desafios históricos e contemporâneos das igrejas na
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desafios históricos e contemporâneos das igrejas na
DESAFIOS HISTÓRICOS E CONTEMPORÂNEOS DAS IGREJAS NA AMÉRICA LATINA FRENTE À DIVERSIDADE CULTURAL1 Paulo Suess [email protected] O Brasil é uma “democracia racial” como é uma "democracia política". Ambas as democracias favorecem desigualdades pela origem étnica e o lugar social do nascimento. Ser índio, negro ou branco determina as oportunidades sociais no país. Nesta constelação, fronteiras étnico-culturais são, ao mesmo tempo, fronteiras de desigualdade e exclusão social. Fronteiras étnico-culturais não são, necessariamente, fronteiras de exclusão. Podem também marcar - como certos condomínios ou bairros da classe A – espaços privilegiados da classe dominante. As fronteiras sociais não são naturais, nem fatais. São historicamente construídas, a partir de interesses econômicos e ideológicos. Onde as fronteiras sociais são conjugadas com as fronteiras étnico-culturais, podem ser indicadores de etnocentrismo e racismo. A classe socio-politicamente dominante, geralmente, considera-se a "raça superior". O presente texto busca trabalhar a questão da diversidade cultural a partir da "comunidade de argumentação" eclesial latino-americana. Em sua primeira parte são apresentados oito cenários que, com suas rápidas mudanças, se assemelham ao roteiro de um documentário cinematográfico. O "roteiro" articula o não-contemporâneo com o 1 Seminário Nacional: Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão. O desafio da interculturalidade e da equidade. Tema: A etnicidade no contexto de uma sociedade intercultural, Campo Grande/MS, Universidade Católica Dom Bosco, 16 a 19 de setembro de 2002. O texto foi apresentado na Mesa: “Diversidade cultural no Brasil”, no dia 17.9.2002. contemporâneo e permite o livre trânsito (transdisciplinaridade!) entre filosofia e história, entre antropologia e teologia, entre arte cinematográfica e poesia. Na segunda parte, procura-se em cinco passos traçar perspectivas que permitem à já mencionada "comunidade de argumentação", as igrejas, assumir a diversidade cultural como parte integrante de sua identidade. I. Cenários Cenário 1: Jardim Itápolis Na frente do Museu da Independência, em São Paulo, passa, de quinze em quinze minutos, um ônibus que é um lembrete da diversidade cultural da cidade e do país, e isso não pela diversidade dos passageiros, mas pelo shiboleth na sua testa: “Jardim Itápolis”. “Jardim” lembra a herança portuguesa do país; “itá”, em guarani, significa “pedra” e aponta para a herança indígena, e “pólis” representa o berço da civilização ocidental em Atenas. “Jardim Itápolis": "Jardim Cidade de Pedra”. Os nomes das ruas de São Paulo, as estações de metrô, as estátuas e, sobretudo, as pessoas – tudo está prenhe de diversidade cultural e religiosa, prenhe do prazer e das tensões da diversidade em nível real e simbólico. Nas ruas paulistanas, estátuas de Anchieta e de Anhangüera2 disputam a atenção dos transeuntes. A Grande São Paulo é atravessada por uma "Via Anchieta", por uma "Via dos Bandeirantes" e uma "Raposo Tavares", lembrando o chamado "ciclo de caça ao índio". O povo herdou a alquimia de sua sobrevivência dos índios colonizados, homenageia seus anjos da guarda e respeita seus demônios porque sabe como pode ser útil acender uma vela a Deus e outra ao diabo. O embate do bem contra o mal – tantas vezes invocado nos autos de Anchieta e recentemente nos discursos pseudo-messiânicos contra o terrorismo –, o povo o enfrenta nas ruas, onde a violência real supera a imaginação alegórica dos missionários quinhentistas. Cenário 2: Atenas explica 2 Anhangüera significa Diabo Velho, nome dado pelos índios ao bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva. 2 Os missionários quinhentistas chegaram às Américas despreparados para o reconhecimento da alteridade, ou melhor, chegaram teologicamente preparados para o não-reconhecimento do outro. A questão do reconhecimento da “diversidade cultural” estava hipotecada pelo tratamento filosófico que a questão da unidade e multiplicidade historicamente recebeu. Em toda idade média - e a teologia dominante da conquista era medieval -, o valor da unidade e multiplicidade estava marcada pelo pensamento metafísico, com sua origem na Academia da pólis na Grécia.3 Desde Constantino que transformou o cristianismo marginal do Império Romano em religião oficial, a Igreja assume progressivamente estruturas imperiais. Suporte ideológico para esta transformação forneceu o pensamento metafísico que tem as suas raízes em Platão: como o unum representa o totum, assim a ponta da pirâmide administrativa representaria o essencial de todo o corpo social da Igreja. O que pôde parecer uma certa historização do pensamento metafísico-transcendental, de fato foi uma espécie de alegorização e mitificação dos mistérios da fé na história. Um exemplo para esta mitificação alegorizante: Assim como para o povo yanomami, no norte do Brasil e na Venezuela, a casa representa a sua cosmologia mitológica, as estruturas sociais da Igreja representariam o universo metafísico de sua cosmologia religiosa. Esta Igreja, representante do unum, do uno metafísico e histórico, se entendeu como sujeito do poder espiritual e temporal. Seguindo os precedentes políticos, Agostinho (354-430) e seus seguidores se apropriaram das especulações metafísicas de Platão (427-347 a.C.) até Plotino (205-270), pensamento esse que reduziu a realidade a uma origem e/ou substância: unum est totum (o Uno é o Todo). Hoje diríamos, os teólogos inculturaram a teologia na filosofia de Atenas e os canonistas inculturaram a administração eclesial nas práticas administrativas do Império Romano. Se o Uno é o Todo, o múltiplo carrega em si deficiências do “ser” e da “substância”. O múltiplo representa a depravação do uno. A doutrina da origem única desqualificou a diversidade dos caminhos como desvios. Portanto, os missionários consideravam o passado dos povos autóctones não só irrelevante para a história de sua salvação; o consideravam um estorvo para a transmissão 3 Cf. J. Habermas, La unidad de la razón en la multiplicidad de sus voces, in IDEM, Pensamiento postmetafísico. Madrid: Taurus, 1990. Orignialmente („Die Einheit der Vernunft in der Vielfalt ihrer Stimmen“) in: J. Habermas, Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 153-186. 3 da "verdadeira religião". Para os catequistas da conquista e sua teologia ainda inspirada pelo neoplatonismo e a relativa unidade do mundo medieval, o plural das vozes e dos modos de ser encontrados nas Américas representava um afastamento da verdade única e padronizada nas experiências históricas e expressões culturais da Europa. Cenário 3: Os encontros de Porto Seguro e a mesmice Se a multiplicidade é viciada por deficiências do ser, também a alteridade é impregnada por uma falta substancial. Os missionários compreenderam, por conseguinte, seu trabalho como redução da multiplicidade e como incorporação na própria identidade. Fazer do outro alguém que é semelhante ou igual ao pregador europeu parecia uma proposta generosa. A primeira Missa celebrada por Frei Henrique de Coimbra na Terra da Santa Cruz, reflete este pensamento mimético, nas palavras do cronista Pero Vaz de Caminha que destaca os índios como aqueles que fazem tudo como nós: "Ali estiveram conosco, assistindo a Missa, perto de cinqüenta ou sessenta índios, assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando se chegou ao Evangelho, ao nos erguermos todos em pé com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram a assentar-se, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos."4 Ao concluir a descrição do evento de Porto Seguro, Pero Vaz resume: "E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que nos entenderem, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos."5 Procuraram evitar o pior, o encontro, 500 anos mais tarde, 22 de abril de 2000. A Polícia Militar baiana tentou impedir a marcha dos povos indígenas e dos seus aliados do movimento popular de Porto Seguro a Coroa Vermelha. Os índios que se recusaram a fazer tudo como nós, foram violentamente reprimidos, com bombas de efeito moral, numa operação militar sem precedente. Algumas cenas daqueles dias jamais esqueceremos: Gildo Terena tentando impedir a repressão contra os índios, colocando-se de joelhos em frente à tropa de choque; um grupo Kayapó, rasgando as roupas que 4 5 S. CASTRO (ed.), A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 1985, p. 95. Ibidem, p. 96. 4 vestiam, num grito de revolta contra a humilhação; Matalawé (Jerri Adriani dos Santos), Pataxó sobrevivente da região, no dia 26 de abril, interrompe a missa oficial de comemoração do descobrimento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil com um pronunciamento contundente: "Hoje é um dia que poderia ser um dia de alegria para todos nós. (...) Onde vocês estão pisando vocês têm que ter respeito porque essa terra pertence a nós. (...) quinhentos anos de sofrimento, de massacre, de exclusão, de preconceito, de exploração, de extermínio de nossos parentes, aculturamento, estupro de nossas mulheres, devastação de nossas terras, de nossas matas que nos tomaram com a invasão. (...) Estamos de luto. Até quando?"6 Porto Seguro 2000: massacraram o encontro e substituíram a festa por seu simulacro. Mesmo indo a pique a bordo de um navio com mastro quebrado, levantam as suas taças com cachaça e sangue, dando vivas à morte dos índios sem terra. Apenas uma réplica. Mesmice, nada original. Cenário 4: Confusão babilônica A diversidade lingüística encontrada nas Américas, os missionários quinhentistas a comparavam, muitas vezes, com a confusão babilônica. O padre José de Acosta (15401600), primeiro provincial dos jesuítas no Peru, por exemplo, constata em seu tratado De procuranda indorum salute (1576) com uma certa resignação: "Dizem que em outros tempos com 72 línguas entrou a confusão no gênero humano; mas estes bárbaros têm mais de 700 línguas (...)".7 Também o padre Antônio Vieira (1608-1687), em seu Sermão da Epifania, aponta entre as dificuldades para a catequese dos índios a questão lingüística. "Na antiga Babel houve setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e cinqüenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega; e assim, quando lá chegamos, todos nós somos mudos e todos eles surdos".8 6 Cf. Porantim XXII/225 (Maio 2000): 18. . J. de ACOSTA, De procuranda indorum salute. In: Obras del padre José de Acosta. Madrid: Atlas (B.A.E. 73), 1954, p. 399 (liv. 1, cap. 2). 8 A. VIEIRA, Sermão da Epifania (1662). In: Sermões. Porto: Lello & Irmão, 1959, p. 24 (vol. 1, tomo 2, I/4). 7 5 A redução da diversidade é uma luta antibabélica. A redução ao Uno era interpretada como a “recapitulação” em Jesus Cristo, da qual São Paulo fala. Salvação significava, portanto, reverter a confusão e dispersão de Babel. Frente às exigências de uma origem e de um caminho único e frente à diversidade cultural dos povos autóctones das Américas, os termos "tutela" e "redução" se tornaram palavras chave da "conquista espiritual". A "tutela" - o cuidado com as ovelhas perdidas no mundo! - foi praticada ou na forma branda do paternalismo de um Frei Mendieta para quem os seus confrades franciscanos são os "pais desta mísera nação"9 de índios; ou na forma mais severa de Juan de Zumárraga, inquisidor e primeiro bispo do México, admoestado pela rainha, em carta de 26 de junho de 1536, para moderar a sua maneira de castigar os neófitos. O termo "redução" podia significar redução da pluralidade cultural e religiosa aos padrões europeus em "doutrinas" mais ou menos abertas ou em "missões" fechadas; podia significar redução da "margem da humanidade" ao centro e redução da complexidade social entre conquistados e conquistadores no interior de uma cristandade única. A "redução" como experiência missionária não transformava uma multiplicidade arbitrária em diversidade articulada; não gerava, em reposta a uma suposta confusão babilônica, um novo pentecostes. Gerava, sim um abrigo contra "excessos" de violência estrutural ("sistema colonial") ou individual, pago com a perda da liberdade e da diversidade dos povos indígenas. Cenário 5: Mundo às avessas Ao atravessar o Equador com 44 companheiros, no dia 22 de fevereiro de 1691, o jesuíta Antônio Sepp anota em sua carta-diário “Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos”10: “Costuma-se mudar tudo sobre o equador. A água apodrece, a carne fica fedorenta, morrem percevejos, pulgas e outra bicharia.” A agulha magnética da bússola, porém, não se desloca. Ela continua apontando 9 Carta del padre Fray Gerónimo de Mendieta (1562). In: J. GARCÍA ICAZBALCETA, Coleccion de documentos para la historia de México. Vol. 2, México: Porrúa, 1980, p. 522. - Tb. integralmente em port. in: P. SUESS, A conquista espiritual da América Espanhola. 200 documentos – século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 884-903, aqui 889 (Doc. 184). 10 A. SEPP, Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 73, 82, 85. 6 “fiel e exatamente para a Estrela Polar. A diferença está toda em nós mesmos, que precisamos modificar nosso conceito. Quando é meio-dia na Europa, é meia-noite aqui entre nós. (...) O vento norte gélido da Europa é aqui bem morno. Tudo às avessas. (...) Em dezembro e janeiro, quando na Europa tudo gela, comemos figos e colhemos lírios. Numa palavra, tudo aqui é diferente, e está a cunhar a expressão, chamando a América de ‘mundo às avessas’. (...) No dia 28 de fevereiro entramos para o jejum quaresmal, aliás de acordo com o calendário, e não com a realidade.” Como organizar calendários supostamente universais de acordo com a realidade, ao mesmo tempo cosmológica e local? Como aprender que o “mundo às avessas” é um mundo culturalmente diferente que participa de um universalismo moral com toda a humanidade (Kant)? Como transformar o imaginário do visitante para que caiba nele o “bárbaro” como outro e o outro como irmão? Como potencializar a sabedoria dos contextos para que o mundo globalizado não ameace a sua identidade, mas fortaleça suas raízes e amplie seus horizontes? Não se trata aqui de uma oposição entre “tradicional” e “moderno”, mas entre alteridade hegemônica com fantasias de universalidade e alteridade cooperativa que tem consciência dos seus limites regionais. A ideologia dominante, hoje é contestada por causas que lutam contra o monopólio e a hegemonia, como o feminismo, o comunitarismo e o pos-modernismo, as lutas indígenas e afro-americanas, as causas das minorias étnicas e das maiorias sociais marginalizadas ou excluídas. Cenário 6: Inocência perdida O que o jesuíta André João Antonil escreveu no início do século XVIII, ainda hoje encontra seus reflexos no espelho da realidade. Existem três Brasis, escreve Antonil: O Brasil inferno, o Brasil purgatório e o Brasil paraíso. Estes três Brasis são povoados e dominados, leiloados e repartidos segundo a cor e a origem cultural dos seus habitantes. Escreve o jesuíta italiano em Cultura e opulência do Brasil (1711): “O Brasil é inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas”.11 O religioso, ainda muito distante de uma “Pedagogia dos Oprimidos” de Paulo Freire, nos deixou também outras palavras de efeito, como por exemplo: “Para o escravo são necessários 11 A. J. ANTONIL, Cultura e opulência do Brasil (1711). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP, 1982, p. 90 (livro I, cap. 9). 7 três PPP, a saber, pau, pão e pano”.12 Sem entrar no mérito da questão de quem estaria mais perto do purgatório, do inferno ou do paraíso, pode-se afirmar que, desde a conquista do Brasil, a diversidade cultural perdeu a sua inocência paradisíaca. Ser índio, negro ou branco não só determina as oportunidades sociais no país, mas também - pelo menos pela leitura que nosso teólogo de colonização faz - as chances de - salvação. A luta social acoplada à diversidade cultural está na cara do povo e nas ruas de cada cidade. Mas, também os apologetas dos 500 anos como apologetas da "salvação possível" perderam a sua inocência. A partir de sua convivência com os Tupinambá, Anchieta tinha boas condições de conhecê-los em sua originalidade. Conhecer, no paradigma ocidental, significa "objetivar". Anchieta tinha - assim os apologetas - poucas possibilidades de reconhecê-los em sua alteridade subjetiva. A teologia colonial dissocia o conhecimento do reconhecimento. É claro, não podemos cobrar-lhe leituras antropológicas e chaves hermenêuticas do século XXI. Mas, em todas as épocas encontramos pessoas que romperam com o cerco etnocêntrico de tradições, na respectiva época, culturalmente corretas. A consciência quinhentista possível encontramos, por exemplo, na consciência leiga de Montaigne e Gil Vicente.13 Cenário 7: Exclusividade do poder Os missionários que atuavam na microestrutura tentavam reproduzir a constelação do uno que representa o todo. Em nome da "salvação integral" lutavam pelo poder total, chamado policía mixta14 (poder temporal e espiritual) e pela reconstrução do mundo no singular. "Pois esta gente (os índios) é tão mísera e baixa que, se não tem com eles toda autoridade, não tem nenhuma", escreve Gerónimo de Mendieta a Francisco de Bustamante, comissário geral dos franciscanos nas Índias.15 E Antônio Vieira lamentou um século mais tarde: "Querem que tragamos os gentios à fé, e que os entreguemos à cobiça; querem que tragamos as ovelhas ao rebanho, e que as entreguemos ao cutelo". 12 Ibidem, p. 91. Cf. P. SUESS, José de Anchieta – Enigma e paradigma frente à alteridade tupinambá. In: Actas do Congresso Internacional Anchieta em Coimbra - Colégio das Artes da Universidade, tomo III, Porto: Fundação Eng. António Almeida, 2000, p. 1119-1132. 14 . Cf. V. de QUIROGA, Información en derecho (1535). México: Secretaría de Educación Pública, 1985, p. 175s. 15 . Carta del padre Fray Gerónimo de Mendieta, l.c., p. 519. – Tb. P. SUESS, A conquista espiritual, l.c. 887. 13 8 Como se pode ver, os motivos para a reivindicação do poder espiritual e temporal pelos religiosos eram nobres: proteção dos índios da cobiça do conquistador e colonizador. Vieira resume em seguida a ideologia da cristandade em poucas palavras: "Acabe de entender Portugal que não pode haver cristandade nem cristandades nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes dois caminhos, que hoje lhes mostrou Cristo. Um caminho para trazerem os Magos à adoração, e outro para os livrarem da perseguição: um caminho para trazerem os gentios à fé, outro para os livrarem da tirania: um caminho para lhes salvarem as almas, outro para lhes libertarem os corpos. Neste segundo caminho está toda a dúvida, porque nele consiste toda a tentação. Querem que aos ministros do Evangelho pertença só a cura das almas, e que a servidão e cativeiro dos corpos seja dos ministros do Estado. (...) Querer dividir estes caminhos e estes cuidados, é querer que não haja cuidado, nem haja caminho. Ainda que um destes caminhos pareça só espiritual, e o outro temporal, ambos pertencem à Igreja e às chaves de S. Pedro, porque por um abrem-se as portas do céu, e por outro fecham-se as do inferno. (...) Que importa que Pedro tenha chaves das portas do céu, se prevalecerem contra ele e contra a Igreja as portas do inferno? Isto não é fundar nova Igreja, é destruí-la em seus próprios fundamentos."16 Em certas circunstâncias históricas poder-se-ia delegar o poder ao braço secular; nunca, porém, poder-se-ia repartir este poder com o Estado, com os conquistados ou com os quadros subordinados da própria Igreja, representados, aos olhos da hierarquia nascente, pelos religiosos. Os religiosos, por sua vez, alegavam, perante os bispos, o direito do primogênito das Américas e o poder de privilégios papais bem circunscritos no Breve Exponi nobis, de 1522, logo chamado de "bula Omnimoda".17 A reconstrução de um mundo no singular com uma origem única exclui também a possibilidade da repartição do poder no interior da Igreja. Na cristandade, a reivindicação de “participação interna” na Igreja – que configuraria uma espécie de democracia - é suspeita como "poder paralelo" e desrespeito da ordem divina. 16 . A. VIEIRA, Sermão da Epifania, l.c. p. 32s. . Cf. P. TORRES, La bula Omnimoda de Adriano VI. Madrid: Instituto Santo Toribio de Mogrovejo/C.S.I.C. (Bibl. "Missionalia Hispanica"), 1948. O breve Exponi nobis, mais conhecido como "bula Omnimoda", concedeu extraordinários poderes espirituais às ordens mendicantes, poderes que logo causaram conflitos com os respectivos prelados. - Texto integral em port. in: P. SUESS, A conquista espiritual da América Espanhola, l.c. p. 256-258 (Doc. 36). 17 9 Cenário 8: Desaparecidos, não esquecidos Hoje, os interlocutores principais de Anchieta, Vieira e Antonil são "outros" desaparecidos, e lembram o pecado histórico das missões, a redução da diversidade. Falar da diversidade cultural no Brasil significa falar de desaparecimentos, de exclusão e redução, de mestiçagem e sincretismo e de luta contra o esquecimento. A memória dos desaparecidos pode-se tratar na arqueologia, na história, na antropologia ou na teologia. A invocação desta memória dos desaparecidos pode significar: chegou a “hora da verdade”, verdade no sentido original de não-esquecimento e memória. O rio Lete (ληθη), na mitologia grega, é o rio que atravessa o reino dos mortos. Quem bebe de suas águas perde a memória de si mesmo. Portanto, “a-lete” – αληθεια (aletheia) que significa no grego, na língua do Novo Testamento, verdade - é “nãoesquecimento” e memória. E essa memória pode significar lembrança e saudade, mas também indignação que visa à ruptura com a barbárie contemporânea. A comemoração, como vimos, pode ser uma maneira sofisticada de reprimir a memória histórica e de fazer esquecer. O culturalmente correto e lembrado, as respectivas ondas de uma época, o padrão de santidade que serve, em correspondência com determinadas prioridades políticas e espirituais de um pontificado, para as canonizações, e o mainstream da ciência são afluentes do rio Lete. O que não foi publicado em inglês, de cinco anos para cá e em determinadas revistas de renome, recebe o carimbo do forget it.18 Mártires e hereges, pobres e excluídos, outros e minorias que são a memória evangelicamente significativa de sua época, questionam a conveniência política do forget e delete. II. Perspectivas 1. Modernidade, ilustração e secularização questionaram certas premissas metafísicas (unum est totum) do trabalho missionário. Após um tempo vivido como nãocontemporaneidade ou exílio, a Igreja aderiu, através do Vaticano II, ao mundo moderno e suas conquistas de igualdade, liberdade, solidariedade, de autodeterminação e 18 Cf. H. WEINRICH, Lete. Arte e crítica do esquecimento, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 293ss. 10 participação democrática. Os anos de ‘70 forjaram uma nova sensibilidade e lucidez eclesial. O Cimi, a CPT e as CEB’s são reflexos desta nova sensibilidade sócio-cultural no Brasil. As Igrejas descobriram que estão diante dos mesmos desafios como a maioria da humanidade, diante da dialética do progresso ilustrado e contraditório, diante dos desafios da pauperização, da migração, do racismo, das questões da terra e da ecologia, do multiculturalismo e, desde a queda do muro de Berlim, em 1989, da hegemonia do Império. A partir da segunda metade do século XIX, a antropologia cunhou o conceito “cultura” para descrever a experiência humana. Originalmente, a noção de cultura era aplicada no singular, quase idêntica com o conceito de “civilização ocidental”. Hoje, o conceito “culturas”, quase sempre usado no plural, nos permite observar e pensar positivamente a diversidade das experiências humanas. O conceito “cultura” modificou para uns e substituiu para outros o conceito “filhos e filhas de Deus” vinculado a uma visão teológica monogenista que presumiu - na origem de toda a humanidade - um casal perfeito, criado por Deus (Adão e Eva). O monogenismo bíblico induziu a ler as diferenças humanas em chave de degeneração (causada pelo pecado original) e rebeldia contra a lei de Deus, inscrita na natureza e na ordem cosmológica imutável; em chave de perda (do estado de graça) e de castigo (expulsão do paraíso e confusão babilônica), de desvios do caminho único traçado por Deus na Igreja Católica (fiéis versus hereges e infiéis). A partir de uma visão mais ampla e científica da evolução da vida, hoje prevalece na antropologia e na teologia a visão monogenista, não a partir de um casal primordial perfeito, mas a partir de um ramo da linha evolutiva da vida. 2. A reflexão sobre os legítimos protestos contra o pensamento unitário que exclui, sob o ângulo da utilidade e da eficácia, a diversidade das vozes, a alteridade dos projetos e a multiplicidade das experiências religiosas, não dispensa a reflexão sobre o resgate dos legítimos anseios da universalidade de projetos de vida diferentes. Isso obriga a recorrer à distinção entre uma universalidade hegemônica e uma universalidade articulada (agir piramidal versus agir em rede). O contextualismo míope (“paroquialismo”, “tribalismo”, “fundamentalismo”), incapaz de fazer convergir processos sociais e projetos de vida para 11 uma articulação maior que poderá configurar uma utopia partilhada, pode ser tão destrutivo como o universalismo hegemônico. Frente ao projeto de Jesus de Nazaré – Reino de Deus como “utopia partilhada” -, tanto a universalidade hegemônica como o contextualismo míope configuram o anti-projeto e a tentação histórica de cada época. 3. No mundo pós-moderno e pós-metafísico de hoje, o antigo pensamento unitário e seu substrato autoritário é denunciado como totalitarismo do “grande relato”. A Pax Romana é, como a Pax Americana, uma forma peculiar de guerra que elimina as pequenas histórias, despreza o saber local e esmaga os contextos. O sofrimento dos pobres e dos outros apontam para o núcleo provincial da civilização ocidental e sua racionalidade destrutiva. Quando esta racionalidade produziu uma civilização capitalista mundial que coopta as culturas e corrompe a convivência através da redução de tudo ao “lucro logo existo”, percebemos, definitivamente, que as corujas de Atenas – símbolos desta racionalidade – são pássaros da noite, cegos, como a justiça que dá aos ocupantes de terras indígenas todos os recursos sofisticados de protelação (cf. o Decreto 1775!), enquanto despeja os índios de suas terras com “mandatos de insegurança”. 4. A herança de Israel lembra uma outra racionalidade e uma outra justiça. Para o Deus da Bíblia lembrar – sobretudo lembrar-se dos pobres - é uma questão de verdade. Sua palavra é verdade e sua verdade é não-esquecimento (a-letheia) e memória, não doutrina ou letra morta. Ele não particulariza, nem privilegia; não exclui, nem esquece. Sua universalidade cresce com sua proximidade que é "cognitiva" em sua memória, "sensitiva" em seu olhar e em sua escuta, e "emocional" em sua compaixão. Razão, religião e justiça sem compaixão são capazes de andar, não sobre as águas, mas sobre cadáveres (“guerra santa”). Lembrar é a essência da "verdadeira religião". O cultivo da memória é a melhor herança que os cristãos receberam de Israel. A universalidade que tem a sua raíz na memória (verdade) universal de Deus não pode ser uma universalidade hegemônica ou piramidal pregada pela “missão clássica”, na perspectiva de incorporação, submissão ou triunfo da fé do “povo escolhido” sobre os demais. A escolha do novo povo de Deus significa escolha da memória do Êxodo e do Exílio para o serviço de um mundo sem êxodo e exílio, sem exclusão e sem hegemonia. 12 Já no Antigo Testamento surge a perspectiva profética que rompe com o exclusivismo privilegiado do povo de Deus: “Não basta que sejas meu servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os fugitivos de Israel. Vou fazer de ti a luz das nações para propagar minha salvação até os confins do mundo” (Is 49,6). “Ser luz das nações” numa dimensão de responsabilidade universal da fé não significa necessariamente uma universalidade representativa que faz de Israel ou, mais tarde, dos cristãos os representantes da salvação no mundo. “Ser luz das nações” aponta para uma universalidade participativa e articulada. Portanto, a universalidade da fé não exige a inclusão do outro, mas a sua não-exclusão. Os profetas mostram que não é impossível viver na “vida falsa” do sistema que exclui, uma “vida autêntica” (contra Adorno). Mas, a “vida autêntica” ainda não é a “vida plena”. A reversão da exclusão não aponta para a vida heróica na “vida falsa” (depois da inclusão), mas para rupturas sistêmicas através da articulação entre iguais com projetos de vida (culturas) diferentes. Os acontecimentos de Porto Seguro representam uma destas rupturas. Os povos indígenas romperam as molduras das imagens do indigenismo oficial e pularam da parede do museu para o chão da história. Com suas reconquistas, mas também com seu “comunitarismo” mexem, diariamente, com fronteiras étnico-culturais impostas. A própria leitura bíblica perde, através dos povos indígenas, seu autoritarismo monocultural e ganha autoridade profética. Nesta perspectiva pode-se fazer a leitura de Isaías à luz de Amós: “Ó filhos de Israel, disse Jahvé, não sois para mim como os cuchitas (etíopes)? Se tirei Israel do Egito, não tirei também os filisteus de Cáftor e os sírios de Quir” (Am 9,7)? Êxodo, exílio, libertação aqui não são privilégios de Israel, mas experiências paradigmáticas ou arquetípicas de todos os povos oprimidos.19 O Deus de Israel se inclina também a outros povos como, mais tarde, o Deus de Jesus de Nazaré. Nesta nova compreensão da universalidade como articulação e não como representação ou integração ao caminho único, a missão não é mais incorporação ao próprio, mas, a partir do próprio, articulação de uma peregrinação macroecumênica ao monte de Javé. A partir do Evangelho compreendemos a unidade como diversidade de núcleos de vida 19 Cf. M. Walzer, Zwei Arten des Universalismus. Babylon. Beiträge zur jüdischen Gegenwart, 7 (1990): 725, aqui 10. 13 articulados, relacionados e conectados na construção de um projeto de vida que inclui a todos numa caminhada para o novo. 5. O cristianismo eurocêntrico e monocultural que se copulou, pelo preço da amnésia, no vôo cego da coruja, hoje se junta ao vôo da gaivota que simboliza sua origem no Espírito Santo. Pentecostes, onde todas as vozes convergem para um projeto – a unidade no Espírito Santo -, representa a universalidade contextualizada e articulada entre razão, lógica e memória locais com um projeto que prevê a partilha simétrica dos bens da terra e as chances do futuro. Hoje, uma das condições prévias da fraternidade é a recuperação da memória dos esquecidos e a abolição da tutela sobre os excluídos, mesmo na forma sutil do porta-voz dos sem-voz. A recuperação e articulação da multiplicidade das vozes dos oprimidos de ontem é um ato de justiça para com os injustiçados e os excluídos da memória oficial e da vida real de hoje. Os povos indígenas guardam na particularidade de seus projetos os anseios de um mundo novo. Carregam em seus projetos de vida a memória de toda a história. Vejo nos ciscos de esperança em seus olhos a promessa de um mundo novo para todos. Desenvolvimento e interculturalidade ? Notas para um debate. Gilberto Azanha Antropólogo – CTI O que, talvez, se espere que eu diga aqui enquanto antropólogo, é se existe a possibilidade, ao menos teórica, de se traçar uma política de desenvolvimento que leve em conta a diversidade cultural. Ou posto em outros termos: se é factível traçarmos parâmetros aceitáveis para políticas públicas que não só contemplem as “fronteiras étnicos-culturais” mas que não transformem estas fronteiras em “fronteiras de exclusão”. E ainda - já que os sub-títulos do seminário apontam explicitamente – se isso é possível que ela, além de respeitar a diversidade cultural, o faça com algum grau de eqüidade. 14 Bem, os conceitos de “etnicidade”, “diversidade cultural” e “fronteiras étnicas” são familiares aos antropólogos, que os construíram para tentar explicar certos fatos sociais; porém quando se trata de juntá-los a conceitos dúbios como “desenvolvimento” e “eqüidade” as questões envolvidas ficam um pouco mais complexas, ao menos para mim. Pois como a perspectiva teórica da antropologia é muito centrada no relativismo cultural (isto é, assumimos em certa medida o ponto de vista dos grupos sociais ou sociedades humanas com as quais trabalhamos), sempre corremos o risco de frustar algumas expectativas. Por exemplo: se vamos levar em conta, no desenho de uma política de desenvolvimento para o Mato Grosso do Sul, a diversidade cultural aqui presente e se dermos a um antropólogo um cargo onde sua visão tenha realmente peso nesse desenho – correremos o risco de terminar formatando não uma política, mas a política para os Kaiowá, a política para os Terena, para os Kadiwéu, para os Guató ou para os quilombolas. Ao contrário do antropólogo, o planejador público é generalista, por dever de ofício: ele deve levar em conta no planejar um (in)certo equilíbrio de forças (políticas) originadas ou conduzidas por grupos sociais (específicos agora) considerados por ele como beneficiários da política de desenvolvimento, política esta que implica sempre uma repartição dos recursos (por definição escassos). Se o grupo político que detém o poder de repartir for sério, pode utilizar alguns critérios aparentemente neutros para efetuar tal repartição (como por exemplo, a densidade e o crescimento demográfico da região, o estado dos equipamentos coletivos disponíveis, a qualidade dos serviços públicos prestados etc.) para tentar atingir um certo grau de equanimidade na repartição e distribuição os benefícios. Se o grupo social no poder não for sério, ele fará da repartição dos recursos “uma ação entre amigos”, privilegiando seus próprios grupos de interesse (seus correligionários, como se diz por aqui). Para um antropólogo sério, a questão das alternativas ou novos modelos de desenvolvimento estará sempre centrada na imposição de políticas que levem em conta os interesses dos grupos sociais com os quais trabalha. Ele estará agindo como um planejador não-sério, no contexto do exemplo acima: ele jamais buscará uma equidade. Como antropólogo dos Kaiowá, por exemplo, não estou muito interessado em uma política para os índios em geral (como o planejador generalista) mas sim no que, e em que, tal política pode beneficiar as aldeias Kaiowá para as quais me sinto autorizado a me 15 colocar como interlocutor e vou agir, se espaço houver pata tanto, como um lobista dos interesses daquelas aldeias. Ou seja, vou atuar para influenciar a política tendo em conta o meu grupo de interesse. Não sou sério então...como planejador, apesar de o ser enquanto antropólogo envolvido por seu objeto de estudo. Ocorre que, em um espaço político dado, diferenças culturais implicam em fronteiras sociais, mais ou menos marcadas em função dos preconceitos construídos por ambos os lados no processo de vivência “intercultural”, pois, como diria Ruth Benedict “não há ninguém no mundo com uma visão isenta de preconceitos. Vê-o sim, com o espírito condicionado por um conjunto definido de costumes, e instituições e modos de pensar. Nem mesmo nas suas concepções filosóficas ele consegue subtrair-se a esses estereótipos; até seus conceitos do verdadeiro e do falso são ainda referidos aos seus particulares costumes tradicionais”. A este sentimento, comum a todos os povos e grupos sociais, a antropologia dá o nome de etnocentrismo. Estamos, pois, nos referindo aos conceitos de cultura e de etnocentrismo e a conseqüência positiva deste último conceito, que é o relativismo cultural. Este conceito diz respeito aos diferentes significados que os grupos sociais dão para um mesmo elemento do mundo natural. Pode-se utilizar exemplos ligados a fatos biológicos - como a menstruação, a gravidez, a concepção - que ocorrem em todas as sociedades humanas, mas para o qual são atribuídos significados próprios a cada grupo. A diversidade cultural deve ser explorada; isto é, a comparação sem julgamento de valor entre as formas que diferentes povos encontraram para uma mesma questão permite que relativizemos a nossa própria forma e possamos desenvolver uma postura mais aberta e de respeito as diferenças étnicas e culturais. Dado que toda “cultura é um código simbólico construído socialmente, compartilhado por todos os membros do grupo social que a construiu”, é possível então aprender modos novos, diferentes dos nossos, de ver o mundo e de dar significado às coisas. Ou seja, a comunicação é possível entre culturas diversas. Enquanto integrado a um determinado grupo social todo e qualquer indivíduo tende a tomar a sua própria cultura (significados, valores e regras) como padrão para julgar todas as outras, concebendo-a inclusive como característica natural da sociedade humana. Entendo, dadas as premissas acima, a expressão interculturalidade como o processo de comunicação entre culturas diferentes num mesmo espaço político (estado-nação ou estado federado ou município etc.); ou sobre como se efetuam as trocas de significados ou sentidos num ambiente onde os interlocutores obedecem a códigos culturais diferentes. Trata-se de saber o que passa e como se passa essa diferença. E o antropólogo é o especialista nisso: é ele que, ao privilegiar o outro (e seu ponto de vista) por dever de ofício e sendo ele próprio portador dos códigos de um dos lados, está autorizado a agir como ponte ou correia de comunicação entre os dois lados. Se o prefixo inter da culturalidade diz alguma coisa é sobre uma ponte que pode ser lançada entre dois abismos, entre dois fossos ou duas “fronteiras” 16 cavadas historicamente por preconceitos de ambos os lados e que forjam suas visões etnocêntricas; o prefixo não pode dizer nada sobre um pretendido compartilhamento democrático de códigos, símbolos etc; mas diz muito sobre as apropriações mútuas de bens culturais, processo este responsável inclusive pelas mudanças verificadas nas diferentes culturas ao longo da história. Portanto, entendo que as fronteiras étnicas ou culturais são construções sociais em constante e permanente renovação; ultrapassa-las ou anula-las (mesmo em um sentido cheio de boas intenções politicamente corretas) significa anular um dos lados, pois uma das visões será amputada no mesmo movimento. Por outro lado, sempre é possível constatar que, do ponto de vista do poder, um dos lados é o mais fraco e o lado mais forte pode – e a história demonstra que o faz – usar seu poder para, senão excluir de todo, minimizar os interesses do outro lado. Mas as boas intenções em voga das chamadas “políticas de inclusão social” temo que só seriam bem sucedidas se aplicadas exclusivamente em contextos de homogeneidade cultural, onde as tais fronteiras fossem suspensas ou abolidas de todo. Em suma e para finalizar: para os povos indígenas que se esforçam e têm se esforçado ao longo do tempo em marcar sempre suas fronteiras étnicas e culturais (como os Kaiowá, os Terena, os Kadiwéu, os Guató...), o que se verifica é na verdade um processo de “auto-exclusão” cultural, apesar das aparências. O que não quer dizer que não lutem por um espaço de poder onde o reconhecimento das suas diferenças possa ser traduzido em respeito às suas reivindicações por condições mais dignas de existência, refletidas, quiçá, em políticas de desenvolvimento centradas em seus pontos de vistas...e seus “preconceitos”. Tabatinga, 18 de setembro de 2002 Diferenças étnicas e educação intercultural: a partir de que entendimento de etnicidade? Lúcio Kreutz PPGed – UNISINOS São Leopoldo – RS 17 Resumo A temática das diferenças culturais e sua conjugação com o processo educacional em perspectiva de interculturalidade está tendo presença mais freqüente no cenário da educação.Normalmente é apresentada de forma a sensibilizar para a riqueza das diferenças étnicas, como expressão da caminhada histórica dos diversos grupos, realçando-se os aspectos positivos vinculados com a possibilidade de um diálogo intercultural. E a escola, tendo desempenhado historicamente uma função homogeneizadora, começa a ser vista como um espaço favorável para se articular iniciativas na perspectiva da interculturalidade. De fato, vejo que este pode ser um caminho promissor. No entanto, é fundamental que nos perguntemos sobre a concepção de etnicidade e de identidade que se veicula. Desenvolvo a reflexão a partir de autores que apontam para a desubstancialização da categoria de etnia, de identidade e para o descentramento da subjetividade, facultando, assim, realçar na análise mais o processo e a trama histórica na qual os grupos étnicos foram se constituindo em dinâmica permeada pelas relações de poder. 18 Introdução A crescente ênfase na interculturalidade parte do pressuposto que o processo identitário étnico é um dos elementos constitutivos da dinâmica social.A dimensão cultural constitui-se em eixo desencadeador de confrontos e de interações que repercutem no processo educacional. O fato novo na educação é o crescente reconhecimento da legitimidade das diferenças culturais e sua importância para o processo educacional/escolar. A partir da última década, ampliando-se gradativamente o diálogo com outras áreas da ciência, os atores do processo escolar percebem-se envolvidos numa complexa rede de interações em que seu pertencimento étnico interfere na construção de significados. Neste sentido, configura-se de forma crescente o entendimento que a escola pode ser concebida como espaço para o encontro entre as diferentes formas de ser, de pensar, de sentir, de valorizar e de viver. Diversos autores começaram, também nestes últimos anos, a ensaiar novas configurações para a dinâmica educacional/escolar, atentos para a importância da dimensão cultural em todo este processo. Colom (apud Rodrigues, 1998, p.1) realça que a escola começa a fazer sentido na medida em que seja capaz de preparar o aluno “para viver no meio de culturas diferentes, compreendendo as variadas situações multiculturais.” Diz que isto facilita o domínio de outros costumes e de formas de pensamento diferentes do próprio. Dayrell (1996, p.136) entende que falar da escola como espaço sócio-cultural implica “resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a constitui enquanto instituição”. Juliano (1993, p.66) salienta que importa enfatizar os pontos de contato e de diálogo entre as culturas, sendo que “a escola poderá ser um espaço propício para desenvolver com os alunos a percepção das especificidades étnicoculturais próprias, a distinção e o reconhecimento das especifidades de outros grupos étnicos”. Parece-lhe que assim se pode estimular os alunos a um diálogo intercultural. Muitos outros começaram a enfatizar idéias semelhantes nos últimos anos. Arroyo talvez esteja sintetizando a compreensão de muitos ao dizer que buscamos novos horizontes e uma base epistemológica que “reflita ao mesmo tempo a complexa diversidade de 19 identidades, grupos, etnias, gênero, diversidade demarcada não apenas por relações de perda, de exclusão, de preconceito e discriminação, mas demarcada por processos ricos de afirmação de identidades, valores, vivências, cultura. (1996, p.7) No entanto, a interculturalidade entra em cena, entre os educadores, ainda de forma incipiente. As manifestações estão mais em nível de desejo, de aspirações, do que de encaminhamentos e práticas consistentes. Já se avançou bastante nos estudos históricos em que se aponta a predominância de uma prática monocultural na escola. Sabemos através de todo um conjunto de pesquisas que a escola tem sido a instituição envolvida predominantemente pelas diversas formas de regulação social e moral, tendendo a concepções fixas, substancializadas, de identidade e de cultura. A partir da modernidade, no contexto de formação dos Estados/Nação, a diferença cultural foi considerada um obstáculo para a formação da nacionalidade e do “povo”, sob o prisma de um pretenso coletivo. Giroux (1995, p.86) talvez expresse uma boa síntese do entendimento de um conjunto de estudos históricos nos quais se realça que a escola, pelo seu envolvimento com uma noção de identidade nacional ligada a uma cultura tradicional, ocidental, “tem ignorado as múltiplas narrativas, histórias e vozes de grupos, cultural e politicamente subordinados”. O que ocorre na educação é expressão de uma tendência mais ampla em que, segundo Guibal (1997), há um movimento de superação do centrismo epistemológico que leva a significações absolutas. Avança-se na desconstrução crítica e entende-se que nossas concepções devem ser interpretadas a partir da significação cultural múltipla, sendo que a educação é um campo em que as relações de poder e as contradições da sociedade se manifestam de forma significativa. Perguntamo-nos: para onde aponta o discurso da interculturalidade? Bell (apud Rodrigues, 1998, p.1) entende a interculturalidade como “o desenvolvimento de um processo ativo de comunicação e de interação entre as culturas para seu enriquecimento mútuo”. E Betancourt (1997) salienta que a interculturalidade “não é a incorporação do outro no próprio, mas que é a transformação do próprio e do alheio, visando à interação e à criação de um espaço compartilhado e determinado pela convivência”. 20 Nosso objetivo, aqui, é pensar, talvez ajudar a repensar as bases epistemológicas para a perspectiva da interculturalidade na educação. Esta tarefa nos motiva a lançar perguntas sobre o fundamento a partir do qual se articula este discurso e sobre as implicações do mesmo. Talvez Stein (in UNIJUÍ, 1994) colabore neste questionamento inicial ao lembrar um princípio epistemológico básico, segundo o qual “mais do que entender idéias e teorias, o que importa é entender os pressupostos a partir dos quais as idéias e as teorias são articuladas”. Recorrendo a este princípio, perguntamo-nos sobre os pressupostos subjacentes ao discurso de interculturalidade. A questão a ser posta é: em que perspectivas este discurso pode fomentar ações educacionais favoráveis a uma dimensão desejável de interculturalidade? A reflexão sobre a interculturalidade remete à análise da concepção que temos de etnicidade. Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p.184) salientam que “o fato étnico não é algo que deve ser definido, mas descoberto”, importando perceber o sentido que sua presença, constante e multiforme, tem para nós. Segundo estes autores, o avanço mais significativo obtido na antropologia social, a fundamentar as pesquisas atuais sobre etnicidade, consiste na “desubstancialização dos grupos étnicos”. Significa dizer que aquilo que deriva do domínio da etnicidade não são as diferenças culturais empiricamente observadas, mas as condições nas quais determinadas diferenças culturais são utilizadas para estabelecer a diferença entre in-group e out-group. O que importa é descobrir em que dinâmica, sob quais processos, este sentido é socialmente construído. No intuito de participar da reflexão sobre as bases epistemológicas para a interculturalidade, pretendo centrar os questionamentos em três categorias que, pareceme, são bastante centrais nesta temática. Trata-se: a) do entendimento do real como processo, o que resulta em falar de processos identitários e não de identidade; b) do entendimento de subjetividade em perspectiva de descentramento; c) da desubstancialização da etnicidade. O real como processo 21 Ao se refletir sobre os pressupostos epistemológicos do conhecimento, relacionando-os com a questão da interculturalidade, é preciso salientar que não entendemos o real nem como um dado sensível nem como um dado intelectual. O real é um processo, é um movimento cultural de constituição dos seres e de suas significações (Chauí, 1980). Significa uma tradicional ruptura segundo independentemente das com a a concepção qual a representações epistemológica realidade existia humanas e da linguagem. Pensava-se a verdade como sendo a precisão da representação, o que refletia a objetividade. Na base epistemológica tradicional desvalorizava-se os fatores culturais e simbólicos da vida coletiva. Ao se entender o real como processo no qual vão se constituindo os seres e suas significações, percebe-se, então, que o que mais interessa não é aprender as idéias sobre as coisas como se estas efetivamente representassem a realidade. O que importa é compreender o processo que levou ou leva a caracterizar idéias ou teorias da forma específica como nos são apresentadas. Significa dizer que, mais importante do que procurar entender as proposições em que se articulam os conhecimentos, de fato é procurar entender as razões pressupostas na articulação dos mesmos. Interessa perceber como se dá a dinâmica sócio-cultural do processo de elaboração de idéias, de representações, em suas tensões e contradições. Como idéias e teorias resultam de um processo humano complexo, permeado por interesses e relações de poder, torna-se fundamental, em termos epistemológicos, dar especial atenção para se perceber o 22 processo de construção das explicações apresentadas, problematizando-o. Este ponto de partida para a concepção do real leva-nos a problematizar da mesma forma as noções tradicionais de identidade e de subjetividade, categorias centrais para a reflexão sobre a interculturalidade e a educação. Também a identidade étnica não deve ser entendida como algo constituído, naturalizado. Trata-se de percebê-la como processo identitário (Nóvoa, 1992; Hall, 1997 e outros). Hall (1997, p. 13 e 75) diz que a identidade unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia, pois ela está diretamente envolvida com o processo de representação que se localiza no tempo e no espaço simbólicos, ela tem uma “geografia imaginária”. Bernd (1992, p.10) afirma que “a busca da identidade deve ser vista como um processo em permanente movimento. A identidade não é construída sobre um referente empírico, mas sobre o simbólico e cultural”. O fundamental é que se entenda o étnico como um processo e não como um dado resolvido no nascimento. Constrói-se nas práticas sociais, num processo de relação. O descentramento do sujeito conhecedor Nesta mesma perspectiva de entender o real como processo, é básico também operar um descentramento do sujeito conhecedor. A problematização que se faz no pósestruturalismo em relação à subjetividade permite, na minha forma de entender, um auspicioso avanço na questão das bases epistemológicas para tratar do tema da interculturalidade. Na tradição iluminista, colocava-se o sujeito no centro da análise e da teoria, vendo-o como fonte do pensamento e da ação. Predominava a concepção de um eu estável, coerente, apreensível, capaz de desenvolver um conhecimento sobre si 23 próprio e sobre o mundo, por meio da razão (Peters, 2000; Rose, 2001). Já em Nietzsche e, fortemente em Foucault (1987; 1990 e 1996), lança-se as bases para a perspectiva pós-estruturalista na qual se questiona os pressupostos universalistas da racionalidade, da individualidade e da autonomia subjacente ao sujeito humanista. A idéia de autoconhecimento entra em suspeita, entendendo-se que o ser-no-mundo tem precedência sobre o conhecimento e a autonomia do sujeito. Enfatiza-se a consciência discursiva do eu, sua localização histórica e cultural. Segundo Peters (2000), entende-se a linguagem e a cultura em termos de sistemas lingüísticos e simbólicos nos quais as interrelações entre os elementos que os constituem são considerados mais importantes do que cada um destes elementos examinado de forma isolada e autônoma. Metodologicamente enfatiza-se a desconstrução, tornando-se mais central a noção de diferença, de determinação local, de rupturas e descontinuidades históricas. O conhecimento não é tido como uma representação precisa da realidade. O limite entre razão e desrazão não é tão claro quanto se pretendia que fosse, na ótica do iluminismo. Duvida-se da pretensão estruturalista de identificar as estruturas universais que seriam comuns às culturas e mentes humanas. A inflexão recai mais na análise diacrônica, na mutação, na transformação e descontinuidade das estruturas. Interessa mais a genealogia do que a ontologia. Questiona-se, especialmente em Derrida e Deleuze (1988; 1991), os pressupostos que governam o pensamento binário, mostrando-se como as oposições binárias sempre sustentam uma hierarquia. O conceito de diferença torna-se central. Na perspectiva do descentramento, passa-se a estudar e a descrever o sujeito em sua complexidade histórica e cultural. Entende-se que o sujeito é discursivamente constituído, é visto em termos concretos: posiciona-se na intersecção entre as forças libidinais e as práticas sócioculturais. Não se trata de uma essencialidade humana, mas de um ser humano concreto, corporificado, generificado, temporal, sempre maleável e flexível. Quando Birman (2000, p. 80) afirma que, a partir de Foucalt, a subjetividade passou a ser um campo teórico, entende que isto ocorre em decorrência da percepção que: 1. a subjetividade não é nem um dado nem um ponto de partida, mas que ela é algo 24 da ordem da produção; 2. a subjetividade não está na origem, como uma invariante vista de maneira naturalista. Ela é tida como um devir, considerada mais como um ponto de chegada, após longo processo; 3. a subjetividade é múltipla e plural, não há fixidez no seu ser; 4. o que existe de fato são formas de subjetivação. A rigor, significa dizer que não existe o sujeito, mas apenas as formas de subjetivação. Fundamentalmente, o que está em questão é a inconsistência ontológica do sujeito; 5. o foco central da questão passa a ser, então, como se deu e está se dando a dimensão de produção do sujeito, considerado o resultado de um longo e tortuoso processo de modelagem e remodelagem, ocorrendo em jogo de poder, historicamente regulado. O engendramento da subjetividade realiza-se em decorrência da forma como tecnologias de si são acionadas historicamente. Segundo Birman, o ponto fulcral em Foucault, na questão epistemológica, é a desconstrução da tradição da filosofia do sujeito. Na modernidade, a filosofia do sujeito definiu o pensamento como condição de verdade e de existência para a subjetividade: “penso, logo sou”. Foucault entendia que, com os avanços na psicologia e na semiótica, a posição descentrada do inconsciente e a exterioridade do campo da linguagem ajudaram a provocar uma ruptura crucial com a tradição da filosofia do sujeito. Porém, como realça Birman (2000, p. 95), em Foucault a idéia do pensamento de fora como constituinte da subjetividade foi se deslocando do registro da linguagem para o de poder, ao qual o pensamento de fora estaria subsumido. Em relação à subjetividade, a questão epistemológica central, na perspectiva pósestruturalista, é desconstruir as categorias de sujeito e de verdade produzidas em determinada tradição, substituindo-as pelas categorias de formas de subjetivação e de tecnologias de si. Neste sentido, a subjetividade vincula-se a uma dimensão de destino e de produção pelo fato de contrapor-se à idéia ontológica de origem e de consistência ontológica. Mas Foucault deixa claro que estas tecnologias de si através das quais vão se produzindo formas de subjetivação são ativadas sempre em contexto de relações de poder, de relações entre saber e poder, o que o leva a introduzir a categoria de jogos de verdade. O que interessa é perceber quais agenciamentos produzidos pelas estratégias de poder levaram à afirmação e à cristalização de verdades que, afinal, foram sendo instituídas pela tradição e aí, aos poucos, essencializadas, substancializadas. Parece-me que as categorias de formas de subjetivação e tecnologias de si, quando relacionadas com processo identitário e grupos étnicos, podem ter grande 25 potencialidade explicativa para o entendimento das bases epistemológicas com as quais os discursos sobre estas temáticas estão sendo constituídos. São categorias férteis para ajudar a desconstruir discursos e desubstancializar conceitos relacionados com a interculturalidade. Desubstancializando a etnicidade. Na interculturalidade deseja-se o diálogo e a interação construtiva entre etnias. Uma questão central é perguntar-nos, então, sobre nosso conceito de etnia. Glazer e Moynihan(1975), autores de muita influência na década de 1970, entendiam a etnicidade como o conjunto de traços como a língua, a religião, os costumes, o que a aproximava da noção de cultura. Mas também poderia significar a presumida ascendência comum dos membros e, neste caso, o conceito de etnicidade aproximava-se do de raça. Parece-me que este entendimento do conceito de etnicidade ainda está fortemente presente na literatura educacional. Mas não ajuda a pensar a questão da interculturalidade. Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p.86) alertam que nesta concepção entende-se a etnicidade como um dado primordial, substancializado, privilegiando-se atributos dos quais decorre um sentimento de pertença, uma afinidade considerada natural. É uma concepção que se embasa num presumido vínculo de sangue, de traços fenotípicos, de religião, de língua, de costume e de pertença regional. Estará nisto o essencial da etnicidade? Parece-me que um caminho mais fecundo para se entender o fenômeno da etnicidade e sua importância para a educação é o que veio a se constituir a partir de Barth, em Grupos Étnicos e suas Fronteiras (1969). Poutignat e Streiff-Fenart afirmam que a partir de Barth cria-se uma nova forma de entender e trabalhar com o fenômeno de etnicidade, salientando-se que: a) o pertencimento étnico só pode ser determinado na demarcação entre membros e não-membros; b) as identidades étnicas só se mobilizam com referência a uma alteridade. A etnicidade implica a organização de agrupamentos dicotômicos Nós/Eles; c) o que define o grupo étnico são as fronteiras étnicas e não seu conteúdo cultural interno ( Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p.152). 26 Significa dizer que, para entender os fenômenos da etnicidade, o mais importante é buscar entender em que contexto e sob quais condições foi se dando o estabelecimento, a manutenção e a transformação das fronteiras entre os grupos étnicos. Significa também que o conceito de etnicidade chama para novas questões teóricas. A etnicidade começa a ser trabalhada em termos menos essencialistas, operando-se a desubstancialização dos grupos étnicos. Assim, nas pesquisas, o ponto de partida comum “é a distinção analítica entre a organização das relações étnicas e o conjunto dos modos de vida e dos costumes compartilhados por uma população. O que deriva do domínio da etnicidade não são as diferenças culturais empiricamente observadas, mas as condições nas quais certas diferenças culturais são utilizadas como símbolos da diferenciação entre in-group e out-group”.(Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p.129). Os mesmos autores ainda afirmam que “a etnicidade não é vazia de conteúdo cultural ( os grupos encontram ‘cabides’ nos quais pendurá-la), mas ela nunca é também a simples expressão de uma cultura já pronta. Ela implica sempre um processo de seleção de traços culturais dos quais os atores se apoderam para transformá-los em critérios de consignação ou de identificação com um grupo étnico”(ibidem). A partir desta perspectiva de entendimento da etnicidade, infere-se que os valores e as características que as pessoas geralmente atribuem a seu processo identitário, normalmente se explica mais através das atividades socialmente organizadas nas quais encontram suas pertinências práticas, do que pela importância abstrata das mesmas. Na expressão de Barth podemos dizer que é a fronteira étnica que define o grupo e não o material cultural que ela engloba. Molohon et al. (apud Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p.136), ao perguntarem-se sobre os motivos que levam os seres humanos a investir tanta energia na construção de fronteiras étnicas, concluíram que o motivo está no fato de que a reivindicação da identidade étnica implica interesses. No contexto dos estudos culturais diz-se que a etnicidade ocorre num processo humano permeado por relações de poder. Por isto, o que mais importa é centrar a atenção nas relações de poder de determinada 27 sociedade, pois, aí estará a chave para o entendimento da forma como o fenômeno da etnicidade se manifesta. Poutignat e Steiff-Fenart (1998, p.17) apresentam uma contribuição importante para o estudo/debate da interculturalidade quando afirmam que teorizar a etnicidade não significa fundar o pluralismo étnico como modelo de organização sócio-política, mas que significa examinar as modalidades segundo as quais uma visão de mundo “étnica” é tornada pertinente para os atores. Drummond (1980, p.368) já tratava a etnicidade como um sistema simbólico tido como “um conjunto de idéias coercitivas sobre a distintividade entre si e os outros, que fornece uma base para a ação e a interpretação do outro”. Neste mesmo sentido, para Poutignat e Streiff-Fenart “as categorias étnicas são símbolos cujo conteúdo varia em função das situações, mas que formam em conjunto um sistema de significações interligadas.(...) A realidade primeira da etnicidade é a do quadro cultural ( o intersistema), no qual ela se realiza como comunicação signifcativa da diferença”(1998, p.110). O que interessa investigar é a forma como um conteúdo cultural e como as interrelações entre as categorias étnicas foram ou são postas em operação em um intersistema. Eriksen(1991) enfatiza que não nos relacionamos com grupos étnicos, mas com contextos interétnicos. Barth (1969) coloca o processo de atribuição categorial e de interação no centro da análise. E assim, o problema fundamental na etnicidade é o de estudar as condições que geram o surgimento das distinções étnicas e a articulação destes com a variabilidade cultural. O centro da questão não está nos diversos tipos de agrupamentos étnicos, mas nos tipos de organização social nas quais se trata desta ou daquela forma estes agrupamentos étnicos ( Poutignat e Streiff-Fenart, p. 112). “Logo, não é a diferença cultural que está na origem da etnicidade, mas a comunicação cultural que permite estabelecer fronteiras entre os grupos por meio dos símbolos simultaneamente compreensíveis pelo insiders e pelo outsiders”( Schildkrout, 1974, apud Poutignat e Streiff- Fenart, p.124). 28 Percebemos, assim, que na etnicidade os limites são múltiplos e instáveis. Seyferth (1994, p.23) realça-o dizendo que estes limites podem mudar com freqüência porque a “etnicidade é situacional”. O importante, o mais fundamental é que se perceba o étnico como um processo e não como um dado resolvido no nascimento. O étnico constrói-se nas práticas sociais, num processo de relação, por isto importa estar atento para as relações de poder entre os diversos grupos sociais e culturais. Por isto, também é fundamental buscar entender a forma pela qual os fenômenos manifestos de etnicidade são produzidos por intermédio de sistemas de significação e de estruturas de poder. Neste sentido, entende-se que a nominação é “produtora de etnicidade”, é um dos constituintes da dinâmica social. Os grupos étnicos surpreendem-se, freqüentemente, com a identidade étnica que lhes é atribuída de fora de seu grupo e que se impõe socialmente. Hugues (in Poutiguat e Streiff-Fernart, 1998, p. 143) salienta que a nominação “é por si própria produtora de etnicidade (...) o fato de nomear tem poder de fazer existir na realidade”. Esta perspectiva teórica com a qual se desubstancializa a etnicidade, é de um grande significado para a educação. Alerta para a necessidade de se trabalhar sempre na perspectiva da historicidade, procurando perceber através de que processos e com que relações de poder foram elaboradas as propostas e os valores que estão sendo apresentados. É uma perspectiva que tem um significado todo especial quando se trata de educação, campo em que entram em jogo valores e propostas, normalmente apresentadas de forma substancializada. Ainda são relativamente poucos os autores que vinculam a categoria de etnia com a dinâmica educacional e entre os que o fazem, ainda há uma predominância de análises em que se substancializa as referências do étnico. Perspectivas A temática da interculturalidade relacionada com a educação poderia levar-nos a pensar as diferenças culturais como um maravilhoso legado, construído pelos grupos em 29 longo processo histórico, sendo que, por intermédio de uma educação intercultural, oportunidades e de fomentar-se-ia espaços para a a criação interação de e o enriquecimento mútuo destes grupos. As questões epistemológicas acima apontadas, de forma muito esquemática, alertam-nos que não é assim, que isto não é o suficiente. Primeiramente, não se trata de reivindicar uma relação mais freqüente e intensa entre os grupos étnicos como base para a interculturalidade, pois a mesma já se forma a partir de um processo de relação. O mais importante é ver a partir de quais relações de poder entre os grupos étnicos e a partir de quais comprometimentos, privilegiamentos e/ou silenciamentos foram sendo construídas as caracterizações atribuídas a cada grupo. Por isto o conceito de multicultural não é apropriado. Ele induz a imaginar-se uma sociedade construída como um mosaico, formada por culturas diferentes, cada uma autônoma e substancializada. Com as referências apresentadas através do recurso a vários teóricos, entendemos que a etnicidade é uma questão de suma importância, com grande significado para a educação, quando entendida como um processo que vai se constituindo de forma relacional, em contexto de disputa por espaço e reconhecimento. Vimos, a etnicidade constitui-se num processo de relações de poder muito pronunciadas, através especialmente de mecanismos simbólicos de privilegiamentos e/ou silenciamentos. Por isto entendo com Moermann (apud Poutiguat e Streiff-Fenart, 1998, p. 167), que a questão básica não é saber quem é o grupo étnico X, quais suas especificidades, mas o importante é saber por que, quando e como a identificação X é preferida e o que significa esta identificação em termos de relações de poder no cotidiano. Importa descobrir o sentido que sua presença obstinada e multiforme tem em nossas vidas, procurando-se detectar os processos organizacionais através dos quais este sentido é socialmente construído. Chartier (1990, 1991 e 1994) pode ajudar-nos com algumas orientações úteis para ir descobrindo a trama das relações de 30 poder presentes no processo que levou os grupos étnicos a aparecerem com as características que lhe são imputadas. Chartier ajuda-nos a perguntar se, ao constituir-se este processo, os atores do processo estavam todos no mesmo lugar social e cultural. Quem estava e está presente neste processo de constituição e nominação étnica? Qual seu lugar no conjunto das relações de poder? Quais suas referências, seus comprometimentos? A partir destes questionamentos podemos pensar na interculturalidade como um processo no qual os diversos grupos culturais estabelecem um diálogo que não se restringe apenas à ênfase e celebração de características consideradas próprias deste grupo. Neste diálogo procura-se ir além, entender a gênese de constituição das características próprias e dos outros grupos, redesenhando-se espaços nas relações de poder aí presentes, de modo que este processo nos ajude a construir novos horizontes, unindo a rica e variada expressão de manifestações culturais, com uma perspectiva de sociedade em que todos estes grupos étnicos tenham o mesmo grau de reconhecimento e o mesmo nível de acolhimento. Se conseguirmos pensar a interculturalidade nesta perspectiva, então sim, pareceme que o processo escolar poderia ter uma função importantíssima para fomentar iniciativas para a educação intercultural. Referências Bibliográficas ARROYO, Miguel G. Prefácio. In DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996. BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras (1969).In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Joceline. Teorias da etnicidade. São Paulo: Fundação da Editora UNESP, 1998, p. 187-227. BELL, D. 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É pesquisador do CNPq, coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED/Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional). Vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia e presidente de sua Comissão de Assuntos Indígenas para o biênio 2002/2004, é autor de Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil (Vozes, 1995); organizador de Gestar e Gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil (Rio de Janeiro, Nuap/Relume-Dumará, 2002) e, com Maria Barroso-Hoffmann, de Etnodesenvolvimento e políticas públicas: bases para uma nova política indigenista (Rio de Janeiro, LACED/Contra Capa Livraria, 2002). Orienta pesquisas e ministra cursos no Progama de Pós-Graduação em Antropologia Social (Departamento de Antropologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro). 33 Não quero terminar a transcrição de meu caderno de viagem sem registar algumas reflexões, ali existentes, sobre a situação social dos índios e dos sertanejos. Falando sem devaneios nem brutalidades utilitárias. Há índios perfeitamente assimilados pela nossa modesta cultura brasileira do interior; esses estão fora de questão. São de fato sertanejos. Trabalham, produzem, querem aprender. Não são mais índios. Outros porém, infiltrados de maus costumes pelos seringueiros viciosos, naturalmente vadios, não podem e não devem ser contados como produtores. Protegidos vivam como for possível. (...) Nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir, nem aproveitar dessa gente. Não há dois caminhos a seguir. Não devemos ter a preocupação de fazê-los cidadãos do Brasil. Todos entendem que indio é índio; brasileiro é brasileiro. A nação deve ampará-los, e mesmo sustentá-los, assim como aceita, sem relutância, o ônus da manutenção dos menores abandonados ou indigentes e dos enfermos. As crianças desvalidas e mesmo os alienados trabalham; mas a sociedade não os sustenta para aproveitar-se do seu esforço. Além disso, temos para com os índios, a grande dívida, contraída desde os tempos dos nossos maiores, que foram invadindo seu território, devastando sua caça, furtando o mel de sua matas, como ainda nós mesmos fazemos. O direito é um só. Quem a pretexto de civilizar, esmaga tribos e nações, que sempre viveram independentes, pratica politica perigosa para si mesmo porque a moral dos conquistadores nunca teve outra razão. E o dominador de hoje poderá ser abatido amanhã, por um terceiro que invoque os mesmos princípios. Ainda mais, quem pretender governá-los cairá no erro funesto e secular; na melhor das intenções, deturpará os índios. O programa será proteger sem dirigir, para não perturbar sua evolução espontânea. Na economia nacional, do ponto de vista republicano, a questão indígena deve ser escriturada unicamente, nos livros da Despesa... E assim dará lucro. 34 O sertanejo encontra, nos documentos de que procurei rechear este trabalho, simples e sincero, a sua melhor defesa. A conquista da RONDONIA foi obra de sua abnegação, de seu talento, e de sua resistência. Os milheiros de Kms de estrada que lá se estendem, hão de figurar, nos mapas do Brasil, em traço largo, afirmando ao mundo o valor dos seus filhos. (Edgard Roquette-Pinto. Rondonia. 3a. ed.. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1935, pp. 299-301. Grifos do próprio autor). Seguidor de Euclides da Cunha, Roquette-Pinto, aliado próximo de Cândido Mariano da Silva Rondon, emblema das políticas de Estado pró-índio no Brasil, dá-nos uma idéia concisa e ao mesmo tempo profunda, de um conjunto de temas que orbitaram a construção de imagens nacionais e o solo mais abrangente onde medraram as bases das ações de governo para os índios no Brasil daquele período. Estão nele presentes uma classificação implícita dos índios (os que ainda o são, os que estão corrompidos, os que deixaram de sê-lo, transformando-se em sertanejos, material humano para construção e expansão do Brasil). Há um ponto de vista moral e ético, em que a sociedade e o Estado conquistadores do território brasileiros e dos povos nele habitantes são os responsáveis pela dívida da conquista, uma separação suposta entre brasileiro e índio, uma das bases ideológicas da tutela, que o o papel de proteger sem dirigir nem aproveitar como horizontes. A evolução espontânea seria o desejável, e o certo de acontecer, caso deixados à sua própria sorte. Sinaliza ainda Roquette-Pinto, para o quanto o conquistador poderia se ver submetido às mesmas regras de “direito”, sendo colocado em igual posição subalterna. Há também um pressuposto, presente ainda hoje, que deve ser relativizado: o de que as populações indígenas “sempre viveram independentes”. Desconhecia Roquette-Pinto, como hoje que temos pesquisas sobre o tema, ainda, por vezes, desconhecemos suas redes de relações précoloniais, e o fato de que a chegada do europeu à América circulou para muito além do facultado pelo contato direto. Estamos, pois, longe da idéia de história 35 interconectadas, que restitui a complexidade do processo de colonização e das histórias indígenas. O trecho dá-nos conta, por um lado, de aspectos importantes das idéias relativas à proteção fraternal, como cunhada por Rondon e seus aliados, que tentei explorar em alguns de meus trabalhos (Souza Lima, 1987; 1991; 1995). Por outro, sugere-nos aspectos do pensamento antropológico da época, alguns dos quais se desdobrariam e afirmariam como configurando elementos para ação de Estado, sobretudo nos anos posteriores à década de 1950 (Souza Lima, 1998). Num momento como o atual, em que celebramos precipitadamente o fim da tutela – entendida como instituto jurídico –, pela nova regulação proposta pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2001, recordar as bases históricas sobre as quais assentaram as políticas indigenistas no Brasil não me parece ocioso e agradeço aqui a oportunidade de apresentar algumas idéias sobre como temos enfrentado a sociodiversidade e a diversidade cultural, nesse país surgido da colonização européia, pejado por uma ideologia de Estado nacional (Reis, 1998) que nos colocou a correspondência entre 1 Estado e 1 nação, e 1 direito. Uma maneira de fazê-lo seria colocar temas que circundam o da diversidade sócio-cultural, como os do reconhecimento político de uma situação de pluralismo cultural de fato e sua contradição com as estruturas políticojurídicas vigentes (Maybury-Lewis, 1984; Souza Filho, 2001), os da moralidade e da eticidade, como tem proposto Roberto Cardoso de Oliveira (1996; 1998; 2001) no indigenismo; ou na discussão sobre cidadania e pluralismo (Pacheco de Oliveira, 1999). Espero porém, contribuir para o debate com o que tem sido minhas preocupações mais recentes, aquelas que têm circundado uma análise da política indigenista brasileira do ponto de vista histórico. Não o que ela deveria ser, mas o que tem sido, seus horizontes de transformação e obstáculos possíveis que devem ser conscientizados, abordados com sistemático empenho, para serem vencidos. 36 Neste sentido, tenho desejado entender como algumas das melhores intenções de que se revestem os “brancos” em seus contatos com os índios têm redundado na atualização de formas tutelares e e clientelísticas. E não desconheço que paternalismo, tutela, clientelismo são algumas das categorias nos jogos de acusação que os participantes do “mundo do indigenismo” atiram com facilidade uns aos outros, sejam índios ou brancos, antropólogos, advogados ou dotados de qualquer outra formação, missionários ou leigos, funcionários governamentais ou não. Se tenho pesquisado sobre a administração pública é porque, dentro de um Estado nacional como o que se procurou implantar no Brasil desde o século XIX, ela é um dos principais vetores cotidianos das formas de dominação. Meu intuito é não só o de refletir intelectualmente, mas também de pensar que posturas e medidas podem ser adotadas para tentarmos estabelecer algumas vias de superação deste aparente círculo fechado. É para pensar historicamente, mas do ângulo das descontinuidades, que tenho procurado usar as idéias de Fredrik Barth (2000) relativas ao conhecimento necessário a atribuir sentido às interações da vida cotidiana, que tenho experimentado utilizar-me da idéia de tradições de conhecimento para a gestão colonial como instrumento para explicarmos como, mesmo quando os atores sociais (sobretudo os posicionados em aparelhos administrativos) parecem imbuídos do desejo de suplantarem as desiguldades duráveis (Tilly, 1999), elas se reproduzem. Permito-me citar algumas dessas idéias nesta conferência, para chegar onde pretendo (cf. Souza Lima, 2002: 156-157). “Uma tradição de conhecimento para gestão colonial, neste caso, poderia ser pensada como um conjunto de saberes, quer incorporados e reproduzidos em padrões costumeiros de interação, quer objetivados em dispositivos de poder, codificações, elementos materiais de cultura (arquitetura, indumentária etc) e incorporados em etiquetas, disposições corporais, gestos esteriotipados Descobrir e disseminar informações, submeter e definir, classificar e hierarquizar, aglutinar e localizar os povos conquistados e os espaços por eles habitados, são operações desenvolvidas pelo que chamo de saberes de gestão e pelos poderes pelos quais se exercem e geram. Mas tais formas de conhecimento incidem também sobre os povos e organizações que conquistam e colonizam novos espaços geográficos e seus habitantes, num necessário e transformador efeito de retorno. Os conhecimentos assim gerados reordenam as representações dos povos colonizadores, e de suas organizações administrativas, sobre a natureza e as sociedades humanas, conferindolhes novas posições em seus próprios mapas mentais. Sugiro, pois, que os poderes de gestão de 37 populações em contextos coloniais definem simultaneamente, espaços sociais e geográficos, criando-se, por vezes, verdadeiros territórios entretecidos a hierarquias sociais. Mesmo quando aparentemente voltados para uma integração crescente entre povos conquistador e conquistado, o trabalho de gestão colonial perpetua a desigualdade de capacidade de realização, de mando e de ver seu mando obedecido, assegurando o domínio do colonizador. Quando protegem a diferença cultural à guisa de permitir a continuidade dos modos e estilos de vida que nelas se baseariam, como em uma espécie de estado in vitro, os saberes e poderes postos em jogo pelos colonizadores numa situação colonial exacerbam-na, e criam a necessidade de mediação para que os colonizados possam acessar as formas sociais que lhe são impostas como dominantes. Quando aproximam as diferenças entre as tradições de colonizadores e colonizados, na busca de uma maior integração social, amesquinham as correntes culturais dos povos colonizados, circunscrevendo-as, delas se apropriando, objetificando e exotizando o cotidiano dos povos que dominam. Em ambos os casos reproduzem a desigualdade social. Pensando a partir do caso brasileiro, em especial do exercício dos poderes de Estado sobre as populações indigenas, e tendo como horizonte de reflexão o contexto colonial, poder-se-ia distinguir quatro grandes tradições de conhecimento para gestão colonial da desigualdade entre os povos indígenas e os africanos transplantados, além dos contingentes populacionais que aqui surgiram. Elaborando-as como tipos ideais para pensá-las, pode-se denominá-las de “ tradição sertanista ”, “ tradição missionária ”, “ tradição mercantilista » e « tradição escravista». Por “ tradição sertanista ” entendo um conjunto de saberes que, alterando-se ao longo do tempo, podem ser reportados ao início da exploração portuguesa de África, notadamente à dos espaços afastados do litoral, os chamados, desde o século XV e já em África, sertões. Explorar e registrar os contornos de espaços geográficos incógnitos, inserindo-os no conjunto de representações acumuladas como partes do “mundo conhecido” pelo explorador, gerando assim conhecimentos com freqüência de valor estratégico no plano geopolítico e econômico, por vezes transformados em cartas e mapas geográficos, avaliá-los enquanto fontes para exploração comercial, esboçar uma descrição das populações humanas nativas desses espaços, mantendo com elas contatos e trocas iniciais, muitas vezes estabelecendo algumas das primeiras operações de uma guerra de conquista, são apenas algumas das ações características da “tradição sertanista”. No caso brasileiro, no contexto da proteção oficial aos índios, logo no século XX, o termo sertanista designa o especialista nas técnicas de atração e pacificação (Souza Lima, 1995) de índios ainda arredios à interação regular com os aparelhos de governo, fossem hostis ou não. Por “ tradição missionária ” é possível designar o conjunto de saberes que têm na Igreja Católica seu ponto de dispersão, e no Cristianismo em geral sua referência básica, sobretudo através do dispositivo da “ conversão ” e das técnicas de pastorado. Era necessário entender os “ usos e costumes dos povos gentios ” para explicar e impor os modos de ser e agir europeus, produzindo não apenas aliados e mão-de-obra, mas transformar pagãos em catecúmenos. Tratava-se, pois, de assegurar que porções cada vez mais significativas das realidades construídas pelo colonizador adquirissem o automatismo dos efeitos de verdade, fossem incorporados, e por vezes, a partir de negociações variadas, sincretizados com correntes culturais dos colonizados. A visão de mundo do conquistador, presente em estado incorporado em valores, disposições para a ação, em modos de percepção e interação, disposições corporais, formas de sentir e expressar-se ; e objetivadas em crenças disseminadas e submetidas a dispositivos de controle social, instituições, códigos, tecnologias, monumentos e em narrativas que passam a construir e constituir a “ história ” dos que nela se reconhecem. As elites crioulas são um particular exemplo do triunfo da « tradição missionária » . Também a “ tradição missionária ” delimita lugares (missões, aldeiamentos, escolas, seminários, faculdades, universidades etc), modos de intervenção sobre o espaço e sobre 38 o tempo através das populações com que se defronta, exercendo-se sobretudo enquanto uma « pedagogia do exemplo ». »21 Parece-me desnecessário apresentar a ampla literatura sobre os sertões, sobre a necessidade de se desbravar e se ocupá-los, sobre a fronteira enquanto ideologia de Estado para fazer a ligação entre a 21 “Pode-se chamar de “ tradição mercantil ” um conjunto de saberes pouco voltado para o assenhoramento de espaços ou populações como fins em si : trata-se aqui de e produzir e controlar fluxos de interação para a troca de produtos entre povos dotados de radical alteridade cultural. Estão em circulação, portanto, também os conhecimentos e as formas de ação que permitem mercadejar com lucro, transpondo mundos sociais dotados de valores distintos quanto à troca, às regras de reciprocidade, ao mercado produzindo interferências profundas na vida social dos povos vinculados por relações comerciais em contexto colonial. Algumas das operações a que os saberes mercantis procedem nesse quadro de alteridade característico das empresas coloniais são : 1) perceber a natureza e as sociedades exóticas como fornecedoras e consumidoras de bens (desde produtos até hábitos mentais e representações) inexistentes em outros pontos da geografia articulada pelas redes de comércio, 2) redimensionar os significados desses bens, de modo a que possam ser objeto de consumo progressivamente mais extenso nos universos sociais em que são total ou parcialmente indisponíveis, tornando-as necessidades, 3) conceber e regular relações que permitam obter, transportar, circular amplamente e vender de maneira extensiva, dentro da órbita de mercado percebida como privilegiada para esses “ novos ” produtos. Talvez seja o funcionamento de sistemas escravistas o melhor conhecido no tocante ao império português e ao Brasil. Todavia, a perspectiva de abordar uma dimensão do escravismo enquanto uma tradição de conhecimento para gestão colonial pode ajudar a suscitar outras questões. Cabe indagar de que modo se construiram, comunicaram e reproduziram os conhecimentos necessários a : 1) reduzir e transportar, desenraizar culturalmente e inserir parcialmente em outro meio cultural (em especial quanto aos modos de trabalho) mantendo a hierarquização e a desigualdade, 2) imobilizar e controlar, fazer produzir e reproduzir-se, docilizar e cooptar, reprimir e dividir contingentes populacionais estrangeiros, transformados em um tipo de mão-de-obra em aparência destituído de outro valor que não o de seu uso como força de trabalho ? De que modo surgem, são elaborados e transmitidos os conhecimentos para a administração de plantéis de escravos ? Qual sua genealogia, desde a escravidão no mundo antigo, até os alvores do mundo dos descobrimentos ? Como são transformados e em que idiomas de comunicação são veiculados e retidos ? Quais os seus especialistas e os públicos a que se destinam ? O âmbito próprio da « tradição escravista » não deve ser confundido com o da « tradição sertanista », que se remete à exploração dos espaços e aos momentos iniciais da conquista de povos pela empresa colonizadora, embora comporte o apresamento de cativos parao trabalho. Tampouco é o mesmo da «tradição mercantil», onde é a mercadoria escravo – e não seu trabalho e a riqueza que pode produzir – que está em jogo. Muito menos o estatuto de populações escravizadas – não só as de origem nativa ao espaço da colonia mas também e, sobretudo, as para ele transplantadas – é matéria de indagação similar à da « tradição missionária », que supõe a liberdade potencial ou futura dos gentios, e espaços como as missões e aldeamentos. O espaço próprio à geração e operação dos saberes que se pode agregar como uma « tradição escravista » é o das unidades domésticas, e suas formas de exercício de poder são coextensivas à gestão de famílias extensas e de suas clientelas associadas. São saberes para a gestão cotidiana, os padrões de interação que se desenvolvem (e permitem que estes se desenvolvam) em espeaços domésticos (como em propriedades rurais), ou a partir deles (como em situações urbanas) que configurariam uma « tradição escravista ». Nesta escala, os poderes de Estado, e os processos de sua formação, são indissociáveis das relações familiares e pessoais, sendo estas elas mesmas relações de poder, uma variedade de ação sobre ações, das quais a violência física é um limite emblemático e sua caução última : trata-se aqui de extrair o máximo de valor através da compulsão extra-econômica ao trabalho »(Souza Lima, 2002 : 158-159). 39 expansão territorial e os desígnios que gerariam uma política idnigensita republicana e leiga em noso país. O Brasil republicano (1899) emergia de um recente passado colonial trazendo consigo os legados institucionais e simbólicos da monarquia, da escravidão, e da fusão entre Igreja e Estado. Em que pese o afã modernizador do Segundo Império brasileiro, as elites mestiças governantes da República tinham grandes desafios a enfrentar: um heteróclito e enorme território, mitificado como a sede de inúmeros eldorados e quimeras desde a chegada dos colonizadores portugueses; um contingente humano composto por populações díspares - imigrantes vindos da Europa do Norte, negros de origem africana, negros crioulos, as populações indígenas dessa porção das Américas e uma massa de mestiços que consistiria nos quadros da burocracia de um Estado nacional em expansão; um vasto litoral. Em suma, o mapa de um país, entidade jurídica, em que a palavra “desconhecido”, tarjada sobre grandes extensões, era dos mais freqüentes termos. Aí vemos o significado do elogio de Roquette-Pinto à abnegação e ao talento do sertanejo na abertura de estradas a inscrever o Brasil em mapas. Como, de tal caleidoscópio, forjar um povo, que se sentisse pertencente a uma pátria brasileira. Como fazer este povo brasileiro ocupar, em nome de uma soberania nacional, e tornar-se guardião de tão vastos espaços, seguindo o dístico da bandeira republicana, ordem e progresso? Seria possível conceber que de tal emaranhado saísse uma civilização? Seria possível conservar íntegro um território apenas juridicamente brasileiro, mas em realidade incógnito, agora que o emblema imperial esvanecera-se enquanto forma de totalização, evitando-se o fantasma da fragmentação das colônias espanholas na América, fantasma permanente dos militares brasileiros? Como defender esta vastidão das entradas de estrangeiros? Que métodos utilizar para tanto? Como fixar as fronteiras da nação? Foi sob esse quadro de representações que se constituiram diversas comissões telegráficas, parte de um esforço mais amplo de interligação de regiões do Brasil através de meios de comunicação e transporte. Dentre elas entraria para as páginas da história brasileira, como se singular fosse, a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915), composta, como sabemos, por militares inspirados pelos preceitos da Religião da Humanidade de Auguste Comte, a viabilizadora da expedição de Roquette-Pinto. As técnicas jesuítas de penetrar os sertões distribuindo presentes, vestindo os indígenas, tocando música (que acalmaria as almas selvagens) Rondon as aprendera com seu primeiro comandante em sua primeira comissão telegráfica. Mas agora não eram mais catecúmenos ou súditos que 40 se esperava conquistar através das almas indígenas: eram cidadãos brasileiros, parte de um povo que se pudesse exibir como civilizado e ocupante da vastidão encompassada nos mapas. A Comissão Rondon seria, desde então, sempre representada como uma espécie de “laboratório” de nossa política indigenista, onde os “leigos”demonstrariam sua capacidade de não apenas suportar as agruras dos sertões, mas também a abnegação, a brandura e a bondade do missionário. Pretendendo primar por métodos científicos, dos quais Roquette-Pinto, dentre outros seria uma caução, e contribuir para a expansão de uma ciência nacional sobre o Brasil, a Comissão Rondon acabou por se constituir numa das principais fontes de peças etnográficas e espécimes naturais para os Museus brasileiros. Estava aí entrelaçada nossa nascente antropologia. Muitos desses objetos serviriam às permutas com numerosas instituições congêneres pelo mundo, integrando um circuito de trocas singular: um dos modos privilegiados de fazer circular as imagens do exótico, do diferente e do inferior, tão caras à grande tradição ocidental. Simultaneamente também um dispositivo midiático, a Comissão Rondon deu ensejo à produção de abundante material fotográfico, posteriormente filmográfico, a inúmeras conferências realizadas nas grandes cidades brasileiras. Desses registros assomavam as imagens do futuro da nação: do índio feroz, inimigo, canibal e assassino – um dos legados do nosso arquivo imagético colonial a perdurar ainda hoje, por mais que os atuais nativos se sintam revoltados com esse tipo de evocação – assomava o aliado, protótipo do brasileiro sertanejo, do caboclo. Também índice reportável a um estoque de representações de matiz colonial, imagem retomada pela literatura do Brasil pós-independência na figura do índio herói romântico, princípio nativista dessa nova pátria que se pretendia criar, a passagem do hostil, arredio e errante, para o manso, integrado e sedentarizado, seria possível através dos métodos que esses missionários do Estado nacional puseram em ação. Era necessário atrair com presentes em abundância, gerando dívida e uma suposta imagem de esplendor e riqueza; pacificar, demonstrando capacidade técnica de resistir aos embates guerreiros, mostrando-se tecnologicamente superior, dando tiros para o alto, como a dizer “matalo-emos se o quisermos, mas desejamo-los vivos, porque somos benévolos, porque nos propomos irmãos”. O SPI, surgido, primeiramente, como Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), abarcou assim as tarefas de pacificação e proteção dos grupos indígenas bem como as de estabelecimento de núcleos de colonização com base na mão-de-obra sertaneja (Decreto 41 nº. 8.072, de 20 de junho de 1910). Foi pelo Decreto-Lei nº. 3.454, de 6 de janeiro de 1918, que as duas atribuições separam-se e a instituição passou a SPI tão-somente22. É bom destacar que no quadro da América do Sul o SPI foi um instrumento de distinção do Estado brasileiro: quando da denúncia da escravidão indígena no Putumayo, em 1912, o governo divulgaria amplamente nos jornais nacionais e estrangeiros a exist6encia do SPI como resposta de um país até recentemente escravistas na defesa de suas populações indígenas. Tendo os “selvícolas” sido incluídos entre os “relativamente incapazes”, junto a maiores de dezesseis/menores de vinte um anos, mulheres casadas e pródigos, através do artigo 6º do Código Civil brasileiro, em vigor desde 1917, os integrantes do SPI formularam e encaminharam o texto da lei que, após dezesseis anos de tramitação no Congresso Nacional, seria aprovado como lei nº 5.484, em 27 de junho de 1928. Esta lei atribuiu ao SPI a tarefa de executar a tutela de Estado sobre o status jurídico genérico de índio, sem no entanto defini-lo enquanto categoria sobre a qual incidia. Aliavam-se, assim, numa mesma forma social - a do poder tutelar -, um projeto de gestão de segmentos populacionais definidos como dotados de uma participação civil necessariamente mediada pelo Estado e, por meio desta, de controle sobre o interior e os lindes do território nacional, intromissão à época na esfera de competência fundiária dos estados da União. A trajetória do SPI demonstraria o escopo das funções administrativa de Estado, através das quais o problema indígena circulou: de 1910 a 1930 o SPI fez parte do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, de 1930 a 1934, do Ministério do Trabalho, de 1934 a 1939, do Ministério da Guerra, como parte da Inspetoria de Fronteiras, em 1940, voltou ao Ministério da Agricultura e, mais tarde, passou para o do Interior (Lima, 1987; 1995). Em 1939, seria instituído o Conselho Nacional de Proteção aos índios (CNPI), pelo Decreto nº. 1.794, de 22 de novembro de 1939, com o objetivo de atuar como órgão formulador e consultor da política indigenista brasileira. O CNPI deveria ser composto por sete membros designados por decreto presidencial. Supunha-se que o SPI teria, daí por diante, só atribuições executivas (Freire, 1990), o que não aconteceria. A partir dos inícios da década de 1960, no período final de existência do SPI, o CNPI foi a instância em que se continuou a ter a presença de antropólogos e indigenistas compromissados com a idéia de proteção ao 22 Para uma interpretação do Serviço do Povoamento do Solo Nacional, para o qual seria transferida a tarefa de “localização dos trabalhadores nacionais”, cf. Ramos, 2002. 42 índio, após mudanças intensas nas políticas de Estado no pós-1954/55. No CNPI proceder-se-ia, então, a inúmeras discussões que se veriam refletidas num primeiro desenho da Fundação Nacional do Índio. Tais discussões, por sua vez, achavam-se referidas aos contornos institucionais oriundos do indigenismo latino-americano (Souza Lima, 2000). Outras referências em escala mais ampla seriam as susrgidas a partir do sistema das Nações Unidas, com a Declaração Universal de Direitos do Homem, de 10/12/1948, dos quais também redundaria a Convenção nº 107, de 26 de junho de 1957, da Organização Internacional para o Trabalho (OIT), “sobre a Proteção e Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes”, só ratificada no Brasil nove anos após, pelo Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966 (DOU, 20/07/1966)23. Sabemos todos da substituição da Convenção n. 107, pela de número 169, de 1989, tardia e recentemente (em Junho do presente ano) aprovada pela Congresso Nacional, em que, a exemplo de outras leis referentes aos problemas indígenas, esperou longo tempo para ser ratificada. As pretensões de conferir à FUNAI planejamentos sólidos e baseados numa orientação antropológica, propostas marcadas nas discussões que a antecederam ainda no CNPI, ou na admissão de antropólogos academicamente legitimados entre 74/76, e em numerosas tentativas dos setores mais progressistas da instituição de estabelecer diálogos e diretrizes mais seguras, nunca se efetivaram como parte de suas rotinas administrativas. Longe de uma antropologia da ação, têm sido os diversos matizes do sertanismo, como conjunto ideológico, a nortear o cotidiano da FUNAI. Muito de sua organização regimental foi (ou é) inoperante, de acordo com as contingências de cada gestão, e a ação do aparelho marca-se com muita freqüência pelo que se tem denominado de emergencialismo (Oliveira & Almeida, 1998): atua-se amenizando-se o impacto de crises, sem planos seqüenciados de médio e longo prazos, como os diferentes problemas das populações indígenas demandariam. Um espelho disso é a rarefação progressiva dos atores que deveriam coordenar e implementar a ação direta, os chamados técnicos em indigenismo. Apesar de breves cursos de treinamento, ministrados quando da admissão por concurso destes quadros institucionais, desde 1970 até 1985, a formação deste tipo de técnico permaneceu difusa e imprecisa, regulando-se mais pela prática cotidiana e por impressões transmitidas por seus predecessores 23 Enquanto organismo a OIT antecedeu a ONU, sendod atada da década de 1920. 43 do que por um código de conduta e por planos de intervenção estruturados. Tal expressa a plasticidade das metas da Fundação no tocante a numerosas atividades-fim que deveria desenvolver. Enquanto organização, portanto, a FUNAI - de resto como boa parte da administração pública direta - está longe dos supostos de uma burocracia, no sentido weberiano do termo: inexistência de metas claras, de rotinas para alcançá-las, de sistemas de aferição de méritos e, baseados neles, de sistemas de cargos e salários correspondentes, são apenas algumas de suas características marcantes. O funcionamento real da instituição está condicionado às interações das múltiplas redes de relações que a perpassam nacionalmente, estendendo-se para muito além da esfera de seus limites. Estas redes e seus conjuntos organizam-se a partir de diversos princípios de recrutamento (parentesco, relações afetivas e de amizade, pertencimento a partidos políticos e sociedades secretas, como a certas lojas da maçonaria etc), abarcando ainda numerosos integrantes indígenas dispersos por facções de diferentes povos. Nas representações que foram amplamente veiculadas pela midia, tais povos aparecem como homogeneamente aliados (ou inimigos) de funcionários da FUNAI, que atacam ou protegem. Invadem e ocupam a sede da Fundação, em Brasília, segundo uma dinâmica pouco perceptível ao público externo: na maior parte das vezes são facções de grupos indígenas, não representativos de povos em sua totalidade, que agem como integrantes de redes internas ao aparelho, lideradas por atores situados em pontos distintos de sua malha administrativa e articulados com outras instâncias administrativas do Executivo e com setores do Legislativo. Nessas situações essas redes manipulam representações do arquivo da sociedade colonial como a brasileira, encenando os perigos de um “ataque indígena”, calcando-se, sobretudo, nas imagens veiculadas sobre situações de desbravamento de espaços geográficos pouco conhecidos e em estereótipos consolidados, como o da antropofagia. Olhados de um certo ângulo poderiam ser os índios que Roqutte-Pinto dizia que devíamos “proteger sem dirigir”; de outro, talvez, sejam os seus “infiltrados de maus costumes”. De 1967 até o presente foram vinte e oito presidências na Fundação. Pouco é necessário para se perceber que presidir o aparelho tem sido tarefa espinhosa e comprometedora, a ponto de seus sucessivos presidentes terem sido apresentados como uma “galeria da crise permanente”24. De um modo geral, pelos seus titulares e suas vinculações, pode-se perceber o caráter de interesse estratégico que o aparelho entreteve para o aparato de segurança nacional ao longo da maior parte de sua trajetória. Os governos de 24 Cf. RICARDO, 1986: 27-29; 1991: 41-42; 1996: 50-51. 44 Collor, Itamar Franco, e Fernando Henrique Cardoso, que não mantiveram este direcionamento, também não envidaram maiores esforços no sentido de reestruturar a morfologia e as funções da FUNAI. A presença de inúmeras populações indígenas em regiões cortadas pelos limites internacionais do Brasil colocou, porém, nos últimos anos, a diplomacia brasileira como outro ator importante no cenário indigenista. Se alguns dos mesmos problemas estão presentes desde o período colonial, a maneira de coloca-los mudou, assim como os agentes que os representam: não mais militares mas agora diplomatas, a “ameaça indígena” aos projetos de soberania continua sendo invocada. Mas os foros de decisão e interlocutores se alteraram. Desde 1993, e particularmente de 1995, sabemos que a FUNAI vem recebendo recursos para demarcação de terras indígenas na região da Amazônia Legal, por meio do PPTAL - Programa de Proteção às Terras e Populações Indígenas da Amazônia Legal - subcomponente do mais amplo PPG-7 - Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras-Grupo dos Sete -, cujos recursos implicam formas variadas de intervenção de organimos multilaterais - como o Banco Mundial - e da cooperação técnica estrangeira (sobretudo alemã, mas não só, via o organismo estatal denominado Sociedade Alemã de Cooperação Técnica, a GTZ) em aparelhos de governo no Brasil. Até o momento os resultados dessa tentativa de transformação das práticas da FUNAI têm-se circunscrito à esfera fundiária na Amazônia. A entrada em cena da cooperação técnica internacional – além dos financiamentos multilaterais – aponta-nos para a presença de outras vertentes que escapam (ainda que não totalmente) aos elos estabelecidos pelas tradições de conhecimento que elenquei. Trata-se agora de, segundo uma pauta “universal” da “universalidade dos direitos humanos” (como aponta Souza Filho, 2001), propiciar as condições (capacitar) à participação (cf., por ex., Salviani, 2001) culturalmente diferenciada, mas igualitária. Enquanto agenda, creio que estamos no pleno terreno da “política de identidades” (Calhoun, 1996), ou melhor, de sua retórica, que emana sobretudo do multiculturalismo surgido no contexto norte-americano, fato bastante recente na história dos EUA e da Europa Ocidental25. Alia-se, por outro lado, às noções 25 “We rarely encounter the word culturalism by itself: it is usually hitched as a noun to certain prefixes like bi, multi and inter, to name the most prominent. But it may be useful tobegin to use culturalism to designate a feature of movements involving identities consciously in the making. These movements, whether in the United States or elsewhere, are usually directed at modern nation-states, which distribute various entitlements, sometimes includinglife and death, in accordance with classifications and policies regarding group identity. Throughout the world, faced with activities of states that are concerned with encompassing their ethnic diversities into fixed and closed sets of culutral categories towhich individulas 45 relativas a um certa leitura da “democracia participativa”, aplicando-se a numerosos segmentos sociais no país (Macedo e Castro, 2002). Estamos longe e perto dos quadros que permitiram as observações que Roquette-Pinto fez ao final de seu livro, daquilo que se engendrou no entrelaçamento de tradições de conhecimento para gestão colonial da desigualdade com os quadros jurídico-políticos do Estado liberal republicano que se pretendeu instalar no início do XX. Se podemos reconhecer sem dificuldades que o modelo tutelar que constituiu a FUNAI, em termos gerais, encontrou seu fim legalmente com a Constituição de 1988 e seus desdobramentos, creio que não podemos nos orgulhar de ter gerado, desde então, alternativas consistentes que o ultrapassassem. À luz daquele momento, significou um horizonte de proteção e compromisso de nossa titubeante república com as populações indígenas marcado pelo regime tutelar, hoje soando-nos ultrapassado e iníquo. É importante destacar que como estamos, alguns dos piores aspectos da tutela podem sempre aflorar ou se instilar: sem avaliações claras e objetivas da complexidade da situação indígena no Brasil que tenham atingido o nível de um consenso objetivado, de sua diversidade e relação a outros aspectos da sociedade brasileira, na perspectiva do entrecruzamento que as histórias indígenas apresentam com as “histórias brasileiras”, sem novos projetos de futuro delineado de maneira clara, fruto de um padrão de diálogo intercultural e inter-social, sem novos instrumento de regulação das relações com os povos indígenas no Brasil. A tramitação desde 1991 do “Estatuto das Sociedades Indígenas” é só um capítulo desta lacuna. Isto é, reconhecer o “fim jurídico” da tutela da União sobre os povos indígenas pela Constituição de 1988, não deve nem nos iludir quanto ao fim de formas de exercício de poder, de moralidades e de interação que poderíamos qualificar de tutelares, nem tampouco dar a entender que temos um novo projeto das funções de Estado para o relacionamento entre povos indígenas, poderes públicos e segmentos dominantes da sociedade brasileira, delineado e assumido com clareza pelas instâncias governamentais responsáveis ou mesmo pelas forças sociais que se configuram, partidarizadas ou não, em oposição ao governo. Uma breve análise dos programas de governo dos candidatos às eleições transmite desânimo. A crença em certas palavras de ordem, muitas delas coincidentes com a agenda da cooperação are often assigned forcibly, many groups are consciously mobilizing themselves according to identitarian criteria. Culturalism, put simply, is identity politics mobilized at the level of the nation-state” Appadurai, 2000: 15. Cf. Pagden, 2002, para o caráter recente das lutas de caráter identitário na definição de Estados Nacionais europeus. 46 técnica, uma certa destilação dos idéias de uma “democracia participativa”, acabaram por gerar um certo glossário de significantes mais ou menos dotados de significado estáveis de acordo com o emissor, mas capazes de gerar a sensação de entendimento mútuo. No plano da administração pública, sabemos todos, inexiste na atualidade uma política indigenista federal, isto é, um planejamento de governo transformado em diretrizes para ação, alocando recursos captados pelo Estado brasileiro e por ele redistribuídos, abordando diferentes aspectos da vida dos povos indígenas, pautado na interlocução com os mesmos, seja através de suas “organizações” ou outras formas nativas de gestão política. Um planejamento desta natureza deveria ser articulado, racionalmente concebido, executado e avaliado através de ações de um conjunto de agências e agentes governamentais e não-govenramentais (e aqui é necessário registrar a presença das universidades dentre elas as federais, em parte “externa” e “interna” aos aparelhos de governo), onde os índios, assegurados os suportes à compreensão que a diversidade cultural coloca a uma situação dialógica, deveriam ser ouvidos como os mais importantes interlocutores. Tal ausência é tanto mais significativa quanto percebemos os contornos mais abrangentes das transformações que os mandatos de Fernando Henrique Cardoso imprimiram à administração pública, sob a idéia de reforma do Estado, processo no qual novas morfologias organizacionais têm sido concebidas, novas figuras jurídicas têm sido propostas para ordenar as ações administrativas do Estado que articulam o “governo real”, sem que os circuitos de clientelismo de Estado tenham sido rompidos26. Se devemos destacar que áreas como a da regularização das terras indígenas (mormente no tocante à região amazônica) têm sido viabilizadas através do PPTAL/PPG7, se o PDPI está se implantando com amplas possibilidades de inovação, se a gestão da saúde por meio dos distritos sanitários indígenas pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), ou os projetos para educação que se multiplicam pelos estados, com anúncios ominosos de mais de um formato de “universidade” indígena, são sinais de ação, no geral o 26 Souza Lima (1995) utilizou a expressão “clientelismo de Estado” para designar um certo tipo de arregimentação de redes de clientela que tem na distribuição de “bens” (cargos, sobretudo, mas também verbas etc) a partir da administração pública federal apenas um de seus aspectos. Pensado pelo autor como dimensão do processo de formação de Estado no Brasil, a idéia demanda burilamento, mas afasta a idéia de uma burocracia meritocrática como horizonte de reflexão para a análise da FUNAI, e permite alcançar alguma inteligibilidade para além da denúncia do “paternalismo” e da “corrupção” de funcionários e índios quanto às inúmeras crises pelo controle da máquina administrativa da FUNAI. Foi Marcos Otávio Bezerra (1995 e 1998) que fez os esforços mais importantes e instigantes para pensar estas questões(,) como articuladas ao funcionamento do Legislativo (mas não só) no Brasil. Para uma interpretação importante desse período das relações entre FUNAI e povos indígenas, ver RAMOS, 1998. 47 panorama governamental é de estase e de desmantelamento de serviços públicos federais que, se sempre foram deficitários, hoje tornam-se parcos ou nulos27. Há muito por ser concebido, discutido e exercitado no plano do diálogo inter(sócio)cultural. Há muito por ser avaliado de maneira mais distanciada sobre estas experiências esboçadas na área da saúde e da educação, da regularização fundiária, do direito, da antropologia e do “desenvolvimentismo”, termo que uso aqui para designar, provocativamente, as intervenções voltadas à melhoria do nível de vida das populações indígenas, entendido sobretudo como crescimento econômico. Tal como colocado por Roberto Cardoso de Oliveira (1996), discutindo a proposta de Rodolfo Stavenhagen (1985) para o etnodesenvolvimento (ou desenvolvimento alternativo), há muito o que ser feito no sentido de produzir uma “comunidade de comunicação de natureza interétnica” (Cardoso de Oliveira, 1996:38) pautado pela responsabilidade moral daqueles que estão efetivamente no campo dos poderes públicos dominantes28. É preciso que pensemos e com urgência nestes termos: o anúncio governamental de programas de ação afirmativa, e discriminação positiva no terreno das relações raciais deveria supor, como acúmulo de experiência de governo, o debate dos processos de reconhecimento fundiário que se alicerçam sobre políticas étnicas que stricto sensu têm pouco a ver com a “política de identidades” de inspiração culturalista. Estas “viagens da volta”, “entrando e saindo da mistura”, para usar as expressões de João Pacheco de Oliveira (1999), tem histórias próprias que devem ser reportadas, no plano extra-local, à história dos conhecimentos produzidos na territorialização dos povos indígenas ao longo da história brasileira. Não será na agenda da cooperação, em que pese o refraseamento que sofrem no momento, que entenderemos suas lógicas e premissas. Não se trata, pois, simplesmente de “reformar” a Fundação Nacional do Índio, de constatar um “sucateamento” desse aparelho de governo (assim como de outros) e reestruturá-lo. Afinal a FUNAI continua a existir, as redes de clientelas que a organizam encompassam agentes com amplas possibilidades 27 Cf. LIMA, 2000 e 2002 para o PPTAL. Destacamos novamente o trabalho de PARESCHI, 2002 quanto ao PPG7. 28 Esse estado de coisas, verifica-se, é claro, também em outras áreas de ação social do governo. De modo geral, a retórica governamental em torno de idéias como as de parceria, participação das comunidades etc., não deve obscurecer o quanto as responsabilidades do poder público vêm sendo descuradas, o quanto o Brasil não dispõe de mecanismos de redistribuição social e divisão de renda como aqueles parcialmente propiciados pelo que podemos chamar muito genericamente de filantropia, sobretudo de estruturas de financiamento baseadas no estímulo à ação de fundações privadas etc. 48 de ação local e regional, sobre os quais o controle de governo é muito baixo, para não dizer inexistente. E muitos desses são índios. Como lidar com estas redes na negociação de novos projetos de futuro De qualquer modo, a perspectiva do etnodesenvolvimento (Azanha, 2002) vem, sob este ou outro termo, buscando se afirmar como base da vontade de ultrapassar de modo diferenciado, segundo as perspectivas de cada povo, as formas de exclusão social e de produção da desigualdade, da vontade de lidar até mesmo com formas sócio-políticas como as da democracia participativa, também alienígenas às pautas propriamente indígenas. A idéia de etnodesenvolvimento pode se tornar um bom pretexto e um bom eixo em torno do qual construir a crítica às maneiras como as sociedades dominantes se relacionam com os povos etnicamente distintos em espaços surgidos da conquista européia. Isto implica, antes de mais nada, numa reflexão sobre estas sociedades de modo mais abrangente, sobre imagens e mecanismos de totalização que as tornaram possíveis como via de integração sob a forma de Estados nacionais. Isto é, se as observações de Roquette-Pinto, com que comecei esta apresentação, nos colocam diante de uma pauta dos intelectuais brasileiros de seu tempo frente às populações indígenas, pauta diretamente vinculada a um projeto de expansão para os sertões, de realização de uma “obra civilizatória”, como poderíamos ironicamente qualificar, agora já acontecida, qual a nossa pauta atual? Sobre que solo operam nossas idéias? Quem delas comunga? São perguntas que podem ser sempre respondidas com retóricas muito disseminadas, com significantes que circulam a pauta dos “direitos humanos”, que agora parece vir a se alastrar na direção de abarcar o “combate à pobreza”, de resto moto da missão do Banco Mundial29. Se posso parecer ingênuo, creio que as fronteiras sociais hoje estão o suficientemente borradas para que tenhamos a cautela de nos indagarmos acerca de nossas boas intenções. Creio que seminários como este são um excelente ponto de partida para começarmos a afinar nossas idéias e propostas. Sendo menos implacável com a proteção fraternal rondoniana, reconheço as “boas intenções” daquele tempo e, ao invocar nosso predecessor no Museu Nacional, coloco-me o questionamento sobre as minhas próprias idéias. Afinal, deve-se frisar que se na década de 90 as fontes financiadoras direcionaram recursos primordialmente para iniciativas locais e aplicadas, desenvolvidas por ONGs e organizações indígenas, é bastante evidente que o saber disciplinar que tem articulado os diversos problemas envolvidos na 29 Refiro-me à intervenção do Dr. Pierre Sané, Diretor Geral Adjunto da UNESCO, na mesa “A unversalizaçào das políticas públicas de combate à pobreza”, no dia 13 de junho de 2002, nos quadros do evento “Encontro Nacional de Experiências Sociais Inovadoras”, realizado do Hotel Nacional, em Brasília, pelo Banco Mundial. 49 implementação de novos padrões de relacionamento entre sociedades indígenas, Estado e terceiro setor tem sido a Antropologia, uma produção sobretudo das Universidades através das pós-graduações. É importante considerar, por fim, que não se pode mais simplesmente propor e executar um planejamento geral, único, para todas os povos indígenas no Brasil, uma política de Estado que desconheça, desde os princípios para sua formulação, a sociodiversidade indígena e a sociodiversidade brasileira em geral. É preciso afastar de vez a imagem do “índio dos cronistas e viajantes”, um ser eternamente imerso na natureza, signo por excelência do exotismo dos trópicos americanos, parado num tempo estagnado, como o horizonte a partir do qual se raciocina para se calcular (quer se a valore positivamente ou não) uma transformação radical dessa condição, segundo os valores do próprio povo com que se lida. Mantendo-se esta imagem, e vendo-se um “índio profundo” inconquistado, a “retórica do resgate” pode solucionar nossas dúvidas e angústias. Creio que se aceitamos as idéias do caráter insidioso das tradições de conhecimento na gestão colonial da desigualdade e a da complexidade das histórias indígenas e brasileiras interconectadas, pensar as políticas sociais que alicercem novas políticas indigenistas e a produção de diversidades torna-se uma operação delicada. Não será através de um ato de nossa própria vontade que elas se simplificarão. Se é evidente hoje que qualquer operação e cálculo administrativos para as sociedades indígenas deve ser feito sobretudo em escala local ou regional, de acordo com formas de articulação específicas aos distintos povos indígenas, se estas formas sociais - as de organização étnica – são as que devem presidir inclusive os cálculos de fomento, o que não exclui que se possa pensar em dispositivos em escala nacional/federal, é necessário ter em mente que elas nem sempre existem de pronto e que o próprio processo de sua constituição deve ser matéria para reflexão. Por melhores que sejam algumas idéias disponíveis, há que se ser humilde e adotar um espírito de experimentação compartilhada, reunindo em algum plano diversos setores sociais, indígenas e não indígenas, empenhados na quebra das situações de desigualdade. Afinal, julgo que ninguém deseja ver, à reboque do dito “enxugamento do Estado”, sua capilarização sob novas formas (talvez agora indígenas) de produção da desigualdade. É impossível fazer qualquer movimento conseqüente sem a tentativa de estabelecimento de comunidades de argumentação como princípios estruturantes das propostas de ação indigenista. E se pensamos nas escalas local e regional, temos que pensar nas redes de poder que as estruturam, sua potência e articulação, nos planos federal e 50 internacional. A administração indigenista ainda vigente iludiu sua presença no plano do discurso, mas se defrontou com elas, absorvendo-as na prática. Sem condições político-morais para um diálogo intercultural, construído desde o local e o regional, baseado no respeito à diferença de projetos de futuro não há o que planejar: arriscamo-nos sob as novas vestes da década (sustentabilidade, parceria, participação etc.) a repetirmos o pior da tutela e do clientelismo de Estado. Julgo que esta deveria ser parte da nova utopia para uma política indigenista adequada ao Brasil contemporâneo; a de uma política co-construída, sem mediadores, sem “reserva indígenas” ou ghettos. Estamos longe ainda de termos as suas bases delineadas, em que pese a existência de sinais de transformação. Há muito por fazer. Referências bibliográficas APPADURAI, Arjun. 2000 – Modernity at large. Cultural dimensions of globalization. Minneapolis and London, University of Minnesota Press. 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