similaridades morfossintáticas do português de siricari em cotejo
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similaridades morfossintáticas do português de siricari em cotejo
Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 SIMILARIDADES MORFOSSINTÁTICAS DO PORTUGUÊS DE SIRICARI EM COTEJO COM O PORTUGUÊS ÉTNICO ÃPYÃWA (TAPIRAPÉ): UM ESTUDO AFRO-INDÍGENA Walkíria Neiva Praça (UnB)1 [email protected] Cristiane Torido Serra (UnB)2 [email protected] RESUMO: Este artigo propõe demonstrar as similaridades morfossintáticas do português falado pela comunidade quilombola de Siricari (Marajó-PA) e a comunidade indígena Ãpyãwa (Tapirapé) (MT). A proposta tem o intuito de demonstrar as variações orais do português falado nestas comunidades, considerando que a primeira encontra-se em situação de monolinguísmo em português, como língua materna e, a segunda, em situação de bilinguismo em Ãpyãwa, como língua materna e, português, como segunda língua. Acreditamos que as variações do português oral falado em comunidades envoltas à situação de contato linguístico ou miscigenação podem referir-se à língua de substrato. A investigação assume um caráter etnolinguístico e segue preceitos relativos ao Português Afro-Indígena tratado, entre outros, por Oliveira & Praça (2013), Silva (2014) e Campos (2015). PALAVRAS-CHAVE: Afro-Indígena; Contato Linguístico; Morfossintaxe; Quilombo Siricari; Ãpyãwa (Tapirapé). ABSTRACT: This paper aims to compare the morphosyntactic aspects of Portuguese surrounding the quilombola community of Siricari (Marajó - Brazil) and the indigenous community of Ãpyãwa (Tapirapé) (Mato Grossso - Brazil). The proposal is to demonstrate the similarities of oral variants of Portuguese language in these communities, considering that the first one is a monolingual in Portuguese and the second is bilingual in Ãpyãwa, as a first language, and Portuguese as second language. We believe that certain aspects of the morphosyntatic varieties in oral Portuguese involving communities in contact situation or by miscegenation can be associated with the substrate language. This research considers the ethno-linguistic character and follows the Portuguese Afro-Indigenous approach dealt, among others, by Oliveira & Praça (2013), Silva (2014) and Campos (2015). KEYWORDS: Afro-Indigenes; Linguistic Contact; Morphosyntatic; Siricari Quilombo; Ãpyãwa (Tapirapé). 1 Doutora em Linguística, professora do Instituto de Letras (IL), vinculado ao Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas, e do Programa de Pós-Graduação em Linguística (Mestrado e Doutorado) da Universidade de Brasília (UnB). [email protected] 2 Licenciada em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa) e mestranda do Programa de PósGraduação em Linguística da Universidade de Brasília (UnB). [email protected] NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 307 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 1. Introdução Investigar aspectos gramaticais do português falado em comunidades rurais amazônicas significa reconhecer, diante dos estratos étnico e social, a proeminência do contato da língua portuguesa e das línguas indígenas e africanas. É evidente o argumento de que a heterogeneidade étnica nesta região se compôs da mistura entre o branco, o índio e o negro, o que “resulta hoje o tipo étnico amazônico” (cf. Salles, 1971:135). Apesar da inegável miscigenação étnica, a língua que se manteve ativa na trajetória de comunicação interétnica nos tempos coloniais foi a língua geral e não o português trazido pelo colonizador. Apenas em meados do século XIX a língua portuguesa ganha terras amazônicas e sobrepõe, forçosamente, ao dialeto da maioria da população. (cf. Freire, 2004:17). Apesar da imposição de um monolinguísmo português, a língua geral amazônica falada pelos brancos, negros e índios imprime marcas significativas no novo ordenamento linguístico. Essa herança linguística contraída pela relação de contato permanente com as várias línguas advindas da região amazônica revela-se, sobretudo, em dialetos de comunidades rurais. Alguns aspectos linguísticos podem se referir à língua de substrato e são observados como um tipo de variação do português vernacular brasileiro ou, conforme dispõe Mattoso Câmara (apud França, 2004:5), aspectos relacionados a um “possível processo de crioulização3 no Brasil”. [N]o português do Brasil, não há fonema tupi ou de outra origem indígena, ou, ainda, de origem africana. [Mas], não há como negar [...] que a língua de susperstrato, adstrato ou substrato pode determinar certos itens lexicais [...] que, sem isso, não eram de se esperar. [...] é [...] possível que a eliminação dialetal de / ḽ / intervocálico, no Brasil, com a redução a /y/ consonântico (foia, em vez de folha, oio em vez de olho, etc.) se explique pelo português crioulo dos escravos negros ou pelo substrato indígena, visto que nas línguas indígenas não há oposição /l/-/r/ e /l/ como / ḽ /, podem ter sido isso mal interpretados. (Câmara Jr. 1975:55)4 (grifo nosso). 3 Segundo Lagorio & Freire (2014:583), por definição, língua crioula implica na formação de uma língua mista, cujo léxico é proveniente da língua dominante, mas as características sistêmicas são da língua dominada. 4 Cf. IPA, /ʎ/ para a consoante lateral palatal. Não se respeitaram os parágrafos na citação. NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 308 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 Conforme destacado nas palavras de Mattoso Câmara (1975), é possível reconhecer desdobramentos linguísticos no dialeto português brasileiro provocados pelas línguas naturais indígena ou africana. O que nos mostra Oliveira et al (apud Cecim, 2014:21) é que coexiste uma variedade do português brasileiro falada por comunidades de fala ‘aquilombadas’. Para esses autores, é possível que na fala de cada comunidade dita como ‘aquilombada’, seja ‘terras de preto’, ‘terras indígenas’ ou ‘terras mistas’5 existam marcas específicas podendo ser consideradas como uma variedade vernacular do português brasileiro. Com o propósito de ampliar a discussão sobre as variantes do português vernacular brasileiro, este estudo toma a direção do Português Afro-Indígena, o qual se projeta para os falares de comunidades rurais com traços de miscigenação africana e miscigenação indígena. De tal modo, propomos descrever aspectos morfossintáticos do português oral da comunidade quilombola de Siricari (PA) em cotejo com o português étnico da comunidade indígena Ãpyãwa (Tapirapé) (MT). O contexto linguístico desta investigação analisa o português da comunidade quilombola Siricari como língua materna (L1) e o português étnico da comunidade indígena Ãpyãwa como segunda língua (L2). A proposta de cotejar aspectos linguísticos das comunidades de Siricari e Ãpyãwa tem o intuito de demonstrar as similaridades das variantes orais entre estas comunidades afastadas geograficamente e de denominações distintas, como a africana (Siricari) e a indígena (Ãpyãwa). Em decorrência disso, esperamos corroborar para a hipótese de que variantes orais do português brasileiro podem indicar vestígios de falares provenientes do contato entre povos africanos e ameríndios. 5 ‘terras de preto’: uma descendência de africanos; ‘terras indígenas’: etnias que perderam ou estão por perder por completo suas línguas maternas, mas mantém seus laços identitários; ‘terras mistas’; comunidades aquilombadas no norte do Brasil cuja formação ética é negra e indígena. Termos e significados cunhados por Oliveira et al (2015) ao conceituar português afro-indígena. NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 309 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 2. Português Afro-Indígena As primeiras discussões sobre “a existência de uma variedade vernacular rural do português brasileiro L1 falada por comunidades envoltas em miscigenação afroindígena” foram tratadas, entre outros, por Oliveira & Praça (2013), Praça, Araújo & Oliveira (2013), Campos (2015), Silva (2014), Oliveira et al (2015). Investigações realizadas nas comunidades de Almofala (Tremembé – CE) e Jurussaca(PA) resultaram o estudo: Para um cotejo etnolinguístico entre comunidades afro-indígenas - Jurussaca (PA) e Tremenbé (CE): primeiras aproximações e abriram discussões para investigações envolvendo o português do Libolo (AF), Angola (AF) e a perspectiva do Português Afro-Indígena de Jurussaca (cf. Figueiredo & Oliveira, 2013); além de outras importantes contribuições como: O português afro-indígena de Jurussaca/PA: revisitando a descrição do sistema pronominal pessoal da comunidade a partir da textualidade (Silva, 2014); A sintaxe pronominal na variedade afro-indígena de Jurussaca: uma contribuição para o quadro da pronominalização do português falado no Brasil (Campos, 2014); O conceito de português afro-indígena e a comunidade de Jurussaca (Oliveira et al, 2015). Estes estudos tiveram como propósito investigar as variedades do português vernacular brasileiro sob a perspectiva do Português Afro-Indígena, denominado por Oliveira et al (2015:8) como sendo: Uma variedade vernacular rural de português brasileiro L1 falada por comunidade envoltas em miscigenação afro-indígena, mas que selecionam politicamente o termo “afro” ou “indígena”. Exemplificam-se as comunidade de Jurussaca/PA (autoidentificada como comunidade quilombola, logo “afro”) e AlmofalaTremembé/CE (autoidentificada como comunidade indígena, mas não “afro”). Além da característica de “português L1”, o Português Afro-Indígena atesta as seguintes outras características: (i) festas de sincretismo religioso que se subdividem em dois subtipos: (a) subtipo “ladainhas” (como em “Jurussaca”); (b) subtipo “torém/torén” (como em “Almofala/Tremembé”); (ii) linguagens cerimoniais (ex.: ladainhas; a música cantada na dança do torém/torén). A variedade de português afro-indígena compartilha com as variedades de português afro-brasileira e indígena a característica de localizarem-se ao extremo [+ marcado] do continuum dialetal de NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 310 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 português; difere, no entanto, da variedade indígena, por ser esta L2 por definição, e da afro-brasileira, por esta variedade não contemplar o traço de miscigenação indígena. Uma das questões que merece comentar são os ambientes de “rituais de sincretismo religioso”. Apesar de estudos (Maués, 2005; Pacheco, 2010) indicarem um universo religioso na Amazônia submerso nas religiões de origem africana, indígena e europeia (catolicismo), é possível constatar uma propagação dos princípios evangélicos nas comunidades amazônicas. Isso, de certo modo, vem inibindo a continuidade desses ambientes de sincretismo, consistindo na perda de costumes e tradições impregnadas de saberes imateriais amazônicos e, notadamente, um empobrecimento do patrimônio cultural que distingue as comunidades amazônicas na sua inter-relação com estratos africanos e indígenas. A conservação e a permanência desses espaços colaboram para que elementos significativos relacionados ao substrato de línguas decorrente do contato venham à tona. (cf. Oliveira et al, 2015; Baxter, 1995; França, 2004). Ou seja, o substrato linguístico proveniente do contato entre línguas acendido no período colonial permite-nos discutir sobre a possibilidade de algumas “marcas específicas” do português oral de comunidades rurais se tratarem de vestígios de antigos falares. Outro ponto importante consiste da proposição de um continuum do português brasileiro sob o viés afro-indígena. Ilustrado em forma de diagrama, Campos (2014) localiza o continuum da variedade do Português Afro-Indígena numa composição “compartilhada” com as variedades do português afro-brasileiro e português indígena. O diagrama mostra que “o Continuum Dialetal de Português Falado no Brasil enfoca o locus das variedades [+ marcadas]: o português afro-indígena, o afro-brasileiro e o indígena” (Campos, 2014:8). NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 311 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 Como pode ser visto no diagrama acima, as variedades [+marcadas] caracterizam especificidades etnolinguísticas localizadas em ponto distinto dos “falares regionais” e dos “falares urbanos não-padrão”, posicionados no centro do continuum e definidos como [+/-marcados] e, ainda mais distantes do português brasileiro [- marcado], situando as variedades do vernáculo rural num continuum até o padrão urbano (PB). Nota-se que o locus das variedades [+ marcadas] compartilha das variedades de português afro-indígena, português afro-brasileiro e português indígena. Isso significa que essas três variedades representam especificidades etnolinguísticas distintas dos falares de comunidades rurais [+/- marcados], possivelmente, em função de algumas dessas “especificidades” evidenciarem traços relacionados ao substrato línguas Fonte: de Campos (2014 em :8) contato. 3. Breve relato etnolinguístico das comunidades Siricari e Ãpyãwa: contornos de culturas africana e indígena 3.1. Quilombo Siricari-Marajó-PA Siricari situa-se em Salvaterra, uma das dezesseis regiões pertencentes à ilha de Marajó. A comunidade de Siricari se autodenomina quilombola e detém o título de NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 312 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 Remanescente Quilombola6 pela Fundação Palmares desde 2011. Contudo, reconhece seus estratos sociais, culturais e étnicos da inter-relação entre negros e índios. Apresenta uma área de 1.089 hectares e situa-se cerca de 22km do porto de Camará, único acesso à ilha de Marajó. A comunidade caracteriza-se pelo modo de vida de campesinato e tem como cercanias igarapés, matas, fazendas e proximidades com outras doze comunidades aquilombadas. Conforme consta em arquivo da Fundação Palmares (2011), o processo de territorialização e organização social de Siricari data dos anos 1850 em diante. Entretanto, segundo antigos nativos, antes mesmo do período em que antecede o movimento cabano (1835-1840) a região de Siricari era habitada por seus ascendentes. Há relatos de que estes teriam vivido situações de fuga da ‘guerra’, termo usado em referência à cabanagem, nos quais negros aquilombados e índios enterravam seus pertences e se escondiam na mata até a certeza de estarem a salvos para retornarem ao aldeamento. Acevedo (apud Godoi et al, 2009:215) nos conta que havia lugares chamados ‘sobras de terras’ de fazendas e sítios que eram ocupados por quilombolas, indígenas e mestiços no período da crise da pecuária e durante as lutas da Independência e da Cabanagem na ilha. Os estudos da antropóloga nos mostram que “[...] os povoados negros revelam origens diferenciadas, assim como uma diversidade de formas de acesso à terra, o que compreendem ocupações, doações, posses registradas, compras e heranças”. Historicamente, sabe-se que a região de Salvaterra abrigava aldeamentos de povos indígenas formados pelos primeiros missionários ali instalados. (i) a região de Salvaterra, antes mesmo de receber este nome era aldeia dos Sacácas, pertencentes às missões dos capuchos; (ii) a região de Soure habitava a antiga aldeia dos Maranauazes; (iii) em Chaves/Ilha grande de Joanes (antigo) habitavam os Aruãs e era também aldeia de Pyié. (Ensaio Corográfico da Província do Pará (2004:280). 6 Comunidade de Siricari, localizada no município de Salvaterra/PA, registrada no livro de cadastro geral nº 14, registro n.1.639, fl.056 –Fundação Cultural Palmares - portaria fcp nº 211 de 21/12/2011. NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 313 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 Registros do Ensaio Corográfico (2004) mostram que a atividade missionária na ilha visava apenas à extração de recursos naturais e à criação. Inicialmente essas atividades eram mantidas pelo trabalho escravo indígena, após danosas incursões do colono contra os nativos deu-se a chegada dos negros na região (cf. Salles, 1971 p.15). Sucedido esses fatores, a alforria efetiva do indígena,7 em 1751 e a destituição das terras ocupadas pela Companhia de Jesus,8 em 1758, fomenta-se o tráfico do negro na região do Grão-Pará e Maranhão. Mesmo diante das deficientes estatísticas coloniais de recenseamento populacional, Salles (1971) aponta para a marcante presença do negro em Marajó e assinala que: É difícil fazer o levantamento estatístico do tráfico de peças da África para a Amazônia [...] da mesma forma é difícil avaliar a imigração europeia e o extermínio dos grupos tribais indígenas. O certo é que no cômputo geral não há mais equilíbrio de estoques raciais. Há extrema heterogeneidade. Os contatos interétnicos se processaram intensamente, isentos do mais rudimentar preconceito racial, fundindo num todo os três estoques fundamentais: o branco, o índio e o negro. A presença de grupos indígenas isolados e de numeroso grupo mais ou menos marginalizado [...] vivendo na periferia das comunidades amazônicas não invalida a tese: o negro é uma presença marcante. (p.69 - grifo nosso) Essa trajetória de miscigenação na região de Marajó conta com o aparecimento de mocambos e quilombos compartilhados pelas matrizes africanas e indígenas. Encorajados pelo comportamento dos negros e pela oportunidade de fuga, muitos “mocambos de índios” surgiram ao lado de “mocambos de índios e negros” em uma clara demonstração de reorganização étnico-social (cf. Gomes, 1997:76-78). Somada as circunstâncias passadas que acirraram a formação de grupos de contornos afro-indígenas sobrevém, hoje, a presença do emblemático mestre Damasceno. Grande incentivador da manutenção das culturas marajoaras e das africanidades e indigenísmos, se autodenomina afro-indígena e retrata em seus repentes o cenário miscigenado de Salvaterra e das comunidades quilombolas. 7 Para saber mais ver Salles, 1971 – Parte 1 – 2. A política escravista do século XVIII Para saber mais ver: Annais da Bibliotheca e Archivo Publico do Pará (1904) capítulo “Os Contemplados”. 8 NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 314 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 Vale ilustrar à mescla cultural três fatores indispensáveis às “Festas de tradição”: (i) a Tiborna, (ii) o carimbó e, (iii) o Siriá. Esses elementos sinalizam a essência da miscigenação cultural entre africanos e indígenas. A (i) tiborna, bebida feita da mandioca ralada e fermentada, dizem se tratar de especiaria da culinária indígena, apesar de estar inserida nos festejos quilombolas; (ii) a dança Carimbó9, seguramente um misto cultural africano e indígena, foi criada pelos índios Tupinambá e aperfeiçoada pelos negros africanos, que em seu ritmo passou a vibrar como uma espécie de variante do batuque africano. Acresce que, o Carimbó também é descrito contendo traços de expressão corporal de danças lusitanas, tal como os dedos castanholando na marcação do ritmo; e, (iii) o Siriá, dança folclórica de ritmo africano, surgiu como um tipo de comemoração pela fartura de alimento conseguido pelos escravos no final do dia decorrente da captura de siris na praia. O nome vem de siri (crustáceo) e a tonicidade decorre da analogia a cafezá, remetendo ao local da plantação de café; arrozá, para o local da plantação de arroz; canaviá para o local plantação de cana, e assim passaram a chamar siriá, para o local onde todas as tardes encontravam os siris. (cf. Governo do Estado do Pará Portal Amazônia 01.09.2005-GC). Esses e tantos outros movimentos inter-relacionais, ao longo dos tempos, contribuíram para a formação de grupos identitários atuais que distinguem as comunidades quilombolas marajoaras como descendentes de uma miscigenação africana e indígena. No entendimento de Pacheco (2011:45), A construção do conceito de identidade afroindígena tornou-se possível, após constatar que na Amazônia Marajoara é quase impossível discutir a presença africana descolada de relações e redes de sociabilidades tecidas como grupos atávicos da região. (grifo nosso). Em vista da trajetória social, étnica e cultural compreendendo a comunidade de Siricari e imediações, parece-nos aceitável a hipótese de que algumas variedades do português oral possam se referir a resquícios de um dialeto de herança. 9 Ver mais: http://www.portalamazonia.com.br/secao/amazoniadeaz/interna.php?id=850 NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 315 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 3.2. O povo e a língua Ãpyãwa (Tapirapé) - Mato Grosso O povo Ãpyãwa, tradicionalmente conhecido por Tapirapé, vive em duas áreas indígenas: a Terra Indígena Tapirapé/Karajá e a Terra Indígena Urubu Branco (Tãpi’itãwa). A primeira localiza-se às margens do rio Tapirapé, nos municípios de Luciara e Santa Terezinha no Mato Grosso. A segunda localiza-se nos municípios de Santa Terrezinha, Confresa e Porto Alegre do Norte, situada no nordeste do Mato Grosso e tem como centro a serra do Urubu Branco. Essa se distancia da Terra Indígena Tapirapé/Karajá cerca de 180 km. Ambas as Terras Tapirapé (Ãpyãwa) – doravante apenas Ãpyãwa - fazem divisa com grandes latifúndios, dos quais visam apenas à exploração do solo, aspecto muitas vezes conflitante com a cultura indígena. (cf. Praça, 2007:21-22) Embora a história dos Ãpyãwa não se assemelhe à situação de muitos povos indígenas no período de expansão colonial, envolvendo a escravização indígena, a narrativa do professor Ieremy’i (Josimar Xawapare’ymi Ãpyãwa) (apud Paula, 2012:30) sustenta a hipótese de um movimento migratório em vista de se distanciar do homem branco: Nós, do povo Ãpyãwa, do tronco linguístico Tupi, andávamos em várias regiões do norte de Mato Grosso e Pará. Íamos ao Pará chegando até onde hoje é Conceição do Araguaia. De lá, nossos antepassados percorriam na direção sul, rumo ao Mato Grosso, vindo e voltando à procura de lugar com espaço suficiente e com fartura. Passaram no lugar que é hoje Vila Rica, que na época era uma aldeia, sem presença de nenhum “branco” morando naquela terra. A aldeia se chamava Maakotãwa, era outro grupo maior do povo Tapirapé, que se deslocou para chegar ao Urubu Branco onde os Tapirapé encontrariam lugar melhor para habitar. (TAPIRAPÉ, J. X. In: PPP da Escola Indígena Estadual Tapi’itãwa, 2009, p. 17-18) Segundo conta a Irmãzinha de Jesus Genoveva (apud Praça, 2007:20), os Ãpyãwa foram praticamente dizimados no final da década de quarenta, decorrente de (i) doenças infecto-contagiosas provocadas pelo não-índio; e (ii) conflitos com grupos indígenas inimigos. No entanto, em 1950 auxiliados pelos Dominicanos e pelas Irmãzinhas de Jesus, o povo Ãpyãwa inicia seu processo de recuperação demográfica e NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 316 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 identitário. Entretanto, ainda hoje muitos deles temem invasões de suas terras, e perda de seu patrimônio cultural decorrente da intensa presença do branco na região. Assim, o povo Ãpyãwa tem se esforçado para salvaguardar suas terras, sua cultura, seu povo, sua língua. Conforme apontado por Praça (2007:22), a língua Ãpyãwa é classificada como pertencente ao subconjunto IV da família Tupi-Guarani, do troco Tupi (cf. Lemle, 1971; Rodrigues, 1984/1985; Rodrigues & Cabral, 2002). As crianças são alfabetizadas inicialmente em Ãpyãwa e somente após esse aprendizado é que recebem aulas de português. Ao longo da vida escolar os alunos estudam a língua Ãpyãwa, incluindo noções fundamentais de linguística aplicada à descrição do Ãpyãwa estudada no ensino médio. Os Ãpyãwa são, em sua maioria, bilíngues em sua língua materna e em português como segunda língua. Nas Terras Na terra indígena Tapirapé/Karajá, alguns são trilíngues, incluindo, neste caso, o Karajá (Tronco Macro-Jê). Vale frisar um aspecto que chamou a atenção de antropólogos como Baldus (1970) e Wagley (1988). Eles estranharam a constituição de um grupo de língua Tupi vivendo entre povos de língua Macro-Jê, como os Karajá, Kayapó e Xavante. A hipótese era de que os Ãpyãwa teriam migrado do litoral para a região central do Brasil, fugindo da violência provocada pelo contato com as frentes de expansão coloniais. Essa hipótese ganha relevo pela presença da palavra paranyxigoo (mar) no léxico Ãpyãwa, apesar de estudos revelarem que em 1973 aquela população nunca ter visto o mar. Ou seja, é possível que este item seja um resquício lexical trazido pelos antepassados e permanecido na língua Ãpyãwa. (cf. Paula, 2012:29) 4. Similaridades morfossintáticas do português oral de Siricari em cotejo com o português Ãpyãwa Seguindo Oliveira et al (2015:4) é possível que “cada comunidade de fala traga suas marcas específicas devendo cada uma delas, na medida do possível, ser inventariada”. A existência de similaridades morfossintáticas nos falares das comunidades Siricari e Ãpyãwa corroboram com a hipótese de variações relacionadas NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 317 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 ao Português Afro-Indígena, uma vez que evidenciam especificidades linguísticas que as inserem no extremo [+ marcado] do continuum dialetal do português proposto por Campos (2014). Selecionamos dez aspectos morfossintáticos que ilustram evidências empíricas de variedades [+ marcadas] obtidas em estudo de campo nas comunidades Siricari e Ãpyãwa. Nelas observam-se as seguintes afinidades morfossintáticas: (1) não marcação de gênero: a) [Siricari]: Esse partizinha era uma plantaçon. b) [Ãpyãwa]: O fotografia tá demonstrando o resultado do projeto extraescolar. (2) ausência de artigo: a) [Siricari]: Maria, num te assusta, Ø cobra me mordeu. b) [Ãpyãwa]: Banana cria bem Ø criançada. (3) ausência de concordância verbal de primeira pessoa do singular: a) [Siricari]: Quando eu teve trabalhando lá na delegacia. b) [Ãpyãwa]: Quando eu foi fazer a minha pesquisa teve informação muito pouco. (4) alternância de concordância verbal de terceira pessoa: a) [Siricari]: Aí o menino sumiu, aí ela fui lá com ele né. b) [Ãpyãwa]: sem registro. (5) ausência de preposição: a) [Siricari]: Eu era auxiliar administrativo, depois cansei Ø trabalhá na parte burocrática. b) [Ãpyãwa]: Eu aprendeu fazer remédio Ø meu pai de criação. (6) ausência de concordância de número: NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 318 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 a) [Siricari]: Acho que a gente vai nas casa aqui que são os moradô mais velho, né. b) [Ãpyãwa]: O meninos viu a vacas nos pastu. (7) ausência de verbo copulativo: a) [Siricari]: Minha mãe faleceu dia dez de junho, mas ela Ø muito, muito já idosa, muito mesmo. b) [Ãpyãwa]: Eu Ø artista no desenho. (8) orações encaixadas sem complementizador: a) [Siricari]: Nesse tempo você comprá uma bicicleta tinha Ø haver vinte merréis, era muito dinhero. b) [Ãpyãwa]: Eu vai Ø você volta. transferência de regência: a) [Siricari]: sem registro. b) [Ãpyãwa]: A gente ia, mas o presidente nunca creditava a gente. (9) inversão da ordem sintática: a) [Siricari] Ele veio prestá socorro, que ficô ali em Boa Vista o carro. b) [Ãpyãwa] Wãkiri mordeu cachorro. “o cachorro mordeu Walkiria’’ Observamos que, embora nem todos os aspectos sejam comuns às duas comunidades, as ocorrências apontadas configuram um cenário linguístico no mínimo curioso, uma vez que estamos lidando com variantes relacionadas à situação de monolinguísmo em português como L1 [Siricari] e bilinguismo em Ãpyãwa como L1 e português como L2 [Ãpyãwa]. A seguir demonstraremos a relação dessas variações sob a perspectiva do contato linguístico. Inicialmente destacaremos a variante (10) inversão da ordem sintática SVO, por considerarmos bastante elucidativa acerca da influência de uma língua sob a outra. Vejamos: a ocorrência em (10b) relacionada ao Ãpyãwa: Wãkiri NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 319 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 mordeu cachorro. Praça (2007:185) descreve que a língua Ãpyãwa apresenta a ordem sintática (OVS) e que o tipo de estrutura sintática ocorrida em (10b) são frequentes na língua Ãpyãwa, assim, no português desta comunidade é bastante comum seguir a mesma ordem sintática padrão da língua Ãpyãwa (OVS). Deste modo, a inversão da ordem prototípica do português (SVO) para (OVS) no português Ãpyãwa revela, claramente, uma transferência sintática da língua materna Ãpyãwa para a segunda língua, o português. Outro ponto interessante refere-se ao item (6) ausência de concordância de número. Apesar de se tratar de uma variável bastante recorrente em posição inicial do SN como em (6a) os moradô..., essa variável se distingue em (6b) O meninos viu a vacas, cuja marcação ocorre no referente nuclear do SN. Segundo Praça (2007:61), na língua Ãpyãwa “A categoria de número é expressa de distintas maneiras. As noções de singular e plural são marcadas nos índices de pessoas”. Ou seja, no exemplo (6b) o referente de pessoa configura a posição nuclear do SN. Isso significa que a marcação de plural ocorrida no referente nominal (6b) pode se referir, novamente, a um processo de interferência de L1 Ãpyãwa, na língua aprendida – o português. Já em relação à ocorrência (6a), no qual a marcação se dá em posição inicial do SN, vale comentar estudos de Guy (1989, apud Baxter,1995:78) no qual observa que [...] as línguas africanas que mais provavelmente teriam influenciado o português brasileiro (o grupo das línguas kwa, da África ocidental, e as línguas banto do Congo e da Angola), todas apresentam regras que marcam o plural numa posição no início do SN. (grifo nosso) Conforme se depreende dos argumentos trazidos por Praça (2007) e Guy (1989), as variações morfossintáticas demonstradas em (6a e 6b) sugerem, notadamente, que a composição da estrutura sintática dos falantes das comunidades Siricari e Ãpyãwa provém de uma relação de contato. Outro aspecto que vale destacar está na ocorrência (3) ausência de concordância verbal de primeira pessoa do singular. Em ambas as ocorrências (3a, 3b) inexiste a marca de pessoa no verbo: (3a) Quando eu teve trabalhando lá na delegacia, e (3b) Quando eu foi fazer a minha pesquisa teve informação muito. Isso, provavelmente se NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 320 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 deve à distinção entre o sistema da língua portuguesa e o da língua Ãpyãwa. Na língua indígena Ãpyãwa a marcação de pessoa ocorre por meio de prefixação, enquanto que no português ocorre por meio de sufixação. (cf. Praça, 2007:26). Como se pode observar, entendemos que essa não-marcação da primeira pessoa nos verbos pode ser considerada como uma interferência da gramática da língua materna Ãpyãwa e, em se tratando de Siricari, uma herança gramatical proveniente de contato, visto sua inter-relação histórica com povos indígenas. Este tipo de não-marcação de pessoa pronominal no verbo, verificado em Siricari e nos Ãpyãwa, se distingue do que nos mostra Castilho (2012:208), Mattos e Silva (2004:144) entre outros, em relação à mudança do quadro pronominal. Ou seja, no caso das comunidades investigadas não se trata de uma “generalização” da terceira pessoa verbal. Quadro 1: Disposição do quadro pronominal do português brasileiro (Mattos e Silva, ibidem) Alguns desses aspectos têm sido observado em outras comunidades aquilombadas ou aldeamentos indígenas. Exemplo disso está na comunidade de Helvécia (BA), no qual Lucchesi et al (2009:16) apontam indivíduos que exibem uma variação oral da forma padrão do português em alternância com formas que teriam feito parte do repertório gramatical do antigo crioulo, por exemplo “eu trabalha no roça”. NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 321 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 No mesmo sentido, o povo Parkatêjê, situado em aldeias próximas ao município de Bom Jesus do Tocantins, a 30 km de Marabá, no Sudoeste do estado do Pará também partilham da mesma variação flexional. Ferreira (2005:13) demonstra que o povo Parkatêjê, em uso da língua portuguesa como L2, tende ao emprego da forma verbal de terceira pessoa de verbos irregulares com a primeira pessoa pronominal como “eu fez, eu foi, eu pediu”. Estudos envolvendo o português afro-brasileiro e o português indígena têm demonstrado que a aquisição do português como segunda língua pelos descendentes africanos e indígenas provocou mudanças significativas na morfossintaxe e reestruturações de marcas gramaticais específicas do português. (cf. Avelar & Galves, 2014; Mattos e Silva, 1988). A esse respeito Lucchesi (2009:28-33) chama a atenção sobre a relevância de pesquisas no interior do país, ratificando que: [...] não se pode pensar seriamente que a língua portuguesa não foi diretamente afetada pelo contato do português com as línguas africanas de uma forma ampla e representativa, até porque os afrodescendentes se integraram em todos os segmentos sociais e nos mais diferentes ramos da atividade econômica, em todas as regiões do país; concentrando-se, porém, na base da pirâmide social, em função das adversidades históricas que tiveram de enfrentar. [...] as comunidades rurais afro-brasileiras isoladas constituem um espaço único parra a pesquisa em linguística sócio-histórica que visa rastrear os reflexos do contato entre línguas na estrutura gramatical das variedades atuais do português brasileiro. Historicamente, grupos africanos e indígenas estiveram inseridos em um mesmo contexto sociocultural e, portanto, expostos a situações interpessoais e intralinguísticas que fomentaram variações específicas dos falares destas comunidades rurais. Nesse sentido, cabe considerar a proposição do “Continuum Dialetal de Português Falado no Brasil”, esquematizado no diagrama de Campos (2014:8), no qual insere no locus das variedades [+ marcadas] o Português Afro-Indígena, ao lado do português afrobrasileiro e o português indígena. NUPESDD – UEMS – Web-Revista SOCIODIALETO – Mestrado – Letras – UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 322 Web -R ev i sta S OC I O DI A L E TO • w ww .so ci od i a le to.com .b r Núcleo de Pesquisa e Estudos Sociolinguísticos, Dialetológicos e Discursivos • NUPESDD-UEMS Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande IS SN : 2 17 8 -1 4 86 • Vo lu m e 6 • Nú m er o 17 • No vem b r o 2 01 5 Considerações finais Este estudo procurou demonstrar o relevo de investigações etnolinguísticas para a descrição de aspectos relacionados a variações morfossintáticas do português brasileiro. Como resultado preliminar, as evidências gramaticais nos levam a (1) corroborar com pressupostos tratados pelo Português Afro-Indígena de que, potencialmente, as três variedades do português (i) afro-indígena (ii) afro-brasileiro e (iii) indígena compartilham similaridades linguísticas [+ marcadas], colocando-as num mesmo ponto do continuum dialetal de português; (2) aspectos linguísticos evidenciados em comunidades envoltas à miscigenação ou em situação de contato podem revelar traços da língua de substrato; (3) as afinidades linguísticas observadas nas comunidades Siricari e Ãpyãwa levantam questões significativas sobre similaridades e divergências de variáveis gramaticais em comunidades díspares, como quilombos e aldeias indígenas. Referência bibliográfica ACEVEDO MARIN, R. E. Quilombolas na ilha de Marajó: território e organização política. In: GODOI, E. P. D., et al. Diversidade do campesinato: expressões e categorias. São Paulo: UNESP, v. 1, 2009. Cap. 9, p. 209-227. 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