similaridades morfossintáticas do português de siricari em cotejo

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Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos
• NUPESDD-UEMS
Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande
IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5
SIMILARIDADES MORFOSSINTÁTICAS DO PORTUGUÊS DE
SIRICARI EM COTEJO COM O PORTUGUÊS ÉTNICO ÃPYÃWA
(TAPIRAPÉ): UM ESTUDO AFRO-INDÍGENA
Walkíria Neiva Praça (UnB)1
[email protected]
Cristiane Torido Serra (UnB)2
[email protected]
RESUMO: Este artigo propõe demonstrar as similaridades morfossintáticas do português falado pela
comunidade quilombola de Siricari (Marajó-PA) e a comunidade indígena Ãpyãwa (Tapirapé) (MT). A
proposta tem o intuito de demonstrar as variações orais do português falado nestas comunidades,
considerando que a primeira encontra-se em situação de monolinguísmo em português, como língua
materna e, a segunda, em situação de bilinguismo em Ãpyãwa, como língua materna e, português, como
segunda língua. Acreditamos que as variações do português oral falado em comunidades envoltas à
situação de contato linguístico ou miscigenação podem referir-se à língua de substrato. A investigação
assume um caráter etnolinguístico e segue preceitos relativos ao Português Afro-Indígena tratado, entre
outros, por Oliveira & Praça (2013), Silva (2014) e Campos (2015).
PALAVRAS-CHAVE: Afro-Indígena; Contato Linguístico; Morfossintaxe; Quilombo Siricari; Ãpyãwa
(Tapirapé).
ABSTRACT: This paper aims to compare the morphosyntactic aspects of Portuguese surrounding
the quilombola community of Siricari (Marajó - Brazil) and the indigenous community of Ãpyãwa
(Tapirapé) (Mato Grossso - Brazil). The proposal is to demonstrate the similarities of oral variants of
Portuguese language in these communities, considering that the first one is a monolingual in Portuguese
and the second is bilingual in Ãpyãwa, as a first language, and Portuguese as second language. We
believe that certain aspects of the morphosyntatic varieties in oral Portuguese involving communities
in contact situation or by miscegenation can be associated with the substrate language. This research
considers the ethno-linguistic character and follows the Portuguese Afro-Indigenous approach dealt,
among others, by Oliveira & Praça (2013), Silva (2014) and Campos (2015).
KEYWORDS: Afro-Indigenes; Linguistic Contact; Morphosyntatic; Siricari Quilombo; Ãpyãwa
(Tapirapé).
1
Doutora em Linguística, professora do Instituto de Letras (IL), vinculado ao Departamento de
Linguística, Português e Línguas Clássicas, e do Programa de Pós-Graduação em Linguística (Mestrado e
Doutorado) da Universidade de Brasília (UnB). [email protected]
2
Licenciada em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa) e mestranda do Programa de PósGraduação em Linguística da Universidade de Brasília (UnB). [email protected]
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1. Introdução
Investigar aspectos gramaticais do português falado em comunidades rurais
amazônicas significa reconhecer, diante dos estratos étnico e social, a proeminência do
contato da língua portuguesa e das línguas indígenas e africanas. É evidente o
argumento de que a heterogeneidade étnica nesta região se compôs da mistura entre o
branco, o índio e o negro, o que “resulta hoje o tipo étnico amazônico” (cf. Salles,
1971:135). Apesar da inegável miscigenação étnica, a língua que se manteve ativa na
trajetória de comunicação interétnica nos tempos coloniais foi a língua geral e não o
português trazido pelo colonizador. Apenas em meados do século XIX a língua
portuguesa ganha terras amazônicas e sobrepõe, forçosamente, ao dialeto da maioria da
população. (cf. Freire, 2004:17).
Apesar da imposição de um monolinguísmo português, a língua geral amazônica
falada pelos brancos, negros e índios imprime marcas significativas no novo
ordenamento linguístico. Essa herança linguística contraída pela relação de contato
permanente com as várias línguas advindas da região amazônica revela-se, sobretudo,
em dialetos de comunidades rurais. Alguns aspectos linguísticos podem se referir à
língua de substrato e são observados como um tipo de variação do português vernacular
brasileiro ou, conforme dispõe Mattoso Câmara (apud França, 2004:5), aspectos
relacionados a um “possível processo de crioulização3 no Brasil”.
[N]o português do Brasil, não há fonema tupi ou de outra origem
indígena, ou, ainda, de origem africana. [Mas], não há como negar [...]
que a língua de susperstrato, adstrato ou substrato pode determinar
certos itens lexicais [...] que, sem isso, não eram de se esperar. [...] é
[...] possível que a eliminação dialetal de / ḽ / intervocálico, no
Brasil, com a redução a /y/ consonântico (foia, em vez de folha, oio
em vez de olho, etc.) se explique pelo português crioulo dos
escravos negros ou pelo substrato indígena, visto que nas línguas
indígenas não há oposição /l/-/r/ e /l/ como / ḽ /, podem ter sido isso
mal interpretados. (Câmara Jr. 1975:55)4 (grifo nosso).
3
Segundo Lagorio & Freire (2014:583), por definição, língua crioula implica na formação de uma língua
mista, cujo léxico é proveniente da língua dominante, mas as características sistêmicas são da língua
dominada.
4
Cf. IPA, /ʎ/ para a consoante lateral palatal. Não se respeitaram os parágrafos na citação.
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Conforme destacado nas palavras de Mattoso Câmara (1975), é possível
reconhecer desdobramentos linguísticos no dialeto português brasileiro provocados
pelas línguas naturais indígena ou africana. O que nos mostra Oliveira et al (apud
Cecim, 2014:21) é que coexiste uma variedade do português brasileiro falada por
comunidades de fala ‘aquilombadas’. Para esses autores, é possível que na fala de cada
comunidade dita como ‘aquilombada’, seja ‘terras de preto’, ‘terras indígenas’ ou ‘terras
mistas’5 existam marcas específicas podendo ser consideradas como uma variedade
vernacular do português brasileiro.
Com o propósito de ampliar a discussão sobre as variantes do português
vernacular brasileiro, este estudo toma a direção do Português Afro-Indígena, o qual se
projeta para os falares de comunidades rurais com traços de miscigenação africana e
miscigenação indígena. De tal modo, propomos descrever aspectos morfossintáticos do
português oral da comunidade quilombola de Siricari (PA) em cotejo com o português
étnico da comunidade indígena Ãpyãwa (Tapirapé) (MT). O contexto linguístico desta
investigação analisa o português da comunidade quilombola Siricari como língua
materna (L1) e o português étnico da comunidade indígena Ãpyãwa como segunda
língua (L2).
A proposta de cotejar aspectos linguísticos das comunidades de Siricari e
Ãpyãwa tem o intuito de demonstrar as similaridades das variantes orais entre estas
comunidades afastadas geograficamente e de denominações distintas, como a africana
(Siricari) e a indígena (Ãpyãwa). Em decorrência disso, esperamos corroborar para a
hipótese de que variantes orais do português brasileiro podem indicar vestígios de
falares provenientes do contato entre povos africanos e ameríndios.
5
‘terras de preto’: uma descendência de africanos; ‘terras indígenas’: etnias que perderam ou estão por
perder por completo suas línguas maternas, mas mantém seus laços identitários; ‘terras mistas’;
comunidades aquilombadas no norte do Brasil cuja formação ética é negra e indígena. Termos e
significados cunhados por Oliveira et al (2015) ao conceituar português afro-indígena.
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2. Português Afro-Indígena
As primeiras discussões sobre “a existência de uma variedade vernacular rural
do português brasileiro L1 falada por comunidades envoltas em miscigenação afroindígena” foram tratadas, entre outros, por Oliveira & Praça (2013), Praça, Araújo &
Oliveira (2013), Campos (2015), Silva (2014), Oliveira et al (2015). Investigações
realizadas nas comunidades de Almofala (Tremembé – CE) e Jurussaca(PA) resultaram
o estudo: Para um cotejo etnolinguístico entre comunidades afro-indígenas - Jurussaca
(PA) e Tremenbé (CE): primeiras aproximações e abriram discussões para
investigações envolvendo o português do Libolo (AF), Angola (AF) e a perspectiva do
Português Afro-Indígena de Jurussaca (cf. Figueiredo & Oliveira, 2013); além de outras
importantes contribuições como: O português afro-indígena de Jurussaca/PA:
revisitando a descrição do sistema pronominal pessoal da comunidade a partir da
textualidade (Silva, 2014); A sintaxe pronominal na variedade afro-indígena de
Jurussaca: uma contribuição para o quadro da pronominalização do português falado
no Brasil (Campos, 2014); O conceito de português afro-indígena e a comunidade de
Jurussaca (Oliveira et al, 2015).
Estes estudos tiveram como propósito investigar as variedades do português
vernacular brasileiro sob a perspectiva do Português Afro-Indígena, denominado por
Oliveira et al (2015:8) como sendo:
Uma variedade vernacular rural de português brasileiro L1 falada por
comunidade envoltas em miscigenação afro-indígena, mas que
selecionam politicamente o termo “afro” ou “indígena”.
Exemplificam-se as comunidade de Jurussaca/PA (autoidentificada
como comunidade quilombola, logo “afro”) e AlmofalaTremembé/CE (autoidentificada como comunidade indígena, mas não
“afro”).
Além da característica de “português L1”, o Português Afro-Indígena
atesta as seguintes outras características: (i) festas de sincretismo
religioso que se subdividem em dois subtipos: (a) subtipo “ladainhas”
(como em “Jurussaca”); (b) subtipo “torém/torén” (como em
“Almofala/Tremembé”); (ii) linguagens cerimoniais (ex.: ladainhas; a
música cantada na dança do torém/torén).
A variedade de português afro-indígena compartilha com as
variedades de português afro-brasileira e indígena a característica de
localizarem-se ao extremo [+ marcado] do continuum dialetal de
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português; difere, no entanto, da variedade indígena, por ser esta L2
por definição, e da afro-brasileira, por esta variedade não contemplar o
traço de miscigenação indígena.
Uma das questões que merece comentar são os ambientes de “rituais de
sincretismo religioso”. Apesar de estudos (Maués, 2005; Pacheco, 2010) indicarem um
universo religioso na Amazônia submerso nas religiões de origem africana, indígena e
europeia (catolicismo), é possível constatar uma propagação dos princípios evangélicos
nas comunidades amazônicas. Isso, de certo modo, vem inibindo a continuidade desses
ambientes de sincretismo, consistindo na perda de costumes e tradições impregnadas de
saberes imateriais amazônicos e, notadamente, um empobrecimento do patrimônio
cultural que distingue as comunidades amazônicas na sua inter-relação com estratos
africanos e indígenas.
A conservação e a permanência desses espaços colaboram para que elementos
significativos relacionados ao substrato de línguas decorrente do contato venham à tona.
(cf. Oliveira et al, 2015; Baxter, 1995; França, 2004). Ou seja, o substrato linguístico
proveniente do contato entre línguas acendido no período colonial permite-nos discutir
sobre a possibilidade de algumas “marcas específicas” do português oral de
comunidades rurais se tratarem de vestígios de antigos falares.
Outro ponto importante consiste da proposição de um continuum do português
brasileiro sob o viés afro-indígena. Ilustrado em forma de diagrama, Campos (2014)
localiza o continuum da variedade do Português Afro-Indígena numa composição
“compartilhada” com as variedades do português afro-brasileiro e português indígena. O
diagrama mostra que “o Continuum Dialetal de Português Falado no Brasil enfoca o
locus das variedades [+ marcadas]: o português afro-indígena, o afro-brasileiro e o
indígena” (Campos, 2014:8).
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Como pode ser visto no diagrama acima, as variedades [+marcadas] caracterizam
especificidades etnolinguísticas localizadas em ponto distinto dos “falares regionais” e
dos “falares urbanos não-padrão”, posicionados no centro do continuum e definidos
como [+/-marcados] e, ainda mais distantes do português brasileiro [- marcado],
situando as variedades do vernáculo rural num continuum até o padrão urbano (PB).
Nota-se que o locus das variedades [+ marcadas] compartilha das variedades de
português afro-indígena, português afro-brasileiro e português indígena. Isso significa
que essas três variedades representam especificidades etnolinguísticas distintas dos
falares de comunidades rurais [+/- marcados], possivelmente, em função de algumas
dessas “especificidades” evidenciarem traços relacionados ao substrato
línguas
Fonte: de
Campos
(2014 em
:8)
contato.
3. Breve relato etnolinguístico das comunidades Siricari e Ãpyãwa: contornos de
culturas africana e indígena
3.1. Quilombo Siricari-Marajó-PA
Siricari situa-se em Salvaterra, uma das dezesseis regiões pertencentes à ilha de
Marajó. A comunidade de Siricari se autodenomina quilombola e detém o título de
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Remanescente Quilombola6 pela Fundação Palmares desde 2011. Contudo, reconhece
seus estratos sociais, culturais e étnicos da inter-relação entre negros e índios. Apresenta
uma área de 1.089 hectares e situa-se cerca de 22km do porto de Camará, único acesso à
ilha de Marajó. A comunidade caracteriza-se pelo modo de vida de campesinato e tem
como cercanias igarapés, matas, fazendas e proximidades com outras doze comunidades
aquilombadas.
Conforme consta em arquivo da Fundação Palmares (2011), o processo de
territorialização e organização social de Siricari data dos anos 1850 em diante.
Entretanto, segundo antigos nativos, antes mesmo do período em que antecede o
movimento cabano (1835-1840) a região de Siricari era habitada por seus ascendentes.
Há relatos de que estes teriam vivido situações de fuga da ‘guerra’, termo usado em
referência à cabanagem, nos quais negros aquilombados e índios enterravam seus
pertences e se escondiam na mata até a certeza de estarem a salvos para retornarem ao
aldeamento.
Acevedo (apud Godoi et al, 2009:215) nos conta que havia lugares chamados
‘sobras de terras’ de fazendas e sítios que eram ocupados por quilombolas, indígenas e
mestiços no período da crise da pecuária e durante as lutas da Independência e da
Cabanagem na ilha. Os estudos da antropóloga nos mostram que “[...] os povoados
negros revelam origens diferenciadas, assim como uma diversidade de formas de acesso
à terra, o que compreendem ocupações, doações, posses registradas, compras e
heranças”.
Historicamente, sabe-se que a região de Salvaterra abrigava aldeamentos de
povos indígenas formados pelos primeiros missionários ali instalados.
(i) a região de Salvaterra, antes mesmo de receber este nome era
aldeia dos Sacácas, pertencentes às missões dos capuchos; (ii) a região
de Soure habitava a antiga aldeia dos Maranauazes; (iii) em
Chaves/Ilha grande de Joanes (antigo) habitavam os Aruãs e era
também aldeia de Pyié. (Ensaio Corográfico da Província do Pará
(2004:280).
6
Comunidade de Siricari, localizada no município de Salvaterra/PA, registrada no livro de cadastro geral
nº 14, registro n.1.639, fl.056 –Fundação Cultural Palmares - portaria fcp nº 211 de 21/12/2011.
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Registros do Ensaio Corográfico (2004) mostram que a atividade missionária na
ilha visava apenas à extração de recursos naturais e à criação. Inicialmente essas
atividades eram mantidas pelo trabalho escravo indígena, após danosas incursões do
colono contra os nativos deu-se a chegada dos negros na região (cf. Salles, 1971 p.15).
Sucedido esses fatores, a alforria efetiva do indígena,7 em 1751 e a destituição das terras
ocupadas pela Companhia de Jesus,8 em 1758, fomenta-se o tráfico do negro na região
do Grão-Pará e Maranhão.
Mesmo diante das deficientes estatísticas coloniais de recenseamento
populacional, Salles (1971) aponta para a marcante presença do negro em Marajó e
assinala que:
É difícil fazer o levantamento estatístico do tráfico de peças da África
para a Amazônia [...] da mesma forma é difícil avaliar a imigração
europeia e o extermínio dos grupos tribais indígenas. O certo é que no
cômputo geral não há mais equilíbrio de estoques raciais. Há
extrema heterogeneidade. Os contatos interétnicos se processaram
intensamente, isentos do mais rudimentar preconceito racial,
fundindo num todo os três estoques fundamentais: o branco, o
índio e o negro. A presença de grupos indígenas isolados e de
numeroso grupo mais ou menos marginalizado [...] vivendo na
periferia das comunidades amazônicas não invalida a tese: o negro é
uma presença marcante. (p.69 - grifo nosso)
Essa trajetória de miscigenação na região de Marajó conta com o aparecimento
de mocambos e quilombos compartilhados pelas matrizes africanas e indígenas.
Encorajados pelo comportamento dos negros e pela oportunidade de fuga, muitos
“mocambos de índios” surgiram ao lado de “mocambos de índios e negros” em uma
clara demonstração de reorganização étnico-social (cf. Gomes, 1997:76-78).
Somada as circunstâncias passadas que acirraram a formação de grupos de
contornos afro-indígenas sobrevém, hoje, a presença do emblemático mestre
Damasceno. Grande incentivador da manutenção das culturas marajoaras e das
africanidades e indigenísmos, se autodenomina afro-indígena e retrata em seus repentes
o cenário miscigenado de Salvaterra e das comunidades quilombolas.
7
Para saber mais ver Salles, 1971 – Parte 1 – 2. A política escravista do século XVIII
Para saber mais ver: Annais da Bibliotheca e Archivo Publico do Pará (1904) capítulo “Os
Contemplados”.
8
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Vale ilustrar à mescla cultural três fatores indispensáveis às “Festas de tradição”:
(i) a Tiborna, (ii) o carimbó e, (iii) o Siriá. Esses elementos sinalizam a essência da
miscigenação cultural entre africanos e indígenas. A (i) tiborna, bebida feita da
mandioca ralada e fermentada, dizem se tratar de especiaria da culinária indígena,
apesar de estar inserida nos festejos quilombolas; (ii) a dança Carimbó9, seguramente
um misto cultural africano e indígena, foi criada pelos índios Tupinambá e aperfeiçoada
pelos negros africanos, que em seu ritmo passou a vibrar como uma espécie de variante
do batuque africano. Acresce que, o Carimbó também é descrito contendo traços de
expressão corporal de danças lusitanas, tal como os dedos castanholando na marcação
do ritmo; e, (iii) o Siriá, dança folclórica de ritmo africano, surgiu como um tipo de
comemoração pela fartura de alimento conseguido pelos escravos no final do dia
decorrente da captura de siris na praia. O nome vem de siri (crustáceo) e a tonicidade
decorre da analogia a cafezá, remetendo ao local da plantação de café; arrozá, para o
local da plantação de arroz; canaviá para o local plantação de cana, e assim passaram a
chamar siriá, para o local onde todas as tardes encontravam os siris. (cf. Governo do
Estado do Pará Portal Amazônia 01.09.2005-GC).
Esses e tantos outros movimentos inter-relacionais, ao longo dos tempos,
contribuíram para a formação de grupos identitários atuais que distinguem as
comunidades quilombolas marajoaras como descendentes de uma miscigenação africana
e indígena. No entendimento de Pacheco (2011:45),
A construção do conceito de identidade afroindígena tornou-se
possível, após constatar que na Amazônia Marajoara é quase
impossível discutir a presença africana descolada de relações e
redes de sociabilidades tecidas como grupos atávicos da região.
(grifo nosso).
Em vista da trajetória social, étnica e cultural compreendendo a comunidade de
Siricari e imediações, parece-nos aceitável a hipótese de que algumas variedades do
português oral possam se referir a resquícios de um dialeto de herança.
9
Ver mais: http://www.portalamazonia.com.br/secao/amazoniadeaz/interna.php?id=850
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3.2. O povo e a língua Ãpyãwa (Tapirapé) - Mato Grosso
O povo Ãpyãwa, tradicionalmente conhecido por Tapirapé, vive em duas áreas
indígenas: a Terra Indígena Tapirapé/Karajá e a Terra Indígena Urubu Branco
(Tãpi’itãwa). A primeira localiza-se às margens do rio Tapirapé, nos municípios de
Luciara e Santa Terezinha no Mato Grosso. A segunda localiza-se nos municípios de
Santa Terrezinha, Confresa e Porto Alegre do Norte, situada no nordeste do Mato
Grosso e tem como centro a serra do Urubu Branco. Essa se distancia da Terra Indígena
Tapirapé/Karajá cerca de 180 km. Ambas as Terras Tapirapé (Ãpyãwa) – doravante
apenas Ãpyãwa - fazem divisa com grandes latifúndios, dos quais visam apenas à
exploração do solo, aspecto muitas vezes conflitante com a cultura indígena. (cf. Praça,
2007:21-22)
Embora a história dos Ãpyãwa não se assemelhe à situação de muitos povos
indígenas no período de expansão colonial, envolvendo a escravização indígena, a
narrativa do professor Ieremy’i (Josimar Xawapare’ymi Ãpyãwa) (apud Paula, 2012:30)
sustenta a hipótese de um movimento migratório em vista de se distanciar do homem
branco:
Nós, do povo Ãpyãwa, do tronco linguístico Tupi, andávamos em
várias regiões do norte de Mato Grosso e Pará. Íamos ao Pará
chegando até onde hoje é Conceição do Araguaia. De lá, nossos
antepassados percorriam na direção sul, rumo ao Mato Grosso, vindo
e voltando à procura de lugar com espaço suficiente e com fartura.
Passaram no lugar que é hoje Vila Rica, que na época era uma aldeia,
sem presença de nenhum “branco” morando naquela terra. A aldeia se
chamava Maakotãwa, era outro grupo maior do povo Tapirapé, que se
deslocou para chegar ao Urubu Branco onde os Tapirapé encontrariam
lugar melhor para habitar.
(TAPIRAPÉ, J. X. In: PPP da Escola Indígena Estadual Tapi’itãwa,
2009, p. 17-18)
Segundo conta a Irmãzinha de Jesus Genoveva (apud Praça, 2007:20), os
Ãpyãwa foram praticamente dizimados no final da década de quarenta, decorrente de (i)
doenças infecto-contagiosas provocadas pelo não-índio; e (ii) conflitos com grupos
indígenas inimigos. No entanto, em 1950 auxiliados pelos Dominicanos e pelas
Irmãzinhas de Jesus, o povo Ãpyãwa inicia seu processo de recuperação demográfica e
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identitário. Entretanto, ainda hoje muitos deles temem invasões de suas terras, e perda
de seu patrimônio cultural decorrente da intensa presença do branco na região. Assim, o
povo Ãpyãwa tem se esforçado para salvaguardar suas terras, sua cultura, seu povo, sua
língua.
Conforme apontado por Praça (2007:22), a língua Ãpyãwa é classificada como
pertencente ao subconjunto IV da família Tupi-Guarani, do troco Tupi (cf. Lemle, 1971;
Rodrigues, 1984/1985; Rodrigues & Cabral, 2002). As crianças são alfabetizadas
inicialmente em Ãpyãwa e somente após esse aprendizado é que recebem aulas de
português. Ao longo da vida escolar os alunos estudam a língua Ãpyãwa, incluindo
noções fundamentais de linguística aplicada à descrição do Ãpyãwa estudada no ensino
médio. Os Ãpyãwa são, em sua maioria, bilíngues em sua língua materna e em
português como segunda língua. Nas Terras Na terra indígena Tapirapé/Karajá, alguns
são trilíngues, incluindo, neste caso, o Karajá (Tronco Macro-Jê).
Vale frisar um aspecto que chamou a atenção de antropólogos como Baldus
(1970) e Wagley (1988). Eles estranharam a constituição de um grupo de língua Tupi
vivendo entre povos de língua Macro-Jê, como os Karajá, Kayapó e Xavante. A
hipótese era de que os Ãpyãwa teriam migrado do litoral para a região central do Brasil,
fugindo da violência provocada pelo contato com as frentes de expansão coloniais. Essa
hipótese ganha relevo pela presença da palavra paranyxigoo (mar) no léxico Ãpyãwa,
apesar de estudos revelarem que em 1973 aquela população nunca ter visto o mar. Ou
seja, é possível que este item seja um resquício lexical trazido pelos antepassados e
permanecido na língua Ãpyãwa. (cf. Paula, 2012:29)
4. Similaridades morfossintáticas do português oral de Siricari em cotejo com o
português Ãpyãwa
Seguindo Oliveira et al (2015:4) é possível que “cada comunidade de fala traga
suas marcas específicas devendo cada uma delas, na medida do possível, ser
inventariada”.
A existência de similaridades morfossintáticas nos falares das
comunidades Siricari e Ãpyãwa corroboram com a hipótese de variações relacionadas
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ao Português Afro-Indígena, uma vez que evidenciam especificidades linguísticas que
as inserem no extremo [+ marcado] do continuum dialetal do português proposto por
Campos (2014).
Selecionamos dez aspectos morfossintáticos que ilustram evidências empíricas
de variedades [+ marcadas] obtidas em estudo de campo nas comunidades Siricari e
Ãpyãwa. Nelas observam-se as seguintes afinidades morfossintáticas:
(1)
não marcação de gênero:
a) [Siricari]: Esse partizinha era uma plantaçon.
b) [Ãpyãwa]: O fotografia tá demonstrando o resultado do projeto extraescolar.
(2)
ausência de artigo:
a) [Siricari]: Maria, num te assusta, Ø cobra me mordeu.
b) [Ãpyãwa]: Banana cria bem Ø criançada.
(3)
ausência de concordância verbal de primeira pessoa do singular:
a) [Siricari]: Quando eu teve trabalhando lá na delegacia.
b) [Ãpyãwa]: Quando eu foi fazer a minha pesquisa teve informação muito
pouco.
(4)
alternância de concordância verbal de terceira pessoa:
a) [Siricari]: Aí o menino sumiu, aí ela fui lá com ele né.
b) [Ãpyãwa]: sem registro.
(5)
ausência de preposição:
a) [Siricari]: Eu era auxiliar administrativo, depois cansei Ø trabalhá na parte
burocrática.
b) [Ãpyãwa]: Eu aprendeu fazer remédio Ø meu pai de criação.
(6)
ausência de concordância de número:
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a) [Siricari]: Acho que a gente vai nas casa aqui que são os moradô mais velho,
né.
b) [Ãpyãwa]: O meninos viu a vacas nos pastu.
(7)
ausência de verbo copulativo:
a) [Siricari]: Minha mãe faleceu dia dez de junho, mas ela Ø muito, muito já
idosa, muito mesmo.
b) [Ãpyãwa]: Eu Ø artista no desenho.
(8)
orações encaixadas sem complementizador:
a) [Siricari]: Nesse tempo você comprá uma bicicleta tinha Ø haver vinte merréis,
era muito dinhero.
b) [Ãpyãwa]: Eu vai Ø você volta.
transferência de regência:
a) [Siricari]: sem registro.
b) [Ãpyãwa]: A gente ia, mas o presidente nunca creditava a gente.
(9)
inversão da ordem sintática:
a) [Siricari] Ele veio prestá socorro, que ficô ali em Boa Vista o carro.
b) [Ãpyãwa] Wãkiri mordeu cachorro. “o cachorro mordeu Walkiria’’
Observamos que, embora nem todos os aspectos sejam comuns às duas
comunidades, as ocorrências apontadas configuram um cenário linguístico no mínimo
curioso, uma vez que estamos lidando com variantes relacionadas à situação de
monolinguísmo em português como L1 [Siricari] e bilinguismo em Ãpyãwa como L1 e
português como L2 [Ãpyãwa].
A seguir demonstraremos a relação dessas variações sob a perspectiva do
contato linguístico. Inicialmente destacaremos a variante (10) inversão da ordem
sintática SVO, por considerarmos bastante elucidativa acerca da influência de uma
língua sob a outra. Vejamos: a ocorrência em (10b) relacionada ao Ãpyãwa: Wãkiri
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mordeu cachorro. Praça (2007:185) descreve que a língua Ãpyãwa apresenta a ordem
sintática (OVS) e que o tipo de estrutura sintática ocorrida em (10b) são frequentes na
língua Ãpyãwa, assim, no português desta comunidade é bastante comum seguir a
mesma ordem sintática padrão da língua Ãpyãwa (OVS). Deste modo, a inversão da
ordem prototípica do português (SVO) para (OVS) no português Ãpyãwa revela,
claramente, uma transferência sintática da língua materna Ãpyãwa para a segunda
língua, o português.
Outro ponto interessante refere-se ao item (6) ausência de concordância de
número. Apesar de se tratar de uma variável bastante recorrente em posição inicial do
SN como em (6a) os moradô..., essa variável se distingue em (6b) O meninos viu a
vacas, cuja marcação ocorre no referente nuclear do SN. Segundo Praça (2007:61), na
língua Ãpyãwa “A categoria de número é expressa de distintas maneiras. As noções de
singular e plural são marcadas nos índices de pessoas”. Ou seja, no exemplo (6b) o
referente de pessoa configura a posição nuclear do SN. Isso significa que a marcação de
plural ocorrida no referente nominal (6b) pode se referir, novamente, a um processo de
interferência de L1 Ãpyãwa, na língua aprendida – o português.
Já em relação à ocorrência (6a), no qual a marcação se dá em posição inicial do
SN, vale comentar estudos de Guy (1989, apud Baxter,1995:78) no qual observa que
[...] as línguas africanas que mais provavelmente teriam influenciado
o português brasileiro (o grupo das línguas kwa, da África ocidental, e
as línguas banto do Congo e da Angola), todas apresentam regras
que marcam o plural numa posição no início do SN. (grifo nosso)
Conforme se depreende dos argumentos trazidos por Praça (2007) e Guy (1989),
as variações morfossintáticas demonstradas em (6a e 6b) sugerem, notadamente, que a
composição da estrutura sintática dos falantes das comunidades Siricari e Ãpyãwa
provém de uma relação de contato.
Outro aspecto que vale destacar está na ocorrência (3) ausência de concordância
verbal de primeira pessoa do singular. Em ambas as ocorrências (3a, 3b) inexiste a
marca de pessoa no verbo: (3a) Quando eu teve trabalhando lá na delegacia, e (3b)
Quando eu foi fazer a minha pesquisa teve informação muito. Isso, provavelmente se
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deve à distinção entre o sistema da língua portuguesa e o da língua Ãpyãwa. Na língua
indígena Ãpyãwa a marcação de pessoa ocorre por meio de prefixação, enquanto que no
português ocorre por meio de sufixação. (cf. Praça, 2007:26). Como se pode observar,
entendemos que essa não-marcação da primeira pessoa nos verbos pode ser considerada
como uma interferência da gramática da língua materna Ãpyãwa e, em se tratando de
Siricari, uma herança gramatical proveniente de contato, visto sua inter-relação histórica
com povos indígenas.
Este tipo de não-marcação de pessoa pronominal no verbo, verificado em
Siricari e nos Ãpyãwa, se distingue do que nos mostra Castilho (2012:208), Mattos e
Silva (2004:144) entre outros, em relação à mudança do quadro pronominal. Ou seja, no
caso das comunidades investigadas não se trata de uma “generalização” da terceira
pessoa verbal.
Quadro 1: Disposição do quadro pronominal do português brasileiro (Mattos e Silva,
ibidem)
Alguns desses aspectos têm sido observado em outras comunidades
aquilombadas ou aldeamentos indígenas. Exemplo disso está na comunidade de
Helvécia (BA), no qual Lucchesi et al (2009:16) apontam indivíduos que exibem uma
variação oral da forma padrão do português em alternância com formas que teriam feito
parte do repertório gramatical do antigo crioulo, por exemplo “eu trabalha no roça”.
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No mesmo sentido, o povo Parkatêjê, situado em aldeias próximas ao município
de Bom Jesus do Tocantins, a 30 km de Marabá, no Sudoeste do estado do Pará também
partilham da mesma variação flexional. Ferreira (2005:13) demonstra que o povo
Parkatêjê, em uso da língua portuguesa como L2, tende ao emprego da forma verbal de
terceira pessoa de verbos irregulares com a primeira pessoa pronominal como “eu fez,
eu foi, eu pediu”.
Estudos envolvendo o português afro-brasileiro e o português indígena têm
demonstrado que a aquisição do português como segunda língua pelos descendentes
africanos e indígenas provocou mudanças significativas na morfossintaxe e
reestruturações de marcas gramaticais específicas do português. (cf. Avelar & Galves,
2014; Mattos e Silva, 1988). A esse respeito Lucchesi (2009:28-33) chama a atenção
sobre a relevância de pesquisas no interior do país, ratificando que:
[...] não se pode pensar seriamente que a língua portuguesa não foi
diretamente afetada pelo contato do português com as línguas
africanas de uma forma ampla e representativa, até porque os
afrodescendentes se integraram em todos os segmentos sociais e nos
mais diferentes ramos da atividade econômica, em todas as regiões do
país; concentrando-se, porém, na base da pirâmide social, em função
das adversidades históricas que tiveram de enfrentar. [...] as
comunidades rurais afro-brasileiras isoladas constituem um espaço
único parra a pesquisa em linguística sócio-histórica que visa rastrear
os reflexos do contato entre línguas na estrutura gramatical das
variedades atuais do português brasileiro.
Historicamente, grupos africanos e indígenas estiveram inseridos em um mesmo
contexto sociocultural e, portanto, expostos a situações interpessoais e intralinguísticas
que fomentaram variações específicas dos falares destas comunidades rurais. Nesse
sentido, cabe considerar a proposição do “Continuum Dialetal de Português Falado no
Brasil”, esquematizado no diagrama de Campos (2014:8), no qual insere no locus das
variedades [+ marcadas] o Português Afro-Indígena, ao lado do português afrobrasileiro e o português indígena.
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Considerações finais
Este estudo procurou demonstrar o relevo de investigações etnolinguísticas para
a descrição de aspectos relacionados a variações morfossintáticas do português
brasileiro. Como resultado preliminar, as evidências gramaticais nos levam a (1)
corroborar com pressupostos tratados pelo Português Afro-Indígena de que,
potencialmente, as três variedades do português (i) afro-indígena (ii) afro-brasileiro e
(iii) indígena compartilham similaridades linguísticas [+ marcadas], colocando-as num
mesmo ponto do continuum dialetal de português; (2) aspectos linguísticos evidenciados
em comunidades envoltas à miscigenação ou em situação de contato podem revelar
traços da língua de substrato; (3) as afinidades linguísticas observadas nas comunidades
Siricari e Ãpyãwa levantam questões significativas sobre similaridades e divergências
de variáveis gramaticais em comunidades díspares, como quilombos e aldeias
indígenas.
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