Dio e i suoi figli

Transcrição

Dio e i suoi figli
João Carlos Almeida SCJ
LÉON DEHON E A EDUCAÇÃO
- O Projeto Espiritual
- O Projeto Educacional
- A Educação Integral
- Conclusão, balanço e perspectivas
STD - Studia Dehoniana
Centro Generale Studi SCJ – ROMA
50
2008
João Carlos Almeida SCJ
LÉON DEHON E A EDUCAÇÃO
STUDIA DEHONIANA 50
Centro Generale Studi SCJ
Roma 2008
2
SIGLAS E ABREVIAÇÕES
1. Escritos de Léon Dehon
DES
Directoire spirituel
NHV
Notes sur l’Histoire de ma vie
NQT
Notes Quotidiennes
OSC
Œuvres Sociales
OSP
Œuvres Spirituelles
2. Outras abreviações
AAS
AD
ASS
B
CFL
CST
DG
EE
EnchEnc
EnchVat
Acta Apostolicæ Sedis, Roma 1909ss.
Arquivos Dehonianos
Acta Sanctæ Sedis, Roma 1865-1908.
Boîte (onde o arquivo preserva os documentos
originais)
Cahiers Falleur
Constituições SCJ
CONGREGATIONIS SACERDOTUM A S. CORDE
JESU, Directoire Général de la Congrégation
des Prêtes du Sacré-Cœur de Jésus, Roma
2001.
Exercícios Espirituais. Citados conforme: Gli
Scritti di Ignazio di Loyola, aos cuidados de M.
GIOIA, UTET, Torino 1977.
E. LORA, ed., Enchiridion delle Encicliche
1831-1922, II-V, Bolonha 1995-1998.
E. LORA, ed., Enchiridion Vaticanum, I-XIV,
Bolonha 1962-2004.
3
inv.
GE
GS
SCJ
Inventário dos documentos referentes a Léon
Dehon. Numeração dos Arquivos Dehonianos,
em Roma.
Declaração Gravissimum educacionis, Sobre a
Educação Cristã, 1965, in EnchVat, I, 451-475.
Constituição Pastoral da Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et Spes.
Sacerdotum Cordis Jesu (Dehonianos)
4
La vérité et la charité
ont été les deux grandes
passions de ma vie,
et je n’ai qu’un désir,
c’est qu’elles soient
les deux seuls attraits
de l’œuvre que je laisserai,
s’il plaît à Dieu.
LEON DEHON
(NQT III/1887, 98-99)
5
INTRODUÇÃO
Nestas páginas pretendemos contemplar Léon Dehon, educador, com
os olhos da Teologia Espiritual. Sabemos que no ano de 1877 ele fundou
contemporanemente a Congregação SCJ e o Colégio São João. Hoje,
cento e trinta anos depois, a Congregação conta com 2.234 membros,
espalhados por quarenta países1 e possui vinte e quatro colégios e dez
instituições de nível universitário2. Apesar de sua origem − intimamente
ligada à educação e destas escolas − a Congregação SCJ não foi fundada
especificamente para se dedicar ao apostolado educacional. Dehon não
quis fundar uma Congregação em vista de uma obra determinada. O
carisma dehoniano, por sua natureza oblativa, permite atender às mais
diversas necessidades pastorais da Igreja, no quadro de algumas
orientações apostólicas preferenciais, deixadas pelo fundador3. Em
espírito de fidelidade dinâmica ao carisma fundacional, perguntamos
qual seria o significado do apostolado educacional na experiência
espiritual que levou Léon Dehon a fundar uma congregação religiosa.
Esta foi a grande questão do 1º Encontro de Educadores Dehonianos, em
Salamanca, no ano 2001, onde estiveram presentes cinqüenta e sete
educadores de dezessete nações4. Trata-se de uma pergunta fundamental
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1
2
3
4
Estatística de 31.12.2006. CONGREGATIONIS SACERDOTUM A S. CORDE JESU,
Informationum Nuntius. Suplemento ao nº 1, Roma 2006, 1.
CONGREGATIONIS SACERDOTUM A S. CORDE JESU, Elenchus 2005.
As atuais Constituições do Instituto indicam as seguintes orientações
apostólicas: adoração eucarística, presença junto aos pobres e trabalhadores,
formação de sacerdotes e religiosos, missões. CST (1985) nº 30-33.
Os debates e conclusões encontram-se em Studia Dehoniana 45 (2001).
7
e pertinente, pois a experiência de fé de Léon Dehon5 é paradigmática
para a Congregação, conforme afirmam nossas atuais Constituições:
Como Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, vivemos hoje em nosso
Instituto a herança de Léon Dehon. Somos religiosos consagrados ao Senhor
pelos votos, com um projeto de vida espiritual reconhecido pela Igreja: o do
fundador6.
Este estudo pretende prestar o serviço de ajudar a entender o
significado do apostolado educacional na experiência espiritual de Léon
Dehon.
Para cumprir esta tarefa lançaremos um olhar sobre sua história e seus
escritos, principalmente aqueles que nascem de sua atuação na
Congregação e no Colégio e deixam transparecer um projeto espiritual e
um projeto educacional. Estes dois olhares definem o âmbito das duas
partes deste estudo.
Pessoalmente, envolvidos no apostolado educacional, na Faculdade
Dehoniana, na Província Brasileira Central (BC), sentimo-nos motivados
a fazer este recuo acadêmico para pensar as origens, as características e
os fundamentos da educação neste «projeto de vida espiritual de Léon
Dehon». É um esforço para realizar o que o Concílio Vaticano II chamou
de «retorno às fontes», «à genuína inspiração dos Institutos», «ao
espírito e às intenções dos fundadores»7.
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Esta afirmação aparece na abertura das atuais Constituições dos Dehonianos:
«Este Instituto tem sua origem na experiência de fé de Padre Dehon». CST
(1985) nº 2. Grifo nosso.
CST (1985) nº 26. Grifo nosso. Além dessa expressão «projeto de vida
espiritual», encontramos uma grande diversidade de palavras e expressões
utilizadas nas atuais Constituições da Congregação fundada por Dehon, para
indicar a mesma realidade do fundador tocado pela Graça. Cada uma delas
evidencia um aspecto deste encontro entre Deus e o homem: «carisma» (CST
nº 1, 27, 87), evidencia a iniciativa de Deus que se doa; «experiência de fé»
(CST nº 2), evidencia a recepção deste dom pelo homem; «intenção
específica e original» (CST nº 6), evidencia a consciência e adesão ao
chamado divino; «experiência de P. Dehon» (CST nº 16), evidencia a
exemplaridade desta experiência para a Congregação; herança (CST nº 26),
evidencia a paternidade do fundador.
Perfectæ caritatis 2, in EnchVat, I, 387. João Paulo II falará de fidelidade
criativa ao carisma de fundação. Vita consecrata 36-37. AAS 88 (1996) 409-
8
Nossa motivação, porém, não se restringe ao âmbito da paternidade
espiritual e carismática de Léon Dehon. A exemplaridade de seu
apostolado educacional junto aos jovens ultrapassa o âmbito da
Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus e pode ser
estímulo e referência para os educadores que buscam o sentido da
educação segundo o ideal cristão. O Concílio Vaticano II declarou, de
modo emblemático, «a gravíssima importância da educação na vida do
homem e a sua influência cada vez maior no progresso social do nosso
tempo»8 e definiu alguns princípios fundamentais sobre a educação
cristã, especialmente nas escolas.
Portanto, o estudo sobre Dehon educador não é relevante apenas para
a Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, que busca
no retorno às fontes sua permanente «refundação»9, mas também para a
Igreja, que vê na figura de Dehon um modelo de cristão e sacerdote
comprometido com a sociedade de seu tempo. Este juízo oficial da Igreja
sobre o Servo de Deus, o Venerável10 Léon Dehon, ou Jean du Cœur de
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8
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411. Diz o nosso atual Diretório Geral: «Este estudo é também uma
condição de fidelidade e fecundidade, na permanente exigência de renovação
e criatividade». DG nº 15.
GE, proêmio, in EnchVat, I, 453.
O termo «refundação» foi utilizado em nosso 21º Capítulo Geral, em 2003,
neste sentido: «Na fidelidade criativa ao nosso Fundador, dóceis ao Espírito
Santo, somos interpelados, hoje, a retornar às raízes do Evangelho, à pedra
angular sobre a qual está fundamentada nossa vida de fé (1Cor 3,11) e à
experiência carismática e fundante do nosso Instituto (cf. CST 1-7), que dá
conteúdo e forma à nossa vida religiosa para que seja significativa, hoje, na
Igreja e no mundo. Não temos apenas uma história para contar, mas temos
uma grande história a construir». CONGREGATIONIS SACERDOTUM A SACRO
CORDE JESU, Documenta XIX, 250-253. Em seu pronunciamento aos
participantes deste Capítulo Geral, João Paulo II preferiu a expressão
«revisitar os fundamentos do carisma»: «[...] ‘rivisitare’ i fondamenti del
vostro carisma, con l’impegno di tradurli nell’oggi, consapevoli della
preziosa attualità della vostra missione». JOÃO PAULO II, Insegnamenti di
Giovanni Paolo II, 16,1, (2003) 923.
O Decretum super virtutibus, da Congregação para a Causa dos Santos, que
conferiu a Leonis Ioannis a S. Corde Iesu o título de «Venerável», foi
promulgado no dia 8 de abril de 1997. AAS 89 (1997) 842-847.
9
Jésus, nome religioso que costumava utilizar, está claramente expresso
em seu processo de beatificação11, principalmente no decreto sobre as
suas virtudes heróicas12.
A relevância da figura de León Dehon para a Igreja e a sociedade de
nossos dias ficou ainda mais evidenciada por ocasião da definição da
data de sua beatificação13.
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CONGREGATIO DE CAUSIS SANCTORUM, Positio, 2 volumes, Roma 1990;
IDEM, Index ac Status Causarum, Roma 1999, 226. A Causa do Servo de
Deus Léon Dehon teve início em 1952, em Malines, com o Processo
Informativo; logo em seguida foi feito um breve Processo Rogatorial, em
Roma, de 1952 a 1953. Seguiu-se um processo adicional em Soissons de
1958 a 1961, com a finalidade de esclarecer algumas suspeitas morais a
respeito do Servo de Deus, levantadas no processo de Malines. O Processo
de Soissons não só esclareceu quaisquer dúvidas como ainda, segundo juízos
oficiais, tornou-se a fonte mais rica e completa sobre as virtudes do Servo de
Deus. A Causa pode, então, ser oficialmente aberta na Congregação para a
Causa dos Santos, mediante um decreto de 31 de maio de 1971. A Positio foi
apresentada em maio de 1979 e as Animadversiones estavam prontas em 25
de abril de 1981. No dia 8 de abril de 1997 João Paulo II promulgou o
decreto sobre as virtudes heróicas de Léon Dehon.
«Constare de virtutibus theologalibus Fide, Spe et Caritate tum in Deum tum
in proximum, necnon de cardinalibus Prudentia, Iustitia, Temperantia et
Fortitudine, eiusque adnexis, in gradu heroico, Servi Dei Leonis Ioannis a S.
Corde Iesu (in sæc. Leonis Gustavi Dehon), Sacerdotis, Fundatoris
Congregationis Sacerdotum a S. Corde Iesu, in casu ad affectum de quo
agitur». CONGREGATIO DE CAUSIS SANCTORUM, Decretum Super Virtutibus
Leonis Ioannis a S. Corde Iesu, Roma 1997. AAS 89 (1997) 842-847.
Em 19 de abril de 2004 foi promulgado o decreto sobre a autenticidade de
um milagre ocorrido no Brasil, em 1954, abrindo o caminho para a
beatificação que ficou marcada para o domingo, dia 24 de abril de 2005, na
Praça de São Pedro, Roma, de acordo com o Ofício nº 568.785 da Secretaria
de Estado da Santa Sé, do dia 28 de dezembro de 2004, endereçado ao
Postulador Geral da Congregação, P. Evaristo Martinez de Alegria. Um
novo Ofício nº 712-50/05 da Congregação para a Causa dos Santos, foi
emitido no dia 9 de janeiro de 2005 confirmando a data de 24 de abril para a
beatificação que, porém, ficou suspensa em virtude da doença e morte do
Papa João Paulo II, no dia 2 de abril. No dia 19 de abril era eleito o novo
Papa, Bento XVI. Na data em que estava prevista a beatificação de Dehon na
10
Para perceber melhor a atualidade de Dehon e mapear o núcleo
fundante de sua experiência espiritual, é interessante ouvir também o
testemunho recente dos papas a respeito deste Servo de Deus.
Paulo VI, em 1966, já exortava a Congregação dos Sacerdotes do
Sagrado Coração de Jesus a conservar o espírito do fundador na «dupla
fidelidade» que caracterizou sua vida e que ele quis imprimir à sua
família religiosa como marca distintiva: «uma ardente devoção ao
Sagrado Coração; fidelidade igualmente à sua preocupação com um
apostolado plenamente adaptado às condições do mundo moderno»14.
Em 1978, no centenário da Congregação, poucos meses antes de sua
morte, relembrou a «dupla fidelidade» de que falara em 1966 e atualizou
seu discurso, exortando a seguir o exemplo e ensinamento de Dehon no
seu «especial vínculo de filial união com a Cátedra de Pedro e à Igreja»
o que exige «fidelidade ao carisma original efuso do Espírito Santo»15.
João Paulo I, em seu curto pontificado, não teve tempo de falar sobre
Dehon, porém, alguns meses antes de sua eleição, ainda como Patriarca
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14
15
Praça de São Pedro, em Roma, o mundo assistiu à Santa Missa de imposição
do pálio e entrega do anel do pescador para início do ministério petrino do
novo Bispo de Roma. AAS 97 (2005) 706-713. Segundo uma Carta Circular
do Superior Geral dos Dehonianos, P. José Ornelas Carvalho, com data de
13 de novembro de 2006, a Congregação SCJ foi notificada pela Secretaria
de Estado da Santa Sé de que não há data prevista para a realização da
beatificação. «A razão do adiamento é motivada pela presença de algumas
expressões sobre o judaísmo nos escritos do P. Dehon que, na ocasião do
anúncio da beatificação, provocaram reações negativas junto da Santa Sé e
na imprensa». CONGREGATIONIS SACERDOTUM A S. CORDE JESU, Adiamento
da Beatificação do P. Dehon, Protocolo nº 241/2006.
PAULO VI, Insegnamenti di Paolo VI, 4 (1966) 289. Em 1973, Paulo VI
voltou a insistir na mesma idéia de «fidelidade ao espírito de Padre Dehon»
consagrando toda a vida ao amor misericordioso de Cristo, fundamento da
vida espiritual e do apostolado. PAULO VI, Insegnamenti di Paolo VI, 11
(1973) 686-687.
PAULO VI, Insegnamenti di Paolo VI, 16 (1978) 385-389. Palavras
pronunciadas no dia 22 de maio de 1978. Paulo VI morreu no dia 6 de
agosto do mesmo ano.
11
de Veneza, fez uma longa conferência sobre Léon Dehon sacerdote,
apóstolo e fundador16.
João Paulo II, já em seu primeiro pronunciamento sobre Dehon, em 1979,
interpretou o carisma na mesma linha de Paulo VI, ressaltanto duas
dimensões. Primeiro a dimensão do «amor e reparação ao Sagrado
Coração» que garante uma profunda «vida interior» e impulsiona a uma
segunda dimensão, ou seja, ao apostolado social e ao «amor fiel à Santa
Sé»17. Mas, segundo nosso ponto de vista, o discurso de João Paulo II, em
1985, é o que melhor traduz a espiritualidade de Léon Dehon18. O Papa cita
as palavras do próprio Dehon, de 1887, em que reconhece que a verdade e a
caridade foram as duas grandes paixões de sua vida19. Afirma que «na
espiritualidade de Dehon o fundamento e o centro é o culto e a devoção ao
Coração de Jesus», que deve orientar a reflexão teológica, a formação
ascética, a atividade pastoral e missionária. O Coração traspassado de Cristo
é o grande símbolo do amor de Deus pela humanidade. Sua Santidade
recordou também que, em 6 de setembro de 1888, Dehon foi recebido em
audiência privada por Leão XIII que lhe teria dito: «Prega as minhas
Encíclicas». Recordando esse fato fundamental, João Paulo II procura
traduzir os motivos espirituais de Dehon nestes termos:
Estas palavras foram o programa da sua vida sacerdotal e da Congregação
que o jovem sacerdote teve o ânimo de fundar: um amor ardente e afetuoso a
Cristo, para reparar os pecados do mundo; um incansável e corajoso
apostolado, também social, para fazer conhecer e amar o Divino redentor e,
enfim, uma especial atenção ao Magistério da Igreja, para ter a garantia da
verdade anunciada e para dar uma ajuda autêntica à formação dos
sacerdotes20.
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19
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A. LUCIANI, Leone Dehon, Sacerdote, Apostolo, Fondatore, in Dehoniana
1878-1978, 8 (1978) 135-142. Esta conferência foi pronunciada em 14 de
abril de 1978 e João Paulo I foi eleito no dia 26 de agosto de 1978. Morreu,
um mês depois, no dia 28 de setembro de 1978.
JOÃO PAULO II, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, 2 (1979) 1601-1602.
Palavras pronunciadas em 22 de junho de 1979. João Paulo II foi eleito no
dia 16 de outubro de 1978.
AAS 77 (1985) 1080-1083.
AAS 77 (1985) 1082.
AAS 77 (1985) 1082. Grifos nossos.
12
O Papa conclui com uma frase muito conhecida do próprio Léon
Dehon e que revela sua mística de educador: «Deus não sabe o que fazer
com nossos conhecimentos e com as nossas obras se não tiver o nosso
coração»21.
Nosso estudo será composto de duas grandes partes e um epílogo. Na
primeira analisaremos o modo como a educação é contemplada no
«projeto espiritual de Léon Dehon». Nos dois primeiros capítulos, após
situar sua experiência espiritual no contexto político, cultural e religioso
do século XIX, lançaremos um olhar sobre sua vida com ênfase sobre a
formação que recebeu e as obras para a educação da juventude que
fundou. Esta leitura diacrônica terá sua ênfase na primeira metade de sua
vida, onde identificaremos seus principais motivos espirituais. Esta é
também a fase em que ocorrem a maioria dos seus discursos sobre
educação, agrupados posteriormente em livro. A segunda parte da sua
vida, a partir de 1887, é quando surgem praticamente todas as suas
publicações. Procuraremos entender a gênese e desenvolvimento de sua
reflexão sobre sua própria experiência de fé. Em seguida faremos uma
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21
AAS 77 (1985) 1083. Grifos nossos. A afirmação encontra-se na obra de
Léon Dehon em NQT III/1886, 35. João Paulo II voltou a se pronunciar
sobre Dehon em 31 de maio de 1991 definindo o seu carisma como «AmorOblação-Reparação ao Sagrado Coração de Jesus, segundo o ensinamento da
Igreja». JOÃO PAULO II, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, 14,1 (1991)
1371. Em 39 de maio de 1997, em novo pronunciamento, já tendo
promulgado o Decreto sobre a heroicidade das virtudes de Dehon, repetiu a
importância «focal» do Coração de Jesus e da estima pelos Papas em sua
vida. «Leão XIII, por exemplo, o estimava como ótimo intérprete do seu
Magistério. Bento XV foi seu amigo pessoal e lhe confiou a construção da
Basílica de Cristo Rei em Roma». JOÃO PAULO II, Insegnamenti di Giovanni
Paolo II, 20,1 (1997) 1302. Finalmente, em outubro de 2003, João Paulo II
se pronunciou uma última vez a respeito do Venerável Léon Dehon por
ocasião do seu 125º aniversário de vida religiosa sintetizando o seu carisma
como «caracterizado por uma contante contemplação do Coração de Cristo,
pela consciente participação na sua oblação reparadora e por uma zelosa
dedicação em difundir o Reino do Senhor nas almas e na sociedade, já que a
recusa ao amor de Deus é a causa mais profunda dos males do mundo».
JOÃO PAULO II, Insegnamenti di Giovanni Paolo II, 26,1 (2003) 923.
13
leitura sincrônica da sua espiritualidade (Capítulo III) e do carisma
fundacional (Capítulo IV).
Na segunda parte, verificaremos especificamente a visão de Dehon
sobre a educação da juventude. Analisaremos cada um de seus discursos
educacionais publicados (Capítulos V), faremos um estudo particular
sobre um discurso até agora inédito e pronunciado em 1888 (Capítulo
VI); analisaremos sua relação com os Antigos Alunos (Capítulo VII) e
sua orientação para o apostolado intelectual (Capítulo VIII). Nesta
segunda parte, nossa aproximação será basicamente uma busca para
entender Dehon a partir de suas próprias reflexões, porém sempre
situando-o no seu tempo. Os textos serão sempre lidos no contexto,
histórico e vital.
Após estes sete capítulos descritivos, faremos um epílogo
hermenêutico, nos dois últimos capítulos. O Capítulo IX será um esforço
de olhar para o pensamento de Dehon a partir do instrumental das
ciências da educação. Veremos como em seus escritos transparece um
conceito de Educação Integral. No Capítulo X procuramos fazer uma
síntese da espiritualidade educacional em Léon Dehon, a partir dos
textos estudados. Após o elenco de algumas conclusões, buscaremos
fazer um balanço a partir de alguns documentos do Magistério sobre
educação, principalmente a Gravissimum educationis. Com isso, será
possível verificar a atualidade do pensamento educacional de Dehon, o
que poderia dizer aos educadores de hoje e quais seriam os limites dos
quais devemos manter uma distância crítica. Após esta análise
poderemos indicar algumas perspectivas para a espiritualidade
educacional dehoniana.
14
PRIMEIRA PARTE
O PROJETO ESPIRITUAL DE LÉON DEHON
Domine, quid me vis facere? (cf. At 9,6)
Lema da ordenação sacerdotal de Léon Dehon
CAPÍTULO I
O ambiente da experiência espiritual
1. A França no início do século XIX
Para entender a experiência espiritual de Dehon educador, sem
distorções nem anacronismos, é necessário situá-lo no seu ambiente
social, político e eclesial1. Ele é filho do seu tempo. Além disso, foi um
homem que soube ouvir o Coração de Deus, o coração do mundo e o
coração da Igreja. Viveu a dinâmica do permanente discernimento que
exige atenção aos sinais dos tempos. Leu o jornal diariamente até o dia
da sua morte. Procurou conhecer as mais diferentes manifestações da
ciência e da cultura. Interessava-se pela arte, geografia, história,
arqueologia, economia, política, direito, filosofia, espiritualidade,
teologia. Em seus escritos encontramos uma grande diversidade de
olhares sobre a realidade2. Mais do que observar os fatos, ele estabelece
um diálogo com a história e, neste diálogo, vive sua experiência
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1
2
Seguimos aqui as indicações de Charles A. Bernard sobre os dois níveis em
que devem ser consideradas as manifestações que fornecem a base da
pesquisa fenomenológica: o nível sócio-histórico (contexto) e o nível pessoal
(vida dos santos). CH.A. BERNARD, Teologia spirituale, 93.
Em seu diário, tem o hábito de registrar detalhes observados durante suas
viagens que mostram um homem muito atento à realidade. Em sua passagem
pelo estado da Bahia, no Brasil, por exemplo, chega a anotar, em números
exatos, os produtos exportados e importados no ano de 1903. NQT
XXI/1906, 66.
17
espiritual com ouvidos de aluno e coração de educador. Portanto, não é
possível entender seus escritos, sem primeiro lançar um olhar para a
complexa França do século XIX, que é como um eco tardio da grande
Revolução de 1789, cujo efeito final será a definitiva separação entre a
Igreja e o Estado, em 19053. Política, sociedade, ciência, filosofia e
religião estão em íntima relação neste tempo que viu nascer a revolução
industrial, com todo seu progresso técnico, e entraria em crise de
esperança com a primeira grande Guerra Mundial (1914-1918).
Dehon assistiu a este drama de um século em transição, não como
espectador passivo, mas como ator. Ele nasce no tempo em que a França
ocupava o centro do cenário europeu. Após a Revolução Francesa (17891799) e o Primeiro Império com Napoleão Bonaparte (1799-1815), o
Estado Católico havia sido fragilmente restaurado sob os governos de
Luís XVIII e Carlos X (1815-1830), promovendo um significativo
aumento do clero4. A burguesia liberal parecia sentir saudades da fé, mas
apenas como instrumento para acalmar o ânimo dos proletários
revoltados pela injustiça e sempre mais organizados em classe5. No seu
íntimo os burgueses, em geral, preferiam respirar os ares do humanismo
ateu e anticristão de Voltaire e do positivismo cientificista de Augusto
Comte. O pai de Léon Dehon, por exemplo, após seus estudos em Paris,
apesar de bom e honesto, compartilhava destas convicções6.
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6
G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 20-45. Este período da
história ainda permanece um campo aberto para muitos estudos recentes, por
exemplo o de CH. CHARLE, Histoire sociale de la France au XIXème siècle,
Paris 1991.
Neste período o clero secular francês passa de 36.000 para 40.500.
MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 24. Para uma abordagem desse
período à luz da Doutrina Social da Igreja: A. PERROUX, «El Padre Dehon y
la Doctrina Social de la Iglesia», 15-40. S. TERTÜNTE, «León Dehon y la
Democracia cristiana: un intento de renovación social en Francia a finales
del siglo XIX», 45-58.
Após 1848, já sob o governo de Luís Napoleão, a burguesia temendo uma
revolução socialista se aproxima cada vez mais da Igreja. Os operários, ao
contrário, cada vez mais organizados sob o impulso da revolução industrial,
tendem a se afastar gradativamente da religião.
NHV I, 4v. Lamennais dirá que neste tempo as escolas são «seminários de
ateísmo e anticâmeras do inferno». A. DANSETTE, Histoire religieuse, 206.
18
Os operários, geralmente, apoiavam suas reivindicações em um
socialismo nascente, ateu e materialista, e acabavam muitas vezes por se
afastar da religião7. Para agravar essa situação, o clero, em grande parte
mal formado, não manifestava muita sensibilidade para com as questões
ligadas à justiça social. Sua resposta aos problemas da sociedade estava
mais na linha de um humanismo católico romântico, que apresentava a
linguagem do coração, do sentimento e da beleza do cristianismo. Sua
preocupação era recristianizar a França em oposição ao projeto de
descristianização iniciado pela grande Revolução. Para Dehon a
promoção da cultura no meio do clero era uma das formas mais
eficientes de promover a restauração da França cristã.
Com esse propósito de reparação, surgem inúmeras congregações
religiosas na França do século XIX8. Neste sentido é um século
espiritualmente fecundo, com muitos exemplos de santidade autêntica9.
Uma das pessoas que alimentava sua fé nessa forma de piedade era a
mãe de Léon Dehon que, por sua vez, será um adepto da linguagem
típica do humanismo católico romântico, mas a partir de uma sólida
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9
Dehon percebe essa situação já no início do seu ministério, em 1871.
Segundo seu testemunho, são poucos os homens que vão à igreja e escassos
os operários que participam. NHV IX, 92. A maioria da população de SaintQuentin vive «em verdadeiro paganismo». NHV IX, 94. Chegou a fazer
pesquisas sobre a situação religiosa da diocese de Soissons em 1874 e
concluiu que existia uma grande indiferença religiosa da parte dos homens.
NHV X, 185.
Em geral essas congregações eram dedicadas ao apostolado educacional,
evangelização dos povos, serviço dos pobres e doentes, missões e vida
contemplativa. Em 1877, ano em que Dehon funda o seu instituto, a França
conta com 32.000 religiosos e 127.000 religiosas, exercendo mais influência
em Roma que os próprios bispos. G. MANZONI, Leone Dehon e il suo
messaggio, 22.
Não se pode menosprezar a influência da espiritualidade sobre a cultura no
século XIX, principalmente na França, a partir de 1875 quando foi fundada a
Universidade Católica. Os leigos estão presentes no mundo da filosofia
(Ollé-Laprune, Blondel, Boutroux, G. Marcel), da literatura (Huysmans,
Péguy, Bloy, Rivière, Retté, du Bos, Jacob, Claudel, Chateaubriand) e da
ciência (Pasteur, Ampère). G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio,
22.
19
formação religiosa, unida a um intenso compromisso social. Aqui temos
uma curiosa síntese de elementos quase opostos, que tornou o discurso
de Dehon peculiar e impactante na Igreja e na sociedade. Era uma
mistura equilibrada do preparo acadêmico da burguesia, típico de seu
pai, com a piedade católica popular, típica de sua mãe.
2. Anticlericalismo e espiritualidade em crescente contraste
Outro paradoxo vivido intensamente por Dehon é que a burguesia
francesa do início do século XIX, com seu laicismo anticlerical herdado
do iluminismo revolucionário, aparentemente realizara o velho projeto
de Napoleão Bonaparte de submeter a Igreja ao Estado. Porém, o
sentimento ultramontano dos católicos franceses alimentava uma
verdadeira veneração pela figura do Papa, que aproximou cada vez mais
a Igreja francesa de Roma, afastando-a do Estado francês. Isto atingirá
seu ápice no pontificado de Pio IX (1846-1878), quando a perda dos
Estados Pontifícios gerou um intenso sentimento popular de
solidariedade com o bispo de Roma10. Dehon será um ultramontano
convicto, apesar de ser um patriota quase ufanista.
A burguesia foi a grande força que tornou possível a monarquia
constitucional de Luís Felipe, inaugurada em julho de 1830. A Igreja
perde novamente sua força oficial perante o Estado e é mantida sob um
ambíguo olhar de respeito, desprezo e incredulidade da parte de
governantes, filósofos e burgueses. O anticlericalismo, inicialmente,
toma a forma da indiferença religiosa, mas, aos poucos, avança em
direção à perseguição religiosa. É neste contexto que surgem católicos de
valor, como Henri de Lacordaire, Alfred Falloux, Charles de
Montalembert e Fréderic Ozanam11, mas principalmente Félicité Robert
de Lamennais. Este último, com seu pensamento forte, prenunciou a
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10
11
Note-se que o pontificado de Pio IX é, até o momento, o mais longo da
história. Seu início, em 1846 praticamente coincide com o nascimento de
Léon Dehon (1843). Quanto Pio IX morreu Dehon tinha 35 anos.
Fréderic Ozanam (1813-1853) é um dos fundadores da Sociedade São
Vicente de Paulo. Foi beatificado por João Paulo II em 1997. Dehon durante
toda a sua vida manteve um vínculo forte com os «Vicentinos».
20
infalibilidade papal, a queda do poder temporal, a liberdade religiosa e
de ensino, a separação entre a Igreja e o Estado, o triunfo da democracia,
a abertura à classe operária e, com outras palavras, a «Ação Católica»12.
Merece destaque também o bispo de Orléans, Félix Dupanloup, citado
freqüentemente por Dehon13.
A estas idéias se alinhava o jovem clero e uma elite de leigos. Era a
tentativa de reconciliar a Igreja com a cultura moderna. Infelizmente, era
muito cedo para que isso fosse adequadamente compreendido, mas
acabou por abrir um canal de diálogo com a burguesia, que resultou na
reivindicada liberdade de associação e de ensino. É neste contexto
otimista que tem início o pontificado de Pio IX, em 1846. Os católicos
franceses estão divididos entre uma minoria liberal, que propõe a
mudança estrutural14, e uma maioria conservadora que já não acredita na
possibilidade de uma real reconciliação com a burguesia e prefere propor
soluções caritativas e paternalistas. Esta solução acaba por produzir a
aliança entre monarquistas e católicos, que termina na revolução de
1848, garantindo o trono a Luís Napoleão e dando início à Segunda
República (1848-1851). Nova ambigüidade: Igreja e burguesia agora são
inimigas e aliadas ao mesmo tempo. Diante da massa de proletários
ambas são vistas como mantenedoras da ordem estabelecida. Um dos
resultados dessa aliança foi certamente, em 1850, a Lei Falloux, que
concedeu à Igreja liberdade de ensino nas escolas secundárias,
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G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 25. Dehon estudou os livros
de Félicité de Lamennais. Seu pensamento liberal foi condenado
implicitamente pelo Papa Gregório XVI, em 1832, na Encíclica Mirari vos,
que o classificou como «indiferentismo», Acta Gregorii Pp. XVI, vol. I, 126132. A reação de Lamennais foi o livro Paroles d’un croyant (1834), que
recebe a explícita condenação do Papa na carta Singulari Nos, de junho de
1834. Acta Gregorii Pp. XVI, vol I, 433-434. No seu extremismo, Lamennais
buscava a difícil síntese entre Estado e Religião, sendo «mais monarquista
que o Rei e mais papista que o Papa». F. TULOUP, Lamennais et son époque,
12. Sobre o ideal de «restauração» de Lamennais: M. CLEVENOT, Un siècle
cherche sa foi, 63-73.
K. BIHLMEYER – H. TUECHLE, Storia della Chiesa, IV, 163.
Estão reunidos em torno do jornal L’Ère nouvelle, entre outros: Henri
Lacordaire e Fréderic Ozanam. K. BIHLMEYER – H. TUECHLE, Storia della
Chiesa, IV, 163.
21
garantindo uma certa influência sobre a juventude burguesa. Com o
pretexto de salvar a França do socialismo e da ruína total, Luís Napoleão
começa o Segundo Império (1852-1870) sendo coroado como Napoleão
III, em franca aliança com a Igreja, que irá durar quase vinte anos.
3. A Questão Romana
Em 1853, com a Encíclica Inter multiplices, Pio IX apóia as idéias do
catolicismo intransigente de L. Veuillot que afirmava a liberdade como
privilégio da verdade e defendia que a Igreja deveria utilizar-se do poder
para combater os erros do mundo moderno. Os católicos liberais, na
linha de Montalembert, ao contrário, professam que a liberdade é um
direito de todos e que a Igreja precisaria se reconciliar com o mundo
moderno. Para esses é publicada, em 1864, a Encíclica Quanta cura, que
elenca os erros do mundo moderno. Dehon vive toda essa realidade
como jovem estudante universitário de direito em Paris (1859-1865)15.
As conferências do jesuíta P. Félix, na catedral de Notre-Dame
confirmavam sua adesão a Roma e ao Papa16.
Está em plena efervecência a complexa Questão Romana, que coloca
em conflito armado o poder temporal do Papa sobre os Estados
pontifícios e a luta pela unificação italiana17. Em 1867, Garibaldi tenta
conquistar Roma, mas é impedido pelos exércitos de Napoleão III, que
dão apoio ao papa. Em 1870, aproveitando a ocasião da guerra francoprussiana, as tropas de Vittorio Emanuele (1849-1878) entram em Roma
e se instalam no palácio pontifício do Quirinal. O Papa se declara
prisioneiro do Vaticano. O Concílio Vaticano I, iniciado em 1869, é
bruscamente interrompido18. É preciso lembrar que este período de crise
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NHV I, 41v. A Encíclica Quanta cura é conhecida também como Syllabus.
NHV I, 33v-34r.
A. PERROUX, «Le contexte: la société e l’Eglise à l’époque du Père Dehon»,
in L. DEHON, La renovation sociale chrétienne, 51-53.
A «Questão Romana», intensificada com Pio IX, atravessou o pontificado
Leão XIII, Pio X, Bento XV e só seria resolvida no pontificado de Pio XI,
com o Tratado de Latrão (11.02.1929), que assegurou a soberania do Papa
sobre a Cidade do Vaticano e mais alguns territórios. É exatamente o
22
coincide com o tempo que Dehon permaneceu em Roma no Seminário
francês Santa Clara (1865-1870). Ordenado em dezembro de 1868,
permaneceu em Roma e participou como estenógrafo do Concílio19.
4. Rápidas transformações no final do século XIX
Quando, em setembro de 1871, Dehon se colocou a disposição do
bispo da diocese de Soissons muita coisa havia acontecido na França.
Além da presença alemã em solo francês e da perda de parte do seu
território, já havia sido proclamada a Terceira República (04.09.1870) e,
alguns meses antes, o arcebispo de Paris, Mons. Darboy, havia sido
morto pela violência da Comuna (24.05.1871)20. Começava um novo
tempo na história da França e na vida do jovem sacerdote Léon Dehon.
Ele voltará para sua pátria definitivamente com Roma e o Papa no
coração e com o sonho patriótico de restaurar a França católica.
Mas o seu país, a partir de 1870, com o início da Terceira República
não era mais o mesmo21. A corrente republicana, oprimida durante o
tempo do Segundo Império, é cada vez mais laica, ligada ao
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período em que vive Léon Dehon. K. BIHLMEYER – H. TUECHLE, Storia
della Chiesa, IV, 215-223; 329-332. Para uma abordagem ampla e
especializada: G. MOLLAT, La Question Romaine de Pie VI à Pie XI. O
registro contemporâneo dos aspectos diplomáticos: G. M. PINCHETTISANMARCHI, Guida Dipomatica Ecclesiastica, 307-568.
G. FREDIANI, Un apostolo dei tempi nuovi, 100-104.
Após a derrota para os exércitos prussianos, a partir de março de 1871, criase um clima de instabilidade na França que abre espaço para um movimento
revolucionário de operários que ficou conhecido como Commune de Paris.
O movimento popular chegou a governar a capital por dois meses mas, após
sagrentos combates, acabou sendo vencido. Além do saldo de mortos, restou
um ódio operário contra a burguesia e a Igreja, representantes do poder
estabelecido. A. OLIVESI – A. NOUSCHI, La France de 1848 à 1914, 100-103.
Para a leitura desse episódio, do ponto de vista da história da Igreja: K.
BIHLMEYER – H. TUECHLE, Storia della Chiesa, IV, 250.
Uma dessas características é a forte expansão do império colonial francês,
por exemplo, para o Congo (1870), Tunísia (1881) e Madagascar (1896),
entre outros. A. OLIVESI – A. NOUSCHI, La France de 1848 à 1914, 116-129.
23
protestantismo liberal e ao positivismo22. O catolicismo se une em torno
da figura do Papa e rejeita a República. Os contrastes são cada vez mais
fortes na oposição entre os republicanos anticlericais e um clericalismo
intolerante, entre a força de uma espiritualidade popular e o ideal de um
ateísmo militante23. Tudo isso é reforçado e sustentado pelos planos da
franco-maçonaria que, em suas lojas, gestava o ideal republicano24. Da
parte dos católicos respira-se um anseio de restauração cristã, por meio
da reconstituição do poder temporal do Papa e da volta à monarquia, na
França. Nada disso acontece no plano político25. Mas é fortemente vivido
no plano espiritual por meio da devoção ao Sagrado Coração de Jesus,
que precisa de reparação realizada na «oblação de amor»26. Muitos
vivem essa espiritualidade, oferecendo-se como vítimas, unindo-se à
oblação de amor de Cristo ao Pai em favor da «restauração» da
humanidade27. Neste contexto histórico, a prece Adveniat Regnum tuum,
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Cultiva-se até uma certa «exegese científica» distante da pregação típica da
Igreja Católica. Fato notável é que o romance teológico «Vida de Jesus», de
Renan, vendeu neste tempo 100.000 exemplares em dois anos. G. MANZONI,
Leone Dehon e il suo messaggio, 30.
Dehon não demora a perceber que as respostas do clero mal formado eram
insuficientes para um mundo tão complexo. Segundo ele, depois «da era dos
mártires deveria vir a era dos doutores». NHV VI, 120.
A solução paternalista para a questão social, de certa forma, fazia parte desse
esforço de «restauração».
Nascida em setembro de 1870, a Terceira Republica se prolongaria até julho
de 1940.
Esta relação entre a espiritualidade reparadora do Coração de Jesus e o
sonho de restaurar o Ancien Régime é descrita por T. GOFFI, La spiritualità
dell'Ottocento, 136.
Isto aparece muito bem no primeiro capítulo das Constituições da
Congregação dos Sacerdotes dos S. Coração de Jesus, inspirado na intenção
original do fundador. CST (1985) nº 7. O próprio Dehon em seu Diário, em
1909, fixa como um dos objetivos principais da Congregação a Adoração
Reparadora ao Sagrado Coração de Jesus. NQT XXV/1909, 5. León Dehon é
visto por alguns autores como um representante típico da espiritualidade
vitimal francesa do século XIX. J.K MICZYŃSKI, La cristologia esistenziale,
28-29. T. GOFFI, La spiritualità dell’Ottocento, 137-138.
24
ganha um evidente significado político. O Reino do Coração de Jesus
era símbolo de uma França católica restaurada.
5. Espiritualidade cristocêntrica, mariana e litúrgica
A espiritualidade popular francesa do século XIX é uma verdadeira
força de resistência. León Dehon jamais a abandonará. Ao contrário, a
conservará sem qualquer conflito com sua erudição, durante todos os
dias de sua vida. Ao lado de grandes avanços científicos e correntes
humanistas de pensamento o século foi marcado por personalidades
como Charles de Foucauld (1858-1916) e Paul Claudel (1868-1955),
Catherine Labourè (1806-1876) e Teresa de Lisieux (1872-1897),
Marcelino Champagnat (1789-1840) e Antônio Maria Claret (18071870). É um século marcado por uma espiritualidade cristocêntrica,
mariana e litúrgica28.
O cristocentrismo do século XIX se caracteriza principalmente pela
piedade Eucarística e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. A união à
Paixão de Jesus era vivida na adoração Eucarística e na devoção ao
Preciosíssimo Sangue. A devoção ao Coração de Jesus já era praticada
nos séculos anteriores, mas recebeu grande apoio da parte de Pio IX, que
estendeu sua festa litúrgia à Igreja Universal, em 1856, e beatificou
Margarida Maria Alacoque em 1864. Os Jesuítas divulgaram
amplamente a espiritualidade do Coração de Jesus, de um modo especial
e intenso na França do século XIX, fundando o Apostolado da Oração29.
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Sobre a espiritualidade litúrgica do século XIX, basta recordar Mons.
Prosper-Louis Guéranger (1805-1875), beneditino, responsável em grande
parte pelo início do «Movimento Litúrgico» que, com seus estudos e
publicações, estimulou a participação sempre mais plena, consciente e ativa
do povo na liturgia. T. GOFFI, La spiritualità dell’Ottocento, 114-121.
Em 1870 toda a França seria consagrada ao Coração de Jesus. Após a
Comuna de Paris, em 1871, foi contruída a Basílica do Coração de Jesus,
sob a colina Montmartre. A. PERROUX, «Le contexte: la société e l’Eglise à
l’époque du Père Dehon», in L. DEHON, La renovation sociale chrétienne,
54-55. Em 1899, Leão XIII consagraria o mundo inteiro ao Coração de Jesus
por meio da Encíclica Annum sacrum. EnchEnc 3 (1899) 1128-1141. T.
GOFFI, La spiritualità dell’Ottocento, 146-149.
25
A espiritualidade mariana, por sua vez, no século XIX torna-se
intensamente afetiva e concreta, estimulada especialmente pelas
aparições da Virgem à Catherine Labourè, em Paris, com a Medalha
Milagrosa (1830), a dois jovens, em la Salette (1846) e a Bernadette
Soubirous, em Lourdes (1858)30. A mensagem da Virgem era sempre de
conversão, oração, penitência e prática sacramental. O Dogma da
Imaculada Conceição é proclamado no dia 08 de dezembro de 1854, por
meio da Bula Ineffabilis Deus de Pio IX31. Tudo isso reforça o
sentimento religioso, gera verdadeiros fenômenos de massa – como
procissões e peregrinações – e provoca uma sensação nacional de exame
de consciência. A França estaria finalmente «arrependida dos seus
pecados». Dehon fará múltiplas referências a isso em suas memórias de
1870 à 187532. É o século do Coração de Jesus. É o século do Imaculado
Coração de Maria. Um grupo de parlamentares franceses se consagra
publicamente ao Coração de Jesus em Paray-le-Monial, em 1873, como
expiação pelo pecados da França. Antigas ordens religiosas, como
Dominicanos e Beneditinos, são restauradas e cerca de quatrocentas
novas congregações nascem entre 1796 e 1900. De 1878 a 1900, o
número de sacerdotes-religiosos passa de 9.500 para 15.000. Existem
cerca de 22.000 religiosos irmãos, a maioria dedicados ao ensino em
escolas. «Em 1900, de cada três missionários no mundo, dois são
franceses»33.
No ano de 1875, Pio IX convida os católicos do mundo todo a se
consagrarem ao Coração de Jesus. No mesmo ano o governo francês
aprova a lei da liberdade do Ensino Superior. É fundada a Universidade
Católica, em Paris.
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T. GOFFI, La spiritualità dell’Ottocento, 226-229.
EnchEnc 2 (1854) 972-1007.
NHV VIII, 117-118.O Dogma da Infalibilidade papal é proclamado em
18.07.1870 por meio da Constituição Dogmática Pastor Æternus. EnchEnc 2
(1870) 1134-1151.
A. PERROUX, «El Padre Dehon y la Doctrina Social de la Iglesia», 34.
26
6. O Estado laico
Com a ascensão de Jules Grévy à presidência da república, em 1879, a
história é marcada pelo fortalecimento crescente dos republicanos,
formados pela maçonaria, que se tornam hegemônicos34. O plano de
laicizar as escolas, perseguir as congregações religiosas e promover a
separação entre a Igreja e o Estado ganha força35. A propaganda
maçônica busca afastar o povo da religião.
Enquanto isso, em Roma, terminava o período de trinta e dois anos
com Pio IX e tinha início o marcante pontificado de Leão XIII (18781903)36. Em Saint-Quentin, Léon Dehon fundava a Congregação dos
Oblatos do Coração de Jesus e o Colégio São João (1877-1878). Não era
propriamente um período propício para começar esse tipo de obra. Já em
15 de março de 1879, a Lei de Jules Ferry promove uma reforma
educacional na qual os direitos das congregações religiosas eram
expressamente caçados. O célebre e polêmico artigo 7 tinha em vista
especialmente os jesuítas que, com as outras congregações «não
autorizadas», ficavam proibidos de dirigir ou ensinar em escolas públicas
ou privadas37. No ano seguinte os jesuítas seriam expulsos da França38.
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Dehon estudou amplamente a questão da maçonaria durante quase toda a sua
vida. Dedicará a este assunto muitas páginas do «Manual Social Cristão» e
do «Catecismo Social». Em 1908 escreverá o livro «O plano da francomaçonaria na Itália e na França». OSC III, 379-432. Confira também artigo
«De deux agents puissants du malaise social: La franc-maçonnerie et le
judaisme». OSC II, 71-86.
Em 1870 Léon Gambetta proclamou solenemente na Câmara: «O
clericalismo, eis o nosso inimigo». K. BIHLMEYER – H. TUECHLE, Storia
della Chiesa, volume IV, 250. Sobre esta questão é esclarecedor o livro: J.
GRÉVY, Le clericalisme? Voilà l’ennemi!
NHV XIII, 103.
Os estudos primários estavam geralmente sob os cuidados de congregações
religiosas. Os estudos secundários poderiam ser feitos em escolas públicas
ou nos colégios dos jesuítas. J. NÉRÉ, «La repubblica francese», apud J.K
MICZYŃSKI, La cristologia esistenziale, 22.
No que se refere à outras congregações, foram fechados 261 conventos e
expulsos cerca de 5.643 religiosos. G. MANZONI, Leone Dehon e il suo
messaggio, 38.
27
Este projeto de laicização durará quase trinta anos, atingindo os mais
variados campos da vida social francesa39. Será o ambiente no qual terá
que se mover Leão XIII em busca do diálogo de conciliação com a
modernidade laica que faz questão de manter viva a memória aquilo que
chamam de «intransigência religiosa» de Pio IX. Dehon está muito
atento a esta mudança de tom no discurso eclesial. O esforço do Papa de
aproximação e diálogo com os republicanos franceses é visto pelos
católicos intransigentes como fraqueza. Enquanto isso, no meio do povo,
é possível sentir cada vez mais os efeitos da crise econômica que terá seu
ponto crítico em 1882.
Como se não bastassem as dificuldades com o governo republicano,
em dezembro de 1883, Dehon recebe o duro golpe da decisão da Santa
Sé de fechar a Congregação dos Oblatos do Coração de Jesus. Mas
alguns meses depois, em março de 1884, é reaberta com o nome de
Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus. No mesmo ano, Leão
XIII lança a Encíclica Nobilissima Gallorum Gens40, onde condena a
perseguição à Igreja na França e exorta os católicos a se manterem
unidos no diálogo com o poder constituído e não «contaminar a religião
com a política». Dehon a considera providencial41. Porém, o episcopado
francês mantêm certo tom intransigente, que seria reprovado
explicitamente pelo Papa. Em 1885, Albert de Mun tenta fundar um
partido católico na França. Diante da desaprovação do Papa, acaba por
renunciar ao projeto. Neste ano há um equilíbrio de forças políticas que
favorece a aliança entre republicanos moderados e católicos abrindo
terreno para a diplomacia reconciliadora de Leão XIII. Mas em 1886, o
general Boulanger reúne em torno do seu projeto de poder, radicais,
católicos intransigentes e monarquistas, voltando a acirrar os ânimos. O
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Por exemplo: a supressão das capelanias militares e da obrigação do repouso
dominical (1880); a substituição gradual das religiosas por enfermeiras
leigas nos hospitais (1880), serviço militar obrigatório para os seminaristas
(1880), o fim do caráter confessional dos cemitérios (1881), a laicização do
ensino primário (1882), o restabelecimento do divórcio (1884), a laicização
completa do pessoal das escolas públicas (1886). K. BIHLMEYER – H.
TUECHLE, Storia della Chiesa, IV, 250-253.
ASS 16 (1883-84) 241-248.
NHV XV, 24-25.
28
Papa mantém um sábio silêncio, confia no trabalho diplomático do
Cardeal Rampolla e espera passar este momento crítico. Isto acontece em
1890 quando, finalmente, por meio do Cardeal Lavigerie, Arcebispo de
Algeri, é celebrado apoio oficial do catolicismo francês ao assim
chamado «legítimo governo republicano».
7. A Doutrina Social da Igreja
Em 1888, o Papa Leão XIII recebe Léon Dehon em audiência e lhe faz
uma exortação marcante: «Prega as minhas Encíclicas»42. A primeira
reação de Dehon é fundar a revista Le Règne. Enquanto a maioria do
episcopado francês, unido ao clericalismo intransigente, se escandaliza
com a gradual adesão de Roma à República, Dehon adere ao pedido do
Papa, certo de que isso seria o melhor para a sua pátria. Publica
constantemente na revista Le Règne a defesa da posição de Roma,
reconhecendo no pontífice romano um visionário da democracia43. No
plano social, em 15 de maio de 1891, Leão XIII publica a Rerum
Novarum44, sobre a condição dos operários e, no plano político, publica,
em 16 de fevereiro de 1892, Au milieu des sollicitudes45, esta para o
episcopado francês, com apoio à República.
Dehon torna-se um apóstolo do catolicismo social, não medindo
esforços para divulgar as novas Encíclicas e torná-las operantes46. Uma
das formas é a promoção dos Círculos de Operários Católicos que
haviam sido fundados por Albert de Mun (1841-1914), em 187147. Ao
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47
NHV XV, 82.
Todos esses artigos foram depois reunidos na obra: L. DEHON, Les
Directions pontificales politiques et sociales. OSC II, 381-474.
ASS 23 (1890-91) 641-670.
AAS 24 (1891) 519-529.
L. DEHON, La renovation sociale chrétienne. Este livro reúne as suas
conferências, em Roma nos anos 1897 a 1900, que são uma das melhores
amostras deste seu empenho social.
De fato, já na década de 1870 Dehon fundara um Círculo Operário Católico
no Patronato São José, em 23 de outubro de 1873.
29
contrário do catolicismo intransigente que sonhava com a recuperação do
poder temporal por parte da Igreja, o catolicismo social se esforça para
olhar para o futuro onde vê a possibilidade de uma adaptação realista à
nova situação48. O racionalismo, o secularismo, a emancipação, a
democracia, o nacionalismo a revolução industrial e técnica, o conflito
entre liberalismo e socialismo, o movimento operário são alguns dos
movimentos mais importantes deste século de profundas transformações,
que garantem a transição para mundo moderno49.
Uma das expressões do desejo da Igreja de se adaptar às «coisas
novas» é a democracia cristã, da qual Dehon será um típico
representante50. Ele mesmo afirma: «É o povo, novo rei da França,
soberano efetivo, que realiza o programa divino»51. Isto marca sua
passagem de católico social monárquico para democrata cristão
republicano52.
8. Início do século XX: Religiosos expulsos da França
A virada do século é vivida na França sob o signo do processo
Dreyfus. Alfred Dreyfus era judeu, oficial do exército francês e teria sido
condenado injustamente, em 1894, à prisão perpétua. O caso foi capaz de
catalizar as forças políticas e sociais da França em «a favor» e «contra» a
revisão do processo. Novamente o clericalismo intransigente e os
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A. PERROUX, «Le contexte: la société e l’Eglise à l’époque du Père Dehon»,
in L. DEHON, La renovation sociale chrétienne, 63.
A. PERROUX, «El Padre Dehon y la Doctrina Social de la Iglesia», 15-40.
Marx é filho deste século (1818-1883). O «Manifesto do Partido Comunista»
é de 1848 e o primeiro volume de O Capital é de 1867. Sua primeira
tradução em francês aparece em 1890.
Para uma visão mais completa sobre Dehon e a Democracia cristã: S.
TERTÜNTE, «León Dehon y la Democracia cristiana: un intento de
renovación social en Francia a finales del siglo XIX», 45-58.
OSC V2, 359.
S. TERTÜNTE, «León Dehon y la Democracia cristiana», 54.
30
republicanos radicais escolhem os lados opostos53. As forças
republicanas elegem, em 1899, o governo de René Waldeck-Rousseau.
Leão XIII, em 1900, com a Encíclica Graves de communi54, dando mais
atenção à unidade dos católicos que ao reconhecimento da República,
declara que «não é lícito dar um sentido político à democracia cristã».
Em 1902 começa o governo de Émile Combes que fecha, por decreto,
três mil escolas dirigidas por congregações religiosas. No mesmo ano,
religiosos estrangeiros são expulsos do país55.
No dia 1º de abril de 1903 a Congregação dos Sacerdotes do Sagrado
Coração de Jesus seria suprimida pelo governo francês, seus religiosos
expulsos da França e seus bens vendidos. O pontificado de Leão XIII
termina no mesmo ano com a sensação de que todo o esforço de
conciliação ao longo de vinte e cinco anos poderia ter sido em vão56.
O pontificado de Pio X tem início em 4 de agosto de 1903, marcando
o novo tom do discurso eclesial como uma verdadeira batalha contra o
modernismo. Em julho de 1904, acontece a ruptura de relações
diplomáticas entre a Santa Sé e o governo francês que, em setembro de
1905, promulgaria a lei da separação entre Estado e Igreja. Esta passava
da esfera pública para a condição de uma parte da sociedade privada,
controlada pelo Estado57. Pio X, em fevereiro de 1906, condenou a
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57
Dehon era favorável à revisão do processo Dreyfus. Le Règne (1903) 165166.
ASS 33 (1900-01) 385-396.
Em 1899 Leão XIII publica a Encíclica Depuis le jours sobre a formação do
clero na França, onde diz: «Os tempos atuais são tristes; o que vem é ainda
mais obscuro e ameaçador; parece anunciar a aproximação de uma
assustadora crise social». ASS 32 (1899-1900) 193-213. Em dezembro de
1900, a carta Au milieu des consolations trata especificamente das
dificuldades enfrentadas pelas congregações religiosas na França. ASS 33
(1900-01) 355-363.
Este é um pouco o tom da carta apostólica Annum ingressi, que celebra seu
25º ano de pontificado (10.03.1902). Nela, o Papa volta a condenar a
maçonaria e a afirmar que a Igreja não é inimiga da liberdade, não usurpa o
direito do Estado, não invade o campo político, mas é «fonte perene de
justiça e caridade, como também propagadora e tutora da verdadeira
liberdade e da única possível igualdade». ASS 34 (1901-02) 513-532.
K. BIHLMEYER – H. TUECHLE, Storia della Chiesa, IV, 252.
31
separação entre Igreja e Estado por meio da Encíclica Vehementer nos,
percebendo a estratégia do movimento de lacização de reduzir a fé à
esfera puramente individual.
Dehon passa a se dedicar mais à Congregação que fundara e buscar a
sua aprovação definitiva, com o apoio pessoal de Pio X; e a viajar pelo
mundo em busca de lugares onde pudesse enviar seus religiosos em
missão. A aprovação viria no dia 4 de julho de 190658. Dehon possui
grande intimidade com Pio X, o que se pode verificar pela a quantidade
de audiências. Para ele, o Papa é sempre o intérprete autorizado da
verdade59.
9. O drama da Primeira Guerra Mundial
Em 1914, Bento XV assume o pontificado. Dehon o conhecia de
longa data e o chamava de «Papa do Sagrado Coração»60. A amizade
entre Bento XV e Léon Dehon mereceria um estudo todo especial61. Não
podemos nos esquecer que esse é exatamente o período da primeira
grande Guerra Mundial. Dehon passa boa parte do tempo isolado e
doente em Saint-Quentin, que é praticamente destruída pelos
bombardeios. Somente em 1917 consegue a autorização para mudar-se
definitivamente para Bruxelas. A partir de 1918, com o final da Guerra,
retoma seu relacionamento com Bento XV, ajudando-o a refletir sobre a
atualidade da Rerum Novarum.
Em 1922 tem início o pontificado de Pio XI que, no ano seguinte,
envia uma carta pessoal a Dehon parabenizando-o pelos seus oitenta
—————————–
58
59
60
61
NQT XX/1906, 50-51.
Y. LEDURE, Un prete con la penna in mano, 220.
Quando Arcebispo de Bolonha, Bento XV fizera vir uma comunidade
dehoniana para sua Arquidiocese, de onde nasceu a Editora Dehoniana de
Bolonha (EDB). Y. LEDURE, Un prete con la penna in mano, 221.
Além de um altar dedicado ao Sagrado Coração, na Basílica de São Pedro,
Bento XV aprova a construção de uma grande igreja em Roma dedicada ao
Coração de Jesus. P. Dehon dedicará os últimos anos de sua vida a arrecadar
os fundos necessários para esse empreendimento.
32
anos de vida. Dehon termina seus dias em Bruxelas, no dia 12 de agosto
de 1925 e é sepultado em Saint-Quentin.
33
CAPÍTULO II
A vida e a obra do educador Léon Dehon
1. Origens, infância e vocação
Após termos situado Dehon em seu ambiente histórico, vejamos
alguns momentos marcantes de sua vida, sua experiência espiritual, as
obras que fundou e seus principais escritos. Não é o caso de fazermos
uma biografia minuciosa e completa1. Para o propósito de nossa
—————————–
1
As fontes mais importantes para conhecer a vida de Dehon são seus escritos
autobiográficos, especialmente Notes sur l’Histoire de ma vie (15 cadernos),
Notes Quotidiennes (45 cadernos) e sua abundante correspondência. Além
disso existem muitas biografias de Dehon. A primeira obra, com o fôlego de
766 páginas, foi escrita por um mestre de noviços da Congregação SCJ: A.
DUCAMP, Le Père Dehon et son œuvre (1936). Na mesma época surgiu um
livro importante que focaliza especificamente a obra social de Dehon, com
353 páginas: R. PRÉLOT, L’Œuvre sociale du Chanoine Dehon (1936). Uma
das biografias mais conhecidas, com 479 páginas: G. FREDIANI, Un apostolo
dei tempi nuovi, P. Leone Dehon (1960). Mais recentemente, com 950
páginas: H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon (1978). A
biografia mais atual e completa de Dehon, com 556 páginas: G. MANZONI,
Leone Dehon e il suo messaggio (1989). Ultimamente, como preparação
para a beatificação de Léon Dehon, foram publicadas diversas sínteses
biográficas. As duas principais são: A. PERROUX, Père Dehon, qui êtesvous? (2005) e Y. LEDURE, Le père Léon Dehon, 1843-1925; entre mystique
et catholicisme social (2005). Ficou mais popular sua tradução em italiano:
IDEM, Un prete con la penna in mano.
35
pesquisa, interessa mais perceber de que modo vai se manifestando, em
Dehon, sua vocação de educador. Com isso pretendemos encontrar uma
chave hermenêutica para ler seus escritos mais relevantes no campo da
educação.
Léon Gustave Dehon nasceu no dia 14 de março de 1843, em La
Capelle, pequena cidade ao norte da França, Departamento de l’Aisne.
Foi batizado dez dias depois na igreja paroquial, na véspera da Festa da
Anunciação2. A região é agrícola e seus pais, membros de uma pequena
burguesia rural, são ricos e influentes proprietários de terras que se
dedicam à criação de cavalos de corrida3. É um região de passagem para
o norte e, por isso, normalmente devastada pelos exércitos durante as
guerras.
Seu pai, Jules Alexandre Dehon (1814-1882) após a educação
recebida em um Colégio de Saint-Quentin e depois em Paris, apesar do
caráter disciplinado e honesto, havia abandonado qualquer prática
religiosa. Sua mãe, Stephanie Vandelet (1812-1883), havia sido educada
em um pensionato de Irmãs da Providência, em Charleville4. Sua vida
cristã era herdeira de uma piedade sólida e marcada pela devoção ao
Sagrado Coração de Jesus5. Dehon reconhecerá mais tarde a importância
da espiritualidade da mãe em sua vocação6. Durante toda a sua vida Léon
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2
3
4
5
6
Dehon verá nisso um sinal providencial, situando na oblação expressa pelo
Ecce venio (Sl 40; Hb 10,7) e pelo Ecce ancilla (Lc 1,38), o núcleo fundante
de sua espiritualidade. Escreveria em suas Memórias: «Em 24 de março era
celebrada a festa de um menino mártir, São Simão. Mas, sobretudo, se
celebrava a festa da Anunciação. Mais tarde fiquei feliz em poder ligar a
recordação do meu Batismo com a do Ecce venio de Nosso Senhor» NHV I, 1.
Quando Dehon nasce, seu avô era o prefeito da cidade. Este posto será
ocupado também pelo seu pai e pelo seu irmão, Henri Dehon (1839-1922).
Posteriormente essa congregação se uniu a outra formando a Irmãs do
Sagrado Coração, de Sofia Barat. A. DUCAMP, Le Père Dehon et son œuvre,
16-17.
Seu principal livro de oração era o Manuel du Sacré-Cœur. Juntamente com
o clássico «Imitação de Cristo» e também «Introdução à vida devota», de
São Francisco de Sales, serão os livros que acompanharão a formação do
pequeno Dehon, até sua adolescência. Y. LEDURE, Un prete con la penna in
mano, 16-17.
NHV, I, 3; NQT XII/1897, 72.
36
Dehon manterá um afeto profundo para com suas raízes humanas: a
família, a cidade, a região, a pátria7.
Começa seus estudos e catequese na cidade de origem e muito cedo
mostra-se um estudante inteligente e aplicado. Recebe a primeira
comunhão aos 11 anos, em La Capelle e, no ano seguinte, 1855, é
enviado, juntamente com seu irmão, Henri, para o Colégio de
Hazebrouck, a 160 quilômetros de La Capelle8. Foi um acordo entre seu
pai e sua mãe. Ele queria uma carreira brilhante para o filho. Ela queria a
garantia de uma sólida formação cristã. Sob a guia do diretor, P.
Dehaene , no Colégio de Hazebrouck, Dehon experimenta uma vida de
rigorosa disciplina humana voltada aos estudos e ao cultivo da fé cristã9.
Com apoio do P. Boute experimenta uma verdadeira educação cristã10.
Descobre a sensibilidade para com os pobres ao participar da Sociedade
São Vicente de Paulo. Admira o intenso empenho pedagógico da Igreja e
se alimenta espiritualmente no Manuel du Sacré-Cœur. Vemos aqui a
matriz de sua vida, toda dedicada à uma obra espiritual, da qual a
Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus será a expressão mais
visível e também a uma intensa obra social que incluirá, entre outros
pontos, seu empenho educacional no Colégio São João11.
Em Hazebrouck, Dehon, aos 13 anos, faz a sua primeira intensa
experiência de Deus. Na Missa da meia-noite do Natal de 1856, diante
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7
8
9
10
11
Isto pode ser comprovado pelo seu peculiar interesse em estudar a história
local, geografia, botânica, arqueologia e, inclusive, sua genealogia. NHV I,
92v-93v. Para um mapeamento completo do relacionamento entre Dehon e
sua família, da maneira como aparece na troca de correspondências: A.
PERROUX, Le Père Dehon et sa famille.
Era uma escola pública, mas dirigida por sacerdotes. Lembremos que após a
Lei Falloux, de 1850, facilita-se a abertura de escolas por congregações
religiosas. Fala-se até de «cristianização por meio da escola». G. CHOLVY –
Y.M HILAIRE, Histoire religieuse de la France contemporaine, 226.
Dehon recorda a importância dos exercícios espirituais pregados no Colégio
de Hazebrouck por padres capuchinhos e jesuítas. «Santo Inácio de Loyola e
São Francisco de Assis foram meus mestres desde o começo». NHV I, 25v.
«Se P. Dehaene foi para Léon um pai, P. Boute foi para ele um mestre, com
toda a força do termo». A. DUCAMP, Le Père Dehon et son œuvre, 30.
NHV I, 13.
37
do presépio, sente fortemente a ação da graça que o chama ao
sacerdócio. Este toque de Deus é tão determinante que se tornou uma
meta que ele jamais perderá de vista. Mais que isso, daquele momento
em diante, o próprio Dehon reconhecerá mais tarde, «aquela decisão
jamais será colocada seriamente em discussão»12. Mantém esse desejo no
coração e continua seus estudos secundários, que termina em 1859, aos
16 anos. Ao comunicar aos pais a intenção de ser sacerdote a reação foi
bastante negativa. O pai sonhava para ele uma «carreira brilhante» como
advogado, magistrado ou diplomata13. Começa o clássico conflito de
«obedecer a Deus antes que aos homens» (At 5,29). Um filho de família
tradicional burguesa ser sacerdote não seria propriamente algo comum e
fácil de ser aceito pelos pais, na França do século XIX.
2. Estudante universitário em Paris
Diante da oposição de seu pai, Dehon recua e não entra para o
seminário de Saint-Sulpice, em Paris, como seria sua intenção. Após os
necessários cursos preparatórios no Instituto Barbet, inscreve-se no
Politécnico, em Paris. Porém, não sentia atração para se tornar
matemático, cientista, engenheiro, ou arquiteto. Por isso,
contemporaneamente, matricula-se no primeiro ano de Direito, na
Faculdade de Paris. Aos dezoito anos torna-se bacharel e, aos vinte e um,
defende sua tese de doutorado em Direito Civil, na qual compara o
direito romano com o direito francês14.
—————————–
12
13
14
Y. LEDURE, Un prete con la penna in mano, 20.
Em suas Memórias Dehon escreve que o pai foi tomado de uma «tristeza que
não o deixaria até a morte». NHV I, 31r.
OSC IV, 64-170. Já na tese apresentada para a obtenção do título de bacharel
(licence), Dehon compara a «tutela» no direito romano e francês. OSC IV,
13-61. É curioso que na parte dedicada ao estudo do direito francês ele
começa citando São João Crisóstomo: «Je vous ai conservé tout ce qui votre
père vous a laissé, quoique je n’aie rien épargné de tout ce qui vous a été
nécessaire pour votre éducation». OSC IV, 23. Lido sob o ponto de vista da
tutela e da situação que Dehon vivia com seu pai naquele momento, é
bastante elucidativo que ele busque, pela via da reflexão, os meios para
realizar o que Deus semeara em seu coração. Isto mostra, já na juventude
38
É bom lembrar que toda esta etapa de estudos civis se passa sob o
regime monárquico favorável à Igreja, que culmina com o Segundo
Império de Napoleão III, e as facilidades proporcionadas pela Lei
Falloux. Estamos em 186415. Neste período, nasce em Dehon um intenso
desejo de se dedicar como sacerdote à formação do clero. Na qualidade
de estudante universitário, ele percebe que a Igreja está ausente da
direção intelectual do país. O clero não participa dos debates no campo
das idéias por estar mal preparado para dialogar com a elite da burguesia.
Diante do sucesso do filho no doutorado em Paris e para tentar
dissuadí-lo da idéia de ser sacerdote, seu pai ofereceu, como prêmio,
uma viagem «turística» de oito meses ao Oriente Médio, na companhia
de seu amigo, o arqueólogo Léon Palustre16. Chegaram a Jerusalém
como verdadeiros peregrinos no dia 25 de março de 186517. Viveram ali
uma Semana Santa determinante para a vida de Dehon18. No retorno,
—————————–
15
16
17
18
uma tendência a procurar a síntese entre a inteligência e a sensibilidade, a
razão e o coração. Na tese de doutorado, dedicada a seus pais e ao P. Boute,
analisa a natureza jurídica da «caução» (fiança), que ele considera expressão
jurídica da «compaixão». OSC IV, 69. Novamente escolhe dois textos para
inciciar a parte dedicada ao direito francês que são, no mínimo, indicadores
do que se passava em seu coração. De Platão, ele escolhe a frase: «Quem fia,
marcha à ruína». Do direito civil turco prefere: «A fiança [cautionnement] é
um dos atos de humanidade mais louváveis que o homem possa fazer em
favor do seu próximo». OSC IV, 89. Novamente é fácil perceber a síntese
entre razão e coração, mesmo no árido estudo das leis.
Tudo mudará com o advento da Terceira República, em 1870. O
anticlericalismo e a descristianização arquitetada pela franco-maçonaria
aumentará seu domínio sobre as instituições. Mas Dehon estará fora de sua
pátria, no seminário Santa Clara, em Roma.
NHV II, 70v. Para conhecer o complexo itinerário da viagem: Y. LEDURE,
Un prete con la penna in mano, 34-39. Mais do que um simples roteiro
turístico, a viagem foi uma verdadeira expedição de estudos. Com mais
detalhes: G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 88-104.
NHV III, 146-147.
NHV IV, 1. Particulamente significativa parece ter sido também a
experiência espiritual vivida às margens do Mar da Galiléia, onde ele teria
sentido fortemente em seu coração o eco da voz que a quase dois mil anos
39
muito mais determinado quanto à sua vocação, Dehon volta por Roma e
é recebido em audiência por Pio IX que o aconselha a entrar para o
Seminário Francês Santa Clara, em Roma. A decisão estava tomada: «A
minha vocação estava decidida. Era o coroamento da minha viagem»,
testemunha em suas Memórias19. Voltando para casa ainda teve que
enfrentar a oposição dos pais. O pai sofria terrivelmente. A mãe o queria
piedoso cristão, «o sacerdócio, porém, a assustava»20. Mas o coração de
Léon Dehon estava firme neste propósito21.
3. Seminarista em Roma
A partir de outubro de 1865, começa uma nova fase em sua vida no
seminário francês de Roma, onde o superior − que tornou-se também seu
diretor espiritual − era o espiritano P. Melchiorre Freyd. Depois dos
estudos civis, dedicava-se agora aos estudos de filosofia e teologia no
Colégio Romano22. Nutre uma grande admiração pelos professores,
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19
20
21
22
chamava os apóstolos para segui-lo. A. DUCAMP, Le Père Dehon et son
œuvre, 61.
NHV IV, 99.
NHV IV, 101.
«Tinha que endurecer o meu coração para resistir a todas as pressões que
sofria. Fui às vezes duro para com meus pais. Era preciso sê-lo.» NHV IV,
101.
«Considero uma grande obra da Providência ter feito os meus estudos no
Colégio Romano.» NHV IV, 148. Dehon sempre foi claro em manifestar seu
apreço e admiração pelo sistema pedagógico dos jesuítas. G. MANZONI,
Leone Dehon e il suo messaggio, 111-112. Estudará no «Collegio Romano»
até 1871, portanto, ainda no antigo edifício da «Via Capitolina», hoje
«Piazza dell’Aracoeli». Em 1873, com a perda dos Estados Pontifícios o
edifício passou para o Estado. O colégio foi transferido para o «Palazzo
Borromeo» na «Via del Seminario». Pio IX, em 04.12.1873 dispôs que se
chamasse «Pontificia Università Gregoriana del Collegio Romano» e o reitor
poderia ser intitulado «Rettore della Pontificia Università Gregoriana». Em
1919, Bento XV adquiriu o terreno da «Piazza della Pilotta» para a nova
sede da Pontifícia Universidade Gregoriana, inaugurada em 6 de novembro
40
especialmente pelo P. João Batista Franzelin. Chega a dizer: «As suas
aulas foram uma das maiores graças da minha vida»23. Logo percebeu
que os seminários franceses não tinham as mesmas exigências no que se
refere à formação intelectual. Isto poderia explicar a pouca influência da
Igreja no mundo da cultura e das idéias em seu país. Sua conclusão é que
os seminários deveriam estar ligados às Universidades Católicas24. A
Ratio Studiorum do Colégio Romano é considerada por ele «para os
estudos o que é o livro dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio para a
vida espiritual»25. Seria um modelo para as Universidades Católicas.
Dehon exalta o método escolástico em filosofia e teologia. Segundo ele,
eleva o nível das inteligências. Por outro lado, critica o Discurso sobre o
método de Descartes, que considera um «pecado do espírito» que
acabaria por conduzir ao laicismo26.
Em 1867, Dehon fundou, no Seminário Francês Santa Clara, a Œuvre
de Sainte-Catherine, com uma dupla finalidade: espiritual e apostólica27.
Era um espaço de amizade e oração entre os seminaristas e também de
pastoral catequética junto aos pobres. O próprio Dehon descreve em suas
memórias:
Muitos de nós havíamos participado nas obras de Paris: patronatos e
conferências de São Vicente de Paulo. Era difícil não fazer nada para as
crianças pobres. Organizamos uma pequena obra de catecismo. Fui eleito
—————————–
23
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25
26
27
de 1930, já sob o pontificado de Pio XI. R. GARCIA VILLOSLADA, Storia del
Collegio Romano, 9.
NHV V, 54. P. Franzelin (1816-1886) de fato foi um dos grandes teólogos da
época. Ocupava a cátedra de dogmática, além de ensinar linguas orientais.
Foi teólogo papal no Concílio Vaticano I e Pio IX o fez cardeal em 1876.
NHV IV, 150.
NHV IV, 150.
NHV IV, 150-159. Apesar de o texto ser uma memória do tempo de Dehon
no seminário de Roma, não podemos esquecer que é escrito em 1886, em
plena Terceira República e às vésperas da separação entre a Igreja e o
Estado. Isto dá sentido a esta frase: «C’est le péché de l’esprit qui devait
nous conduire au laicisme d’aujourd’hui». NHV IV, 159. Grifo do autor.
Esta obra permaneceu após o tempo de Dehon no Seminário Santa Clara e o
Règlement Général encontra-se publicado: Œuvre de Sainte-Catherine;
Etablie au Séminaire Français de Rome, Montpellier 1899.
41
presidente. Todas as semanas nos reuníamos para falar um pouco sobre a
piedade e cada dia na hora do recreio dávamos o catecismo a algumas
crianças pobres que eram enviadas pelo Pároco de Minerva28.
Está presente já aqui a alma de educador que caracterizará cada vez
mais a espiritualidade e o apostolado de Dehon. Escreverá em suas
memórias muitos anos mais tarde: «Roma, 1865-1871. É o período ideal
da minha vida»29. Depois de um ano, tendo sido considerados os seus
estudos precedentes, era doutor em filosofia. Conseguirá ainda o
doutorado em teologia e em direito canônico30. Esta vontade de aprender
caracterizou Dehon durante toda a sua vida. Sempre teve um postura de
aprendiz diante da história.
Dos seus exercícios espirituais neste período temos uma memória
muito interessante: «Existem duas coisas que devo cultivar no seminário:
a inteligência e o coração»31. Aos poucos Dehon vai aprofundando suas
convicções ao mergulhar na escola francesa de espiritualidade, de
Bérulle32, de forte orientação cristocêntrica, que Dehon expressará com
sua devoção ao Coração de Jesus.
—————————–
28
29
30
31
32
NHV V, 107-108. A Basílica de Santa Maria sopra Minerva localiza-se ao
próxima do Seminário Francês. Dehon revela ainda que todos os dias os
membros da Associação diziam uma prece pelo papa. Quando escreve estas
Memórias, em 1886, Dehon afirma que ainda é fiel a esta prece diária. O
regulamento desta associação, autógrafo de Léon Dehon, encontra-se
preservado nos Arquivos Dehonianos: AD.B. 3/17, inventário 13.27.
NQT XLV/1925, 36.
Dehon mostrou sempre uma especial vocação acadêmica, o que não era
comum para o clero da época, com uma formação em geral deficiente. Será
propósito espiritual de Dehon «reparar» este tipo de situação. Vemos aqui
outro detalhe importante a ser considerado em sua espiritualidade de
educador. NHV IV, 150.
NHV IV, 144. Esta chave hermenêutica de sua experiência espiritual vai se
consolidando e se tornando cada vez mais clara. Afirmações semelhantes
encontramos em todo o seu extenso epistolário.
Na verdade, a expressão «École Française de Spiritualité», para designar o
pensamento radicado em Pierre de Bérulle (1575-1629), só aparece a partir
de 1873 e é realmente popular em meados do século XX, como bem observa
Y. KRUMENACKER, L’école française de spiritualité, 17-30.
42
É ordenado sacerdote no dia 19 de dezembro de 1868, aos 25 anos de
idade, na Basílica São João de Latrão, na presença dos pais e junto com
outros 200 sacerdotes33. Dehon permanece em Roma para concluir seus
estudos e para participar como estenógrafo do Concílio Vaticano I, que
começa em dezembro de 186934. É um momento configurativo de toda a
sua visão eclesial universal e do seu afeto filial para com o Papa35. Além
disso, Dehon é testemunha dos conflitos muito humanos que acontecem
em torno da definição do Dogma da infalibilidade pontifícia que tinha
muita oposição da parte de alguns bispos franceses. Outra percepção
dolorosa para o jovem sacerdote é novamente a falta de preparo
teológico e de abertura para a Igreja Universal do episcopado francês36.
A confiança no Papa como guardião infalível da verdade o motiva a ser
um divulgador das doutrinas romanas em uma obra especificamente
pensada para formar melhor o clero. É preciso sempre ter em conta esta
chave hermenêutica ao ler os escritos posteriores de Léon Dehon.
Este é um daqueles momentos intensos da história. No dia 18 de julho
de 1870 é declarado o Dogma da infalibilidade pontifícia. Um dia depois
a França declara guerra à Prússia. Aproveitando a ocasião, os
piemonteses invadem Roma, em setembro, colocando fim aos Estados
Pontifícios e obrigando Pio IX a encerrar o Concílio no mês seguinte,
antes do prazo previsto. No mesmo mês de setembro, a derrota da França
na Batalha de Sedam coloca fim ao Segundo Império. Napoleão III é
capturado pela Prússia. Está aberto o caminho para a Terceira República,
que não iniciará sem antes derramar o sangue operário na Comuna de
Paris, em 1871. Retomamos todos estes fatos para dimensionar o
impacto desse momento no coração e na vida de um jovem sacerdote,
recém-ordenado, com diversos doutorados, que volta para sua pequena
cidade natal em julho de 1870 e é convocado para servir o exército como
capelão militar. Vê todos os seus sonhos românticos do Reino do
—————————–
33
34
35
36
«Naquele dia levantei-me sacerdote, possuído por Jesus, totalmente
plenificado d’Ele, do Seu amor pelo Pai, do Seu zelo pelas almas, do Seu
espírito de oração e de sacrifício». NHV VI, 81.
São interessantes suas memórias deste período, registradas em: L. DEHON,
Diario del Concilio Vaticano I.
NHV IV, 184.
NHV VII, 34.
43
Coração de Jesus nas almas e na sociedade se desfazendo. O Papa é
infalível, mas prisioneiro do Vaticano e quase sem poder temporal.
Roma nunca mais será a mesma. O imperador é derrotado e preso. A
França mudará definitivamente, realizando o sonho revolucionário do
Estado laico. Muda não somente o mapa da Europa. Estão colocadas as
bases de uma nova configuração em todos os níveis: político, social,
religioso, cultural, econômico.
4. Possibilidade de consagrar-se à educação
Terminada a guerra, Dehon volta rapidamente a Roma, em 1871, a fim
de concluir seu doutorado em Teologia e em Direito Canônico no
Colégio Romano, já parcialmente ocupado pelos piemonteses37. No
caminho, entre os dias 10 a 15 de março faz uma parada em Nîmes, para
se encontrar com o sacerdote Emmanuel d’Alzon, fundador dos
Assuncionistas, que iniciava uma obra voltada para a educação em nível
universitário. O próprio Dehon descreve, com detalhes, seu estado de
espírito atento à possibilidade concreta de ingressar na vida religiosa a
serviço da educação:
Minha parada em Nîmes tinha uma grande importância. Queria ver o que era
esta obra. Tinha o desejo de ali entrar. Um profundo trabalho acontecia na
minha alma já há dez anos. Por um lado, queria ser religioso; por outro,
pensava que para a Igreja fosse chegado o momento de se empenhar com
novos cuidados aos estudos superiores para difundir sua influência sobre as
inteligências. Eu unia estes dois pensamentos. Parecia-me que minha vocação
fosse entrar em uma comunidade religiosa dedicada ao estudo e ao ensino»38.
Sabemos que apesar desta forte inclinação e dos insistentes convites
de d’Alzon, Dehon não entrou no projeto por perceber nele um homem
«mais de ação, diria mesmo de agitação, do que um homem de
—————————–
37
38
Encontramos este interessante detalhe em uma carta de Dehon aos seus pais,
nesta época. AD.B. 18/11.
NHV IX, 3. Vemos neste discernimento, sua identidade espiritual que vai se
afirmando na síntese difícil entre sensibilidade e razão, coração e
inteligência, vida espiritual e vida de estudos.
44
estudos»39, enquanto Dehon amava o silêncio, o recolhimento e a pesquisa. Já
o conhecia dos tempos do Concílio e, juntos, haviam percebido a
necessidade de fazer algo para reparar o baixo nível cultural do clero
francês40. Isto era urgente para fazer frente aos ideais laicizantes da
Revolução.
Nos meses que se seguiram, Dehon estuda esta questão com muita
atenção e cuidado41. Ele conclui «após a era dos mártires deveria vir a
era dos doutores»42. Era necessário combater as «novas heresias» do
naturalismo, liberalismo e galicanismo. A Igreja precisava das ciências,
da história, da exegese, da economia e da política, para restaurar o
catolicismo na França. Afirma ainda que as universidades católicas
seriam um ótimo meio para isso, mas deveriam estar sempre ligadas à
Roma, ao Papa, «por causa prerrogativa de Pedro de ensinar e de
confirmar os outros»43. Dehon, portanto, acredita na reparação pela via
dos estudos44. Ele reconhece o potencial místico do conhecimento.
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39
40
41
42
43
44
NHV IX, 13. Na verdade, em seu discernimento, Dehon seguia atentamente
as orientações de seu diretor espiritual, P. Freyd, que sempre desestimulava
seu envolvimento com a fundação de universidades na França por receio de
que isso pudesse fortalecer o galicanismo. Lembremos que ele era o reitor do
seminário francês, em Roma, de orientação ultramontana.
NHV VI, 115;120. Para fazer frente aos «erros filosóficos e sociais que
ganhavam terreno», Dehon vê a necessidade de criar uma elite católica bem
formada. Para isso os dois meios seriam o estabelecimento de Universidades
Católicas e a valorização dos estudos nas Ordens Religiosas.
Em suas Memórias, Dehon elenca algumas fontes que consultou para
aprofundar este assunto: Tomás de Aquino, João Crisóstomo, Agostinho,
Jerônimo, Lacordaire, Franzelin, Mabillon, Louis Veuillot, entre outros. Na
lista aparece, em destaque, os textos bíblicos de Provérbios 15,2.16.24 e
Ezequiel 3. Cita também, com alguma insistência, os artigos deste período
da revista Civiltà Cattolica. NHV VI 119.
NHV VI, 120.
NHV VI, 126
Dehon assume para si as considerações sobre o sistema filosófico de
Lamennais, feitas por Henri Lacordaire: «Agora que a Igreja está organizada
é necessário restaurar as ciências religiosas, caso contrário aumentará os
gravíssimos perigos que já experimenta». NHV VI, 122.
45
Muitos anos antes de fundar sua Congregação e seu colégio já tem esta
pauta em mente. Quase tudo se torna realidade sem a sua contribuição
direta. Ao escrever suas memórias, revela: «Nossa pequena família
religiosa se dedicará também a este tipo de apostolado, quando ela tiver
saído da era das dificuldades próprias de todo início»45. Sua alma ficou
fortemente marcada pelo desejo de «fundar uma obra de estudos», que
depois ele unirá à fundação de uma Congregação dedicada à reparação
ao Sagrado Coração de Jesus46.
5. Sacerdote em Saint-Quentin
Primeiros desafios
Em outubro de 1871, Dehon coloca-se à disposição do bispo de
Soissons, Mons. Dours, e é nomeado vigário paroquial em SaintQuentin, cidade operária de 35.000 habitantes. Não era exatamente a
resposta ao sonho de dedicar-se ao ensino superior47. O sacerdote de 28
anos assume a cotidianeidade pastoral como expressão concreta de sua
mística de abandono à Vontade de Deus. Deste modo, vê nas coisas
comuns o encanto do extraordinário48. Seu olhar sobre a sociedade não é
neutro ou indiferente. É um olhar qualificado pelos estudos e animado
pela fé. Fortemente colocado diante da realidade operária e de descrença
religiosa, Dehon começa a fazer a síntese entre teoria e prática, que
marcará sua mística de unir o espiritual ao social.
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48
NHV VI, 130. Estas Memórias são escritas a partir de 1886.
NQT IV/1887, 1r. À reparação pelo conhecimento ele unirá a reparação pela
oblação.
«Era exatamente o contrário daquilo que eu havia desejado por muitos anos:
uma vida de recolhimento e de estudo. Fiat!» NHV IX, 71. Esta capacidade
mística de reagir com obediência mesmo diante de situações de desilusão e
fracasso marcará fortemente a identidade espiritual de Dehon. Pensamos
aqui a obediência não como mera submissão passiva, mas em sua mais
radical acepção etimológica, como disposição para «ouvir» (oboedire –
ob/audire) os sinais dos tempos e discernir a Vontade de Deus.
NHV IX, 87. Esta é outra característica espiritual que devemos reter para
compreender as raízes da complexa identidade espiritual de Dehon.
46
Um dos primeiros desafios foi que em uma paróquia de 35.000
habitantes não era possível a pastoral personalizada49. Percebe logo a
ineficácia da «instrução moral e religiosa» da qual era encarregado em
duas escolas públicas50. Na alma de Léon Dehon, que até então sempre
fora aluno, vai se manifestando a vocação de educador. Sua conclusão é
que para educar o povo na fé cristã seria necessário um patronato, um
jornal católico e um colégio eclesiástico51. De fato, em 1872, começam
as atividades do «Patronato São José» (l’Œuvre Saint Joseph)52, em
1874 funda um jornal: «Le Conservateur de L’Aisne»53 e, mais tarde, em
1877, fundaria o «Colégio São João» (Institution Saint-Jean)54.
O Patronato São José
O Patronato São José é a primeira obra de Dehon para a educação da
juventude. Era uma espécie de complemento do seu trabalho de
catequese nas escolas públicas. Inicia com reuniões informais de jovens
nos domingos à tarde, na casa paroquial, depois nas dependências
cedidas pela Conferência São Vicente de Paulo, e finalmente, em 1873,
em sede própria. Os jovens eram convidados a ir ao Patronato onde
podiam se divertir e receber uma catequese informal, além da
possibilidade de receber o Sacramento da Confissão. Em agosto de 1872,
somavam setenta e cinco jovens e, no final deste mesmo ano, já
chegavam a duzentos. A obra cresce e se torna uma verdadeira
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54
NHV IX, 89.
Mesmo nas escolas públicas a Igreja Católica era responsável pela instrução
religiosa, desde a Lei Guizot, de 1833. Isto terminará com a lei Jules Ferry,
de março de 1882.
NHV IX, 82.
NHV IX, 129.
O jornal Le Conservateur de L’Aisne começou a ser publicado em novembro
de 1874 e foi estampado regularmente com periodicidade diária durante dez
anos, até ser fundido com Le Journal de Saint-Quentin. NHV X, 189-190.
Um dos motivos porque Dehon demorou para fundar o colégio foi a opinão
contrária do seu diretor espiritual, P. Freyd, como se pode observar em uma
carta que escreveu a Dehon em 16.05.1872: «Cela ne saurait être votre
affaire». AD.B. 21,7.
47
instituição educacional. Esta será uma das principais atividades de
Dehon em seus primeiros anos de ministério sacerdotal. O Patronato São
José é uma «obra complexa»55. Dentro dele surge uma série de outras
iniciativas, como um pequeno orfanato (Casa de Família), um Círculo
Operário na linha iniciada por Albert de Mun e La Tour-du-Pin56, além
de um círculo de estudos sociais57. Havia grupos de música e teatro. Por
conta dessas atividades, Léon Dehon se tornará o secretário diocesano da
ação social58. O patronato será a principal atividade de Dehon até fundar
sua Congregação. Sua intenção era que a obra ficasse ligada à
Congregação, mas o bispo decidiu diferente e confiou a direção do
Patronato a P. Mercier59.
Possibilidade de ser professor universitário
Dehon já havia rejeitado o convite de D’Alzon para participar da
fundação de uma universidade católica em Nîmes. Em 1872, recebeu
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NHV XII, 85.
É muito intensa a sua ação no meio dos operários, já neste início, portanto
antes mesmo do pontificado de Leão XIII que seria marcado pela Rerum
novarum e pela abertura da Igreja à questão social. Participa de diversos
congressos de operários católicos. Em um deles, em Nantes (25-29.08.1873)
conheceu o empresário de Val-de-Bois Léon Harmel, que se tornaria um
grande amigo e companheiro de jornadas sociais.
G. Manzoni, Leone Dehon e il suo messaggio, 193-197.
Em francês: Bureau diocésan des Œuvres. Nesta atividade já podemos
perceber a capacidade de Dehon de ver a realidade e refletir sobre ela à luz
da fé em vista da transformação. Isto está registrado nos primeiros escritos
que produziu como secretário do Bureau diocésan. OSC IV, 213-260. Isto
pode ser claramente verificado, por exemplo, no texto da prestação de contas
anual do Patronato São José (1876), que começa analisando a situação social
e financeira, depois recorda o objetivo desta obra cristã como um remédio
contra o mal social e, em seguida, a avaliação de toda a obra é feita em tom
prospectivo: «Mais ce qui reste à fare est encore immense». OSC IV, 227239. Esta metodologia de trabalho o levou a promover uma pesquisa seguida
de uma assembléia em nível de diocese. Ele próprio reconhece que foi o
grande momento de sua vida como padre diocesano. NHV IX, 93.
NQT XI/1896, 65r.
48
novo convite do P. Eduardo Hautcœur (1830-1915) para colaborar na
Revue des Sciences Ecclésiastiques60, que ele havia fundado em Lille, no
ano 1860. Dehon chegou a se encontrar com Hautcœur61, mas não
realizou nenhuma colaboração concreta. Em agosto de 1874, Hautcœur
decide fundar a universidade católica e convida Dehon para lecionar na
área do Direito. Novamente a opinião do diretor espiritual, P. Freyd, é
contrária. Ele entende que Dehon já era responsável por muitas obras em
Saint-Quentin. Na verdade sabemos que ele era contra a criação de
universidades católicas na França por temer que se tornassem focos de
galicanismo e que fizessem concorrência com o Seminário Francês em
Roma. Dehon está consciente de tudo isso, mas obedece seu diretor
espiritual, contra seus desejos e aptidões pessoais:
P. Freyd não acreditava no futuro das nossas universidades, especialmente na
de Lille. Via nela uma concorrência ao seu seminário (onde eram poucos os
alunos). Enganava-se neste pormenor. Porém, era o meu diretor e obedeci62.
Em 1875, com a lei possibilitou a criação de universidades católicas
na França, Hautcœur volta a insistir. Dehon responde: «Não tenho mais
que um desejo: o de fazer a Vontade de Deus» que será manifestada pela
decisão do novo bispo de Soissons, Mons. Thibaudier»63.
A atração pela Vida Religiosa
É fácil concluir que tantas e tão diferentes iniciativas, unidas ao labor
ordinário de um vigário paroquial e ao acompanhamento pastoral e
espiritual de uma comunidade das Irmãs Servas do Sagrado Coração
tomavam quase todo o tempo do jovem sacerdote, fazendo dele um
homem de congressos e reuniões64. Isto estava em claro contraste com a
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Carta de 13.2.1872. AD.B. 21/7.
NHV XI, 3.
NHV XI, 9.
Carta de 25.7.1875. AD.B. 21/7.
Escreverá em 1897: «Participei de muitos congressos nos últimos vinte e
cinco anos. Sempre os considerei exercícios espirituais de zelo. No meu
modesto parecer, atacar estes congressos, significaria trair a causa sagrada da
Igreja». OSC II, 370.
49
pastoral típica de seu tempo, centrada basicamente sobre a administração
dos sacramentos e a prática de algumas devoções. Dehon, porém,
começava a sentir-se cansado e vazio65. Faltava-lhe algo. Com outros
sacerdotes, em 1874, funda um oratório diocesano. Mensalmente se
reuniam para rezar, estudar e partilhar seu ministério presbiteral66. Aqui
encontramos o primeiro germe daquilo que será mais tarde a sua
Congregação religiosa.
Em todas estas iniciativas do início de seu ministério sacerdotal vai se
consolidando a identidade espiritual de um homem muito atento às
necessidades pastorais do seu tempo e disposto a dar uma resposta de
qualidade, a partir de um estudo prévio. É a postura típica de um
educador. Mais tarde, já no auge do seu apostolado social, Dehon
reconhecerá: «Nous sommes des hommes d’obéissance»67. De fato, a
obediência, enquanto disposição para ouvir, discernir e decidir é um
valor estruturante da sua personalidade. É preciso reconhecer essa
dinâmica, da qual Dehon estava consciente, para entender o seu
comportamento diante do novo bispo de Soissons, Mons. Odon
Thibaudier, que tomaria posse em abril de 1876, e da Ir. Maria Uhlrich
(1837-1917), fundadora das Servas do Sagrado Coração de Jesus. O
bispo queria a fundação de um colégio católico em Saint-Quentin. A
madre sonhava com a fundação de uma congregação de sacerdotes-
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67
Temos uma ótima descrição da vida espiritual de Dehon nesse período em
G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 215-218.
A. DUCAMP, Le Père Dehon et son œuvre, 122-123. Aqui encontramos uma
expressão concreta a necessidade que Dehon sentia de uma vida espiritual e
comunitária mais profunda. A primeira reunião, com outros cinco
sacerdotes, aconteceu na casa dos jesuítas em Laon, no dia 28 de julho de
1874. NHV X, 175. Nesta mesma casa, Dehon faria dois anos mais tarde os
exercícios espirituais que mudariam o curso de sua vida. O oratório era
inspirado e ligado à obra do sacerdote A. Olichon Lebeurier que tinha como
finalidade criar laços de família entre presbíteros diocesanos. Era conhecida
como L’Union Apostolique des prêtres séculiers du Sacré-Cœur. A. BROU,
«Associations de Prêtres» in Dictionnaire de Spiritualité, Tome I, 10371045. Para um estudo especializado sobre o tema em Dehon: E. DRIEDONKX,
El Oratorio Diocesano de Soissons.
Esta afirmação é a propósito do Manuel social chrétien que terminara de ser
redigido como resposta a um pedido do bispo. OSC IV, 255.
50
vítimas dedicada ao Sagrado Coração de Jesus. Dehon ouve tudo com
muita atenção68.
Alguns o vêem como um homem indeciso, que ouve demais69. Mas
podemos vê-lo também como alguém em permanente discernimento. No
fundo, desejava ouvir e realizar a Vontade de Deus70. As conversas com
Madre Uhlrich e com os diretores espirituais, P. Freyd, e depois P. Dorr,
acentuavam cada vez mais o antigo desejo de consagrar-se como
religioso71. Era um conflito vocacional das mesmas proporções daquele
que vivera na casa dos pais. A solução teria sido fácil se Dehon
simplesmente tivesse aceito, em 1874, o convite de seu diretor espiritual
e antigo reitor no Seminário de Roma, P. Freyd, para entrar em sua
congregação e depois, quem sabe, suceder-lhe como reitor. A resposta de
Dehon é clara e esconde toda a sua complexa dinâmica de discernimento
que busca, acima de tudo, a Vontade de Deus: «Isto que me propõe seria
para mim o paraíso. Estar em Roma, ter as vantagens da vida religiosa,
estudar à vontade, tudo o que me atrai. Mas será a Vontade de Deus?»72.
É importante observar que em sua nostalgia pelo tempo vivido como
seminarista em Roma, Dehon sempre recorda as dimensões do estudo e
da oração. No momento em que decidir pela vida religiosa fundará
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72
Existem ainda uma série de outros convites que ocupam a mente e o
discernimento de Dehon. Um dos principais era o convite para ser professor
universitário em Lille. A. DUCAMP, Le Père Dehon et son œuvre, 126-127.
G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 211-215.
Y. LEDURE, Un prete con la penna in mano, 82.
Isto pode ser verificado no lema pessoal de vida que escolhera já no tempo
de seminário: «Domine, quid me vis facere?». NHV V, 2.
Escreve em suas Memórias do retiro espiritual de 1872: «Conservava o
desejo ardente da vida religiosa. Temia perder a vida interior nas atividades
do ministério e das obras». NHV X, 28.
Esta carta é de 11.12.1874 e encontra-se nos arquivos dehonianos. AD.B.
36/2. Dehon chega a ficar incomodado com este convite. É possível que já
estivesse consciente da dinâmica inaciana de acompanhamento na qual «o
pior erro que um diretor pode cometer é conduzir o outro pelo seu próprio
caminho». R. GARCIA MATEO, S. Ignazio di Loyola, 41. O diretor espiritual
escreve cartas a Dehon quase até a sua morte (06.03.1875) confirmando que
deveria ser religioso. G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 218.
51
contemporaneamente um colégio e uma congregação. Vemos aqui uma
íntima ligação entre a vida espiritual e intelectual como expressões de
uma dimensão que poderíamos classificar como contemplativa.
6. Fundador de uma Congregação e de um Colégio
O discernimento de Dehon
Os exercícios espirituais, feitos em Laon, em 1874, sob a orientação
do jesuíta P. Dorr, começaram a abrir algumas perspectivas73. Mas o
grande momento parece ter sido mesmo os «exercícios espirituais de
eleição», também em Laon, nos dias 21 a 27 de março de 1876, a convite
de outro jesuíta, P. Pouplart74, mas novamente sob a orientação de P.
Dorr. Dehon tomou o cuidado de nos deixar alguns registros pessoais
daqueles sete dias de retiro75. Isto nos possibilita refazer seu itinerário
espiritual, entrando assim no coração do seu processo de discernimento.
Tratava-se, basicamente, da segunda semana dos exercícios espirituais
de Santo Inácio. A disposição inicial de Dehon é: «Eu sentia que não
podia mais conservar suficientemente a vida interior que havia adquirido
no seminário. Queria a todo custo tornar-me religioso»76. No primeiro
dia do retiro, ele faz a revisão de sua vida em base aos Mandamentos, ao
seu estado de vida e à relação com as criaturas. Percebe-se, por suas
anotações, que ele segue fielmente a dinâmica de discernimento
inaciana, proposta pelo pregador. No segundo dia, medita sobre o pecado
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O retiro de 1875 foi feito em Soissons e confirmou o discernimento do ano
anterior. «Estou sobrecarregado de atividades: não posso reservar-me os
momentos de recolhimento que me são necessários». NHV XI, 145.
P. Pouplart propõe o retiro de eleição em 26.11.1875. Volta a insistir no dia
11.03.1876 afirmando que se Deus chama à vida religiosa, Ele dará os
meios, cuidará das obras em Saint-Quentin e fixará a tempo oportuno. NHV
XII, 157-158.
NHV XI, 178-182. Encontramos também o interessante registro, em duas
colunas, das vantagens e desvantagens de ser religioso ou secular. Acima,
ele anota: «Fim: a glória de Deus e salvação das almas. Meio: os conselhos
de perfeição». NHV XII, 1-3.
NHV XI, 178.
52
e o inferno, no terceiro faz a contemplação da morte, no quarto reflete
sobre a tibieza, e no quinto dia concentra suas atenções no Reino
anunciado por Jesus Cristo. Tudo isso prepara o terreno para o sexto e
último dia em que fará sua eleição, auxiliado pela meditação das duas
bandeiras77 e pela meditação das três classes de homens78. As duas, na
reflexão de Dehon, têm como baricentro a pobreza, com sua raiz mais
profunda na reta intenção, liberdade interior e motivos autênticos e
válidos que permitam a melhor escolha, em vista da maior glória de
Deus. Esta atitude de liberdade e objetividade que permite discernir a
Vontade de Deus, a tradição inaciana chama de indiferença79. É preciso
entrar na lógica simbólica dos exercícios espirituais para entender o
—————————–
77
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79
EE 136-148. Sua conclusão nessa meditação é que deve abraçar
decididamente a via da pobreza e evitar as riquezas e o prestígio de «se
garantir contra os ataques do demônio». Pensando no seu sucesso pastoral
daquele momento é fácil entender a relevância desta disposição interior. Ele
conclui: «S’approcher si près du péril, c’est s’exposer à périr». NHV XI,
186.
EE 149-157.
A «indiferença» está no coração do «Princípio e Fundamento» dos
exercícios espirituais de Santo Inácio. EE 23. K. Rahner prefere chamá-la de
«indiferença ativa», definindo-a como «o desprendimento das coisas sem o
qual não é possível aquela visão objetiva que é indispensável para uma
escolha». Mas recorda ainda que a «íntima essência da indiferença implica
todavia no seu superamento na decisão pelo magis». K. RAHNER, Elevazioni
sugli esercizi di S. Ignazio, 33-39. Portanto, não se trata da «apatia» estóica,
pois a indiferença não é um fim em si mesma, mas é praticada em vista da
escolha das coisas «quæ magis conducant ad finem» («solamente deseando y
elegiendo lo que más nos conduce para el fin que somos criados»). EE 23. A
meditação inaciana das «três classes de homens» (EE 149-157) é uma
pedagogia da indiferença que ajuda o exercitante a alcançar a liberdade e a
objetividade necessárias para escolher aquilo que é conforme a Vontade de
Deus, ou seja, o melhor. K. RAHNER, Elevazioni sugli esercizi di S. Ignazio,
286-299. Para uma ótima revisão do sentido de indiferença inaciano e
salesiano ao longo da história: G. BOTTEREAU – A. RAYEZ, «Indifférence» in
Dictionnaire de Spiritualité, Tome VII/b, Paris 1960, 1688-1708. São
Francisco de Sales, no início século XVII, utilizava a expressão «santa
indiferença». Ibidem, 1701.
53
resultado do discernimento de Dehon, expresso de um modo sintético,
claro e programático, ao final do seu retiro80:
Graças a Deus eu me sinto bastante indiferente e decidido a escolher aquilo
que poderá melhor buscar a glória de Deus. Estou decidido a escolher a vida
religiosa se os compromissos e os encargos atuais de minha obra não
colocarem obstáculo criando uma situação tal que deixar seria provocar um
escândalo e expor a obra à ruína. De resto, se for necessário viver em meio às
tentações da sensualidade, do amor próprio e da antipatia, estou disposto a
escolher os meios de correção mais favoráveis amando a pobreza e o
desprezo [mépris]81.
O binômio indiferença-decisão, na lógica inaciana dos exercícios
espirituais designa um estado de grande liberdade e disposição para fazer
a Vontade de Deus. Poderíamos dizer que Dehon estava «livre e
decidido»82. O fim está claramente expresso: a maior glória de Deus. Os
dois «se» das frases seguintes, mais do que condicionantes, são
explicitações da atitude de indiferença-decisão, mas exprimem também
um senso de temporalidade. Dehon está nas Mãos de Deus. Já decidiu.
Agora espera os sinais de confirmação da parte do Senhor para fazer a
sua eleição. Isto explica a atenção que dará aos seus interlocutores,
principalmente ao bispo e à Madre Uhlrich, para saber o momento e a
forma concreta de realizar a Vontade de Deus. Intensifica também o
diálogo com P. Dorr e P. Pouplart83. Portanto, Dehon não é propriamente
um homem indeciso84. Pode ser considerado um místico que assume o
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81
82
83
84
Nas resoluções práticas de seu retiro, Dehon inclui o propósito de fazer meia
hora diária de oração e o exame particular cotidiano «segundo o método de
Santo Inácio». NHV XI, 187.
NHV XI, 186. Dehon usa a palavra mépris, que poderia ser traduzida
literalmente por «desprezo». Grifos nossos.
Traduções recentes dos exercícios espirituais de Santo Inácio preferem
utilizar a categoria «liberdade» no lugar da palavra «indiferença». Esercizi
spirituali, tradução dos espanhol aos cuidados da Comissão da Provícia
Italiana S.J., 1999, EE 23; 95.
NHV XII, 158-168.
A dinâmica de discernimento de Dehon segue a tradicional regra de eleição
proposta em EE 179: «[...] encontrar-me indiferente sem qualquer afeto
desordenado, de modo a não estar mais inclinado nem desejoso a aceitar a
54
discernimento como estilo de vida e que leva a sério seu lema de vida:
«Senhor, o que queres que eu faça?»85. É uma vida vivida sob o signo da
interrogação permanente.
A última frase das anotações de seu retiro ajuda a compreender seu
método de discernimento e seu estado de espírito daquele momento em
diante, que espera a confirmação divina: «Prometo a São José dez
missas e dez rosários se ele favorecer minha eleição daqui até a sua festa
de Patrono»86. Com esta disposição, ele retoma normalmente seus
trabalhos em Saint-Quentin, atento aos sinais da Vontade de Deus. No
dia 20 de abril, Mons. Odon Thibaudier assume a diocese e nomeia
Dehon cônego no final da segunda assembléia das obras sociais da
diocese87. A obra do Patronato São José chega ao seu momento de maior
sucesso, mas Dehon já está em outra sintonia. Ele mesmo afirma:
—————————–
85
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87
coisa proposta que a deixá-la, nem mais a deixá-la que a aceitá-la; estando
equilibrado como uma balança, para seguir aquilo que sentirei ser melhor
para a glória e o louvor de Deus nosso Senhor e a salvação da minha alma».
«Domine, quid me vis facere?». NHV V, 2.
«[...] fête de son Patronage.» NHV XI, 198. Grifos nossos. Pode ser a festa
do Patrocínio de São José, que neste tempo era celebrada no terceiro
domingo de Páscoa. No ano de 1876 esta data caiu no dia 30 de abril, um
mês após o final do retiro de Dehon. Há uma referência a esta festa em seu
diário, no dia 16.05.1885. NQT III/1885, 24. Porém, é possível também que
se refira à festa do dia 19 de março, na qual Pio IX havia estabelecido no
final do Concílio, se deveria celebrar São José como padroeiro da Igreja
universal. Decreto Quemadmodum Deus, de 8 de dezembro de 1870. Acta
Pii IX, t. 5, Roma 1873, 282. Neste caso o tempo estabelecido para a
«eleição» seria de um ano. Um estudo documentado sobre as diversas festas
de São José: T. STRAMARE, «Giuseppe, sposo di Maria», in Bibliotheca
Sanctorum, VI, Roma 1965, 1251-1287. João XXIII, 1961, declarou São
José padroeiro do Concílio Vaticano II, por meio da carta apostólica Le voci
che da tutti, onde retoma de modo bastante documentado o magistério dos
papas desde Pio IX. AAS 53 (1961) 205-213.
«A maior parte dos cônegos era gente de idade avançada, e eu muito novo.
Achei essa cerimônia pouco interessante e supérflua demais para um título
que não passa de um ornamento. Mas aceitei com muita fé e muita
simplicidade, e rezei um pouco pela Igreja de Soissons». NHV XII, 82. A
nomeação foi no dia 24.10.1876.
55
Tudo me sorria na vida secular. Era amado por todos. [...] Cônego honorário
aos 33 anos! O comentário era que logo que seria Vigário Geral. Apesar de
tudo, não era feliz. Estava sobrecarregado de trabalhos. Sofria na minha vida
espiritual e intelectual: desejava a vida religiosa88.
No início de 1877, viaja com Mons. Thibaudier para Roma. Recorda
vivamente as graças do seu início de sacerdócio. Chega a pedir para ficar
ali durante um ou dois anos para estudar. Sabemos que, na verdade, sua
intenção era entrar no noviciado dos Sacerdotes do Espírito Santo
(espiritanos)89. Ele afirma que «sofria na sua vida espiritual e
intelectual», por isso desejava permanecer em Roma para rezar e estudar.
É preciso estar atento ao modo como Dehon sempre une estas duas
dimensões da vida contemplativa: estudo e oração. A orientação
intelectual sempre estará intimamente ligada à sua orientação espiritual.
O bispo rejeita categoricamente a idéia90. Desejava iniciar um colégio
católico em Saint-Quentin e o jovem cônego seria a pessoa mais
indicada. Dehon aceita como Vontade de Deus.
A decisão de fundar a Congregação
Em Saint-Quentin, Madre Uhlrich, conhecida como Chère Mère91,
insistia já há algum tempo com Dehon, que a solução seria fundar uma
Congregação de sacerdotes na espiritualidade vitimal-reparadora do
Coração de Jesus. Já vimos como essa devoção ocupava um lugar
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88
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90
91
NHV XII, 116.
Y. LEDURE, Un prete con la penna in mano, 92. Sabemos, por uma carta de
Dehon escrita em 1894, que no dia 14 de fevereiro de 1877, em Loreto, ele
teve uma experiência pessoal de confirmação em relação à entrar na vida
religiosa e a fundar um instituto religioso. AD.B. 20/3.
NHV XII 118-119.
Esta era uma forma habitual de chamar os superiores religiosos na França
deste tempo. Dehon será chamado pelos seus religiosos de Très Bon Père,
enquanto o empresário León Harmel, benfeitor da Congregação, será
chamado de Bon Père. O nome de batismo da madre Maria do Coração de
Jesus, fundadora das Servas do Coração de Jesus, era Rosalie Oliva Uhlrich.
Nasceu em Alsácia (25.03.1837) e morreu no exílio na Bélgica (Soignies –
17.03.1917). NHV XII, 163, nota 2.
56
proeminente no catolicismo francês do século XIX. Ele mesmo a
cultivara desde a sua infância, mas não transparece em seus escritos até
este tempo, uma especial predileção por consagrar-se religioso nesta
espiritualidade. Já vimos que, ainda no início de 1877, chegou a aceitar a
idéia de ingressar na Congregação dos sacerdotes do Espírito Santo, na
qual o Sagrado Coração de Jesus e a reparação não ocupavam um lugar
central. Mas neste mesmo período intensifica seus diálogos com a Chère
Mère e com outros fundadores e chega à seguinte conclusão:
Um trabalho progressivo acontecia em minha alma. Queria ser religioso, mas
não podia deixar as obras de Saint-Quentin. Sentia forte atração por uma
Congregação com o ideal da reparação ao Sagrado Coração de Jesus.
Entendia que essa obra responderia ao desejo de Nosso Senhor expresso em
Paray-le-Monial, pela Virgem de La Salette e às aspirações de muitas almas
santas92.
Acompanhando a sua forma de aplicar o método inaciano de eleição é
possível entender esse «trabalho progressivo» que acontecia em sua
alma. Ele estava prestes a eleger a forma concreta de realizar a Vontade
de Deus pela qual havia decidido com santa indiferença em março de
1876. Ele chega à uma conclusão «lógica», como ele mesmo diz93. Era
possível que Nosso Senhor o quisesse como fundador de uma
Congregação de sacerdotes do Coração de Jesus, em Saint-Quentin. Mas,
como saber? Encontrou um meio prático para pôr fim à questão.
Resolveu se abrir com o bispo, considerando-o como aquele «que teria a
autoridade de dizer qual seria a Vontade de Deus». As palavras de
Dehon ao bispo são bem pensadas. Ele faz a seguinte proposição: «O
senhor bispo deseja um colégio eclesiástico em Saint-Quentin. Pode ser
lá o modo de começar uma congregação reparadora. Será fundada sob a
cobertura [sous le couvert] do colégio»94. Decide ainda expor ao bispo as
—————————–
92
93
94
NHV XII 163.
NHV XII 164. Já vimos como os seus motivos espirituais podem ser
percebidos nesta síntese «equilibrada como uma balança» que ele procura
entre razão e coração.
NHV XII 164.
57
«atrações» e os «motivos» que se colocam contra ou a favor desta
fundação. Se o bispo aceitasse, aí estaria o sinal da Vontade de Deus95.
A conversa com Mons. Thibaudier aconteceu no dia 8 de junho de
1877, festa do Sagrado Coração de Jesus. O bispo que se mostrou
interessado e manifestou, no dia 25 de junho, seu assentimento verbal.
No dia 13 de julho, Dehon recebeu uma carta do bispo formalizando sua
autorização, simpatia e apoio96. Estava confirmada, no coração de
Dehon, a Vontade de Deus. Havia terminado um longo, complexo e
minucioso processo de eleição. Daqui para frente seu senso prático o
ajudará a dispor rapidamente dos meios para realizar o projeto de uma
Congregação religiosa à sombra de um colégio católico. Para se ter uma
idéia de como a eleição é marcante em sua vida, ele recebe a carta no dia
14 e, no mesmo dia, se compromete, com muita fé na Providência, mas
sem dinheiro, com a compra de uma casa onde funcionaria o colégio97.
—————————–
95
96
97
NHV XII 164. Em 1912, em carta à Congregação o próprio Dehon inverte
um pouco a perspectiva deste fato fundante: «Falei com o nosso bom bispo,
Mons. Thibaudier. Ele refletiu e me fez a seguinte proposta: ‘O senhor
deseja fundar uma Congregação de sacerdotes e eu queria um colégio em
Saint-Quentin. Poderia iniciar a sua obra sob o teto de um colégio’». L.
DEHON, «Souvenirs», in Lettere circolari, (14.3.1912) 325. Este episódio é
estudado em A. BOURGEOIS, «Le P. Dehon a Saint-Quentin, 1871-1877», in
Studia Dehoniana 9 (1978) 175-177. De qualquer maneira, independente da
proposta ter partido do bispo ou de Dehon, foi uma eleição feita com
cuidadoso discernimento. Quarenta anos depois, em janeiro 1917, Dehon
recorda estes fatos em seu Diário: «Contei ao bispo meu desejo de ser
religioso. A solução parecia ser, segundo o parecer dos meus superiores e
conselheiros, começar a obra religiosa reparadora sob o teto do Colégio São
João. Não vejo que meio mais correto poderia ter utilizado para conhecer e
cumprir a Vontade de Deus. Nada de humano interferiu em minha decisão».
NQT XL/1917, 95.
NHV XII, 165. Dehon escreve ainda para o jesuíta, P. Pouplart, que confirma
e alegra-se com essa decisão. A carta de Mons. Thibaudier é conservada nos
arquivos dehonianos em AD.B. 21/3.
NHV XII, 173-186. Poderíamos levantar a dúvida se o empenho de Dehon na
fundação de um Colégio não teria sido apenas uma espécie de «preço» que
ele teve que pagar para poder fazer o que realmente queria: ingressar na vida
religiosa. A esse respeito será bastante elucidativa a leitura atenta do
primeiro, de uma série de discursos educacionais, pronunciado por Dehon no
58
No dia 16 inicia seu retiro, onde escreve um primeiro esboço das
Constituições da Congregação dos «Oblatos do Coração de Jesus». Seu
retiro termina no dia 31 de julho, festa de Santo Inácio98, no qual eram
inspiradas as Constituições. No mesmo dia considera que começara seu
noviciado, que terminaria com seus votos religiosos no dia 28 de junho
de 1878.
O Colégio São João
No dia 15 de agosto de 1877, Dehon transfere sua residência da
paróquia para o Colégio São João, que viria a iniciar suas atividades com
uma Missa, no dia 8 de setembro de 187799. A maior ajuda, inclusive
financeira, veio das Irmãs Servas, que formaram uma pequena
comunidade para os trabalhos domésticos do Colégio100. Além da
Maison Lecompte, Dehon adquiriu também o terreno ao lado para
construir a capela, salas de aula e um muro101. O Colégio é visto pela
sociedade como uma obra da diocese. Os professores são nomeados pelo
—————————–
98
99
100
101
dia 04 de agosto de 1877, durante a cerimônia de distribuição de prêmios aos
alunos da Maison Lecompte, que estava prestes a se tornar o Colégio São
João. Dehon se mostra um educador convicto.
Esta data de 16-31 de julho está em suas Memórias em NHV XII, 166. No
Diário, ele afirma que escreveu as Constituições de 22 a 31 de julho. NQT
XLIV/1924, 110. A mesma data aparece em uma carta à Ir. Maria de Santo
Inácio, em julho de 1924. «De 22 a 31 de julho [1877], de Maria Madalena a
Santo Inácio, escrevi as nossas Constituições». AD.B. 19/2. Maria Madalena
era, para ele, modelo de reparação e amor, Santo Inácio era exemplo de
ardor apostólico.
NHV XII, 185.
Afirma Dehon, em suas Memórias: «Ocupavam-se da cozinha, da lavandaria
e, especialmente, traziam à casa a ordem, a limpeza e um ambiente de
caridade e de doçura que a convertiam verdadeiramente numa casa cristã,
uma casa de Deus». NHV XIII, 21.
Tudo isso iria custar 25.000 Francos. Dehon investiu 800.000 Francos do seu
patrimônio pessoal no Colégio São João. A DUCAMP, Le P. Dehon et son
œuvre, 185.
59
bispo. Mas, juridicamente e economicamente, é um patrimônio pessoal
de Dehon. Não é obra de uma Congregação102.
O bispo sentia a necessidade de um novo colégio porque, com o final
do ano acadêmico 1876-1877 os religiosos de Saint-Bertin haviam
fechado o Colégio Notre Dame, em Laon. Deste colégio vieram para o
Saint-Jean muitos professores e alunos103. Os outros alunos eram
remanescentes da Maison Lecompte. Esta situação gerou muitas críticas
a Dehon na Igreja local e na sociedade. Achavam que o seu colégio seria
um concorrente. Mas, apesar da oposição, a obra prosperou. Mais tarde
Dehon avaliará os primeiros anos como «particularmente belos, cheios
de atividade, prósperos, alegres, fecundos para a formação cristã dos
jovens»104. Dehon organizou no Colégio uma Conferência de São
Vicente de Paulo, Congregação Mariana, entre outras iniciativas de
catequese. Desde fevereiro de 1878 começou a ser publicado um boletim
informativo: L’Aigle de Sain-Jean105.
Um dos momentos marcantes do início desta obra foi um retiro
pregado por Dehon para os professores de 9 a 12 de setembro. Os temas
giram em torno da educação e ensino como uma missão dada por
Deus106. Fala também de Eucaristia, Sagrado Coração, Maria e o valor da
cruz na vida diária. É um eco prático e espiritual do seu discurso feito
um mês antes na cerimônia de «Distribuição de Prêmios».
O Colégio São João é, sem dúvida, a obra educacional mais
importante da vida de Dehon. Ele permanecerá ligado à ela durante
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102
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104
105
106
Provavelmente, Dehon evitou fazer essa ligação por causa das dificuldades
que começavam a ser criadas para as congregações dedicadas ao ensino, com
a reforma educacional de Ferry.
Entre eles estavam os sacerdotes Mailfert, Rigault e Lefèvre. Eram bons
professores e trouxeram ótimos métodos de ensino. Calcula-se que a obra
tenha começado com algo em torno de 100 alunos. E. DRIEDONKX,
«Nuestros colegios», 38-39.
NHV XIII, 21.
Inicia com uma tiragem de 100 exemplares. Com o número 140, em 1881 a
tiragem será de 200 exemplares. E. DRIEDONKX, «Nuestros colegios», 38.
NHV XIII, 2-20.
60
praticamente toda a sua vida. Sofrerá no momento de deixar a direção
ou, mais tarde, ao ter que entregá-lo à uma associação independente107.
Diretor e Noviço
A partir de julho de 1877, Dehon é noviço e diretor ao mesmo tempo.
Durante o seu peculiar noviciado continua com a maioria das tarefas que
o sobrecarregavam, com o acréscimo de mais duas obras. Com isso ficou
seriamente enfermo, em perigo de morte108. A estima e o prestígio de que
ele gozava na região se transformam em hostilidade diante de uma
possível concorrência no campo da educação109. Acumulara uma série de
dívidas financeiras. Mas a decisão estava tomada. No dia 28 de junho de
1878 emitiu seus votos religiosos na capela do colégio110, já sob o
pontificado de Leão XIII e sob o governo da Terceira República,
anticlerical, na França, que desestimulava cada vez mais a educação
confessional e buscava um Estado totalmente laico. Humana e
racionalmente não seria a hora de fundar nada. Somente uma outra
lógica poderia justificar esta decisão. Chama a atenção que um jovem
escrupuloso em discernir os mínimos sinais antes de sua eleição − quase
exageradamente atento às palavras de todos que lhe davam algum
conselho − após a eleição passa por cima das maiores dificuldades que
tornavam o projeto aparentemente inviável. Podemos concluir pela
validade e autenticidade de seus motivos espirituais. Ele sabia que fazia
a Vontade de Deus e, portanto, não havia o que temer. A aparente
indecisão do primeiro momento se transforma em determinação no
segundo momento. Ele próprio descreve bem o estado de sua alma:
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110
NQT XVII/1901, 3. Dehon registra em seu diário a disposição do P. Delloue
de se integrar ao clero diocesano para salvar o colégio. Dehon considera a
perda colégio um Consummatum est. Diz que foi o berço da Congregação.
Suspeita que a secularização do Colégio São João poderia significar o seu
fim.
Dehon vomitava sangue. Era uma espécie de tuberculose. Esta doença o
acompanhará até o final da vida. NHV XIII, 65-66.
NHV XIII, 22.
Esta é considerada pela Congregação dos Padres do Sagrado Coração de
Jesus como a data da sua fundação. Na ocasião Dehon emitiu também o voto
privado de vítima. NHV XIII, 100.
61
Doei-me sem reserva ao Sagrado Coração. Minha emoção foi muito
profunda. Sentia que estava tomando a cruz sobre as costas, doando-me a
nosso Senhor como reparador e como fundador de um novo instituto111.
O primeiro noviço, P. Adriano Rasset, é acolhido no dia 12 de agosto
e Dehon será seu mestre. A Casa Sagrado Coração, que será o primeiro
noviciado da Congregação, é fundada em setembro.
7. As obras e os escritos de Léon Dehon
Após termos feito o estudo da experiência espiritual de Dehon na
primeira metade de sua vida (1843-1878), podemos tomar um pouco de
distância dos fatos para analisar e contextualizar suas obras e seus
escritos, deste momento até sua morte (1879-1925)112.
Nos anos 1878 a 1881, Dehon estrutura melhor sua Congregação,
elabora o texto definitivo das Constituições, escreve um diretório geral e
acolhe os primeiros noviços na casa Sagrado Coração, em Saint-Quentin.
Um deles, Stanisllao Falleur anotava escrupulosamente tudo o que o
mestre falava em suas conferências e sermões113. Os Cahiers Falleur são
documentos muito preciosos para conhecer de perto a alma de Dehon
nestes momentos iniciais, dos quais quase não temos registros
contemporâneos do próprio Dehon. Suas memórias autobiográficas
seriam escritas mais tarde, como uma carta de revisão de vida.
A situação no Colégio não era fácil com as novas disposições da Lei
Jules Ferry. Apesar disso, ele levava o projeto adiante com
determinação, fazendo periodicamente um discurso educacional,
normalmente por ocasião da «Distribuição de Prêmios». Em 1887, ele
reuniria os discursos feitos de 1877 a 1886 naquele que é considerado o
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111
112
113
NHV XIII, 100.
Para uma narrativa completa e documentada dos fatos desta segunda metade
da vida de Dehon, o livro mais indicado nos parece G. MANZONI, Leone
Dehon e il suo messaggio, 233-450. O livro mais recente é Y. LEDURE, Un
prete con la penna in mano, 113-252. Porém, a melhor fonte permanece
sendo os escritos autobiográficos do próprio Dehon.
S. FALLEUR, Cahier. Conférences et sermons du Père Dehon aux novices, 9
novembre 1879 – 21 octobre 1881, Centro Generale Studi SCJ, Roma 1979.
62
seu primeiro livro, L’Éducation et L’Enseignement selon l’idéal
chrétien114.
Até o ano de 1883 as dificuldades só aumentaram, a ponto de se
tornarem quase insuportáveis. Fogo no Colégio São João, em 1881, a
morte do seu pai em 1882, mais leis anticlericais na França, dívidas
quase impagáveis, morte de sua mãe no início de 1883. Apesar disso, as
obras cresciam. Muitos entravam na recém fundada Congregação,
inclusive certo P. Taddeo Captier, que trouxe consigo uma forma
exagerada de pietismo e se imaginava co-fundador. Isso unido a algumas
visões místicas de Ir. Maria de Santo Inácio sobre a Congregação
fundada por Dehon, deixaram o bispo muito preocupado e o fizeram
pedir orientações a Roma115. Ao invés de orientações, Dehon recebeu,
em 1883, a decisão da Santa Sé de suprimir a obra dos Oblatos do
Coração de Jesus. Com certeza é o momento mais difícil de sua vida.
Conhecendo sua alma obediente à Santa Sé e seu discernimento,
entendemos bem a dimensão e o significado daquilo que ele chamou de
consummatum est:
Recebi esta sentença de morte na bela festa de 08 de dezembro. Era jogado
na terra e pisado. Havia me enganado. Como seria o meu futuro? Restava-me
o Colégio. Mas não estava ali meu atrativo e minha vocação. Eu o havia
fundado para cuidar do resto. [...] Deus sabe o que eu sofri durante aqueles
dias. Sem uma graça especial teria perdido a razão ou a vida116.
Após esta primeira reação emocional, Dehon humildemente se
submeteu e passou a elaborar a situação no plano espiritual. Mas não
entendia como Deus poderia pedir, por meio da Igreja, que ele
terminasse a obra que o próprio Deus havia pedido que começasse. A
conclusão lógica é que as suas infidelidades pessoais teriam provocado
tudo isso. Coloca-se com total submissão nas mãos do bispo. A resposta
de Deus, por meio da Igreja, foi um novo decreto do Santo Ofício, de 29
de março de 1884, que permitia a reabertura da obra com um novo
nome: Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus. Dehon
—————————–
114
115
116
OSC IV, 265-394.
Uma interessante e completa documentação desses fatos: G. MANZONI,
Leone Dehon e il suo messaggio, 261-283.
NHV XIV, 182.
63
escreve as novas Constituições117 que continham um esboço do Diretório
Espiritual118. Em 1885, escreverá o livro de orações próprio para sua
Congregação: Thesaurus Precum119. Em janeiro de 1886 retoma o Diário
que havia começado a escrever no tempo de seminário (1865-1866), mas
interrompera em 1871: Notes Quotidiennes120. Em março inicia a
redação de suas memórias: Notes sur l’histoire de ma vie121.
Percebemos que, a partir da supressão e reabertura da Congregação,
surge um Dehon escritor cada vez mais fecundo. Até então, possuía
alguns poucos escritos, a maioria registros de memórias, palestras,
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117
118
119
120
121
Studia Dehoniana 2 (1972) 1-101.
L. DEHON, ed., Directoire spirituel à l’usage des Prêtes du S.-C. par le
T.R.P. Dehon, Supérier général des Prêtes du S.-C.. As primeiras duas
edições, de 1905 e de 1908 praticamente são uma publicação à parte de
Excerpta das Constituições de 1885, que estão no Thesaurus de 1886. A
edição de 1919, porém, é especialmente cuidada por P. Dehon, como ele
mesmo diz na página inicial: «Estas páginas exprimem os espírito da nossa
obra, da maneira como a concebemos no princípio». OSP 6, 393-528.
OSP 7, 255-394. É uma reedição do Thesaurus publicado em 1886. É
curioso que esta edição traz como título Thesaurus Sacerdotum Societatis
Cordis Jesu, enquanto na reedição de 1891 o título muda para Thesaurus
Sacerdotum Oblatorum Cordis Jesu. Esta mudança de Societatis para
Oblatorum indica uma tendência da Congregação nos seus inícios de manter
o nome de Oblatos, alterado pela Santa Sé por ocasião da supressão, em
1883.
L. DEHON, Notes Quotidiennes (1867-1870 e 1886-1925), 5 Volumes,
Centro Generale Studi SCJ, Roma 1985-1998. São 7087 páginas manuscritas
de registros que vão de luzes de oração à anotações de viagens. Dehon é fiel
a estes registros diários até um mês antes de sua morte. Entre 1871 e 1886
afirma que não tinha tempo para escrever o seu diário. NHV XIII, 150.
L. DEHON, Notes sur l’histoire de ma vie (1843-1888), 8 Volumes, Centro
Generale Studi SCJ, Roma 1975-1979. Cobre o período que vai de seu
nascimento, em 14.03.1843 ao dia 06.09.1888, quando Dehon foi recebido
em audiência por Leão XIII, agradeceu o Decreto de Louvor concedido à sua
Congregação e ouviu o pedido de pregar as Encíclicas. Notes sur l’histoire
de ma vie foi escrito a partir do dia 03.03.1896 até 1901. NQT III/1886, 10.
É mais do que um relato de fatos. É uma reflexão sobre os acontecimentos
no estilo de «confissões» ou «história da alma».
64
discursos ou cartas. Daqui para frente, o leitor quase se perde na
multiplicidade de seus livros, cartas122, registros autobiográficos, escritos
para a Congregação, conferências e artigos e diversas revistas123.
O primeiro Capítulo Geral da Congregação acontece em 1886, ao final
do qual, no dia 17 de setembro, Dehon e outros seis religiosos emitem
seus votos perpétuos124. Ele registra sua disposição interior:
A minha resolução é de viver e de morrer como verdadeira vítima do
Coração de Jesus. Por isso, viverei no abandono completo de mim mesmo ao
Coração de Cristo. Nele terei uma confiança filial, submetendo-me em tudo à
Sua Vontade. Farei tudo por amor, em espírito de reparação125.
De fato, seus escritos apresentam como tônica central a via do amor,
que tem no Coração de Jesus sua expressão concreta e visível. Sem esta
perspectiva, a leitura de alguns escritos isolados, principalmente sociais,
—————————–
122
O estudo do vasto epistolário de Dehon é um campo ainda em parte
inexplorado. O Centro Generale Studi SCJ trabalha atualmente nestas
publicações. Nos Arquivos Dehonianos estão preservadas cerca de 5.000
cartas e postais, entre correspondência enviada e recebida por Léon Dehon.
M. DENIS, «Il progetto di P. Dehon», 416-462. Já encontra-se publicado: L.
DEHON, Correspondence 1864-1871; IDEM, Lettere di P. Dehon a confratelli
italiani; IDEM, Correspondence entre Léon Dehon, Oliva Uhlrich, MarieIgnace. Estão publicadas também as Lettere circolari de Dehon à sua
Congregação. São 38 cartas que abarcam mais de 40 anos de vida da
Congregação de P. Dehon: vão desde 20 de Dezembro de 1882 a 17 de
Junho de 1925. M. DENIS, «Il progetto di P. Dehon», 403-415. Falta ainda
publicar, por exemplo, a vasta troca de correspondência entre Dehon,
superior geral e Falleur, que durante muitos anos foi ecônomo geral da
Congregação.
123
Os Arquivos Dehonianos, em Roma − onde são preservados e editados os
originais dos escritos de Léon Dehon − são uma fonte ainda não totalmente
explorada. Aos poucos sua obra vai sendo recolhida, comparada com
originais e editada. Este trabalho de publicar sua Opera Omnia se concentra
em três direções: Obra Social, Obra Espiritual, Cartas.
NQT III/1886, 55. NHV XV, 53. Junto com Dehon emitiram seus votos
perpétuos os padres: A. Rasset, J. Paris, S. Falleur, M. Legrand, F.-X.
Lamour e J. Herr.
NQT III/1886, 51.
124
125
65
poderia ser interpretada de maneira distorcida. É preciso ter sempre em
conta que Dehon quer ser um eco do Magistério da Igreja, especialmente
dos documentos pontifícios, enquanto confirmação da verdade, na
latitude da caridade126.
Em 1888, a jovem Congregação recebe o Decretum laudis da Santa
Sé, que, entre outras disposições de aprovação, retirava a tutela das mãos
do bispo127. Após este momento a Congregação segue seu curso e
multiplica suas casas por toda a Europa e em outros continentes128. Uma
figura fundamental em toda essa história, certamente, foi P. André
Prévot (1840-1913) que, já sacerdote, entrou na Congregação em 1885 e,
rapidamente, tornou-se mestre de noviços em lugar de Dehon.
Permaneceu nesta função por vinte e três anos e foi o verdadeiro
responsável por formar toda a primeira geração de sacerdotes do Coração
de Jesus129.
No colégio São João, ao contrário, nem tudo ia tão bem. A rápida
expansão também ali deu campo a adversários que desejavam excluir
Dehon da obra. Surgem calúnias de funcionários e professores. Os
alunos, porém, o admiravam. Mons. Thibaudier chega a sugerir, em
1889, que Dehon deixe o colégio. Depois muda de idéia. Mas Mons.
Duval, novo bispo que assume a diocese de Soissons em 1890 tem outro
modo de ver as coisas. As calúnias encontram agora terreno mais
fecundo e, em 1893, servem de claríssimo álibi para que o bispo
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126
127
128
129
Santo Agostinho mostrava-se atento a este binômio. Confissões, Livro XIII,
32.
Isto criou uma situação estranha de modo que durante certo período a
própria Congregação não sabia ao certo se era de direito diocesano ou
pontifício. O bispo chegava a sugerir que ela se fundisse com outra
Congregação. G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 296-297.
NQT XLIV/1924, 111.
Por ocasião da morte de Prévot, Dehon faz o seguinte registro em seu Diário
(26 de Novembro de 1913): «Só há uma palavra sobre ele: é um santo.
Praticava todos os dias heroicamente os conselhos de perfeição. Vivia de fé,
de sacrifícios, de imolação. Não fazia nenhuma concessão à natureza. Foime oferecido pela Providência para formar os meus religiosos. Foi Mestre de
noviços durante 23 anos e os que o são agora continuam nas suas mesmas
tradições». NQT XXXV, 62-63: Novembro de 1913.
66
proponha a Dehon deixar o Colégio mantendo a responsabilidade
financeira pela obra o que, de fato, acontece em 1893 e se consolida em
1896130. Presbíteros diocesanos gradativamente assumirão o direção do
colégio e também o Patronato São José131. Dehon tem 50 anos de idade.
Desde 1888, o seu coração pulsava em outro ritmo. Em uma audiência
com Leão XIII, no dia 6 de setembro havia recebido uma missão que
levou muito a sério: «Prega as minhas Encíclicas»132. Isto caracterizará
fortemente a vida de Dehon até a morte do papa, em 1903. Logo no ano
seguinte funda a revista Le Règne du Cœur de Jésus dans les âmes e
dans les sociétés133. Será um eco fiel do Magistério Pontifício. O título
mostra de maneira muito clara os dois focos da mística de Dehon, ou
seja, o advento do Reino nas almas e nas sociedades, mas centrado no
Coração de Jesus. O Reino do Amor é o eixo do apostolado social de
Dehon e a chave hermenêutica de seus escritos e de seu carisma
fundacional. Somente com esta chave podemos compreender seu
apostolado educacional como parte de seu apostolado social e como uma
das expressões de sua experiência espiritual.
No mesmo momento em que deixa a direção do colégio, em 1893,
assume, a pedido do bispo, a presidência da comissão diocesana de
estudos sociais onde, coletivamente, é elaborado o Manuel Social
Chrétien134. Sua Congregação se consolidava e se expandia por todo o
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130
131
132
133
134
Este capítulo da vida de Dehon, está descrito com detalhes em G. MANZONI,
Leone Dehon e il suo messaggio, 302-308.
G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 318.
NHV XV, 82-83.
As crônicas de Léon Dehon, publicadas em Le Règne, estão reunidas em
OSC V1 (1889-1895) e OSC V2 (1896-1903).
OSC II, 79-296. A partir desta obra, escrita coletivamente, Dehon repercute
a posição crítica da Igreja em relação à crescente influência dos judeus na
sociedade. «São seus o capítulo quarto sobre a maçonaria e o judaísmo, o
capítulo quinto sobre o socialismo e a anarquia, e o apêndice sobre a Obra
dos Círculos». G. MANZONI, Leone Dehone e il suo messaggio, 379. Esta
questão retornará com força nas Conferências Romanas (1897) e no
Catéchisme social (1898). OSC III, 121-123. Para uma visão completa sobre
esta questão: A. BOURGEOIS, «Le Père Dehon et le Règne du Cœur de Jésus,
1893-1903», in Studia Dehoniana 25.2 (1994) 141-160. Para uma visão
67
mundo, pela progressiva emancipação em relação à diocese de Soissons
e pela relação direta com o Papa. Neste espírito de fazer ecoar as
«doutrinas romanas» publica, em 1895, L’usure au temps présent135.
Léon Dehon, neste tempo participava intensamente de congressos e
semanas sociais. Em 1896, publica Le retraite du Sacré- Cœur136. Nesta
obra percebemos como vai se consolidando sua síntese entre sua mística
e seu compromisso social:
O reino do meu Coração na sociedade, é o reino da justiça, da caridade, da
misericórdia, da compaixão para com os pequenos, os humildes e os que
sofrem. Ajudarei a todas as instituições que devem contribuir para com o
reino da justiça social e que devem impedir a opressão dos fracos pelos
poderosos137.
O «Retiro do Sagrado Coração» termina com os «afetos e resoluções»
que denotam os motivos espirituais de Dehon:
Que o vosso reino chegue, Senhor! Que o vosso divino Coração reine entre
nós! É Ele que eu desejo ardentemente e é por ele que eu quero trabalhar.
Mas, antes de tudo, quero vos dar meu coração. Vinde, vivei e reinai em
mim. Dai-me o vosso Espírito, fazei-me conhecer a vossa vontade, dirigi e
orientai toda a minha vida. Fazei de mim um apóstolo ardente e zeloso do
reino do vosso Coração na sociedade138.
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135
136
137
138
sobre o estado atual do debate: A. PERROUX, «El Padre Dehon y la Doctrina
Social de la Iglesia», 36-41.
OSC II (1895) 300-352. É um opúsculo de 64 páginas que identifica a causa
da pobreza nos grandes monopólios internacionais, principalmente das
indústrias e dos bancos. Dehon se interessava por estes temas ligados à
economia desde os tempos de estudante no Colégio Romano. NHV V, 60-62.
O discurso avança para uma apreciação da moralidade da «usura». No
fundo, o livro é uma crítica ao capitalismo nascente, com sua sede de lucro à
custa dos pobres.
OSP 1, 30-236. São Exercícios Espirituais à luz do Coração de Jesus. É
considerada sua primeira obra de espiritualidade, apesar de ter, em 1887,
publicado La dévotion au Sacré-Cœur, que reproduz o sermão pronunciado
na Basílica de Saint-Quentin em 12.06.1885. OSP 1, 11-26.
OSP 1, 233.
OSP 1, 233-234.
68
No início de 1897, dedica-se às «conferências romanas» onde divulga
a nascente Doutrina Social da Igreja, principalmente a partir da Rerum
novarum. No mesmo ano publica Nos Congrès139 e também Les
Directions Pontificales politiques et sociales140. Em 1898 é a vez do
Catéchisme social141. Escreve artigos, multiplica cartas, pronuncia
muitas conferências. A partir de 1900 percebemos que seus escritos
sociais vão dando lugar a outros de natureza mais espiritual. Neste ano
publica Mois du Sacré- Cœur142 e Mois de Marie143. Publica também o
texto das «conferências romanas» sob o título de La Rénovation sociale
chrétienne144.
O início do século XX é marcado por uma situação política cada vez
mais difícil. Leão XIII vai chegando aos últimos anos de sua vida. Em
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143
144
OSC II, 357-377. Pequeno livro escrito a pedido do Cardeal Rampolla,
Secretário de Estado de Leão XIII, para explicar o significado dos
Congressos Católicos, como o de Reims, em 1885, que recebiam a
desaprovação até mesmo por parte do episcopado francês, mas, segundo
Dehon, eram canais de divulgação do ensino social do Santo Padre.
OSC II, 381-474. Dehon explica e apoia as razões de Leão XIII para propor
aos católicos da França, tradicionalmente monarquistas, que aceitem a
República. «A diretiva dada era clara. A República tinha adquirido na
França aquela legitimidade, ao menos provisória, que exige respeito. O
dever e o interesse obrigam-nos a aceitá-la. Aceitai a República, ou seja o
poder constituído que existe entre vós, respeitai-a, submetei-vos a ela como
representante do poder que vem de Deus». OSC II, 416-417.
OSC III, 1-158. É uma espécie de «versão popular» do Manual Social
Cristão, considerado muito complexo para o povo. Consta de quatro partes:
os princípios cristãos na ordem política; os princípios cristãos na ordem
econômica; o dever social; a história social da Igreja.
OSP 1, 417-601. É um comentário das invocações da Ladainha do Coração
de Jesus, escrito em outubro, conforme seu testemunho em NQT XVI/1900,
40.
OSP 1, 341-411. É um conjundo de meditações sobre a Ladainha de Nossa
Senhora, escrito em novembro, conforme seu testemunho em NQT
XVI/1900, 41.
L. DEHON, La rénovation sociale chrétien, (1900) Centro Generale Studi
SCJ, Roma 2001. Reedição com anotações e introdução de A. PERROUX.
Encontra-se também em OSC III, 179-376.
69
1901, Dehon escreve aquela que é considerada por muitos a sua obra
prima de espiritualidade: La vie d’Amour envers le Sacré- Cœur145. A
perseguição aos religiosos na França vai tomando maiores proporções a
ponto de a Congregação fundada por Dehon ser suprimida pelo governo
francês em 1903. A esta altura sua obra já tinha alcançado uma dimensão
internacional. Neste ano Dehon completa sessenta anos de idade e vinte
e cinco de vida religiosa. A revista Le Règne é suspensa. Morre Leão
XIII e tem inicio o pontificado de Pio X.
A partir deste momento multiplicam-se os escritos espirituais de
Dehon, como: Couronnes d’amour au Sacrè-Cœur (1906)146 e Le Cœur
sacerdotal de Jésus (1907)147. Mas ainda encontramos escritos sociais
como Le plan de la Franc-maçonnerie (1908)148. Neste tempo Dehon
retoma também os escritos direcionados para o âmbito interno de sua
Congregação, à qual dedica-se cada vez mais. Em 1912, envia a todos os
religiosos da Congregação uma carta circular onde recorda os anos mais
importantes de sua vida: 1843, 1877, 1912. Esta obra ficou conhecida
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146
147
148
OSP 2, 7-172. Este é, por exemplo, o juízo de H. DORRESTEIJN, Vita e
personalità di P. Dehon, 221. É tambem o parecer de G. MANZONI, Leone
Dehon e il suo messaggio, 466: «Certamente é a mais bela entre as obras de
espiritualidade de P. Dehon, a mais viva, mais orgânica e completa sobre o
tema da caridade».
OSP 2, 175-516. É um conjunto de 93 meditações divididas em três
volumes: Encarnação, Paixão e Eucaristia. A finalidade é servir de apoio
durante Exercícios Espirituais à luz do Coração de Jesus. Dehon escreve esta
obra no mês de maio, contemporaneamente à Le Cœur sacerdotal de Jésus.
NQT XVIII/1903, 56.
OSP 2, 519-628. É uma obra especialmente escrita para os seminaristas e
sacerdotes. O Coração de Jesus é apresentado como modelo de vida
sacerdotal. Dehon ofereceu pessoalmente esta obra a Pio X, em 20 de janeiro
de 1908. NQT XXIV/1908, 17.
OSC III, 381-432. É o último escrito social de Dehon. Trata-se de sua visão
sobre o longo processo de separação entre Igreja e Estado. Em sintonia com
Pio X, ele denuncia os feitos da maçonaria de 1876 a 1905, na França e na
Itália, que teria um plano para enfraquecer e subjugar a Igreja na França,
separando-a de Roma.
70
como Souvenirs149. Organiza também a biografia da Ir. Maria de Jesus
(1865-1879): Sœur Marie de Jésus150.
Está prestes a completar setenta anos. Lançando um olhar sobre toda
sua vida, faz o seguinte juízo:
Como nosso Senhor foi misericordioso para comigo! Ordinariamente não
volta a dar (a sua) união, quando a esbanjamos. Pessoalmente gozei dela por
muito tempo, talvez durante 26 anos: de 1866 a 1892. Depois passei 20 anos
de vida permeada de dias bons e de dias de grande miséria (1892-1912). O
Senhor volta a dar-me agora esta união e espero que se acentue sempre
mais151.
—————————–
149
150
151
OSP 7, 211-229. A carta é enviada de Roma em 14 de março de 1912, ao
entrar no 70º ano de sua vida. É preciso sempre estar atento a esta forma de
considerar o tempo. Hoje é mais comum comemorar o dia em que se
completa 70 anos. No caso de Dehon isto seria apenas em março de 1913.
Está publicado também em Lettere circolari, 318-371.
OSP 6, 7-149. Esta, juntamente com a de P. Rasset, são as duas biografias
escritas por Dehon. Nas duas, ele utiliza o estilo de recolher e organizar os
escritos dos próprios biografados. Dehon considera Ir. Maria de Jesus uma
«vítima de amor ao Sagrado Coração de Jesus». OSP 7, 7. Apesar de ter
começado este trabalho em 1912, o livro teve dificuldades com o Imprimatur
em Roma e acabou sendo impresso apenas em 1914. NQT XXXV/1914, 7273.
NQT XXXV/1913, 6. Os «vinte anos permeados de dias bons e de dias de
grande miséria» referem-se ao período de 1893 a 1913. Na verdade temos
aqui dois decênios bastante característicos: «No primeiro, de 1893 a 1903, P.
Dehon compromete-se intensamente no apostolado social. Em 8 de Junho de
1893 assume a presidência da Comissão dos Estudos Sociais de Soissons.
Em 1894 publica o Manual social cristão, participa em todos os congressos
sociais, escreve artigos e livros sobre a questão social, chega ao cume da sua
atividade social em 1897, com as conferências sociais, em Roma. Participa
na evolução da democracia cristã. Em 1903, com a morte de Leão XIII (20
de julho) pode-se considerar concluída a atividade social de P. Dehon. No
fim do ano suspende também a publicação da revista Le Règne. O segundo
decênio, de 1903 a 1913, é caracterizado pela luta do P. Dehon para salvar a
Congregação contra o combismo, pela internacionalização do seu Instituto e
pelas longas viagens». G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 490491, nota 48.
71
Na verdade, Dehon vive, cada vez mais, uma atração pela vida
mística, descobrindo a Trindade como fonte de todo amor. No último
caderno do seu Diário, já no último ano de sua vida dirá: «Gosto sempre
mais da devoção à Santíssima Trindade»152.
Em 1914, preso pela Guerra em Saint-Quentin, escreve seu
Testamento espiritual153. É o ano em que morre Pio X e começa o
pontificado de Bento XV. Terminada a Guerra, Dehon publica, em 1919,
L’Année avec le Sacré- Cœur154, La vie intérieure; ses principes155, La
vie intérieure; exercices spirituels156 obras de maior reflexão que foram
cultivadas nos anos de reclusão durante a Guerra. É o ano em que
publica também a nova edição − totalmente revista e aumentada − do seu
Directoire Spirituel des Prêtes du Sacré- Cœur de Jésus157 e também o
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153
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156
157
NQT XLV/1925, 16. Esta devoção parece ter se acentuado
significativamente a partir da leitura, em 1915, dos escritos da, então, Beata
Elisabete da Trindade. NQT XXXVI/1915, 47.
L. DEHON, Lettere circolari, 372-381.
OSP 3 e 4. Dehon começa a escrever esta obra maio de 1908. NQT
XXIV/1908, 25. Ao que tudo indica dedicou-se a ela até outubro de 1909,
mas o trabalho tipográfico começou somente em 1913, tendo que ser
interrompido por causa da guerra. NQT XXXV/1913, 2-3. Por isso o original
francês, em dois volumes apareceu apenas em 1919. NQT XLIII/1919, 109.
Trata-se de uma apresentação da espiritualidade do Coração de Jesus,
seguindo o ritmo do Ano Litúrgico.
OSP 5, 7-210. Na verdade, os dois volumes de La vie intérieur, são uma
organização do material utilizado em alguns Exercícios Espirituais que
Dehon pregou. Em 1910 grande parte deste material já estava organizado.
NQT XXV/1910, 14. A publicação, porém, aparece apenas em 1919. NQT
XLIII/1919, 109. É o ano em que o Papa Bento XV institui a cátedra de
Teologia Espiritual na Universidade Gregoriana. Todos os seminários
deveriam seguir este exemplo. Dehon diz na apresentação de sua obra que
pretende dar sua contribuição neste sentido.
OSP 5, 213-386.
OSP 6, 393-528. A última edição deste texto, na vida de Dehon é esta de
1919. Mas a história deste escrito é complexa. O primeiro Diretório
Espiritual era constituído simplesmente dos capítulos VIII e IX das
Constituições de 1886, aprovadas por Mons. Thibaudier. Studia Dehoniana
2 (1972) 45-77. Aos poucos o texto foi servindo para registrar as «luzes de
72
Petit Directoire pour les recteurs158. Em 1920, publica Un prêtre du
Sacré-Cœur; Vie édifiante du R. P. Alphonse-Marie Rasset159 e, em
1922, Études sur le Sacré-Cœur 160. É praticamente o último escrito
importante de Dehon, antes de sua morte, em 12 de agosto de 1925
quando, nas palavras de Mons. Binet, que fez o funeral, «terminou uma
página da grande história religiosa; a caneta caiu das mãos cansadas
daquele que a usava há sessenta anos».161
Percebemos, neste segundo capítulo, que Dehon tem ouvidos de aluno
e coração de educador. Seu chamado principal, à vida religiosa, é uma
constante que procura cultivar. Mais do que um homem de ação, ele se
sentia chamado a ser um homem de contemplação. Mais do que dedicarse ao ensino, ele pretendia voltar-se para a pesquisa. Isto nos ajuda a
entender o lugar que a educação ocupa em sua espiritualidade e em seu
carisma fundacional, que pretendemos analisar um pouco mais de perto
nos próximos capítulos.
—————————–
158
159
160
161
oração» recebidas pela Ir. Maria de S. Inácio e que foram uma das causas da
supressão da Congregação. Alguns textos inéditos que estão nos Arquivos
Dehonianos testemunham este processo de elaboração. AD.B. 3,3; AD.B.
19/2. AD.B. 34/8. Para uma revisão mais pormenorizada do processo de
elaboração: G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 474-478.
OSP 7, 235-251.
OSP 6, 153-385. Dehon utiliza o mesmo método de recolher os escritos do
próprio biografado. Rasset foi o primeiro religioso da Congregação e o
assistente geral de Dehon por toda a vida. É um documento precioso para
conhecer os primórdios da Congregação SCJ sob o ponto de vista de Rasset,
descrito por Dehon. NQT XLIII/1920, 123.
OSP 5, 389-717. Estamos diante de um Dehon com oitenta anos. Tem a
intenção de apresentar sua contribuição para uma Suma Doutrinal do
Sagrado Coração de Jesus. Procura tratar o tema do ponto de vista bíblico,
simbólico, devocional, litúrgico, patrístico e teológico.
La Semaine Religieuse 35 (29.08.1925) 550-557.
73
CAPÍTULO III
A espiritualidade de Léon Dehon
1. As principais fontes
Os principais estudiosos de Léon Dehon concordam que toda a sua
ação apostólica, «sua ação social, a obra educacional, sua Congregação,
tudo procede do culto ao Sagrado Coração de Jesus»1. Ele inclui um
sermão sobre o Coração de Jesus como conclusão do seu livro sobre
educação para indicar que este é o espírito que pretende infundir em seu
apostolado educacional2. Esta espiritualidade é como uma linha
permanente que atravessa toda a sua existência, do Manual do Sagrado
Coração, recebido de sua mãe na infância3, e que foi uma espécie de
primeiro catecismo da fé cristã, até os dois densos volumes de Études sur
le Sacré-Cœur de Jésus4 onde, em 1923, aos oitenta e um anos, Dehon
descreve as lições que aprendeu das diversas escolas de espiritualidade.
—————————–
1
2
3
4
Esta é a visão de: H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon, 399. Ele
concorda com esta conclusão do primeiro trabalho acadêmico feito sobre a
obra social de Dehon, em 1932: R. PRÉLOT, L’ Œuvre sociale du chanoine
Dehon, 14.
OSC IV, 270.
O próprio Dehon reconhece: «Devo tudo à minha mãe, a fé, a piedade, a
educação cristã do colégio de Hazebrouck, que preparou minha vocação».
NQT XIII/1899, 157.
OSP 5, 389-717.
75
Portanto, não é possível entender Dehon, educador, sem, antes,
contemplá-lo como discípulo do Coração de Jesus. Esta experiência
fundamental é o núcleo de sua identidade e informa toda a sua ação
apostólica.
Dehon não é um autor de espiritualidade, preocupado em escrever a
sua síntese pessoal, ou de refletir com originalidade. É apenas um cristão
que deseja, com sinceridade, discernir e viver a sua vocação. A maioria
de seus escritos possui um interlocutor vivo e concreto. É conferencista
mais que escritor. Escreve cartas, livros de devoção, conferências e
exercícios espirituais, artigos bem situados no tempo. Não se pode
encontrar em seus escritos uma síntese definitiva de sua doutrina
espiritual5. Por isso, é necessário lançar um olhar, ainda que breve, sobre
suas fontes para entender o modo como as diversas correntes de
espiritualidade ecoaram em sua experiência de fé6.
Até a adolescência, as principais fontes de Dehon, além do Manual do
Coração de Jesus, foram a leitura assídua da Imitação de Cristo e da
Vida Devota de São Francisco de Sales. Já neste tempo a presença do
diretor espiritual, P. Dehaene, era fundamental para o seu processo de
crescimento. Neste período recebeu a marca do testemunho dos
franciscanos de Hazebrouck. A sensibilidade para com os pobres será
uma constante em toda a sua vida que integrará fortemente sua síntese
espiritual7. Para isso, também contribuiu, de modo muito significativo, a
participação, desde cedo, nas Conferências de São Vicente de Paulo.
No tempo de estudos em Paris, Dehon se aconselhava com o P.
Prével, de São Sulpício. Foi quando teve os primeiros contatos com a
—————————–
5
6
7
H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon, 400. Este autor dedicou
toda a sua vida a estudar a doutrina espiritual de Dehon e confessa a sua
dificuldade diante do volume de escritos, alguns até hoje não classificados e
inéditos, porém reconhece que a corência interna do pensamento de Dehon
garante uma leitura segura de sua identidade espiritual.
Para um estudo mais detalhado das fontes da espiritualidade dehoniana: G.
MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 233-260.
Dehon chegou a professar os votos como membro da Ordem Terceira
Franciscana, no tempo que esteve em Roma, e ao lado de Santo Inácio de
Loyola, escolheu São Francisco de Assis como um dos patronos principais
de sua Congregação.
76
Escola Francesa de Espiritualidade. Será sempre um leitor atento dos
escritos do Cardeal de Bérulle (1575-1629). É esta a origem de sua
experiência de Cristo como sacerdote, de sua preocupação crescente de
unir-se aos mistérios da vida de Cristo e dedicar-se à santificação dos
sacerdotes.
No tempo dos estudos em Roma, os contatos com o Berullismo são
mais intensos e sistemáticos. O centro desta espiritualidade era a
contemplação de Cristo no mistério da sua vida interior, ou seja, na sua
kenosis entendida como oblação «perene e perfeita» ao Pai, em favor da
humanidade. Viver esta oblação significaria unir-se a Cristo neste estado
interior que se manifesta também nos mistérios de sua vida8. Esta era a
linha da formação espiritual adotada pelo Seminário Santa Clara. Seu
diretor espiritual neste período, P. Freyd, da Congregação do Espírito
Santo, teve uma influência determinante sobre a personalidade espiritual
de Dehon. P. Freyd o iniciou nos livros do P. Libermann, na linha de
Bérulle, ensinando-o a «escutar ao interno de sua alma a Voz de
Cristo»9. Era necessário dar atenção à ação do Espírito Santo na alma.
Dehon une esta corrente espiritual à espiritualidade do Sagrado Coração
—————————–
8
9
Encontramos na Escola Francesa de Espiritualidade, uma das primeiras
elaborações teológicas da espiritualidade oblativa e vitimal. Bérulle
professou um «voto de servidão», semelhante ao «voto de vítima»
pretendido por Dehon. A raiz desta experiência espiritual, tanto em Bérulle
como em Dehon, tem origem em uma sensibilidade ao pecado como recusa
do amor de Deus. Dehon identifica, nesta recusa, os males da sociedade.
Bérulle influenciou grande parte dos autores que, por sua vez, tiveram
influência sobre a experiência espiritual de Dehon. Encontramos citados em
sua obra: Jean-Eudes (1601-1680), Louis Lallemant (1588-1635), JeanBaptiste Saint-Jure (1588-1657), Jean-Pierre de Caussade (1675-1751),
Jean-Nicolas Grou (1731-1803), Pascal (1662-1662), Jacques-Bénigne
Bossuet (1627-1704), Luis Maria Grignion de Montfort (1673-1716),
Prosper Louis Pascal Guéranger (1805-1875), Karl Gottfried Traugott Faber
(1786-1863), François Libermann (1802-1852), Mons. Charles-Louis Gay
(1816-1892), Sylvain-Marie Giraud (1830-1885).
H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon, 402. Dehon recorda do P.
Freyd , na última página de seu diário, em julho de 1925, um mês antes de
sua morte, reconhecendo que seus anos em Roma, sob sua direção, foram
um verdadeiro noviciado. NQT XLV/1925, 64-66.
77
de Jesus. Nesta síntese, ele tem como inspiração, entre muitos outros, a
experiência espiritual de São João Eudes e Santa Margarida Maria10.
Já como vigário paroquial em Saint-Quentin, seu diretor espiritual será
o jesuíta, P. Modeste, que o acompanhará nos anos mais difíceis de sua
vida, de 1875 a 1891. Percebemos que, cada vez mais, os Exercícios
Espirituais de Santo Inácio se tornam o principal meio utilizado por
Dehon para realizar sua síntese e seu discernimento espiritual. Ele os
conhecia desde o tempo de estudo no Colégio Romano. Suas grandes
decisões são sistematicamente precedidas por retiros conduzidos
normalmente pelos jesuítas.
Dehon recebeu ainda uma influência importante da espiritualidade
vitimal, principalmente em seu contato com as irmãs Servas do Coração
de Jesus, das quais era capelão, em Saint-Quentin. A reparação vitimal
teve seu ápice na segunda metade do século XIX, mas suas origens
remontam a Santa Lutgarda de Brabante (1182-1246), Matilde de
Magdeburgo (1210-1282), Santa Gertrudes de Helfta (1256-1302).
Dehon conhecia bem essa literatura. Fala delas nas memórias e no Diário
e em alguns de seus escritos espirituais, principalmente L’année avec le
Sacré-Cœur11. Encontramos ainda em seus livros referências a Lutgarda
de Wittchen (1291-1348), que se ofereceu como vítima de expiação pela
Igreja; Santa Catarina de Sena (1347-1380), que também tinha esta
mística reparadora; Santa Liduína de Schiedam (1380-1437) e Santa
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10
11
São João Eudes (1601-1680) procurou fazer esta síntese entre a
espiritualidade de Bérulle e o culto ao Coração de Cristo. Ele mesmo emitiu
o voto de vítima e a fonte de sua espiritualidade é a «oblação de amor».
Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690) teve o mérito de popularizar o
culto ao Coração de Jesus. Também ela viveu a mística da oblação
reparadora e da imolação. Sua espiritualidade profundamente eucarística
também tem a marca da sensibilidade para com o pecado como recusa ao
amor de Deus. Sua experiência de fé marcará fortemente o carisma
dehoniano. Mas Dehon estava atento também à experiência espiritual de
seus contemporânos, como Tereza de Lisieux. Escreverá em seu Diário:
«Nascemos do espírito de Santa Margarida Maria e aproximamo-nos do da
irmã Teresa de Lisieux». NQT XLV, 55: Abril 1925.
OSP 4, 425-488.
78
Colecta de Corbie (1381-1447). Bem antes de Santa Margarida Maria, a
linguagem da reparação já era uma corrente típica da piedade cristã12.
A difusão da espiritualidade vitimal na França é ampla e complexa.
Apenas como indicação, poderíamos recordar as Irmãs Vítimas do
Sagrado Coração, de Marselha, fundadas por Julie-Adéle de GerinRichard (1793-1865); o abade Louis Maulbon d’Arbaumont (18131882), que assumiu o nome religioso Jean du Sacré-Cœur, foi capelão
das irmãs vítimas de Marselha e ali fundou uma congregação de
sacerdotes-vítimas, que não prosperou13; Miguel Garicoïts (1797-1863),
inspirado em São João Eudes e nos escritos de Bossuet fundou a
Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Betharram, tendo
como ideal a oblação vitimal de Cristo, que se consagra inteiramente à
Vontade do Pai14; Silvano Giraud (1830-1885) leva esta espiritualidade
vitimal para os Sacerdotes de La Salette, onde confirma a sua vocação
meditando as dores de Maria ao pé da Cruz; Giraud é um dos maiores
propagadores da espiritualidade vitimal e influenciou Léon Dehon, que
aconselha a seus religiosos a leitura dos seus livros15; Madre Verônica do
Coração de Jesus (1825-1883), fundou em 1857 o Instituto das Irmãs
Vítimas do Sagrado Coração de Jesus16.
É preciso dizer ainda que o olhar de Dehon para as fontes é
inteligente. Sua inteligência da fé utiliza como referencial permanente a
Sagrada Escritura, a Tradição e o Magistério. É supreendente que em
suas conferências aos primeiros noviços da Congregação, comece com
um comentário às «Bem-aventuranças». A presença dos Santos Padres
em seus escritos é intensa. Mas chama a atenção, principalmente, o
modo como ele lê e repercute as Encíclicas. O seu ultramontanismo
—————————–
12
13
14
15
16
A. TESSAROLO, Il culto del S. Cuore, 37-41.
M. DENIS, «La spiritualité victimale en France», 47-70. N. CHAUFFAILLES,
Le Réverend Père Jean du Sacré-Cœur.
M. DENIS, «La spiritualité victimale en France», 70-80.
DES (1908) 101-102.
Madre Verônica, em 1867, pensava em fundar uma congregação de
sacerdotes-vítimas, juntamente com P. Giraud, mas renunciou a este projeto
depois que Dehon fundou os Oblatos do Coração de Jesus. M. DENIS, «La
spiritualité victimale en France», 121-148.
79
evoluirá em direção à sensibilidade missionária e ao compromisso de
pregar a Doutrina Pontifícia.
2. Dimensões da espiritualidade dehoniana
É do encontro de todas estas correntes de espiritualidade que nasce a
síntese de Dehon. Isto acontece em um processo de crescimento que
parte de uma primeira fase de intenso discernimento da Vontade de
Deus, seguida de um apostolado educacional e social marcante,
terminando com a convergência de todos os seus esforços para uma vida
interior cada vez mais profunda. O discernimento é feito na
disponibilidade oblativa, o apostolado é realizado na solidariedade
reparadora e a vida interior é marcada pela comunhão eclesial. Pensamos
que a espiritualidade de Léon Dehon pode ser compreendida no quadro
destas três fases, que não se excluem nem se sucedem. São, antes, três
grandes dimensões de sua vida interior, três lugares privilegiados de sua
experiência de fé, três pilares de sua identidade espiritual, sempre
presentes, mas que, em determinado momento, aparecem com mais
intensidade. Para expressar esta identidade de modo sintético, podemos
afirmar que Dehon é um cristão que procurou viver sua vida segundo o
Espírito, na comunhão à oblação reparadora de Cristo ao Pai, em favor
da humanidade17. Vejamos, separadamente, cada uma destas dimensões
que na vida de Dehon, aparecem sempre inseparáveis e revelam a lógica
íntima de sua espiritualidade: no Coração de Deus, no Coração da
Humanidade e no Coração da Igreja.
No Coração de Deus: Ecce venio
O princípio e fundamento da espiritualidade de Léon Dehon é a
experiência do amor de Deus pela contemplação do lado aberto de Cristo
na cruz (cf. Jo 19,37; Zc 12,10), como fonte de salvação (cf. Is 12,3). Ele
procura viver a experiência que o Apóstolo Paulo traduziu nestas
palavras: «Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no filho de
—————————–
17
Inspiramos esta afirmação sintética da espiritualidade de Dehon, na leitura
de sua experiência de fé feita pelas atuais Constituições SCJ. CST (1985) nº
6.
80
Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim» (Gal 2,20)18.
Esta disposição permanente, de estar unido à Cristo na sua oblação de
amor ao Pai, em favor da humanidade, atravessa toda a história de
Dehon e é o princípio unificador de sua vida espiritual. Um texto do seu
tempo de seminário, em Roma, revela esta disposição fundamental:
Nosso Senhor logo tomou todo o meu interior e ali criou as disposições que
deviam ser a nota dominante da minha vida, apesar de minhas fraquezas: a
devoção ao Coração de Jesus, a humildade, a conformidade à sua vontade, a
união com Ele, a vida de amor. Este devia ser o meu ideal e minha vida para
sempre. Era isso que Nosso Senhor me mostrava e por esta via me conduzia
continuamente. Deste modo me preparava para a missão que me destinava
para a obra do seu Coração19.
Por isso, ele escolheu inicialmente para a sua Congregação o nome de
«Oblatos do Coração de Jesus»20. Hoje a maioria dos estudiosos de sua
espiritualidade concorda que o amor oblativo é a principal característica
do carisma dehoniano21.
Dehon exprime outras nuanças da mesma oblação por meio de
palavras como imolação, vítima, sacrifício e abandono22. É uma
espiritualidade sacerdotal, inspirada no Ecce venio de Jesus, em sua
obediência ao Pai, que se imola em favor da humanidade (Hb 10,7). O
Ecce ancilla de Maria expressa a mesma atitude fundamental de
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18
19
20
21
22
Esta é a frase com a qual as atuais Constituições SCJ traduzem a experiência
de fé de seu fundador. CST (1985) nº 2.
NHV IV, 183.
No primeiro capítulo das Constituições de 1881 pode-se ler: « o nome de
Oblatos foi escolhido para exprimir esta vida de imolação». M. DENIS, «Il
progetto di P. Dehon», 12-16.
Cf. A.VASSENA, «Il primato dell’oblazione d’amore nel carisma di P.
Dehon», in Dehoniana 3 (1979) 143-156. Os dehonianos fazem diariamente
seu «ato de oblação» em forma de prece, reafirmando esta união à oblação
reparadora de Cristo, para a Glória do Pai e a salvação da humanidade.
Dehon recomenda isso expressamente em uma Carta Circular de 1887:
Lettere circolari, 394-399.
H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon, 407-409.
81
disponibilidade (Lc 1,38)23. Viver a oblação significa unir-se a Cristo,
sacerdote e vítima24. A Eucaristia é o ponto supremo desta união de amor
e a adoração eucarística é o prolongamento desta esperiência
fundamental de contemplação do amor de Deus. Dehon afirma: «A
Eucaristia é o foco, a base, o centro de toda a vida, de toda a obra, de
todo o apostolado. O operário do Evangelho que não vive da Eucaristia
não possui mais do que uma palavra sem vida e uma ação sem
eficácia»25.
O lugar desta experiência de amor é a Trindade, já que Dehon vive
este abandono26 à Vontade do Pai, em união com o Coração de Jesus
formado pelo Espírito Santo, que é o «Amor substancial» de Deus27.
—————————–
23
24
25
26
27
As atuais Constituições da Congregação dos Sacerdotes do S. Coração de
Jesus, aprovadas definitivamente em 1985, dizem: «Ao fundar a
Congregação dos Oblatos, Sacerdotes do Coração de Jesus, Padre Dehon
quis que os seus membros unissem, de forma explícita, a sua vida religiosa e
apostólica à oblação reparadora de Cristo ao Pai pelos homens. Esta foi a sua
‘intenção específica e originária’ bem como ‘a índole própria do Instituto’.
Como dizia o próprio Padre Dehon: ‘Nestas palavras: Ecce venio... Ecce
ancilla... encerram-se toda a nossa vocação, toda a nossa finalidade, o nosso
dever, as nossas promessas’ (DES I, § 3)». CST (1985) nº 6.
Queria que seus religiosos fizessem uma quarto voto: de vítima. Ele mesmo
o fez em sua primeira profissão religiosa em 1878. Porém, a Igreja somente
aprovou uma promessa de vítima, pelas dificuldades de definir a matéria
deste quarto voto.
NQT XXV/1910, 46-47.
Isto aparece claramente em seu Diretório Espiritual. DES, VI, § 22.
«Abandono é para P. Dehon a primeira e a última palavra da vida
espiritual». H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon, 404. Já no
tempo de seminário Dehon revela esta disposição interior: «Com [o Coração
de Jesus] eu quero praticar a união ao seu Pai, por meio de atos freqüentes de
amor, de adoração, de ação de graças, de oblação, de abandono, de
esquecimento de mim mesmo, de desprendimento das criaturas». NHV IV,
185.
H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon, 410-411. Dehon faz aqui a
síntese entre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e o Berullismo,
apoiado na obra de P. Libermann e P. Lallemant: «A devoção ao Espírito
Santo é um pouco deixada de lado; mas é exatamente por meio do Espírito
82
Apesar de viver essa mística trinitária, Dehon confessa que em sua vida
encontrou muitas dificuldades para «honrar e amar» a Santíssima
Trindade. Esta é a sua grande descoberta espiritual de seus últimos anos,
vividos sob o forte signo da Trindade, que se torna «a oração do último
período da vida»28. A leitura da última página do seu Diário, dois meses
antes de sua morte, revela esta experiência de maturidade espiritual:
Junho, mês do Coração de Jesus, mês da Santíssima Trindade, mês do
Espírito Santo, mês do Santíssimo Sacramento. Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo. Glória ao Pai, que é meu pai e criador. Glória ao Filho, que se
fez meu irmão e salvador. Glória ao Espírito Santo que é meu guia e a alma
da minha alma29.
No coração da humanidade: Adveniat Regnum Tuum
Uma segunda dimensão fundamental da espiritualidade de Dehon é a
constatação da recusa ao amor de Cristo como «causa mais profunda dos
males da sociedade nos planos humano, pessoal e social»30. É uma
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28
29
30
Santo que nos vêm todas as graças de luz e de vida sobrenatural e de
santificação. Esta devoção deve ser ligada à do Coração de Jesus. O Espírito
Santo é como o coração espiritual de Deus, é seu amor substancial. O
Espírito Santo formou o Sagrado Coração de Jesus. [...] O Sagrado Coração
de Jesus deve reinar na sociedade pelo Espírito Santo». L. DEHON, Le Règne
(1897) 331.
NQT XLV/1925, 11. Dehon diz ainda: «Gosto cada vez mais da devoção à
Santíssima Trindade. Deus Pai, é meu Pai e meu Criador. Ele é meu Pai,
mais que aquele que tive na terra. Devo-Lhe tudo, o ser e a vida. Amo-O
extremamente e muito filialmente, quero a sua glória e o seu reino. O Filho
de Deus tornou-se meu Irmão pela Encarnação. Deu a sua vida por mim,
vem a mim na Eucaristia. Amo-O sem medida, inclino-me incessantemente
sobre o seu ombro como São João, quero viver com Ele e amá-l’O sempre
mais. O Espírito Santo é meu diretor, meu guia, a alma da minha alma e
como uma mãe para mim. Quero viver com Ele, escutá-l’O em tudo e
mostrar-me seu discípulo amante e fiel. O Glória ao Pai e o Credo são
homenagens à Santíssima Trindade. NQT XLV/1925, 16.
NQT XLV/1925, 61.
Esta é a forma como as atuais Constituições dos Dehonianos exprimem a
dimensão social da espiritualidade de seu fundador. CST (1985) nº 4.
83
espécie de experiência negativa que chega ao amor de Deus a partir da
face de Cristo, desfigurada nos irmãos pelo pecado da humanidade.
Dehon é muito sensível à indiferença ao amor de Deus, especialmente
por parte dos sacerdotes e consagrados. Consciente do laço de
solidariedade que une a Igreja como uma família, como comunhão dos
santos, ele quer corresponder ao amor menosprezado de Deus, pois
entende que esta união reparadora irá contribuir para instaurar o Reino
do Coração de Jesus «nas almas e nas sociedades». Segundo Dehon, «é
necessário que o culto do Coração de Jesus, começado na vida mística,
nas almas, desça e penetre na vida social dos povos. Ele trará o soberano
remédio para os males cruéis do nosso mundo moral»31. O seu
apostolado social, principalmente junto aos jovens, operários e pobres, é
marcado por este princípio que ele assumiu como lema da sua
Congregação: Adveniat Regnum tuum. Se a disponibilidade, a oblação,
caracterizam a primeira dimensão da espiritualidade dehoniana, a
solidariedade, a reparação, completam esta atitude fundamental. A oferta
de si implica na união à missão reparadora de Cristo. Em resposta a um
sacerdote que afirmava que o fundador queria uma congregação mais de
consoladores que de reparadores, Dehon afirma:
Não quis fazer uma obra de consoladores sem reparação. Quis fazer uma obra
de reparação e de vítimas. Não adotei nunca o nome de vítimas; tomei o
nome de Oblatos que vinha a dizer a mesma coisa. Nós somos sacerdotes
vítimas. O nosso espírito próprio é spiritus amoris et immolationis. Vivei
bem o nosso ato de oblação e sereis uma boa vítima do Sagrado Coração32.
Reparação é um conceito soteriológico típico do universo de
linguagem da espiritualidade do Coração de Jesus. É uma forma de
exprimir a complexa realidade da salvação. As novas Constituições
dehonianas usam uma multiplicidade de outras palavras para exprimir
esta mesma realidade, por exemplo: reconciliação, restauração, redenção,
cura.
—————————–
31
32
OSC I, 3.
AD.B. 44/7. Carta ao P. Guilhaume, 18 de fevereiro de 1913. Diz ainda:
«Não escolhi o nome de vítimas; adotei o de Oblatos que me dizia a mesma
coisa. Poderíamos chamar-nos vítimas em Marselha; em Saint-Quentin teria
sido o cúmulo da loucura».
84
Dehon é muito sensível ao pecado [...]. Ele conhece os males da sociedade
[...]. Procura remediar as deficiências pastorais da Igreja de seu tempo [...].
Espera que os seus religiosos sejam profetas do amor e servidores da
reconciliação dos homens e do mundo em Cristo (cf. 2Cor 5,18). Assim
comprometidos com Ele, para reparar o pecado e a falta de amor na Igreja e
no mundo, prestarão, com toda a sua vida, com as orações, trabalhos,
sofrimentos e alegrias, «o culto de amor e de reparação que o seu Coração
deseja»33.
Assim como Dehon procura ouvir o Coração de Deus, também é
solícito em ouvir as pessoas. Sua espiritualidade não é intimista, mas
provoca os sacerdotes a não ficarem apenas ocupados com o culto, mas a
«ir ao povo»34. Seu método pastoral nasce desta mística da escuta e parte
sempre de um demorado e minuncioso olhar sobre a realidade.
Normalmente, ele anota tudo, com detalhes, por exemplo, sobre
economia, política, cultura. Faz parte integrante de sua identidade
espiritual esta contemplação da realidade. Desta forma, o estudo adquire
para ele um significado místico. Ele mesmo diz: «É necessário estudo,
ação e oração. Precisamos de mestres, apóstolos e santos. Precisamos de
apóstolos, homens de ação. O povo não vem mais a nós; nós devemos ir
a eles!»35. Sua solicitude no campo do apostolado educacional faz todo
sentido nesta segunda dimensão de sua espiritualidade.
Da contemplação, do estudo, Dehon passa para a ação social de um
modo natural e, às vezes, surpreendente, se pensarmos que ele viveu a
maior parte de sua vida no século XIX, na aurora da Doutrina Social da
Igreja:
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33
34
35
CST (1985) nº 4-7. Textos seletos. O nº 7 é inspirado em texto do Diário de
Dehon: NQT XXV, 5. Em outro trecho as Constituições dizem: «É assim que
entendemos a reparação: como acolhimento do Espírito (cf. 1Ts 4,8), como
resposta ao amor de Cristo por nós, comunhão no seu amor ao Pai e
cooperação na sua obra redentora no coração do mundo». CST (1985) nº 23.
Todos os grifos são nossos.
Dehon se une a este apelo do Papa Leão XIII. OSC II, 153. Para um
comentário sobre a dimensão apostólica da espiritualidade dehoniana: G.
MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio, 348-378.
OSC III, 367-368.
85
Entre nós se compreendeu que a esmola é necessária em casos de miséria
extrema e como exercício pessoal de altruísmo. Mas não é com ela que
vamos resolver a questão social. Por mais generosos que possamos supor os
ricos, a sua caridade nunca será mais do que paliativo insuficiente. Nós
pedimos um tempo normal de trabalho para os homens, as mulheres e as
crianças. Nós pedimos também um mínimo de salário para todos36.
No coração da Igreja: Sint unum
A terceira dimensão que julgamos estruturante da espiritualidade de
Léon Dehon é o seu sensus Ecclesiæ. É no Coração da Igreja que ele
entra em comunhão com o Coração de Cristo e com o Coração da
humanidade. Isto pode ser facilmente percebido, por exemplo, em seu
ultramontanismo militante, em sua solicitude pastoral em Saint-Quentin,
em sua preocupação com a santificação dos sacerdotes, em sua atenção
permanente aos bispos, no seu ardor missionário37 e na divulgação das
doutrinas pontifícias38. Ele sofreu diante das insuficiências pastorais da
Igreja de sua época e viveu intensamente a crise das rupturas entre a
Igreja e o nascimento da modernidade.
Já em seu tempo de estudante em Paris encontramos esta orientação
para a comunhão com a Igreja, conforme observamos neste comentário
sobre a participação na Quaresma na catedral de Notre Dame: «Era feliz
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36
37
38
OSC III, 271.
Diz Dehon em seu Diário: «O ideal da minha vida, que formulava com
lágrimas na minha juventude, era o de ser missionário e mártir. Parece-me
que esse voto cumpriu-se. Sou missionário pelos cem missionários que
enviei a todas as partes do mundo; e mártir também, pelos acontecimentos
que Nosso Senhor permitiu a partir do meu voto de vítima, sobretudo entre
1878 e 1884 [...]». NQT XLV/1925, 1-2.
O pedido de Leão XIII para que pregasse as suas Encíclicas foi levado à
sério e marcou profundamente sua identidade espiritual: «Eu quis contribuir
para a promoção das classes populares mediante o reino da justiça e da
caridade cristã. Gastei nisso uma boa parte da minha vida. Leão XIII quis
considerar-me um dos fiéis intérpretes das suas Encíclicas sociais. Mas
também neste campo o trabalho deve ser continuado. As massas não estão
ainda convencidas que a Igreja detém as soluções verdadeiras e práticas para
todos os problemas sociais». OSC VII, 224-225.
86
de pertencer ao grande povo cristão. Ali existe um movimento de fé e de
amor da Igreja que se comunica às almas»39. Isto vai sendo, aos poucos,
traduzido em uma atitude mística de comunhão com a Igreja que o
marcará para toda a vida: «Rezar em nome da Igreja, rezar com Jesus por
todas as almas que lhe são queridas, é uma missão tão bela»40.
Certamente foi a experiência como estenógrafo do Vaticano I que
marcou definitivamente o senso de Igreja de sua espiritualidade:
Que belo dia! Que espetáculo comovente! Em torno ao Vigário de Jesus
Cristo, Legislador e Cabeça suprema da Igreja, todos os sucessores dos
Apóstolos, todos os pastores das dioceses estavam reunidos para dar
testemunho da doutrina do Evangelho. É Pedro vivendo e falando sobre sua
tumba, e em torno a ele, sobre a mesma tumba, a Igreja inteira se prepara
para escutar o Espírito Santo e proclamar os seus ensinamentos. Que
magnífico testemunho de unidade da Igreja e laços da caridade e da
obediência que fortalecem e perpetuam esta unidade!41
Porém, a experiência de Igreja em Dehon, não se reduz ao aspecto
institucional, ou visível. Sua comunhão mais profunda é com a Igreja
enquanto mistério. Com toda a tradição cristã, vê a Igreja como esposa
nascida do Coração de Jesus aberto na cruz: «Como Eva saiu do lado de
Adão durante o sono extático, a Igreja, esposa do Salvador, saiu do
próprio Coração de Jesus durante o sono místico da cruz»42. Ele afirma
que é o amor deste divino Coração que plasmou a Igreja e a envia para
continuar sua missão sobre a terra, levando a todos os «frutos deliciosos»
do Coração de Jesus, que são os sacramentos figurados no sangue e
água, que brotam do lado aberto43.
—————————–
39
40
41
42
43
NHV I, 33v.
NHV V, 132.
NHV VII, 1 – 6.
OSP 2, 385-386. Diz ainda: «O Coração de Jesus é o sol que nos ilumina
através da sua Igreja, esta Igreja que Jesus concebeu na atenção do seu
Coração por nós, que ele adquiriu e fundou pelo sangue do seu Coração. O
Coração de Jesus aparece no seio da Igreja como o astro que tudo ilumina,
tudo anima e tudo vivifica». OSP 1, 504.
OSP 2, 385-386. Para Dehon, os sacramentos são «o dom do Coração de
Jesus». OSP 2, 49.
87
Utilizando a expressão difusa em seu tempo «Coração Eucarístico de
Jesus», Dehon entende o «coração místico do seu Corpo místico, da
santa Igreja de Cristo»44. A Eucaristia é o lugar onde Dehon vive
permanentemente sua mística de comunhão eclesial. A celebração
eucarística se prolonga em «missa contínua»45 na adoração eucarística
diária. Ele a entende como um «serviço à Igreja»46. É um ato que integra
as três atitudes fundamentais da espiritualidade dehoniana: comunhão,
oblação e reparação.
Há uma dimensão celebrativa neste sint unum se pensarmos na
importância da comunhão dos santos para o conceito de reparação do
modo como Dehon o concebeu, ou seja, o bem que um faz, por um
mistério de solidariedade, beneficia todo o corpo47. Assim, a união
eucarística é uma forma privilegiada de exercício desta oblação
reparadora. É neste sentido que podemos entender a Adoração
Eucarística Reparadora.
3. «A Vida de Amor»
A «vida de amor» como eixo dos escritos espirituais
As três dimensões da espiritualidade de Léon Dehon, que acabamos
de identificar, não são mais do que expressões da mesma «vida de amor»
que atravessa toda a sua existência e dá coerência à sua «vida interior».
Isto pode ser percebido claramente em seus escritos de espiritualidade,
que se tornam mais abundantes na última fase de sua vida, a partir de
1896 com La Retraite du Sacré-Cœur, escrito ainda no auge de seu
apostolado social. Ele insiste que o Reino do Coração de Jesus é o
«Reino de justiça, de caridade, de misericórdia, de piedade para com os
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44
45
46
47
OSP 2, 430.
L. DEHON, Couronnes d'Amour, III, 199. Citado em CST (1985) nº 5.
Para realizar este «serviço» Dehon diz que sua Congregação terá «Casas de
Adoração». NQT VI/1893, 23v. Atuais Constituições dos dehonianos
reafirmam a centralidade da Adoração Eucarística como missão. CST (1985)
nº 31 e 83.
NQT IV/1888, 51r.
88
pequenos, os humildes e os que sofrem»48. Este livro é uma tentativa de
exprimir a lógica espiritual dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio, à
luz da espiritualidade do Coração de Jesus, colocando em primeiro plano
a «vida de amor»49.
A partir daí, ele multiplica obras do mesmo gênero e com o mesmo
eixo central. Por exemplo, comenta as invocações da Ladainha do
Coração de Jesus50; propõe 93 meditações orantes sobre o amor de Deus
nos mistérios da vida de Cristo, com suas Couronnes d'amor51; procura
traduzir esta «vida de amor» para seminaristas e sacerdotes com Le Cœur
sacerdotal de Jésus52; propõe meditações para cada dia do ano com
L'Année avec le Sacré-Cœur53; e procura sistematizar o significado da
«vida de amor» em duas obras, cada uma em dois volumes, que publica
ao final da vida: La Vie intérieure54 e Études sur le Sacré-Cœur de
Jésus55. Porém, o escrito que melhor retrata sua espiritualidade centrada
no amor de Deus é De la Vie d'Amour envers le Sacré-Cœur56.
Escolhemos esta obra para nos aproximarmos um pouco mais do núcleo
da experiência espiritual que transparece em seus escritos.
O livro «La Vie d’Amour»
São trinta e três meditações, sistematicamente organizadas, onde
Dehon apresenta o Amor de Deus como caminho de crescimento
espiritual. Sabemos através de seu Diário que, já em 1897, ele se
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48
49
50
51
52
53
54
55
56
OSP 1, 233.
OSP 1, 31.
O próprio Dehon diz: «Outro bom mês de trabalho. Escrevo o Mês de Maria.
Com não menores alegrias espirituais que o Mês do Sagrado Coração. Estes
dois meses são para mim como um grande curso de exercícios espirituais.
NQT XVI/1900, 41: Novembro de 1900. OSP 1, 237-412.
OSP 2, 175-516. O original foi publicado em três volumes, com 634 páginas.
OSP 2, 519-628.
OSP 3 e 4.
OSP 5, 7-386.
OSP 5, 389-717.
OSP 2, 7-172
89
dedicava a estas meditações57. Porém, a maioria delas parecem ter sido
escritas no inverno de 190158. Dehon tinha o hábito de escrever
meditações em seu tempo livre59. As meditações La Vie d’Amour foram
antes publicadas na revista Le Règne a partir de julho de 1897 até junho
de 190160.
A principal fonte desta obra é a Sagrada Escritura. Porém, percebe-se
que Dehon inspirou onze meditações no livro de P. Jean-Nicolas Grou,
Les Meditations en forme de retraite sur l'amour de Dieu61. Além disso,
utilizou um manuscrito intitulado La voie d’amour em pelo menos cinco
de suas meditações62. Portanto, não estamos diante de uma obra que
prima pela originalidade literária nem era esse o objetivo de Dehon. É
antes a melhor síntese daquilo que ele viveu como itinerário espiritual e
propõe como caminho de discipulado. O Amor é apresentado como a
pedagogia de Deus para nos fazer crescer na «vida interior». Todo o
livro é construído como um diálogo entre o Mestre e o Discípulo. A
leitura destas páginas revela que não existe apenas uma espiritualidade
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57
58
59
60
61
62
Apesar de dizer-se muito ocupado, Dehon afirma: «Todavia ainda pude
escrever algumas meditações sobre a vida de amor ao Coração de Jesus».
NQT XII/1897, 41.
H. DORRESTEIJN, Vita e personalità di P. Dehon, 221.
«Trabalho redigindo meditações. Será a ocupação de todos os meus tempos
livres durante vários meses». NQT V/1890, 6v. «[...] escrevo todos os dias as
minhas duas páginas de meditação». NQT XI/1895, 1r.
«As meditações publicadas em Le Règne são 37, enquanto no livro: De la vie
d'amour são 33, das quais 31 são iguais às publicadas em Le Règne enquanto
2 são novas (a 16ª e a 17ª)». G. MANZONI, Leone Dehon e il suo messaggio,
467, nota 87.
P. Grou (1731-1803) é um jesuíta que escreveu muito sobre espiritualidade e
é citado com freqüência nos escritos de Dehon. J.-N. GROU, Méditations en
forme de retraite sur L’Amour de Dieu.
JEAN CORBANIE, Recherche sur la formation de la Vie d'amour in «Etudes
Dehoniennes», Cahiers Dehoniens 2, Lyon 1966, 73-92. A. CAVAGNA, «Vie
d'amour» e «Voie d'amour» in Dehoniana 5-6 (1973) 112-113. Segundo este
autor o manuscrito é de próprio punho de Dehon, porém não tem o seu estilo
característico. Imagina-se que sejam apontamentos que depois foram
utilizados para a elaboração de La vie d’Amour.
90
subjacente à proposta pedagógica de Dehon, mas também há uma
pedagogia inerente à sua espiritualidade. La vie d’Amour é o livro onde
estas duas dimensões estão mais próximas e implicadas, o que pode
servir como chave de leitura para toda a sua obra, nos mais diversos
campos.
Estamos diante de uma síntese espiritual da maturidade, que será
retomada em 1919, na quarta parte do primeiro volume do seu manual de
teologia espiritual La vie intérieure63. Ali Dehon apresenta alguns
autores que estudou, seguidos de seis meditações sobre La vie
d’Amour64. Isto revela o núcleo da sua espiritualidade que, além de ser
fruto de uma experiência de fé, foi objeto de estudo e reflexão. A «vida
de amor», foi a maneira mais sintética com que Dehon conseguiu
expressar sua experiência de encontro com Deus, no Coração de Jesus.
La vie d’Amour pretende ser um auxílio para «conservar e multiplicar
os frutos dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio», como
—————————–
63
64
Dehon revela no prefácio da obra que foi motivado a escrever pelo fato de o
Santo Padre haver criado a cadeira de ascética na Universidade Gregoriana.
OSP 5, 9.
A primeira parte de La vie intérieure apresenta «noções gerais e princípios
gerais» da vida interior, onde aparecem citados com algum destaque o
Cardeal de Bérulle, São Francisco de Sales, Santo Agostinho, P. Lallemant.
Na segunda parte encontramos as diversas «escolas de espiritualidade», com
destaque para a escola Beneditina, a Escola Franciscana, a Escola
Dominicana e a síntese de todas que ele entende ter sido realizada por Santo
Inácio de Loyola. Na terceira parte, «algumas vias em especial», Dehon
apresenta a importância de ser conduzido pelo Espírito, na teologia de P.
Lallemant; a contemplação, em Santo Tomás de Aquino; a oração em P.
Libermann; a comunhão espiritual, em P. François Vouillé; e a paz interior,
em Fénelon. Todo este estudo é uma preparação para a quarta e última parte
em que Dehon aprofundará o tema da «Vida de Amor». Os autores que
precedem as seis meditações são: sobre a união com Maria: Grignon de
Monfort, P. Giraud; Santos Padres e Doutores da Igreja: São Basílio, São
João Cristóstomo, Santo Agostinho, São Bernardo, São Gregório Magno,
São Boaventura, Santo Tomás de Aquino. Em seguida, apresenta «os
melhores autores de ascética»: Santo Inácio de Loyola, Rodriguez, São
Francisco de Sales, Bossuet, Fénelon, São João Eudes, Santo Afonso de
Ligório e P. Lallemant. OSP 5, 7-210.
91
prolongamento da contemplatio ad amorem65. O livro é estruturado em
duas meditações preliminares; sete sobre os motivos do amor, dos quais
os principais são o desejo e a ordem divina, e os benefícios de Deus; seis
meditações sobre diversas formas do amor: a gratidão, a benevolência, a
compaixão, a união e o abandono; treze meditações sobre os meios para
adquirir e desenvolver o fervor do amor; e cinco meditações sobre os
efeitos do amor, que ajudam a reconhecer que se está no bom caminho.
Cada meditação tem um tema específico e todas têm a mesma
estrutura interna em três partes. A primeira é a Préparation pour la
veille, onde Dehon apresenta um texto bíblico, em latim e em francês, e
o sumário da reflexão. Deveria ser lido pelo exercitante no dia anterior.
A segunda parte é a Méditation onde o tema é desenvolvido em uma
linguagem de reflexão seguida de breves textos onde coloca estas lições
na boca do próprio Salvador, que fala como um Mestre ao seu discípulo.
Algumas vezes o próprio discípulo faz perguntas ao Mestre. A terceira
parte são Affections et resolutions, onde o discípulo diz ao Mestre quais
são seus propósitos a partir daquela meditação, que termina com um
Bouquet spirituel, onde Dehon seleciona algumas breves frases bíblicas
relacionadas com o tema meditado.
Nas duas meditações preliminares, Dehon afirma que são três os
caminhos que conduzem a Deus: «Há almas que Nosso Senhor conduz
pelo temor, outras que atrai a si pela esperança, outras que prende a si
pelo amor»66. Porém, a «via do amor» é a mais perfeita (cf. 1Cor 12,31),
pois compreende, ultrapassa e purifica as outras duas; é a mais simples,
pois conduz tudo a um motivo dominante; é a mais doce e fácil, pois «o
coração é feito para amar»67.
O amor só tem um método, o de seguir o impulso da graça, que nos leva a
amar. Só tem uma prática, que é de amar em todo o tempo, em todo o lugar,
em toda a situação. Só tem um ato ao qual todos os outros se reportam; um
motivo, amar porque ama; um fim, amar por amar68.
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65
66
67
68
Dehon revela este propósito no prefácio de sua obra. OSP 2, 9. Grifo nosso.
OSP 2, 12.
OSP 2, 16-20.
OSP 2, 18.
92
As sete meditações sobre os «motivos do amor», começam afirmando
que o «fogo que Jesus veio trazer à terra, é o amor divino. Veio viver e
sofrer entre nós para que todos O amemos e para que amemos o seu Pai.
É o objeto da sua missão» (cf. Lc 12,49; Lv 6)69. Mas «este fogo não se
ateará, ou pelo menos não se manterá e não crescerá nos nossos
corações, se não o alimentarmos, se não o aumentarmos com a nossa
cooperação assídua»70. Este diálogo fecundo de salvação entre o Amor
de Deus e participação humana é o pano de fundo de toda a reflexão de
Dehon. Esta possibilidade de colaboração humana na salvação operada
por Cristo é o fundamento teológico de sua oblação de amor, traduzida
em termos de «reparação»71. Segundo Dehon, o «fogo do amor sobre a
terra», além de ser um desejo de Nosso Senhor é um mandamento de
Deus (cf. Mt 22,34-38), necessário porque o pecado desviou a natureza
humana do caminho original. Porém, mais do que obedecer a um
mandamento, a «vida de amor» consiste em viver os benefícios de Deus,
que na sua Paternidade providente nos deu seu próprio Filho para nos dar
a vida eterna, por meio da Igreja e dos seus sacramentos (cf. Jo 3,1618)72.
Todas as conseqüências desta paternidade são outros tantos motivos de ainda
mais amardes a Deus. Entrais por adoção na família de Deus. Sois
incorporados nesta família da qual Jesus é o primogênito. Pertenceis à casa
do vosso Pai não na qualidade de servos, mas na qualidade de filhos. Jesus
não faz distinção a este respeito entre vós e Ele, como o observais no
Evangelho: «Meu Deus e vosso Deus; meu Pai e vosso Pai» (Jo 20,17)73.
Dehon destaca ainda como motivos «o amor que Nosso Senhor nos
testemunha tornando-se nosso irmão» por meio da Encarnação do Verbo
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69
70
71
72
73
OSP 2, 21.
OSP 2, 21.
A imagem do «fogo do amor divino» que deve ser alimentado pelos
sacerdotes, por meio de uma oferta de amor, já havia sido utilizado na
homilia que Dehon pronunciou em 1885 na Basílica de Saint-Quentin e que
incluiu como capítulo conclusivo de seu livro sobre educação. OSC IV, 379394.
OSP 2, 30-34.
OSP 2, 32.
93
(cf. Jo 1,1-14). «O amor do seu Coração é ao mesmo tempo totalmente
um amor divino e um amor humano. É o amor divino humanizado»74.
Este mesmo amor é testemunhado na Redenção, simbolizado pela
abertura do seu coração de Bom Pastor que na cruz, como vítima, dá a
vida pelas suas ovelhas (cf. Is 55; Jo 10,11-15; 19; Rm 5). Este amor
permanece vivo e atuante nos sacramentos, especialmente na Eucaristia
(cf. Jo 6,48-52). «Ao permitir que o seu Coração fosse aberto e dele
saíssem sangue e água, quis mostrar-nos que o seu coração é a fonte dos
sacramentos simbolizados por este sangue e esta água»75.
Após apresentar estes «motivos», Dehon avança em sua reflexão,
apresentando as várias «formas» do amor. Pode ser um amor de
preferência, que ama a Deus com todo o coração, acima de toda criatura;
amor de complacência, que ama a Deus com todo o espírito,
contemplando suas perfeições infinitas; amor de benevolência, que ama
com todas as forças, de modo efetivo e perseverante (cf. Mc 12,29-34;
1Jo 4; Hb 12); amor de confiança e de união, para que os pensamentos,
os desejos e as ações estejam seguros na comunhão com Deus (cf. Jo
15,7-10; Rm 8,38); amor de compaixão, unido aos sofrimentos de Cristo
(cf. Jo 19,13-18; Is 53); Zc 12); amor puro e desinteressado, que ama a
Deus «por Ele mesmo e não por nós»76, como amigo, e não
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74
75
76
OSP 2, 36.
OSP 2, 49. Ele diz ainda: «A Igreja e os seus tesouros estavam simbolizados
pela água e pelo sangue que saíram do lado de Jesus no Calvário. Fora assim
que Eva, figura da Igreja, saíra do lado de Adão. A água e o sangue
representavam o Batismo e a Eucaristia, que são os principais entre os
sacramentos». OSP 2, 50.
OSP 5, 69. A idéia de «puro amor» é central na espiritualidade de Dehon.
Todo o seu caminho espiritual é um longo itinerário de discernimento e
purificação das motivações. Ele mesmo diz nesta meditação sobre o puro
amor: «Muitos amam Nosso Senhor em vista das suas graças, dos seus
benefícios. Amam-no porque a piedade tem muitas vezes, sobretudo para os
iniciantes, doçuras e consolações; e quando chega a aridez, perdem a
coragem. Outros amam Nosso Senhor e servem-no em vista das bênçãos
temporais que daí lhe advirão. Também, desde que uma provação chega, um
revês da fortuna, uma doença, a perda de um familiar, arrefecem e às vezes
recusam Nosso Senhor. Outros, finalmente, têm demasiado constantemente
em vista no seu amor as penas e as recompensas da outra vida. Estas almas
94
simplesmente como servo (cf. Jo 15,9-15; 1Cor 13; 2Cor 5,15); amor de
afeição profunda, incessante e fervorosa, que enche o coração com o
hábito de pensar em Nosso Senhor e «transformar todas as ações em atos
de caridade»77 (cf. Jo 17,20-26; 1Ts 5,17); amor de abandono que
«coloca-se alegremente à disposição do amado. Entrega-se a ele em tudo
e por tudo»78, como fez Jesus ao fazer em tudo a Vontade do Pai (cf. Jo
4,31-34)
Dehon apresenta os «meios» para adquirir e conservar o fervor no
amor: primeiro a pureza de coração, ou seja, a conversão, pois o
principal obstáculo à vida de amor é a vida de pecado (cf. Lc 15,1118)79; o segundo meio é o recolhimento e a vida interior, acolhendo o
«Espírito Santo que é o espírito de Verdade e de Amor»80 (cf. Jo 14,1618), o terceiro meio é a oração, que é onde se alimenta e cultiva a vida
de amor, com esforço e generosidade (cf. Mt 11,27-30); o quarto meio é
a fé e a confiança, pois «a vida de amor é uma vida de fé naquele que
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77
78
79
80
rezam, mas sobretudo para obter benefícios. Mal sabem louvar, amar,
agradecer. A segunda parte do Pater toca-as, mas a primeira deixa-as frias.
Atêm-se mais ao pão quotidiano do que ao reino de Deus mesmo. Já não há
aí verdadeiramente amor, é um procedimento diplomático. Jesus descobre
todos os cálculos porque perscruta os rins e os corações. Os que amam por
cálculo são mais servos do que seus amigos. OSP 5, 70.
OSP 5, 74.
OSP 5, 79.
«Pelo pecado, o homem afasta-se do seu Deus para se estabelecer na
independência e bastar-se a si mesmo. Quebra a união da sua alma com Deus
e perde a graça que tinha operado nele esta união. Mais ainda, uma
inclinação nova o arrasta para as criaturas e para longe de Deus, enquanto
antes tinha uma inclinação sobrenatural a procurar Deus em tudo e acima de
tudo». OSP 5, 85.
OSP 5, 89. Dehon explica: «A vida de amor não é senão uma forma de vida
interior. Ora, a vida interior consiste numa doce e amorosa presença de
Deus. A alma interior está habitualmente numa suave, simples e humilde
direção para Deus nas suas obras. Procura não agir senão sob a influência e o
impulso interior de Deus e pela sua ordem. Tem sempre como intenção
provar a Deus o seu amor. Espera tudo d’Ele, reconduz tudo a Ele; vê Deus
em todas as criaturas e todas as criaturas em Deus». OSP 5, 89-90.
95
nós amamos»81 (cf. Jo 8,25-29); o quinto meio é a direção espiritual,
entregando-se inteiramente à «direção divina», com auxílio dos
«ministros que Deus estabeleceu para a condução das almas»82 (cf. Mt
10,38-41); o sexto meio é o dom total de si mesmo a Nosso Senhor, pois
Deus é a fonte do amor e crescemos no amor na medida em que nos
entregamos a Deus83 (cf. Jo 15,5.8-11); o sétimo meio é a união à
oblação de Jesus ao Pai, em espírito de imolação (cf. Jo 14,6-10); o
oitavo meio são os atos de amor que mantém o «hábito do amor»
recebido no batismo84 (cf. Jo 15,1-5); o nono meio são as práticas de
amor na vida cotidiana (cf. Mc 7,32-35); o décimo meio é a fidelidade
nas pequenas coisas (cf. Lc 19,12-17); e o último meio indicado por
Dehon é a prática das virtudes de estado (cf. Jo 15,5-8).
Finalmente, Dehon conduz o exercitante a meditar sobre os efeitos do
amor: a união habitual com Nosso Senhor85 (cf. Jo 14,18-23); a paz da
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81
82
83
84
85
OSP 5, 104. Dehon apresenta três regras relativa a este meio: «A primeira é
ir ter com Nosso Senhor com fé na sua conduta e na direção que Ele dá à
vossa vida. [A segunda regra] é excluir os olhares inquietos sobre nós
mesmos e sobre os nossos progressos. A terceira regra é de não se assustar
diante de nenhum perigo, de nenhuma tentação, de nenhum abandono
aparente». OSP 5, 105-107.
OSP 5, 109.
O pensamento de Dehon tem em consideração este diálogo entre a Graça de
Deus e o esforço humano, porém a iniciativa é da Graça como verificamos
neste texto: «A razão principal pela qual é preciso dar-vos a Deus, é que Ele
é a fonte do amor. O amor brota d’ Ele. Dá-o à medida que nos damos a Ele.
É Ele quem inspira as suas práticas, que fornece as suas ocasiões, e que, pela
graça atual, faz produzir os seus atos. Coloca-nos ao alcance de santificar
por amor todos os nossos pensamentos, todos os nossos desejos, todas as
nossas ações, porque em tudo isso não podemos nada sem Ele. É necessário
que a graça nos previna, que seja ela a primeira a agir, que nos ajude a
cooperar, que produza conosco, e mais do que nós, a nossa
cooperação».OSP 5, 114-115.
OSP 5, 128.
Dehon coloca nos lábios de Jesus o significado desta união habitual: «Há
alguma coisa de mais fácil do que vir a mim por estes meios tão simples? O
objeto sendo sobrenatural, o ato será sobrenaturalizado. Por estes meios, será
possível passar facilmente a própria vida na do meu coração. Os meus
96
alma, que é fruto da união com Deus86 (cf. Mt 11,25-30); o sacrifício por
amor87 (cf. Lc 9,20-23); a força no amor, que existe nos amigos
generosos e obedientes de Nosso Senhor, fortes na provação e fiéis no
dia-a-dia (cf. Ct 8,6-7)88; a perseverança no amor , na certeza de que
«nada nos separará do amor de Cristo» (cf. Rm 8,35-39).
Esta experiência pessoal do amor de Deus, descrita pedagogicamente
por Léon Dehon, reflete bem a mentalidade de sua época. Porém, não
podemos deixar de notar a falta de uma maior ênfase à pessoa do
Espírito Santo, já que ele é o próprio Amor de Deus derramado em
nossos corações, é o próprio «fogo do amor de Deus» aceso sobre a
terra89. A segunda lacuna é a ausência do «amor aos irmãos», como
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86
87
88
89
sacerdotes devem empregar estes meios e fazer todos os esforços para serem
os amigos do meu Coração. A minha graça ajudá-los-á, o meu Pai e Eu
habitaremos neles para lhes comunicarmos a graça do nosso Espírito». OSP
5, 150-151.
Dehon chama este estado de «quietude»: «Ver Deus face-a-face possuindo-o
no amor e na glória, é o vosso fim, é o vosso repouso. O vosso destino é
estardes unidos a Nosso Senhor de um modo tão íntimo e tão estreito, que,
segundo a palavra do seu apóstolo, vos torneis outros Cristos, sejais deuses.
Esta espécie de deificação é um absorção da alma humana por Jesus, o
esposo das almas. Sobre a terra, a alma será tanto mais próxima desta
quietude quanto mais perto de Nosso Senhor estiver». OSP 5, 153.
Sobre este efeito do amor, Dehon comenta: «Há homens que se dão e que se
dedicam até à morte por motivos e por sentimentos puramente humanos,
porque não o haveríamos de fazer por amor do Salvador?» OSP 5, 156. De
fato, a proposta espiritual de Dehon fixa seu olhar no amor de Deus. Chama
a atenção a ausência do «amor ao próximo» como uma via importante na
«vida de amor».
O texto de Cântico dos Cânticos, citado quase ao final do livro, expressa a
mística da vida unitiva e esponsal: «Coloca-me como um selo sobre o teu
coração e como um selo sobre o teu braço: porque o amor é forte como a
morte e a inveja é tenaz como o inferno: as suas lâmpadas são lâmpadas de
fogo e de chamas. Águas caudalosas não puderam extinguir o amor, e os rios
não o destruíram: se um homem desse toda a sua fortuna pelo amor,
consideraria isso como nada» (Ct 8,6-7).
Esta lacuna será preenchida por uma meditação em La vie intérieure: «Jesus
vive em nós pelo Espírito Santo»; «Os dons e os frutos do Espírito Santo»;
97
caminho para amar a Deus. Isto é estranho se pensarmos no intenso
apostolado social que sempre caracterizou a vida de Dehon. Além disso,
este escrito é praticamente um comentário ao Evangelho de João, com
algumas referências às suas cartas, onde o amor a Deus e aos irmãos
aparecem sempre como inseparáveis. Ao citar o mandamento do amor da
maneira como Jesus ensinou apresentado no Evangelho de Mateus,
Dehon cita os versículos 34 a 38, do capítulo 22, onde os fariseus
perguntam qual seria o maior mandamento da lei de Deus. O texto não
cita os versículos 39 a 40: «E o segundo é semelhante ao primeiro:
Amarás o próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos
dependem toda a Lei e os Profetas».
No segundo volume de La vie intérieure, onde propõe alguns
exercícios espirituais muito semelhantes à La vie d’Amour, Dehon
termina com um resumo geral, revelando que a dinâmica da vida interior
segue as etapas da purificação, iluminação e união. As três são obras
para toda a vida. Ultrapassando o conhecimento sobre Deus, da via
iluminativa, o discípulo «deve ser fiel e generoso para não se deixar cair
e recair no afeto desordenado das criaturas. Ele deve ser fiel à união
prática e ativa, a única que está ao seu alcance e permite a Nosso Senhor
elevá-lo mais alto»90. Até mesmo o «Reino Social do Sagrado Coração»,
consistiria em promover esta dinâmica unitiva «nas almas e nas
sociedades». Nas últimas páginas do seus Études sur le Sacré-Cœur,
Dehon ensina que o Coração de Jesus reina nas almas por meio do amor
que leva à uma amizade de confiança e abandono; que torna semelhante
ao Amigo na sua ternura e caridade, em sua humildade e separação das
criaturas, em sua pureza e extrema delicadeza, em sua vida interior e de
oração, em seu zelo e espírito de reparação e sacrifício. O coração de
Jesus deve reinar também na sociedade civil por meio dos santuários
nacionais, poesia, legislação, apoio à Igreja, amor aos pequenos através
de uma legislação social que favoreça os trabalhadores. O Coração de
Jesus reina na Igreja com a construção de santuários, práticas de
devoção, obras e congressos eucarísticos, amor aos pobres, amor à
—————————–
90
«A ação do Espírito Santo em nós»; «A conduta do Espírito Santo». OSP 5,
319-329.
OSP 5, 383.
98
juventude, zelo pelas missões91. É fácil perceber porque o amor aos
irmãos está tão presente em sua prática, e tão pouco elaborado em seu
discurso místico de La Vie d’Amour. A vida de Dehon foi uma constante
luta contra a dispersão provocada pelo ativismo. A última etapa de sua
vida é uma caminho que valoriza o primado do Amor de Deus, do qual
tudo o mais seria uma conseqüência natural. É o que ele chama de «puro
amor»92 e que explicará melhor na síntese da «vida de amor por meio de
Nosso Senhor», realizada em La vie intérieure, já quase no fim de sua
existência: «Deus é caridade [charité], diz São João, e a fonte única de
toda caridade. É ele que colocou em nossos corações pelo Espírito Santo,
o amor eterno do Pai e do Filho»93. Dehon entende que a contemplação e
a ação não se opõem, mas antes se completam. Porém, é «necessária a
união com Nosso Senhor para realizar um frutuoso apostolado: ‘Sem
mim nada podeis fazer’ (Jo 15)»94. Ele coloca a contemplação em
primeiro lugar, na linha da relação de esponsalidade entre Jesus «e a
alma», sua esposa95. Subindo os degraus da contemplação, da quietude,
passando pela união de amor e chegando à consumação esponsal, na
linha de Santa Tereza d’Ávila e São João da Cruz96. Dehon conclui seu
estudo dizendo que não devemos procurar o extraordinário, que poderia
levar à tentação do orgulho. É preciso, simplesmente, avançar na união
com Deus, por meio da purificação, da meditação dos mistério da Vida
de Cristo e da disposição em realizar em tudo a Vontade do Pai. Ele
termina com um conselho: «Não nos esqueçamos jamais que a união não
é outra coisa senão a perfeição das virtudes teologais da fé, da esperança
e do amor» 97.
—————————–
91
92
93
94
95
96
97
OSP 5, 641-642.
OSP 5, 171.
OSP 5, 171.
OSP 5, 343.
OSP 5, 365-368.
Dehon os cita ao falar dos degraus da contemplação. OSP 5, 376-377.
OSP 5, 377.
99
CAPÍTULO IV
Carisma dehoniano e Educação
1. A Educação nas origens do Carisma dehoniano
Colégio e Congregação: obras contemporâneas
Ao mesmo tempo em que implantava um colégio católico na cidade
de Saint-Quentin, a partir de 1877, Dehon dava os primeiros passos
concretos para organizar a Congregação dos Oblatos do Coração de
Jesus. São duas obras contemporâneas que fazem surgir,
espontaneamente, a pergunta: qual seria a relação entre o Colégio e a
Congregação no projeto espiritual de Léon Dehon? A fundação do
colégio era uma condição do bispo para que Dehon começasse a
Congregação. A carta que Mons. Thibaudier escreveu em 13 de julho de
1877, autorizando formalmente o início das duas obras é considerada,
por Dehon, a «ata de fundação da Congregação»1. Ele afirma que «o
projeto tem toda a sua simpatia». Mas pede que Dehon seja discreto e
não torne o projeto público antes que a vinda de outros membros
assegure o futuro da obra. Na mesma carta, em relação ao colégio, o
bispo mostra-se bem mais entusiasmado e, mesmo consciente das
—————————–
1
«Cette letre épiscopale est vraiment l’acte de fondaction de notre Institut.»
NHV XII, 165. Há uma referência a isto também em seu Diário. NQT
XLIV/1924, 132. O original desta carta encontra-se preservado em: AD.B.
21/3.Q, inv. 272.01.
101
possíveis dificuldades da conjuntura política, estimula Dehon a divulgar
e implantar logo o projeto.
A condição que vinculava colégio e Congregação na mente de Mons.
Thibaudier era levada muito a sério para Dehon, uma vez que em seu
longo processo de discernimento − como vimos na primeira parte − ele
decidiu que reconheceria nas palavras do bispo a Vontade de Deus a
respeito de sua eleição. Porém, é certo que a orientação intelectual da
vocação de Dehon já vinha de longa data e possuía um vínculo muito
forte com a sua consagração religiosa.
Dehon não fundou uma Congregação especificamente para o trabalho
na educação escolar. Sua obra tinha em vista a reparação sacerdotal,
entretanto o mundo da escola foi, sem dúvida, a principal atividade da
Congregação nos primeiros anos de sua existência. Após seus primeiros
votos, em 28 de junho de 18782, Dehon recebe, no dia 12 de agosto, o
primeiro candidato: Alphonse-Marie Rasset3. De noviço-diretor, em
1877, Dehon passa a diretor-mestre de noviços, em 1878. Em setembro é
fundada a Casa Sagrado Coração, próxima ao colégio, o que permitia a
Dehon diariamente deslocar-se de uma obra à outra. Já em 1879, ele
acolhe mais alguns noviços para a sua obra nascente4. Foi seu mestre até
1881.
Os primeiros oblatos do Coração de Jesus dedicaram-se intensamente
à educação. P. Rasset, além de assumir a responsabilidade sobre o
Patronato São José, dava aulas de inglês no Colégio São João. Falleur, já
como noviço, era professor e administrador financeiro do Colégio. P.
Paris ensinava retórica e tornou-se o representante legal do Colégio
quando Delloue assumiu, em 1896, sem que tivesse os cinco anos de
magistério exigidos pela lei para exercer cargo de diretor5. Muitos
outros oblatos da primeira geração davam aulas no Colégio e o primeiro
—————————–
2
3
4
5
Dehon emitiu seus primeiros votos na capela do Colégio São João. NHV
XIII, 100.
OSP 6, 153-385. O próprio Dehon escreveu mais tarde a biografia de P.
Rasset. NQT XLIII/1920, 123. Rasset fez seus primeiros votos em 8 de
setembro de 1879.
G. MANZONI, «O primeiro noviciado SCJ», 291-310. Os primeiros noviços
foram: Paris, Falleur, Legrand e Lamour.
AD.B. 13/11, inv. 9438-9439.
102
Elenchus da Congregação indica que alguns noviços, até 1883,
habitavam lá mesmo, provavelmente para auxiliar na disciplina6.
Carisma e Educação nas Memórias de Dehon
Encontramos estes momentos iniciais das duas obras, Colégio e
Congregação, registrados nas Memórias: Notes sur l’Histoire de ma Vie.
Os últimos cadernos narram o período que vai de 1877 a 1888, das
fundações ao Decretum laudis7. A estrutura do texto, que vinha seguindo
o ritmo do ano civil, assume, então, o ritmo do ano escolar europeu8.
Após dizer que escreveu as Constituições em julho de 1877, «inspiradas
nas de Santo Inácio»9, Dehon indica os motivos pelos quais fundou a
Congregação dos «Oblatos do Coração de Jesus». Trata-se de uma lista
de motivos que convergem para uma obra de reparação sacerdotal. Este
grande objetivo é radicado por Dehon principalmente na experiência
espiritual de Santa Margaria Maria: amor e reparação das ofensas feitas
pelos pecados da humanidade ao Sagrado Coração de Jesus pelos
pecados da humanidade. Dehon se fundamenta também na mensagem de
Notre Dame de la Salette e na aspiração de muitas congregações
religiosas femininas que haviam sido fundadas com este objetivo e que
desejavam uma Congregação de sacerdotes no mesmo espírito10. Este era
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6
7
8
9
10
E. DRIEDONKX, «Nuestros colegios», 43. Entre os primeiros «oblatos» que
trabalharam no colégio, encontram-se: Philippot, Sebastian Roth, Philippart,
Patrício Boulanger, Chatelain, A. Pacaud, Delloue e Herbemont.
NHV XII-XV. A edição, publicada em 1979, pelo Centro Generale Studi SCJ
para estes últimos cadernos ,conta com 370 páginas com textos de Dehon e
apenas poucas notas de tradução e de contextualização. Não há uma edição
crítica.
No Colégio São João o ano letivo iniciava em meados de setembro e
terminava no final de julho ou início de agosto, com a Solene Distribuição
de Prêmios.
NHV XII, 166. Não existe nenhum registro deste texto. Ou foi perdido, ou
entregue ao Santo Ofício, por ocasião da supressão, em 1883.
Dehon cita Anne de Rémusat, de Marseille; Filles du Sauveur, fundada por
Marie de Jésus du Borg; Madame Barat; Madre Marie-Thérèse, fundadora
das Sœurs de l’Adoration Réparatrice; Sœurs Victimes du Sacré-Cœur, de
103
também o desejo das Sœurs Servantes du Cœur de Jésus, das quais
Dehon era o capelão11.
O Colégio São João é visto, por Dehon, como o «primeiro passo» para
a fundação da Congregação, o «primeiro abrigo da obra»12. Na mente de
Dehon, o Colégio era o «Egito» e a Casa Sagrado Coração seria
«Nazaré»13. Apesar de desejar vivamente a obra de reparação sacerdotal,
dedica-se de todo coração à obra educacional. O Colégio São João é a
primeira expressão apostólica de sua disposição oblativa. É sua primeira
comunidade religiosa. É o primeiro apostolado reparador. O patrono do
colégio coincide com o nome que escolheu como religioso: Jean du
Cœur de Jésus. A espiritualidade da oblação reparadora está fortemente
presente no relacionamento com os alunos. Nos momentos de formação
com os membros da Congrégation de la Sainte Vierge, ele «lhes
ensinava a devoção ao Sagrado Coração e o espírito de reparação»14. O
próprio Dehon descreve bem como viveu este momento inicial de sua
Obra:
Neste primeiro ano eu estive praticamente sozinho. Havia dois irmãos leigos,
Vinchon e Heymès, que não perseveraram. Era sobretudo por meio do
relacionamento com as bondosas religiosas que eu vivia o espírito de nossa
—————————–
11
12
13
14
Lyon, de onde vieram P. Prévot e P. Charcosset para a Congregação de
Dehon; e outras. NHV XII, 169-172.
«Aussi quand la chère Mere me communiquait ses vues sur la réparation
sacerdotale, particulièrement en avril et mai 1877, j’abondais dans son
sens». NHV XII, 172. O relacionamento entre Dehon e as Sœurs Servantes
du Cœur de Jésus, pode ser observado na abundante correpondência,
principalmente com a Mère Marie du Cœur de Jésus, a Chère Mère.
Recentemente esta correspondência e outras pertinentes foram editadas em
um estudo bastante completo: A. PERROUX, Le Père Dehon et Mère Marie
du Cœur de Jésus, in Studia Dehoniana 46 (2003). São dois volumes que
somam 2.060 páginas de correspondências enviadas e recebidas por Léon
Dehon em todo o arco de sua vida.
NHV XII, 173. Dehon em geral se refere à sua Congregação como
«l’Œuvre», enquanto que o Colégio é «l’Institution».
NHV XII, 173.
NHV XIII, 28. L’Aigle de Saint-Jean afirma na edição de 02 de junho de
1878 que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus é a preferida no Colégio.
104
obra. Celebrava a missa para elas; era seu confessor; seu diretor; fazia-lhes
conferências. Conversava, sobretudo, com a Chère Mère. Nossos
pensamentos sobre a obra eram os mesmos. Foi assim que aos poucos fui
ancorando minhas resoluções e minha confiança na Vontade de Deus para a
fundação da Obra15.
Dentro deste contexto Dehon amadurece o espírito e o objetivo da
vida religiosa que pretendia assumir. Um longo texto de suas Memórias
registram os apontamentos a partir de um retiro iniciado em 02 de
dezembro de 187816. Percebe-se a clara e forte orientação vitimal de sua
experiência de fé. A cada meditação ele vai discernindo o significado
espiritual desta entrega até sintetizá-la nos três principais dons de uma
vítima: o ouro de um coração puro, o incenso da vontade e a mirra do
próprio corpo. Ele sintetiza esta mística em uma frase: «um coração para
amar, um corpo para sofrer e uma vontade para sacrificar»17.
A partir de seus votos, Dehon já não vive a vida religiosa somente no
Colégio São João. A fundação do noviciado na Casa Sagrado Coração,
no dia 14 de setembro de 1878, com P. Rasset e P. Paris, começam a dar
feições próprias para a Obra, distintas da atividade no Colégio São João.
Dehon procura separar bem as duas coisas. Não encontramos em seus
discursos educacionais sequer uma referência à Congregação dos
Oblatos. Em suas palestras aos noviços, registradas por Falleur, também
não existem referências ao Colégio. Em suas Memórias as duas
fundações são contempladas em relatos paralelos, que quase nunca se
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NHV XIII, 67. Além da Chère Mère, Dehon destaca suas conversas como a
Ir. Marie de Jésus, que ofereceria a vida pela sua saúde; e fala também das
«experiências místicas» da Ir. Marie-Ignace, que ele descreve como «um dos
incidentes mais graves de sua vida» e que acabariam levando à supressão da
Congregação pela Santa Sé, em 1883. Após o julgamento do Santo Ofício,
ele reconhece não se tratar de «revelações», mas apenas de «graças
excepcionais e em particular de luzes de oração de uma grande elevação de
doutrina». NHV XIII, 71-84.
NHV XIII, 85-100. Dehon afirma que estes registros foram revistos pelo
jesuíta P. Modeste. O mesmo sacerdote seria encarregado por Mons.
Thibaudier para rever as futuras Constituições.
NHV XIII, 92. A mesma reflexão aparecerá registrada em Cahiers Falleur,
na conferência aos noviços no dia 7 de janeiro de 1880. CFL I, 37.
105
misturam. Mas a espiritualidade de Coração de Jesus anima a ambas18.
No início as anotações de Dehon são abundantes para o Colégio e
escassas para a Casa Sagrado Coração. Aos poucos há uma inversão, até
quase toda a atenção ser voltada para a Congregação19. Já em 1880, ele
registra nas Memórias: «O São João e a Congregação ocupavam todo o
meu tempo. Dirigia-me com maior assiduidade ao Convento, onde a vida
sobrenatural era intensa»20.
Dehon narra o crescimento inicial da Congregação «entre a cruz e a
consolação»21. Surgem muitas vocações. Entre os que entravam, muitos
já eram sacerdotes e já traziam uma espiritualidade, muitas vezes
consolidada. É o caso do P. Captier, que irá assumir uma ambígua
postura de co-fundador e, juntamente com as «revelações» da Ir. Maria
Inácio, será uma das causas da supressão da Congregação pelo Santo
Ofício.
O ano escolar 1881-1882 é marcado pela prova do incêndio no
colégio e pela elaboração das novas Constituições. Mons. Thibaudier
questiona se o voto de vítima possui «um objeto determinável na
prática»22. Ele reconhece a excelência do propósito ou conselho, mas não
como «caraterística distintiva de uma família religiosa». Por isso, decide
consultar Roma. Esta consulta, mediante a apreciação do Cardeal
Ledochowski (1822-1902), culminaria com a supressão, em 188323. Em
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23
Algumas dificuldades financeiras imprevistas, provocadas pelos gastos na
compra do Colégio São João, fazem Dehon ver aquele ano como «rico em
reparação». NHV XIV, 18.
Dehon chega a registrar nas Memórias, os principais trechos de seus
discursos educacionais. Mas raramente registra alguma de suas palestra para
os noviços. É certo que a Congregação era muito criticada no seu início,
principalmente como «os padres que dão atenção às visões das religiosas».
NHV XIII, 150.
NHV XIV, 56.
NHV XIV, 60-61.
NHV XIV, 98.
A crônica de todos os episódios que levaram à supressão ultrapassa o
objetivo de nossa análise. Para aprofundamento, sugerimos o ótimo e
minuncioso estudo: A. VASSENA, «Cronistoria del Consummatum est», in
Studia Dehoniana 21 (1989).
106
todo este itinerário Congregação e Colégio sempre são apresentados
juntos nas audiências de Mons. Thibaudier com o Papa. Dehon busca
muitos auxílios e conselhos para o discernimento do carisma. O
principal, certamente, foi o de seu diretor espiritual, o jesuíta P. Modeste,
que Dehon considerava um santo24. Ele acreditava na autenticidade das
experiências místicas de Ir. Maria Inácio25. Era um entusiasta da
fundação de Dehon, chegando a afirmar que «se não fosse jesuíta seria
Oblato do Coração de Jesus»26. Dehon consultou também outras pessoas.
Um destes encontros importantes, registrado em suas Memórias, foi com
Dom Bosco, em Paris, em maio de 1883. Ele manifestou sua impressão
de que a obra de Dehon era da Vontade de Deus27.
A reação à supressão, em 1883, da maneira como aparece registrada
nas Memórias, revela um pouco da relação que existia entre Colégio e
Congregação na mente de Dehon. Ele, primeiro, diz claramente que já
não lhe restava mais nada visto que «não era no Colégio que estava sua
vocação, pois o havia fundado em função do resto». Nestas
circunstâncias, ele diz ao bispo que seria «impossível continuar a obra do
São João»28. Para fundar a Congregação, Mons. Thibaudier havia
colocado o Colégio como condição. Agora, sutilmente, Dehon faz o
bispo perceber que a Congregação também era uma condição para sua
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Modeste Auguste (1821-1891). Entrou para a Companhia de Jesus em 29 de
agosto de 1842. Trabalhou em Paris, Reims e Strasbourg.
«Il croyait absolutament aux communications de la Sœur (St-Ignace) j’y crus
avec lui». NHV XIV, 153. Depois Dehon escreve: «N.-S. a permis ces
pieuses illusions de bon Père, de la Sœur Ignace, de la Chère Mère et de
plusieurs persones de grande autorité pour nous crucifier jusqu’au fond de
l’ame... Il n’y avait pas illusion complète, mais seulement un attachement
trop grand aux vues d’oraison de Sr. Ignace que nous prenions pour
révélations littérales de N.-S.» Esta última frase no manuscrito está na base
da página e parece posterior, quando Dehon releu seus cadernos. Mostra
bem como as «luzes de oração» foram importantes para a sua primeira
elaboração do carisma, mas que aos poucos foram sendo um pouco
relativizadas.
NHV XIV, 153.
NHV XIV, 155. «[...] impression était qu’elle était bien divine».
NHV XIV, 182-283.
107
permanência no Colégio. A intercessão de Mons. Thibaudier, em Roma,
resulta em um novo decreto da Santa Sé, datado de 29 de março de 1884,
que reabre a Congregação com um novo nome e como uma sociedade
dicocesana. Dehon registra o fato em suas Memórias, dizendo que a
Escola Apostólica de Fayet e o noviciado de Sittard estavam salvos. Não
se refere ao São João como beneficiário da reabertura da Congregação.
Percebemos uma relação intensa mas ambígua entre carisma e
educação, Congregação e colégio, nas origens do carisma dehoniano.
Mas é certo que a elaboração reflexa e temática deste carisma está em
fase de amadurecimento e discernimento eclesial. Encontrará uma
expressão de certa maturidade nas Constituições que Mons. Thibaudier
aprovaria em 1885 e, que ainda teremos oportunidade de analisar. Neste
período, até o Decretum laudis, de 25 de fevereiro de 1888, a
Congregação adquire uma maior sensibilidade missionária, começa a se
expandir na diocese e, principalmente, na primeira missão ad gentes, no
Equador. O ano escolar de 1887-1888 é descrito por Dehon como «o ano
da plena ressurreição e da aprovação por Roma»29. As Memórias
terminam com a audiência concedida por Leão XIII a Dehon no dia 6 de
setembro, às 11 horas e que ele resume da seguinte forma:
Pregar as Encíclicas do Papa e suas orientações, rezar pelos sacerdotes, os
ajudar, dedicar-se à Santa Sé e aos sacerdotes, fazer adoração reparadora, ir
às missões distantes, eis a missão que nos confiou o Papa30.
Os cadernos do noviço Falleur
Cahiers Falleur é como ficaram conhecidas as anotações nos cadernos
do noviço Stanislas Falleur31, que registram as conferências e homilias
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29
30
31
NHV XV, 71.
NHV XV, 83.
Stanislas Falleur nasceu em 17 de Junho de 1857, em Effry (Aisne). Entrou
para os «Oblatos» em 4 de outubro de 1879. Fez os primeiros votos em 21
de novembro de 1881. Foi ordenado sacerdote em Soissons a 23 de setembro
de 1882. Substitui o P. Captier como superior de Fayet em janeiro de 1884.
A 17 de setembro de 1886 emite os votos perpétuos com o P. Dehon e outros
cinco dos primeiros padres. De 1880 a 1934 foi Ecônomo Geral durante 16
anos, superior da Casa do Sagrado Coração de Saint-Quentin (1908-1913 e
108
feitas por Dehon na Casa Sagrado Coração (Maison du Sacré-Cœur), em
Saint-Quentin, aos primeiros noviços de 09 de novembro de 1879 a 21
de outubro de 188132. São cinco cadernos, contendo 250 páginas de
anotações que durante muito tempo permaneceram desconhecidas e
apenas recentemente foram publicados33. Apesar de ser uma fonte
indireta, tem um grande valor, pois nos permitem verificar a incipiente
pedagogia espiritual de Dehon no contato com seus noviços: a escolha
dos temas, as ênfases, o programa de formação e o modo como Dehon
transmitiu o carisma à primeira geração. Boa parte da documentação
deste período foi recolhida pelo Santo Ofício por ocasião da supressão.
Portanto, os Cahiers Falleur são um documento fundamental para o
conhecimento das origens do carisma dehoniano e sua relação com a
educação. «Os cadernos do noviço Falleur receberam, em certo sentido,
a aprovação do P. Dehon. Foram encontrados em seus arquivos pessoais
e, no início da primeira página, apresentam a indicação autógrafa do P.
Dehon: Conferências e pregações»34. Isto significa que Dehon apreciou
o texto.
Assim como no Colégio São João, no noviciado tudo é feito sob a
tutela do Sagrado Coração. Diante da crítica que Dehon se ocupava
demais com o Colégio, ele argumenta que o Sagrado Coração é o
verdadeiro fundador, o superior, a direção, a regra de vida: «O Sagrado
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32
33
34
1924-1929). Morreu em Saint-Quentin em 1º de Maio de 1934. G.
MANZONI, «Introduction, notes, index», in CFL V, nota 1.
S. FALLEUR, Cahier. Conférences et sermons du Père Dehon aux novices, 9
novembre 1879 – 21 octobre 1881, Centro Generale Studi, Roma 1979.
Geralmente as conferências eram no domingo, na quarta e na sexta-feira.
Há também três apêndices, dos quais o primeiro consta de resumidas
anotações de conferências que Léon Dehon teria feito entre outubro de 1885
e setembro de 1886, porém já não mais na qualidade de mestre de noviços,
mas preparando-os para a profissão perpétua. Nestes textos percebemos o
esforço do fundador para garantir a comunhão entre os religiosos que viviam
no Colégio e a comunidade da Casa Sagrado Coração. Chega a estabelecer
um dia de recreio em comum. CFL VI, 11.
G. MANZONI, «O primeiro noviciado SCJ», 292. Os originais manuscritos
dos Cahiers Falleur estão nos Arquivos Dehonianos: AD.B. 6/3.
109
Coração está aí; recorramos a Ele. Que ninguém se queixe, portanto, da
falta de direção; isto seria uma expressão ingrata»35.
Além da intensa vida espiritual, o noviciado do mestre Léon Dehon
caracteriza-se por uma especial valorização do estudo. Alguns noviços
aprofundam a teologia com a ajuda dos confrades36. Outros, como o P.
Philippot, no período da manhã dão aulas no São João. Todos devem
dedicar-se ao «trabalho intelectual»:
Vem depois o trabalho pessoal do tempo livre. Um princípio que se deve
observar: dedicar-se com fé, Justus ex fide vivit (Rm 1,17). Contar tanto com
as luzes do Espírito Santo como com as da natureza. Por outro lado, este
estudo não tem nem pode ter normalmente por finalidade mais do que a
ciência da santidade: teoria e prática. Qualquer outro estudo é contrário ao
noviciado: este não é o momento para se instruir em outras coisas. Fazei,
pois, todos os exercícios com o espírito que lhes é próprio37.
O programa das conferências mostram um quadro orgânico de
formação geral38. Nos vinte e quatro meses de noviciado, ele inicia
falando das bem-aventuranças, paixões, virtudes e oração. Depois
concretiza estes grandes princípios na prática de todos os dias. Dehon
ocupa um tempo especial em comentar a Missa. Desde o início, todas
estas doutrinas clássicas são relidas à luz da oblação reparadora. No
segundo ano, que tem início no dia 11 de outubro de 1880, ele aborda os
votos religiosos, demorando-se bem mais no voto de obediência, que
abre o espaço para falar da imolação, oblação, voto de vítima. Este é o
momento em que, quase ao final do noviciado, Dehon comenta o
primeiro capítulo das Constituições.
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38
CFL II, 30-31. Conferência de 14 de maio de 1880.
CFL III, 70.
Diz Dehon na conferência de 11 de agosto de 1880: «Depois vem o recreio.
Isto não se usa nos outros noviciados, nos quais se dedicam imediatamente
ao trabalho material. Aqui, como não podemos ter esse tipo de trabalho por
causa dos seminaristas e alunos aos quais devemos o respeito pela batina,
tomamos estes curtos instantes de recreio antes de retomar uma ocupação
intelectual». CFL III, 68.
G. MANZONI, «O primeiro noviciado SCJ», 309.
110
Dada a importância que Dehon atribuía neste primeiro momento às
«luzes espirituais» de Ir. Maria de Santo Inácio, ou da então Bemaventurada Margarida Maria, chama a atenção o primado da Palavra de
Deus em suas conferências, geralmente em harmonia com os ciclos do
ano litúrgico39. Além da ênfase dada ao tema da obediência, ligado
diretamente ao núcleo central do carisma, Dehon insiste no espírito de
mortificação e humildade para transformar um caráter difícil em um
coração manso e humilde40; na vida comum e caridade fraterna41; a
espera de possíveis provações42; o equilíbrio entre a vida contemplativa e
a vida ativa43. Parece que Dehon, realmente, evitava distrair seus
religiosos com assuntos que não dissessem respeito especificamente às
finalidades do noviciado. O discurso engajado que encontramos em suas
reflexões feitas no âmbito do Colégio São João raramente aparecem na
Casa Sagrado Coração. A título de ilustração é interessante que no dia 31
de dezembro de 1879, ele pede licença para interromper o curso normal
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Encontramos 303 citações bíblicas diferentes, 105 do Antigo Testamento,
onde o livro mais citado é Salmos, com 53 ocorrências. Das 198 citações
bíblicas do Novo Testamento com 39 ocorrências em Mateus e 36 em João.
Da Carta aos Hebreus, Dehon cita 14 passagens. O texto de Hb 10,7 é o mais
citado, sete vezes: Ecce venio... ut faciam voluntatem tuam. CFL IV, 20; IV,
70; IV, 72; V, 73; V, 79; V, 114; V, 125. Santa Margarida Maria é citada
apenas 13 vezes nos Cahiers Falleur.
CFL I, 58.
«Há que confessá-lo publicamente entre nós. Há muito pouco amor entre
religiosos, entre padres. Como é fácil comprovar isso nas suas reuniões onde
se ataca por igual os ausentes e os presentes!» CFL V, 90.
Este tema é freqüente ao longo das conferências de Dehon, mas a impressão
que se tem é que a grande prova que esperava para a Congregação viria da
perseguição promovida pelo governo franco-maçon, e não pela via da
supressão pela Santa Sé. CFL III, 4-7.
Neste ponto Dehon chega a afirmar que «consagramo-nos à vida
contemplativa muito mais do que à ativa, que não será mais do que
acidental». CFL I, 74. Isto se compreende no horizonte do noviciado e na
sua situação de homem de ação, repleto de obras, que aspirava a vida
religiosa. Logo no início do noviciado ele pontua melhor esta questão
dizendo que «a nossa vida é contemplativa, sobretudo no noviciado, e nas
obras estará amplamente misturada com a vida contemplativa». CFL II, 2.
111
das conferências para «descansar um pouco»44. Este descanso é, na
verdade, a proposta de uma Hora Santa para encerrar e iniciar o ano
diante de Jesus, que permanece esquecido por muitos. O tema seria: O
que pensa Jesus neste momento e quais são Seus sentimentos? Dehon
interpreta estes sentimentos de Jesus:
Eis um ano que termina. Jesus foi muito ofendido durante este ano, roubaram
os filhos que o seu Coração amou. Perseguem os religiosos que têm o seu
nome; atacam as universidades que se propõem glorificá-lo; querem roubarlhe a França. No decorrer deste ano cometeram-se milhões de pecados na
terra; a tribo sagrada e o povo escolhido participaram em parte nestas
ofensas: aí tendes o que deu a terra neste ano45.
É um eco, em tom espiritual, do discurso sobre o patriotismo cristão
que ele fizera em agosto do mesmo ano na «Distribuição de Prêmios» do
Colégio São João, defendendo o ensino cristão da «Escola sem Deus»,
proposta por Ferry. Dehon insere esta realidade socio-política no
horizonte do carisma dos Oblatos. Em sua avaliação do ano que passou,
ele percebe a forte e ativa presença de Cristo:
Jesus, por seu lado, enviou as suas mais abundantes graças, sustentou o
mundo inteiro, dando a cada ser o movimento e a vida, ajudou e vivificou as
inteligências e as vontades humanas; sobretudo, dirigiu-as para o seu fim
sobrenatural, mostrou-lhes o seu Coração, deu-lhes todas as ajudas
necessárias e, mais do que suficientes para as fixar na perfeição; não ficou
desanimado nem pelas nossas friezas nem pelos nossos crimes nem pela
nossa ingratidão46.
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44
45
46
CFL I, 33. Alguns dias antes Dehon já tinha deixado o esquema geral das
conferências para dar destaque ao apóstolo João, em sua festa litúrgica,
exaltando suas qualidades de «religioso-oblato»: «Agradeçamos a Jesus ternos dado um padroeiro tão querido do seu Coração e que, com Maria, foi o
primeiro Oblato do Coração de Jesus, pois a sua vida, como a de Maria, foi,
depois da Ascensão, um martírio de amor». CFL I, 30. Dehon afirma que
João levou uma vida de vítima «oculta e sem brilho exterior». Não
evangelizou grandes regiões como os outros apóstolos, mas «amou a Jesus e
entremeou a sua vida e amor com algumas obras exteriores». IBIDEM.
CFL I, 33.
CFL I, 33.
112
Se em um primeiro momento Dehon procurou ver a realidade com
olhos de Cristo, ele agora a ilumina com a mística do Seu Coração. Unese a Jesus nas «três horas de sua vigília de angústia», vendo os crimes da
humanidade, e se pergunta de que modo «o amor, apesar de prever estes
horrores, quis sem dúvida merecer e outorgar à terra tantos favores»47. O
oblato é aquele que está unido a Cristo na «graça e na provação». Sua
ação nasce desta mística de união. Dehon terminou sua exortação
daquela vigília, dizendo: «Durante esta noite, ofereçamo-nos
generosamente a Ele como vítimas de amor e de reparação: o que tanto
gosta de nos ver fazer»48. Quando retoma o ritmo normal das
conferências, Dehon fala da virtude da esperança: In te Cor Iesu speravi,
non confundar in æternum49. Sua síntese pessoal do carisma evolui,
sempre na comunhão de amor com o Coração de Jesus, que olha a
realidade e responde aos desafios com esperança e sinais concretos de
reparação. As obras surgem como uma conseqüência desta atitude
oblativa.
Ao explicar as virtudes, merece destaque sua definição de prudência
como «um olhar desperto sobre o que se deve fazer, seguido sempre por
uma ação pronta»50. Segundo ele, «a prudência de um noviço consiste
em não ter prudência», ou seja, não se preocupar com o futuro, mas
dedicar-se, com diligência, ao presente51.
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50
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CFL I, 34. «Ele também viu o ano de 1880: viu que o Anticristo se apressa a
arruinar o seu reino por todo o lado; viu as misérias que ainda se vão
realizar, sem dúvida, o seu Coração transbordante de amor quer fazer dele
um ano de graça, o ano do Sagrado Coração, como disse Leão XIII».
CFL I, 34.
No mesmo texto ele diz: «Este ano temos de prestar atenção a isto, será um
ano de contradição, a julgar pelo curso ordinário das coisas, para toda a obra.
Começamos a ser conhecidos na cidade, e será preciso esperar a provação».
CFL I, 35.
CFL I, 41.
Dehon diz que em relação às coisas do futuro, basta as preocupações do
«mestre de noviços» e dos noviços mais velhos que precisam se «ocupar
com as coisas do século», ou seja, o Colégio São João. CFL I, 41.
113
O mês de março de 1880 foi o momento inicial mais impactante da
reforma de Ferry, que provocou a expulsão dos jesuítas52. Esta ação se
fez sentir claramente no noviciado de León Dehon. Na primeira sextafeira do mês, dia 02 de abril de 1880, uma semana depois da sexta-feira
santa, Dehon propõe um dia de retiro, unido à agonia de Nosso Senhor.
Ele afirma que a provação se aproxima. O afastamento dos religiosos da
educação faz Dehon pensar que também sua Congregação seria
atingida53. A agonia, com Jesus, é vista como uma preparação para
depois poder dizer Ecce venio (Hb 10,7). Ele compara a situação que
vivencia com a de Jesus no Horto das Oliveiras, enquanto rezava, seus
inimigos deliberavam. Neste contexto importante, encontramos uma
afirmação reveladora de Dehon. Ao descrever as iminentes provações,
ele diz:
Ainda que sem as luzes sobrenaturais, que estão longe de faltar, pode-se
esperar a provação: Satã prepara-se porque é uma Congregação que se vai
ocupar do ensino e ele não quer nem congregações nem ensino religioso;
porque é uma obra de reparação sacerdotal e religiosa; porque é a obra do
Coração de Jesus e é para aí que Satã dirige os seus dardos mais
envenenados54.
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53
54
Na conferência de 21 de abril Dehon parece ter levado recortes do jornal do
dia que foram registrados literalmente por Falleur em seus cadernos. Um
destes registros refere-se à iminente expulsão dos jesuítas: «Atirai-os pela
porta, voltarão a entrar pela janela! Trata-se dos jesuítas. É sabido que na
véspera da execução dos decretos de 29 de março, os 5 jesuítas que residiam
oficialmente em Liesse encerraram a comunidade. Podemos, pois, pensar
que o departamento se tinha livrado definitivamente dos filhos de Loyola. Se
dermos crédito a diversos rumores que circulam entre o povo com muita
insistência, nada disso acontecera». CFL II, 9.
Dehon volta a este assunto em conferência pronunciada no tenso mês de
junho de 1880, em que Ferry intensifica sua perseguição aos religiosos, de
modo especial aos jesuítas. CFL III, 13.
CFL I, 82-83. Grifos do original manuscrito. No domingo seguinte Dehon
voltou a este assunto de maneira ainda mais direta. CFL I, 84-85. Em três
meses as congregações «não-autorizadas» deveriam pedir a autorização para
continuar a se dedicar ao ensino. muitos foram expulsos. Dehon critica as
congregações «autorizadas», dizendo que abandonaram o espírito de seus
fundadores. Sobre a expressão dardos envenenados, pode ser uma referência
114
De maneira indireta, Dehon revela aqui três características
fundamentais de sua Congregação nascente: uma obra do Coração de
Jesus, dedicada ao ensino e à reparação sacerdotal.
Um dos princípios espirituais apresentados por Dehon em seu
noviciado é o do abandono. Segundo ele, é a consumação do amor e da
reparação. É o que Santo Inácio chama de «indiferença», conceito central
nos Exercícios Espirituais.
Preferi a palavra abandono por não ser negativa e indicar melhor o amor, o
dom de si mesmo. Rodrigues chama-o conformidade. Esta palavra indica
mais um estado do que um ato. Mas em todos estes casos é o mesmo; não há
mais do que um matiz de palavras. Para os Oblatos isso deve ser toda a sua
vida, que deve passar-se no exercício deste abandono55.
Já vimos como esta atitude de abandono, ou indiferença, foi
fundamental em seu discernimento vocacional, principalmente em 1876.
Agora, revela-se também um núcleo íntimo da oblação, da maneira como
Dehon experimentou a centralidade do carisma. Ele é muito claro ao
definir este carisma em termos de atitude e não de atividade. Desta
maneira o carisma dehoniano, desde sua primeira e mais rudimentar
elaboração reflexa, é definido pelo ser e não pelo fazer. Por isso, é
natural que as obras educacionais sejam vistas como uma conseqüência
desta atitude carismática e não ocupem a centralidade do discurso.
Alguém que vive no exercício desta atitude de abandono não pode se
apegar a um tipo específico de atividade, pois deve estar disponível para
—————————–
55
às calúnias contra Dehon difundidas na imprensa maçônica, depois da morte,
em poucos meses (de 27-8-1879 a 12-4-1880) de quatro jovens religiosas
das Servas. Havia boatos de que seriam mortes provocadas por
envenenamento para encobrir crimes. Dehon registra tudo isso em suas
Memórias. NHV XIV, 17.
CFL II, 59. Esta conferência ocorreu no dia 3 de junho de 1880, véspera da
festa do Sagrado Coração. Ele diz ainda: «Abandonar-se como um menino à
sua mãe. Às vezes este tem que receber cuidados que o fazem sofrer. Deixa
por isso de amar a sua mãe? Não, não sente repugnância senão por esses
cuidados que lhe são necessários. Há algo de misterioso nesta recomendação
de ser como criança. A criança julga-se sempre segura nos braços da sua
mãe, não duvida do seu amor, do seu poder. Façamos também nós o
mesmo».
115
o que for da Vontade de Deus em determinado momento, como era o
caso do Colégio São João, em Saint-Quentin. Por isso, Dehon não tinha
dificuldade de assumir este trabalho em espírito de oblação, em atitude
de abandono. Também não via problema em os primeiros dehonianos, ao
saírem do noviciado assumirem o apostolado educacional no Colégio
São João.
Devemos sempre considerar que esta primeira elaboração do carisma
dehoniano foi feita no contexto da perseguição aos religiosos que
atuavam na educação. Dehon estava convencido de que sua Congregação
seria suprimida pelo governo. Isto aparece constantemente em suas
conferências. Ele prepara seus noviços para este momento: «É certo que
a provação se aproxima»56.
Na conferência do dia 1º de agosto de 1880, Dehon afirma que o
Coração de Jesus é o fundador da obra, mas logo em seguida vêm São
Francisco de Assis e Santo Inácio de Loyola57. Ele se detém longamente
a explicar o significado dos Exercícios Espirituais no carisma dehoniano.
Compara a Santo Inácio, São Paulo e Santo Agostinho que,
«derrubados» por Deus, captam «com grande inteligência a verdade
cristã». Dehon resume o conteúdo das quatro semanas dando grande
destaque para a «indiferença», o «zelo apostólico», o «espírito de
penitência» e o «espírito de amor». Ele afirma que este é, também, o
espírito da Congregação dos Oblatos, na medida em que isto se coaduna
com seu fim:
Antes de mais, a indiferença deve ser-nos muito cara porque é a base de tudo;
logo depois vem o zelo, mas para nós o apostolado é menos exterior. Para os
jesuítas é o ardor do guerreiro, de um general de um exército diante do
inimigo que se encara de frente e recebe os primeiros golpes. Entre nós é a
atividade mais restrita e mais amável do pastor que guia o seu rebanho. Nós
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56
57
CFL III, 28. Além disso, Dehon, para comprar o Colégio São João, havia
recebido uma ajuda financeira da Servas que, por sua vez, receberam parte
da herança de uma das suas religiosas que havia falecido. Porém, o
testamento foi impugnado na justiça e Dehon ficou em sérias dificuldades
financeiras. NHV XIV, 17-18.
CFL III, 56-60.
116
teremos sempre obras, mas a nossa principal ocupação será a adoração do
Santíssimo Sacramento58.
Com isso, Dehon conclui uma primeira etapa de sua formação aos
noviços, de caráter mais geral e introdutório. O segundo ano, a partir do
dia 1º de outubro de 1880, será marcado por conteúdos específicos da
vida religiosa e do carisma dos Oblatos. Passara o momento mais
virulento da perseguição às ordens religiosas dedicadas ao ensino. A
Congregação de Dehon, por ser pequena e facilmente confundida com o
clero diocesano, não foi atingida.
Nesta segunda etapa do seu plano formativo, Dehon relê os votos no
horizonte do carisma. A maior parte do tempo será dedicada ao voto de
obediência, desdobrado em atitude de oblação e conduzindo ao quarto
voto desejado por Dehon, de vítima, ou de imolação59. Dehon afirma que
a imolação marca a identidade da Congregação. Ele a define nos
seguintes termos:
Quanto a nós, o fim sobrenatural pelo qual quereria infundir-vos um
entusiasmo extremo é a glorificação do Coração de Jesus vítima de amor e de
reparação. Este é o nosso fim especial para o qual deve tender toda a nossa
vida. É para isto que apontam as regras e as Constituições, que podem
—————————–
58
59
CFL III, 59. O texto de Dehon diz ainda: «Devemos amar a penitência tanto
como Santo Inácio, mas devemos penetrar nela mais a fundo a exemplo de
São Francisco de Assis, segundo patrono da Congregação e como
correspondendo mais à vida dolorosa de Jesus, a quem queremos consolar. O
espírito de amor será também nosso, já que nos consagramos ao Coração de
Jesus, e este quer sobretudo o nosso coração. Jesus fez dos filhos de Santo
Inácio os arautos do seu Coração, nós somos seus filhos. Ele quis difundir
por todos os lugares, por meio do seu apostolado, a devoção ao Sagrado
Coração. Para nós Ele abriu os tesouros do seu Coração muito especialmente
com uma abundância milagrosa. Aqueles são guerreiros, nós somos pastores.
Santo Inácio tem por estandarte o nome de Jesus que leva a todos os povos;
o nosso escudo de armas é o Coração de Jesus que temos de consolar,
sobretudo na Eucaristia. Aqueles representam o espírito, nós o coração; eles,
a vida evangélica; nós, a vida de reparação e de amor».
Dehon dedica três meses de conferências ao voto de obediência. CFL IV, 71
- V, 66. Logo em seguida faz três conferências especificamente sobre o
«voue d’immolation» e passa ao comentário das Constituições. Retorma ao
assunto em várias conferências sobre o voto de imolação. CFL V, 74-75.
117
resumir-se em duas palavras: oferecer logo de manhã a jornada e aceitar
todas as cruzes que a Providência nos prepara ao longo do dia. Aí tendes a
imolação que nos é pedida; sejamos generosos em responder a ela e
empenhemos em alcançar o nosso fim o mesmo ardor que pomos em fins
muito menos nobres60.
«Oferecimento do dia» e «aceitação da cruz» são concretizações
daquilo que Dehon chama de voto de imolação. É uma atitude de
disponibilidade atenta à Vontade de Deus, que Dehon vê perfeitamente
expressa na atitude do Ecce venio de Jesus ao Pai (Hb 10,7). Os obras
educacionais são a expressão apostólica desta disponibilidade.
2. A Educação nas Constituições SCJ
Um fundador não possui, desde o início, a clareza temática e reflexa
daquilo que Deus lhe pede para fundar. É no discernimento que o
carisma vai se tornando mais claro e expresso em palavras. Deste
discernimento participam os primeiros membros da Congregação e,
principalmente, a Igreja, ao aprovar os textos das Constituições.
Pretendemos verificar qual o sentido do apostolado educacional no
carisma fundacional de Léon Dehon, reconhecido pela Igreja. Sua
experiência de fé é paradigmática para a Congregação dos Sacerdotes do
Sagrado Coração de Jesus. Vejamos de que maneira isto ficou registrado
nas diversas elaborações das Constituições, que são a expressão do
carisma, aprovada pela Igreja.
As Constituições de 1881 - antes da supressão
Sabemos que Dehon escreveu um pequeno esboço de Constituições,
«inspiradas nas de Santo Inácio», durante seu retiro de junho de 187761.
—————————–
60
61
CFL V, 76.
NHV XII, 166. Em uma nota de julho de 1924, em seu Diário ele diz: «De 22
a 31 de julho escrevi as nossas Constituições em 1877, sob os auspícios de
Santa Maria Madalena e de Santo Inácio. Tomava por modelos Santa
Madalena, pelo espírito de reparação e Santo Inácio, pelo amor a Nosso
Senhor e o espírito de apostolado». NQT XLIV/1924, 110. Há também uma
carta escrita por Dehon à Ir. Maria de Santo Inácio, em 26 de julho de 1924:
118
Este texto não chegou até nós e nunca foi apresentado para a aprovação
da Igreja. Apenas em 1881, Dehon apresenta um projeto de
Constituições à Mons. Thibaudier, que o considera «belo, profundo e
pleno de espírito religioso»62. Porém, não houve uma aprovação formal
e, além disso, sua consulta a Roma sobre o voto de vítima acabou
culminando na supressão dos Oblatos, em 1883, e o texto das
Constituições, juntamente com uma série de outros documentos, foi
recolhido pelo Santo Ofício. Restam nos Arquivos Dehonianos três
cópias litográficas do primeiro capítulo em duas versões, conhecidas
como Texto A e Texto B63. Uma das provas de que se trata das
Constituições de 1881 é que algumas citações parciais do comentário
feito por Dehon a seus noviços, a partir do dia 19 de abril de 1881,
coincidem com o Texto A64. Além disso, a ordem dos temas comentados
por Dehon coincide exatamente com o Texto A65.
—————————–
62
63
64
65
«De 22 a 31 de julho (1877), de Santa Maria Madalena a Santo Inácio,
escrevi as nossas Constituições». AD.B. 19/2.
NHV XIV, 98.
Os estudos indicam que estes textos seriam impensáveis a partir de 1884 e
que a forma tipográfica e a letra manuscrita coincidem perfeitamente com as
primeiras litografias de L’Aigle de Saint-Jean, fundada em 17.02.1878. M.
DENIS, «Il progetto di P. Dehon», 11, nota 4. De fato, o próprio Dehon diz
em seu Diário: «Os anos 1878-1881 foram aqueles em que escrevemos as
Constituições, as Orações, o Diretório». NQT XXXIV/1912, 182.
CFL V, 81-91. Neste texto não se encontra a influência das idéias de P.
Captier, presentes em algumas passagens do Texto B. O Texto A consta de
quatro páginas que parecem ter servido de prospecto informativo àqueles
que se interessavam pela Congregação. Após a sigla O.C.J., Oblats du Cœur
de Jésus, aparece o título: Constitutions, Chapitre premier, Esprit et but. Os
textos estão publicados em anexo aos Cahiers Falleur. «Apêndice II», 227245.
O Texto B antecipou para o artigo IV os «dois graus dos membros da
ordem», colocando-o logo depois do artigo referente aos patronos. No Texto
A «os dois graus dos membros» vêm apenas no artigo 6º, após a
apresentação do terceiro objetivo: a santificação do próximo e no contexto
das «obras» e da «vida comunitária». Portanto a ordem dos temas coincide
com aquela indicada por Dehon no último dia de conferências sobre as
Constituições, 22 de abril: «Vimos o fim, o espírito, os patronos, os modelos
119
Há uma série de variantes de redação e de estilo entre o Texto A e o
Texto B, que não é o caso analisarmos aqui. Fixamos nossa atenção no
lugar que ocupa a educação. A estrutura do carisma é apresentada em
três grandes objetivos clássicos da espiritualidade cristã, mas com a
marca distintiva da espiritualidade do Coração de Jesus, com ênfase na
atitude de oblação.
O primeiro objetivo é «Glorificar a Deus»:
1.1º – Glorificar a Deus louvando, amando e consolando de modo muito
especial o Sagrado Coração de Jesus; reparar as injúrias que se fazem a este
divino Coração, desagravando-O e oferecendo-se a Ele como vítimas do seu
beneplácito, no espírito de reparação e de amor, que é o seu espírito
distintivo66.
Dehon comenta este primeiro grande objetivo aos seus noviços na
conferência do dia 19 de abril de 188167. Ele reconhece que glorificar a
Deus é um «fim geral» de todos os cristãos e religiosos. Porém, o «fim
especial é o Coração de Jesus». Nas palavras «louvar, amar e consolar»
ele vê a explicitação desta especificidade: «quer dizer, consagrando-lhe a
—————————–
66
67
dos Oblatos; depois as duas vidas que estes podem levar com a direção
própria de cada uma, as obras que lhes serão atribuídas, os graus dos
diversos membros; finalmente vêm as obras; devemos ainda examinar os
laços que unem os membros para conhecer o seu espírito». CFL V, 89.
CST (1881-A) nº 1.1. Neste item as variantes são apenas de redação. Este
primeiro grande objetivo, expresso no primeiro inciso do artigo 1º, é
explicitado nos próximos artigos, principalmente no artigo 2º, sobre «o
espírito». Dehon comentou isso com seus noviços no dia 21 de abril de
1881. CFL V, 86-88. Os dois textos que possuímos, com algumas variações,
falam do «espírito da Ordem» situado na devoção ao Sagrado Coração de
Jesus, a partir da experiência espiritual de Margarida Maria. Os santos
escolhidos como padronos: São José e São João, São Francisco e Santo
Inácio de Loyola, expressam esta disposição de ser uma Congregação que
une a vida contemplativa à vida ativa. A organização da vida é feita em
função deste objetivo. Fala-se de vida conventual. O Texto B fala que parte
dos membros se dedicarão à vida contemplativa. M. DENIS, «Il progetto di P.
Dehon», 10-25. Este segundo texto parece ter alguma influência de P.
Captier. Dehon afirma em suas Memórias que P. Captier teria escrito até
mesmo um projeto de Constituições, mas irrealizável. NHV XIV, 149.
CFL V, 81-83.
120
inteligência pelo louvor, o coração e a vontade pelo amor e todo o nosso
ser pela reparação»68. Para chegar a este «fim especial» ele propõe
honrar o amor do qual o Coração de Jesus é a forma concreta, assim
como outros o honram pela pobreza e humildade. Percebemos aqui a
influência determinante da experiência de Dehon como membro da
Ordem Terceira de São Francisco de Assis69. Sabemos que ele já trazia
esta influência de seu tempo de infância, como estudante do Colégio
Municipal de Hazebrouck, principalmente pelo testemunho do seu
mestre, Dehaene70. Outra influência deteminante é a dos Jesuítas, que
Dehon conheceu bastante de perto no seu tempo de seminarista estudante
no Colégio Romano. Os Exercícios Espirituais configuram sua
personalidade espiritual e seu modo de discernir71. A humildade
franciscana e a obediência jesuítica são elementos fortemente presentes
na oblação dehoniana. Por isso, Dehon escolherá São Francisco e Santo
Inácio como «modelos» dos Oblatos72.
—————————–
68
69
70
71
72
CFL V, 81. Interessante que o texto das Constituições falam de
«consolação» e o comentário de Dehon fala de «reparação». Isto já indica
que para ele eram palavras muito próximas.
Dehon fez sua profissão como membro da Ordem Terceira Franciscana no
dia 21 de março de 1867, no Convento de Praça Barberini, em Roma.
J. LEMIRE, L’Abbé Dehaene et La Flandre.
Já no seu primeiro ano de seminário, Dehon teve contato com os Exercícios
Espirituais de Santo Inácio, e os praticou durante toda a sua vida. NHV IV,
124. Ele observa em suas Memórias: «Experimentei profundamente estes
exercícios e jamais deixei de os amar. Porém, há uma coisa que não se
coaduna com meu temperamento e minha graça: é que eles nos fazem
esperar muitos dias antes de falar do amor de Deus». NHV IV, 125.
CFL V, 85. Dehon distingue os patronos dos modelos: «São João, como
discípulo do Coração de Jesus, é nosso patrono especial: nós devemos ser
todos uns São João para consolar a Jesus que sofre; invocaremos também a
Beata Margarida Maria como vítima do Coração de Jesus. Vêm depois São
Francisco de Assis, nosso patrono, não só pela regra que nós imitamos em
parte, mas também pelos seus sagrados estigmas; Santo Inácio, cujo zelo
devemos imitar». Além disso, no artigo 3º dos dois textos, ele indica antes
de tudo a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e Imaculado Coração de
Maria e invoca São José como «protetor especial».
121
No seu comentário Dehon é mais concreto e específico que o texto das
Constituições, ao indicar o significado preciso deste «fim especial». A
primeira concretização é recitar, logo pela manhã, o «ato de oblação».
Este ato deve ser comunitário, «oficial», e não simplesmente privado. A
segunda concretização da oblação é unir-se ao Coração de Jesus na sua
entrega ao Pai pela humanidade, oferecendo-se como «vítima»73.
O segundo objetivo dos Oblatos é a «santificação pessoal»:
1.2º – Dedicar-se, com a graça de Deus, à salvação e à perfeição das suas
almas, esmerando-se em imitar a mansidão, a humildade e o espírito de
imolação do divino Coração de Jesus74.
Dehon comenta este segundo grande objetivo aos seus noviços na
conferência de 20 de abril de 188175. Também ali aparece claramente a
estrutura de um «fim geral», focalizado na observância dos
mandamentos, que conduzem à salvação e à observância dos conselhos
evangélicos que, por sua vez, conduzem ao «estado de perfeição».
Dehon reproduz a doutrina clássica da vida religiosa vigente no seu
tempo. Porém, ao esclarecer o «fim especial», ele se pergunta a qual
«perfeição» deveria tender um religioso que «tem por sol, por bússola, o
Coração de Jesus»76. Indica as virtudes da «mansidão e a humildade»,
por serem as mais perfeitas, e a atitude de «imolação», por ser a mais
freqüentemente citada na Sagrada Escritura.
—————————–
73
74
75
76
CFL V, 83. « Ele ofereceu-Se como vítima ao beneplácito do seu Pai e nós
queremos oferecer-nos com Ele ao seu Pai e oferecer-nos a Ele como Ele se
ofereceu ao Pai. O beneplácito de Deus: aí está toda a nossa vocação, aí
somos o que devemos ser; se saímos dele, caímos nas armadilhas de Satanás;
se permanecemos nele, tudo está em segurança. Não é que não vamos ter
tentações, mas a tentação então é uma graça, enquanto que à margem do
beneplácito divino é um castigo. Não tenhamos em vista outra coisa senão
isto para não decairmos no espírito de amor e de reparação, quer dizer, para
permanecer Oblatos».
CST (1881-A) nº 1.2. Este artigo é explicitado no Texto A (Artigo 4ª) e no
Texto B (Artigo VI), indicando algumas práticas concretas da vida
contemplativa dos Oblatos.
CFL V, 83-85.
CFL V, 83.
122
Pelo seu comentário aos noviços, parece que Dehon estava
convencido, naquele momento, que uma parte dos Oblatos se dedicaria
exclusivamente à vida contemplativa. Isto é dito claramente em seu
comentário de 21 de abril de 1881:
«Esta Ordem, unindo a vida contemplativa à vida ativa...» Estas duas vidas
hão de encontrar-se na Ordem muito realmente; uns, seguindo as suas
aptidões, hão de aplicar-se à vida contemplativa; os outros, ainda que
dedicados à vida ativa, não deixarão por isso de dedicar uma larga parte aos
exercícios da vida contemplativa. [...] entre nós haverá uma vida puramente
contemplativa77.
Em vista disso, Dehon chega a excluir das obras as missões isoladas
em países distantes, o que, de fato, depois seria assumido como uma das
características marcantes da Congregação78. De qualquer forma, «a vida
conventual e contemplativa» é, no momento inicial, um critério
importante para a escolha das obras. O trabalho na educação,
principalmente em Colégios, também deveria estar atento a este critério.
Porém, parece-nos que Dehon sempre viu a dimensão intelectual muito
mais ligada à contemplação do que propriamente à ação. Na definição do
fim especial do primeiro objetivo dos Oblatos, ele identificou a oblação
da inteligência com o louvor. Sua vocação à vida religiosa sempre teve
esta marca de uma dedicação maior à oração e ao estudo. A disciplina do
noviciado, que orientou como mestre, caracterizou-se por uma ênfase no
«trabalho intelectual». Esta vida conventual foi vivida nos primórdios,
não apenas na Casa Sagrado Coração, mas principalmente no Colégio
São João. Isto aparecerá de modo mais claro nas Constituições de 1885,
que analisaremos.
O terceiro grande objetivo dos Oblatos é a «santificação do próximo»:
1.3º – Empenhar-se com todas as suas forças, com a mesma graça, na
salvação e na perfeição do próximo, particularmente propagando a devoção e
o amor ao Sagrado Coração de Jesus e, quanto lhes seja possível, procurando
por meio do ensino, dos retiros e das associações, a santificação do clero, que
—————————–
77
78
CFL V, 86.
CFL V, 87.
123
é a parte do rebanho da Igreja mais querida ao seu Coração de Pastor. O seu
nome de Oblatos foi escolhido para exprimir esta vida de imolação79.
Aqui o «ensino» aparece no «fim especial» vinculado à «santificação
do clero». Isto é coerente com a inspiração original de ser uma
congregação voltada para a «reparação pelos sacerdotes». Os dois textos
são claros a este respeito. Porém, assim como nos objetivos anteriores, a
dimensão social do carisma é explicitada neste primeiro capítulo das
Constituições, em outros artigos80. Destes a variante mais importante
para o nosso estudo encontra-se no artigo referente às «obras». Como
podemos observar na sinopse seguinte, a opção apostólica específica
pelo trabalho nos colégios simplesmente desaparece no Texto B81. No
Texto A ela aparece como uma das possibilidades de viver o carisma,
mesmo sem vinculação direta com a santificação do clero82:
—————————–
79
80
81
82
CST (1881-A) nº 1.3. Grifo nosso. O Texto B é substancialmente idêntico.
Apenas a ênfase do Texto A – expressa nas palavras: de toutes leurs forces,
avec la même grâce – foi substituída no Texto B simplesmente por: avec
zele. Parece-nos que o Texto A era mais incisivo no compromisso para com
o próximo, ou seja, na dimensão social do carisma.
Trata-se dos artigos 5º (obras), 6º (votos) e 7º (Vida Comunitária), no Texto
A e os artigos VII (obras) e VIII (Vida Comunitária), no Texto B. Os votos
não constam no Texto B. Certamente teriam sido deslocados para outro lugar
nas Constituições. O artigo da Vida Comuntária, é basicamente igual e
afirma que «os religiosos devem se considerar como membros de uma
mesma família, unidos entre si pelos laços da divina caridade».
O desaparecimento dos «colégios», do Texto A para o Texto B pode-se
entender pela difícil situação política pela qual passavam os religiosos
dedicados à educação na França. Vincular juridicamente a Congregação ao
colégio poderia significar ter sua obra confiscada pelo governo. Portanto,
existem vários elementos que devem ser considerados para entender o lugar
da educação neste primeiro texto das Constituições: o vínculo com a
santificação dos sacerdotes; a meta de uma vida conventual e contemplativa;
a ameaça permanente da Terceira República.
É possível que o texto cortado tenha sido levado para o artigo V, do Texto B,
que não consta no Texto A e que privilegia a dimensão contemplativa e
vincula toda a vida apostólica à «santificação do clero». Ainda assim os
colégios ou a educação não são citados neste artigo.
124
Texto A
5º. Esforçar-se-ão por procurar a
salvação e a santificação do próximo
por obras mas, sobretudo, por meio
das que melhor se conciliem com a
sua vida interior.
Poderão ter colégios e seminários e
em geral dedicar-se às obras que são
compatíveis com a vida conventual.
Mas atuarão de forma que o pessoal
nelas seja suficientemente numeroso
para que todas as práticas de piedade
que lhes são próprias possam realizarse regularmente em cada casa.
Podem
dedicar-se
também
à
pregação, ao ensino do catecismo, à
direção das consciências.
Mas não se encarregarão, sem graves
razões, de pregações ou de Missões
que os mantenham afastados das suas
residências.
Texto B
VII. Obras. Esforçar-se-ão por
procurar a salvação e a santificação
do próximo por obras mas, sobretudo,
por
meio
das
que
estejam
relacionadas com o seu fim e que
melhor se conciliem com a sua vida
interior.
Darão preferência
às obras que são compatíveis com a
vida conventual, atuarão de forma
que
o
pessoal
nelas
seja
suficientemente numeroso para que
todas as práticas de piedade que lhes
são próprias, possam realizar-se
regularmente em cada casa.
Poderão dedicar-se também à
pregação, ao ensino do catecismo, à
direção das consciências.
Mas não se encarregarão, sem graves
razões, de pregações ou de Missões
que os mantenham afastados das suas
residências.
Ao comentar este terceiro grande objetivo dos Oblatos, Dehon afirma
que «não basta aperfeiçoar-se a si mesmo, é preciso, além disso, que esta
perfeição sirva ao próximo»83. Isto deve ser feito vivendo e difundindo o
amor do Coração de Jesus, sobretudo, no meio dos sacerdotes e
religiosos, ou trabalhando pelas vocações. Dehon não se refere aos
colégios ou a qualquer outra obra específica ao comentar o artigo 5º do
Texto A. Parece mais preocupado em garantir as condições para a «vida
conventual». Porém, logo em seguida, ao comentar o artigo 6º do Texto
A, falando dos «coadjutores leigos», justifica a presença na Congregação
de religiosos não presbíteros, citando como exemplo as congregações
que se dedicam especificamente ao ensino, formadas apenas por
religiosos.
—————————–
83
CFL V, 84.
125
Vemos nestes primeiros textos das Constituições uma estrutura de
linguagem já bastante clara do carisma, misturada com alguns elementos
em evolução que Dehon absorveu do ambiente: do bispo, do P. Captier,
da Chère Mère, da Ir. Maria de Santo Inácio e muitos outros. Após a
supressão será possível perceber um texto revisto e purificado.
Analisando o texto das contituições francesas de 1885, comparando com
os textos de 1881, poderemos verificar melhor o lugar da educação no
carisma dehoniano.
As Constituições de 1885 - após a nova autorização
Após a nova autorização do Instituto por parte da Santa Sé, sob título
de Société des Prêtres du Sacré-Cœur, em 1884, como obra
exclusivamente diocesana84, Dehon é confirmado pelo bispo em seu
duplo cargo de Diretor do Colégio e Superior da «Sociedade». Com a
orientação de seu diretor espiritual, o jesuíta P. Modeste (1821-1891),
Dehon reelabora as Constituições, agora já sem qualquer influência
direta de P. Captier85. A condenação pelo Santo Ofício não se referia ao
objetivo e fim da Congregação, mas à suspeita de sua origem em
supostas revelações.
Tudo indica que Dehon utilizou o Texto A, de 1881, para elaborar as
novas Constituições que seriam aprovadas por Mons. Thibaudier
provisoriamente em 1885 e de maneira mais categórica em 188686. O
texto consta de 13 capítulos, divididos em parágrafos e artigos. O
primeiro e mais importante capítulo reproduz, de maneira um pouco
mais concisa, a estrutura do objetivo e do espírito da Congregação em
três grandes dimensões: buscar a maior glória de Deus, a santificação
pessoal e a santificação do próximo, sempre na perspectiva do Sagrado
—————————–
84
85
86
O decreto com data de 29 de março de 1884, está registrado em NHV XIV,
183-185.
NHV XV, 9.
As Constituições de 1885 estão publicadas em: Studia Dehoniana 2. As
cartas com as aprovações do bispo de Soissons estão publicadas em anexo a
esta edição na página 89. A segunda aprovação, de setembro de 1886, ainda
menciona a possibilidade de pequenos retoques no que se refere à «ordem e
à forma».
126
Coração de Jesus87. Após o enunciado breve de cada um destes
objetivos, os mesmos são retomados em três parágrafos, cada um com
uma série de artigos que concretizam o respectivo objetivo.
A educação aparece no parágrado 3º: «O zelo dos membros da
Sociedade para buscar a glória de Deus pela santificação do próximo»88.
Este parágrafo praticamente transforma em três artigos (19º; 20º;21º) o
artigo 5º do Texto A das Constituições de 1881. No artigo 19º o antigo
critério de «obras que melhor se conciliem com sua vida interior» é
substituído pelo «trabalho para construir o reino nas almas». Além disso,
no artigo 20º, o critério das «obras compatíveis com a vida conventual» é
substituído por «obras que são compatíveis com a sua vida de
reparação». O artigo 20º praticamente reproduziu o final do artigo 5º das
Constituições de 1881. O seguinte trecho foi excluído: «Mas atuarão de
forma que o pessoal nelas seja suficientemente numeroso para que todas
as práticas de piedade que lhes são próprias possam realizar-se
regularmente em cada casa». Podemos observar estas mudanças na
sinopse seguinte:
Texto A - 1881
5º Esforçar-se-ão por procurar a
salvação e a santificação do
próximo por obras mas, sobretudo,
por meio das que melhor se
conciliem com a sua vida interior.
Poderão ter colégios e seminários e
em geral dedicar-se às obras que
são compatíveis com a vida
conventual.
Mas atuarão de forma que o pessoal
nelas
seja
suficientemente
numeroso para que todas as práticas
de piedade que lhes são próprias
possam realizar-se regularmente em
Constituições 1885
19º Os membros da Sociedade
verão como um dos seus deveres
sagrados glorificar e consolar o
Coração de Jesus, trabalhando para
construir o seu reino nas almas e
satisfazer assim sua sede ardente
do amor dos corações que tanto
amou.
20º Com este objetivo, poderão ter
Colégios, Seminários, e em geral
se dedicar às obras que são
compatíveis com a sua vida de
reparação.
—————————–
87
88
Uma análise e comentário se encontra em: M. DENIS, «Il progetto di P.
Dehon», 10-25.
CST (1885) § 3, artigos 19º-21º.
127
cada casa.
Podem dedicar-se também à
pregação, ao ensino do catecismo, à
direção das consciências.
Mas não se encarregarão, sem
graves razões, de pregações ou de
Missões que os mantenham
afastados das suas residências.
21º Poderão se dedicar também à
pregação, ao ensino do catecismo,
à direção das consciências, mas
não se encarregarão, sem graves
razões, de pregações ou de
Missões que os mantenham
afastados das suas residências
comuns.
Assim, a ênfase das Constituições de 1881 sobre a vida contemplativa
dá lugar à ênfase na vida ativa, no texto de 1885. As expressões «vida
conventual» e «vida interior» são substituídas por «construir o reino» e
«vida de reparação». Além disso, desaparece a vinculação entre
«dedicação ao ensino» e «e santificação do clero», que havia no artigo
1.3º do Texto A de 1881. Porém, encontramos um texto manuscrito das
Constituições de 1885 com algumas correções a lápis, autógrafas de
León Dehon89. Uma delas é exatamente no artigo 20º, conforme
podemos verificar na sinopse:
CST 1885 - Texto aprovado
CST 1885 - Texto corrigido
20º Com este objetivo, poderão ter
Colégios, Seminários, e em geral se
dedicar às obras que são
compatíveis com a sua vida de
reparação.
20º Com este objetivo, poderão ter
Colégios, Seminários, e em geral
se dedicar às obras que são
compatíveis com a sua vida de
reparação. As obras relativas aos
sacerdotes, à sua formação e à sua
santificação serão suas obras
preferidas.
Esta correção recupera a vinculação entre «ensino» e «santificação do
clero». A expressão «seront leurs œuvres préférées», utilizada para
qualificar esta «vinculação» em termos de «preferência», recupera o
artigo VII do Texto B de 1881: «Ils donneront la préférence aux œuvres
qui sont compatibles avec la vie conventuelle». Veremos como este
—————————–
89
Este texto corrigido está reproduzido em anexo à Studia Dehoniana 2.
128
«préférées» será preservado nas edições posteriores das Constituições,
definindo o lugar da educação no carisma dehoniano.
É de notar que o primeiro Capítulo Geral da Congregação, em
setembro de 1886, teve duas conclusões muito importantes: «o espírito e
o fim da Congregação é o sacrifício em favor das almas consagradas; no
que se refere ao apostolado, preferência especial pelas obras que têm
como objetivo o serviço em favor do clero»90. No dia 16 de setembro de
1886, durante o Capítulo Geral, Mons. Thibaudier concedeu a aprovação
definitiva das Constituições.
Os outros capítulos das Constituições de 1885 tratam dos seguintes
temas: governo da Sociedade; eleição do superior geral e os assistentes;
noviciado e admissão; votos; demissão; administração temporal da
Sociedade; virtudes próprias; exercícios de piedade e práticas de
perfeição; doentes e mortos; formação; regras para os colégios; irmãos
coadjutores. Alguns textos das conferências de Dehon aos noviços,
registradas em Cahiers Falleur se encontram nas Constituições de 1885.
Um exemplo é o «voto de imolação» que se encontra nos artigos 15215691. O Ecce venio (Hb 10,7), citado sete vezes em Cahiers Falleur,
—————————–
90
91
M. DENIS, «Il progetto di P. Dehon», 204. Grifo nosso. A aprovação
provisória das Constituições SCJ, por parte de Mons. Thibaudier, foi em 2
de agosto de 1885.
Em suas conferências aos noviços Dehon explica este «voto» em termos de
«solidariedade»: «Agora já conhecemos o que nos pede o nosso voto: ser
vítimas; mas todos o somos um pouco sem o voto. Como cristãos, em
virtude da grande lei da reversibilidade, da comunhão dos Santos, uns devem
expiar pelos outros. Como sacerdotes e religiosos estamos ainda mais
obrigados a isso, pois numa família todos são solidários [solidaires] e
pertence a uns reparar e sofrer pelas faltas dos outros». CFL V, 102. Grifo
nosso. Há um texto muito semelhante no Diário de Dehon, no registro do dia
12 de julho de 1888. NQT IV/1888, 51r. O termo «solidariedade» em seu
sentido teológico não fazia parte da linguagem teológica do tempo de
Dehon. Sua origem está no universo jurídico do direito romano: in solidum.
Significando a obrigação que pesava sobre os credores q uando cada um era
tomado pelo todo. Sua acepção moderna parece remontar ao Antigo Regime
francês. Augusto Compte e outros fiósofos da época cultivaram a noção de
solidarismo. A solidarité seria um substituto secular para a caridade cristã.
No âmbito católico o termo solidariedade será utilizado pela primeira vez
por Pio XII, em sua rádio-mensagem, no Natal de 1948. Em um documento
129
aparece três vezes em apenas dois artigos (153-154). Dehon afirma que
«é o espírito de imolação por amor que dá à Sociedade seu caráter
próprio»92. As quatro obrigações deste voto são apresentadas no artigo
155 e reproduzem exatamente a conferência feita por Dehon aos noviços
no dia 2 de maio de 188193. Também poderíamos indicar uma série de
paralelos entre as conferências aos noviços e o capítulo VIII das
Constituições de 1885, que trata das virtudes próprias da Société du
Sacré-Cœur de Jésus: amor a Jesus Cristo; vida interior; caridade;
humildade; mortificação; abnegação; conformidade à Vontade de Deus;
pureza de intenção; zelo; amor pela cruz94.
O Capítulo XI das Constituições de 1885 trata da «formação». Logo
no primeiro artigo se diz:
Para trabalhar eficazmente em favor da glória de Deus e da salvação das
almas, é necessário duas coisas, a saber: a santidade e a ciência. E ainda que a
santidade seja mais importante que a ciência, esta última é indispensável para
realizar dignamente e com frutos os ministérios que os membros da
Sociedade realizam, segundo o espírito das Constituições95.
Esta síntese entre santidade e ciência prepara o terreno para o capítulo
XII, que trata das «Regras para os Colégios»96. Há uma preocupação
constante com o cultivo da espiritualidade por parte dos sacerdotes
—————————–
92
93
94
95
96
oficial da Doutrina Social da Igreja o termo apareceria somente na Mater et
Magistra, de João XXIII, em 1961. Somente o Concílio Vaticano II utilizaria
o termo solidariedade com conteúdo especificamente teológico. Apostolicam
Actuositatem, 8, in EnchVat, I, 535-537.
CST (1885) Capítulo V, § 4, artigo 152. Esta mesma afirmação aparece na
conferência aos noviços do dia 6 de abril de 1881. CFL V, 76.
CST (1885) Capítulo V, § 4, artigo 155. Conferir com as conferências feitas
de 2 a 9 de maio de 1881. CFL V, 93-100. O artigo 156 também encontra
paralelos em Cahiers Falleur.
CST (1885), Capítulo VIII. É um longo capítulo que Dehon irá denominar
posteriormente de «Diretório».
CST (1885) Capítulo XI, artigo 1. Grifo nosso.
São apenas sete artigos sobre formação e dezesseis artigos no capítulo das
«Regras para os Colégios». Ainda assim, os artigos referentes à formação
colocam a ênfase no estudo.
130
professores. Isto aparece claramente em uma regra prática definida no
artigo 6º do Capítulo XI:
Após um período de muitos anos consagrados seja ao estudo seja ao ensino,
haverá sempre um ano ou ao menos um tempo de recolhimento para o
espírito, tempo que será passado tanto em exercícios espirituais como em
obras de misericórdia97.
Interessante esta distinção entre «estudo» e «ensino». Transparece a
possibilidade de alguém viver seu apostolado no estudo sem estar
necessariamente envolvido no exercício do magistério. Dehon, já no
tempo de seminário, alimentava a idéia de fundar uma congregação
dedicada aos estudos que ele acabou integrando à Congregação dos
Oblatos do Coração de Jesus, marcando-a com uma forte orientação
intelectual, como um aspecto inerente ao carisma. Assim como Dehon
pensava em Casas de Adoração, pensava também em Casas de Estudo.
As duas seriam expressão da dimensão contemplativa do carisma, que
impulsiona para a oração e para o estudo98.
Os dezesseis artigos do capítulo XII trazem o título «Regras para os
Colégios». Na verdade, todos os artigos trazem apenas regras para os
religiosos professores99. Isto é compreensível neste primeiro momento
em que a principal obra da Congregação nascente era o Colégio São
João. Chama a atenção o plural – «Colégios» – pois manifesta a abertura
para assumir um maior empenho na educação, como de fato acabou
acontecendo.
O capítulo XII inicia com uma constatação: «Nos Colégios, as
exigências do ensino, a fadiga, as ocupações múltiplas e absorventes
tendem a afastar muito das práticas de nossas santas Regras. A vida
—————————–
97
98
99
CST (1885) Capítulo XI, artigo 6. Grifo nosso. O artigo 7º define que «a
duração deste período será regulada pelos Superiores consideradas as
necessidades do coração, a vocação dos membros, seu proveito e também o
da Sociedade». Mais de uma vez Dehon pediu autorização ao bispo para
fazer «um ano de retiro», por exemplo, em 1877, cf. NHV XII, 162; em
1885, cf. AD.B. 21,3; e em 1886, cf. NHV XV, 45.
NQT III/1887, 98-99.
Nestas «regras» não se fala de outras realidades presentes na vida de um
colégio, como os alunos, funcionários etc. Portanto, eram regras para os
sacerdotes que atuavam no Colégio.
131
interior, a perfeição, o espírito de oração e a oração poderão sofrer»100.
Segue a isso a recomendação de que cada um encontre os meios de viver
uma vida de imolação e reparação. Em seguida são apresentadas treze
regras práticas e uma recomendação final. As regras, em geral, adaptam
a vida regular dos Oblatos às características próprias do apostolado dos
professores: os horários de levantar e deitar; a forma de participar da
meditação comunitária, exame particular, ofício, adoração, rosário, hora
santa; retiro anual; observar as Constituições como todos os outros
membros; como realizar os exercícios de mortificação; prestação de
contas do uso do tempo e dos estudos ao superior; testemunho aos
alunos; um dia por mês fora do Colégio, para retiro. A recomendação
final resume todas as regras práticas:
Enfim, eles ficarão felizes por retornar periodicamente à solidão para escutar
mais livremente as inspirações do Verbo de Deus, para contemplar com mais
tempo os mistérios da vida e da morte de Nosso Senhor, para falar com ele
coração a coração, para dizer-lhe mais demoradamente que o amam [...]101.
Todas estas regras refletem bastante bem o desafio vocacional do
próprio Dehon, que aspirava a vida religiosa para poder dedicar-se mais
ao estudo e à oração, mas estava envolvido cada vez com mais obras que
perturbavam seu ideal contemplativo.
As Constituições aprovadas pela Santa Sé
O Decretum laudis, em 1888, cita a educação da juventude entre as
obras típicas da Sociedade dos Sacerdotes dos Coração de Jesus: «[...] ac
vita exemplari et peculiari studio in erudienda spiritu inteligentiæ ac
pietatis juventute [...]»102. O decreto era acompanhado de 21
animadversiones que indicavam as mudanças que deveriam ser feitas nas
Constituições. Inicia-se, então, um processo de revisão em vista da
aprovação pela Santa Sé, que envolve, cada vez mais, os outros membros
—————————–
100
101
102
CST (1885) Capítulo XII, artigo 1º.
CST (1885) Capítulo XII, artigo 16º.
Dehon o reproduz de próprio punho: NHV XV, 79. O documento original
está em: AD.B. 21,3.
132
da Congregação, nos diversos Capítulos Gerais103. Isto acontece em um
clima tenso, no qual Dehon experimenta a oposição do novo bispo,
Mons. Duval, e também de membros da própria Congregação, que não
aceitavam seu intenso empenho social104.
Em 1902, já havia um texto das Constituições, em latim, adaptadas à
novas Normæ, emanadas da Sagrada Congregação dos Bispos e
Religiosos105. A partir de 1905, Dehon intensifica seu esforço em vista
da aprovação definitiva. O Santo Ofício ainda se reportava às
dificuldades de 1883, que haviam provocado a supressão106. Somente
uma decisão pessoal de Pio X irá colocar um fim às dificuldades e abrir
caminho para a aprovação temporária que viria com um decreto de 4 de
julho de 1906.
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103
104
105
106
M. DENIS, «Il progetto di P. Dehon», 201-347. Em função destas
animadversiones já em agosto de 1888, Dehon convocou o 2º Capítulo Geral
Extraordinário. Em 1891 já havia um «Projeto em base às
Animadversiones». Há um texto deste projeto de Constituições revistas em:
AD.B. 37. O 3º Capítulo Geral, em 1893, já trabalhou a partir deste projeto.
O texto Animadversiones super Constitutiones Societatis Presbyterorum a S.
Corde Jesu in diocesi Suession, nº 7676-43, encontra-se arquivado em:
AD.B. 36/11, inv. 636.04.
Dehon chegou a apresentar sua demissão como Superior Geral, durante o
Capítulo Geral de 1896, porém não foi aceita por 16 votos contra 6. M.
DENIS, «Il progetto di P. Dehon», 233. No Capítulo Geral de 6-7 de
setembro de 1893 ele também apresentara a sua demissão, que não foi aceita.
Sobre os detalhes da relação de Dehon com a Congregação e,
principalmente, com os bispos de Soissons, de modo especial Mons. Duval:
A. VASSENA, «I rapporti di Padre Dehon con i vescovi di Soissons», in
Studia Dehoniana 20 (1988). A situação muda somente quando Mons.
Deramecourt assume a diocese de Soissons, a partir de 24 de junho de 1898,
após a morte de Mons. Duval.
NQT XVII/1902, 131. Este texto foi apreciado pelo Capítulo Geral de 1902.
NQT XX/1906, 14. A principal acusação é que a Congregação continuava
apoiada sobre as «revelações» de 1878. Dehon precisa escrever uma
declaração de que se submetia às decisões do Santo Ofício. Escreve esta
declaração em 6 de abril de 1906. AD.B. 36. Uma das principais defesas da
Congregação de Dehon foi feita pelo P. Gennaro Bucceroni, professor de
Teologia Moral na Gregoriana. M. DENIS, «Il progetto di P. Dehon», 282.
133
No texto das Constituições de 1906, o apostolado educacional aparece
no artigo 8º, logo após a definição do fim geral e especial do Instituto.
Este artigo reproduz, em linhas gerais, o texto corrigido por Dehon do
artigo 20º das Constituições de 1885. Porém, há o acréscimo de propagar
as doutrinas do Vigário de Cristo, que havia marcado o encontro de
Dehon com Leão XIII por ocasião do Decretum laudis. Na sinopse a
seguir podemos verificar esta evolução:
Cst. 1885 - Texto corrigido
Cst. 1906
20º Com este objetivo, poderão ter
Colégios, Seminários, e em geral se
dedicar às obras que são
compatíveis com a sua vida de
reparação. As obras relativas aos
sacerdotes, à sua formação e à sua
santificação serão suas obras
preferidas.
8º Eo fine, juventuti præsertim
clericali erudiendæ , exercitiis
spiritualibus dirigendis, sacris
missionibus
omnibusque
s.
ministerii
operibus
quibus
hominum
præsertim
humilis
conditionis saluti consuli potest,
magno cum zelo adlaborent. Item
paroecias regendas præsertim in
regionibus
remotis
suscipere
possunt, dummodo observantia et
vita communis servari valeant. Se
demum existiment cleri sæcularis
humiles et devotos coadjutores.
Obsequium ducent præstare Cordis
Jesu
cum
filiali
docilitate,
amplectentes et cum zelo indefesso
propagantes doctrinas omnes et
Directiones Vicarii Christi.
Já não se fala de «colégios», mas de «educação da juventude». O
préférées é traduzido por præsertim e expressa a preferência apostólica
pela «santificação do clero». A inclusão da divulgação das doutrinas
pontifícias está de acordo com o antigo projeto de Dehon de fundar uma
congregação dedicada ao estudo. Era também expressão de seu empenho
social, nem sempre bem aceito por todos na Congregação.
O estilo desta Constituição é bastante jurídico, de modo que o capítulo
sobre as virtudes típicas da Congregação migra para um Diretório
Espiritual e as Regras para os Colégios passam para outro documento
134
com Regulamentos Diversos. O VIIIº Capítulo Geral, em 1919, aprovou
uma edição destes Regulamentos Diversos onde o capítulo XII é
dedicado ao «Regulamento para os sacerdotes professores». O texto
possui interessantes paralelos com o capítulo XII das Constituições de
1885, porém mais do que lembrar aos professores que «eles também são
religiosos» e que estão sujeitos à Regra, os Regulamentos definem
normas para o relacionamento entre professores e estudantes.
O decreto da Santa Sé de aprovação definitiva das Constituições SCJ
foi promulgado no dia 5 de dezembro de 1923. O texto do artigo 8º, que
trata da orientação apostólica da Congregação, permaneceu o mesmo de
906, o que não mudaria nos anos seguintes. Mesmo após a revisão das
Constituições, em 1956, o artigo 8º manteve a redação «Eo fine,
juventuti præsertim clericali erudiendæ».
Podemos encontrar nas atuais Constituições da Congregação dos
Sacerdotes do S. Coração de Jesus, renovadas após o Concílio Vaticano
II, um paralelo destes textos no artigo 31, referente às orientações
apostólicas107:
Para P. Dehon, fazem parte dessa missão a adoração eucarística, em espírito
de amor e de oblação, como autêntico serviço de Igreja (NQT 01.03.1893) e
o ministério junto aos pequenos e humildes, os operários e os pobres
(Souvenirs XV), para anunciar-lhes as insondáveis riquezas de Cristo (cf. Ef
3,8). Em vista deste ministério, Padre Dehon dá grande importância à
formação dos sacerdotes e dos religiosos. A atividade missionária constitui
para ele uma forma privilegiada de serviço apostólico. Em tudo isso, sua
preocupação constante é que a comunidade humana, santificada pelo Espírito
Santo, torne-se uma oferta agradável a Deus (cf. Rm 15,16)108.
Permanece expressa a relevância fundamental da formação dos
sacerdotes no carisma dehoniano, mas desaparece sua relação
«preferencial» com a educação da juventude.
A renovação das Constituições no espírito conciliar foram precedidas
por uma pesquisa científica elaborada pelo Centro Internazionale di
—————————–
107
108
O nº 30 define a Congregação como um «instituto apostólico». Confira o
comentário de G. MANZONI, «Commento ai nn. 1-85 delle Costituzioni», in
Studia Dehoniana 26 (1991) 129-133.
CST (1985) nº 31. Grifo nosso.
135
Ricerche Sociali (CIRIS)109. Das 619 questões apresentadas a todos o
religiosos da Congregação algumas se referiam à orientações e opções
apostólicas110. Especificamente, a questão nº 355 indicava oito
possibilidades apostólicas para que cada um escolhesse duas. Os
resultados foram: trabalho social junto aos pobres, 48%; missões ad
gentes, 32%; pregação, 22%; paróquias, 20%; apostolado da reparação,
9%; ensino, 8%; pregação de retiros, 6%111. Esta sensibilidade se reflete
—————————–
109
110
111
A íntegra da pesquisa CIRIS, realizada em 1970-1971, está publicada em:
Studia Dehoniana 1 (1972). Uma leitura crítica dos resultados: A.
BOURGEOIS, «Attraverso le tavole», in Studia Dehoniana 5 (1973) 32-111.
Outra leitura do impacto da renovação conciliar na Congregação dos S. do
Coração de Jesus: G. GIRARDI, «Il Progetto di Dio nella vocazione e missone
dei Sacerdoti del S. Cuore», in Studia Dehoniana 8 (1975) 1-249. O autor dá
detalhes sobre XVº Capítulo Geral, celebrado em 1966-1967, e sobre as
diversas correntes formadas ao interno da Congregação no momento de fazer
a releitura do carisma à luz das diretrizes conciliares, mantendo a fidelidade
à inspiração original do fundador e aos apelos do mundo moderno. G.
GIRARDI, «Il Progetto di Dio», 136. Uma comissão ficou encarregada de
preparar a revisão das Constituições. A Conferência Geral de 1969
aprofundou o tema e identificou a «opção preferencial pelos pobres» como
uma expressão atualizada da vida de oblação e reparação. Ibidem, 154. O
XVIº Capítulo Geral, celebrado em Roma, de 23 de maio a 7 de julho de
1973, dedicou-se especificamente à revisão das Constituições. O texto foi
aprovado em nível de Congregação no XVII Capítulo Geral, em 1979, e pela
Santa Sé, em 1982. Algumas modificações foram aprovadas em 24 de julho
de 1985. O Diretório Geral foi promulgado pelo Superior Geral no dia 12 de
julho de 1985. Constituições e Diretório Geral, juntos, são denominados de
Regra de Vida SCJ. G. MANZONI, «Catechismo introdutivo alle nuove
Costituzioni», in Studia Dehoniana 29 (1991) 5-13.
A questão 357 dizia: «Se P. Dehon devesse fundar a Congregação hoje,
como ele definiria a atividade apostólica dos SCJ?». Evangelização, maior
justiça e amor, para os pobres, os oprimidos, obteve 39% das respostas.
Os resultados da pesquisa: Studia Dehoniana 1 (1972) 185. Uma leitura dos
dados: A. BOURGEOIS, «Attraverso le tavole», 99. Note-se que os resultados
finais da questão 355 ficaram prejudicados por uma tradução incompleta em
português que induziu muitos a escolherem mais de duas alternativas, como
proposto na pesquisa. Ainda assim, os resultados numéricos apresentam 692
indicações para o Trabalho social juntos aos pobres, 431 indicações para as
136
no texto das Constituições atuais. Quatro orientações apostólicas são
indicadas como preferenciais: a adoração eucarística; o ministério junto
aos pequenos e humildes, os operários e os pobres; a formação dos
sacerdotes e dos religiosos; a atividade missionária112. No entanto, são
apenas «orientações» uma vez que as Constituições insistem bastante
que a disponibilidade oblativa − central no carisma dehoniano − exige
abertura total para o «serviço à Igreja nas mais diversas atividades
pastorais»113. Por coerência a este carisma, os dehonianos afirmam que a
Congregação não foi fundada em vista de uma obra determinada114.
Porém, o texto das Constituições diz que a Congregação «recebeu do
Fundador orientações apostólicas que caracterizam sua missão na
Igreja»115. Por isso, o nº 31 das Constituições cita do Diário de Dehon
um texto em que ele reafirma a importância apostólica da adoração
eucarística116. Cita também um texto de Souvenirs, para vincular o
ministério junto aos pobres com a formação de sacerdotes e religiosos. É
um texto da maturidade de Dehon, escrito em 1912, como um
«testamento espiritual». Após rever os momentos mais importantes da
obra desde a sua fundação, Dehon termina afirmando que a Congregação
—————————–
112
113
114
115
116
missões externas e apenas 112 para o trabalho no Ensino. A leitura dos
dados feita pelo CIRIS, excluindo as províncias de língua portuguesa, pelo
erro identificado nas repostas, constatou que a província dos Estados Unidos
liderou com 70,08% a opção pelo apostolado social. Constatou, também, que
a grande maioria que optou pelo apostolado social pertenciam à faixa etária
entre 25-39 anos. Studia Dehoniana 1 (1972) 176-194.
CST (1985) nº 31. Confira o comentário de G. MANZONI, «Commento ai nnº
1-85 delle Costituzioni», 134-139. Para rever o processo de elaboração das
«Orientações Apostólicas» das atuais Costituições SCJ: U. CHIARELLO, «La
nostra Regola di Vita», in Studia Dehoniana 43 (2000) 56-70.
CST (1985) nº 30.
Isto já estava presente no texto-base que preparou o debate em torno das
atuais Constituições. U. CHIARELLO, «La nostra Regola di Vita», in Studia
Dehoniana 43 (2000) 56.
CST (1985) nº 30.
NQT VI/1893, 23v: 1º de março. «Sans l’adoration, notre Œuvre ne remplit
pas sa mission».
137
possui três objetivos: o zelo ardente, a adoração reparadora e a oblação
cotidiana. O texto referente ao «zelo ardente» diz:
Desejamos trabalhar pelas almas: no ensino, na pregação, nas missões,
segundo as necessidades da Congregação e nos lugares em que nos colocar a
obediência. Nossas Constituições nos indicam as obras que é necessário
preferir: a educação da juventude, principalmente dos seminaristas que são
como Samuel os preferidos do Bom Deus; a pregação de exercícios
espirituais; o ministério junto aos pequenos e humildes, junto aos operários e
pobres; e as missões longínquas que exigem dedicação e sacrifício117.
Verificamos que Dehon mantêm a «educação da juventude» e seu
vínculo em termos preferenciais com a formação do clero. Não existe em
seu texto uma relação de vínculo direto entre a formação dos sacerdotes
e o ministério junto aos pequenos e humildes. A sinopse destes textos
com o das novas Constituições pode nos ajudar a visualisar o complexo
processo de releitura do carisma:
Souvenirs XV – Léon Dehon – 1912
Constituições SCJ – 1985
Nossas Constituições nos indicam
as obras que é necessário preferir:
a educação da juventude, principalmente dos seminaristas que são
como Samuel os preferidos do Bom
Deus; a pregação de exercícios
espirituais; o ministério junto aos
pequenos e humildes, junto aos
operários e pobres [..]118.
Para P. Dehon, fazem parte dessa
missão [...] o ministério junto aos
pequenos e humildes, os operários e
os pobres (cf. Souvenirs XV), para
anunciar-lhes as insondáveis riquezas
de Cristo (cf. Ef 3,8). Em vista deste
ministério, P. Dehon dá grande
importância
à
formação
dos
sacerdotes e dos religiosos119.
—————————–
117
118
L. DEHON, «Souvenirs XV», in OSP 7, 227. Grifo nosso.
L. DEHON, «Souvenirs», in OSP 7, 227. Dehon se refere ao texto do artigo 8º
das Constituições aprovadas em 1906: «Eo fine, juventuti præsertim clericali
erudiendæ, exercitiis spiritualibus diridendis, sacris missionibus omnibusque
s. ministerii operibus quibus hominum præsertim humilis conditionis saluti
consuli potest, magno cum zelo adlaborent. Item paroecias regendas
præsertim in regionibus remotis suscipere possunt [...]». O nosso grifo
destaca na estrutura do texto três vezes a palavra præsertim que indica um
tríplice vínculo de preferência que caracteriza as orientações apostólicas:
educação da juventude, principalmente dos seminaristas; pregação de retiros,
138
A educação da juventude foi mantida implicitamente nas novas
Constituições, pela citação de Souvenirs XV, mas foi substituída pelo
ministério junto aos pobres na vinculação explícita com a formação
sacerdotal120. Isto é coerente com a pesquisa do CIRIS, que citamos
anteriormente, que indicava, na Congregação, um índice de 48% de
preferência pelo trabalho junto aos pobres e apenas 8% com o desejo de
exercer o apostolado educacional121. É uma opção coerente, também,
com o amplo empenho social de Léon Dehon, principalmente em favor
dos pobres e operários, em vista do «Reino do Sagrado Coração nas
sociedades, reino de justiça, de caridade, de misericórdia, de compaixão
para com os pequenos, os humildes e os que sofrem»122. Note-se, porém,
que Dehon sempre vincula esta opção ao estudo e à pesquisa: «Um
sacerdote não pode lançar-se neste novo apostolado sem se preparar para
ele por meio de estudos sérios»123.
A expressão «formação dos sacerdotes e dos religiosos»124 tem sua
origem no Diretório Espiritual de Léon Dehon, que fala de «serviço aos
sacerdotes, sua educação, sua santificação»125, mas a forma como
aparece nas Constituições, em função do ministério junto aos «pequenos
—————————–
119
120
121
122
123
124
125
missões, encargos do ministério principalmente entre os mais humildes;
paróquias, principalmente em regiões afastadas.
CST (1985) nº 31. Grifo original do texto. Há uma referência à educação no
nº 89, porém em contexto de Pastoral Vocacional: «Contribuiremos para
isso, promovendo, quanto possível, a educação cristã nas famílias e nas
escolas.»
Há uma referência à educação em CST (1985) nº 89, porém em contexto de
Pastoral Vocacional: «Contribuiremos para isso, promovendo, quanto
possível, a educação cristã nas famílias e nas escolas.»
A opção preferencial pelos pobres aparece em muitos outros números das
Constituições de 1985, por exemplo: 5; 18, 28, 50, 51, 52, 140.
OSP 1, 233.
OSC III, 368. Trata-se da 8ª Conferência Romana.
CST (1985) nº 31.
DES VI § 23.
139
e humildes, operários e pobres», parece mais limitada e específica126. A
visão de Dehon é mais larga e está na perpectiva da «reparação
sacerdotal»:
Para Dehon, «reparação sacerdotal» significa reparação por meio dos
presbíteros – e este era originalmente o primeiro objetivo da fundação –, mas
também reparação para os presbíteros e, se é que se pode dizer, reparação e
restauração dos presbíteros, do sacerdócio e do sentido sacerdotal, com tudo
o que isto implica para a formação, o sustento espiritual e a própria ajuda e
recuperação dos sacerdotes em crise127.
Na visão de Léon Dehon, há sempre um vínculo entre educação e
reparação. Ele acredita no potencial restaurador do conhecimento. Este é
o sentido da educação da juventude, no horizonte do carisma, tendo
sempre em vista preferencialmente a reparação sacerdotal.
As atuais Constituições manifestam claramente a atenção aos sinais
dos tempos e à disponibilidade para com as necessidades da Igreja local,
como expressões da «oblação reparadora»128. Uma das formas indicadas
para realizar isso é seguir o exemplo de Dehon na sua solicitude em
«remediar de maneira concreta as deficiências pastorais da Igreja do seu
tempo»129. Porém, o final do artigo 8º das antigas Constituições latinas,
que expressava o compromisso de divulgar a doutrina da Igreja, e
condensava a dimensão intelectual do carisma dehoniano, não encontra
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129
A. BOURGEOIS, «Notre Règle de Vie», 862.
A. BOURGEOIS, «Notre Règle de Vie», 862. O próprio Dehon diz isso
claramente em seu Diário: NQT III/1886, 1. Afirma também em Souvenirs
XI que, juntamente com a «elevação das massas populares ao reino da
justiça e da caridade», «conduzir os sacerdotes e os fiéis ao Coração de
Jesus», foram as duas grandes iniciativas de sua vida. L. DEHON,
«Souvenirs», in Lettere circolari, 352-357.
CST (1985) nº 6-7.
CST (1985) nº 5. Encontramos sob o nº 34 a afirmação ainda mais positiva
desta solicitude eclesial: «O serviço do Evangelho, na Igreja universal, nós o
realizamos em colaboração com os responsáveis pelas Igrejas locais. Com
eles, devemos procurar as modalidades de nossa inserção na missão eclesial,
que nos permitam desenvolver as riquezas de nossa vocação».
140
nas «orientações apostólicas» das atuais Constituições, um paralelo
explícito e literal130.
Os debates sobre a relação entre carisma e apostolado, que
precederam a elaboração da nova Constituição se moviam no eixo da
indeterminação exigida pela disponibilidade central ao carisma oblativo
e a determinação exigida pela definição da identidade específica da
Congregação na Igreja131.
Isto ficou habilmente expresso na formulação: «Embora não tenha
sido fundado em vista de uma obra determinada, o Instituto recebeu do
Fundador certas orientações apostólicas que caracterizam sua missão na
Igreja»132.
Portanto, a identidade eclesial dos dehonianos não é caracterizada por
uma obra específica, mas pelas atitudes de disponibilidade e
solidariedade (Ecce venio); pelo engajamento concreto em comunhão
com a Igreja (Sint unum); e por orientações apostólicas típicas (Adveniat
Regnum Tuum)133.
Estas três dimensões do estilo dehoniano estão radicadas na
experiência espiritual de Léon Dehon e poderiam ser expressas,
sinteticamente, em uma das formas utilizadas para expressar o carisma:
«união à oblação reparadora de Cristo ao Pai em favor da
—————————–
130
131
132
133
O final do artigo 8º das Constituições de 1906 e 1924 dizia: «Obsequium
ducent præstare Cordis Jesu com filiali docilitate, amplectentes et cum zelo
indefesso propagantes doctrinas omnes et Directiones Vicarii Christi». Nas
Constituições de 1956 o texto foi levemente modificado: «Obsequium
arbitrentur se præstare Cordi Jesu amplectendo com docilitate filiali,
doctrinas et normas Vicarii Christi easque zelo indefesso propagando».
Permanecia o compromisso de abraçar e divulgar as doutrinas pontifícias,
porém já não necessariamente «todas». As Constituições de 1985 não fazem
referência à divulgação das doutrinas pontifícias.
Uma das conclusões da pesquisa do CIRIS identificou esta problemática: «É
relevante o fato de que 26.63% antes do noviciado não tinham nenhuma
idéia da finalidade apostólica da Congregação. Note-se que a maioria (71%)
havia passado muitos anos em escolas apostólicas SCJ». Studia Dehoniana 1
(1972) 190. Para uma leitura crítica dessa situação: A. BOURGEOIS, «Notre
Règle de Vie», in Studia Dehoniana 15,3 (1989) 850-873.
CST (1985) nº 30b.
A. BOURGEOIS, «Notre Règle de Vie», 847.
141
humanidade»134. União, oblação e reparação aparecem juntas em uma
espécie de elaboração sintética do carisma dehoniano.
A experiência espiritual que Dehon fez deste carisma foi, aos poucos,
sendo codificada nas Constituições como expressão temática e reflexa,
aprovada pela Igreja. Neste longo processo de discernimento, realizado
em conjunto com os primeiros membros da Congregação e na escuta
atenta dos sinais, a educação, o estudo, o conhecimento, ocupam um
papel específico e importante.
As novas Constituições, logo no início, ao descreverem a experiência
de fé do fundador, indicam uma experiência positiva do amor de Deus,
na contemplação do lado aberto de Cristo na cruz, como fonte de
salvação, de onde nasce o «homem de coração novo», na «comunidade
de amor que é a Igreja»; mas indicam, também, uma experiência
negativa em que Dehon identifica os males da sociedade na «recusa ao
amor de Deus», no pecado, sobretudo das «almas consagradas»: «atraído
por esse amor menosprezado, quer corresponder-lhe por uma união
íntima com o Coração de Cristo e pela instauração do seu Reino nas
almas e na Sociedade»135.
O que chama a atenção é que esta experiência espiritual negativa,
segundo o texto das Constituições, é realizada também por meio do
estudo: «[Dehon] conhece os males que afligem a sociedade; estudou++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
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134
135
CST (1985) 6. Diz ainda: «Essa foi a intenção específica e original e a índole
própria do Instituto; esse o serviço que a Congregação é chamada a prestar
na Igreja. Segundo dizia o próprio P. Dehon: Nestas palavras: Ecce venio...
Ecce ancilla... encontra-se toda a nossa vocação, a nossa finalidade, o nosso
dever, as nossas promessas (DES, I, 3)».
CST (1985) nº 1-5.
142
lhes cuidadosamente as causas no plano humano, pessoal e social»136.
Com isso se reconhece um lugar de destaque à dimensão intelectual na
experiência espiritual do carisma dehoniano.
Esta primeira parte do nosso estudo focalizou o olhar sobre a vida, a
obra, os escritos, a espiritualidade e o carisma de Léon Dehon. Agora
nosso olhar está qualificado para ler os escritos especificamente
educacionais e Dehon e também verificar a sua atuação junto aos jovens
no ambiente escolar.
—————————–
136
CST (1985) nº 4.
143
144
SEGUNDA PARTE
O PROJETO EDUCACIONAL
DE LÉON DEHON
Apparuit enim gratia Dei salutaris
omnibus hominibus erudiens nos,
ut abnegantes impietatem et sæcularia desideria
sobrie et iuste et pie vivamus in hoc sæculo.
PAULO DE TARSO
Carta a Tito 2,11-12
CAPÍTULO V
Discursos Educacionais no Colégio São João
1. Uma apologia da Educação segundo o ideal cristão
O contexto político-eclesial
Contemplando a vida, a obra e os escritos de Léon Dehon, situados em
seu contexto histórico, foi possível perceber que um de seus grandes
motivos espirituais era restaurar o Reino do Coração de Jesus, «nas
almas e nas sociedades». Em 1889, ao iniciar a publicação da revista Le
Règne, ele escreve de modo programático:
É necessário restabelecer o reino de Jesus Cristo, fragilizado após séculos de
juristas, renascença, protestantismo, racionalismo, revolução e liberalismo.
«É necessário que Cristo reine», é o grito de todos os católicos, é o objetivo
de tantas obras, é a conclusão dos luminosos ensinamentos da Santa Sé. É
necessário que Cristo reine nas sociedades, nas famílias, nas leis, no ensino,
nos costumes. Esta é a condição da prosperidade e da paz, é a manifestação
da verdade, é o direito de Deus1.
Seu primeiro campo de atuação para realizar este projeto foi a
educação da juventude, a princípio no Patronato São José, para os filhos
dos operários e, depois, no Colégio São João, para a elite. Estas duas
obras foram a base para o início do apostolado social de Dehon. É ali
—————————–
1
OSC I, 3.
147
também o ponto de partida da concretização do seu projeto de vida
espiritual, que terá como expressão mais forte a sua Congregação.
A visão de Léon Dehon sobre «educação e ensino segundo o ideal
cristão» aparece em uma série de discursos que costumava fazer por
ocasião da tradicional cerimônia de «Distribuição de Prêmios», no final
do ano letivo no Colégio São João. O primeiro e mais importante deles
foi pronunciado no dia 4 de agosto de 1877, na Maison d’Enseignement
de Saint-Quentin, administrada por M. Lecompte, que havia sido
adquirida por Dehon no dia 14 de julho e se transformaria, depois de um
mês, no Colégio São João (Institution Saint-Jean)2.
É um discurso programático, onde percebemos as linhas gerais de seu
pensamento educacional, que pretende ser um «eco da voz do Pontífice»
em defesa da educação cristã diante do anticlericalismo republicano e
maçom3. É, ao mesmo tempo, uma declaração de princípios e uma
«oportuna apologia»4. O primeiro discurso, de 1877, situa-se no
pontificado de Pio IX. Em 1878, quando pronuncia o segundo discurso,
já havia sido eleito Leão XIII. Para entender o pensamento educacional
de Dehon neste período é necessário estar atento ao Magistério de Pio IX
e Leão XIII, e à reforma educacional da Terceira República5.
Somente em 1887, Dehon reuniu os discursos educacionais do período
para publicar seu primeiro livro: L’Éducation et L’Enseignement selon
l’idéal chrétien6. Segundo ele, apenas os dois primeiros discursos
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2
3
4
5
6
OSC IV, 274. Dehon tomou o cuidado de transcrever as linhas gerais deste
discurso em seus cadernos de Memórias, o que garante o caráter autógrafo
da obra. NHV XII, 174-181.
OSC IV, 268-269.
OSC IV, 272-273.
Estes discursos situam-se exatamente na passagem do pontificado de Pio IX
(1846-1878) para Leão XIII (1878-1903).
OSC IV, 265-394. Edição original: L. DEHON, L’Éducation et
L’Enseignement selon l’idéal chrétien. Discours de Distributions de Prix
1877-1886 par M. l’Abbé Dehon, Docteur en Droit et en Théologie,
Chanoine honoraire de Soissons, Supérieur de l’Institution Saint-Jean à SainQuentin, Retaux-Bray Libraire-Éditeur, Paris 1887.
148
sofreram algum tipo de revisão7. Escreve A. Mathieu na carta de
aprovação do livro, endereçada a Mons. Thibaudier:
É nosso dever expressar que estes discursos denotam uma notável erudição,
um sério conhecimento dos trabalhos contemporâneos sobre a história, a
geografia, as ciências; que são animados por uma forte paixão patriótica e
que são apropriados para conduzir as almas à verdade, à justiça, ao amor
pelo dever, à honra, porque se inspiram abundantemente no amor a Deus e à
pátria. [...] Recomendamos este livro a todos que se ocupam da educação da
infância e da juventude8.
Dehon dedica seu primeiro livro ao Papa Leão XIII, nos seus 50 anos
de sacerdócio, reconhecendo «que a voz do Pontífice une ao brilho
sobrenatural de sua autoridade doutrinal a glória de ser o protetor dos
estudos filosóficos e históricos e de ser em literatura e poesia lírica, sua
expressão mais elevada, um mestre, um modelo»9. São palavras
carregadas do ultramontanismo característico de Dehon. Afirma,
também, que os bispos fazem eco do Magistério pontifício:
Eles nos mostram as luzes sagradas provenientes da cátedra do Vaticano
sobre a verdadeira civilização, sobre os falsos sistemas filosóficos, sobre a
filosofia escolástica, sobre a teologia de Santo Tomás, esta lareira luminosa
onde se encontram juntos o ensinamento de todos os Santos Padres do
Oriente e do Ocidente, sobre as origens do poder, sobre as sociedades
secretas, que se tornaram o grande perigo da sociedade contemporânea e
sobre a constituição cristã dos estados10.
Este texto mostra claramente a tensão entre Igreja e Estado própria da
época. As «sociedades secretas» são apontadas como o grande «perigo»
da nova configuração do poder e da constituição de um Estado laico. Em
seu último livro de cunho social, Le Plan de la Franc-Maçonnerie11, em
1908, Dehon voltará a este assunto revendo os fatos dos últimos quarenta
anos na Itália e na França. Pretende apresentar uma «chave da história».
Segundo ele, haveria um plano contra a Igreja católica executado pela
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7
8
9
10
11
OSC IV, 270, nota 1.
OSC IV, 267.
OSC IV, 268.
OSC IV, 268-269. Grifo nosso.
OSC III (1908) 381-432. Dehon já escreve sob o pontificado de Pio X.
149
Maçonaria, do qual faria parte a «laicização das escolas» e a «separação
da Igreja e do Estado»12. Este plano teria sido executado pela Maçonaria,
na França, entre 1876-190513, começando com Grévy na presidência e
Ferry no «Ministério da Instrução» (1879), por meio de uma série de leis
que restringiam a atuação das congregações religiosas nas escolas14 e
chegando à aberta perseguição contra as as congregações com E.
Combes (1902-1905)15.
Quando publica seu livro sobre educação, em 1887, Dehon está no
coração deste debate e desta disputa. Seus discursos são um testemunho
contemporâneo e engajado de um momento crítico da história da
humanidade, que viu surgir o Estado moderno. A Igreja adere à
República na França com alguma dificuldade. Os partidos políticos ainda
não estavam formados. Havia um amplo debate na sociedade sobre todas
estas «coisas novas». Com a emergência do Estado democrático, o apoio
popular era cada vez mais valorizado. Os discursos de Dehon devem ser
lidos no horizonte destes debates na aurora de um novo tempo onde nem
tudo está claro.
É preciso ter presente também que, em 1887, Congregação e Colégio
completavam dez anos. Dehon buscava a aprovação pontifícia para a
Congregação, pois desejava ultrapassar os limites da diocese de
Soissons16. Um novo texto das Constituições havia sido aprovado por
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13
14
15
16
OSC III, 406. «A maçonaria não descansa. Sua campanha pela escola
neutra, que tanto traz no coração, é universal».
Em fevereiro de 1876, os republicanos haviam conquistado na Câmara a
maioria de 360 lugares contra os 160 dos seus adversários. Para Gambeta
isto era o sinal de que o povo rejeitara definitivamente a restauração da
monarquia.
OSC III, 409. Dehon cita, por exemplo, a lei de 1882 do «ensino laico
obrigatório». Dirá em suas Memórias: «As leis malvadas multiplicam-se. A
francomaçonaria reina soberana.». NHV XIV, 13. O célebre artigo 7 da lei
educacional de 09.07.1879 excluia as congregações «não autorizadas» do
ensino público ou privado, o que atinge de modo todo especial os jesuítas
que, no ano seguinte, seriam expulsos da França.
OSC III, 409.
Em 1887 a Congregação conta com oito casas em quatro dioceses e 87
membros provenientes de 25 dioceses diferentes. Uma carta de Dehon neste
150
Mons. Thibaudier, em 15 de setembro de 188617. O Decretum laudis
viria apenas em 25 de fevereiro de 1888. É exatamente neste espaço de
tempo que Dehon publica seu livro sobre educação.
A dedicatória ao Papa tem a data de 19 de abril de 1887 e é assinada
por Dehon como Supérieur des Prêtres de la Societé du Cœur de Jésus
sendo que não existe nenhuma referência à Congregação no livro e todos
os discursos são assinados por Dehon como Chanoine honoraire e
Supérieur de l’Institution, ou seja, do Colégio São João. O livro traz o
nihil obstat com data de 25 de maio de 1887, do Vigário Geral da
Diocese de Soissons e Laon, A. Mathieu e o Imprimatur de Mons. Odon
Thibaudier18. Finalmente, em 23 de junho de 1887, Mons. Thibaudier
atende ao pedido de Dehon de solicitar o Decretum laudis à Santa Sé.
Nas Memórias de Dehon há um registro interessante, datado de 12 de
maio de 1887, de uma carta de Mons. Thibaudier afirmando que não era
contrário a que a Congregação se tornasse diretamente «submissa à
Santa Sé». Dispõe-se até mesmo a ajudar neste sentido. Porém, recorda:
«Para mim, é necessário fazer do Saint-Jean um bom colégio. Vós sabeis
que esta foi vossa primeira obra providencial e uma primeira condição. É
—————————–
17
18
período ao P. Eschbach, superior do seminário francês de Roma, afirma que
a expansão da Congregação para além da diocese de Soissons era uma
questão de vida ou morte, por causa da origem das vocações. AD.B. 36.2.
Studia Dehoniana 2. Um estudo particularizado em: M. DENIS, «Il progetto
di P. Dehon». Setembro de 1886 é também o mês do primeiro Capítulo
Geral da Congregação, que acontece no Colégio São João e dos votos
perpétuos de Dehon e seus primeiros companheiros. Em março deste ano o
bispo havia pedido a Dehon para que sua Congregação assumisse outro
pequeno colégio ligado à Basílica de Saint-Quentin. NHV XV, 49. Isto
realmente acontece naquele ano. NHV XV, 42. Há um registro deste fato em:
La Semaine Religieuse, 42 (16.10.1886) 661. Este era o periódico semanal
da Diocese de Soissons–Laon. Os exemplares do período 1874-1913
encontram-se conservados na Biblioteca do Centro Generali Studi SCJ, em
Roma.
A mesma data encontramos em NHV XV, 66. Dehon registra ainda em suas
Memórias que recebeu no dia 02.03.1887 a autorização do bispo para
publicar estes discursos. NHV XV, 65.
151
compreensível unir ao colégio uma boa casa diocesana de
missionários»19.
Desde o início o bispo fora claro ao colocar o colégio como condição
para a fundação da Congregação. De fato, em suas Memórias, Dehon
reconhece que o Colégio São João deveria ser o primeiro abrigo da Obra:
«Ela estará ali como no Egito em meio a agitação e estudos pagãos de
um colégio, mas ela deverá encontrar sua Nazaré no ano seguinte à Casa
Sagrado Coração»20. Portanto, fica claro que Dehon aceitou a condição
imposta, mas não fundou uma Congregação especificamente para o
trabalho em escolas. Porém, é necessário ressaltar que a fundação do
colégio, ou seja, o apostolado educacional, respondia a um anseio que
sempre havia sido levado em conta por Dehon em seu discernimento
vocacional.
Há outra evidência de que existia uma ligação entre a publicação do
livro sobre educação e o Decretum laudis. Nos anos de 1883 e 1884 não
foi Dehon quem pronunciou o discurso da «Distribuição de Prêmios»21.
Porém, em Notes sur l’Histoire de ma Vie, há uma confusão de datas,
aparentemente comum ao gênero das memórias ou diários. O discurso
sobre «o estudo da história», pronunciado em 1885, Dehon o registra
como tendo sido feito em 188322. Já o discurso sobre «o estudo da
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19
20
21
22
NHV XV, 66-67.
NHV XII, 173. Grifos nossos. Este texto provavelmente foi escrito em 1886.
NQT III/1886, 10.
Sabemos pelo semanário diocesano La Semaine Religieuse que, em agosto
de 1883, o discurso foi feito pelo jovem prefeito de disciplina do Colégio, o
sacerdote A. Philippot. Dehon apenas concluiu a celebração com a bênção
do Santíssimo. La Semanaine Religieuse 32 (1883) 503-504. Em agosto de
1884, o discurso ficou a cargo do Cônego Didiot, da Faculdade de Teologia
de Lille. Dehon estava presente e apresentou o orador ilustre. La Semanaine
Religieuse 32 (1884) 494-497.
NHV XIV, 166-173. Dehon registra este discurso como tendo sido proferido
no dia 02 de agosto de 1883. Encontra-se aqui também uma transcrição do
discurso, que praticamente coincide com o texto publicado no livro. As
alterações são irrelevantes do ponto de vista do conteúdo. Sabemos, pelo
livro de 1887, que este discurso foi pronunciado no dia 1º de agosto de 1885.
OSC IV, 352, nota.
152
geografia», pronunciado em 1886, é registrado como tendo sido feito em
188423. O discurso sobre «a história local de Saint-Quentin»,
pronunciado em 1887, é registrado como tendo sido feito em 188524.
Dehon teria simplesmente se confundido nas datas ao redigir suas
memórias? Isto seria compreensível, pois os registros constam a partir do
14º caderno, redigido muito tempo depois dos fatos25. No entanto, como
ele poderia ter esquecido que durante dois anos não fez o importante
discurso, sendo que até então tivera uma assiduidade quase absoluta?
Além disso, ele tinha em mãos a publicação em separado de cada
discurso e o registro destes fatos em L’Aigle de Saint-Jean26.
É importante recordar que 1883 foi exatamente o ano que terminou
com a supressão da Congregação pela Santa Sé. O ano letivo 1883-1884
foi um dos mais terríveis da vida de Dehon e que ele teria muitos
motivos para esquecer. Em uma carta ao bispo, no dia 20 de dezembro
de 1883, afirma: «Nossas obras também, e particularmente o Colégio
São João, estão envolvidas nesta crise. O descrédito que resultaria destas
—————————–
23
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25
26
NHV XIV, 189. Dehon registra este discurso como tendo sido proferido no
dia 02 de agosto de 1884. Porém, sabemos que, na verdade, foi pronunciado
em 31 de julho de 1886. OSC IV, 365, nota. A mesma data aparece em La
Semaine Religieuse 32 (1886) 512. Isto coincide com a data deste discurso
que consta no Diário de Dehon. NQT III/1886, 36. A frase com que Dehon
descreve sua preparação para o discurso, nos dias 21-29 de julho, coincide
com o que encontramos no texto do livro em: OSC IV, 373. Provavelmente
são textos contemporâneos. Porém, ainda assim, o discurso aparece no livro
como tendo sido pronunciado no dia 31 de julho e no Diário, no dia 30 de
julho. Nem sempre Dehon é preciso nas datas.
NHV XV, 26-29. As Memórias registram o discurso sobre «A história local
de Saint-Quentin» no dia 1º de agosto de 1885. O discurso está em grande
parte registrado. No entanto, ele foi feito no dia 30 de julho de 1887. OSC
IV, 387. Esta data coincide com o que encontramos no Diário em: NQT
III/1887, 110. Está também em La Semaine Religieuse 30 (1887) 500.
Como Dehon começou a redigir Notes sur l’histoire de ma Vie em 1886, e
terminou após 1900, ele pode ter escrito o 14º caderno até 15 anos após os
fatos.
Outro fato curioso é que Dehon não registra nas Memórias os discursos de
1887 e 1888, quando terminam os registros com a audiência em que Leão
XIII o envia para pregar as suas Encíclicas.
153
medidas as arruinaria». Mons. Thibaudier enviou esta carta ao Santo
Ofício com uma observação à margem, dizendo que seu objetivo
principal era, na verdade, o Colégio São João e que apenas permitira a
Dehon preparar o início de uma congregação, mas colocou condições
precisas27. O colégio era esta condição para manter a Congregação. Esta
condição foi registrada em Notes sur l’Histoire de ma Vie como
integralmente cumprida, para futuro conhecimento da Congregação e
«reconhecimento da parte de Deus»28.
Já o livro de Dehon sobre educação, contemporâneo ao início da
redação de Notes sur l’Histoire de ma Vie, poderia ser visto também
como uma prestação de contas ao bispo e à Santa Sé de que a condição
exigida teria sido concretizada no Colégio São João. O próximo passo
seria o Decretum laudis. De fato, foi exatamente isso que aconteceu.
A apologia da Educação Cristã, que Dehon publica seria, então, uma
apologia de sua Congregação, ou em vista da tão esperada aprovação
pontifícia? Seria, simplesmente, um escrito político-social de defesa da
escola católica diante do projeto laicizante da República? Haveria no
texto um motivo espiritual dominante para além de todas estas
circunstâncias históricas, transitórias e externas? De que modo o texto
reflete as mudanças de postura no Magistério da Igreja em relação ao
poder temporal, que caracterizaram a passagem do pontificado de Pio IX
para Leão XIII? Qual é a idéia dominante do texto que dá unidade ao
pensamento de Dehon?
—————————–
27
28
«Mon but principal, et beaucoup, a toujours été le Collège catholique de
Saint-Jean. Il est vrai que j’étais au même temps disposé à me prêter à la
préparation d’une congrégation d’hommes que M. Dehon, fondateur du
Collège, désiderait vivement commencer. J’y mettais toutefois,
temporariament, des conditions précises, qui n’ont pas été observées. Mons.
Odon, Ev. de Soissons et Lâon». A carta de Dehon com este registro está nos
arquivos do Santo Ofício. ACDF, S.O., R.V., 1884, n. 5, I/IV b.
NHV I, 1r. Na apresentação Dehon diz: «Notes sur l’histoire de ma vie,
écrites pour m’exerciter à la reconnaissance envers Dieu e au repentir de mes
fautes».
154
Estrutura do texto e gênero literário
O texto que nos chegou dos primeiros discursos educacionais de
Dehon é o publicado em 1887: L’Éducation et L’Enseignement selon
l’idéal chrétien29. São oito discursos, sendo os sete primeiros
especificamente voltados para a educação e o oitavo, sobre a devoção ao
Sagrado Coração de Jesus30. Cobrem o período que vai de agosto de
1877 a julho de 188631. Em março 1887 já havia um texto para a
apreciação do bispo32. O próprio Dehon, no prefácio, indica a estrutura
de texto que tinha em mente ao publicar a coletânea de discursos:
Estes discursos formam juntos parte de um plano determinado. No primeiro
traçamos as grandes linhas de um programa educacional e indicamos o que
nos parece ser o ideal do mestre cristão. Nos seguintes, mostramos
sucessivamente o que a educação, nas suas distintas partes, deve de perfeição
e força à fé cristã; no segundo discurso pretendemos mostrar o quanto as
letras devem à religião; no terceiro, o que o patriotismo deve ao ardor da fé;
no quarto, o que a religião acrescenta às amáveis virtudes da infância; no
quinto, a estreita relação com as ciências positivas; enfim, tratamos do
mesmo ponto de vista, no sexto e sétimo, a história e a geografia.
Acrescentamos um discurso sobre o culto ao Sagrado Coração de Jesus, do
qual nos esforçamos por fazer reinar, em nossa obra de educação, a amável e
fortificante influência33.
O primeiro e o último discursos exprimem, por assim dizer, o
princípio e o fim da educação segundo a compreensão de Léon Dehon ao
final dos primeiros dez anos de apostolado educacional no Colégio São
João e no Patronato São José. A maioria das idéias-força estão presentes
no primeiro discurso, do qual possuímos um resumo autógrafo de Dehon
—————————–
29
30
31
32
33
OSC IV, 265-394.
Este é o único discurso que não foi pronunciado no Colégio São João, mas
na Basílica de Saint-Quentin, por ocasião da festa do Coração de Jesus, em
12.06.1885. OSC IV, 379.
O sétimo discurso, sobre o estudo da geografia, foi pronunciado em
31.07.1886. OSC IV, 365. No entanto, Dehon preferiu fechar sua publicação
com o discurso sobre o Coração de Jesus, pronunciado no ano anterior.
NHV XV, 65.
OSC IV, 270.
155
em suas Memórias, escritas ao mesmo tempo em que revisava os textos
do livro para a publicação34. Assim, podemos afirmar, com bastante
segurança o caráter autoral deste primeiro e programático discurso.
O gênero literário é marcado pela oralidade. São escritos feitos para
serem lidos diante de um público específico. A quase totalidade dos
discursos educacionais de Dehon são pronunciados no Colégio São João.
Este é o ambiente onde se desenvolve sua reflexão sobre educação. Seu
público é constituído de pais e alunos, professores e sacerdotes
envolvidos no projeto, autoridades eclesiásticas e civis. Ele se dirige a
uma elite eclesial e civil-burguesa. Não é uma obra especulativa ou
sistemática. O estilo lembra a formação jurídica de Dehon, pois se
assemelham às peças de defesa preparadas por um advogado para serem
pronunciadas diante de um tribunal, onde o réu seria o sistema educativo
da Igreja Católica, acusado por republicanos anticlericais. Dehon se
refere ao público que o assistia como membros do júri que deveria
manifestar a sentença para o julgamento. Isto aparece claramente, por
exemplo, no prólogo do livro quando diz: «Depois de alguns anos, o
ataque dos nossos inimigos dobrou de intensidade; parece que ano após
ano se acrescenta uma nova acusação à extensa requisitória [réquisitoire]
com a qual se quer prejudicar o ensino religioso»35.
O discurso jurídico adotado por Dehon possui suas leis clássicas que
os formados em Direito conhecem bem. É preciso sempre ater-se aos
fatos, comparando-os com a forma da lei. O resultado pode ser uma
convincente defesa ou acusação. Advogados de defesa e promotores
devem utilizar da retórica, movendo-se entre estes dois pólos: a lei e a
realidade. Um recurso dos advogados de defesa é reconstruir os
argumentos da acusação, utilizando novos fatos e uma nova
hermenêutica da lei, mostrando a inocência do réu. No discurso jurídico
—————————–
34
35
NHV XII, 174-181. Não existem registros do texto original do discurso
pronunciado por Dehon em 1877. Ele mesmo afirma que «somente»
modificou os dois primeiros discursos para a publicação.
OSC IV, 273. Grifo nosso. A palavra Réquisitoire é típica do direito francês,
que significa o ato pelo qual o ministério público formula sua acusação no
processo penal. Dehon utiliza o termo para indicar sua atuação como
advogado de defesa, diante de uma série de acusações feitas ao ensino
católico.
156
nunca são muito eficientes argumentos de autoridade buscados em
instâncias externas ao universo em questão. Por isso, Dehon raramente
os utiliza em seus discursos, nem mesmo textos do Magistério da Igreja.
Não seria uma boa defesa utilizar o depoimento do réu para concluir sua
inocência.
Dehon identifica uma lista de acusações que coincidem com a
estrutura do seu texto, ou seja, para cada acusação, um discurso de
defesa. As principais são que a religião seria uma forma de ignorância,
falta de patriotismo, fonte de imoralidade e incompatível com a ciência.
Dehon identifica, de um modo sintético, logo no prólogo de seu livro, a
lista de «acusações» ao ensino cristão, das quais pretende empreender
sua defesa. Elas coincidem com a estrutura de seu texto, ou seja, para
cada acusação, um discurso de defesa. Elencamos sistematicamente, com
frases do próprio Dehon, estas acusações de modo que possamos
perceber melhor a dinâmica jurídica de seus discursos:
Acusação
Dizem que a religião é ignorância.
Dizem que não somos patriotas.
Evocam as Cartas Provinciais para
atacar a moral do cristianismo.
Dizem que a ciência é incompatível
com a religião.
Defesa
Será necessário demonstrar quão
maravilhosos são os frutos da religião
no âmbito das Letras.
É necessário, e nosso dever, protestar
como católicos e como franceses, e
demonstrar com fatos da história que a
religião é a melhor escola de
patriotismo.
É para nós um dever sagrado
demonstrar o modo radiante com que
a religião faz brilhar as virtudes da
infância.
Acreditamos ser necessário afirmar e
provar que ciência e religião estão
estreitamente relacionadas, e que,
segundo uma frase célebre, se é certo
que a pseudo-ciência afasta da
religião, não é menos certo que a
verdadeira ciência leva até a religião36.
—————————–
36
OSC IV, 273. As «Cartas Provinciais», ou Les Provinciales, referem-se ao
conjunto de 18 cartas escritas por Blaise Pascal entre 1656 e 1657, para
157
Porém, mais do que uma simples defesa jurídica do ensino católico,
Dehon sabe qual a importância de educar as novas gerações. Ele diz
expressamente:
As questões relativas ao ensino estão agora, mais do que nunca, na ordem do
dia. Entendemos que o futuro pertence àqueles que tenham nas mãos a
educação das novas gerações e é precisamente isto que, em nosso caso,
explica a ardorosa luta entre os católicos e os representantes da
incredulidade37.
Há algumas teses de fundo nas entrelinhas dos discursos. A primeira,
de natureza social, é que a «liberdade de ensino» possibilitou o
surgimento de uma «juventude católica» ao longo do século XIX. O
surgimento de universidades católicas teria acelerado este movimento.
Isto provocou uma «transformação nas idéias e no espírito» das classes
dirigentes e na classe média. Dehon é um otimista e acredita que os
decretos laicizantes de 1880 não seriam um golpe mortal nesta conquista
da fé. Seus discursos são uma permanente reivindicação de liberdade.
Neste sentido, ele toca em um ponto onde a política da república era
contraditória: em nome da liberdade restringia a liberdade.
A segunda tese, de natureza político-epistemológica, é que não existe
contradição entre conhecimento humano e religião: «Hoje, mais do que
nunca, é preciso infundir o espírito cristão às ciências e letras, história e
filosofia, enfim, ao ensino em sua plenitude»38. Ligado a isso está a
rejeição da iminente separação entre Igreja e Estado39.
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37
38
39
defender o jansenista Antoine Arnauld, adversário dos jesuítas, que estava
em julgamento pelos teólogos de Paris. Estas cartas eram evocadas pela
Terceira República no conjunto de críticas feitas ao método educacional dos
jesuítas.
OSC IV, 270-271.
OSC IV, 271-272.
Dehon havia acompanhado a perda dos Estados Pontifícios, em 1870 e, no
momento em que escreve, em 1886, acompanha o avanço das idéias
republicanas que levariam à separação entre Igreja e Estado na França, em
1905. Neste momento, ele idealiza a Idade Média «que via as ciências não
como pontos separados e isoladas umas das outras em que todas as ciências
não estavam isoladas entre si, mas reunidas em torno da Teologia, ciência de
Deus, que reina sobre todas como uma rainha». OSC IV, 271.
158
A terceira tese, de natureza bíblico-teológica, aparece expressa na
frase que Dehon escolheu para ilustrar a capa do seu livro e que também
aparece em seu prólogo: «A graça de nosso divino Salvador veio
aperfeiçoar em nós a educação»40. Sua concepção de fundo é essa
colaboração entre a graça e a liberdade humana. Não há oposição entre
essas duas instâncias. Segundo ele, quem promove a separação «conspira
contra a verdade». Neste caso é necessário demonstrar para o mundo da
ciência que «tudo deve ser reparado em Cristo»41. Portanto, para León
Dehon, educar é fundamentalmente uma obra de reparação diante de
tantas tentativas de divisão que ele observa na sociedade de seu tempo.
Com isso já percebemos no pano de fundo de seus discursos uma ligação
fundamental com o seu carisma fundacional e que poderá ajudar a
entender a ligação entre seu apostolado educacional e sua experiência
espiritual.
2. Primeiro discurso: Sobre a Educação Cristã (1877)
É o discurso de fundação do Colégio São João, pronunciado na
Maison Lecompte em 4 de agosto de 1877, em Saint-Quentin42. Dehon
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40
41
42
OSC IV, 271. «La grâce de notre Sauveur divin est venue perfectionner,
parmi nous, l’éducation» (cf. Tt 2,11-12). Na capa do livro Dehon cita ainda
o texto da vulgata da seguinte forma: «Apparuit gratia Dei salvatoris nostri
erudiens nos (græce παιδευουσα)». A tradução atual da vulgata: «Apparuit
enim gratia Dei salutaris omnibus hominibus erudiens nos ut abnegantes
impietatem et sæcularia desideria sobrie et iuste et pie vivamus in hoc
sæculo». Podería-se traduzir literalmente: «Manifestou-se também a graça
de Deus salvadora para todos os homens, educando-nos para que, renegadas
a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata,
justa e piedosamente». De fato o uso do particípio presente do verbo
paideuw lembra a ação de um escravo que deveria conduzir o filho de um
aristocrata ao local do aprendizado, raíz etimologica da noção de
«pedagogia». O texto citado por Dehon permite, portanto, aludir a uma
«ação pedagógica da graça». G. SCHNEIDER, «παιδευω», in Dizionario
Esegetico del Nuovo Testamento, 716-717.
OSC IV, 272. Dehon se apoia no texto de Ef 1,10.
O fato é noticiado em: Semaine Religieuse 32 (11.08.1877) 440.
159
expõe os princípios educacionais que tem em mente: seus objetivos, seus
instrumentos, seus métodos, seus frutos. Até então nunca havia
expressado estas idéias de maneira tão sistematizada e articulada. Em
suas memórias lemos que este primeiro discurso «foi preparado às
pressas»43. Isto não condiz com o texto bem fundamentado que chegou
até nós. Por isso imaginamos que foi bastante modificado para a
publicação e, portanto, expressa o pensamento educacional de Dehon
experimentado pela prática, pela reflexão e pelo tempo.
O objetivo da educação e ensino
Este é o ponto principal do discurso e de todos os escritos
educacionais de Dehon. Fez questão de registrá-lo integralmente, de
próprio punho, em seu caderno de memórias44. Ele procura explicar em
que consiste a educação e qual é o seu objetivo45. Alguém poderia dizer
que é apenas aquisição de conhecimento para passar em um exame e
ingressar em uma carreira profissional. Dehon argumenta que é muito
mais. Trata-se de amadurecer a perfeição divina que foi depositada no
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43
44
45
NHV XII, 174. Realmente, Dehon não teria, naquela ocasião, o tempo
necessário para preparar um discurso bem articulado, pois terminara no dia
31 de julho o retiro onde escrevera o esboço das Constituições de sua
Congregação.
NHV XII, 174-181. Os dois textos coincidem e são contemporâneos, ou seja,
de 1886. A única diferença que encontramos foi que ao referir-se a Platão,
em suas Memórias diz: «Mais ces vues élevées de Platon ont été tout
exceptionnelles dans le paganisme». NHV XII, 177. No livro publicado:
«Mais ces vues élevées de Platon ont été tout excetionnelles e sont restées un
idéal sans réalité». OSC IV, 276. A linguagem das Memórias é mais direta e
na publicação não atribui a Platão a qualificação de «pagão». Mais
interessante é a crítica de Dehon de que o ideal educacional platônico
permaneceu como um «ideal sem realidade». De fato, ao pontuar o ideal
educacional cristão, Dehon iniciará por evidenciar o valor do corpo, da
higiene, dos exercícios físicos. Não se parece com um «idealismo
platônico», espiritualista e desencarnado, como concebe o senso comum e
como era praticado por algumas correntes de espiritualidade no século XIX.
Dehon identificou em um dicionário de pedagogia da época, mais de duas
mil obras sobre educação, publicadas em francês. OSC IV, 275, nota 1.
160
interior de cada pessoa. O fundamento de todo sistema educacional está
na idéia que se tenha de homem perfeito.
Na base de todo sistema educacional existe um pensamento dominante e
essencial, um objetivo, um ideal. Este objetivo sempre está relacionado com
as doutrinas políticas e religiosas do filósofo que concebe o sistema ou da
sociedade que o institui. O rumo da educação depende da idéia que exista
sobre o homem perfeito. A imensa superioridade da educação cristã sobre as
demais se deve ao fato de ela ter como seu objetivo e seu ideal a perfeição
total e sobrenatural do homem nesta vida e na outra46.
Dehon absorve esta idéia de Platão, de quem cita a definição de
educação como «tudo aquilo que dá ao corpo e à alma a beleza e a
perfeição de que são suscetíveis»47. Quando o filósofo grego fala de
perfeição da «alma» Dehon entende que se refere ao plano espiritual. Por
essa razão cita outro trecho do mesmo filósofo: «Seria loucura, para uma
criatura mortal, preocupar-se mais desta breve existência que da
eternidade»48.
Olhando para a história, Dehon percebe que em Roma e Esparta, antes
das guerras púnicas, o ideal de homem perfeito era o «soldado valente».
Por isso, a educação se limitava ao desenvolvimento da força física e ao
domínio do corpo. Na Revolução Francesa, o ideal era o «homem
político». Por isso criou-se um sistema educacional onde o catecismo era
a Constituição e as famílias deveriam abdicar do seu direito de educar os
filhos em favor do Estado49. O monopólio da organização das
universidades no tempo do Império também tinha este ideal político.
Para o utilitarismo positivista, o desenvolvimento da pessoa humana se
limita à atividade física e industrial. A alma, a moral, a cultura
intelectual são tratados superficialmente. Finalmente, Dehon identifica
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46
47
48
49
OSC IV, 276.
PLATÃO, «As Leis», Livro VII, 788, apud: OSC IV, 277.
PLATÃO, «Diálogos Fedon», 68 e 107 D. Também em «As Leis», 788.
Apud: OSC IV, 277. Dehon intepreta o pensamento de Platão como
«precursor da revelação cristã». H. WILMER, «León Dehon como educador»,
69, nota 21.
Refere-se ao Projeto de Lepelletier de Saint-Fargeau, retomado e
apresentado por Robespierre na Convenção de 1793. OSC IV, 277, nota 3.
161
um ideal que chama de «crítico». É o mais presente no ensino oficial de
sua época, onde a filosofia, as letras e a arte são cultivadas, mas apenas
como uma espécie de «culto à forma», sem qualquer princípio religioso
de fundo, pois para estes Deus não seria mais do que uma idéia e todas
as religiões apenas «evoluções progressivas do espírito humano»50. A
partir desta análise, conclui que somente o ideal cristão abraça, ao
mesmo tempo todos os elementos da perfeição humana.
A educação cristã não deixa de lado o desenvolvimento físico. Ela se
preocupa com a higiene e com os exercícios do corpo. Ela considera as letras
e as ciências como necessárias para desenvolver as faculdades mais
essenciais do espírito. Ela forma o juízo pela filosofia e pela história, o gosto
pelo conhecimento dos modelos da literatura e da arte, a vontade e o coração
pela religião, os costumes, o caráter e as boas maneiras necessárias para a
vida em sociedade51.
Sob a proteção do Sagrado Coração de Jesus e tendo o apóstolo João
como exemplo de discípulo ou aluno, Dehon propõe um modelo de
educação que considere todas as dimensões da pessoa humana e não
apenas uma parte. A educação cristã deve superar todo reducionismo.
Não educa apenas funcionalmente para uma determinada profissão, mas
prepara para realizar a pessoa em todas as suas potencialidades. Ele
mesmo diz:
Educar um cristão é fazer com que cresça em sua alma a fé que abre sua
inteligência ao mundo invisível, a esperança que fortalece o coração por meio
da expectativa de uma felicidade merecida e o amor que faz perceber Deus
nas frias sombras da vida. Educar um cristão é formar um homem com
coração, um homem capaz de sacrifício e dedicação, um homem livre do jugo
do egoísmo52.
Segundo Dehon, o discípulo da educação cristã traz consigo a forte
convicção de que é marcado pela «força restauradora da palavra e do
exemplo». Onde quer que ele vá, ou em qualquer coisa que faça, será
«um missionário da virtude e imagem viva de Jesus Cristo»53. Portanto,
—————————–
50
51
52
53
OSC IV, 277.
OSC IV, 277-278.
OSC IV, 278.
OSC IV, 278.
162
ele propõe um modelo de educação integral, onde seja superada a
separação entre transmissão de conhecimentos e formação da
personalidade54. São dois aspectos que se condicionam reciprocamente e
encontram seu horizonte de sentido na perfeição divina impressa em
cada pessoa e que necessita ser restaurada. A educação, segundo o ideal
cristão, em Dehon, é uma forma de reparação no sentido mais integral
possível.
Os instrumentos pedagógicos
a. Os professores
Na segunda parte de seu discurso, Dehon descreve como imagina o
professor ideal para colocar em prática a educação na forma como
acabou de conceber e, também, como deveriam ser os livros.
O «mestre» deve exercer uma verdadeira «paternidade espiritual» no
face-a-face com seus discípulos. Ele gera vida à semelhança de sua
própria alma. A vida intelectual e moral passa de sua «alma» para a
«alma» de seus alunos por duas fontes: a palavra e o exemplo. Dehon
considera o mestre cristão como um «sacerdote» e o magistério como
uma «vocação» para restaurar todas as coisas em Cristo55. Para esta
«missão sagrada» ele recebe uma «unção divina» que redimensiona o
significado de sua influência sobre os alunos, para além da dimensão
natural.
Dehon admite que o ensino cristão possa ser ministrado por leigos,
religiosos e sacerdotes com suficiente eficácia. Porém, reconhece que a
entrega total a Jesus Cristo, por meio dos votos religiosos ou da unção
sacerdotal, garantem uma «força e vantagem suplementar», até por causa
da possibilidade de dedicar-se inteiramente à esta missão, sem qualquer
tipo de «dispersão» ou de apego terreno.
O professor cristão «comunica seus pensamentos; revela o que é
verdadeiro segundo sua inteligência concebe; o belo, como ele
—————————–
54
55
H. WILMER, «León Dehon como educador», 70-71.
OSC IV, 272. Dehon faz esta relação entre magistério e a dimensão
reparadora do sacerdócio no prólogo de seu livro, utilizando o texto bíblico
de Ef 1,10.
163
compreende e aprendeu a amar, o bem segundo sua consciência»56. Deve
ser mais que um homem virtuoso ou de prestígio. É preciso que o
discípulo perceba que está diante de «alguém que se inspira com
fidelidade no Mestre dos mestres, Jesus»57. Segundo Dehon, o segredo
do entusiasmo, desprendimento e disponibilidade do mestre cristão é que
trabalhando pela juventude, ele «acredita que está trabalhando para
Deus»58.
O retiro que Dehon pregou aos professores, em setembro de 1877, é
como que uma ressonância bíblico-espiritual das convicções sobre a
identidade e missão do mestre cristão, expressas no discurso de agosto59.
São treze meditações, feitas em quatro dias, em que ele começa com o
texto das Bem-aventuranças, lembrando a necessidade de purificação
para iniciar a missão60: «Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus» (Mt 5,8). Insiste que os professores repitam com Samuel:
«Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (1Rs 3,10). Lembra a
disponibilidade de Maria: «Ecce ancilla Domini» (Lc 1,38). Portanto,
seu ponto de partida é a abertura para ouvir. Somente depois apresenta a
disposição de Paulo para a missão: «Domine, quid me vis facere?» (cf.
At 9,6)61.
Na terceira e quarta meditações, Dehon apresenta a «missão divina de
ensinar» a partir dos mandatos missionários que estão nos evangelhos de
João e Mateus (cf. Jo 20, 19-21; Mt 28,19). O professor deve ensinar
como ensinaria o próprio Jesus62. Na quarta meditação, em especial, cita
—————————–
56
57
58
59
60
61
62
OSC IV, 279.
OSC IV, 279.
OSC IV, 280. «En travaillant pour eux, nous croyons travailler pour Dieu».
As anotações deste retiro estão registradas nos cadernos de Memórias de
Dehon. NHV XIII, 2-20. Achamos oportuno incluir aqui as linhas gerais
destas pregações porque completam bem o modelo de professor que Dehon
tinha em mente.
Nesta linha, lembra também o Salmo 50,12.9-10: «Cria em mim um coração
puro, ó Deus».
NQT XXV/1910, 45.
Dehon lembra que esta missão é feita em comunhão com o bispo, que
nomeia os professores, e com o Papa, que é a presença viva de Pedro. NHV
XIII, 6.
164
o texto bíblico que utilizaria na capa de seu livro: «Apparuit gratia Dei,
salvatoris nostri, omnibus hominibus, erudiens nos, ut abnegantes
impietatem et sæcularia desideria, sobrie et juste et pie vivamus in hoc
sæculo» (Tt 2,11-12). Termina comparando a missão de ensinar com o
mandato apostólico dado por Jesus aos seus discípulos (cf. Mt 10,8; Lc
10,18.21). Nas meditações, sempre por intermédio de referências
bíblicas, Dehon exorta os professores à santificação pessoal (cf. 1Cor
9,23.27); à caridade mútua (cf. Pr 18,19; Jo 17,11); à uma vida
eucarística (cf. Lc 22,15; Mt 26,26, Lc 22,19); à devoção ao Sagrado
Coração de Jesus, lembrando as promessas feitas da Santa Margarida
Maria; a reconhecer o valor da cruz (cf. Gal 6, 14; Col 1,24); a amar
Maria como mãe (cf. Lc 2,48); à devoção aos santos, especialmente São
José e São João, patronos da obra (cf. 1Jo 2,13-14); a pedir a ajuda dos
santos anjos (cf. Mt 18,10); enfim, a perseverar até o fim (cf. Mt 10,22).
Chama a atenção o caráter eminentemente bíblico da orientação
espiritual de Dehon para seus professores. Outro destaque é a visão do
magistério como apostolado, como fruto de uma vocação. Em nenhum
momento Dehon fala dos dotes intelectuais dos professores. Insiste,
sobretudo, na santidade de vida.
b. Os livros
Para Dehon, os livros são «conselheiros dos alunos», influenciam em
sua alma e podem agir a favor ou contra os professores63. Podem falar
mais alto até mesmo que os conselhos dos pais. Influenciam na
elaboração da «idéia predominante» que orienta o desenvolvimento em
determinada fase da vida. Por isso devem ser adequados à capacidade de
reflexão própria de cada idade. É preciso que haja uma escolha crítica e
prudente dos livros didáticos e de literatura complementar. Dehon,
apoiado nas diretrizes de Pio IX, reflete sobre o uso da literatura pagã e
cristã na escola64. Cita Platão, segundo o qual a beleza é o esplendor da
verdade, para dizer que a beleza natural que existe na literatura clássica
—————————–
63
64
OSC IV, 280.
Neste contexto, cita várias vezes a carta breve de Pio IX a Mons. D’Avanzo,
em 1º de abril de 1875. Considera a carta de Mons. d’Avanzo, em 4 de
novembro de 1874, «um verdadeiro tratado nesta matéria». OSC IV, 282,
notas 1 e 2.
165
pagã, existe em abundância na literatura cristã. Para defender a qualidade
da literatura cristã, Dehon utiliza um argumento teológico interessante:
A arte de «dizer bem», em sua acepção original não é uma maravilhosa
emanação do Verbo de Deus, da Palavra de Deus Pai? Como então se poderia
acreditar que o Verbo encarnado, que se havia dignado distribuir o dom da
palavra às nações que não O conheciam haveria, pois, recusado à Igreja, sua
esposa, que adquiriu com o preço do Seu sangue?65
Dehon aceita o uso dos autores profanos na educação cristã. Mas não
é esta exatamente a questão que está em jogo no momento de seu
discurso. A utilidade pedagógica da literatura cristã é que era duramente
questionada na reforma educacional de Jules Ferry. Assim, Dehon
investe sua argumentação em afirmar a tolerância da Igreja Católica em
aceitar a utilidade da literatura pagã e em reivindicar que a literatura
cristã seja igualmente aceita nos padrões oficiais. Este era um grande
problema para as escolas católicas neste período, pois os programas
impostos aos exames, pelo Estado, ignoravam sempre mais a literatura
cristã, o que condicionava o interesse dos alunos, ao longo do curso, por
uma literatura que seria cobrada no exame. Esta realidade se reflete
claramente em uma frase do discurso de Dehon, quando diz:
«Reagiremos contra estes abusos na medida do possível, considerando os
programas que nos impõem os exames»66. O resultado desta política é
que, mesmo em escolas católicas, os alunos acabavam por conhecer
melhor a mitologia e os deuses pagãos do que a Bíblia e os heróis
cristãos.
É interessante o argumento de defesa de Dehon que sempre apresenta
a Igreja como um réu com ideais semelhantes aos afirmados
teoricamente pelo seu acusador, como liberdade e tolerância. Na prática,
a Terceira República implantava um programa educacional baseado no
cerceamento à liberdade do ensino pelas congregações religiosas. Assim,
Dehon transforma o promotor em réu. Sua defesa é elaborada por uma
sutil forma de ataque, mostrando as contradições do acusador e a
coerência da educação segundo o ideal cristão.
—————————–
65
66
OSC IV, 282.
OSC IV, 284.
166
Em todas estas ponderações sobre os livros, percebemos a opção de
Dehon por um ponto de equilíbrio. Não deseja «nem espíritos levianos,
nem doutores precoces». Ele mesmo afirma: «A infância é a primavera
da vida. Idade das flores mais que dos frutos. O florescimento e o frescor
lhe são mais apropriados que a maturidade. Deus, normalmente, dá às
crianças a beleza, e sua ingênua bondade é como um perfume que nos
alegra»67.
O método educacional
Dehon reflete sobre o método educacional a partir «daquilo que
motiva os esforços do aluno»68. Pode ser o temor, o sentimento de honra,
o afeto filial, ou a fé. Em sua noção de antropologia cristã, ele entende
que o pecado original deixou em cada ser humano uma mistura de
qualidade e defeitos, instintos funestos e nobres inclinações. Há um
verdadeiro «combate» na alma de cada educando, que vive esta
contradição interna. Como ele mesmo diz «coexistem dois exércitos com
distintas motivações»69. É preciso reunir as forças positivas por meio de
um princípio predominante que motive ao trabalho, ao dever, à virtude, à
constância.
O uso do temor não se pode eliminar totalmente, mas ao colocá-lo
como «motivação principal» do aluno, ou «fundamento do método
pedagógico» se agride o coração, provoca a falsidade, apaga os impulsos
de generosidade natural e torna a alma egoísta e preocupada unicamente
em evitar a correção.
A vergonha e a honra seriam princípios pedagógicos válidos, mas
superficiais e perigosos, porque produzem virtude aparente, enfraquecem
a convicção de consciência e resultam em um amor próprio egoísta que
não seria mais do que uma mera preparação para uma vida de entrega e
generosidade que propõe o ideal cristão.
O afeto filial é, normalmente, utilizado no âmbito das relações
pedagógicas que se estabelecem entre pais e filhos. Os pais imaginam
que seus filhos irão praticar o dever e a virtude para os agradar. É um
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67
68
69
OSC IV, 284.
OSC IV, 284.
OSC IV, 284.
167
princípio pedagógico nobre, mas insuficiente. A adolescência, por
exemplo, é um tempo em que o afeto filial resulta de pouca eficácia
pedagógica.
A partir da análise destas lacunas, Dehon defende que os «princípios
da vida cristã», ou seja, as motivações nascidas da fé, geram a motivação
necessária para guiar o aluno desde os primeiros passos. A partir deste
princípio e fundamento, ele constrói sua proposta metodológica
consciente da necessidade de distinguir a especificidade de cada
disciplina, dos procedimentos didáticos, do ensino progressivo, uso de
recursos visuais e atenção à psicologia da criança e do desenvolvimento.
Ele assume a proposta codificada no Traité des Études, de Charles
Rollin, para educar a inteligência e o coração.
Tomaremos em conjunto o grande método cristão, que começou depois da
paz da Igreja, com os Santos Padres da Igreja grega e latina; método que se
adaptou através de distintas épocas, conservando seus princípios
fundamentais. Métodos das escolas monásticas e episcopais da Idade Média,
das grandes universidades do século XII, de Bossuet, de Fénelon, de Fleury;
método que foi codificado pelo sábio e piedoso Rollin em seu Traité des
Études70.
Rollin inicia seu «Tratado sobre os Estudos» com um «Discurso
Preliminar» em que indica que a Universidade de Paris teria sido
fundada para trabalhar a educação da juventude a partir de três grandes
pilares: a ciência, os costumes e a religião. Segundo ele, é preciso
cultivar o espírito dos jovens por meio do conhecimento; educar seus
corações por meios dos bons costumes para fazer deles bons cidadãos e,
enfim, aperfeiçoar os jovens por meio da fé, fazendo deles bons
cristãos71. Convenhamos que esta é uma visão de Educação Integral
bastante desenvolvida para o século XVII. O que Rollin defende é a
educação da pessoa como um todo, ou seja, espírito, inteligência e
coração. Ele percebeu que os conhecimentos, os costumes e a fé elevam
e aperfeiçoam a pessoa. Por isso, os assume como princípios
—————————–
70
71
Traité des études ou De la manière d’enseigner et d’étudier les belleslettres, par rapport à l’esprit et au cœur, de Charles Rollin havia sido
publicado em 1726. É um primeiro manual que resume e apresenta os
métodos educativos conhecidos até então.
Ch. ROLLIN, Traité des études, Tome Premier, 1.
168
pedagógicos aplicáveis ao estudo das mais diferentes disciplinas. Seu
«Tratado sobre os Estudos» faz essa aplicação de um modo denso,
sistemático e detalhado. Chega a explicitar como estes princípios
funcionariam nos estudos da gramática francesa, latina e grega; no
estudo da literatura clássica, principalmente Homero; no conhecimento
dos fundamentos semânticos e simbólicos da poesia; nos fundamentos da
retórica, apoiado em exemplos como Cícero, Agostinho e João
Crisóstomo e em lições extraídas da Bíblia; no estudo da história e da
geografia; no cultivo das virtudes morais e civís; no estudo das fábulas e
dos mitos; no conhecimento da filosofia. Rollin encerra seu tratado
refletindo sobre a administração destes princípios e conteúdos no
ambiente escolar.
Dehon assiste e critica a proliferação de propostas pedagógicas de seu
tempo: Rabelais, Montaigne, Ramus, Condorcet, Rousseau e outros.
Cita, em especial, a «escola progressiva». Diante de todas estas
propostas alinhadas à reforma educacional do Estado Republicano,
Dehon prefere preservar o fundamental do «grande método dos antigos»
sem rejeitar as melhorias que o tempo e a experiência podem trazer. Ele
reconhece que o progresso da Ciência deve ocupar um lugar na educação
e está convencido que é preciso estar atento às novas necessidades que
surgem em cada época. Finalmente, ele sintetiza o método de Rollin:
Conhecer o caráter do aluno para saber como melhor orientá-lo; conseguindo
dele tanto o carinho como o respeito; dizer as razões; habituá-los à
sinceridade; formá-los nas boas maneiras; fazer agradável o estudo; e
sobretudo fazer com que neles reine a piedade, que é um resumo de todas as
boas inclinações do coração72.
De fato, encontramos estes princípios no oitavo capítulo da Parte III
do «Tratado sobre os Estudos»73. Baseado em Fénelon e M. Locke e
aludindo aos exemplos educacionais clássicos de Atenas e Roma, Rollin
procura explicitar os objetivos e o método da educação.
—————————–
72
73
OSC IV, 288. Dehon cita literalmente as idéias de Rollin, porém, sem fazer
alusão aos capítulos em que este autor trata da repreensão e do modo de
aplicar os castigos. CH. ROLLIN, Traité des études, Tome Troisième, 220257.
Ch. ROLLIN, Traité des études, Tome Troisième, 220-257.
169
Sistematicamente enumera procedimentos pedagógicos em treze artigos,
que reproduzimos indicando o título de maneira literal:
Artigo I:
O primeiro passo na boa educação é sempre estabelecer um
objetivo, uma meta à qual se pretende chegar e que
determinarão os meios que devem ser utilizados.
Artigo II:
Estudar o caráter dos jovens para bem poder conduzi-los.
Artigo III:
Ter autoridade sobre os jovens.
Artigo IV: Fazer-se amar e respeitar.
Artigo V:
Existem regras que devem ser observadas para repreender os
alunos.
ArtigoVI:
Existe um tempo e uma maneira de punir.
Artigo VII: Explicar as razões aos jovens; fazer uso do elogio e da
recompensa.
Artigo VIII: Acostumar os jovens a serem verdadeiros.
Artigo IX: Acostumar os jovens às boas maneiras, à higiene e à
pontualidade.
Artigo X:
Tornar os estudos agradáveis.
Artigo XI: Garantir o repouso e a recreação aos alunos.
Artigo XII: Educar a juventude por meio das palavras e dos exemplos.
Artigo XIII: A importância da piedade e da religião na educação.
Desta maneira, percebemos que, inspirado na proposta pedagógica de
Rollin, Dehon procura, também sob o ponto de vista metodológico, uma
Educação Integral, que seja capaz de educar a inteligência e a
sensibilidade; centrada na pessoa e nas motivações do aluno, e não
simplesmente na transmissão de conhecimentos ou na sabedoria do
professor; formando a pessoa como um todo, a partir do coração, e
atingindo todas as dimensões de sua vida.
Porém, é preciso observar que em seu resumo dos treze artigos de
Rollin, Dehon simplesmente ignora os artigos V e VI, que se referem à
repreensão e às punições. Portanto, estamos diante de uma leitura
seletiva, que aponta para uma educação mais liberal, que supera os
métodos punitivos em praticados na sua época. Dehon não acredita no
castigo como fórmula didático-pedagógica. Através de sua gentileza
característica, será sempre chamado pelos seus seguidores de «Très bon
père». Este é um testemunho que encontramos nos relatos de muitos de
seus ex-alunos: era um homem bom! 74 Seu discipulo, Delloue, dirá em
—————————–
74
G. CRINON, «Allocution sur le Père Dehon», in Dehoniana 3 (2004) 13-16.
170
1927 que justamente por este seu método liberal, Dehon era criticado
pelos amantes de uma disciplina mais rígida75.
Os frutos de uma educação cristã
O discurso programático de Dehon termina apontando quais seriam os
resultados concretos de uma educação segundo o ideal cristão. Defende
que educação e religião devem andar juntas para cultivar as faculdades
mais elevadas do ser humano e construir a civilização da inteligência e
do coração. Neste momento de seu discurso, Dehon recorda as
conferências sobre educação do jesuíta, P. Félix − que acompanhara nos
seus tempos de estudante em Paris − sobre como seria uma educação
sem religião:
Poderia ter a ciência, mas não a fé; a inteligência, mas sem princípios.
Conheceria o ódio, não o amor; a revolta, não a obediência; o desprezo, não o
respeito; a volúpia, não a castidade. Seria capaz de enriquecer-se, mas não de
entregar-se aos outros. Em seu conjunto seria um povo egoísta, sensual,
voluptuoso, sem amor, sem generosidade, para dizer em uma palavra, um
povo mal-educado76.
Com isso, Dehon ataca aquilo que chama de «Escola Neutra» ou
«Colégio Indiferente» , que indicava a instituição construída a partir do
ideal da educação laica, sem um necessário compromisso com a religião
ou com algum tipo de confissão religiosa. Ele compara os seus frutos
com aqueles dos Colégios Católicos77. Novamente, sua defesa é o
ataque. A educação cristã, por sua vez, é capaz de conduzir uma vida ao
seu verdadeiro ideal, produzir espíritos verdadeiramente esclarecidos,
—————————–
75
76
77
Cf. A. DELLOUE, «Discours», 12. «M. Dehon [...] ne s’embarassait guère des
petites difficultés de discipline scolaire».
OSC IV, 292.
Esta parte final do texto do primeiro discurso, segundo a publicação em
livro, na verdade parece ter sido originalmente o começo do discurso,
pronunciado em 1878, de acordo com o relato do próprio Dehon em NHV
XIII, 53. Ele tomou o cuidado de registrar o início e o final do seu segundo
discurso. O texto das Memórias coincide substancialmente com o publicado,
porém há uma série de alterações de estilo, principalmente para atenuar o
estilo oral.
171
firmeza de caráter, corações generosos, pessoas de fé e de ação, capazes
de refletir e decidir; pessoas capazes de toda a dedicação e sacrifício à
religião e à pátria. Estes são, segundo Léon Dehon, os frutos da educação
cristã.
3. Segundo discurso: Sobre as Letras Cristãs (1878)
Novamente estamos diante de um texto do mesmo gênero literário
jurídico-apologético que o anterior, pronunciado no Colégio São João,
no dia 5 de agosto de 187878. É bem mais simples e breve que o primeiro
e se insere na estrutura geral do livro como uma defesa das letras cristãs
diante da acusação de que a religião seria fonte de ignorância e
superstição e que sua literatura seria pobre e inferior. Dehon pretende
mostrar o quanto as letras devem à religião79 e que esta «considera as
letras e as ciências como necessárias para desenvolver as faculdades
mais essenciais do espírito»80.
O valor literário da Bíblia
Dehon critica uma certa idealização, que começa a existir em seu
tempo, de tudo o que tem o «caráter laico». Afirma que grandes
cientistas e escritores não eram «laicos» e que esta condição, por si só,
—————————–
78
79
80
A exemplo do primeiro discurso, Dehon tomou o cuidado de registrar este
evento em suas Memórias, inclusive com um resumo deste segundo
discurso. Afirma que o texto integral teria sido publicado no jornal
Conservateur de L’Aisne do dia 07.08.1878. NHV XIII, 52. Leu vários livros
de literatura cristã para preparar o texto. NHV XIII, 108. Há uma referência a
este discurso no periódico La Semaine Religieuse 32 (10.08.1878) 445-446.
Encontramos também um registro detalhado da solenidade em L’Aigle de
Saint-Jean 22 (1878) 167-173. Há ali também um resumo do discurso
proferido por Dehon, que coincide com o de Notes sur l’Histoire de ma Vie
e o publicado em livro.
OSC IV, 270.
OSC IV, 277-278. Este discurso parece ter sido menos revisado que o
primeiro, pois neste não existem notas de rodapé e o estilo oral está melhor
preservado.
172
não é garantia de erudição. Em seguida, passa a analisar o que chama de
«epopéia bíblica», o relato da construção da nação de Israel em três atos
de um belo poema que basicamente narram as vitórias de Cristo para a
fundação da Jerusalém celeste81.
O primeiro, é Cristo prometido, figurado, esperado, preparado. Isto é, o
Antigo Testamento em sua maravilhosa variedade. O segundo é Cristo
realizado, vivendo, morrendo, ressuscitado, e conquistando o mundo pela
Igreja e pela Eucaristia; nos textos sagrados está nos Evangelhos, Atos e
Epístolas. O terceiro é o triunfo definitivo de Cristo na Jerusalém celeste
junto a seus companheiros de lutas e glórias. E este ato foi visto
antecipadamente com olhos de águia pelo apóstolo no Apocalipse82.
Após esta pontuação cristocêntrica, Dehon já não faz alusão a nenhum
texto do Novo Testamento. Toda a sua argumentação é apoiada no valor
literário do Antigo Testamento, começando por Moisés, que ele
considera historiador, antes de Heródoto, poeta, elogiado por Bossuet,
tão filósofo e legislador quanto Platão, Licurgo e Cícero. Em seguida faz
uma rápida revisão da literatura bíblica, livro por livro, sempre em
paralelo com a literatura pagã. Aponta, por exemplo, o patriotismo dos
Macabeus; as narrativas de costumes de época que se encontram em
Rute, Judite, Tobias e Ester; as figuras de linguagem do livro da
Sabedoria; a poesia dos Salmos; a filosofia de Jó. E, termina dizendo:
Píndaro cantou os heróis e as cidades da Grécia. Horácio celebrou os prazeres
e os deuses dos romanos. Podemos reler com curiosidade. Não se canta mais
com eles. Cantamos todos os dias com Davi. Sua lira fará vibrar eternamente
as almas para repetir a bondade de Deus, a glória de Cristo, a alegria dos
justos e o castigo dos ímpios83.
—————————–
81
82
83
Interessante que Dehon em nenhum momento de seu discurso utiliza textos
bíblicos para defender o valor literário da Bíblia. Isto é próprio do gênero de
discurso jurídico que compara os fatos com a lei.
OSC IV, 295-296. Grifos do autor. Dehon entende que esta chave da história
em três atos está revelada na Carta aos Hebreus: «Antes de nós, tudo era
figurado e anunciado. Atualmente, as coisas estão na sombra ou debaixo de
um véu, é o reino de Cristo que está na Eucaristia e na Igreja. Logo chegará
a plena luz e veremos Cristo triunfante». Ibidem.
OSC IV, 298. Grifos do autor.
173
O fato de a «epopéia de Cristo» atravessar a história e permanecer
sempre presente, dá a literatura cristã um valor que não se pode
encontrar nas outras que, de certa forma, são prisioneiras do passado.
A patrologia grega e latina
Sobre o valor literário da patrologia começa por destacar a oratória
dos cristãos gregos. Destaca a erudição e eloquência de Santo Atanásio,
segundo o juízo de Bossuet; o equilíbrio entre profundidade doutrinal e
estilo de São Gregório de Nazianzo, comparável à Isócrates; a mistura de
imaginação oriental e sensibilidade de coração na troca de cartas entre
Basílio e Gregório de Nazianzo; a oratória nobre e popular de João
Crisóstomo que tem a graça de Cícero e a riqueza de imagens de
Homero.
Nos padres latinos, Dehon destaca a dialética enérgica de Tertuliano,
que compara a Bossuet; a doce e completa oratória de São Cipriano, a
comovente poesia de Santo Ambrósio, que lembra Fénelon; a capacidade
de colocar o coração nas palavras, de São Jerônimo, apesar do estilo
descuidado; e Santo Agostinho, gênio profundo e universal, que supera a
todos na grandeza e profundidade dos pensamentos, da história à
filosofia, da teologia à delicada análise psicológica que podemos
encontrar em suas Confissões.
Dehon destaca ainda entre os escritores latinos a mística persuasiva
de São Bernardo; a sabedoria simples e piedosa de São Boaventura; e
Santo Tomás de Aquino, que ele considera «o espírito mais vasto, mais
completo, mais claro e metódico que existiu na grande família
humana»84 e que, certamente, permanecerá para sempre como o mestre
dos Doutores da Igreja.
A literatura cristã francesa
Avançando em sua defesa das «letras cristãs», Dehon acusa o
Renascimento de haver se apaixonado pela antiguidade «esquecendo» e
«desprezando» a poesia medieval francesa marcadamente Villehardouin
e Joinville, ou a Canção de Roland. Neste sentido o Renascimento teria
—————————–
84
OSC IV, 300.
174
ganho na forma e perdido no sentimento patriótico e cristão. Considera o
século XVII modelo de literatura cristã com Bossuet, Racine, Massillon,
e Bourdaloue. O século XVIII, segundo ele, seria o tempo da
incredulidade e conseqüentemente, da decadência do gosto e da
genialidade literária. Dehon cita quatro pilares: Voltaire, Rousseau,
Montesquieu e Buffon, que eram, para ele, autores «contemporâneos».
Seu argumento é destacar que os valores literários destes autores
«modernos» foram, de alguma maneira, fecundados pela presença da
educação cristã ou religiosa em suas vidas. Lembra, por exemplo, que
Voltaire teria recebido sua primeira formação dos jesuítas. Assim, «o
espírito religioso» seria a chave para compreender estas obras
fundamentais. Dehon ataca na raiz a «neutralidade religiosa» proposta
como matriz da organização curricular da escola laica.
Dehon se reporta várias vezes em seu discurso à René de
Chateaubriand (1768-1848) que se dedicara a reconciliar o espírito
francês do século XVIII com a religião cristã que eles consideravam
«inimiga das luzes, das ciências, das artes e do bem estar»85. Com isso,
sente-se autorizado a afirmar que «em literatura, o cristianismo não é a
sombra da noite, mas a esplêndida luz»86.
A fé como chave da história
Ao final do seu discurso, Dehon faz como que um apêndice para tratar
da questão da história como literatura87. Segundo ele, a fé é a chave da
história:
A história do mundo é a história da ação providencial de Deus sobre a terra.
Somente este verdadeiro ponto de vista faz os grandes historiadores. A
história do mundo é a história de Cristo: o Cristo preparado, o Cristo
—————————–
85
86
87
R. CHATEAUBRIAND, Génie du Christianisme, Paris, 1802. Dehon cita ainda
M. de Bonald, Joseph de Maistre, M. de Lamartine e Victor Hugo. Para
situar o significado destas personalidades no cenário histórico da França
moderna: K. BIHLMEYER – H. TUECHLE, Storia della Chiesa, IV, 163.
OSC IV, 303.
Dehon tratará especificamente o tema do estudo da história em seu sexto
discurso.
175
revelado, o Cristo lutando e reinando. [...] Somente através de Cristo se
compreende a história88.
Mais uma vez aparece claramente o seu marcante cristocentrismo.
Segundo Dehon, a história foi um ponto um pouco esquecido pela
Restauração cristã do século XIX, apesar dos breves acenos de
Chateaubriand e Joseph de Maistre, adeptos da escola histórica de
Jacques Benigne Bossuet (1627-1704), que considera o mestre de todos.
Dehon conclui seu discurso com o estilo característico de, ao final de
cada parte de sua defesa, resumir em uma frase a resposta ao acusador,
incluindo a acusação: «Em história, o cristianismo não é cegueira, ele é
um olhar que tem a altura e a extensão do horizonte»89.
4. Terceiro discurso: Sobre o patriotismo cristão (1879)
Este discurso foi pronunciado na tradicional cerimônia de
«Distribuição de Prêmios», no Colégio São João, no dia 2 de agosto de
1879. Antes de integrar o livro publicado em 1887, o texto recebeu uma
publicação especial pelo Jornal Conservateur de L’Aisne90. Está inserido
—————————–
88
89
90
OSC IV, 303-304. Este texto está praticamente idêntico em NHV XIII, 58.
Porém, junto com «Cristo revelado», Dehon coloca o «Cristo manifestado».
Esta expressão não aparece no texto publicado. Além disso, no mesmo
número das Memórias há um parágrafo sobre a dimensão social do ensino
católico nas escolas, que não está no texto publicado: «Dans nos maisons
d’éducation seulement, les enfants sont initiés à la connaissance et à la
pratique de ces œuvres catholiques qui contiennent la solution du redoutable
problème social.»
OSC IV, 303-306.
L. DEHON, Du Patriotisme Chrétien, Saint-Quentin 1879. Um resumo deste
discurso pode ser encontrado em: NHV XII, 146. Os textos não apresentam
diferenças importantes. Há uma ou outra correção de estilo no texto
publicado que é, porém mais longo, tendo acréscimo de parágrafos inteiros.
Foi publicado também em L’Aigle de Saint-Jean 61 (1879) 481-487. O texto
coincide com o das Memórias de Dehon.
176
no plano geral da obra, tendo como objetivo demonstrar «o que o
patriotismo deve ao ardor da fé»91.
Contexto político-eclesial
Neste tempo Dehon começa a confiar o Patronato São José aos
cuidados de P. Rasset, que acabará por assumir a direção, até 1885. O
trabalho com os filhos dos operários perdia um pouco de terreno. Ele
percebe que as mudanças necessárias para a Igreja na França somente
aconteceriam por meio de uma opção pelo apostolado com os operários.
«Era necessário fazer o clero da França entender isso»92. Dehon está
atento também aos fatos políticos deste período. Um parágrafo de suas
memórias mostra bem seu olhar sobre a história do seu tempo:
Os católicos não compreenderam as aspirações populares, eles se fecharam
nas suas esperanças e intrigas monarquistas. Tiveram péssima votação para a
Câmera em outubro de 1878. Os 363 foram reeleitos e para afirmar a
república começaram a kulturkampf que deveria durar anos. Mac-Mahon foi
levado a renunciar em 28 de janeiro [1879]. Grévy foi eleito. O parlamento se
pôs a desfazer todas as boas leis votadas nos últimos seis anos. O privilégio
das Universidades livres foi diminuído, se trabalhou para laicizar o ensino
primário. Jules Ferry volta sua atenção para o ensino secundário por meio do
seu famoso artigo 793.
Dehon acabara de fazer uma peregrinação com os alunos ao santuário
de La Salette onde encerrou, em comunhão com católicos de toda a
França, uma «novena em favor do ensino cristão que era combatido de
todas as maneiras pela maioria do parlamento»94. Em suas memórias
temos o registro de uma parte de seu sermão naquele dia:
—————————–
91
92
93
94
OSC IV, 270.
NHV XIII, 147.
NHV XIII, 147. Este texto refere-se aos acontecimentos de 1879, porém,
como está no caderno XIII de Notes sur l’Histoire de ma vie podemos
legitimamente imaginar que foi escrito bem depois de 1886, quando
começou a redigir suas Memórias. O artigo 7 a que se refere Dehon:
«personne ne peut diriger des écoles publiques ou privées de quelque genre
que se soit, ni y enseigner, s’il appartient à une Congrégation non autorisée».
NHV XIII, 134.
177
A França cristã, aos pés de Nossa Senhora Auxiliadora, termina hoje uma
novena de preces para obter o triunfo do ensino cristão. Vocês são agora
muito jovens para entender a importância desta luta. [...] Jesus não deixará as
escolas sem Deus reinarem na França95.
Este é o pano de fundo político-cultural do terceiro discurso
educacional de Léon Dehon que, não por acaso, vai tratar de
«patriotismo cristão». Ele está atento, também, ao início do pontificado
de Leão XIII, que sob seu ponto de vista «começava a revelar seu grande
caráter e sua missão providencial»96. O momento era delicado porque a
reivindicação da «restauração do poder temporal dos papas» e
afirmações como «a principal causa dos males é o desprezo e a rejeição
da santa e augustíssima autoridade da Igreja que governa o gênero
humano em Nome de Deus e que é a salvaguarda e o apoio de toda
autoridade legítima»97, contidas na Encíclica Inscrutabili Dei Consilio,
reaqueciam a acusação de que a Igreja era inimiga da civilização e um
obstáculo à prosperidade. Leão XIII desde o início de seu pontificado
acusa os governantes de esquecerem «as coisas eternas» e de manterem
apenas a «aparência de defensores da pátria, da liberdade e de todos os
direitos»98. Seria um patriotismo de aparências que, na verdade, despreza
o poder espiritual, persegue as Ordens religiosas e «viola e oprime o
direito da Igreja à instrução e à educação da juventude»99. O Papa
convoca, formalmente, os cristãos a trabalharem para defender a Igreja
«atacada por tantas calúnias», para fazer prosperar entre os jovens um
—————————–
95
96
97
98
99
NHV XIII, 134.
NHV XIII, 149. Dehon cita em especial a Encíclica Inscrutabili Dei Consilio
de 21 de abril de 1878, onde percebe um programa de pontificado que parte
da constatação do mal estar social: o desprezo dos verdadeiros princípios
sociais, a opressão capitalista e a utopia socialista. Esta interpretação de
Dehon deve ter sido escrita bem mais tarde, pois no texto desta Encíclica não
há referências explícitas ao capitalismo ou ao socialismo. ASS 10 (1877)
585-592. Isto virá em 28 de dezembro de 1878, com a Encíclica Quod
apostolici muneris, sobre o socialismo, comunismo e nihilismo. ASS 11
(1878) 372-379.
ASS 10 (1877) 585-587.
ASS 10 (1877) 585.
ASS 10 (1877) 586.
178
«hábil e sólido método de educação» e não separar da fé católica o
ensino das letras, da ciência e da filosofia. A primeira Encíclica de Leão
XIII havia sido publicada em abril de 1878, antes do segundo discurso
educacional, porém seu eco se fará sentir claramente na obra de Dehon
apenas neste terceiro discurso, em agosto de 1879.
Apologia do patriotismo cristão
Léon Dehon parece deixar de lado o seu característico tom jurídico de
defesa e assume uma retórica mais positiva para exaltar o patriotismo
cristão. É um texto mais ufanista que apologético. Praticamente não se
encontram referências a alguma acusação. Somente no final Dehon
deixará o juízo da história a cargo de cada aluno. É interessante também
que o interlocutor deste discurso é preferencialmente o corpo discente.
Não se refere aos professores, nem às autoridades. O discurso foi
preparado para os jovens. A certa altura, ele revela: «Não me detenho
nas fraquezas e apostasias do momento; poderia ferir suscetibilidades e
isto não seria oportuno em uma festa escolar»100. Isto explica a timidez
apologética de suas palavras e a opção por um discurso-padrão. O
momento era delicado. Além disso, o tema escolhido o colocava
exatamente no ponto de tensão entre o galicanismo e o ultramontanismo.
Dehon exalta ao extremo a França, destacando suas origens cristãs.
Mostra que «a fé nunca apaga o amor pela pátria; ela o esclarece e o
fortifica, assim como eleva e faz crescer tudo o que é bom na natureza. O
homem religioso ama sua pátria em Deus»101. Citando o apóstolo Paulo,
encontra argumentos para afirmar a dimensão religiosa do patriotismo:
A pátria, diz ele [Paulo], é uma grande família, são meus irmãos, os de minha
própria raça; a pátria judía, para ele é mais do que isso, é o povo eleito por
Deus, o povo dos patriarcas, das alianças, da Arca da Aliança, dos milagres
divinos, das profecias, da promessa do Redentor, é o povo de Deus e de
Cristo102.
Depois seu olhar se volta para a história e ele passa a expor de que
modo a fé formou pátrias como Polônia, Irlanda e França. Não cita a
—————————–
100
101
102
OSC IV, 314.
OSC IV, 310.
OSC IV, 310, nota 1. Dehon cita especificamente o texto de Rm 9,1-5.
179
Itália. Prefere falar do «sangue romano» que é um dom de Deus e cuja
pátria é «a cátedra e o sepulcro de Pedro». Já com relação à França, se
detém praticamente, até o final do discurso, em explicitar as raízes
cristãs. Chega a dizer que estaria disposto a dar seu sangue para defender
a pátria; que se não tivesse sido francês por nascimento, seria por
adoção; que é entre todas as nações a mais amada e particularmente
abençoada por Cristo; que é uma nação batizada; uma terra regada com o
sangue dos mártires; uma defensora da Igreja e vencedora das heresias;
missionária em tantas nações da terra; que sabe vestir e alimentar Cristo
na pessoa dos pobres. Mas diz também, sutilmente, que a França não
pode esquecer que Cristo «deu à Igreja um chefe visível que o
representa; um chefe que nos dá a verdade sem mistura, com a
assistência divina, e que nos dirige no caminho da salvação»103.
Há também um momento interessante do discurso no qual Dehon
lembra que o patriotismo passa por uma vida de caráter e trabalho. Ele
exalta as diversas profissões como lugares onde discretamente cada
cidadão pode viver seu patriotismo no cotidiano. Assim, muitos «se
preparam no silêncio do trabalho e levam a tradição cristã à
administração, ao exército, à magistratura e à indústria»104. O mesmo
acontece no mundo da política e da economia. A este propósito lembra o
exemplo dos irmãos Harmel em Val-de-Bois, que tinham, na época,
recebido destaque em uma carta de Leão XIII105.
Dehon conclui o seu discurso citando nominalmente alguns soldados
franceses que deram seu sangue para defender a pátria e foram cristãos
exemplares, tendo estudado em escolas católicas. Todos esses seriam
frutos patrióticos de uma educação e ensino cristãos. Em seguida exalta
o exemplo de alguns missionários que também entregaram seu sangue
pela fé e que souberam «unir o amor a Deus ao amor à pátria»106.
Somente no último parágrafo Dehon retoma o tom jurídico, encerrando
seu discurso, como se estivesse em um tribunal:
—————————–
103
104
105
106
OSC IV, 313.
OSC IV, 315.
Sobre a relação de Leão XIII com a obra de Léon Harmel: G. GUITTON,
Léon Harmel, 202-226.
OSC IV, 319. Ao falar das missões no Congo, ele exalta a obra de
alfabetização dos «padres jesuítas».
180
Agora, meus filhos, são vocês que devem julgar. Quem é verdadeiramente
patriota, os católicos que veneram a Igreja e querem prosseguir sob sua
direção a obra de restauração social, ou estes homens que se mostram
pequenos de inteligência e de coração [...] e desejariam envergonhar esta
Igreja, sua mãe e mestra, colocando a civilização nos rumos do
paganismo?107
5. Quarto discurso: Sobre as virtudes da infância (1880)
Pronunciado na cerimônia de «Distribuição de Prêmios» do Colégio
São João, no encerramento do ano letivo, dia 04 de agosto de 1880, o
objetivo deste discurso é demonstrar «o que a religião acrescenta às
amáveis virtudes da infância»108. A acusação em voga, na imprensa e nas
tribunas da Câmara, naquele ano, era que «a moral cristã é imperfeita»109
e que «a educação cristã não é adequada para produzir a virtude»110.
Dehon se propõe a comparar os princípios da moral cristã com relatos
concretos de virtudes cultivadas por alunos de escolas católicas, que
recolheu em uma espécie de «Livro de Ouro»111. Diante das acusações
ele reveste a sua defesa de um caráter explícito de reparação.
Pela primeira vez o próprio bispo presidiu a cerimônia. Em fevereiro
daquele ano Leão XIII havia publicado a Encíclica Arcanum divinæ
sapientiæ112 sobre o matrimônio cristão e contra o divórcio. As leis de
Jules Ferry avançavam na direção de laicizar o ensino. O principal alvo
eram os jesuítas. Assim como no ano anterior, Dehon acompanha
—————————–
107
108
109
110
111
112
OSC IV, 320.
OSC IV, 270. O registro deste evento está em L’Aigle de Saint-Jean 102
(1880) 817-819.
OSC IV, 322.
OSC IV, 334.
Dehon recolheu biografias de alunos virtuosos, publicadas por Colégios
Eclesiásticos de Nîmes, Toulouse, Poitiers e outros. NHV XIV, 9; OSC IV,
325, nota 1.
ASS 12 (1879) 385-402. Dehon faz a seguinte consideração sobre esta
Encíclica: «Não é ao Estado, mas à Igreja, que pertence o direito de legislar
sobre o matrimônio cristão». NHV XIV, 12.
181
atentamente a evolução das leis discutidas e aprovadas na Câmara. O
Ministério da Instrução já se encontra totalmente laicizado. A situação é,
de fato, muito delicada. Em 29 de março de 1880, Jules Ferry havia
conseguido aprovar os decretos que acabariam por expulsar os jesuítas
depois de três meses. Todas as congregações «não autorizadas» corriam
risco semelhante. Mas a situação não era pacífica. A Igreja e um grupo
de magistrados reagiam contra este tipo de postura do governo. Dehon
vivera estes meses de angústia, apesar de sua Congregação ser pequena e
pouco numerosa e não ser facilmente percebida e alvo de perseguição.
De qualquer maneira, estas circunstâncias o fizeram decidir transportar o
noviciado para outro país na primeira oportunidade113. É compreensível
que o discurso comece com estas palavras:
No intervalo de um ano, o laço que nos une sofreu mais de um golpe. O erro
e a ignorância tentaram desfazer a unidade de pais e mães que confiam no
ensino cristão. Quantas vozes procuram fazer vacilar vosso sentimento. O
ataque é constante na força e varia na forma. Nós aproveitamos a ocasião
desta festa anual para dispersar as nuvens que levantam os inimigos;
proclamamos juntos a nossa fé e renovamos o nosso entusiasmo114.
O discurso é bastante simples, na mesma linha de argumentos que
Dehon utilizara nos anteriores. Ele demonstra que as virtudes da infância
encontram na fé e na educação cristã uma sólida base para se
desenvolver. Segundo ele, as principais virtudes que fazem a «perfeição
da infância» são a piedade, o afeto, a caridade, o respeito e a pureza. Ele
começa mostrando como estas virtudes estão presentes em tantos santos
e mártires que marcam a história do cristianismo. Mas depois se volta
para exemplos concretos do cotidiano para mostrar que os alunos das
escolas cristãs recebem uma educação que os habilita a viver estas
virtudes.
A piedade é própria de quem é educado em um ambiente de fé e de
oração. Segundo Dehon, o ambiente de piedade conduz a um afeto
saudável que se manifesta tanto no cultivo de amizades como no carinho
com seus pais e com as pessoas mais idosas. Sobre o cultivo da caridade
—————————–
113
114
NHV XIV, 13. De fato, em julho de 1880, foram fechadas 261 casas
religiosas e expulsos 5.643 religiosos da França.
OSC IV, 321-322.
182
para com os pobres, o discurso de Dehon é intencionalmente breve e
claro: «Somente as casas de educação cristã conhecem as associações de
caridade através das visitas às famílias necessitadas e dos sacrifícios
diários feitos em seu favor»115. Sabemos que as Conferências de São
Vicente de Paulo ocupavam um lugar importante na educação oferecida
no Colégio São João.
O argumento seguinte é que uma vida religiosa, vivida na piedade,
caridade e afeto, conduz necessariamente à virtude do respeito. Dehon
mostra a importância de reconhecer o valor da autoridade e de respeitar a
hierarquia, seja na família, na Igreja e na sociedade. Aqui nascem outras
virtudes complementares como a confiança, a docilidade, o hábito do
trabalho, a seriedade e a força do caráter.
O discurso termina com a demonstração de que a fé cristã estimula a
virtude da pureza, desejável para o desenvolvimento saudável de uma
criança, adolescente e jovem. Ele lamenta uma «educação indiferente»
que desvincula a formação do caráter do ensino das ciências e que, em
nome da «liberdade», deixa o adolescente sozinho, sem os auxílios que
uma educação pode oferecer para superar as dificuldades próprias de sua
idade.
6. Quinto discurso: Sobre a harmonia entre a ciência e a fé (1882)
Discurso pronunciado no Colégio São João, no dia 1º de agosto de
1882116. É a festa dos cinco anos do colégio. Avançava o projeto da
Kulturkampf na França, sempre sob a coordenação de Jules Ferry. Em 29
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115
116
OSC IV, 329. Parte do discurso, o início e a conclusão, está registrado nas
Memórias: NHV XIV, 88-93. O texto publicado e o manuscrito coincidem
perfeitamente.
Em 1881, pela primeira vez, Dehon não fez o discurso, deixando-o a cargo
do sacerdote e professor de retórica, Hector Rigault. O discurso foi
publicado, na íntegra, em L’Aigle de Saint-Jean 139 (1881) 289-296. É uma
defesa da educação cristã, principalmente da atuação do sacerdote como
professor. A Cerimônia de «Distribuição de Prêmios» aconteceu no dia 03
de agosto, e foi presidida por M. Hautcœur, Reitor das Faculdades Católicas
de Lille. NHV XIV, 51.
183
de março de 1882, havia sido votada a lei sobre o ensino primário.
Inicialmente o governo admitia o ensino religioso por sacerdotes, mas os
deputados católicos se uniram à extrema esquerda e recusaram uma
simples «concessão». Com isso, a legislação se radicalizou e
praticamente o ensino religioso foi suprimido na escola. Dehon
acompanha atentamente os fatos e os registra em suas memórias. Critica
a reação pouco determinante do episcopado francês frente ao avanço do
projeto educacional da maçonaria117.
Após recordar a tragédia de um incêndio que consumira parte do
Colégio São João na noite de 29 de dezembro de 1881118, Dehon abre
seu discurso pontuando a situação político-educacional daquele
momento:
Um projeto de lei nos trouxe o temor de ameaça à liberdade de ensino, mas a
estas alturas já tomou uma forma menos ameaçadora a partir das deliberações
de uma de nossas assembléias políticas, e, ainda que alguns pontos precisem
ser mais de acordo com a equidade, já não contêm nada que nos possa
inquietar no futuro119.
Para Dehon, o momento solene da «Distribuição dos Prêmios» é uma
«festa de família, onde os mestres, intimamente unidos aos pais, os
representam junto aos filhos para lhes dar, junto com a cultura do
espírito, a educação do coração»120.
Neste ano, em seu discurso, Dehon demonstra a «estreita relação da fé
com as ciências positivas»121. A grande acusação do momento era de que
a religião é uma ficção, um conjunto de mitos e de superstição sem
fundamento «científico». Somente a ciência teria poder e autoridade
—————————–
117
118
119
120
121
NHV XIV, 96.
Este incêndio está descrito, com detalhes, em NHV XIV, 85-87. Dehon vê
como um sinal providencial que a imagem do Sagrado Coração de Jesus não
tenha sido atingida pelo fogo. Além desta prova, o pai de Léon Dehon
morrera no dia 11 de fevereiro de 1882. NHV XIV, 93-95. Aumentavam,
neste período, os problemas internos da Congregação que terminariam por
provocar sua supressão pela Santa Sé.
OSC IV, 336. Este «projeto de lei» se referia ao ensino secundário.
OSC IV, 337.
OSC IV, 270.
184
«positiva». Dehon faz sua defesa citando nominalmente os ataques do
positivismo de Augusto Comte, em particular ao ensino cristão. Compara
esta «nova ciência» com um «novo rico» que pensa ter toda a
«autoridade social». Usando o testemunho de uma lista de cientistas
célebres, procura demonstrar que não existe incompatibilidade entre
ciência e fé.
Nosso objetivo é mostrar, na medida que permite a brevidade de um discurso,
o verdadeiro papel da ciência, que é de trabalhar sob o olhar da fé, como uma
irmã respeitosa, e de ajudar a Revelação, de quem ela própria recebe um
poderoso auxílio122.
Inicia mostrando que o positivismo não ataca apenas a religião ou o
estatuto científico da teologia, mas também outras ciências que não têm
por objeto a matéria ou o mundo dos sentidos, como seria a filosofia,
especificamente a metafísica, e a moral. Segundo Dehon, a «pretensão
do positivismo é ridícula» e seus erros evidentes até mesmo ao senso
comum, pois percebe que, além do conhecimento da matéria, é possível
conhecer as coisas da alma. O materialismo positivista pretenderia negar
os Dogmas da fé em seus fundamentos bíblicos.
Começando pela aritmética e passando pela álgebra e física; e
invocando o conhecimento de Copérnico, Euler, Newton, Kepler, Pascal,
Buffon, Ampère e outros, Dehon procura demonstrar que aquilo que a
Ciência lê nas entranhas do solo, se pode ler na Palavra de Deus,
corretamente interpretada. Porém, o que chama a atenção em seu
discurso é que em nenhum momento cita textos da Sagrada Escritura ou
do Magistério para fundamentar sua defesa. Seus argumentos são
construídos basicamente sobre a vida dos próprios cientistas. Dehon
destaca o modo como a experiência de fé fecundou o autêntico
conhecimento científico. Mostra, por exemplo, como Ozanam, aos 18
anos ficou tocado ao ver Ampère rezar o Rosário, ou como Cauchy,
grande matemático do século XIX, foi membro ativo das Conferências
de São Vicente de Paulo. Exemplos deste tipo ocupam a maior parte do
discurso de Dehon, que termina com a história emocionante de um
médico convertido pelo exemplo de fé, força espiritual, bondade e
generosidade de seu paciente sacerdote. Assim, a relação harmônica
—————————–
122
OSC IV, 337.
185
entre fé e ciência ultrapassa o nível das verdades positivas e verificáveis
para atingir o nível experiencial onde a constatação é que o
conhecimento científico ajuda a crer com mais qualidade e a religião
auxilia o cientista a ir mais longe em suas pesquisas. Esta seria a
contribuição da educação cristã à ciência.
Como homens de educação, cremos que as amáveis e fortes virtudes que
propomos diariamente a vossos filhos, tanto no exemplo perfeito do Coração
do Homem-DEUS [sic] como nas vidas admiráveis dos santos, são mais
adequadas para formar seus corações que os preceitos da moral cívica123.
Esta afirmação final tinha uma força especial naquele momento em
que a reforma educacional de Ferry acabara de substituir o ensino
religioso pela Educação Moral e Cívica nas escolas francesas. Como nos
discursos anteriores, Dehon não nega os valores, mas os coloca em
íntima relação com a fé. Esta é sempre sua tese de fundo, que não se
pode separar o humano e o divino, que estão em comunhão no Coração
de Jesus.
7. Sexto discurso: Sobre o estudo da história (1885)
Em 1885, Dehon continuou sua apologia da Educação Cristã
abordando o tema que ocupara seus estudos pessoais naquele ano, a
relação entre história e religião124. A tese de fundo permanece sempre a
mesma, apenas muda o tema e Dehon passa em revista as remotas raízes
cristãs da história da França. Segundo ele, as recentes descobertas
arqueológicas e o método crítico não colocam em dúvida a fé revelada,
mas a fortalece ainda mais.
—————————–
123
124
OSC IV, 351. Este discurso foi noticiado em La Semaine Religieuse 31
(1885) 488-489. Ali aparece o seguinte comentário: «Dehon, com palavras
de improviso, exprimiu toda a sua satisfação de estar em meio a esta
juventude cristã e estudiosa, à qual ele tem dado tanto testemunho de
afeição».
Este discurso foi pronunciado no dia 1º de agosto de 1885. OSC IV, 352,
nota. Uma parte dele encontra-se em NHV XIV, 163-173. Porém, a data está
erroneamente registrada como 02 de agosto de 1883.
186
Em suas palavras encontramos uma crítica contundente ao
evolucionismo enquanto tende a afirmar que todas as doutrinas religiosas
são igualmente boas pois representam apenas diferentes estágios da
evolução do espírito humano. Ele entende que é ingenuidade filosófica e
religiosa colocar no mesmo nível «Moisés e os adoradores de Apis,
Daniel e os sacerdotes do Sol, Jesus Cristo e Buda»125. Ele vê a «história
antiga em sua totalidade como preparação e a história moderna como
conseqüência do divino sacrifício do Gólgota»126. Com este critério é
possível reler a história da humanidade para encontrar estes rastros da
verdade. Dehon percorre este caminho da lucidez jurídica dos
magistrados romanos à coragem dos cavaleiros cristãos da França
medieval. Sob seu ponto de vista, haveria um movimento educacional de
esquecimento do passado cristão, ou de redução dessa história a uma
simples cronologia sem importância ou relevância atual. Diante deste
fato, evoca o discernimento dos alunos ao estudarem história para irem
além dos fatos. O estudo do passado oferece luzes para compreender o
presente:
Ali onde outros somente verão a garantia de uma certa quantidade de
conhecimentos literários, vós [caros alunos] vereis a recordação que é preciso
fazer reviver, a da coragem cristã, do amor à Igreja e à pátria127.
8. Sétimo discurso: Sobre o estudo da geografia (1886)
Este é o último discurso especificamente educacional que fez parte do
primeiro livro publicado por Dehon. Foi pronunciado na solene
«Distribuição de Prêmios» do Colégio São João, no dia 31 de julho de
1886128. Desaparece por completo o tom apologético característico dos
discursos anteriores. A estrutura jurídica da retórica dehoniana dá lugar a
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125
126
127
128
OSC IV, 354.
M. LENORMANT, Histoire ancienne de l’Orient, apud: OSC IV, 354.
OSC IV, 361.
OSC IV, 365-376. Na verdade é o último discurso, porque o sermão sobre o
Coração de Jesus, com que Dehon encerra seu livro, foi pronunciado na
Basílica de Saint-Quentin, um ano antes, em 1885.
187
um discurso pedagógico. Não existem acusações, nem júri, nem defesa.
Ele fala sobre um tema que sempre o apaixonou: o estudo da geografia.
Para Dehon, esta disciplina não tem nada daquele árido estudo de mapas,
dados sobre o clima e o relevo ou memorização do nome de cidades,
países e capitais. Ele propõe uma «geografia estética» que revele o
sentido e as belezas da arte, da natureza, da economia e da cultura em
geral. Ele se coloca no lugar de um professor de geografia e mostra
como seria seu método didático. É um texto bastante interessante, onde
mais do que nos outros, Dehon mostra suas convicções sobre a
metodologia do ensino que tem em sua mente, partindo sempre do
concreto, do pessoalmente experimentado, para a construção do
conhecimento abstrato e teórico.
O mundo é apresentado como um imenso jardim onde trabalham o
mestre e seus alunos. Deus é este mestre e artista do universo. Seus
alunos são os homens, artistas da terra. Beleza e pedagogia andam de
mãos dadas. É preciso se maravilhar com as belezas da terra para
aprender geografia. Para isso Dehon remete os alunos às típicas viagens
de férias como tempo de fecundo aprendizado. Quem não puder viajar
pode fazer o mesmo pelo uso da imaginação.
A partir daí o discurso faz um resumo daquilo que Dehon chama de
geografia estética, dando testemunho das belezas que ele mesmo viu em
suas viagens pelo mundo. Fala daquilo que tinha vivido desde a infância
em suas viagens e seu interesse pela arqueologia. Uma espécie de
espiritualidade da estética leva Dehon a louvar o Criador por meio da
contemplação de tantas maravilhas. Há um encontro interessante entre
educação e espiritualidade, estudo e prece, ciência e religião. Estudar
geografia leva, naturalmente, à oração.
Da geografia estética, Dehon passa para a estatística, etnografia,
geografia humana, política e em todas estas abordagens volta à tônica de
estudar a partir de uma experiência de fé, como alunos de um Deusprofessor e Criador. Sugere que estudar idiomas e comparar as línguas
modernas é fundamental. Ele já percebe o declínio do francês como
língua comercial e diplomática.
Termina em tom missionário, dizendo que este mundo tão grande e
pequeno ao mesmo tempo foi dado a Cristo e convoca a generosidade
francesa a entregar missionários para irem a todos os lugares do mundo
levar a Palavra de Deus. Não deixa de ser surpreendente que um discurso
188
de formatura, sobre um tema normalmente árido como geografia, tenha
sido ocasião para Dehon fazer um apelo missionário que já começava a
partir daquele ano a caracterizar sua Congregação que se preparava para
ultrapassar decididamente as fronteiras da diocese de Soissons e, em
poucos anos, espalhar missionários pelos quatro continentes. Com este
discurso parece terminar uma fase do pensamento educacional de Dehon,
como defensor, apologeta, e começa uma nova fase, a de missionário e
pedagogo.
9. Sermão sobre «A devoção ao Sagrado Coração» (1885)
Este sermão foi pronunciado na Basílica de Saint-Quentin no dia 12
de junho de 1885, festa do Sagrado Coração de Jesus129. Dehon, segundo
suas próprias palavras no prefácio do livro, o incluiu entre os discursos
educacionais porque expressa o espírito que pretende fazer reinar na sua
obra de educação130. Em nenhum momento, ao longo de todos os seus
discursos, Dehon faz a mínima alusão à sua Congregação, fundada à
sombra do Colégio. Nunca se refere aos confrades e noviços. Porém é
imenso o valor simbólico desse sermão, colocado como conclusão de seu
primeiro livro. Dehon propõe uma espiritualidade educacional
reparadora. Educar, para ele, é restaurar o Coração de Cristo em cada
jovem. Esta é a contribuição típica da educação cristã, que defendeu sob
os mais diversos pontos de vista em cada um de seus discursos
anteriores. No final de sua obra de apologia, Dehon explicita sua chave
de leitura educacional «discursando» sobre o Coração de Jesus. Sua obra
educacional, que começou com um discurso de Pedagogia, termina com
um «discurso» de Espiritualidade.
Inicia com o texto de Levítico 6,12: «O fogo queimará sempre sobre o
altar e o sacerdote o alimentará»131. Ele entende que, mais importante do
que manter o fogo ou fazer os sacrifícios, era «o culto de amor que
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129
130
131
OSC IV, 377-394. Foi publicado também em edição especial por RetauxBray, Paris 1887.
OSC IV, 270.
OSC IV, 379. «Ignis autem in altari semper ardebit, quem nutriet sacerdos
subjiciens ligna».
189
representava esse fogo e que devia elevar-se da terra até o céu, já na
antiga lei, muito mais agora, sob a lei do Evangelho»132. Portanto, todo
culto na terra tem seu ponto culminante em Nosso Senhor, que é o
pontífice por excelência e ao mesmo tempo altar principal e vítima
perfeita.
O fogo sagrado do templo representava principalmente o culto de amor
rendido por Nosso Senhor ao seu Pai, o fogo do Sagrado Coração de Jesus,
mas ele representava também o amor e a imolação de nossos corações, o
culto de amor da nova lei, segundo a qual Deus quer ser adorado em espírito
e verdade. Este fogo espiritual de amor e da imolação que deve arder sem
parar no altar de nossos corações, deve ser mantido pelo sacerdócio da nova
lei, mas este sacerdócio tem por cabeça o próprio Nosso Senhor133.
Dehon observa que Jesus encontrou este fogo quase apagado sobre a
terra, por causa do pecado. Ele o reacendeu pelo dom de si mesmo,
mediante as graças da Encarnação, Redenção e Eucaristia. Deixou à
Igreja os meios para manter este fogo aceso: a graça, os sacramentos e a
Palavra de Deus. Quando é necessário, Ele, por meios extraordinários
suscitados pelo Espírito Santo, permite fatos providenciais ou milagres
que «arrastam» os corações. Segundo Dehon, é isto que Deus tem feito
ultimamente pela devoção ao Sagrado Coração de Jesus. É uma graça
para o tempo presente; um dom para a França e, de um modo especial,
para a diocese de Soissons-Laon e para a cidade de Saint-Quentin.
Dehon revê as fontes históricas da espiritualidade e da devoção ao
Coração de Jesus, sempre partindo desse referencial bíblico, mas
descrevendo em detalhes os modos como este «fogo sagrado» foi sendo
manifestado na história, desde a figura do Bom Pastor dos primeiros
cristãos, passando pelas promessas à Margarida Maria, pelas palavras de
Pio IX e Leão XIII, pela Basílica de Montmartre e por detalhes históricos
que evidenciam as graças do Coração de Jesus na diocese de SoissonsLaon e na cidade de Saint-Quentin. A certeza é sempre a mesma: «Mon
Cœur régnera malgré ses ennemis»134. Desse modo, Dehon termina seu
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132
133
134
OSC IV, 379.
OSC IV, 379-380.
OSC IV, 385. Alusão à uma das principais promessas feitas pelo Coração de
Jesus à Santa Margarida Maria.
190
primeiro livro, assumindo como emblema o reinado do Coração de Jesus
nas «almas e nas sociedades». Estas «almas», as encontrou na pessoa de
cada aluno. Uma destas «sociedades» era, com certeza, o Colégio São
João.
10. Excursus: Outros discursos educacionais (1887-1893)
Sobre a história local de Saint-Quentin (1887)
Este discurso foi pronunciado durante a solenidade de «Distribuição
de Prêmios» do Colégio São João, quando a obra completava dez anos,
no dia 30 de julho de 1887135. O estilo jurídico e apologético dá lugar a
um tom mais propositivo. Após ter falado sobre o estudo da história
(1885) e da geografia (1886), Dehon faz uma aplicação prática dos dois
discursos questionando «por que a história local, tão apropriada para
manter o amor à religião e à pátria, não está nos programas de
ensino?»136.
Partindo das remotas origens celtas de Saint-Quentin, passa pelas
conquistas romanas, narrando a chegada da fé cristã por meio de Quintin,
filho do senador Zénon, no século III, que ali enfrentou o martírio, dando
nome à localidade. Relembra os bispos a partir do ano 360 e a maneira
como a Igreja, já então, se ocupava da educação do povo por meio de
instituições educacionais. Em estilo de epopéia narra, por exemplo, a
invasão dos bárbaros em 407, as guerras dos reis francos, o tempo das
cruzadas, passando pela Revolução Francesa e chegando até o presente
com a Revolução Industrial. Mostra a realidade econômica e social de
Saint-Quentin com detalhes e números. Fala do crescimento
populacional desordenado e de seus efeitos sociais. A cidade cresce à
—————————–
135
136
OSC IV, 397-423. Encontramos o seguinte comentário em seu Diário:
«Distribuição de Prêmios. Sucesso exterior. Sucesso nos exames. Décimo
aniversário do início da obra. Em 1877, no mesmo dia, eu terminava meu
retiro e a composição das Regras. Senhor, perdoai-me todas as faltas que
retardaram a Vossa obra». NQT III/1887, 111.
OSC IV, 399. Ele afirma que tem como objetivo reavivar o «ardor da fé e o
amor pela França».
191
custa do campo. A concentração urbana cria uma classe operária
entregue ao seu próprio destino e sem o apoio de leis. Aponta como
solução uma forte organização cristã do trabalho. Para Dehon, o
progresso material que o final do século XIX experimentava não era
fruto da «revolução anti-religiosa», mas do progresso natural da ciência.
No final do discurso, convida os alunos a descerem do «observatório
imaginário»137 e voltarem à vida real. Isto revela seu método pedagógico
que parte da experiência concreta e estimula o saber com sabor.
Sobre a educação do caráter (1891)
A partir de 1888, diminui a assiduidade dos tradicionais discursos de
Dehon durante a solenidade de «Distribuição de Prêmios» no Colégio
São João. Naquele ano sabemos que a cerimônia aconteceu no dia 30 de
julho, porém não há registros sobre quem teria feito o discurso138. O
mesmo se dá no dia 29 de julho de 1889139. Em 31 de julho de 1890,
segundo palavras do próprio Dehon, Léon Harmel fez «um belo discurso
sobre a Educação do espírito, do coração e da vontade»140.
Em 1891, no dia 29 de julho, temos novamente um discurso de
Dehon, agora «sobre a educação do caráter»141. Ele define caráter como
esta mistura de qualidades e hábitos do espírito, do coração e da vontade.
Lato sensu poderia significar simplesmente costumes. Mas strito sensu é
a força, a energia, a firmeza de uma ação. Um caráter pode reunir
qualidades e defeitos. Afirma que para a filosofia cristã, os defeitos de
caráter têm sua origem na tríplice concupiscência assinalada pelos
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137
138
139
140
141
OSC IV, 423.
NQT IV/1888, 53v.
NQT IV/1889, 88r.
NQT V/1890, 9r.
OSC IV 427-457. Ele inicia saudando P. Baunard, Reitor das Faculdades
Católicas de Lille que presidia a solenidade naquele ano. Dehon afirma em
seu Diário que este discurso ocupou um tempo precioso que ele gostaria de
ter dedicado à Obra, ou seja à Congregação. Isto talvez explique uma frase
dirigida a M. Mathieu no final do discurso: «Vous n’avez pas voulu, vous
n’avez pas pu, Monseigneur, faire ce discours. Vous grandes et saintes
occupations ne vous en laissaient pas le loisir». NQT V/1891, 93r-93v.
192
Evangelhos. Assim, o orgulho leva à impiedade, egoísmo, dureza,
suscetibilidade, impaciência, cólera, ciúme, arrogância, desobediência,
ingratidão, dissimulação e outras coisas do gênero. A concupiscência da
carne leva à preguiça, indolência, sensualidade, busca de aparências,
intemperança, grosseria, auto-suficiência e outras fraquezas. A
concupiscência dos olhos leva à esperteza, indiscrição, superficialidade,
curiosidade, capricho, vaidade, inconstância e outros defeitos análogos.
Em oposição a esta tríplice lista de defeitos, Dehon classifica as
qualidades do caráter a partir das três principais virtudes morais. Um
caráter religioso, leal, reto, reflexivo, sério, vigilante, respeitoso e
sincero, participa da virtude da justiça. Aquele que é nobre, generoso,
ardente, trabalhador, firme, paciente, fiel, perseverante, participa da
virtude da fortaleza. O que é bom, dedicado, humilde, delicado, amável,
sensível, reservado, discreto, simples, puro, polido, caridoso,
compassivo, participa da virtude da temperança142. Para Dehon, estas
«qualidades mestras do caráter» têm seu tipo nos atributos de Deus.
Segundo ele, isso transparece no livro da Sabedoria quando diz que «a
sabedoria divina atinge seus fins com a força e dispõe dos meios com a
suavidade [douceur]»143. Além disso, o caráter é uma preocupação de
todos os homens. Sua formação é o grande objetivo da educação. A
partir deste ponto referencial, Dehon passa a destacar a importância da
educação do caráter; na moral, nas letras e na história; o declínio do
caráter no tempo presente; os meios para elevar o caráter.
A vida de um povo ou de uma pessoa depende, em grande parte, de
seu caráter. Por essa razão é necessário educá-lo, criando meios para
—————————–
142
143
Dehon não cita a virtude da «prudência», que completaria o quadro das
virtudes cardeais. Estas quatro virtudes, na moral cristã, expressam as
características do caráter humano. As três virtudes teologais: fé, esperança e
caridade, também não são citadas por Dehon. Na verdade, ele escolhe as três
virtudes cardeais para colocá-las em paralelo com «a tríplice concupiscência
assinalada nos Evangelhos».
Dehon não indica a citação, mas provavelmente cita de modo livre o texto de
Sabedoria 8,1: «Ela se estende com vigor de uma extremidade à outra, e com
suavidade governa todas as coisas». Grifos nossos. O importante é o modo
como ele dá ênfase à sintese entre vigor e ternura. A tradução da Vulgata é
mais próxima da citação de Dehon: «Attingit ergo a fine usque ad finem
fortiteret disponit omnia suaviter». Grifos nossos.
193
desenvolver as virtudes e garantir o verdadeiro sucesso. Dehon protesta
contra a implantação da «Escola sem Deus» que promete conduzir a
juventude à vitória e a pátria ao progresso, mas, na verdade, acaba por
estimular defeitos de caráter, aumentando os índices de criminalidade, os
delitos e os suicídios. «A escola sem Deus é um erro social»144.
O bom senso francês reconhecerá este erro. Logo o instinto social falará.
Ainda um pouco de tempo e, em lugar de condenar à prisão e à multa os
sacerdotes que falam às claras contra a Escola sem Deus, pedirão para
recolocar o crucifixo e o catecismo na escola para salvar a sociedade145.
Para Dehon, não é possível separar moral e educação. O ensino
precisa visar também o caráter. Percebemos isso na escola grega com
Platão ou Aristóteles; ou na sabedoria bíblica, onde Jesus é modelo do
Mestre perfeito. Inspirado em Santo Agostinho, Dehon percebe o
significado daquilo que o Apóstolo Paulo chama de «zelo ardente» que
forma o coração e a vontade de seus discípulos. A educação deve ajudar
na luta contra os efeitos do pecado original por meio de uma vontade
firme, constante e generosa, para favorecer a ação da graça146. A titulo de
ilustração, cita os Règlements da antiga Universidade de Paris que
educava o caráter por meio da prece diária, freqüência aos Sacramentos,
celebração de festas religiosas, estudo da Sagrada Escritura e instrução
religiosa semanal. A idéia era continuar, na Universidade, a escola de
Jesus Cristo.
Dehon percebe que a fase das dúvidas começa no Renascimento e se
prolonga no «racionalismo» e «filosofismo». Os três erros principais
teriam sido o otimismo, o pessimismo e o fatalismo. Montaigne, com seu
cinismo, teria preparado os erros de Rousseau e as ilusões de Victor
Hugo, ou seja, deixar a natureza ser a mestra na educação. Rousseau
propõe deixar crescer os defeitos da criança para que ela os perceba e
corrija mais tarde. Victor Hugo suprime o pecado original. O
pessimismo jansenista é o outro erro. Somente vê os defeitos da criança.
O positivismo fatalista de Taine vê tudo isso como fruto de uma
—————————–
144
145
146
OSC IV, 434.
OSC IV, 434.
OSC IV, 437. De Santo Agostinho, Dehon cita De Ordine; De Doctrina
Christiana; De catechisandis rudibus.
194
evolução necessária. Para Dehon, todo este debate acabou por provocar
um verdadeiro divórcio entre o ensino oficial e o método cristão. Mas,
segundo ele, a Igreja preserva as verdadeiras doutrinas em autores como
Rollin e Fénelon, e ainda mantém fecunda influência sobre a educação
francesa.
Dehon indica Dupanloup como o melhor autor em matéria de
educação em seu tempo, pois supera o otimismo e o pessimismo;
reconhece os defeitos da criança e indica os remédios; mas também faz
ressurgir «os encantos naturais da infância: a ingenuidade, a inocência, a
franqueza, a confiança... qualidades que tinha em vista Nosso Senhor
quando louvava as crianças e demonstrava seu afeto por elas»147. Dehon
propõe uma educação cristã do caráter que torne o jovem, ao mesmo
tempo, prudente, sensível e forte. Este é o caráter do cavalheiro que
honra a Igreja e a Pátria.
Em seu discurso, destaca o modo como o caráter é exaltado na
literatura de todos os tempos e de todas as culturas. Autoridade,
coragem, prudência, bondade e piedade são qualidades de um bom
caráter que podem ser observadas mesmo nos heróis da literatura pagã.
As mesmas virtudes encontramos em santos e santas católicos, como
Joana d’Arc.
O caráter pode ser percebido também no estudo da história. Dos
gregos aos romanos, passando por Moisés e Josué, Dehon chega a Jesus
«que uniu a ternura [douceur] mais suave com a força mais
triunfante»148. São, exatamente, os dois atributos antagônicos que
utilizara para descrever o caráter tipológico de Deus: a força e a
suavidade.
Dehon termina mostrando a decadência do caráter em seu tempo e os
meios para elevá-lo novamente. Para demonstrar que havia um declínio
no cultivo do caráter, lança mão de trechos de um jornal, um panfleto,
—————————–
147
148
OSC IV, 439.
OSC IV, 445. Ele aponta também Maria e José como modelos de pureza e
humildade; Pedro como modelo de obediência e, Paulo, de perseverança.
Coloca em destaque o caráter dos apóstolos João e André, além de uma
grande lista de santos e mártires. Destaca, também, personagens mais
recentes e jovens que foram modelos de um caráter cristão, de santidade e de
coragem.
195
um artigo acadêmico civil, um escrito cristão e o testemunho de um
soldado. Todos concordam que o cultivo do caráter sofrera um declínio
na França. Portanto, era necessário mostrar como recuperá-lo. Dehon
apresenta dois meios, que fundamenta nas páginas da Sagrada Escritura.
O primeiro é o «socorro de Deus». Lembra Paulo: «Tudo posso Naquele
que me fortalece. Eu rendo graças a Cristo, que é a minha força»149.
Lembra também o que o povo de Israel disse a Judite: «É a mão de Deus
que te fortalece». O segundo meio é a colaboração humana com a graça
divina. Ele recorda o que Deus disse a Josué: «Sois forte e valoroso» (Js
1,18). Lembra também Paulo aos Corintios e a Timóteo: «Sejam fortes,
colaborai bravamente com a graça de Deus»150. Através do exemplo de
vida e caráter de um soldado, Dehon conclui, afirmando que a verdadeira
fonte da força dos cristãos é a Eucaristia, presença viva de Jesus Cristo.
Sob o ponto de vista teológico, Dehon propõe a construção do caráter
tendo como modelo os atributos divinos da força e da suavidade,
sintetizados em Jesus, e tendo como meio a colaboração entre a graça de
Deus e o esforço humano.
Sob o ponto de vista da linguagem, ao falar de «educação do caráter»,
Dehon ensaia a tentativa de garantir um lugar civil à educação cristã com
uma linguagem aceitável pela sociedade como um todo. Este exercício
será permanente em um tempo de crescente hegemonia da escola laica.
Surge, ao mesmo tempo, uma linguagem educacional secular e a
proposta cristã era desclassificada como «pouco científica», ultrapassada
ou insuficiente. A educação religiosa seria, aos poucos, confinada apenas
a uma disciplina do currículo. A visão educacional de Dehon mostra que
«educar para a vida eterna» tem valor também para melhorar a qualidade
da «vida presente». Em um mundo laico, o nome da santidade poderia
ser: bom caráter.
—————————–
149
150
Dehon parece referir-se ao texto de Fil 4,13.
Provavelmente Dehon se refere ao texto de Corintios: «Vigiai! Sede firmes
na fé! Sede homens! Sede fortes!» (1Cor 16,13); quanto às cartas a Timóteo,
este é o tom geral da exortação de manter-se firme na fé.
196
Sobre o Departamento de L’Aisne (1893)
No dia 1º de agosto de 1892, a tradicional «Distribuição de Prêmios»
foi presidida por Mons. Duval, bispo de Soissons que assumira a diocese
em 1890, e o discurso proferido por C. Mercier. Em seu Diário Dehon
reclama de problemas de disciplina naquele ano acadêmico. Afirma que
o discurso foi «severo sobre a disciplina»151.
Na «Distribuição de Prêmios» de 1893, no dia 29 de julho, novamente
temos um discurso de Dehon, o último de que encontramos algum
registro. Naquele ano o bispo pedira a Dehon para que deixasse o colégio
por causa de uma série de calúnias levantadas contra sua pessoa. Tudo
indica que os dias críticos foram 1º a 15 de julho. Há crise também no
noviciado da Congregação com a perda de vocações. Para Dehon são
dias de «muito sofrimento»152. Por isso, é natural que o discurso de 1893
tenha certo tom de despedida. Ao registrar o dia 29 de julho em seu
Diário, Dehon observa: «É tempo de outro assumir a direção [do São
João] para me deixar o tempo para dirigir a Obra [a Congregação] e
escrever»153. De fato, seguindo as determinações do bispo, Dehon
acabará deixando a direção sob a responsabilidade de C. Mercier e indo
morar na Casa Sagrado Coração. Na verdade, a Congregação já era de
direito pontifício, mas o bispo local ainda a tratava como de direito
diocesano. Isto pode ser entendido no quadro do galicanismo próprio da
época.
O tema do discurso de 1893 foi «a descrição, a arte e a história do
Departament de L’Aisne»154. Mais do que um discurso é praticamente
um livro de história local, com 60 páginas e 36 pequenos capítulos155. O
método é o mesmo utilizado na apresentação da «geografia estética», em
—————————–
151
152
153
154
155
NQT VI/1892, 2r-2v. Como de costume, ao anotar o final do ano letivo em
seu Diário, Dehon pede perdão por seus pecados de negligência. E, neste
ano, pede perdão também pelos pecados dos outros, pelos quais possa ter
sido responsável.
NQT VI/1893, 32r.
NQT VI/1893, 33v.
OSC IV, 461-520.
O texto foi publicado originalmente por Imprimerie Gust. Fischlin, SaintQuentin 1893.
197
que Dehon prepara o coração dos alunos prestes a saírem de férias para
que aproveitem as viagens e passeios de modo que se tornem fontes de
instrução. Não se parece nem com um discurso de despedida, nem
mesmo com as palavras de um homem que poucos dias antes havia
recebido a carta do bispo pedindo que se retirasse da cidade, do
departamento e até da França. Ele discorre com riqueza de detalhes, por
exemplo, sobre a fisionomia geral da região; os habitantes primitivos; as
origens celtas; a invasão romana; a primeira e a segunda evangelização;
a era dos mártires; os bárbaros e os francos; passando pelo feudalismo;
movimentos religiosos e artísticos; monumentos eclesiásticos e militares;
personagens, guerras e revoluções.
O discurso termina com suave tom de despedida, com palavras que
ganham todo o sentido se relembrarmos a situação de tensão, dor e
constrangimento em que foram pronunciadas. É o único momento em
que durante o longo discurso, Dehon abandona o tom formal de um
professor de história e fala de seus sentimentos mais íntimos:
Depois da confiança em Deus, o melhor apoio de nossa esperança seria uma
juventude cristã, firme e pura, amiga da justiça e da caridade! É isto que
esperamos receber de vós, caros alunos, e o Cristo apaixonado por esta
juventude, abençoará a França!156
Isto, naturalmente, nos remete à verificação de como teria sido o
relacionamento de Dehon com os ex-alunos do Colégio São João. Quais
teriam sido os frutos concretos do projeto educacional dehoniano. No
ano seguinte, em 1894, encontramos a «Distribuição de Prêmios»
registrada em seu Diário no dia 1º de agosto. M. Salembier presidiu. Não
sabemos quem fez o discurso. Dehon comenta: «Deus se encarrega de
sustentar e abençoar esta querida obra de São João»157. Da mesma
maneira há um registro da solenidade em 1º de agosto de 1895. Não
sabemos quem presidiu nem quem discursou. Dehon comenta: «Os
alunos manifestam um grande afeto que me consola de certas penas»158.
Em 1896, existem dois registros interessantes no Diário de Dehon a este
respeito. No dia 24 de julho afirma:
—————————–
156
157
158
OSC IV, 520.
NQT X/1894, 145.
NQT XI/1895, 32r.
198
O bispo tomou uma decisão difícil para mim. Confiou o Patronato São José a
P. Mercier. Eu o havia fundado há vinte e cinco anos. Ali gastei somas
importantes (ao menos 50.000 francos). Ali gastei também todo o meu ardor
de jovem sacerdote. Parece-me que esta obra deveria sempre ficar nas mãos
de nossa Congregação. A autoridade diocesana decidiu em contrário. Fiat!159
O segundo registro é exatamente sobre a «Distribuição de Prêmios»
que ocorreu no dia 29 de julho de 1896. Léon Harmel presidiu. A.
Delloue leu o discurso. Dehon anunciou, oficialmente, que Delloue,
membro de sua Congregação, seria o diretor a partir daquele momento.
O comentário do seu Diário é: «Corríamos o risco de perder também esta
obra»160. A partir deste momento não encontramos mais registros
formais da vida cotidiana do Colégio São João ou da solene
«Distribuição de Prêmios» no Diário de Dehon. Em seu lugar aparece
um relacionamento intenso com os ex-alunos, principalmente
participando de suas assembléias.
Com isso, termina uma fase da reflexão e do apostolado educacional
de Dehon, onde o fórum privilegiado fora sempre a solene «Distribuição
de Prêmios». A partir de agora mudará o lugar, mas a reflexão e o
apostolado continuarão, conforme analisaremos.
—————————–
159
160
NQT XI/1896, 65r.
NQT XI/1896, 65r.
199
CAPITULO VI
Um discurso inédito «Sobre a Educação»
Durante as pesquisas nos Arquivos Dehonianos, em Roma, fomos
surpreendidos por uma descoberta muito interessante. Encontramos um
discurso de 1888, manuscrito e inédito, em que Dehon utiliza os
personagens de La Fontaine para descrever as qualidades dos bons e dos
maus educadores por meio do exemplo das aves. Dedicamos algum
tempo para comprovar, de modo documental e irrefutável, a autoria do
discurso. Neste capítulo, interpretaremos este texto inédito que exprime,
através de metáforas, aquilo que Dehon expressou teoricamente em seu
primeiro discurso educacional, pronunciado em 1877, mas reelaborado
para a publicação em 1887. O texto inédito é de 1888. Há um parentesco
de sentido entre os dois textos. Veremos a grande tese defendida por
Dehon e a justificativa de seu discurso. Fizemos, ainda, um esforço para
traduzir para o português um texto que tem seu referencial na fauna
francesa. Muitos dos pássaros citados são simplesmente desconhecidos
no Brasil. Outros possuem uma personalidade antropomórfica que não
coincide exatamente com a nossa cultura. No final do capítulo
analisaremos a «aplicação prática» feita por Dehon, pois ali reside o
conceito de «Educação Integral», expresso com todo o seu vigor.
Toda tradução sempre traz a marca da imperfeição, principalmente
quando se passaram mais de cem anos e alguns dos pássaros
mencionados já não são populares na própria França. Além disso, as
características de personalidade humana atribuídas aos animais mudam
de acordo com a cultura e o tempo. Isto nos faz lembrar a «Canção do
201
Exílio» de nosso romântico Gonçalves Dias (1823-1864): «Minha terra
tem palmeiras, onde canta o sabiá; as aves, que aqui gorjeiam, não
gorjeiam como lá». Mesmo assim, as metáforas de Dehon permitem
captar o núcleo de seu pensamento educacional, em linguagem popular.
1. Contexto e relevância
No dia 29 de janeiro de 1888, Dehon fez uma conferência sobre
educação para os membros da Sociedade de São Francisco Xavier. Era
um dos grupos de leigos católicos que existia em Saint-Quentin com a
finalidade de promover a solidariedade para com os pobres. Eram
conhecidas como «sociedades de ajuda mútua» ou «mutualidades».
Ensinavam os trabalhadores a administrar seu dinheiro, cultivavam o
amor pela cidade, ajudavam no caso de doença ou morte. A Sociedade de
São Francisco Xavier tinha projetos para viabilizar a construção de casas
para trabalhadores1.
Este texto tem grande relevância para a nossa pesquisa, por seu
conteúdo especificamente educacional e, por tratar-se de um documento
ainda inédito, preservado apenas nos Arquivos Dehonianos, em Roma2.
A autoria é atestada pela versão manuscrita do texto e pelas referências
que Dehon faz a este discurso em seu Diário:
Estudei, na história natural, o instinto de paternidade e de maternidade dos
animais e, sobretudo, dos pássaros para utilizar como exemplo em um
discurso. Estou maravilhado com a bondade de Deus para com estes
pequenos seres ao dar-lhes o instinto de pai e de mãe. Que maravilhosa
imagem da sua bondade para conosco. Não teria Ele revelado a Si mesmo por
meio de outros ao Se comparar com a galinha cuidadosa com seus
3
pintinhos?
—————————–
1
2
3
Cf. J. TAPIN, Regards sur Saint-Quentin, 1871-1877.
Cf. L. DEHON, Sur l'éducation; conférence à la Société Saint-FrançoisXavier, conservado em AD.B. 7/3.D, inv. 43.04, 1-19. Trata-se de um texto
manuscrito e jamais publicado. Utilizaremos a paginação que consta no
manuscrito.
NQT IV/1888, 15v: 18 de janeiro. Além disso, no dia 29 de janeiro Dehon
registra no Diário: «Discours à la Société de secours mutuel sur
202
Além disso, o periódico oficial da Diocese de Soissons-Laon noticiou,
com destaque, este discurso, em sua edição do dia 04 de fevereiro de
1888:
A educação, eis um tema muito atual, mas tantas vezes repetido! P. Dehon o
rejuvenesceu e lhe deu um encanto que cativou todo o auditório. A
Providência não nos deu por meio dos pássaros, admiráveis lições de
educação? Não nos disse, por meio deles, o que devemos evitar e o que
devemos fazer na grande arte da educação dos filhos? Entre os pássaros
alguns são maus educadores: abandonam seus filhotes, batem e até matam,
ou lhes inspiram costumes pouco edificantes. Outros, em maior número, os
educam com cuidados minuciosos, os formam, e os instruem com ternura.
Assim estes elegantes habitantes dos ares a todo momento nos dão lições
preciosas em uma linguagem graciosa4.
Em termos de conteúdo, por ser um discurso tardio, já representa uma
primeira síntese da visão educacional de Dehon, após dez anos de
trabalho efetivo no Colégio São João. É o único de seus discursos
educacionais em que ele não está diante de um público tipicamente
escolar. Há, também, um clima de informalidade que não seria possível
na solenidade de «Distribuição de Prêmios». Mas, trata-se de um
discurso que foi muito bem elaborado, ao contrário das palavras
espontâneas de Dehon nos encontros dos Antigos Alunos, que eram, em
geral, pronunciadas de improviso. Se nos discursos escolares ele
encontrava-se diante de um público exigente e erudito neste, certamente,
estava diante de pessoas bem mais modestas. O mesmo conceito de
educação cristã que aparece revestido de erudição nos discursos de
«Distribuição de Prêmios», tem lugar neste «Discurso dos pássaros»5,
porém, com absoluta simplicidade. Este fato revela, também, a atenção
pedagógica que Dehon dispensava aos seus interlocutores. Ele se
comunicava-se para fazer-se entender e não, simplesmente, para
—————————–
4
5
l’Education». NQT IV/1888, 18r. No texto manuscrito consta a data de 20 de
janeiro de 1888. Porém, neste caso é mais confiável o Diário.
La Semaine Religieuse 5 (1888) 53.
O título do discurso que aparece no manuscrito é «Sur l’éducation», porém,
considerando o estilo e as metáforas utilizadas no texto, e para distingui-lo
dos outros discursos educacionais nós o chamaremos de «Discurso dos
Pássaros».
203
demonstrar erudição. Assim, por meio da leitura deste discurso, podemos
perceber sua face de educador e comunicador, além de sua pedagogia do
concreto.
Pelo caráter inédito deste discurso, optamos por reproduzir o texto
integralmente, ao invés de simplesmente comentá-lo. Apenas omitimos a
introdução, um breve preâmbulo sobre o qual faremos apenas um
comentário. Com isso, pretendemos contribuir trazendo à luz um texto
educacional que julgamos dos mais importantes da obra de Dehon,
entretanto, ainda desconhecido.
2. O tema, a tese e a justificativa do discurso
O tema
Em uma espécie de preâmbulo, Dehon inicia indicando três categorias
de assuntos que lhe passaram pela mente ao preparar este discurso para a
Sociedade de São Francisco Xavier. Primeiro, pensou em falar da Igreja,
do Papa, de Roma, de seus tesouros artísticos, inclusive em SaintQuentin. A segunda categoria seria formada de assuntos ligados à Pátria,
ao espírito francês, de sua condição de filha predileta da Igreja. A
terceira categoria seria os assuntos do mundo do trabalho, da solução
proposta pela Igreja para o problema social, do corporativismo cristão,
do ensino de Leão XIII. No entanto, escolheu como tema a educação dos
filhos que são, ao mesmo tempo, objeto de seu afeto e a esperança da
França e da Igreja.
Para expressar-se de um modo verdadeiramente cristão e
verdadeiramente francês, Dehon primeiro pergunta ao Criador que lições
sobre educação estão espalhadas na natureza. Depois utiliza o método de
La Fontaine como linguagem para seu discurso6. Isto não é ocasional. A
—————————–
6
Jean de La Fontaine (1621-1695) nasceu em Château-Thierry, no
Departamento de l’Aisne, entre Soissons e Reims. Foi um poeta de origem
burguesa, que estudou teologia e direito. Suas populares fábulas, em geral se
inspiram na obra de Fedro e de Esopo, mas possuem originalidade na
aplicação e arquitetura tipicamente parnasiana, primando pela métrica e
perfeição compositiva. Dehon faz referência a isso em seu discurso: «[...]
j’emprunte la méthode du bon et intéressant La Fontaine, la gloire du
204
forma francesa e o conteúdo cristão resultam em uma síntese inteligente
e consciente destes dois âmbitos, nos quais se move o pensamento
educacional de Dehon: Roma e França; a Igreja e sua pátria. Esta matriz
esconde também seu conceito de educação para ser um verdadeiro
cidadão na pátria da terra, mas tendo sempre em vista a pátria do céu.
Isto faz parte do seu conceito de Educação Integral.
Aparentemente, o discurso é um conjunto de metáforas inocentes para
ajudar os pais e as mães a educarem melhor seus filhos. Mas, na
aplicação final, uma frase de Dehon nos ajuda a entender seu metadiscurso que pode ser compreendido agora que conhecemos o contexto e
o pré-texto de seus outros discursos, que é sempre defender a educação
segundo o ideal cristão, atacada pela laicização da Terceira República, e
criticar a proposta de uma educação no qual a dimensão religiosa é
excluída: «Assim fazem, sem dúvida, aqueles que iludidos por suas vãs
teorias pretendem dar à França uma juventude sem Deus»7.
Dividimos o discurso em partes e inserimos os títulos para facilitar a
compreensão e análise do pensamento de Dehon.
A tese de fundo
A tese que fundamenta o conjunto de analogias composto por Dehon é
que o Criador de todas as coisas deixou lições sobre como educar,
impressas no mundo que criou. Os antropomorfismos sempre fizeram o
gosto dos poetas e das religiões. Até mesmo os deuses são
freqüentemente representados com o auxílio destes recursos, em que a
força é atribuía ao leão e a esperteza à raposa.
O Criador que nos deu, através dos animais, muitas lições de virtude,
mostrando o símbolo da coragem no leão, de temperança no cavalo de
corrida do deserto [coursier du désert], de previdência na formiga, de
—————————–
7
parnasse français et l’honneur de notre département». L. DEHON, «Sur
l’Education», 3. Dehon não utiliza apenas o «método» de La Fontaine, mas
também seus personagens, muito populares em seu tempo. Os alunos do
Colégio São João costumavam fazer pequenos exercícios literários deste
estilo já em 1878. Encontramos vários em L’Aigle de Saint-Jean. Uma
análise literária minuciosa encontraria muitas metáforas e alusões às fábulas
de La Fontaine. Isto ultrapassa o âmbito de nossa pesquisa.
L. DEHON, «Sur l’Education», 17.
205
trabalho e disciplina na abelha, de ordem social na cidade do castor; ensinounos a arte da educação especialmente pelo exemplo dos pássaros.
Que amáveis e graciosos mestres! Eles são os hóspedes do nosso céu. Eles
são as flores e a harmonia do ar e o símbolo dos anjos. Que dons invejáveis a
maior parte deles recebeu: um olhar que domina toda uma província; uma
voz que humilha os nossos concertos; uma agilidade que desafia até mesmo
nossos carros. Não poderiam também nos fazer sentir vergonha de nossa
indiferença para com o Criador, quando tão piedosamente com seus cantos
solenizam o despertar da aurora e a noite que se aproxima? Eles são artistas,
arquitetos, músicos, grandes viajantes; algumas vezes nobres e valentes,
outras vezes suaves e amáveis, delicados, previdentes, ativos, generosos,
dedicados; eles são, como veremos, admiráveis educadores8.
As qualidades de um bom educador, selecionadas por Dehon e
encontradas no exemplo dos pássaros, mostram o mapa de relevâncias de
seu conceito de Educação Integral. Logo nesta apresentação da sua tese,
ele insinua que um «educador admirável» deve possuir um olhar amplo
sobre a realidade, sensibilidade artística, agilidade, vigor e ternura,
generosidade e espírito de iniciativa. Todas estas qualidades são mais do
coração que da inteligência. Percebemos que, para Dehon, a Educação
Integral não começa através do conhecimento, ou do cultivo das
faculdades mentais, mas pela empatia, pelas coisas do coração. Outra
característica importante é que o educador deve ser uma pessoa capaz de
sintetizar, em sua vida, diversas qualidades contrastantes. Como em
outros discursos que já analisamos, esta síntese, típica da visão
educacional dehoniana, poderia ser expressa nas palavras «ternura e
vigor». Este é, sem dúvida, para Dehon, o educador ideal.
A justificativa do discurso
Dehon justifica sua tese com um exemplo tirado das páginas da Bíblia.
De fato, Jesus se compara a uma galinha que coloca os filhotes sob as
—————————–
8
Ibidem, 3-4. O coursier du désert é um cavalo árabe de corrida, utilizado
pelos beduínos nômades e que reúne as qualidade contrastantes da doçura e
proximidade com o homem e, ao mesmo tempo, a força e tenacidade
exigidas para suportar as condições áridas do deseto. Dehon sintetiza estas
duas qualidades na «temperança». Lembremos que o pai de Dehon era dono
de um aras que existe até hoje em sua cidade natal, ao norte da França.
206
asas, num texto repetido em dois dos Evangelhos, Lucas e Mateus:
«Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são
enviados! Quantas vezes eu quis ajuntar os teus filhos, como a galinha
ajunta os seus pintos sob as asas, e tu não quiseste!» (Mt 23, 37; Lc
13,34). A versão do texto é uma elaboração livre de Dehon, que substitui
a frase literal por uma adaptada ao universo educacional.
Mas antes quero justificar a minha tese com um testemunho divino. Vocês se
lembram das palavras com que Nosso Senhor se queixou da ingratidão de
Jerusalém por não haver tirado nenhum proveito de Seus ensinamentos? Ele
dizia: «Eu me dediquei a instruir todos os seus filhos com o cuidado de uma
galinha que educa seus pintinhos». Vejam, o modelo do empenho
educacional de Nosso Senhor é a humilde galinha de nossas granjas e
viveiros. Vocês viram a atenção que ela tem para que não falte nada aos seus
pintinhos? Vai de um lado para o outro, chama-os com seus cacarejos
suplicantes, escava a terra ou a erva para encontrar o alimento que lhes
convém, ela se priva em seu favor; os aquece e os protege; é feliz ao vê-los
brincar ao seu redor; se a ave de rapina os ameaça, torna-se valente: corre,
voa diante dela e a espanta com seus gritos agudos batendo as asas. Ela se
dedica aos seus ternos cuidados com tanto ardor e preocupação que isto
parece alterar a sua constituição. Suas expressivas inflexões de voz e seus
ágeis e apressados movimentos têm toda uma expressão de cuidado e afeto
maternos9.
Nesta analogia inicial, na verdade, Dehon coloca como modelo de
todo educador o Mestre Jesus Cristo. Já vimos em seus discursos como
esta tônica está sempre presente. Para ele, o modelo de pessoa e de
educador integral é o próprio Cristo. Porém, se dá ao cuidado de
evidenciar algumas qualidades deste grande educador: atenção para que
não falte nada, sabe convocar com sua voz, busca o alimento que mais
convém, é capaz de sacrifícios, protege seus educandos, gosta de vê-los
ao seu redor, defende-os quando necessário até com certa agressividade;
porém sabe exercer o cuidado e a ternura; tem afetos maternos.
Conhecendo o modo como Dehon costumava proceder com seus alunos,
percebemos que ele está aqui descrevendo seu próprio comportamento
como educador.
—————————–
9
Ibidem, 4-5.
207
Ainda, justificando a tese fundamental de seu discurso, Dehon indica
os contrastes que utilizará em suas analogias. Existem pássaros que são
um exemplo de maus educadores:
Outros pássaros completarão a todo momento a nossa lição. Mas, antes de
continuar, vejamos o fundo escuro do quadro, ressaltando aquilo que é
preciso iluminar. A Providência gosta destes contrastes, coloca ao lado do
modelo aquilo que não se deve imitar, para destacar o seu valor. O fundo
escuro são alguns grupos de aves, tão defeituosas como educadores que
contagiam o resto. Citarei quatro espécies: as aves de rapina, os pássaros da
noite, o avestruz [autrouche] preguiçoso e o pavão [paon] vaidoso10.
O discurso começará exatamente com este pano de fundo de exemplos
que não se devem imitar. É claro que o contraste apresentado aqui, em
forma de fábula, faz alusão à fórmula educacional proposta por Ferry,
que Dehon combate em seus outros discursos. Discretamente, o
advogado de defesa da educação cristã se faz presente também neste
momento.
3. Exemplos de maus educadores
Dehon apresenta quatro exemplos que não merecem ser imitados por
qualquer educador: a crueldade das aves de rapina, a irresponsabilidade
dos pássaros da noite, a preguiça e grosseria do avestruz, a vaidade e o
orgulho agressivo do pavão.
Aves de rapina
A índole «dura e cruel» das aves de rapina, de acordo com Dehon, é
transmitida por intermédio de uma educação que abandona os filhotes
quando eles ainda necessitariam do cuidado dos pais. É estimulado um
clima de competição entre os filhotes e a repreensão dos pais é violenta,
utilizando castigos. Neste texto, Dehon descreve, pelo menos três tipos
de escolas de sua época. A primeira − que começava a tomar o lugar dos
«internatos» onde a educação era dada em tempo integral − é a escola
pública, em que os alunos permaneciam apenas uma parte do tempo e o
—————————–
10
Ibidem, 5-6.
208
restante não estavam mais sob responsabilidade dos professores. O
Colégio São João, por sua vez, era uma escola de tempo integral. O
segundo tipo de escola que Dehon deixa transparecer no texto é aquela
cuja finalidade era, simplesmente, o aprendizado de uma profissão. Seria
o que hoje chamamos de cursos técnicos. Ele critica esta escola por não
formar o ser humano como um todo, mas apressadamente o preparar
para o competitivo mercado de trabalho. O terceiro tipo de escola que
encontramos neste trecho é aquela tradicional, em que a correção da
«palmatória» era um recurso didático utilizado sistematicamente.
As aves de rapina como o abutre [vautour] e o gavião [buse] têm uma índole
dura e cruel; eles se dedicam à caça, mas somente em alguns momentos do
dia. Bem, estes pássaros são tão desprezíveis para a educação porque
transmitem seus costumes para os pequenos. Quase todos têm o costume
desnaturado de colocar seus filhotes para fora do ninho muito antes que todas
as outras aves e, no momento em que ainda necessitam dos cuidados e das
ajudas para a sua subsistência. A natureza dos pequenos se ressente da
educação e dos exemplos recebidos. Basta crescerem um pouco e não param
de se agitar e de disputar o alimento e um lugar no ninho, de modo que o pai
e a mãe, várias vezes, intervêm e os matam, ou batem neles para acabar com
a briga. Não há nada nisso que se pareça com nossas famílias? Mas não
encontramos outras famílias onde a vida lembra este triste quadro?11
Fica bastante claro, neste texto, que a educação proposta por Dehon
passa por outro viés motivacional que a concorrência capitalista, a
violência pedagógica ou o típico laissez-faire, laissez-passer de certas
fórmulas modernas em que o aluno é deixado aos seus próprios
cuidados. O pedagogo deve, realmente, «acompanhar» seu educando
com ternura e vigor. O capítulo dedicado aos castigos é, simplesmente
ignorado por Dehon, conforme verificamos na análise de sua leitura de
Rollin.
Está presente, neste discurso, um tipo de sociedade idealizado por
Dehon; uma civilização do coração. Ele presenciava a ascensão do
socialismo e a consolidação do capitalismo. A Rerum Novarum havia
identificado uma nova polarização idelológica da humanidade. O
capitalismo está bem representado nestas aves da rapina diurnas. O que
importa é a livre concorrência. Os princípios do liberalismo, assentados
—————————–
11
Ibidem, 6-7.
209
sobre a seleção natural, estão descritos neste texto com primor. Os mais
fracos acabam morrendo. O que vale é o capital, em detrimento do
trabalho e da pessoa humana. Lembremo-nos que ele está discursando
para uma «sociedade de ajuda mútua», ou seja, uma organização de
solidariedade, no qual a vontade de construir uma sociedade alternativa e
de inspiração cristã era muito forte. Os anseios por uma verdadeira
fraternidade e liberdade estavam presentes e eram facilmente entendidos
pelos ouvintes. A escola idealizada por Dehon deveria estar a serviço da
construção desta «nova sociedade», que estava um passo além do
capitalismo e socialismo da época.
Pássaros da noite
Novamente, utilizando os pássaros noturnos de rapina, Dehon critica a
educação que opta pelo abandono dos filhos ou dos alunos. Sua
insistência inicial é que existe um processo pedagógico no qual é
fundamental o acompanhamento e a presença. Ele mostrará como isto
pode ser feito nos inúmeros exemplos de pássaros bons educadores.
Os pássaros noturnos, como o mocho [hibou], a coruja [chouette], se
caracterizam por seu gosto pela rapina. Querem roubar os ovos e as provisões
das outras aves. Pássaros sacrílegos, eles entram em nossas Igrejas do campo
para beber o óleo da lamparina do santuário. Bem, estes pássaros amigos da
rapina e do roubo são péssimos educadores. Colocam seus ovos a descoberto
no buraco de um muro ou sobre as vigas. Não colocam nem ervas nem folhas
para recebê-los; não se preocupam em fazer um ninho. Isto não lembra as
famílias onde os menores são abandonados e que, privados de toda educação,
acabam seguindo o exemplo de seus pais?12
Chama atenção o modo enfático como Dehon critica o roubo e o
sacrilégio desta segunda categoria de maus educadores. Poderíamos
perceber aqui também uma alusão às leis anti-clericais de Ferry, que
acabava de expulsar os jesuítas da França e que limitava o acesso das
Congregações «não autorizadas» ao ensino. Dehon diz que este tipo de
«pássaros» não prepara o ninho para os seus filhotes. De fato, Ferry
—————————–
12
Ibidem, 7. O mocho é uma espécie de coruja, também conhecida como
coruja-de-igreja, ou coruja-católica. No imaginário europeu é símbolo de
mau agouro. Em português é sinônimo de tristeza.
210
muitas vezes teve que se defender da acusação de que seu projeto de
escola para todos conduzia ao improviso. Temos exemplos bastante
atuais deste tipo de proposta pedagógica, que passa mais pelo idealismo
político do que pela reflexão filosófico-educacional. O resultado é um
milagre aparente que resolve o problema educacional por meio da
simulação de cifras, mas, em sala de aula, o problema continua, às vezes,
agravado. Dehon percebe que educação não se improvisa. É preciso
«preparar o ninho». Há em sua noção de Educação Integral esta
dimensão de «cuidado» fortemente estabelecida.
O avestruz preguiçoso
Após criticar a anti-pedagogia da crueldade e da irresponsabilidade,
Dehon critica a didática do menor esforço.
O avestruz [autrouche] é um pássaro preguiçoso e estúpido. Ele é descrito na
Sagrada Escritura pela dureza com seus filhos. Não lhes dá efetivamente
nenhum cuidado após o nascimento. Seus pequenos ficam abandonados,
privados de toda educação e de todos os benefícios da sociedade; por isso, se
tornam tão estúpidos quanto seus pais e mães. Não se encontraria também
entre os humanos, famílias onde a preguiça e a apatia mantêm a estupidez e a
grosseria? 13
O avestruz já era conhecido desde tempos muito remotos na Síria,
Arábia e Mesopotâmia. Ela faz parte do universo simbólico da Bíblia.
No livro de Jó (39,13-18) encontramos uma referência à ostentação,
crueldade e estupidez com que trata os seus ovos e seus filhotes: «É cruel
com os seus filhotes como se não fossem seus»14. Esta ave é classificada
entre as «aves impuras» no livro do Levítico (11,16). Dehon utiliza
—————————–
13
14
Ibidem, 7-8.
O texto bíblico de Jó afirma, literalmente: «O Avestruz bate as asas
alegremente; com penas de cegonha foge rápido. Entretanto, quando deixa
os ovos no chão, a fim de que se aqueçam na areia, esquece-se de que algum
pé poderá pisá-los ou que algum animal do campo os venha esmagar. É cruel
com os seus filhotes como se não fossem seus e, embora penando em vão,
não o perturba temor algum. Pois Deus o privou de sabedoria e não lhe deu
inteligência». Encontramos outras referências semelhantes ao avestruz na
Bíblia, em: Dt 14,15; Is 13,21; 34.13; 43.20; Jr 50,39; Mq 1,8. Todas elas
são referências negativas.
211
claramente a simbologia bíblica do avestruz para insistir em outra face
da pedagogia do abandono: a crueldade, a estupidez e a preguiça. Ele
critica o educador preguiçoso, que utiliza a lei do menor esforço como se
fosse, desta maneira, educar bem os seus alunos. Sua reflexão sempre
mostra os efeitos que a opção pedagógica dos pais tem na vida dos
filhos. A crítica constante do abandono mostra que, para Dehon, um
princípio fundamental da Educação Integral é o «compromisso» com os
educandos. É certo que existem muitos «professores-avestruz», que
escondem sua ignorância com uma duvidosa didática construída sobre
permanentes reuniões de grupo, leitura de textos e plenários. Esta
fórmula, que já começa a dar sinais de cansaço, é bastante cômoda para o
professor que não conhece bem a matéria ou que tem preguiça de dar
aulas. Chamamos este método de «didática do menor esforço».
Infelizmente, percebemos que a crítica mordaz de Dehon é de
impressionante atualidade. Há muitos professores que fazem «de conta»
que ensinam, enquanto os alunos fazem «de conta» que aprendem.
O pavão vaidoso
A última classe de maus educadores criticada, com típica ironia
francesa, por Dehon, é a do «educador-pavão».
O pavão [paon] é o símbolo da vaidade e do orgulho. Sua vida é fazer pompa.
Ele acredita que é o rei da baixa-corte e põe o bico em tudo. Bem, ele
abandona muito cedo seus pequenos para ocupar-se com suas pompas e eles,
imitando o que viram, logo se tornam vaidosos e agressivos. Não existem
muitos pavões em nossas cidades?15
Ao criticar a pedagogia da vaidade, Dehon sugere que a verdadeira
sabedoria se alcança pela via da humildade. Suas imagens
antropomórficas poderiam remeter a muitos cidadãos de seu tempo, que
eram os «reis-da-baixa-corte». Pode ser tanto um ministro da educação,
com pretensão de ser presidente; ou um novo rico, pequeno burguês; ou
ainda um professor que centraliza toda a atenção sobre si mesmo e sobre
seu desempenho quase teatral em sala de aula. Há certos professores que
estão mais preocupados em ensinar do que em garantir que os alunos
aprendam. Seu sistema pedagógico está centrado na «ensinagem» e não
—————————–
15
L. DEHON, «Sur l’Education», 8.
212
na aprendizagem. No fundo, suas aulas se resumem numa demonstração
vaidosa de seus conhecimentos. Não é incomum que o nível de suas
aulas esteja um pouco além da capacidade de compreensão dos seus
alunos, justamente para ressaltar «sua sabedoria». Há outros que adotam
procedimentos demagógicos, criticando com ironia vazia esta ou aquela
autoridade para chamar atenção sobre si mesmos.
O professor-pavão é um fenômeno comum nos nossos dias. Parece
que Dehon acertou em cheio ao colocar este modelo de «anti-educador»
para fechar o grupo dos maus educadores. Mais uma vez, como nas três
categorias anteriores, o resultado do «abandono dos educandos» é o
estímulo para um comportamento agressivo.
Cada uma destas quatro categorias abandona seus filhotes por um
motivo próprio. O abutre e o gavião os abandonam para prepará-los para
o mundo da concorrência mortal; a coruja os abandona para roubar; o
avestruz os abandona por preguiça e ignorância e o pavão por orgulho e
vaidade. A crítica transversal que encontramos nas entrelinhas desde
discurso é realmente o abandono no qual os educandos se encontram
quando seus educadores são cruéis, irresponsáveis, preguiçosos,
ignorantes ou vaidosos.
4. Exemplos de bons educadores
Agora vejamos, por contraste, as qualidades dos bons educadores. O
abandono é contrastado pela «presença» e a crueldade e grosseria
substituídas pela gentileza e sensibilidade. É preservado o «vigor» típico
de um bom mestre, mas com a «ternura» de cada uma destas aves nas
quais Dehon percebe qualidades de bom educador.
Mas chegamos ao grupo gracioso dos modelos. Aqui tudo é amável e útil.
Escolhi cinco espécies: aqueles que são nobres e valorosos, aqueles que são
suaves e bondosos, aqueles que são dinâmicos e previdentes, aqueles que são
amáveis e amigos do homem, além dos artistas, os delicados, os místicos e os
sentimentais.16
—————————–
16
Ibidem, 8.
213
Nobres e valorosos
A primeira qualidade é encontrada na águia, símbolo do vigor. Dehon
tinha muitos motivos para nutrir um carinho especial pela águia. Os
quatro Evangelhos da Bíblia são tradicionalmente representados por
animais. Mateus é representando pelo homem, Marcos pelo leão, Lucas
pelo touro e o Evangelho de João é representado pela águia17. Sabemos
que Léon Dehon, seguindo o costume da época, quando professou seus
votos religiosos, em 1878, assumiu o nome de Jean du Cœur de Jésus.
Ele via neste apóstolo o símbolo do amor, que inspirou a fundação da
Congregação dos Sacerdotes do S. Coração de Jesus. Não é sem motivo
que o Colégio que fundou se chamava Saint-Jean. E o informativo do
Colégio, que começou a circular já nos primeiros meses de 1878, trazia
como título: L’Aigle de Saint-Jean. Por essa razão, entendemos
perfeitamente a escolha de Dehon em citar o exemplo desta ave logo na
abertura da lista dos bons educadores.
A águia [aigle] é a rainha dos ares, ela é o símbolo da força. É nobre, valente,
infatigável. Bem, ela sabe ser bondosa para com seus filhotes. Ela lhes dá seu
cuidado e os alimenta com dedicação. Eles são serenos e tranqüilos. A águia
os leva para a caça e ensina a caçar e não os obriga a ir mais longe, a não ser
quando eles são fortes o bastante para fazê-lo com segurança. Alguém
despreza estas características?18
Há também neste trecho do texto, uma espécie de paralelo com o
primeiro exemplo do grupo anterior, principalmente o gavião. Se
compararmos os procedimentos contrastantes das duas aves, notaremos a
proposta pedagógica de Léon Dehon. Ao contrário da crueldade e do
abandono para a sobrevivência em um mundo de concorrência desleal, o
educador que segue o exemplo da águia é forte, porém bondoso. É
valente, porém cuidadoso. O resultado é que os educandos ao contrário
de agitados e violentos, se mostram serenos e tranqüilos. Há uma espécie
de «princípio de subsidiariedade pedagógica» nos procedimentos da
águia com relação aos seus filhotes quando «não os obriga a ir mais
longe a não ser quando eles são fortes o bastante para fazê-lo». A
—————————–
17
18
Esta representação é inspirada na visão do Profeta Ezequiel, conforme
descrita em seu livro: Ez 1,5-14.
L. DEHON, «Sur l’Education», 8-9.
214
presença do educador subsidia o que falta no educando. Porém, o desejo
de que o educando cresça faz com que o educador saibam diminuir o
«subsídio» de modo que o outro se torne cada vez mais autônomo.
Esta sensibilidade é fundamental para o adepto da Educação Integral.
O professor procura conhecer o caráter do educando, seus limites e
possibilidades, segundo a lição que Dehon aprendeu de Charles Rollin.
A lição tem a medida da capacidade do aluno. Portanto, estamos diante
de um modelo educacional centrado na aprendizagem e não mais na
«ensinagem». O educando é colocado no foco central do processo
educacional. O professor ensina não para mostrar que sabe, mas para que
o aluno aprenda. Isto, simplesmente, subverte os procedimentos
pedagógicos apoiados na vaidade do «professor-pavão». É preciso, antes
de tudo, criar um vínculo de empatia com o aluno. É preciso
comprometer-se com ele e conhecê-lo. O centro desta proposta
educacional não está no conteúdo a ser ensinado e depois bancariamente
cobrado na prova, nem no professor ou na instituição de ensino, com
todas as suas estruturas. O centro deste processo é o aluno. Este método
é evidente no discurso, porém, nem sempre verificado em nosso
cotidiano escolar.
Suaves e bondosos
Após o vigor, Dehon apresenta uma segunda qualidade do bom
educador: a ternura e a bondade. A pomba e a perdiz são os pássaros
escolhidos para esta analogia. A pomba é apresentada como aquela que é
capaz até dos maiores sacrifícios para salvar sua ninhada. Novamente o
refrão de Dehon aparece de modo quase insistente: a pomba nunca
abandona seus filhotes.
Outra qualidade que Dehon extrai das pombas é o companheirismo
entre marido e mulher na educação dos filhos. Ele falava para casais da
«Associação de Ajuda-mútua». Em um tempo no qual a educação dos
filhos era quase sempre tarefa da mãe, a proposta de Dehon soa como
«moderna». A mãe chega a ter que sair do lar para se alimentar e o pai
assume o seu lugar, chocando os ovos. Este exemplo poderia ser visto
hoje em muitas famílias nas quais a necessidade faz com que a mulher
saia para trabalhar e buscar o sustento, enquanto o marido fica em casa
com as tarefas do lar, inclusive a educação dos filhos. Se um casal com
215
esta mentalidade amadurecida não é comum nem mesmo hoje,
calculemos o impacto destas palavras em 1888, quando as mulheres em
geral nem votavam, quanto mais trabalhavam fora. Propor aos maridos
as tarefas domésticas parece-nos uma idéia dehoniana muito à frente de
seu tempo.
Eis os corifeus da doçura e da bondade, a pomba [colombe] e a perdiz
[perdrix]. O apego da pomba à sua ninhada é tão grande, tão constante, que
se pode ver como sofre os maiores desconfortos e as dores mais cruéis,
porém não os abandona. Uma delas, cujas patas congelaram e caíram porque
seu ninho estava muito perto da janela do viveiro, apesar deste sofrimento,
continuava seu trabalho até que seus pequenos tivessem nascido. O pai,
enquanto a mãe choca, não se afasta dela, e no momento em que, obrigada
pela fome, deixa seus ovos para se alimentar, o pai, que ela chamara com um
pequeno turturino, toma o seu lugar e choca seus ovos. Ele faz isso duas
vezes por dia e durante duas ou três horas cada vez.19
Chegamos a um dos momentos mais inteligentes e sutis do discurso,
sob nosso ponto de vista. A perdiz é apontada como símbolo de
companheirismo entre marido e mulher na educação dos filhos. Os dois
educam em parceria. Esta solidariedade aparece bem nos «meios
combinados» que utilizam para afastar o predador e salvar a cria. Dehon
descreve este processo com detalhes bastante vivos.
Entre as perdizes, o pai compartilha com a mãe a tarefa de educar seus
pequenos. Eles os acompanham juntos, os chamam a todo momento,
mostram o alimento que lhes convém e ensinam a procurá-lo escavando a
terra. Não é raro vê-los unidos, cobrindo juntos os seus pequenos cujas
cabeças saem de todas as partes com seus olhos muito vivos. Muitas vezes se
pode vê-los agitando suas asas sobre o cão que ameaça seus filhotes; quanta
coragem o amor paternal inspira aos animais mais tímidos. Às vezes, este
amor paternal lhes inspira uma espécie de prudência e meios combinados
para salvar sua ninhada. O pai foge lentamente arrastando a asa como para
chamar atenção do inimigo, correndo o suficiente para não ser apanhado, mas
não o suficiente para desanimar o caçador; enquanto isso a mãe leva seus
pequenos para longe sem que o caçador escute o mínimo barulho. Que belos
—————————–
19
Ibidem, 9.
216
exemplos. Ah! se em todas as famílias o pai e a mãe dessem o mesmo
cuidado à vida temporal, moral e espiritual de seus filhos.20
A educação não é uma tarefa solitária, mas exige «espírito de corpo».
Existe, hoje, uma espécie de messianismo educacional no qual cada
professor se apresenta como o salvador da pátria. Ele seria, finalmente, o
primeiro a revelar certas verdades aos alunos, ou salvar a educação do
país. O mesmo pode acontecer no plano político, ou das políticas
públicas, onde a continuidade, infelizmente, é rara. A Educação Integral
é uma construção coletiva, que exige a solidariedade entre os
professores, funcionários, dirigentes e alunos de uma Instituição de
Ensino. A sugestão de Dehon para os pais serve também para os
professores e dirigentes, para que encontrem «meios combinados».
Pensemos, por exemplo, nas reuniões pedagógicas e na construção
partilhada dos planos de ensino; das discussões das ementas; do modo
como se elabora um currículo; na gestão corporativa do ensino. Tudo
isso exige os meios combinados a exemplo do casal de perdizes.
Dinâmicos e previdentes
O terceiro pássaro citado por Dehon com qualidade de bom educador
é pouco conhecido no Brasil por não fazer parte de nossa fauna tropical.
Porém, o modo detalhado como o autor descreve este pequeno pássaro é
suficiente para entendermos sua metáfora pedagógica. O bom educador é
alguém dinâmico e que prepara bem suas lições. Estas são duas das
primeiras críticas que um aluno faz a seus professores: quando é «muito
parado» e «não preparou a aula». Dehon mostra que a estatura pequena
do pássaro não é proporcional à sua capacidade de realização. Seu ninho
enorme lembra o acervo didático do bom professor que reúne livros,
apostilas, gravuras, pequenos textos etc. Ele possui os recursos
necessários para uma boa aula.
Mas eis aqui outro modelo, maravilhosamente dinâmico e previdente, é o
melharuco [mésange], o hóspede gracioso dos nossos bosques. O melharuco
está sempre em atividade, sempre em movimento. É ele que, entre os
pássaros, educa a família mais numerosa. Trabalha dia e noite, sem descanso.
Para ele, todos os alimentos são bons: ervas, grãos, insetos. Constrói um
—————————–
20
Ibidem, 9-10.
217
ninho bem grande para a sua pequena estatura. Ele transporta grandes
quantidades de ervas finas, espumas, algodão, lã, plumas e penugem, tudo o
que encontra. Ele tem uma coragem intrépida e uma atividade infatigável. E o
que é raro entre os pássaros, não se preocupa somente com aquilo que lhe
falta agora, mas reconhece também a época, as estações. Tem sempre perto
do seu ninho um lugar repleto de provisões; é um pequeno capitalista. Será
um colaborador da caixa de ajuda-mútua quando isto for instituído entre os
pássaros.21
O melharuco é utilizado como exemplo para a sociedade de
«mutualidade» que está ouvindo o discurso de Dehon. A «caixa de
ajuda-mútua» era uma espécie de fundo comum, em sistema de
cooperativa, com o qual todos os membros da sociedade colaboravam, e
que servia para ajudar aqueles que mais necessitassem, ou a construir a
casa de quem não a tivesse. Hoje esta idéia de «economia solidária» é
adotada por ONGs com ares de novidade. Na verdade, esta educação
popular para a administração financeira já é refletida por Dehon em seu
discurso centenário.
Amáveis e amigos
Uma quarta qualidade do bom educador depois do vigor, ternura,
dinâmica e previdência, é a amizade. A andorinha é um dos pássaros
utilizados para esta analogia. Dehon distingue amizade de
«amabilidade». A andorinha se faz amar, principalmente pelos pobres. O
bom educador não é apenas aquele que ama seus alunos, mas que é
amável com seus alunos. A diferença é muito grande, pois não basta
amar, é preciso se fazer amar, ou seja, tratar os alunos de tal modo que
eles se lembrem dele durante toda a vida e o estimem como um bom
mestre. A dedicação da andorinha e seu trabalho em equipe na
construção de ninhos é elogiada por Dehon como qualidade que se
espera do bom educador. Novamente existe aqui uma referência explícita
—————————–
21
Ibidem, 10-11. A mésange, típica da fauna européia, é normalmente
traduzida em português como melharuco ou abelheiro. Cf. R.A. CORREA,
Dicionário Escolar Francês-Português, 376. Trata-se de um pequeno
pássaro que se nutre de insetos, sementes e frutas. Seu nome científico é
Parus cæruleus. M. LEGRAIN, Le Petit Robert, 918.
218
ao trabalho da sociedade de ajuda-mútua na construção das casas para os
pobres.
Um grupo particularmente amável, é aquele dos amigos dos homens: por
exemplo, a andorinha [hirondelle]. Ela não gosta de ficar longe de nós. Faz
seu ninho em nossas janelas e nunca nos bosques. Busca, com preferência, a
casa do pobre como para pregar-lhe, com insistência, a confiança na
Providência. Como ela é também dinâmica e dedicada aos seus pequenos!
Ela rapidamente constrói seu ninho com um cimento duro que carrega na
ponta de suas asas. Não precisa mais do que oito horas e, coisa notável e
única, a andorinha é ajudada neste trabalho por várias companheiras. É a
Sociedade de Ajuda-mútua entre os pássaros22.
Utilizando a pastorinha, exemplo de um pássaro muito conhecido dos
pastores e cuidadores de rebanho, Dehon elogia uma forma de atividade
pastoral muito difundida em sua época: a visita aos pobres em suas casas
para levar amizade e ajuda material. Os vicentinos exercem esta
atividade até hoje. Certamente esta prática já era realizada pela
Sociedade de Ajuda-mútua, que escutava o discurso de Dehon.
Outra amiga do homem é a pastorinha [bergerette], o pássaro que acompanha
nossos pastores e nossas ovelhas, a alegria, a recreação dos humildes pastores
e, às vezes, do chefe do rebanho porque adverte com seus gritos a
aproximação do lobo e da ave de rapina. Ela faz seu ninho nos sulcos do
campo e dá a seus pequenos este exemplo de apego ao homem. Que belo
símbolo dos piedosos visitadores e visitadoras que levam o consolo aos
pequenos e aos pobres.23
Artistas, delicados, místicos e sentimentais
O quinto grupo de qualidades boas, indicadas por Dehon, é
apresentado por uma série de dez pássaros. É o final da parte central de
seu discurso. Após esta lista, ele partirá para a aplicação prática, onde
revela o pré-texto do seu discurso educacional. Veremos brevemente
cada um destes pássaros separadamente, mesmo porque alguns não
fazem parte da fauna tropical brasileira.
—————————–
22
23
L. DEHON, «Sur l’Education», 11.
Ibidem, 12. A bergerette, é conhecida em português como pastorinha. Cf.
R.A. CORREA, Dicionário Escolar Francês-Português, 73.
219
Eis aqui agora os artistas, os cantores piedosos ou profanos. Apresento a
toutinegra [fauvette] sempre alegre, viva, atenta e ligeira. É o hóspede mais
amável de nossos jardins. Que exemplo de apego ao homem ela dá aos seus
filhotes! Não parece ter um coração humano? Sua voz afetuosa, seus
pequenos gritos e suas batidas de asas exprimem atenção e reconhecimento.
Seus filhotes são excelentes alunos. Se conseguem ouvir o rouxinol,
aperfeiçoam o seu canto e disputam com seu mestre. 24
A toutinegra, ou fouvette, como é popularmente conhecida na França,
é um pássaro tipicamente europeu. Está presente nos jardins e possui um
canto bastante típico. Uma das suas características é esta capacidade de
aprender o canto de outros pássaros, como o rouxinol. Dehon a indica
como exemplo de educador e não ao rouxinol. O importante não é ter
apenas um belo canto, mas a capacidade de aprender. Esta é uma
característica do bom educador: não bastam os dotes naturais; é
necessário abertura aos novos conhecimentos. Ele não se fecha em suas
certezas, ainda que belas e verdadeiras.
O melro [merle] é também um dos nossos amigos mais agradáveis. Assobia
para nos entreter. Ele tem o sentimento paternal muito desenvolvido e se
alguém se aproxima para mexer em seus filhotes, ele vai direto aos olhos do
agressor para cegá-lo com suas bicadas.25
O melro é nosso conhecido na fauna brasileira. Assim como fez com a
toutinegra, Dehon elogia a arte do seu canto e também o seu sentimento
paterno, capaz até de certos gestos carregados de ira quando se trata de
defender a ninhada. O compromisso do educador com seus educandos
exige, em alguns momentos, o que o poeta chamou de «ira santa».
Movido por certa indignação diante, por exemplo, de alguma injustiça, o
educador assume o compromisso de defender seus educandos. Hoje, isso
se verifica de modo bem concreto na questão do narcotráfico, que tem
como alvo o pátio de muitas escolas. Dehon faz esta síntese de atitudes
contrastantes no educador. O mesmo artista, dono de um belo canto, é
—————————–
24
25
L. DEHON, «Sur l’Education», 12-13. A fauvette, típica da fauna européia,
pode ser traduzida em português como toutinegra. Cf. R.A. CORREA,
Dicionário Escolar Francês-Português, 376. Trata-se de um pequeno
pássaro silvestre com canto intenso. M. LEGRAIN, Le Petit Robert, 567.
L. DEHON, «Sur l’Education», 13.
220
capaz de militância. Vigor e ternura encontram aqui, mais uma vez, a
síntese no educador integral.
O amável pintassilgo [chardonneret] é um pai de família modelo. É de uma
assiduidade irrepreensível para cumprir seus deveres de chefe de família.
Ajuda a mãe a construir o ninho. Bom trabalhador, ele leva regularmente o
alimento para casa durante a chocada e durante a educação dos pequenos.26
O pintassilgo, também conhecido na fauna brasileira, é visto por
Dehon como exemplo de assiduidade. Esta é uma qualidade importante
para o educador: a regularidade, a constância. Existem professores que
vivem de grandes e raros momentos. São aqueles que dão uma lição
inesquecível no primeiro dia de aula, mas a partir da segunda semana
começam a faltar nas aulas, trocar horários e mandar recados aos alunos,
por meio da secretaria, de que devem se ocupar com um texto qualquer.
Segundo Dehon, o educador integral deve ser assíduo no cumprimento
de seus deveres.
A gralha [pie], a própria alegre Margot, não é uma madrasta. Ela constrói um
sólido ninho com gravetos, o esconde entre as ramagens e o reveste
internamente como um colchão suave e quente. Seus olhos vigiam sem cessar
sua ninhada e, se necessário, a defende contra o corvo [corneille], o falcão
[faucon] e até a águia. Ela educa os seus filhotes com dedicação e cuida deles
por um longo tempo. Que belos exemplos de trabalho e dedicação nos deixou
o Criador. 27
A gralha, no texto de Dehon, tem o mesmo nome que recebe nas
fábulas de La Fontaine: Margot28. Com este exemplo termina o grupo
dos «artistas». A arte da gralha está no cuidado com que constrói seu
ninho. Até o aquecimento é pensado. Dehon teve que reconstruir duas
vezes seu colégio, tomado pelo fogo e destruído pela guerra. Seu cuidado
—————————–
26
27
28
Ibidem, 13.
Ibidem, 13.
É conhecida a fábula de La Fontaine: «A águia e a gralha», que começa com
estas palavras: «L'Aigle, Reine des airs, avec Margot la Pie, différentes
d'humeur, de langage, et d'esprit et d'habit, traversaient un bout de prairie».
No Brasil a tradução e adaptação das fábulas de La Fontaine foi publicada
por: S. BARALDI – R. GUARNIERI, (adapt.). As mais belas fábulas de La
Fontaine. São Paulo: Paulinas, 2001.
221
com a arquitetura faz parte de sua noção de educação. Não se pode
educar em qualquer lugar. É preciso pensar o currículo oculto nas
paredes e jardins das escolas. O modo como se constrói o «ninho» pode
contribuir ou ser um obstáculo para a Educação Integral. Muito calor,
falta de ventilação ou claridade, cores, concepção do espaço, devem se
cuidadosamente considerados.
Eis agora os pássaros mais delicados. O beija-flor [l’oiseau-mouche] é a jóia
da criação. É gracioso, rápido, elegante. A esmeralda, o rubi e o topázio
brilham sobre suas asas. Vive sobre as flores, se alimenta de néctar e habita
somente nos climas em que as flores se renovam sem cessar. Seu corpo é
pequeno como o de uma abelha. Ele faz seu pequeno ninho na folha de uma
laranjeira. Este ninho é fortemente tecido de fino algodão e de fibras sedosas;
é delicado e liso como a superfície de uma luva. A mãe, para alimentar seus
pequenos, lhes dá sua língua cheia de mel e açúcar tirados das flores. Nunca
se pôde criá-los em viveiro por não se encontrar nada delicioso o bastante
para alimentá-los.29
O beija-flor é escolhido por Dehon pela sua «delicadeza». É um trecho
do discurso de rara beleza. Esta é uma característica sutil do bom
educador. Ele é delicado. Nem sempre os educadores estão atentos ao
modo como suas palavras podem impactar para sempre a vida de um
aluno. Não é incomum perceber trocas de indelicadezas entre alunos e
professores. Para Dehon, a boa educação, passa por pequenos gestos que
fazem grande diferença. Muitas vezes este exemplo, presente nas
atitudes de um professor, fala mais do que todas as suas sábias palavras.
Alguns educadores pensam que devem evitar ser delicados com os
alunos, pois poderiam perder a autoridade. Por isso, economizam no
sorriso e na gentileza. Preferem a pedagogia do medo, da ameaça e do
grito. Dehon mostra, nesta fábula, que o bom educador mantém a
empatia com os alunos através de atitudes educadas. Ele é, muitas vezes,
apontado por seus ex-alunos como um homem gentil. Sabia cativar os
educandos com pequenos gestos de cordialidade. Essa pedagogia do
afeto é marcante na vida e nas palavras de Dehon.
O colibri [colobri] não é menos gracioso. Um missionário conseguiu criar
alguns, alimentando-os com um patê feito de biscoitos e de vinho da
—————————–
29
L. DEHON, «Sur l’Education», 13-14.
222
Espanha. Escutavam sua voz e vinham em quatro sobre seu dedo para receber
a apetitosa comida.30
Conhecemos o colibri na fauna brasileira. Chama atenção a alusão ao
missionário espanhol. Dehon não faz muitas citações deste tipo
eclesiástico em seu discurso. Em nenhum momento cita trechos de
documentos da Igreja ou mesmo de discursos do Papa, que conhecia e
admirava. Prefere uma linguagem aberta. A citação do colibri é apenas
para ressaltar uma nuança da delicadeza, que é a mansidão. Uma pessoa
delicada é capaz de relacionar-se com equilíbrio. Há professores que
assustam os alunos. Ninguém os procura fora do horário de aula para
fazer uma consulta. Mesmo durante a aula, há professores que são tão
«ariscos» que raramente um aluno se «arrisca» a fazer alguma pergunta.
Ao contrário, o professor-colibri, tem sempre os alunos ao seu redor.
Alguém que conseguiu encantar seus educandos poderá avançar para as
lições mais áridas. Vemos aqui que o sabor é o princípio do saber. Há
professores que, sistematicamente, tornam o conhecimento sem sabor,
como se o prazer fosse alguma forma de «pecado». O professor da
Educação Integral será alguém que encanta pelo sabor, ao mesmo tempo
em que conduz ao saber.
A ave do paraíso [l’oiseau de paradis] é totalmente vestida de seda, de
veludo, e de iluminuras. Ela alimenta seus pequenos com orvalho e ervas
aromáticas. Busquemos também nós delicadamente os alimentos espirituais
para nossos filhos, cuidando que não ouçam ou leiam nada que não seja puro,
elevado e apto para fazer deles pessoas de fé e de bem.31
Esta ave do paraíso é conhecida de nossos zoológicos. Ao contrário do
pavão, Dehon não a vê vaidosa com sua beleza. Ao citá-la, o autor
chama atenção para outra nuança da delicadeza que é a preocupação de
selecionar a qualidade das informações que chegam aos alunos. Hoje, em
tempos de Internet, isso seria um ideal aparentemente impraticável.
Porém, na Educação Integral é preciso haver uma reflexão sobre a forma
e os critérios de seleção das informações que chegam aos alunos. Não se
trata propriamente de censura, porém, é necessário avaliar criticamente,
por exemplo, a qualidade dos livros didáticos. Alguns transmitem
—————————–
30
31
Ibidem, 14.
Ibidem, 14.
223
preconceitos raciais e, até mesmo, informações históricas erradas ou
distorcidas. Algumas informações sobre as religiões são tão
estereotipadas e distorcidas que acabam por alimentar pré-conceitos.
Eis aqui, finalmente aqueles que se pode chamar de místicos e sentimentais.
A cotovia [alouette] é um pássaro eminentemente francês. Os antigos
romanos a tinham como proveniente da Gália. Ela é fina, viva, espiritual,
debochada. É alegre e naturalmente religiosa. Seu canto sempre foi
considerado como uma prece. Ela é generosa e dedicada. Se alguém coloca
uma jovem cotovia perto de uma ninhada que foi capturada, ela é tomada de
afeição pelos órfãos, cuida deles, aquece-os com suas asas, alimenta-os e não
se esquece deles. 32
A cotovia também é nossa conhecida, apesar de Dehon considerá-la
um pássaro eminentemente francês. Na verdade, ele se utiliza da
conhecida alouette para definir algumas características que julga típicas
do espírito francês, que considera, entre outros pontos, naturalmente
religioso. Percebemos novamente o advogado de defesa da educação
cristã retratar, com força, a alma católica da França. Para além deste
aspecto claramente apologético do texto, existe aqui um retrato dos
contrastes que caracterizam o jeito francês de ser. Dehon é, sem dúvida,
um patriota ufanista. Ele utiliza o caráter místico que vê na cultura
francesa para elencar esta como uma das qualidades desejáveis de um
bom educador. É relevante esta ligação que Dehon faz entre mística e
sentimento. Coloca as duas qualidades do educador juntas. Lembremos
que ele tem como núcleo de sua mística o Coração de Jesus. Considerado
este fator, o exemplo da mística e sentimental cotovia faz todo o sentido.
O pisco-de-peito-ruivo [bouvreuil] tem um verdadeiro instinto de dedicação.
Ele se apega de tal maneira ao homem que parece ter uma alma sensível. Ele
aprende, para nos agradar, a cantar, a falar, a dar às suas frases uma
entonação penetrante. Alguém notou que ele reconheceu, depois de um ano, a
pessoa que o havia educado. Outros, obrigados a abandonar seu mestre
acabaram morrendo de desgosto. Em uma ninhada de órfãos, alguém
—————————–
32
Ibidem, 15. A alouette, pode ser traduzida, em português, como cotovia ou
calhandra. Cf. R.A. CORREA, Dicionário Escolar Francês-Português, 31. É
um pequeno pássaro do campo, com plumagem parda. Seu nome científico é
Alauda arvensis. M. LEGRAIN, Le Petit Robert, 40.
224
percebeu como os maiores, que já sabiam alimentar-se sozinhos,
alimentavam os menores que não sabiam ainda.33
Se quiséssemos reescrever este discurso de Léon Dehon, com sabor
tropical, certamente substituiríamos o francês bouvreuil, pelos nossos
típicos papagaios. De fato, entre nós, é a ave que aprende a falar e que
até parece ter um «espírito humano». Dehon faz questão de destacar a
«memória» deste pássaro. Na educação que encontrou a via do
reencanto, o bom mestre é sempre lembrado. Este é um teste infalível
para saber se a educação foi ou não integral.
O pelicano [pélican] é, como se sabe, o símbolo do sacrifício. Ele se priva de
seus alimentos e os retira da sua bolsa de reserva que tem debaixo do seu
bico para alimentar a seus pequenos. Isto fez com que se dissesse que ele os
alimenta com seu sangue. Sua dedicação vai até o sacrifício e o heroísmo. 34
O último pássaro, assim como o primeiro (a águia), tem um denso
significado simbólico no discurso de Dehon. O pelicano é apresentado na
categoria dos pássaros místicos e sentimentais. Mas, neste caso, a síntese
destas duas qualidades encontra seu ponto de convergência na
capacidade de sacrificar-se pelos educandos. O pelicano no imaginário
religioso, sempre foi símbolo do sacrifício de Jesus Cristo. Ele é
apresentado na mitologia como uma ave que é capaz de perfurar o
próprio peito para dar seu sangue em alimento para os filhotes. Dehon
faz alusão à origem natural deste mito. O fato é que esta ave é
representada em muitas igrejas, neste gesto de sacrifício, para simbolizar
o episódio bíblico em que o lado de Jesus, morto na cruz, é perfurado
pela lança de um soldado (cf. Jo 19,33-37). O evangelista João dá grande
destaque ao fato, como modelo de entrega total. Dehon encerra sua lista
de qualidades voltando novamente o olhar para seu modelo, Jesus Cristo,
em seu gesto de doação. Poderíamos aprofundar aqui uma Pedagogia da
Dádiva, como elemento fundamental numa Educação Integral.
—————————–
33
34
L. DEHON, «Sur l’Education», 15. O bouvreuil, é traduzido em português
como pisco. Cf. R.A. CORREA, Dicionário Escolar Francês-Português, 86.
É um pequeno pássaro de plumagem negra e cinzenta com o peito
avermelhado. Seu nome científico é Pyrrhula pyrrhula. M. LEGRAIN, Le
Petit Robert, 185.
L. DEHON, «Sur l’Education», 15-16.
225
5. Aplicação prática
Ao final do seu discurso sobre educação, Dehon faz a aplicação
prática. Somente este aspecto já denota um procedimento didático. Ele
sempre parte do concreto e volta para a realidade. Tem um método que
não é exclusivamente indutivo ou dedutivo. É uma espécie de círculo
hermenêutico que reflete sempre a partir do compromisso com a
mudança da realidade. É uma pedagogia transformadora. Outro detalhe
que apareceu durante todo o discurso e retorna neste grande final é a
fórmula construtivista expressa nas estratégicas perguntas feitas ao
interlocutor ao final de cada módulo de reflexão. Ele convoca o ouvinte a
se posicionar. Não é uma aula «neutra».
Agora que descrevi em, um quadro completo, os graciosos educadores
formados pelo autor da criação, vocês já escolheram alguns modelos dentre
eles? Ah! vossa escolha, sem dúvida, não será exclusiva. Vocês irão querer
compor seu ideal com todas estas diferentes virtudes que passaram diante dos
olhos. A dignidade e a bondade, o dinamismo e a ternura, a piedade, a
delicadeza e a dedicação. Vocês desejarão reunir todas estas qualidades
diferentes na educação, como a abelha junta o perfume das flores.
O poeta não disse a propósito da educação de uma criança: «Eu gerei esta
jovem alma como a abelha faz seu mel». Vocês certamente desejarão
descartar todos os procedimentos de uma má educação. Ah! descuidar da
educação dos filhos seria preparar sua desgraça e a deles. Seria prestar a si
mesmo e à pátria o pior serviço. 35
O primeiro parágrafo do texto mostra explicitamente a dinâmica de
Dehon de propor uma síntese original de virtudes para cada educador. O
segundo parágrafo repete uma das idéias que já se encontrava em seu
discurso inaugural e é uma de suas convicções mais profundas: educar é
gerar o educando em sua própria alma. Ele acredita que na relação
pedagógica verdadeira há algo que passa de alma, para alma entre
educador e educando.
Vocês conhecem a história de Dionísio, o tirano, rei da Sicília? Um dia, ele
fez prisioneiro o filho de Díon, seu inimigo. Vocês pensam que ele o matou?
Nada disso. Foi ainda mais cruel. Ele o confiou a educadores encarregados de
—————————–
35
Todo o trecho desta Aplicaçãom prática está em: L. DEHON, «Sur
l’Education», 15-19.
226
corrompê-lo e de deixá-lo viver segundo seus caprichos e paixões. Quando
este jovem homem tornou-se escravo de seus sentidos e de sua cobiça, o
tirano o devolveu a seu pai. O pai, desolado, tratou de confiá-lo a mestres
cheios de sabedoria, mas foi impossível recuperá-lo e ele se tornou o
desgosto de sua família e de sua pátria. Assim fazem, sem dúvida, aqueles
que, iludidos por suas vãs teorias, pretendem dar à França uma juventude sem
Deus.
A conhecida história de Dionísio, lembrada por Dehon neste segundo
trecho de sua aplicação prática mostra que educar mal é mais cruel que
matar. Aqui ele está criticando explicitamente o sistema de educação das
«Escolas Neutras», propostas pela reforma de Ferry. Este aspecto
aparece, com todas as letras, na frase: «Assim fazem, sem dúvida,
aqueles que, iludidos por suas vãs teorias, pretendem dar à França uma
juventude sem Deus». Esta pequena frase é um princípio final que nos
ajuda a compreender todo o seu discurso metafórico. Esta é a grande e
permanente crítica de Dehon. Ele está convencido de que não se pode
educar bem prescindindo da experiência religiosa.
Se você quer colocar a serviço de seus filhos todo o seu trabalho e
previdência, você economizará quando isso for possível como faz o
melharuco [mésange]. A previdência é a força das famílias assim como das
nações. Mas não se esqueça que a previdência apenas completa as provisões
espirituais. Ter economias, é bom, mas com virtude e fé. Sem dúvida que as
nações precisam de arsenais com munição e de celeiros com alimentos, mas
especialmente necessitam da força moral que dá a coragem e a disposição
para o combate. O celeiro onde se guarda esta força é a Igreja, é a Escola
Cristã, é o Círculo Católico, são as associações cristãs. Mas de nada serviria a
uma nação ter homens e armas, se não tivesse fé e esperança.
Neste trecho, Dehon repete a mesma defesa da «provisão espiritual»,
porém, com argumentos positivos. Ele está diante de uma associação que
tinha como finalidade reunir recursos para suprir carências materiais.
Lembra a importância de valores espirituais como a força moral, a fé e a
esperança.
Se você quiser ser delicado como estes pequenos seres que descrevemos,
deve velar sobre as leituras e os relacionamentos dos seus filhos e educar
suas almas o quanto puderem na direção do ideal. Deve saber recordar a eles,
várias vezes, que a honra e a virtude estão acima dos prazeres materiais,
como aquela nobre viúva de Vendée que, tendo que premiar seu sobrinho, um
227
jovem e bravo estudante, lhe apresentou em uma das mãos uma moeda e na
outra uma cruz de São Luis, que seu avô usava durante o combate de
Quiberon, cuja fita branca ainda estava manchada de sangue. Ela lhe dizia:
«Você escolhe ter a moeda ou beijar esta cruz?» O jovem, superando a cobiça
própria de sua idade e, enxugando uma lágrima, vendo essa cruz gloriosa,
beijou a relíquia da honra. O poeta exprimia o mesmo pensamento quando
dizia a uma criança para estimular sua virtude: «A cruz de teu pai é aquela
que te guarda, cruz do velho soldado morto na batalha».
Em uma terceira defesa dos valores místicos, Dehon utiliza uma
história popular para mostrar que um jovem bem educado sabe escolher
entre valores simbólicos e materiais. Sua escala de valores ultrapassa os
critérios da mera cobiça.
A Igreja pede que sejamos educadores nobres, dedicados e delicados. É o seu
ensino de todos os dias. Eis um exemplo diante de nossos olhos. Conta-se
que Dom Datilly, antigo bispos de Orange, caminhando um dia por sua
cidade episcopal, escutou gritos de uma criança cuja mãe não estava em casa.
Quando ela regressou, se surpreendeu. Ele disse suavemente: «Senhora, cuide
bem deste menino, quando ele tiver a idade da razão, inspire a ele o amor e o
temor de Deus, pois só isso pode dar a felicidade a vocês dois».
Portanto, vamos dedicar todo cuidado à educação dos filhos, mas sem
esquecer-se de edificá-los ao mesmo tempo em que os instruímos. O exemplo
vale mais que o conselho. Conhecemos o provérbio francês que diz: Leçon
commence, exemple achève.
Antes de encerrar seu discurso, Dehon ainda lança mão de um quarto
argumento para colocar sua ênfase na defesa da educação segundo o
ideal cristão. Neste exemplo, ele retoma um tema que atravessou todo o
seu discurso: abandono e presença.
O último parágrafo distingue educação de mera instrução. Dehon
demonstra que uma educação ideal deve ser realizada com exemplos de
vida e não apenas com piedosos conselhos. O ditado francês que utiliza
para encerrar seu discurso poderia ser traduzido livremente da seguinte
maneira: «A lição é um bom começo, mas apenas o exemplo leva à
perfeição». Conhecemos um ditado popular semelhante, em português:
«As palavras comovem, os exemplos arrastam».
228
CAPÍTULO VII
Dehon e os Antigos Alunos
1. A Associação dos Antigos Alunos do Colégio São João
A visão educacional de Dehon pode ser verificada em seu
relacionamento com os antigos alunos do Colégio São João. Entre os
anos de 1884 e 1924 aconteceram cerca de 35 Assembléias Gerais. Para
preservar esta memória foi criado o Bulletin annuel de l’Association
amicale des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean1. Apenas durante o
período 1913-1918 estes encontros foram suspensos devido a primeira
grande Guerra Mundial, porém o vínculo foi mantido por meio de um
boletim informativo: Le Trait-d’Union2.
Para analisar esta documentação, classificamos o relacionamento de
Dehon com seus antigos alunos em quatro grandes períodos: criação;
cultivo; resistência durante a Guerra; um novo começo. Para cada
período escolhemos algum discurso de Dehon mais relevante no qual
podemos perceber a evolução de suas idéias educacionais. Trata-se de
um grande momento de sua vida, quando ele já não se dedica à tarefa
—————————–
1
2
Os Arquivos Dehonianos, em Roma, preservam um inventário desta
publicação, que utilizamos como fonte para a nossa pesquisa. Citaremos o
local onde as atas estão arquivadas.
O. LEDUC, ed., Le Trait-d’Union - Bulletin de Guerre 1915-1919, SaintQuentin 1935.
229
diária de administrar um colégio, mas mantém o vínculo afetivo com os
antigos alunos.
A Criação da Associação dos Antigos Alunos (1884-1896)
No dia 29 de setembro de 1884 aconteceu a primeira reunião da
Association Amicale des Anciens Élèves de l’Institution Saint-Jean
(Associação dos Antigos Alunos)3. Segundo as atas e outros
documentos, preservados nos Arquivos Dehonianos, em Roma, a
participação de Dehon foi assídua nas assembléias desta Associação até
1923. Desde o início, ele foi escolhido como «Presidente de Honra» e,
geralmente, nestas ocasiões fazia pequenos discursos sobre educação.
Estes textos podem ser encontrados quase somente nas atas das
assembléias e são, para o objetivo de nossa pesquisa, uma fonte
importante, que permite conhecer Dehon educador a partir do olhar de
seus antigos alunos.
Nesta primeira reunião o presidente, Louis Maréchal, explicou que os
objetivos da Associação dos Antigos Alunos seria conservar o espírito de
família entre os ex-alunos da maneira como sempre foi cultivado no
Colégio; animar o desejo de fazer o bem e praticar a fé, mesmo em meio
à dificuldades; mostrar que a educação cristã forma franceses fortes e
honrados, que amam Deus e a Igreja. Dehon falou breve e
espontaneamente. As atas registram que ele deu os mesmo conselhos
«saídos do coração que tanto faziam bem quando ainda eram alunos».
A segunda reunião anual aconteceu no dia 1º de outubro de 1885, com
a presença de 39 associados4. Dehon mostrou, por meio de exemplos,
como são importantes as marcas deixadas pelos momentos importantes
da vida escolar, principalmente os retiros. São recordações que se leva
—————————–
3
4
AD.B. 90/1, inv. 0112800. Participaram vinte e quatro antigos alunos,
inclusive A. Delloue, que foi escolhido como vice-presidente e que, depois,
se tornaria sacerdote da Congregação e terceiro diretor do Colégio São João.
AD.B. 90/1, inv. 0112801. Pelo registro em La Semaine Religieuse 31
(1885) 488-489, sabemos que Louis Maréchal esteve na cerimônia de
«Distribuição de Prêmios» no dia 1º de agosto de 1885, e explicou aos
alunos quais seriam os objetivos da Associação dos Antigos Alunos.
230
para a vida inteira. Os registros das reuniões de 1886-1893 foram
praticamente todos destruídos pela Guerra de 1914-19185.
A 11ª Assembléia aconteceu em 19 de agosto de 18946. Desde o dia
20 de novembro de 1893, Dehon havia deixado o Colégio, a pedido do
bispo de Soissons, permanecendo somente como diretor legal. Talvez
por isso as atas registram muitos testemunhos positivos dos antigos
alunos a Dehon como educador. É descrito como «homem de estudos e
de obras sociais, discípulo e enviado do Coração de Jesus, amigo dos
mais humildes». P. Delloue − já na ocasião prefeito de estudos do
Colégio São João − fez um discurso que lembra o espírito social de
Dehon. Mostra que um verdadeiro cristão não se contenta com a religião
vivida na esfera privada, mas se preocupa com a transformação da
sociedade. Dehon falou recordando os ausentes e falecidos, e insistiu que
a Igreja e a França precisam da juventude para transformar a sociedade.
A 12ª Assembléia aconteceu no dia 18 de agosto de 18957. Há uma
coleta em favor dos antigos alunos que passam por alguma dificuldade
econômica. Vários sacerdotes da Congregação dos Sacerdotes do S.
Coração de Jesus, como Falleur, Rasset e Delloue, estão presentes na
reunião. Todos, de alguma maneira, estavam envolvidos nos trabalhos do
Colégio São João. Dehon fez um breve discurso tendo como tema: Nous
croyons à des jours meilleurs8. Define o encontro dos antigos alunos
—————————–
5
6
7
8
Os registros de 1886, 1887 e 1888 estão definitivamente perdidos. Da sexta
reunião, em 05 de maio de 1889 restou uma página datilografada com vários
erros. AD.B. 7/1, inv. 43.10. Sabemos pelo diário de Dehon que, neste ano,
foi ordenado sacerdote do clero secular de Soissons, o ex-aluno C. Mercier,
que substituiria provisoriamente Dehon na direção do Colégio. NQT
IV/1889, 75r. Houve também um encontro festivo dos Antigos Alunos nos
dias 05-06 de maio de 1889, NQT IV/1889, 84r. Não há registros sobre as
assembléias de 1890, 1891 e 1892. Da 10ª Assembléia, em 13 de agosto de
1893, se conserva uma página datilografada. AD.B. 7/10, inv. 43.10.
AD.B. 90/1, inv. 112821. Dehon registra este evento em seu Diário. NQT
X/1894, 148.
AD.B. 90/1, inv. 0112802. A Associação contava com cem membros e
possuia 4.462 Francos. P. Mercier aparece nas atas como «Prefeito de
Disciplina».
Dehoniana 3 (2000) 11-14.
231
como «uma reunião de amigos». Diz que os velhos mestres são, na
verdade, «amigos que participam dos seus sofrimentos, alegrias e
esperanças». Exorta a que ninguém se deixe abater pelo pessimismo e
pela desesperança: «Vamos orar e agir, e Deus fará o resto. Depois dos
dias sombrios e enfadonhos virão os dias alegres e ensolarados»9. Isto
fazia todo o sentido naquele momento em que Dehon se preparava para
deixar definitivamente o trabalho no Colégio São João, diante das
pressões do bispo. Mas em seu discurso, Dehon não se refere a estes
fatos circunstanciais. Fala da «tempestade moral» pela qual passa a
França com a Escola sem Deus. Atento aos presságios populares do seu
tempo, Dehon repete as previsões pessimistas que escuta:
O interesse matou o sentimento; o egoísmo matou a caridade; o jornal matou
o livro; o romance matou a leitura séria; o divórcio matou a família; o luxo
matou a simplicidade e o bom gosto; o culto das honrarias matou o culto da
honra; o egoísmo e a luta pela vida mataram a dedicação e o despojamento de
si mesmo; o socialismo internacional matará a Pátria; a anarquia matará a
Sociedade; a franco-maçonaria matará a Igreja10.
Mas Dehon, apesar de concordar, em parte, com esta análise da
realidade, não concorda com o tom pessimista do discurso. Ele
fundamenta sua esperança cristã no idealismo francês e na «direção
poderosa de Leão XIII». Assim, termina seu discurso:
Nós, pelo contrário, acreditamos em dias melhores. Constatamos um
despertar cristão e entrevemos uma aurora que sucederá a esses dias sombrios
e carregados de tempestade. Na ordem política, a liberdade verdadeira matará
o liberalismo mentiroso. Na ordem econômica, a justiça e a caridade matarão
a miséria imerecida e os monopólios insolentes; o espírito de associação
matará o individualismo e a fraqueza do isolamento; a democracia cristã
organizada matará o despotismo das lojas. Em uma palavra, o que é
cristianismo e esperança matará o que é pessimismo e desesperança11.
Dehon acabava de coordenar a publicação do Manuel Social Chrétien,
1894, que já em 1895 recebera sua segunda edição. Alguns capítulos são
dedicados às obras de educação da juventude. Sobre os Patronatos,
—————————–
9
10
11
Dehoniana 3 (2000) 12.
Dehoniana 3 (2000) 13.
Dehoniana 3 (2000) 12-13.
232
basicamente se remete o estudo ao Manuel des patronages, de Le Conte,
vigário geral de Châlons12. O capítulo sobre «Escolas Cristãs Livres»
inicia dizendo: «A escola cristã é considerada como a primeira obra em
todos os países onde a Igreja tem liberdade»13. Segue um longo texto
onde se faz uma análise minuciosa das leis emanadas pelo governo
republicano na década de 1880. É um verdadeiro manual que ensina
como abrir uma escola privada, quais os principais obstáculos e
oposições, como agir frente às inspeções, quais os mecanismos legais
que fundamentam o fechamento ou a interdição de uma escola cristã. Ao
final é apresentada um breve bibliografia dividida em três viés:
comentário das leis, vida de santos educadores, método para a direção de
obras de juventude14. O capítulo termina com uma observação
interessante:
A leitura destes três viés demonstrará que para formar cristãos, não basta ter
escolas e professores cristãos, mas é necessária uma ação sacerdotal contínua
e sobrenatural para fecundar os seus esforços.15
Encontramos aqui uma ressonância bastante forte dos motivos
espirituais de Dehon educador, que busca esta síntese no seu apostolado
junto aos jovens, sejam alunos ou antigos alunos. Ele acredita nesta
«ação sacerdotal contínua», cuja raiz é sobrenatural. Sua presença e
palavras nas assembléias dos antigos alunos do Colégio São João
ganham um forte significado, se consideradas sob este prisma.
Ainda neste período de 1895, seus artigos na revista Le Règne
possuíam uma tônica de convocação geral para a militância em obras
sociais. Ele percebe que muitos se perdiam em debates e idéias que
nunca chegavam efetivamente à ação. Em um artigo de abril de 1895 ele
se pergunta a respeito do «método das obras sociais»: por onde começar?
—————————–
12
13
14
15
OSC II, 237-241.
OSC II, 257.
OSC II, 267. Aparecem citados comentários à lei de 28 de março de 1882 e à
lei de 30 de outubro de 1886, da Societé générale d’éducation et
d’enseignement. No viés da vida dos santos aparecem citados Jean-Batiste
de la Salle, Champagnat e Joseph Calasanz. Sobre o método aparece a obra
de: TIMON DAVID, Méthode pour la direction des œuvres de jeunesse.
OSC II, 267.
233
A resposta é: por si mesmo, sem deixar se contagiar por aquele que
preferem as idéias tímidas:
Eu diria a um sacerdote do interior: comece por se convencer da necessidade
de agir e de ir ao povo. Releia a Rerum novarum. Divulgue a imprensa
católica de todas as maneiras. Em nossos tempos é a obra das obras. Una-se a
três ou quatro pessoas de boa vontade. Insista «oportuna e inoportunamente»
até que decidam se tornar vossos auxiliares para obras sociais.
Na 13ª Assembléia, em 16 de agosto de 1896, Delloue já havia sido
nomeado oficialmente diretor do Colégio São João e Mercier era o
encarregado do Patronato São José16. As palavras de Dehon aos antigos
alunos são uma verdadeira convocação à ação social. Fala da missão do
cristão na sociedade. Lembra que os antigos cavaleiros franceses partiam
para «libertar o túmulo de Cristo», na Terra Santa. Em seguida, lança um
forte apelo no qual podemos perceber já o apóstolo do social:
Hoje é o próprio Cristo a quem precisamos libertar [délivrer], o Cristo que
vive nos seus filhos, o Cristo que vive nos pobres trabalhadores; o Cristo
angustiado, que grita: tenho fome, não tenho onde repousar, estou
enfraquecido, tende piedade de mim! Mãos à obra! Juventude, as obras
sociais pedem a vossa ajuda. Deus quer e Cristo vos chama17.
O cultivo do ideal educacional na vida (1897-1913)
No dia 08 de agosto de 1897 aconteceu a 14ª Assembléia dos Antigos
Alunos. A data marca os vinte anos de fundação do colégio e, Dehon, em
um discurso espontâneo, recorda os fatos mais importantes18. Lembra a
formação religiosa, as pessoas que passaram, a perseguição aos
religiosos na França e o protagonismo dos estudantes na ação social, que
—————————–
16
17
18
AD.B. 107/1, inv. 01162 00. Alguns dias antes, por ocasião da «Distribuição
de Prêmios», em 29 de julho, Dehon fizera a apresentação de Delloue como
seu sucessor.
L. DEHON, «La jeunesse catholique», in Bulletin annuel de l’Association
amicale des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean (1896) 25-27.
Conservado em AD.B. 107/1, inv. 01162 00.
L. DEHON, «La vie de Collège», in Bulletin annuel de l’Association amicale
des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean (1897) 26-31. Conservado em
AD.B. 7/10, inv. 43 10.
234
anima sua esperança. O tom do discurso de Dehon revela a nova fase de
sua vida, caracterizada pela intensa itinerância para pregar as Encíclicas
Sociais de Leão XIII.
Em 1898, Dehon não pôde participar da Assembléia por motivos de
saúde19. A 16ª Assembléia aconteceu no dia 17 de setembro de 189920.
As palavras de Dehon foram novamente uma convocação para o
empenho social da juventude para fazer ressurgir a França Católica. Ele
começa a ver alguns sinais de despertar. Muitos que haviam se afastado
voltam ao catolicismo: «Levantemos, pois a cabeça; reivindiquemos os
nossos direitos; recuperemos nosso lugar no Estado; criemos associações
políticas, porque não podemos nos contentar em distribuir o pão. Isso já
tem um grande mérito, mas é insuficiente»21. Esta reconquista do espaço
perdido na sociedade e na política aparece claramente em um artigo
sobre «a escola», publicado dois meses antes em La Chronique du SudEst. Dehon se mostra informado do avanço do Estado sobre o mundo da
educação e do ensino, especialmente na França, Itália e Bélgica. Ele
considera absurda a pretenção do Estado de dirigir «toda» a educação,
pois esta escolha pertence à família e às prefeituras22. Ele critica essa
proposta oficial de ensino na França, afirmando que Deus e a moral
cristã foram banidas da escola oficial e não foram introduzidas lições de
—————————–
19
20
21
22
NQT XIII/1898, 56. O encontro aconteceu no dia 14 de agosto. AD.B. 107/1,
inv. 1162.02. Neste ano, Dehon publicou um artigo de convocação da
juventude francesa para a ação social. A grande tônica é não reduzir o
cristianismo à esfera da vida privada. «Estudo, ação, organização». Ele
percebe que protestantes e maçons avançam junto à juventude por meio de
obras educacionais. «É necessário um pequeno grupo de estudos em cada
paróquia. O estudo prepara para a ação». L. DEHON, «Aux jeunes gens», in
La chronique du Sud-Est 8 (setembro 1898) 289-290. OSC I, 381-383.
NQT XIV/1899, 182.
L. DEHON, «La Jeunesse Catholique Française», in Bulletin annuel de
l’Association amicale des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean (1899)
16-18. Conservado em AD.B. 107/1, inv. 1162 10.
Dehon refere-se ao governo municipal (Communes). Ao falar de Estado ele
faz referência ao governo em nível nacional que, segundo sua opinião, teria
apenas uma competência supplétif et policier. L. DEHON, «L’École», in La
chronique du Sud-Est 7 (julho 1899) 212-213. OSC I, 418-420.
235
vida prática. Resultou uma educação que ele compara com «as
borboletas», graciosas, elegantes e sedutoras, mas que desprezam o
trabalho e são efêmeras. Prefere o exemplo das formigas e das abelhas,
que conhecem o labor e a vida em comunidade23.
No dia 19 de agosto de 1900, aconteceu a 17ª Assembléia dos Antigos
Alunos24. Dehon retoma o discurso de esperança do ano anterior,
mostrando que termina o «século da impiedade» e o catolicismo vai em
frente. Argumenta que «a religião pode fazer e faz muito pela questão
social; ela é o fundamento da vida social»25. Esta tese é sempre o pano de
fundo de suas reflexões, como podemos verificar nas palavras
entusiasmadas deste discurso:
Conservemos a cruz e a bandeira; a cruz, símbolo do amor e da caridade; a
bandeira, símbolo da defesa social, esta bandeira que com suas três cores
encerra todas as outras e resume quinze séculos de glória. Mas não nos
contentemos em conservá-las no fundo dos nossos corações, esta cruz e esta
bandeira, elevemos bem alto. Atuemos pela palavra ou plume [caneta], para
defender nossos direitos sagrados, a liberdade de ensino e a liberdade de
associação. Vamos ao povo! [...] Católicos e franceses para sempre!26
—————————–
23
24
25
26
L. DEHON, «L’Ecole», in La chronique du Sud-Est 7 (julho 1899) 212-213.
OSC I, 420.
NQT XVI/1900, 17-18.
L. DEHON, «Catholiques et Français à la fois», in Bulletin annuel de
l’Association amicale des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean (1900)
18-21. Conservado em AD.B. 107/1, inv. 1162 06.
L. DEHON, «Catholiques et Français à la fois», in Bulletin annuel de
l’Association amicale des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean (1900)
20-21. Neste ano, Dehon publicou uma artigo sobre a «juventude católica»
em que procura identificar associações de jovens estudantes católicos. L.
DEHON, «Jeunesse Catholique», in La chronique du Sud-Est 1-2 (jan-fev.
1900) 391-392. OSC I, 442-444. Retomou este assunto de modo mais
detalhado em Le Règne de outubro e novembro do mesmo ano. L. DEHON,
«Les œuvres de jeunesse», in Le Règne du Cœur de Jésus (out-nov 1900).
OSC I, 484-491. Considera o ensino laico obrigatório como «a obra mais
perversa do século XIX». Uma das conseqüências, sob seu ponto de vista, é
a dificuldade cada vez maior dos católicos criarem e manterem escolas e
patronatos. Enquanto isso, com dinheiro público eram criadas organizações
laicas de jovens. Seria necessário contrapor-se a isso com a criação de
236
No ano 1901, Dehon não participou da Assembléia27. Em seu Diário,
diz que «seria demasiado penoso, neste momento, escutar os risos e os
cantos daquilo que se poderia chamar a sepultura do São João»28. Era um
momento especialmente delicado. O Combismo avançava na França e no
ano seguinte fecharia, por decreto, três mil escolas sob direção de
congregações religiosas29. O então diretor do colégio, P. Delloue,
sacerdote religioso da Congregação, decide secularizar-se para salvar o
colégio. Dehon comenta o fato em seu Diário:
Ele estaria errado? Deus o sabe. Em todo caso, para mim, isto é outra fase de
Consummatum est. O São João havia sido o berço da Obra. Ali eu vivi vinte
anos, e após vinte e quatro anos, o São João secularizado poderia significar o
seu fechamento30.
Em janeiro de 1901, Leão XIII havia publicado sua Encíclica Graves
de Communi31, colocando limites à militância política da Democracia
Cristã. Dehon comenta em seu Diário que «a Igreja é indiferente às
formas políticas de governo. Isto depende de circunstâncias de tempo e
lugar. Mas a Igreja não é indiferente à classe dos trabalhadores. Ela é
essencialmente democrática do ponto de vista econômico»32. Dehon
acompanha a evolução do pensamento social da Igreja e percebe as
conseqüências de um tradicionalismo que se apega a formas arcaicas de
organização política e que acabaria perdendo o povo.
No dia 24 de setembro de 1902, aconteceu a 19ª Assembléia. Dehon
estava presente e recordou a história do colégio nos seus vinte e cinco
—————————–
27
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32
œuvres de jeunesse, que garantissem o futuro daqueles que receberam uma
educação cristã na escola católica. Ele pensa especialmente na insersão no
mundo do trabalho.
A reunião aconteceu no dia 18 de agosto. AD.B. 7/10, inv. 43.10.
NQT XVII/1901, 9.
Dehon está bastante consciente da situação e atribui este «plano» à francomaçonaria. De acordo com seu Diário, naquele momento os religiosos na
França estão como que «sob a espada de Dâmocles». NQT XVII/1901, 1.
NQT XVII/1901, 3-4.
ASS 33 (1900-01) 385-396
NQT XVI/1901, 55.
237
anos de fundação33. Lembra as alegrias e vitórias, mas também as
provações, como o incêndio e as leis educacionais de Ferry. Mostra-se
consciente de que, neste momento, «o barco está em meio à
tempestade». Convoca os antigos alunos a permanecerem fiéis frente ao
perigo e, por meio do testemunho de cristãos comprometidos. Isto
mostraria à sociedade os bons frutos da obra. O segundo meio seria uma
ação social de reivindicação dos direitos em relação à liberdade de
ensino. Ele afirma que, para isso, não é necessário «ser revolucionário,
mas ativo». O terceiro meio de reação é a oração.
Quando aconteceu a 20ª Assembléia, no dia 27 de setembro de 1903,
os Sacerdotes do Coração de Jesus já haviam sido expulsos da França e
já se iniciara o pontificado de Pio X. O discurso de Dehon neste dia está
registrado, com detalhes, em seu Diário34. Ele começa com o texto do
Evangelho de João 16, 32-33: «Eis que vem a hora da perseguição em
que vos dispersarão. O mundo vos dará tribulações; mas tende confiança,
eu venci o mundo». A partir desta palavra, Dehon faz uma exortação
contra o pessimismo e desânimo. Ele reconhece que neste momento
todas as forças estão nas mãos da franco-maçonaria. Mas o maior perigo
são as «objeções» que cegam a mente e perturbam o coração dos
católicos. Isto pode abalar a fé e provocar o desânimo. A primeira
«objeção» é a pretensa superioridade da cultura intelectual dos nãocrentes, como se existisse uma espécie de antagonismo entre ciência e fé.
A segunda é a supremacia das civilizações do Norte, das nações
protestantes, como oposição à decadência das raças latinas. Dehon
demonstra, por meio de fatos e de uma análise histórica, que estes
argumentos não se sustentam. Permanece com sua esperança ancorada na
convicção de que a educação cristã é a forma de garantir a paz e o bem
estar social.
Na Assembléia de 1904, Dehon concentrou seu discurso em três
palavras: união, estudo e ação35. A união foi uma convocatória a formar
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33
34
35
NQT XVIII/1902, 19-20. De acordo com o Diário a reunião teria acontecido
no dia 28 de setembro. As atas deste encontro estão preservadas em AD.B.
7/10, inv. 43.10. Eram cerca de quarenta participantes.
NQT XVIII/1903, 111-119.
A 21ª Assembléia dos Antigos Alunos aconteceu no dia 14 de agosto de
1904. As atas estão preservadas em: AD.B. 7/10, inv. 43.10.
238
«associações»: círculos de estudo e a guarda jovem do «Sillon»36. O
estudo é uma força de resistência diante «do erro e da injustiça». As
luzes da razão humana «são reflexos da verdade substancial e perfeita».
A ação é um alerta para o fato de que o cristianismo havia sido «exilado
da escola, da prefeitura, do hospital». Vemos, na base do pensamento
educacional de Dehon esta relação fecunda entre religião e sociedade.
Em 1905, ele voltaria a este assunto, mostrando que três grandes causas
estão em jogo: a da França como pátria, a do povo e a da liberdade37.
A 24ª Assembléia aconteceu no dia 8 de setembro de 1907. É uma das
últimas participações de Dehon, das quais encontramos algum registro
importante de suas palavras38. Analisaremos este texto com mais
detalhes porque encontramos já aqui a síntese de sua visão educacional e
experiência espiritual de fundo que o manteve fiel a este apostolado ao
longo de toda a sua vida.
Inicia exaltando a juventude que tem «os defeitos de suas qualidades»:
exuberância e ardor, plenitude de vida e vigor. Afirma que na sociedade
reina o egoísmo, ceticismo, utilitarismo e o desencanto. É preferível a
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36
37
38
Le Sillon era um movimento de jovens católicos, liderados por Marc
Sangnier, em vista da transformação da sociedade, promovendo um
cristianismo democrático e social. Receberam, neste período, muito apoio de
Dehon e Léon Harmel. Porém, acusados de «politização e modernismo
social» foram condenados por Pio X em 15 de agosto de 1910. Sangnier
submete-se sem reservas e posteriormente acaba se tornando uma das
principais lideranças da democracia Cristã na França. H. DORRESTEIJN, Vita
e personalità di P. Dehon, 257-259.
A 22ª Assembléia dos Antigos Alunos aconteceu no dia 20 de agosto de
1905. As atas estão preservadas em: AD.B. 7/10, inv. 43.10. Dehon não
esteve presente na 23ª Assembléia, ocorrida em 12 de agosto de 1906, pois
preparava sua viagem para o Brasil. As atas estão preservadas em AD.B.
7/10, inv. 43.10.
O discurso deste ano foi publicado originalmente no Bulletin annuel de
l’Association amicale des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean (1907)
32-39. Está preservado em AD.B. 107/10, inv. 1162 07. O texto integral do
discurso, com comentários e uma apresentação, encontra-se em: L. DEHON,
«Discours aux anciens élèves de Saint-Jean», in Dehoniana 1 (2002) 27-35.
Apresentação e notas de A. PERROUX, «Présentation du discours du 8
septembre 1907», in Dehoniana 1 (2002) 17-26.
239
«exuberância» da juventude, apesar dos excessos, do que a inércia. Ele
percebe que, apesar dos esforços para educar a elite da sociedade, no
Colégio São João, a influência política em Saint-Quentin havia
diminuído consideravelmente. A Ação Católica, por sua vez, apegada à
tradições «respeitáveis, mas superadas» conseguia poucos resultados.
Segundo Dehon, as três principais aspirações do povo são: manter o
governo republicano, liberdade de associação e reformas sociais. De
acordo com ele, é preciso estar «sincera e decididamente» disposto a
apoiar estas aspirações e recuperar o povo, que está iludido pelas
«mágicas do socialismo» e pelos «profetas de uma nova era de ouro».
Por isso, sua proposta é na linha da educação popular:
É preciso instruir o povo; tirar de sua mente os preconceitos, sofismas,
utopias e ilusões; inculcar os princípios do que é justo e honesto; tratar das
necessidades objetivas e da natureza das coisas; trabalhar junto com ele na
preparação de reformas realizáveis e fazê-lo compreender que nunca haverá
uma ordem e uma paz pública possível, sem moralidade, nem moralidade
sem uma religião, que é, ao mesmo tempo, o fundamento, a regra, a
inspiração e a sanção39.
Dehon insiste em praticamente todo o seu longo discurso neste apelo
de que «é preciso ouvir as legítimas aspirações do povo». Sob sua visão,
se o clero da França tivesse se associado ao movimento de reivindicação
do progresso social, não teria perdido a autoridade. Dehon vê que o povo
tomou consciência dos seus direitos políticos e sociais.
Sobre a questão religiosa, da relação entre Igreja e Estado, ele admite
que a união entre os poderes chegou a ser intolerável. Mas seria
desejável «uma separação honesta, sem violação de nenhum contrato».
Novamente, reconhece que a culpa é dos católicos que ocupavam o
tempo em criticar a república, enquanto o povo preferia participar
ativamente das reformas sociais.
Em nossa época, a democracia corre por todos os lados. Seria pouco
inteligente e pouco racional querer ir contra a corrente. O Papa atual [Pio X],
continuando a política do seu predecessor, favorece de todas as maneiras a
elevação social do povo e as organizações autônomas de trabalhadores.
—————————–
39
L. DEHON, «Discours aux anciens élèves», in Dehoniana 1 (2002) 29.
240
Aprova e apóia a criação e o desenvolvimento de obras econômicas das quais
se interessava já quando era patriarca de Veneza 40.
Dehon defende que o Evangelho e a Eucaristia são «fermento de
verdadeiro progresso social». Quem os rejeita pode, no máximo, oferecer
belas teorias, mas não tem os meios para colocá-las em prática. O
espírito cristão soube o modo certo de abolir gradativamente a
escravidão. Sabe igualmente como garantir os direitos aos trabalhadores.
Ele mostra que entre as doutrinas dos principais sociólogos e
economistas, podem-se reconhecer aqueles que são «amigos do povo»,
animados pelo espírito cristão da solidariedade, desapego e dedicação
aos pobres. E termina dizendo:
Se o povo chegar a compreender que as saudáveis reformas se encontram em
germe na doutrina católica, nos dará sua confiança e a França começará a ser
de novo o que era antes, a generosa e ardente promotora da civilização cristã
no mundo41.
Esta capacidade de Dehon de ouvir a voz do povo, da Igreja e até de
seus adversários, caracteriza sua filosofia educacional. Ele é capaz
evoluir em suas idéias no diálogo permanente, às vezes polêmico, com
seu tempo. A forma como descreve o ideal da juventude, revela sua
própria experiência de fé, que tem como um dos fundamentos centrais a
disponibilidade para ouvir, ou seja, obedecer.
Para as Assembléias dos anos seguintes os registros são escassos,
apesar de sabermos que Dehon estava presente na maioria delas42. Até
então, ele permanecia como proprietário legal do São João, apesar de a
administração ser da diocese. O colégio há tempos passava por uma
profunda crise financeira. Em 1913, Dehon encontrou uma via de
solução criando a Sociedade Imobiliária de Ensino Livre do Distrito de
—————————–
40
41
42
L. DEHON, «Discours aux anciens élèves», in Dehoniana 1 (2002) 31-32.
L. DEHON, «Discours aux anciens élèves», in Dehoniana 1 (2002) 34.
25ª Assembléia: 9 de agosto de 1908; 26ª Assembléia, 29 de agosto de 1909;
27ª Assembléia: 7 de agosto de 1910; 28ª Assembléia: 6 de agosto de 1911;
29ª Assemléia: 1912, não encontramos a data exata; 30ª Assembléia: maio
de 1913. Alguns registros encontram-se em AD.B. 7/10, inv. 43.10.
241
Saint-Quentin. Porém, ele continuava sendo o proprietário. A solução
definitiva foi retardada pelo advento da Guerra43.
Resistência durante a Guerra (1914-1918)
De 1914 a 1918 os encontros de Antigos Alunos foram suspensos por
causa da Guerra. O presidente da Associação, Octave Leduc, procurou
manter a comunicação por meio de um «Boletim de Guerra»: TraitD’Union, que teve início em junho de 1915, com uma troca informal de
correspondências e chegou a ser mensal, durante o período de novembro
de 1915 a outubro de 1919. Era enviado aos antigos alunos e antigos
professores do Colégio São João, com uma tiragem, em média, de 240
exemplares. Ao todo foram distribuídos nos anos da Guerra, 10.000
exemplares de Trait-D’Union.
Terminada a Guerra, Dehon incentivou Leduc a publicar a coletânea
de Trait-D’Union e chegou a escrever uma apresentação. Este texto
permaneceu inédito até 1935, quando, finalmente, a publicação foi
feita44. É um documento interessante para verificar como Dehon avaliou
sua atuação no mundo da educação ao longo de quarenta anos (18771917)45. Ele aborda seu empenho educacional em três grandes
dimensões: vida intelectual, vida de família e vida religiosa.
Na vida intelectual, o texto destaca o valor de muitos sacerdotes e
professores e os métodos didáticos, que não tinham muito de diferente
do ensino tradicional da época, porém evidenciavam o protagonismo dos
estudantes, a disciplina da mente, a educação do caráter e o hábito do
trabalho. Da vida de família, escreve: «Nossa querida casa formava uma
verdadeira família. Professores e alunos se apaixonavam pelos
progressos obtidos e seus êxitos. [...] Um grande sinal do espírito
—————————–
43
44
45
E. DRIEDONKX, «Nuestros colegios», 45.
L. DEHON, «Saint-Jean avant la Guerre, 1877-1917» in O. LEDUC, ed., Le
Trait-d’Union - Bulletin de Guerre 1915-1919, Saint-Quentin 1935, 9-12.
O texto é breve e um pouco diferente do usual estilo de Dehon. Além disso,
não existem registros deste texto na obra autógrafa de Léon Dehon, o que
nos poderia levar à suspeita que seria uma composição de Leduc que, porém,
afirma, na introdução, ser um texto até então inédito do próprio Dehon.
242
familiar eram as festas»46. É certo que no Colégio São João havia uma
forte ligação afetiva que fazia parte importante do sucesso pedagógico da
obra. A vida religiosa é considerada neste texto como «o melhor do
colégio». Havia meditação pela manhã na capela, Missa, palestras do
Diretor sobre Educação Cristã, confissão semanal, retiro no mês de
outubro. Destaca-se também a Conferência de São Vicente de Paulo e a
Congregação dos Filhos de Maria. O colégio era também uma escola de
santidade onde, «Deus e a Pátria eram os dois grandes amores»47.
Um novo começo (1919-1924)
Após a Guerra, as reuniões dos Antigos Alunos foram retomadas. A
primeira foi no dia 23 de novembro de 191948. Novamente, Dehon faz
memória de toda a história do Colégio, destacando os trabalhos de
reconstrução. De fato, desde abril daquele ano ele havia visto as ruínas
do São João.49. Encarregou P. Falleur dos trabalhos de reconstrução50.
Dehon ainda esteve presente nas reuniões de 192151 e 192252. A
propriedade do Colégio ainda era sua. Porém, tinha o desejo de desfazerse dos seus bens antes de morrer. Por essa razão, em 1922 passou a posse
—————————–
46
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52
L. DEHON, «Saint-Jean avant la Guerre», 10-11. Uma Afirmação semelhante
aparece em carta que Dehon teria enviado a Leduc e publicada em Traitd’Union, janeiro de 1918. O contexto é a demostração de coragem de muitos
ex-alunos durante a guerra: «Nós semeamos no São João, a fé e o
patriotismo». Ibidem, 243.
L. DEHON, «Saint-Jean avant la Guerre», 12.
O. LEDUC, ed., Le Trait-d’Union, 360-372. A partir deste momento foi
retomada a publicação de L’Aigle de Saint-Jean. Decidiu-se nesta
Assembléia que Trait-d’Union continuaria até o número 50, em dezembro de
1919.
NQT XLIII/1919, 101.
Graças a isso as aulas puderam ser retomadas no dia 6 de outubro de 1919,
com 27 alunos. O número cresceu rapidamente. E. DRIEDONKX, «Nuestros
colegios », 45.
NQT XLIV/1921, 17-18.
NQT XLIV/1922, 48-49; Atas preservadas em: AD.B. 7/10, inv. 43.10.
Segundo uma anotação em seu Diário, Dehon não esteve presente na reunião
de julho de 1923. NHV XLIV/1923, 79.
243
do Colégio para a Sociedade Imobiliária que criara alguns anos antes e
da qual a Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus era
a maior acionista53.
A última vez que Dehon esteve no Colégio São João foi em 18 de
maio de 1924, para a inauguração do novo prédio do Colégio São João54.
Foi também a última vez que utilizou a veste de cônego. Em seu discurso
ressaltou que o colégio sempre contou com o apoio dos bispos locais,
principalmente de Mons. Thibaudier. Relembra os momentos felizes do
início e atribui a razão do êxito inicial ao fato de o colégio cultivar uma
intensa vitalidade, uma grande motivação tanto para os exercícios de
piedade como para os estudos profanos. Termina confiando o cuidado do
colégio ao bispo de então, Mons. Binet, e ao novo diretor.
2. Testemunhos de Antigos Alunos
Observamos o modo como os antigos alunos compreenderam e
registraram em suas atas a visão de Dehon sobre educação a partir
daquilo que ele mesmo teria dito. Recolhemos ainda dois testemunhos de
ex-alunos que descrevem Dehon educador após a sua morte.
Guilhaume Crinon
Antigo aluno do Colégio São João e sacerdote, Abbé Crinon foi
convidado para falar na reunião dos ex-alunos que aconteceu no dia 15
de novembro de 1925, portanto apenas alguns meses após a morte de
Dehon55. Ele inicia descrevendo uma pequena viagem que fez com
Dehon a cidade de Laon, em 1893, quando era ainda um jovem aluno do
Colégio São João, e como ele lhe mostrava, do alto da montanha,
detalhes da geografia, descrevendo os personagens importantes das
diferentes regiões. Era o esquema do discurso que pronunciaria alguns
—————————–
53
54
55
NQT XLIV, 80. E. DRIEDONKX, «Nuestros colegios », 46. Os registros
históricos deste contrato estão preservados em: AD.B. 19/9a1, inv. 279.01.
AD.B. 40/6, inv. 679.01.
G. CRINON, «Allocution sur le Père Dehon», in Dehoniana 3 (2004) 13-16.
244
dias depois na solenidade de «Distribuição de Prêmios» do Colégio São
João, Sur le Département de L’Aisne.
Crinon não esconde sua admiração pelo perfil de Dehon como
educador e o descreve com detalhes. Diz que tinha autoridade sobre
todos, mestres e alunos, mas ninguém tinha medo dele, apenas respeito e
afeto. Chama-o de Bon Père e Bon Maître. Olhar penetrante, costumava
falar fitando bem os olhos do interlocutor. Era atento aos progressos e
dificuldades de cada aluno. Capaz de corrigir com moderação. Chamava
à atenção a simplicidade de seus ensinamentos sobre as coisas mais
diversas e difíceis. Alunos de todas as idades o compreendiam.
No colégio, todos sabiam que ele era vigilante. Levantava-se antes de
todos e se recolhia após todos. Tinha como marca característica a
capacidade de se fazer presente. Crinon utiliza a expressão do apóstolo
Paulo para sintetizar o modo como via o Monsieur le Supérieur: «Ele se
faz tudo para todos». Era público e notório que ele vinha de uma família
rica e ilustre e herdara uma grande fortuna. Porém, deu tudo e,
principalmente, a si mesmo, pela «cause sacrée de l’enseignement
libre»56. O testemunho de Crinon nos faz olhar Dehon como alguém que
viveu o apostolado educacional não simplesmente como uma tarefa a
mais. Foi sua primeira forma de oblação ao fundar a Congregação. Seu
método educacional empenhava todo o coração. Educar, para ele, exigia
construir relações sólidas, pessoais, sinceras, afetivas e efetivas.
Albert Delloue
Consideramos este como o testemunho mais importante e qualificado
sobre Dehon educador. Trata-se de um discurso pronunciado na festa do
cinqüentenário de fundação do Colégio São João, no dia 20 de julho de
1927, quando foi inaugurado um busto de León Dehon57. Delloue foi
—————————–
56
57
G. CRINON, «Allocution sur le Père Dehon», in Dehoniana 3 (2004) 15.
Crinon descreve ainda a doença persistente de Dehon que o fazia
freqüentemente vomitar sangue e que, segundo ele, foi vencida pela força do
idealismo. Diz que após quarenta anos estas imagens ainda são
incrivelmente vivas em sua memória.
A. DELLOUE, «Discours», in L’Aigle de Saint-Jean (dezembro 1927) 8-22.
Antes de registrar a íntegra do discurso L’Aigle noticia o fato de que na
mesma ocasião a Igreja comemorava o surgimento da Congregação, tão
245
aluno de 1877 a 1880, prefeito de estudos e, finalmente, diretor de 1892
a 1914. Foi também sacerdote da Congregação de Dehon e, depois,
cônego da diocese de Soissons. Portanto, acompanhou muito de perto
todo o arco da história educacional de Dehon.
Inicia seu discurso fazendo a memória histórica da instituição, quase
repetindo os fatos da maneira como vimos que Dehon costumava fazer,
principalmente na «Distribuição de Prêmios» e nas Assembléias de
Antigos Alunos. Mas é interessante que ele afirma que o Colégio foi
fundado por um desejo de Mons. Thibaudier58 e que Dehon era admirado
na cidade pelo prestígio de sua família na região, por seus quatro
doutorados, por suas viagens ao Oriente, sua ação social e pela fundação
do Círculo e do Patronato São José. Afirma que o momento da fundação
ainda era favorável, porém tudo mudou rapidamente nos anos seguintes.
Sabemos que o próprio Delloue viveu uma grande dificuldade
econômica no colégio como diretor, na passagem do século.
Delloue descreve, com detalhes, a constituição do corpo docente; as
construções; os primeiros alunos; a fundação do jornal do colégio:
L’Aigle, as festas, principalmente a de São João, a maior de todas, e o
onomástico de Dehon, São Leão Magno, celebrado com uma excursão,
na primavera59; a prova que significou o incêndio em 1881 e a
prosperidade que se seguiu, com um número médio de 270 alunos; os
êxitos dos estudantes nos exames de admissão ao bacharelado, sempre
vividos com certa ansiedade e alegria por Dehon.
Afirma que o sucesso da instituição se devia ao fato da necessidade
que os católicos sentiam de uma obra do gênero mas principalmente às
—————————–
58
59
dedicada à educação da juventude: «Dehon viu nas fundações destinadas à
formação da juventude uma obra de primeira importância às quais dedicou
todo o seu cuidado». Ibidem, 8.
Porém, na última frase do discurso, ele diz que «a obra foi concebida e
nascida do coração generoso de Dehon».
A festa de São João era celebrada, todos os anos, no dia 27 de dezembro. A
festa de São Leão Magno, por sua vez, era um verdadeiro marco na região e
podia durar até uma semana, com passeios, atividades literárias e artisticas
no Colégio São João. Delloue se recorda, em particular, desta festa marcada
com um uma excursão à cidade de Noyal, em 11 de abril de 1878. A.
DELLOUE, «Discours», 13.
246
qualidades pessoais de Dehon, descrevendo-o como um homem de
inteligência brilhante e fino trato; um ar inicialmente um pouco distante
que logo dava lugar à bondade e capacidade de atrair as pessoas e de
confiar em seus colaboradores, mesmo os menos dotados de carisma.
Diz que Dehon, «com vasto espírito e grande coração», não criava
problemas com pequenas dificuldades de disciplina escolar: «Seu
método de direção era baseado na confiança recíproca. Ele dava bastante
liberdade»60. Um dos exemplos desta liberdade era a possibilidade de
sair para visitar os pobres, sob a coordenação da Conferência São
Vicente de Paulo. Estas visitas apareciam registradas em L’Aigle, ao lado
dos trabalhos literários dos alunos. Em seu testemunho, Delloue coloca
em contraste a pedagogia do medo e da punição, de alguns professores,
que estimulavam os alunos pelo castigo e pela severidade, com a
pedagogia do afeto e da confiança de Dehon, que valorizava o
relacionamento, a amizade, o afeto e a cordialidade.
É interessante que, em suas palavras, Delloue revela que «foi se
iniciando» na direção geral do colégio no ano acadêmico de 1892-1893,
pois Dehon desejava que outro assumisse esta tarefa para que ele
pudesse dedicar-se mais à Congregação. Porém, em 1893, quando Dehon
deixou o colégio, quem assumiu a direção, por mandato do bispo, Mons.
Duval, foi C. Mercier61. Este era um ótimo prefeito de disciplina, porém
a rigidez e o «pouco tato», segundo o testemunho de Delloue, o fizeram
renunciar em 1896. Foi, então, nomeado para o Patronato São José e
Delloue assumiu efetivamente a direção do colégio, por sugestão do
próprio Dehon. As palavras de seu testemunho mostram bem este
componente delicado do universo educacional que é a passagem de um
cargo de direção:
Era arriscado e imprevisto, ou ao menos prematuro, visto a pouca experiência
pedagógica que podia ter adquirido nestes quatro anos. Não obstante,
—————————–
60
61
A. DELLOUE, «Discours», 12. «M. Dehon, vaste esprit e grand cœur, ne
s’embarassait guère des petites difficultés de discipline scolaire. Sa méthode
de direction reposait sur la confiance réciproque. Il nos laissait beaucoup
liberté».
Dehon permaneceu, porém, como «diretor legal» até 1896. Portanto, esse
regime provisório durou três anos. Neste período, Dehon passava um dia por
semana no colégio. A. DELLOUE, «Discours», 15.
247
acreditei que devia aceitar, até porque era o único superior indicado.
Confiava na Providência, como um homem que se joga na água para
aprender a nadar, segundo as palavras do vigário geral Cardon62.
Delloue segue narrando a história do colégio sob sua direção. O
sucesso do início; a dificuldade de encontrar professores; as dificuldades
econômicas sempre crescentes; o surgimento de vocações; a proibição do
ensino aos religiosos, em 1904, e seu impacto sobre o corpo docente do
colégio. Descreve, com especial ênfase, o que significou para ele e para
o colégio a ausência definitiva de Dehon. Afirma que grande parte do
sucesso do início se devia a um carisma pessoal que era capaz de
arrumar recursos financeiros e soluções inusitadas para a maior parte dos
problemas. Ele sentiu que não podia substituir uma pessoa com estas
qualidades. Diminuía consideravelmente o número de alunos. Ele
procurava resolver a situação assumindo a maior parte dos encargos
como superior, ecônomo e professor de diversas disciplinas. Dizia a si
mesmo: «Esta obra de educação foi querida por Deus; tem seu objetivo
claro e necessário em uma grande cidade como Saint-Quentin, a
manterei e sustentarei até meu último suspiro. A Providência me
ajudará»63. As coisas começaram a melhorar quando, a partir de 1908, a
diocese de Soissons começou a enviar outros sacerdotes para
trabalharem colegialmente na coordenação do São João, mas a
dificuldade era trabalhar em unidade. A diocese acabou assumindo
integralmente as finanças da obra, porém, ao perceber a dificuldade real,
todos se retiraram e novamente Delloue permaneceu sozinho a partir de
1913, até que foi socorrido por Dehon, que teve a idéia, juntamente com
os antigos alunos, de formar uma Sociedade Imobiliária, que acabaria
por se tornar a proprietária do Colégio64. A diocese seria responsável
pela direção geral e pela escolha dos professores. É nesta ocasião que a
direção passa para o Cônego Rouchaussé. Delloue narra, com detalhes,
—————————–
62
63
64
A. DELLOUE, «Discours», 15.
A. DELLOUE, «Discours», 18.
A partir de 1913, portanto a gestão do colégio passou a ser responsabilidade
da Société Immobilière d’Enseignement libre de l’Arrondissement de SaintQuentin. Ele deveria administrar financeiramente o São João, sendo que
Dehon permanecia seu proprietário. A. DELLOUE, «Discours», 20.
248
os tempos da Guerra que praticamente destruiu o colégio e o novo
socorro de Dehon, dispondo Falleur para reconstruir as paredes da obra.
Ao final do seu testemunho, Delloue mostra o contraste entre os ideais
do ensino oficial e da educação cristã. A primeira, negativa e
materialista, «não considera mais do que a vida neste mundo que passa,
esquecendo o nosso destino eterno e os meios para chegar lá». A
segunda tem como fundamento da educação «a idéia religiosa levada a
todo o momento à prática»65. Delloue se mostra confiante no futuro da
obra, afirmando que Deus que a sustentou, até nos momentos mais
difíceis: «Nossa casa se manteve apesar das tempestades, não é o
momento, pois, de abandoná-la, quando o céu se tornou sereno»66. Esta
reflexão final de seu discurso condensa substancialmente a visão
educacional transmitida por Dehon que, já no seu primeiro discurso
educacional dizia que a contribuição específica da educação segundo o
ideal cristão é que ela não educa apenas para esta vida que passa, mas
considera em seus objetivos, métodos e instrumentos, que a pessoa
humana é chamada à «vida eterna».
Nossa pesquisa indica que o olhar de Delloue sobre a obra
educacional de Léon Dehon é um dos mais atentos e qualificados. Ele foi
um dos primeiros alunos do Colégio São João e também sacerdote da
Congregação fundada por Dehon. Foi o primeiro dehoniano a estudar em
Roma. Logo após o fracasso de C. Mercier na direção do Colégio,
Delloue o assumiu por longos anos. Sua percepção de que o estilo de
Dehon educar poderia ser sintetizado na «idéia religiosa levada a todo
momento à prática» é bastante feliz, pois revela a síntese entre
espiritualidade e educação que animou o ideal educacional de Dehon.
Ele acreditava na educação segundo o ideal cristão. Não podia acreditar
na eficácia pedagógica da Escola sem Deus. Delloue compreendeu bem
esta lição.
—————————–
65
66
A. DELLOUE, «Discours», 21.
Esta frase é semelhante a utilizada por Dehon no discurso aos antigos
alunos, em 1896: «Vamos orar e agir, e Deus fará o resto. Depois dos dias
sombrios e enfadonhos virão os dias alegres e ensolarados». Dehoniana, n. 3
(2000) 12.
249
CAPÍTULO VIII
Léon Dehon e o apostolado intelectual
Ao analisarmos a vida e a obra de Léon Dehon, identificamos uma
orientação para o apostolado intelectual que perpassa toda a sua
história, e é integrada em sua experiência espiritual do amor de Deus, no
Coração de Jesus. Veremos esta dimensão sob três pontos de vista
diferentes. Primeiro contemplaremos mais de perto o que seria a
«Congregação de Estudos» que Dehon projetava fundar − quando ainda
era seminarista − e de que modo isto permaneceu em sua mente mesmo
depois de Fundar os Oblatos do Coração de Jesus. Veremos, também, o
significado dos colégios no apostolado da Congregação fundada por
Dehon durante a sua vida. Sua presença é marcante no Colégio São João,
em Saint-Quentin. Mas existiram algumas outras iniciativas,
principalmente ligadas à expansão missionária da Congregação, que
merecem ser analisadas. Finalmente, olharemos a dimensão intelectual
no relacionamento de Dehon com alguns formandos e formadores. Com
isso esperamos ir revelando a face do Dehon educador e a espiritualidade
de fundo que o moveu, além do significado do apostolado educacional
no carisma que recebeu de Deus.
251
1. Uma «Congregação de Estudos»
Registros do Diário de Dehon em 1887
O contato com P. Emmanuel d’Alzon, principalmente durante o
Concílio Vaticano I, confirmou na mente de Dehon a idéia de que o
caminho para restaurar a França Católica seria promover a elevação
cultural do clero. Para isso o caminho seria fundar universidades
católicas. Dehon pensava em dedicar toda a sua vida a este ideal, mas
acabou sendo dissuadido por seu diretor espiritual, P. Freyd, que via
nisso um perigo de adesão ao galicanismo1. O reitor do Seminário Santa
Clara, em Roma, preferia a via ultramontana. Dehon havia sido formado
nesta linha e era claro em sua adesão ao Papa, apesar de sempre
fervoroso em seu patriotismo. Além disso, a atração de Dehon pela vida
religiosa o fazia temer que, dedicando-se à obras educacionais, acabasse
disperso e sem tempo para o estudo, o que de fato acabou acontecendo
em seu labor como vigário paroquial em Saint-Quentin e também,
posteriormente, no Colégio São João. Parece que o ideal de Dehon
estava mais na linha do «estudo» do que propriamente do «ensino». A
fundação do Oratório Diocesano seria uma forma de compensar o ideal
deixado para trás. A reunião de estudos e oração dos sacerdotes da
diocese seria uma forma embrionária da Congregação dos Oblatos,
voltada fortemente para a reparação sacerdotal, porém não mais pela via
dos estudos ou do ensino, mas pela via vitimal.
Mas, Dehon deu um passo além e caminhou em direção a uma
interessante síntese entre a reparação vitimal e intelectual. Seriam duas
formas de contribuir para o advento do reino do Coração de Jesus nas
almas e nas sociedades. Encontramos esta síntese claramente expressa
em seu Diário no dia 29 de março de 1887. Vemos neste texto, em tom
de testamento espiritual, que ele realmente integrou o projeto da
Congregação de Estudos, acalentado durante o tempo de seminário em
Roma, com a Congregação dos Oblatos, fundada em Saint-Quentin.
—————————–
1
M. DENIS, «A orientação de P. Dehon para o apostolado intelectual», in
Dehoniana 30 (1976) 193-228. Sobre o papel de P. Freyd na decisão de
Dehon: M. DENIS, «Os convites de P. Freyd e de M. Hautcœur», in
Dehoniana 31 (1976) 274-296.
252
Durante o tempo que estive em Roma (1869 à 1871) estive tomado pela idéia
de fundar uma congregação de estudos, com seu centro em Roma e o 4º voto
de defender as doutrinas romanas, mesmo as não definidas como de fé. Falei
disso a muitas pessoas importantes: a Mons. Mermillod (em 1870), a Mons.
Bartolini, ao Card. Pitra (em 1871); eles aprovaram este projeto. Eu tomava
nota dos motivos que justificariam esta obra e do trabalho a fazer2.
Não estamos diante de uma vaga intenção. Há um projeto escrito e
discutido em foro externo com autoridades eclesiais eminentes. Não é
um simples círculo de estudos. Ele fala de «Congregação», inclusive
com o 4º voto de divulgar e defender a doutrina da Igreja. Dehon jamais
abandonou totalmente esta idéia, porém reconheceu que a Vontade de
Deus escolheu outros caminhos para realizar a mesma obra. Prova disso
é a anotação daquele mesmo dia em seu Diário:
Nosso Senhor me pediu uma outra obra, mas nós podemos unir os dois
objetivos: o estudo segundo o espírito de Roma e a reparação ao Sagrado
Coração de Jesus – A verdade e a caridade foram as duas grandes paixões da
minha vida, e tenho apenas um desejo: que sejam os dois únicos atrativos da
obra que deixarei, se Deus quiser3.
Lendo o texto no seu conjunto, e considerando que foi escrito em
1887, portanto, dez anos após as fundações, às vésperas de receber o
—————————–
2
3
NQT III/1887, 98-99. Mons. Gaspard Mermillod (1824-1892) foi bispo de
Hébron. Foi feito cardeal por Leão XIII, em 1890. Exerceu grande influência
sobre sua geração. Dehon o cita ainda em NHV I, 61r; VI, 116; VII, 14, 34,
46, 55, 125 e 159; VII, 38-39, 58 e 61; XI, 31-32; XIII, 33, 102-103; 180185; XIV, 70; XV, 60. Mons. Dominique Bartolini (1813-1887) foi feito
cardeal por Pio IX em 1875. Foi secretário da «Sagrada Congregação dos
Ritos». Era conhecido por sua generosidade e hospitalidade. Dehon o cita
em NHV IX, 37. Card. Jean-Baptiste Pitra (1812-1889) era beneditino de
Solesmes. Pio IX o fez cardeal em 1863. Dehon o cita em: NHV VI, 25 e 29;
VIII, 14 e 18-19; IX, 37; XI, 91.
NQT III/1887, 98-99. É preciso estar sempre atento ao limite semântico da
tradução de «caritas» nas línguas neo-latinas. A densidade de significado
dessa palavra em Dehon ultrapassa o simples empenho caritativo. É
sinônimo de «amor», enquanto atributo divino.
253
Decretum laudis e o mandato de Leão XIII de pregar as suas Encíclicas4,
percebemos que a verdade e a caridade, enfatizadas por Dehon,
condensam um significado simbólico na linha de uma síntese de vida5.
Ou seja, a verdade é expressão de sua orientação intelectual e a caridade
expressa toda a sua mística da oblação reparadora. A verdade seria a
forma simbólica da «Congregação de Estudos» e a caridade da
«Congregação dos Oblatos». Em 1887, ao rever o texto das
Constituições francesas já aprovadas pelo bispo, em vista da aprovação
pela Santa Sé, Dehon percebe a possibilidade de unir «os dois
objetivos»6. Seu apostolado social, que se intensificará sempre mais a
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4
5
6
Este contexto é claramente expresso nas Memórias de Dehon, em que o ano
escolar de 1887-1888 não ocupa mais do que nove páginas, mas que
descrevem esta expectativa pelo Decretum laudis. Além disso, é o período
da primeira expansão missionária para o Equador, com a possibilidade de
fusão com a congregação de P. Matovelle. As Memórias terminam com a
recomendação de Leão XIII: «Pregar as Encíclicas do Papa e suas
orientações, rezar pelos sacertodes, ajudá-los, dedicar-se à Santa Sé e aos
sacerdotes, fazer adoração reparadora, ir às missões distantes, eis a missão
que nos foi confiada pelo Papa». NHV XV, 82-83.
A Veritas e a Caritas são identificadas por ele mesmo como os dois grandes
motivos espirituais de sua vida. São motivos, subjetivamente
experimentados como ação da Graça. São motivos que, objetivamente,
caracterizam sua experiência espiritual e que, portanto, podem ser
identificados em seus escritos. Um dos desafios de uma pesquisa em
Teologia Espiritual é esclarecer a matriz geradora, ou estrutura da sua
experiência espiritual. Seguimos aqui as indicações de CH.A. BERNARD,
Teologia spirituale, 86-87. Segundo este autor, uma das funções da Teologia
Espiritual, enquanto disciplina teológica, é esclarecer as «estruturas e leis»
de uma experiência espiritual. «Um exemplo conhecido de lei espiritual, no
sentido em que entendemos, encontramos nas regras de discernimento dos
espíritos, em que Santo Inácio determina a sucessão habitual dos motivos
afetivos espirituais e o seu significado». Ibidem, 87.
«Pregar as Encíclicas» é uma das formas como reaparece o antigo projeto da
«Congregação de Estudos», nas Constituições latinas dos Sacerdotes do
Coração de Jesus, a partir de 1906: «Obsequium ducent præstare Cordis Jesu
com filiali docilitate, amplectentes et cum zelo indefesso propagantes
doctrinas omnes et Directiones Vicarii Christi». CST (1906) artigo 8º.
254
partir deste momento, será também uma forma de viver esta mística,
ainda que com grande oposição dentro da Congregação.
Um olhar sobre o Diário de Dehon, permite identificar uma especial
atenção à educação, em particular no ano de 1887. No dia 8 de fevereiro,
ele visita o Mons. Lecot, bispo de Dijon, que lhe fala sobre suas «Casas
de Educação» e da Escola Santo Inácio, dirigida por P. Bretenières7. Nos
dias 18 e 19 de fevereiro, ele registra que estudou «a história das
doutrinas sobre a educação»8. Exalta o triunfo da Igreja na educação,
citando, após a escolástica, os jesuítas, Rollin, a Universidade de Paris e
os beneditinos. No dia 21 de fevereiro, reflete como seria se tivesse
aceito o convite de P. Hautcœur, para fundar a Universidade de Lille9:
«poderia ter feito algum bem, não sem sofrimentos, mas é muito maior a
obra de reparação, se eu tiver a graça de permanecer fiel»10. Neste
tempo, Dehon está organizando os seus discursos educacionais para
publicar seu primeiro livro. No dia 2 de março receberia a autorização do
bispo para esta publicação11. Ao mesmo tempo em que estuda os
fundamentos da educação, Dehon registra em seu Diário muitas leituras
sobre a espiritualidade vitimal. Seu interesse principal é sempre a
imolação como instrumento de santificação do clero12. Ele oferece
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7
8
9
10
11
12
Mons. Victor-Luc-Sulpice Lecot (1831-1908) nasceu na diocese de Soissons
e havia sido eleito bispo em 1886. P. Christian Bretenières (1840-1914) foi
colega de seminário de Dehon. Teve uma intensa atividade na educação em
Fontaine-les-Dijon. Dehon o cita muito em suas Memórias: NHV IV, 145; V,
38, 108; VIII, 35; X, 56; XI, 13, 32-33 e 173; XII, 41; XV, 68.
NQT III/1887, 90.
NHV XI, 3.
NQT III/1887, 91.
NHV XV, 65.
Por exemplo, no dia 24 de fevereiro, ele lê, no Bulletin de la Garde
d’Honneur um artigo sobre a missão da Filhas do Coração de Jesus, que se
imolam pelos sacerdotes. Seu comentário é: «Os sacerdotes santos são
instrumentos de salvação. Eles são auxiliados pelas almas vítimas». Dehon
vê na imolação uma grande expressão da solidariedade que une a grande
família que é a Igreja, no mistério da comunhão dos santos. A palavra
«solidariedade» aparece no Diário, de próprio punho de Dehon, para
exprimir os fundamentos teológicos da reparação. Isto pode ser verificado,
255
continuamente seus sofrimentos nesta intenção. É isso que repetidamente
chama de «espírito de nossa vocação»13. É uma espécie de eixo
integrador de toda a sua vida espiritual e apostólica. Ele está preocupado
também com a formação de seus religiosos. No dia 9 de março, registra
no Diário que é necessário formar melhor os membros e fazer um
«recrutamento mais lento por meio de membros mais capazes e melhor
formados». Dehon recebia muitas críticas de que a rápida expansão de
sua obra era ao custo de uma formação precária.
Os dias que antecederam a declaração do dia 29 de março, de que
seria possível unir a obra de reparação com a obra de estudos, foram
especialmente densos segundo os registros no Diário. No dia 17 de
março, ao participar das exéquias de P. Guyart, vigário geral de
Soissons, fica sabendo que o bispo teria a intenção de fazê-lo vigário
geral, se não estivesse envolvido com a Congregação que fundara.
Dehon renova «o sacrifício de toda uma carreira honorífica»14. No dia 22
de março, ao celebrar o aniversário de morte de sua mãe, em La Capelle,
Dehon vende a seu irmão sua principal propriedade de herança, para
saldar dívidas da Congregação. No dia 24 de março, Dehon recorda o 44º
aniversário de seu batismo e renova seu Ecce venio: «Quero viver e
morrer pela obra do Sagrado Coração. Eu me entrego todo inteiro»15. No
dia seguinte prolonga sua reflexão na «festa da oblação de Jesus e de
Maria», unindo o Ecce ancilla ao Ecce venio16. No dia 28 de março, ele
registra a notícia da «união de preces da associação das Vítimas do
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13
14
15
16
por exemplo, no registro do dia 12 de julho de 1888: «Je suis frappé par la
pensé de la solidarité. Une maison n’est pas bénie à cause d’un seul ou de
plusieurs qui offensent Dieu. Cela peut se dire même d’une communauté et
d’un peuple, comme on le voit par le crime d’Achan dans le livre de Josué
(cf. Jos 7,1-26). Mais la réparation est aussi imputable aux autres. Si
quelques-uns au moins consolaient bien N.-S. chez nous, la communauté
serait bénie à cause d’eux! Fiat!» NQT IV/1888, 51r.
NQT III/1887, 93.
NQT III/1887, 96.
NQT III/1887, 97.
NQT III/1887, 97. Festa da Anunciação. Neste dia, também, ele registra o
50º aniversário de batismo da Chère Mère, Marie-Rosalie-Oliva Uhrich
(1837-1917) fundadora das Servantes du Cœur de Jésus.
256
Sagrado Coração, de Bourdeaux». Seu comentário é: «Encontro lá o
mesmo espírito que nos orienta, mas com um excesso de imaginação
[...]»17. Dehon faz a sua própria síntese da via vitimal, da espiritualidade
reparadora, da profissão de imolação. Ele percebe, então, a possibilidade
de «unir os dois objetivos»: a verdade e a caridade, a educação e a
reparação. A anotação do dia 29 de março é especialmente longa, ao
contrário do estilo sintético do Diário. Percebe-se o fruto de uma
reflexão, que se prolonga com a mesma intensidade durante todo este
ano de 1887.
No dia 9 de novembro, em visita a Lille, Dehon retoma a reflexão de
março, porém com uma variante. Já não fala da Congregação de Estudos,
mas de uma «Casa de Estudos», que pudesse dar a cada membro da
Congregação o desenvolvimento de que é capaz. Percebemos que ele
integrou em sua mente os dois projetos que estavam originalmente
separados. Seu registro no Diário é revelador: «Como eu gostaria de uma
casa de estudos, uma nova la Chênaie, com a humildade e a docilidade à
Igreja». La Chênaie é uma referência explícita à obra de Lamennais, com
seu objetivo de restaurar a França cristã pela via do estudo e da formação
do clero. No dia 11 de novembro há um registro em seu Diário que
explicita esta evolução do seu pensamento:
Daremos, pouco a pouco, aos estudos a importância que eles merecem em
nossa obra. Gostaria de uma casa de estudos em Paris para preparar as
licenças e uma em Roma para a teologia. Não é a ciência um dos principais
meios de apostolado? Meus projetos da Obra de Estudos, meditados em
Roma durante muitos anos, podem se aliar com a obra de reparação ao
Sagrado Coração18.
A partir da audiência com Leão XIII, em setembro de 188819,
percebemos que Dehon intensifica seu apostolado social, funda a revista
Le Règne e começa publicação de vinte livros até o final de sua vida. Em
sua postura apostólica, realiza a síntese entre a orientação intelectual e
vitimal, como pregador da Doutrina Social da Igreja. Porém, esta síntese
—————————–
17
18
19
NQT III/1887, 98.
NQT IV/1887, 1r. Grifo nosso.
Esta audiência do dia 6 de setembro de 1888 está registrada no Diário de
Dehon, com detalhes: NQT IV/1888, 70v-71v.
257
não encontra eco proporcional dentro de sua Congregação, razão pela
qual o projeto das «Casas de Estudo» não tenha sido da maneira como
previa o projeto original de Dehon.
O Projeto da Congregação de Estudos nas Memórias de Dehon
Vimos no registro do Diário, do dia 29 de março de 1887, que Dehon,
ao projetar uma Congregação de Estudos durante o tempo de seminário,
«tomava nota dos motivos que justificariam esta obra e do trabalho a
fazer»20. Ao redigir suas Memórias, a partir de 1886, no sexto caderno,
Dehon tomou o cuidado de retomar as anotações do tempo de seminário,
vinte anos depois e transcreveu «o projeto da Congregação de
Estudos»21. Portanto, existem três referências autógrafas da mesma obra:
o Diário, as Memórias e o caderno original, preservado nos Arquivos
Dehonianos.
O modo como Dehon fala deste projeto nas Memórias é o que mais
nos interessa, pela quantidade de detalhes, mas também por ser um
registro feito em sua maturidade, em um tempo propício para a síntese de
vida, conforme verificamos na leitura do Diário. O texto não possui
divisões, mas pode-se observar quatro partes bem distintas: origem da
moção; fontes a estudar; motivos da obra; trabalhos a realizar.
A origem próxima do projeto é a efervescência de idéias e ideais
provocada pela participação como estenógrafo no Concílio Vaticano I22.
Os diálogos diários com P. d’Alzon «despertaram» as preocupações com
a formação do clero, que Dehon guardava desde os seus tempos de
—————————–
20
21
22
NQT III/1887, 98.
NHV VI, 115-130. É provável que a redação desta parte das Memórias seja
contemporânea aos textos do Diário escritos no início de 1887. Os Arquivos
Dehonianos conservam o caderno manuscrito original de Dehon do tempo de
Seminário, com o projeto da Congregação de Estudos. AD.B. 14/9. Tivemos
acesso à este manuscrito e verificamos que o texto do caderno original foi
copiado integralmente por Dehon em suas Memórias. Ele faz apenas
algumas poucas correções de estilo. Porém, identificamos o acréscimo de
uma introdução e de algumas frases típicas de quem está revendo a
atualidade de um projeto vinte anos depois.
Todo este primeiro item não consta no projeto original e é a avaliação de
Dehon em 1887.
258
estudante de Direito em Paris. Ele afirma: «Durante dez anos senti uma
atração por esta obra que eu assumi como vocação»23. Após a
Revolução, a Igreja na França precisou recuperar o clero destinado às
funções ministeriais. Dehon afirma que esta missão estava realizada e,
que agora seria «urgente» preparar uma «elite» do clero para «combater
os erros filosóficos e sociais que ganhavam terreno». Sobre isso Dehon
teria conversado com P. Gratry, que lhe falou sobre «la Chesnaye»24 e
outros grupos de estudos fundados em Paris, por Mons. Gay. As
conversas com P. d’Alzon e alguns bispos indicavam que dois meios
seriam necessários para conduzir a este objetivo: «o restabelecimento da
Universidade Católica na França e a promoção dos estudos dentro das
Ordens religiosas»25. Ao final deste primeiro item, revendo as origens da
moção e o modo como os acontecimentos se passaram nestes dez anos,
até 1887, Dehon faz uma avaliação:
Tudo o que desejei para este movimento de estudos aconteceu sem a minha
participação. Temos as Universidades livres. Não fiz outra coisa que
encorajar P. d’Alzon em sua propaganda e Mons. Hautcœur em sua fundação.
Não tive outra missão. Leão XIII deu grande apoio a este movimento. Suas
Encíclicas renovaram o estudo filosófico e teológico tendo por base o grande
método escolástico. Ele criou este movimento de estudos que eu julgava
necessário dentro das ordens religiosas26.
—————————–
23
24
25
26
NHV VI, 116. De fato, encontramos registros da Congregação de Estudos
nas Memórias referentes ao período de estudos em Paris, com apenas 18
anos de idade. Dehon relata que na ocasião conversou a respeito com P.
Gratry e Mons. Dupanloup que o desaconselhavam a estudar em Roma por
entender que ali a linha era de «ultramontanismo exagerado que acreditava
na infalibilidade papal não só no que se refere ao seu ensino público, mas
também em sua vida pessoal». NHV I, 60v-61v.
La Chesnaye é a forma arcaica de la Chênaie, de Lamennais. NHV I, 60r.
NHV VI, 116. P. d’Alzon publicava sua revista sobre «ensino cristão»,
unindo-se à uma grande reivindicação de liberdade de ensino superior na
França, que seria conquistada em 1875. As cartas de P. d’Alzon foram
publicadas sistematicamente pelos assuncionistas a partir de 1923 em:
Lettres du P. Emmanuel d’Alzon. Até 2005 a coleção contava com 17
volumes com cerca de 500 páginas cada.
NHV VI, 117-118.
259
Na mente de Dehon, os dois grandes objetivos da Congregação de
Estudos, teriam sido atingidos, sem sua participação direta.
Ele indica uma lista de fontes estudadas para fundamentar sua
Congregação de Estudos27. Da Sagrada Escritura, cita o livro de
Provérbios e Ezequiel28. A ênfase está na escuta da Palavra de Deus que
deve ser acolhida no coração. Da Tradição, Dehon seleciona algumas
obras de São Gregório Nazianzeno, São João Crisóstomo, Santo
Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerônimo e Santo Tomás de Aquino29.
Do Magistério, a lista de Dehon faz referência a uma Carta que Pio IX
teria escrito aos bispos da França, em junho de 186730. Da literatura
filosófico-teológica, Dehon cita Gratry, Dupanloup, Franzelin, Marin de
Boylesve, Mabillon, Mons. Gerbet, Crétineau-Joly. Há um destaque para
a obra de Lamennais, apresentada por Lacordaire31. A lista bibliográfica
de Dehon indica ainda alguns artigos selecionados na revista Civiltà
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Esta lista está em NHV VI, 118-120 e coincide exatamente com a lista do
caderno original.
Pr 15,2.16,24; Ez 3. O texto de Ezequiel fala de «comer» o livro da Lei, ou
seja, escutar a Palavra e acolhê-la no coração para, depois, anunciá-la em
Nome de Deus. (Cf. 3,10). No caderno original, Dehon destaca uma frase de
Ez 3,1, que não copiou nas Memórias: «Fala à Casa de Israel». O versículo
completo seria: «Filho do homem, come aquilo que está diante de ti, come
este livro, depois vai e fala à Casa de Israel». Os dois versículos
selecionados de Provérbios são: «a sabedoria irá ao seu encontro como uma
mãe e o acolherá como uma virgem esposa» (15,2); «escuta-me, filho, e
aprende a ciência; seja atento no teu coração às minhas palavras» (16,24).
SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO, Discours 12 e 27; SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, De
sacerdotio 1.4-5; SANTO AMBRÓSIO, De officiis, c. 22; SANTO AGOSTINHO,
De doctrina christiana, 1.4; SÃO JERÔNIMO, Ep. ad Magnum, SANTO TOMÁS
DE AQUINO, 2a 2æ. q. 188, art. 5 e 6. Apud NHV VI, 115-130.
NHV VI, 119.
GRATRY, Les Sources e Discours sur la mission de l’Oratoire; DUPANLOUP,
De la haute éducation intelletuelle; FRANZELIN, De Traditione; MARIN DE
BOYLESVE, Plan d’études; MABILLON, Traité des études monastiques;
PHILIPE-OLYMPE GERBET, Esquisse de Rome chrétienne, 1843-1850;
CRETINEAU-JOLY, L’Eglise romaine en face de la Révolution; LACORDAIRE,
Considérations sur le système philosophique de M. de Lamennais. Apud
NHV VI, 115-130.
260
Cattolica do ano 1870, principalmente uma série sobre «a origem dos
males presentes da sociedade»32; alguns Breves de Pio IX, um a Louis
Veuillot33 e o outro a Mons. Raffaele Coppola, por ocasião do seu livro:
Sul diritto della Chiesa in ordine al pubblico insegnamento34; e as
orientações do bispo de Cambrai ao seu clero35.
Em seguida, Dehon indica os motivos favoráveis a esta obra de
desenvolvimento dos estudos36. O primeiro seria combater, na raiz, as
novas heresias do naturalismo, liberalismo e galicanismo37, o que
exigiria uma grande organização que tornasse possível, por meio de um
trabalho sério, «responder aos incrédulos sobre a história, as ciências, a
exegese, a economia cristã e a política»38. O segundo motivo seria
favorecer a melhor formação do clero. Ele defende que «após a era dos
mártires deverá vir a era dos doutores»39. Um terceiro motivo, que
Dehon repete por três vezes, seria que a Congregação de Estudos tivesse
suas raízes e fontes em Roma, reconhecendo a «prerrogativa de Pedro de
ensinar e de confirmar os outros»40. O quarto motivo seria a necessidade
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«La filosofia anticattolica e i mali presenti della società», in Civiltà Cattolica
I (1870) 139-151; 275-185; 525-535.
Civiltà Cattolica II (1870) 750-751.
Civiltà Cattolica II (1870) 310-313.
Civiltà Cattolica II (1870) 745.
O texto fala de «motifs qui militaient en faveur de ce développement des
études». O uso da palavra «motivo», por Dehon, em todo o seu arco
polissêmico permite que ele inclua nesta categoria o «porquê», o «para quê»
e o «como» da Congregação de Estudos.
Aqui Dehon faz uma alteração no estilo do texto. No caderno original, ele
dizia: «Trois ennemis à combatre». Nas Memórias desaparece a palavra
«inimigos» mas permanece o propósito: «Notre époque a ses erreurs propres,
des hérésies nouvelles [...] qui grandissent sans cesse, faute d’être
suffisamment combattues». NHV VI, 120.
NHV VI 121. Nas Memórias, Dehon acrescenta uma observação que isto foi
feito sob o impulso de Leão XIII e pela contribuição das Universidades
Católicas.
NHV VI, 120.
NHV VI, 125. No caderno original este argumento é desenvolvido sob o
título de «frutos», e não foi transcrito integralmente por Dehon em suas
261
de trabalhar para a constituição de «universidades livres», diante das
universidades do Estado, sob seu ponto de vista, impregnadas dos erros
liberais. Dehon inclui ainda entre os motivos, um longo trecho das
Considerações de Lacordaire sobre o ideal de Lamennais defendendo a
restauração das ciências religiosas como garantia de uma França católica.
O último ponto do projeto da Congregação de Estudos trata dos
«trabalhos a fazer». É uma longa lista de estudos que inclui: harmonia
entre Bíblia e ciências naturais; arte profana e arte cristã; participação da
Igreja na educação; a liberdade de imprensa perante o direito natural e
divino; onde está a verdadeira liberdade?; Igreja, salvação das almas e
proteção pelo poder público; dogma e progresso da filosofia nos últimos
séculos; política e fé; ciências sociais e fé; tolerância religiosa; as
impiedades do direito moderno; os papas e os concílios; a vida dos reis
santos; a influência da Igreja na sociedade civil. Dehon termina a
avaliação do seu projeto com uma perspectiva:
Todos estes trabalhos serão feitos. Eles serão úteis à Igreja, o Espírito Santo
inspirará este pensamento a alguém. Nossa pequena família religiosa se
dedicará também a este gênero de apostolado, quando tiver saído das
dificuldade próprias a todo início41.
A troca de correspondências deste período, principalmente entre
Dehon, d’Alzon e P. Freyd, revelam que o projeto não foi levado adiante
por causa da forte atração que Dehon sentia pela vida religiosa e pelo
receio de que o efeito desta ação pudesse representar um apoio ao
galicanismo42. A demorada decisão de Dehon tinha como referencial
permanente realizar a Vontade de Deus a seu respeito. Para ele, o Diretor
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42
Memórias. Há frases como esta da página 14: «Para reconquistar a
autoridade da Igreja sobre os estados é necessário restabelecer a confiança
nesta autoridade nos espíritos pelo ensino superior, livre, fundados em Roma
[...]».AD.B. 14/9.
NHV VI, 130.
Para uma análise crítica desta troca de correspondência: M. DENIS, «A
orientação de P. Dehon para o apostolado intelectual», in Dehoniana 30
(1976) 193-228. O próprio Dehon relata este processo de decisão em NHV
IX, 63-70.
262
Espiritual era uma voz fundamental na confirmação desta Vontade
Divina43.
A Congregação de Estudos não foi fundada, porém, durante toda a sua
vida, Dehon conservou uma forte «orientação para o apostolado
intelectual», que acabou se refletindo em sua atuação social e também no
modo como ele concebeu o carisma da Congregação dos Sacerdotes do
S. Coração de Jesus, conforme observamos na análise das Constituições.
Ainda que esta orientação intelectual encontrasse resistência por parte de
uma ala de sua Congregação, percebemos alguns reflexos ligados à
expansão missionária e preocupação em formar bem seus próprios
religiosos, conforme analisaremos a seguir.
2. Colégios da Congregação durante a vida de Dehon
Os diversos colégios iniciados através da Congregação, ainda durante
a vida de Léon Dehon, mostram que a dimensão intelectual da sua
mística não foi vivida apenas de maneira pessoal e exclusiva, no Colégio
São João. A educação da juventude era uma das opções apostólicas
características da Congregação no seu início. Não é o caso de fazermos
aqui a lista completa e exaustiva de todas as iniciativas educacionais.
Focalizaremos apenas seis Colégios, com ênfase sobre dois deles
surgidos no Equador, no primeiro avanço missionário ad extra dos
Oblatos44.
O Colégio de Bahía de Caráquez – Equador
Dehon enviou seus religiosos ao Equador com a finalidade de efetuar
a fusão de sua Congregação com os Oblatos do Divino Amor, fundados
por P. Júlio Maria Matovelle45. Os dois fundadores já haviam trocado
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Após decidir-se colocar à disposição do bispo de Soissons, Dehon termina o
relato sobre o discernimento com uma frase emblemática: «Era
absolutamente o contrário daquilo que eu desejara durante anos: uma vida de
recolhimento e estudos. Fiat!» NHV IX, 71.
Partimos da pesquisa feita por E. DRIEDONKX, «Nuestros Colegios», 34-57.
Há uma pesquisa sobre este tema, publicada por ocasião do centenário da
presença dehoniana no Equador: E. DRIEDONKX, «Ecuador: cuna de la
263
correspondências a respeito46. Havia também a intenção de auxiliar na
formação do clero e construir a grande Basílica Nacional do Coração de
Jesus, em Quito, nos moldes de Montmartre, em Paris. O Equador era,
então, um país em evidência pela luta aberta entre o ideal de uma nação
cristã e a maçonaria. Garcia Moreno havia sido morto em 6 de junho de
1875, enquanto assinava o decreto que consagrava seu país ao Sagrado
Coração de Jesus47. Sob a instabilidade da agitação popular o governo
maçônico permaneceu até 1883, quando foi eleito o Presidente Caamaño,
que retomou a via de Garcia Moreno, votando a construção da Basílica
Nacional48.
A partida dos dois primeiros missionários, P. Blanc e P. Grison, no dia
10 de novembro de 1888, foi precedida por uma Missa solene na capela
do Colégio São João, da qual participaram todos os alunos e
professores49.
Não foi necessário muito tempo para que os missionários percebessem
que a fusão das duas congregações não seria possível e o projeto da
construção da Basílica, naquele momento, não apresentava tantas
perspectivas50. Nestas circunstâncias, Mons. Schumacher, confia seu
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presencia dehoniana en America Latina», in Studia Dehoniana 19 (1988) 1189. Os Oblatos do Amor Divino foram fundados em 6 de outubro de 1884,
no Equador. Ibidem, 4.
NQT IV, 23r: 21.2.1888; NQT IV, 34r: 10.4.1888.
Léon Dehon leu a vida de Garcia Moreno em outubro de 1887 e comenta:
«Que os nossos alunos possam imbuir-se deste espírito e contribuir mais tarde
a restabelecer em nossa França o reino de Nosso Senhor». NQT III/1887, 117.
Há outro registro de 27 de novembro de 1887. NQT IV/1887, 4r.
G. GRISON, Ricordi dell’Equatore. Trata-se de um interessante relato desta
missão, escrito em 1926, por Mons. Gabriele Grison, pioneiro da Missão no
Equador que, depois da explusão, dirigiu-se ao Congo Belga, onde se tornou
Vigário Apostólico de Stanley-Falls.
G. GRISON, Ricordi dell’Equatore, 7-9.
A principal causa foi a constatação de uma diferença fundamental entrre as
duas congregações dedicadas igualmente ao Coração de Jesus. P. Matovelle
acentuava o reinado social do Coração de Jesus de um modo teocrático. A
via do engajamento político era fundamental. Este era o significado da
construção da Basílica Nacional. Para Dehon, os meios para estabelecer o
264
Seminário Menor, em Portoviejo, e um Colégio na cidade de Bahía aos
sacerdotes de Dehon, a partir de 1889. Algumas tensões com o bispo
acabaram levando todos os religiosos de Dehon para Bahía, assumindo
também a paróquia local51.
Em julho de 1891, P. Grison tornou-se o superior da missão. Foi o
grande entusiasta do colégio, que neste tempo experimentou grande
desenvolvimento, tornando-se um dos mais importantes da região52. Ele
promoveu uma ampla reforma das instalações e fez escrever como lema
na fachada do colégio: «Ad Deum per scientiam»53. Sua atuação como
professor e pesquisador foi coerente com o lema escolhido. Escreveu um
curso de geologia, e chegou a organizar, na escola, um museu com
pedras, metais e cerâmica típicos da cultura Manteña-Huancavélica. Aos
poucos, outros missionários foram enviados especificamente para o
trabalho educacional. Portanto, a primeira missão ad extra da
Congregação fundada por Léon Dehon, caracterizou-se pelo intenso
apostolado educacional junto à juventude.
Assim como o Colégio São João, o Colégio de Bahía primava pela
qualidade do ensino e pela educação cristã. P. Grison diz: «Eu tinha
somente um desejo: fazer daqueles jovens, cristãos instruídos, distintos,
capazes de fazer resplandecer a verdade nos lugares onde a Providência
os enviar»54. A filosofia educacional de Dehon, fortemente apoiada em
sua mística, se reflete claramente na prática educacional dos
missionários, principalmente de P. Grison. Uma das características desta
filosofia é o protagonismo do aluno no processo pedagógico. Percebe-se
isso claramente no livro de Memórias de P. Grison. Um exemplo é o
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Reino do Coração de Jesus eram mais espirituais e pastorais: a imprensa, a
formação do clero, a educação da juventude. E. DRIEDONKX, «Ecuador», 28.
Segundo Grison, estas tensões eram entre o bispo e P. Irineu Blanc, então
superior da Missão. O «pretexto» final do bispo para a saída dos
missionários do Seminário de Portoviejo teria sido o fato de alguns
seminaristas mais velhos terem sido «obrigados a repetir o ano», por
apresentarem pouco proveito. Além disso, P. Blanc pedia ao bispo o
aumento do número de professores. G. GRISON, Ricordi dell’Equatore, 122.
E. DRIEDONKX, «Nuestros Colegios», 47.
G. GRISON, Ricordi dell’Equatore, 168.
G. GRISON, Ricordi dell’Equatore, 238.
265
modo como ele descreve a decisão de um jovem aluno, chamado Benito
Brignardelli, militante católico, que denunciou os planos da maçonaria
para assassinar o bispo local:
Este jovem tinha uma inteligência superior, aberta a todos os horizontes, uma
vontade enérgica e um caráter amável e alegre. Sem exagero, tinha as
condições para se tornar um Garcia Moreno; e não sei qual teria sido seu
futuro, se uma morte trágica não o tivesse roubado dos que o amavam e de
todos os que o conheciam55.
Tendo sido eleito presidente da Associação São Luiz, que reunia a
juventude católica do Colégio, Benito fez um discurso sobre a harmonia
entre ciência e fé, baseado no frontispício do colégio: «Ad Deum per
scientiam». P. Grison registra em suas memórias algumas frases deste
discurso que revela de maneira muito viva o «espírito» da pedagogia
dehoniana:
Caros companheiros, nossa meta se resume em duas palavras: «Ardere et
lucere», ciência e virtude. A ciência e a virtude são duas irmãs, filhas do
mesmo Pai, o Deus de todo saber e de toda santidade. Estudamos a ciência
com ardor, aprofundamos os seus mistérios. Ah! que alegria experimentamos
quando, depois de longas horas de estudo, nos aparece radiosa a verdade!
Mas sejamos também virtuosos, cultivemos em nosso coração o amor pelo
bem, e para dignamente exprimí-lo, estudemos a literatura! Estudemos e
sejamos bons a fim de defender a verdade e combater os erros56.
Este texto mostra uma mentalidade que acredita no saber unido à
santidade, como força de restauração da pessoa e da sociedade. A
educação é vista como meio de reparação e, por isso, é facilmente
assumida como apostolado central da primeira missão dehoniana.
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G. GRISON, Ricordi dell’Equatore, 238.
G. GRISON, Ricordi dell’Equatore, 346. Benito morreu tragicamente afogado
no mar, no dia 12 de junho de 1895, aos 17 anos. G. GRISON, Ricordi
dell’Equatore, 289-290. Em seu discurso disse ainda que a ciência mal
utilizada se transforma em uma «arma terrível contra a sociedade». Diz
ainda que a «a religião não combate a ciência, ao contrário a aumenta». Cada
uma destas palavras encontra paralelos nos discursos de Dehon nas
cerimônias de Distribuição de Prêmios do Colégio São João.
266
A presença em Bahía teve um fim repentino provocado pela revolução
de Alfaro. Em 12 de junho de 1896, P. Grison e P. Lux foram expulsos
do Equador.
O Colégio de Ambato – Equador
P. Grison, já em 1891, sentia a necessidade de uma obra fora da
diocese de Portoviejo. Por essa razão, propôs que a Congregação
aceitasse a oferta do Ministro da Instrução Pública, para que os
missionários assumissem o Colégio Nacional Bolivar, em Ambato57, o
que de fato aconteceu, no mesmo ano, por meio de um contrato firmado
entre Dehon e o Governo do Equador. O colégio havia sido fundado em
1859, possuía uma ótima biblioteca e um laboratório de física, mas
precisava ser reorganizado e receber uma nova direção. Durante muito
tempo havia sido dirigido pela maçonaria. Foi elaborado um amplo e
complexo projeto de reestruturação deste colégio.
Da mesma maneira que o Colégio de Bahía, as atividades da
Congregação em Ambato foram prejudicadas pela revolução de Alfaro
que, a partir de 1895, tomara a cidade. A nova conjuntura política acabou
por provocar a saída de todos os missionários de Dehon do Equador58.
O Colégio de Olinda – Brasil
A história deste colégio é tão breve quanto intensa. O próprio Dehon
aceitou a obra a partir de uma conversa com Mons. Luis de Brito, bispo
de Olinda, em sua passagem por Paris59. Dehon vislumbrava a
possibilidade de formar uma comunidade educacional, naquele ambiente
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Ambato fica a 129 quilômetros a sul de Quito. Na época dependia
eclesialmente da Arquidiocese de Quito.
Entre 1888 e 1896, foram enviados dezoito missionários para o Equador. P.
Grison afirma que a saída dos missionários foi provocada pela interpretação
equivocada de um telegrama que tinha como finalidade chamar de volta
apenas o P. Bruno Blanc, mas havia sido redigido de tal forma por
opositores da linha de governo de Dehon, que acabou sendo intepretado
como uma ordem para que todos os missionários retornassem à França. E.
DRIEDONKX, «Nuestros Colegios», 48.
NQT XVIII/1903, 67-68.
267
missionário, onde a ênfase do trabalho era com os operários. O bispo, na
verdade, queria retirar da direção do colégio o Cônego Fabrício, devido a
desavenças pessoais. Sem conhecer os verdadeiros motivos do bispo,
Dehon enviou P. Paris, que já tinha experiência em colégios, para a
missão de diretor. No dia 30 de outubro de 1903, Dehon enviou mais
cinco missionários para a obra e, em janeiro de 1904, outros cinco.
Dificuldades financeiras, falta de conhecimento da língua e
desentendimentos entre os próprios missionários tornavam quase
impossível assumir efetivamente a obra. Por fim, o bispo acabou por
suprimir o colégio diocesano.
Este fato nos mostra que Dehon aceitou o desafio educacional do
Colégio de Olinda, mesmo advertido pelos missionários que já se
encontravam no Brasil a respeito dificuldades que cercavam esta obra e
que o fracasso seria certo60. Isto denota a importância que ele atribuída
ao apostolado educacional ligado à tarefa missionária de implantar o
Reino do Coração de Jesus nas sociedades e, também, a solicitude para
com as necessidades da Igreja local, expressa em sua especial atenção ao
pedido dos bispos.
O Colégio de Florianópolis – Brasil
Os missionários de Dehon chegaram à Ilha do Desterro, hoje
Florianópolis, no dia 12 de julho de 190361. Os pioneiros eram P. Lux,
que havia sido expulso do Equador, e P. Foxius. Já no dia 1º de agosto,
P. Lux escreve sua primeira carta a Dehon:
Estamos instalados aqui em Desterro. Atendemos a igreja de São Francisco,
que pertence à ordem Terceira e uma escola ao lado da igreja. O governo e os
pais de família desejam a todo custo uma escola média. Sonhamos com isso e
queremos iniciar esta obra. Visitarei varios lugares para escolher a melhor
localização. Espero que me envie alguns colaboradores em outubro62.
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E. DRIEDONKX, «Nuestros Colegios», 49.
No dia 12 de janeiro de 1903, lemos em seu Diário que durante uma reunião
internacional em Bruxelas foi aceita essa missão no sul do Brasil, sob a
responsabilidade dos padres alemães. NQT XVIII/1903, 45.
G. LUX, «Carta a Léon Dehon», in Le Règne (1903) 615-616.
268
A mesma linha missionária, com ênfase na educação, adotada no
Equador, é adotada no Sul do Brasil. No dia 20 de janeiro de 1904
chegaram os outros missionários solicitados por P. Lux. Porém, o projeto
educacional não prosperou naquele primeiro momento. A escola ao lado
da igreja São Francisco foi assumida pelos jesuítas e os missionários de
Dehon se espalharam pela região, começando pelas cidades de Brusque e
São Bento do Sul. Em carta ao fundador, datada de 4 de maio de 1904, P.
Lux explica que não havia entre os missionários muito ânimo para dar
início à obra educacional e também entre eles havia poucos
professores63.
O Colégio de Novelda – Espanha
O único colégio fundado nos tempos de Dehon e que permanece
dirigido pela Congregação é o de Novelda, na Espanha. Um sacerdote
chamado Lorenzo Cantó, que depois, em 1923, acabaria entrando para a
Congregação de Dehon, foi quem, em 1920, insistiu para que fosse
criado o colégio em sua cidade natal. Para tanto ele se dispunha a ajudar
financeiramente. Havia uma certa resistência, inclusive de Dehon,
porque ainda não se havia consolidado a primeira fundação em Puente la
Reina, no entanto, a proposta acabou sendo aceita. Em 5 de setembro de
1920 partiram, para Novelda, os primeiros religiosos designados por
Dehon, P. Guilhermo Zicke e Francisco Baumeister. O projeto foi
legalizado civil e canonicamente. No dia 11 de dezembro de 1920,
Mons. Ramón Plaza e Blanco, bispo de Orihuela, aprovou o projeto. A
obra se chamou, inicialmente, «Colégio Franco-Alemão» e progrediu
rapidamente, iniciando seu primeiro ano letivo com 150 alunos64.
As negociações do Colégio de Millau – Aveyron – França
Em 11 de abril de 1922 surgiu a possibilidade de fundar um colégio
em Millau, na França. O pároco local escreveu a Dehon dizendo que o
bispo já estava de acordo65. Em maio daquele ano P. Falleur foi
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AD.B. 102/1, inv. 01147.14.
Um registro histórico e documental da fundação do Colégio de Novelda:
J.A, MUÑOZ BENITO, Historia de la Provincia Española, vol. I, 46-51.
AD.B. 68/2-B, in. 906.01.
269
designado para conduzir as negociações em diálogo com P. Legay,
provincial da província Franco-Belga66. Esta demora a responder foi
porque sua província estava envolvida em muitos projetos naquele
momento, inclusive das missões nos Camarões. Porém, ainda assim
Dehon lhe escreve indicando possíveis soluções para que, dentro de
algum tempo, a Congregação pudesse assumir a obra67. Fixou-se um
prazo de três anos, tempo no qual a Congregação acabou por não assumir
o projeto68. As razões não são muito claras. Uma das possibilidades seria
que em sua resposta ao P. Falleur, em 26 de outubro de 1922, o bispo
tivesse afirmado que os sacerdotes deveriam se dedicar exclusivamente
ao ensino e que não poderia fundar uma escola apostólica69. Sabemos
através do Diário, que Dehon considerava a região da diocese de Rodez a
mais rica de vocações em toda a França70. Além disso, as orientações
apostólicas da Congregação vinculavam a educação da juventude à
formação do clero. Assim, é compreensível que o limite imposto pelo
bispo seria um impedimento grave para assumir a obra.
3. Dehon e o ensino ao interno de sua Congregação
Não é o caso de analisarmos aqui detalhadamente toda a estrutura
formativa da Congregação fundada por Dehon, que exigiria outro olhar
mais qualificado, que ultrapassa os limites de nosso objeto de pesquisa.
Porém, identificamos um vínculo interno ao carisma dehoniano, entre a
educação da juventude e a formação do clero, exigindo que, ao menos,
consideremos brevemente a atuação de Dehon à tarefa de formar os
quadros de pessoal para a sua própria Congregação nascente. Quando,
em outubro de 1881, um antigo colega de seminário, P. Francisco
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66
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70
AD.B. 21/51.
AD.B. 22/ 10E.
Este prazo foi fixado pelo provincial, P. Legay, em resposta à carta de
Dehon. AD.B. 68/1b, inv. 906.02. P. Falleur escreveu ao bispo transmitindo
a decisão da Congregação. AD.B. 68/2 B., inv. 906.08.
AD.B. 68/2 B., inv. 906.08.
NQT XI/1896, 73r-73v.
270
Guilhen, propõe a fundação de um colégio em Montpellier, Dehon
responde: «Nosso fim não é unicamente o ensino. Alguns dos nossos se
dedicam à vida contemplativa, à adoração ao Santíssimo, à reza do
Ofício Divino e ao estudo. Como obras damos preferência à escolas
apostólicas e seminários»71.
De fato, como observamos, foram relativamente poucos os colégios
fundados durante a vida de Dehon. No decorrer do mesmo período, no
entanto, foram fundados 18 noviciados72, 11 escolas apostólicas73, 8
escolasticados74. Portanto, Dehon foi coerente com aquele «præsertim»
do artigo 8 das Constituições de 1906, tradução do «préférées», de seu
complemento autógrafo ao artigo 20 das Constituições de 1885, que já se
encontrava no artigo VII do Texto B, das Constituições de 1881. O
vínculo entre educação da juventude e formação do clero não era apenas
uma expressão jurídica do carisma, mas uma característica apostólica da
Congregação desde os seus inícios.
Dehon não foi apenas o fundador, mas também o primeiro formador
da Congregação, na qualidade de mestre de noviços75. Cahiers Falleur é
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74
75
AD.B. 82, inv. 110.201.
Saint-Quentin (1878-1882 e 1893); Sittard (1883-1938); Beautroux (18871888); Fourdrain (1888-1893); Clairefontaine (1890-1904 e 1920-1940);
Cinqfontaines (1903-1936); Bergen op Zoom (1903-1909); Louvain (19091911); Manage (1907-1911); Brugelette (1911-1946); Asten (1908-1968);
Tervuren (1911-1913); Albino (1911-1913); Albisola (1919-1968);
Edmonton (1919-1924); Beaumont (1924-1928); Puente la Reina (19211922); Novelda (1922-1936). A casa de Brugelette era específica para
vocações adultas. E. DRIEDONKX, «Las cartas de P. Dehon a los
formadores», 169.
Fayet (1882, transferida no exílio para Manage, 1903; Mons, 1907; Thieu,
1919; Blaugies, 1924); Sittard (1887); Clairefontaine (1889); Bergen op
Zoom (1900); Tervuren (1904); Albino (1907); Handrup (1902); Lanaken
(1921); Puente la Reina (1923); Beaumont (1923); Brusque (1924). E.
DRIEDONKX, «Las cartas de P. Dehon a los formadores», 170.
Lille (1884); Roma (1891); Luxemburgo (1895); Louvain (1898); Liesbosch
(1912); Bolonha (1912); Heer (1919); Taubaté (1923). E. DRIEDONKX, «Las
cartas de P. Dehon a los formadores», 169.
Para uma análise mais completa do perfil de Dehon como formador: J.Z.
POLICARPO FERREIRA, «O P. Dehon e a formação», 97-132.
271
um registro precioso do seu projeto formativo. Em suas conferências,
Dehon normalmente parte de um texto bíblico. O Noviciado começa com
um grande comentário sobre as Bem-aventuranças. Ele se mostra um
mestre atento à dignidade e ao valor de seus formandos76, que sabe exigir
a humildade, o empenho e o sacrifício, começando por si mesmo77. Sua
autoridade era natural, marcada pela amabilidade e pela presença em
meio aos formandos. Suas lições eram profundas e bem preparadas,
solidamente fundamentadas, mas tocavam em pontos bastante concretos
do cotidiano78. O centro de sua reflexão e espiritualidade é sempre o
Coração de Jesus. A meta da formação é a configuração ao Coração de
Cristo: «Sejamos, pois, [sempre amáveis] para responder ao espírito da
nossa vocação, para nos assemelharmos inteiramente ao Coração de
Jesus e fazer bater o nosso coração em uníssono com o Seu»79.
A Eucaristia é caminho privilegiado para este processo de configuração.
Dehon a apresenta como «ato culminante do dia»80. Ele convida os
noviços, com insistência, a se dedicarem à vida de oração, como forma
de progredir na perfeição81. Seu aspecto, à primeira vista, marcado por
um ar um pouco distante, logo dava lugar à natural bondade que primava
—————————–
76
77
78
79
80
81
Ele não se apega a detalhes secundários de disciplina e valoriza a liberdade
com elemento da formação: «Em certos noviciados o recreio passa-se à volta
do Mestre de noviços e se deve pedir permissão de joelhos para falar. Penso
que Nosso Senhor não nos exige essa austeridade». CFL III, 154. Um
detalhe interessante de suas conferências é que ele normalmente se inclui no
discurso, por exemplo, «Sejamos, pois, modestos». CFL I, 74. Isto
demonstra um profundo respeito pelo interlocutor. Para uma análise desta
característica típica do discurso dehoniano: J.Z. POLICARPO FERREIRA, «O P.
Dehon e a formação», 99.
CFL I, 58-67. Falleur afirma, referindo-se a Dehon: «Começará ele mesmo e
pede uma penitência que minha memória não esquecerá». CFL I, 67.
«Um religioso que ama o silêncio, nota-se até no recreio: não grita, não ri
imoderadamente. Também há o silêncio da ação, por exemplo: não bater as
portas. Em resumo, o silêncio, com a caridade e os três votos, constitui o
essencial da vida religiosa». CFL VI, 10.
CFL I, 8. O texto foi completado pelo editor de Cahiers Falleur.
CFL III, 62.
CFL III, 32-44.
272
pela acolhida e compreensão. A caridade estava no centro de suas
palavras e ações: «Com freqüência os religiosos se distinguem pela cor
do seu hábito; o hábito da nossa alma diante de Deus deve ser o amor e,
se forem precisos dois, o segundo seria a compaixão. Sem isso não existe
o Oblato; é absolutamente necessário»82. Por todas estas razões, Dehon
começou a ser chamado por seus formandos de Trés Bon Père83.
Apesar desse perfil de formador, Dehon pouco escreveu sobre
formação. A documentação mais rica e abundante encontra-se na
correspondência com os formandos e formadores de sua Congregação84.
Jesus é sempre apresentado como modelo para «formar um homem com
coração»85. A configuração a Cristo acontece no progresso que vai da
vida natural, submetida ao pecado; passando pela vida cristã, possível ao
homem espiritual; e chega à «vida interior que é a união com Nosso
Senhor, é a vida de Jesus em nós»86. Em uma carta aos noviços da
Congregação, ele diz:
—————————–
82
83
84
85
86
CFL I, 35. Esta conferência foi feita aos noviços no domingo, dia 4 de
janeiro de 1880. Na conferência do dia 9 de janeiro ele fez a aplicação deste
princípio à vida comunitária: «São, sobretudo, os irmãos na vocação que
devem ser especialmente queridos e é o Espírito Santo quem estabelecerá
entre nós essa caridade, essa caridade que nos fará amáveis, previdentes,
tolerantes, compassivos para com as tentações e provas dos nossos
confrades». CFL I, 39.
A expressão aparece pela primeira vez nos Cahiers Falleur somente no
registro de uma conferência feita por Dehon em 4 de dezembro de 1885,
quando já não era mestre de noviços. CFL VI, 7.
Grande parte dessa correspondência, que foi resgatada, ainda não foi
publicada e encontra-se em fase de classificação pelo Centro Generali Studi
SCJ, em Roma. Um primeiro levantamento da correspondência de Dehon
com formadores e formandos: E. DRIEDONKX, «Las cartas del P. Dehon a los
formadores y formandos de su Congregación» in Studia Dehoniana 38
(1995). Utilizando parte dessa correspondência há um perfil de Dehon
formador traçado com muitos detalhes e fundamentação por: J.Z. POLICARPO
FERREIRA, «O P. Dehon e a formação».
OSC IV, 278.
OSP 5, 227. Um levantamento deste princípio formativo na correspondência
de Dehon: J.Z. POLICARPO FERREIRA, «O P. Dehon e a formação», 110-116.
273
Formai-vos na vida de união com Jesus. Existe uma união que depende da
nossa vontade e outra que é graça gratuita. A primeira é preparação para a
segunda. A união sobrenatural adquire-se pela consciência, fidelidade às
pequenas coisas, humildade, doçura. Se soubessem que grande graça é a vida
de união! É a pedra preciosa que é preciso comprar por um grande preço (cf.
Mt 13,45). Passados três meses de noviciado, todos os noviços deviam atingila, se forem realmente generosos87.
Um dos meios formativos para atingir esta vida interior é a Direção
Espiritual. Esta foi uma prática constante de Dehon durante toda a sua
vida e um conselho insistente aos seus religiosos88. Ele percebe vê a
importância da Direção Espiritual para os que estão no processo
formativo inicial e também para os que já se dedicam à tarefa ministerial:
Podemos dizer que a direção espiritual é útil sobretudo em três coisas:
corrigir os nossos defeitos, guiar-nos no estudo e na prática das virtudes e
controlar os nossos caminhos interiores. Mas o seu primeiro fruto é corrigir
os nossos defeitos. Para isso é evidentemente necessário que sejamos
bastante abertos com o nosso diretor89.
Sobre este «guiar-nos no estudo» é interessante uma carta endereçada
a P. Grison, em que Dehon recomenda: «Ajude os escolásticos nos seus
estudos de teologia. Faça para cada um deles, um pequeno plano de
estudos»90. No capítulo das Constituições de 1885, dedicado aos
professores, havia uma regra que pedia que cada um prestasse contas,
«com simplicidade e humildade», ao superior do uso do tempo e dos
estudos que havia feito91.
Dehon conhecia bem as deficiências formativas do clero francês de
seu tempo92. Acreditava que a formação do clero poderia contribuir para
a restauração da sociedade e para o «advento do reino do Coração de
—————————–
87
88
89
90
91
92
AD.B. 18/6.12.28, inv. 214.28. escrita no início de 1922.
OSP 7, 150. Para uma revisão e sistematização da Direção Espiritual nas
cartas de Dehon: J.Z. POLICARPO FERREIRA, «O P. Dehon e a formação»,
117-121.
OSP 5, 279. Grifo nosso.
AD.B. 24/8, inv. 500.05.
CST (1885) Capítulo XII, nº 14.
OSC IV, 563-570.
274
Jesus»93. Ele afirmava que os novos tempos exigiam sacerdotes que
fossem «doutores, apóstolos e santos»94. Sintetizou essa visão em sua
participação no Congresso Sacerdotal de Bourges, em 1900, quando
argumentou que o sacerdote deve ser «um homem de fé e de estudos, de
obras, de zelo e de prudência»95. Mas essa já era a sua visão no início do
seu tempo de vigário paroquial em Saint-Quentin, quando fundou o
oratório Diocesano, em que os sacerdotes se reuniam para o estudo, a
oração e a atualização pastoral96.
Também ao interno de sua Congregação, Dehon insistia no cuidado
para com a dimensão intelectual da formação97. Isto pode ser percebido
principalmente em uma Carta Circular que enviou a toda a Congregação
no dia 31 de março de 189898. Ele evoca os motivos que o levaram a
fundar a Congregação:
Sinto-me autorizado a relembrar um dos pontos mais importantes para
aqueles quem por primeiro se reuniram sob o nome de Sacerdotes do Coração
de Jesus. Assumindo este nome, eles buscavam uma doutrina espiritual
segura e uma formação de mente e de coração mais completa do que aquela
que é possível ordinariamente entre o clero diocesano99.
Dehon admite que as dificuldades do início obrigaram a sacrificar
parte deste ideal. Porém, entende que é tempo de recuperar esta
dimensão e indica como isto pode ser cultivado do postulantado aos
primeiros seis anos de ministério sacerdotal. O postulante deveria ser
examinado sobre a língua latina e a literatura nacional. Somente poderia
seguir seu itinerário formativo se passasse neste exame, que seria
conservado em uma espécie de «histórico» do formando. Os dois anos de
noviciado deveriam «visar especialmente educar e formar o coração;
orientar e modelar a vontade. Mas como «as idéias movem a ação», o
—————————–
93
94
95
96
97
98
99
OSC III, 207.
OSC IV, 573.
OSC IV, 573-579.
Algumas atas destas reuniões, entre 1874 e 1877, encontram-se preservadas
em: AD.B. 32/3.1.
J.Z. POLICARPO FERREIRA, «O P. Dehon e a formação», 122-125.
L. DEHON, «Les Études», in Lettere circolari, 112-121.
L. DEHON, «Les Études», 111-112.
275
noviço deveria se dedicar, também, aos estudos de autores de ascética e
mística100. Para averiguar o aproveitamento destes estudos, Dehon
determina que fizessem exames trimestrais. O curso de filosofia deveria
ter a duração de dois anos e o de teologia101, quatro. Sugere aos
estudantes que aproveitem as férias para estudar as ciências naturais e
completar assim os estudos eclesiásticos102.
Uma diretriz formativa interessante de Dehon é referente aos jovens
sacerdotes. Em sua Carta Circular, define como regra que, após a
ordenação sacerdotal, durante seis anos, antes do retiro anual, os jovens
sacerdotes deveriam passar por um exame. Encoraja os sacerdotes com
mais idade que ajudem os mais jovens a «reverem as matérias
estabelecidas». O Superior local deveria colocar à disposição os livros
necessários. O exame deveria ser público, a partir de um programa
previamente divulgado e discutido. A forma seria oral, com duração de
meia hora. Se alguém fosse dispensado por justa razão, permaneceria em
uma lista até fazer os exames. Constatada como causa a má vontade por
parte do jovem sacerdote, este deveria ser reencaminhado para estágio
em uma casa de estudos103. Dehon termina sua Carta Circular
explicando:
O objetivo destes exames é conservar o zelo pelos estudos teológicos. Por
isso, nem os exames precedentes, nem os graus acadêmicos são motivo de
—————————–
100
101
102
103
L. DEHON, «Les Études», 114-15. Sugere também que os noviços
memorizem textos bíblicos de Mateus, João e Paulo, além de estudar os
Salmos do ponto de vista da espiritualidade, «segundo a possibilidade de
cada um». Ibidem, 114-115.
O curso de teologia deveria compreender a Teologia Dogmática, Moral,
Direito canônico, Exegese geral e particular, Liturgia, História da Igreja «e
um curso especial de pastoral». Os estudantes não poderiam ser admitidos
aos votos perpétuos antes de completar dois anos de teologia. A ordenação
seria somente no final dos estudos. L. DEHON, «Les Études», 116-117.
L. DEHON, «Les Études», 116-117.
L. DEHON, «Les Études», 118-119. Pelo teor da Carta Circular de Dehon,
percebe-se que havia grande resistência em relação à esta rígida disciplina de
formação permanente.
276
legítima dispensa; ao contrário aqueles que têm a vantagem de estudos mais
completos, devem se mostrar mais solícitos104.
Em suas cartas aos formadores que também ocupam a função de
professores em seminários ou escolas apostólicas, Dehon normalmente
se restringe ao âmbito dos conselhos e estímulos de natureza espiritual,
sem muitas orientações de natureza didático-pedagógica. Porém,
queremos destacar, ao final deste capítulo, sua correspondência com P.
Paris − que possuia um temperamento difícil e era temido pelos alunos −
para o qual a orientação de Dehon ultrapassa o nível espiritual. Na carta
de 4 de abril de 1905, Dehon escreveu: «Vá a Clairefontaine. Decidimos
que não terá outra função que dar aulas. Não interfira na direção nem se
ocupe do cuidado com seus confrades. Você não tem jeito para isso. Não
repreenda ninguém. Conserve a caridade e a doçura para com todos»105.
É um estilo categórico que não encontramos normalmente nos escritos
de Léon Dehon. Em 1908, P. Paris foi nomeado professor em Louvain.
Na carta de 17 de setembro de 1912, Dehon o nomeou professor de
Moral, com algumas orientações muito claras:
Procure ser muito prático. [...] Explique bem o Manual Génicot, sem grandes
digressões tomistas ou outras. [...] Recolha um bom número de casos de
consciência para poder dar alguns exemplos relacionados ao curso.
Principalmente nada de alterar-se. Paciência e suavidade. Defenda-se dos
seus nervos. Seja muito correto no relacionamento com os alunos. Nada de
palavras ásperas. Esqueça os pequenos defeitos do passado. Desde o primeiro
dia, diga aos alunos que fará um curso prático, simples, para que possam
preparar-se para o exame das ordenações. Sei que posso contar com sua
docilidade. A Virgem Maria e São José o ajudarão106.
Parece que P. Paris não observou as recomendações, porque um mês
depois Dehon voltou a escrever-lhe nestes termos:
Atenção. Os alunos dizem que o P. Paris vai muito rápido e eles não
conseguem acompanhar. Cuidado para não arruinar as coisas. Os professores
—————————–
104
L. DEHON, «Les Études», 120-121.
AD.B. 20/8.1.
106
AD.B. 20/7.4.
105
277
são para os alunos e os alunos para os professores. Vá devagar. [...] Seja
vigilante com seu temperamento [...] A gentileza é a flor da caridade107.
Apesar de todas estas orientações, a situação não mudou e Dehon
acabou por transferir P. Paris, retirando-o da função de professor. Este
episódio denota a importância do formando e a pedagogia do concreto
estimada por Dehon. Além disso, ele valoriza a cordialidade das relações
pedagógicas como um elemento fundamental do processo formativo.
—————————–
107
AD.B. 20/7.4.
278
EPÍLOGO
Deus não sabe o que fazer
com os nossos conhecimentos
e com as nossas obras
se não tiver o nosso coração.
citado
LÉON DEHON
NQT III/1886, 35
por JOÃO PAULO II
AAS 77 (1985) 1083
CAPITULO IX
O conceito de Educação Integral em Léon Dehon
Nesta capítulo faremos o ensaio de uma síntese da visão educacional
de Léon Dehon, em torno da idéia de Educação Integral. Não há em sua
obra uma teoria sistematicamente organizada a respeito do assunto.
Porém, a leitura situada de seus discursos permite deduzir um princípiofonte que pode nos ajudar a repensar a educação em nossos dias. Dehon
conseguiu encantar seus alunos. Sua postura de educador ficou marcada
em suas vidas. Seus acertos merecem ser revisitados. Veremos sua
pedagogia do concreto e sua educação afetiva, sua síntese entre ternura e
vigor, inteligência e coração, pessoa e sociedade, simplicidade e
profundidade, mística e militância, ciência e fé, ser e fazer, humor e
amor, local e universal. Seu discurso pode ser atualizado, utilizando a
reflexão de tantos autores que pensaram a Educação Integral. Nosso
propósito, neste capítulo é, a partir de Dehon, esclarecer alguns
fundamentos filosóficos desta forma de conceber a educação.
Após ensaiar a síntese do ideário pedagógico de Léon Dehon,
verificaremos alguns referenciais teóricos notáveis sobre Educação
Integral. Este procedimento nos permitirá avançar na construção deste
conceito, agregando a ele a contribuição de Léon Dehon. Com esta
«visão educacional» esclarecida e fundamentada, estaremos mais do que
preparados para formular a «missão institucional» de uma Instituição de
Ensino Superior que pretenda inspirar-se naquela visão.
281
1. O ideário pedagógico dehoniano
Não encontramos na obra de Dehon uma síntese organizada de sua
visão educacional. Ele mesmo não era um escritor de tratados ou teórico
da educação. Era, simplesmente, um educador que refletia sobre sua
prática pedagógica. Seus discursos nasciam da realidade e voltavam para
ela com um potencial transformador. Suas preocupações principais eram
defender o ideal da educação segundo o ideal cristão e encantar seus
alunos. Percebemos, ao longo de nossas análises dos contextos e dos
textos, que um multifacetário esforço de sínteses pedagógicas fazem de
Dehon uma fonte importante para pensar a elaboração do conceito de
Educação Integral. Ele mesmo não a pensou nestes termos. Porém, o
conteúdo de sua vida e de suas reflexões apontam para esta direção. Um
educador que ainda aos oitenta anos de vida conseguia encantar seus
alunos merece o olhar atento do pesquisador atual, que pretende
desvendar os segredos de como «reencantar a educação».
Procuramos agregar esta síntese em torno de alguns núcleos que nos
pareceram mais relevantes dentro do pensamento pedagógico dehoniano.
Este processo facilitará também avaliação deste pensamento e sua
atualização. A globalidade com que abordamos a obra de Léon Dehon
nos oferece segurança para fazer esta elaboração sintética, minimizando
o risco de deturpar o pensamento do próprio autor. Este é um risco real
que consideramos desde o início desta pesquisa. Assim, tivemos o
cuidado acadêmico de ir direto às fontes, em uma abordagem
fenomenológica, que permitiu entrar em contato com o núcleo do
pensamento educacional de Dehon da maneira como ele próprio se
manifestou em suas várias angulaturas.
A Educação Integral e a abertura para o transcendente
A síntese da visão educacional de Léon Dehon, elaborada pelo seu
aluno e seguidor, Albert Delloue, aponta para esta idéia geradora de toda
a visão dehoniana: a crítica da pedagogia que «não considera mais do
que a vida neste mundo que passa, esquecendo o nosso destino eterno e
os meios para chegar lá» e a afirmação de uma visão alternativa
fundamentada «na idéia religiosa levada todo momento à prática»1.
—————————–
1
A. DELLOUE, «Discours», 21.
282
Portanto, estamos diante de uma visão educacional apoiada na
antropologia cristã, que considera a pessoa como um ser aberto ao
transcendente. Uma educação que queira considerar a pessoa como um
todo não poderia ignorar esta dimensão, sob o risco de mutilar o
educando.
Esta idéia aparece em todos os discursos dehonianos como uma linha
transversal. Seu discurso programático afirma isso com todas as letras,
alicerçado na premissa platônica de que «seria loucura para uma criatura
mortal preocupar-se mais desta breve existência que da eternidade»2.
Dehon defende que a educação, segundo o ideal cristão, tem como
objetivo levar o ser humano à perfeição «total e sobrenatural» nesta vida
e na outra3. Ele critica as visões que reduzem o ser humano à dimensão
física, política ou econômica. Critica, também, a visão religiosa como
uma hipótese etérea e sem compromisso ou concretude histórica. Sua
pedagogia tem a religião como elemento constitutivo, porém agregando
a preocupação pelo desenvolvimento físico, científico, filosófico, ético,
social, político, afetivo, artístico etc. Segundo sua visão, a religião
contribui para requalificar cada uma dessas dimensões e garantir uma
educação que realmente atinja o homem como um todo4.
Derivam-se deste princípio fundamental outras reflexões de Dehon,
como é o caso do diálogo entre política e religião, ou harmonia entre
ciência e fé. Mas, ele não tem uma visão teocrática da sociedade. Passa
de monarquista fervoroso para convicto defensor da democracia. Com
alguma dificuldade, assimila a separação entre Igreja e Estado. Sua visão
educacional não chega a propor a educação cristã como padrão para toda
a sociedade. No entanto, defende o direito das famílias de escolherem
este tipo de educação para seus filhos. Há uma clara defesa da educação
religiosa. Entretanto, ao pensar a sociedade como um todo, Dehon critica
a «Escola Neutra», afirmando-se cético com relação à possibilidade real
da neutralidade confessada pelo positivismo, base filosófica da reforma
de Ferry. Ele não acredita que seria realmente possível separar moral e
religião. Não acredita na educação sem Deus.
—————————–
2
3
4
PLATÃO, «Fedon», 68 e 107 D. Também em «Das Leis», 788. Apud: OSC
IV, 277.
OSC IV, 276.
OSC IV, 277-278.
283
Esta é uma reflexão mais do que atual que merece toda atenção. Seria
possível prescindir da religião ao pensar a Educação Integral? Se
concordamos com Dehon em que a dimensão transcendente é inerente ao
ser humano, e que todo sistema educacional parte da idéia que se tenha
de ser humano perfeito, então seria o caso de perguntar qual o lugar da
religião, dentro um sistema de Educação Integral? Seria possível inserir a
Educação Religiosa na Escola Pública sem aplicar as fórmulas da
confessionalidade, nem cair na prática insípida da proposta positivista? É
possível valorizar, no ambiente escolar, a dimensão religiosa
confessional dos alunos, sem cair no proselitismo? Este é um campo de
mil perguntas ainda sem respostas definitivas.
Pedagogia da Dádiva
Dehon, como sacerdote católico, acredita que a «graça divina» educa a
humanidade5. Esta tese de natureza bíblico-teológica, aparece logo no
início de seu livro sobre educação. Ele não desenvolve muito este
princípio, nem volta com freqüência a insistir nele. Mas, poderíamos
intuir aqui o germe de uma Pedagogia da Graça, que tem um certo
parentesco de sentido com aquilo que alguns autores contemporâneos
começam a chamar de «paradigma da dádiva»6. Poderíamos, então,
pensar uma «Pedagogia da Dádiva». Neste caso, em um contexto de
diálogo transdisciplinar, a teologia teria uma palavra a dizer à pedagogia.
Sabemos que a Teologia da Graça é um dos tratados teológicos
fundamentais, que ocupou a vida de filósofos-teólogos como Agostinho
– conhecido como «Doutor da Graça» – e Santo Tomás de Aquino.
Esta intuição dehoniana ultrapassa a clausura da epistemologia
teológica. A «graça», o «carisma», o «charme», a «gratuidade» ou a
—————————–
5
6
Trata-se do texto da Carta de Tito: «Apareceu a graça de Deus que veio nos
educar» (2,11-12).
Cf. N.J. MACHADO, «A universidade e a organização do conhecimento: a
rede, o tácito e a dádiva». O autor se apoia nas análises sobre o dom em
sociedades pré-mercantis feitas por Marcel Mauss, para concluir que o
conhecimento não pode ser aprisionado nos paradigmas de valor e troca de
mercado. Há sempre uma dimensão «dadivosa». Para aprofundar essa
questão cf. A. CAILLÉ, «Nem holismo nem individualismo metodológicos.
Marcel Mauss e o paradigma da dádiva».
284
«dádiva», pertencem ao mesmo campo semântico. A funcionalização das
relações pedagógicas, hoje, não difere muito da que vigorava no tempo
de Dehon, que assistia a consolidação da industrialização. O sistema
escolar era utilizado para preparar pessoas para o mercado de trabalho.
Muitos, como hoje, estavam convencidos de que para isso bastaria um
breve curso técnico. Dehon critica esta educação funcional. Para ele,
educar é edificar a pessoa humana como um todo. A gratuidade
educacional está no centro deste conceito. Uma Pedagogia da Dádiva,
inspirada na idéia de que Deus se auto-comunica dando de si mesmo,
gratuitamente, faz repensar uma educação gratuita para todos. Esta visão
de educação integral como ensino público gratuito poderia ser
aprofundada nas dimensões da dádiva. Ensino gratuito não seria somente
aquele no qual não é necessário pagar, mas aquele em que a autocomunicação é um «dom-de-si». Isto interfere, por exemplo, na noção
que temos de professor. Há um primado do ser sobre o fazer; da dádiva
sobre a função.
Naturalmente, estamos diante de um novo paradigma, alternativo à
visão economicista do neoliberalismo7. Novas formas de sociologia
vêem no «paradigma da dádiva» uma alternativa à proposta
individualista ou holista. A ênfase desta forma de ver as coisas está
justamente na relação, na dádiva gratuita. Supera-se o utilitarismo típico
da modernidade. As pessoas passam a ter valor pelo que são e não
apenas pelo que produzem. A sociedade é pensada em rede. Aplicando
este paradigma para o campo da educação, poderíamos começar a
elaborar uma Pedagogia da Dádiva.
Pedagogia da Cordialidade
Vivemos em um tempo em que a «Pedagogia do Afeto» soa como
algo novo, que ultrapassa o intelectualismo cientificista da modernidade.
Dehon, já no século 19, dizia que é preciso educar com o coração. É
possível que esta tenha sido sua meta educacional mais clara. Ela aparece
claramente quando Dehon coloca o sermão sobre o Sagrado Coração de
Jesus como conclusão de seu livro sobre educação. O Coração de Jesus é
o modelo da perfeição humana. Para Dehon, este é o princípio e o fim da
—————————–
7
Cf. J.T. GODBOUT, «Introdução à dádiva».
285
educação. Ele fez a síntese entre a tarefa de educar e a popular
espiritualidade do Coração de Jesus, típica de seu tempo. Buscou esta
síntese entre inteligência e coração, entre a razão e a sensibilidade. Seu
modelo de ser humano perfeito era representado na típica imagem de
Jesus Cristo com o coração à mostra. No Colégio São João havia uma
grande imagem do Sagrado Coração de Jesus em uma das escadarias da
ala que pegou fogo. Dehon interpretou como um «sinal de Deus» o fato
de a imagem não ter sido tocada pelas chamas. Este pensamento era
próprio de seu jeito de fazer a leitura simbólica da vida. Educar, para ele,
seria restaurar o coração de cada aluno tendo como modelo a imagem do
Coração de Jesus. É isto o que Dehon quer dizer com frases como:
«Educar um cristão é formar um homem com coração, um homem capaz
de sacrifício e dedicação, um homem livre do jugo do egoísmo»8.
Acreditava que cada pessoa nasce com uma tendência para o mal, que a
teologia de seu tempo chamava de concupiscência, fruto que restou do
«pecado original». A educação teria a finalidade de oferecer condições a
cada pessoa na luta contra esta tendência, chegando a ser alguém capaz
até de se «sacrificar» pelo bem do outro. Esta é a noção que Dehon tem
de «amor». É a disponibilidade para com o próximo. É o contrário do
egoísmo. Um «homem com coração» é uma pessoa capaz deste tipo de
solidariedade. Acredita que as virtudes da fé, esperança e caridade,
abrem a inteligência e o coração para este ideal.
Sua atenção, presença e afeto para com os antigos alunos mostram que
Dehon procurava cultivar em si mesmo a Pedagogia da Cordialidade. Em
primeiro lugar, ele sempre colocava a empatia com os alunos. Somente
em seguida dava atenção aos conteúdos ou mesmo às estruturas
necessárias para manter um Colégio. Ele parte sempre de um forte
compromisso inter-pessoal. Já no final de sua vida, ao avaliar a razão do
sucesso pedagógico do Colégio São João, destaca o «clima de família e
os fortes vínculos afetivos que eram criados»9.
Outra forma que Dehon encontrou de afirmar a mesma Pedagogia da
Cordialidade é o estímulo a uma formação do caráter. Para ele, as
virtudes são uma parte necessária do currículo. É preciso educar a pessoa
como um todo, não apenas instrui-la ou informá-la. Aliás, temos aqui
—————————–
8
9
OSC IV, 278.
L. DEHON, «Saint-Jean avant la Guerre», 9-12.
286
uma curiosa afirmação da Educação Integral. Para Dehon, o coração não
é apenas um músculo, mas tem todo um significado simbólico, tirado das
páginas da Bíblia, onde esta imagem é utilizada para se referir ao ser
humano como um todo. A plenitude humana, na Bíblia, é expressa pela
palavra «coração» e seus correlatos semânticos. Quando Dehon coloca o
Coração de Jesus como modelo do ser humano perfeito, não está
pensando apenas na categoria afetiva, mas na integração de todas as
dimensões humanas. Por essa razão, propor o «coração» como modelo
pedagógico é mais do que sugerir relações afetuosas e «cordiais» com os
alunos. Este conceito é fundamental, porém educar com o «coração» é,
acima de tudo, considerar a pessoa humana em sua totalidade. A
Pedagogia da Cordialidade é, portanto, o que hoje chamamos de
Educação Integral.
A força restauradora da educação
Dehon tem saudade da França cristã. Nasceu no período da
restauração, usufruindo da «festa imperial» que garantiu décadas de
aliança entre a Igreja e o Estado. Como muitos católicos de seu tempo,
sonhava com a reparação como espiritualização do ideal político que,
após a perda dos Estados Pontifícios e o avanço da Terceira República,
já era distante demais. Porém, de tudo isso, restou um princípio
pedagógico apoiado na convicção da força restauradora da educação.
Dehon chega a estudar, cuidadosamente, os males da sociedade de seu
tempo para propor os caminhos para a restauração. A educação era uma
das vias pela qual ele acreditava ser possível a construção de uma nova
sociedade.
Este aspecto aparece com bastante evidência em seus discursos aos
antigos alunos, nos quais a tônica era sempre um convite à militância.
Dehon não acredita em uma religião prisioneira das sacristias e das
linguagens herméticas. Educar, em seu modo de pensar e agir, é exercitar
a capacidade de mudança. Vemos que os dois eixos neste esforço de
restauração são sempre a «pessoa» e a «a sociedade». Vemos nisto uma
importante síntese que precisa ser considerada na Educação Integral,
para não cair em reducionismos como o individualismo e o coletivismo.
Dehon constantemente situa a pessoa em seu contexto institucional. Sabe
que um indivíduo «restaurado» através da educação pode ser corrompido
287
pela sociedade se esta não for igualmente educada. Portanto, a dimensão
social é parte integrante do indivíduo.
Pedagogia da presença
A análise histórica que fizemos nos revelou que Dehon sempre
procurou fazer-se presente junto aos seus alunos, mesmo após o tempo
da escola formal. Faz-se presente nas assembléias anuais dos ex-alunos
até quase o final de sua vida, com intensa regularidade. Uma leitura de
sua correspondência poderia mostrar mais detalhadamente o modo como
ele estabelecia vínculos estáveis com seus educandos e suas famílias10.
Em testemunho, o ex-aluno, Guilhaume Crinon, destacou a capacidade
de Dehon de fazer-se presente no meio dos educandos.
Outra evidência da Pedagogia da Presença, por contraste, é expressa
no modo como Dehon critica o abandono dos filhos, dos educandos, no
discurso inédito que analisamos. Em sua concepção, esta era a forma
perfeita de perverter a educação de um jovem. Considera o abandono
como uma forma típica de violência e crueldade educacional. Em
contrapartida elogia os pássaros que se fazem presentes na vida de seus
filhotes.
Pedagogia da ausência
Pode parecer contraditório com relação ao princípio pedagógico
anterior, mas, na verdade, são pedagogias complementares que
encontramos em Dehon e que, juntas, formam o que denominamos de
«princípio de subsidiariedade pedagógica». No Discurso dos Pássaros a
águia é elogiada por saber a hora certa de deixar seus filhotes partirem
sozinhos para a caça. Percebe-se aqui, a sensibilidade do educador que
sabe o momento de se fazer presente, mas sabe, também, a hora em que
sua presença pode ser prejudicial ao seu educando.
—————————–
10
Somente agora o Centro de Estudos dos Dehonianos, em Roma, está
classificando a farta correspondência de Léon Dehon. Já foram encontradas
cerca de 5.000 cartas que aos poucos estão sendo editadas. Um pouco deste
trabalho já pode ser acessado em: http://www.knowhowsphere.net <acesso
em 06.01.2007>.
288
Em sua vida, Dehon viveu intensamente a Pedagogia da Ausência no
momento de passar a direção do Colégio São João a Albert Delloue. Na
verdade, sua sensibilidade mostrava que o candidato anterior, Charles
Mercier não tinha condições de assumir esta tarefa. Conforme deixa
claro em seu discurso de 1927, o próprio Delloue não acreditava ser
capaz de substituir uma pessoa com tanto carisma quanto Dehon. Mas,
assume a direção, mesmo em meio às dificuldades.
Quando surge a crise financeira, Léon Dehon exercita novamente a
Pedagogia da Presença, criando a Sociedade Imobiliária, resolvendo a
situação com a ajuda dos antigos alunos. O Colégio São João permanece
até hoje em atividade em Saint-Quentin, sobrevivendo por tantos anos
apesar da ausência de seu fundador. Não conhecemos muitas «empresas
familiares» que resistem à segunda ou terceira gerações. Dehon
encontrou uma «fórmula» de gestão para que seu projeto permanecesse
vivo mesmo após seu desaparecimento.
A síntese entre ternura e vigor
Esta é uma das mais importantes e freqüentes sínteses que captamos
no estudo dos textos educacionais de Dehon. O «Discurso dos Pássaros»
a apresenta com todas as cores e matizes. O vigor da águia é equilibrado
com a ternura do beija-flor. Porém já havíamos identificado esta síntese
desde o início de sua vida, ao assimilar o vigor intelectual de seu pai e a
ternura mística de sua mãe. O mesmo acontece no modo como Dehon
assimila de seus dois primeiros mestres, o vigor administrativo de P.
Dehaene e a bondade pedagógica de P. Boute.
Em seu discurso sobre o caráter, Dehon busca argumentos bíblicos e
filosóficos para demonstrar que uma pessoa bem formada é aquela que
tem a capacidade de colocar em harmonia a sensibilidade a força, a
ternura e o vigor. Vê em Jesus Cristo o modelo mais perfeito desta
síntese: «que uniu a ternura mais suave com a força mais triunfante»11.
Pedagogia do concreto
Dehon normalmente não partia de princípios abstratos. Seu método de
reflexão estabelecia um círculo hermenêutico em que a realidade
—————————–
11
OSC IV, 445.
289
concreta era o princípio e o fim. A abstração fazia parte deste círculo
apenas como um meio. Em seu contato com os alunos era conhecido por
sua simplicidade e objetividade. O discurso sobre o estudo da geografia é
um dos exemplos mais típicos, em que Dehon exercita a Pedagogia do
concreto, através de seu «laboratório do imaginário». Ele conduz os
alunos aos mais diferentes lugares do mundo, com seu relevo e história,
destacando o sentido de tudo o que deve encantar os olhos e preencher o
coração.
Outra idéia de Dehon, que poderia ser situada neste contexto, é a
convicção de que as lições teóricas não são suficientes. É preciso educar
por meio da «força restauradora da palavra e do exemplo»12. O ditado
francês com que termina o «Discurso dos Pássaros» sintetiza, de modo
genial, esta convicção: «A lição é um bom começo, mas apenas o
exemplo leva à plenitude». Dehon, em sua própria vida, sempre
valorizou a síntese entre teoria e prática.
Educar a partir do compromisso
Outra nuança que destacamos na Pedagogia do Concreto de Dehon é
sua metodologia de educar a partir do compromisso. Suas idéias são,
invariavelmente, engajadas. Reflete a partir de um compromisso com a
transformação da realidade. Do mesmo modo como critica a «Escola
Neutra», Dehon poderia criticar também uma ciência que acreditasse ser
possível total «neutralidade» ao captar o objeto. O resultado,
normalmente, é um conhecimento sem sabor e, muitas vezes, sem
utilidade. Dehon prefere o compromisso. Seu olhar é situado. Não
esconde seus juízos de valor. É sincero e aberto em suas afirmações.
A centralidade do educando
Percebemos que dificilmente seus discursos insistem na questão dos
conteúdos, dos currículos, das ementas, dos programas. Não acredita,
tampouco, em uma ótima infra-estrutura para resolver tudo. Para Dehon,
o protagonista, do drama educacional é sempre o aluno. Nele, Dehon
investe toda a sua reflexão.
—————————–
12
Ibidem, 278.
290
Seu segredo era o vínculo pessoal e forte que estabelecia com cada
aluno. Inspirado na proposta de Charles Rollin, partia do «estudo do
caráter» de cada educando para saber como melhor conduzi-lo. Portanto,
nos vemos diante de um modelo de educação personalizada. Dehon
sempre procurava valorizar e promover o outro. Era de uma escuta muito
atenta. Por essa opção pessoal muitas vezes foi criticado por outros
professores que preferiam o tradicional método da disciplina e da
palmatória. Charles Mercier não foi capaz de conduzir o Colégio São
João através deste modelo de pedagogia tradicional. Porém, Delloue, que
captou o segredo pedagógico de Dehon, apesar das dificuldades
financeiras, repetiu o êxito do fundador.
Outra evidência existente nesta centralidade do educando é certa
didática construtivista que encontramos nos discursos educacionais de
Dehon. Além de ser especialista em ouvir as pessoas, era capaz de
interpelá-las por meio de perguntas. Hoje compreendemos que uma
pergunta estimulante e inteligente do professor pode trazer mais
benefício que uma resposta completa. Dehon, no «Discurso aos
Pássaros», revela este seu método de interpelar o interlocutor, fazendo-o
praticamente participar do discurso. De qualquer modo este
procedimento estimula o engajamento do ouvinte. Não estamos diante de
«lições mortas». Dehon ensinava «com vida e com a vida».
Atenção ao local e ao universal
A pedagogia de Dehon contém esta dupla atenção. É atento ao
particular e ao universal. Esta é uma importante síntese para a Educação
Integral. Nossos referenciais, muitas vezes, são apenas de valor
universal. O mundo globalizado estimula este tipo de visão. Porém,
estamos situados concretamente na cidade, no bairro, na casa, no corpo.
Dehon estuda sua aldeia mesmo tendo o raro privilégio, para sua época,
de conhecer praticamente o mundo inteiro. Seu discurso sobre a
«geografia estética» é um vôo cósmico que leva a imaginação a alcançar
os lugares mais distantes do universo. É neste sentido que fala de
«laboratório do imaginário»13. Logo em seguida, seus discursos sobre o
Departamento de l’Aisne, ou sobre a história de Saint-Quentin, fazem o
aluno voltar sua atenção ao ambiente mais próximo, à sua região, à sua
—————————–
13
Cf. OSC IV, 423
291
cidade. Chega mesmo a questionar o porquê da história local não fazer
parte dos programas de ensino14.
A (m)paternidade «espiritual» do professor
Esta convicção dehoniana é praticamente mística. Ele acredita que o
professor que, de fato, estabelece com o educando um vínculo
pedagógico integral, passa «sua alma» para a «alma do aluno»15. É assim
que ele comunica o bem, o belo e o verdadeiro. Sabemos como são fortes
as marcas deixadas por uma ótima ou por uma péssima aula. Bons e
maus professores são igualmente inesquecíveis. Os medíocres são,
simplesmente, apagados da memória do aluno. Dehon compara o
magistério a uma espécie de sacerdócio. Ensinar seria mais do que uma
profissão. Para ele é uma missão.
Reencantar a educação
Considerando o resultado prático da pedagogia de Dehon que tivemos
oportunidade de verificar em seus antigos alunos, vinculados até mesmo
durante a primeira Guerra Mundial, chegamos à conclusão de que suas
idéias e convicções deram resultado. Seu método educacional. Ele
encantou seus educandos. Soube reencantar a educação. Simplesmente
ignorou as pedagogias do medo, do castigo ou do estímulo por meio de
prêmios.
Seu otimismo e esperança eram permanentes estímulos para
professores e alunos do Colégio. É célebre a sua profissão de fé, em
1895: «Nós cremos em dias melhores»16. Na mesma ocasião, profetizou:
«Em uma palavra, o que é cristianismo e esperança matará o que é
pessimismo e desesperança» 17. Esta postura diante da vida era a base de
sua capacidade de encantar. Para encantar os outros é preciso, antes,
encantar-se a si mesmo. A capacidade de Dehon de contemplar a
realidade e extasiar-se, acabava por contagiar os que dele se
—————————–
14
15
16
17
Ibidem, 399.
Ibidem, 272.
Dehoniana, n. 3 (2000) 11-14.
Ibidem, 12-13.
292
aproximavam. Isto é característico de carismáticos que atraem
seguidores, que se tornam continuadores de sua obra e carisma.
O encanto de Dehon não era puramente estético ou místico. Mas,
vinha junto com um apelo à militância. Um texto onde esta característica
se destaca nitidamente é seu inflamado discurso na «Assembléia dos
Antigos Alunos», de 1896: «Mãos à obra! Juventude, as obras sociais
pedem a vossa ajuda»18. A Educação Integral deve atingir o coração e a
mente, os pés e as mãos dos educandos.
Pedagogia do amor e do humor
Finalmente, percebemos que o amor é um princípio intensamente
afirmado por Dehon. Mas, ele sabe que não basta amar. Ele se faz amar.
Através desta reciprocidade, o vínculo pedagógico produz resultados de
aprendizagem impressionantes. Porém, percebemos nos discursos de
Dehon outro ingrediente que é o bom humor. Suas histórias, seus
exemplos eram sempre bem humorados. Outra face desta mesma atitude
pedagógica é seu invariável otimismo. Nos encontros com os Antigos
Alunos, freqüentemente levava uma palavra de ânimo, como na profecia
pronunciada em 1895 e relembrada após trinta e cinco anos, por Delloue:
«Depois dos dias sombrios e enfadonhos virão os dias alegres e
ensolarados»19.
A síntese entre contemplação e ação
Ao analisarmos a vida de Léon Dehon, percebemos, na estrutura de
sua personalidade esta marca forte que fazia dele um homem capaz de
escutar as vozes exteriores e as realidades interiores20. Dava atenção às
pessoas. Pesquisava a realidade na qual estava inserido. Lia muito. Tinha
—————————–
18
19
20
L. DEHON, «La jeunesse catholique», in Bulletin annuel de l’Association
amicale des anciens élèves de l’Institution Saint-Jean (1896) 25-27.
Conservado em AD.B. 107/1, inv. 01162 00.
Cf. AD.B. 90/1, inv. 0112802. Este discurso de Dehon foi publicado sob o
título «Nous croyons à des jours meilleurs», Dehoniana 3 (2000) 11-14.
Percebemos aqui a forte influência que Dehon recebeu da mística dos
jesuítas. Durante seus estudos, em Roma, ele foi fortemente marcado pela
Ratio Stutiorum do Collegio Romano. NHV IV, 150.
293
uma curiosidade natural. Podemos notar esta faceta de seu modo de ser
em seu costume de educar fazendo perguntas como uma forma de
construtivismo. Antes de pronunciar seus discursos, ou de promover
alguma obra, dedicava-se demoradamente ao estudo.
A contemplação é uma exigência para todo educador que queira
dedicar-se ao universo da pesquisa. Contemplar o objeto pesquisado,
sem pressa, com detalhes, é fundamental para o preparar advento das
grandes descobertas. Dehon é um estudioso contemplativo. Porém, não
basta pesquisar e contemplar. É necessário agir, educar. Muitos
estudiosos são péssimos pedagogos. Não conseguem um desempenho
satisfatório em sala de aula. Dehon consegue facilmente passar da
contemplação para a ação, da pesquisa para a retórica pedagógica. Seus
discursos revelam sua capacidade de transmitir, com simplicidade e
didática, os diversos ramos do saber humano.
Mostra-se capaz de ouvir também a história. Seu discurso aos exalunos, em 1907, é uma prova cabal de que ele soube fazer a auto-crítica
e passar de monarquista para democrático-republicano. Insistiu até o fim
de sua vida que era preciso «ir ao povo» e ouvir as suas reclamações.
Criticava os padres que se enclausuravam em suas sacristias. Foi capaz
de agir e mudar, porque exercitou até o final de seus dias a capacidade de
ouvir, de contemplar.
2. Alguns referenciais teóricos
Para repensar o conceito dehoniano de Educação Integral é necessário
verificar o modo como este conceito tem sido pensado por outros
teóricos. É certo que, como lembra o próprio Dehon, desde Platão, quem
pensa a educação, de um modo filosoficamente sério, ainda que com
ênfase em alguma dimensão, sempre procura partir da consideração do
ser humano em sua globalidade. Jean Lauand adverte que o pré-conceito
impede a muitos de perceber, nos autores antigos e medievais,
dimensões inusitadas da educação, como é o caso do «lúdico»21.
—————————–
21
J. LAUAND, «De Mathematica» de Isidoro de Sevilha e outros textos
pedagógicos medievais; Caminhos de uma pedagogia lúdica. Confira a Nota
Introdutória.
294
Passando por Agostinho (354-430), Cassiodoro (485-580), Isidoro de
Sevilha (560-636) Alcuíno (735-804), Petrus Alfonsus (1062-1110),
demonstra de que modo os jogos e o bom humor faziam parte integrante
de um ensino divertido. Isto aponta para uma época um pouco diferente
daquela que Umberto Eco, em seu romance O nome da rosa,
caracterizou como um tempo sem sorrisos. Jean Lauand mostra, também,
a importância do «lúdico» na obra do filósofo-teólogo italiano Tomás de
Aquino (1227-1274)22. A descoberta de Aristóteles lhe permitiu superar
a cosmovisão «espiritualista» de seu tempo e aceitar, como bom, aquilo
que é terreno e natural. Junto com a valorização do «humano» veio a
pedagogia do «humor». Sua ética, antropologia e até a sua teologia é
repleta da serena afirmação do lúdico. Para Tomás de Aquino, Deus, ao
criar o mundo, brinca. Há algo de integral nestas concepções do ser
humano e do modo como aprendemos brincando.
Comenius (1592-1670), considerado o «pai da didática moderna»,
com a sua clássica «Didacta Magna», defende a escola como o lugar
apropriado para «ensinar tudo a todos»23. Esta é uma clara visão integral
da educação. Sua visão pedagógica integra religião e pedagogia em
perfeita harmonia. Ele elabora esta idéia sob a forma de Pansophia – a
sabedoria do todo – que levaria a uma Pampaedia. Ou seja, Deus teria
criado todos os seres humanos para o conhecimento e, por isso, era
preciso levar este dom a todos. Assim, seria possível mudar o mundo, ou
seja realizar uma Panorthosia. Segundo alguns autores, Comenius teria
superado o reducionismo racionalista de René Descartes e o
reducionismo empirista de Francis Bacon, seus contemporâneos mais
ilustres24. Inegavelmente estamos diante de uma proposta de Educação
Integral.
—————————–
22
23
24
J. LAUAND, «Deus ludens – O lúdico na pedagogia medieval e no
pensamento de Tomás de Aquino», in V.A. ARANTES (org.),. Humor e
Alegria na Educação, 31-55. Veja também o modo como Tomás de Aquino
influenciou o humanismo: B. MONDIN, O Humanismo filosófico de Tomás
de Aquino.
Cf. J.L. GASPARIN, Comênio ou Da arte de ensinar tudo a todos.
D. INCONTRI, A Crise do Saber e os Clássicos da Educação, disponível em:
http://www.hottopos.com/rih6/dora2.htm, <acesso em 10.12.2006>.
295
Já na primeira página do Tratado dos Estudos, escrito por Charles
Rollin (1671-1741), percebemos que sua abordagem pedagógica fala em
formar o espírito, a inteligência e o coração25. Ele mesmo revela que uma
de suas principais fontes era o pensamento educacional de Boécio (480524), educador nato que elaborou o projeto pedagógico de traduzir, em
linguagem popular, o saber clássico para os bárbaros, que haviam
tomado conta do decadente Império Romano ocidental26. Rollin sugere
em seu Tratado, que a pedagogia começa por um estudo do caráter do
educando. Isto é, centrar o processo educacional na pessoa, bem antes
que os pesquisadores modernos encarassem isso como uma novidade
pedagógica. Foi este o método que Dehon expressamente aplicou em seu
Colégio São João27.
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), com sua pedagogia otimista,
política e natural, confia na natureza bondosa do ser humano. Segundo
ele, a educação teria um papel fundamental na construção do «contrato
social». Sua ênfase se concentra na liberdade do indivíduo para que
tenhamos uma sociedade de pessoas livres e, para tanto insiste na função
social da educação. Ele também concebia o aluno de um modo integral,
mais que uma inteligência disposta a aprender, pois algumas disposições
primitivas estão presentes: as emoções, os sentidos, os instintos e os
sentimentos. Todos estes elementos existem antes do pensamento
elaborado. A educação deve considerar esta realidade e não fazer da
criança um adulto em miniatura28.
Outro autor que adverte para a necessidade de uma educação afetiva e
integral é o pedagogo suíço Johan Heinrich Pestalozzi (1746-1827). Seu
trabalho junto às crianças órfãs levou-o a observar como se pode educar
integralmente atingindo todo o povo, superando o privilégio da educação
para a elite. Sua obra é referência para a maioria das correntes
pedagógicas posteriores. Para ele, a escola deveria ser um lar, uma casa
bem organizada onde se aplica a educação moral, política e religiosa. Os
estudos se estendiam das 8h às 17h. Já temos aqui a idéia da Escola em
—————————–
25
26
27
28
Ch. ROLLIN, Traité des études, Tome Premier, 1.
J. LAUAND, «Deus ludens», 33.
OSC IV, 288.
A.B. CERISARA, Rousseau: a educação na infância.
296
Tempo Integral. Não aceitava o método das punições. Em sua visão de
educação, o professor era um jardineiro e, o desenvolvimento da criança,
orgânico. Havia um potencial interno que deveria ser conhecido e
desenvolvido. Educar não poderia ser, simplesmente, memorizar e
repetir, como postulavam muitos métodos da época. Pestalozzi
professava a necessidade de partir sempre do concreto para, somente
depois, atingir a abstração. Também acreditava em um desenvolvimento
gradativo da pessoa humana. Por isso, o método da Educação Integral
deveria respeitar estas etapas. Para ele, a educação era uma ciência e
deveria ser estudada como tal. Nem por isso, deixa de lado a dimensão
religiosa29. Sua educação moral parte do «amor pedagógico», que leva à
percepção e o exercício moral e chega à linguagem e verbalização da
moral30. A sua «teoria do amor» se baseia em que esta espécie de
princípio divino, presente no humano, garante a unidade entre a «cabeça,
mão e coração». Ou seja, o amor é a «base do desenvolvimento
integral»31
Fredrich Froebel (1782-1852), que chegou a trabalhar com Pestalozzi,
permitiu à orientação religiosa protestante influenciar sua visão
educacional. Ele afirma que o educando deveria ser tratado segundo sua
dignidade de filho de Deus. É bastante clara, em sua obra, a noção de
Educação Integral, não unicamente focada no indivíduo, mas também na
humanidade, como um todo, que deveria se desenvolver em harmonia.
Ele desenvolve este conceito «parte-todo» para concluir que o indivíduo
sempre mantém uma relação com o todo e que não é possível educar sem
considerar esta teia de relações. Acreditava no ser humano como
produtor de conhecimento e não apenas receptor. Seu método
pedagógico respeita e valoriza o que o aluno traz como bagagem interior.
Poderíamos citar, ainda, o filósofo John Dewey (1859-1952), um dos
principais idealizadores da Escola Nova, que causou grande impacto no
—————————–
29
30
31
Dora Incontri mostra que os pensadores anteriores ao século 19 normalmente
têm uma visão mais integral de educação integrando, inclusive, o aspecto
espiritual. D. INCONTRI, Pestalozzi, Educação e Ética.
Ibidem, 91.
Ibidem, 97.
297
Brasil, principalmente por meio da recepção de Anísio Teixeira32. Dewey
propôs superar a educação pela simples instrução e sugeriu que o
conhecimento passa pela vida da experiência, da ação. A escola não
deveria ser preparação para a vida, mas vida mesmo, que ajuda a criança
a reconstruir sua própria experiência. Isto faria da escola um espaço de
democratização dos saberes e das competências.
O projeto positivista, que inspirou a reforma de Ferry, para garantir
um estatuto «científico» e «laico» para a educação, baniu das escolas
públicas a dimensão religiosa. Na verdade, o projeto de uma sociedade
laica era muito mais profundo, conforme demonstrou Weill33. Dehon
estava atento a estas mudanças e acreditava que a separação entre a
Igreja e o Estado fazia parte de um plano mais amplo, cuja autoria
atribuía à Franco-Maçonaria. É esta a sua tese que aparece no livro, que
publicou em 1908, Le plan de la Franc-maçonnerie34. Afirma que o
processo de ruptura ocorrido entre 1876 e 1905, principalmente na Itália
e na França, não foi um fenômeno espontâneo, mas algo planejado nas
lojas maçônicas. Acredita que a ruptura é maior e mais profunda do que,
simplesmente, a separação entre o Estado e a Igreja. Para ele, esta seria
uma separação inevitável e, até mesmo, benéfica para ambas as
instituições. Porém, percebe já em seu tempo, que havia uma ruptura
epistemológica entre a dimensão religiosa e secular. Ele prevê a onda de
secularização que assumiria a forma de cultura muitos anos depois, e
somente seria razoavelmente assimilada pela Igreja Católica durante o
—————————–
32
33
34
A.M.V. CAVALIERE, «Educação Integral: uma nova identidade para a escola
brasileira?» Segundo a autora, a situação social do Brasil exige que a escola
redescubra sua tarefa social integradora. Ela tem em mente, de um modo
especial, a experiência de Educação em Tempo Integral dos CIEPs, no Rio
de Janeiro.
WEILL, G., Storia dell’idea laica in Francia nel secolo XIX. Este autor
escreve de modo favorável ao avanço da escola laica. Para conferir um ponto
de vista diferente, sobre a mesma questão, e tendo como foco o ambiente
educacional italiano: G. GENTILE, Educazione e scuola laica, 81-114.
OSC III, 381-432.
298
Concílio Vaticano II, quando a Constituição Pastoral Gaudium et Spes
afirmou a «autonomia das realidades terrestres»35.
Ao longo do século 20 não faltaram pensadores que resistiram à
fragmentação da modernidade. Apenas para citar um francês, Jacques
Maritain (1882-1973), filho de uma família de políticos e sem religião,
acaba converte-se ao catolicismo e constrói, a partir do pensamento de
Tomás de Aquino, seu «Humanismo Integral»36. Vemos aqui a proposta
de uma nova forma de laicidade, porém reconciliada com a dimensão
religiosa do ser humano. Este novo humanismo vem superar o ateísmo
soviético e pensar uma nova possibilidade para a cultura cristã no mundo
moderno. Todo seu esforço filosófico é empenhado em resolver esta
ruptura epistemológica que Dehon havia intuído já em 1908. Maritain
procura pensar a relação existente entre o plano temporal e espiritual.
Segundo ele, não são planos separados, nem mesmo confusos. Seriam
planos distintos. O atual Papa Bento XVI fez uma referência explícita,
em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, na aurora de 2007, à
atualidade do «Humanismo Integral» neste mundo de pluralismo
religioso, para que seja possível um mundo de paz37. Jacques Maritain
pensou, ainda, o significado deste Humanismo Integral para o universo
da educação38. Criticou os «reducionismos» do pragmatismo,
sociologismo, intelectualismo e voluntarismo. Sugeriu «uma Educação
—————————–
35
36
37
38
GS 36. «Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas
criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá
gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente
legítimo exigir tal autonomia». Este documento eclesiástico é assinado pelo
Papa Paulo VI, com data de 07 de Dezembro de 1965.
J. MARITAIN, Humanismo Integral. Primeira publicação em 1963.
«[...] estou convencido de que respeitando a pessoa promove-se a paz e,
construindo a paz, assentam-se as premissas para um autêntico humanismo
integral. É assim que se prepara um futuro sereno para as novas
gerações».Encontra-se em:
http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/messages/peace/documents/
hf_ben-xvi_mes_20061208_xl-world-day-peace_po.html.
<acesso em 01.01.2007>. Grifo nosso.
J. MARITAIN, Rumos da Educação.
299
Integral para um humanismo integral»39. Tendo como um pressuposto a
laicidade da educação pública na França, ele coloca a questão de como
seria possível recuperar a dimensão religiosa em um mundo de
pluralismo religioso:
A formação religiosa deve se tornar possível - não a título obrigatório, mas
como matéria de livre escolha - à população estudantil de acordo com os seus
desejos e os de seus pais, e deve ser ministrada por representantes dos
diversos credos. [...] Não compreendemos como se pode admitir que Deus
tenha menos direito de ocupar um lugar na escola, do que os elétrons ou
então Bertrand Russell40.
Outro autor contemporâneo que aponta para a Educação Integral é
Josef Pieper (1904-1997). Ele adverte a Universidade para a importância
da «abertura para o todo»41. Não basta instruir. É preciso formar a pessoa
como ser inteligente, sensível e espiritual. A universitas precisa ter como
referência de sua identidade o universum. A fragmentação ou negação de
uma dimensão humana, portanto, roubaria a identidade da Universidade.
Recorda que já a Academia de Platão tinha este desejo de
«compreender» a realidade como um todo, ou como diz Sócrates na
República, ser uma comunidade de aprendizagem formada por homens
«cuja alma se lança continuamente para atingir o todo e o universal,
tanto divino quanto humano»42. Pieper acredita que esta questão tem
fundamento no próprio espírito humano que é capax universi:
A educação daquilo que é próprio e especificamente humano, ou, em outras
palavras, a verdadeira formação do homem, somente se dá quando se põe em
marcha esse confronto com o todo existente. Um homem verdadeiramente
formado é alguém que sabe como se relacionar com o mundo como um todo,
ainda que esse conhecimento da realidade seja imperfeito43.
—————————–
39
40
41
42
43
Ibidem, 143.
Ibidem, 230
J. PIEPER, Abertura para o todo: a chance da Universidade. Este conceito é
desenvolvido em tese de doutorado por J. LAUAND, O que é uma
Universidade?.
J. PIEPER, Abertura para o todo, 23.
Ibidem, 25.
300
Pieper intuiu que a noção de Universidade aponta para a Educação
Integral. A abertura do ser humano para o todo é o fundamento do ato de
filosofar. Isto significa que o filosofar ocupa um lugar fundamental,
como eixo integrador da identidade universitária. E, para perguntar-se
honestamente sobre esta «coesão global» do mundo e da vida, é
necessário colocar-se a questão de Deus. As ciências, aparentemente
encontrariam aqui o seu limite, pois devem conhecer um objeto preciso e
limitado. Porém, Pieper sugere que a instituição universitária estimule os
alunos, por meio do filosofar, a não perder este referencial global da
realidade. Neste contexto, sugere que a filosofia ocupe o centro da
universidade, garantindo-lhe a «abertura para o todo», o que exige não
fechar-se a nenhuma informação acessível, mesmo na esfera do sagrado.
Chega a afirmar que «não pode uma universidade sem teologia ser uma
universidade no sentido pleno, se sob o nome ‘escola superior’ se
compreende aquela escola que exige a consideração da totalidade do
mundo e da existência e a ela se obriga». Inspirado no humanista John
Henry Newman, completa seu pensamento, afirmando que «a exclusão
da teologia contraria o caráter da universidade como uma instituição
filosófica»44.
Atualmente, a proposta da Educação Integral tem sido formulada
também em termos de «holística», por autores como o espanhol Rafael
Yus, que sugerem superar um estágio incipiente, superficial e sincrético
para construir um conceito mais consistente e aceitável pelo mundo
acadêmico45. Ele mostra que a Educação Integral como «fim» é
normalmente aceita por teóricos, políticos e legisladores. Todos
pretendem formar o ser humano como um todo. Porém, no nível dos
«meios» acontece a fragmentação que impede de chegar à meta
pretendida. Um destes «meios fragmentados» seriam as disciplinas da
maneira como são arquitetadas na maioria dos currículos. A falta de
transdisciplinaridade impede que se chegue a um resultado integral na
educação. Outras vezes os temas transversais existem, mas são
exageradamente racionais. Dimensões essenciais do ser humano, como
sua abertura ao belo, são simplesmente ignoradas. Ele atribui a causa
—————————–
44
45
Ibidem, 40.
R. YUS, Educação Integral; uma educação holística para o século XXI.
301
desta situação à tradição cartesiana que valorizou a mente em detrimento
da emoção ou do espírito:
Por isso, não nos causa estranheza que a idéia de educação integral,
trabalhada pelas leis educacionais, seja exclusivamente a de» conhecimento,
habilidades e valores morais, deixando de lado outras potencialidades, talvez
mais determinantes, como as emoções e a espiritualidade, possivelmente por
uma equivocada contradição entre laicismo e espiritualidade46.
Para superar este tipo de fragmentação o autor propõe meios práticos
que tornariam possível a passagem para um novo paradigma, que chama
de «Educação Holística». Buscando raízes em Rousseau e Pestalozzi,
define a «Educação Holística» na linha do americano R. Miller, que
parte do conceito de «interconexão e globalidade». Assim, o estudante é
visto como «uma pessoa global com mente, corpo, emoções e espírito».
A aprendizagem holística busca desenvolver visões de ensino e da
aprendizagem que estimulem as conexões entre os temas e entre aprendizes
de diversas formas de comunidades. A aprendizagem holística também busca
um equilíbrio dinâmico na situação de aprendizagem entre elementos, tais
como os conteúdos e os processos, a aprendizagem e a avaliação, e o
pensamento analítico e o criativo. Finalmente, o aprendizado holístico é
compreendido, em termos de inclusão, de um amplo leque de estudantes e
por uma variedade de visões de aprendizagem que suprem suas diferentes
necessidades47.
Para atingir este novo paradigma holístico, Yus propõe repensar as
bases pedagógicas da educação, reformulando totalmente o currículo, de
modo que seja capaz de educar a individualidade e a criatividade, o
espírito e o corpo, estimule a reconstrução da experiência, eduque em
comunidade e para a democracia, considerando que estamos em uma
aldeia global. Enfim, a proposta é educar a própria «visão integrada» do
ser humano. Para tanto, seria necessário uma «docência holística». Este é
apenas um exemplo atual de sistematização do pensamento educacional
em torno da idéia de pensar a pessoa humana em sua «integralidade». Há
muitas outras propostas que vão na mesma linha48.
—————————–
46
47
48
Ibidem, «Apresentação à Edição Brasileira», VIII.
Ibidem, 16.
Cf. D. INCONTRI, Pedagogia espírita.
302
No Brasil, a Educação Integral tem sido, atualmente, um dos
principais focos da reflexão do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas
em Educação, Cultura e Ação Comunitária)49. Uma de suas
pesquisadoras, Isa Maria Rosa Guará, releu o levantamento bibliográfico
sobre Educação Integral que o CENPEC realizou em 199950. Ela percebe
que o «pacto garantidor do esforço coletivo em torno da Educação
Integral» exige a explicitação do conceito. Uma primeira acepção associa
«Educação Integral» com «formação integral», ou seja, postula que o
ensino tenha em conta as diversas faculdades do ser humano: cognitiva,
afetiva, estética, lúdica, corporal, social, espiritual etc, conectando-as
entre si. Uma segunda acepção de Educação Integral seria como
«articulação de saberes a partir de projetos integradores», como é o caso
da parceria entre a escola e a comunidade. Há saberes e habilidades,
crenças e valores, que ultrapassam os limites do currículo escolar. Neste
caso, a Educação Integral acontece mesmo quando o processo de
formação da pessoa passa também pela família, biblioteca, museu, clube
esportivo, grupos religiosos e outras formas de organizações da
sociedade. Os temas centrais destes espaços deveriam aparecer como
transversais nos currículos escolares. Estas redes institucionais precisam
ser pensadas e articuladas. Uma terceira acepção, muito comum de
Educação Integral, é a «perspectiva de tempo integral»51. Existem várias
experiências neste sentido, como é o caso da Escola Parque, na Bahia, na
década de 1950, e os CIEPs e CAICs, no Rio de Janeiro nas décadas de
1980 e 1990, respectivamente. Nestes casos, o prédio e o ambiente da
escola eram preparados para abrigar o aluno em tempo integral. Já no
PROFIC (Programa de Formação Integral da Criança, em São Paulo, entre
os anos de 1986 e 1993. A estratégia era a parceria da escola com outras
instituições da sociedade para que pudesse ser garantida a integralidade
da formação. A descontinuidade das políticas públicas tem dificultado a
consolidação destas experiências. Por isso, poder-se-ia se pensar em uma
visão política mais integral e integradora, que tornasse possível uma
educação verdadeiramente integral. Uma quarta acepção a ser
—————————–
49
50
51
Os Cadernos Cenpec, já em seu número 2, no segundo semestre de 2006
dedicaram toda a edição à Educação Integral.
Cf. I.M.R. GUARÁ, «É imprescindível educar integralmente».
Esta é a perspectiva apontada pelo artigo 34 da LDB.
303
considerada é a ótica da «inclusão». A educação deve «integrar» todas as
crianças em idade escolar para que tenham acesso à escola e tenham
condições de ali permanecer.
Como pudemos observar nesta breve revisão literária, o conceito de
Educação Integral é uma obra ainda inacabada. Há um consenso
crescente de que é esta a perspectiva que deverá ser adotada na escola do
século 21. Porém, é necessário integrar os próprios conceitos para dar
um passo adiante. Estamos, portanto, diante de uma nova «visão», ou até
mesmo de um «novo paradigma», que reconstrói praticamente tudo a
partir de uma visão integradora que procura superar a fragmentação
provocada pela modernidade. A Escola de Tempo Integral e a parceria da
escola com a sociedade são indicações práticas desta nova visão.
Sobre a Escola de Tempo Integral, há os que criticam a proposta como
populista, inviável e onerosa. Outros ainda afirmam que essa proposta
provoca uma «totalização» da escola atribuindo a ela tarefas que, a rigor,
não lhe pertencem52. Outros a elogiam citando a satisfação dos pais, a
melhoria do horário para os professores e o fato de que iniciativas como
os CIEPs reacenderam o debate sobre a escola pública. Parece que o
tempo da emancipação vai abrindo espaço para um novo tempo em que a
capacidade de «tecer redes» ou construir vínculos entre pessoas, saberes
e sociedades, finalmente estarão na ordem do dia.
3. Uma possível releitura de Dehon
Ao início deste capítulo fizemos um ensaio de síntese do ideário
pedagógico de Léon Dehon. Em seguida, passamos em revista alguns
filósofos da educação, que apontam para a noção de Educação Integral.
É hora de perguntar de que modo esta perspectiva teria orientado as
idéias de Léon Dehon. Há, neste autor, uma noção de Educação Integral?
Como ela se manifesta em seus escritos? Quais os seus eventuais
limites? De que modo ela poderia ser expressa hoje?
Há na pedagogia dehoniana um humanismo integral de fundo, no qual
as diversas dimensões do ser humano são consideradas. Ele se preocupa
em integrar a temporalidade com a eternidade, a localização com a
—————————–
52
L.V. MAURÍCIO, «O que se diz sobre a escola pública de horário integral».
304
referência geográfica ao todo, a mente com o coração, a alma com o
corpo, o concreto com o abstrato, o real com o imaginário, o funcional
com o gratuito, a ternura com o vigor, o individual com o social, o
simples com o complexo, a militância com a festa, a disciplina com o
lúdico. Reinterpretando as palavras com que Delloue definiu a pedagogia
dehoniana, em 1927, poderíamos dizer que nele, de fato, «a idéia
religiosa é levada todo momento à prática»53 Dehon ainda não tem a
perspectiva atual do pluralismo religioso. É um filho da cristandade, que
chegou a alimentar sonhos de restauração monárquica. Certamente, este
é um limite de seu pensamento. Porém, passa deste sonho à defesa mais
genérica de que não é possível educar sem levar em conta a dimensão
religiosa do homem. Isto faz todo sentido se entendermos religião em
uma de suas acepções semânticas, como «re-ligação» entre o humano e o
divino. Neste caso, Dehon é muito atual e sua intuição é confirmada pelo
pensamento de Maritain e Pieper.
Este ideal do humanismo integral encontra, em Dehon, uma
diversidade de meios pedagógicos que poderíamos chamar de Educação
Integral. Esta perspectiva está presente a todo momento. Sua proposta
pedagógica de modo algum pode ser limitada aos muros do Colégio São
João que, afinal, era uma escola de tempo integral. Ao modo de
Pestalozzi, sua escola se assemelhava a um lar. Mas havia também o
Patronato São José, instituição de educação popular, complexa e variada,
que ensinava desde música até cidadania. Ali a parceria entre escola e
comunidade era bastante clara e antecipou, em cento e trinta anos aquilo
que a nossa LDB previu que acontecesse no Brasil até 2007.
Seguindo a cartilha de Rollin, Dehon procura iniciar seu método
educacional conhecendo a pessoa do educando, seu nome, família,
qualidades e limites. Sua pedagogia é centrada na pessoa do aluno. Ele
acredita na pessoa e na liberdade quase ao modo de Rousseau e
propunha que o ponto de partida de todo ensino seja o vínculo de
empatia e amizade entre o professor e o aluno. Ele quer formar pessoas
com coração. Sabe que o conhecimento só tem sentido se nasce e é
cultivado no compromisso interpessoal e de transformação da realidade.
Não podemos, porém, identificar o pensamento de Dehon com o de
Rousseau, pois, ao contrário deste, Dehon acredita que a bondade natural
—————————–
53
A. DELLOUE, «Discours», 21.
305
do ser humano teria sido prejudicada pelo «pecado original». Propõe que
a educação esteja «presente» na vida do aluno para ajudá-lo a vencer
uma tendência negativa que carrega por natureza. Por isso, ele critica
duramente a atitude dos que abandonam seus alunos a si mesmos, como
uma forma de ingenuidade pedagógica.
A Educação Integral de Dehon propõe integrar a pessoa consigo
mesma, restaurando-a de eventuais marcas negativas que ela possa trazer
consigo. Esta pedagogia da restauração pessoal faz da escola um lugar
onde se cultivam pessoas novas, restauradas. Hoje essa perspectiva
retoma a atualidade se pensarmos nas marcas profundas deixadas pela
fome, pelo abandono familiar, pela droga e pela violência que assola
nossas cidades. Sem totalizar a escola, ou atribuir-lhe uma carga
excessiva de tarefas, na prática, é o lugar em que algumas de nossas
crianças encontrarão o único espaço minimamente humanizado que
possibilitará uma referência alternativa para não terem que reproduzir
aquilo que aprenderam nas outras formas de convívio social.
Identificamos na literatura dehoniana um binômio aparentemente
contraditório, que expressamos na forma de uma pedagogia da presença
e uma pedagogia da ausência. Na verdade, é necessário integrar estes
dois procedimentos a partir de um «princípio de subsidiariedade
pedagógica», onde o professor, com sua presença e saber, subsidia o que
falta ao seu aluno, sempre atento ao momento de deixá-lo «andar com as
próprias pernas». Neste sentido, a educação dehoniana pode ser vista
como emancipadora. É uma educação libertadora, sem deixar de ser
comprometedora. Dehon chega a acreditar que, neste vínculo
estabelecido entre professor e aluno, há uma espécie de «mistério» no
qual há algo que passa de «alma» para «alma». Isto mereceria ser mais
aprofundado a partir da contribuição de autores que estudam hoje o
significado antropológico do outro na composição do «eu». Somos uma
teia de relações. Não nos bastamos. Todo encontro pedagógico
construído nestes parâmetros deixa uma «marca indelével» na alma do
aluno e, por que não dizer, do professor.
Com esta perspectiva integral e integradora, Dehon conseguiu
reencantar a educação e manteve seu projeto mesmo durante a Guerra.
Quando as paredes do Colégio São João foram derrubadas pelas bombas,
as cartas do Boletim de Guerra, produzidas pelos ex-alunos, sustentavam
os vínculos entre eles. O título daquele periódico é emblemático: Le
306
Trait-d’Union. Esta capacidade de reencantar a educação certamente
tinha, como uma de suas fontes a profunda fé que Dehon professava de
que «dias melhores virão». Era um otimista e contagiava os que dele se
aproximavam. Sua pedagogia do amor não faria sentido sem a pedagogia
do humor. O lúdico fazia parte do seu cotidiano.
A exemplo de Charles Rolllin, Dehon queria educar o espírito, a
inteligência e o coração. Mas não se esquecia de que era preciso também
movimentar os pés e as mãos. A educação que propunha estimulava a
militância como fonte de novos saberes. Ao modo de Dewey, fazia da
«experiência» um espaço acadêmico privilegiado.
Se quiséssemos encontrar uma fórmula sintética para exprimir a
perspectiva integral da visão educacional dehoniana, diríamos que ele
propôs a «Pedagogia da Cordialidade», da edificação da pessoa como um
todo, a partir do vínculo empático, que tem o potencial de cultivar as
mais diversas formas de saber. Isto se assemelha muito à «teoria do amor
pedagógico» da maneira como aparece na obra de Pestalozzi54.
—————————–
54
D. INCONTRI, Pestalozzi, Educação e Ética, 97. Apesar desta semelhança,
não encontramos referência a Pestalozzi na obra de Léon Dehon.
307
CAPÍTULO X
Conclusões, balanço e perspectivas
Amor e Verdade se encontraram.
SALMO 85 (84),11
Neste último capítulo indicaremos, de modo sintético, algumas
conclusões que respondem à questão que motivou esta pesquisa: «Qual o
significado do apostolado educacional na experiência espiritual de Léon
Dehon?» Faremos um balanço destas conclusões, verificando os limites
do seu pensamento e a atualidade de suas idéias sobre educação, à luz do
Magistério da Igreja a partir do Concílio Vaticano II. Terminaremos
sugerindo algumas perspectivas aos educadores de hoje que buscam em
Dehon um referencial para a sua missão, seja pela sua exemplaridade,
como educador, seja pela sua paternidade, como fundador. Isto pode ser
útil para os dehonianos que buscam no retorno às fontes a fidelidade
dinâmica ao carisma fundacional, mas também para toda a Igreja que, no
discernimento e aprovação deste carisma e no processo de beatificação,
considerou a experiência espiritual de Léon Dehon exemplar.
Verificamos que a educação segundo o ideal cristão, na visão de Léon
Dehon, é inseparável da sua experiência espiritual, que tem como eixo
central o amor de Deus, manifestado no Sagrado Coração de Jesus. Mais
que isso, a sua espiritualidade configura o seu pensamento educacional
no que se refere aos objetivos, instrumentos, método e frutos. Por isso,
podemos falar de uma educação cristã dehoniana, ou de um estilo
309
dehoniano de educar. Sua originalidade não está no mosaico das idéias,
absorvidas de outros autores ou escolas de espiritualidade, mas na síntese
teórica e existencial que dá ao seu pensamento uma surpreendente força
e atualidade. Dehon foi capaz de responder de modo eficaz aos apelos da
Igreja e da sociedade do seu tempo com uma síntese equilibrada entre
mística e militância.
1. Conclusões
O amor e a verdade se encontraram
Ao longo de toda a nossa pesquisa identificamos estas duas fortes
orientações nos escritos de Léon Dehon − intelectual e espiritual −
expressas simbolicamente pela verdade e pelo amor. Elas sempre
aparecem em sua vida e tendem a uma simbiose que marca a sua
personalidade de homem dedicado à contemplação pelo estudo e pela
oração. Percebemos também que estas são as duas grandes chaves de
compreensão da identidade carismática de Léon Dehon. Antes de fundar
a Congregação dos Oblatos, projetou a fundação de uma Congregação de
Estudos. Seu discernimento sempre esteve entre estes dois pólos que
eram fundamentalmente duas formas de restaurar Cristo no coração da
humanidade: pela via da cultura e pela via da imolação. Não é por acaso
que Dehon, animado pela Vontade de Deus − confirmada nas palavras do
seu bispo − funda ao mesmo tempo a Congregação e o Colégio. Para esta
decisão ele se percebia totalmente «indiferente e decidido», ou seja,
livre. Seu coração vacilava entre as duas orientações, porém ele
suspeitava que a via intelectual, concretizada em obras, poderia levar à
dispersão da ação e sacrificar o fundamental que seria a união mística
com o Coração de Jesus. Por isso, escolheu a «via do amor» e fundou a
Congregação dos Oblatos do Coração de Jesus com um propósito
reparador.
Portanto, em Dehon, a síntese entre espiritualidade e educação tem
como expressão simbólica o encontro entre o amor e a verdade e como
exigência prática a configuração de sua Congregação a esta síntese1. Ele
—————————–
1
NHV IV, 183.
310
chega a pensar em «Casas de Adoração» e «Centros de Estudo», que
seriam a concretização das duas orientações de seu carisma fundacional.
A dimensão da Veritas foi incluída nas Constituições da Congregação
dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus, nas constituições latinas,
aprovadas pelas Igreja, por meio do compromisso de divulgar as
Doutrinas Pontifícias.
Aquele que quiser viver da paternidade carismática de Dehon, ou
seguir sua exemplaridade espiritual deverá ter em conta que sua
experiência mística é marcada fundamentalmente pelo encontro de
síntese entre a Caritas e a Veritas. Estas foram as «duas grandes paixões
de sua vida» e as únicas com que ele quis realmente marcar a sua obra.
Podemos afirmar com segurança que nesta síntese encontramos a
identidade mística de Dehon, educador.
O núcleo literário do pensamento educacional dehoniano
Pela análise ampla dos escritos mais importantes de Dehon, podemos
concluir que o ano de 1887, por ocasião da publicação de seu livro sobre
educação, foi o grande momento de sua síntese entre espiritualidade e
educação. Esta síntese foi preparada ao longo de toda uma vida marcada
fortemente pela orientação intelectual, concretizada no Colégio São
João, e pela orientação espiritual, concretizada na Congregação dos
Sacerdotes do Coração de Jesus.
O primeiro discurso educacional, pronunciado em 1877 e reelaborado
em 1887, para a publicação no livro, é a expressão mais sistemática e
programática do seu pensamento educacional. Este discurso marca o
início efetivo do apostolado educacional de Dehon no Colégio São João,
porém, pela análise que fizemos, temos razões para acreditar que foi
preparado desde os tempos de Dehon como estudante universitário em
Paris e, depois, durante o tempo de seminário em Roma, com o projeto
da «Congregação de Estudos». Portanto, o texto de 1887 é fruto de uma
reflexão feita ao longo de quase trinta anos e representa o fruto maduro
de sua ação no mundo da educação. Neste mesmo livro, o último
capítulo, um sermão dedicado ao Coração de Jesus, é expressão
simbólica da síntese que Dehon procurou fazer entre sua experiência
espiritual e seu apostolado educacional.
311
A primazia pedagógica da Graça
A educação segundo o ideal cristão, no pensamento de Léon Dehon,
se funda no fato de que a graça de Deus educa a humanidade (Tt 2,1112). Esta ação pedagógica da Graça tem a primazia sobre qualquer outro
esforço didático humano. A síntese entre o ideal cristão e o apostolado
educacional atinge o conceito de educação em sua raiz mais profunda.
Por isso, espiritualidade e educação são indissociáveis e Dehon não pode
conceber a eficácia de uma «Escola Neutra» ou de uma «Escola sem
Deus». Seria mutilar o humano de sua abertura ao Transcendente. Este
ideal laico é criticado em seus discursos, ao mesmo tempo em que
defende a educação cristã como a mais integral, por considerar o humano
em sua totalidade. A educação cristã, portanto, não educa apenas para a
vida, mas para a vida plena; não apenas para o tempo, mas para a
eternidade.
Dehon critica a funcionalização da educação. Educar é mais do que
ensinar. É restaurar a identidade de cada aluno, prejudicada pela culpa
original. A disciplina escolar deve criar condições para que o esforço
humano, unido à ação da Graça gerem em cada educando outro Cristo.
Esta é a «Profissão de fé» na educação por parte de Dehon. É um
instrumento de evangelização e de salvação. A Graça de Deus educa,
aperfeiçoa. Dehon chama isso de uma educação com «espírito cristão».
Ele assiste aos inícios da laicização da escola e é um crítico desta
tendência. Assume uma postura consciente de defesa militante da
educação confessional evidenciando sistematicamente seus valores e
mostrando que a escola que inclui a dimensão religiosa em seu currículo
educa melhor, até mesmo do ponto de vista puramente humano. A escola
confessional, segundo ele, tem o potencial de educar um jovem nas
virtudes e no caráter. É capaz de fazer um cidadão que ama a sua pátria e
que vive a sua fé. Sua reivindicação é de que as famílias têm o direito de
escolher a escola confessional para seus filhos, conscientes de que ali a
religião não será apenas uma disciplina, mas uma dimensão transversal
de todo o currículo.
O objetivo da educação cristã
A partir da noção de educação como ação da Graça e da antropologia
cristã, que visa a «perfeição» em Cristo, Dehon defende um sistema
312
educacional que ajude a pessoa a atingir a «maturidade de sua estatura
divina»2. Segundo ele, a orientação de um projeto educacional depende
da «idéia que se tem de homem perfeito»3. Aqui também aparece
claramente sua síntese entre espiritualidade e educação pois, para Dehon,
o Coração de Jesus é a expressão pronta e acabada do humano em seu
estado mais perfeito. Educar seria, afinal, restaurar o Coração de Cristo
em cada jovem. Isto inclui, mas supera, um ideal puramente político,
utilitário ou crítico. Dehon defende que «apenas o ideal cristão abraça ao
mesmo tempo todos os elementos da perfeição humana»4. Isto não
significa simplesmente intensificar o discurso e os símbolos religiosos no
ambiente escolar, ou fazer das aulas um exercício de proselitismo. A
proposta de Dehon é que a escola construída sobre o ideal cristão seja
capaz de «formar um homem de coração, um homem capaz do sacrifício
e da dedicação, um homem liberto do jugo do egoísmo»5. Para ele,
educar um cristão não é apenas dar noções de ciência ou condições para
vencer na vida. Educar este «homem de coração», significa formar o seu
caráter, educá-lo nas virtudes e nos costumes, ajudá-lo a crescer «na fé
que abre à compreensão do mundo invisível, a esperança que fortalece o
coração com a perspectiva da felicidade eterna e o amor que torna
perceptível Deus nas frias sombras da vida»6. Portanto, o projeto
educacional de Léon Dehon se compreende no quadro de seu grande
projeto espiritual e sem este ponto de referência perde completamente o
seu sentido. Assim adquire sentido a sua afirmação de que o «homem de
coração», formado pela educação cristã, quando estiver futuramente no
seu ambiente de trabalho, «será um missionário da virtude e a viva
imagem de Jesus Cristo»7. A configuração ao Coração de Jesus é,
portanto, o grande objetivo da educação segundo o ideal cristão, na visão
que encontramos expressa nos escritos de Léon Dehon.
—————————–
2
3
4
5
6
7
OSC IV, 275.
OSC IV, 276.
OSC IV, 277-278.
OSC IV, 278.
OSC IV, 278.
OSC IV, 278.
313
O direito da Igreja de atuar no mundo da educação
Dehon em seus discursos educacionais é um verdadeiro «advogado de
defesa» da Igreja, em uma França cada vez mais laicizada. Ele reivindica
o direito de a Igreja atuar na educação. Inicialmente ele resiste à idéia da
separação entre o Estado e a Igreja. Mas suas idéias evoluem, juntamente
com o Magistério, de monarquista a republicano, até tornar-se um
defensor da democracia cristã. Porém, ele sempre manteve uma suspeita
de que a separação em curso era mais do que política. O avanço da
laicização acabaria por tirar Deus da sociedade. A religião seria
aprisionada à esfera da vida privada e o cristianismo poderia perder a
capacidade de transformar a realidade. Contra esta tendência Dehon
pretende restaurar o Reino do Coração de Jesus nas almas e nas
sociedades. Porém, sua visão deste Reino não é teocrática, como a de
Matovelle, mas social. Dehon entendia a escola católica como um meio
privilegiado para realizar o projeto de fazer o Reino acontecer nas
pessoas e nas sociedades.
Método: Educação Integral
Esta síntese fundamental entre espiritualidade e educação, radicada na
união «sem separação nem confusão» entre o humano e o divino,
realizada em Jesus, produz uma postura que atinge todas as dimensões
do apostolado educacional de Dehon e que poderíamos chamar de
Educação Integral. Dehon leva a comunhão entre o humano e o Divino
às últimas conseqüências propondo, por exemplo, a síntese entre
santidade e ciência, afeto e inteligência, militância e mística, sacro e
profano, ternura e vigor, liberdade e graça, política e religião. Isto pode
ser verificado no modo como ele concebe os instrumentos, o método e os
frutos da educação cristã.
Os instrumentos para Dehon são os professores e os livros. O
educador cristão transmite a «sua alma» ao aluno integrando a palavras e
o exemplo. Educa melhor aquele que reflete para os alunos a imagem do
próprio Cristo8. Portanto, a lição mais importante é o testemunho. Dehon
sugere também uma atenção crítica em relação aos livros que são
colocados nas mãos dos alunos. Segundo ele são conselheiros que
—————————–
8
OSC IV, 279.
314
precisam refletir este conceito de Educação Integral. Admite o valor da
literatura profana, porém reivindica o valor didático da literatura cristã,
especialmente da Sagrada Escritura. A Bíblia é vista por Dehon como
um compêndio de verdades reveladas mas também uma enciclopédia de
saber humano. Portanto, o conteúdo das lições em uma escola cristã deve
integrar com sabedoria a cultura cristã com todo o patrimônio cultural da
humanidade. Chama a atenção que Dehon nunca cite como instrumento
da educação cristã a infra-estrutura escolar e nem mesmo a instituição
como tal. Sua ênfase é na pessoa, seja aluno ou professor. Dehon
acredita na educação como fruto da relação pedagógica mais do que da
estrutura educacional.
No método da Educação Integral, proposto por Dehon, a «paternidade
espiritual do professor» ocupa um lugar importante, mas o protagonismo
é do próprio educando. Isto se verifica no modo como ele estimula seus
alunos à militância e pode ser verificado claramente nos seus encontros
com os antigos alunos. Portanto, em Dehon a mística é também seu
método. Ele educa a partir do compromisso com Deus e com a
sociedade. Sua educação propõe o crescimento equibrado na piedade e
no patriotismo, na mística e na militância. Estamos diante de uma
proposta de educação engajada que ultrapassa os muros da escola e visa
transformar a sociedade. Este método que chamamos de Educação
Integral parte do concreto, do fato, da realidade, mas tem como
fundamento último o encanto da fé. A motivação mais profunda deve ser
o amor, ou seja a experiência espiritual. Dehon não acredita nos métodos
que colocam o medo, o desejo de honra e nem mesmo o afeto filial como
forma propulsora. Para ele a única forma de educar bem é colocar como
fundamento a experiência do amor de Deus. Vimos o quanto Dehon se
esforçava por estimular os alunos em seus discursos. Isto tem eco nas
palavras dos antigos alunos. Resumidamente poderíamos dizer que o
método da Educação Integral, que transparece em Dehon, é «educar com
o coração».
Os frutos desta Educação Integral, segundo Dehon, são mentes
iluminadas, caráteres fortes, corações generosos, pessoas de fé e ação,
capazes dos mais nobres pensamentos, das mais firmes decisões e de
toda dedicação e sacrifício pela religião e pela pátria9. A educação cristã
—————————–
9
OSC IV, 292.
315
é capaz de fazer florescer as «faculdades mais elevadas do homem e a
civilização da inteligência e do coração»10.
2. Balanço
Limites
Antes de verificar a atualidade, devemos estar atentos a alguns limites
do pensamento educacional de Léon Dehon. Sua linguagem fortemente
religiosa e discretamente jurídica pode cegar os olhos do leitor desatento,
que tende a perceber em seus escritos apenas a apologia da proposta
católica para a educação. Este limite deixa em aberto, por exemplo, a
questão do ensino religioso no ambiente escolar em um tempo no qual o
pluralismo religioso é crescente e inevitável, seja na aldeia global ou
local. Como pensar, por exemplo, a dimensão religiosa escolar defendida
por Dehon e por tantos outros, sem cair no proselitismo confessional ou
na instrumentalização da escola pública para a divulgação de dogmas
particulares? A crítica da laicidade, feita por Dehon, pode ser
apressadamente descartada se confundirmos religião com confissão ou
tradição religiosa. É necessário enfrentar este debate de modo
inteligente, para além das paixões apologéticas que caracterizaram o
tempo de Léon Dehon. Há um certo romantismo em sua visão que é
simplesmente impraticável em nossos dias. Seu ideal do Reino do
Coração nas pessoas e nas sociedades, não pode ser simplemente
transposto para o mundo pluralista hodierno, onde o diálogo ecumênico e
interreligioso estão na ordem do dia. Esta preocupação não estava no
horizonte de Dehon.
A matriz jurídica de sua forma de pensar às vezes condiciona suas
conclusões e procedimentos. Os discursos educacionais poderiam ser
resumidos em um grande esforço apologético. Dehon quer ser não
apenas um eco das Doutrinas Pontifícias, mas seu advogado de defesa.
Esta postura pessoal faz com que seu discurso crítico seja dificultado.
Há, também, uma tortuosa falta de sistematização em seus escritos
educacionais. Seu pensamento possui uma coerência interna que a leitura
—————————–
10
OSC IV, 291.
316
global permite perceber. Poderíamos até dizer que ele é vitalmente
sistemático. Porém, não estamos diante de um escritor de tratados
pedagógicos. É apenas um educador apaixonado que reflete sobre seus
procedimentos e sobre a sociedade de seu tempo. O pensamento de Léon
Dehon sempre nasce de um compromisso com a realidade. Isto torna
suas conclusões bastante práticas e aplicáveis. Porém, um pensamento
exageradamente contextual sempre corre o risco de não conseguir tomar
distância crítica da realidade. Dehon consegue perceber este risco
quando critica a dificuldade da Igreja na França de aderir à República.
Outro limite é a tendência ingênua de assimilar rapidamente e nem
sempre de modo crítico, as diversas formas de pensamento. Os escritos
de Dehon passam da linguagem religiosa à botânica, da análise contábil
dos Bancos à pedagogia, da política internacional à espiritualidade, com
uma rapidez que nos faz ver sua obra como um misto de leituras feitas e
nem sempre totalmente assimiladas11. Este seu interesse integral pela
cultura, às vezes, faz dele um pensador eclético o que não é exatamente
uma qualidade. Esta mesma característica de ouvinte cordial − que pode
ser uma qualidade − torna-se um limite quando condiciona Dehon a dar
atenção às pessoas erradas, como foi o caso de P. Captier, que chegou a
provocar o fechamento de sua recém-fundada Congregação. Da mesma
raiz nasce uma certa indecisão que marca a vida espiritual de Dehon,
conforme pudemos perceber em seu tortuoso processo de discernimento
em vista da Vida Religiosa.
Do ponto de vista teológico, Dehon dá pouca ênfase à pessoa do
Espírito Santo. Sua descoberta da Trindade é tardia e ele tem uma certa
dificuldade de inserí-la em seu pensamento marcadamente cristocêntrico.
A valorização um pouco exagerada das devoções não poupou Léon
Dehon. Mesmo visões e locuções mereciam a sua atenção solícita, como
no caso das locuções de Ir. Maria de Santo Inácio, que Dehon ouvia,
divulgava, e aceitava como canal da vontade de Deus para sua obra.
—————————–
11
Este aparece bem no seu diário da viagem à América do Sul, em 1906. L.
DEHON, Mille lieues dans l’Amérique du Sud: Brésil, Uruguay, Argentine.
Outro exemplo é o livro L’usure au temps présent, publicado em 1895, e que
analisa com detalhes contábeis o sistema financeiro da época. Isto é
inusitado tratando-se de um teólogo-filósofo-advogado. OSC II, 300-352.
317
Há nos escritos de Dehon certa compartimentalização. Ele jamais fala
do Colégio São João no Noviciado e nunca cita a Congregação nos
discursos educacionais. Parece que este limite é mais fruto de uma opção
metodológica do que uma estrutura epistemológica pois, do ponto de
vista existencial, sua mística tinha impacto na vida e vice-versa.
Espiritualidade e educação não aparecem dissociados em um nível mais
profundo de seus escritos.
Apesar destes limites, o pensamento pedagógico de Dehon recupera a
atualidade de um modo surpreendente, porque a proposta positivista, que
era vanguarda em seu tempo, hoje é o fundamento de uma educação
tradicionalista que provocou a fragmentação da pessoa e dos saberes.
Portanto, poderíamos afirmar, sem nenhum anacronismo, que, hoje,
Dehon seria um adversário da educação tradicionalista. Rever seu ideário
pedagógico, situado em seu contexto histórico, pode nos ajudar a superar
a fragmentação positivista e avançar para uma educação verdadeiramente
integral. A vanguarda do século XIX virou tradição e a fórmula
educacional anterior, pode ser a vanguarda do século XXI.
Atualidade
O Concílio Vaticano II declarou que o apostolado educacional junto à
juventude, por meio de escolas confessionais, permanece sendo de
«gravíssima importância» e uma forma eficaz e atual de evangelizar.
Esta educação segundo o ideal cristão, conforme aparece literalmente
expresso no proêmio da Gravissium educationis, deverá «cultivar
simultaneamente a verdade e a caridade»12. Estas são, exatamente, as
duas categorias estruturantes da visão educacional e da experiência
espiritual de Léon Dehon. Verificamos que esta é também a orientação
programática do pontificado de Bento XVI13. Sua primeira Encíclica,
—————————–
12
13
GE, proêmio, in EnchVat, I, 453.
No dia 20 de abril de 2005, em sua primeira mensagem, no final da
concelebração eucarística com os Cardeais eleitores na Capela Sistina, Bento
XVI afirmou de modo programático: «Podemos dizê-lo: os funerais de João
Paulo II foram uma experiência verdadeiramente extraordinária na qual se
sentiu de certa forma o poder de Deus que, através da sua Igreja, deseja
formar, de todos os povos, uma grande família, mediante a força unificadora
da Verdade e do Amor (cf. LG 1)». AAS 97 (2005) 694-695. «Id quidem
318
Deus caritas est14, indicou esta «via do amor» como o caminho a seguir
para conduzir a humanidade para além do atual momento de crise e
choque entre civilizações.
Este princípio fundamental é explicitado − ainda no proêmio
Gravissimum educationis − e depois desdobrado em uma série de
princípios educacionais derivados:
Visto que a santa Mãe Igreja, para realizar o mandato recebido do seu
fundador, de anunciar o mistério da salvação a todos os homens e de tudo
restaurar em Cristo, deve cuidar de toda a vida do homem, mesmo da terrena
enquanto está relacionada com a vocação celeste, tem a sua parte no
progresso e ampliação da educação15.
É o mesmo conceito fundamental que encontramos de modo
transversal ao longo de todos os escritos educacionais de Dehon. Seu
propósito era «educar para a vida terrena enquanto se relaciona com a
vocação celeste». O ideal, já presente em Platão, de educar para a vida
eterna é explitamente afirmado por Dehon, que defende a «educação
segundo o ideal cristão».
Outro aspecto deste texto que verificamos nos escritos dehonianos é a
perspectiva de «tudo restaurar em Cristo». Este potencial reparador do
conhecimento é uma das bases mais sólidas da orientação intelectual do
apostolado de Léon Dehon. Ele acreditava que por meio do estudo, da
formação do clero, da divulgação das Doutrinas Pontifícias, seria
possível realizar a «obra de reparação» desejada pelo Coração de Jesus.
Há um terceiro elemento no proêmio da Gravissimum educationis que
aparece de modo fundamental e estruturante na obra de Dehon: «cuidar
—————————–
14
15
dicere possumus: Ioannis Pauli Secundi funus experientia fuit revera unica
ubi quodammodo potentiae Dei percepta est per ipsius Ecclesiam quae
cunctos populos magnam familiam efficere vult, per coniungentem virtutem
Veritatis atque Amoris». Grifo nosso. Interessante que após essa afirmação,
o Papa cita como referência o proêmio da Lumen Gentium, onde o Concílio
Vaticano II definiu a identidade da Igreja como «sacramento, ou sinal, e o
instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero
humano». LG 1, in EnchVat, I, 121. Segundo Bento XVI, a fonte desta
«força unificadora» está em Cristo que revela a Verdade e o Amor de Deus.
AAS 3 (2006) 217-252.
GE, proêmio, in EnchVat, I, 453.
319
de toda a vida do homem». Esta proposta de Educação Integral
caracteriza o pensamento educacional de Dehon.
A partir destes princípios fundamentais − que coincidem
perfeitamente com a visão educacional de Dehon − a Gravissimum
educationis aponta princípios derivados, porém igualmente
fundamentais, que deveriam nortear a ação da Igreja Católica no campo
da educação. O tom destes princípios é marcadamente jurídico, enquanto
afirmam o direito inalienável de todos à educação. Porém, de igual
modo, crianças e adolescentes têm o «sagrado direito» de serem
educadas em valores morais «bem como a conhecer e a amar Deus mais
perfeitamente»16. Portanto, o direito à «educação religiosa» é um valor
absoluto. Os cristãos, por sua vez, têm o direito a uma educação cristã,
para «se aproximarem do homem perfeito, da idade plena em Cristo»17.
A Igreja assume a responsabilidade da família e da sociedade civil nesta
missão, por meio de escolas confessionais. São princípios do Magistério
recente da Igreja que encontramos claramente enunciados no discurso
programático de Léon Dehon, em 1877.
A Escola Católica é um direito da Igreja18, pois os pais têm o direito
de escolher a escola para seus filhos19. A mesma defesa enérgica deste
direito já era uma das tônicas do discurso de Dehon, diante da reforma
de Ferry.
Em relação às escolas não-católicas, a Gravissimum educacionis,
lembra aos pais cristãos o seu dever de educar os filhos na fé, porém
louva as autoridades e sociedades civis que «tendo em conta o
pluralismo da sociedade hodierna e atendendo à justa liberdade religiosa,
ajudam as famílias para que a educação dos filhos possa ser dada em
todas as escolas segundo princípios morais e religiosos das mesmas
—————————–
16
17
18
19
GE, 1, in EnchVat, I, 455.
GE, 2, in EnchVat, I, 457.
GE, 8, in EnchVat, I, 465-467. Neste sentido, a Declaração afirma que o
poder publico deve excluir o monopólio do ensino, pois isto iria «contra os
direitos inatos da pessoa humana, contra o progresso e divulgação da própria
cultura, contra o convívio pacífico dos cidadãos e contra o pluralismo que
vigora em muitíssimas sociedades de hoje». GE, 6, in EnchVat, I, 463.
GE, 6, in EnchVat, I, 463.
320
famílias»20. Neste sentido há uma crítica discreta, mas clara, da Escola
Neutra, ou escola sem Deus. Percebemos que, mesmo nos atuais
documentos do Magistério, a eficácia da total laicidade do ensino é
colocada em dúvida. Uma educação sem Deus jamais poderá ser uma
Educação Integral. A perplexidade de Dehon diante da proposta
educacional da Terceira República não está aprisionada no século XIX.
Ainda hoje, a escola laica é um instrumento eficaz para construir uma
sociedade sem Deus. Os frutos desta educação podem ser vistos em
muitos países onde já se fala de «civilização pós-cristã».
Os princípios fundamentais, enunciados pelo Concílio, foram
explicitados em uma série de documentos emanados pela Congregação
para a Educação Católica. Um dos principais, em 1977, foi A Escola
Católica, que procura indicar o que caracteriza a catolicidade de uma
escola, mesmo em meio às diversas legislações e ao pluralismo do
mundo moderno. Afirma-se novamente a missão evangelizadora e
salvífica da Escola Católica. Ela é um meio para que a Igreja realize sua
missão. «O projeto educativo da Escola Católica, que deve ter em conta
os atuais condicionamentos culturais, define-se precisamente pela
referência explícita ao Evangelho de Jesus Cristo, que deve radicar-se na
consciência dos fiéis»21.
O mesmo documento apresenta uma série de «objeções» à Escola
Católica que coincidem com as «acusações» que estavam na base da
apologia de Léon Dehon da educação segundo o ideal cristão. Isto pode
ser verificado já na primeira objeção apontada pelo documento da
Congregação para a Educação Católica:
Convém ter presente, em primeiro lugar, que muitos, dentro e fora da Igreja,
levados por um sentido de laicidade mal entendido, atacam a Escola Católica
como instituição. Não admitem que a Igreja possa oferecer, além do
testemunho individual dos seus membros, o testemunho específico de
instituições próprias, consagradas, por exemplo, à investigação da verdade ou
a obras de caridade22.
—————————–
20
21
22
GE, 7, in EnchVat, I, 465.
A Escola Católica, 9, in EnchVat, VI, 69.
A Escola Católica, 18, in EnchVat, VI, 73. Grifo nosso.
321
Este foi, na verdade, o núcleo de todos os embates educacionais de
Dehon. As outras objeções identificadas pelo documento atual são que a
Igreja Católica procura «instrumentalizar» a escola para fins religiosos e
confessionais; que a Escola Católica é uma «instituição anacrônica»,
pois já não se justifica seu papel de suplência em relação ao Estado; que
oferece educação apenas para as elites; que não sabe formar cristãos
comprometidos no campo social e político. O documento defende a
presença da Igreja no mundo da educação como aquela que é capaz de
educar de modo verdadeiramente integral, promovendo a síntese entre fé
e vida, entre fé e cultura, pois «é consciente de estar comprometida na
promoção do homem integral, porque em Cristo, o Homem perfeito,
todos os valores humanos encontram a sua realização plena e, portanto, a
sua humanidade»23. A semelhança deste texto com o discurso de Dehon,
em 1877, é evidente, quando ele afirma que «o rumo da educação
depende da idéia que exista sobre o homem perfeito. A imensa
superioridade da educação cristã sobre as demais se deve ao fato de ela
ter como seu objetivo e seu ideal a perfeição total e sobrenatural do
homem nesta vida e na outra»24.
O que está em jogo é a escola como um lugar onde é possível a
experiência de Deus, para que a educação seja, de fato, integral. Esta
síntese entre espiritualidade e educação é a reivindicação dehoniana que
permanece mais atual. A revisão póstuma da pedagogia dehoniana feita
por Delloue, em 1927, na celebração dos cinqüenta anos do Colégio São
João, identificou este núcleo fundante quando disse que havia um
contraste entre os ideais do ensino oficial e da educação cristã. A
primeira, negativa e materialista, «não considera mais do que a vida
neste mundo que passa, esquecendo o nosso destino eterno e os meios
para chegar lá». A segunda tem como fundamento da educação «a idéia
religiosa levada a todo o momento à prática»25. Este segundo elemento
apareceu recentemente, em 1988, no documento da Congregação para a
Educação Católica: Dimensão Religiosa na educação na escola católica.
Mostra-se a importância da dimensão religiosa da vida, principalmente
na condição juvenil; a necessária dimensão religiosa do ambiente
—————————–
23
24
25
A Escola Católica, 35, in EnchVat, VI, 81-83.
OSC IV, 276.
A. DELLOUE, «Discours», 21.
322
educativo católico, que deve transparecer até mesmo nas instalações
físicas; o significado da dimensão religiosa da vida e do trabalho escolar,
principalmente o papel do ensino religioso; enfim, a dimensão religiosa
do processo educativo, segundo o ideal cristão:
Poder-se-ia descrever, portanto, o processo educativo cristão como um
conjunto orgânico de fatores orientados a promover uma evolução gradual de
todas as capacidades do aluno, de modo que possa alcançar uma educação
integral no quadro da dimensão religiosa cristã, com o auxílio da graça. Não
interessa o nome mas a realidade do processo educativo: ele assegura o
trabalho homogêneo dos educadores, evitando intervenções ocasionais,
fragmentárias, não coordenadas, talvez acompanhadas de conflitos de
opiniões entre os mesmos educadores, com grave dano para o
desenvolvimento da personalidade dos alunos26.
O mesmo documento afirma que este «processo educativo», deve ser
transformado nas Escolas Católicas em «Projeto Educativo». É o que
Delloue descreveu na pedagogia de Dehon como «idéia religiosa levada
a todo momento à prática». No caso, esta idéia religiosa não era uma
vaga abstração, mas o Sagrado Coração de Jesus como ideal do humano
perfeito. Isto é dito explicitamente na abertura de seu livro sobre
educação e enunciado definitivamente pela inclusão do sermão sobre o
Coração de Jesus como capítulo final do mesmo livro. Dehon estava
convencido que «educar um cristão significa formar um homem de
coração»27.
A Congregação para a Educação Católica lançou, em 1997, o
documento: A Escola Catolica no limiar do Terceiro Milênio. Identifica
uma crise de valores que assume as formas de «subjetivismo difuso,
relativismo moral e nihilismo»28 e que exige corajosa renovação da
Escola Católica. O documento relembra as características fundamentais
da Escola Católica:
A escola católica como lugar de educação integral da pessoa humana através
de um projeto educativo claro que tem o seu fundamento em Cristo; a sua
identidade eclesial e cultural; a sua missão de caridade educativa; o seu
—————————–
26
27
28
Dimensão Religiosa da Escola, 99, in EnchVat, XI, 305-306.
OSC IV, 278.
A Escola Católica no limiar do Terceiro Milênio, 1, in EnchVat, XVI, 1570.
323
serviço social; o estilo educativo que deve caracterizar a sua comunidade
educante29.
O mesmo documento critica a situação atual da escola que tende a
redução à educação técnica e funcional, o que implica em uma
fragmentação ainda maior do saber. Os valores são tratados de maneira
genérica e «tendem a adormecer a escola em um presumível neutralismo,
que enfraquece o potencial educativo e se reflete negativamente sobre a
formação dos alunos»30. A Escola Neutra é novamente questionada, pois
procura responde ao «como» educar, mas não tem respostas mais
profundas ao «porque». As questões que motivavam os discursos de
Dehon continuam na ordem do dia. «Na prática, a maior parte das vezes,
à pretendida neutralidade escolar, corresponde a remoção da referência
religiosa no campo da cultura e da educação»31. No limiar do Terceiro
Milênio a Igreja Católica continua afirmando que o Projeto Educativo
cristão deve ser inspirado no Evangelho, pois «o mistério do homem só
se esclarece no mistério do Verbo Encarnado»32.
Poderíamos citar ainda outros documentos posteriores da
Congregação para a Educação Católica, que indicam o papel de leigos e
religiosos na escola, porém, pelas indicações feitas, é possível perceber
não apenas a evidente atualidade do núcleo essencial do pensamento
educacional de Dehon, que está justamente na reivindicação da dimensão
transcendente como elemento essencial da educação, mas também que o
projeto de uma educação completamente laicizada continua encontrando
a resistência da Igreja Católica. A reflexão atual é mais elaborada e leva
em conta o pluralismo religioso e a liberdade religiosa. Porém, a Escola
Neutra, ou Escola sem Deus, continua recebendo o olhar cético do
Magistério33.
—————————–
29
30
31
32
33
A Escola Católica no limiar do Terceiro Milênio, 4, in EnchVat, XVI, 1572.
A primeira parte da afirmação é uma citação de: A Escola Católica, 34, in
EnchVat, VI, 92.
A Escola Católica no limiar do Terceiro Milênio, 10, in EnchVat, XVI,
1576.
A Escola Católica no limiar do Terceiro Milênio, 10, in EnchVat, XVI,
1576. Dehon faz a mesma crítica em OSC IV, 273.
GS 22, in EnchVat, I, 809.
A Escola Católica, 20, in EnchVat, VI, 73.
324
3. Perspectivas
A exemplaridade espiritual de Dehon
A síntese entre espiritualidade e educação, que Dehon elaborou em
sua vida e escritos pode servir de modelo e estímulo para os educadores
de hoje que buscam um caminho para «reencantar a educação». Sua
relação com os antigos alunos denota que ele ultrapassou os limites da
mera instrução e construiu vínculos pedagógicos que sobreviveram até
mesmo à Primeira Grande Guerra Mundial. A «idéia religiosa», como
fundamento da relação pedagógica se mostrou eficaz. O educador de
hoje, que queira seguir o exemplo de Dehon, deverá garantir no ambiente
escolar uma Educação Integral, inclusive com abertura para o
Transcendente. Mais do que ensino religioso, será necessário educar a
pessoa para a vivência pacífica da religião. A escola pode se tornar um
canteiro onde se cultivam os valores da paz e da tolerância religiosa.
Dehon acreditava que a Graça de Deus educa. Portanto há um
princípio pedagógico inerente à relação entre Deus e as pessoas. Este
princípio não é calcado no interesse, mas na gratuidade. Há uma
Pedagogia da Graça. Poderíamos, hoje, repensar a educação gratuita para
todos, como uma gratuidade que ultrapassa o aspecto econômico. A
educação cristã precisa propor valores de gratuidade mais profundos, que
atingem o vínculo pedagógico entre professor e aluno. Isto nos leva a
fazer um esforço para superar a funcionalização e fragmentação da
educação, típicas da modernidade. Sabemos «porque» educamos. A
finalidade da educação é sempre atingir a estatura de homem perfeito em
Cristo Jesus, cujo modelo mais integral é revelado em seu Sagrado
Coração. Educar simplesmente para o mercado de trabalho é muito
pouco. Segundo o pensamento do Magistério da Igreja, que encontramos
ecoado em Léon Dehon, educar é um jeito de colaborar com Deus na
obra da salvação.
A educação, ao modo dehoniano, tem como ponto de partida os
vínculos interpessoais criados entre professores e alunos. A ênfase inicial
não está nas estruturas ou no conteúdo, mas no educando. Estes vínculos
são cordiais, ou amorosos. A «via do amor» é a estrada da educação
segundo o ideal cristão. Mas não basta amar. O professor precisa se fazer
amar pelos seus alunos. Isto tem um impacto evidente sobre a relação
325
pedagógica que é marcada intensamente pela cordialidade. Sem este
vínculo de «alma» para «alma», Dehon não acredita que aconteça um
verdadeiro processo educativo. Sua espiritualidade do Coração de Jesus
marcou definitivamente seu jeito de educar. Há uma relação
indissociável entre palavra e exemplo. O verdadeiro mestre cristão educa
mais pelo modo como se relaciona com os alunos do que propriamente
pelo conteúdo que apresenta em sala de aula.
Esta Pedagogia da Cordialidade tem como um dos efeitos imediatos a
restauração da pessoa humana. Dehon acredita que a escola é um lugar
onde acontece a «reparação». Seu antigo sonho de restaurar a França
Católica encontrou no Colégio São João uma de suas principais
concretizações. Ele sabe que a «culpa original» deixou marcas na alma
humana. A educação do caráter pode ajudar a corrigir estas tendências.
Por isso, não se pode ingenuamente deixar a criança abandonada a si
mesma. A presença solidária do educador é necessária para criar
condições que facilitem o crescimento das crianças e jovens nas virtudes.
Dehon ensina ao educador cristão que a melhor motivação não vem do
temor ou do desejo de honra, mas do amor. Seu procedimento
pedagógico não incluía os típicos castigos de seu tempo. Mas é preciso
dizer também que o educador que estabelece vínculos interpessoais de
cordialidade com seus educandos precisa também fazer-se respeitar,
segundo a fórmula pedagógica que Dehon aprendeu de Rollin. Este
respeito se adquire pela coerência de vida. Dehon, inspirado nas páginas
da Bíblia, indica a síntese entre «ternura» e «vigor» como aquilo que
marca o ideal do mestre cristão. É esta síntese que faz com que os
educadores conquistem o carinho e a atenção de seus educandos e não
um simples grito em defesa da disciplina. Desde criança Dehon cultivou
este ideal, admirando em seus primeiros mestres o vigor de P. Dehaene e
a bondade de P. Boute. A síntese entre a Caritas e a Veritas, estruturante
de sua experiência espiritual, está na base desta capacidade de ser forte e
terno ao mesmo tempo. A Verdade e a Caridade, de certa forma, são
outros nomes para a Justiça e a Misericórdia, a Força e a Ternura de
Deus.
Dehon ensina aos educadores de hoje a não iniciarem suas lições a
partir de enunciados teóricos. Suas lições partiam do concreto, conforme
vimos em seus discursos, especialmente de história e geografia. Ele
gostava de evocar a imaginação estética de seus alunos.
326
A educação em Léon Dehon nasce do compromisso e retorna para ele.
Desde suas primeiras iniciativas educacionais na Obra de Santa Catarina
de Sena, na igreja de Santa Maria Sopra Minerva, ao lado do Seminário
Santa Clara, em Roma, nos tempos de seminarista, ele vinculava
educação ao compromisso em favor dos pobres. Era notório, no Colégio
São João, a liberdade que ele dava aos membros da Conferência São
Vicente de Paulo, para fazerem as visitas às famílias pobres. Esta forma
de educar a partir do compromisso é uma convicção que os educadores
atuais poderão refletir em suas escolas, pois este tipo de educação leva à
militância em favor de uma sociedade mais humanizada. Este é um dos
frutos apontados por Dehon e que merecem todo o destaque. A educação
precisa ter em vista um motivo social. Educar não é apenas formar
individualmente, mas tem impacto sobre a sociedade. Dehon queria
infundir o Reino do Coração de Jesus nas pessoas e nas sociedades. A
sua obra educacional foi uma das maneiras mais eficazes para realizar
este projeto.
Finalmente, identificamos em Dehon uma síntese entre contemplação
e ação. Desde o início ele queria mais estudar do que dedicar-se à obras
educacionais como Universidades e Colégios. Ele tinha medo de perderse no ativismo. A dimensão da pesquisa e do estudo é fundamental para
o educador cristão. Educar, antes de ser uma atividade ligada ao ensino
exige o solitário recuo acadêmico de contemplar o objeto pesquisado
demoradamente e refletir sobre ele. A dimensão contemplativa da
educação pode ser exercida também em sala de aula, quando se estimula
os alunos a esta postura reflexiva onde o olhar filosófico sobre a
realidade inclui a capacidade de maravilhar-se. Dehon soube fazer isso a
todo momento, por isso conseguiu reencantar seus alunos e pode ser
exemplo para os educadores de nossos dias.
A paternidade carismática de Dehon
Para aqueles que vivem da paternidade carismática de Léon Dehon,
como membros da Família Dehoniana, a síntese entre a Mística do
Sagrado Coração de Jesus e o apostolado de educar a juventude,
realizada por seu fundador, tem dois níveis de perspectivas:
espiritualidade e carisma.
327
No nível da espiritualidade os dehonianos têm como princípio e
fundamento a «via do amor» que se expressa nas atitudes de
«disponibilidade oblativa» (Ecce venio), «solidariedade reparadora»
(Adveniat Regnum Tuum) e «comunhão eclesial» (Sint unum). Cada uma
destas três dimensões da mística dehoniana tem um significado
pedagógico.
Pela «disponibilidade oblativa» o dehoniano é um educador que
procura estar atento à voz do outro como expressão da voz de Deus. É
uma pessoa que sabe ouvir. Sua obediência se faz pela escuta qualificada
dos sinais de Deus na história. Isto faz dele uma pessoa contemplativa. O
estudo é uma das formas de contemplação típicas do dehoniano. A
solicitude de Dehon em estar atento aos fatos, à cultura, à sociedade, é
um exemplo para seus filhos.
Pela «solidariedade reparadora» o dehoniano professa a fé de que a
educação segundo o ideal cristão tem o potencial de transformar as
pessoas e as sociedades. Educar exige um compromisso efetivo em favor
da justiça e da paz. A educação é um modo de antecipar o Reino do
Coração de Jesus nas estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais.
À civilização do individualismo o educador dehoniano propõe a
civilização do amor e da solidariedade.
Pela «comunhão eclesial» o educador dehoniano reconhece neste
princípio, intensamente vivido por seu fundador, uma forma de estar
unido ao próprio Cristo. Valores como a fraternidade, o espírito de
família, a cordialidade, a participação, a comunicação, o acolhimento, a
inclusão e a reconciliação fazem parte desta mística que o dehoniano
saberá viver no apostolado educacional. O senso de Igreja é fundamental
para quem quer seguir os passos de Jesus, ao modo de Léon Dehon. Isto
transparece em sua relação com os bispos de Soissons, e principalmente
com os papas, de quem desejava ser um eco fiel. O apostolado social de
Dehon se compreende na resposta ao apelo de Leão XIII: «Prega as
minhas Encíclicas».
O segundo nível é o do Carisma. Neste sentido a síntese entre a
Veritas e a Caritas expressa com força a ação da Graça na vida de Dehon
que o levaria a fundar em 1877 a Congregação dos Oblatos do Coração
de Jesus. Excluir a orientação intelectual desta inspiração original seria
empobrecer o carisma. A Congregação de Estudos que ele pensou em
fundar, fazia parte de um projeto maior que acabou acontecendo em seu
328
apostolado educacional e social. Em 1887, ele chegou a reconhecer esta
dupla dimensão de seu carisma fundacional. Educar a juventude −
«preferencialmente» o clero − e divulgar as Doutrinas Pontifícias, são as
duas formas principais pelas quais ele viveu esta dimensão da Veritas. A
vida de amor e imolação foi uma segunda maneira que não pode ser
dissociada da primeira, sob pena de mutilar o carisma fundante. As
primeiras Constituições da Congregação de Dehon expressavam
claramente esta síntese. Um dehoniano que lê atentamente a vida e os
escritos de seu fundador compreende que nele «o amor e a verdade se
encontraram» (Salmo 85, 11). Educar a partir desta mística continua
sendo um desafio para os filhos de Léon Dehon no terceiro milênio da
era cristã, pois a «Educação» é uma forma de «Reparação».
329
FONTES
1. Principais escritos analisados
DEHON, L., Notes sur l’histoire de ma vie – 1843-1888, 8 Volumes,
Centro Generale Studi SCJ, Roma 1975-1979.
———, Notes Quotidiennes – 1867-1870 e 1886-1925, 5 Volumes,
Edizione Cedas, Andria 1988-1998.
———, «La Vie d’Amour» in Œuvres Spirituelles, Vol. 2, Edizioni
Dehoniane, Roma 1983. O original foi publicado por: Libr.
Intern. Catholique, Paris− Casterman, Tournai 1901.
———, «L’Éducation et L’Enseignement selon l’idéal chrétien» in
OSC IV, 265-394, Edizioni Dehoniane, Roma 1985. O original
foi publicado por: Retaux-Bray, Paris 1887.
———, «Discours sur L’Éducation du Caractère» in OSC IV 427-457,
Edizioni Dehoniane, Roma 1985. O original foi publicado em
Saint-Quentin 1891. A mesma obra encontra-se in Œuvres
Spirituelles, volume 7, 179-208, Edizioni Dehoniane, Roma
1985.
———, «Discours sur l’Histoire locale de Saint-Quentin», 1887, in
OSC IV, 398-423, Edizioni Dehoniane, Roma 1985.
FALLEUR, S., Cahiers; Conférences et sermons du Père Dehon aux
novices, 9 novembre 1879 – 21 octobre 1881, Centro Generale
Studi SCJ, Roma 1979.
L’Aigle de Saint-Jean, Boletim informativo semanal do Colégio São
João, em Saint-Quentin com seu primeiro número em 24 de
fevereiro de 1878, no primeiro ano letivo do colégio. Uma
coleção completa é preservada na Biblioteca do Centro
Generale Studi SCJ.
331
2. Obra «completa» de Léon Dehon
Escritos autobiográficos
DEHON, L., Notes sur l’Histoire de ma vie (1843-1888), 8 Volumes,
Centro Generale Studi SCJ, Roma 1975-1979. Publicação aos
cuidados de G. MANZONI. É também conhecida como
Memorias. São 15 cadernos negros (formato 25 x 19). Cobre o
período que vai do seu nascimento em 14.03.1843 ao dia
06.09.1888, quando Dehon foi recebido em audiência por Leão
XIII, agradeceu o Decreto de Louvor concedido à sua
Congregação e ouviu o pedido de pregar as Encíclicas.
———, Diario del Concilio Vaticano I, Tipografia Poliglota Vaticana,
Città del Vaticano 1962. Publicados aos cuidados de V.
CARBONE.
———, Notes Quotidiennes (1867-1870 e 1886-1925), 5 Volumes,
Centro Generale Studi SCJ, Roma 1988-1998. É uma obra
conhecida também como Diario. Publicação aos cuidados de
VASSENA, A. – MANZONI, G. (Vol. 1 e 2), MANZONI, G. (Vol.
3), TESSAROLO, E. – DRIEDONKX, E., (Vol. 4 e 5). Dividido em
duas partes, a primeira começa em 13.12.1867 e termina em
20.02.1870. A segunda parte começa em 28.01.1886 e termina
em julho de 1925. São 45 cadernos de cor marrom.
Cartas
———, Correspondance 1864-1871, Edizioni Dehoniane, Roma 1992.
Aos cuidados de A. BOURGEOIS.
———, Lettere di P. Dehon a confratelli italiani, Centro Generale
Studi SCJ, Roma 1998. Aos cuidados de A. TESSAROLO.
———, Correspondance entre Léon Dehon, Oliva Uhlrich, MarieIgnace, in Studia Dehoniana 46.1-2 (2003). Centro Generale
Studi SCJ. Aos cuidados de A. PERROUX.
———, Lettere circolari , Editrice Dehoniana, Bologna 1954. São
cartas endereçadas à Congregação. Aos cuidados de A.
TESSAROLO – G. ALBIERO. Em apêndice a esta edição:
Testamento spirituale, Ricordi (Souvenirs), Notizie storiche. O
texto original francês é acompanhado da tradução em italiano.
332
Existe ainda nos Arquivos Dehonianos uma grande quantidade
de cartas, sermões, instruções, meditações, apontamentos de
retiros espirituais, pensamentos, que passam por um lento e
cuidadoso trabalho de decodificação e edição. Os manuscritos
sobre a questão social estão reunidos em OSC VI (1871-1893).
Obras Sociais
DEHON, L., Œuvres Sociales, 6 volumes, Edizioni Dehoniane, Roma
1978-1993. Aos cuidados do Centro Generale Studi SCJ.
−
Volume I: Les Articles (1889-1922).
−
Volume II: Manuel social chrétien (org.), (1894) 79-296;
L’usure au temps présent (1895) 300-352; Nos congrès (1897)
357-377; Les directions pontificales politiques et sociales
(1897) 381-474.
−
Volume III: Catéchisme social (1898) 1-158; Richesse,
médiocrité ou pauvreté (1899) 165-175; La rénovation sociale
chrétienne (1897-1900) 179-376; Le pan de la FrancMaçonnerie (1908) 381-432.
−
Volume IV: Thèse pour la licence (1862) 13-61, Thèse pour le
doctorat (1864) 64-170; Assemblée des Œuvres Catholiques du
diocèse de Soissons (1875) 173-211; Congrès de Reims (1896)
213-226; Œuvre de Saint-Joseph. Cercle et Patronage (1876)
227-239; Assemblée des Œuvres Catholiques du diocèse de
Soissons (1876) 241-248; Utilité des Études Sociales (1893)
249-254; Propagande des idées sociales chrétiennes (1894)
255-260; L’Éducation et l’Enseignement selon l’idéal chrétien
(1877-1887) 265-394; Discours sur l’Histoire locale de SaintQuentin (1887) 398-423; Discours sur l’Éducation du caractère
(1891) 427-457, Discours sur le département de l’Aisne (1893)
461-520, Discours, Conférences, rapports, Manuscrits inédits
(1877-1907) 465-678.
−
Volume V1: Chroniques du «Règne» (1889-1895): Crônicas
sobre educação: Hollande, une bonne loi scolaire, 69; L’enfant,
99; Nos Lycées, 252; L’école laïque et la criminalité, 268-269;
L’Enseignement en Allemagne, 306-307; L’École, 314-315;
Belgique: Les lois scolaires, 505.
333
−
−
−
Volume V2: Chroniques du «Règne» (1896-1903): Crônicas
sobre educação: Angleterre: La loi scolaire, 93-93; Angleterre:
La loi scolaire, 131; L’instruction religieuse dans
l’enseignement secondaire, 151-154; La lutte pour la liberté de
l’enseignement secondaire, 266-267; L’enseignement publique,
287; Belgique: L’État hors de l’ école, 508-510; L’hécatombe
des écoles libres, 677; La liberté d’enseignement, 704-705.
Volume VI: Manuscrits sur la question sociale (1871-1893):
L’enseignement et l’ Eta. Notes a développer, 1-4; L’éducation,
113-115; Les écoles primaires de Paris, 430-431;
L’enseignement en France avant la révolution, 454-455.
DEHON, L., La rénovation sociale chrétienne, (1897-1900),
Centro Generale Studi SCJ, Roma 2001. Reedição com
anotações e introdução de A. PERROUX.
Obras Espirituais
DEHON, L., Œuvres Spirituelles, 7 volumes, Edizioni Dehoniane, Roma
1982-1985. Aos cuidados de P. TANZELLA – G. PALERMO.
−
Volume 1: La dévotion au Sacré-Cœur de Jésus (1885) 11-26;
La Retraite du Sacré-Cœur (1896) 30-236; Mois de Marie
(1900) 341-411; Mois du Sacré-Cœur de Jésus (1900) 417-601.
−
Volume 2: La vie d’Amour (1901) 7-172; Couronnes d’amour,
(1905) 175-516; Le Cœur Sacerdotal de Jésus (1907) 519-628.
−
Volume 3: L’Année avec le Sacré-Cœur, janvier-jouin (1919).
−
Volume 4: L’Année avec le Sacré-Cœur, juillet-décembre
(1919).
−
Volume 5: La vie intérieure – ses principes (1919) 7-210; La vie
intérieure – exercices spirituels (1919) 213-386; Etudes sur le
Sacré-Cœur de Jésus (1923) 389-717.
−
Volume 6: Sœur Marie de Jésus (1914) 7-149; Um prête du
Sacré-Cœur, Vie édifiante du R. P. Alphonse-Marie Rasset
1843-1905 (1920) 153-385; Préface a la vie du Père André;
Directoire Spirituel des Prêtes du Sacré-Cœur de Jésus (1919)
393-528.
−
Volume 7: Directoire spirituel (1936) 6-174; Discours sur
l’education du caractère (1891) 179-208; Souvenirs (1912)
334
211-229 ; Petit Directoire pour les recteurs (1919) 233-251;
Thesaurus Sacerdotum Oblatorum Cordis Iesu (1891) 255-394.
Escritos para a Congregação
Nestes escritos optamos por citar Léon Dehon como «editor» (ed.), pois
ainda que a maior parte do trabalho tenha sido sua, o gênero literário
destas obras supõe uma criação coletiva com a participação ativa dos
primeiros membros da Congregação e a aprovação oficial da Igreja.
DEHON, L., ed., Thesaurus Sacerdotum Societas Cordis Jesu, PiquetBarré typographus, Saint-Quentin 1886. Primeira edição do
livro de orações oficial da Congregação. Disponível na
biblioteca do Centro Generali Studi SCJ.
———, ed., Thesaurus Sacerdotum Oblatorum Cordis Iesu, Imprimerie
A. Terrilon, Saint-Quentin 1891. Segunda edição do livro de
orações oficial da Congregação. Publicado em OSP 7 (1891)
255-394.
———, ed., Thesaurus Precum Sacerdotum a S.C.J., 1902. Texto
latino-francês. Traduzido em diversas línguas como holandês, e
luxemburguês.
———, ed., Constituições de 1881. Os Arquivos Dehonianos preservam
apenas o primeiro capítulo, em duas versões semellhantes (texto
A e texto B). Está publicado, com fac-simile do original
manuscrito, em anexo a: FALLEUR, S., Cahiers; Conférences et
sermons du Père Dehon, 225-247.
———, ed., Constitutions de la Société des Prêtres du Sacré-Cœur de
Jésus, etablie à Saint-Quentin, diocèse de Soissons.
Constituições de 1885. Possuem a dupla aprovação de Mons.
Thibaudier de 02.08.1885 e de 15.09.1886. Estão publicadas em
Studia Dehoniana 2 (1972) 1-101.
———, ed., Constitutiones Congregationis Presbyterorum a S.C.J.,
Lovaina 1906. Texto latino que recebeu a aprovação provisória
da Santa Sé.
———, ed., Constitutiones Congregationis Presbyterorum a S.C.J.,
Lovaina 1924. Texto latino, revisto em relação ao precedente e
que recebeu a aprovação definitiva da Santa Sé em 1923.
335
———,
———,
———,
———,
———,
———,
Após a morte de Léon Dehon as Constituições passaram por
duas revisões importantes. A primeira aconteceu no Capítulo
Geral de 1954. O texto foi aprovado pela Santa Sé em 1956 e
trás por título Const. Congregationis Sacerdotum a S.C.J.,
Typis Pol. Vaticanis 1956. Compreende também o Statutum pro
missionibus. A última revisão foi aprovada em 1986 e adaptou
as Constituições às diretrizes do Concílio Vaticano II: A edição
típica, em francês, trás como título Notre Règle de vie, e inclui:
Constitutions et Directoire Général de la Congrégation des
Prêtes du Sacré-Cœur de Jésus.
ed., Directoire spirituel à l’usage des Prêtes du S.-C. par le
T.R.P. Dehon, Supérier général des Prêtes du S.-C.. As
primeiras duas edições, de 1905 e de 1908 praticamente são
uma publicação à parte de Excerpta das Constituições de 1885,
que estão no Thesaurus de 1886. A edição de 1919, porém, é
especialmente cuidada por P. Dehon, e como ele mesmo diz na
página inicial: «Estas páginas exprimem os espírito da nossa
obra, da maneira como a concebemos no princípio». OSP 6
(1919) 393-528. Há uma edição revista e aumentada publicada
em 1936: OSP 7 (1936) 6-174.
ed., Règlements divers des Prêtes du Sacré-Cœur. Redigidas
por ocasião do 7º Capítulo Geral e públicadas em dois
opúsculos em 1908. O 8º Capítulo Geral, em 1919, aprovou
uma 2ª edição revista e o 9º Capítulo Geral, em 1926 reviu o
texto. No 10º Capítulo Geral se tornaria Regulæ ac
Præscriptiones, a variis Capitulis generalibus præsertim a
decimo exaratæ . Accedit Statutum pro missionibus. Roma
1934.
Souvenirs 1843-1877-1912. Memórias sobre sua vocação e
sobre a Congregação. OSP 7 (1912) 211-229.
Avis et conseils. Publicado originalmente em 1914, encontra-se
como anexo ao Diretório Espiritual de 1936. OSP 7 (1914) 142169.
Petit Directoire pour les recteurs. Publicado originalmente em
1919. OSP 7 (1919) 233-251.
«Les Études», in Lettere circolari, 112-121.
336
Outros escritos
DEHON, L., La Sicile, l’Afrique du Nord e les Calabres, Casterman,
Tournai 1897.
———, Au-delà des Pyrénées, Casterman, Tournai 1900.
———, Mille lieues dans l’Amérique du Sud: Brésil, Uruguay,
Argentine, Casterman, Tournai 1908.
———, Colaboração nas revistas: L’Association catholique (Paris),
Démocratie chrétienne (Lilla), Sociologie catholique
(Montpellier), Chronique des Comités du Sud-Est (Lyon), Le
XX siècle (Marselha), La Corporation (Paris).
———, «Saint-Jean avant la guerre, 1877-1917», in O. LEDUC, ed., Le
Trait-d’Union - Bulletin de Guerre 1915-1919, Saint-Quentin
1935, 9-12. Texto póstumo cuja autoria não pudemos
comprovar.
———, «Nous croyons à des jours meilleurs», in Dehoniana 3 (2000),
11-14. Edição Francesa.
———, «Discours aux anciens élèves de Saint-Jean, 1907», in
Dehoniana 1 (2002), 27-35. Apresentação e notas de A.
Perroux: «Présentation du discours du 8 septembre 1907», in
Dehoniana 1 (2002) 17-26.
———, «Les opportunités du Règne du Sacré-Cœur», in Le Règne, fev.
(1889) 53-59. OSC I, 3. Uma coletânea dos artigos de Dehon
em «Le Règne» está em OSC V2, 93-705.
Manuscritos inéditos
DEHON, L., Diario, Registros da viagem ao Oriente (Terra Santa). 7
cadernos. AD.B. 13/2a-g. Inclui alguns textos de L. PALUSTRE,
que o acompanhou nesta viagem.
———, Excerpta, Transcrição de algumas leituras feitas de 20.11.1865
a 1893. AD. B 14.
______ Sur l'éducation: Conférence à la Société Saint-François-Xavier.
Preservado em AD.B. 7/3.D, inv. 43.04, 1-19.
———, ed., Œuvre de Sainte-Catherine; Etablie au Séminaire Français
de Rome. O regulamento desta associação, autógrafo de Léon
Dehon, encontra-se preservado nos Arquivos Dehonianos:
337
AD.B. 3/17, inventário 13.27. Há uma publicação: Montpellier
1899.
Idéias de Dehon registradas por secretários
FALLEUR, S. Cahiers. Conférences et sermons du Père Dehon aux
novices. Conhecidos como Cahiers Falleur. Centro Generali
Studi SCJ, Roma 1979. Registra as conferências de Dehon do
dia 09.11.1879 a 21.10.1881. Obra de leitura dos manscritos
originais aos cuidados de M. DENIS. Introdução, notas e índice
aos cuidados de G. MANZONI.
BULLETIN ANNUEL DE L’ASSOCIATION AMICALE DES ANCIENS ÉLEVES
AD.B. 90/1, inv.
DE L’INSTITUTION SAINT-JEAN: 1884:
0112800. 1885: AD.B. 90/1, inv. 0112801. 1889: AD.B. 7/1,
inv. 43.10. 1893: AD.B. 7/10, inv. 43.10. 1894: AD.B. 90/1,
inv. 112821. 1895: AD.B. 90/1, inv. 0112802. Este discurso de
Dehon foi publicado recentemente sob o título Nous croyons à
des jours meilleurs. In Dehoniana 3 (2000) 11-14. 1896: «La
jeunesse catholique». AD.B. 107/1, inv. 01162 00. 1897: «La
vie de Collège». A.D.B. 7/10, inv. 43 10. 1898: AD.B. 107/1,
inv. 1162.02. 1899: «La Jeunesse Catholique Française». AD.B.
107/1, inv. 1162 10. 1900: «Catholiques et Français à la fois».
AD.B. 107/1, inv. 1162 06. 1902: AD.B. 7/10 inv. 43.10. 1903:
AD.B. 7/10, inv. 43.10. 1904: AD.B. 7/10, inv. 43.10. 1905:
AD.B. 7/10, inv. 43.10. 1907: AD.B. 107/10, inv. 1162 07. 1.
Este discurso está publicado sob o título: «Discours aux anciens
élèves de Saint-Jean». In Dehoniana 1 (2002) 27-35. 1913:
AD.B. 7/10, inv. 43.10. 1922: AD.B. 7/10, inv. 43.10. 1924:
AD.B. 40/6, inv. 679.01.
«Nous croyons à des jours meilleurs». Dehoniana, Roma 3 (2000), 1114. Publicação recente do discurso de Dehon que consta nas
atas da Assembléia dos Antigos Alunos, de 1895.
«Discours aux anciens élèves de Saint-Jean, 1907». Dehoniana, Roma,
n. 1 (2002), pp. 27-35. Apresentação e notas de A. PERROUX:
«Présentation du discours du 8 septembre 1907», Dehoniana, 1
(2002) 17-26.
338
BIBLIOGRAFIA
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AAS 3 (2006) 217-252.
———, «Podemos dizê-lo: os funerais de João Paulo II foram uma
experiência
verdadeiramente
extraordinária»,
Primeira
mensagem aos Cardeais eleitores na Capela Sistina, 20 de abril
de 2005, in AAS 97 (2005) 694-695.
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apostolado dos leigos, in EnchVat, I, 518-577.
———, Gaudium et spes, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo
contemporâneo, in EnchVat, I, 772-965.
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in EnchVat, I, 451-475.
———, Lumen gentium, Constituição dogmática sobre a Igreja, in
EnchVat, I, 118-257.
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in EnchVat, I, 384-413.
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sacerdotal, in EnchVat, I, 697-769.
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Religiosa na educação na escola católica, 7 de Abril 1988, in
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Dezembro de 1997, in EnchVat, XVI, 1570-1583.
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de la Congrégation des Prêtes du Sacré-Cœur de Jésus, Curiam
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Roma 2003.
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241/2006, Curiam Generalem, Roma 2006.
———, Notre Règle de Vie. Réimpression de l'édition typique de 1986
avec les amendements apportés par les derniers Chapitres
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S.C. de Propaganda Fide, Roma 1901-1904. Encíclica Mirari
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340
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Iesu qui generali capitulo interfuerunt coram admissos, 14 de
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consagrada e a sua missão na Igreja e no mundo, 25 de março
de 1996, in AAS 88 (1996) 377-486.
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Poliglotta Vaticana, Roma 1979, 1601-1603.
———, «Comporre in un’equilibrata unità vita spirituale ed impegno
apostolico-sociale», in Insegnamenti di Giovanni Paolo II, 14,1,
Tipografia Poliglotta Vaticana, Roma 1991, 1370-1372.
———, «’Rivisitate’ i fondamenti del vostro carisma, consapevoli della
preziosa attualità della vostra missione», in Insegnamenti di
Giovanni Paolo II, 26,1, Tipografia Poliglotta Vaticana, Roma
2003, 922-924.
JOÃO XXIII, Carta apostólica Le voci che da tutti, 1961, in AAS 53
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———, Carta apostólica Annum ingressi, in ASS 34 (1901-02) 513-532.
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———, Encíclica Graves de communi, in ASS 33 (1900-01) 385-396.
———, Encíclica Inscrutabili Dei Consilio, in ASS 10 (1877) 585-587.
———, Encíclica Nobilissima Gallorum Gens, in ASS 16 (1883-84)
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PAULO VI, «Il Capitolo Generale della Congregazione dei Sacerdoti del
Sacro Cuore», in Insegnamenti di Paolo VI, 4, Tipografia
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Lyon 1971.
4. Endereços na Internet [último acesso: 15.03.2007]
Endereço oficial da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de
Jesus http://www.dehon.it
Endereço do Colégio São João – França,
http://www.st-jean02.org/html/cadre.htm
Inventário de 108 caixas de documentos sobre Dehon e a Congregação
SCJ, http://www.knowhowsphere.net/sr.asp?Init=1
Endereço oficial do Vaticano, http://www.vatican.va
Bibliothèque Nationale de France, http://gallica.bnf.fr
354
ÍNDICE GERAL
SIGLAS E ABREVIAÇÕES ............................................................................3
INTRODUÇÃO .............................................................................................7
PARTE I
O PROJETO ESPIRITUAL DE LÉON DEHON
CAPITULO I: O ambiente da experiência espiritual ................................17
1. A França no início do século XIX......................................................17
2. Anticlericalismo e espiritualidade em crescente contraste .................20
3. A Questão Romana ............................................................................22
4. Rápidas transformações no final do século XIX ................................23
5. Espiritualidade cristocêntrica, mariana e litúrgica .............................25
6. O Estado laico ....................................................................................27
7. A Doutrina Social da Igreja................................................................29
8. Início do século XX: Religiosos expulsos da França .........................30
9. O drama da Primeira Guerra Mundial ................................................32
CAPITULO II: A vida e a obra do educador Léon Dehon ........................35
1. Origens, infância e vocação ..............................................................35
2. Estudante universitário em Paris ........................................................38
3. Seminarista em Roma ........................................................................40
4. Possibilidade de consagrar-se à educação ..........................................44
5. Sacerdote em Saint-Quentin...............................................................46
Primeiros desafios..............................................................................46
O Patronato São José ........................................................................47
Possibilidade de ser professor universitário......................................48
355
A atração pela Vida Religiosa ...........................................................49
6. Fundador de uma Congregação e de um Colégio ..............................52
O discernimento de Dehon .................................................................52
A decisão de fundar a Congregação ..................................................56
O Colégio São João ...........................................................................59
Diretor e Noviço.................................................................................61
7. As obras e os escritos de Léon Dehon ...............................................62
CAPITULO III: A espiritualidade de Léon Dehon ....................................75
1. As principais fontes ............................................................................75
2. Dimensões da espiritualidade dehoniana ...........................................80
No Coração de Deus: Ecce venio ......................................................80
No coração da humanidade: Adveniat Regnum Tuum.......................83
No coração da Igreja: Sint unum .......................................................86
3. «A Vida de Amor» .............................................................................88
A «vida de amor» como eixo dos escritos espirituais ........................88
O livro «La Vie d’Amour» .................................................................89
CAPITULO IV: Carisma dehoniano e Educação...................................101
1. A Educação nas origens do carisma dehoniano ...............................101
Colégio e Congregação: obras contemporâneas .............................101
Carisma e Educação nas Memórias de Dehon ................................103
Os cadernos do noviço Falleur ........................................................108
2. A Educação nas Constituições SCJ ..................................................118
As Constituições de 1881 - antes da supressão................................118
As Constituições de 1885 - após a nova autorização.......................126
As Constituições aprovadas pela Santa Sé ......................................132
PARTE II
O PROJETO EDUCACIONAL DE LÉON DEHON
CAPITULO V: Discursos Educacionais no Colégio São João ...............147
1. Uma apologia da educação segundo o ideal cristão .........................147
O contexto político-eclesial..............................................................147
Estrutura do texto e gênero literário ...............................................155
2. Primeiro discurso: Sobre a Educação Cristã (1877) ........................159
356
O objetivo da educação e ensino .....................................................160
Os instrumentos pedagógicos ..........................................................163
O método educacional .....................................................................167
Os frutos de uma educação cristã ....................................................171
3. Segundo discurso: Sobre as Letras Cristãs (1878) ...........................172
O valor literário da Bíblia ...............................................................172
A patrologia grega e latina ..............................................................174
A literatura cristã francesa ..............................................................174
A fé como chave da história ............................................................175
4. Terceiro discurso: Sobre as patriotismo cristão (1879) ....................176
Contexto político-eclesial.................................................................177
Apologia do patriotismo cristão.......................................................179
5. Quarto discurso: Sobre as virtudes da infância (1880) ....................181
6. Quinto discurso: Sobre a harmonia entre a ciência e a fé (1882) .....183
7. Sexto discurso: Sobre o estudo da história (1885) ...........................186
8. Sétimo discurso: Sobre o estudo da geografia (1886) ......................187
9. Sermão sobre «A devoção ao Sagrado Coração» (1885) .................189
10. Excursus: outros discursos educacionais (1887-1893)....................191
Sobre a história local de Saint-Quentin (1887) ...............................191
Sobre a educação do caráter (1891) ................................................192
Sobre o Departamento de L’Aisne (1893)........................................197
CAPITULO VI: Um discurso inédito «Sobre a Educação» ....................201
1. Contexto e relevância ......................................................................202
2. O tema, a tese e a justificativa do discurso ......................................204
O tema ..............................................................................................204
A tese de fundo ................................................................................205
A justificativa do discurso ................................................................206
3. Exemplos de maus educadores.........................................................208
Aves de rapina..................................................................................208
Pássaros da noite .............................................................................210
O avestruz preguiçoso ......................................................................211
O pavão vaidoso ..............................................................................212
4. Exemplos de bons educadores .........................................................213
Nobres e valorosos ..........................................................................214
Suaves e bondosos ...........................................................................215
Dinâmicos e previdentes ..................................................................217
357
Amáveis e amigos .............................................................................218
Artistas, delicados, místicos e sentimentais .....................................219
5. Aplicação prática..............................................................................226
CAPITULO VII: Dehon e os antigos alunos ...........................................229
1. A Associação dos Antigos Alunos do Colégio São João .................229
A Criação da Associação dos Antigos Alunos (1884-1896) ............230
O cultivo do ideal educacional na vida (1897-1913).......................234
Resistência durante a Guerra (1914-1918) .....................................242
Um novo começo (1919-1924) .........................................................243
2. Testemunhos de Antigos Alunos .....................................................244
Guilhaume Crinon ...........................................................................244
Albert Delloue ..................................................................................245
CAPITULO VIII: Léon Dehon e o apostolado intelectual ......................251
1. Uma «Congregação de Estudos» .....................................................252
Registros do Diário de Dehon em 1887 ...........................................252
O projeto da Congregação de Estudos nas Memórias de Dehon .....258
2. Colégios da Congregação durante a vida de Dehon.........................263
O Colégio de Bahía de Caráquez – Equador ..................................263
O Colégio de Ambato – Equador ....................................................267
O Colégio de Olinda – Brasil .........................................................267
O Colégio de Florianópolis – Brasil ..............................................268
O Colégio de Novelda – Espanha ..................................................269
As negociações do Colégio de Millau – Aveyron – França ...........269
3. Dehon e o ensino ao interno de sua Congregação ............................270
EPÍLOGO
CAPITULO IX: O conceito de Educação Integral em Léon Dehon .......281
1. Ideário pedagógico dehoniano .........................................................282
A Educação Integral e a abertura para o Trancendente ............282
Pedagogia da Dádiva .................................................................284
Pedagogia da Cordialidade ........................................................285
A força restauradora da educação .............................................287
Pedagogia da presença ...............................................................288
358
Pedagogia da ausência ...............................................................288
A síntese entre ternura e vigor ....................................................289
Pedagogia do concreto ...............................................................289
Educar a partir do compromisso ................................................290
A centralidade do educando........................................................290
Atenção ao local e ao universal ..................................................291
A (m)paternidade «espiritual» do professor ...............................292
Reencantar a educação ...............................................................292
Pedagogia do amor e do humor ..................................................293
A síntese entre contemplação e ação ..........................................293
2. Alguns referenciais teóricos .............................................................294
3. Uma possível releitura de Dehon .....................................................304
CAPITULO X: Conclusões, balanço e perspectivas ...............................309
1. Conclusões .......................................................................................310
O amor e a verdade se encontraram ..........................................310
O núcleo literário do pensamento educacional dehoniano ........311
A primazia pedagógica da Graça ...............................................312
O objetivo da educação cristã.....................................................312
O direito da Igreja de atuar no mundo da educação ..................314
Método: Educação Integral ........................................................314
2. Balanço.............................................................................................316
Limites .........................................................................................316
Atualidade ...................................................................................318
3. Perspectivas......................................................................................325
A exemplaridade espiritual de Dehon .........................................325
A paternidade carismática de Dehon ..........................................327
FONTES ..................................................................................................331
1. Principais escritos analisados ...........................................................331
2. Obra «completa» de Léon Dehon ....................................................332
Escritos autobiográficos .............................................................332
Cartas ..........................................................................................332
Obras Sociais ..............................................................................333
Obras Espirituais ........................................................................334
Escritos para a Congregação .....................................................335
Outros escritos ............................................................................337
359
Manuscritos inéditos ...................................................................337
Idéias de Dehon registradas por secretários ..............................338
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................339
1. Documentos Eclesiásticos ................................................................339
2. Escritos sobre Léon Dehon ..............................................................342
3. Bibliografia complementar...............................................................347
4. Endereços na Internet .......................................................................354
ÍNDICE GERAL........................................................................................355
360