacidade gestão (capitis deminutio), em razão de outra nação protetora impor suas restrições. Estados vassalos: com certa autonomia interna, dependem externamente do Estado monopolizador. Têm restrição de direitos internos (força armada, moeda própria); acompanha o Estado suserano nas guerras; os tratados ratificados devem ser aceitos pelo vassalo; paga-se um tributo periódico ao suserano. No Império Otomano foram vassalos a Albânia, a Sérvia e Montenegro. Protetorado: normalmente, provém de um tratado, mas em 1914, entre Egito e GrãBretanha, não havia documento formal. O Estado protetor tem a obrigação de proteger o outro e exerce o direito de dirigir o protegido no plano externo. Há três tipos básicos: a) Internacional: protetor e protegido apresentam o mesmo padrão cultural e civilizatório; b) Colonial: o protegido se submete ao plano diretor e à cultura dominante do protetor; c) Semiprotetorado (Estados- clientes): Estados da América Central cederam direitos e poderes aos EUA para a gestão econômica e o devido pagamento de dívidas externas. Alguns desses efeitos, na orientação política e gestão ideológica, foram destacados pela URSS, no pós-Segunda Guerra Mundial. Estados associados: apesar de libertos da autoridade de sua metrópole de origem, mantem-se atados sob certa coordenação em assuntos de soberania e autonomia, como Porto Rico (EUA) e Ilhas Cook (Nova Zelândia). Desde 1993, Andorra é país membro da ONU, mas sofre das querelas de poder francês. Mini-Estados ou Estado exíguo: Vaticano, Mônaco, San Marino não têm direitos plenos – como o direito de guerrear –, mas asseguraram o ius tractuum. 184 SEPARAÇÃO DE PODERES E SISTEMA DE GOVERNO Na construção da modernidade política, uma das principais preocupações era com a divisão ou separação dos poderes, uma vez que, após a necessária unificação do Poder Político sob o Estado Moderno, passou a ser evidente o desafio em se assegurar que o soberano passasse, gradativamente, a ser o povo e não mais o príncipe, especialmente os tiranos. Uma forma eficaz de implementar o poder seria dividi-lo – como sabemos desde a famosa tripartição dos poderes perpetrada por Montesquieu e adotada pela imensa maioria dos Estados –, mas, outros recursos foram edificados para fortalecer o Parlamento, e assim originouse os sistemas de governo: Presidencialismo – Parlamentarismo. Se o objetivo era fortalecer o Parlamento, retirando ou controlando o Poder Político, então, por óbvio, formou-se primeiro o parlamentarismo como forma de governo. I - SISTEMA DE GOVERNO (Parlamentarismo e Presidencialismo) O Parlamentarismo, como medida em que se assegurava a retirada de poder do monarca, teve um grande impulso com a mobilização de nobres e burgueses (iniciantes) na Inglaterra do século XIII (1215) e que resultou na famosa Carta Magna152 (o Bill of Rights foi uma declaração de direitos assinada pelo Rei João Sem Terra153). Em outra fase, nos séculos XVI-XVII, também na Inglaterra de John Locke, foi assegurado o Habeas corpus (1679)154. Com o pensamento liberal de Locke há um avanço inestimável na defesa de prerrogativas que asseguram a liberdade negativa155; por outro lado, o direito resta obstruído pelo capital 156, como se fora conquista única da burguesia nascente: Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade [...] Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens [...] Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade (Locke, 1994, p. 98). Portanto, temos aqui os fundamentos da propriedade como direito natural. Estado de Direito Absenteísta 152 “39 – Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país” (Miranda, 1990, p.15). 153 Considera-se como Liberdade Negativa porque se retira direitos do Estado (absoluto) e há repasse gradual de margens de liberdade aos cidadãos. De certo modo, o Estado tem menos liberdade de ação que resulte em restrição de liberdades dos cidadãos. 154 Ao que se seguiu A Declaração de Direitos de 1689, já com previsão expressa ao Parlamento: “8º Que as eleições dos membros do Parlamento devem ser livres” (Miranda, 1990, p. 24). Depois, O Ato de Estabelecimento (1701) fortaleceu a Câmara dos Comuns: “6º Que não poderá ser membro da Câmara dos Comuns qualquer pessoa que tiver um cargo ou provento dependente do rei ou que receber qualquer pensão da Coroa” (Miranda, 1990, p. 27). 155 Locke designará papel estratégico ao Legislativo, como contenção ao Poder Político: “A lei civil, sendo o ato de todo o corpo político, tem a primazia sobre cada parte do mesmo corpo” (Locke, 1994, p. 138). 156 Martinez, 2012. 185 Chamaremos de Estado de Direito Absenteísta aquela fase em que o Estado Liberal agia apenas em defesa das prerrogativas e garantias do direito de propriedade. Trata-se de uma forma de Estado que se abstém quando lhe convém, ou seja, abstém-se quase sempre, agindo prioritariamente quando se torna necessário defender a propriedade e os seus proprietários. E em que contexto se colocou este Estado de Direito Absenteísta? Nas condições em que se dava a primeira fase do liberalismo clássico, coincidente com as revoluções industriais e com a base jurídica delimitada pelos direitos individuais, ao movimento liberal não cabia outra solução, senão tentar controlar o poder estatal que sobreveio do Estado Moderno: “Convinha rodear-lhe de freios constitucionais a ação invasora, duramente sentida durante as épocas do absolutismo, mitigando-se-lhe assim a força coercitiva. Far-se-ia isso mediante a clássica divisão de poderes [...] aproxima-se o Estado Jurídico157 de Kant do Estado Constitucional de Montesquieu” (Bonavides, 2003 p. 87 – grifos nossos). Há um forte apelo por um Estado Absenteísta, que procure distensão, distanciamento ou pouca atividade política: De acordo com o sistema da liberdade natural, o poder do Estado fica apenas com três funções para cumprir, aliás três obrigações, de maior importância, mas simples e compreensíveis para o senso comum: em primeiro lugar, a obrigação de proteger a nação contra atos de violência e ataques de outras nações independentes; em segundo lugar, a obrigação de salvaguardar, na medida do possível, todos os membros da própria nação contra agressões ilegais dos seus concidadãos, ou seja, garantir uma jurisdição imparcial; e em terceiro lugar, a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas... (Zippelius, 1997, pp. 377). O poder forte do Estado Moderno seria substituído por um poder fraco ou moderado no Estado Liberal – o Poder Político, na Inglaterra de John Locke, nasceu controlado pelo Legislativo158. De forma resumida, podemos caracterizar o Estado liberal a partir de três elementos básicos: a) individualismo: não se diz que “o indivíduo vive em sociedade159”, diz-se simplesmente da importância do indivíduo como “célula mater” da sociedade capitalista. (Demonstração clara disso é que, até hoje, o sujeito de direitos é associado ao indivíduo, ao cidadão, à pessoa física, e apenas progressivamente é que se alarga o seu alcance para as associações, os sindicatos, as cooperativas, como sujeito coletivo de direitos)160. 157 Em outro contexto, analisando a função essencial do Poder Judiciário como regulador dos mecanismos de justiça formal e real, demos a esta fundamentação jurídica específica o codinome de Estado Jurídico. Bem diferente, portanto, desse Estado-ideia, distante do mundo político, de que falava Kant. 158 É importante frisar que não se trata, sob nenhum aspecto, de limitação da soberania, como vemos na Constituição francesa de 1791: “Artigo 1º A soberania é uma, indivisível, inalienável e imprescritível. Ela pertence à Nação; nenhuma secção do povo, nenhum indivíduo pode atribuir a si próprio o seu exercício” (Miranda, 1990, p. 62). 159 Quanto tempo até que em Constituição tivéssemos a garantia de aspirar, juridicamente, por uma sociedade livre, justa e solidária? Veja-se o Preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”. 160 Veja-se o exemplo constitucional do mandado de segurança coletivo, em que se contemplam as coletividades, ter sido implementado somente com a CF/88. 186 b) propriedade: como direito natural a salvo da interferência e até mesmo da positivação do Estado, o direito à propriedade é um direito fundamental, incondicionado, ilimitado e irrestrito em seu gozo – “o direito à propriedade é sagrado, condiciona a própria vida e a liberdade do indivíduo proprietário”. (Só no ambiente progressista e transformador do Estado Social é que se formulou o princípio da sujeição da propriedade privada, afirmando-se que estão condicionadas todas as propriedades (urbanas ou rurais) à verificação da função social. A validação do direito está associada à legitimidade social). c) liberdade: o ideal do libertas quae sera tamem (a liberdade mesmo que tardia, à custa de muita luta social e derramamento de sangue: como liberdade propositiva) acaba resumido, limitado à liberdade negativa: não fazer o que a lei proíbe. Também a liberdade mercantil, a liberdade para comerciar, será destacada: a liberdade consagradora dos privilégios jurídicos dos proprietários, pois quem pode comprar (a burguesia) condiciona a liberdade de quem só é capaz de vender (os trabalhadores)161. Desse modo, o que se espera do Estado é que aja pouco, especialmente quanto a regular o direito de propriedade. Haverá apelo por um tipo de Estado Liberal, absenteísta, mais isento em termos de intervenção/regulação162, acionado somente para defender os privilégios do uso e gozo do direito de propriedade. Neste sentido apontava também um tratado de Wilhelm von Humboldt de 1792, com o título sugestivo “Ideias relativas a uma tentativa de determinar os limites da ação do Estado” [...] “O Estado deve abster-se”, exigia ele, “de todo o cuidado pela prosperidade positiva dos cidadãos e não deve dar mais passo algum além dos que forem necessários para os proteger contra si próprios e contra inimigos externos; não deve restringir a liberdade deles para outra finalidade qualquer” (Zippelius, 1997, pp. 378). Portanto, no contexto do Estado Liberal, devemos entender em primeiro lugar que se trata de uma liberdade que adveio das chamadas revoluções liberais ou burguesas, e que o autor de referência, como vimos, é o inglês John Locke. Neste contexto se define a liberdade como: “... gozar de uma esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder estatal [...] De fato, denomina-se ‘liberal’ aquele que persegue o fim de ampliar cada vez mais a esfera das ações não-impedidas [...]” (Bobbio, 2000, p. 101). Neste sentido, fica fácil perceber que ao indivíduo cabia ampliar os limites impostos pela liberdade negativa, restritiva do Estado: “Donde ‘Estado Liberal’ é aquele no qual a ingerência do poder público é o mais restrita possível” (Bobbio, 2000, p. 101). No Estado Liberal, a liberdade é condição da igualdade formal ou legal, já sabemos, mas é preciso relembrar que ambas são componentes fundamentais e elementares da democracia. Sem sujeito de direitos não há liberdade e sem liberdade não há participação – por sua vez, sem envolvimento e participação (auxiliando na formulação e aceitando as próprias regras) não há autorização, expressão tácita, consentimento e, por fim, legitimidade do poder e do comando. 161 É óbvio que não pode haver igualdade entre quem compra e quem vende força de trabalho – esta é uma razão lógica para que o Direito do Trabalho defenda, prioritariamente, o trabalhador, o hipossuficiente, diante do capital. 162 O neoliberalismo a partir dos anos 1970 nos trouxe um tipo de Estado Mínimo, mas que resultou catastrófico. 187 Seguindo Miranda, sem esta liberdade inerente ao sujeito de direitos, no Estado de Direito, o poder é abusivo, arbitrário, autoritário, autocrático, aristocrático163: As correntes filosóficas do contratualismo, do individualismo e do iluminismo – de que são expoentes doutrinais Locke (Segundo Tratado sobre o Governo), Monstesquieu (Espírito das Leis), Rousseau (Contrato Social), Kant (além das obras filosóficas fundamentais, Paz Perpétua) – e importantíssimos movimentos econômicos, sociais e políticos conduzem ao Estado constitucional, representativo ou de Direito [...] O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade) (Miranda, 2002, pp. 45-47). Ressalte-se ainda que, em virtude desse processo de maturação da ideia de liberdade (agora em seu sentido propositivo, ampliado: minha liberdade vai até onde começa a sua), a história do Estado Liberal deve ser vista como parte de um amplo e longo processo secular transcorrido entre os séculos XVII e XIX, e que se processa só inicialmente com a Revolução Inglesa (1689), Americana (1776) e Francesa (1789). No curso do próprio processo político, digamos que vindo de Locke a Rousseau, é possível ver que o pensamento se encaminha da mera liberdade de fazer e deixar passar (de comprar, possuir e vender como e quando se bem entender) à liberdade de conotação especialmente política: a liberdade de associação política para fazer política. Tolerância ao capital e à liberdade religiosa Esta articulação entre capital – como Poder Econômico hegemônico – e liberdade religiosa (subtraindo-se, inicialmente, poder da Igreja Católica), por sua vez, pavimentou a iniciativa política (seguida da segurança jurídica) necessária à sustentação do Estado Laico. Acrescente-se também outra substancial diferença operada como conquista institucional: a garantia constitucional de que a liberdade a partir de então seria assegurada pela Constituição. Com força de lei, com possibilidade de opor-se sanção e coerção a fim de se ter seu cumprimento integral, o direito à liberdade viria protegido pela garantia do Habeas corpus164. Mas, além da liberdade, também a política seria alvo de regulamentação e, por isso, fala-se de Estado de Direito Liberal: O Estado abstração, o Estado isento de contingências históricas, na sua conceituação pura e absoluta, o Estado processo especulativo e dado apriorístico, exclusivamente racional, “fora de quaisquer representações finalísticas de caráter empírico, e independente do arbítrio humano [...] era apenas a expressão vitoriosa do 163 Não há nenhuma possibilidade do direito (isonomia – princípio da igualdade) se ainda tratamos de senhores e servos – daí que estes devem ser libertos e emancipados. Também é neste sentido que a liberdade precede e condiciona a igualdade. Portanto, a democracia supõe autonomia e autarquia: envolvimento direto na formulação das regras e do poder. 164 Lembremo-nos de que a Declaração traz direitos e a Constituição os consubstancia, por intermédio (da segurança) das garantias (constitucionais e institucionais), da definição das liberdades (liberdade negativa), do cumprimento dos deveres ou obrigações (individuais, como o voto, ou coletivas, como a preservação do patrimônio público). A Constituição iria implementar as prescrições das Declarações de Direitos, prestadas anteriormente. 188 individualismo de seu tempo, influindo na mente do filósofo e pedindo-lhe a justificação teórica, por meios racionais, do Estado liberal nascido da Revolução Francesa (Bonavides, 2003 p. 85 – grifos nossos). Carta Sobre a Tolerância é o nome de um livro de John Locke (1987): considerado o principal pensador do liberalismo e do “individualismo possessivo”. É creditado a ele, por exemplo, o desenvolvimento teórico que sustenta ainda hoje as garantias e os direitos individuais, como visto no Habeas corpus (“tenhas o corpo livre”). Nessa carta sobre a tolerância, Locke expõe e argumenta de maneira lógica a necessidade da separação entre Igreja e Estado. E, uma vez exposta a argumentação que garante a separação entre a “razão” que envolve as agências políticas e os “sentimentos” de foro íntimo que alimentam a crença na transcendência, Locke define-se pela tolerância à diversidade de culto e de práticas (“Não se deve proibir em religião o que é permitido na lei civil165”). O que também acarretaria alguns princípios básicos da tolerância religiosa: solidariedade e generosidade. Pois, se “a fé age pelo amor e não pela força, deve-se esperar que haja respeito para que se seja respeitado. Ao que ainda se soma a caridade, mansidão e benevolência”. A apatia, o desinteresse, como fomento do próprio fundamentalismo não combinam com Locke e com os princípios do liberalismo, uma vez que a tolerância estará presente tanto na religião quanto na educação: [quem] se arroga o ofício de ensinar é obrigado a recordar os seus dois deveres de paz e benevolência para com todos os homens; a todos, quer estejam no erro ou na ortodoxia, sejam da sua opinião ou deles se diferenciem pela política e pelos ritos, sejam particulares ou governantes, se é que alguns deles se encontram na sua escola, a todos deve exortar à caridade, à mansidão e à tolerância; devem apaziguar e abrandar o seu ódio e o ardor da sua animosidade contra os heterodoxos... (Locke, 1987, p. 100 – grifos nossos). É claro que também poderão dizer que a prática da política difere da tolerância política e religiosa. Na verdade, estão quase certos, porque encontra-se uma “tolerância geral das ações”. Tudo foi feito de boa fé, afinal, generosidade e tolerância (com o erro, inclusive) são resultados esperados da ação humana. Portanto, nessas bases da ordem jurídica e no espírito do homem comum (cultura política) – além de meios de regulação do Poder Político –, encontra-se a possibilidade fática de surgimento do Parlamentarismo, como fortalecimento do Poder Legislativo. 1) Parlamentarismo No parlamentarismo, como está posto na nomenclatura, o Poder Legislativo é mais fortalecido, uma vez que o Chefe de Governo (como representante do Poder Executivo) é escolhido entre o Poder Legislativo. Histórica e conceitualmente, o Parlamentarismo é uma forma superior de organização da soberania popular, por derivar a atividade de governo diretamente na vontade popular. Como vemos no pensamento liberal de origem, trata-se de estabelecer o alcance e os limites do Poder Legislativo: Primeiro: ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas 165 Um sentido emprestado ao Princípio da Legalidade. 189 [...] Segundo: O Legislativo, ou autoridade suprema, não pode arrogar para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, mas se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de leis permanentes já promulgadas e juízes autorizados e conhecidos [...] Terceiro: O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento [...] Quarto: O poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder de legislar; ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não pode transmiti-lo para outros (Locke, 1994, pp. 163-164-166-168). No sentido mais amplo de autocontrole do Poder Político, se o Legislativo é erigido a fim de se controlar a “capacidade de execução da política” (do monarca no passado, do Presidente, no presidencialismo), então, é evidente que seriam estabelecidas obrigações do Poder legislativo: Primeiro: Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, e se abster de modificá-las em casos particulares, a fim de que haja uma única regra para ricos e pobres, para o favorito da corte e o camponês que conduz o arado. Segundo: Estas leis só devem ter uma finalidade: o bem do povo. Terceiro: O poder legislativo não deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento, individualmente ou através de seus representantes [...] Quarto: O legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de legislar, e nem também deve depositá-lo em outras mãos que não aquelas a que o povo o confiou (Locke, 1994, p. 169). Não adianta trocar um poder opressivo por outro, daí a necessidade de se regulamentar/regular toda forma de poder. No entanto, para Locke, o Legislativo é um poder superior porque deriva diretamente da soberania popular. O que revela uma hierarquia entre os poderes: Em uma sociedade política organizada, que se apresenta como um conjunto independente e que age segundo sua própria natureza, ou seja, que age para a preservação da comunidade, só pode existir um poder supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados; não obstante, como o legislativo é apenas um poder fiduciário e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no povo um poder supremo para destituir ou alterar o Legislativo quando considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou [...] Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem quer que seja, mesmo aquelas de seus próprios legisladores, sempre que eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos contra as liberdades e as propriedades dos súditos (Locke, 1994, p. 173). No parlamentarismo, a função executiva se fraciona em três órgãos distintos e complementares: Chefe do Estado, Chefe do Governo e Gabinete. Durante as eleições, para obter maioria e com isso reunir melhores condições de indicar o Chefe de Governo, os partidos políticos já identificam e indicam ao eleitorado seu futuro primeiro-ministro (o líder e o 190 candidato, teoricamente, mais votado no partido). Os eleitores sabem que ao votar em um partido estarão votando em seu primeiro-ministro, afinal, encerrado o período eleitoral, o Chefe de Estado se vê obrigado a nomear o primeiro-ministro. Isso faz do parlamento a peça central do governo, pois acaba dirigindo a política interna do país. O eleitor, portanto, sabe perfeitamente que ao votar terá dupla responsabilidade, porque vota a fim de compor a atividade legislativa e potencialmente no candidato que será indicado ao cargo mais importante de todo o Poder Executivo. Trata-se de um regime de governo muito mais prático do que teórico e muito mais histórico (constructo, protótipo) do que um modelo (suposto, projetado). A representação política, por ser ainda mais incisiva e presente, é menos virtual (potencial, hipotética) do que no regime presidencial. O arete ou virtus é de cunho popular, pois – historicamente – o legislativo conclama à participação. De modo sistemático, são algumas de suas características: a) Distinção entre Chefe de Estado e Chefe de Governo A Chefia de Estado normalmente é reservada a atividades diplomáticas, de representação do Estado junto a outros Estados soberanos. Em regimes mistos será exercido pelo Presidente eleito. Já o Poder Político, como capacidade administrativa do Estado, será representado pelo Chefe de Governo e obedece a uma tripartição: Poder Executivo (1º Ministro auxiliado pelo gabinete); Poder Legislativo (exercido pela Câmara dos Comuns e Câmara dos Lordes); o Poder Judiciário (sendo que para Locke o Judiciário é uma extensão do Legislativo). b) Chefia de Governo com responsabilidade política O Sistema Parlamentarista apresenta dois chefes: um chefe de Estado (representado pelo Monarca – ou Presidente eleito, em sistemas mistos – e tem função de presidir a nação) e um Chefe de Governo (1º Ministro no exercício do Poder Executivo com o gabinete). Portanto, a responsabilidade política é compartilhada. c) Possibilidade de dissolução do Parlamento. Ao contrário do presidente da República, que se vê no centro da crise política, sendo incapaz de resolver o problema sem que se misture o cargo à pessoa, o 1º Ministro presta contas de suas ações diretamente ao Parlamento, podendo perder o cargo, pois se a crise for mais grave será julgado em processo de impeachment. Mas, com sua queda se desfaz rapidamente a crise política e outro parlamentar será alçado à condição de Chefe de Governo. d) O Poder Legislativo e o Executivo são interdependentes, o que torna menos evidente a tripartição dos Poderes. Uma vez que o Chefe de Estado (Primeiro-Ministro) é eleito entre os membros do Parlamento, subentende-se que o Poder Executivo está submerso ao Legislativo, como se o real poder fosse o Legislativo, reservando-se ao Executivo apenas funções administrativas ou diplomáticas (representativas da Razão de Estado). Base Histórica de fomento do Poder Legislativo Séculos XIII – XIV - Assembleias políticas na Inglaterra. Fixação da Câmara dos Comuns manutenção (limitação) da Câmara dos Lordes Século XVII – Conselho de Gabinete - conselheiro privado - relações interiores - deficiência da política do rei Século XVIII 191 – destaque ministerial - instituições do Primeiro Ministro - fortalecimento da Câmara dos comuns (participação nas escolhas) - Parlamento x ministros - impeachment – instituto legal: penalização e destituição do poder166 - surgimento da responsabilidade política - voto de desconfiança: deposição ministerial - não há divisão clássica dos poderes Funcionamento - escolha do primeiro-ministro pelo partido que tenha maioria congressual - pluripartidarismo dificulta essa definição Chefe de Estado - mera representação; posição secundária - em crise, indica o primeiro-ministro Chefe de Governo - figura política central - deriva do Legislativo, mas exerce o poder executivo Dissolução do Parlamento - maioria congressual pequena - por solicitação do Chefe de Governo novas eleições risco para o primeiro-ministro que pode perder, completamente, o apoio da maioria no Legislativo 2) Presidencialismo O presidencialismo é uma das formas tradicionais da divisão de poderes que se obtêm com o sistema de governo. Montesquieu refere-se, mais explicitamente, ao presidencialismo, ao propor a tripartição dos poderes, uma vez que no Legislativo, o Poder Executivo é exercido pelo Chefe de Governo indicado pelo Parlamento. Assim, inicialmente, inclusive para se fixar melhor a repartição dos poderes, no presidencialismo, há um maior fortalecimento do Poder Executivo. Por sua vez, tem algumas características que devem ser anunciadas: a) O Presidente da República é Chefe de Estado e Chefe de Governo. Este fato pode e normalmente acaba por gerar uma concentração de poder muito maior do que o previsto e do que se poderia esperar em virtude da adoção da divisão dos poderes167. b) A chefia do Executivo é unipessoal. Significa que o Presidente da República tem a incumbência de ditar as diretrizes e fixar as metas da administração pública. Neste caso, a tripartição dos Poderes é visível internamente, uma vez que a concentração do poder na Presidência da República é evidente, sendo considerado como o responsável pelo desenvolvimento do Estado e da sociedade civil. c) O Presidente da República é escolhido pelo povo. 166 Originalmente, o impeachment era um procedimento criminal e só no decorrer da história é que transformou em processo político-administrativo. 167 Por isso, no nascimento do governo presidencialista, na França do pós-1789, o legislador já previu uma série de restrições ao Poder Político exercido pelo Presidente da República: “Não mais haverá venalidade ou hereditariedade de qualquer ofício público”. A mesma Constituição Francesa de 1791 ainda vedaria a edição de medidas provisórias: “O Poder Executivo não pode fazer nenhuma lei, mesmo provisória, mas somente proclamações conforme às leis para ordenar ou lembrar a sua execução” (Miranda, 1990, p. 71). 192 Ainda que no Brasil haja o instituto da reeleição, como expressão da democracia representativa, o povo elege diretamente o cargo mais elevado do poder central junto ao Poder Executivo. d) O Presidente da República é escolhido por um prazo determinado. Uma das regras da democracia (como normatização do poder) é a imposição da rotatividade do poder e a fixação de um prazo delimitado, razoável, não-extenso demais, em que vige a determinação do cargo de Presidente da República (bem como dos demais cargos do Executivo e do Legislativo). e) O Presidente da República tem poder de veto. Significa que, a fim de se garantir o sistema de “freios e contrapesos”, o chefe do Executivo usa do veto, no todo ou em parte, dos projetos de lei aprovados pelo Legislativo. Funciona como mecanismo de mediação, equilíbrio entre o Legislativo e o Executivo. f) o maior problema – como ocorre no Brasil – é a ocorrência de um superpresidencialismo, em que o Executivo se arvora sobre o Judiciário e o Legislativo. II - REGIME DE GOVERNO (Democracia ou Ditadura) Tome-se por ditadura toda forma de negação da soberania popular, incluindo-se a decretação do Estado de Sítio – sob suposta condição de legalidade –, ou nos casos em que apenas converte-se o Golpe de Estado em capa de legalidade. DEMOCRACIA Evolução da Democracia 1. 2. No sentido histórico, cronológico Configura-se como progresso A) Artefato: instrumento e ideia em processo de desenvolvimento Conceituação inicial Democracia 3. Regime político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos (lei, imperativo, da maioria, somada aos direitos das minorias). 4. Democracia política (liberal). 5. Democracia social – direito social (intervenção do Estado do Bem-Estar social). Valores fundamentais 6. Liberdade 7. Igualdade 8. Fraternidade De forma geral, concorrentes do liberalismo desconfiam da soberania popular, identificada com a democracia popular soviética, ou com certa utopia rousseaniana. Contudo, na democracia não há poder, nem direito ilimitado. A soberania popular é regrada, baseada em leis e melhorias das “relações e representações sociais”. A soberania popular: Refere-se ao exercício máximo do poder, como soberania política. 193 Agrega-se aos direitos sociais de todos os tipos (os que já existem e os que poderão vir a ser criados). Acrescente-se a liberdade negativa (mais próxima do liberalismo clássico). Entenda-se como garantia contra o abuso do Estado ou do poder de outros. Liberdade positiva é ver-se livre para fazer algo. É a liberdade positiva que se associa à ideia de direito que deve ser formalmente estabelecido. Precisa ser garantida concretamente para o exercício ou fruição desse direito. (Na Franca, por exemplo, a greve é uma liberdade: não está nos códigos. Mas, paga-se pelos abusos como cidadão). No Princípio Democrático (Canotilho, s/d) só existe um direito se houver a garantia de que ele possa ser usufruído. III - FORMA DE GOVERNO (República ou Monarquia) Com o que vimos já podemos depreender que, o que denominamos de Estado de Direito Republicano corresponde a um tipo de Estado, isto é, tratamos enquanto tipologia de Estado e não apenas como forma de governo. José Afonso da Silva define o modelo como “formas institucionais do Estado” (2003, p. 102), colocando-se além da simples forma de governo, no sentido de que se pode mais facilmente modificar o governo do que o Estado. Por outro lado, Bobbio trata o tema de forma depreciativa, como mera forma de governo: “Na minha formação de estudioso de política nunca me detive sobre o republicanismo ou a república [...] ‘república’ é o nome da forma de governo oposta à ‘monarquia’ ou ao ‘principado’, a começar pelo nosso Maquiavel” (2002, p. 10-11). De certo modo, é como se estivesse em jogo só a questão da representação – aqui se trata da representação formal parlamentar. Isto é, como forma de governo, a República estaria assistida somente com o exercício da representação, porque garantiria a governabilidade necessária. Esse tipo de análise da governabilidade também, não raramente, a confunde com o bom funcionamento do governo e este, por sua vez, é limitado à separação dos poderes. Como sabemos, o objetivo era fortalecer e resguardar a democracia. Neste contexto, ainda podemos destacar a fundamentação jurídica essencial da própria democracia. Resumo O sistema de governo presidencialista é baseado na separação de poderes, mas com forte concentração de comando (governo) no Poder Executivo. Tem, como características gerais: a) independência dos poderes; b) eletividade para organização do Legislativo e do Executivo; c) curta duração dos mandatos (média de 4 ou 5 anos: Iraque = 7 anos); d) supremacia da lei constitucional (ver garantias institucionais); e) ministérios são auxiliares do Executivo. A tendência à concentração de poderes, desde a origem, levou os EUA a adotarem o sistema de freios e contrapesos, como garantia da interdependência (a indicação, com peso de nomeação, dos Ministros do STF pelo chefe do Executivo – e sua sabatina pelo Senado -, seguiria o mesmo princípio). Por sua vez, o parlamentarismo constitui outra manifestação ou criação do pensamento liberal, outro instituto político do Estado Liberal. Mantendo-se certa consonância com o pensamento de Locke, podemos dizer que o poder Executivo é subordinado ao Legislativo, pois o poder de legislar sobre o Estado é superior e anterior ao próprio momento de execução das ações desse Estado. Além de que o Legislativo (poder fiduciário) deriva diretamente da vontade popular: o verdadeiro poder originário. Assim, é também a base em que se assenta toda a responsabilidade sujeita à vida social, uma vez que o poder civil é instituído pelo povo – autor e 194 sujeito da história que pode, inclusive, destituir o próprio Poder Legislativo. Portanto, nessa matriz conceitual do Parlamentarismo, temos uma ligação muito mais íntima entre poder, competência e capacidade legislativa e soberania popular. 195 PARTIDOS POLÍTICOS E GRUPOS DE PRESSÃO Como resumo da obra, pode-se dizer que, esporadicamente, os partidos existiram na República romana e em algumas cidades do Renascimento, além da Inglaterra dos Stuart. No Brasil, o inchaço, o excesso e a falta de identidade tem minado a estrutura política, com especial atenção para os partidos políticos. Todavia, a partir do século XIX algumas condições especiais passaram a ser observadas na Europa ocidental, sendo o mais importante: I) A existência de segmentos sociais (étnicos, religiosos ou de classe). II) O governo baseado no apoio popular. III) A potencialização de organização da massa popular a fim de que a expressão política fosse a mais ativamente organizada. Ainda cabe lembrar que os partidos políticos e os grupos de pressão surgiram ou se fortaleceram, no século XX, em substituição a dois mitos/modelos clássicos da Teoria Política: i) absolutismo/Estado Leviatã; ii) individualismo/cidadão soberano. De quebra, especialmente no período entre-guerras, subsumiu-se qualquer resquício da vontade geral. No século XX, como século dos partidos políticos, a representação do interesse de massas passou a ser evidenciado. Neste sentido, os partidos políticos indicam os níveis de competitividade presente na arena política (Outhwaite, 1996). Partidos políticos O tema dos partidos políticos lembra, obrigatoriamente, a representação política sob a forma do regime político da democracia parlamentar, representativa ou indireta. Os partidos comunicam-se como extensores da República e da Federação, afinal, é sob esta forma de distribuição da representação política que o Poder Político centralizado será constituído e que o Princípio do Pluralismo Político será garantido (CF/88168). Entretanto, é de se frisar que os partidos políticos implicam no referencial da participação política em níveis ou modalidades diferentes e complementares, como destaque para: a) Presença (como ocorre nos casos de corpo presente nas reuniões). b) Ativação (desenvolve-se uma série de atividades designadas por delegação de princípios). c) Participação (quando se contribui direta ou indiretamente para uma decisão política). Conforme a definição de Max Weber, o partido político é uma associação que visa um fim deliberado, seja ele objetivo (realização de um plano), pessoal (obter benefícios inerentes ao poder) ou combinando todos esses objetivos. Na definição, destaca-se o caráter associativo dos partidos, como partes (indivíduos) que se associam para melhor se representarem e defenderem seus interesses. Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, o fenômeno da participação política quase unicamente por meio dos partidos, a Partitocracia, expressou o bloqueio da manifestação 168168 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 196 institucional dos conteúdos políticos que antes eram manifestos pelos notáveis (homens dignos de nota) e que exerciam a capacidade da liderança e da representação individual, como se deu com o próprio Weber, notadamente na Constituição de Weimar (Bobbio, 2000, p. 888-905). É do conhecimento médio, mas vale lembrar que a nomenclatura dos partidos políticos vem do fato de representarem um segmento da sociedade global, em termos de representação social e/ou política. Partido vem da capacidade limitada da representação, ou seja, de se representar somente uma parte169 da sociedade. Partido: partitus, partire. Como se tratasse de uma partição, repartição da representação política. Sobretudo na sociedade industrial, complexa, forjada sob violentos embates entre as classes sociais, a ideia de vontade geral – muito rapidamente – foi submetida à realidade da contradição social, obrigando-se à conclusão pela incapacidade de se representar e/ou agir conforme o interesse social, popular, geral. O Estado não é isento a esses efeitos e embates ideológicos, uma vez que o governo – a parte operacional do Poder Político – sempre estará a cabo de um determinado partido ou parte política, como classe social. Até mesmo porque, na sociedade moderna, o interesse econômico é hegemônico, predominante e, assim, submete os demais grupos, classes e/ou camadas sociais. Enfim, como não se pode representar a vontade geral, em função da contradição social, foi e é necessário organizar a representação política em partes ou em partidos que representem interesses específicos. Outro componente inicial a receber destaque quando abordamos a composição partidária se refere ao fenômeno do bipartidarismo, como nos EUA, entre Democratas e Republicanos, e no Reino Unido entre o Partido Tory (de natureza conservadora) e o Partido Whig. O primeiro, apoiando a permanência de Jaime II – convertido ao catolicismo – e os whigs, que apoiavam sua exclusão (de acordo com a Lei de Exclusão, de 1678 – 1681). Em sentido complementar, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), no México, no poder por mais de 70 anos consecutivos, indica que a relação umbilical entre o partido e o poder central pode ser tamanha, a ponto de se ter quase que a existência de um único partido. Apesar de submetido ao processo eletivo, o ajuste e o monopólio exercido na máquina administrativa pelo PRI não permitiam que outros partidos fizessem uma frente política considerável. No México, o pluralismo partidário era previsto e implementado, mesmo sem o rodízio ou a alternância efetiva no poder. Portanto, na prática, o Princípio Republicano sempre esteve em risco, uma vez que a alternância do poder não se refere apenas ao indivíduo – evitando-se o culto à personalidade, com a fixação de um máximo de reeleições –, mas sim à rotatividade efetiva dos grupos, partidos e classes sociais que controlem os mecanismos de poder. Absolutamente diversa dessa realidade, a democracia dos Cantões suíços pode ser uma exceção ao conjunto, mas é interessante de ser frisada. Nesta experiência convivem os partidos políticos e a forma direta de manifestação da vontade popular. Os Cantões fazem conviver há séculos a democracia direta com o Princípio da Representação. Na Alemanha, os lobbies configuraram-se como movimentos legítimos e tradicionais: De longa tradição na Alemanha, as fundações são financiadas indiretamente pelo governo federal, através dos partidos políticos alemães. A mais antiga delas é a Fundação Friedrich Ebert, criada há 80 anos e ligada ao Partido Social Democrata (SPD). Seguem-se a Fundação Konrad Adenauer, criada há 50 anos e ligada à União Democrata Cristã 169 Parte – do latim pars, pártis. Partição, partitio – ônis. Partícula: partidário, partidarismo. Partido: partitus, partire (Cunha, 2010, p. 479). 197 (CDU), a Fundação Heinrich Böll, dos verdes, e a Hans Seidl, da União Social Cristã (CSU). Mesmo o antigo PDS (Partido do Socialismo Democrático), hoje Partido de Esquerda, tem a Fundação Rosa Luxemburgo170. Por meio dos partidos políticos (de âmbito nacional) expressam-se ou devem se expressar as manifestações de anseio social, local. Com grupos de interesse que atuam em legítima adequação às regras democráticas, nas suas localidades – antes de se formarem os pleitos estaduais e nacionais –, os partidos políticos congregam um mínimo de satisfação popular. O fato dos Cantões terem vida própria, larga escala de autonomia, reforça a necessidade dos partidos manterem proximidade com suas bases. Brasil Comparativamente ao que vimos na abordagem dos Cantões suíços, seria o equivalente a termos no Brasil uma boa distribuição orçamentária, municípios com atuação mais destacada, o evidente orçamento participativo e uma atuação destacada do cidadão que não é só eleitor. No país, dada a estrutura centralizada – centralizadora de um quase superpresidencialismo, também o pacto federativo se ressente da má distribuição do poder. Diante dessa mega estrutura de poder no país, mesmo com a alteração de modelos econômicos, como se deu a partir de 1930, a distribuição de poder pelos partidos e a configuração das lideranças partidárias se mantiveram constantes. O que indica a proeminência de uma elite político-partidária que se alterna no poder, mas que não oxigena a própria política frente ao controle central (Fausto, 1986). O fenômeno da reeleição só viria a acirrar um defeito histórico na má distribuição do poder no país171. A partir da década de 1990, acostumamo-nos a ver na cena política nacional a fluência e a grande diversidade dos movimentos sociais e populares. Alguns dos movimentos sociais, como em favor da edição de “penas duras” (e que culminou na Lei de Crimes Hediondos) não eram propriamente de apelo popular. Antecipando-se o debate, pode-se pensar que movimentos sociais e populares constituem fontes de pressão política. No entanto, enquanto movimentos que não batem às portas do poder constituído, não são em si grupos de pressão. Muitos desses movimentos ainda se alinharam ao movimento sindical – como o MST e a CUT –, mas ainda assim precisariam de partidos políticos que os representassem e pressionassem o Poder Político (isto porque almejam constituir o poder): o PT dos anos 1990 foi exemplar neste sentido. Organizou-se a partir de movimentos sociais, constitui inúmeros grupos de pressão e alcançou o comando do poder central. A tecnocracia e/ou meritocracia aplicada à política, no sentido de partido de quadros, foram trazidas pelo PSDB, especialmente na eleição presidencial de Fernando Henrique Cardoso172. Em contexto semelhante, mas em sentido diverso, foram forjados verdadeiros movimentos populares (e/ou grupos de interesse) – alternando esforços por convencimento – a partir de entidades de classe que se comportaram como grupos de pressão: foi o caso da OAB e da CNBB, no embate pela redemocratização. 170 http://www.dw.de/funda%C3%A7%C3%B5es-pol%C3%ADticas-para-manter-tradi%C3%A7%C3%A3odemocr%C3%A1tica/a-1765847. 171 Emenda constitucional nº 16, de 04 de junho de 1997. 172 Sua titulação acadêmica, professor titular de Ciência Política, indica claramente a ascendência que manteve no PSDB, formando-se como partido de quadros. 198 Todavia, por maior que sejam esses esforços, toda a articulação pode ser perdida em razão de outros interesses com maior poder econômico – como a bancada ruralista – ou os grupos que representam a indústria tabagista e de bebidas alcoólicas. Esta diversidade de influências culturais e origens sociais e ideológicas conduziu o PT (como partido de massas) e o PSDB (como partido de quadros) a monopolizarem a organização política brasileira nas últimas décadas. Partidos de massa e de quadro De certo modo, ainda que superficialmente, pode-se dizer que o debate clássico acerca dos partidos políticos, quer seja na formação de quadros, quer seja na condução das massas, é mal colocado no país. Neste binômio da Teoria Política clássica, entre partido de massas e partido de quadros, há muitos exemplos, a começar pelo Partido da Ação italiano, em reação ao fascismo. Também o Partido Comunista Brasileiro, com a direção de Luís Carlos Prestes e o PCdoB, sob a direção de João Amazonas. Mas, aqui cabem alguns breves reparos: apesar das fortes lideranças políticoideológicas, os partidos comunistas no Brasil não foram partidos de massas. É claro que todo partido precisa de apego popular, mas um partido de massas movimenta milhões de eleitores e de seguidores, o que não ocorreu no caso comunista. Quanto ao Partido da Ação italiano, é interessante de ser resgatado porque Norberto Bobbio, talvez o maior cientista político liberal do século XX, foi um de seus militantes. De inclinação fascista em boa parte da juventude acadêmica, Bobbio faleceu como liberal jusnaturalista, adepto do Iluminismo e de suas aplicações no direito. Os partidos de massa procuram seus eleitores e cabos eleitorais na antevéspera do processo eleitoral. Os partidos de quadros são vitimados pelo Executivo (ao não privilegiar a meritocracia) – em seus acertos de composição majoritária – e pelos grupos de interesse que igualmente desequilibram a tecnicalidade com a imposição do jogo político. Diante deste dilema – e mesmo sabedores de que as emendas de iniciativa popular têm resguardo constitucional – é forçoso concluir que o superpresidencialismo brasileiro, ainda que sob reflexos do Estado Patrimonial, não só desbaratina a repartição entre os três poderes como fragiliza o pacto federativo. No bojo dos partidos políticos o impacto revela acertos e composições que pouco refletem o “espírito nacional” ou as culturas e suas localidades. Com partidos que deslocam seu eixo de representação e participação para a esfera federal, é lógico concluir que este desvio fortalece as elites políticas e empobrece a democracia, bem como anula o conjunto dos partidos políticos. Com partidos frágeis, crescem vertiginosamente os grupos de pressão (ilegais no Brasil, regulados nos EUA). Grupos de interesse e grupos de pressão Neste contexto, os partidos resguardam seu arsenal – em meio aos lobbies – para agir junto ao Congresso Nacional (sobretudo, nas lideranças partidárias) e diretamente nos gabinetes do Poder Executivo (via de regra, cargos ocupados por membros indicados pelos mesmos partidos). Ou seja, em nosso cenário, os lobbies também dirigem-se ao centro do poder. Os municípios são resgatados em sua relevância apenas no período eleitoral. Neste momento, o eleitor se encontra com o dispositivo partidário. Mas, passada a eleição, o partido toma a parcela de poder que lhe foi conferida pelos e votos e, como seus mandatários, também a militância e a discussão partidária saem da vida comum do homem médio. Ainda se faz inicialmente outra distinção que é bem nítida. Os grupos de interesse – como organismos de expressão de anseios coletivos – antecedem aos grupos de pressão. Caracterizam- 199 se mais especificamente por representarem interesses determinados e específicos e porque não incidem necessariamente na seara da pressão política. O grupo de pressão, é forçoso dizer, tem por característica básica o exercício da influencia sobre o Poder Público a fim de que ações de governo venham atender a interesses mais restritos. Portanto, um grupo de pressão é um grupo de interesse mobilizado, colocado em ação. Para Burdeau, os grupos de interesse e de pressão sempre existiram; à diferença de que modernamente são mais organizados e sistêmicos do que na sua origem. Muitos se confundem com o próprio poder instituído, como se fossem “poderes de fato”. Para os que ainda adivinham o definhamento dos partidos políticos, fala-se que são “governos invisíveis” (Bonavides, 2012). De fato, por exemplo na Assembleia Nacional Constituinte de 1986 era flagrante a ação de inúmeros grupos de pressão. No decorrer da CF/88 muitos grupos se manifestaram – chegando, inclusive, a organizar os partidos como se fossem um grande lobby: a bancada evangélica é um exemplo. Alguns grupos de pressão nasceram ou evoluíram a partir da falência e/ou incapacidade de gerir e instrumentalizar demandas no cenário político. Esses grupos podem ser definidos como grupos não-partidários, mas nunca como grupos não-políticos, pois seguem determinadas investigações e se espraiam em ações que requerem resultados políticos. Como grupos de interesses políticos organizados, muitas vezes encontram interesses econômicos ou até culturais camuflados, alguns grupos de pressão ainda representam demandas culturais que travestem envolvimento politico e até partidário. Muitos organismos não-governamentais ou multilaterais podem se alinhar nessas definições e em outras assemelhadas. De todo modo, importa ressaltar que são organismos/organizações que surgem e ganham relevo em razão de se ver diminuir a partição dos partidos políticos. Há que se apontar ainda que os grupos de pressão não são ruins ou bons por natureza, não há divinização e nem demonização em política. Podem se constituir em lobbies a favor do desarmamento ou em benefício da indústria armamentista, a favor ou contra o uso de energia sustentável, bem como delatando ou negando o aquecimento do globo terrestre. O fato é que os grupos de pressão, em lição dos anos 1970, exercem um papel de contínua representação entre indivíduos e Estados, intermediando estruturas e sistemas políticos tradicionais, poucos móveis, e os anseios muitas vezes isolados e até despretensiosos de alguns poucos: Os grupos de pressão, segundo J. H. Kaiser, são organizações da esfera intermediária entre o indivíduo e o Estado, nas quais um interesse se incorporou e se tornou politicamente relevante. Ou são grupos que procuram fazer com que as decisões dos poderes públicos sejam conformes com os interesses e as ideias de uma determinada categoria social [...] Os grupos de pressão não são outra coisa senão as forças sociais, profissionais, econômicas e espirituais de uma nação, enquanto aparecem organizadas e ativas (Bonavides, 2012, p. 460). Por seu turno, partidos marcados por ideologias e purismos culturais e religiosos portamse como seitas fanáticas e assim “exploram os ressentimentos políticos”. Pode-se dizer, concluindo, que, na seara política em que os partidos são enfraquecidos por sua própria inépcia ou pela ação dos lobbies, ironicamente, fortalecem-se estruturas totalitárias, arcaicas. Partidos liberais e Totalitarismo 200 Outra distinção que se deve ter muito clara é entre os chamados partidos liberais ou democráticos (social democráticos) e os “partidos ideológicos”, missionários, que historicamente desembocaram em estruturas e regimes totalitários. Historicamente, a nomenclatura aponta para os Partidos Únicos ou que se fizeram hegemônicos após a conquista do poder. Este fenômeno pode ser observado com o Partido Nazista (Partido Nacional Socialista), após a ascensão de Hitler, e o Partido Comunista, sob o comando de Stalin, na ex-URSS. Além de algumas outras experiências reais, do mesmo Partido Comunista na China, de Mao Tsé Tung, e no Camboja comandado pelo Khmer Vermelho, de Pol Pot173. Por isso, ainda é comum que os grupos de pressão atuem no interior desses partidos convulsionando toda perspectiva de relação política, uma vez que se baseiam em bandeiras de intolerância: Explorando os ressentimentos da derrota bem como as cláusulas apertadas do Tratado de Versalhes, levantava-se o partido de Hitler contra a cobiça estrangeira [...] o anti-semitismo [...] militarismo [...] O que mais assombro causa aos que se ocupam do fenômeno nacionalsocialista é precisamente o fato de que a Constituição de Weimar abriu a porta para Hitler, em 1933, e festejou, com esmagadora maioria eleitoral, a entrada dos assassinos da liberdade política na Alemanha. Partidos de natureza ideológica, constituídos dos insatisfeitos da ordem democrática, dos marginais da liberdade, sua pregação subversiva se exercita de modo quase impune, representado o pesadelo dos regimes de opinião (BONAVIDES, 1998, p. 254-255). Nesta relação impura entre partidos e grupos de pressão, percebe-se, notadamente, que se confunde Estado, Governo e partido. Como se o Estado fosse o mero instrumento de ação/manipulação do governo daqueles que se tornaram partidários do poder. No caso específico, o que Hitler dizia a seus comandados diretos tinha força de lei: Partidos providos de “concepção do mundo” tendem, segundo o publicista de Munique, a se fazerem totalitários, a quererem compendiar, numa filosofia única, todas as manifestações do engenho humano [...] Assemelham-se as seitas e igrejas [...] São dotados de irresistível impulso para a intolerância. Não perdoam os seus inimigos [...] levam a luta política para o terreno das paixões mais violentas e os combates partidários tomam para eles o caráter de guerras de religião (BONAVIDES, 1998, p. 255). Quando, na verdade, sabe-se que o partido, para ser democrático exige reciprocidade de relações entre as lideranças e os seus seguidores, com a liberdade de dizer sim e não, de consentir ou discordar. Síntese Quanto aos partidos, podemos dizer que sua ideia fundadora e origem histórica tiveram por princípio dirigir a participação política popular, oportunizar o acesso de novos sujeitos legitimados e expressar demandas antes contidas pela negação dos direitos. Contudo, o 173 Uma conclusão apressada indicaria que a solução diante dos Partidos Únicos seria um Partido Libertário, porém, há aí uma contradição em seus termos. O pensamento libertário tem por essência a autonomia e a recusa da representação, o que inviabilizaria a organização partidária. Isto é, um partido anarquista não faz o menor sentido. 201 enfraquecimento político, provocado pela multiplicação partidária tem levado a inúmeros desacertos institucionais. No Brasil, há um verdadeiro fermento dos partidos políticos, instigando-se a indisciplina ou “venda” da representação por meio das “legendas de aluguel”. O Brasil ganhou mais dois partidos na semana passada: o Solidariedade, do deputado Paulinho da Força (PDT-SP), e o Partido da República e Ordem Social (PROS) , de Eurípedes Júnior. Se a Justiça Eleitoral aceitar a validade da Rede, de Marina Silva, as eleições de 2014 terão 33 partidos na ativa174. No que diz respeito aos grupos de interesse e de pressão, pode-se verificar que a iniciativa é legítima – quando não confrontados com objetos ilícitos – porque perfazem a comunicação entre o Poder Político e a sociedade civil (ou entre os indivíduos e seus coletivos). Entretanto, apenas proibindo-se, sem melhor regulamentação ou maior fiscalização, os lobbies têm proliferado no país, aproximando em definitivo a política da polícia. 174 http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2013-09-28/regras-simples-e-financiamento-publico-incentivam-criacaode-partidos-no-brasil.html. 202 A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO PÚBLICO do Estado de Cortes ao Estado Legal Neste tópico veremos que a história de afirmação do Estado Moderno deu-se em dois sentidos: 1) contra as formas autocráticas e absolutistas próprias ao Antigo Regime; 2) como conversão da ideia de soberania do poder, para a edificação da soberania popular, especialmente porque a legalidade derivava sua força da legitimidade. O chamado Estado Legal deveria superar uma fase monolítica do Poder Político e se apresentou pela primeira vez a coisa pública como sinônimo de popular; a primeira vez em que o povo passaria a integrar uma política de Estado que não fosse como peões que caminham para a guerra, mas sim integrando-se a soberania popular como matriz das políticas públicas. O texto está dividido em duas partes. 1ª Parte: a soberania absolutista Na vigência do feudalismo temos a figura do Estado só no nome, uma vez que as estruturas políticas não estão definidas. Nesta fase do Estado Feudal - período que compreende a Idade Média - não temos os marcos históricos mais estimulantes para analisar as tipologias do Estado e nem há grandes formulações ou teorias políticas. Evidentemente, há alguns elementos que caracterizam esse chamado Estado Medieval: cristianismo; invasões bárbaras; feudalismo. Pode-se dizer que no período há uma Filosofia Política católica, de certo modo embasada na moral cristã, mas certamente não chega a compor a realidade da política e do Poder Público da época. Por seu turno, há outros elementos ou circunstâncias que conformam o Estado Feudal: A – permanente instabilidade política, econômica e social; B – distinção e choque entre poder espiritual e poder temporal; C – fragmentação do poder, mediante a infinita multiplicação de centros internos de poder político, distribuídos aos nobres, bispos, universidades, reinos, corporações etc; D – sistema jurídico consuetudinário embasado em regalias nobiliárquicas; E – relações de dependência pessoal, hierarquia de privilégios (Streck, 2001, p. 21 – grifos nossos). A história desse Estado Medieval é longa e tortuosa, mas pode-se dizer que, do final do Estado Romano até que se estruturasse um novo tipo de Estado ou sistema de produção, entre feudalismo e capitalismo, transcorreram outros mil anos, agora sob a dominação do poder espiritual estabelecido no correr da Idade Média. Temos aqui um longo período em que, todavia, apenas duas questões foram constantes: a oposição entre Estado x Igreja; tirania x justiça. Na Idade Média como um todo predominara certa visão negativa do Estado175, pois o Estado acabara sendo definido de forma limitada ou restritiva como se estivesse destinado à repressão, ao passo que a salvação deveria provir da religião, da fé e mais especificamente da Igreja Católica. O autor católico Isidoro de Sevilha (550-636) seria um exemplo claro do que se chama de Estado negativo, ou seja, um tipo de Estado que não age senão sob a forma da ameaça e do terror. O Estado também seria negativo porque não agiria de forma propositiva, mas só restritiva e, principalmente, negativa quanto aos direitos. Temos, enfim, um Estado elitista e atento às conveniências do poder e do modo de produção feudal ou estamental. Neste caso, a pena imposta pelo Estado negativo seria a restrição da liberdade: “Pela vontade de Deus, a pena de servidão foi imposta à humanidade devido ao pecado do primeiro homem; quando ele nota que a liberdade 175 Se bem que esta também não é uma ideia comum, pois na Idade Média, sob os auspícios do catolicismo, desenvolveu-se a noção de que o Estado deve buscar o bem comum. 203 não convém a alguns homens, misericordiosamente lhes impõe a escravidão. E, embora todos os fiéis possam ser redimidos do pecado original pelo batismo, Deus, na sua eqüidade, fez diferente a vida dos homens, ‘determinando que alguns fossem servos, outros senhores’, de modo que o arbítrio que têm os servos de agir mal fosse limitado pelo poder dos que dominam. Com efeito, se ninguém temesse, quem poderia impedir alguém de cometer o mal? Por isso são eleitos príncipes e reis, para que ‘com o terror’ livrem seus súditos do mal, ‘obrigando-os, pelas leis, a viver retamente” (Sententiae, III, 47)176 (Bobbio, 1985, p. 78). Veja-se que tanto a regra econômica (servidão) quanto a primazia de dizer o certo ou o errado (moral) era de domínio religioso – uma prerrogativa da Igreja e não exatamente do Estado. A frase Deus na sua equidade determinou que alguns fossem servos e outros senhores, ilustra bem a função do poder religioso. As leis que devemos seguir para viver retamente derivam desse poder espiritual, não do Estado e, por isso, não há poder secular. Mil anos depois das afirmações de Isidoro de Sevilha, e já com Lutero177, a pregação ainda seria a mesma, com conselhos semelhantes para que se usasse da força com o mesmo intuito do amedrontamento (Bobbio, 1985, p. 79). É interessante notar que posteriormente Bobbio desagravou a crítica endereçada à concepção negativa que se formou em torno do Estado Medieval, porque igualmente ia ter-se desenvolvido uma concepção racional do Estado. Como podemos ver, Bobbio chega a inverter os polos, chamando agora de concepção positiva do Estado: Concepção positiva é certamente aquela que remonta a Aristóteles, e torna-se dominante na Europa da segunda metade do século XIII em diante, quando se difunde o Aristóteles latino: o fim da comunidade política, a koinonía politiké, a societas civilis na predominante tradução latina, não é apenas o viver ou sobreviver, mas o bonum vivere, o viver bem (Bobbio, 2000, p. 120). O Estado é coerção e punição, e nisto é negativo, mas os filósofos do Estado e os teólogos (da Moral) dirão aos servos que o Estado deve prover a vida boa e justa. Agora resta saber para quem a vida seria boa e justa. De certo modo, Bobbio trata da Filosofia Política católica alegada por muitos autores. Já o segundo grande problema alegado destaca a tirania ou os cuidados a fim de que seja evitada, porque com tiranos não há segurança e nem justiça. Aliás, o tema do novo príncipe, colocado por Maquiavel, inferia diretamente nesta grave questão da tirania, como forma de abuso de poder e que, gerando descontentamento e resistência, acabaria 176 A forma de governo alegada é claramente a monarquia despótica. É preciso o compromisso e a promessa de Deus, tal qual se apresenta resumida na fé. O surgimento do Outro, portanto, está associado a esta mesma fé: “A fé é feita de tal modo que quem crê num outro, crê justamente porque considera o outro justo e verdadeiro” (Lutero, 1998, p. 35). Aquele que crê, reconhece o direito e a liberdade. A fé une a alma a Cristo, como uma noiva ao noivo: “Assim, a alma traz consigo todos os vícios e pecados que pertencerão a Cristo” (Lutero, 1998, p. 37). É a fé que honra os mandamentos. Nisto também está a soberania espiritual, uma vez que o cristão serve a todos: “Onde ele for livre nada precisará fazer; onde for servo, deverá fazer todo tipo de coisa” (Lutero, 1998, p. 49). O homem honesto, prudente em si mesmo, é o que tem boas obras para justificar sua fé. 177 204 por provocar desestabilização do poder e do Estado178. Ainda com Bobbio temos um resumo instigante das obras e dos autores centrais dessa temática: Dos comentários medievais sobre a tirania, o mais célebre é o de Bartolo (1314-1357); no De Regimine Civitatis, que introduz a distinção (destinada ao êxito) entre o tirano que exerce abusivamente o poder – “tyrannus ex parte exercitti” – e o que conquistou o poder sem ter direito – “tyrannus ex defectu tituli”. Possivelmente o mais completo dos tratados sobre a tirania é o de Coluccio Salutati, e Tratado sobre o Tirano, escrito no fim do século XV... (Bobbio, 1985, p. 81). Entretanto, Coluccio Salutati não será em nada originário e acabará promovendo quase que uma cópia das fórmulas propostas por Aristóteles e depois retomadas por São Tomás, além de Ptolomeu de Luca e Egídio Romano. As três formas de principatus ou exemplos de casos concretos de tirania são: principatus regius; politicus e despoticus179. Porém, não devemos nos esquecer que todo esse debate visava alertar para o perigo de instaurar a tirania e para saldar o príncipe sábio e justo. Esse Príncipe sábio, não-tirano, é justamente aquele que se utiliza da força de forma não abusiva ou indiscriminadamente180: No que concerne à tirania, Coluccio retoma a distinção entre suas duas formas, definidas por Bartolo: tirano é tanto o que “invadit imperium et iustum non habet titulum dominandi” (o príncipe que conquista o poder sem justo título a ele, sendo portanto um príncipe usurpador, ilegítimo) quanto o que “superbe dominatur aut iniustitiam facit vel iura legesque non observat” (o príncipe que, embora tenha título justo para exercer o poder, o exerce em violação das leis, abusando de seus privilégios, tratando cruelmente os súditos, etc). Por antítese, o príncipe legítimo e justo – não tirano – é o que tem ao mesmo tempo um título justo (“cui iure principatus delatus est”) e governa com justiça (“qui iustitiam ministrat et leges servat”) (Bobbio, 1985, pp. 81-2). Enfim, o grande tema político da Idade Média se pautava em como delimitar e evitar – o quanto possível – a tirania. Portanto, ao contrário disso, o governo não-tirânico, não-despótico, era o governo estabelecido com parcimônia. E estas eram exatamente as lições prolatadas pela Filosofia Política católica – mais uma moral política, um guia do bem e do mal, do que exatamente Ciência Política. Neste sentido, a Ciência Política não é moral, nem imoral, é simplesmente amoral. Nesta fase, Filosofia Política e Ciência Política se distanciam porque, enquanto a Filosofia Política indicava como se deveria regular o Poder Público, a Ciência Política – especialmente depois de Maquiavel – indicava a realidade dura e nua do poder e dos poderosos. Como diz Darcy Azambuja (2001), a respeito das ideias que circundavam o grande preceito da soberania, entre filosofia e realidade há uma grande distância: 178 Ao contrário do que se pensa, mesmo em Maquiavel, a força tem de ser usada com parcimônia, ponderação e sempre se demonstrando claramente que o fim último é a sobrevivência do próprio Estado. 179 “O principatus regius é aquele em que o rei governa como o pai sobre os filhos; o politicus, aquele em que governa como o marido sobre a esposa; o despoticus, como o senhor sobre os escravos” (Bobbio, 1985, p. 81). 180 “Daí ameaçar o Senhor tais governantes por Ezequiel (34,2): ‘Ai dos homens que a si mesmos se apascentavam (como procurando os seus próprios interesses) – porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores” (Aquino, 1995, p. 128-129). 205 Bigne de Villeneuve assim as resumiu no que respeita à ideia de Estado. Existe um Direito Natural, de origem divina, ao qual toda a atividade humana, e conseqüentemente a do Estado é subordinada. Existe um Direito Positivo de que o Estado é o criador, mas que também se deve harmonizar com o Direito Natural e tende a realizar o bem público. Seus preceitos mais gerais são obrigatórios também para o chefe do Estado. A direção do Estado compete ao Príncipe ou a uma Assembleia, que devem procurar o bem público, são responsáveis perante Deus e até certo ponto perante os homens. A essa ideia de Estado, contida nos grandes sistemas filosóficos medievais, opunha-se a noção de Estado, a realidade (p. 144). Isto é o que preceituava, diremos outra vez, a Filosofia Política católica da época, porém não era o que se encontrava na ação diretiva daqueles que exerciam o poder. Entre o dever-ser dos atores sociais e o resultado final das múltiplas forças políticas atuantes (o Rei ou Príncipe eram apenas uma das forças em questão), havia uma distância considerável com muitos obstáculos, e este governante acabava, em geral, refém dos vários polos em conflito. Mas, vejamos mais um pouco das condições propriamente políticas em que gravitava este pretenso Estado Feudal. Todo Poder provém de Deus Fala-se ainda de um pretenso Estado Medieval porque, na Idade Média, a figura do Estado como centro de poder desaparece – a política se esfacela, surgindo muitos concorrentes ao Estado e ao rei, a começar da própria Igreja Católica e dos demais estamentos sociais. O Estado se mostra enfraquecido e/ou impotente diante de tanta concorrência pela hegemonia do poder político. Aliás, se a política e o poder eram tão fragmentados e distribuídos pela sociedade é porque faltava justamente hegemonia e controle unificado. Porém, mesmo com esta estrutura política, há a passagem da insegurança geral à pequena segurança local – o senhor feudal deveria garantir a segurança dos servos em cada feudo, em troca de parte de seu tempo disponível para o trabalho. É curioso lembrar que, em caso real de guerra, os servos é que deveriam lutar. Já o Cristianismo, como Filosofia Política, acenava com o poder do bem comum 181 – certamente como forma ideológica que camuflasse todas as contradições e/ou conflitos sociais e políticos. De todo modo, a Igreja tentava impor certos limites ao exercício do poder – até para que não soasse como o uso do poder nu e cru: Non est potestas nisi a Deo (algo como: em última instância, “o poder pertence a Deus”). De qualquer forma, o poder deveria ser exercido com sabedoria e um mínimo de aquiescência ou de legitimidade dos servos: Regnum non est propter regem, sed rex propter regnum (“o rei existe para o reino” e não o contrário). Deste modo, pode-se dizer que se almejava o consenso: “É nesse elemento de ordem objetiva em que reside a principal garantia das pessoas” (Miranda, 2000, p. 60). É interessante frisar que, mesmo o poder religioso buscava formas de legitimação de seus atos e editos de poder. A desorganização experimentada no Estado germânico serve como um bom referencial desse período, pois é ilustrativo do que se vivia em termos políticos nesta era, o tempo de florescerem as concepções cristãs e germânicas. A formação histórica do Estado Germânico nos indica a conturbação de forças e poderes que assolavam o Estado medieval. Como bem diz Jellinek: “...a princípio o Estado germânico é uma associação de povos a quem falta a relação 181 João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris, em 1963, dirá: “o bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”. 206 constante com um território fixo, o enlace permanente do território com o povo só muito lentamente se levou a cabo em sua história” (2000, p. 307 – tradução livre). Neste sentido, faltava ao Estado Germânico e ao Estado Feudal um enlace entre povo e território, ou seja, o que chamamos de adensamento e de identidade cultural. A base do poder era móvel, não havia plena identificação entre o Poder Público e o território, bem como ainda se lidava com grande variedade de costumes e de interesses. Não é fácil de se supor, mas a desordem política e a resistência ao poder central produziam inclusive a mobilidade física do Príncipe. Vejamos, novamente com Jellinek (2000), o exemplo da Alemanha: A residência do Príncipe era algo completamente contingente e independente da organização do Estado. Por conseguinte, faltava-lhe desde o início a centralização. A dificuldade de organização para um povo que se estendeu por um vasto território e carece de um centro, é ainda maior em uma época em que as comunicações eram rudimentares e predominava a economia agrícola (Jellinek, p. 307). Além da escassez econômica – que só começou a se modificar com o desenvolvimento da maquinaria e da produção que conduziu à Primeira Revolução Industrial –, o próprio Príncipe ou Rei (enquanto representantes do Poder Público) não fortaleciam a identificação territorial. Diz-se que a ideia de Estado não sobreviveu ao feudalismo, porque o eixo do poder já não passava pelo Estado, estando antes, sobretudo, dirigido às relações mantidas entre Igreja e sociedade. Às vezes, o Estado até se interpunha (ou tentava), mas sempre como intermediário, não como centro destacado de soberania. No feudalismo, além de ser dissolvida a noção de Estado, ao invés de IMPERIUM (“poder como faculdade soberana de mandar” – e que provém do Estado) passou a vigorar a noção de DOMINIUM (família e propriedade182: a política migra do geral para as particularidades sociais). Com isso, temos também o que se configura, desde Max Weber, como Estado Patrimonial: o Estado é parte do patrimônio particular dos que detêm o controle do Poder Público – a política é posse privada. É como se o Patrimônio Público se torna-se gradativamente propriedade privada dos mandatários e poderosos que controlam a máquina pública183. Por fim, outra vez comparativamente ao Império Romano, há um dualismo na base política e jurídica: “O reino germânico nasce, pois, como um poder limitado; por conseguinte, desde seu início traz consigo um dualismo: o direito do Rei e o direito do povo, dualismo jamais superado na Idade Média184” (Jellinek, 2000, p. 308). Outros autores encontraram uma fase intermediária entre o feudalismo e a própria unificação do poder, como se terá sob a égide do Estado Moderno. Esta fase intermediária será apelidada de Estado de Cortes. Estado de Cortes 182 É como se os centros de poder tivessem migrado do Estado, do Poder Público, para a instância da família, enquanto referência do Poder Privado. 183 Deve-se perguntar: o que sempre foi o coronelismo no Brasil? 184 Em outro momento, como a reforçar o já dito: “...o Estado nos aparece como um duplo Estado em que o príncipe e as Cortes têm cada um seus funcionários particulares, tribunais e até exército e embaixadores” (Jellinek, 2000, pp. 309-310). 207 O Estado de Cortes não foge muito à estrutura fragmentária do poder havida no feudalismo – apenas se coloca numa fase intercalada entre o Estado Feudal esfacelado e o Estado Moderno, dominado pelas Monarquias Absolutas (Estado Absoluto – também indicado como Estado de Polícia). No nosso caso, o Estado de Cortes não passa de um Estado Estamental, dividido em estamentos185, na medida em que predominam as mesmas dualidades políticas - tipicamente a oposição entre Rei x estamentos. Nessa estrutura de comando, o Rei tem algum poder de fato (não é somente um mero coadjuvante ou enfeite), mas trata-se de um comando exercido em conjunto. Em suma, no Estado de Cortes, o Rei tem legitimidade e poder, mas só conseguiria governar com o auxílio das cortes: um tipo de Estado dual ou bipartido. O Estado de Cortes não é mera extensão do feudalismo, porque com certo poder o Rei já não é só marionete, mas também não é soberano porque tinha que negociar em tudo o que realmente fosse importante. Como diz Radbruch, além de lutarem contra o rei, porventura, as Cortes ainda desafiavam os senhores feudais: ... o Estado de Cortes se afigura, contudo, como uma duplicidade de Estados entrelaçados: de um lado o senhor feudal, soberano irrestrito apenas em seu domínio; de outro lado, as Cortes com soberania quase tão irrestrita sobre os pequenos proprietários, cobrando-lhes impostos, julgando-os, chamando-os às armas; reunindo-se em assembleias sem serem convocadas e negociando com o senhor feudal em pé de igualdade, a ele se submetendo apenas à medida que se tenham submetido espontaneamente, atendendo ao chamado às armas por contrato de vassalagem, comprometendo-se a apoio financeiro através de atributos por ele solicitados; provavelmente tratando com potências estrangeiras através de enviados próprios, contrariando a política do senhor feudal. A dupla soberania anárquica do Estado de Cortes conduziu obrigatoriamente a uma luta constante pela soberania única (1999, p. 38). A principal característica do Estado de Cortes, portanto, é a política de Estado negociada com as cortes. Ainda são características desse Estado de Cortes a existência de direitos fragmentados e estratificados, além de que há representação por estamentos. Isto é, dependendo do estamento a que pertencessem, vigoravam determinados direitos e capacidades sociais e políticas – daí se falar em Estado Estamental. Por isso, vê-se que o Estado de Cortes ainda pode ser chamado de Estado Corporativo, ou seja, a política de interesses está dividida em estamentos. Mas também as corporações (tipicamente relacionadas à produção) iriam disputar seu quinhão ou parcela de poder. Estado Corporativo Sob a expressão Estado de Cortes, pode-se ver um Estado que precisa negociar extensamente com as muitas corporações, sejam elas de ofício (de trabalho e de produção), sejam as destinadas à participação política da nobreza186. No estudo do Estado Corporativo, trata-se da análise da estrutura administrativa do Estado Medieval que permite certa autonomia política, 185 Estamentos são nivelamentos sociais que não permitem mobilidade social, nem como ascensão e nem declínio brusco. Os nobres falidos da Corte seriam mantidos pelos demais membros dessa Corte, para demonstrarem que a Corte mantinha o poder e o prestígio de sempre. 186 Pode-se dizer que há representação do poder em assembleias estamentais, sob a forma de Parlamentos, Estados Gerais, Dietas e /ou Cortes (Miranda, 2000, p. 77). 208 administrativa e jurídica às localidades territoriais. De todo modo, quase que reprisando o que já vimos, o Estado Medieval é um tipo de Estado que se caracterizava especialmente pela atomização do poder e da política. Assim, quando comparado à herança política romana é ainda mais evidente a existência dessas dicotomias no acento do poder: Onde quer que dominasse a Constituição municipal romana, acentuandose a substantividade política das cidades, algumas chegam em certas ocasiões, como na Itália, a alcançar uma absoluta independência. Posteriormente, e dotadas de privilégios reais, fundam-se na Alemanha e na França cidades que chegam a conseguir, ao menos parte delas, um caráter de corporações soberanas. Por isto, a divisão dual da natureza do Estado significa por sua vez a atomização do poder público, e toda a história dos Estados da Idade Média é ao mesmo tempo uma história do ensaio para chegar a vencer este desmembramento ou, ao menos, para minorar suas consequências (Jellinek, 2000, p. 309 – tradução livre). Neste Estado Corporativo, a sociedade aparece claramente dividida em grupos, camadas ou setores sociais (chamados de estamentos) sem que haja possibilidade concreta de mobilidade social. Um exemplo clássico da luta pelo Direito e pela participação vem da Inglaterra, quando os estamentos lutavam contra o Rei, a fim de que este admitisse as garantias individuais (Bill of Rights). Dentre outras garantias, este documento, o Bill of Rights, propugnava pela defesa de alguns direitos individuais. É o caso preciso da liberdade individual, ainda restrita ao comércio, mas que deveria ser assistida juridicamente, agora por meio de um instrumento jurídico chamado Habeas Corpus. Em regra, contudo, temos aqui um Estado que serve à Igreja, que lhe é submisso. Esta tipologia que interpõe o Estado de Cortes entre o feudalismo e o absolutismo, também é partilhada por Bobbio (1987): À base do critério histórico, a tipologia mais corrente e mais acreditada junto aos historiadores das instituições é a que propõe a seguinte sequência: Estado Feudal, Estado estamental, Estado absoluto, Estado representativo. A configuração de um Estado de estamentos, interposto entre o Estado Feudal e o Estado absoluto, data de Otto von Gierke e Max Weber, e após Weber foi retomada pelos historiadores das instituições sobretudo alemães (p. 114). Em termos semelhantes ao que já viemos analisando, para Bobbio, o Estado Estamental é um tipo de Estado que não aglutina forças políticas suficientes para controlar os demais setores políticos e religiosos e tampouco as classes sociais dessa época. Portanto, trata-se de uma fase intermediária e que irá desembocar no Estado Moderno – este, absoluto em sua primeira configuração: Como forma intermediária entre o Estado Feudal e o Estado absoluto, o Estado estamental distingue-se do primeiro por uma gradual institucionalização dos contra-poderes e também pela transformação das relações de pessoa a pessoa, próprias do sistema feudal, em relações entre instituições: de um lado as assembleias de estamento, de outro o rei com seu aparato de funcionários que, onde conseguem se afirmar, dão origem ao Estado burocrático característico da monarquia absoluta. Distingue-se do segundo pela presença de uma contraposição de poderes em contínuo 209 conflito entre si, que o advento da monarquia absoluta tende a suprimir (Bobbio, 1987, p. 115). A disputa acirrada pelo controle do Estado, da burocracia, do exército, das instituições regulatórias só se dará, contudo, na passagem ao Estado Moderno. De certo modo, esta também será uma fase apenas iniciada pelo absolutismo, uma vez que era necessária a divisão dos poderes187 para que o perfil institucional do Estado Moderno estivesse mais bem definido. O perfil definido é aquele que aponta para um Estado unitário, fortalecido e reconhecido por todos. O Estado Feudal, todavia, ainda será conhecido por seu pluralismo jurídico porque, não havendo centralização política, também não há uniformização jurídica: Dizendo que a sociedade medieval tinha um caráter pluralista, queremos afirmar que o direito segundo o qual estava regulada originava-se de diferentes fontes de produção científica, e estava organizado em diversos ordenamentos jurídicos. No que diz respeito às fontes, operavam na sociedade medieval ao mesmo tempo, ainda que com diferente eficácia, os vários fatos ou atos normativos que, numa teoria geral das fontes, são considerados como possíveis fatos constitutivos de normatividade jurídica, quer dizer o costume (direito consuetudinário), a vontade da classe política que detém o poder supremo (direito legislativo), a tradição doutrinária (direito científico), a atividade das cortes de justiça (direito jurisprudencial) (Bobbio, 1992, p. 11). Esta foi, sem dúvida, uma intensa e extensa experiência do chamado pluralismo jurídico, pois tivemos, como fontes do Direito, os costumes, a política, a religião e o Judiciário, o que, certamente, não convinha a quem mantivesse aspirações de centralizar o poder e o Estado. Além disso, pode-se dizer que o pluralismo jurídico e político medieval era capaz de produzir interpretações variadas, múltiplas do Direito. Ora os clérigos buscando o Direito a partir da Moral e da Teologia Oficial, ora os senhores feudais (muitas vezes em litígio com o Rei) que viam no Direito a mera extensão de seus próprios hábitos pessoais, familiares ou nobiliárquicos. Ou os próprios servos que tinham sua noção de Direito extraída da cultura, das tradições (muitas vezes tradicionalismo, como no caso do senhor feudal que tinha direitos sobre a primeira noite das noivas) e/ou dos valores familiares. Então, tanto as fontes quanto as interpretações do Direito eram variadas e isto, é claro, não favorecia a uniformização do poder. Por isso, não é difícil de se perceber que havia imensos conflitos jurídicos com os vários segmentos sociais, políticos e religiosos disputando entre si o controle legal: Com a autoridade central enfraquecida, as atividades legislativas, judicial e administrativa serão disputadas entre os reis, a Igreja, os senhores, as corporações e explicadas com o recurso a ideias variadas [...] Os poderes militares, administrativos, fiscais e jurisdicionais dos senhores feudais serão explicados pela situação patrimonial, pela posse da terra, regulada pelo direito privado (Sundfeld, 2004, p. 33). Portanto, a primeira centralização e unificação que se deu a partir daí foi exatamente em relação às fontes jurídicas legítimas – quando o Estado passasse a ser fonte reconhecida do 187 Ou das funções, uma vez que o poder soberano é uno. 210 Direito. O Estado será a fonte única do Direito, a fonte jurídica monista. Mas antes vejamos um breve resumo do Estado Medieval que provocou, exatamente, a centralização do Poder Político. RESUMO: Estado Medieval - características Fases do Estado Medieval: Feudal – Estamental - Cortes – Corporativo. Modo de Produção Feudal: a) Vassalagem: os proprietários menos poderosos são submetidos. b) Benefício: contrato entre o senhor feudal e o chefe de família – o servo recebia terras para produzir, mas teria que trabalhar para o senhor feudal. c) Imunidade: algumas glebas estão isentas da aferição de tributos. 1. Permanente instabilidade institucional: política, econômica e social. 2. Oposição entre poder espiritual e poder temporal. 3. Fragmentação e multiplicação de centros internos do Poder Público: nobres, bispos, universidades, reinos, corporações. 4. Pluralismo Jurídico - base consuetudinária embasada em regalias nobiliárquicas. 5. Relações de dependência pessoal, hierarquia de privilégios. 6. Não está em vigência o IMPERIUM (“poder como faculdade soberana de mandar”: Estado). 7. Vigora a noção de DOMINIUM (família e propriedade – a política migra para o doméstico). Estado Patrimonial – características Hereditariedade, primogenitura e inalienabilidade da propriedade rural. Relações de sujeição, domínio, posse. Relações de clientelismo: - Favoritismo - favorecimento pessoal. - Punição exemplar dos adversários (não há neutralidade). A relação jurídica se baseia em privilégios (leis de caráter privado), regalias, imunidades, salvo-condutos. Privatização da política – o espaço público cede às pressões do espaço privado. O geral se enfraquece diante do particular. Tirania: principatus regius (pais e filhos) - politicus (marido e esposa) - despoticus (senhor e servo). 2ª Parte: ESTADO LEGAL o direito como dominação ou liberdade? Veremos agora um acerto de contas com as formas desorganizadas, mas absolutistas que formaram o Antigo Regime. Direito e Dominação no Estado Legal Neste momento, o objetivo é relacionar Direito e Política de um ponto de vista mais orgânico e menos formal, destacando alguns momentos históricos, especialmente o século XIX e a afirmação de novos direitos – agora já tendo em pauta a passagem do Estado Legal para o Estado de Direito moderno. O Estado Legal exprimirá o próprio processo histórico de constitucionalização do Poder Político e que Jorge Miranda (2000) denominou de auto-regência do Direito ou do jurídico, frisando que é uma das garantias ou das conquistas trazidas pelo curso do liberalismo: a outra base do Estado Constitucional. As conquistas e as transformações 211 perpetradas pelo liberalismo, na ordem constitucional, serão de duas maneiras ou formas distintas e complementares: Diretamente: a abolição da escravatura, a transformação do Direito e do processo penais, a progressiva supressão de privilégios de nascimento, a liberdade de imprensa. Indiretamente: a prescrição de princípios que, ainda quando não postos logo em prática, viriam, pela sua própria lógica, numa espécie de auto-regência do Direito, a servir a todas as classes, e não apenas à classe burguesa que começara por os defender em proveito próprio (assim, a partir da liberdade de associação a conquista da liberdade sindical e a partir do princípio da soberania do povo e do sufrágio universal) (Miranda, 2000, p. 89). Vemos que mesmo o desenvolvimento liberal do Direito permitirá que, em algum momento posterior, outros grupos ou classes sociais façam uso dos principais institutos jurídicos. Não há uma diferenciação substancial quanto à auto-regulação do jurídico, mas é bom dizer que isto não implica em autonomia ou desligamento do jurídico em relação ao político. De todo modo, há a sugestão de que este é o fundamento político em que está assentado o Estado de Direito188. Miranda ainda irá frisar o seguinte: É justamente por efeito desta auto-regência do jurídico que até as próprias classes inferiores podem vir a ter interesse na realização do direito estabelecido pelas classes superiores. É esta a razão que nos explica por que, tantas vezes, na luta pelo direito as classes oprimidas se tenham convertido em defensoras da ordem jurídica estabelecida que as classes superiores impuseram sobre elas. É que esse direito, apesar de ser de classe, é sempre direito e, sendo direito, jamais ousará apregoar francamente o interesse da classe dominante. Encobri-lo-á sob a roupagem duma forma jurídica, redundando assim, qualquer que seja o seu conteúdo, em benefício de todos os oprimidos (Miranda, 2000, p. 89). O Estado Legal, como estrutura político-jurídica posterior à Revolução Francesa, é exemplo de uma dessas fases de inversão, subversão do Direito Posto. Isto é, o mesmo Direito que outrora tinha sido criado para o estrito cumprimento do exercício legal (simples e direto) da dominação de uma classe social sobre outras, agora permite ou deixa em aberto a possibilidade de os oprimidos utilizarem-se daquele mesmo Direito para a sua libertação. O fato é que, em regra, o Direito sempre falará em liberdade e só raramente demonstrará as armas de dominação empregadas. Talvez por isso o mais correto seja dizer que as demais classes e grupos sociais de oprimidos passem a reivindicar e requerer mais exatamente a ideia de direito, esse ideal de justiça, do que propriamente os direitos já instrumentalizados. A dominação produzida pelo Direito será doravante mais ideológica, e não tanto coercitivamente, porque a classe dominante se vê obrigada a maquiar, esconder os reais propósitos da própria dominação econômica. Essa situação, no entanto, lembra-nos de que essa artimanha de trazer o Direito para si é uma tarefa ou iniciativa que sempre esteve a cargo dos oprimidos – porque o objetivo do Direito se aproxima muito da dominação. Este é o caso preciso de toda a legislação social e trabalhista 188 Com isso, pode-se seguir uma real análise dialética do Direito, pois tendo sido elaborado para atender a fins específicos de uma determinada classe ou grupo social, o Direito acaba sendo apropriado por outra classe que lhe é antagônica e contrária: é o que se verifica hoje com os direitos liberais consoante o Estado Democrático de Direito. 212 (os direitos público-subjetivos) que, literalmente, foi arrancada do sistema capitalista sob a intervenção estatal: a fim de que os anéis não fossem embora com os dedos. A própria fonte original dessa legislação, portanto, é a política e não exatamente alguma racionalidade ou objetividade embutida na atividade política legislativa. O que força a conquista do direito é a luta política dos esquecidos pelo direito. Mas não será só uma política indefinida, ou seja, trata-se sem dúvida de dominação: a soma ou reunião de Estado de Direito, Constituição e burocracia independente resultará no que Max Weber (1979; 1993) denominava de dominação legítima ou dominação racional-legal. É certo que apregoava aqui uma forma de dominação justa, mas é ainda correto dizer que Weber (1979; 1993) não se tenha dedicado a analisar detidamente o Direito como Liberdade, ou a questionar a distância existente entre Direito e Justiça: seu foco será o Direito como Dominação. Aliás, esse é o curso histórico do Estado de Direito que viria a substituir o predecessor Estado Legal. Nessa mesma linha, devemos recordar que quando Weber define o Estado como o organismo político que detêm o monopólio estatal do uso legítimo da força física, está em destaque a relação interna entre Direito e dominação estatal. Entretanto, naquele ambiente conhecido do Estado Legal, os trabalhadores acabaram agrupados na realidade do chão de fábrica, ou seja, para alimentar a linha de produção foi necessário o deslocamento de milhares de trabalhadores para o interior das fábricas: o que também corresponde à fórmula da consciência social em si, como descrita por Marx189, além de destacar o necessário exame das Leis de Fábrica. Esse contato levou a que passassem a reconhecer as necessidades mais gerais e coletivas da classe trabalhadora, compartilhando e comparando as dores do mundo do trabalho. Desse modo, o trabalhador pode ampliar sua consciência individual pela comparação, pelo diálogo, pela verificação dos problemas e mazelas comuns. Assim, de posse dessa consciência social para si, quer dizer, a consciência individual do trabalhador que já perscruta as relações sociais ampliadas pelo trabalho e todas as consequências daí decorrentes, o trabalhador se tornou agente social. (Vai-se, portanto, da consciência individual em si, à consciência social para si). De modo complementar, pode-se dizer que o Estado Legal favoreceu o desenvolvimento da consciência global do trabalho, especialmente quanto ao respeito e ao uso possível do Direito: O Estado Legal, já mencionado como antecessor do Estado Constitucional e do Estado de Direito, fora concebido como ordem jurídica hierárquica. No vértice da pirâmide hierárquica situava-se a Déclaration de 26 de agosto de 1789 consagrando os “droits naturels et sacrés de l’homme”. Esta Déclaration era, simultaneamente, uma “supraconstituição” e uma “pré-constituição”: supra-constituição porque estabelecia uma disciplina vinculativa para a própria constituição (1791); pré-constituição porque, cronologicamente, precedeu mesmo a primeira lei superior. A constituição situa-se num plano imediatamente inferior à Declaração. A lei ocupa o terceiro lugar na pirâmide hierárquica e, na base, situam-se os atos do executivo de aplicação das leis (Canotilho, s/d, p. 95). 189 O tema Direito como dominação, portanto, está dado seja pelo referencial marxiano – da dominação e da busca da hegemonia de uma classe sobre outra -, seja pela premissa sociológica de Max Weber ao sinalizar a dominação racional-legal. De um modo ou de outro, o Direito servirá à dominação e quer seja estatal, quer seja econômica. 213 Ressaltamos esse aspecto jurídico do Estado Legal porque no topo do ordenamento estava a Declaração Francesa e ali repousava a declaração de interesses ditos universais e de salvaguarda do direito ao trabalho: o reconhecimento do direito natural e a consciência social de que o mesmo direito deveria ser considerado na prática e coletivamente, visto que o direito ao trabalho é a garantia homogênea e concreta ao processo de hominização. De certo modo, a primazia da lei, império da lei, não poderia se furtar a esta progressiva humanização da legislação social: O princípio da primazia da lei servia para a submissão ao direito do poder político “sob um duplo ponto de vista”: (1) os cidadãos têm a garantia de que a lei só pode ser editada pelo órgão legislativo, isto é, o órgão representativo da vontade geral (cfr. Déclaration de 1789, artigo 6º); (2) em virtude da sua dignidade – obra dos representantes da Nação – a lei constitui a fonte de direito (Canotilho, s/d, p. 95). Historicamente, de um modo ou de outro, os oprimidos sempre procuraram avariar os impeditivos factuais à transformação do Estado e da sociedade. E não fosse pela resistência e insistência dos adversários dos vários Estados absolutos, nada teria saído do lugar durante esse tempo todo. Não fosse pela pressão dos que de alguma forma sempre acabavam oprimidos, e o direito do opressor jamais se teria alterado substancialmente, a ponto de agasalhar os direitos e os interesses deles que antes eram simplesmente oprimidos e relegados a um quinto plano da cidadania. Por outro lado, o Estado Legal se mostrava um autêntico herdeiro do processo revolucionário de 1789 e o Estado de Direito (liberal, formal) viria a interromper esse fluxo histórico de reivindicação e de participação popular190: A teoria do “Estado de Direito” [...] foi construída em grande parte contra a de “Estado Legal”, o Estado do império da lei herdado da Revolução Francesa, que dava preponderância ao Parlamento e aos eleitos pelo sufrágio universal no sistema político e de elaboração de normas. A partir do começo do século XX a doutrina desejou submeter a lei ao Direito e confiar o Estado de Direito ao controle pelo Judiciário, para evitar os “desbordamentos” dos Legislativos e dos eleitores. Isso porque se confiava mais no juiz do que na norma escrita e no cidadão para controlar o Estado [...] se refere a um período em que movimentos populares – os cidadãos – começavam a gerar o temor da queda do edifício social burguês [...] a teoria do Estado de Direito foi construída, em grande parte, para barrar a possibilidade de extensão do papel dos cidadãos (Dallari, 2003, pp. 195-6). Daí se conclui que o Estado Legal era mais afeto à participação popular e, portanto, mais social do que o Estado de Direito. Mas, mesmo que o Estado de Direito viesse a ser postado como instrumento conservador de privilégios de classes ou de grupos sociais, a luta pelo Direito passaria a ter uma conotação de isonomia e equidade. Este foi e tem sido o papel e o desenlace extremamente positivos demonstrados pelos princípios da igualdade formal e da legalidade, uma vez que, ao equiparar juridicamente opressores e oprimidos, o Estado e sua lei permitiram – pela 190 E aqui se dá o mesmo processo dialético, de constante relação de oposição entre contrários, só que agora com um revés para os adeptos da interpretação socializante do Direito, porque no Estado de Direito, sob a imposição da igualdade formal, os direitos sociais acabaram solapados na sua base popular. 214 primeira vez na história do Direito – que os oprimidos requeressem para si o Estado de Direito, em pé de igualdade, fazendo valer todas as consequências da isonomia, os direitos que antes só serviam ao opressor. Agora em benefício do lado mais fraco, procurando-se equiparar/equilibrar a balança jurídica, política e social. O Estado Legal, portanto, foi um desses raros momentos em que a soberania legislativa resgatou seus laços, seus elos com a soberania popular, sendo que aí repousara por instantes a força social e jurídica legítima. Pois só assim a soberania popular seria capaz de legitimar a soberania legislativa. Hoje, porém, sabemos que é necessário (urgente) ultrapassar os limites da igualdade formal. Pois, se levada ao pé da letra, a igualdade jurídica acarretaria ainda mais desigualdade, uma vez que se tratam os desiguais, igualmente, sem capacidade de diferenciação em virtude das melhores condições ofertadas a uns do que a outros. Esta situação é tão clara que a matemática nos auxilia a exemplificar essa questão: imaginemos uma situação hipotética em que o sujeito A receba 100 unidades monetárias por trabalho mensal realizado e que um sujeito B receba somente 10: é fácil constatar que a diferença entre ambos é de 90 unidades. Pois bem, aplicando-se equitativamente a regra do reajuste de 10% aos dois envolvidos, o sujeito A passaria a receber 110 unidades monetárias mensais e o sujeito B apenas 11 unidades. Ou seja, a partir do reajuste, a distância salarial entre ambos chegaria a 99 unidades monetárias. No exemplo, a concentração de renda passou de 90 para 99 unidades salariais. Enfim, é esta consciência do Direito Justo ou da Justiça Material que ainda nos resta adquirir, a fim de percebermos que só haverá justiça quando se tratar os iguais igualmente, e os desiguais, desigualmente. Essa consciência de justiça material é ausente no formalismo abstrato do Estado de Direito, porque o modelo não fora preparado para recepcionar as medidas sociais de discriminação positiva ou de ação afirmativa. Por essa via, a igualdade formal, diante da lei, seleciona uma imensa desigualdade no ponto de partida, diante das oportunidades e/ou condições materiais da vida social. De outro modo, a igualdade material ou econômica pressupõe um forte igualitarismo no ponto de partida mas, em compensação, admite uma também substancial desigualdade no ponto de chegada – de acordo com as potencialidades e méritos próprios de cada um. Por isso, da mesma forma como o Estado Legal rompeu com a estrutura dos privilégios do Ancien Régime, ao Estado de Direito resta romper os diques capitalistas que represam a justiça real. Desse modo, essa limitação burocrática formal do Estado de Direito realmente reforça a validade das críticas de Marx, no Crítica ao Programa de Gotha e nos Manuscritos Econômico-Filosóficos. Como diz Raymond Aron (2003), esta é uma das leituras possíveis do jovem Marx analítico do Direito. Mesmo apropriado pela classe trabalhadora, o Direito tem seus marcos na dominação social de classe, pois que seu objetivo inicial era este e não outro. Esta será a matriz marxiana envolvendo Estado e Direito. Lembremo-nos de que a crítica de Marx ao Estado e ao Direito é uma crítica dirigida ao que poderíamos chamar de Estado de Direito Moderno. Trata-se, em suma, do Estado de Direito que se afirmou com as fundações políticas e institucionais do próprio Estado Moderno. O Direito Como Limitação à Liberdade Real Aron (2003) cita literalmente Marx na Crítica ao Programa de Gotha, a fim de destacar que Marx teria percebido os elementos formais de formação do Estado (como enunciado pelas Teorias do Estado), e ainda que fosse em tom mais crítico: “A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista existente em todos os países civilizados, mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos 215 modificada pela evolução histórica particular parcialmente desenvolvida em cada país. O ‘Estado atual’, pelo contrário, muda com a fronteira (...) O ‘Estado atual’ é uma ficção. “No entanto, os diversos Estados dos diversos países civilizados, não obstante a múltipla diversidade de suas formas, têm todos em comum repousar sobre o terreno da sociedade burguesa moderna, mais ou menos desenvolvida do ponto de vista capitalista. Isso faz com que certas características essenciais lhes sejam comuns. Neste sentido, pode-se falar de ‘Estado atual’ como expressão genérica, em contraste com o do futuro, quando a sociedade burguesa, que hoje é sua raiz, não mais existirá” (Aron, pp. 461-2 – grifos do autor). Por Estado Atual entende-se a forma possível do Estado, neste momento histórico. Já os elementos do Estado em destaque são de ordem jurídica, administrativa, organizacional, institucional. Outra questão derivada é: saberia a classe popular, proletária, trabalhadora se apropriar desses instrumentos do Estado Burguês para redimensioná-los em seu favor? Sem dúvida essa é uma questão das mais controversas e que acompanhou toda a história do Socialismo Realmente Existente. Porém, de acordo com um Marx (1989) mais agudo, agora na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, talvez encontremos algum ponto de resposta no processo de surgimento e de formação do Estado Moderno. E a resposta não parece ser muito satisfatória: A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica, profunda e complexa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e mais geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do direito – este pensamento extravagante e abstrato acerca do Estado moderno cuja realidade permanece no além (mesmo se este além fica apenas no outro lado do Reno) -, o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno não atribui importância ao homem real ou unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória (Marx, 1989, p. 85). É certo, então, que não teria vez uma Teoria Geral do Estado, pois que, a partir dessa leitura filosófica do Estado, se privilegia por demais uma abstração do Estado e não propriamente o homem real. A leitura do Direito como processo de dominação, portanto, parece ainda mais forte. A condição do Direito que se espraia ao conjunto dos Direitos Humanos, portanto, também não seria diferente e é isso que vemos em muitas passagens da Condição Judaica. Mas tomemos uma como exemplo dessa acidez de Marx (1989): “Constatemos, em primeiro lugar, o fato de que os chamados direitos do homem, enquanto distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, isto é, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade” (p. 56). É claro como o Direito é produto direto do homem egoísta, para satisfazer seus interesses pessoais no tocante ao direito à propriedade. A ideia de que a propriedade é base da soberania do 216 Estado, aliás, principia com Hobbes (1983, p. 110), o clássico pensador político e formulador da síntese do Estado Moderno. No mesmo sentido, no Manifesto do Partido Comunista, Marx tornará explícita a relação entre burguesia e Estado: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa” (1993, p. 68). Deste modo, será que as diferenças seriam assim tão sensíveis entre esse tipo de Estado de Direito Moderno (substituto do Estado Legal) descrito por Marx, até o chamado Estado Social, de inspiração popular, no século XX? Com o Estado Social, já no século XX, esse procedimento de reapropriação do Direito pela classe trabalhadora é ainda mais evidente – porque é um Estado quase-socialista (de inspiração social-socialista, mas radicado na Europa capitalista e no México de economia rural). Aliás, é o protótipo do Estado Capitalista que gera uma legislação específica para os trabalhadores e inicia a compreensão coletiva do Direito. Metaforicamente, é como se o Estado mudasse de lado ou, talvez, estivesse de cabeça para baixo. Essa mesma situação irá ocorrer no transcurso do Estado Democrático, em meados do século XX e, posteriormente, com o chamado Estado Democrático de Direito, em que a figura do Estado, paulatinamente, vai se distanciando desse recorte ideológico que se mitifica no binômio Estado-coerção. A Comuna de Paris, então, é uma fase ainda mais acirrada ou prelúdio popular do Estado Social. Outra coisa é saber se o povo será capaz de tomar para si a racionalidade jurídica capitalista, nos dias atuais e, se isso acontecesse, se seria uma espécie de reinvenção do Estado e do Direito. Ou seja, trata-se de revelar esse Direito que se presta à dominação, à opressão, à mera coerção, para não mais se relevar essa condição de injustiça e pobreza jurídica. Para que o Direito não sirva só aos ricos, é preciso fortificar o socialismo jurídico presente no Princípio da Justiça Social e que forma o eixo central do Estado Democrático de Direito Social. Atualização do debate Dois grandes julgamentos seguidos trazem à tona a história das “penas duras”. A pena de antecipação da morte, bem como as penas cruéis e degradantes são proibidas constitucionalmente no Brasil. Nenhum projeto de emenda constitucional ganhará êxito porque o direito à vida, como direito fundamental, garante que essas penas sejam afastadas do cotidiano jurídico nacional. Mas, o que garantiria que as próprias cláusulas pétreas são sofreriam mudanças em sua substância a fim de que essas garantias fossem removidas e, em seu lugar, fossem incluídas as tais penas duras e finalizadoras? Ao contrário do que se debate em termos de impedimentos legais a essas mudanças profundas na ordem constitucional, o que garante o direito à vida é o nível de profundidade republicana que já alcançamos. Este alicerce republicano, estampado na defesa de um mínimo de moralidade e de racionalidade evolutiva impediria que déssemos um passo atrás. O Brasil já conheceu a pena de morte na época do Império, então, voltar a esta pena seria o equivalente de retroagir. Juridicamente, republicanamente, seria um processo involutivo. A moral republicana, descontados os debates ideológicos inesgotáveis, pode ser sumariada como uma fase de amadurecimento dos valores públicos em que o Estado não mais se resume a um aplicador da vingança pública. O Estado Republicano não mais se vê como refém da cultura popular, como um microfone aberto ao queixume e ao senso comum. O Estado Republicano é um profundo indutor de cultura pública, modificando o direito e a atividade política. Este pensamento republicano tem um extenso papel modificador da sociedade, movido por um princípio educativo. Este tipo de Estado tem um aporte civilizatório, socializador. Herdeiro do jusnaturalismo, do Iluminismo, o Estado da República é elucidativo, esclarecedor da 217 condição humana. Não é, portanto, um mero extensor das práticas institucionais focadas no controle social. O Estado repressor – hoje aplica-se a pena de morte, amanhã haverá redução nos níveis de liberdade política, sindical, social – é o oposto da perspectiva propriamente republicana da política. Ao contrário de se estimular a inclusão social por meio do fortalecimento da autonomia, invoca-se a heteronomia a ser impulsionada por esse tipo de Estado Penal. Um Estado Penal que, como se estampa no nome, conhece sua sobrevida na paralisia e no represamento do esclarecimento e da extensão da responsabilidade social. Essas penas, obviamente, não motivam a consciência republicana, não aprofundam o senso de responsabilidade pública, logo, não concorrem para a inclusão social. Neste sentido, o Estado Penal lastreado nas penas cruéis e degradantes é um Estado de Exceção, uma vez que são penas que seguem a lógica da exclusão social. Ninguém será humanizado com a prática da tortura pública, do mesmo modo que ninguém será incluído pelo banimento social ou pela execução autorizada pelo Estado. As penas definitivas, cruéis são uma degradação da moralidade pública, constituem uma depreciação dos ganhos civilizatórios e evolutivos que a duras penas conseguimos alcançar. Permitir este retrocesso seria pouco inteligente e um desserviço à Humanidade. Essas penas são uma degradação moral do ponto de vista do aprofundamento dos pressupostos do pensamento e das práticas sociais e institucionais republicanas. Desse modo, não é difícil ver a lógica que se abriga na Teoria Jurídica da própria soberania. 218 SOBERANIA JURÍDICA Teoria Jurídica do Estado Aceita-se que este item em exame na Teoria da Soberania já se sobrepõe àquela soberania inaugural do Estado, como vontade geral da Nação. Isto é, há uma soberania jurídica com a produção e aceitação de um ordenamento jurídico específico – se a soberania política já se efetivou –, pois o político é pré-requisito do jurídico. Seria, portanto, a sustentação jurídica ofertada à soberania popular ou originária. De certo modo, o direito positivo concederá solidez defensiva à soberania política, mas não atuará só e isoladamente, pois a edificação de instituições de suporte e de auxílio ao desenvolvimento do próprio Estado encontrará respaldo nesta soberania jurídica. Na Teoria Jurídica do Estado, o elemento jurídico prima sobre o social, quando o poder é exercido sobre uma sociedade legalmente ordenada. Neste caso, há uma abstração de todo o poder social, considerando-se a própria soberania como poder instituído, isto é, considerando-se o poder como instituição. Neste caso, considera-se o poder como um dado de entrada no sistema jurídico; observa-se o poder como instituição que se exerce e se pronuncia por meio dos órgãos públicos. Estuda-se o poder sub specie juris (sob a visão do direito). É possível formular o conceito jurídico do Estado, mas sem desmembrá-lo da Teoria Social do Estado; afinal, a soberania sempre se encontra com o Poder Constituinte. De tal modo que o Poder Jurídico é a força social institucionalizada. Esta normatividade transforma o outrora poder arbitrário, do próprio Estado, em arbitragem social. É o que também pode-se definir como competência soberana – o conceito jurídico que legitima e autoriza o Estado a tomar decisões obrigatórias para os outros. A obediência, portanto, transforma-se em dever jurídico – o dever que é desejável e deduzível da lei anterior; como legitimidade racional, prescrita na Constituição, no direito positivo e que estivesse de acordo com os corolários do direito internacional. Isto ainda baliza o entendimento distinto entre força do Estado (monopólio da coerção) e autoridade do Estado; sendo que esta deriva da confiança depositada pelo povo e que, por sua vez, decorre da racionalidade das decisões políticas, da funcionalidade dos órgãos públicos, da integridade do processo decisório democrático, popular, transparente, e das tradições e dos valores republicanos (Reale, 2000). Esta é a base jurídica do poder (ou deveria ser): “O fundamento da soberania deve pois ser a confiança do povo na legitimidade da atividade governamental” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 248). A mais grave crise institucional, no entanto, ocorre quando a desconfiança no governo é tão grande que se confunde este governo com o Estado. Parte da literatura associa este tema à soberania, mas de uma forma especial, uma vez que não se entende o poder limitado à condição de força e dominação, mas sim como obrigatoriedade intrínseca do direito, dependente do reconhecimento e da convicção sobre a Justiça e como se viesse a configurar uma soberania profunda. Com apoio em Hart (2012), podese dizer que o direito é convicção: “Assim, não é soberano aquele que possui o poder em sua plenitude máxima, mas sim aquele que edita leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p.242). A aprovação do caráter vinculante da lei é essencial, uma vez que a lei acompanhará e regulará a vida comum do homem médio indefinidamente. Na soberania profunda, o Poder Político é limitado em sua capacidade de ação pelo ideal de Justiça compartilhado pelo povo, portanto, quando o poder não se encontra acima do 219 direito – e quando a soberania não serve mais de retórica do poder abusivo, quando o direito interno se alinha com o direito internacional. Então, quais os direitos invioláveis da Humanidade? Não se definem propriamente esses direitos, mas sim sua base moral: “Princípios que podem ser generalizados, que saem vitoriosos de um debate público e, por conseguinte, são aplicáveis à realidade humana assim como explicáveis à opinião pública resistem ao exame da razão prática” (Fleiner-Gerster, 2006, p.259). Se os marcos reguladores são ou podem ser definidos pela comunidade internacional, na forma de direitos humanos fundamentais, e se estes marcos se convertem em princípios diretivos do direito interno, então, pode-se concluir que a soberania profunda tem os direitos humanos como mecanismo de chancela de todo o direito positivo que consta do ordenamento jurídico. Esta concepção de soberania jurídica é igualmente baseada na ideia irredutível da prevalência de uma ordem jurídica democrática. Em suma, é a delimitação jurídica que se alcançou com a instituição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e com a Constituição de Bonn, na Alemanha de 1949. Esta articulação entre direito e princípios sairia intacta do exame provocado pelo realismo político – razão prática – uma vez que direito e justificação social estariam apontados para o mesmo sentido. Ou seja, direito e princípios seriam móveis da contenção do Poder Político – da soberania que se quer apenas como feição de força, comando e dominação. Contudo, ainda que em meio ao positivismo jurídico, o Estado já terá contraído para si a responsabilidade moral de agir com acuidade e distribuir as matérias de justiça: “Uma vez que o Estado, pela sua própria força coercitiva, confere ao direito um caráter mais vinculante que o dos princípios morais, assume uma responsabilidade em matéria de legislação” (Fleiner-Gerster, 2006, p.260). A limitação do poder e do direito ao controle, dominação ou comando limita o Estado aos seus pressupostos políticos iniciais (pela força, garantir a coesão social), como se não fosse possível alcançar o pilar jurídico de sua sustentação: “Trata-se da afirmação de que a chave para a compreensão do direito se encontra na noção simples de uma ordem apoiada por uma ameaça, que Austin chamou de ‘comando” (Hart, 2012, p. 21). Associa-se a imperatividade do direito à força proveniente do Estado, à coerção, à capacidade efetiva de infligir dano nas hipóteses de desobediência do preceito legal. Contudo, a imperatividade jurídica do Estado não está no estado latente do medo ou do dano que poderia ser provocado, mas na autoridade que se possa construir como relação social (autoritas). Quando a autoridade (autoritas) se baseia na qualidade moral que representa e que congrega e assim se confunde com o comando (potestas): “A posição de comando se caracteriza pelo exercício da autoridade sobre homens, e não pelo poder de infligir dano; e, embora possa se conjugar à ameaça de dano, o comando é, antes de tudo, não um recurso ao medo, mas uma chamada ao respeito pela autoridade” (Hart, 2012, p. 26). De modo clássico, quando pensamos em figuras como o senador romano Cícero, ícone da República, vem à memória que autoridade se inspira em autoritas, sendo esta uma legitimação social amplamente reconhecida, empossada, empostada por sua qualidade e não pela força ou corrupção dos valores: “Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade para o direito?” (Cícero, s/d, p. 44 – grifos nossos). Diz-se que é uma qualidade que compete a quem ostenta a autoridade moral. O agente semeado desse reconhecimento social e moral, o autor, não é autor apenas de obras e manifestações particulares, mas figura como o autor da política pública – como autor da coisa (Res) pública, da República. Por fim, ainda se pode ver a autoridade como reflexo do verbo 220 augere: crescer, fazer crescer, crescer junto. Então, autoridade tem que ver diretamente com alteridade, pois, aquele que faz crescer, acresce algo ao momento inaugural, à obra inicial. Esta não deixa de ser uma vertente da teoria finalista do Estado, erigindo-se fins claros e seguros ao Poder Público. O que ainda nos ajuda a perceber que a concepção finalista do Estado está longe de ter sido superada, assim como o próprio Estado enquanto forma e organização do conteúdo do Poder Político. Por exemplo, na análise emprestada ao direito constitucional português na definição das tarefas ou objetivos fundamentais do Estado. Para alguns, são tarefas; para outros, objetivos. Em todo caso, essas são metas ou tarefas destinadas à consecução de um fim comum, e que só serão alcançados quando o Estado se organizar para as funções administrativas, políticas e jurisdicionais adequadas. Devemos entender a satisfação de necessidades coletivas como o fim comum anunciado à coletividade. O fim comum é garantido pelo Poder de Império. 221 PODER DE IMPÉRIO O Poder de Império nos tempos hodiernos nos remete as várias outras indagações sobre o “pacto federativo”, consubstanciadas em uma necessária agregação do que pode ser considerado interesse público e os anseios por respostas públicas e soluções imediatas para suas preocupações. Os movimentos que tomaram as ruas também refletiam a crítica às instituições públicas e ao papel (como função social) desempenhado pelo Estado brasileiro. O corte epistemológico de nossa abordagem se concentra no Poder de Império como um dos elementos de formação do aparato estatal, presente desde a formação inicial do Estado Moderno, assim como povo e território também o são. Pode-se inicialmente ser tratado como a manifestação inequívoca da soberania interna, a exemplo do que aferimos neste julgado em Ação Civil Pública: RECURSO DE REVISTA RR 86 86/2006-653-09-00.0 (TST) AÇÃO CIVIL PÚBLICA - GARIMPAGEM CLANDESTINA - LIMINAR - CUMPRIMENTO PELA UNIÃO FEDERAL - PODER DE IMPERIO. 1- Lídima a decisão judicial que determina à União Federal, no âmbito de sua competência, cumprimento, no prazo nela estabelecida, de liminar deferida a terceiro em Ação Civil Pública por deter intransferível poder de império. (grifos nossos) O Poder de Império mostra-se sui generis, e como tal, representa a capacidade de o Estado impor soberanamente sua vontade com vistas a atender ao interesse público. Segue, assim, a teoria finalista do Estado e subsidia o ato administrativo. A doutrina tradicional destaca como atributos do ato administrativo: a) presunção de legitimidade e veracidade b) auto-executoriedade c) imperatividade O Estado age com Poder de Império quando impõe seus atos administrativos a terceiros, independentemente de sua vontade. Por seu turno, autoriza-se/legitima-se esta capacidade de imposição unilateral da vontade do poder público por meio do Poder Extroverso. Poder Extroverso O Poder Extroverso consiste em permissão decorrente da imperatividade, sobre a qual nos remetemos acima, para que o Estado interfira, por meio de seus atos administrativos, na esfera jurídica dos cidadãos e criem para esses obrigações de ordem unilateral. Como diz Sundfeld: O Estado produz seus atos no uso de poder extroverso. No entanto, o poder político seria arbitrário e despótico se os interessados não pudessem expor suas razões, opiniões, interesses, antes de serem afetados pelos atos estatais. Os comerciantes fazem seu lobby no Parlamento; autor e réu apresentam suas pretensões e provas ao juiz; a empresa se defende da suspeita de sonegação. São os processos legislativo e judicial e o procedimento administrativo que permitem essa desejável 222 “participação” dos interessados nas decisões de autoridades públicas. O processo é, então – em perfeita coerência com a ideia central do direito público, de realizar o equilíbrio entre liberdade e autoridade -, a contrapartida assegurada aos particulares pelo fato de serem atingidos por atos estatais unilaterais (2004, p. 94). Sinteticamente, o Poder Extroverso institui obrigações sociais, entenda-se como a capacidade estatal de impor sua vontade legítima aos cidadãos, verticalmente, sem que haja consulta popular – mesmo que possa haver recurso cabível, a exemplo da promulgação legislativa de interesse público. Sua estrutura funcional básica está lastreada em três condicionantes: 1) Estrutura proposicional enunciada por meio de conteúdos jurídicos correlacionados; 2) Dever-ser onde a norma jurídica ou o sistema de disposições busca organizar o âmbito de ação e distribuir competências entre os entes da Federação: União, Estados, municípios e o Distrito Federal (“dever ser” respeitado); 3) Heteronomia em que o direito vale de modo heterônomo (Poder Extroverso) em relação aos seus obrigados, impondo-se obrigações, com ou sem sua vontade, para regras de conduta individual ou de grupos, e sem comportar alternativas no caso de regras de organização do próprio Estado. As normas de organização do Estado, em suma, possuem o objetivo de assegurar uma convivência juridicamente coordenada, limitar os poderes do Estado, além de também possuírem um caráter instrumental, destinado à estrutura e funcionamento dos órgãos e dos processos técnicos e de aplicação das normas referentes ao Estado. Decorrem do Poder Extroverso, determinados atributos próprios ao poder e à coerção, quais sejam: soberano; superior; hierárquico; unilateral; imperioso; coercitivo; auto-regulador. Disto decorrem atribuições próprias aos atos administrativos: a) Imperatividade: qualidade que o ato administrativo possui de estar revestido da vontade imperativa do Estado. b)Presunção relativa de legitimidade: todo ato administrativo é presumido legítimo até prova em contrário. c) Auto-executoriedade: a Administração Pública não precisa se socorrer do poder judiciário para executar seus atos. Ela mesma o faz. d)Exigibilidade: qualidade que a Administração Pública possui de exigir o cumprimento de seus atos, em contrapartida, só se cumpre o ato administrativo se ele estiver de acordo com a lei. Trata-se de monismo na fonte, na origem, e de pluralismo no resultado, nas consequências. Portanto, o que evita que o poder público se transforme em poder tirano utilizando-se abusivamente do chamado poder extroverso, é justamente essa condição elementar da Justiça: a garantia do princípio do contraditório – principalmente se do outro lado estiver todo o poder e aparato do Estado. Com elementos semelhantes, Sundfeld (2004) ainda resume o desenvolvimento da ordem jurídica sob o regime do Estado Moderno. Porém, irá colecionar a lógica e a ordem jurídica que 223 guiavam a política racionalizada sob o domínio do Estado Moderno. Esses elementos, em número de cinco, são os seguintes: a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O poder Público pairava sobre a ordem jurídica. b) o soberano e, portanto, o Estado, era indemandável191 pelo indivíduo, não podendo este questionar, ante um tribunal, a validade ou não dos atos daquele. c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no wrong192. d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da época, ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições às atividades dos particulares. e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos (Sundfeld, 2004, p. 34 – grifos nossos). Porém, para alguns autores, mesmo no bojo do Estado Absoluto sempre há que se falar do império da lei, como se persistisse um Estado de Direito mesmo naquele tipo de Estado, em que mais se fez (ou se faz) uso da força física como meio de convencimento político. Não se trata aqui da excessiva interferência do Estado na vida particular ou pública, mas em certas situações pode haver a interferência quando houver comprometimento do bem-estar social: não restringe nem limita o âmbito de tais direitos. Unicamente, acedendo, como de seu dever, à vontade legal, procede, concretamente, à identificação dos seus confins ou lhes condiciona o exercício, promovendo, por ato próprio, sua compatibilização com o bem-estar social, no que reconhece, in casu (sic), as fronteiras legítimas de sua expressão. (Mello, 2011, p.835) O Poder Extroverso, portanto, configura-se como supremacia do interesse público sobre o interesse particular e é uma das principais garantias e prerrogativas do Poder Público. Quando necessário para atender à sociedade, significa a supressão ou a eliminação de direito particular; subjuga-se o interesse privado para se atender ao interesse coletivo. Este é um princípio estritamente ligado à Administração Pública. Também conhecido como principio da finalidade pública ou do interesse público ou coletivo, e está implícito na Constituição Federal. O administrador, ao lidar com o interesse que não é seu, mas sim da coletividade, deve interpretar a norma administrativa da maneira que melhor garanta as necessidades públicas, o fim público a que se dirige. Exemplo: art. 5°, XXIII e XXIV, da CF/88. Citaremos o XXXIII a título de esclarecimento: XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (grifos nossos) 191 Quer dizer que o indivíduo não demandava contra o Estado, não promovia ações contra o Poder Público. A regra da bilateralidade da norma jurídica (de que o Estado deve suportar o peso da lei criada por ele mesmo) seria anunciada no Estado Liberal, mas só se veria atuante na vigência do Estado Constitucional. 192 224 Por fim, cabe ressaltar os demais princípios que tornam o Poder de Império muito mais do que um atributo de salvaguarda do próprio Estado, posto que se configuram como poder a serviço do interesse público, e não somente em defesa da Razão de Estado. Princípios Decorrentes Passamos a descrever de forma breve os princípios decorrentes do Poder de Império. O Princípio da Legalidade se mostra como um princípio que decorre do próprio Estado de Direito. No caso específico, a administração do poder exige que todas as ações públicas sejam realizadas conforme a lei. Assim, o Estado só fará algo se houver base legal. Se não há lei, o Estado não faz, visto que esse é o único caminho autorizado a percorrer. O Princípio da Impessoalidade tem sua origem no princípio genérico do art. 5.º da CF/88, qual seja: o Princípio da Igualdade. O Estado deve tratar o administrado de forma isonômica, sem distinção, não podendo favorecer determinados grupos, sejam políticos, econômicos, religiosos, organizacionais, ou quaisquer outros. O Princípio da Moralidade é o que determina à Administração Pública que, na prática de seus atos, observe-se criteriosamente o padrão de comportamento médio da sociedade. Embora tenha certa carga de subjetividade na eventualidade de sua observância, o inconsciente coletivo leva as pessoas a buscarem realizar o que é correto e ético, como parâmetro avaliativo. O Princípio da Publicidade trás à tona a necessidade de democratização da informação, seja por qual meio for possível. Os atos da Administração Pública devem ser transparentes, ou seja, de conhecimento de todos os administrados. Nessa seara temos observado avanços ainda que em velocidade menor do que se espera. De forma genérica fazemos menção às leis de acesso à informação, iniciativas de novos espaços de comunicação e interação Estado/sociedade, às ações de democratização do espaço digital, aos esforços conjuntos do Estado com a sociedade civil organizada ou não, bem como junto às instituições de ensino no sentido de buscar diversificar alternativas para a abertura do sigilo de informações que interessam ao povo. O Princípio da Eficiência, instituído pela Emenda Constitucional n.º 19, busca um comprometimento da chamada “máquina estatal” com a otimização da receita pública, em que a relação custo-benefício seja positiva, com ganhos sociais e, obviamente, a fim de que se ultrapasse a lógica da soma-zero. Os objetivos do Estado, desde então, perpassam pela melhoria do serviço oferecido pelo Estado, buscando o menor custo, oferecendo um serviço mais perfeito e qualificado. Por derradeiro o Princípio da Finalidade, que é subprincípio do Princípio da Legalidade. O fator que o caracteriza é o fim desejado pelo Estado, que deve ser normativo. Significa dizer que o ato praticado pela Administração Pública tem por fim aquilo que a lei em sentido estrito determina. Deve guardar consonância com a legalidade que outrora foi objeto de nossas observações. Mas, o sentido, finalidade, objetivo decorre da tradicional teoria da finalidade, isto é, pressupõe-se que o Estado age em prol do interesse público e que sua ação normativa deve ser regulada por sua capacidade teleológica, em que se propugna pelo fim social. Enquanto o Poder de Império legitima sua capacidade ativa diretamente da soberania interna, o Poder Extroverso é condicionante recebido pelo poder de obrigar a “fazer ou deixar de fazer” que decorre da própria estrutura política criada para atender à Administração Pública. Como se vê, na ordem jurídica democrática, o Poder de Império é a capacidade ilimitada que possui o Estado de impor o cumprimento das decisões, sobretudo as que afetem o interesse público de modo que todos sejam envolvidos e responsabilizados pelo cumprimento das 225 normativas gerais e promovedoras da coisa pública. Portanto, cabe analisar o fundamento jurídico do Estado Moderno. 226 ELEMENTOS JURÍDICOS DO ESTADO Institucionalmente, o elemento jurídico mais efetivo do Estado Moderno é a delimitação jurídica do próprio Estado. Mas, que delimitação é esta? Para a teoria contratualista, o principal elemento jurídico de configuração do Estado é o próprio contrato social e político que lhe deu origem: seja como vontade da maioria, seja como “vontade geral” – dialeticamente, o Estado é um organismo político superior à mera soma das vontades individuais. Historicamente, devemos lembrar das limitações jurídicas trazidas pelas declarações de direitos, com início na Carta do Rei João Sem Terra, passando pelo Habeas Corpus (1679) e, é óbvio, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Portanto, se olharmos pela história, veremos que os direitos civis transformaram o Ocidente no que conhecemos hoje em dia. Sem os direitos civis não haveria cidadãos, apenas súditos obedientes ao rei. Com o habeas corpus, ainda no Renascimento, como garantia de ir e vir, o cidadão comum não mais poderia ser perseguido pelo Estado, sem fundamento e ordem legal. Os direitos civis nasceram como direitos negativos do Estado; para o cidadão ter mais direitos era essencial retirar atribuições de poder do Estado. Neste fluxo do liberalismo clássico, menos poder estatal e mais liberdade individual. Como direitos fundamentais, foram conclamados os direitos de liberdade e, ao mesmo tempo, os direitos que impunham restrições ao poder do Estado. Para nós, olhando do presente para o passado, asseguramos que são direitos de futuro, porque estão no presente (não apenas como consciência) e do passado trazem uma sombra como inspiração. A partir do critério da liberdade, para o Estado sempre foram “direitos negativos”, como obrigação de o Estado nãofazer: não-agir contra seu povo, não vilipendiar direitos e, positivamente, agir o próprio Estado para impedir que indivíduos ou forças políticas atentem contra a liberdade. Primeiro, o Estado é impedido de agir contra a liberdade, depois é estimulado para aprimorar a liberdade. Os direitos de igualdade, já marcados na primeira geração dos direitos civis – igualdade entre as classes sociais dominantes (aristocracia e oligarquia) e a burguesia ascendente –, teve de esperar até a Revolução Francesa para se sagrar. Neste novo contexto insurgiu até uma Declaração da Mulher e da Cidadã. Depois, teve continuidade o fluxo de “direitos negativos”, restritivos em relação ao poder do Estado e aí já entramos no século XIX, com a proclamação do Estado de Direito. Nesta nova roupagem, o moderno Estado de Direito tinha por obrigação acatar e defender a divisão de seus próprios poderes. A maior segurança à liberdade do cidadão estaria na divisão do poder central. É como se o Estado de Direito aplicasse a máxima de Maquiavel (dividir para conquistar) e assim a divisão dos poderes serviria para a conquista da República e aprofundamento da democracia parlamentar. De acordo com o pensamento jurídico formulado na Alemanha, como regra que obrigava ao Estado ser alvo de seus próprios direitos – além de trazer as cláusulas pétreas –, o Estado de Direito formal/liberal logo se viu forçado pelos movimentos populares e socialistas. No início do século XX, com a Revolução Russa – embalada pela Revolução Mexicana193 –, os direitos sociais e de igualdade plena foram elevados à plena potência. Vejamos dois dos casos clássicos e emblemáticos no direito constitucional. 193 A partir de 1919 o marco jurídico do Estado de Direito seria indelevelmente insculpido pelos estigmas jurídicos da Constituição de Weimar, na Alemanha. 227 Direitos Fundamentais Primeira Dimensão194. Proibição à escravidão Princípio do juiz natural proibição de juízo de exceção Devido processo de Constituição Mexicana de 1917 Art 2º e Art. 13 Art. 14 § 1º Constituição 1919195 de omissa _ omissa Acesso gratuito ao Poder Judiciário Art. 17 § 1º _ Vedação de prisão por dívida _ Princípio do "non bis in idem196" Art. 23 em matéria criminal Weimar _ Vedação ao exercício arbitrário Art. 17 das próprias razões Art. 17, § 3º de omissa A não-negação explícita aos juízos de exceção seria o prisma que se projetaria após a vitoriosa campanha eleitoral do Partido Nacional-Socialista na Alemanha pré-nazista (1933)197. Todo o século XX foi marcado por idas e vindas nas garantias e na afirmação histórica dos direitos humanos; em todo caso, trata-se de um processo irreversível, próprio da condição humana. Neste sentido, os “novos direitos” entraram para a história como conquista social. Uma das diferenças para o passado é que a movimentação política em torno dos direitos era sempre violenta, revolucionária e hoje são conquistas mais argumentativas (ainda que se enfrente a violência da intolerância). Atualmente, são conquistas argumentativas porque a “argumentação legal, racional, legítima” transforma uma requisição limitada de direitos, muitas vezes vinculada a determinado grupo de interesse, em conquistas coletivas de direito. A legitimação jurídica moderna, portanto, é democrática, tem uma base muito melhor definida juridicamente, esclarecendo-se o que é o direito. A movimentação social em torno do direito, como foi dito, não é revolucionária, é espasmódica, fixa em torno de interesses bem definidos. Essa modificação do processo jurídico coincide com a saída do povo das ruas, poucas são as mobilizações para a conquista de direitos em que se ocupe a praça pública, mas grande é o debate sobre a validade e a posterior validação desses direitos na ordem jurídica, sobretudo a partir das mídias e das universidades. Genericamente, pode-se dizer que a Constituição Política, ao precisar uma definição ao Poder Político, concomitantemente, delimita o alcance deste poder, sua divisão e distribuição de funções administrativas e as competências internas, indica as fontes de sua legitimidade e os objetivos gerais a que se presta. 194 Consulte-se, em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9014. Como se sabe, a Constituição Mexicana, de 1910, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia revolucionária (socialista), de 1918, e a Constituição de Weimar, de 1919, constituem os ícones do Estado Social. 196 Ninguém poderá ser punido mais de uma vez por uma mesma infração penal. 197 Ironicamente ou em busca de precisão cirúrgica para o dogmatismo nazista, a fim de se auto-referendar e também como mecanismo de autodefesa, não é ninguém menos do que Carl Schmitt quem saiu em defesa da Constituição alemã de 1919. 195 228 A institucionalização do Poder Político A concepção jurídica definidora da regulação do Poder Político mais conhecida é denominada de Teoria da Autolimitação do Poder, em que o poder é regulado, limitado pelo direito criado pelo Estado, antes apenas como forma de dominação dos cidadãos e hoje, acima de tudo, como fonte jurídica do poder. Isto é, a fonte jurídica do poder é uma lei anterior e se supõe que esta lei esteja de acordo com o senso social de aceitação e de legitimação do poder. Se a lei serve para limar a ânsia e a margem de ação dos indivíduos, deverá ainda mais regular o exercício do poder. Em suma, o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio: Na fase atual da vida das sociedades, os dois elementos do Direito – a coação e a norma198 – são insuficientes para criar o que chamaremos o Estado Jurídico. Falta-lhe ainda um elemento – a norma bilateralmente obrigatória – em virtude do qual o próprio Estado se inclina diante das regras que editou e às quais de fato concede, enquanto existirem, o império que por ato seu lhes atribuiu. É o que chamaremos a ordem jurídica [...] O Estado ordena, o súdito obedece [...] A linguagem compreendeu bem este fato, quando designou a injustiça do Estado pelo nome de arbítrio (Willkür). O arbítrio é a injustiça do superior; distingue-se da do inferior, porque o primeiro tem a força a seu favor, ao passo que o segundo a tem contra si [...] Noção puramente negativa, o arbítrio supõe como antítese o direito, de que é a negação: não há arbítrio, se o povo ainda não reconheceu a força bilateralmente obrigatória das normas jurídicas [...] Acompanha, pois, a todo princípio de direito a segurança de que o Estado se obriga a si mesmo a cumpri-lo, a qual é uma garantia para os submetidos ao Direito [...] Não só se trata de conter a onipotência do Estado mediante a fixação de normas para a exteriorização de sua vontade, senão que trata de refrear-lhe mui especialmente, mediante o reconhecimento de direitos individuais garantidos. Esta garantia consiste em outorgar aos direitos protegidos o caráter de imutáveis (Menezes, 1998, p. 70-71 – grifos nossos). De modo claro, pode-se ver como a regulação jurídica da teoria contratualista, ou seja, o contrato político que instigou a formação do Estado – como organização do poder –, seria em seguida ele mesmo enxertado de normas jurídicas a fim de proporcionar limites ao Poder Político, bem como definir com clareza os objetivos do Estado. Do contrato político ao contrato jurídico; da política ao direito; da força política às Cartas de Direitos; do Poder Constituinte à Constituição. A teoria finalista, ainda que sob o contrato, seria regulada pelo direito positivo e não somente pela legitimação política – esta evidentemente inserida na teoria contratualista. Enfim, será esse o maior ou melhor sentido exposto na própria suposição da personalidade jurídica do Estado (ou fase atual em que se encontra a teoria da finalidade jurídica do Estado de Direito) e que corresponde à capacidade ou condição suficiente para transformar as pluralidades sociais em uma determinada unidade político-jurídica global (transportando as individualidades ao social): do querer individual ao fazer pelo social (a República) e sem que se 198 É de se aceitar a análise de que o Direito realmente aceito – reconhecido como valor, partilhado nas práticas sociais – acaba por afastar a incidência da coerção. Sob esse prisma, Direito e coerção são antagônicos, excludentes. 229 promova qualquer tipo de sujeição199. O transporte da personalidade (que é uma condição individual prevista no Direito Privado – Direito Civil) para o Estado200 não subentende exatamente a total abstenção ou ausência de ação individual: O Estado, diz Lapradelle, é uma “realidade do mundo jurídico. Povo, nação, são seres vivos. O Estado que nasce e morre com um povo, uma nação, e que vive neles e por eles, não é senão o seu reflexo no mundo do Direito, sua expressão no circulo das concepções jurídicas: ideia que seria uma ficção se, atrás do Estado, não existisse essa realidade distinta, o povo, a nação e essa necessidade não menos real de garantir-lhes a segurança pelo Direito...Se o Estado é uma pessoa jurídica, não é porque seja uma pessoa física, e sim porque a nação que ele representa e exprime é uma pessoa social” (Azambuja, 2001, p. 118-119). Ou ainda: se o Estado é a pessoa política (jurídica) organizada pela nação, pois, atribuiuse personalidade jurídica, então, o Estado passa a representar a nação e seu povo. Seguindo-se isto, poder-se-ia concretizar a noção jurídica do Estado nesta dupla ideia fundamental: o Estado é uma pessoa coletiva (ente político) e uma pessoa soberana (ente jurídico). No Estado de Direito, portanto, o Direito já é resistência à opressão do(s) poder(osos) e ao abuso do(s) indivíduo(s), a exemplo de que todo e qualquer direito individual não deve prevalecer quando em face dos direitos públicos. A limitação do poder pelo direito implica, portanto, em que os elementos políticos do Estado conhecerão efeitos limitadores por parte de elementos jurídicos que serão agregados a este mesmo Estado. A ciência social como teoria política O Estado de Direito, sobretudo no modelo de Voh Mohl (Canotilho, 1999) seguido por Malberg (2001), é uma forma de controle político e, mais especificamente, da chamada institucionalização da “regra da bilateralidade da norma jurídica”. Esta concepção republicana do poder é compartilhada pela ciência do direito de Jellinek (2000), ao expor a urgência de se configurar a Teoria da Autolimitação do Estado. Na versão clássica de Zippelius corresponde ao Estado de Direito: “a obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (1997, p. 377). Em outras palavras, o mesmo será dito ao se definir a base jurídica da soberania popular: “a ‘legalidade da administração’, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado como tal, ‘direitos subjetivos, públicos’, e limites legais à administração” (Radbruch, 1999, p. 167-168). Como se vê, o direito é uma teoria do poder ou uma apresentação especial da própria teoria social e política, quando constrói modelos de Estados, organiza e delimita a ação política. A questão está em diagnosticar, cientificamente (com o apoio de outras ciências), de que poder se trata, o quão distantes estão Estado e Sociedade, a que se presta o poder estatal. Realmente predomina o direito consensual como suporte da legitimidade da dominação? Com isso, pode-se tramar a perspectiva complexa do poder social ou contentar-se com o Leviatã (mesmo que modernizado pelo Estado de Direito). Será este Estado capaz de articular a Justiça Social ou lhe basta definir conceitualmente, em pseudo-cientificidade, as instâncias do Judiciário como poder? O que é Justiça, afinal, no século XXI? Qual será o objeto do direito, no Estado Super Moderno: a Justiça ou a norma jurídica? 199 Aliás, diz-se acertadamente que, ao se remover toda forma de sujeição, promove-se automaticamente a iniciativa e a busca do consentimento, da legitimidade. 200 Direito Público como corruptela do Direito Privado. 230 Enfim, se a política institui poder, o Estado subentende organização – e o direito será o meio legítimo e efetivo dessa transformação da política no próprio direito (Heller, 1998). O elemento jurídico de conformação do Estado, portanto, limita ou reestrutura a soberania interna do Estado, à medida em que impõe juridicamente nova forma de relacionamento entre o Estado e o cidadão. A ordem jurídica do presente-futuro é a que se resguarda com a democracia. 231 FORMAS DE GOVERNO E GOVERNABILIDADE A política institui ou ajusta-se em meio às formas de governo, hora induz a esta ou àquela forma, hora tem o alcance e as liberdades políticas delimitadas pela mesma forma de governo. A referência clássica mais antiga às formas de governo é de Heródoto (século V a.C.), na sua História (Livro III, § 80-82). Cem anos antes de Platão e de Aristóteles, as três formas básicas já estavam definidas: democracia (governo de muitos); aristocracia (governo de alguns); monarquia (governo de um só). Esta classificação decorre de duas perguntas básicas: Quem governa? Como governa? A monarquia (boa) pode levar à tirania (má); a aristocracia (boa) pode gerar a oligarquia (má); a democracia (boa) pode induzir à oclocracia (má). Outro aspecto relevante retrata o governo do povo ressaltando certos atributos de maior racionalidade e presentes na isonomia que rege a democracia (liberdade + igualdade = governo popular). De todo modo, o debate sempre esteve em torno de qual forma de organização das relações políticas produziria maior estabilidade do poder. Platão (428-347), em A República, trata do governo ideal, a República ideal, atribuindose as obrigações de acordo com as aptidões (Justiça). O Estado perfeito é imaginário, mas pode/deve atuar como princípio (objetivo) e não como simples ideologia. Na visão de Bobbio (1985), Platão é conservador e pessimista: o futuro reserva governos bem piores do que os do presente. Em sua descrição tratou mais da timocracia (timé = honra)201. Todavia, pode-se dizer que a timocracia é a forma original da meritocracia202? A timocracia estaria entre a aristocracia e a oligarquia, e Platão tomou como exemplo o governo de Esparta – e mesmo que criticasse a honraria cedida antes aos guerreiros, do que aos sábios. No entanto, a aristocracia seria a forma de governo perfeita. Para Platão, a forma mais vil de governo é a tirania (e a anarquia, sem regras). “A corrupção de um princípio consiste em seu excesso”. A honra do homem timocrático se corrompe com a avareza e a ânsia de poder. O homem democrático perde sua liberdade (tirania) na licenciosidade (sem regramento). Mas, na democracia de homens honrados, os magistrados parecem iguais aos cidadãos e os cidadãos são semelhantes aos magistrados, tanto nas coisas púbicas (a ética na República) quanto nas privadas (moral). A discórdia, portanto, é o que corrompe o Estado, levando-o à sedição. Para quem examina a Polis, ex parte principis (de quem detém o poder), ou modernamente pela Razão de Estado, o problema maior é o da unidade do Estado com o indivíduo: de governabilidade e não só com o estabelecimento do governo203. Como evitar a dispersão, controlar a rebelião e reprimir a sedição, sem anular a liberdade? Tanto a tirania quanto a anarquia (como descontrole) são terríveis. Platão formula, então, uma teoria orgânica do Estado: orgacinismo político (em que o Estado e a sociedade são equiparados ao organismo, corpo humano). 201 É interessante a comparação deste governo dos homens de honra com a crítica formulada por Max Weber à substituição dos homens notáveis (dignos de nota) pelos partidos políticos (partitocracia) a partir do século XIX. 202 Em Heródoto estão presentes algumas das regras modernas: os magistrados precisam prestar contas de seus atos; todas as decisões são sujeitas ao voto popular. No entanto, diferentemente da moderna administração pública, em que deve vigorar o regime da meritocracia (como governo dos melhores), lá na Grécia antiga os servidores eram eleitos (como nos EUA, em que os juízes têm cargos eletivos). 203 Ao contrário da Teoria Política clássica, a democracia moderna é muito mais atenta às famosas regras do jogo (com grande incidência burocrática), como se estivesse limitada à forma de uma democracia procedimental. 232 Às três classes que compõe o Estado (guerreiros, sábios e políticos ou filósofos, e trabalhadores) correspondem três almas ou três estados de ânimo: passional, racional e apetitiva. Por sua vez, correspondem a três necessidades: essenciais, supérfluas, ilícitas. A democracia seria a pior das formas boas de política, mas também a melhor das formas más. As formas boas de governo se baseiam no consentimento e na legalidade (opondo-se à violência e à ilegalidade). Aristóteles Enfim, esquematicamente, pode-se dizer que: O político é o Kybernets (o timoneiro da sociedade). Portanto, a política não deveria gerar a corrupção. Só há política onde há isonomia. Não há política sem equiparação ou Princípio da Igualdade. Pois, só se faz política entre iguais. Corrompendo-se a isonomia (política), produz-se a opressão. Sem isonomia não há participação política (autarquia). Afinal, a política é a arte da condução social (cibernética). No mundo moderno esses ideais são expressos pela poliarquia e mais resumidamente na figura do vereador (veredas). Isto é, a política é direção (para os antigos) e controle social (como querem os modernos). 233 AS TRADIÇÕES DEMOCRÁTICAS Associa-se tradição a concepções antigas, como se fossem envelhecidas, sem utilidade e eficácia no presente, como meras heranças históricas. De fato, muitas tradições são amarelecidas pela cultura e se tornam tradicionalismos, com apego a dogmas sem condição de edificação social na modernidade política. Pois bem, com a tradição democrática, espera-se verificar exatamente o contrário, que as tradições atuem a fim de salvaguardar a essência da democracia inclusiva e participativa. Por esta tradição desfilam nomes (Benjamin Constant), povos (franceses e suíços) e instituições (Parlamento e pluralismo político). Mas, pode-se dividir a história política da democracia em duas partes: História Antiga: Grécia e Roma História Moderna: Thomas Paine, Federalista, Montesquieu, Rousseau. I História Antiga Iremos nos concentrar na história moderna, mas, sob o pensamento grego antigo, vimos florescer o instituto da democracia direta – mecanismo ainda aplicado de forma clara (plebiscito e referendo204) e de modo derivado (orçamento participativo). Desde Roma, com Cícero e a formação da ideia de salus publica, temos gestado organismos e mecanismos que nos impulsionam e exigem a máxima atenção na defesa e na promoção do Princípio Republicano, como instrumento de calço da democracia institucional. II História Moderna O que é a democracia moderna? Em que se apoia? Como diz Sartori (1994), um cientista político conservador, a democracia política requer (a) espírito ou ethos público, solidariedade social e verdadeiro estilo de vida, além de (b) sentimento de equidade e igualdade social - como apreciação latente do próprio status. Dessa forma, a democracia política é entendida como a determinação das finalidades públicas do Estado de forma soberana e popular, e em virtude da sociedade civil, isto é, trata-se de um estágio em que o cidadão comum delibera, controla e redefine as ações governamentais e o próprio desígnio do Estado - Sartori fala do controle popular das ações das autoridades, e não só dos líderes político-partidários. Note-se aqui que, Estado difere de governo: este como deliberação temporária de poder e aquele como estado permanente de organização do Poder Político. Ou com Sartori (1994): “Se o sistema principal, o sistema político global, não é um sistema político democrático, então a democracia social tem pouco valor [...] e a igualdade econômica pode não diferir da igualdade entre escravos” (p. 28). E mais, lendo os modismos de reengenharia administrativa a partir da dialética das efemérides e da perenidade: “As coisas mais importantes vêm em primeiro lugar [...] Claro, ‘a importância do método político democrático consiste principalmente em seus subprodutos nãopolíticos’. Mas os ‘bens’ pressupõem a maquinaria, o método que os produz” (idem, p. 29). E quem está na base de todos esses postulados da democracia liberal? MONTESQUIEU (1689-1755) 204 Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. 234 A injustiça que se faz a um, é uma ameaça que se faz a todos. Liberdade é o direito de fazer tudo o que a lei permite. A principal lembrança em relação a Montesquieu – em seu O Espírito das Leis – é o apego à democratização do poder, notabilizando-se a separação e a tripartição dos poderes (como sistema de freios e contrapesos ao poder) e os demais mecanismos político-administrativos aditivados a fim de que se implementasse a autocontenção do poder. A regra da bilateralidade da norma jurídica, como requisito do Estado de Direito, a partir do século XIX (com Robert Von Mhol), é um derivado dessa propositura da política moderna. A Constituição, portanto, seria um eficiente instrumento racional (o moderno contrato político e jurídico205) de organização e de estruturação das relações políticas mais conflituosas. Isto é, a origem da Constituição (Poder Constituinte) é o conflito político e não a pretensa harmonia social. Eis a análise que vimos, por exemplo, com Konrad Hesse (1991). Contratualismo Então, no ato de contratar com outros homens, abrindo mão da liberdade natural, não nos pomos a ferro, como ato deliberado de abandono da razão, e sim buscamos uma forma mais legítima de organizar a sociedade e o poder: “As palavras escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente” (Rousseau, 1987, p. 29). O contrato é uma aposta social que os cidadãos fazem em seu Estado: “Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade” (Rousseau, 1987, p. 30). Esta ideia de legitimidade contratual é profundamente moderna e contemporânea, no sentido de ser capitalista, pois os contratos a partir de então seriam estabelecidos entre duas partes idôneas, autônomas (com objeto lícito) e com certa segurança jurídica de que um dos envolvidos não obteria vantagens indevidas sobre os demais: as chamadas cláusulas draconianas ou lenoninas, aliás, como as que foram estabelecidas no Fausto. Então, podemos dizer que Rousseau queira ver estabelecidas as bases do contrato legítimo (privado ou público): Vê-se, por essa fórmula, que o ato de associação compreende um compromisso recíproco entre o público e os particulares, e que cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano [...] Desde o momento em que essa multidão se encontra assim reunida em um corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, nem, ainda menos, ofender o corpo sem que os membros se ressintam. Eis como o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se auxiliarem mutuamente... (Rousseau, 1987, pp. 3435)206. 205 Mesmo antes do Iluminismo, em meio aos percalços e avanços institucionais e científicos do Renascimento, Hugo Grotius (1583-1645) já indicava as bases contratuais da moderna racionalidade e que traria equilíbrio às relações sociais e comerciais: “VII. Quais os atos chamados contratos. De resto, todos os atos proporcionando utilidade aos outros, à exceção daqueles que são de pura beneficência, são chamados pelo nome de contratos. VIII. A igualdade é requerida nos contratos, primeiro com relação aos atos que precedem. A natureza manda observar a igualdade nos contratos até o ponto em que, da desigualdade deva surgir um direito em proveito daquele que obteve menos [...] X. A liberdade da vontade. Os contratantes não devem somente observar entre eles alguma igualdade do ponto de vista do conhecimento das coisas, mas ainda com relação ao uso de sua vontade” (2005, p. 572-592). 206 Talvez, a maior diferença entre o Contrato Social de Rousseau e o Fato Social, de Durkheim, seja o fato de que para Rousseau há uma disposição em aceitar o que foi acordado e, assim, agir socialmente. Já para Durkheim, o 235 Outra passagem retrata a pressão da vontade geral: A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão, compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar força aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a única a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos (Rousseau, 1987, p. 36). Isto fará de Rousseau também um precursor do pensamento social moderno: “para termos uma sociedade, não basta que se agrupem os homens, sendo necessário que os liames entre eles estabelecidos se tornem deles independentes e a eles venham a impor-se coercitivamente”. (Machado, 1987, p. 30). Estado de Direito e democracia A democracia se fortalece com o Estado de Direito, porque a lei pune os privilégios e se estende com as garantias – estas, por sua vez, fortalecem a liberdade e a igualdade entre os cidadãos. Logo, o Estado de Direito que se bate pela liberdade política e pela igualdade jurídica fortalece sobremaneira a democracia. Com esses dados podemos reformular a questão clássica: todo Estado de Direito é um Estado Constitucional? Há inúmeros pontos discordantes, mas há alguns de assemelhamento, como a simetria que estabelecemos entre seus princípios ou postulados. Se tomarmos que o Estado Constitucional tem por base o Iluminismo, o contratualismo e o individualismo, então, não será difícil para relacionarmos tais princípios ao Estado de Direito. O individualismo do Estado Constitucional está para a prevalência dos direitos individuais, proposto no Estado de Direito, assim como o contratualismo (Locke, Rousseau) está para a separação de poderes, em Montesquieu (também um contratualista). Aliás, é da vigência do contrato social que deve ser formulado o Estado que sirva à sociedade, diferentemente do Estado Absolutista (Leviatã) que se combatia desde então. ROUSSEAU (1712-1778) Em Rousseau, o contrato social é previsto para superar o pacto social e sua fragilidade, como se vê claramente na necessidade de se instaurar um poder legítimo. No nascimento do direito, já assinalava a necessidade da vigência do Princípio da Igualdade (+ isegoria + Liberdade Negativa207). Por isso, ainda imersos no contexto do direito natural, podemos dizer que a alteridade é o único sentimento capaz de motivar sistematicamente a todos; mas, a alteridade ocorre melhor em Estados pequenos onde se vivifica mais correntemente a commonwealth208. Em suma, esta é a concepção de direitos subjetivos de Rousseau, cuja negação pacto é imposto pela presença anterior, superior (hierarquicamente, por exemplo do Estado), exterior da sociedade em relação ao conjunto dos indivíduos. Então, neste caso, nem há a hipótese de algo ser acordado. 207 “Não há crime, sem prévia cominação legal”. 208 Comunidade Civil ou commonwealth: “Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo, ou seja, do Legislativo, é impossível conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior, ou que um outro além do poder supremo faça as leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil” (Locke, 1994, p. 160). 236 implica em negar a vida e a dignidade de todos os envolvidos. Apoiá-la significa enfrentar a tirania e a intolerância em qualquer uma de suas manifestações. Para o próprio Rousseau, a ideia de Justiça ou de reconhecimento era parte integrante do direito natural, sendo marcada na consciência dos homens (por Deus e, depois, pelo nascimento como ser racional209). Rousseau entendia que a formação da “personalidade moral” só se complementaria com o reconhecimento e o respeito à dignidade daquela pessoa. A justiça, portanto, era-lhe um constructo: ...que ninguém seja prejudicado em sua vida, liberdade, posses ou personalidade moral, seja por deliberada má vontade, ou por negligência ou indiferença. A “personalidade moral”, no entender de Rousseau, é a necessidade humana fundamental para cada pessoa de ser reconhecida e respeitada por outros como alguém que importa e que tem valor e dignidade sem depender de ninguém (Dent, 1996, p. 149). Assim, legitimidade e alteridade se complementam. A Justiça Social, por exemplo, requer evidentemente a distribuição econômica e a possibilidade de participação do indivíduo no Estado: Obter justiça para todas e cada pessoa numa sociedade, em todos esses aspectos, é a finalidade primordial da associação civil, do estabelecimento do estado civil. Rousseau pensa que a VONTADE GERAL é o meio pelo qual a justiça é obtida do modo mais abrangente para todas as pessoas, não só por causa dos princípios que daí resultarão (as leis), mas também por causa da maneira de funcionamento da vontade geral, em que cada pessoa participa como membro competente do CORPO SOBERANO (Dent, 1996, p. 149 – grifos nossos). O indivíduo é requerido como um membro legislativo do corpo soberano, em que deve prevalecer o princípio da dignidade: “Um dos interesses primordiais de Rousseau é mostrar que não existe conflito básico entre as exigências de justiça e o próprio bem de cada indivíduo” (Dent, 1996, p. 149). A Justiça Social210, quando alcançada, traz o sentimento republicano de volta e pacienta o povo. THOMAS PAINE (1737-1794) Além desses, Thomas Paine em seu Os direitos do homem (1989) será leitura obrigatória, bem como a linha da desobediência civil interposta por Thoreau na Defesa de John Brow (1966). Paine combateu na Revolução Americana e depois na Revolução Francesa. Seu lema pessoal era: “Onde não há liberdade, aí está meu país”. Ainda dizia: “A Lei é o Rei”. Historicamente, pelo pano de fundo, há a inicial Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lastro da Revolução Francesa de 1789. Portanto, algumas das principais tentativas de enfocar a igualdade e a isonomia datam do Iluminismo (“humanizar o direito”). BENJAMIN CONSTANT (1767 - 1830) 209 Pelo viés do racionalismo, todo homem que nasce em condições normais, recebe a mesma dosagem de possibilidades para se tornar um ser humano racional. A vida social cuidará do seu desenvolvimento, mas a potência é natural: “todo homem é potencialmente racional”. O mérito e a sorte (condições) farão a diferença. 210 CF/88 - Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios... 237 Político francês de origem suíça, Benjamin Constant sistematizou em livro a Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos. Depois, já em direção ao Iluminismo e por sua inspiração, passou-se a tutelar a liberdade de forma negativa (Lafer, 1988). Portanto, temos aí uma clara defesa do cidadão contra formas políticas tirânicas do Leviatã. Neste debate trazido por Lafer é interessante reter a ideia de que a exceção, em sua própria confirmação, e para que se respeite o “princípio democrático” (Canotilho, s/d), deve ser inevitável, “justificável” (para que possa ser exclarecida ao público), limitada no tempo e restrita no alcance: Numa democracia o sigilo como exceção à regra geral de publicidade requer justificação [...] A justificação para o sigilo em função do tema da segurança da sociedade e do Estado que limita, como mencionado, a liberdade de participação na esfera pública, tem como base um juízo de valor sobre oportunidade ou não oportunidade da divulgação de documentos, à luz da conformidade ou não conformidade em relação a um fim visado. Neste contexto o sigilo é uma atualização das diversas vertentes da teoria da razão de estado (Lafer, 26/11/2004). Nesta linha de argumentação, Lafer retomará uma distinção oportuna entre “segredos do Estado” (arcana imperii) e “segredos de governo” (arcana dominationis): “Valho-me desta distinção de Clapmar, no início do século XVII, para apontar que o sigilo argüido por conta da segurança do Estado e da sociedade pode ser abusivamente utilizado e converter-se apenas num método voltado para a dominação” (Lafer, 26/11/2004). Por fim, cita Bobbio (1986) quando critica o exercício crescente do criptogoverno. Lafer também irá reafirmar que o “direito de mentir” (sob os auspícios da Razão de Estado) está identificado com o argumento da “necessidade política”: a necessidade de ocultar, segredar, esconder para preservar o poder. Com isto, é óbvio, não ocorre um adensamento democrático capaz de gerar confiança entre os cidadãos e destes em relação ao Estado. A luta pelo reconhecimento da democracia, portanto, está em conter/inibir ao máximo tanto os arcana imperii quanto os arcana dominationis — além de aclarar o quanto seja possível a “opacidade do poder” (e debelar toda e qualquer tendência tirânica em defesa da “segurança nacional”). Este seria o caminho de construção do exato oposto da tirania, em que vicejam “pessoas injustas”. Pois bem, cometemos injustiças fazendo aos outros males fundamentais, por ação ou omissão. Por outro lado, a alteridade é o único sentimento capaz de motivar sistematicamente a todos; mas, a alteridade ocorre melhor em Estados pequenos onde se vivifica mais correntemente a commonwealth (reunião, comunhão de Estados – ou sociedade civil multilateral). FEDERALISTA (século XVIII) Sob a batuta de James Madison, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, John Jay, George Washington, a Revolução Americana gerou um dos pilares da moderna tradição democrática. A formação do moderno Estado Constitucional, neste viés estadunidense, assegura que a união dos Estados independentes (Confederação) deverá pactuar pelo controle da soberania no poder central, com ressalvas e garantias à autonomia interna dos entes políticos (Federação). Vedando-se, assim, o direito de sedição. No entanto, como se trata de Estado forjado em revolução de independência, asseguraram constitucionalmente o direito de insurreição. Do Renascimento ao Iluminismo Outro autor dos mais vibrantes com a nova sociedade é Voltaire (1694-1778): tinha um estilo crítico e irônico, escreveu profusamente, além de ser filósofo, poeta, dramaturgo e político. 238 Mais pela escrita do que pela militância política, esteve preso várias vezes — um de seus clássicos é Tratado sobre a tolerância. Em resumo: 1. Considerava que seus livros eram armas e as palavras os projéteis usados contra as falsas ideias e as tolices humanas. 2. A escrita211 era uma forma privilegiada de ação. 3. Em suas cartas, no lugar do nome, assinava “esmagai infame!”. Infame: tudo que se opunha ao “progresso das Luzes” e à “busca da felicidade”. Era um monstro como Medusa212. Fanatismo: “febre violenta”, uma “gangrena do espírito”. O fanatismo levou às guerras religiosas, às fogueiras da Inquisição e à morte em nome de Deus. O fanatismo é detestável porque leva à intolerância e à divergência, e isso gera “menoridade do espírito”. Fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera [...] Há fanáticos de sangue-frio: são os juízes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles [...] Quando uma vez o fanatismo tendo gangrenado um cérebro, a doença é quase incurável [...] Não há outro remédio contra essa doença epidêmica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal [...] As leis e a religião não bastam contra a peste das almas [...] Que responder a um homem que vos diz que prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o céu se vos degolar? [...] De ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes põem o punhal nas mãos [...] Só houve uma religião no mundo que não foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China (Voltaire, 2002, pp. 218-219 - grifos nossos). Hoje seria um intelectual engajado (talvez na luta pelo reconhecimento). Entretanto, é claro que se coloca como liberal em busca do Iluminismo. Também há Fourier (1768-1830): um autor admirado e considerado o precursor do socialismo, buscava a perfeição da “sociedade civilizada”, com “equilíbrio social” e “repartição proporcional da riqueza”. Sua obra traçou um mundo imenso e burlesco, sem se preocupar notadamente com as “provas irrefutáveis” ou com “verificações de verossimilhança”. Tinha uma “perspectiva física” fabulosa, era metódico, meticuloso, lógico e audaz. No mundo utópico que preconizou, estava estabelecida a prática da verdade e da Justiça, como via da “fortuna social”. Neste novo regime societário proposto estaria o “novo mundo” ou o “mundo em sentido reto 213”. Só essa transformação social seria capaz de conduzir a um estado civilizado (ou “Estado Civilizatório”: a exemplo de Bacon), como meio da perfectibilidade e do destino humano. Outros expoentes em áreas diversas seriam: Moliére (1622-1673): além de ator, é considerado o grande mestre da comédia satírica. A partir da revitalização das formas tradicionais da comédia, produziu num novo estilo, confrontando os contrários: a verdade oposta 211 Diferente de escritura. Infame é o piolho, o que se move pela cabeça dos outros. 213 Pode-se pensar que o destino reto é o próprio direito. 212 239 à falsidade, a inteligência rivalizando com o pedantismo. Esse estilo ainda se completaria com uma aguda percepção do absurdo da vida cotidiana. Saint-Just (1767-1793): grande leitor de Rousseau, sonhava com uma democracia igualitária sem pobres nem ricos, no âmbito de uma República virtuosa: "A paz, a abundância, a virtude pública, a vitória, tudo está no rigor das leis". Fora das leis, tudo é estéril e morto. No entanto, foi eleito membro do Comitê de Saúde Pública. Desenvolveu as bases teóricas do governo revolucionário e fez a apologia do Terror. Morto aos 26 anos teria tempo de publicar um livro impressionante, O Espírito da Revolução, em que apresentou suas ideias para uma Constituição revolucionária francesa. Entre outras coisas, tratou da educação: “A França ainda não promulgou leis sobre a educação no momento em que escrevo, mas provavelmente nós as veremos sair do corpo dos direitos do homem. Tenho pois apenas uma palavra a dizer: a educação na França deve ensinar a modéstia, a política e a guerra” (1989, p. 65). Ora, se a lei existe para que não se tenha guerra (ou não se faça “justiça com as próprias mãos”), por que a educação a ensinaria? Para que o povo pudesse se defender dos príncipes tiranos. Mais alguns, como: Condorcet (1743-1794) que era Matemático, filósofo e ainda que pertencente à nobreza, foi fortemente marcado pelos ideais em favor da liberdade econômica, da tolerância religiosa, das reformas legais e educacionais e contra a escravidão. Escreveu sobre política e se engajou na Revolução Francesa, além de ser considerado o fundador do sistema educacional francês. Cesare Beccaria (1738-1793): seu trabalho, suas teses foram fundamentadas no princípio de que as políticas públicas devem procurar o maior bem para o maior número de indivíduos. Condenou as práticas bárbaras de seu tempo: o uso comum da tortura e da instrução processual secreta, o capricho e a corrupção dos juízes, as punições brutais e degradantes. O objetivo do sistema penal, argumentou, deve ser encontrar penalidades severas o bastante somente para conseguir as finalidades específicas de segurança e ordem; qualquer coisa além disso é tirania. A eficácia da justiça criminal depende principalmente da certeza da punição, mais que de sua severidade. As penas devem ser proporcionais à importância da ofensa. Pietro Verri (1728-1797): foi discípulo de Beccaria e apresentou uma narrativa das barbáries do Estado. Mas iria mais adiante, apostando que se trata de um livro que luta por um quádruplo: razão, verdade, justiça, dignidade. Não há razão sem verdade, nem justiça sem dignidade (não é digno de fé quem não age pela verdade; não tem razão quem não é justo). É uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie praticada pela tortura, pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela ignomínia, pela estupidez e pela crendice. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte do desvelamento. Como é fácil de se notar, a democracia requer muito mais substrato do que a fórmula (ainda que necessária e óbvia) do “um cidadão, um voto”. 240 CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA São condições da democracia, como sinal de uma sociedade mais equilibrada social e mentalmente, por óbvio, a melhor distribuição de poder e de renda. Medidas administrativas e legislativas que controlem o poder econômico são parte essencial dessas condições. Também reforçam a democracia alguns requisitos legais e formais, como rotatividade do poder, respeito às minorias e acatamento às decisões da maioria. A defesa dos direitos fundamentais, como o voto livre, secreto e universal. Uma das regras básicas da democracia é a alternância no poder. Outro princípio elementar alerta para o necessário pluralismo político. Somando as duas orientações, temos uma conclusão óbvia: não basta haver troca de governantes – esta regra já foi maculada com a reeleição –, é preciso alternar o grupo, o partido, o centro de interesses que arregimenta o poder. Outra obviedade recomenda dividir o poder para assegurar a democracia, a liquidez política e ética, e para garantir que as próximas eleições não seriam manipuladas por uma única fonte de poder. É preciso dividir para dominar, mas neste caso seria para dividir o poder que nos quer dominar. Trata-se de uma regra de autocontenção do poder político. Outros aspectos fundamentais são a tolerância e a laicização, quer dizer, a tolerância aos direitos e à inserção das minorias no jogo democrático, assim como a obrigatoriedade de o Estado não ter religião oficial, constituindo-se verdadeiramente como Estado Laico. Mas, isto vale apenas para o modelo de Estado ocidental, como fase derradeira do Estado Moderno, em que o direito imporia uma articulação institucional – um controle social, político, administrativo, jurídico – de toda forma de uso/abusivo do Poder Político. No Estado Teocrático, como no Irã, a relação é inversa, sem tolerância ao pluralismo político e sem acolhimento de direitos fundamentais à mulheres, por exemplo: Uma jovem candidata a vereadora no interior do Irã foi impedida de assumir o cargo por ser "bonita demais", segundo a imprensa local. Candidata em Qazvin (norte), Nina Siahkali Moradi, 27, obteve 10 mil votos na eleição ocorrida junto com o pleito presidencial, em junho. O resultado a colocou na 14ª posição num ranking que qualificava os 13 primeiros entre 163 candidatos. Com a desistência do primeiro colocado, Moradi entrou na lista dos vencedores. Mas conservadores barraram sua ida à prefeitura. "Não queremos uma modelo desfilando na prefeitura", disse um clérigo local214. O Estado Laico foi definido como uma séria restrição de cunho religioso (obrigação de o Estado não-fazer), exatamente para garantir que grupos religiosos ou o próprio Estado não tornassem o poder um instrumento de manipulação e de dominação em favor de uma religião específica. No caso citado, a maior ironia é que Moradi conquistou apoio popular e votos ao defender direitos da mulher e incentivos culturais. 214 In: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/08/1326721-vereadora-e-impedida-de-assumir-cargo-no-ira-porser-bonita-demais.shtml. 241 A vereadora foi castigada e teve os direitos políticos cerceados não porque era bonita demais, mas sim porque defendia os direitos das mulheres e do acesso à cultura, ou seja, por defender a democratização de uma sociedade fechada em um Estado Teocrático. O fato de ser bonita demais, como “modelo”, foi uma desculpa encontrada para abalizar a atitude autocrática. É evidente que o líder religioso se utilizou de critérios absolutamente subjetivos, sem amparo na própria religião para embasar seus argumentos. Tolerância Carta Sobre a Tolerância é o nome de um livro de John Locke: considerado o principal pensador do liberalismo e do “individualismo possessivo”. É creditado a ele, por exemplo, o desenvolvimento teórico que sustenta ainda hoje as garantias e os direitos individuais, como o Habeas Corpus (“tenhas o corpo livre”). Nessa carta sobre a tolerância, Locke expõe e argumenta de maneira lógica a necessidade da separação entre Igreja e Estado, como constituição do Estado Laico. Uma vez exposta a argumentação que garante a separação entre a “razão”, que envolve as agências políticas e os “sentimentos” de foro íntimo, e que alimenta a crença na transcendência, Locke define-se pela tolerância à diversidade de culto e de práticas (“Não se deve proibir em religião o que é permitido na lei civil”). O que também acarretaria alguns princípios básicos da tolerância religiosa, como a solidariedade e a generosidade. Pois, se “a fé age pelo amor e não pela força”, deve-se esperar que haja respeito para que se seja respeitado. Ao que ainda se soma a caridade, a mansidão e a benevolência. Assim, é bom que se diga que o objetivo do livro é encontrar razões que demovam a ortodoxia; em Locke, “cada qual é ortodoxo a seus próprios olhos” (1987, p. 89). Mal colocada, a ortodoxia vira teimosia, assim como o radicalismo (buscar as coisas na raiz) acaba tido como intransigente e, portanto, intolerante (o que, mais adequadamente, configura o “fundamentalismo”). Certamente não combina com Locke e com os princípios do liberalismo, uma vez que a tolerância estará presente tanto na religião quanto na educação, pois quem: ...se arroga o ofício de ensinar é obrigado a recordar os seus dois deveres de paz e benevolência para com todos os homens; a todos, quer estejam no erro ou na ortodoxia, sejam da sua opinião ou deles se diferenciem pela política e pelos ritos, sejam particulares ou governantes, se é que alguns deles se encontram na sua escola, a todos deve exortar à caridade, à mansidão e à tolerância; devem apaziguar e abrandar o seu ódio e o ardor da sua animosidade contra os heterodoxos (1987, p. 100). 242 É claro que também poderão dizer que a prática da política difere da tolerância política e religiosa. Na verdade, a única intolerância que cabe discutir é aquela que se volta contra os intolerantes, pois em relação a esses não se deve ter tolerância alguma. 243 ORDEM JURÍDICA DEMOCRÁTICA Como ciência social voltada ao estudo da realidade entre os homens, mais do que sobre as formalidades institucionais, A Antropologia ganha destaque na análise da ordem jurídica. Mais do que força e coercibilidade, a Antropologia Jurídica terá por objeto estudar o direito como manifestação cultural do homem. A forte presença dos costumes e da oralidade inclina esta ciência social à análise da ordem jurídica e não exatamente à prática jurídica, porque aparentemente se confundem. Em sentido inicial, a ordem jurídica está apontada à legitimidade que se requer ao Poder Político, sobretudo no sentido de conter o poder e de direcioná-lo diante das finalidades atribuídas pela sociedade. Este teria sido o sentido indicado pelo jurista ao definir o Estado como sendo a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território (Dallari, p. 122). Na definição estariam contidas as noções de poder e de soberania em referência à ordem jurídica, bem como a condição evidentemente política do Estado, vinculando-se a um povo e a um determinado território. Este é um ideal platônico e aristotélico frente às finalidades do Estado (como teleologia). É o sentido mais atualizado de uma cidadania democrática que prosperou no pós-nazismo, como enfrentamento das piores formas de perversidade e autocracia. Como ensinou Konrad Hesse, trata-se de impor garantias institucionais que contenham o próprio direito que não seja democrático; trata-se de obstruir qualquer possibilidade política de que o direito não seja democrático: Colaboração ordenada, procedimentalmente ordenada, torna ordem jurídica necessária, e, precisamente, não uma discricional, senão uma ordem determinada, que garante o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais e que exclui um abuso das faculdades de poder confiados ou respeitados por causa daquele cumprimento de tarefas – em que tal garantia e asseguramento é, não só uma questão da normalização, mas, sobretudo, também da atualização da ordem jurídica [...] A coletividade precisa da sua, porque convivência humana sem ela não seria possível, de todo, na situação da atualidade que fundamenta a necessidade de ordem e coordenação objetiva ampla das condições e âmbitos da vida econômica e social. Como o Estado, essa ordem não está determinada em um direito supra-histórico, desprendido da existência humana e atividade humana existente em si e por si, ou nas objetivações de uma “ordem de valores” encontrada; senão ela deve, como ordem histórica, pela atividade humana ser criada, posta em vigor, conservada e aperfeiçoada [...] Ordem jurídica, nesse sentido amplo, não está dada como ordem por causa da ordem, senão como ordem determinada materialmente, “exata” e, por isso, legítima [...] Para poder determinar conduta humana, esse direito histórico carece, fundamentalmente, da “aceitação” que, por sua vez, assenta-se na concórdia fundamental sobre dação dos conteúdos da ordem jurídica – também lá onde tal aceitação somente contém o reconhecimento da obrigatoriedade de normalizações jurídicas, não, porém, aprovação livre para elas (Hesse, 1998, p. 35-36 – grifos nossos). 244 Para o jurista português, o direito deve ser uma salvaguarda do Princípio Democrático e, como ordem jurídica, o próprio direito democrático deve ser entendido como defesa da democracia – para nós brasileiros, seria uma cláusula pétrea que não se abalaria senão em golpe constitucional (Canotilho, s.d, p. 286-287). Na modernidade, a ordem jurídica traz uma coordenação objetiva e ampla das condições sociais e econômicas no mais amplo âmbito institucional. Neste sentido, a ordem jurídica é uma “ordem determinada materialmente”, exata, legítima. Portanto, a aceitação da ordem jurídica democrática se assenta na “concórdia fundamental sobre a dação dos conteúdos da ordem jurídica”. Assim, configura-se o reconhecimento da obrigatoriedade de normalização jurídica – submetendo-se o Estado e os indivíduos à mesma ordem jurídica (Hesse, 1998). A natureza política da ordem jurídica Uma das características mais atuais e atuantes do Poder Constituinte originário é a força política de inicializar, inaugurar uma nova ordem jurídica, revogando a Constituição anterior, bem como as leis infraconstitucionais que se encontram em desacordo com a nova Constituição. O Poder Constituinte pode se instaurar pela violência do processo revolucionário ou pelo amadurecimento institucional que resulta na necessidade de se deflagrar uma ampla revisão constitucional, como tivemos em 1986 no Brasil. Em todo caso, Kant (1990) é claro quanto à ideia de que a paz é um preparativo para a guerra, ainda que seja uma guerra jurídica contra os atentados aos direitos democráticos. Assim como, para o liberalismo clássico, este direito soa ao soberano como uma advertência para a irrupção da guerra protagonizada pela insatisfação na condução dos negócios públicos. Isto é, o resultado final é que pode haver reforma ou revolução e há a tendência de termos uma nova ordem jurídica. Seguindo-se a metodologia proposta, por reforma do Estado se entende o desenvolvimento natural e progressivo das ideias e dos valores sociais: há uma institucionalização gradual. Já por revolução compreende-se a destruição radical da ordem jurídica por meios ilegais (porque são usados procedimentos não previstos na ordem jurídica anterior e que acabara de ser removida). Nos dois casos, entretanto, são traços comuns: legitimidade; utilidade; proporcionalidade. Bem como ainda ocorre um breve momento de insegurança jurídica e de onde advém uma clara noção da necessidade da “nova” ordem jurídica. Neste sentido, para que se afirme outra forma jurídica, deve haver contenção de qualquer vingança pessoal, racial, social etc. Vendeta. São elementos do conceito de revolução: 1. novidade215; 2. começo216; 3. violência217; 4. irresistibilidade218 (profundidade219; radicalidade220; antagonismo221; contradição222). E, de certo modo, todos esses componentes da força política deverão estar expressos na Constituição que se construa a seguir, bem como deve marcar o eixo político inserido na ordem jurídica construída, com a ressalva, é óbvio, de que a irrupção de força política deverá estar totalmente absorvida pela noção de ordem jurídica. À força política interpõe-se a estabilidade jurídica. História e Antropologia 215 A revolução irá imprimir o novo (esquerda) ou restaurar o anacrônico (direita). Não há certezas. Há irrupção, apesar de ser um processo e de exigir maturação: às vezes, maior do que a maturidade. 217 Não há uma revolução da palavra, como se diz popularmente. Ordem e revolução são opostas. 218 Ninguém fica em cima do muro, como também não há segunda chance – execução em rito sumário. 219 É necessário que haja transformação da infraestrutura, do domínio sobre os meios de produção. 220 Busca-se a raiz, as últimas consequências. 221 A existência de polos opostos não implica em revolução (vide bicameralismo). 222 Entre si, as classes sociais são antagônicas, contraditórias e opostas. 216 245 Historicamente, pode-se ver Maquiavel dentro da história como parte de uma nova era do materialismo e que passaria a vigorar entre o homem e o cosmos, entre o poder atemporal e a instauração da ordem jurídica pelo Estado Moderno: Sem a mediação das corporações, empresários e empregados situamse como indivíduos isolados na sociedade. Seus padrões de ajustamento à realidade passam a ser as condições do mercado, a ordem jurídica imposta e defendida pelo Estado e a livre associação com seus companheiros de interesse [...] O sucesso ou o fracasso nessa nova luta dependeria - segundo Maquiavel, o introdutor da ciência política precisamente nesse momento - de quatro fatores básicos: acaso, engenho, astúcia e riqueza (Sevcenko, 1994, pp. 11-12 – grifos nossos). Por volta do fim da Idade Média, que os historiadores costumam fixar no ano de 1453, data da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, entramos no Renascimento e surgiu na Europa o Estado Moderno. Essa nova entidade diferia das estruturas de poder que a antecederam pelo exercício da soberania, que se desenvolveu no momento em que certos reis e príncipes, com o apoio da burguesia e de parte da aristocracia feudal, subtraíram as competências normativas dos vários centros de poder existentes na Idade Média, eliminando, assim, a poliarquia que caracterizava a ordem política medieval. O Estado passou a constituir então a summa potestas relativamente aos demais poderes que atuavam em seu território. Depois de adquirir a supremacia no âmbito interno, o Estado livrou-se também das limitações que os governantes medievais sofriam na condução de suas relações exteriores, representadas pelas ingerências da Igreja Católica. A lei, que não se limita ao fato, não serve de elemento de diferenciação. Mas, será retomando interpretação de Von Ihering que Aderson de Menezes (1998) sugerirá que na Teoria da Autolimitação, a partir do século XIX, já se encontra a matriz doutrinária condicionante das cláusulas pétreas. Vemos em sua análise que o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio e afirmar a ordem jurídica como anteposto da ordem pública223. Nesta convivência entre direito e política, ainda é necessário ressaltar as gerações de direitos políticos (geração positiva). Vejamos: 1. direito de resistência (no caso de o soberano atentar contra o povo); 2. direito de petição (para inquirir abuso de poder ou requerer novos direitos junto ao poder soberano); 3. direito de participação e de reunião (além das corporações de ofícios); 4. direito de voto (para não ser censitário); 5. direito de associação (em partidos, sindicatos); 6. sufrágio universal (em que entre 80 e 90% da população têm condições de intervir nos rumos do Estado); 7. direito de assembleia (democracia plebiscitária: decisão política, com aceitação ou reprovação popular, sobre políticas públicas por meio de referendos e plebiscitos); 8. direitos da democracia radical (exercício vigoroso da soberania popular como controle do poder político). 223 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio ... (CF/88). 246 De acordo com José Afonso da Silva (1991), são três as finalidades do Estado de Direito, com destacada garantia do(a): império das leis; divisão dos poderes; enunciado e garantia de direitos individuais224. Para o sentido atual, podem-se acrescentar mais três finalidades de ordem jurídica, além da ampla defesa das regras democráticas, e seriam: o enunciado e garantia da dignidade da pessoa humana; enunciado e garantia dos direitos sociais; fruição e efetivação dos direitos público-subjetivos. Observe-se, porém, que estes também constituem princípios do Estado Democrático de Direito. Para melhor visualizar o sentido expresso, tome-se como exemplo a Constituição italiana: Todos os cidadãos têm paridade social e são iguais perante a lei, sem discriminação de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais. Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e econômica que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana225 e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país (Bobbio, 1995, p. 121 – grifos nossos). Se no início a ordem jurídica está atrelada ao arbítrio, desde a primeira revolução jurídica dos direitos humanos, com a proclamação dos direitos civis, o poder abusivo do Estado passou a ser regulado pela ação política popular. Estado Judicial e Estado de Direito Das concepções deformadas do conceito de Estado de Direito derivou a concepção/aplicação do Estado Judicial, como Estado que deve prover a moral oficial ao povo e, por sua vez, nada tem a ver com a finalidade jurídica do Estado em prover a justiça: Disso deriva a ambiguidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um “Estado de Justiça”, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no conceito hegeliano do “Estado Ético”, que fundamenta a concepção do Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o “Estado de Justiça”, na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (Silva, 1991, p.100). Diante da soberania, contudo, a questão da exceção se ressente toda vez que se quer saber quem é o detentor do poder absoluto: Em uma locução mais usual, perguntava-se quem teria a presunção, para si, do poder ilimitado. Por isso, a discussão sobre o estado de exceção, o extremus necessitas casus [...] Em razão disso, também se pergunta quem decide sobre as competências constitucionais não regulamentadas, ou 224 Art. 60, § 4º , I, II, III e IV da C. F. Como se vê no Art. 3 da Constituição italiana, traduzida para o espanhol: “Todos los ciudadanos tendrán la misma dignidad social y serán iguales ante la ley, sin distinción de sexo, raza, lengua, religión, opiniones políticas ni circunstancias personales y sociales. Constituye obligación de la República suprimir los obstáculos de orden económico y social que, limitando de hecho la libertad y la igualdad de los ciudadanos, impiden el pleno desarrollo de la persona humana y la participación efectiva de todos los trabajadores en la organización política, económica y social del país”. 225 247 seja, quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à questão da competência (Schmitt, 2006, p. 11). Qual a melhor forma de se evitar o desvio autocrático do direito? Parece ser a defesa do Estado de Direito e da própria democracia. Na moderna sociedade democrática, a ordem jurídica é reduto da democracia e, mesmo não sendo um ativista da cidadania popular, é o que já nos apontava Del Vecchio: Quando este processo nos fatos e, sobretudo, nas consciências está bastante adiantado e amadurecido, torna-se fácil também no aspecto formal o estabelecimento da nova ordem pela qual o Estado instaura a sua soberania sobre as várias organizações. Estas recebem, então, o seu cunho e tornam-se seus instrumentos no exercício das dificuldades normativas que lhes são reconhecidas ou atribuídas (Vecchio, 2005, p.3435). Desde o pensamento jurídico marcado pela defesa do Estado de Direito, entre os séculos XIX e XX, a ordem jurídica surgiria como retenção do Poder Político. A ordem jurídica como retenção do arbítrio e redenção do direito, no entanto, ganhou amplo destaque no pós-Segunda Guerra Mundial e para isto era preciso demarcar claramente o que é o Estado de Direito. A revisão constitucional mundial Em 1941, em cheio na 2ª Grande Guerra, o famoso jurista Hans Kelsen realizou palestras nos EUA chamando a atenção para a natureza do Direito Internacional e o problema da paz internacional. Ali formulou questões que podem nos guiar: Como pode se organizar de uma maneira satisfatória a vida econômica dentro da comunidade nacional, o Estado, sem abolir a liberdade pessoal do indivíduo? Como pode se impedir a guerra ou qualquer outro uso da força na comunidade internacional, nas relações entre os Estados? (Kelsen, 1986, p. 49). Kelsen colocava a questão nesses termos, inicialmente, porque também falava da ambição de construir um Estado Mundial, unindo o maior número possível de Estados-membros dentro de si. No Estado Mundial concentraria todos os meios de poder, submetendo todos a um único governo central e os regularia por meio de uma mesma ordem jurídica. A partir de 1946, a ONU não seria capaz de tal feito, mesmo tendo-se proclamado a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. O jurista alemão, contudo, sabia da ambição que se escondia na utopia e via no máximo, com sorte, a efetivação de um Estado Federal Descentralizado regido por um direito comum e pela comunidade internacional. Para Kelsen, desde logo se colocava a questão jurídica de se saber se este Direito Internacional teria ou não a mesma validade entre os contratantes, que têm os seus respectivos ordenamentos jurídicos internos. A ordem jurídica internacional substituiria a soberania interna? Desse modo, a centralização dos Estados, em uma confederação desse tipo, não poderia ser tal que absorvesse todos os demais membros em um só organismo (como fagocitose) e que transformasse o Direito Internacional em um direito de ordem interna. Por isso, o jurista indaga acerca do caráter jurídico que envolve os compostos do Direito Internacional e assim nos diz: O preceito jurídico [...] é um juízo hipotético mediante o qual se fixa um ato coercitivo, quer dizer, uma intervenção pela força na esfera de 248 interesses de um sujeito, como consequência de certa conduta desde. A medida coercitiva, que institui o preceito jurídico como consequência, é a sanção; a conduta do sujeito estabelecida como a condição é um ato ilegal [...] O ato coativo, portanto, é ou bem um comportamento ilegal, o delito, que constitui uma condição da sanção — e, portanto, está proibido —, ou bem é uma sanção, a consequência da ilegalidade ou do delito — e, portanto, está permitido [...] O Direito internacional será Direito neste sentido se tão-só permitir uma medida coercitiva [...] Quer dizer, podemos considerá-lo como Direito se a medida coativa que se levou a cabo como reação contra o delito ou a ilegalidade pode se interpretar como uma reação da comunidade jurídica internacional (Kelsen, 1986, p. 52 – livre tradução). Desse modo, concluindo esta parte da argumentação, Hans Kelsen ainda dirá que o Direito Internacional só terá eficácia (como se fora o direito nacional) se à violação do direito se impuser uma sanção, de forma reativa e na mesma medida: “... juridicamente, uma determinada conduta de um Estado pode ser considerada como delito tão-só se o Direito internacional vincula a esta conduta uma sanção dirigida contra este Estado” (Kelsen, 1986, p. 54). Também não deixa de ser interessante a relevância jurídica atribuída, ou seja, elevando a status de preceito jurídico (como princípio basilar) o nexo entre direito/sanção/garantia. Dessa forma, a própria sanção aplicada ao delito internacional (como infração clara de um direito, de um dos contratantes) deveria ser recoberta de uma garantia de eficácia — só assim a própria sanção seria eficiente: “A sanção específica de uma ordem jurídica somente pode ser uma medida coativa, estabelecida por esta ordem, para o caso de que uma obrigação seja violada, e, assim se estabelece uma obrigação substituta, então, para o caso de que também esta seja violada” (Kelsen, 1986, p. 55). Depois, como se sabe, a ONU (1946) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) pretendeu impor-se como um modelo de Estado-Nação. No período, triplicaram os movimentos de descolonização e de reconhecimento da soberania de novos Estados. Mas, um pouco antes disso, a fim de se configurar como independente, desde 1933, o Estado tem de obedecer ao artigo 1º da chamada Convenção de Montevidéu226; o que significa que a entidade tem de apresentar as seguintes qualificações: a) uma população permanente; b) um território definido; c) governo; e, d) capacidade para manter relações com os outros Estados. O revigoramento constitucional no pós-Segunda Guerra Mundial Com o fim da Segunda Guerra Mundial e os efeitos horripilantes do holocausto (incluindo-se a chamada “revolução legal” de Hitler, que legaliza o descalabro), uma possibilidade democrática real atentaria para se tentar uma síntese política, a partir da constitucionalização dos conflitos sociais como equivalente do esforço pela maior efetividade democrática da Constituição e, assim, da política e do Estado. Desse modo, a ordem jurídica democrática do pós-Segunda Guerra primaria pela síntese constitucional que não esteriliza a política ou as vontades dos participantes da vida pública. E devendo, então, como ensina Konrad Hesse assegurar que: Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Se pretende preservar a 226 A Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados (1933) estabelece prerrogativas e critérios para que um Estado venha a integrar o Direito Internacional. 249 força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, ter-se-ia de constatar, inevitavelmente – no mais tardar em momento de acentuada crise – que ela ultrapassou os limites de sua força normativa (1991, p. 21). A Constituição deve assimilar os contrários, os dissensos, as demais possibilidades sociais e políticas de sua sociedade, inaugurando um pluralismo e não monismo jurídico e político (ou totalitarismo, de prevalência do pensamento único), adotando o ensino jurídico a vertente em que o direito capta eficientemente a realidade e a dinâmica societária. Nessa trilha, porém mais tecnicamente, deve-se tomar o direito na forma das garantias institucionais (assegurando-se os direitos fundamentais), como seguridade jurídica necessária à livre fruição das vontades políticas socialmente válidas, pois que o direito, assim considerado, figurará como garantia da vida pública no bojo do Estado Democrático de Direito. Trata-se, em outras palavras, de assegurar a função jurídica do Estado em que os direitos individuais fundamentais (co)existam com a mesma inclinação de força devida aos deveres públicos. Por fim, da auto regulação da política e da democratização do direito (Estado de Direito Democrático) podemos extrair a necessária mediação entre o governo dos homens (da política) e o governo das leis (o Telos, a finalidade projetiva da justiça social). No plano interno, constata-se que os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados – ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ou suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas as hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. Neste sentido, os instrumentos internacionais de direitos humanos invocam a redefinição da cidadania, a partir da incorporação, ampliação e fortalecimento de direitos e garantias voltadas à proteção dos direitos humanos, a serem tutelados perante as instâncias nacionais e internacionais. É fundamental a interação entre o catálogo de direitos nacionalmente previstos e as conquistas de direitos internacionais, com vistas a assegurar a mais efetiva proteção aos direitos humanos. Impõe-se ainda ao Estado o dever de harmonizar a sua ordem jurídica interna à luz dos parâmetros mínimos de proteção dos direitos humanos – parâmetros estes livremente acolhidos pelos Estados. Do que ainda decorre a necessidade de se definir, como conceito mais abrangente, o Estado Democrático de Direito. Neste constructo jurídico, o Estado Moderno na sua atual fase de transformação incorporou à ideia de ordem jurídica a proteção e as garantias de fruição de direitos fundamentais, quer sejam individuais, quer sejam sociais, coletivos e difusos. Estado Democrático de Direito Social Assim, trata-se de um Estado de legitimidade justa ou Estado de Justiça Material, fundante de uma sociedade democrática e capaz de instaurar um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos de ratificação do controle das decisões políticas e na repartição dos rendimentos da produção social, cultural, econômica e educacional (cidadania 250 democrática)227, sob a salvaguarda institucional de que a ordem jurídica sempre se pautará pela efetivação dos direitos fundamentais (individuais e sociais). Esse novo modelo de Estado se impõe porque o Estado de Direito, quer como liberal quer como social, necessariamente não se caracteriza como democrático. Pois a democracia funde-se no princípio da soberania popular, ou seja, na participação ativa do povo na coisa pública (res pública), na República, e não só na formação das instituições representativas por meio do voto (ainda que direto, livre e secreto). O que, historicamente, deveria impor ao Estado Democrático de Direito a tarefa de corrigir e assegurar a justiça social e garantir a autêntica participação do povo no processo político (civitatis activae). Neste contexto, significa dizer que a lei não deve ser apenas instrumento de arbitragem, mas precisa influir necessariamente na realidade social, já que esta vive em constante mudança, não sendo, portanto, estática. Dado o pressuposto da democracia ser o diferencial nesse modelo de Estado, cabe também indicar o que entendemos por cidadania democrática. É o que se denominou de a ética como Justiça: A ordem jurídica será mais estável e eficiente quando animada pelas qualidades humanas, afetivas, psicológicas e morais [...] Viver eticamente é viver conforme a justiça. A justiça ilumina, ao mesmo tempo, a subjetividade humana (virtude de justiça) e a ordem jurídicosocial (justiça como princípio ordenador da sociedade) (Pegoraro, 1995, pp. 10-11 – grifos nossos). Na combinação entre a leitura histórica e o conhecimento jurídico que veio se firmando temos que a progressiva incursão do direito pela política resultou no fortalecimento de uma ordem jurídica positiva, mas socialmente inclusiva e restritiva dos recursos abusivos do Poder Político – aliás, de certo modo, denota a conversão do Poder Político em Poder Público: a) O Estado, sendo o criador da ordem jurídica (isto é, sendo incumbido de fazer as normas), não se submetia a ela, dirigida apenas aos súditos. O poder Público pairava sobre a ordem jurídica. b) o soberano e, portanto, o Estado, era indemandável228 pelo indivíduo, não podendo este questionar, ante um tribunal, a validade ou não dos atos daquele. c) O Estado era irresponsável juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no wrong229. d) O Estado exercia, em relação aos indivíduos, um poder de polícia. Daí referirem-se os autores, para identificar o Estado da época, ao Estado-Polícia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquer obrigações ou restrições às atividades dos particulares. e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mãos do soberano, a quem cabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negócios públicos (Sundfeld, 2004, p. 34). Na atualidade do que já se convencionou chamar de Estado Pós-Moderno, em que o povo legitima a ordem jurídica, o Estado-Força, em que se aplica indiscriminadamente a força, a coerção, a violência institucional não são mais sinônimos da segurança pública. É a superação do 227 José Afonso da Silva (1991) formula excelente análise teórica e conceitual a fim de definir e distinguir o Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, autor de primeira consulta para quem analisa o tema. 228 Quer dizer que o indivíduo não demandava contra o Estado, não promovia ações contra o Poder Público. 229 A regra da bilateralidade da norma jurídica (de que o Estado deve suportar o peso da lei criada por ele mesmo) seria anunciada no Estado Liberal, mas só se veria atuante na vigência do Estado Constitucional. 251 momento de estática que caracteriza o Estado jus puniendi. É um tipo de Estado-Inteligente, pois as ações políticas e as medidas institucionais devem ser as mais ajustadas às necessidades; juridicamente, haveria um equilíbrio entre meios e fins, entre a celeridade político-social e a segurança jurídica. O sistema político-institucional, como entrada (input) e saída (output) de um amplo sistema que comunica e relaciona necessidades e oportunidades, meios e recursos, ainda nos coloca duas questões complementares: há adesão popular ao modelo político? O desempenho do Estado reflete a possibilidade de influência dos cidadãos? A primeira questão traz a armadilha da política brasileira, ao se confundir Estado e Governo. Com esta confusão, não é ocasional que alguns governos adotem o Estado para si, corrompendo a coisa pública em “coisa nossa” (cosa mostra), utilizando o Estado para manter e inflar o poder do seu governo. A segunda questão expressa o populismo como resposta política inerente à dominação tradicional, e isso decorre da confusão entre Estado e Governo. A ordem jurídica atual institui-se entre direito e democracia, porque o sistema de direitos (a) institui os cidadãos simultaneamente como autores e destinatários da ordem jurídica e (b) significa a institucionalização das condições gerais necessárias para o desenvolvimento de processos democráticos no direito e na política. Se os cidadãos não são somente destinatários mas autores das leis, então o Estado de direito pode ser representado como o conjunto de instituições legais e mecanismos que governam a conversão do poder comunicativo dos cidadãos em atividade administrativa legítima, sendo o direito a linguagem que pode transformar o poder comunicativo em poder político. Para que a participação dos cidadãos na construção da ordem jurídica faça a diferença, as condições de comunicação permitindo testar a legitimidade das normas de direito por parte de organizações da sociedade civil e da opinião pública não devem ser distorcidas nem manipuladas (Schumacher, 2003). Contudo, uma vez que a ordem jurídica democrática está enraizada no “coração” e nas práticas sociais, pode-se ainda ver que o Poder Político recupera e se mantém mais vivo com o livre fluxo do Poder Social. O que fazer? Quando se trata da ordem jurídica democrática, vale o preceito religioso: olhai e vigiai. Não dá para relaxar a guarda. A reconstrução do Estado de Direito e a afirmação do humanismo jurídico, atualmente, sofrem incursões que deslegitimam a ordem jurídica. Em nome da Razão de Estado, alicerçada na segurança pública, o próprio Estado de Direito apresenta inversões nas tutelas oferecidas historicamente pelos mecanismos de autocontrole. Então, o que fazer? Há paradigmas ético-jurídicos do status quo que ainda precisam ser superados, como: Justificação de meros interesses liberal-individualistas. Estrutura estatal centralizada e de classe. Práticas jurídicas hegemônicas. Cultura étnica: eurocentrismo liberal-individualista. Negação do humanismo social-includente. Individualismo como expressão da moralidade burguesa; ideologia do indivíduo como centro autônomo das escolhas econômicas e como porta-voz das relações sociais. Racionalidade jurídica em que o indivíduo é um valor absoluto. Estatutos jurídicos proclamadores da vontade individual acima e independente da realidade social. Formalismo retórico da igualdade formal que subverte a verdade material. Perspectiva de que o contrato é superior ao direito como fonte jurídica vinculante. 252 Vaga noção de que a lei é superior ao Direito – este como fonte jurídica vinculativa ao/do social. Conceito de sujeito de direito individual (abstrato, formalista, ideológico) como ente moral, livre e igual – sobretudo diante das relações de mercado em que se vende a autonomia como se vende a força de trabalho. Princípio-fim do Direito se ainda restrito e limítrofe à segurança e certeza jurídica. Noção de que a segurança jurídica limita-se exclusivamente pela manutenção da ordem jurídica. Em defesa da democracia Pois bem, levando-se em conta que esses itens possam/devam ser superados pela ordem jurídica efetivamente democrática, uma das principais atribuições da ordem jurídica, no sentido moderno de que se trata incessantemente de proteger e aprofundar a cidadania como prática social e democrática, é regulamentar o direito político. Como se sabe, a primeira geração de direitos humanos foi “negativa”, pois era uma imposição de regra obrigatória ao Estado de nãofazer; proibindo-se, portanto, o próprio Estado de legislar contra a prática política popular. Além de se ter no Estado uma proteção à democracia. Neste sentido, a ordem jurídica é uma regra de proteção e deve assegurar o aprofundamento da cidadania democrática. Ocorre, porém, que é preciso proteger os cidadãos de ingerências irregulares em sua manifestação política: uma dessas restrições deve evitar que haja uma pressão desmedida sobre o direito de livre expressão política. Assim, vejamos quando para a lei “o menos vale mais”, quando a lei atende à liberdade, restringindo direitos de liberdade, mas para sejam assegurados no futuro imediato: Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...) § 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos230 (CF/88 - grifos nossos). A proibição dos militares conscritos de se alistarem estaria nessa abordagem dos direitos políticos, porém, receberia duas orientações diferentes: 1) restringir o direito do militar conscrito alistar-se eleitoralmente é uma proteção de consciência, a fim de que não sejam influenciados por seus superiores, em claro voto de cabresto; 2): No cumprimento dos deveres constitucionais, o processo eleitoral exige que os membros das Forças Armadas, submetidos aos rígidos preceitos de obediência, hierarquia e disciplina, fiquem em relativa prontidão com o escopo de exercer as atribuições relativas à defesa nacional e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (artigo 142, caput, CF), inclusive para atender a requisição do Tribunal Superior Eleitoral por intermédio do Supremo Tribunal Federal. Em decorrência, os militares deverão, no dia das eleições, permanecer aquartelados e, de 230 Item 5 do Art. 3° do Regulamento da Lei do Serviço Militar, Decreto n.º 57.654 (20/01/1966): conscritos são os brasileiros que compõem a classe chamada para a seleção, tendo em vista a prestação do Serviço Militar inicial. Conscritos são todos aqueles que estejam prestando o serviço militar obrigatório, os alunos dos órgãos de formação da reserva, os médicos, odontólogos, farmacêuticos e veterinários que estejam prestando serviço militar inicial obrigatório, enquanto durar, ainda que tenham sido alistados antes da matrícula ou convocação (Resolução TSE Nº 15.850/89). 253 antemão, são dispensados do serviço na Justiça Eleitoral conforme prescreve o artigo 75 do Estatuto dos Militares231 (grifos nossos). Em todo caso, nas duas hipóteses, trata-se de restringir os direitos políticos de alguns, temporariamente, a fim de que todo o processo eleitoral receba a melhor condecoração políticoeleitoral. Ou seja, é necessário proteger o direito de voto como essência da liberdade política e, neste caso, trata-se de algo congênere esta restrição ao militar conscrito de exercer o direito de voto. Porque, mais ainda do que a ingerência exercida pelos pais sobre os filhos, será a possibilidade de o superior cobrar/influenciar a livre escolha política do soldado. Assim, a restrição do direito de voto do soldado se alinha à natureza dos direitos (civis) de primeira geração. É um direito negativo, como impedimento de que o agente que representa o Estado (o militar) execute ações negativas à cidadania e aos direitos humanos. A ordem jurídica democrática protege a cidadania e impede a grave violação contra os direitos humanos, a começar da defesa do direito à liberdade. Dessa forma, diz-se que a ordem jurídica é a porta de entrada para o Estado Democrático de Direito Social, como o conjunto das instituições regulares que sustentam a fase atual do Estado Moderno. Portanto, não se admite outra natureza política que não seja a da Justiça Social no interior da ordem jurídica democrática. A democracia, sem dúvida, é uma fonte privilegiada de legitimação do Estado. 231 http://www.paranaeleitoral.gov.br/artigo_impresso.php?cod_texto=211. 254 PODER POLÍTICO E LEGITIMIDADE O que é poder? Digamos que há duas formas de se analisar o poder: relação diária; organização institucional. Entre tantas tentativas de definição, ainda se fala do poder como: Capacidade (atributo individual) Potência (possibilidade: em analogia ao poder da natureza) Energia (em analogia às máquinas) Coerção - Poder Político (força física; virilidade: virtù) Violência (guerra) Fluxo/relação (poder econômico ou social: erga omnes) Função/organização (os três poderes clássicos) Crença (duas formas: dominação ou condição - “eu posso”) Como relação diária, diz-se acertadamente que é deter o conhecimento sobre algo ou alguma coisa. É conhecer, discernir fatos, pessoas e suas intenções e vontades. É não ter medo de se posicionar, mesmo sabendo que pode ser arriscado. Também é um atributo social, mas como consciência e decisão de participação: Poder é ter consciência social, política e econômica do meio em que se encontra. Poder é ter segurança de sua capacidade de ser e de fazer em prol de si e do outro. Ou é uma relação emocional: “Poder é jogar tudo para o alto e ter coragem de arriscar o novo para ser feliz”. Poder é um conceito político, social e econômico, talvez hoje mais econômico do que os demais. Ainda é um conceito que se relaciona a nossa condição de seres humanos em processo constante de crescimento, de busca de "coisas" que transcendem a razão. Por isso, crescem formas de subjetividades e irracionalidades políticas, que não se atenham à lógica política e à Razão de Estado, como: conhecimento de si, busca de respostas para esse tipo de sentimento depressivo que toma conta das pessoas, respostas que as ajudem a sustentar as dificuldades materiais e de relacionamento, de superação das deficiências do nosso caráter. Lembramos de Sócrates: "conhece-te a ti mesmo", um tipo de poder que só o indivíduo pode ter. E que está ligado diretamente à ideia e ao conceito de fé (não no transcendente, mas em si), capacidade de ser e fazer. Esse é um dos maiores problemas relativos ao poder na Modernidade Tardia: de uma forma generalizada, não se acredita na capacidade de realização. Porque vivemos numa sociedade que nos mercantiliza, coloca os não-vencedores para baixo, vivemos atormentados por uma baixa estima social generalizada, decorrente das dificuldades de toda ordem; falta de segurança (social, política, econômica), falta de ética, de respeito, de amor, de cidadania, de empregos, falta de perspectivas. Detém o poder quem acredita em si e, quem acredita em si transporta montanhas. Em todo caso, neste momento, o que nos interessa é a análise do poder como processo de institucionalização, como Poder Político. Então, o que é Poder Político? Poder Político Está correto afirmar que o Estado sintetiza o Poder Político, mas não é uma resposta suficiente. Sabemos, razoavelmente, que a unificação do Poder Político (como fonte da soberania) se deu sob o Estado Absolutista (tal qual descrito por Hobbes), seguido pelo Estado Moderno, e que – na fase seguinte, como Estado Liberal – afirmou-se a liberdade como direito fundamental (como instrumento de restrição do poder estatal, na esfera da liberdade negativa). Também percebe-se que o Poder Político – na modernidade burguesa – está expresso como organização das forças produtivas, do consenso (ideologia) e da coerção/coação. Portanto, 255 como superestrutura, o Poder Político se organiza em ideologia e em sistema político-jurídico. Por seu turno, esta capacidade de servir à organização social confere com o Poder de Polícia. Em suma, o Poder Político resulta da unificação da coerção, da capacidade estatal de instituir sanções, definir a legalidade e exigir seu cumprimento pelo corpo social (força erga omnes). Esta dinâmica é melhor percebida nos três principais elementos que compõem o Poder Político: exclusividade, universalidade, inclusividade. Pela primeira ocorre insistente repressão aos grupos armados que desafiam o Estado. Com a segunda, o Estado onera a si como o único capaz de tomar decisões legais que afetem todo o grupo social (portanto, legitimando-se). Com a terceira, o Estado obriga a todos a que sigam um complexo moral-legal comum, distraindo-os de se agrupam em torno de ideais dissipativos: O poder político, enfim, funda-se sobre a posse dos instrumentos através dos quais se exerce a força física (armas de todo tipo e grau); é o poder coativo no sentido mais estrito da palavra [...] Enquanto poder cujo meio específico é a força –, que é o meio desde sempre mais eficaz para condicionar os comportamentos, o poder político é em qualquer sociedade de desiguais o poder supremo, isto é, o poder ao qual recorre qualquer grupo social (a classe dominante de qualquer grupo social), em última instancia, ou como extrema ratio232, para se defender dos ataques externos ou para impedir, com a desagregação do grupo, a própria eliminação (Bobbio, 2000, p. 163 – grifos nossos)233. Em essência, não é o uso e nem sequer a possibilidade do emprego da força o que caracteriza o Poder Político, mas é sim o monopólio exercido pelo Estado no manuseio e na aplicação dos meios de coerção. Isto é feito de forma legítima (de acordo com fins coletivos) e legal (expressamente constituído em lei anterior). Portanto, é uma condição de exclusividade; além de que a legalidade (ou não) do uso da força ainda é estrita, ou seja, conceitua-se como criminalização e penalização o uso indevido da força (que não esteja de acordo com o “estrito cumprimento do dever legal”). Há uma nítida interseção entre Poder Político, Teoria da Soberania (sobretudo interna) e Razão de Estado (a principal razão de o Estado existir). O que se intitulou de Estado Livre. Estado Livre: O Estado de Direito Pós-romano Por Estado Livre, inicialmente, vamos entender o que (a exemplo de Hobbes) se definia como um Estado de liberdade neo-romana (ou o que, como produtos da modernidade, podemos olhar retrospectivamente e definir como pré-liberal). Não está errado dizer que, quando se pensa em liberdade, logo vem à mente o liberalismo clássico e com ele, John Locke. Mas, Hobbes é, neste sentido, um “liberal antes de seu tempo” — portanto, veja-se que a expressão Estado Livre, usada por Hobbes, não é nova: Mas o momento culminante na emergência de uma teoria integral republicana de liberdade e governo na Inglaterra surgiu em 1656. Após dois anos desastrosos de experiência constitucional, Oliver Cromwell 232 Último recurso ou “última razão dos reis” (Ribeiro, 1993), em que se defende a integridade da soberania territorial. 233 Ainda cita Weber para distinguir o Poder Político da teoria finalística do Estado, uma vez que, o Estado só pode ser percebido em virtude do uso dos meios aplicados ao poder: “Por Estado deve-se entender uma empresa institucional de caráter político na qual – e na medida em que – o aparato administrativo leva adiante com sucesso uma pretensão de monopólio da coerção física legítima, tendo em vista a aplicação das disposições” (Bobbio, 2000, p. 165 – grifos nossos). Trata-se do Weber de Economia e Sociedade (1999). 256 resolveu, em maio, convocar um novo parlamento. A oportunidade para denunciar o protetorado e pleitear um acordo autenticamente republicano foi imediatamente aproveitada por Marchamont Nedham, que revisou suas editorias anteriores e republicou-os como The Excellency of a Free State (A Excelência de um Estado Livre) em junho de 1656 (Skinner, 1999, p. 25 – grifos nossos). Contudo, o Estado Livre deveria instituir outros direitos frente ao Estado, a exemplo do princípio da “liberdade negativa”, qual seja: “pode-se fazer tudo, desde que não seja proibido por lei”. Como mostra Skinner: Ao mesmo tempo, alcançava proeminência uma concepção associada sobre a relação entre o poder do Estado e a liberdade de seus súditos. Ser livre como um membro de uma associação civil, alegava-se, é simplesmente estar desimpedido de exercer suas capacidades na busca de seus fins desejados. Um dos deveres básicos do Estado é impedir que você invada os direitos de ação de seus concidadãos, um dever que ele cumpre pela imposição da força coercitiva da lei sobre todos igualmente. Mas, onde a lei termina, a liberdade principia (Skinner, 1999, p. 18). De certo modo, esses são os primeiros direitos liberais do Estado, mas ainda não são, todavia, direitos fundamentais, como logo a seguir viriam a se tornar os chamados direitos civis ou individuais (fundando a Primeira Geração dos Direitos Humanos). Vê-se que se trata da liberdade negativa, pois a liberdade limitada pela lei seria o freio da ação. No fundo, um processo que Hobbes ainda analisaria: De acordo com isto a autonomia de um homem consiste em nada mais do que no fato de que seu corpo não seja impedido de agir de acordo com seus poderes. “Um HOMEM LIVRE é aquele que, naquelas coisas, que por sua força e sagacidade ele é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que ele tem vontade”234 [...] Se a ação não está ao alcance de seus poderes, sua carência não é da liberdade, mas da capacidade de agir (Skinner, 1999, p. 19). Note-se que liberdade e capacidade de agir são estágios diferentes da ação humana. O não-impedimento do indivíduo no gozo do “seu direito de agir” (mais tarde - com o Bill of Rigths, em 1689) seria regulado positivamente235 pelo próprio direito de liberdade (de ir, vir e permanecer) e negativamente236 pelo Habeas Corpus: este como remédio jurídico, como “garantia legal do direito de liberdade física”. Outros poderão indagar que o Princípio da Liberdade como fonte reguladora do Estado, como limitação da ação soberana do Príncipe, remonta ao Rei João Sem Terra e sua Magna Carta, de 1215. Então, como se enquadra a Magna Carta neste contexto? Devemos lembrar que a experiência da Magna Carta se reduziu à Inglaterra e como experiência histórica demandaria outros quatro séculos para ressurgir (a partir 234 Esta citação é do conhecido Leviatã – “o poder definido à imagem de um crocodilo imenso e invencível”. Positivo no sentido de que afirma e destaca a ação. 236 Negativamente porque, como garantia ou remédio jurídico, só atuaria depois que o mal se instalou ou em sua iminência, a exemplo do Habeas corpus preventivo – interposto justamente para evitar que haja dano ao direito. 235 257 da Revolução de Oliver Cromwell). No entanto, é claro que não era uníssono o Estado Absoluto, como meio de poder e de coerção inquestionável e independente da lei: Mais do que isso, porém, a Magna Carta deixa implícito pela primeira vez, na história política medieval, que o rei acha-se naturalmente vinculado pelas próprias leis que edita. Quinhentos anos antes, Santo Isidoro (560-636), bispo de Sevilha, já havia defendido a ideia de que o príncipe devia submeter-se às leis que ele próprio promulgara, pois “só quando também ele respeita as leis, pode-se esperar que elas sejam obedecidas por todos” (Sententiae III, 51.4) (Comparato, 2001. p. 75 – grifos nossos). Como se vê, a Magna Carta foi um antecedente histórico do Estado Liberal e do próprio Estado Livre. É bem razoável que busquemos aí um primeiro “Estado de Direito”, pois, se falamos da lei que deveria regular aos súditos, mas também ao rei, é porque “está em destaque o princípio da legalidade”, ao menos em sua base e origem. Não se falava, obviamente, em princípio da reserva legal, porém essa igualdade diante da lei e do poder é em si uma conquista jurídica. A diferença em relação ao Estado Liberal, é que ali os “princípios legais da liberdade” já se vinham construindo dentro do espírito absolutista que iria formar-se com/no Estado Moderno. Mais do que isso, no pretenso Estado Medieval (portanto, antes do Estado Liberal) já se acenava com o princípio da legalidade e sua relação com as bases da liberdade individual. O princípio da legalidade pode ser assim resumido: Nos teóricos clássicos alemães e italianos do Direito Público as noções de Rechtsstaat ou de Stato di diritto, assim como em parte para a doutrina inglesa a de Rule of law ou para a francesa as de Règne de la loi ou Sèparation des pouvoirs, são consideradas como um modelo teórico que pretende refletir ou explicar, no plano da Dogmática Jurídica, os processos formais através dos quais discorre a dinâmica estatal (Luño, 2003, p. 238 – grifos nossos). Em suma, o Estado Livre se destaca pela primeira conquista rumo à igualdade jurídica e, no Estado Liberal, está no foco da busca pela liberdade, como proteção do indivíduo frente ao Estado (aquele mesmo Estado descrito por Hobbes como supremo e inquestionável em sua soberania). Assim, também podemos concluir que o Estado Livre é um tipo de Estado de Direito Primário em que a conquista política se transformou em lei de alcance “mais” geral. O que serve ao súdito, doravante também se aplica ao rei. Isto nos aclara o sentido de que liberdade e igualdade são construções históricas renováveis e inesgotáveis, uma vez que a cada fase ou bloco da história outra concepção pode se tornar homogênea. Este também é o caso verificado ao longo do breve curso do chamado Estado Legal, na França pós 1789, mas agora em defesa da igualdade de direitos, da Justiça Material. O Estado Legal é a estrutura políticojurídica construída logo após a Revolução Francesa — é exemplo de uma dessas fases de inversão, subversão do direito. Isto é, o mesmo Direito que outrora tinha sido criado para o estrito cumprimento do exercício legal (simples e direto) da dominação de uma classe social sobre outras, agora permite ou deixa em aberto a possibilidade de os oprimidos utilizarem-se daquele mesmo direito para a sua libertação. São tentativas de sedimentação da cidadania como soberania popular, portanto, bem diferente do modelo (elitista): 258 No Antigo Regime, a experiência pública estava ligada à formação da ordem social; no século passado, a experiência pública acabou sendo ligada à formação da personalidade [...] O segundo traço da crise do século XIX está no discurso político comum em nossos dias. Tendemos a descrever como líder “confiável”, “carismático”, ou “alguém em quem se pode acreditar”, aquele que for capaz de atrair grupos cujos interesses são alheios às suas crenças pessoais, ao seu eleitorado ou à sua ideologia. Na política moderna, seria suicídio para um líder insistir em dizer: esqueçam a minha vida privada; tudo o que precisam saber a meu respeito é se sou bom legislador ou um bom executivo e qual a ação que pretendo desenvolver no caso. Ao invés disso, ficamos alvoroçados quando um presidente francês conservador janta com uma família da classe trabalhadora, embora tenha, poucos dias antes, aumentado os impostos sobre os salários industriais; ou então, acreditamos que um presidente americano é mais “autêntico” ou confiável do que seu predecessor caído em desgraça porque o novo homem prepara o seu próprio café da manhã. Essa “credibilidade” política é a superposição do imaginário privado sobre o imaginário público e, também neste caso, surgiu no século passado, como resultado de confusões comportamentais e ideológicas entre os dois âmbitos (Sennett, 1988, pp. 40-41 – grifos nossos). Em nossa atual indefinição quanto aos limites/liames entre público-privado, como “esfera pública burguesa”, olhamos o mundo político a partir da janela dos problemas pessoais, domésticos: “A linha entre a esfera privada e a esfera pública passa pelo meio da casa” (Habermas, 2003, p. 62). A autonomia se dá – pelo indivíduo – em face do Estado, mas não se trata de um indivíduo amorfo, sem identidade ou materialidade; devendo ser visto como produto da vida civil, do trabalho, do entrechoque com o Poder Político e em meio às ideologias e mentalidades: À autonomia dos proprietários no mercado corresponde uma representação pessoal na família aparentemente dissociada da coação social, é o carimbo autenticador de uma autonomia privada exercida na concorrência. Autonomia privada que, negando a sua origem econômica, exerce-se unicamente fora do domínio em que aqueles que participam do mercado se acreditam independentes, conferindo à família burguesa essa consciência que ela tem de si mesma. Tal consciência parece ser espontânea, parece ter sido fundada por indivíduos livres e manter-se sem coação; ela parece repousar na permanente comunhão amorosa dos cônjuges; ela parece resguardar aquele livre desenvolvimento de todas as faculdades que distinguem uma personalidade culta. Os três momentos — do livre arbítrio, da comunhão de afeto e da formação — conjugam-se num conceito de humanidade que se pretende que seja inerente a todos os homens, definindo-os certamente enquanto seres humanos: a emancipação que ainda ressoa quando se fala do puramente ou simplesmente “humano”, uma interioridade a se desenvolver segundo leis próprias e livre de finalidades externas de qualquer espécie [...] A 259 família desempenha exatamente o papel que lhe é prescrito no processo de valorização do capital (Habermas, 2003, p. 63 - grifos nossos). Portanto, este público-burguês não pode escapar a seus limites: A esfera pública burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fictícia das pessoas privadas reunidas num público em seus duplos papéis de proprietários e de meros seres humanos [...] A fórmula básica de Locke quanto à preservation of property subsume, numa só linha e de um só fôlego, sem qualquer constrangimento, sob o título “propriedade”, life, liberty and estate: tão fácil conseguia ser, naquela época — segundo uma distinção do jovem Marx, identificável a emancipação política com a emancipação “humana” (Habermas, 2003, p. 74 – grifos nossos). O público é espectador da política institucional: o liberalismo aproxima-se, mas também choca-se com muitos movimentos sociais e/ou populares: feminismo, trabalhismo. Historicamente, entretanto, o Poder Político tem grande amparo no liberalismo político inaugurado por Locke, ainda que antes dele já o Parlamento havia delimitado contornos de legitimidade ao Estado (como capacidade administrativa de gerir a força física e política). Liberalismo clássico e Poder Político Pois, outra face desse mesmo Estado Liberal será revelada pelo Estado Laico, que é de ideologia liberal, mas que agora emprega um maior efetivo na defesa intransigente da liberdade religiosa, na separação clara entre Estado e Igreja e na defesa do que o próprio Locke chamará de tolerância religiosa. O liberalismo clássico de Locke, quando voltado a esta relação EstadoDireito, pressupõe uma relação objetiva entre o Poder Extroverso do soberano e seus súditos. Por exemplo, ao indagar acerca do que é o Poder Político: Por poder político, então, eu entendo o direito de fazer leis, aplicando a pena de morte, ou, por via de consequência, qualquer pena menos severa, a fim de regulamentar e de preservar a propriedade, assim como de empregar a força da comunidade para a execução de tais leis e a defesa da República contras as depredações do estrangeiro, tudo isso tendo em vista apenas o bem público (Locke, 1994, p. 82 – grifos nossos). Ou quando trata diretamente do que entende pelo que seja ou deva ser o Poder Legislativo: “A lei civil, sendo o ato de todo o corpo político, tem a primazia sobre cada parte do mesmo corpo” (Locke, 1994, p. 138). Para em seguida nos revelar a fonte do próprio direito consuetudinário, aquele baseado nos costumes — a Comunidade Civil ou commonwealth: Como a forma de governo depende da atribuição do poder supremo, ou seja, do Legislativo, é impossível conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior, ou que um outro além do poder supremo faça as leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil (Locke, 1994, p. 160). Em seguida ainda nos traça um panorama do alcance e dos limites ao Poder Legislativo: 260 Primeiro: ele não é exercido e é impossível que seja exercido de maneira absolutamente arbitrária sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas [...] Segundo: O Legislativo, ou autoridade suprema, não pode arrogar para si um poder de governar por decretos arbitrários improvisados, mas se limitar a dispensar a justiça e decidir os direitos do súdito através de leis permanentes já promulgadas e juízes autorizados e conhecidos [...] Terceiro: O poder supremo não pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu próprio consentimento [...] Quarto: O poder legislativo não pode transferir para quaisquer outras mãos o poder de legislar; ele detém apenas um poder que o povo lhe delegou e não pode transmiti-lo para outros (Locke, 1994, pp. 163-164-166-168). Lembrando-se que o parlamentarismo foi construído com a incumbência de limitar o poder do Estado soberano, aproximando o Poder Político da representação popular (Parlamento). Acredita-se, de algum modo, que o Parlamento representava a vontade geral. Tais limites, pois, são demarcados por deveres e por obrigações peculiares às funções requeridas ao próprio Poder legislativo: Primeiro: Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, e se abster de modificá-las em casos particulares, a fim de que haja uma única regra para ricos e pobres, para o favorito da corte e o camponês que conduz o arado. Segundo: Estas leis só devem ter uma finalidade: o bem do povo. Terceiro: O poder legislativo não deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este expresse seu consentimento, individualmente ou através de seus representantes [...] Quarto: O legislativo não deve nem pode transferir para outros o poder de legislar, e nem também deve depositá-lo em outras mãos que não aquelas a que o povo o confiou (Locke, 1994, p. 169). O que, em tese, a fim de que o poder controlasse o poder, deveria desembocar na hierarquia entre os poderes: Em uma sociedade política organizada, que se apresenta como um conjunto independente e que age segundo sua própria natureza, ou seja, que age para a preservação da comunidade, só pode existir um poder supremo, que é o Legislativo, ao qual todos os outros estão e devem estar subordinados; não obstante, como o legislativo é apenas um poder fiduciário e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no povo um poder supremo para destituir ou alterar o Legislativo quando considerar o ato legislativo contrário à confiança que nele depositou [...] Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder supremo de se salvaguardar contra as tentativas e as intenções de quem quer que seja, mesmo aquelas de seus próprios legisladores, sempre que eles forem tão tolos ou tão perversos para preparar e desenvolver projetos contra as liberdades e as propriedades dos súditos (Locke, 1994, p. 173). Por fim, mas o que talvez devesse constar do princípio, porque tudo isto só faria sentido se prevalecesse o interesse público, surge como um dos temas centrais do Segundo Tratado sobre 261 o Governo Civil, o princípio da moralidade: “A regras salus populi suprema lex é certamente tão justa e fundamental que aquele que a segue com sinceridade não corre um risco grande de errar” (Locke, 1994, p. 179). Portanto, a partir de Locke, o Estado Liberal clássico ainda produziu o substrato do princípio da tolerância (antes religiosa e depois política). Mas, o que é Estado Laico e tolerância religiosa e política? Escorço histórico: Estado Laico A secularização da política no âmbito do próprio Estado Moderno já antecipava o Estado Liberal. Porém foi somente no Estado Liberal que se (a)firmou o princípio da liberdade religiosa, e que se desdobrou com o tempo no princípio da tolerância religiosa. Assim, gradativamente, continuamente transformou-se no princípio da liberdade e da tolerância política. E por isso abordaremos também este aspecto a seguir. O liberalismo erigido à época da formação do chamado Estado Liberal (pelo menos entre a Revolução Inglesa, 1689, e a Francesa, 1789) desenvolveu, articulou e angariou novas dimensões para a própria ideia e prática da liberdade. E assim é que esse longo processo de desenvolvimento e de formação do Estado Liberal viria assegurar teoricamente que: ou todos são livres ou ninguém o é; se um não é livre, nenhum é. O capitalismo necessitava de mão-de-obra livre e, em regra, não poderia conviver com o trabalho escravo. Por isso, essa profunda e radical dimensão liberal da liberdade também estabeleceu uma relação com a igualdade formal237 – ou seja, só é igual (em direitos) quem é livre (para usufruí-los)238. No capitalismo vigente, o cidadão é livre para vender força de trabalho (mas, quem compra tem o poder de dizer sim ou não). A liberdade que se entendia, tomando por base esse processo histórico, era justamente a liberdade religiosa e certamente a mais complicada de ser tomada, uma vez que o poder absolutista (essa fase de pré-liberação do Estado) foi, acima de tudo, um poder religioso. Em vários momentos anteriores à laicização do Estado (separação do Estado, da política, e da religião), o poder do Papa (papado) era o símbolo maior do poder terreno. A secularização da política demandou a geração e a aceitação da crença de que os homens eram capazes de se organizar socialmente, sob o controle do Estado, para viverem: Deus deve cuidar do céu e os homens e sua política se incumbirão da Terra. Porém, dita há mais de 200 anos, essa frase levaria qualquer um à fogueira. Como ensina Locke, a liberdade religiosa precedeu qualquer noção ou prática da liberdade, pois a liberdade de credo pressupõe a liberdade de pensamento e só depois a liberdade de expressão, que acompanha o direito de reunião, de associação, de participação política. O livre arbítrio denota a exteriorização da própria consciência, pois a ação política consciente é decorrente da livre formação do pensamento: É que o Estado não pode atribuir nenhum novo direito à igreja como também não, inversamente, a igreja ao Estado. Assim, a igreja, quer o magistrado a ela adira ou a abandone, permanece sempre a mesma que antes, uma sociedade livre e voluntária [...] O poder civil é o mesmo em toda a parte e não pode conferir uma autoridade eclesiástica maior a um príncipe cristão do que a que pode conferir a um príncipe pagão, isto é, não pode conferir nenhuma [...] Ninguém, nenhuma igreja e até nenhum Estado tem, pois, qualquer direito de atentar contra os bens civis de 237 Veja-se o art. 5º, I, da CF/88: homens e mulheres são iguais perante a lei. É fácil notar, então, como se erige a conquista dessa liberdade irrestrita: da liberdade decorre a igualdade, uma vez que entre senhores e escravos não pode haver igualdade alguma, pois só os primeiros são livres. Portanto, todos serão iguais em direito apenas quando todos forem livres para usufruí-los. 238 262 outrem nem, sob pretexto da religião, de o despojar das suas posses terrestres. Quem pensar de outra maneira, gostaria que pensasse no número infinito de processos e de guerras que assim proporciona ao gênero humano; no incitamento à pilhagem, ao assassínio, aos ódios eternos: em nenhum lado a segurança ou a paz e menos ainda a amizade, poderão se estabelecer e conservar entre os homens, se houvesse de prevalecer a opinião de que a soberania se funda na graça e que a religião deve propagar-se pela força e pelas armas (Locke, 1987, pp. 97-99). A necessidade de o Estado se tornar laico, portanto, exige tanto destronar o poder quanto assegurar que o Estado não vá regular a religião. O Estado deve ser reprimido para não se arvorar como detentor de uma religião oficial, ao mesmo tempo em que desautoriza outras práticas religiosas ou opções ideológicas. O Estado deve ser ateu, independentemente do que o governo ou o próprio governante confesse. O Estado Laico, por fim, deveria encontrar respaldo, reflexo na própria lei que regula o Poder Político em torno do Estado Liberal. Ainda é importante frisar que o Estado Laico também concorre para a secularização do direito: A passagem dos comportamentos pelo crivo da inocência e da culpabilidade foi separada da gestão das almas e do policiamento das leis de Deus para ser confiada às instituições de uma justiça humana responsável pelo direito criado por cidadãos para reger suas interações; pode-se qualificar essa passagem de secularização (Assier-Andrieu, 2000, p. 305). Fora do contexto liberal e religioso inglês (que ainda se debatia em defesa do protestantismo), sob forte influência de Rousseau, na França, a liberdade política ganharia mais peso e densidade, ao se equiparar liberdade e democracia ou liberdade e participação. Então, em Rousseau, de modo mais contundente, a liberdade virá associada a um projeto político mais radical, mais profundo, uma vez que não bastava a ideia da liberdade vigiada pela lei. Aliás, a esta liberdade negativa, Rousseau irá propor a democracia radical, a democracia de raízes mais profundas. Por fim, ainda cabe destacar que – hoje mais do que nunca – precisamos resgatar o conceito de Cultura Jurídica para entrelaçar o poder à legitimidade, pois a legitimidade do poder é a legalidade aplicada ao poder, mais a adesão no substrato da consciência (cultura política). O poder legal é a essência da cultura jurídica do século XXI. Cultura Jurídica A expressão cultura jurídica sempre esteve atrelada à ideia de dogmática jurídica, como conteúdos e conceitos legais alçados à condição de dogmas. Também devemos distinguir de outras locuções, a exemplo de pensamento jurídico e doutrina jurídica. Pensamento Jurídico é uma hipótese ou conjunto de hipóteses oriundas das técnicas profissionais próprias do meio jurídico e dizem respeito a uma possível natureza e condições específicas ou características provindas deste conjunto técnico – além de se destacar uma função precípua do direito. Dogmática Jurídica expressa uma determinada fase histórica da cultura jurídica ocidental. Mais especificamente a partir da influência alemã, a locução passou a expressar maneiras de tratar e de expor o direito positivo, relacionando e de forma a se embasar a partir de categorias conceituais (dogmas), tais como “negócio jurídico”, “ato jurídico”, “Estado de Direito”, “Segurança Jurídica”. Dogmática Jurídica ainda expressa um conjunto de técnicas operacionais e interpretativas do direito, baseadas em conceitos e dogmas. Doutrina Jurídica 263 constitui uma parte significativa da cultura jurídica, valendo-se de especificações e de interpretações dos grandes sistemas dogmáticos do direito. Por fim, todas essas locuções devem ser diferenciadas da ciência jurídica: Essa expressão é empregada de duas formas: (a) uma utilização ideológica em que as formulações dos juristas correspondem, ou devem corresponder a uma sistematização racional inteiramente análoga à das “ciências sociais”; (b) e uma utilização mais fraca, própria da linguagem corrente com a qual “ciência jurídica” é sinônimo de “doutrina jurídica” (Arnaud, 1999, p. 197). Porém, a fim de que tanto a perspectiva de cultura jurídica correspondesse às necessidades modernas, quanto a ideia de segurança jurídica estivesse adaptada ao capitalismo, foi preciso que a experiência da dogmática jurídica se alterasse. Cultura Jurídica e Direito Moderno Não bastava mais o Estado Guarda-Noturno desse segurança aos seus súditos, era necessário o tal Estado Empreendedor, não apenas conquistador como no passado bárbaro, mas sim de bases racionais, ou seja, plausíveis, críveis e confiáveis diante da margem de acerto e erro. Este Estado erigiu um porto-seguro no direito, ou melhor, num sistema jurídico unificado (ao revés do pluralismo jurídico medieval), nas palavras de Antonio Carlos Wolkmer: A questão jurídica irá ser tratada de forma distinta pelos dois expoentes da Reforma. Enquanto o teólogo Lutero desprezava o jurídico e detestava os juristas tanto quanto a filosofia de Aristóteles e a escolástica metafísica, Calvino, formado em Direito, aplica no estudo da Bíblia o método exegético do mundo jurídico. Trata-se de um jurista que, em Genebra, incorpora e leva adiante os propósitos da Reforma naquilo que Lutero desconsiderava: a organização da Igreja reformada [...] A orientação humanista incidiu, como não poderia deixar de ser, no âmbito da teoria e da prática jurídica. Assim, o humanismo no Direito contribuiu para uma natural e clássica revisão crítica da cultura jurídica produzida pela Idade Média. O próprio eixo explicativo de sustentação da doutrina do Direito Natural começa a se deslocar para a sociedade humana e para a natureza racional do homem, antecipando-se, assim, o que seria mais tarde a proposição filosófica do contrato social [...] Algumas características da época, como a secularização, a racionalização, a individualidade e o antropocentrismo, marcam a passagem para a construção e consolidação de um novo mundo que legitima também uma nova forma de produzir, pensar e praticar o Direito. Assim, a “nova consciência jurídica europeia” nasce da convergência histórica do naturalismo, da individualidade e da centralização política burocrática. A par de toda essa dinâmica específica, a nascente cultura jurídica eurocêntrica está profundamente afetada por fenômenos radicais e criadores que têm suas raízes no Humanismo renascentista e na Reforma Protestante. Tanto um quanto o outro, desses movimentos, exerceram uma influência direta nas instituições jurídicas e na moderna doutrina dos direitos fundamentais239. 239 Veja-se em: http://www.buscalegis.ufsc.br/busca.php?acao=abrir&id=24571. 264 Posteriormente à centralização do Estado-Leviatã de Hobbes (1983), o único capaz de dar segurança e, ao mesmo tempo, reunir recursos para as grandes navegações, desembarcamos no jusnaturalismo de John Locke. Com isto chegamos à ideia da liberdade e das relações construídas de forma real e duradoura, como reino terrestre, e o papel da educação na sua elaboração. Depois de Comenius, um passo decisivo rumo ao Homem Novo, primeiro foi dado por Helvétius e, posteriormente, por Diderot: Ocorrerá, a partir de meados do século XVIII, uma intensificação do pensamento pedagógico e da preocupação com a atitude educativa [...] Das relações mestre e discípulo às determinações políticas do ato pedagógico, tudo isso seria considerado decorrente de um fator preliminar, concernente à identificação dos mecanismos propulsores do aprendizado humano [...] Da Ilustração à Revolução, a pedagogia desloca-se do terreno filosófico para incursionar pela prática política, pelo lugar institucionalizado na escola propugnada; deixa de ser objeto privilegiado do indivíduo para ser concebida como direito e capacidade inerentes à espécie [...] Advogar ou não a escola para todos foi, desde logo, estratégia política de matriz iluminista (Boto, 1996, pp. 21-23). Este é um marco histórico do apreender a aprender a política. Neste aspecto, diverge bastante do Renascimento e sua clara intenção pela matematização das relações humanas e com a natureza. Assim, a laicidade fortaleceu o sentido de responsabilidade pública e com isto também chegamos à legitimidade como foi pensada desde o contratualismo. A Liberdade ao alcance da Democracia - Rousseau Em busca de uma liberdade participativa do povo na sociedade e na definição do Estado, é que se diz que em Rousseau a liberdade aparece associada à democracia. Por isso, em Rousseau, a temática da soberania não aparece isolada, exigindo a legitimidade do poder constituído, ou seja, o Estado passaria gradativamente a ser submetido às regras criadas por ele mesmo. No contexto do Estado Liberal, afirmava-se outra objetividade e racionalidade do Direito, porque no bojo do Estado Liberal, segundo Rousseau, o cidadão é o portador pleno dos direitos público-subjetivos (o Poder Político deve ser garantidor de sua fruição). Primeiramente, porque o cidadão deve reunir dois atributos: a) capacidade jurídica: requer-se pleno funcionamento das capacidades mentais, um razoável senso de proporção, uma mínima adequação à realidade a fim de obter o julgamento moral; b) competência política: deve reunir condições de projeção de suas posições e concepções políticas pessoais, além de demonstrar certa liderança capaz de repercutir politicamente no todo, mediante suas ações, e assim resultando na transformação do status quo, em modificações na ordem e na vida política. Depois, porque essas garantias dos direitos políticos serão asseguradas pelo Estado (o produtor dessas mesmas regras políticas) e, com isso, o cidadão poderá usufruir, gozar dos mesmos direitos quando julgar interessante, relevante, oportuno. Isto é, dependerá de sua vontade. A fruição dos direitos políticos, portanto, depende da garantia real e formal do Estado, e da iniciativa do cidadão em querer participar ativamente, plenamente, da política, dos negócios públicos. Trata-se da facultas agendi, a faculdade ou a capacidade individual de agir em nome próprio, destacada pelo direito privado, mas que agora será aplicada à vida pública. Veja-se que só neste aspecto Rousseau já é referência para a democracia, além de ser bem mais radical do que Locke. Em Rousseau, portanto, pode-se buscar uma liberdade mais radical, 265 mais profunda, em comparação com os clássicos do liberalismo. A liberdade do Estado Liberal é a liberdade do liberalismo e não exatamente o modelo de liberdade preconizada pela democracia. Importa ressaltar a liberdade dos indivíduos e que nem sempre coincide com a vontade geral. Em certo sentido, entre o liberalismo e a democracia há uma grande distância: “Aquele designa a liberdade do status negativus, ou seja, o espaço de liberdade de atuação individual face ao Estado. Este refere-se à liberdade do status activus, ou seja, à liberdade de participação na formação da vontade comum” (Zippelius, 1997, p. 375). É importante ressaltar este aspecto porque a estrita observância da vontade da maioria, sem respeito ou garantia às liberdades e aos direitos individuais, pode facilmente degenerar em tirania da maioria – quando a maioria decide pela supressão dos direitos das minorias. No livro O Contrato Social há uma boa pista do que é este cidadão não limitado pelas negatividades do liberalismo: Cidadão é o portador pleno dos direitos público-subjetivos (em busca de sua fruição) e como associado, da sociedade e do Estado, recebe a designação de povo, coletividade (livro I, cap. VI – grifos nossos). Portanto, para os dias atuais, dessa sua contribuição política, tiramos três possíveis níveis de participação: — cidadão simples: participa da autoridade soberana do Estado (é só um indivíduo, sem grandes projeções). — Cidadão ativo: recebe determinadas atribuições conferidas pelo próprio Estado. — Cidadão participativo: interfere diretamente nas atribuições e na dinâmica da Pólis (participa da formulação da política). Desta forma saímos do campo liberal para o democrático, para iniciar o debate sob a forma do Estado Constitucional. Contudo, o Estado Democrático é uma realidade do século XX e por isso deve ser tratado em outro momento. O que nos cabe aprofundar são os conceitos de legalidade e de legitimidade que se articulam na constituição do Poder Político. Legalidade Legalidade em estrito senso pode ser resumida como “fazer ou deixar de fazer algo em virtude da lei”, mas em sentido lato, podemos ver que a moderna legitimidade do corpus político-jurídico atual (como regulação legal-democrática do Poder Político240) já se apresentou simplificadamente como soberania. A formação do Estado-Nação, superando diferenças e divergências culturais, de língua e de credo, propiciou o sentimento de unidade necessário à nação. Portanto, no Ocidente, uma intensa e intrínseca relação entre nacionalidade e legitimidade (inicialmente, como legalidade), formulou mecanismos que se voltavam ao controle ou legitimação do Poder Político241. Em seguida, outras razões jurídicas foram atribuídas ao Estado de Direito. Na Europa Ocidental, a exigência do poder central (em disputa com barões e senhores feudais) levou à adoção de leis universais, abstratas e gerais. O que fortaleceu o surgimento de uma autoridade central e a imposição de leis nacionais. Vem daí, também, nossa confusão entre legalidade e legitimidade. Quando se unificou, por exemplo, a metragem na Lei de Pesos e Medidas, em 1349, o esforço de racionalização econômica se projetou no corpo legal. A necessidade econômica se portou como legalidade. No fundo, trata-se de duas faces do mesmo curso racional. Em 1439 outra lei iria conferir ao rei a legalidade necessária para exercer o monopólio legítimo da força física, por meio do controle das armas (Santos, 2013). 240 Este que talvez fosse o sentido expresso pelo Estado de Direito Democrático. Não basta a legalidade, é preciso que se fortaleça a legalidade democrática. 241 O Parlamento e o sistema de freios e contrapesos foram alguns desses meios, ao mesmo tempo que propiciaram a sedimentação do Estado-Nação. 266 Gradativamente, foi-se instituindo (institucionalizando-se) o direito como sistema, ao menos a percepção de que deveria funcionar como sistema orgânico: conjunto de leis concatenadas, como sistema legal, em sentido próprio e aplicado ao todo (social), em caráter de abrangência nacional, evoluindo paulatinamente para a imparcialidade, impessoalidade e neutralidade. Enfim, constituíram-se processos, recursos e resultados inerentes ao fluxo de uma racionalização progressiva, gradativa. Por meio do direito, a autoridade central foi paulatinamente estabelecida e reconhecida. Primeiro se estabeleceu o Poder Político (estabilizando-se o centro de controle), para em seguida reconhecer-se (legitimando-se) o poder com amparo na própria lei. O chamado Poder de Polícia – como capacidade regulamentar e disciplinar – foi (e é) outro recurso aplicado ao crescente poder de coerção/sanção. A monetarização da economia, o sistema simplificado de cobrança de impostos, o exército regular e a fixação de um corpo de funcionários especializados (burocracia) solidificaram os primeiros passos do Poder Político (nesta fase primária do Estado Moderno). Legitimidade Aquele sentido impetrado por Rousseau, para a legitimidade conferida pela vontade geral à lei (na verdade: a lei como expressão da vontade geral), foi (e de certo modo ainda é) empregado na determinação dos parâmetros da legitimidade que cerca o Poder Político como um todo. No entanto, quando se aborda a legitimidade do Poder Político, é imperioso articular o sentido estrito da legalidade com o direito como um todo, o que inclui a ética e a convivialidade. Então, há o espaço do direito e da ética: DIREITO – Há crescente positivação dos princípios éticos, exigindo-se que o Poder Público se espelhe na maior objetivação dos critérios morais. Desse modo, a ética social é parte ativa no interior do moderno Estado de Direito, atribuindolhe regras republicanas e democráticas (Canotilho, 1999). Como vimos, mas não custa relembrar, por Estado de Direito entenda-se o complexo arcabouço jurídico formado pelo(a): 1. Império da Lei: quer dizer que a lei deve ser imposta a todos, a começar pelo Estado – o Poder Público tem personalidade jurídica e por isso é objeto do Direito que ele próprio produz. Define-se como a regra jurídica de autocontrole do poder: “a regra da bilateralidade da norma jurídica”. Tenha-se claro ainda que a legitimidade não se limita à legalidade242. 2. Separação dos Poderes: significa que o Poder Executivo não pode anular o Poder Legislativo, além do que deve ser acompanhado e julgado pelo Poder Judiciário – trata-se de assegurar a interdependência dos poderes por meio da aplicação do sistema de freios e contrapesos. 3. Prevalência dos Direitos Individuais Fundamentais: fazia referência aos direitos individuais, até os anos 20 do século XX, porque somente nesse período é que entraram em cena os direitos sociais e coletivos. Daí por diante, no entanto, cercou-se de legitimidade o próprio Estado Democrático de Direito Social (Martinez, 2005)243. 242 No sentido legal, o que está mais perto desse contexto ideológico é realmente o conceito de vontade geral, uma vez que – com a soberania popular por base – a legalidade tem origem no poder social, o que lhe atribui legitimidade. Mas esta é apenas uma miríade do Estado Liberal. 243 Este também é um contexto melhor abordado a partir do conceito de ordem jurídica democrática. 267 CULTURA – A cultura deve permitir o oferecimento de regras de ação (controle social), sem as quais não haveria retração das vontades individuais e o decorrente convívio coletivo. O homem é iminentemente cultural porque a humanização consiste na passagem da mera adaptação biológica ao meio, a um processo de adaptação cultural em busca de alternativas para satisfazer suas necessidades e objetivos de realização individual e coletiva. Portanto, a cultura prova a capacidade humana de fabricar soluções inteligentes para problemas complexos – a exemplo do direito e da ética. HUMANISMO – A cultura humanista permite pensar a unidade da humanidade na diversidade: “A diversidade é possível porque os seres humanos aprendem a partir de meios culturais” (Laraia, 2009, p. 163). Pode-se dizer que este é o eixo de condução dos direitos humanos. Pois bem, este conjunto complexo (complexus: como rede social que se tece em autopoiese244), que se forma entre legalidade e legitimidade e entre Estado e sociabilidade (ética), condiz com os pressupostos de um Poder Político legítimo ou dominação racional-legal, no dizer de Max Weber (1999). Weber e a dominação legítima Dominação racional-legal, dominação moderna, dominação legítima ou dominação pelo saber245, são denominações que muito bem expressam o sentido válido, atualmente, para a ideia de dominação e de legitimação do poder estatal. No caso específico da dominação legal, como veremos, a crença na lei expressa uma forma de dominação legítima, ou seja, há um anseio pelo Poder Político, e a dominação pela via legal é esperada, consentida e até requerida246. Acredita-se que a lei será utilizada como mecanismo legítimo de controle social e que a força (física) será o último recurso manejado pelo Estado — e não o primeiro como no exemplo da última razão dos reis. Em Weber, toda dominação pressupõe “vontade de obedecer” (interesse individual na organização social) e “crença na sua legitimidade”. Portanto, toda dominação deve estar pautada em algum tipo de legitimidade, como “pretensões típicas da legitimidade” ou o que: “...chamamos ‘dominação’ a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas [...] Certo mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação” (Weber, 1999, p. 139). O que diferencia “autênticas relações de dominação” de outras relações meramente autoritárias é a existência deste “interesse na obediência”. Mas a isto ainda deve ser somada uma “crença na legitimidade”: “Mas nem o costume ou a situação de interesses, nem os motivos puramente afetivos ou racionais referentes a valores da vinculação poderiam constituir fundamentos confiáveis de uma dominação. Normalmente, junta-se a esses fatores outro 244 Humberto Maturana e Francisco Varela, na década de 1970 designaram autopoiese como um processo de auto criação, em analogia à célula enquanto algo "auto-criado": mas isso poderia ser apenas idiossincrasia. Porém, se “o sujeito é – e somente é – quando se encontra no Outro” (sem os outros não há o Eu e não há educação, nem sociabilidade e nem política), logo, complementa-se pela ontologia: tem o foco no ser e não no objeto, sem perder-se na divisão “positivista” entre sujeito e objeto. A Ontologia trata da natureza do ser, de sua realidade, da existência dos entes: ontos+logoi = "conhecimento do ser". A ontologia tem por objeto o estudo das propriedades mais gerais do ser, apartada da infinidade de determinações e não procura qualificá-lo particularmente. Sentido que se complementa com o de autarquia e autonomia. 245 Afinal, desde Bacon, “saber é poder”. 246 É preciso relembrar que Hitler foi eleito, antes de se glorificar como Füher. 268 elemento: a crença na legitimidade247” (Weber, 1999, p. 139). Como indica Weber, só a razão ou a necessidade não justificariam a dominação (como influências externas), pois é preciso alguma forma de legitimidade: “Conforme ensina a experiência, nenhuma dominação contenta-se voluntariamente com motivos puramente materiais ou afetivos ou racionais referentes a valores, como possibilidades de sua persistência. Todas procuram disputar e cultivar a crença em sua ‘legitimidade” (Weber, 1999, p. 139). Na montagem dos tipos ideais de dominação, Weber se utiliza do método comparativo (mas também do trabalho histórico-empírico), iniciando a análise pelo tipo mais recente, mais moderno, para, então, retroagir na formação histórica mais distante. A dominação, de qualquer tipo, portanto, pressupõe elementos básicos, tais como: obediência imediata; aceitação acrítica248; pretensão de legitimidade válida e relevante; consolidação dos meios de dominação249. Em Weber: A “legitimidade” de uma dominação — já que guarda relações bem definidas para com a legitimidade da “propriedade250” — tem um alcance que de modo algum é puramente “ideal”. Nem toda “pretensão” convencional ou juridicamente garantida pode ser chamada “relação de dominação” [...] Quando um grande banco é capaz de impor a outros um “cartel de condições”, isto não se pode chamar de “dominação” enquanto não exista uma relação de obediência imediata, de forma que sejam dadas e controladas em sua execução instruções por sua direção, com a pretensão e a probabilidade de que sejam respeitadas pura e simplesmente como tais [...] A obediência de um indivíduo ou de grupos inteiros pode ser dissimulada [...] O decisivo é que a própria pretensão de legitimidade, por sua natureza, seja “válida” em grau relevante, consolide sua existência e determine, entre outros fatores, a natureza dos meios de dominação escolhidos (Weber, 1999, p. 140 – grifos nossos). Vê-se em Weber, como, em determinada época, a forma “predominante” de dominação corresponde à forma predominante de propriedade; tal qual em Marx, em que a “ideologia dominante” corresponde à forma dominante de propriedade. Porém, em Weber, movido pela ação do “individualismo metodológico”, é preciso que se destaque certa “psicologia da dominação”, ou seja, que haja uma “obediência total” ou “resignação absoluta do indivíduo” entregue à dominação: “Obediência significa, para nós, que a ação de quem obedece ocorre substancialmente como se este tivesse feito do conteúdo da ordem e em nome dela a máxima de sua conduta, e isso unicamente em virtude da relação formal de obediência, sem tomar em consideração a opinião própria sobre o valor ou desvalor da ordem como tal” (Weber, 1999, p. 140). Sem dúvida, todo e qualquer “subjetivismo” analítico e interpretativo, diante da ordem expressa e válida (regra), deve ser afastado de pronto e desconsiderado. Desse modo, a dominação deve produzir efeitos duradouros, trazendo influências para além da relação 247 Em Rousseau corresponderia a uma tomada de consciência (individual) acerca do corpo social. Nos mesmos moldes em que Parsons definia a aceitação dos grupos sociais (Cardoso, 1977). 249 Sem dúvida, há um clima de ameaça, o que decorre da coerção – como já dissera Durkheim (1999). 250 No capitalismo tanto é legítimo ser proprietário que a propriedade se tornou direito fundamental na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. 248 269 específica, para além da relação espaço-temporal estabelecida originalmente. Portanto, dominação é como sucumbir sem resistência à ordem legítima251. Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, mas Weber irá detalhar essas atribuições. Enfim, em Weber: Estado = amálgama sócio-político que tem o direito (na verdade, monopólio) de usar da coerção e da violência; contexto em que a lei positiva é a própria legitimidade legal. Em sentido complementar, pelo aferimento do contrato social, o homem abandonaria o estágio primitivo de sua organização social e aí passaria realmente a experimentar o sabor/dissabor político. Contemporaneamente, só há sentido em se falar da ordem jurídica que se constrói na esteira democrática e em que o Poder Político seja efetivamente legitimado (inclusive com a garantia constitucional de novos atores sociais, como legitimados legalmente). Este é o eixo básico do Estado sob a democracia. Estado Democrático de Direito Em Portugal, com a Revolução dos Cravos252, a primeira grande frente de luta popular contra a ditadura foi o movimento operário. A classe operária intervinha como vanguarda em toda a luta antifascista, em todo o processo popular em prol dos direitos e das garantias democráticas253. Note-se, enfim, que aqui popular é sinônimo de operário (ou de trabalhador, como se requer atualmente). É de fundamental importância reter essa imagem da gradativa constitucionalização dos direitos fundamentais, das garantias democráticas e das liberdades públicas, pois este é o fermento ou estopim do quadro institucional e jurídico do Estado Democrático de Direito. Para Paulo Napoleão Nogueira da Silva (2002, p. 28), trata-se de controlar o arbítrio governamental ou abuso de poder: O “Estado Democrático de Direito” ao qual alude a Constituição Federal brasileira, assim, é algo mais do que o simples “Estado Democrático”; destina-se a limitar o poder político, tornar em qualquer hipótese garantido o exercício dos direitos substanciais que consagra a todos os membros da sociedade, a tornar impossível o arbítrio governamental, e a tornar – tanto quanto possível, antecipadamente – previsíveis quaisquer consequências do exercício do seu poder pelos cidadãos, assim como as consequências dos atos do Poder Público genericamente considerado. No plano político-constitucional brasileiro, para além dessa importantíssima questão do controle do poder institucional254, temos que analisar a materialidade da justiça. Mais especificamente, temos a análise consagrada de José Afonso da Silva, para quem trata-se agora de um Estado Material de Direito. Tecnicamente, teríamos um “modelo jurídico-estatal” menos dogmático e menos injusto, ou o perfil de um Estado que pudesse colocar a dogmática a serviço da justiça social. Com isto em mente, citando e reinterpretando Verdú (2007), José Afonso da Silva ressalta que: Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade, integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. 251 A obediência à ordem ilegítima traz a tirania e, obviamente, não coaduna com a dominação consensual. Tendo o cravo vermelho como símbolo, fez-se essa revolução político-institucional a 25 de abril de 1974. 253 Para um breve histórico: http://www.utopia.com.br/cc25a/25abril/historico.html. 254 Já em destaque, diga-se de passagem, desde a fundação do Estado de Direito clássico: a) império da lei; b) direitos e garantias individuais; c) separação constitucional dos poderes. 252 270 O Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social (1991, p.102). Então, a partir da constatação de que as máximas e os dogmas do liberalismo eram insuficientes para regular a crescente diacronia social, surge o Estado Social primeiro na forma do Estado do Bem Estar Social. Aliás, essa dinâmica social deverá expandir as cortinas do Estado de Direito Liberal255: Mas ainda é insuficiente a concepção do Estado Social de Direito, ainda que, como Estado Material de Direito, revele um tipo de Estado que tende a criar uma situação de bem-estar geral que garanta o desenvolvimento da pessoa humana. Sua ambigüidade, porém, é manifesta. Primeiro, porque a palavra social está sujeita a várias interpretações. Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher uma concepção do Estado social de Direito, menos a ideologia marxista que não confunde o social com o socialista [...] Em segundo lugar, o importante não é o social qualificando o Estado, em lugar de qualificar o Direito. [...] a expressão Estado Social de Direito manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições da República Federal da Alemanha e da República Espanhola para chamá-lo Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o qualificativo social ligado a Estado, engastasse aquela tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State [...], delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista (Silva, 1991, p.102/103). O que nos leva à análise ou diagnóstico clássico de que apenas o social não qualifica legitimamente o direito quanto aos aspectos democráticos e humanitários. Aliás, um traço que ressaltado quando se analisa o fenômeno do nazismo e de alguns documentos que regularizaram a condição do detento e do preso sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Isto se deve ao fato de que tanto os Estados totalitários quanto a democracia liberal podem priorizar o social. O conceito de Estado Democrático de Direito, como forma estatal legitimada pela legalidade democrática e cidadania participativa é apenas uma síntese que precisa ser esmiuçada, mais especificamente a partir de seus pressupostos. Pressupostos Históricos e Conceituais 4. Estado de Direito: Divisão dos poderes; direitos individuais; império da lei. — legalidade (r)estrita 255 “a)submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representante do povo, mas do povo cidadão; b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantias dos direitos individuais”. (Silva, 1991, p. 100). 271 5. 6. Estado Constitucional: Direitos políticos; Iluminismo; contratualismo; individualismo. Estado Social: Democracia Social: princípio da dignidade da pessoa humana; direitos sociais e trabalhistas. 7. República e Federação: Predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade; legitimidade; salus publica - saneamento da estrutura do Estado (contas públicas) implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo. 8. Sociedade Democrática: Democracia Política - formalização e defesa das “regras do jogo”: a) predomínio da vontade da maioria, b) defesa das minorias, c) alternância no poder, d) sufrágio universal (coincide com uma dimensão do Estado Democrático). — legalidade democrática ampliada: deferência e consentimento à autoridade, e não autoritarismo ou simples culto ao poder. 9. Socialismo Democrático: Trata-se de uma forma de governo e de gestão da economia em que vige a Democracia Econômica, e em que imperam determinados elementos sociais, jurídicos e políticos com força imperiosa, tais como: constitucionalização dos direitos difusos e coletivos; inclusão social; distribuição de renda; socialização do consumo; socialização progressiva dos meios de produção (nacionalização e estatização do capital estrangeiro – diminuição do controle patronal sobre o fluxo econômico); socialização da renda da terra e/ou do lucro das empresas; respeito aos direitos e interesses dos trabalhadores; poder popular; mobilidade e dinamismo social; desenvolvimento tecnológico e econômico; elevação dos níveis de consciência pública (do egoísmo ao social, do privado ao público, do indivíduo à cidadania) – maturidade/embasamento lógico-racional da crítica social. O que exige atributos constitucionais na ordem da liberdade política. Elementos Para uma Definição Constitucional Elementos Gerais: Poder Judiciário Independente; imprensa livre; pluralismo social (ONGs, associações de bairro, sindicalização) e político (partidário); participação e envolvimento popular na luta pela conquista e pela manutenção das liberdades públicas; reconhecimento e defesa da integralidade dos direitos humanos; atuação firme do Estado no desenvolvimento social. A Democracia é entendida como um artefato perfectível: um instrumento de ação popular que busca a perfeição democrática. Portanto, a democracia é instrumental e processual – trata-se de um instrumental político que se aperfeiçoa conforme o uso e a checagem constante de sua validade. Poder Popular: incorporação real, efetiva do povo nos mecanismos de controle político e ideológico do Estado. Por fim, é preciso recordar que o Estado Democrático de Direito é uma elaboração teórico-constitucional que busca a edificação democrática do Estado. Sociedade Civil Organizada: só neste sentido é que a sociedade, hoje, seria capaz de requerer direitos com força suficiente e para redirecionar o Estado ao cumprimento dos preceitos constitucionais da justiça social e da igualdade real. Um fato agravante ainda a ser investigado é que vivemos numa sociedade civil massificada pelo consumo e por todo tipo de símbolos e de valores capitalistas 272 (hedonistas, egoístas, narcisistas). Porém, à diferença do comunismo, no Estado Socialista presume-se logicamente a existência e a atuação zeladora do Estado. Componentes Decisivos do Estado Socialista Império da lei; garantias individuais; universalidade da lei; uniformidade legal; controle popular do Estado; estímulo e respeito ao trabalho (o trabalho é a principal força motriz do processo civilizatório e humanizador); punição das infrações; responsabilização extensiva pela coisa pública; planejamento econômico. Definição legal: A teoria soviética do Estado estabelece como exigências fundamentais da legalidade socialista um quadro muito semelhante ao que temos mencionado aqui como próprias do Estado de Direito. Escreve, por exemplo, N.G. Alexandrov em 1959: ‘um traço fundamental da legalidade socialista consiste, antes de tudo, em assegurar a supremacia da lei em respeito a todas as decisões dos órgãos de administração e os órgãos judiciais e de instrução (Díaz, 1998, p. 138). Definição socialista: Voltando ao tema central, resume Alexandrov, os traços fundamentais da legalidade socialista são: direitos dos cidadãos, o caráter universal do cumprimento das leis, a constante vigilância estatal e o controle social do seu cumprimento, a uniformidade na interpretação e aplicação das leis, a análise correta e no seu devido tempo das queixas dos trabalhadores, a correção oportuna das infrações da lei e o caráter inelutável da responsabilidade que deriva dessas infrações (Díaz, 1998, p. 140). O Estado Democrático de Direito, entretanto, é capaz reunir elementos aparentemente conflitantes do liberalismo, da democracia e do socialismo, como se percebe em seus princípios mais gerais. Características Gerais - Princípios Da democracia formal à democracia real; desvelamento das ideologias predominantes; desenvolvimento tecnológico e econômico; reiterada constitucionalização dos direitos público-subjetivos; garantias institucionais e constitucionais da efetividade das políticas sociais, das políticas públicas {Estado Garante + Estado Juiz}. Estado Garante: passagem do binômio direito-dever (coerção) para direito-garantia (liberdades). Da liberdade negativa à liberdade positiva - humanismo democrático, humanismo de bem estar ou autonomia altruísta: Sem renunciar a este, sem retornar a ascetismos medievais, partindo disto, porém vendo uma verdadeira superação de ambos, o humanismo democrático aspira a ser, em compensação, um humanismo real e, por sua vez, mais fundamentalmente um humanismo de todos os homens. É sobre este humanismo que quer precisamente fundamentar-se o Estado Democrático de Direito (Díaz, 1998, p. 153). 273 Em certo sentido, quando se aplica a legalidade à própria funcionalidade do Estado, isto é, quando se notabiliza que o Estado assenta toda sua legitimidade a uma legalidade pressuposta (legitimada pela vontade geral), é possível auferir pela instituição do Estado-Juiz. Estado-Juiz O Estado-Juiz tem a responsabilidade de exercer o monopólio da jurisdição, que implica na ação soberana do Estado em desvendar e corrigir uma situação social conflituosa, de modo legítimo e condizente com os interesses globais, compondo e comandando de forma imperiosa e derradeira a litigiosidade entre seus jurisdicionados. Esse modelo de Estado apresenta vantagens, como: imparcialidade (burocracia); defesa dos direitos da sociedade (direitos difusos e coletivos); autoridade e capacidade de impor a decisão tomada pelo Estado (legalidade e legitimidade democrática). Desde a afirmação da tripartição dos poderes, na Europa Ocidental, o Estado-Juiz traz como elementos: o acesso à Justiça (democratização da Justiça); a lide (ajuizamento de uma demanda perante o Estado, em função de uma pretensão jurisdicional); a inércia (o juiz só age quando provocado pelas partes, ou pela negatividade: o direito não socorre a quem dorme); a substantividade (o próprio monopólio da função e da tutela jurisdicional que derivam da centralização do poder político: dizer o direito); a imparcialidade do juiz natural (quando se vê incapaz de ser imparcial, o próprio juiz deverá declarar sua incompetência para aquela ação); a definitividade (cabe ao Estado dar a palavra final às situações conflituosas, dizendo o remédio jurídico aplicável). Para o Brasil do século XXI, por sua vez, ainda cabem ressalvas que se fazia aos países em geral do assim chamado Terceiro Mundo. Para o Terceiro Mundo Erradicação da miséria e da pobreza (fome crônica); restrição de direitos ou penalização mais rigorosa contra aqueles que pratiquem ou estimulem formas de exclusão social, como manutenção de trabalho escravo, prostituição infantil e os chamados crimes do colarinho branco (corrupção política e institucional). Elevação urgente/urgentíssima de todos os níveis sociais, como: erradicação do analfabetismo; diminuição da natalidade e da mortalidade infantil; diminuição das desigualdades sociais e regionais. Elevação dos níveis de saúde pública e crescente escolarização. — o conhecimento revela, traz esclarecimento sobre a realidade e propicia maior autonomia, altruísmo e relações humano-societárias-republicanas: afastando o egoísmo, o individualismo. Desenvolvimento de todas as formas possíveis de inclusão: social, econômica, profissional, educacional, digital, política, cultural. Não importa a ordem em que se dê a inclusão, não há preferência por uma ou outra forma, mas importa sim que se produza inclusão em escala. Pois, por exemplo, a inclusão pelo trabalho deve melhorar os níveis de renda e de vida familiar, bem como a inclusão digital pode propiciar novas fontes de renda (inclusão econômica) e assim por diante. Superação do Capitalismo “A quem já tem – diz Hegel – é a quem mais se dá. Esta desigualdade da riqueza e da pobreza constitui – insiste Hegel – o maior esgarçamento da vontade social, e se transforma em rebelião e ódio” (Díaz, 1998, p. 156 – grifos nossos). Curioso notar que a consciência política anticapitalista, antes de Marx, já está em Hegel. No Capitalismo, a riqueza só produz pobreza. Pela lógica da acumulação, é incapaz de ser diferente. Assim, é necessário superar o sistema capitalista. O Estado de direito 274 democrático, português, teve essa pretensão, sem flertar ou soçobrar com os perigos do totalitarismo. No entanto, é preciso descartar completamente a ingenuidade de se acreditar que a mera modificação legal, do conjunto das leis seria suficiente para alterar ou transformar o sistema político e produtivo, ou seja, não podemos incorrer no erro de crer neste milagre já proposto pelo socialismo jurídico no passado e já denunciado por Engels (1991). Para Aprofundamento Conceitual-Institucional cidadania participativa – incremento dos meios de participação nos moldes da democracia direta (plebiscito, recall e veto popular, a exemplo dos EUA). socialismo democrático: deve-se afastar o “centralismo democrático” e o estatismo, próprios dos regimes comunistas de outrora. valorização de meios e recursos da chamada “democracia radical” (orçamento participativo; controle externo do Poder Judiciário). cidadania interativa: democracia virtual – utilização de recursos e meios virtuais (telemática) que aprofundem a participação popular, como: governo eletrônico, quiosques virtuais. Democratização dos meios de comunicação. Outra questão complementar refere-se à constante necessidade de revisão e atualização conceitual, uma vez que a construção jurídica (cultura e dogmática jurídica) se ater ao contexto de transformações sociais, políticas, culturais. Contexto e diferenciação atual Sociedade Civil massificada: da Sociedade Civil organizada, da Socialdemocracia à sociedade de massas. A globalização ameaça desintegrar toda a base de soberania que restava do antigo Estado-nação. Direitos Difusos e Coletivos: a produção em escala gerou um consumo na mesma ordem e, com isso, problemas sociais e técnicos da mesma dimensão. Inclusão: a ideia da inclusão social e econômica é recente, pois atende às necessidades do próprio sistema capitalista no Brasil. Ao incluir milhões de pessoas, o sistema eleva substancialmente o consumo, que estimula novo ritmo de produção e, com isso, eleva as taxas de juros. Esta inclusão também tende a diminuir a criminalidade. Enfim, é uma medida do capitalismo pragmático e não a não exatamente a construção de novas bases de solidariedade social. O ideal e a busca do socialismo democrático: não se trata de retomar as experiências do centralismo democrático, mas sim de fomentar novas formas de solidariedade social – diminuindo as mediações humano-societárias do capital. Esta que talvez seja a característica mais marcante e diferenciadora do Estado Democrático de Direito. No curso da realidade brasileira, no pós-CF/88, a relação entre Poder Político e Legitimidade sofreu com as muitas mudanças sociais, estruturais e com a depuração ou adaptação da Constituição Federal, após 25 anos. Por fim, cabe uma última observação ao denominado Poder Extroverso, como normalização do Poder Político, mas nem sempre impulsionado de acordo com a vontade geral. O Poder Extroverso como realidade da força política 275 O Estado se utiliza do monismo ou do monopólio da produção legislativa exatamente para impor, alegando as funções clássicas ou tradicionais do “Poder Extroverso”, com nítida arrogância instituída em nome de todos, um Direito que, em primeiro lugar, atende aos próprios interesses dos administradores do Estado (e não, democraticamente, dos administrados). Desse modo, não soa estranha a identificação, forjada entre Direito/Lei/Justiça, forçada pelo próprio Estado porque tem de passar a ideia (ideologicamente arranjada no/pelo Estado) de que o Poder Extroverso (impresso na/pela lei) não pode acarretar injustiças sociais: A identificação entre Direito e Lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis [...] Repare o leitor na arrogância com que todo governo mais decididamente autoritário repele a “contestação” (como se as remodelações institucionais não fossem uma proposta admissível e até parcialmente reconhecida em leis — no caso das emendas constitucionais, por exemplo); na pretensão do poder que, cedendo à “abertura” inevitável, quer, depois, controlar o diâmetro, a seu gosto; na irritação com que fala em “radicalismo” de toda oposição que ameace trocar, mesmo pelas urnas, o estado de coisas presente; nas “salvaguardas” com que pretende garantir o status quo (isto é, na estrutura implantada, os esquemas vigentes); na astúcia que procura separar os “confiáveis” (isto é, os grupos e pessoas que são vinho da mesma pipa) e os “não confiáveis” (isto é, os grupos e pessoas que propõem alguma forma de reestruturação social, mesmo quando o fazem com a recomendação de meios pacíficos) (Lyra Filho, 1999, p. 08-09). Assim, vemos ainda como em nome desse chamado Poder Extroverso, o Poder Político Absoluto (como Poder Total ou totalizante) tende a esvaziar o conteúdo propriamente político que deveria representar em função, em razão da soberania popular – sob pena dos interesses da própria Administração Pública sobreporem-se ao interesse público e à soberania popular, e, assim, sobreporem-se à legitimação democrática do Direito e da representação mínima dos interesses da República e do povo. Desse modo, vemos nesse abuso, nesse excesso de manifestação e de julgamento do Poder Extroverso, nada mais do que a manifestação ideológica, corporativa e interesseira dos gestores que se apoderam do aparelho de Estado como se formassem verdadeira classe social dominante: ao menos são predominantes de acordo com os interesses corporativos, e administrativamente falando representam os seus valores, os valores corporativos que serão apregoados como benéficos para toda a coisa pública. Sob o manto do Poder Extroverso também está o princípio da pacificação jurídico-social. Tivemos a oportunidade de grafar como um dos princípios instauradores do Estado de Direito este que: Estabeleceu a função estatal pacificadora (Jurisdição): poder do Estado de estabelecer e impor a Justiça; capacidade jurídica (institucional) do Estado em definir e decidir imperativamente, de impor decisões peremptórias (categóricas). 276 Portanto, essa tese atua como demonstração de uma dominação racional-burocrática corporativa e não racional-legal (como queria Max Weber). Neste caso, sob a dominação corporativa, a máquina administrativa e a burocracia estatal estão a serviço dos próprios interesses. A legitimação do uso da força física é uma das atribuições da Justiça que mais garantem as liberdades em face das ameaças ou dos ataques do Estado de (não)Direito. Dessa forma, fica claro que nesta articulação jurídica, Bobbio busca a preservação do monopólio do uso legítimo da força física, tal qual a definição clássica de Weber para as funções que são próprias ao Estado. A segurança do cidadão e do Estado deve ser levada a cabo com o uso moderado, regulado, definido (juridicamente) e de forma legítima (com aval do povo). É óbvio que tudo isso é discutível, mas esta é a visão clássica que se requer para a força política reinante no próprio Estado de Direito, ao menos desde Weber. Já o Estado de não-Direito aparece associado ao chamado poder oculto, às sombras: O máximo da corrupção corresponde ao máximo do segredo. O pagamento de um contrato regular deve ocorrer sob a luz do sol; o dinheiro dado ao corrupto é dado nas sombras. O contrato juridicamente legal é público; a relação de corrupção acontece em segredo. Mais os corruptos sentem-se protegidos dos olhares, mais sentem-se seguros para cumprir atos ilícitos (Bobbio, 2002, p. 111). Vimos como a escuridão do poder esconde a outra face do Estado de não-Direito, que é a corrupção pública: a privatização da República. Um problema extremamente grave tanto na Itália de Bobbio, quanto ao longo da história política no Brasil. Esse fator obscuro da corrupção do Poder também tem o efeito perverso de transformar as funções administrativas do Estado em mero abuso ou uso indevido da corporação. Poder Extroverso ou Usurpação Corporativa? Por fim, resta-nos dizer que além da produção classista do Direito, a serviço de um determinado interesse, privilegiando-o, em detrimento do interesse mais global, também entendemos que o antidireito é uma espécie de institucionalização da injustiça. A institucionalização da injustiça ocorre quando, por qualquer meio, o Estado pode/vê-se na condição de aplicar o Direito (utilizar-se da força institucional) contra alguns ou, então, para proteger uns poucos; de qualquer modo, sempre com claras intenções de produzir tratamento institucional desigual. Assim, o Estado de (não)Direito está posto a serviço dos interesses corporativos de uma fração de classe: os administradores públicos que atuam como gestores dos interesses pessoais, de seus grupos e da classe maior a que pertencem. Aliás, quando o próprio Estado impõe uma quarentena a seus ex-gestores, antes que se empreguem novamente na iniciativa privada, não estará reconhecendo exatamente isso? 277 LEGITIMAÇÃO DO ESTADO A legitimidade requerida ao Poder Político não é um item abordado nem na Declaração de Montevidéu (1933), nem na de Bogotá (1948), mas, em conjunto com a justificação (incluindo aí a aceitação político-ideológica e as instituições de direito), seriam requisitos de afirmação do Estado independente. De modo simples, ocorre que se o governo é veementemente checado, obstruído pela falta de legitimidade política interna, isto pode acirrar uma crise institucional de governabilidade e, no limite, levar ao questionamento interno do Poder Público e de sua soberania. Sendo assim, a ingovernabilidade se transforma em assunto de Estado – do maior interesse – e, portanto, tem assento na agenda política dos Estados. Trataremos da legitimação do Estado, mas inicialmente cabe investigar o que se pode entender genericamente por legitimação. O que é legitimação Veremos a justificação como critério que autoriza a existência do Estado e valida suas intervenções; o que supera, portanto, o critério de legalidade do próprio Estado. Por isso, logo de início é importante ter clareza quanto aos fatos políticos e ideológicos: o que autoriza a existência do Estado não é – ou pode não ser – o mesmo fundamento que virá autenticar sua funcionalidade. O Estado pode ter surgido em resposta à necessidade de organizar a segurança e os meios de sobrevivência a um grupo social (justificativa); porém, sua permanência, legitimando-se em termos de continuidade, dependerá de quanto essas necessidades forem satisfeitas e da sua capacidade de adequação a outros desafios e ao exercício político contínuo. A justificativa assinala o fim, o conjunto de objetivos para que se organize e centralize o Poder Político; enquanto a legitimidade coleciona os meios, os recursos, os instrumentos acionados a fim de que o Poder Político se mantenha estruturado. No senso hipotético da justiça, como diriam nossas esposas ou amigos(as): o Estado é legitimado pelo estabelecimento de um mínimo de igualdade formal e real, o cuidado e a proteção aos hipossuficientes, e a harmonia social em todos os seus aspectos. Sob o critério da governabilidade e da legitimidade, como requisitos de validação do aparato estatal, é crucial afirmar que o critério da valoração dos regimes políticos decorre da legitimidade. O problema crucial da política, porém, é o da legitimidade que se liga aos procedimentos e resultados. Daí que o regime político se identifica com a noção de Estado (status-stare = estar firme). De qualquer forma, porém, esta relação conceitual será tensa, porque: enquanto o Estado tem por característica a permanência; o governo é provisório. A estrutura do Estado é impessoal e o governo exerce provisoriamente o Poder Político, com inclinações pessoais, representativas de uma parte das concepções ideológicas (partidos políticos). Assim, será correto dizer que o governo faz parte do Estado, que é mais abrangente. De todo modo, é correto afirmar que o Estado se legitima com a ação producente, diligente do seu governo. A legitimação do Estado tem por desafio explicar e convencer as pessoas da existência legítima, necessária, apropriada do Estado e do Direito. Mas, por que obedecemos ao Estado e seguimos suas leis? Da avaliação à validação O que fundamenta a legitimidade, de certo modo, herdada por todos nós como critério de avaliação? Genericamente, pode-se dizer que seja a busca de felicidade, da justiça, do bem-estar social, da liberdade e igualdade, da paz social, da segurança individual e social (jurídica). O mais seguro é afirmar que o Estado é legítimo se é capaz de utilizar da própria razão de ser, da Razão de Estado, com a finalidade da pacificação social. Mas, nesse caso, a validação do Estado não decorre de uma avaliação negativa, ou seja, de que a sociedade incorre em um estado tal de 278 instabilidade que necessita urgentemente da presença reguladora, tutorial do Estado? (Doehring, 2008, p. 144). Primeiros passos Confunde-se justificativa com legitimação, mas há que se entender que toda justificação (como fundamentação) precede a explicação (legitimação). Caberia esta indagação: por que o Estado é necessário? A justificativa é uma argumentação baseada nos pressupostos, nos argumentos que solidificam as pretensões do Estado. Com vistas à legitimação, cabe perguntar: por que manteremos o Estado organizado desse modo ou com este fim? A justificativa é inicial e a legitimação é decorrente. O que justifica o Estado é a necessidade de uma organização do social a fim de que as forças políticas sejam exploradas de modo coletivo, como organização efetiva, e para que nenhuma das partes se insurja com energia maior do que o poder central que deveria representar todas as partes em disputa. O que legitima o poder central unificado é a necessidade de se manter a base legal do Estado – com a pretensão de que o Estado atue como poder legal; um Poder Político juridicamente organizado para atender à sociedade. Assim, pode-se ver uma correlação entre legalidade e legitimidade, sobretudo a partir da perspectiva de um complexo de relações sociais organizadas sistematicamente em uma unidade de poder e que seja passível de conversão em um conjunto de relações jurídicas ordenadas: o poder como unidade de ordenação. A legitimação está além da legalidade técnico-jurídica, necessitando de uma justificação moral. Esta legitimidade engendra poder, assim como o poder do Estado é tanto maior quanto mais forte é o reconhecimento voluntário prestado pelos cidadãos: “Só goza de autoridade aquele poder de Estado a que se reconhece que seu poder está autorizado” (Heller, 1998, p. 309). A autoridade do poder central até pode se basear na legalidade, contanto que se fundamente na legitimidade. Por sua vez, a legitimidade está baseada em critérios políticos relevantes – pelo prisma da Realpolitik –, sejam os critérios adotados pelo Estado para infundir as políticas públicas, sejam os critérios de motivação política adensados pelos cidadãos ao julgar o êxito ou o fracasso do Estado. Portanto, não deixa de haver uma relação entre Estado e Governo. A legitimação mais óbvia que se requer para o Estado decorre da argumentação de que devemos proteger valores integrais da vida comum do homem médio (segurança, liberdade) e instituições formativas (família), além de grupos sociais normativos, como os decorrentes das demais atividades sociais (trabalho, política, sindicalização). Isto ainda não incorpora em definitivo a presença e o desenvolvimento da ideia de que o Estado expressa o Poder Público – visto que, para este caso, será necessário que se produza um direito especial –, no entanto, o ato de vontade inaugural ou de consentimento posterior já terá sido dado. Isto é, se o Estado já se formou, o que assegurará sua existência e permanência, com um mínimo de aceitação, respeito institucional e cumprimento de sua designação normativa, social, produtiva, cultural? Há um momento – na série de fatos históricos – que desembocará na formação do Estado, como poder central, e há uma argumentação (lógica, jurídica, ideológica ou religiosa) ou imposição de meios (força física, dominação carismática – quase mágica do governante) que deve se seguir a este ato de vontade inaugural do aparato estatal. Muitos Estados têm no mito o elemento agregador das vontades individuais, todavia, será na racionalização do poder que encontrará forças para sobreviver. A primeira parte da equação se refere ao suposto pacto ou contrato social que daria fomento ao Estado (contrato político) e do qual ainda decorre um contrato jurídico (norma fundamental, poder constituinte, Constituição). A segunda parte do problema se refere à 279 legitimação essencial ao Poder Político unificado, seja pelo discurso de que o Estado é o único capaz de organizar a sociedade, operacionalizando-se o melhor desenvolvimento das habilidades e capacidades humanas, seja pela mera imposição da vontade do mais forte. De qualquer forma, na paz ou na conquista, o Estado precisa ser apresentado aos súditos ou cidadãos como algo necessário, oportuno e as pessoas precisam acreditar piamente nisso, a ponto de abrirem mão de direitos fundamentais (a liberdade em tempos de paz) e a vida (durante a guerra, defendendo exatamente este Estado). Em suma, a legitimação do Estado trata da justificativa (como desculpa necessária) acerca da urgência e relevância de sua existência. Neste sentido, o Estado Legítimo é aquele que não admite a existência de facções políticas internas que rivalizem com o próprio Estado. O Estado é necessário ao funcionamento da sociedade A legitimação do exercício da dominação do Estado, como requisição do ordenamento jurídico, estabelece como tarefa política a promulgação de normas jurídicas vinculantes para outros homens. Para estabelecer regras jurídicas que estabeleçam limitações aos interesses dos indivíduos e ser cumprido neste dispositivo, sem dúvida, é preciso que haja disposição para ser dominado, limitado nas ações. Esta chamada “dominação suprafamiliar” não é legítima em si e a disposição para ser cumprida precisa ser “fabricada”. A dominação é fabricada, efetivamente, e nos resta saber se será efetiva, porque decorre de uma construção política. O Estado não nasce de um contrato social inevitável, como se fosse um ato único, pois desenvolve-se progressivamente de baixo para cima. As relações de poder se estabelecem porque os homens tornam-se dependentes um dos outros. Esta falibilidade humana leva ao Estado, mas o Estado será controlado a fim de que o poder seja justificado. A divisão em funções e órgãos coincide com este objetivo. Assim, o Estado racionaliza o poder – para atender a necessidade de se justificar – e a justiça corrige o próprio Estado. É importante que no interior da sociedade o poder seja distribuído e ordenado para que as pessoas que exercem o poder sejam controladas por elas mesmas. Para esta corrente do funcionalismo institucional, o Estado resulta da divisão social do trabalho e da interdependência entre os homens: “O Estado deve garantir que o poder existente seja exercido racionalmente, quer dizer, de acordo com a justiça, ele deve racionalizar o poder” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 85). Nesta linha também racionalista, o Estado é resultado da socialização do homem, de sua capacidade de organização e do sentido comunitário. Em suma, como parte do processo civilizatório, trata-se do Estado Racional (Weber, 1985). A dominação estatal também deriva de um contrato original fictício, como se decorresse de uma norma fundamental. De todo modo, o Estado se formou para o livre desenvolvimento; é difícil imaginar que o Estado tenha sido gerado para produzir o Mal. Mesmo a crítica marxista verá no Estado um Mal porque atua como instrumental de opressão/espoliação utilizado ditatorialmente pela burguesia como classe dominante (Engels, 1984). Em todo caso, há uma distância entre nascer mal e ser usado para o Mal. A crítica que se pode fazer é só no sentido de que há uma espécie de recurso político latente, inerente, como zoon politikón, até mesmo como se esperássemos por um tipo de Estado latente ou em potencial, gestacional. Agora, assegurar que o germe do Estado está na família é certamente um exagero, pois nem todo aglomerado de tribos ou famílias – por maiores que sejam ou que tenham sido – irá dar lugar a algum Estado. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, na trilogia proposta por Engels (1984), estaria em desacordo com a Antropologia Política. 280 Por isso também, a legitimação do Estado ocorre com o reconhecimento popular e que autoriza o exercício do poder. Considera-se, portanto, que a comunidade deve ser guiada por leis comuns, como se fosse um sentimento comunitário. A sociedade precisa ser/estar convencida de que o poder está sendo exercido para o seu bem: o Estado não pode figurar apenas como ideologia ou projeto de poder, uma vez que acabaria confundido com o governo. No Estado Legítimo, a obediência consentida é básica, não porque se teme as sanções, mas sim porque se considera a obrigação de obedecer disposições legítimas, moralmente defensáveis. Na história da Humanidade, o direito e a justiça antecedem ao Estado: “Há princípios jurídicos elementares, reconhecidos por todos os povos, que não podem ser violados nem mesmo pelo soberano [...] Assim, o soberano não está acima do direito, mas inserido no direito” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 89). Ao formular o ordenamento jurídico, nem o Estado nem o soberano podem violar os princípios gerais reconhecidos. Esta seria, inclusive, uma das garantias de que a soberania não seria transformada em tirania da maioria. Tanto o soberano quanto o Estado (na verdade, trata-se da mesma realidade) devem observar sempre e de maneira geral os princípios jurídicos racionais e justificáveis. A dominação do Estado será legítima se for explicada racionalmente, se for justificável pela razão. Como Princípio de Autoridade, o Estado tem de ser crível; mais do que verossímil. A razão, portanto, para o funcionalismo jurídico (iluminista) é determinante. O abuso do Estado, quando confrontado à razão, autoriza a perda do direito de governar: um governo irracional, não-razoável, não é digno dos homens. Já liberto da ignorância, o homem moderno sabe perfeitamente o que é e para que serve o poder. A capacidade de aprendizado dos governados condiz com a necessidade de se corrigir constantemente a efetividade do Poder Político. Neste sentido, a justificação do Estado é uma constante que decorre de uma maior adequação do poder aos anseios sociais, isto é, a legitimação advém da justificação do poder obtida em conformidade com as relações sociais; também por isso, o poder é uma relação social: “O Estado diferencia-se de uma quadrilha de ladrões pelo fato de que deve administrar, no interesse dos homens, a parte de autonomia humana que lhe foi confiada” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 90-91) A legitimidade é uma ficção política e jurídica Uma forma típica de se entender a legitimação do Poder Político é a partir da própria consciência com que pautamos a produção/existência do direito positivo como marco na vida civil da imensa maioria das pessoas. O Estado é uma abstração jurídica – tal qual é o direito uma ficção256 – que decorre de uma realidade política efetiva. Diante da necessidade de se organizar politicamente uma realidade social prévia, criou-se a abstração jurídica (a ideia) de que seguindo as regras a vida comum seria mais fácil. Neste sentido, a legitimação a partir da norma fundamental proposta por Kelsen ganha destaque: A norma fundamental tem numa teoria normativa do Direito a mesma função que a soberania numa teoria política ou, caso se queira, potestativa do direito: tem a função de fechar o sistema [...] Enquanto o poder soberano é o poder dos poderes, a norma fundamental é a norma das normas [...] o tema kelseniano da norma fundamental é perfeitamente simétrico ao tradicional do poder soberano [...] Exemplificando, para a teoria normativa é a norma fundamental que institui o poder de produzir normas jurídicas válidas num determinado território e em relação a uma 256 O direito existe porque acreditamos que assim é melhor e que sem o direito as regras sociais poderiam ser fragilizadas na coordenação da vida comum do homem médio. 281 determinada população. Para a teoria política, é o poder constituinte que cria um conjunto de normas capazes de vincular o comportamento dos órgãos do Estado e, em segunda instância, dos cidadãos (Bobbio, 2008, p. 210-211). A norma fundamental é potestativa (potestas, poder) do direito porque lhe confere força, combustível para se tornar realidade, para intervir com eficácia; além disso, como visto, tem a função de fechar o sistema, dar contornos de reconhecimento ao que é legítimo, reivindicativo e por vezes limitativo. Se a norma fundamental é a norma que não precisa de justificação, a própria justificativa para a legitimação do Estado é fictícia, quase uma lenda. Acreditar, creditar, dar credibilidade ao Estado, à soberania, ao direito é o que asseguraria sua efetividade, ou seja, a realidade política e jurídica do Estado e do Direito decorre da aceitação de que a ficção jurídica – a crença no direito – é melhor, mais acertada à condução das relações políticas. De tal modo que o Estado e o direito existem, são eficazes, porque acreditamos em sua existência. O Estado é uma razão que se fia na convicção, crença; o Estado é uma concretude política construída sobre uma ficção jurídica. De nossa crença, a ficção do direito se torna realidade. Da ficção jurídica de que o caminho do direito é o mais correto, o mais adequado, ou seja, o único caminho a seguir, decorre a própria ideia de poder reinante no Estado de Direito257. Portanto, trata-se de um ato de boa-fé que assegura a existência do Estado e a efetividade do direito ou, em sua ausência e descrença, o que incrementa o surgimento de formas sociais proto-jurídicas, como o crime organizado e o chamado Estado Paralelo. Como racionalidade do Poder Político, a justificação do Estado está em garantir que a razão regulamente a vida comum e as relações políticas: a Razão de Estado. Em outro exemplo concreto, pode-se dizer que o Estado como Poder Público confere fé pública a seus órgãos e servidores – como pretensão de legitimidade – para agir de acordo com o melhor interesse público. Assim, a fé pública é uma atribuição conferida pelo Estado a fim de se manter a atuação dentro de níveis de credibilidade adequados. A fé pública é uma espécie de longa manus, em que o próprio Estado se vê representar, atribuindo-se, portanto, direitos e deveres inerentes a esta função pública que é derivada, mas própria, do poder central. O servidor deve agir de acordo com o interesse público e suas ações – como reflexo da fé pública – deverão espelhar o que o “soberano/Estado dirá” ser o mais adequado para aquela situação. Com a fé pública ainda se atesta a veracidade, a autenticidade, a confiabilidade das informações ofertadas e dos documentados produzidos. A fé pública atribuída ao Poder Político é a chancela de que o Estado propugna agir bem, como ente racional. A fé pública não é mitológica, é racional, nascida das necessidades de auto regulação e de padronização das ações públicas. A Razão de Estado, sob este prisma, é um ato de fé, sem dúvida, mas como fé pública construída sobre as bases da razão. A fé pública, como derivação da Razão de Estado, é parte da razão cartesiana do poder. Não deixa de ser curioso, irônico (uma ironia jurídica), o fato de que o positivismo esteja pautado em uma crença, no subjetivismo, na convicção de que o direito (como ficção) será realidade se acreditarmos na primazia da norma fundamental e na soberania do Poder Político: 257 Quantos bilhões de pessoas mantém essa crença no Estado e no direito? Quantas pessoas são descrentes do Estado e do direito porque essas ficções político-jurídicas não estão presentes em seu dia a dia? Tanto é verdade que, no caso concreto, para se instalar uma unidade da política pacificadora, no Estado do Rio de Janeiro, os policiais fincaram uma bandeira nacional, como se dissessem: “A partir de agora, acreditem, o Estado brasileiro será parte da realidade de todos. <Retomamos o território perdido!>”. 282 tão supremo que não admite superlativos. Na vida prática, não será difícil verificar que, para muitas pessoas, o Estado é uma ironia política e jurídica. Em todo caso, é uma ficção jurídica que se confirma pela incidência da razão prática e isso atesta legitimidade ao Estado e ao direito – não obstante o fato de que, nesse panorama, a legitimação do Estado seja um problema não resolvido em toda a sua complexidade. Teoria culturalista do Estado Em termos de funcionalidade, o Estado é menos poder de império e mais poder de decisão. Veja-se que nas últimas décadas do século XX surgiram a teoria cibernética (sistema de auto-regulação), o tecnicismo neopositivista e a teoria dos modelos. O que sugere um Estado Cibernético. Mas, mesmo sob a avalanche de concepções estatais funcionalistas, organicistas, neopositivistas, pode-se assegurar que o Estado e seus direitos formam realidades distintas que se comunicam e se distanciam, mas que são realidades culturais que se entrecruzam na linha do tempo. O direito é tomado em contato direto com as relações sociais, uma vez que o direito não se limita a preceito normativo ou como mera coordenação de normas reguladas e expelidas pelo Estado. Quando se diz que o direito é norma, diz-se apenas como ele surge, quais são as técnicas empregadas ou como está o sucesso ou recesso da consciência coletiva. O direito não é produto da mente, nem extensor de princípios axiomáticos; o direito é um organismo vivo com história: direito é norma, mas não apenas norma positiva. O direito é norma eivada de cultura e decorre da seiva socializada pelas criações humanas. Quando se diz que o Estado é norma, esvazia-se de conteúdo, de ação, de razão prática, da própria existência como poder; portanto, desautoriza-se a requisição material de que o Estado deve ser legitimado no mundo da vida e diante das demais instituições que conformam determinada sociedade. O Estado é um organismo com história e o governo é apenas uma de suas atribuições. O Estado não é mera técnica de resultados e, assim, sua legitimidade exige mais do que a descrição das conexões e funcionalidades do poder administrativo. Para a justificação do Estado é preciso considerar o momento normativo, porque não se pode ser indiferente ao conteúdo das valorações (e das validações, como os critérios utilizados para a autorização moral para o próprio Estado existir). Até porque, as valorações suportam e efetivam o aparato do poder e ao mesmo tempo é a excelência do homem. Por outro lado, a conotação axiológica (a Ideia de que o Estado é Absoluto) ou a visão estritamente teleológica (realização dos fins sociais) não são suficientes e mesmo que tais valores sejam reconhecidos racionalmente como fonte de sua conduta. Contudo, apenas como relação hierárquica de normas, o Estado se esvazia da própria justificação, da realidade fática e da valoração axiológica, simbólica e ideológica e que precisam ser explicadas, justificadas para serem aceitas e empregadas. Desse modo, o que explica e garante o Estado NÃO é apenas o poder; NÃO é o fim da convivência; NÃO é o ordenamento jurídico. O Estado encontra legitimidade na orquestração entre fato/valor/norma. Neste sentido, o Estado se expressa por um sistema normativo obtido a partir do nexo de complementariedade entre fato (poder) e valor (os próprios critérios de justificação): “...atualização dos valores comunitários por intermédio do Poder, e da legitimação concomitante do Poder graças à atualização dos valores vividos pela comunidade” (Reale, 2000, p. 375-6). O Estado se legitima em torno dessa unidade sistemática (sistêmica: como um sistema entre Estado, Sociedade e Direito), devendo-se pensar a razão de ser do Estado como assentada numa unidade coerente de co-implicação ou complementariedade. Isto ainda condiz com sua realidade histórico-cultural e com a compreensão dos fatos enquanto normatividade 283 referente a valores. A legitimação do poder, nesses termos, refere-se a relações entre autoridade e obediência, com vista a fins comuns – como uma conexão entre: a) Relações de autoridade: o poder precisa ser de fato, mas igualmente requer explicações lógicas. b) Subordinação a fins: a própria atribuição de fins irá determinar o quanto o Estado está próximo ou distante das metas, promessas e critérios de aprovação. c) Estabilidade e regularidade administrativa: em parte, os critérios de aprovação são também critérios de validação. Entretanto, é necessário remeter ao elemento normativo, à regra de direito aplicada pela Administração Pública a fim de que o Poder Político seja compreendido em sua função. Por fim, para que o Estado melhor se legitime, não é demais esperar pela execução das funções precípuas, inerentes a todo Estado. Isto porque o Estado tanto mais se autoriza, quanto mais próximo da realização efetiva de suas principais funções/atribuições. Sumariamente definidas como funções do Estado: 1. Legislar O Legislativo é o responsável pela formalização do direito, enquanto poder que oficializa, formaliza, institucionaliza o direito vivo, aquele experimentado em primeiro lugar na origem social258. 2. Resolver litígios O Judiciário interpreta e aplica o direito previamente definido, estipulado, escrito de acordo com a vontade soberana (mas, nem sempre em sintonia com a aspiração social). 3. Administrar o Executivo organiza e garante meios de operacionalização aos órgãos públicos, como extensores do poder central, portadores da fé pública que secreta a soberania institucional, mas também para se converterem em serviços públicos que legitimem a atividade estatal. 4. Representar a Nação a Diplomacia é a continuação da atividade política no âmbito externo. Portanto, a Diplomacia atua como extensão da soberania, uma vez que referenda o poder central mediante o reconhecimento externo e de acordo com o direito internacional. 5. Defender a Nação o papel institucional reservado às Forças Armadas não é mais o atuar como mecanismo de controle social, como outrora na ditadura militar. 6. Manter a Ordem Pública a ideia de ordem pública suplanta a preservação da propriedade privada, sendo essencial a dignidade humana. Em todo caso, a polícia vem da Pólis, como politia. 7. Organizar a Vida Coletiva é necessário debater as formas de governo, na procura do melhor meio de se administrar o bem público. A lei como substrato da legitimidade Quer seja como ideário político, pessoal ou amplamente ideológico, quer seja como objetividade jurídica, a legitimidade depende da aferição valorativa quanto à relação entre as proposições e programas frente à efetividade das ações políticas. Neste sentido, mesmo sob a base valorativa, a razão prática será um item objetivo da avaliação. E assim a própria legalidade poderá ser um critério de atribuição de legitimidade ao Estado; um Estado que segue leis 258 Senado: garante o equilíbrio da federação: é um órgão de representação do Estado e não do povo - há três Senadores, para cada Estado. A Câmara Federal representa o povo brasileiro distribuído pelos Estados. Por exemplo, os senadores paulistas representam os interesses do Estado de São Paulo e os deputados federais de São Paulo representam o povo de São Paulo — que não é necessariamente paulista. 284 (consideradas legítimas pelo seu povo) é a encarnação do Governo das Leis. O poder legal, definido pelo domínio de critérios formais, técnicos e jurídicos, é suporte da legitimidade política. A legalidade procura estabelecer regras claras e duradouras, como obras da razão, a fim de que sejam normas jurídicas razoáveis, lógicas, coerentes – de acordo com um estado geral de confiança – para dissipar o sentimento de intranquilidade, dúvida, desconfiança e sujeição. Neste que seria o Governo das Leis. E não será mais legítimo o Governo das Leis, preferível, então, ao Governo dos Homens? Em suma, legalidade e legitimidade traçam a linha de acomodação do poder ao direito que o regula, como poder legal em harmonia com os postulados jurídicos. Com o que se vê no direito legítimo a própria crença, a ficção jurídica posta a serviço da Sociedade: “A legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração” (Bonavides, 2012, p. 121 – grifos nossos). Portanto, a legitimidade – ainda que acrescida da valoração pessoal – é muito mais do que um teorema do poder. A legitimação do poder não é um penduricalho da democracia, é a essência de todo o poder consentido. Sem legitimidade, o poder pode até se prolongar, mas será defenestrado no primeiro sinal de fraqueza. Em outras formas de exercício do poder, uma fraqueza até moral do dirigente, pode ser corrigida, contornada, mas em regime político ilegítimo a menor mentira do poder terá força de reconvenção de todo o pacto jurídico. Até a mais cruel forma política derivada da mais implacável divisão social do trabalho terá de ter bases de acomodação/legitimação políticas, morais e jurídicas que ultrapassem a repressão e o uso da força física. Por fim, há algumas distinções de forma e de conteúdo que devem ser refeitas: 1) A legalidade é mais uma questão de forma; a legitimidade é uma questão de fundo, mais substancial. 2) A legitimidade é uma noção ideológica; a legalidade, noção jurídica. 3) A legalidade forja um conceito formal; a legitimidade força um conceito material (Bonavides, 2012). Isto recoloca a legitimidade diante da necessidade e da finalidade do Poder Político. Especialmente quando tomamos o Estado como o instrumento máximo de institucionalização de todo o Poder Político. Ou seja, qual a finalidade do Poder Político? 285 FINALIDADE DO PODER PÚBLICO E TELEOLOGIA POLÍTICA A teoria finalista nos apresenta os fins do Estado de forma diversificada: manutenção do poder; segurança pública; preservação da liberdade individual; coesão social; pacificação social; ordem e progresso; governo independente; estabilidade social e econômica; promoção da dignidade da pessoa humana; capacidade de organização; unidade política e ordem jurídica estável. A finalidade do Estado que se entendia restrita à segurança pública foi totalmente modificada e substituída política e juridicamente pela chamada Defesa Social – e isto inclui a convivência social acima da proteção do Estado259. O Estado Gendarme, lastreado pelo jus puniendi foi gradativamente ordenado, controlado pelo direito, pela capacidade de racionalização e de normatização dos atos de poder. Na antiguidade clássica, sob uma determinada Filosofia do Estado, a finalidade do Estado era traçada em termos de um ideal político. Para Aristóteles, o Estado se definia como uma “multidão de partes ou a “universalidade dos cidadãos”: “Portanto, o que constitui propriamente o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de voto nas Assembleias e de participação no exercício do poder público em sua pátria” (Aristóteles, 1991, p. 36 – grifos nossos). Para Aristóteles, a finalidade do Estado não era a perseguição política, mas sim a Pólis: o Estado também não tinha o sentido de status ou poder estável, como em Maquiavel. Pode-se dizer, metaforicamente, que Aristóteles já se indagava sobre a Razão de Estado, ao diferenciar o Chefe da República do chefe de família — organizar o Estado não era o mesmo que cuidar de uma família numerosa. O grego vivia a totalidade de sua Cidade-Estado, pois fora dos limites geográficos, físicos de seu Estado já não seria cidadão. Portanto, na antiguidade, o território era contínuo e contíguo ao direito de pertencimento ao Estado, onde terminava o território terminava a soberania e a cidadania (vale dizer, fora daí não havia direito). Ou seja, o território deveria ter uma contiguidade em termos de espaço físico, não se admitindo por falta de lógica que o Estado terminasse aqui, para continuar ali. No passado remoto e no presente, entretanto, o Bem Público seria sempre o objetivo do Estado. Excluindo-se a interpretação marxista, de que o Estado atende a interesses de classe e se preta à opressão social, o Bem Público é tido como objetivo fixo pela teoria finalista. Entre meios e fins Em todo caso, politicamente, cabe indagar, o Estado é um meio ou fim em si mesmo? O Estado serve à paz social ou só atua para preservar a propriedade privada? O homem serve-se do Estado, para sua segurança, ou o homem serve à Razão de Estado? Juridicamente, “o Estado tem fins, não é um fim” (Azambuja, 2001, p. 122 – grifos nossos). Esta compreensão é fundamental para se saber que o benefício público pode ter no Estado um meio ou recurso valioso para sua operacionalidade, mas este pensamento não autoriza uma idolatria, uma estatolatria (ainda que esta também seja uma concepção estatal bastante arraigada na traição da Teoria Política). A finalidade do Estado é uma constante, não se modifica abruptamente – há muito mais permanência do que mudança em suas atribuições –; o que se modifica mais rapidamente é sua competência, como espécie de atividade, os meios empregados e os objetos tomados para este fim. Portanto, a competência é a atividade do Estado que se reflete como exercício do poder e tendente a executar o Bem Público260. Para este fim, deve o Estado utilizar da prestação de certos serviços públicos e assim é de sua competência mobilizar ações para alcançar os fins de interesse 259 260 Ultrapassando, evidentemente, o próprio objeto da Lei de Segurança Nacional. A rigor, nem mesmo o Estado mais autocrático e injusto dirá que seu objetivo não é o Bem Público. 286 comum. O Bem Público há que se entender como missão do Estado, mas é tarefa de todo indivíduo, como obrigação moral e política. Seja como obrigação negativa (de não-fazer), de não-substituir ou prejudicar o direito individual, seja como obrigação positiva (de fazer) e consolidar os direitos sociais, o Estado deve expressar com clareza a finalidade maior de sua administração. Em boa medida, equacionar os conflitos de interesse determina alcançar ou não esta finalidade. Interna e externamente, estão em choque elementos materiais e morais na determinação da finalidade do Estado, como a segurança pública frente à liberdade, e a prosperidade econômica frente à preservação ambiental. A finalidade poderia ser reduzida como em nossa bandeira nacional: “Tal é sua dupla função: 1º Proteção: é a função de justiça de que é o guardião: Custos justi; é missão tutelar. 2º Assistência: é a função de utilidade pública, sua missão civilizadora” (Azambuja, 2001, p. 127). Já quando se interpreta a Finalidade do Estado, como competência, resta a questão – O que fazer? Para a teoria absenteísta, o Estado Gendarme não-deve fazer, deve deixar o máximo de espaço aos indivíduos. Na concepção socialista, o Bem Público está em defender o indivíduo da sanha do capital, dever-de-se-fazer às vezes do cidadão indefeso. Para a teoria eclética do Bem Público, trata-se de ensinar e ajudar a fazer. Neste sentido, o Estado teria uma competência supletiva. Por isso, o Estado nunca deve suprimir o direito individual, para definir o Bem Público, mas suprir as necessidades mais gerais e deslegitimar, em compensação, as regras do egoísmo, do individualismo exacerbado e do consumismo. O governo realiza a soberania Ao contrário da soberania, alguns autores preferem nomear o governo como elemento de formação do Estado. Neste caso, a finalidade, o fim comum, o elemento espiritual de formação do Estado é de ordem teleológica. O governo é o elemento diretor, como aparelho de mando e de coerção mantido pelo Estado. Para Pedro Calmon – citado por Menezes (1998) – metafisicamente, governo é a vontade de realizar os fins do Estado e, positivamente, é o conjunto de instituições que permitem a governança. Sob o controle do direito, o governo exercita a soberania do Estado. O governo resulta de uma quotização de vontades. Se, inicialmente, o governo decorria do instinto, hoje é fruto do instituto da razão que move o direito; atuando como “investidura num mandato” ou “representação de conteúdo legal”. Como órgão de autoridade, o governo revela a soberania do Estado. Por isso, o governo independente é a expressão diretora que se impõe soberanamente. Objetivos materiais e morais do Estado Para alguns Estados, o objetivo fundamental é garantir a sobrevivência e por isso admitese que seja absorvido por outro que lhe é muito superior (Porto Rico); para outros, trata-se da luta pela descolonização a tarefa precípua do Estado frente a seu povo (Timor Leste). No âmbito do Estado Moderno, sobretudo contemporaneamente, não há necessidade de que o território seja contínuo para ser considerado como um “todo” que faz parte do Estado: são exemplos de descontinuidade Alaska, Hawaí261, Ilhas Malvinas262, Porto Rico263. De todo modo, 261 Em 1894 o arquipélago do Hawaí tornou-se República, mas em 1898 foi invadido militarmente pelos EUA e em 1990 foi anexado como território em definitivo. 262 Em 1765 o britânico John Byron firmou uma base em Egmont (Malvina/Falkland Ocidental). Em 1833 a fragata britânica HMS Clio retomaria a posse das ilhas. A colonizaçao das ilhas se daria com escoceses, galeses e irlandeses. Em 1982, o governo argentino requereu militarmente a retomada do território, na Guerra das Malvinas. 263 Em 1917, os porto-riquenhos se tornaram cidadãos americanos. Porto Rico é parte integrante do território dos EUA, o 51º Estado, e não tem personalidade jurídica. O território foi conquistado em 1493 pela Espanha e em 1898 foi cedido aos EUA. Sob o status de Estado Livre Associado, a partir de 2012, por meio de um referendo, Porto Rico tornou-se parte integral do território dos Estados Unidos. 287 o reconhecimento se torna um elemento constitutivo e de legitimação da soberania sobre o poder de império exercido em seu território, como no caso de Timor Leste 264 e da Palestina265. No caso de Timor Leste, o objetivo ou finalidade da constituição daquele determinado Estado era a descolonização e a proclamação de sua independência política. A independência e a descolonização são parte constitutiva das finalidades do Estado que se quer erigir por uma razão clara, porque sem a libertação do povo não há autonomia, quanto mais soberania. O que reforça, uma vez mais, a necessidade de se pontuar a finalidade como componente do Estado266. Historicamente, o fortalecimento do Estado como recurso de direito (como atividade humana racional que não promulga o Mal), e não só de poder, foi possível apenas com a determinação de certos objetivos éticos; em suma, a promoção da vida humana (e social) com dignidade. Por sua vez, este preceito ético – lógico (uma vez que não poderíamos criar algo tão forte para o nosso Mal) – não se confunde com a objetivação de algum tipo de Estado Ético: “Somente no e por meio do Estado o homem poderá se realizar, o que, então, deve ser entendido como fim precípuo do Estado” (Doehring, 2008, p. 144 – grifos nossos). Aliás, esta conjugação de poder acabou por se revelar como antidireito – e como antidireito não poderia justificar ou legitimar o Estado267. Para Maquiavel, o fato mais notório referente ao Poder Político, como dominação, é o fato de que a Razão de Estado está baseada no poder predominante, com um sentido de unidade e de permanência das instituições (um sentimento popular de pertencimento) como segurança à própria conquista e manutenção do poder centralizado. Portanto, não foi por acaso que Maquiavel retomava a Roma como exemplar: um Império de mil anos. Este poder deve ser soberano. Nesta lógica pagã que justifica e estabelece os fins do Estado, pode-se usar da força, da violência, mas não quebrar o contrato firmado com os súditos: “O príncipe pode/deve ser violento, mas não deve fraudar suas próprias leis” (Maquiavel, 1979). Com Cícero, elevando-se o Estado à condição de idealidade presente no espírito público, os fundamentos da República estão no consentimento jurídico e na utilidade comum: 1. Para governar, é preciso estudar sem descanso, trabalhar sem trégua, ser um espelho aberto. 2. A República é uma sociedade de homens formada pelo império do direito (Cícero, s/d). 264 Em 1945 a administração portuguesa foi retomada em Timor. Pela Resolução 1514 (XV), de 1960, a ONU considerou o Timor Português como território não-autônomo e assim foi mantido sob administração Portuguesa. Porém, em 1975 o Timor-Leste foi ocupado por forças militares da Indonésia. Já em 1999, os timorenses votaram pela independência, no entanto, o resultado do referendo gerou outros conflitos. Esse confronto só foi resolvido com a Missão das Nações Unidas de Apoio no Timor-Leste. Por fim, em 2002 a independência de Timor-Leste foi restaurada e se formou o primeiro Governo Constitucional de Timor-Leste. 265 O Estado da Palestina foi proclamado em 1988, sob o comando de Yasser Arafat, e atualmente é reconhecido como Estado Soberano por mais: o que reforça a teoria do reconhecimento. Os palestinos controlam apenas a Faixa de Gaza e reivindicam a soberania territorial. Em 2012, a ONU atribui-lhe o estatuto de Estado Observador nãoMembro. A resolução A/67/L.28, sobre o estatuto da Palestina, recebeu 138 votos favoráveis. 266 Outro exemplo bastante evidente desse argumento é perceptível na análise que possamos fazer de um Estado como o Irã. O que era e o que se tornou, depois da Revolução Muçulmana, quando se modificaram radicalmente as finalidades do Estado? O que se propagou como forma de vida social, após a revolução, com o fim do Estado Laico e o que se proibiu totalmente? 267 Como exemplo, o nazismo “justificou-se” substituindo valores como do próprio direito, a virtude da moral, por outros fins determinados pela etnia, sangue e território. De todo modo, é evidente como a validação decorre da avaliação perpetrada e esta implica na definição de critérios mais ou menos claros, sejam éticos ou com fundamento no antidireito. O nazismo não demarcou os objetivos do Reich, como construção estatal, marcados na verdade, na virtude, na moral transcendental, mas sim na raça, no sangue, no código da morte, no sangue que fertilizaria o território. 288 Desse modo, a razão aplicada à política levaria à condição de que o fim do Estado é a justiça. Para Marsílio de Pádua, o Estado deveria propugnar pela paz mundial. Porém, se o “homem é lobo do homem” (Hobbes), o Estado deve ser organizado como técnica de poder que domine os anseios egocêntricos. Para Locke, o Estado seria necessário para se superar a condição primitiva e para garantir a fruição dos direitos individuais. Com Montesquieu, a divisão dos poderes surge como recurso de limitação à própria concentração do poder. Em Rousseau, o ideal presente na prescrição da finalidade do Estado é garantir a liberdade no interior da coletividade: o objetivo do Estado é assegurar a “vontade geral”. Para Kant, o Estado deve defender a liberdade, mas sob firmes mandamentos/fundamentos morais, observando-se uma consonância entre liberdade e subordinação. Os fins do Estado devem ser imperativos e categóricos. Para algumas correntes do pensamento socialista/marxista, o ethos do Estado atual está em subordinar o interesse privado ao interesse público (Doehring, 2008). Em termos nacionais, basta-nos pensar no fim proposto pela ditadura militar de 1964 e no Estado Democrático de Direito, entreaberto com a CF/88. De lá para cá, a sociedade assegurouse direitos e instrumentos eficazes para se defender do Estado, a começar pela definição democrática dos fins do Estado brasileiro. A doutrina brasileira, em geral, desde seus momentos iniciais, até os mais contemporâneos, associa a finalidade à concepção contratualista na origem dos pressupostos do Estado. A finalidade decorreria da aprovação popular, direta ou indiretamente (pela aceitação resignada), consciente ou não, com maior ou menor acompanhamento ou manipulação política e engajamento popular nos principais debates públicos (Júnior, 2011). A finalidade constitucional Os primeiros direitos humanos tinham natureza negativa (Habeas corpus), ou seja, constituíam na obrigação do Estado de não-fazer ou deixar de cometer o arbítrio (Tavares, 2007). Neste sentido, uma finalidade do Estado – como obrigação positiva, de fazer – é criar meios para a construção da sociedade justa. Inicialmente, os objetivos do Estado eram de se coibir ações autoritárias do Estado. Para Loewenstein, citado por Tavares, a própria divisão dos poderes deveria ser revista, substituída por novas atribuições propriamente políticas, estatais: 1. A decisão política conformadora ou fundamental; 2. A execução desta decisão política; 3. O controle político. O que certamente imporia nova orientação aos objetivos estatais destilados na Carta Constitucional. A Constituição deriva a Teoria do Estado, define e articula os preceitos e as finalidades do Estado; por isso, pela Constituição desfila a essência política do Estado: “O objeto da Constituição consiste na estrutura fundamental do Estado e da sociedade” (Moraes, 2003, p. 68). Nesta sequência, a definição ou restrição jurídica do tema, sobretudo no que se aplica ao direito brasileiro, consta da previsão constitucional: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Para o constituinte brasileiro, as finalidades do Estado coincidem com seus objetivos. O artigo 3º da CF/88 confirma as chamadas “proclamações emblemáticas”, com evidente valor 289 literário (libertário) e simbólico, no mesmo sentido que já vinha expresso no preâmbulo. Na utopia do art. 3º está enraizada uma “consciência do amanhã”, como dialética entre a crítica do presente e a proposição do futuro. Propõem-se uma consciência emancipadora. Nesta utopia do possível está clara a intenção do constituinte em asseverar pela construção de uma sociedade mais justa; há no texto constitucional uma proposição sociológica como “pensamento político dinâmico”. O aplicador da lei constitucional deve ter uma atuação concreta na realidade. Uma vez estabelecida a superioridade hierárquica dos objetivos do Estado brasileiro no texto legal, evita-se qualquer conflito entre a lei e o justo. Neste afã, os objetivos fundamentais são enunciados de forma objetiva (construir, garantir, erradicar, reduzir, promover). Ademais, nos títulos VII e VIII – ordem econômica e social – estão previstos os meios e instrumentos de realização dos objetivos do Estado (Carvalho, 2009). Entretanto, no exemplo da Constituição Portuguesa, que serviu de lastro para a CF/88, o rol de tarefas precípuas ou finalidades previstas ao Poder Público é mais amplo (Artigo 9.º): a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam; b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático; c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais; d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais; e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território; f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa; g) Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira; h) Promover a igualdade entre homens e mulheres. Os manuais portugueses trazem a recomendação de separarmos os fins de Estado entre tarefa e atividade: “Enquanto tarefa encontramos a sua consagração constitucional no disposto no artigo 9.º da CRP, que se refere às principais tarefas do Estado Português [...] Enquanto atividade, as funções do Estado podem definir-se como um conjunto de atos destinados à prossecução de um fim comum ou semelhante” (Fontes, 2009, p. 30-31). Muito antes disso, entretanto, o bem comum como bem público já fora anunciado. Na percepção religiosa, mas vocacionada para o infinito social é clara a orientação provinda da ética social como compromisso com a coisa pública. Isto é, a finalidade do bem comum coincide com os objetivos do Estado Republicano: Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido de que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, 290 tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres. Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas injunções perdem a força de obrigação em consciência (Bombo, 1993, p. 33 – grifos nossos). A Encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, também é definida como a Encíclica da Paz. Por outro lado, definindo-se o Estado como capacidade política organizada para o exercício do governo, apesar das dificuldades já apontadas por Reale (2000), cabe ressaltar que a finalidade precípua do governo é “assumir” o desenvolvimento nacional através da intervenção econômica (que pode ter como finalidade o bem estar social). Finalizando, tudo o que não é Estado, mas que se configura como agente político, é da ordem da socialmente civil. Desse modo, a legitimação decorre do sentido atribuído ao próprio Estado; quando se harmonizam o poder do Estado com a finalidade do Estado. Diante da dificuldade de se definir o que é paz social ou até onde este objetivo deve se curvar à sobrevivência objetiva do Poder Político acabou por restringir o alcance dessa concepção. Por isso, para muitos, a principal finalidade do Estado é a pacificação social a fim de se assegurar a Razão de Estado como última instância ou reserva de poder. Isto é, a única finalidade em comum a todos os Estados seria unicamente a manutenção do poder. O que ainda não corresponde à plena verdade, se pensarmos nos protetorados em que há divisão do poder ou governos de soberania conjunta (na formação do Congo, por exemplo) e/ou na aquisição de porções territoriais e abdicação integral da soberania, como é o caso de Porto Rico, inserindo-se como Estado-membro dos EUA. A finalidade do Estado é a Ordem Jurídica Por essas razões publicistas, para o Estado Moderno em sua fase atual, mas desde o fim da Segunda Guerra Mundial, estabelecer uma ordem jurídica democrática e impenetrável ao uso/abusivo do poder de exceção passou a ser uma fixação constitucional. Todavia, além de suplantar a tese de “ordem e progresso”, como finalidade estatal, a questão passaria a definir o que se entende pela ordem jurídica como finalidade do Estado. Neste âmbito, a cultura e a política tornam-se instituições públicas, mas essencialmente como vivência pública, no sentido de que passa a haver um controle popular, além do domínio político-institucional dos aparelhos ideológicos e repressores do Estado. Na modernidade clássica, do Estado Moderno até fins do Estado Social nas décadas de 60-70, o Estado de Direito transbordou de princípios e de valores (Canotilho, 1999). Porém, mesmo com esse transbordamento de princípios humanizantes, o direito público não se desapegou do privatismo que tem por base o direito à propriedade. Portanto, nem mesmo o chamado Welfare State foi capaz de bloquear o privado em razão do público — ao contrário, estimulou-o: A Lei Fundamental268 contém, em primeiro lugar, condições para a efetividade real de importantes institutos jurídico-privados e os protege de uma supressão ou de um esvaziamento por meio da própria lei, oferece assim um seguro aos fundamentos do Direito Privado que, por si mesmo, não poderia produzir, de atualidade por exemplo às garantias do 268 Hesse refere-se à Constituição de Bonn, de 1949, portanto, logo no pós-guerra e no auge do período de reconstrução européia. 291 matrimônio e da propriedade [...] produz assim uma certa concordância objetiva entre a ordem do Estado social de Direito e o conteúdo do ordenamento jurídico-privado [...] A liberdade privada da pessoa [...] é requisito para as decisões responsáveis [...] Na autodeterminação e na própria responsabilidade se manifesta em parte essencial o tipo de pessoa de que parte a Lei Fundamental e do que depende a ordem constitucional [...] O Homem como pessoa livre, autodeterminada e responsável só pode existir onde o ordenamento jurídico abre possibilidades para a autonomia do pensamento e de ação (Hesse, 2001, pp. 83-87 – grifos nossos). Mas, persiste a questão de se saber com mais clareza de que indivíduo está se falando — se mais público ou mais privado: Só em homens que pensam, julgam e atuam por si mesmos descansa o potencial de novas ideias, concepções e iniciativas irrenunciáveis para a comunidade, sem as quais esta com o tempo haverá de se empobrecer, se não fossilizar-se, cultural, econômica e politicamente, e das quais dependerá de forma crescente em um tempo de trocas fundamentais como é o nosso (Hesse, 2001, p. 88). Assim, depois de sofrer uma restrição jurídica aos caprichos do Poder Político, concluindo-se essa transformação na tese do Bem Público, agora, politicamente, legitima-se o mecanismo instrumental autotransformador do Estado Moderno (Kliksberg, 1993, pp. 7677 – grifos nossos). Quando as bases sociais se desestruturam, também revelam as evidências de problemas emocionais e de condutas antissociais. Precisamos recuperar a ética e relacioná-la com a economia, nessa visão abrangente do direito ao desenvolvimento humano. Foi com esta perspectiva que a ordem jurídica como defesa da unidade política foi elevada à condição de tarefa do Estado. Todo Estado define objetivamente e põe em prática os fins a que aludiu em sua organização política e constitucional. No entanto, podem estar evidentemente em conflito com os “fins subjetivos” indicados por seus cidadãos. Desse modo, o Estado tem uma função objetiva e isto congrega uma função social, como ação social objetiva: “o Estado não é possível sem uma atividade conscientemente dirigida a um fim, a partir de certos homens em seu interior. Os fins estabelecidos por esses homens atuam causalmente sobre outros homens como elementos indutores de sua vontade” (Heller, 1998, p. 258). O Estado existe unicamente em seus efeitos. O poder não é, pois, o fim do Estado. Portanto, a função (como finalidade) do Estado consiste na organização socialterritorial fundada na necessidade histórica de um status vivendi comum, que harmonize todas as oposições de interesses dentro de um território, e que seja limitado em soberania pela existência de outros Estados de natureza semelhante. A finalidade do Estado Democrático, enfim, é garantir a liberdade material como recurso da Justiça Social. Esta é a República que queremos. 292 O PODER PÚBLICO que nós gostaríamos De modo simples, Poder Público significa que o poder organizado – pode-se entender o Estado e o conjunto de suas instituições – está a serviço do povo, que o poder não serve a interesses escusos. No senso comum, ainda pode-se dizer que representa e sintetiza o governo, pois o conjunto das instituições e dos órgãos públicos permite que o Estado efetue sua atividademeio, que é a administração dos bens, recursos e interesses públicos. A atividade-fim é a preservação da Razão de Estado, isto é, a luta por conservação do próprio Estado. De modo mais técnico, significa que o poder é regido e limitado por um conjunto de regras jurídicas. Deve-se lembrar que a fonte das leis é a política, seja na forma da política social, seja como organização do espaço público e na representação parlamentar. O Poder Público também pode ser entendido como o poder organizado e que deriva sua força da fonte/origem (legítima e legal) da unidade global. O sentido maior de Poder Público, no entanto, é como continuidade institucional, normativa, da Razão de Estado. Assim, por Poder Público tem-se o poder organizado para atender uma determinada finalidade pública de organização (controle social), coesão política e prestação de serviços públicos necessários à vida comum do homem médio. É o conjunto de órgãos e instituições públicas que deve prestar os serviços públicos e realizar a principal tarefa do Estado, como organizador/prestador da Administração Pública. Origem e legitimidade do Poder Público Na sua origem grega269, cidadão era todo aquele indivíduo que participasse do poder público, e a quem caberia o direito de jurisdição e de deliberação, e que tivesse riqueza suficiente para viver de modo independente. Cidadão, portanto, era aquele que participasse da cidade. De modo semelhante, para designar as virtudes da cidadania, Aristóteles comparou o cidadão ao marinheiro: com a preocupação em dar rumo e segurança ao navio (kibernetiké – Kybernets: timoneiro). O Poder Público, neste caso, seria sinônimo de “interesse comum”. Já a “bondade intrínseca do Estado” provém do fato de que todos devem ser bons cidadãos, e mesmo que o que dá forma e força ao Estado seja a dessemelhança e a “desigualdade de mérito”. Assim, do governante é esperada a prudência e a sinonímia na arte de bem governar: “Talvez tenha sido isso que fez Jasão dizer: Só conheço uma arte e só sei reinar” (Aristóteles, 1991, p. 42). Para o governo civil, entretanto, o bom governante é aquele que aprendeu a administrar. Quanto ao Estado, a segurança será o objetivo inicial. Além de organizar a célebre coletânea de mais de uma centena de constituições do mundo antigo (que se perdeu), Aristóteles recomendava o uso de “tratados redigidos por escrito”. Àqueles que se dedicavam a organizar essas constituições, Aristóteles era enfático: a cidade deveria ser protegida com a virtude. Também é isso que deveria diferenciar uma cidade de uma “liga de armas”. Para a concepção de Poder Público que guarda traços da Grécia clássica, além da segurança, a cidade deve ser um lugar para se viver bem, mas esta felicidade não se resume à boa-fortuna, do mesmo modo como ao Estado só deve interessar a honestidade270. No caso, o melhor seria reunir virtudes e riquezas para poder usufruí-las. Daí também vem o melhor governo — em que se possa “viver bem”: o Estado da sabedoria é o que propugna pelo melhor fim. 269 270 A cidadania era limitada pela forma de governo, se democrática ou aristocrática. Relembrando: os princípios que devem guiar os homens e o Estado, são: prudência, coragem, justiça e virtude. 293 Para Aristóteles, há um princípio de “dignidade política” (vida ativa) que não se resume à dominação política: “Mas muitos parecem considerar a dominação como o objeto da política, e aquilo que não cremos nem justo nem útil para nós não temos vergonha de tentar contra os outros” (Aristóteles, 1991, p. 51). Assim, o Poder Público é aquela forma de governo que propugna pela civilidade e que é capaz de produz leis virtuosas: as virtudes devem secundar o governo civil e aquele que manda deveria ter projetos honestos. Afinal, só há semelhantes se há justiça e honestidade: “Entre semelhantes, a honestidade e a justiça consistem em que cada um tenha a sua vez271. Apenas isto conserva a igualdade. A desigualdade entre iguais e as distinções entre os semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade” (Aristóteles, 1991, p. 53 – grifos nossos). Isto é o que nos conduz ao “bom governo da vida ativa” e que abarca, além da ação, a necessária meditação para sua melhor execução. O bom governo é o que se define por Poder Público. O Renascimento do Direito Público Muito tempo se passou desde a Filosofia Política grega, mas no Renascimento surgiria outra concepção de direito e de poder. Em certo sentido, há em Grotius (2005) uma mescla entre governante e soberano, entre a Razão de Estado e o Príncipe, entre o indivíduo e o poder público. Porém, em outra situação parece apontar para uma equivalência única que deveria reger a luta por conservação, mesmo diferindo público de privado: “A causa eficiente principal numa guerra é geralmente a pessoa cujos interesses estão em jogo. Na guerra privada, o privado; na guerra pública, o poder público, sobretudo o poder soberano [...] cada um é naturalmente defensor de seu direito. É a razão pela qual as mãos nos foram dadas” (Grotius, 2005, pp. 234-5 – grifos nossos)272. Na ausência significativa da autoridade constituída e do poder reconhecido, que evitem que os conflitos se degenerem em guerra ou luta por sobrevivência entre Estados – dado que não há um Estado dos Estados –, a luta pelo poder entre indivíduos é muito semelhante a que se dá entre Estados: Afirmando a permanência do conflito, rejeitando a ideia de uma forma política que carregue em si a estabilidade, o pensador reconhece a permanência dos acidentes e, consequentemente, designa a função do príncipe como a de um sujeito que adquire a verdade num movimento contínuo de racionalização da experiência (Lefort, 2003, pp. 46-47 – grifos nossos)273. Este pensador a que se refere Lefort é Maquiavel. Outra definição permite-nos entender o Poder Público como a normatização do poder (a regulação da política) de acordo com os princípios legitimadores. A partir do século XIX firmou-se outra instituição do direito público ainda mais clara e, efetivamente, normatizadora da ação do Poder Público. Política e direito andariam juntos. Estado de Direito A esta relação entre norma e poder, define-se como Estado de Direito: o Estado em que o poder público é definido/limitado/controlado por uma Constituição. Portanto, no contexto do 271 É óbvio que se refere apenas aos cidadãos, excluídos os escravos, as mulheres, os estrangeiros e os demais nãocidadãos. A democracia grega era formada por não mais do que 10% da população. 272 O Poder Público, portanto, nada mais é do que a extensão da sociabilidade humana: “nada é mais útil ao homem que outro homem. Os homens são, com efeito, unidos entre eles por diversos laços que os empenham a prestar-se auxílio recíproco” (Grtoius, 2005 – grifos nossos). 273 Exatamente porque os dados não cansam de mudar, é que é preciso pensar e repensar a prática. 294 Poder Público há uma maior judicialização do poder político. Ou como nos diz o filósofo americano: O Estado de Direito implica sobretudo o papel determinante de certas instituições, bem como das práticas judiciais e legais que a elas estão associadas. Ele existe enquanto as instituições desse tipo são governadas de maneira razoável, de acordo com os valores políticos que a elas se aplicam: a imparcialidade e a coerência, a adesão à lei e o respeito pelos precedentes (Rawls, 2000, p. 377 – grifos nossos). Contudo, o próprio Estado de Direito deve assegurar-se de que garantias serão ofertadas a fim de que o poder conheça as fontes da legitimação e não encontre facilidades para a usurpação. A formação do Estado Constitucional foi essencial para que fossem ofertadas garantias ao poder legítimo, a fim de que o “poder do povo”274 não se visse vitimado por forças tirânicas, oportunistas: “Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder” (Miranda, 2000, p. 86). O Poder Público, de ali em diante, como Estado Constitucional, surge então claramente como poder limitado pelo direito que regula os objetivos da Administração Pública275. Ou seja, desde o início, pressupunha-se que o Estado de Direito estivesse mais próximo do lado prático da vida social e não abreviado pelo cumprimento cego da lei: Robert Von Mohl, considerado o autor que lançou o conceito, dizia que a ideia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em cada um dos indivíduos (Polizei, 1841, Concepto de policia y Estado de Derecho, in Liberalismo aleman em el siglo XIX – 1815-1848, coletânea de estudos, trad., Madrid, 1987, p. 141). E acrescentava: <Ninguém pode se sacrificado como um meio ou como uma vítima à ideia de todo> (pág. 142); <nenhum direito deve ficar sem proteção, porque seja demasiado insignificante para o Estado> (pág. 143); <Estado de Direito exige proteção jurídica> (pág. 144) (Miranda, 2000, p. 86 – grifos nossos). Ora, se há igualdade, o governo não deve ser investigado? Certamente, por isso, neste meio caminho, entre a política e a normatização, oscilando ora numa extremidade ora noutra, uma forma de poder popular expressa ações e conotações sociais, mas na ânsia de se ver hipostasiado, como sedimento e substância da ordem jurídica democrática. Em suma, o Poder Público requer um Estado de Direito que oferte proteção jurídica ao mais simples dos seus cidadãos. Hoje em dia, no interior do Estado Democrático, Poder Público implica em controlar o poder como majestas a fim de que o potestas in populo seja expressivo na ordem jurídica, a fim de que a soberania popular não seja dizimada em regime autocrático ou tornada inócua pela corrupção e ideologias de um poder usurpado. Com destaque para todos os órgãos, instituições e servidores públicos que labutam contra a corrupção do Estado. Quanto mais justo e democrático, 274 Poder Público como herança constitucional do potestas in populo. 275 Como forma organizada do potestas in populo e como limitação do poder supremo, perpétuo, ilimitado (majestas, imperium), o Poder Público implica em responder positivamente aos anseios presentes no poder popular. 295 mais facilmente o Estado será reconhecido em sua soberania interna, assim como terá amplo reconhecimento internacional. 296 O RECONHECIMENTO INTERNACIONAL Independentemente do debate teórico ou axiológico acerca do reconhecimento ser ou não um dos fundamentos da afirmação geopolítica de um Estado nascente, os casos concretos são uma realidade inegociável: a Palestina é um exemplo. Para muitos autores, o reconhecimento externo da soberania dos Estados independentes ou em formação não é um elemento essencial de sua afirmação soberana. Portanto, o reconhecimento seria dispensável, uma vez que o mais importante seria a viabilidade políticoadministrativa interna a fim de que se pudesse sustentar a soberania internamente. A própria política internacional, a qualidade de sua ação diplomática, a partir de uma política exterior atuante, seria mais eficiente na busca por reconhecimento. Neste sentido, contariam mais a Independência em si (soberania stritu sensu); a Ordem Jurídica eficaz (império da lei) e a garantia de uma Legitimidade obtida internamente. Mas, há que se considerar o reconhecimento – como requisito e formalidade jurídica – entre os elementos de formação do Estado e a sua decorrente capacidade de manter relações com outros Estados, a começar pelo respeito à Convenção Interamericana sobre Direitos e Deveres dos Estados, de 1933276: Artigo 1º. O Estado, como pessoa de Direito Internacional, deve reunir os seguintes requisitos: a) População permanente. b) Território determinado. c) Governo. d) Capacidade de entrar em relações com os demais Estados277. Pode-se indagar porque os Estados não definiram a soberania como elemento essencial ao Estado e isto se deve ao fato de que, ao constatar-se a soberania, sobretudo internamente, o próprio governo constituído irá em busca do reconhecimento. Assim, a soberania seria inerente, até mesmo óbvia ao governo, que só teria capacidade administrativa, governabilidade, capacidade de controle social e político, à medida em que tivesse sua soberania atestada. Se a soberania é contestada, ainda mais veementemente, confundindo-se governo e Estado, a crítica ao governo ameaça a segurança da Razão de Estado. Por isso, no texto da lei, a soberania é implícita, inerente. Juridicamente, para o reconhecimento do Poder Político, a soberania é conditio sine qua non. Desse modo, para o direito internacional seriam elementos fundacionais de todo Estado: povo, território, governo e reconhecimento. Depois, explicitamente, em seus artigos 6º e 7º, a Convenção de Montevidéu, a convenção dos Estados soberanos (anexo 01), trata do reconhecimento como fonte da legitimidade do Poder Político: Artigo 6º. O reconhecimento de um Estado meramente significa que o que o reconhece aceita a personalidade do outro com todos os direitos e deveres determinados pelo Direito Internacional. O reconhecimento é incondicional e irrevogável. Artigo 7º. O reconhecimento de Estado poderá ser expresso ou tácito. Este último resulta de todo ato que implique a intenção de reconhecer o novo Estado278. 276 Recepcionada no Brasil pelo DECRETO Nº 1.570, DE 13 DE ABRIL DE 1937, de Getúlio Vargas. Veja-se que a lei define os elementos básicos de composição do Estado, nas letras a, b e c, além de consignar o reconhecimento internacional. 278 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D1570.htm. 277 297 Há duas correntes predominantes quanto ao reconhecimento: a) teoria constitutiva: quando o Estado recebe o status afirmativo de sua inclusão no cenário internacional, com o reconhecimento da condição de que a partir do ato institucional de efetivação do Poder Político, pode ser considerado como um sujeito de Direito Internacional Público. Aqui, subentende-se a ocorrência de uma legitimidade advinda das principais potências internacionais, como se outros Estados declarassem ser reais as intenções e a própria existência daquele determinado Estado. Necessita-se de declaração formal. b) teoria declaratória: apenas observa-se que o Estado é um novo ente jurídico de relações internacionais. Sem que haja a emissão de uma declaração formal acerca da existência do novo Estado, porque se entende que uma declaração significaria uma espécie de concessão por parte dos demais Estados membros. A luta pela descolonização, por exemplo, sofreria graves restrições por parte do Direito Internacional Público se as colônias ficassem à espera desse direito concedido, dessa concessão para afirmar a legitimidade de sua existência. A ideia do reconhecimento internacional da soberania tem uma necessidade e urgência mais ou menos evidentes, a exemplo do que se passa com a Palestina em busca da afirmação de sua existência independente, junto à ONU. A declaração do Presidente dos EUA Barak Obama, em visita a Israel em 2013, reafirmando a legitimidade da pretensão palestina é outro indicativo de que o reconhecimento é um elemento politicamente, estrategicamente muito relevante para a delimitação da geopolítica: "Os palestinos merecem ter seu próprio Estado. Os Estados Unidos estão completamente comprometidos para ver um Estado da Palestina independente e soberano", afirmou Obama, que também defendeu a "solução de dois Estados" para os conflitos entre Israel e Palestina. Segundo Obama, esse é um objetivo que só pode ser alcançado "através de negociações diretas"279. Ou seja, a necessidade do reconhecimento, além de quesito jurídico na ordem internacional, ainda corrobora e fortalece o Princípio da Autodeterminação dos Povos, como consta de nossa CF/88: Art. 4º: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I. independência nacional; II. prevalência dos direitos humanos; III. autodeterminação dos povos; IV. não-intervenção; V. igualdade entre os Estados; VI. defesa da paz; VII. solução pacífica dos conflitos; VIII. repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX. cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X. concessão de asilo político. Dependendo da opção teórica ou ideológica, pode-se entender que a afirmação do princípio proposto no artigo 4º da nossa Carta Política tanto eliminaria a necessidade do 279 http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2013/03/21/obama-chega-de-helicoptero-em-ramallah-ee-recebido-por-abbas.htm, acesso em 21/03/2013. 298 reconhecimento, quanto veríamos aí um complemento afirmativo, como dado de segurança jurídica, de que o Estado brasileiro é atento à necessidade do reconhecimento da livre-convicção dos povos. Sem dúvida, sob o alcance do Princípio da Autodeterminação dos Povos, o reconhecimento à formação e independência do Estado está relacionado à soberania. Pois, obviamente, sem soberania não haveria reconhecimento; do mesmo modo como se busca pelo reconhecimento para fortalecer a soberania. Como visto, vale o mesmo raciocínio elaborado para se destacar a relação intrínseca entre soberania e legitimidade do governo (se há um governo operante é porque há aceitação, logo, há soberania). Como atributo fundamental, a soberania faz do Estado o titular de competências políticas especiais – limitadas tão-só pela equiparação encontrada nas relações internacionais. A soberania tem forte impacto jurídico externo: “Ela é hoje uma afirmação do direito internacional positivo, no mais alto nível de seus textos convencionais” (Rezek, 2011, p. 260). Em todo caso, de acordo com abordagem diversa, o reconhecimento não é de caráter constitutivo, mas unicamente declaratório da qualidade estatal. Para tanto, a Carta da OEA (Bogotá, 1948) é esclarecedora: Artigo 13: A existência política do Estado é independente do seu reconhecimento pelos outros Estados. Mesmo antes de ser reconhecido, o Estado tem o direito de defender a sua integridade e independência, de promover a sua conservação e prosperidade, e, por conseguinte, de se organizar como melhor entender, de legislar sobre os seus interesses, de administrar os seus serviços e de determinar a jurisdição e a competência dos seus tribunais. O exercício desses direitos não tem outros limites senão o do exercício dos direitos de outros Estados, conforme o direito internacional. Alega-se contra o reconhecimento o fato de se apoderar de ideologia colonialista, como se os Estados imperiais precisassem autorizar outros a existir. O que leva ao tema do reconhecimento de governo: neste caso, a ruptura da ordem institucional, como golpes de Estado, quarteladas, golpes institucionais, revoluções280, implicam em governos diferentes daqueles com os quais já se mantinham relações diplomáticas. Neste caso, em tese, como houve quebra de continuidade na manutenção das intenções diplomáticas, as tratativas com o “novo” governo partiriam do zero e este início de conversações poderia (ou não) evoluir para o reconhecimento do governo golpista. Outro aspecto a se diferenciar nesta abordagem é o fato de que se reconhece o governo, não há propriamente reconhecimento de Estado. Isto haveria em se tratando de formação de Estado – e não de governo – por desmembramento (seria o exemplo da descolonização) ou anexação. Há para isso uma forma tácita e outra expressa. Na primeira, expressa-se a simples manutenção das relações diplomáticas anteriormente assumidas; na segunda, expressa-se juízo de valor sobre os novos governos. A prática contemporânea valoriza a legitimidade, não se relacionando abertamente com os governos golpistas até que o processo democrático seja restabelecido, mas também exime-se do escárnio público contra os golpes perpetrados (Rezek, 2001). O direito internacional, hoje em dia, é fonte de legitimação do direito interno; no entanto, no passado, o Estado de Direito tinha uma posição mais restritiva. 280 Pode-se lembra aqui a Revolução Islâmica, no Irã de 1979. Na década de 1970, o governo era exercido pelo xá Reza Pahlevi, com forte concentração de poderes em um pequeno grupo de apaniguados. O ativista com maior expressão política, aiatolá Khomeini, vivia exilado em Paris. Com forte clima de enfrentamento político-religioso, no dia 1º de abril, o Irã foi declarado uma República Islâmica, com a ascensão ao poder do aiatolá Khomeini. 299 ESTADO RACIONAL a necessária racionalização do Poder Político Como vimos, o Estado Moderno é resultado de um longo processo de racionalização das relações políticas, como se fosse um produto da cultura política refinado pelo uso crescente da razão, da intencionalidade na produção de significados políticos de natureza “superior”, organizada e, portanto, racionalizada. Racionalização da política e razão de Estado É bastante conhecido e difundido o modelo que Max Weber criou para o Estado racional e, portanto, da própria racionalização. Mas, relembremos que o Estado Racional é um modelo ou tipo de Estado que só se desenvolve no Ocidente, pois sua estrutura de sustentação e funcionamento está calcada nas burocracias especializadas e no direito racional. É aí que o capitalismo prospera, porque é aí que a racionalidade deve incrementar a produção e, portanto, a arrecadação estatal. Nesse sentido pragmático é que se diz que o Estado Racional não suporta que o funcionário venha a aprender a fazer, fazendo: o dispêndio é grande e os riscos de erros são maiores do que o desejado. O que implica na colocação de funcionários especializados (técnicos) e na afirmação de que a burocracia é funcionária do Estado e não do governo. No sentido propriamente jurídico, pode-se dizer que temos um modelo que faz remontar este Direito racional ao direito romano (ou ao Estado Municipal de Roma), modelo que desenvolveria algumas características ainda mais precisas, como: i) direito sistematizado, estabilizado, estável e acessível (escrito); ii) racionalização procedimental, do processo político-decisório: sucessão de atos que regula a concatenação entre começo, meio e fim de todo processo de organização ou dos procedimentos adotados; iii) formalismo: não comporta o erro formal - quanto à forma; iv) predominância de aspectos burocráticos do direito “o que não está nos autos, não está no mundo”; v) justiça formal: no mundo moderno, desembocou no Estado-Juiz; vi) garantias do contrato, do processo (pacta sunt servanda): o próprio direito está subordinado aos autos do processo; vii) demandas reduzidas a fórmulas judiciais: o excessivo apego burocrático reduz, condiciona ou subordina o conteúdo jurídico à forma judicial; viii) dupla racionalização: secular e temporal (o comportamento católico foi estruturado da forma mais racional possível, regras morais de conduta, como também não foi mais permitido que as ações/relações jurídico–mercantis estivessem reguladas por procedimentos de luta, como nos duelos); ix) direito calculável, mecânico e maquínico (como se toda relação humana ou social pudesse ser programada e, assim, programável, previsível: no Renascimento, chamou-se de Mecanismo); x) se há demanda judicial, obrigatoriamente, tem de haver resposta processual; xi) pensamento jurídico formal: cada direito abriga (obriga) um princípio jurídico formal; xii) direito formalmente desenvolvido – a relação jurídica não pode admitir imprevistos, sobretudo de natureza extra-processual; 300 xiii) numa fórmula: Estado + Direito (jurisprudência formal) = capitalismo. No Brasil, ainda contamos com a excessiva codificação e a crescente onda de criminalização das relações sociais. Num exemplo mais singular, já aventado e que exemplifica bem o excesso do racionalismo, tomemos a relação forma-conteúdo. Em resenha do 6º volume dos Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, José Luís Jobim destaca justamente a dinâmica e a mobilidade que deve haver nessa relação. Em princípio: ... (“pode-se falar de uma prioridade do conteúdo sobre a forma”), Gramsci deu uma resposta positiva, no sentido de que a obra de arte é um processo e as modificações de conteúdo são também modificações de forma, já que o conteúdo pode ser “resumido” logicamente: “Quando se diz que o conteúdo precede a forma, quer-se simplesmente dizer que, na elaboração, as sucessivas tentativas são apresentadas com o nome de conteúdo e nada mais. O primeiro conteúdo que não satisfazia era também forma e, na realidade, quando se atinge a ‘forma’ satisfatória, também o conteúdo se modifica” (Jobim, 3 nov. 2002). Desse processo histórico, retenhamos como exemplo geral a adequação dos meios aos fins e como exemplos específicos a relação custo-benefício e a planilha de contabilidade por partida dobrada – passos dados em direção a uma Política Econômica Estatal (iniciada como base do mercantilismo). A outra base de sustentação desse Estado de Direito é a burocracia e, em suma, suas condicionantes ainda podem ser vistas da seguinte forma: A burocracia é, como vimos, o exemplo mais típico do domínio legal. Repousa nos seguintes princípios: 1º, a existência de serviços definidos e, portanto, de competências rigorosamente determinadas pelas leis ou regulamentos, de sorte que as funções são nitidamente divididas e distribuídas [...] 2º, a proteção dos funcionários no exercício de suas funções, em virtude de um estatuto (efetivação dos juízes, por exemplo) [...] 3º, a hierarquia das funções281, o que quer dizer que o sistema administrativo é fortemente estruturado em serviços subalternos e em cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à instância superior; em geral, esta estrutura é monocrática e não-colegiada e manifesta uma tendência no sentido da maior centralização; 4º, o recrutamento se faz por concurso, exames ou títulos, o que exige dos candidatos uma formação especializada. Em geral, o funcionário é nomeado (raramente eleito) com base na livre seleção e por contrato; 5º, a remuneração regular do funcionário sob a forma de um salário fixo e de uma aposentadoria quando ele deixa o serviço público [...] 6º, o direito que tem a autoridade de controlar o trabalho de seus subordinados, eventualmente pela instituição de uma comissão de disciplina; 7º, a possibilidade de promoção dos funcionários com base em critérios objetivos e não segundo o livre arbítrio da autoridade; 8º, a separação completa entre a função e o homem que a ocupa, pois nenhum 281 Equivale a ressaltar a divisão de funções que, classicamente, decorre da separação de poderes – dado de precedência que também subordina a divisão à separação. 301 funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da administração (Freund, 1987, p. 170-171). Com o que podemos concluir que se trata, realmente, de um modelo que se constitui de maneira peculiar no Ocidente, revelando traços e características precisas e bem distintas das outras formas de organização burocrática dos Estados Antigos. A negação do Estado Mágico Pois, bem tendo em conta estes pressupostos do Estado Racional, vejamos o porquê de nos reportarmos ao Estado Moderno (saibamos que se trata de um Estado moderno, porque é racional), sobretudo como Estado soberano, centralizado (e centralizador) e apto a realizar os próprios interesses comerciais expansionistas. Porém, iniciemos pela contradição, pelo pensamento mágico que já continha laivos de racionalidade. Na definição de Max Weber (1985), procuremos o sentido da negação no próprio conteúdo do pensamento mágico que, por sua vez, revela a essência do mandarinato: O mandarim é geralmente um literato de formação humanista, que possui uma prebenda282, mas carece de todos os conhecimentos em matéria de administração; ignora a jurisprudência, mas, em compensação, é calígrafo; sabe fazer versos; conhece a milenária literatura dos chineses, sendo capaz de interpretá-la [...] um funcionário desta natureza não administra por si mesmo. A administração encontra-se em mãos dos funcionários de sua repartição. O mandarim é mandado de um lugar para outro, a fim de que não consiga se erradicar em nenhum. A ele é vedado desempenhar o cargo em sua terra natal. Em virtude de não compreender o dialeto da província em que serve, torna-se para ele impossível lidar com o público. Um Estado com empregados desse gênero é algo muito diferente de um Estado ocidental (Weber, p. 157). A partir dessa definição de mandarinato (governo de mandarins) de Max Weber, é possível antecipar que o Estado Racional, portanto, é em tudo diferente do Estado arcaico, mitológico, assentado sobre alguma forma de pensamento mágico (a exemplo do Estado Antigo e até do Estado Romano e, depois, do Absolutismo). É aquele Estado de Direito que não pode ficar ao sabor das interpretações mágicas, que necessita desprender-se das limitações religiosas ou divinas da sociedade, que necessita de interpretações razoáveis, racionais, lógicas, coerentes, possíveis (mais do que verossímeis), técnicas (tecnicistas e tecnológicas, a exemplo da total informatização eleitoral), especializadas, mecânicas, maquínicas (veja-se a expressão máquina do Estado), “blindadas”283. Em síntese, trata-se da caracterização e categorização do Estado que pode ser reduzida à matemática (se preferirmos o navegar é preciso) à relação de custo-benefício que há em projetos sociais em que só a estatística define os níveis admissíveis para a mortalidade infantil. Quando a este modelo fundem-se algumas bases legais e democráticas, teremos, então, o Estado 282 Farta remuneração, em detrimento de pouca ou quase nenhuma implicação laboriosa. No popular: mamata, emprego de barnabé. 283 A arquitetura imponente, os pórticos e portais do Estado tendem a blindar os segredos da estrutura estatal, aliás, mais e mais carros de autoridades já vêm, de fábrica, equipados com vidros fumê e blindagem especial. Sem vitrais, o Estado é indevassável, nebuloso, opaco e ainda que muitos vitrais chamem a atenção para si, mas não permitam que o conteúdo do poder seja devassado. 302 Democrático de Direito. Contudo, em Weber, trata-se da dominação baseada na lei, na dominação legal ou estatutária (também chamada de dominação legal/racional): Dominação legal em virtude de estatuto. Seu tipo mais puro é a dominação burocrática. Sua ideia básica é: qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma. A associação dominante é eleita ou nomeada, e ela própria e todas as suas partes são expressas [...] Obedece-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Também quem ordena obedece, ao emitir uma ordem, a uma regra: à “lei” ou “regulamento” de uma norma formalmente abstrata [...] a burocracia constitui o tipo tecnicamente mais puro da dominação legal. Nenhuma dominação, todavia, é exclusivamente burocrática, já que nenhuma é exercida unicamente por funcionários contratados [...] É decisivo todavia que o trabalho rotineiro esteja entregue, de maneira predominante e progressiva, ao elemento burocrático. Toda a história do desenvolvimento do Estado moderno, particularmente, identifica-se com a da moderna burocracia e da empresa burocrática, da mesma forma que toda a evolução do grande capitalismo moderno se identifica com a burocratização crescente das empresas econômicas [...] Na época da fundação do Estado moderno, as corporações colegiadas contribuíram de maneira decisiva para o desenvolvimento da forma de dominação legal, e o conceito de “serviço”, em particular, deve-lhes a sua existência. Por outro lado, a burocracia eletiva desempenha papel importante na história anterior a da administração burocrática moderna (e também hoje nas democracias) (Weber, 1989, p. 128-129, 130-131). Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, mas Weber irá detalhar essas atribuições: 1.que todo direito, mediante pacto ou imposição, pode ser estatuído de modo racional – racional referente a fins ou racional referente a valores284 (ou ambas as coisas) – com a pretensão de ser respeitado pelo menos pelos membros da associação, mas também, em regra, por pessoas que, dentro do âmbito de poder desta (em caso de associações territoriais dentro do território), realizem ações sociais ou entrem de determinadas relações sociais, declaradas relevantes pela ordem da associação; 2. que todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que a judicatura é a aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens da associação, dentro dos limites das normas jurídicas [...] 3. que, portanto, o senhor legal típico, o “superior”, enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições; 4. que [...] quem obedece só o faz como membro da associações e só 284 É de se lembrar que no início do texto há exatamente esta discussão. 303 obedece ao “direito”285; 5. [...] que os membros das associação, ao obedecerem ao senhor286, não o fazem à pessoa desse, mas, sim, àquelas ordens impessoais e que, por isso, só estão obrigados à obediência dentro da competência objetiva, racionalmente limitada, que lhe for atribuída por essas ordens (Weber, 1999, p. 142)287. Já a dominação racional, em complemento aos quesitos da dominação legal, pode ser assim descrita: 1. um exercício contínuo, vinculado a determinadas regras, de funções oficiais, dentro de 2. determinada competência288, o que significa: a) um âmbito objetivamente limitado, em virtude da distribuição dos serviços, de serviços obrigatórios, b) com atribuição dos poderes de mando eventualmente requeridos e c) limitação fixa dos meios coercivos eventualmente admissíveis e das condições de sua aplicação [...] autoridade instituída 3. o princípio da hierarquia oficial, isto é, de organização de instâncias fixas de controle e supervisão para cada autoridade institucional, com o direito de apelação ou reclamação das subordinadas às superiores [...] 4. As “regras” segundo as quais se procede podem ser: a) regras técnicas; b) normas. Na aplicação destas, para atingir racionalidade plena, é necessária, em ambos os casos, uma qualificação profissional [...] uma especialização profissional, e só estes podem ser aceitos como funcionários [...] 5. Aplica-se o princípio da separação absoluta entre o patrimônio (ou capital) da instituição (empresa) e o patrimônio privado (da gestão patrimonial), bem como entre o local das atividades profissionais (escritório) e o domicílio dos funcionários. 6. Em caso de racionalidade plena, não há qualquer apropriação do cargo pelo detentor289 [...] 7. Aplica-se o princípio da documentação dos processos administrativos, mesmo nos casos em que a discussão oral é, na prática, a regra ou até consta no regulamento [...] (Weber, 1999, pp. 142-143). Weber ainda chama atenção para a necessidade de detalhar a compreensão da dominação burocrática, dentro do quadro administrativo, mas quem deve tomar parte neste quadro burocrático? 1. são pessoalmente livres; obedecem somente às obrigações objetivas de seu cargo; 2. são nomeados (e não eleitos) numa hierarquia rigorosa dos cargos; 3. têm competências funcionais fixas; 4. em virtude de um contrato, portanto, (em princípio) sobre a base de livre seleção segundo 5. a qualificação profissional — no caso mais racional: qualificação 285 No Estado de Direito descrito por Weber, deve-se obediência às regras estabelecidas e adotadas e não ao sujeito, como ocorre na dominação tradicional e/ou carismática. 286 Neste caso, seriam as autoridades e os superiores hierárquicos do próprio gestor e/ou servidor público. 287 Há que se ressaltar que o Estado de Exceção inseriu medidas de exceção no coração da regra, mas o fez legitimando-se passo a passo como Estado de Direito. 288 Refere-se ao direito de agir que alguns têm, em razão da atividade específica que desempenham, a exemplo da magistratura — não se refere a conhecimento, mas sim a esta possibilidade técnica, a esta autorização. 289 Isto deveria evitar o “culto à personalidade”, a síndrome do pequeno poder, bem como o corpo administrativo não deveria gerar formas de poder pessoal. 304 verificada mediante prova e certificada por diploma; 6. são remunerados com salários fixos em dinheiro [...] 7. exercem seu cargo como profissão única ou principal; 8. têm a perspectiva de uma carreira [...] 9. trabalham em “separação absoluta dos meios administrativos” e sem apropriação do cargo; 10. estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de disciplina e controle de serviço (Weber, 1999, p. 144). Em seguida, o próprio Weber se encarrega de ratificar a tese central sobre a forma de dominação mais desenvolvida racionalmente, para depois externar seu pensamento em uma fórmula: A administração puramente burocrática, portanto, a administração burocrático-monocrática mediante documentação, considerada do ponto de vista formal, é, segundo toda a experiência, a forma mais racional de exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade — isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados —, intensidade e extensibilidade dos serviços,e aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas (Weber, 1999, p. 145). Neste sentido, ainda cabe ressaltar que tanto os partidos quanto os sindicatos e os movimentos sociais organizados, hoje, têm são enormes bases e/ou estruturas administrativas e burocráticas. Daí também dizer-se que a política foi burocratizada: na história política que nos trouxe da ágora ao palanque eletrônico, há a interposição de planilhas e programas de controle desenvolvidos unicamente para tentar projetar e prognosticar a conduta do eleitor: especialmente com o uso de pesquisas de opinião pública. Para o marketing, pouco importa se na embalagem deve-se encaixar ou embalar um sabonete ou um candidato290. De outra forma, pode-se dizer, justamente, que a crítica está em que a razão, a própria lógica, (para ser útil e boa) deve gerar receita e não necessariamente produzir reflexão, conhecimento e postura crítica: na teoria e na prática, é razoável o que é lucrativo, pois o restante é especulativo, é mera interrogação e esta bem pode ser uma interrogação indesejável sobre a pretensa validade da verdade lucrativa e acumulativa291. A crítica diz que a razão deixou de ser crítica e que lógico é o que é lucrativo. Mas será a mesma burocracia – apta à organização racional – a origem das mazelas de uma dominação tão grave quanto outra qualquer? Vejamos se é possível falar-se de um Estado Político não-Público (irracional). Estado Irracional No Estado Racional, visualizamos que há um Estado Político (não público) que pratica a apropriação econômica de forma exclusiva, monopolista – resumidamente: Capitalismo Monopolista de Estado. Afirmativamente, esse Estado baseia-se em numeração que impressiona: retumbante, reverberante, pois em todos os continentes a política será quantificada. As maiores democracias do mundo, China e Índia, em números absolutos, têm mais de um bilhão de 290 Novamente a relação forma-conteúdo. E ainda que já se saiba, há muito tempo, que quem vê cara não vê coração ou por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento (o epitáfio do próprio sepulcro caiado). 291 Teoricamente (vale dizer, de forma lógica), um povo não pode concluir que o melhor para si é afastar-se do capitalismo? 305 eleitores, e não são necessariamente qualificadas (são as mais intensas numericamente, mas sem diferenças substanciais nas proposições, temáticas, programas ou projetos de poder). De forma mais crítica, é um Estado que controla (desenvolve, articula) a economia de forma extremamente racional, produtiva, lucrativa e rentável, mas em meio a um mercado irracional, ilógico, frenético, incontrolável. É o Estado em que a lógica e a razão econômica, acumulativa (de apropriação individual ou de classe), prepondera no interior de sua própria máquina administrativa; mas, já no limite, nem mesmo o Estado é mais capaz de socializar para melhor arrecadar, pois a massa tributária pode tornar inviável a produção. Transformando, por fim, a própria administração ou burocracia em novo tipo ou fração de classe social dominante, uma vez que a burocracia se encontra encastelada no Estado e imprime a seus interesses o status ou a condição de interesse de classe predominante, pois que suas próprias ações são de extrema eficácia quando se trata de satisfazer os próprios interesses. É um Estado rentável, sobretudo para aqueles que se intitulam governantes, para aqueles que se locupletam da própria máquina do Estado (nesse aspecto, sem dúvida, trata-se de uma expressão de conteúdo e funcionamento do Estado Patrimonial). Sob a ordem econômica há uma razão específica (subjacente, mas viva) e que torna a burocracia, ela mesma, tecnicamente financeirizada. Vejamos isso ainda em Freund (1987): A burocracia moderna desenvolveu-se sob a proteção do absolutismo real no começo da era moderna. As antigas burocracias tinham caráter essencialmente patrimonial, isto é, os funcionários não gozavam das garantias estatutárias atuais, nem de remuneração em espécies. A burocracia que conhecemos desenvolveu-se com a economia financeira moderna, sem que se possa, entretanto, estabelecer um vínculo unilateral de causalidade, pois outros fatores entram em jogo: a racionalização do direito, a importância do fenômeno de massa, a centralização crescente por causa das facilidades de comunicações e das concentrações das empresas, a extensão da intervenção estatal aos domínios mais diversos da atividade humana e sobretudo o desenvolvimento da racionalização técnica (p. 171-172). Deste modo, vê-se, é um Estado em que a razão oferece as bases da própria dominação e não mais configura os limites, os obstáculos ou as restrições ao jugo do príncipe, do soberano, quando se supunha que houvesse a passagem das marcas pessoais e individuais para a administração pública, baseada na impessoalidade, neutralidade, abstinência em relação ao privado e (re)afirmativa do interesse público. E, assim, a dominação faz-se de cunho racional e de base legal, pois que direito público e administração pública, nesse marco histórico, coincidem na definição dos termos das finalidades da produção em massa, mas de apropriação cada vez mais individualizada. É óbvio, enfim, que o interesse público acaba submetido à força da apropriação privada ou classista, mas é menos claro como se opera essa lógica de apropriação econômica e de poder – daí a necessidade, a insistência, em focar a burocracia política dos tecnocratas. A dívida social é quantificável, mas e as soluções também são? É óbvio que não há passe de mágica ou só bem-querer e dever-ser, porém, não há regra ou fórmula econômica (economicismo) que se auto-aplique. Isto é, se a Justiça Social não é auto-aplicável e, por isso, depende tanto de recursos quanto de planejamento, estratégia, projeto e programa político e econômico, é ainda mais óbvio que todo plano econômico responde a condicionantes político- 306 ideológicos. É de se lembrar que há razões que o coração desconhece, porque a razão é pluridimensional. Da mesma forma, sempre é oportuno ter em mente que a razão já produziu o Holocausto e a Bomba H292. Até mesmo como mecanismo complementar da tripartição dos poderes, os concursos, especialmente para a magistratura, deveriam vir embutidos de especial atenção ao social, exigindo dos novos juízes mais sensibilidade para o espírito da lei, para a subjetividade – para a formação da livre convicção baseada na função e na relevância social da lei e não na atenção limitada à eficácia normativa, pois que não há norma eficaz sem reconhecimento e acolhimento social. Trata-se da subjetividade que agrega valor (objetivamente, portanto), a exemplo do trabalho voluntário/comunitário/social, pois a melhoria da qualidade das relações humanas (genéricas) transforma o profissional em uma pessoa melhor. Há incremento na produção, (o social é produtivo) porque se o indivíduo é capaz de se doar ao social (genérico, coletivo e difuso por definição) ele também será capaz de se doar à produção (limitada ao fazer laborioso e ao consumo imediato), aliás, diz a regra da lógica formal, quem pode o mais (investir no social), pode o menos (incrementar a produção individual). Mas, mesmo nesse caso, em que se está voltado de coração à solução dos problemas sociais, as medidas tópicas devem ser racionalizadas, equilibradas, pois não há milagres econômicos que se preste à multiplicação dos pães. Estado Latente: potência natural? O Fato é que, se a administração é fundamental ao Estado, assim como o direito, é preciso recobrar a consciência de que sem a atividade política, a militância popular, social, sindical, não há vida pública. Historicamente, por exemplo, encontramos a passagem do idiotes (no grego clássico) ao cidadão como forma ou processo dessa intensa racionalização da atividade política. Por isso, até mesmo para que a política não quede burocratizada, insossa, é preciso ativar a potência que há em todos nós, no dizer de Canivez (1991): Por um lado, pode-se dizer com Kant que a liberdade é o único direito inato que o indivíduo possui. Mas é um direito absolutamente fundamental, no sentido de ser a condição de aquisição de todos os outros direitos: não há direitos (propriedade, livre comunicação etc) a não ser para um ente livre. Por outro lado, o homem em estado de natureza define-se como ser razoável, isto é, não como um ser que já desenvolveu seu raciocínio, inteligência etc, mas que pode desenvolve-los. Define-se, para retomar a expressão de Rousseau, por sua perfectibilidade; é o animal que é razão em potência, animal dotado de razão. O direito natural repousa pois sobre a consciência que o indivíduo tem de sua natureza de ser racional (p. 88). Dessa forma, ainda podemos visualizar que a formalidade (impessoalidade, imparcialidade), desenvolvida no interior da burocracia, é resultado ela mesma de longo processo histórico da própria razão (ou do engenho humano em criar artefatos e artifícios de certa forma controlados e com certa dose de previsibilidade – o mesmo se daria com a política). Este tipo de 292 O Estado acaba uma sombra do que era, miríade em que suas imagens vão se apagando e suas inscrições sobrevivem somente através das metáforas. Vejamos em Debray (1994): “É precisamente porque o Estado é, em si mesmo, invisível e inaudível que ele deve se fazer ver e ouvir, custe o que custar, por metáforas. Chamar a atenção de todos através de sinais combinados, observáveis e tangíveis. Sem essa sinalização, a crença não teria objeto, nem meios de transmissão” (p. 61). 307 engenhosidade, portanto, acabou fornecendo insumo à política cotidiana e ao Estado que se organizava como instituição política. Pois bem, pode-se dizer que a chamada razão de Estado é a primeira construção, mais direta, simplificada e de relativa compreensão, que resultou desse cruzamento entre política e institucionalização. Pois que aí se entendem as motivações do Estado em manter algum sigilo sobre sua base de dados. Na República, por exemplo, a política é racional, lógica, na exata proporção em que há defesa do interesse público (e há dados que se forem revelados podem comprometer a segurança pública). Mas a racionalidade humana, inicial e fundante, pode-se dizer, está na potência, como capacidade de analisarmos racionalmente a política, visto que somos potencialmente racionais e essencialmente políticos. Como animais sociais e políticos, gerando intencionalidade para o grupo e objetivando a vida social, destacamo-nos dos outros animais sociáveis. A racionalidade política é potencialmente humana, ainda poderíamos dizer, tendo em conta que nem todos participam da política (da vida pública) com efervescência – é de se lembrar que a política para muitos não passa de rumor e, via de regra, de maus rumores. Mas, seja como for, a política implica na condição de criarmos condições públicas, gerais (seguindo o princípio da universalidade), em que se desenvolva o dever de respeitarmos o direito à possibilidade de cada um desenvolver sua potencialidade racional. Isto é, o direito de um implica no dever do outro e vice-versa, e nessa base de universalidade estão, enfim, erigidos os direitos humanos de natureza política. Os direitos humanos são aqui enunciados como concurso histórico do processo de desencantamento e de racionalização infindável do ser político. Para se afirmar, o Estado Moderno precisaria encontrar fontes de financiamento. 308 P A R T E II ESTADO DE DIREITO 309 ESTADO DE DIREITO A racionalidade aplicada ao poder, como forma de obter controle, pode ser uma definição de Estado de Direito. Pois, o Estado de Direito talvez seja a expressão mais propalada no mundo jurídico, mas será que temos uma compreensão adequada do conceito? Desde o século XIX, Estado de Direito significa a impostação de direitos afirmativos para a cidadania e de leis restritivas ao poder de império do Estado (como direitos negativos ou obrigações de não-fazer). Mas, o que é afinal Estado de Direito? Inicialmente, devemos indicar que o conceito de Estado de Direito não é homogêneo, não se constituindo num conjunto jurídico orgânico, neutro, estático, mas sim político e atuante de acordo com o aprofundamento das demandas sociais por mais direitos. Porém, o nível de politização imposto ao direito deve ter limites estabelecidos pelo próprio direito e pela democracia. Afinal, não é possível conviver o Estado de Direito com a alucinação comum aos regimes de exceção. Após um atentado nos EUA, gestos banais do cotidiano passaram a ser criminalizados: Uma jornalista entrou para a lista de suspeitos de terrorismo em Nova York, nos Estados Unidos, após ter comprado uma panela de pressão pela internet [...]“Ela acaba de contar que anteontem, quarta-feira, um grupo de seis agentes do FBI, com revólveres na cintura, estacionou dois carros em frente à casa que ela vive, mostraram os distintivos e pediram para fazer uma busca. Durante a batida, fizeram perguntas do tipo: de onde você é? De onde são seus pais? Onde você trabalha? E finalmente: você tem uma panela de pressão em casa?”293 Quando investigamos do ponto de vista jurídico, entretanto, apesar dos acréscimos de direitos, identificamos uma base conceitual que sempre se repete; o que implica obviamente que há um núcleo duro, estável, quase que permanente e que já se estruturou como doutrina, como dogmática, ou seja, como conjunto orgânico irrefletido na/da realidade. O núcleo duro do Estado de Direito vem se mantendo desde o século XIX, apenas recebendo notáveis acréscimos, mas não modificações nas suas cláusulas pétreas. Por outro lado, este fator impossibilita ao investigador perceber muitas das nuances ou dos indicativos históricos e políticos que cercam a própria investigação do conceito. Não há uma posição ou leitura politizada ou suficientemente precisa atualmente acerca dessa amarração e do fluxo do ordenamento jurídico, que é o Estado de Direito; infelizmente, seus clássicos também não têm sido publicados. Isso torna qualquer pesquisa sobre o conceito (essencial ao Direito moderno) um trabalho monótono, de leitura indireta dos clássicos (hoje inacessíveis) porque os autores e manuais contemporâneos também não reúnem proposições críticas ou leituras minimamente investigativas. Nosso objetivo, portanto, é basicamente conceitual e pautou-se pela revisão bibliográfica das principais teorias e conceitos jurídicos e políticos relacionados. É certo que, a luta política pelo reconhecimento jurídico nunca deixou de ser uma luta por conservação, mas agora supõe-se a conservação dos demais institutos já anunciados, em face dos direitos apregoados. É, sem dúvida, uma luta pela “autoconservação moral” de todo o grupo humano relacionado: Portanto, a defesa do direito é um dever de autoconservação moral: o abandono total do direito, hoje impossível, mas que já foi admitido, 293 http://noticias.band.uol.com.br/mundo/noticia/100000619234/megale-jornalista-compra-panela-e-vira-alvo-dofbi.html 310 representa o suicídio moral. E o direito nada mais é do que a soma dos seus intuitos. Cada um destes tem um pensamento peculiar, físico ou moral, que condiciona sua existência (Ihering, 2002, p. 41 – grifos nossos). A fórmula do Estado de Direito, como o conhecemos hodiernamente, é um produto acadêmico provindo do século XIX (arquitetado pelo jurista Robert von Mohl), a partir da Alemanha, como sinônimo de imperatividade, impessoalidade, neutralidade processual e defesa constitucional dos direitos individuais conquistados. Em algum ponto da história ou da convergência entre os anseios “mais populares” e os “meios necessários à sua realização”, a luta pelo direito se converteu em luta pelo Estado de Direito, fase em que o direito passou a regular/limitar a ação dos poderes estatais (a fim de que realmente pudessem ser chamados de públicos). O alcance do instituto, no século XIX, ainda se limitava a três aspectos jurídico-institucionais: a) império da lei: b) separação dos poderes: c) prevalência dos direitos individuais fundamentais. Por tudo isso, o Estado de Direito (se) impõe por meio da Ratio legis (“em razão da lei”). Como descreve Canotilho, resgatando a tradição alemã de Von Mohl: A expressão Estado de direito é considerada uma fórmula alemã (Rechtsstaat) [...] O Estado domesticado pelo direito é um Estado juridicamente vinculado em nome da autonomia individual ou, se se preferir, em nome da autodeterminação da pessoa [...] Contra a ideia de um Estado de polícia294 que tudo regula a ponto de assumir como tarefa própria a felicidade dos súditos, o Estado de direito perfila-se como um Estado de limites, restringindo a sua ação à defesa da ordem e segurança públicas. Por sua vez, os direitos fundamentais liberais – a liberdade e a propriedade – decorriam do respeito de uma esfera de liberdade individual e não de uma declaração de limites fixada pela vontade política da nação (Canotilho, 1999, p. 27 – grifos nossos). Guiando-se por esta tradição, mas na versão de um jurista francês indignado com o descalabro da Primeira Guerra Mundial, Carré de Malberg sempre esteve pronto a defender a lei contra a violência. Como nos legou o autor: Por Estado de Direito se deve entender um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia do estatuto individual, submete-se ele mesmo a um regime de direito, porquanto encadeia sua ação em respeito a eles, por um conjunto de regras, das quais umas determinam os direitos outorgados aos cidadãos e outras estabelecem previamente as vias e os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais: duas classes de regras que têm por efeito comum limitar o poder do Estado subordinando-o à ordem jurídica que consagram [...] Isto implica duas coisas: por um lado, quando entra em relação com os administrados, a autoridade administrativa não pode ir contra as leis existentes, nem se apartar delas, ela está obrigada a respeitar a lei. Por outro lado, no Estado de Direito em que se tenha alcançado seu completo desenvolvimento, a autoridade 294 Trata-se de um tipo estatal precursor do nazismo. 311 administrativa não pode impor nada aos administrados se não for em virtude da lei, e não pode aplicar, com respeito a eles, senão as medidas previstas explicitamente pelas leis ou ao menos implicitamente autorizadas por elas; o administrador que exige de um cidadão um feito ou uma abstenção deve começar por mostrar-lhe o texto da lei de onde toma o poder para dirigir-lhe esse mandamento295 [...] Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de constituir, para o súdito, verdadeiro direito [...] O regime do Estado de Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis (Malberg, 2001, p. 449-461 – tradução livre – grifos nossos). Já às margens do século XX, o sociólogo Max Weber descreveu alguns dos tópicos em que o Estado de direito se afirma como mecanismo de contenção do Poder Político. O Estado de Direito, entretanto, na primeira fase de sua construção jurídica, corresponde à imposição de direitos negativos, como obrigação de não-fazer do Estado; mais especificamente, a proibição jurídica de governar fora dos limites estabelecidos pela lei, contra a sociedade ou de forma a aniquilar os direitos do cidadão (como se vê no democídio296). Pode-se dizer que, atualmente, a dominação legal se baseia em todos os princípios de direito e em todo o ordenamento jurídico de um determinado Estado de Direito, tendo-se no direito o reflexo da racionalização da política (Weber, 1999). Outra reivindicação é quanto à ética ou o ethos público, em que o direito é reflexo da moral elevada de um determinado povo e atua como substrato de consciência em cada cidadão moralmente estabelecido; contudo, essa conversão do direito com uma natureza modificada qualitativamente pela moral (ou pela ética) só se efetivou a partir de meados do século XX, com a vigência da ordem jurídica democrática. Um demonstrativo dessa reflexão está posto nas investigações de Jean Piaget. Para o educador suíço, a principal diferença entre moral e direito está no fato de que a primeira se estabelece de pessoa a pessoa e o “jurídico” nos obriga, como seres sociais, a orientar nossos sentimentos e ações a transcender em direção ao impessoal. Trata-se do próprio sentimento de pertencimento à Humanidade, como Princípio Civilizatório, de se reconhecer como membro da sociedade humana apenas se e, tão-só, quando nos reconhecemos como sujeitos de direito a partir da relação que estabelecemos com os demais sujeitos que compõem o meio social. Quando temos a maturidade intelectual e moral para entender que somos sujeitos de direitos apenas se os 295 Ou seja, há ilegalidade e ilegitimidade no Estado de Exceção, à medida em que o soberano ou Füher produz uma normatividade em que ele será o primeiro beneficiário. 296 Quando o Estado entra em combate interno contra uma parcela significativa do seu povo, por motivação políticoideológica e não exatamente por razão étnica ou racial. 312 outros ao nosso redor têm o mesmo status jurídico, ou seja, quando superamos a primeira infância do individualismo jurídico, do egoísmo social e da menoridade moral: A moral, assim como o direito, supõe um poder ou uma autoridade inicial, com passagem possível desta heteronomia para uma autonomia gradual e, aliás, sempre relativa. Amas repousam sobre uma construção criadora feita ao mesmo tempo de aplicação e de publicação em éditos contínuos das normas. Ambas implicam relações bilaterais imperativoatributivas e ambas oscilam entre as relações assimétricas ou de hierarquia e as relações simétricas ou de reciprocidade [...] Quando [...] Gurvitch fala de “emoções-leis”, de “convicções legais” ou de “fatos normativos”, trata-se de sentimentos interindividuais [...] o sentimento interindividual mais característico da vida moral é o “respeito” [...] O respeito é o sentimento complexo, formado por medo e afeição combinados [...] os autores que procuraram descrever as fontes do direito em termos psicológicos ou sociais [...] concordam todos ao falar do “reconhecimento” dos direitos, como se o fato de “reconhecer” sua validade constituísse o essencial do respeito à lei [...] para uns, é o reconhecimento que acarreta a validade de uma norma e, consequentemente, seu caráter normativo ou obrigatório, enquanto para outros é a norma dada em si mesma que desperta nas consciências o sentimento de seu reconhecimento [...] a experiência jurídica imediata deveria ser interpretada não em linguagem individualista, mas em termos de relações comunitárias no sentido da “comunhão” interindividual [...] não podemos viver com outra pessoa sem “reconhecer” seus direitos [...] O reconhecimento é, pois, o sentimento jurídico elementar; é um “ato intuitivo” e não “refletido”, isto é, um dado e não uma construção [...] Em outras palavras, uma coação bruta, que seria força pura, não reveste por si mesma um “valor jurídico” [...] O que é, com efeito, uma norma fundamental que assegura sua validade primeira às normas de Estado supremas (às constituições), a não ser justamente a expressão abstrata do fato de que a sociedade “reconhece” válida a ordem jurídica reconhecida? (Piaget, 2001, p. 139-143). A partir disso, temos que a conclusão de que reconhecer o direito é a essência da interação social, como reconhecimento da Humanidade. De todo modo, no Direito (ou mais especificamente no Estado de Direito), essa mesma alteração/transformação individual da consciência acarreta uma rotação institucional, apartando-se (teórica e historicamente) do eixo estático da relação direito/dever (um mecanismo de tipo mecânico, sistemático, de puro reflexo). E em troca, consubstancia-se uma dinâmica de composição/relação entre direitos e garantias desses mesmos direitos297. O Estado de Direito reconhece a personalidade jurídica estatal, mas não deixa de ser a apostação de certas características individualistas da própria personalidade (antes abrigada sob o império do direito de propriedade). Será esse o maior ou melhor sentido exposto na própria suposição da personalidade jurídica do Estado (ou fase atual em que se encontra a teoria da finalidade jurídica do Estado de Direito) e que corresponde à capacidade ou condição suficiente 297 As próprias garantias individuais, depois constitucionais e, por fim, as institucionais. 313 para transformar as pluralidades sociais em uma determinada unidade jurídica global, sem anular as mesmas particularidades que lhe deram vantagem inicial (transportando as individualidades ao social): do querer individual ao fazer pelo social (a República) e sem que se promova qualquer tipo de sujeição298 ou sob o disfarce de uma ditadura da maioria (Bobbio, 2000). O transporte da personalidade (que é uma condição individual prevista no Direito Privado – Direito Civil) para o Estado299 não subentende exatamente a total abstenção ou ausência de ação individual – pois, tanto é verdade que quem cala, consente, quanto é visível que nem todos sentem da mesma forma, e assim não podem ser também unânimes no consentimento: uns sentem mais que outros e, assim, alguns (con)sentem menos ao Estado (porque mais exatamente sentem menos a presença do Direito). Para milhões de pessoas, sem exagero algum, o Estado de Direito é mera ficção e é isto o que torna alguns mais iguais do que outros, ou seja, na vida prática de milhares de excluídos, a personalidade jurídica do Estado não tem um dado mínimo de realidade. É isto, por exemplo, que também legitima a ação contra o Estado, na aposta democrática da desobediência civil contra as leis injustas ou na requisição do direito de revolução (Menezes, 1998). Veja-se que, mesmo limitadamente, é possível falar-se em termos da composição entre Direitos e Garantias. Já no binômio restrito a Direito/dever só há o Direito do mandatário e o dever da obediência. Portanto, como salienta Lyra Filho (2002), aí não há Direito, só há antidireito300, só há dever. E hoje, em relação à própria institucionalização das garantias, ainda há o dever de opor-se ao antidireito301 ou, simplesmente, há a garantia do/ao próprio Direito: diz-se, acertadamente, do direito de resistência a todo dever imposto pelo antidireito. Para Bobbio, em suma, o binômio Direito/dever perde toda relevância após a experimentação dos períodos revolucionários: O homem tem deveres, mas enquanto pessoa com valor em si próprio, independentemente das circunstâncias de tempo e de lugar em que vive, em primeiro lugar tem direitos, como o direito à vida, à liberdade (às várias formas de liberdade), e à igualdade (pelo menos à igualdade dos pontos de partida). Só lhe podem ser atribuídos deveres quer em relação aos outros individualmente considerados quer em relação à comunidade de que ele próprio faz parte, enquanto é em primeiro lugar centro de imputação dos direitos fundamentais302 (Bobbio, 1999, p. 232 - grifos nossos). Até mesmo porque o(s) Direito(s) de alguns deveria(m) importar em deveres aos demais, bem como, por essa lógica restritiva do direito, seria possível ver que as garantias e a segurança 298 Aliás, diz-se acertadamente que, ao se remover toda forma de sujeição, promove-se automaticamente a iniciativa e a busca do consentimento, da legitimidade. 299 Direito Público como corruptela do Direito Privado. 300 Neste sentido vai nossa discordância em relação a um certo multiculturalismo cultural, pois a análise crítica da história política deveria destacar (para afirmar) as categorias universais do Estado de Direito e não as idiossincrasias, os regionalismos (tal qual a desclitorização), pois essa distância do todo é o que mais agride a consciência das particularidades (uma vez que estimula o não-respeito ao dissenso). 301 Entendido como dever moral, constitucional e republicano de, por exemplo, descumprir e de se opor a qualquer ordem injusta. 302 Essa passagem se deve às “revoluções americana e francesa e pelo reconhecimento dos direitos do homem, quando foi derrubada a antiga relação de primado entre os direitos e deveres, que tinha caracterizado as épocas anteriores” (Bobbio, 1999, p. 232). 314 (jurídica) de um exige a limitação/restrição de direitos dos demais. No limite, pensando historicamente, não teríamos desenvolvido uma consciência social ou coletiva dos direitos humanos, limitando-nos à incipiente visão individualista/egoísta da própria liberdade. Como diz Juan Ramón Capella, em texto intitulado Os cidadãos servos: “No mundo moderno – há que repeti-lo – afirmar com sentido que alguém tem um direito, implica que alguém distinto dele tem um dever. Um dever de fazer ou de não fazer, ou de respeitar o que faça quem tem o direito” (Capella, 1998, p. 136). Portanto, aquele que só tem direitos declarados, mas sem garantias efetivas desse Direito, acaba por só ter deveres – principalmente o dever de não interferir no direito de propriedade alheio: e esta é a fonte da luta de classes, entre proprietários e não-proprietários, como se o direito fosse criado apenas para a primeira categoria. Desse modo: “A frágil liberdade moderna não implica igualdade de deveres” (Capella, 1998, p. 139). Seguindo o exemplo anterior, o direito de propriedade (real) dos poucos proprietários e a garantia de sua propriedade são assegurados pelo dever de obediência pelos demais, ou seja, pela negação do mesmo Direito aos não-proprietários303. De forma direta, no Estado de (não)Direito: para poucos, há muitos direitos; para muitos, há muitos deveres. Do Estado de não-Direito Uma das maiores dificuldades na afirmação do Estado de Direito, na atualidade, está em negar todas as formas jurídicas e sociais que neguem o direito como inclusão social. A categoria central do Estado de (não)Direito, como figura política ou categoria (anti)jurídica em que se destacam tanto o que chamamos de Estado de Direito Injusto, quanto o mais próprio e específico Estado de não-Direito304, como negação explícita de um Direito que promova Justiça, é um exemplo. Nessa mesma linha ainda se pode tratar da transmutação da lógica entre poder/sujeição e poder/organização, da mesma forma que o binômio Direito/pretensão seria oposto ao respeito de outrem. Pois, na verdade, sob a ótica do Direito (até mesmo do Direito Positivo), não se trata de um respeito, mas sim da possibilidade jurídica de uma ação própria e necessária305. Ou, dito de outra forma, ainda se pode entender, como sugere Miranda, que se encaminha da ação individual à ação social, das estruturas formais do Estado de Direito306 ao (hoje, sobrevivente) Estado Social de Direito307: Do que se trata é de articular direitos, liberdades e garantias (direitos cuja função imediata é a proteção da autonomia da pessoa) com direitos sociais (direitos cuja função imediata é refazer as condições materiais e culturais em que vivem as pessoas); de articular igualdade jurídica (à partida) com igualdade social (à chegada) e segurança jurídica com segurança social; e ainda de estabelecer a recíproca implicação entre liberalismo político [...] e democracia, retirando-se do princípio da soberania nacional todos os seus corolários (com a passagem do governo representativo clássico à democracia representativa). Do que se trata é ainda, para tornar efetiva a tutela dos direitos fundamentais, de reforçar os mecanismos de garantia da Constituição; e daí a afirmação de um princípio da constitucionalidade 303 Dessa forma retomamos a crítica de que o Direito se limita à regra simples de que o direito de propriedade de uns poucos implica no dever de aceitação de todos os não-proprietários. 304 Tanto na forma do Estado Paralelo, quanto sob a bandeira do Estado Nazi-fascista. 305 Nenhuma pretensão de direito ficará sem resposta jurídica – donde o suposto mandado de injunção. 306 Visto como reserva das garantias, liberdades e direitos individuais (chamados, propositalmente, de fundamentais). 307 Em outro momento, analisamos como sendo o Estado Democrático de Direito Social. Mas, para Jorge Miranda, trata-se de uma segunda fase do Estado Constitucional (2002, p. 53). 315 acrescido ao princípio da legalidade da atividade administrativa e a instituição de tribunais constitucionais ou de órgãos análogos. Para já, diga-se apenas que as Constituições que servem de diretriz são a mexicana de 1917 e, sobretudo, a alemã de 1919 (chamada de Constituição de Weimar) e que, entre as Constituições vigentes que as seguem, reporta-se à italiana de 1947, à alemã de 1949, à venezuelana de 1961, à portuguesa de 1976, à espanhola de 1978 e à brasileira de 1988308 (Miranda, 2002, p. 53 grifos nossos). Pois é exatamente esta transmutação do Direito egoísta em Direito global o que não ocorre no Estado de (não)Direito. Trata-se, então, de uma ação possível e que pudesse ser interposta como garantia do próprio Direito requerido (as garantias institucionais do Direito), a exemplo dos remédios jurídicos: essa seria a fase ativa e corresponderia à consciência do Direito para si 309. Ou seja, a transposição do meu direito de requerer em favor do nosso direito de agir; do maniqueísmo clássico (Direito-dever) ao pluralismo (Direito-garantias); da gramatura (formalidade) e da ranhura (históricas) à gramática (a escrita do novo direito) e às gravuras universais do direito; da (in) consciência do Direito em si à (cons) Ciência do Direito para si. Dessa forma, ainda deveremos ler o artigo 144 da Constituição Federal (ordem e segurança pública) de acordo com um horizonte ampliado, mas que hoje ainda é dado como mero reflexo de um tipo de Estado Hobbesiano310 (com um significado nem tão atual311). Sobretudo porque a chamada Ordem Pública requer exatamente o direito de consentimento e não a mera acomodação cega às instituições – ou, mais simplesmente, porque não há República possível sem consciência inevitável. Esta que seria a consciência inevitável e criada pelo direito de consciência e não só pelo dever de obediência. Assim é que na opulência do Poder Absoluto, presente no Estado de (não)Direito, não há terreno viável para essa consciência possível da Justiça. Na melhor tipologia de um Estado de Direito Injusto, acaba se tornando Estado de não-Direito quando aplica a lei injustamente, persecutoriamente. Será Estado de não-Direito quando regular a abordagem e a implicação institucional de forma desnivelada entre amigos e inimigos, quando estiver em vigor a máxima de aos amigos, tudo; aos inimigos a lei! Isto se verifica porque, em nome da institucionalização do Poder Político, perdeu-se de vista a legitimidade popular que deveria ser auferida à aplicação do Direito e à consecução da Justiça Social. É como se disséssemos que se perdeu a mobilidade do Direito, pois suas raízes mais sociais estão soterradas por um imenso processo de burocratização e de despersonalização. O Estado de (não)Direito desconhece a legitimidade normativa, se entendermos que esta legitimidade advenha da cultura da vida em sociedade e não unicamente das estruturas oficiais do Estado. No caso, é óbvio que estaríamos tratando de um Estado Leviatã. Neste caso, os adversários políticos são tratados como inimigos de Estado e esta não deixa de ser uma característica do chamado Estado Total. Vemos como o lado positivo do direito (da “negação da 308 Trata-se de uma adaptação livre do português luso ao português nacional. Outra clara evidência de que não se trata do Direito como mandamento e sim da consciência do Direito – o que é bem diferente da afirmação de que ninguém pode alegar ignorância da lei (uma aberração, se pensarmos que temos milhões de leis). 310 Esse Estado Hobbesiano tem dois significados unificados em sua expressão maior: a) no ambiente descrito pelo Estado Paralelo, estimula o estado de natureza; b) é um Estado Policialesco para a grande maioria da população mais pobre. 311 Direito de mando; dever de consentimento/obediência. 309 316 negação” do Direito) pode ser reformado/transformado num eficiente Direito Proposto, projetivo de uma sociedade mais justa e igualitária – tal qual previsto pelas promessas do Estado Democrático de Direito Social. Por fim, em uma demonstração mais simplificada, ainda podemos dizer: A premissa política312 da finalidade organizativa do Estado de Direito assegura que: o poder político deve estar conformado segundo as medidas do Direito313 o governo dos homens é um governo sob leis e por meio de leis (direitos — garantias — liberdades314) De certo modo, o objetivo maior é desconstruir o conceito exposto de Estado de nãoDireito, ou seja, afirmar uma certa condição popular. Nessa tentativa de síntese, podemos/devemos reconstruir o conceito de Estado de Direito sob um prisma mais popular, cultural e atuante. Quando o Poder Político não encontra limitações éticas facilmente se converte em Estado de Sítio. 312 Destaca o raciocínio e a argumentação que tenha validade lógica, portanto, que seja verdadeiro. É o caso de se afirmar, mais uma vez, a condição democrática desse pressuposto: “Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático” (Canotilho, s/d, p. 230). 314 Quanto à reserva das garantias na Constituição Portuguesa, Canotilho ainda dirá que: “acrescente-se a isto o regime garantístico dos direitos, liberdades e garantias [...] o direito de acesso aos tribunais [...] a reserva de lei em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias [...] No seu conjunto, estes princípios e regras concretizam a ideia nuclear do Estado de direito – sujeição do poder a princípios e regras jurídicas -, garantindo às pessoas e cidadãos liberdade, igualdade perante a lei e segurança” (s/d, p. 231 - grifo nossos). 313 317 ESTADO DE DIREITO E GOVERNABILIDADE O poder regulado pelo Estado de Direito terá (ou não) condições de governabilidade. No Estado Liberal, por exemplo, o poder é menos disciplinado do que no Estado Desenvolvimentista ou de fundo socialista. Inicialmente, entendemos o Estado de Direito como o conjunto de regras que disciplinam o poder e a vida comum do homem médio. Também em resumo, diz-se que a Governabilidade representa o conjunto de condições que margeiam e determinam o exercício do poder. Isto é, o Estado de Direito interfere, regulariza, juridicamente, as condições de governabilidade. Atualmente, mesmo que sob o modelo liberal-conservador, a análise da estreita relação entre Estado de Direito e governabilidade tem de considerar que o papel do cidadão no século XXI – após longo aprendizado no século anterior – é decisivo e legitimador. Este é um dos desafios do chamado Poder atual, aquele que os atores políticos já efetivaram (independente de sua legitimidade). Chamado de cidadão governante (Canivez, 1991), está no próprio nome o grau de legitimidade que se auferiu para o presente-futuro. No texto, o objetivo geral será definir e relacionar o conceito de Estado de Direito à ideia de governabilidade, contudo, a democracia e a cidadania serão tomadas como garantias desta capacidade de gerir o Poder Político, como governabilidade institucional. De modo geral, sem prever os momentos de exceção histórica, pode-se verificar que o Estado de Direito é condição ou prerrogativa da governabilidade. Estado de Direito O que é Estado de Direito? Pode-se definir o Estado de Direito como conjunto de regras do poder e de normas jurídicas de caráter universalista. Normas de contenção do poder (atribuindo-se direitos aos cidadãos), mas também normas de regulação e de controle social (o direito de um não pode ferir o direito de outrem). Também podemos dizer que o Estado de Direito estabelece limites à relação entre liberdade e poder. Na estrutura clássica do racionalismo, desde Hobbes, o Estado de Direito é uma racionalização das subjetividades políticas. É esta “reta razão” que converteu a “necessidade natural” em organização política: “Existe um paralelo entre o estado natural ou estado de guerra e o estado de linguagem ou estado racional, depois entre o estado de linguagem e o estado de direito ou estado civil” (Angoulvent, 1996, p. 26). A reta razão implica no uso do cálculo racional (objetividade, previsibilidade) orientada pelo concatenamento que há entre premissas e conclusão (lógica formal). No caso específico, trata-se da aplicação da racionalidade à política, a exemplo da própria Razão de Estado. Também se fala de uma soma-zero, como uma equação do poder, em que, para um ganhar, o outro tem de perde. Logo, na relação de poder, como conquista, não há a figura do Outro (como se a autoridade do poder aniquilasse a alteridade social, moral). Enfim, como se depreende de Hobbes, é possível articular a moral à política (com lógica) – novamente, esta é a Razão de Estado. Esta foi a responsabilidade atribuída à engenharia jurídica do século XIX, primeiro como segurança do Estado e do governo e, só depois, mais acentuadamente a partir da Constituição de Weimar, como conquista da cidadania. A expressão Estado de Direito foi cunhada pelo jurista alemão Robert von Mohl, no século XIX, ao procurar sintetizar a relação estreita que deve haver entre Estado e Direito ou 318 entre política e lei. Segundo o jurista português, por oposição a Estado de(não)Direito, podemos entender o Estado de Direito como o Estado propenso ao Direito: Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização políticoestatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito315. ‘Estado de não direito’ será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito (Canotilho, 1999, p. 11 – grifos nossos). Se o Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito, então, é claro que se estabelecem limites à governabilidade, ao exercício do Poder Político, por meio do direito que já se infiltrou, internalizou nas entranhas e em todo o contorno do poder de Estado. Enfim, não há poder que o direito desconheça e que se preste a sua regulação. Em uma frase simples, podemos definir Estado de Direito a partir da estrutura estatal em que o poder público é definido/limitado ou controlado por uma Constituição. Portanto, há uma maior judicialização do poder político. Também inicialmente, podemos afirmar que seus principais elementos são: a) IMPÉRIO DA LEI: quer dizer que a lei deve ser imposta a todos, a começar do Estado – o Estado tem personalidade jurídica e por isso é objeto do Direito que ele próprio produz. b) SEPARAÇÃO DOS PODERES: significa que o Poder Executivo não pode anular o Poder Legislativo, além do que deve ser acompanhado e julgado pelo Poder Judiciário – trata-se de assegurar a interdependência dos poderes por meio da aplicação do sistema de freios e contrapesos. c) PREVALÊNCIA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS FUNDAMENTAIS: refere-se notadamente aos direitos individuais, até os anos 20 do século XX, porque somente nesse período é que entraram em cena os direitos sociais e coletivos. No entendimento de Miguel Reale: Por Estado de Direito entende-se aquele que, constituído livremente com base na lei, regula por esta todas as suas decisões. Os constituintes de 1988, que deliberaram ora como iluministas, ora como iluminados, não se contentaram com a juridicidade formal, preferindo falar em Estado Democrático de Direito316, que se caracteriza por levar em conta também os valores concretos da igualdade (Reale, 2000, p. 37). Nesta passagem, Reale acentua diretamente a necessidade de abordarmos temas espinhosos como o da personalidade jurídica do Estado - do que decorre, por exemplo, a citada regra da bilateralidade da norma jurídica. 315 O Estado de Direito é a própria regulação jurídica do Poder Político – como regra da bilateralidade da norma jurídica (propensa ao cidadão e ao Estado) –, isto é, equivale ao direito interposto à governabilidade. 316 Sabe-se que nossa inspiração veio do constitucionalismo português, da inversão da denominação lusa do Estado de Direito Democrático. O direito democrático é a garantia necessária ao poder democrático e não o contrário. A crença no direito, como regulação do Poder Político, portanto, é acentuada, como se o direito se sobrepusesse à política. 319 Já para Bobbio, para melhor conceituar Estado de Direito, é preciso distinguir entre: 1. Limites dos poderes do Estado; 2. Limites das funções do Estado. Esta divisão nos ajudaria a compreender algumas diferenças entre liberalismo e Estado de Direito: O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes quanto às suas funções. A noção corrente que serve para representar o primeiro é Estado de direito; a noção corrente para representar o segundo é Estado mínimo [...] Enquanto o Estado de direito se contrapõe ao Estado absoluto entendido como legitibus solutus, o Estado mínimo se contrapõe ao Estado máximo: deve-se, então, dizer que o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de direito e contra o Estado máximo em defesa do Estado mínimo, ainda que nem sempre os dois movimentos de emancipação coincidam histórica e praticamente (Bobbio, 1990, p. 17-8). O Estado mínimo317 aqui definido pode ser entendido como a antítese do máximo de concentração de poder no Estado – além da diminuição da intervenção na área econômica como temos hoje em dia. Mas, analisemos melhor a questão do controle ou do excesso de poder: Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam, salvo o direito do cidadão de recorrer a um juiz independente para fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso ou excesso de poder. Assim entendido, o Estado de direito reflete a velha doutrina [...] da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens, segundo a fórmula lex facit regem (Bobbio, 1990, p. 18). Bobbio ainda irá ressaltar que o Estado de Direito é entendido como a fase em que houve a necessária positivação do chamado direito natural, mas com uma substancial defesa dos direitos individuais. Vejamos: Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação ulterior: a constitucionalização dos direitos naturais 318, ou seja, a transformação desses direitos em direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos. Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio “invioláveis” (Bobbio, 1990, pp. 18-19). Em Bobbio, também vemos algumas diferenças entre o Estado em sentido forte (Estado Constitucional), Estado em sentido fraco (Estado não-despótico: governo das leis) e Estado em sentido fraquíssimo (a partir de Kelsen, com a máxima resolução do Estado no Direito, no 317 Não se refere ao Estado Neoliberal, como ausência de participação estatal na área social e econômica. Sob esse sentido estrito, talvez o melhor fosse dizer que houve uma progressiva constitucionalização dos direitos políticos. 318 320 sentido de que todo Estado é Estado de Direito). O mais importante, no entanto, é que Bobbio destacará os mecanismos de controle e de juridicidade do poder do Estado: Do Estado de direito em sentido forte, que é aquele próprio da doutrina liberal, são parte integrante todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o exercício ilegal do poder. Desses mecanismos os mais importantes são: 1) o controle do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe em última instância o Poder Executivo, por parte do parlamento, a quem cabe em última instância o Poder Legislativo e a orientação política; 2) o eventual controle do parlamento no exercício do Poder Legislativo ordinário por parte de uma corte jurisdicional a quem se pede a averiguação da constitucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do governo local em todas as suas formas e em seus graus com respeito ao governo central; 4) uma magistratura independente do poder político319 (Bobbio, 1990, p. 19). As garantias institucionais dos direitos constitucionais constituem os melhores mecanismos de frenagem do poder e de garantia da liberdade – neste caso, as garantias referentes à liberdade negativa. Como analisa Bobbio: Os mecanismos constitucionais que caracterizam o Estado de direito têm o objetivo de defender o indivíduo dos abusos do poder. Em outras palavras, são garantias de liberdade, da assim chamada liberdade negativa, entendida como esfera de ação em que o indivíduo não está obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo que não deseja ou não está impedido de fazer aquilo que deseja [...] nas relações entre duas pessoas, à medida que se estende o poder (poder de comandar ou de impedir) de uma diminui a liberdade em sentido negativo da outra e, vice-versa, à medida que a segunda amplia a sua esfera de liberdade diminui o poder da primeira (Bobbio, 1990, p. 20). Destacamos, por fim, que esta apresentação do Estado de Direito, como o faz Bobbio, é uma interpretação de fundo liberal (aliás, o próprio título do livro já identifica: Liberalismo e Democracia), com suas vantagens, mas também com suas limitações ideológicas e até jurídicas320. Contudo, há toda uma dinâmica social, condição intelectual de época que precisam ser observadas. Além do instituto jurídico podemos/devemos ressaltar que o Estado de Direito propenso à governabilidade é daquele tipo que se organiza em torno da democracia participativa e da cidadania plena/inclusiva. Inicialmente, entendemos como parte da condição de que a democracia deve ser a sustentação do poder, tal como o poder do governante é submetido às mesmas regras democráticas, constituindo-se em crime de responsabilidade política (suspensão ou perda dos direitos políticos) o agir independente do que dispõem os cânones da democracia. O governante deve se eleger por meio dos regulamentos da democracia, mas, uma vez eleito, não pode 319 Hoje, certamente, poderíamos falar da necessidade desses dados e de uma imprensa livre, crítica e investigativa. Foi este o sentido que desenvolvemos na dissertação Estado de (não)Direito: quando há negação da Justiça Social, da Democracia Popular, dos Direitos Humanos (Martinez, 2010). 320 321 dispensá-los, sob pena de perder o mandato, pois, a democracia é instrumento e fim, e não mero meio ou regra de obtenção do poder (nem mesmo sob a alegação de uma tirania da maioria). É, assim, a mais fundamental regra de sustentabilidade do poder (limitando-se, justificadamente, os recursos do realismo político) e não simples recurso de ascensão ou legitimação semântica daqueles que detêm o poder: não haveria, dessa forma, a mínima condição de se eleger pelas vias democráticas e, em seguida, transformar-se em déspota, alegando-se a mesma sustentabilidade do poder. No Brasil, não há previsão constitucional específica, nesse sentido, mas é possível pensarmos em cominar abuso de poder atentatório ao Estado Democrático de Direito (art. 5º, XLIV da C.F.) com ato lesivo à probidade administrativa (art. 37, § 4º da C. F.). Aliás, pode-se afirmar que o Estado de Direito é uma forma de governabilidade, especialmente sob a democracia, uma vez que pode ser definido como o governo das leis versus o governo dos homens (quando predomina a política). Governabilidade O que é governabilidade? Como instância organizativa, operativa, pode-se dizer que a governabilidade é a capacidade político-jurídica, institucional e administrativa que o Estado (Poder Político) e seu governo de momento encontram para efetivar as políticas públicas (como atos decisivos do poder), entendendo-se este como a capacidade de organização do poder de acordo com as relações conjunturais entre o próprio Estado e a sociedade. Implica, portanto, no conjunto de condições globais, sistêmicas, necessárias e determinadas ao exercício do poder. Governança é a capacidade de executar as medidas já fixadas anteriormente (ou tomadas) na ação de governabilidade. Por isso, a governabilidade é o exercício do Poder (regulado pelo Estado de Direito) em determinadas condições objetivas extraídas da relação entre Estado e sociedade. No contexto da Constituição Federal de 1988, trata-se de avaliar a governabilidade de acordo com o Princípio Democrático e sua disposição inerente à salvaguarda dos direitos da cidadania. Princípio Democrático Retomaremos o sentido de governabilidade amparado pelo Princípio Democrático, como expresso pelo jurista português: O princípio democrático é um princípio normativo que atua como impulso dirigente de uma sociedade, como se fosse um processo de continuidade transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas. Ainda oferece aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade econômica, política e social (Canotilho, s.d, p. 286 e ss.). O Estado de Direito é o governo das leis. Ainda com Canotilho (s/d p. 286 e ss.), é preciso reforçar dois aspectos interligados entre política e direito: em primeiro lugar, acolhe os mais importantes postulados da teoria democrática; em segundo lugar, implica na democracia participativa. E aqui ainda se desdobra em sentido e alcance: Estruturação de processos 1. Efetivar possibilidades de apre(e)nder a democracia 2. Participar nos processos de decisão 3. Exercer controle crítico na divergência de opiniões 4. Produzir inputs político-democráticos Exercício democrático do poder 1. Participação democrática dos cidadãos 2. Reconhecimento constitucional da participação direta e ativa 3. Consolidação do sistema democrático 322 4. Aprofundamento da democracia participativa Como Princípio jurídico-constitucional, a democracia tem dimensões materiais e dimensões organizativo-procedimentais: 1. Normativo-substancialmente Condiciona a legitimidade do domínio político à persecução de determinados fins Realiza determinados valores e princípios Prevalece a soberania popular, garantia dos direitos fundamentais, pluralismo de expressão e organização política democrática 2. Normativo-processualmente Legitimação do poder deve observar regras e processos. Subentende-se que os direitos fundamentais têm uma função democrática, e isto ainda nos revela que: (1) Significa a contribuição de todos os cidadãos para seu exercício (princípiodireito da igualdade e da participação política). (2) Implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por exemplo, direitos constitutivos do próprio princípio democrático). (3) Co-envolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais, econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural. Por sua vez, os direitos fundamentais atuam: 1. como direitos subjetivos de liberdade criam um espaço pessoal contra o exercício de poder antidemocrático; 2. como direitos legitimadores de um domínio democrático asseguram o exercício da democracia mediante a exigência de garantias de organização; 3. como direitos subjetivos a prestações sociais, econômicas e culturais constituem dimensões impositivas para o preenchimento intrínseco direitos. Portanto, o princípio democrático aponta, no sentido constitucional, para um processo de democratização extensiva: a democracia é, no sentido constitucional, garantia pela à democratização da democracia. Realce-se, portanto, esta dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio democrático. Pois bem, por este modelo de Estado Democrático, especialmente no pós-Segunda Grande Guerra, propôs-se positivar os meandros, os meios de mudança e de transformação do antigo Estado de Direito Liberal. Por isso, ainda devemos assegurar as regras do jogo democrático. No caso de Espanha e Portugal, a década de 1970, com a finalização dos regimes autoritários e a revisão constitucional, seria de especial escolha para entender a análise. Já no sentido mais liberal da discussão, Denis Rosenfield (1992, p. 32), comentando o livro Qual Socialismo, de Bobbio (2002b), sintetiza as regras do jogo da seguinte maneira: “...regras estas que se caracterizam pela rotatividade do poder, pelo sufrágio universal, pelo 323 respeito às decisões da maioria, pela defesa dos direitos da minoria...” (grifos nossos). Entretanto, para além das regras do jogo (imprescindíveis, mas não suficientes), o Estado Democrático tem de ser real, efetivo, não apenas formal ou eficaz; tem de ser político e social, e não apenas jurídico, dogmático ou doutrinário. Em resenha do filósofo italiano Antonio Negri – ao livro Qual Socialismo? – lemos que: Se tudo que dissemos for verdade, segue-se que o pensamento jurídico e político de Bobbio beira (ou talvez decididamente pertença a) mais uma variedade das teorias da 'razão de Estado': uma teoria do Estado que não é ameaçador, despojado de toda ressonância germânica, e que no entanto re-impõe-se como uma razão de Estado revisada e como uma teoria de democracia talmúdica. Para salvar o Estado e para manter um mínimo de democracia, Bobbio nos diz que: "nós devemos, dada a falta de alternativa, defender as regras do jogo: democracia formal, apesar de suas falhas e contradições, ou seja, sua garantia do direito à liberdade, eleições periódicas através do sufrágio universal, governo de maioria, ou como quer que o mesmo seja interpretado de parte a parte. Todas as demais promessas a respeito da soberania popular, igualdade, transparência do poder, equidade etc, são simplesmente promessas excessivas e vãs que não poderiam ser cumpridas... Em outras palavras, vamos ficar com essa democracia pelo que ela é, um mal menor. Portanto não podemos fazer mais do que um apelo a certos valores, tais como os ideais de tolerância e de fraternidade, aquela fraternidade que une todos os homens num destino comum, ainda mais compulsoriamente hoje, dada a ameaça das armas nucleares"321. Para Bobbio, por exemplo, em sua definição, é essencial esta parte procedimental da democracia. Contudo, já em Aron (no livro Estudos políticos), a definição teoricamente alcança a todos, mas historicamente é incompleta. Não sendo uma democracia permanente, o sociólogo acaba por priorizar a luta política organizada: Uma tal definição da democracia — competição organizada dos candidatos a exercer o poder, de tal forma que os vencedores provisórios aceitam dar uma oportunidade aos adversários, alguns anos depois, ficando o exercício do poder e a própria competição sujeitos a regras precisas — deriva de J. Schumpeter, aceitas com variações secundárias, pela maioria dos sociólogos ocidentais (1985, p. 306-7 – grifos nossos). É como se disséssemos que para os “perdedores” a democracia se restabeleceria “alguns anos depois”, enquanto para os vencedores seria um processo permanente. Contudo, perguntamos: pode-se registrar perdas na democracia quando os envolvidos são de fato democráticos e quando o objetivo seria alcançar metas favoráveis ao povo? As minorias não possuem nenhum tipo de salvaguarda jurídico-política? Veremos que as respostas a essas questões são próprias da cidadania ativa. Deve-se ressaltar, porém, que na descrição surge um ponto de singular importância para essa discussão: é a possibilidade da rotatividade do poder, isto é, com a alternância dos 321 http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/3publ/90negri/. 324 mandantes, temos na verdade de um imperativo categórico do regime democrático. Por outro lado, tais limites formais da definição de democracia e inserção da cidadania já poderiam ter sido superados, inclusive pelo liberalismo. Pois, historicamente, já se produziu uma série de outros conteúdos sociais322. O que impede sua absorção? Parece-nos que é o apego às formulações clássicas, abstraídas de seu tempo. Em outros casos, nem mesmo a cidadania é tema de referência. Basta-nos novamente o exemplo dado por Raymond Aron (em Da Condição Histórica do Sociólogo), baseando-se no conceito de nação que empresta de Marcel Mauss — o famoso sobrinho de Durkheim —, para se ver que o cidadão está fora de seu horizonte político: Uma nação, escrevia ele, é por excelência a sociedade integrada pela abolição de toda segmentação, clã, cidade, tribo, reino, domínios feudais. Ela crê na sua língua, que ter seus comerciantes, seus juristas, seus banqueiros, seus mestres, seus jornais, sua arte, ela quer criar para si uma moral, uma tradição, um ensino, sinal da necessidade da verdadeira independência, da total liberdade à qual aspiram tantas populações até aqui desprovidas destes bens (1981, p. 20). Nesse texto, juristas, comerciantes e banqueiros são os mestres da nação. Os profissionais são exaltados, mas é como se o cidadão não lhes tivesse aparecido nenhuma vez — nem mesmo para encomendar seus serviços. É certo que o cidadão e a nação não nascem sob um contexto estritamente correlato, mas quando Aron comenta as observações de Mauss o cidadão já era fato presente. Quando o próprio Mauss desenvolve seu ensaio, o cidadão bem que poderia ser um de seus leitores. Evidentemente que tal omissão não é proposital — quando se trata do liberalismo —, uma vez que, em outro momento, Aron abordará o tema. Mas revela a noção generalizada de que não é necessário aprofundar a discussão. O que, aliás, não é o pior dos pecados do liberalismo, porque também o marxismo não lhe dedica muita atenção. Umberto Cerroni – pesquisador do marxismo e preocupado com a elaboração de uma “ciência política marxista” e “democracia socialista” (Bobbio, 1987, p. 21) – em (Política...) seu dicionário e/ou manual de ciência política (1992, p. 9) sequer menciona no índice, ainda que como intertítulo, os conceitos de cidadão e/ou cidadania. Ralf Dahrendorf (em A nova liberdade), faz a defesa de um liberalismo participativo e para tanto, há várias fórmulas. Dentre as quais, emprega a que apresenta a noção de cidadão como indivíduo crítico: “O que precisamos para converter o potencial de sociedades avançadas em realidade é um público político geral, que permita a indivíduos críticos expressarem sua impaciência e seu desejo por liberdade num mundo novo” (1979, p 35). Porém, Dahrendorf, ao invés de avançar esta noção, parte do conceito legal e aqui não se sabe muito bem qual é a participação dos indivíduos críticos. Pois, sabe-se perfeitamente que estes indivíduos podem ter seus direitos políticos e sociais suspensos. E o direito, por definição, não é crítico — sendo antes, uma disciplina axiológica. O que por sua vez pode não assegurar a validade de tal status legal, uma vez que: “Os direitos legais dos cidadãos têm de ser suplementados, primeiro, por direitos políticos, que incluem o direito de associação tanto quanto o de sufrágio, depois por direitos econômicos e 322 Eric J. Hobsbawm (em Mundos do Trabalho) comenta o paradoxo que há entre o tratamento individualista dado pela lei e o fundamento político universalista, imposto pelos movimentos operários: “Mais do que qualquer outra força, o movimento operário ajudou a romper a camisa-de-força individualista de natureza político-jurídica, que confinava os direitos humanos do tipo da Declaração francesa e da Constituição norte-americana [...] Se a Declaração das Nações Unidas inclui direitos econômicos, sociais e educacionais — e ao fazê-lo aproxima-se mais de Tom Paine do que de Madison —, este fato se deve primordialmente à intervenção histórica dos movimentos operários.” (1988, p. 426). 325 sociais que dão às pessoas um mínimo de garantia de status” (Dahrendorf, 1979, p. 35). Mas também Bobbio (et.al.) em seu Dicionário de Política, que reúne mais de 1.300 páginas, não reserva um verbete sequer aos conceitos de cidadania ou de cidadão. Um problema sério, por conseguinte — não só deste liberalismo de que Aron faz parte —, é o limite curto das propostas de democracia e cidadania como garantias da governabilidade. Justamente porque há uma estreiteza de possibilidades para a grande maioria dos cidadãos323. Canivez (1991) empresta de Weil (1979) o termo governante potencial para caracterizar o cidadão moderno e para defender a ideia de que, na democracia moderna, o cidadão não pode se contentar em depositar o voto a cada quatro anos como afirmava J. Schumpeter, e como se queixava Marx (1979)324. Schumpeter e as regras do jogo Schumpeter procurou definir a democracia de modo simples, como se procurasse por uma fórmula diretiva, que sintetizasse sua dinâmica na realidade da imensa maioria dos países ocidentais: organizar eleições e trocar os mandantes a cada quatro anos. Como se sabe, as tentativas de sistematização raramente são frutíferas, porque a realidade é sempre mais complexa do que a nossa percepção. Contudo, todo esforço de racionalização é benéfico por buscar esclarecimento. Uma das limitações das racionalizações em Teoria Política se refere a não apreender todas as potencialidades envolvidas. Exatamente neste sentido, pode-se dizer que a política do real é, antes, uma potencialidade, tanto mais aberta quanto maior o número de opções, atores e sujeitos envolvidos. Da escolha se faz o novo: a política do real é a arte da criação e da expansão. Daí também se poderia concluir que o processo eleitoral será tanto mais democrático quanto maior a possibilidade de escolha e maior a participação dos atores sociais envolvidos (a fórmula de Schumpeter levada ao sem limite). E o que garante a subsunção da violência, inerente ao realismo político, num novo contrato mais tolerante? Este propósito de regulação da democracia ainda reforça a tese geral da governabilidade e nos aproxima da cidadania, como governabilidade democrática. Num sentido bastante genérico, pode-se dizer que em torno da questão da cidadania se alinham duas correntes: a “legalista” e a “ativa”. A primeira, define-a abstratamente, juridicamente, como “a somatória dos eleitores que dispõem de direitos e deveres”. O que a esvazia de seu caráter conflituoso, participativo e até violento. A segunda, ao contrário, privilegia o aspecto da conflituosidade e até da violência (principalmente o que se evidencia na luta de classes, entre grupos privados, entre o público e o privado). Não pressupõe um cidadão conformado e ausente, mas ativo e de participação constante. E uma vez que participe entrará em conflito com outros valores e interesses, configurando a “cidadania ativa”. Em torno dessa linha de ação desfilam autores das mais diversas correntes e pontos de vista, como vemos em Bobbio e Sorel. O conceito de 323 Também definido como liberal, Ralf Dahrendorf diz da necessidade de uma segurança social mínima, ou seja, acaba admitindo a desigualdade na base da cidadania: “Por outras palavras, nada há intrinsecamente errado sobre as desigualdades de renda, de status adquirido em qualquer sentido. É verdade que a cidadania efetiva requer a criação de uma rede de segurança abaixo da qual a ninguém é permitido cair, na verdade um status comum básico; é também verdade que a cidadania requer a diminuição do status daqueles poucos cujas fortunas, com frequência herdadas, permite-lhes ameaçar os direitos de cidadania dos outros; mas há, e precisa existir, muito espaço entre o chão comum dos direitos e o teto comum do poder privado.” (1979, p 43). 324 A história da política brasileira é marcada por essa corrida ao sufrágio, principalmente em relação ao Executivo. Weffort (em O Populismo na Política Brasileira) analisa a política de 45: “Trata-se, com efeito, de uma situação em que a expressão política popular é, no essencial, individualizada através do sufrágio (fenômeno que se associa a estas duas outras características da política brasileira, a hipertrofia dos executivos e o elevado grau de personalização do poder governamental) [...] Do mesmo modo, era manifesto que a participação eleitoral das massas se orientava predominantemente para os pleitos executivos: como diria Marx, o Presidente ‘é o eleito da nação e o ato de sua eleição é o trunfo que o povo soberano lança uma vez em cada quatro anos’.” (1980, p. 21). 326 cidadania ativa não requer necessariamente o voto direto, isto é, a democracia direta como se verificava na Grécia antiga. Requer antes de tudo a participação, como se vê com G.D.H. Cole (em La organización política): Na Grécia clássica, a cidadania ativa, e não meramente passiva, era considerada como um dever normal e um privilégio de todos e de cada um dos cidadãos; e a consciência política aparecia amplamente difundida na comunidade inteira, a qual considerava a atividade pública um de seus interesses mais constantes e agudos (1987, p. 14). A consciência pública é o traço distintivo entre a cidadania ativa dos “antigos” e a consciência dos direitos individuais do cidadão moderno. Entre os modernos, a cidadania é resgatada por Sorel na primeira década deste século e sua teoria previa um cidadão ativo, além do mero eleitor. Procurava ultrapassar a tese do “um voto para cada homem” do liberal John Locke. É bom ressaltar que não há cidadão sem uma formação social, e nem cidadania sem garantias de direitos. Porém, pode-se depositar certo peso em um ou outro aspecto. O que decorre da visão política específica que cada um tenha. Portanto, diz-se ativa porque a cidadania deve ser constante e não temporária, como prevê Schumpeter com sua fórmula de “organizar eleições a cada quatro anos”. Isto é, uma ação consciente que desvela o estado anterior da passividade. Entretanto, toda democracia e cidadania precisam ser esclarecidas, dimensionadas, reguladas, como nos diz Javier Villate e ainda que contrariamente a todo o pensamento até aqui desenvolvido (por e-mail): Soy partidario de una democracia participativa, pero este término tiene acepciones muy diversas. Algunos acercan esta concepción a la democracia directa o a una concepción del hombre como ser esencialmente político, considerando que es la esfera política la propia de un individuo liberado. Yo no estoy de acuerdo. Hay quienes reducen la democracia a un mecanismo de mercado: elección por parte del pueblo de unos candidatos que compiten por sus votos, es decir, un mecanismo de selección de las élites. Es la idea de Schumpeter. Esta concepción, por cierto, refleja bastante bien la realidad actual, pero no es admisible como un ideal. En el otro extremo, hay quienes operan una reducción de signo inverso, reduciendo la democracia a un mecanismo puramente político. Antes he dicho que la democracia es un sistema de gobierno y nada más. Y ahora parece que me contradigo. Pero lo que digo es que la democracia es un mecanismo político para tomar decisiones COMO PARTE del conjunto de interacciones sociales que desarrollamos, sin privilegiar su esfera por encima de otras. O dicho de otra forma, la esfera política no es, como quería Arendt y los participacionistas, la esfera donde se realiza la libertad del hombre, sino un mecanismo de la sociedad para tomar decisiones. La plena realización del hombre precisa de la ACCIÓN (la "vita activa" de Arendt) en el conjunto de las esferas que conforman la sociedad. Y el cemento de esa acción diversa en diversas esferas es la moral. La política, la democracia y la participación son herramientas, básicas y esenciales, pero herramientas al fin y al cabo. Esto tampoco lo ha comprendido satisfactoriamente, en mi opinión, Habermas. Obsesionado por el logro de un consenso, ha subordinado la 327 plural y diversa acción social al sistema político. Con otras palabras, ha reducido la moral a la política. El objetivo no es lograr la participación política de los individuos, sino el establecimiento de unas relaciones sociales equitativas y cooperativas basadas en las libertades y la justicia. Y esas relaciones tienen lugar en la escuela, la fábrica, el centro de trabajo, el barrio, el mercado, la ciudad, la familia, etc. Cuando nos volvemos conscientes de que debemos regular esas interacciones sociales, nos convencemos de que debemos hacerlo a través de la deliberación pública..., entonces entramos en la esfera política. Pero no como un ideal o una obligación, sino como el resultado de la conciencia de que debemos resolver colectivamente los asuntos públicos, lo cual no deja de ser un mecanismo más. Hasta tal punto es un mecanismo que no estamos (no debemos estar) dispuestos a sacrificarle nuestras libertades individuales. No sé si me he extendido indebidamente, pero he intentado explicar cómo entiendo la política y la participación política y qué lugar le otorgo en una concepción más global del individuo y la sociedad, que es, en última instancia e inevitablemente, una concepción moral (grifos nossos). Partindo-se da tentativa de ausência de juízo de valor, no sentido dado por Schumpeter, também a democracia é a busca pela eficácia (jurídica) ou eficiência (social). Isto é, partindo da eficácia (nem bom, nem mau, nem neutro, mas resultante do político), a democracia é o melhor regime não porque a partir dela se destaque o melhor jogador (meritocracia), mas porque é o melhor jogo político — com destaque para a fixação das regras do jogo (Bobbio, 1986). Alguns dizem que é o menos pior, mas o importante é que se constitui num jogo eficaz para não sucumbir e se diluir em formas autoritárias. Tal expectativa, na verdade, enfrentará uma série de dificuldades conceituais e concretas. Canivez (1991) diz que a definição liberal de cidadania é parte destes obstáculos, quando a define como portadora de direitos e deveres. Outra dificuldade advém da própria motivação individual em participar da política, com ou sem eleição. Daí a pergunta: será a educação política suficiente para se ultrapassar esses limites? Democracia e igualdade Será uma questão meramente educacional ou a simples definição formal de cidadania é suficiente à necessidade de motivação política? Mesmo constatando a limitação da proposta educacional, Canivez afirma a necessidade de uma educação voltada para um cidadão ativo e não mais contemplativo do poder. Retomando a cidadania ativa, diz que há o momento da educação: Porque a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em relação ao saber e à formação. Surge enfim, a questão do tipo de educação do cidadão assim definido. Essa educação não pode mais simplesmente consistir numa informação ou instrução que permita ao indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de seus direitos e deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência. Deve fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à sua posição de governante potencial (1991, p.31). Na verdade, a cidadania ativa é marcada pelo Princípio Pedagógico, uma vez que, aprende-se ao fazer política. Em todo caso, Canivez deixa claro que não se trata de educação 328 formal, de bancos escolares, mas pelo contrário, de uma educação engajada e direcionada à formação deste cidadão, que deve ser não só ativo (governante potencial) como também ter escrúpulos. Esta questão dos escrúpulos parece-nos apontar menos para uma orientação moral de conduta do que para uma definição clara das regras em jogo. Para ser democrático o cidadão só poderia alterá-las com a anuência dos demais. No projeto Iluminista, portanto, o Estado de direito obedeceria à vontade geral. Desse modo, conclui-se que o Estado de Direito (como poder legal) é legítimo se atua como fim e objetivo do Estado, tomando-lhe como parte de sua substância, como conteúdo integrado entre direito e política, e não como mero recurso prodedimental que adorna o Poder Político. Em citação de Kant, vemos o imperativo moral do princípio da igualdade: “É justa toda ação que queira estabelecer a coexistência da liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de qualquer outro, segundo uma lei universal, ou cuja máxima permite essa coexistência” (Alland, 2012, p. 710 – grifos nossos). Afinal, a liberdade deve ser preservada a todo custo, a fim de que a própria legalidade seja sua maior expressão (simplesmente porque não há legalidade, isonomia, na relação senhor-escravo). Ainda como nos diz Kant, pela doutrina do direito, se há legitimidade, a coerção é necessária ao estabelecimento da norma jurídica: Denomina-se doutrina do direito (ius) a soma daquelas leis para as quais é possível uma legislação externa [...] O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade [...] Assim, a lei universal do direito, qual seja, age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, é verdadeiramente uma lei que me impõe uma obrigação [...] Ora, tudo que é injusto é um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais. Mas a coerção é um obstáculo ou resistência à liberdade [...] Portanto, ligada ao direito pelo princípio de contradição há uma competência de exercer coerção sobre alguém que o viola [...] o direito estrito se apóia no princípio de lhe ser possível usar constrangimento externo capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com leis universais [...] Direito e competência de empregar coerção, portanto, significam uma e única coisa [...] Analogamente, não é tanto o conceito de direito quanto, ao contrário, uma coerção plenamente recíproca e igual trazida sob uma lei universal e compatível com esta que torna possível a exposição desse conceito (Kant, 2003, pp. 75-78 – negritos nossos). A diferença entre obstáculos ou ofendículos à liberdade e a coerção praticada pelo Poder Público (ética como salus publica), ou seja, como limitação à mesma liberdade, decorre da lógica de que, segundo Kant, a coerção corresponde à ética social já regulada e positivada pelo Direito (como Lei Universal). De tal sorte, a indicação da liberdade (fazer ou deixar de fazer) é dosada pela coerção que estabelece os limites e os parâmetros éticos (costumeiros) da convivência social em determinado momento histórico e em cada sociedade. Weber (1979) foi um atento leitor de Kant e isto fica claro em sua distinção ao assegurar que o Estado detém o “monopólio legítimo da força física”, como fundamento de seu Estado Racional. Assim, os limites éticos impostos pelos direitos de liberdade regulam e balizam a liberdade. Portanto, a ética social postula por porções iguais e equilibradas de liberdade. Este equilíbrio 329 entre liberdade e igualdade é justo porque trata os iguais, igualmente; e, os desiguais, desigualmente. Entrelaçamento que ainda nos revela a base filosófica e jurídica em que convergem Justiça e Ética a fim de formar o Princípio da Isonomia. O que demonstra que não se trata de uma educação política maquiavélica, no sentido de que as regras pudessem emanar do poder soberano e de que o próprio escrúpulo seria por ele definido325. Apesar da própria ação do cidadão ser regulada pelas regras estabelecidas anteriormente, restaria a dúvida sobre a maneira como se formariam as próprias intenções do cidadão. O que faz a discussão retornar ao âmbito da educação, pois, como diz Canivez, a informação e a instrução não são suficientes. Por fim, há que se frisar esta articulação intrínseca entre política como participação, educação e os requisitos da governabilidade, pois que se as regras são importantes – para o jogo democrático – são ainda mais relevantes tanto a consciência quanto o consentimento popular ao governo: como forma de equilíbrio do poder e mecanismos de mediação e efetivação da governabilidade. 325 Vale ressaltar que se as normas devem ser democratizadas e não outorgadas pelo soberano, é porque — através de um julgamento moral — os príncipes acabam por se corromper ainda mais. É o que se lê com Padre Antônio Vieira (em Sermão do Bom Ladrão): “Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se Laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamavam-se Latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa?” (1993, p. 39). 330 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO SOCIAL (revisão conceitual) O chamado Estado Democrático de Direito, como adotado no Brasil, na CF/88, é uma conjunção bastante clara do Estado de Direito e da democracia. Como resultante do processo histórico do pós-Segunda Grande Guerra, tem na Constituição de Bonn (1949) a definição democrática para a definição do Estado. Inicialmente, podemos resgatar o Estado de Direito que assevera como princípios (cláusulas pétreas, no Brasil) o insuperável império das leis, assim como destaca a necessária divisão do poder e o enunciado e as garantias dos direitos individuais. Democracia e Direito Na luta pela limpeza do fascismo de Franco, na Espanha, e de Salazar, em Portugal326, foram editadas as duas principais constituições europeias de consagração democrática, ética e com impeditivos claros aos regimes autocráticos. Daí chegarmos a um Estado de Direito Socialista, depois que este foi democratizado (2ª geração do Estado de Direito – quando se assegurou a democracia entre as cláusulas pétreas). É como se fosse um caminho político necessário, determinado, legítimo, independente, e previsto anteriormente, neste que seria o curso histórico presente no ideal socialista. Portanto, as garantias institucionais serão também garantias contra a degeneração do Estado de Direito, a produção social da injustiça institucional e social, ou em desfavor da formação do Estado de não-Direito. O conceito de Estado Democrático de Direito (como empregado usualmente no Brasil) deriva de uma (re)interpretação do Estado de Direito Democrático327. Como se vê na Constituição Portuguesa: Artigo 2.º (Estado de direito democrático) A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa (ortografia original). De acordo com Manuel Cavaleiro Ferreiro (1997), há uma relação mais orgânica, estrutural entre Estado de Direito e Direitos Humanos. Para o professor português: A positivação de direitos fundamentais torna-os mais precisos, e permite a sua garantia pela força dos Estados, ou da sociedade internacional. Mas a proliferação constante do seu número suscita novos problemas, em especial o da sua coordenação e hierarquização. Qualquer novo direito implica a limitação ou contenção de outro direito. A falta dessa coordenação e hierarquia pode conduzir à diminuição da sua vitalidade, 326 No dia 25 de abril de 1974, teve início a conhecida Revolução dos Cravos, em Portugal. À meia-noite, uma emissora de rádio tocou a música Grândula Vila Morena, e esta era a senha para a saída às ruas. Marcelo Caetano foi deposto e o general Antônio de Spínola assumiu o poder. Para comemorar o fim da ditadura, o povo saiu às ruas e distribuiu cravos (a flor nacional) aos soldados rebelados. O processo revolucionáro foi conduzido pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), composto por capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por outros oficiais, estudantes e pessoas comuns. Em 1973, tiveram início reivindicações corporativistas como a luta pelo prestígio das forças armadas e isto se estendeu ao regime político vigente. 327 Observe-se que no Brasil inverteu-se o sentido dos termos, de Estado de direito democrático, para Estado Democrático de Direito. Em Portugal, entende-se que é preciso reforçar a atenção institucional à produção do direito democrático; no Brasil, construiu o sentido de que um Estado democrático produz o direito que se requer. 331 ou ao abuso anárquico, que se traduz no pessimismo, hoje já tão florescente, e em que os homens como as sociedades são frequentemente vítimas do eufórico entrechoque dos seus direitos e funções [...] O direito ao trabalho, à habitação, à cultura, à saúde, não são direitos que o Estado deve respeitar; são missões ou tarefas que deve prestar. Mais do que direitos do homem, são fins que o Estado se propõe ou deve propor. Esses fins, avassalando cada vez mais a organização da sociedade e o seu controle, soergueram e inflaram o Estado de tal guisa que já não é a espontaneidade social que move ou pode mover, a não ser tímida e brandamente, o Estado, mas o Estado que se arroga a onipotência de modelar projetos de sociedade, de destruir a recriar instituições e estruturas de vida coletiva (Ferreiro, 1997, p. 92-93). A judicialização dos direitos sociais, portanto, deve impulsionar o Estado na busca da prestação do serviço público e à sociedade como primeira interessada. Ainda com Bonavides (1985): O problema da “juridicização” dos direitos sociais se tornou crucial para as Constituições do Estado Social. Cumpre, pois, na busca de uma solução, observar toda essa seqüência: reconhecer a vinculação constitucional do legislador a tais direitos, admitir que se trata de direitos de eficácia imediata, instituir o controle judicial de constitucionalidade e, por fim, estabelecer mecanismos suficientes que funcionem como garantias efetivas de sua aplicabilidade (p. 347)328. De certo modo, esse caminho constitucional já foi percorrido, mas apesar da CF/88 assegurar educação e saúde públicas, por meio das garantias sociais constitucionais (efetuandose a juridicidade) e ainda responsabilizar os maus gestores públicos, resolveu-se somente o aspecto quantitativo do problema (ao invés do ensino público, obrigatório e gratuito, por exemplo) e sem que discuta a qualidade de tais serviços (educação e saúde públicas de qualidade). O problema, nesta ordem de argumentação, portanto, não se restringe a questões teóricas, jurídicas, constitucionais ou dogmáticas, mas se dirigem sim aos movimentos e sinalizações perpetradas pelo Estado. Assim, alegar que os direitos fundamentais perdem efetividade em virtude do seu próprio florescimento (dos direitos individuais aos direitos sociais) é superestimar questiúnculas jurídicas sem observar a realidade. É preciso, pois, arejar pelo caminho da democracia, pela intensificação da participação popular, porque o Direito é, antes de tudo, uma abertura produzida na estrutura estatal pelas demandas sociais. Como vimos, o Estado Democrático de Direito é resultado de longas e profundas transformações históricas e políticas, ao mesmo tempo em que deveria produzir, cotidianamente, uma cultura jurídica baseada na mediação e na conciliação dos conflitos – especialmente os conflitos sociais, quando se propõe a realização da Justiça Social. O Estado Democrático de Direito Social deveria estar fortemente marcado pelo sentido e pelo emprego do que se chama de ethos público: isto é óbvio, mas apenas em regimes de governo realmente democráticos e republicanos, tanto na observância real do Estado de Direito quanto na prática política derivada da verificação das regras mínimas do Estado Democrático. Por isso, entendemos que o ethos público cria vínculos sociais efetivos e só assim, portanto, 328 É bom lembrar que o texto de Bonavides foi produzido às vésperas da Assembleia Nacional Constituinte. 332 haverá significado material no uso da expressão “Estado Democrático de Direito Social”. Como se vê, só haverá alguma realidade na apreciação do conceito se a finalidade em destaque for a própria sociedade e não o Estado no sentido formal e burocrático, tão presente na visão monista do direito: como um fim em si mesmo e regulador de todo o Direito. Não há Estado Democrático de Direito sem a vivência constante e natural da República, da mesma forma que o Estado Democrático de Direito Social tem uma finalidade social estampada em sua origem: a sociedade é sua marca registrada e não uma Razão de Estado petrificada em laços de sangue nacionalistas329. Nas bases históricas do Estado Democrático de Direito há uma força dialética que, acredita-se, possa transformá-lo novamente – agora, de conceito de Estado mais bem elaborado de todos os tempos em práxis política popular. Realmente, a história é feita de nexos e convergências, no sentido que adotamos no texto, podemos dar como exemplo uma convergência que veio se tecendo ao longo de todo o século XX. Mas, é bom saber que esta ampla convergência não implica na ausência de divergências, às vezes, tão grandes que somos levados a visualizar somente o antagonismo e as rupturas – não é o caso também de irmos à frente nesta linha de abordagem. Por sua vez, como Estado Democrático de Direito Social, temos o mesmo sentido expresso pelas constituições de Portugal (1976) e da Espanha (1978), com destaque para o ganho de humanização do direito, o reflexo do processo de aprofundamento civilizatório e a inculcação de valores jurídicos que exigem a eficácia jurídica (eficiência, fruição social) dos direitos fundamentais sociais. Direitos fundamentais sociais No Estado Democrático de Direito Social, os procedimentos institucionais e jurídicos, que nada mais são do que os processos institucionais legítimos e regulados pelo Estado, mas exigidos pelo povo, passam por mudanças qualitativas quando comparáveis ao Estado Liberal. Uma vez que no chamado “individualismo jurídico” a legitimidade se dá por meio de processos individuais (“um conflito, um processo; uma ação, um autor”); não obstante, as necessidades sociais apontem para uma “coletivização dos conflitos” (direitos e ações coletivas). No Estado Democrático de Direito Social os direitos fundamentais também têm natureza negativa (para conter o abuso de poder), mas procura-se acima de tudo afirmar a dignidade da pessoa humana. Na acepção filosófica Iluminista (Kant), o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é perquirido com o respeito à tolerância religiosa (Locke), e à liberdade de expressão e de propriedade. Com Rousseau, no entanto, a propriedade privada, deslocada de sua função social, pode ser um impedimento da concretização da soberania popular. Para que a lei seja legítima, limpa de ranços classistas, o povo precisa não apenas participar de sua feitura, mas, além disso, ter capacidade intelectiva (educação) para compreender a característica teleológica do direito: quais os efeitos jurídicos possíveis? Que impacto as novas leis terão em minha vida e na organização da sociedade? Como ter consciência para lutar pelo direito sem liberdade para cultivar a razão? Entre natureza e cultura, Rousseau (1712-1778) conseguiu atar moral e política: o homem é livre e essa liberdade é radical — nisto somos todos iguais. Só pode haver igualdade entre homens livres para cultivar a razão. Sua base é a igualdade política e educacional: Porque a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em relação ao saber e à formação. Surge enfim, a questão do tipo de 329 No Estado Democrático, de fato, a democracia é tão marcante da natureza jurídica estatal que se assegurou que a própria Razão de Estado estivesse contida por uma noção de soberania profunda, popularmente conduzida e regulada por meios democráticos, inclusivos, tolerantes e participativos. O que implica em dizer que os “fins democráticos não justificam os meios autocráticos”. 333 educação do cidadão assim definido. Essa educação não pode mais simplesmente consistir numa informação ou instrução que permita ao indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de seus direitos e deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência. Deve fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à sua posição de governante potencial (Canivez, 1991, p.31). Uma proposta de educação para a tolerância deve privilegiar o regime jurídico do Estado Democrático de Direito, e alertar, sobretudo, para a dificuldade que se impõe para a manutenção do mesmo Estado Democrático de Direito, incluindo o coletivo dos Direitos Humanos (art. 4º - II da CF/88). Teórica e historicamente, essa perspectiva consensual (ética) de ver a política, Bobbio (1992) analisa como sendo a que deu origem ao Estado Democrático de Direito. Coincide também com o aparecimento do cidadão moderno, único objeto da defesa das regras democráticas, na verdade como sujeito de direitos não disponíveis pela força do Estado, enfim, o reino do status legal e da legitimidade popular330. Pois, basta mencionar que não há o menor sentido em se falar de tolerância no plano da política (ética consensual) se não se promove e garante de forma plausível a participação popular. E se é certo que a tolerância só se dá em face da existência do Outro, instituída por meio de sua intervenção, o mais difícil é verificar em sua estrutura interna o que há de educacional. Afinal, não se pode esquecer que, para Rousseau, na natureza, o homem é inocente331: desconhece o bem e o mal332. A própria bondade exige muita maturidade, pois o sujeito precisa literalmente colocar-se no lugar do Outro: a alteridade. Compreendê-lo é um esforço máximo exigido pela alteridade: “A consciência é a voz da alma, a paixão é a voz do corpo” (Huisman, 2001, p. 841). Por sua vez, esta dualidade resultou do “ter que fazer-se como homem”, de nosso precedente histórico-antropológico na busca pela perfectibilidade333. De qualquer modo, o devir exige o Outro, e isto induz ao devir social: nada somos, senão em sociedade. Porém, este nosso aprimoramento moral ainda não ocorreu porque nós carregamos uma falta grave, um transtorno que nos impele como um “funesto acaso” (a propriedade). Mas, Rousseau dirá que não há perversidade original, intrínseca no coração humano: nossa natureza está tão-somente adormecida no coração. Portanto, é como reconciliar-se com o Outro: “Qualquer um que tenha coragem de parecer o que é torna-se cedo ou tarde o que deve ser” (Huisman, 2001, p. 842). 330 Essa imagem do cidadão participativo, apesar de parecer nova, na verdade é uma tradição que veio da Grécia clássica (mais precisamente de Aristóteles). Porém, como se vê na seqüência da nota, diferentemente da Grécia, a cidadania moderna engloba as mulheres: “Para ser cidadão, diz ele, não basta habitar o território e poder pleitear seu direito diante dos tribunais. Porque os estrangeiros também têm essa possibilidade. O cidadão autêntico (em oposição às mulheres, às crianças e aos que são atingidos por atimia — degradação cívica total ou parcial por faltas graves) é quem exerce uma função pública: que ele governe, ou que tenha uma função no tribunal, ou que participe das assembléias do povo. A cidadania é, pois, a participação ativa nos assuntos da Cidade. É o fato de não ser meramente governado, mas também governante (Canivez, 1991, p. 30). 331 Kant foi contemporâneo, profundo leitor e admirador de Rousseau. Kant herdou a ideia da fraternidade, e pensou diminuir a distância entre o papel do intelectual e a vida real do povo: o direito à educação. 332 Rousseau parece ter aprendido com os