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REVISTA DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE ANESTESIOLOGIA Vol. 21 | nº3 | 2012 - ISSN 0871-6099 Revista da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 1 A via aérea supraglótica I-gel está agora indicado para reanimação e pode ser inserido em menos de 5 segundos com utilização em pacientes com um peso de 30-90 Kgs+, torna o i-gel indicado para a maioria dos adultos. Para experimentar i-gel visite www.i-gel.com, onde poderá encontrar mais informação, videos, downloads e as últimas novidades. 2 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 ´ REVISTA DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE ANESTESIOLOGIA Vol. 21 | nº3 | 2012 - ISSN 0871-6099 Revista da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 3 Editorial Curto e Conciso Exmo/a Colega O conhecimento de um documento emanado pela ERS sobre a reorganização hospitalar em que são colocados em causa os serviços de anestesiologia, vem colocar questões muito graves sobre quem é protagonista de determinadas opiniões. Consideram-se peritos indivíduos reconhecidos pelo conhecimento dos assuntos em causa, capacidade de reflexão sobre os mesmos e de emissão de juízos bem sustentados na evidência científica ou no mínimo de uma experiência consolidada com substância intelectual. Lucindo Ormonde Presidente da SPA A frase gratuita que surge no documento, e que levantou á onda de repulsa por parte dos anestesiologistas e de outros sectores que também estranharam esta individualização, perfeitamente descontextualizada e parecendo um favor prestado a alguém, ensombra de forma grave técnica e ética o mesmo. Põe em causa a organização dos serviços de anestesiologia na estrutura hospitalar, mostrando uma ignorância profunda sobre organização hospitalar e pondo em causa a validade sobre muitas outras afirmações emanadas pelo documento. Não procurando aqui pormenorizar a discussão, pois a mesma está a ser desenvolvida a todos os níveis possíveis, colocando em causa a dita opinião, consciencializemos a nossa cidadania enquanto portugueses, técnicos de saúde e eventuais usufrutuários de cuidados médicos. Não existe lugar para medos esperando que tudo passe, e que isto tudo não passe de um pesadelo recuperandose ideias da idade média. Existe sim a obrigação de cada um de nós saber em que mundo queremos viver e de assumir as suas responsabilidades. Lucindo Ormonde Presidente da SPA 4 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 Editorial O presente número da Revista da SPA inicia a sua escrita segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Este acordo entrou em vigor em 13 de Maio de 2009 com um período de transição de seis anos para Portugal. Esta decisão prende-se com duas ordens fatores: a necessidade de implementar o que está em lei e o envio de trabalhos para submissão redigidos, quase exclusivamente, em sintonia com o Acordo. A edição deste número continua a revisão sobre Farmacologia Cardiovascular (2ª parte) na vertente dos diuréticos e vasodilatadores. Apresentam-se duas revisões adicionais: - Uma, sobre o potencial terapêutico dos canabinóides sintéticos e o reconhecimento de recetores específicos no sistema endocanabinóide com aplicabilidade clínica na terapêutica da dor aguda e crónica. - Outra, sobre as mucopolissacaridoses. Um grupo heterogéneo de doenças hereditárias por deficiência de enzimas do metabolismo dos glicosaminoglicanos com evolução crónica e sistémica prevalente na idade pediátrica. A anestesiologia pediátrica é revista num contexto histórico em Portugal. Esta temática histórica vai ter continuidade em próximos números e deseja-se que constituam registos da nossa memória anestesiológica. Este assunto terá um tratamento mais desenvolvido no próximo número. No programa do Congresso Anual da SPA decorreu em regime de pré-congresso a Reunião de Formação & Ensino. Neste número da Revista damos a conhecer os resultados desta reunião cujo resumo foi elaborado pelos seus promotores. Este tema de “Formação & Ensino” é, particularmente, importante para a nossa especialidade. A aplicação do Decreto de Lei aprovado no Diário da República de Janeiro de 2011 (1ª série, nº 18-26 de Janeiro de 2011, portaria 49/2011) vem equiparar, em duração da formação, a especialidade de Anestesiologia ao que se verifica na maioria dos países europeus. Este projeto de alteração e revisão do programa de formação em Anestesiologia foi enviado ao CNE em Junho de 2004. Desde então foi alterado e revisto sucessivamente, pela persistência e esforço das sucessivas direções do Colégio da Especialidade, que culminou no documento atual. António Augusto Martins Editor da Revista da SPA Importa pois refletir sobre a qualidade da formação ministrada e os novos desafios ou complementaridades a que a especialidade tem de estar atenta. Algumas das reflexões inseridas no referido texto estão em linha com as preocupações atuais relativas à relevância dos fatores humanos no desempenho das equipas, na prevenção do erro médico e segurança do doente. A análise destes fatores (ex. liderança, comunicação e trabalho de equipa) que poderemos designar como competências não-técnicas tem sido estudada desde o final dos anos 80 do século passado 1. O seu treino tem sido implementado em programa estruturados a nível europeu de forma compulsiva (Dinamarca) 2 ou opcional através de programas de simulação médica. Trata-se de uma ferramenta pedagógica particularmente interessante e cuja evidência científica tem vindo a emergir em estudos de evolução clínica 3. A Anestesiologia tem sido, provavelmente, a especialidade com maiores preocupações na área da segurança do doente. Somos, desta forma, líderes naturais na área da segurança e estes aspetos devem merecer a atenção necessária nos programas formativos. Para prosseguir este caminho é vital o investimento continuado na formação em competências técnicas e nãotécnicas (estas últimas não contempladas no ensino designado por clássico ou tradicional). Os Serviços de Anestesiologia como entidades autónomas, dentro de uma estrutura hospitalar, têm um papel fulcral nos programas formativos dentro e para fora da especialidade. A inadmissibilidade de recentes desenvolvimentos, leia-se Estudo para a Carta Hospitalar da ERS de 18 de Abril de 2012, vêm colocar em causa o trabalho empenhado de gerações de anestesiologistas na dignificação e elevada qualificação dos profissionais. Não está só em causa a independência da especialidade relativamente a outras, mas igualmente a preservação de aspectos relacionados com a formação médica e uma cultura de segurança, parâmetro indispensável na qualidade dos cuidados de saúde em Portugal. Os meus melhores cumprimentos, António Augusto Martins Editor da Revista da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia Bibliografia 1. Gaba DM. Anaesthesiology as a model for patient safety in health care. BMJ 2000; 18: 785–788. 2. Østergaard D, Lippert A and Dieckmann P. Integration of simulation based-training in compulsory specialist programs for physicians - The Danish experience. Revista SPA Supl 2010:21-25. 3. Draycott T, Sibanda T, Owen L. Does training in obstetric emergencies improve neonatal outcome? BJOG 2006; 113:177–82. Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 5 6 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 7 Artigo de Revisão Farmacologia clínica cardiovascular em anestesiologia Farmacologia da proteção miocárdica - 2ª Parte Cristina Amaral, Assistente Hospitalar Graduada, Serviço de Anestesiologia do Hospital de S.João EPE, Porto Palavras-chave: - Farmacologia da proteção miocárdica - Diuréticos - Vasodilatadores - Agonistas - Adrenérgicos alfa 2 - Amiodarona Resumo O progressivo envelhecimento da população nos países desenvolvidos originou uma elevada prevalência de doentes medicados com fármacos de ação cardiovascular. Os anestesiologistas devem conhecer as indicações e interações terapêuticas entre estes fármacos e os da anestesia. A evidência disponível permite falar de farmacologia da proteção miocárdica. As guidelines atuais seguem os estudos que apresentam melhores resultados relativamente aos fármacos a introduzir, manter ou suspender no perioperatório. Clinical cardiovascular pharmacology in anesthesiology Pharmacology of myocardial protection - Part 2 Cristina Amaral, Assistente Hospitalar Graduada, Serviço de Anestesiologia do Hospital de S.João EPE, Porto Keywords: - Pharmacology of myocardial protection - Diuretics - Vasodilators - Adrenergic alpha 2 - receptor agonist - Amiodarone. Abstract An increasingly older population in developed countries originated a high prevalence of patients taking cardiovascular medication. Anesthesiologists must know indications and therapeutic interactions between this drugs and anesthetic agents. Available evidence let’s talk about the pharmacology of myocardial protection. The current guidelines seem to follow positive outcome studies concerning what drugs should be introduced, continued or suspended throughout the perioperative period. Introdução As doenças cardiovasculares são a causa mais frequente de morte no mundo e em Portugal são responsáveis por cerca de 40 % dos óbitos 1. O desenvolvimento de novos fármacos para o tratamento e prevenção das doenças cardíacas e do sistema circulatório tem sido prioritário para a indústria farmacêutica. Porém, alguns dos mais antigos agentes cardiovasculares conservam as suas indicações terapêuticas, quer pelo seu cómodo regime posológico, quer pela baixa toxicidade, quer ainda pelo custo competitivo. Por serem dos mais prescritos, estes últimos merecem especial atenção pela frequência com que podem interferir com a anestesia e pela possibilidade de interferência desta nos seus efeitos. A farmacologia da proteção miocárdica começa na prevenção do miocárdio doente. No perioperatório o objectivo da prevenção engloba a optimização funcional e o controlo dos desvios homeostáticos. Alguns dos fármacos de ação cardiovascular podem estar indicados em situações relacionadas à necessidade cirúrgica peroperatória e não à patologia associada. São exemplos o controle do edema cerebral associado à patologia tumoral e a hipotensão controlada na cirurgia do ouvido médio. Diuréticos Os diuréticos são utilizados no tratamento da HTA e insuficiência cardíaca, algumas vezes coexistentes. Aspetos farmacológicos e clínicos No rim normal, 99 % da água que entra no nefrónio é reabsorvida nos túbulos proximal e distal e no duto coletor. 8 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 Do sódio filtrado, o rim excreta menos de 1 %, sendo que 7/8 são reabsorvidos no túbulo proximal e apenas 1/8 na ansa de Henle e no túbulo distal. A urina representa, em volume, 1 % do ultra-filtrado glomerular, isto é cerca de 1,5 L/dia. A reabsorção do ultra-filtrado dá-se em 50 a 75 % na porção proximal do túbulo renal, em 25 a 40 % na ansa de Henle e em 2 a 5 % no túbulo distal 2. Mecanismos eficientes de auto-regulação mantêm o fluxo sanguíneo renal e a taxa de filtração glomerular relativamente constante para largas margens de pressão de perfusão. Neste processo estão envolvidos: pressão hidrostática e oncótica, distribuição intra-renal do fluxo sanguíneo, resposta de feed-back túbulo-glomerular, sistema renina-angiotensinaaldosterona (SRAA), prostaglandinas, vasopressina, peptídeo natriurético auricular e peptídeo natriurético cerebral. Por interferência nestes mecanismos, os diuréticos podem originar alterações cardiovasculares e do equilíbrio ácido-base e hidro-eletrolítico. São dos anti-hipertensores mais prescritos, por serem baratos, pouco tóxicos e fáceis de manusear, pelo que é frequente fazerem parte da medicação do doente proposto para cirurgia. Consoante o tipo, os diuréticos provocam diferentes magnitudes de natriurese e diurese, com eventual contração do volume intravascular, por bloqueio do transporte de iões ao longo de vários locais do túbulo renal (Figura 1). Adicionalmente surge diminuição do fluido extra-celular, do débito cardíaco e da pressão arterial. Estes fármacos são classificados com base no mecanismo de ação, local do nefrónio onde atuam e tipo de diurese que provocam em: osmóticos, inibidores da anídrase carbónica, diuréticos da ansa, tiazidas, poupadores de potássio e inibidores da hormona anti-diurética 2. Farmacologia clínica cardiovascular em anestesiologia em iões de bicarbonato e hidrogénio na célula tubular proximal, reduzindo a habitual reabsorção de 80 % do bicarbonato a este nível. A redução da captação de bicarbonato alcaliniza a urina e em consequência surge acidose metabólica. Dado que a absorção de sódio precisa do co-transporte com o bicarbonato, resulta aumento de sódio na urina, que condiciona aumento da excreção de potássio por troca no túbulo distal. A acetazolamida é um derivado das sulfonamidas, de fraca ação diurética, que dá origem a taquifilaxia, pois a sua eficácia decresce com o desenvolvimento de acidose metabólica. A principal indicação terapêutica é o tratamento do glaucoma. É útil no tratamento da alcalemia provocada por outros diuréticos e na nefrolitíase associada ao ácido úrico ou à cistina. Outras indicações são o tratamento de quadros de edema acompanhados de alcalose metabólica, como acontece nos doentes com DPOC acompanhada de cor pulmonale e na doença aguda das montanhas 3. Diuréticos da ansa Fig 1 - Esquema das diferentes porções do nefrónio Diuréticos osmóticos O manitol é um álcool, diurético osmótico, cuja única via de excreção é pelo rim, praticamente inalterado e sem sofrer reabsorção. Após administração intravenosa atua numa primeira fase como expansor, em resultado do aumento da osmolaridade plasmática e chamada de líquidos para o compartimento intravascular, podendo precipitar insuficiência cardíaca e edema pulmonar, sobretudo em doentes com má função cardíaca prévia. Na segunda fase, passa do compartimento intravascular para o extracelular e pode causar hipotensão. Aumenta o fluxo sanguíneo renal, reduzindo a reabsorção de sódio e água, principalmente no túbulo proximal, mas também no distal. O efeito natriurético é modesto comparativamente ao diurético, que é elevado. Diminui a produção de renina e a capacidade de concentração da urina. Provoca hipocalemia e pode originar hiponatremia e acidose de expansão, esta devida à diluição do bicarbonato circulante 3. Está indicado na insuficiência renal refratária a outros diuréticos, na redução do edema peri-tumoral associado a neoplasias cerebrais ou com a finalidade de reduzir a pressão intracraniana como nos TCE. É também utilizado na profilaxia da insuficiência renal aguda em cirurgia cardiopulmonar, aneurismetomia da aorta a nível supra-renal e quadros de choque secundários a hemoterapia ou mioglobinúria. A dose varia com o objetivo terapêutico. No tratamento do edema cerebral e do glaucoma a dose habitual é de 1,5 a 2 g.Kg (manitol a 20 %), administrada em 30 a 60 minutos. Perante situações de oligúria, está aconselhada uma doseteste de 0.2 g.Kg a perfundir em 5 minutos, seguida de uma perfusão de 5 a 20 g/dia, consoante a resposta diurética 2. Além da insuficiência cardíaca, a insuficiência renal severa, a hiponatremia e a história de hipersensibilidade são contraindicações à sua administração. Diuréticos inibidores da anídrase carbónica Estes fármacos impedem o ácido carbónico de se dissociar Bloqueiam a reabsorção de sódio no ramo ascendente da ansa de Henle de forma dose-dependente, podendo a excreção deste ião chegar a 31 % do filtrado, contra o 1 % fisiológico. Por este motivo são dos fármacos mais eficazes na insuficiência renal. Impedem a reabsorção ativa de cloro, estimulando a produção de renina. Aumentam o fluxo sanguíneo renal e promovem a redistribuição. Causam hipocalemia, hipomagnesemia e alcalose hiperclorémica. Desidratação e hiperuricemia são outros dos seus efeitos laterais. A indacrinona não está contraindicada na gota, porque tem efeito uricosúrico 2. A furosemida é um derivado do ácido antranílico similar às tiazidas. Tem uma forte ligação às proteínas plasmáticas, início de ação em 20-30 minutos p.o., duração de efeito de 4 a 6 horas e é excretada pelo rim em 50 %. Na presença de insuficiência renal e nos recém-nascidos a t1/2 pode estar prolongada até mais de 10 horas. Pode causar ototoxicidade. Também lhe tem sido atribuída intolerância à glicose e mesmo coma hiperosmolar, especialmente em doentes com fatores de risco. A sua associação à persistência do duto arterial, limita a administração em grávidas 2. A bumetanida é 40 vezes mais potente que a furosemida, tem uma t1/2 menor (cerca de 90 minutos) e não é afetada pela insuficiência renal. Por ter uma resposta inferior à furosemida e maior risco de ototoxidade, o ácido etacrínico praticamente não é utilizado. Tanto a HTA como a insuficiência renal crónica são indicações frequentes para estes fármacos. Têm também um efeito benéfico na insuficiência cardíaca congestiva, pois à ação diurética juntam a diminuição da pressão de encravamento capilar pulmonar e aumento da capacitância venosa. A furosemida está indicada no edema agudo do pulmão. Os diuréticos da ansa estão ainda indicados na intoxicação pela água, na hipercalcemia grave e em situações de pressão intracraniana elevada não dependente do edema cerebral. Na hiponatremia grave, a furosemida está indicada em associação a soluções salinas hipertónicas. A correção da natremia deve ser lenta, 1 a 2 mEq.h-1, para evitar complicações neurológicas decorrentes da hialinose mielopontínica 2. Deslocam a varfarina da albumina plasmática, aumentando a sua disponibilidade 3. Estes diuréticos apresentam um largo leque posológico, de que é exemplo a furosemida, cujas doses terapêuticas são de 20 a 80 mg p.o./dia na insuficiência renal crónica, até 10 vezes esta dose na insuficiência renal aguda. Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 9 Farmacologia clínica cardiovascular em anestesiologia Diuréticos tiazídicos Promovem diurese de sódio e cloro e diminuem a excreção de cálcio, por ação predominante no túbulo distal. A via de administração é oral e atingem o pico plasmático em meia a uma hora. São eliminadas no túbulo proximal, onde diminuem a reabsorção de sódio, podendo causar toxicidade pelo lítio por aumentarem indiretamente a sua reabsorção nesta parte do nefrónio. Dos efeitos laterais destacam-se: desidratação, hiperuricemia, hipocalemia, hipomagnesemia, hiperlipidemia, hipercalcemia, hiperglicemia, hiponatremia e raramente azotemia. As tiazidas podem provocar pancreatite e reações de hipersensibilidade com púrpura, dermatite e vasculite. Estão indicadas na terapêutica dos estados edematosos como ICC, cirrose e síndrome nefrótico; HTA; diabetes insípida nefrogénica e litíase das vias urinárias (oxalato de cálcio). A indapamida na dose de 0.04 mg.Kg apresenta efeito exclusivamente anti-hipertensor. A metolazona permite ultrapassar o fenómeno de resistência a estes diuréticos, porque em adição ao efeito que lhes é comum, inibe a reabsorção proximal de sódio. São diuréticos menos eficazes em doentes geriátricos e praticamente ineficazes na insuficiência renal grave (depuração de creatinina <40 ml.min-1) 2. Diuréticos poupadores de potássio O mais frequentemente usado é a espironolatona, que inibe competitivamente a ação da aldosterona. A sua principal indicação é o hiperaldosteronismo secundário - insuficiência hepática e HTA - por excesso de mineralocorticoide. A espironolatona tem uma absorção oral de 70 % e é metabolizada no fígado. Apresenta uma lenta instalação de efeito (24 a 48 h) e longa duração de ação (48 a 72 h). A eplerrenona é um bloqueador dos recetores mineralocorticoides, com indicações terapêuticas semelhantes, mas com efeitos laterais mínimos. O amiloride e o triantereno não são antagonistas da aldosterona. Atuam por inibição dos canais de sódio no túbulo coletor cortical. O amiloride é utilizado na diabetes insípida nefrogénica condicionada pelo uso crónico de lítio, por bloquear a seu transporte do túbulo coletor 3. Estes fármacos têm um efeito diurético modesto e inibem a secreção tubular de potássio e de magnésio. Têm sido comercializados em associação com as tiazidas, uma vez que contrariam a perda de potássio. Inibidores da hormona anti-diurética Inibem a hormona anti-diurética por antagonismo específico do recetor V2 da vasopressina nos segmentos distais do nefrónio. Provocam eliminação excessiva de água livre e moderada de sódio, cloro e ureia, sem alterações na excreção de potássio. A demeclocilina é a mais usada. Naturalmente, tem como indicação terapêutica o síndrome de secreção inapropriada de hormona anti-diurética. Efeitos adversos dos diuréticos Hipocalemia À exceção dos diuréticos poupadores de potássio e da 10 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 demeclocilina, todos os diuréticos provocam hipocalemia. O potássio plasmático diminui em média 0.67 mmol.L-1 após instituição do tratamento diurético contínuo. Apesar da hipocalemia provocada cronicamente ser menos arritmogénica do que a aguda, níveis de potássio inferiores a 3.0 mEq.L-1 têm uma incidência duas vezes maior de arritmias ventriculares do que níveis superiores a 3.0 mEq.L-1 3 . Este fato pode ser especialmente problemático em cirurgia cardíaca. Os níveis de digitálicos são aumentados pela hipocalemia, podendo tornar-se tóxicos, fenómeno que é exacerbado durante a anestesia, se houver hiperventilação e consequente alcalose. Por cada 10 mmHg de redução na tensão arterial de dióxido de carbono, o potássio desce 0.5mEq.L-1 4. O efeito arritmogénico da hipocalemia manifesta-se muitas vezes sob stress, quando as catecolaminas acentuam a sua diminuição plasmática em 0.5 a 1.0 mmol.L-1 ou quando se utilizam agonistas adrenérgicos beta como broncodilatadores 5. O uso concomitante de corticosteroides pode agravar a hipocalemia causada pelos diuréticos espoliadores de potássio. Hiponatremia Na insuficiência cardíaca a hiponatremia é uma complicação frequente do tratamento com diuréticos, causada pelo potencial defeito de diluição renal e pela concentração elevada de vasopressina e pela angiotensina II cerebral alta, que provoca sede exagerada. Hipomagnesemia Comum na terapêutica com diuréticos da ansa e tiazídicos, a hipomagnesemia é agravada por fármacos que aumentam a eliminação renal do magnésio como álcool etílico, ciclosporina, cisplatina, anfotericina e alguns aminoglicosídios como a gentamicina e a tobramicina. Alterações do equilíbrio ácido-base Pode surgir alcalose metabólica hipoclorémica a acompanhar depleção significativa do volume intravascular, com os diuréticos da ansa. Por outro lado os inibidores da anídrase carbónica e os poupadores de potássio, podem ocasionalmente causar acidose metabólica 3. Os distúrbios acidobásicos e hidroeletrolíticos podem interferir com os relaxantes neuromusculares. Por este motivo é também importante que sejam diagnosticados e corrigidos pre-operatoriamente, enquanto a monitorização do bloqueio neuromuscular ajuda a titular os seus níveis no per-operatório. Intolerância aos hidratos de carbono Surge resistência à insulina com a administração de tiazidas e menos com os diuréticos da ansa, que podem fazer aparecer diabetes do adulto em pessoas predispostas. Nestas é raro observar cetoacidose, mas em pacientes com diabetes tipo II pode surgir coma hiperosmolar não cetósico. A restituição de potássio melhora a resistência aos hidratos de carbono 3. Hiperlipidemia Está descrito um efeito adverso pelos diuréticos tiazídicos na concentração plasmática de lipídios, que é minorado pela utilização de doses baixas. Farmacologia clínica cardiovascular em anestesiologia Resistência aos diuréticos Na insuficiência cardíaca e renal a capacidade de auto-regular a taxa de filtração glomerular altera-se com qualquer medicamento que reduza a pressão arterial. A eficácia dos diuréticos, mesmo os da ansa, diminui com o agravamento da patologia subjacente apesar de doses entéricas progressivamente mais altas. Este efeito de resistência ao diurético, traduzse pelo desvio para a direita da curva sigmóide, que descreve a relação entre o logaritmo da concentração do diurético na luz tubular e o seu efeito natriurético 2 . A etiologia da resistência aos diuréticos parece ser multifatorial. Pode dever-se a diminuição da resposta renal ou/e a diminuição da concentração de fármaco ativo no local de ação. Por um lado existe um fenómeno de adaptação ao diurético, que se atribui a hipertrofia do epitélio tubular e que condiciona aumento da capacidade de reabsorção de sódio e de água. A retroalimentação túbulo-glomerular e uma atividade nervosa simpática excessiva contribuem para provocar retenção renal de sódio. O aumento da atividade do SRAA é também responsável pelo aumento da secreção de hormona anti-diurética. Por outro lado, para além da deterioração súbita das funções cardíaca e renal, a causa mais frequente de resistência aos diuréticos é a administração simultânea de outros fármacos de que são exemplo os anti-inflamatórios não esteroides (AINES) e os vasodilatadores. Por interferência com as prostaglandinas, os AINES podem inibir a resposta saliurética à furosemida e levar mesmo a insuficiência renal aguda. A restrição da ingestão salina é importante para protelar o desenvolvimento de resistência. Outras causas de resistência aos diuréticos na administração por via oral são: falta de adesão à terapêutica; dose insuficiente; má absorção, como acontece na insuficiência cardíaca; diminuição do fluxo sanguíneo renal, como nos estados edematosos de ICC, IRA, IRC e cirrose hepática; e proteinúria de que é exemplo o síndrome nefrótico 2 . A administração intravenosa permite ultrapassar este inconveniente nas insuficiências renal e cardíaca, pelo aumento sucessivo da dose até encontrar o limiar terapêutico adequado. Porém a estratégia ideal consiste na terapêutica intravenosa contínua, de forma a assegurar uma diurese sustentada pela presença ininterrupta de concentrações altas de diurético no túbulo renal. Desta forma evita-se também uma redução demasiado rápida do volume intravascular e de hipotensão, assim com o risco de ototoxidade no caso dos diuréticos da ansa de Henle. Toxicidade A ototoxicidade relacionada à furosemida refere-se a concentrações i.v. superiores a 100 µg.mL-1 ou a velocidades de administração superiores a 4 mg.min-1 ou, ainda, à associação com aminoglicosídeos. A toxicidade renal dos aminoglicosídeos e de algumas cefalosporinas de 1ªgeração, como a cefaloridina, é potenciada pelo uso concomitante de diuréticos da ansa. Recomendações peri-operatórias para os diuréticos Os diuréticos são, habitualmente, descontinuados na manhã da cirurgia 4. É recomendado que os pacientes hipertensos, descontinuem os diuréticos em baixa dose no dia da cirurgia e que os reinstituam oralmente logo que possível (classe I, nível C) 6. Em presença de insuficiência cardíaca, os diuréticos devem ser mantidos no dia da cirurgia e reinstituídos p.o. logo que possível. No per-operatório pode haver necessidade de os suplementar com diuréticos da ansa via endovenosa (Classe I, nível C) 6. Por interferência nos mecanismos de autoregulação renal, os diuréticos podem originar alterações cardiovasculares e do equilíbrio ácido-base e hidroeletrolítico. A sua ação deve ser controlada por ionograma plasmático e em alguns casos pH, sobretudo na administração aguda. Os doentes propostos para cirurgia sob terapêutica com diuréticos e principalmente aqueles com história de arritmia, devem ter ionograma pré-operatório 6. É recomendado que os distúrbios eletrolíticos sejam corrigidos antes da cirurgia (Classe I, nível B) 6. Vasodilatadores O aparecimento e disponibilidade de analgésicos simultaneamente hipotensores, como o remifentanil e de bloqueadores adrenérgicos beta cómodos na administração endovenosa aguda e em perfusão, como o labetalol e o esmolol, retiraram aos vasodilatadores, interesse per-operatório na obtenção de hipotensão controlada. Além disso, os seus efeitos laterais reflexos condicionam aumento da atividade simpática e da renina plasmática e retenção de sódio. O risco de toxicidade do nitroprussiato afastou-o dos protocolos anestésicos e intensivistas. O mecanismo de ação dos vasodilatadores exógenos, baseia-se na produção direta de óxido nítrico. Este atua como fator relaxante do endotélio, ativa a cíclase do guanilato e leva à desforilação da miosina com consequente relaxamento do músculo liso vascular. A hidralazina, que tem ação vasodilatadora arteriolar, classicamente usada em obstetrícia, está contra-indicada em doentes com coronariopatia, por condicionar aumento reflexo do débito cardíaco e do consumo de O2. A adenosina para além de provocar vasodilatação arteriolar, atrasa a condução através do nó auriculo-ventricular e baixa a frequência cardíaca, sendo útil no tratamento da taquicardia supra-ventricular. Faz parte do algoritmo das arritmias periparagem (6+12+12 mg). Embora seja um potente vasodilatador arteriolar, a nitroglicerina tem efeitos mais marcados nos vasos de capacitância, condicionando diminuição acentuada no retorno venoso e nas pressões auricular direita e capilar pulmonar. Os volumes ventriculares sistólicos e diastólicos são reduzidos bem como a tensão da parede do miocárdio, com consequente redução do consumo de O2. A remoção pré-sistémica pela elevada extração hepática a que está sujeita, quando administrada por via oral, pode ser contornada pela administração sublingual. Através desta, o alívio da dor anginosa dá-se em 1 a 2 minutos e a sua t1/2 é de cerca de 2,8 minutos. A perfusão de nitroglicerina tem sido utilizada na cirurgia de revascularização coronária. A velocidade de perfusão varia entre 0.5 a 1.5 µg.Kg.min-1. A nitroglicerina tem sido reconhecida por reverter a isquemia miocárdica. Um pequeno estudo controlado, em doentes com angina estável sob nitroglicerina i.v., durante cirurgia não cardíaca, demonstrou diminuição da isquemia miocárdica peri-operatória, sem efeito na incidência de enfarte de miocárdio e morte cardíaca 7. Recomendações peri-operatórias A ESC defende que pode ser considerado o uso perioperatório de nitroglicerina para a prevenção de eventos isquémicos adversos (Classe IIb, nível b). Adverte que no perioperatório o seu uso pode acarretar risco hemodinâmico significativo. A Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 11 Farmacologia clínica cardiovascular em anestesiologia sua administração endovenosa contínua não deve dispensar monitorização direta da pressão arterial. Agonistas dos recetores adrenérgicos alfa 2 Os agonistas dos adrenorreceptores alfa 2 diminuem a saída pós-ganglionar de noradrenalina, podendo controlar a libertação de catecolaminas no per-operatório. O Perioperative Cardiac Risk Reduction Protocol (PCRRT) 8, implementado no San Francisco Veterans Affairs Medical Center usa a clonidina em vez de bloqueador adrenérgico beta, quando este está contra-indicado em doentes de cirurgia vascular, desde a década de 90 do século passado. A dose administrada no protocolo é de 0.2 mg de clonidina p.o. na noite anterior à cirurgia, seguida de patch transdérmico de clonidina de 0.2 mg/24 horas, para manter pressão arterial sistólica <120 mmHg. O patch deve ser mantido uma semana. Na manhã da cirurgia o doente faz mais 0.2 mg de clonidina p.o. Nos vários estudos que têm sido feitos, os agonistas dos receptores adrenérgicos alfa 2 mostram estar associados a diminuição da mortalidade e do enfarte de miocárdio no subgrupo de doentes submetidos a cirurgia vascular, mas não nos das restantes cirurgias 6. Recomendações peri-operatórias A ESC recomenda que os agonistas dos receptores adrenérgicos alfa 2 possam ser considerados na redução do risco de complicações cardiovasculares peri-operatórias em pacientes de cirurgia vascular (Classe IIb, nível B). Amiodarona A amiodarona tem sido utilizada no tratamento das taquiarritmias refratárias supraventriculares e nas taquicardias ventriculares. É um poderoso anti-arrítmico e é também um vasodilatador coronário. Tem efeito inotrópico negativo, provoca vasodilatação periférica e tem efeito cronotrópico negativo dose-dependente 5. Estes efeitos são acentuados durante a anestesia geral. A reversão dos seus efeitos adversos pode ser refratária à atropina e aos agonistas dos recetores adrenérgicos alfa. Por este motivo o uso de amiodarona no perioperatório foi considerado controverso. Observações mais recentes, sugerem que a amiodarona é segura durante a anestesia geral, tanto em cirurgia cardíaca como em cirurgia não cardíaca 4. Além Bibliografia 1.http://www.min-saude.pt/portal/conteudos/a+saude+em+portugal/ cndcv/documentacao.htm 2. Carvalho BM. Diuréticos e modificadores do transporte tubular. In: Guimarães S, Moura D, Soares da Silva P. Terapêutica medicamentosa e suas bases farmacológicas. 5ªed. Porto Editora 2006: 486-509. 3. Gravenstein NDiuretics. In: Roizen MF, Fleisher LA, eds. Essence of anesthesia pratice. 2nd ed. Philadelphia, P A, W B Saunders; 2002: 519-560. 4. Wolf A, Mcgoldrick KE. Cardiovascular pharmacotherapeutic considerations in patients undergoing anesthesia. Cardiol Rev 2011; 19: 12-16. 5. Rodrigues Pereira E. Anti-arrítmicos. In: Guimarães S, Moura D, Soares da Silva P. Terapêutica medicamentosa e suas bases farmacológicas. 5ªed. Porto Editora 2006: 395-415. 6. Poldermans D, Bax JJ, Boersma E et al. Guidelines for preoperative cardiac risk assessment and perioperative cardiac management in noncardiac surgery: The Task Force for Preoperative 12 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 disso dada a farmacocinética do fármaco, não faz sentido suspendêlo no perioperatório em doentes com arritmias potencialmente fatais. A t1/2 de eliminação da amiodarona é de cerca de 2 meses. Acresce a cada vez mais frequente indicação per e pós-operatória de amiodarona, como acontece na prevenção da fibrilhação auricular em pacientes sujeitos a cirurgia de revascularização coronária. Pode haver importantes interações medicamentosas decorrentes do uso de amiodarona. Aumenta os níveis plasmáticos de fentanil, digoxina, quinidina, proacaínamida, fenitoína e teofilina 4. Também potencia os efeitos da varfarina, dos bloqueadores dos receptores adrenérgicos beta e dos bloqueadores dos canais de cálcio. Está implicada no desenvolvimento de alveolite pulmonar, pneumonia intersticial, insuficiência hepática e disfunção tiroideia 5. Na sequência da revisão da farmacologia clínica cardiovascular publicada em duas partes, podemos concluir as recomendações para continuação ou suspensão de fármacos no perioperatório Recomendações atuais para continuação/ suspensão de fármacos no perioperatório Os seguintes fármacos devem manter-se no período per-operatório: - Beta bloqueadores - Estatinas - Bloqueadores dos canais de cálcio - Agonistas adregénicos alfa 2 - Amiodarona Os seguintes fármacos devem ser descontinuados na manhã da cirurgia e reinstituídos logo que possível: - Inibidores da enzima de conversão da angiotensina - Bloqueadores dos receptores da angiotensina II - Diuréticos Agradecimentos A autora agradece ao Professor Doutor Jorge Tavares o estímulo para a escrita deste trabalho, bem como a sua aprovação e revisão. Cardiac Risk Assesssment and Perioperative Cardiac Risk Management in Noncardiac Surgery of the European Society of Cardiology (ESC) and European Society of Anaesthesiology (ESA). Eur Heart J 2009; 30: 2769-2812. 7. Coriat P, Daloz M, Bousseau D et al. Prevention of intraoperative myocardial ischemia during noncardiac surgery with intravenous nitroglycerin. Anesthesiology 1984; 61: 193-196. 8. Wallace AW, Au S, Cason BA. Perioperative beta blockade: atenolol is associated with reduced mortality when compared to metoprolol. Anesthesiology 2011; 114: 824-836. Artigo de Revisão O potencial analgésico dos canabinóides Célia Duarte, Assistente Hospitalar, Anestesiologista do Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE Palavras-chave: - canábis - sistema endocanabinóide - canabinóides sintéticos - analgesia Resumo A canábis tem sido utilizada como droga de abuso. As suas consequências são parcialmente compreendidas (ex. dependência, esquizofrenia, patologias da vias aéreas e infertilidade masculina). Na década de 90, foi iniciada a investigação sobre o seu potencial terapêutico. O sistema endocanabinóide foi descoberto e foram identificados recetores específicos: CB1, CB2,TRP e recetores atípicos. A investigação em animais e em humanos, mostra que os canabinóides sintéticos poderão ser muito úteis na terapêutica da dor aguda e da dor crónica. The analgesic potential of cannabinoids Célia Duarte, Assistente Hospitalar, Anestesiologista do Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE Keywords: - cannabis - endocannabinoid - cannabinoids - analgesia. Abstract Cannabis as been used as an addict drug. Its consequences are not completely known (ex. dependence, schizophrenia, airway diseases and male infertility). The investigation around its therapeutic potential as began in the 90’s. The endocannabinoid system and specific receptors were discovered: CB1, CB2, TRP and atypical receptors. Animal and human investigation shows that synthetic cannabinoids may prove to become very useful in acute and chronic pain treatment. Introdução A canábis tem tido significado medicinal e social durante milénios. É obtida da Cannabis sativa, nome que resulta da junção de palavras do sânscrito, hebreu e latim e que significa cana perfumada cultivada. A marijuana corresponde às flores e folhas de canábis secas, que são fumadas, enquanto haxixe refere-se aos blocos de resina de canábis que podem ser mastigados. 1 O principal canabinóide psicotrópico ∆9 – tetrahidrocanabinol foi isolado pela primeira vez em 1964. No final dos anos 90, vários testemunhos sobre o alívio sintomático que provocava em várias patologias, chamaram a atenção para o seu valor terapêutico. Em 1998, a Royal Pharmaceutical Society enviou provas da eficácia clinica da canábis para a “House of the Lords”, o que encorajou a investigação do uso dos canabinóides na esclerose múltipla e noutras situações clínicas, incluindo a dor crónica1. Efeitos na saúde, em psiquiatria e dependência A cannabis é a droga de abuso mais consumida no mundo, com uma estimativa global de 166 milhões de utilizadores. Cerca de 9-15 % dos consumidores ficam dependentes de canábis2. Os endocanabinóides parecem facilitar a auto-administração de várias drogas de abuso. O bloqueio dos receptores CB1 diminui os consumos de heroína e outras drogas. Em alguns casos, a auto-administração destas mesmas drogas altera os níveis de endocanabinóides regionais cerebrais. O aumento do canabinóide cerebral induzido por drogas de abuso parece modelar seletivamente a motivação para o consumo de drogas, e assim as consequências neurotóxicas a longo prazo destes químicos. Pope et al. realizaram várias experiências para caracterizar os mecanismos neuroquímicos subjacentes à modulação endocanabinóide provocada pelas drogas de abuso 3. Os efeitos da maioria das drogas de abuso são mediadas, em parte, pelo aumento dos níveis de dopamina no núcleo acumbens, e os autores descobriram que o antagonismo do recetor CB1 atenua o aumento dos níveis de dopamina neste núcleo, induzidos pelo etanol ou pela nicotina. Os recetores CB1 parecem influenciar o efeito das drogas de abuso derivadas do ópio pela redução da modelação exercida pela droga na libertação de GABA pelo globo pálido ventral. A relação entre os canabinóides e a psicose é conhecida há quase mil anos. Em 1235, Ib Beitar relacionou o consumo de cannabis com a insanidade, e em 1845 Moreau de Tours escreveu que a canábis podia precipitar reações psicóticas agudas, geralmente com a duração de algumas horas, mas ocasionalmente até uma semana 4. Linhas de evidência sugerem que os canabinóides podem produzir todos os sintomas característicos da esquizofrenia, positivos (desconfiança, paranoia, mania, desorganização conceptual, fragmentação do pensamento e alterações da perceção), negativas (falta de reatividade emocional, prejuízo da capacidade de relacionamento, falta de espontaneidade, atraso psicomotor) e cognitivos (défices na aprendizagem, memória, execução de tarefas, capacidade de abstração, tomada de decisões e atenção) 4. Segundo Sewell RA et al., nos ensaios clínicos randomizados que compararam os efeitos anti-eméticos dos canabinóides sintéticos com placebo e com outros anti-eméticos, verificaramse alucinações em 6 % e “paranóia” em 5 % no grupo dos canabinóides4. Estes efeitos foram dose dependentes e também aumentavam com a repetição das administrações. Diversos estudos indicam que a canábis, provavelmente, tem Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 13 O potencial analgésico dos canabinóides papel causal na etiologia e recaída da esquizofrenia 5. Moore et al. detetaram um aumento de 40 % no risco de psicose em indivíduos que sempre tinham utilizado canábis, sendo maior quanto maior a dose de exposição 6. Metanálises sugerem que a canábis poderá ser responsável por 8 a 14 % dos casos de esquizofrenia ainda que o aumento do consumo em 5 vezes durante uma período de 5 anos, não tenha sido equiparado a aumento da prevalência da esquizofrenia (40 a 70 %) 4. Estudos animais sugerem que a exposição crónica aos canabinóides está associada à neurotoxicidade no hipocampo 4. Yucel et al. relataram que consumidores crónicos de canábis apresentaram reduções nos volumes do hipocampo e da amígdala. Além disso, o volume do hipocampo esquerdo esteve inversamente associado a sintomas psicóticos positivos sublimiares 7. Arendt relatou que indivíduos que desenvolveram psicose aguda após a exposição à canábis tinham uma probabilidade dez vezes mais alta de terem uma história familiar de esquizofrenia do que os pacientes que tinham nunca tinham usado de canábis 8. A relação entre a exposição à canábis e esquizofrenia preenche alguns, mas não todos os critérios de causalidade. A maior parte dos consumidores não desenvolve esquizofrenia e muitas pessoas diagnosticadas com esquizofrenia nunca utilizaram canábis. Provavelmente existe uma interação com outros fatores para a génese da doença 4. Di Forti et al. verificaram que o risco de desenvolver psicose é maior naqueles que têm um consumo diário de cannabis e naqueles que fumaram esta droga de abuso durante mais de 5 anos 9. Existe evidência pequena, mas crescente relativamente a efeitos na memória, processamento da informação e funções de execução subtis, mas permanentes, em recém-nascidos de mulheres que consumiram cannabis durante a gravidez 5. Nos fumadores de canábis foram encontradas alterações inflamatórias crónicas e pré-cancerígenas nas vias aéreas 5. Lee et al. referem que existem estudos consistentes de que a canábis fumada está associada com inflamação das grandes vias aéreas, sintomas de bronquite, aumento da resistência das vias aéreas e hiperinsuflação pulmonar. Não está provado que exista uma relação direta com o desenvolvimento de DPOC mas existem vários casos clínicos referindo bolhas de enfisema nos fumadores de canábis. Segundo estes autores não existe a certeza relativamente à propensão para neoplasia das vias aéreas 10. Os recetores endocanabinóides encontram-se em várias células incluindo neurónios, células imunitárias, células do endotélio e músculo vascular, assim como nos testículos e na cabeça e porção média dos espermatozóides. Estudos em humanos concluíram que o tetra-hidrocanabinol afecta a fisiologia da reprodução masculina. Observaram-se ruturas no eixo hipotálamo-hipófise-testículo, com diminuição dos níveis de hormona luteinizante nos consumidores de marijuana. Os níveis de testosterona também são mais baixos nesta população. Verificou-se que um terço dos consumidores de marijuana tem oligospermia 11. Fisiologia dos endocanabinóides O sistema endocanabinóide foi descoberto apenas no fim dos anos 80, início dos anos 90, enquanto os sistemas de neurotransmissores major, colinérgico, adrenérgico e dopaminérgico, foram descobertos na década de 30. A função básica do sistema canabinóide pode ser protectora. No sistema nervoso central, a transmissão de sinal dos endocanabinóides é mediada sobretudo pelo receptor CB1, um transportador transmembranar de endocanabinóides, e enzimas hidrolíticas 14 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 envolvidas tanto na síntese (lípase diacilglicerol, DAGL, a fosfolipase D específica N-acylphosphatidyl-ethanolamina), e inactivação (hidrolase amida dos ácidos gordos e lipase monoacilglicerol) dos endocanabinóides. Os endocanabinóides são sintetizados à medida que são necessários a partir do ácido araquidónico dos fosfolípidos da membrana. A despolarização neuronal pós-sináptica leva à libertação de endocanabinóides, estes difundem-se ao longo da sinapse e activam os receptores CB1 na terminação pré-sináptica. A síntese de endocanabinóides também pode ser estimulada pela activação dos receptores de glutamato metabotrópicos acoplados à proteína G e receptores muscarínicos M1 e M3. Os endocanabinóides participam numa variedade de processos incluindo a termorregulação, apetite, função imunitária, percepção (audição, visão e paladar), cognição (potenciação a longo prazo e memória a curto prazo) e função motora (locomoção, propriocepção e tónus muscular) 3. Outros autores referem também a modulação da dor, regulação do apetite, alterações do humor e funções patológicas: resposta inflamatória, doença oncológica, comportamento aditivo e epilepsia12,13. Os endocanabinóides partilham a mesma estrutura que o ∆9 – tetra-hidrocanabinol (THC), o principal componente psicoactivo da canábis 12. A anandamida (AEA) e o 2- araquidonoilglicerol (2-AG) são os dois endocanabinóides cuja acção no sistema modulador da dor está melhor caracterizada, sendo derivados do ácido araquidónico. Inibem o processamento do estimulo nociceptivo através da ativação de receptores acoplados à proteína G, os receptores metabotrópicos CB1 e CB2, descobertos em 1990 e 1993, respectivamente 1,12. A activação do receptor CB1 também inibe os canais de cálcio tipo N, L e P/Q e activa os canais de potássio e as MAP (mitogen activated protein) cinases 14. Os receptores canabinóides e os seus ligandos endógenos estão presentes a nível supra-espinhal, espinhal e periférico 12. Os receptores CB1 encontram-se sobretudo no SNC mas também em tecidos periféricos como: glândula suprarrenal, tecido adiposo, coração, fígado, pulmão, próstata, útero, ovário, testículo, medula óssea, amígdalas e terminações nervosas pré-sinápticas. No cérebro encontram-se no córtex cerebral, hipocampo, corpo caloso, amígdala, gânglios da base (substância nigra pars reticularis e segmentos interno e externo do globo pálido) e cerebelo 12, 14. A activação destes receptores CB1 inibe a libertação de neurotransmissores pela depressão da excitabilidade neuronal, diminuição da condutância do cálcio e aumento da condutância do potássio para dentro das células pré-sinápticas 1,12. Os receptores CB2 localizam-se sobretudo nos orgãos responsáveis pela produção e regulação das células do sistema imunitário: baço, amígdalas, timo e medula óssea 12, 14. Estudos recentes sugerem que também se encontram no cérebro, gânglios das raízes dorsais, na medula espinhal lombar, nos neurónios sensitivos, nas células da micróglia e na pele 12. Os endocanabinóides são libertados pelos neurónios póssinápticos despolarizados e dirigem-se para os terminais pré-sinápticos onde activam os receptores CB1, através dum mecanismo de sinalização retrógrada. O efeito geral é uma diminuição na libertação de neurotransmissores excitatórios como o glutamato. Os níveis de endocanabinóides aumentam após lesão nervosa, em regiões específicas do cérebro, como a PAG (substância cinzenta peri-aquedutal) e RVM (medula ventromediana rostral), estruturas implicadas na modulação descendente da dor 12. As enzimas intracelulares que hidrolizam/degradam os canabinóides são: hidrolase amida dos ácidos gordos (FAAH) e O potencial analgésico dos canabinóides lipase monoacilglicerol (MGL). FAAH hidroliza AEA e compostos relacionados, enquanto MGL metaboliza 2-AG 12,13. A MGL tem localização pré-sináptica e a FAAH é pós-sináptica 12. Os endocanabinóides também sofrem metabolismo oxidativo pela ciclo-oxigenase, lipoxigenase e enzimas do sistema P450 12,14. A administração sistémica de inibidores do uptake de endocanabinóides (UDM-11, OMDM-2, UCM-707 e LY2318912) aumentam os níveis cerebrais de AEA e 2-AG. A inibição de FAAH por N-araquidonoil-serotonina (AA-5-HT) também provoca o mesmo aumento. Estes estudos sugerem que os inibidores do uptake e desactivação de endocanabinóides têm potencial terapêutico para aumentar o nível de endocanabinóides 12. Estudos mais recentes conduziram à descoberta de uma família de cinco receptores canabinóides ionotrópicos – os canais de potencial receptor transitório (TRP) e que incluem TRPV1, TRPV2, TRPV4, TRPM8 e TRPA1 15. Os canabinóides geram entrada lenta de cálcio para as células, através da estimulação dos receptores TRPV1 e TRPA1. Também existe evidência crescente da acção dos canabinóides sobre os receptores de activação da proliferação dos peroxissomas (PPAR) 13,14. Achados recentes sugerem que alguns canabinóides ligamse a recetores atípicos. Schuelert et al. investigaram se o agonista sintético GPR55 O-1602 podia alterar a nocicepção articular num modelo animal (rato) de inflamação articular aguda. Foi induzida dor aguda articular pela administração intra-articular de “kaolin 2 %” e “carrageenan 2 %”. Foram realizados registos dos aferentes articulares com artrite em resposta a rotação do joelho. A administração periférica de O-1602 reduziu significativamente os disparos das fibras C desencadeadas pelo movimento e este efeito foi bloqueado pelo antagonista o-1918 do recetor GPR55. A administração simultânea de antagonistas CB1 e CB2 não teve efeito nas respostas O-1602. Este estudo mostra que existem recetores canabinóides envolvidos na nocicepção articular e estes novos alvos podem ser vantajosos para o tratamento da dor inflamatória 16. Mecanismos envolvidos na analgesia mediada pelos canabinóides Os canabinóides são substâncias muito lipofílicas, que atravessam facilmente a barreira hemato-encefálica, o que explica os principais efeitos adversos: disforia, perturbações da memória, diminuição da capacidade de concentração, desorientação e descoordenação motora 1. A densidade dos receptores CB1 é diminuta nos centros do tronco cerebral responsáveis pelo controlo da frequência cardíaca e da respiração, o que explica a baixa toxicidade e a ausência de mortalidade após intoxicação por marijuana 17. Os canabinóides administrados por via endovenosa suprimem a actividade dos neurónios nociceptivos no corno dorsal da medula e no núcleo latero ventral posterior talâmico 1,12 . Observa-se um fenómeno de upregulation espinhal dos receptores CB1 após lesão nervosa medular, o que pode enfatizar o efeito terapêutico dos canabinóides na dor neuropática. Os efeitos anti-nociceptivos dos canabinóides administrados por via intraventricular estão diminuídos após ablação cirúrgica ou farmacológica da medula espinhal. A destruição selectiva das projecções descendentes noradrenérgicas da medula espinhal reduz a eficácia analgésica dos canabinóides sistémicos, o que sugere também o envolvimento dos sistemas supra-espinhais descendentes noradrenérgicos na analgesia mediada pelos canabinóides 1. Ao longo do tempo, foram desenvolvidos vários modelos experimentais de lesão nervosa, que permitiram estudar a acção dos canabinóides. O antagonista específico de CB1 (rimonabanto) SR141716, administrado de forma crónica, suprime a hiperalgesia mecânica e térmica. O agonista misto dos receptores CB1/CB2 (WIN55212-2) inibe a actividade espontânea dos neurónios wide dynamic range (WDR), através de um mecanismo dependente de CB1, contribuindo esses neurónios para a hipersensibilidade e sensibilização neuronal na dor neuropática. O WIN55212-2 também normaliza os níveis de prostaglandina E e a atividade do óxido nítrico, dois mediadores da dor neuropática que estão aumentados após lesão isquémica crónica. Não se verificou tolerância com a administração repetida de um agonista específico dos receptores CB2, o que indicia um potencial terapêutico na dor neuropática com a vantagem de não desenvolver tolerância 17. Através do modelo Seltzer (compressão parcial do nervo ciático) foram identificados três mecanismos de modulação: o inibidor de transporte AM404, administrado sistemicamente suprime a alodinia mecânica de modo dependente de CB1, sem efeitos motores; o inibidor FAAH URB597, administrado localmente na pata da cobaia, mas não sistemicamente, suprimiu a hiperalgesia térmica e a alodinia mecânica por um mecanismo CB1; o inibidor MGL URB602, administrado localmente, aboliu a dor neuropática por ativação dos recetores CB1 e CB217. Os canabinóides aboliram a dor neuropática num modelo animal de nevralgia pós-herpética. Vários estudos revelam eficácia dos agonistas mistos CB1/CB2 mas a dose terapêutica coincide com a dose que provoca efeitos secundários. O ácido ajulêmico (CT-3), um análogo canabinóide restrito à periferia tem dose anti-hiperalgésica menor que a dose que desencadeia efeitos adversos 17. Em geral, a estimulação dos receptores canabinóides tipo 1 e tipo 2 acoplados à proteina G resulta na inibição das vias de transmissão de sinal nociceptivas. Os agonistas dos receptores CB1 e CB2 derivados de plantas e sintéticos produzem efeitos analgésicos bem descritos, mas os canabinóides endógenos também ganharam protagonismo pela sua capacidade de modular as vias da dor. Os dois endocanabinóides principais, anandamida (AEA) e 2-araquidonoilglicerol (2-AG), inibem a nocicepção após administração exógena. Os inibidores do reuptake endocanabinóide ou da sua degradação também produzem efeitos analgésicos. Alkaitis et al. 18 colocaram a hipótese de que a transmissão de sinal endocanabinóide é necessária para prevenir a perpetuação da dor aguda no pósoperatório. Para testar esta hipótese, usaram um modelo de dor no pós-operatório em ratos que consistiu numa pequena incisão na superfície plantar duma pata. Depois disto, os animais demonstravam alodinia mecânica significativa e, em associação, um aumento na expressão de marcadores gliais, com resolução espontânea de ambos ao longo de aproximadamente uma semana. Com base nos seus achados prévios de que a administração intratecal de um agonista do recetor CB2 reverte tanto a hipersensibilidade comportamental e a sobre-expressão associada de marcadores gliais resultants da incisão na pata, colocaram ainda a hipótese de que os endocanabinóides contribuem para a resolução da dor no pósoperatório ao limitar as respostas pro-inflamatórias nas células gliais da medula espinhal. Os resultados obtidos sugerem que níveis baixos de AEA na medula espinhal podem contribuir para alodinia na pata induzida pela incisão, e que a normalização das concentrações de AEA espinhais, conjuntamente com elevação de 2-AG, pode contribuir resolução espontânea da hipersensibilidade. Esta conclusão é apoiada pelo achado de que a administração crónica dos agonistas inversos/ antagonistas dos recetores CB1 e CB2 resulta em alodinia mecânica persistente. A abordagem feita não consegue excluir o envolvimento de outros sistemas, mas os achados sugerem fortemente que a transmissão de sinal através dos recetores Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 15 O potencial analgésico dos canabinóides canabinóides é necessária para a resolução espontânea da dor no pós-operatório. O aumento da expressão de marcadores gliais e a fosforilação glial p38 é evidente nos modelos de roedores para dor aguda no pós-operatório e dor neuropática. No primeiro caso, os aumentos na expressão de marcadores gliais e fosforilação p38 retorna espontaneamente aos valores basais em associação com a resolução da alodinia aguda. Pelo contrário, a persistência inadequada do aumento da expressão dos marcadores gliais e fosforilação p38 está associada com a ocorrência e manutenção de dor crónica. Neste estudo, a alodinia persistente no pós-operatório induzida pelo bloqueio duplo dos recetores CB1/CB2 esteve acoplada com a expressão excessiva persistente de GFAP e fosfo-p38 dos astrocitos, sugerindo que: 1) Alterações nos astrocitos persistentes podem também contribuir para estados de dor crónica persistente no pósoperatório, 2) Sob condições normais, a transmissão de sinal endocanabinóide pode levar à resolução da dor no pós-operatório por limitar, direta ou indiretamente a transmissão de sinal próinflamatória nos astrocitos. Os autores identificaram a transmissão de sinal endocanabinóide mediada pelos receptores CB1 and CB2 como um novo mecanismo subjacente à resolução espontânea da dor aguda no pós-operatório. Os seus dados sugerem ainda que a transmissão de sinal endocanabinóide pode contribuir para a resolução da dor no pós-operatório ao limitar a fosforilação p38, e assim inibindo a transmissão de sinal próinflamatória nos astrocitos da medula espinhal. Os achados também sugerem que a desregulação da transmissão de sinal endocanabinóide pode contribuir para a evolução da dor aguda para crónica 18. Robles et al. caracterizaram o efeito de agonistas canabinóides selectivos e não selectivos através de administração sistémica e local, em dois modelos musculares de dor, masséter e gémeos, induzida pela administração de cloreto de sódio hipertónico 19. Os fármacos utilizados foram o agonista não seletivo WIN 55,212-2 e dois agonistas seletivos, ACEA (CB1) e JWH 015 (CB2); foram também usados dois antagonistas selectivos [AM 251 - CB (1) e AM 630 - CB (2)]. No modelo de dor do masséter, tanto a administração sistémica (intraperitoneal) como a administração local (intramuscular) dos agonistas CB1 e CB2 reduziram o comportamento doloroso induzido pelo soro hipertónico, enquanto no modelo dos gémeos a administração local foi mais eficaz que a sistémica. Estes resultados mostram que a administração local de canabinóides pode constituir uma estratégia farmacológica útil no tratamento da dor muscular, evitando os efeitos adversos induzidos pela administração sistémica. Clapper et al. estudaram o composto URB937, um inibidor potente de FAAH (hidrolase amida dos ácidos gordos) que não entra no SNC e interrompe a desativação da anandamida apenas nos tecidos periféricos 20. Nos modelos de dor aguda e de dor crónica com roedores, este composto causa efeitos analgésicos pelo bloqueio dos recetores CB1. Estes achados sugerem que a inibição da actividade de FAAH periférico potencia o mecanismo analgésico endógeno, mediado pela anandamida, que regula a transmissão da dor para a medula espinhal e para o cérebro. Os receptores canabinóides periféricos exercem um controlo inibitório potente sobre o início da dor, mas a transmissão de sinal endocanabinóide que desencadeia este mecanismo analgésico intrínseco é desconhecido. Para responder a esta questão, estes investigadores desenvolveram um inibidor restrito à periferia para a FAAH, a enzima responsável pela degradação do endocanabinóide anandamida. O composto, chamado URB937, suprime a atividade FAAH e aumenta os 16 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 níveis de anandamida fora do SNC. Apesar de ser incapaz de chegar ao cérebro e à medula espinhal, URB937 atenua as respostas comportamentais indicadoras de dor persistente nos modelos de roedores de lesão nervosa periférica e inflamação e impede a ativação neuronal evocada pelo estímulo nas regiões da medula espinhal responsáveis pelo processamento nociceptivo. O bloqueio dos recetores canabinóides CB1 impede estes efeitos. Os resultados sugerem que a transmissão de sinal mediada pela anandamida nos recetores periféricos CB1 controla o acesso dos inputs relacionados com a dor no SNC. Os inibidores FAAH que não atravessam a barreira hematoencefálica, que potenciam este mecanismo gatilho, podem constituir uma nova arma analgésica. Os autores testaram também se URB937 podia influenciar a dor persistente causada por lesão nervosa ou inflamação. Para isso provocaram lesão nervosa periférica no rato por compressão do nervo ciático esquerdo. Uma única dose administrada uma semana depois da cirurgia, atenuou a hiperalgesia térmica e impediu a hiperalgesia e alodinia mecânicas no lado operado. Esta resposta não se fez acompanhar de alteração na resposta aos estímulos cutâneos aplicados no lado não operado, indicando que URB937 normalizou os limiares mecânico e térmico, alterados pela lesão nervosa, em vez de exercer uma ação analgésica generalizada 20. Arvidsson et al. verificaram que os canabinóides, atuando através de um mecanismo dependente de CB1, têm efeitos analgésicos num modelo com roedores de dor visceral induzida mecanicamente 21. Observações derivadas do uso de SR141716 indicam que os canabinóides endógenos podem ter um papel ativo inibindo a atividade das vias da dor. Estas observações sugerem que os agonistas CB1 ativos perifericamente têm um interesse potencial para o tratamento da dor visceral, como na síndrome do cólon irritável, evitando manifestações indesejáveis relacionadas com o uso de canabinóides de ação central. O potencial analgésico atual dos agonistas canabinóides, em humanos, está limitado pela psico-actividade indesejada mediada pelos receptores CB1. Foram então desenvolvidos vários agonistas dos receptores CB2 (HU308, AM 1241 e JWH- 133) com propriedades anti-inflamatórias e anti-hiperalgésicas a nível periférico e com reduzidos efeitos secundários psico-activos 1. A expressão de CB2, em níveis elevados, geralmente não acontece nos tecidos saudáveis mas está aumentada no tecido nervosa lesado ou doente, em humanos 22. No que diz respeito à dor, o mecanismo específico de acção pelo qual CB2 modela a nociceção não é bem compreendido. Quer a ligação ao receptor CB2 afete os nociceptores periféricos ou os sistemas supra-espinhais, a evidência atual aponta para um papel na modulação inflamatória que, indiretamente, afeta a nocicepção. O estudo de Razdan et al. apoia a ideia de que o recetor CB2 é um alvo viável para o desenvolvimento de agonistas altamente seletivos com ação anti-inflamatória, que não têm efeitos comportamentais indesejáveis 22. Os dados deste estudo indicam que o novo análogo do tetrahidrocanabinol-etil sulfonamida, O-3223, tem ação antiinflamatória significativa e efeito analgésico in vivo, mas não causa qualquer dos efeitos comportamentais específicos do recetor CB1 observado com o agonista canabinóide global, CP55,940. Xu et al. caracterizaram o desempenho farmacológico de um novo agonista CB2, N’-[(3Z)-1-(1-hexil)-2-oxo-1,2-dihidro3H-indol-3-ilideno]benzohidrazida (MDA19) 23. Os efeitos do MDA19 na reversão da dor neuropática foram avaliados em vários modelos com ratos e em ratos CB2(+/+) e CB2(-/-). Os autores descobriram que MDA19 tinha um comportamento funcional in vitro nos receptores CB2 do rato e comportavase como um agonista CB1/CB2 in vivo. Nos humanos MDA19 demonstrou uma afinidade quatro vezes maior para CB2 do que para CB1. O MDA19 tem potencial para aliviar a dor neuropática sem produzir efeitos adversos no sistema nervoso central. O potencial analgésico dos canabinóides Estudos em humanos No que diz respeito ao controlo da dor aguda, foi realizado um ensaio clínico com cinquenta e seis pacientes com dor intensa no pós-operatório ou vítimas de trauma, no qual a administração intramuscular de levonantradol (canabinóide sintético, trinta vezes mais potente que o tetrahidrocanabinol, anti-emético e analgésico por activação de CB1 e CB2) teve benefício relativamente ao placebo, mas sem relação dose-resposta 1. Na neuropatia sensitiva associada ao vírus da imunodeficiência humana (VIH) ou ao tratamento com zalcitabina, a administração crónica de WIN55212-2 reverteu a alodinia mecânica. Dois estudos examinaram o efeito da canábis fumada no tratamento da neuropatia sensitiva associada ao VIH e ao tratamento anti-retroviral e tiveram resultados positivos 17. Um questionário revelou que cerca de 1/3 dos pacientes com VIH usaram canábis para aliviar os seus sintomas, tendo melhoria da dor em 94 % dos casos, redução das náuseas e da ansiedade e aumento do apetite. Num estudo envolvendo 24 pacientes com esclerose múltipla e que apresentavam dor neuropática, a administração de 10mg/dia de dronabinol reduziu a dor em cerca de 21 % e o NNT (number needed to treat) foi de 3,5 24. 1 Num ensaio randomizado e duplamente cego com spray sublingual de tetrahidrocanabinol (∆9-THC) e canabidiol houve melhoria da dor e da qualidade do sono, com resultados estatisticamente significativos 25. Actualmente já se utilizam na clinica fármacos que activam os receptores canabinóides CB1 e CB2: Cesamet® (nabilone), Marinol® (dronabinol e ∆9- THC), Cannador (canabidiol) e Sativex® (spray nasal de ∆9- THC e canabidiol) 26. Os dois primeiros reduzem as náuseas e os vómitos induzidos pela quimioterapia, o Marinol® estimula o apetite, enquanto o Sativex® é utilizado no alívio sintomático da dor neuropática em adultos com esclerose múltipla ou com neoplasias em fase avançada 1, 26. Farmacocinética Os metabolitos dos canabinóides podem ser detectados mais de cinco dias após a sua administração, sendo 65 % eliminados pelas fezes e 20 % por excreção renal 1. A disposição do 1-(8-(2-clorofenil)-9-(4-clorofenil)-9(4clorofenil)-9H-purina-6il)-4-(etilamino)-piperidina-4-carboxamida (CP-945,598), um antagonista do recetor CB1 ativo por via oral estudado em humanos saudáveis, na dose única de 25mg 27. Depois de 672 horas foram colhidas amostras de sangue, urina e fezes. Menos de 2 % da dose foi recuperada inalterada nas 2 formas de excreção, sugerindo que o CP-945,598 é extensamente metabolizado. A principal via metabólica envolveu a N- desetilação para formar um metabolito N-desetil (M1), que foi posteriormente metabolizado por hidrólise amida (M2) e N-hidroxilação (M3), hidroxilação do anel piperidina (M6), e conjugação ribose(M9). M3 foi posteriormente metabolizado a metabolitos oxime (M4) e ceto (M5). M1, M4, e M5 foram os metabolitos circulantes principais. Os resultados das experiências in vitro com isoformas recombinantes sugeriu que o metabolismo oxidativo de CP-945,598 para M1 é catalizado sobretudo pelo CYP3A4/3A5. Conjuntamente, estes dados sugerem que CP-945,598 é bem absorvido e eliminado na sua quase totalidade pelo metabolismo catalizado pelo CYP3A4/3A5. Paudel et al. avaliaram e comprovaram o sucesso da administração intranasal e transdérmica do canabidiol (um canabinóide não psico-activo) 28. Para isso foram realizados estudos in vivo com ratos e porquinhos-da-Índia para avaliar a permeabilidade nasal e transdérmica. O canabidiol teve absorção intranasal em 10 minutos com biodisponibilidade de 34-46 %, que não aumentou com a adição de adjuvantes da absorção. A concentração plasmática steady-state de canabidiol nos porquinhos-da-Índia após aplicação de gel transdérmico foi de 6,3±2,1ng/ml, obtido às 15,5±11,7h. A obtenção de uma concentração plasmática steady-state significativa indica que o canabidiol é útil para o tratamento da dor crónica através desta via de administração. A concentração steady-state aumentou 3,7 vezes na presença de um adjuvante. Interação farmacológica dos canabinóides com os opióides Há um sinergismo entre os receptores canabinóides e os receptores opióides no sistema antinociceptivo. A coadministração de ∆9- THC e de um opióide, ambos em doses subanalgésica, permite obter uma analgesia marcada 26. A coadministração transdérmica de fentanil, ou buprenorfina, e ∆9- THC aumenta a capacidade analgésica daqueles opióides. Verificou-se que a administração intratecal de uma dose subterapêutica de WIN55212 potencia, de forma marcada, o efeito analgésico da morfina transdérmica. Outro achado relevante é que, uma dose baixa de ∆9- THC consegue restaurar a eficácia da codeína e da morfina, após desenvolvimento de tolerância. A associação daquele canabinóide a um opióide previne o desenvolvimento de tolerância. Em cobaias, a co-administração de WIN55212 e de morfina induz analgesia mais eficaz e duradoura, que a administração de qualquer um deles isoladamente. Conclusões O sistema endocanabinóide está envolvido em diversos processos fisiológicos e fisiopatológicos: termorregulação, apetite, imunidade, perceção, cognição, motricidade, humor, modulação da dor, resposta inflamatória, doença oncológica, comportamento aditivo e epilepsia. A interferência com o sistema canabinóide pode ser conseguida tanto a nível periférico, como ao nível do sistema nervoso central. Esta pode acontecer tanto ao nível da sua síntese, dos seus recetores e das enzimas que os hidrolisam. Os canabinóides sintéticos têm a vantagem de não apresentar os efeitos psico-activos mediados pelos recetores CB1. As vias de administração testadas com sucesso foram sistémica, intratecal, intranasal e local (muscular). Estudos de farmacocinética demonstram a aplicabilidade dos canabinóides sintéticos tanto para o tratamento da dor aguda como da dor crónica. Existe um efeito sinérgico entre canabinóides e opióides. Em virtude dos resultados obtidos com a investigação desenvolvida até à data actual, a futura inclusão dos canabinóides na prática clínica, nomeadamente no tratamento da dor parece promissora. Curiosidades Br J Pharmacol. 2010 July; 160(5): 1234–1242. Acute administration of cannabidiol in vivo suppresses ischaemia-induced cardiac arrhythmias and reduces infarct size when given at reperfusion. J Am Coll Cardiol. 2010 Dec 14;56(25):2115-25. Cannabidiol attenuates cardiac dysfunction, oxidative stress, fibrosis, and inflammatory and cell death signaling pathways in diabetic cardiomyopathy. Agradecimentos Um muito obrigado à Dra. Elsa Verdasca (Anestesiologista da Unidade de Dor do Hospital Garcia de Orta) pela ajuda na estruturação da primeira versão deste artigo, escrita em 2010. Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 17 O potencial analgésico dos canabinóides Bibliografia 1. Hosking RD, Zajicek JP. Terapeutic potential of cannabis in pain medicine. Br J Anaesth 2008; 101: 59-68. 2. Rooke SE, Norberg MM, Copeland J. Successful and unsuccessful cannabis quitters: Comparing group characteristics and quitting strategies. Subst Abuse Treat Prev Policy 2011; 6: 30. 3. Pope C, Mechoulam R, Parsons L. 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São doenças crónicas, progressivas e multissistémicas. O envolvimento cardíaco e respiratório progressivo dá origem às principais causas de morte. As MPS condicionam uma série de processos fisiopatológicos que muitas vezes requerem intervenções cirúrgicas. Atualmente, com o aumento da esperança média de vida destes doentes, a preocupação com as implicações anestésicas desta doença estende-se a todos os anestesistas. Apesar de todos os progressos na abordagem anestésico-cirúrgica, a mortalidade perioperatória é, ainda, elevada. Na avaliação pré-operatória procura-se identificar todas as manifestações da doença, terapêuticas realizadas e antecedentes anestésico-cirúrgicos. A avaliação da via aérea deve incluir exames de imagem com os quais se pretende identificar situações como a subluxação de C1-C2 e a hipoplasia da apófise odontóide. Sempre que possível deve escolher-se uma técnica anestésica loco-regional de forma a evitar a abordagem da via aérea, no entanto isso é condicionado pela idade pediátrica, pelas co-morbilidades e pela cirurgia. A abordagem da via aérea pode ser feita com intubação orotraqueal, por laringoscopia ou por fibroscopia, com máscara laríngea ou com traqueostomia. O pós-operatório destes doentes deve ser realizado numa Unidade de Cuidados Intensivos. Anesthetic approach of mucopolysaccharidoses Margarida Marcelino, Interna no Internato Complementar de Anestesiologia, Serviço de Anestesiologia – Instituto Português de Oncologia de Lisboa, Francisco Gentil, Luísa Olim Marote, Assistente Hospitalar de Anestesiologia Serviço de Anestesiologia – Hospital de Santa Maria (HSM), Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN) Maria Domingas Patuleia, Assistente Hospitalar Graduada de Anestesiologia, Serviço de Anestesiologia Hospital de Santa Maria (HSM), Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN) Keywords: - Mucopolysaccharidoses - General anaesthesia - perioperative period - Airway management Abstract Mucopolysaccharidoses (MPS) are a group of hereditary disorders caused by a deficiency of glycosaminoglycan (GAG) metabolism enzymes, with subsequent incomplete breakdown of GAG, which accumulate in organs. They are chronic and progressive disorders. Cardiac and respiratory involvements are the principal causes of mortality. Patients with MPS are frequently submitted to surgical procedures. Nowadays, these patients’ increase in life expectancy causes their perioperative management to be a concern for all anaesthetists. Despite breakthroughs in the anaesthetic and surgical approach, perioperative mortality is still high among patients. Preoperative evaluation includes a thorough clinical history and note of prior surgical procedures or anaesthesias. Airway evaluation should include diagnostic imaging to identify odontoid dysplasia or atlantoaxial subluxation. Locoregional techniques should be chosen whenever possible, in order to avoid airway management. However, this may not always be possible due to the patient’s age, comorbidities and surgical procedure. Airway management may be achieved with orotracheal intubation, either by laryngoscopy or fiberoptic techniques, laryngeal mask or tracheostomy. In these patients postoperative management should take place in an Intensive Care Unit. Introdução As mucopolissacaridoses (MPS) são um grupo heterogéneo de doenças hereditárias por deficiência de enzimas do metabolismo dos glicosaminoglicanos (GAG)1-4, com consequente degradação incompleta dos GAG, os quais se depositam nos órgãos e tecidos. São doenças crónicas, progressivas e multissistémicas, na maioria dos casos de transmissão autossómica recessiva, com exceção da MPS tipo II, de transmissão ligada ao cromossoma X. A incidência das MPS é baixa; 1:30000 nascimentos vivos2,5,6. Os GAG são hidratos de carbono complexos, de cadeia longa, Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 19 Abordagem Anestésica das Mucopolissacaridoses associados a proteínas no tecido conjuntivo2,7. Estes distribuemse por vários tecidos onde desempenham importantes funções. Os órgãos e sistemas mais afetados por este grupo de doenças são o sistema músculo-esquelético, o sistema nervoso central, o coração e o sistema respiratório8, 9. O metabolismo dos GAG é feito por etapas, nas quais estão envolvidas diversas enzimas lisossómicas. A deficiência de uma enzima origina uma doença específica pela acumulação de um determinado substrato nos lisossomas7. Manifestações clínicas As MPS são doenças multissistémicas. Na maioria dos casos os doentes têm um fenótipo normal à nascença e à medida que os GAG se depositam nos tecidos originam alterações histológicas específicas, que depois darão origem às manifestações clínicas 8, 10. As alterações mais frequentes são as deformidades esqueléticas, articulares e craniofaciais. O envolvimento cardíaco e respiratório progressivo dá origem às principais causas de morte, por infeções ou insuficiência respiratória, ou por insuficiência cardíaca 2. Relativamente ao sistema cardiovascular, a deposição de GAG nos folhetos valvulares origina valvulopatias, nomeadamente insuficiência mitra1,3; a deposição no miocárdio pode originar hipertrofia ventricular com alteração da função; também as artérias coronárias são afetadas com estenose do lúmen. Todas estas alterações podem condicionar insuficiência cardíaca1. O sistema músculo-esquelético é frequentemente afetado com alterações craniofaciais e alterações da coluna vertebral, como a cifoescoliose e a hipoplasia da apófise odontóide, que condiciona instabilidade atlanto-occipital3. Outras manifestações músculo-esqueléticas descritas incluem baixa estatura e rigidez articular. Em relação à via aérea podem-se encontrar: secreções abundantes e espessas, hipertrofia das amígdalas e adenóides, fragilidade vascular da mucosa, macroglossia, epiglote longa, laringe anterior, diminuição do calibre da traqueia, rigidez da articulação temporo-mandibular, pescoço curto e instabilidade cervical 1, 3,9 ,10. Somando a estas alterações a doença pulmonar restritiva condicionada pelas alterações esqueléticas, torna-se comum a obstrução da via aérea alta, a síndrome de apneia obstrutiva do sono e as infeções respiratórias de repetição. As complicações respiratórias constituem a principal causa de morte nestes doentes. O envolvimento do sistema nervoso central é comum, com manifestações como o atraso do desenvolvimento, alterações do comportamento e hidrocefalia com hipertensão intracraniana 1, 3, 9 . A deposição de GAG pode originar compressão de nervos periféricos, como a síndrome do túnel cárpico. Vários fatores como a hiperlaxidão ligamentar, a hipoplasia odontóide, a instabilidade atlanto-occipital e a subluxação das vértebras cervicais C1-C2 contribuem para a compressão da medula cervical3. Dentro das manifestações gastrointestinais encontram-se a hepato-esplenomegália1 e as hérnias umbilicais e inguinais1 ,9 . Como manifestações oftalmológicas salientam-se o glaucoma1 e a diminuição da acuidade visual. Estes doentes podem ter surdez por defeitos de condução e habitualmente têm hipertrofia das amígdalas e adenóides10. 20 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 Classificação das mucopolissacaridoses As mucopolissacaridoses são classificadas em 11 tipos, caracterizadas por sinais e sintomas próprios, têm diferentes idades de apresentação e representam deficiência de diferentes enzimas ou diferentes graus de atividade enzimática. Para facilitar a abordagem, as MPS são agrupadas em 4 categorias, segundo as características clínicas predominantes7 (Quadro I). Quadro I – Classificação das Mucopolissacaridoses Tipo Nome comum Deficiência enzimática Substrato acumulado Características Doença esquelética, dos tecidos moles e envolvimento do SNC variável MPS I MPS II Hurler 1-2 anos Hurler-Scheie 1-5 anos Sheie α-Liduronidase Hunter Iduronato sulfatase Sulfato de heparano Bglucoronidase Sly 3-15 anos Sulfato de dermatano Hidrópsia fetal MPS VII Idade Atraso mental Micrognatia Alt. Faciais Cardiomiopatia Hepatomegália 1-5 anos ≈ MPS I Ligado ao X In útero Hidrópsia fetal 0-5 anos Moderado ≈ MPS I 12-15 anos Doença esquelética e dos tecidos moles MaroteauxLamy grave MPS VI Maroteaux-Lamy moderado 1-5 anos N-acetilgalactosamina4-sulfato Sulfato de dermatano 3-12 anos Displasia esquelética Disfunção motora Baixa estatura Defeitos cardíacos Doença do esqueleto, cartilagem e ligamentos MPS IVA MPS IVB MPS IX Morquio tipo A Morquio tipo B N-acetilgalactosaina-6sulfatase Sulfato de queratano 1-5 anos, se doença grave Displasia esquelética Disfunção motora Baixa estatura S. Natowicz Hialuronidase Ácido hialurónico Apenas 1 caso – Envolvimento primário do SNC, manifestações esqueléticas e tecidos moles menos evidentes MPS IIIA Sanfilippo A Sulfamidase MPS IIIB Sanfilippo B α-N-acetilglucosaminidase MPS IIIC Sanfilippo C GAC-acetilase MPS IIID Sanfilippo D N- acetil-glucosamina-6-sulfatase Sulfato de heparano 2-6 anos Alterações do comportamento Atraso mental Adaptado de Kakkis E, Wraith E. Clinical features and diagnosis of the mucopolysaccharidoses In: D B, ed. UpToDate. Waltham, MA: UpToDate; 20117. Diagnóstico e tratamento O diagnóstico é clínico e confirmado pelo doseamento de GAG na urina e pela pesquisa de deficiência enzimática em leucócitos7. O diagnóstico pré-natal pode ser realizado para qualquer MPS, por amniocentese e/ou biópsia das vilosidades coriónicas7. O tratamento baseia-se na terapêutica sintomática, no Abordagem Anestésica das Mucopolissacaridoses suplemento específico de enzimas e no transplante de células estaminais hematopoiéticas. Os últimos dois são actualmente realizados para a MPS tipo I, II e VI 3,7. Abordagem anestésica das mucopolissacaridoses As MPS condicionam uma série de processos fisiopatológicos que muitas vezes requerem múltiplas intervenções cirúrgicas8,9. Além disso, se em tempos estas doenças preocupavam apenas os anestesistas que se dedicavam à anestesia pediátrica, hoje, com o aumento da esperança média de vida pelo desenvolvimento de novas terapêuticas, essa preocupação deve estender-se a todos os anestesistas11. Apesar de todos os progressos na abordagem anestésicocirúrgica, a morbi-mortalidade peri-operatória destes doentes é elevada; um estudo de 1984 relatou uma mortalidade de 20 % 12. As principais causas de morte no período peri-operatório são: impossibilidade de manter a via aérea permeável, mesmo com traqueostomia12, e paragem respiratória no pósoperatório13. Os procedimentos cirúrgicos para os quais estes doentes são frequentemente anestesiados estão descritos no Quadro II1. Estes doentes são também frequentemente anestesiados para a realização de exames complementares de diagnóstico9. Quadro II – Principais indicações cirúrgicas nos doentes com Mucopolissacaridoses. Especialidade cirúrgica Procedimentos Cirurgia Geral Correção cirúrgica de hérnia umbilical/inguinal ORL Amigdalectomia, adenoidectomia e colocação de tubos transtimpânicos Neurocirurgia Shunts ventrículo-peritoneais Cirurgia de descompressão da medula espinhal Cirurgia de fusão da coluna cervical Ortopedia Correção de escoliose Avaliação pré-operatória A avaliação pré-operatória deve, como em todos os doentes, basear-se numa história clínica detalhada e num exame objetivo rigoroso. Procuram identificar-se todas as possíveis manifestações anteriormente descritas, terapêuticas realizadas e antecedentes cirúrgicos. Além da avaliação da via aérea habitualmente realizada, devem ser pedidos exames complementares como as radiografias da coluna cervical, nas suas incidências laterais e em extensãoflexão e uma tomografia computorizada, onde se pretende identificar situações como a subluxação de C1-C2 e a hipoplasia odontóide1. Estes exames permitem também avaliar o diâmetro da traqueia subglótica, que tem influência na escolha do tubo orotraqueal. Assim, pretende-se avaliar se existe contraindicação para a manobra de hiperextensão da cabeça. A avaliação respiratória deve incluir radiografia de tórax, gasometria arterial e, se necessário, provas de função respiratória, como por exemplo a presença de deformações da caixa torácica que condicionem alterações respiratórias restritivas2. Na presença de cifoescoliose ou de infeções respiratórias de repetição está indicada a avaliação laboratorial com proteína-C-reativa1. Salienta-se a importância do tratamento de infeções, da cinesioterapia1 e da ventilação não-invasiva no pré-operatório 3,10. Além da realização do eletrocardiograma pode estar indicada a realização de um ecocardiograma na presença de sinais e sintomas cardíacos2. Relativamente à avaliação neurológica deve-se excluir a existência de hipertensão intracraniana, uma vez que esta tem influência na escolha de fármacos para a indução anestésica. Na avaliação do sistema esquelético devem-se procurar alterações que condicionem doença pulmonar restritiva. Pelas deformações ósseas e articulares, a colocação de acessos venosos ou da linha arterial pode estar dificultada11. Medicação pré-anestésica Em relação à medicação pré-anestésica os fármacos sedativos devem ser evitados, pelo risco de obstrução da via aérea e depressão respiratória2. Para diminuição das secreções podem ser administrados anticolinérgicos2. Técnica anestésica Relativamente à escolha da técnica anestésica existem duas opções: a anestesia geral ou a anestesia loco-regional; sempre que possível deve escolher-se uma técnica loco-regional de forma a evitar a abordagem da via aérea; no entanto isso é condicionado pela idade pediátrica, pelas co-morbilidades, pela cirurgia e pelo posicionamento3. As várias alterações anatómicas, já descritas, predispõem estes doentes para obstrução das vias aéreas superiores, apneia do sono e intubação difícil3,14. Se o doente já tiver sido anestesiado é importante obter dados relativos à abordagem da via aérea e se a intubação foi difícil. Plano anestésico O posicionamento deve ter em atenção as limitações do doente; o posicionamento em decúbito dorsal pode ser impossível pela cifoescoliose1. Relativamente à indução anestésica existem várias abordagens, mas em todas elas determinados princípios são aplicados, como a pré-oxigenação, a manutenção da ventilação espontânea e a administração de relaxantes musculares apenas após estar assegurada a via aérea2. A ventilação com máscara facial pode revelar-se difícil9, pelo que devem estar disponíveis máscaras com diferentes formatos e tamanhos. Os tubos nasofaríngeos e os tubos orofaríngeos devem estar disponíveis mas devem ser evitados: os primeiros porque podem levar a hemorragia dos adenóides, e os segundos porque por contacto com uma epiglote longa podem causar laringospasmo. No entanto, na necessidade de utilizar algum adjuvante, a melhor opção é a utilização de tubos nasofaríngeos maleáveis e lubrificados1. A manobra de hiperextensão da cabeça deve ser evitada em doentes com displasia do processo odontóide, mais comum nas MPS tipo I e IV, pois pode ocorrer subluxação atlanto-axial com possível compressão do tronco cerebral e da medula. É importante a colaboração de um segundo anestesista para a estabilização da coluna cervical1. A intubação nasotraqueal não está recomendada pela hipertrofia dos adenóides e das amígdalas, distorção da anatomia e a fragilidade vascular das mucosas12. A cricotirotomia, um procedimento life-saving e teoricamente de fácil realização, pode nestes doentes revelar-se extremamente Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 21 Abordagem Anestésica das Mucopolissacaridoses difícil pelas alterações anatómicas1. Assim, relativamente à abordagem da via aérea existem quatro opções: • Laringoscopia directa com intubação orotraqueal relativamente linear; • Laringoscopia auxiliada por videolaringoscópio9; • Manter a via aérea através da colocação de uma máscara laríngea9,15,16; • Intubação com fibroscopia. Num doente colaborante, o que é raro nesta doença, pode ser feita intubação com o doente acordado; ou a intubação é feita com o doente em ventilação espontânea6; •Traqueostomia1 (alternativa de recurso). Indução anestésica De seguida, apresentam-se as formas de indução mais consensuais da literatura: • Indução endovenosa na ausência de hipertensão intracraniana, com quetamina a que se associa a atropina; na presença de hipertensão intracraniana utiliza-se tiopental1,17. • Indução inalatória com sevoflurano. Manutenção da anestesia Em relação à manutenção não há condicionantes, uma vez que esta doença não influencia a farmacocinética ou farmacodinâmica e não contraindica qualquer técnica. Deve ser monitorizado o bloqueio neuromuscular. Recuperação anestésica e pós-operatório São de esperar complicações respiratórias no pósoperatório1,18, pelo que se preconiza adiar a extubação, para que o edema das vias aéreas diminua. Após a extubação é de salientar a importância da cinesioterapia respiratória e, eventualmente, da ventilação não invasiva11. O pós-operatório destes doentes deve ser realizado numa Unidade de Cuidados Intensivos. BIBLIOGRAFIA 1. Diaz JH, Belani KG. Perioperative management of children with mucopolysaccharidoses. Anesth Analg 1993; 77:1261-70. 2. Sjogren P, Pedersen T, Steinmetz H. Mucopolysaccharidoses and anaesthetic risks. Acta Anaesthesiol Scand 1987;31:214-8. 3. Kakkis E, Wraith E. Complications and management of the mucopolysaccharidoses. In: Basow D, ed. UpToDate. Waltham, MA: UpToDate; 2011. 4. Coutinho MF, Lacerda L, Alves S. Glycosaminoglycan storage disorders: a review. Biochem Res Int 2012;2012:471325. 5. Linstedt U, Maier C, Joehnk H, Stephani U. Threatening spinal cord compression during anesthesia in a child with mucopolysaccharidosis VI. Anesthesiology 1994;80:227-9. 6. Tobias JD. Anesthetic care for the child with Morquio syndrome: general versus regional anesthesia. J Clin Anesth 1999;11:242-6. 7. Kakkis E, Wraith E. Clinical features and diagnosis of the mucopolysaccharidoses In: D B, ed. UpToDate. Waltham, MA: UpToDate; 2011. 8. Barbosa FT, Borges EL, Brandao RR. General anesthesia after failed spinal block for emergency surgery in a patient with mucopolysaccharidosis: case report. Rev Bras Anestesiol 2007;57:658-64. 9. Osthaus WA, Harendza T, Witt LH, et al. Paediatric airway management in mucopolysaccharidosis 1: a retrospective case review. Eur J Anaesthesiol 2012;29:204-7. 22 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 10. Yeung AH, Cowan MJ, Horn B, Rosbe KW. Airway Management in Children With Mucopolysaccharidoses. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 2009;135:73-9. 11. 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Practice of Anesthesia in Infants and Children. 4th ed: Elsevier; 2009. 18. Bartz HJ, Wiesner L, Wappler F. Anaesthetic management of patients with mucopolysaccharidosis IV presenting for major orthopaedic surgery. Acta Anaesthesiol Scand 1999;43:679-83. Artigo Histórico A Anestesia Pediátrica Fernanda Barros. Direção da Secção da Anestesia Pediátrica da SPA 1. História Provavelmente um dos maiores e mais espectaculares avanços tecnológicos e científicos na prática médica dos últimos anos, verificou-se no diagnóstico e tratamento de patologias do recém-nascido e crianças gravemente doentes. A Anestesia Pediátrica moderna é o resultado dos avanços conseguidos tanto na área da pediatria (neonatologia, cardiologia, cuidados intensivos, etc.), como no campo da anestesiologia, na sua tripla vertente: a anestesia para fins cirúrgicos, a reanimação e o tratamento da dor 1. No primeiro livro sobre anestesia pediátrica (“Anaesthesia in Children”) que surge em 1923, escrito por um Anestesiologista do Hospital St. Bartholomew em Londres, é referido que “apesar da inequívoca impressão de que as crianças adormecem com muita facilidade, estas apresentam problemas difíceis e requerem a mesma, senão mais habilidade para anestesiar, que os adultos”. Se a introdução do curare em 1942, foi um avanço indiscutível na anestesia, o agente farmacológico que revolucionou a anestesia pediátrica foi sem dúvida o halotano. Foi estudado em Manchester por Jaume Raventós, sendo introduzido na prática clínica em 1956. A sua boa tolerância e a ausência de irritabilidade das vias aéreas facilitou de forma extraordinária a prática da indução e manutenção da anestesia por via inalatória, oferecendo ainda um despertar rápido e sem os efeitos desagradáveis do éter e clorofórmio. Durante muitos anos foi o anestésico insubstituível para adormecer as crianças 2. No entanto, devido aos avanços da cirurgia Maxilo-facial e à necessidade da manter a face livre de uma máscara, Philip Ayre desenhou em 1937, o seu sistema com uma peça em T (posteriormente modificado por Gordon Jackson-Rees) permitindo a ventilação, com intubação endotraqueal. Também a bibliografia se enriqueceu com a publicação dos livros que se converteram nos “clássicos”; desde o Pediatric Anesthesia de Digby Leigh & Kathleen Belton em 1949, o Anesthesia for Infants and Children de Robert M. Smith em 1959 até à 1ª edição do Paediatric Anaesthesia de H.T. Davenport e Harold R. Griffith em 1967, constatamos um progresso evidente, ao qual não é alheio o desenvolvimento paralelo da cirurgia pediátrica e a utilização de técnicas diagnósticas na criança, exactamente iguais às dos adultos. E no entanto, já neste livro se reconhecia que “anestesiar crianças pequenas não é igual ao fazê-lo em adultos, pois elas requerem uma abordagem, técnicas e uma vigilância especiais”. Historicamente pode-se dizer que as crianças foram as primeiras a beneficiar da descoberta das propriedades dos anestésicos para suprimir a dor nas intervenções cirúrgicas. E foi precisamente um dos pioneiros, o britânico John Snow, que já em 1847 escreveu que “o tempo necessário para produzir a insensibilidade completa varia com a actividade e profundidade da respiração, sendo raramente superior a dois ou três minutos na criança e quatro a seis no adulto”. Desta forma Snow concluía que a anestesia inalatória é mais rápida nas crianças do que nos adultos. O mérito destas conclusões é enorme se se tiver em conta que teria que passar um século até que os estudos de farmacocinética demonstrassem que a captação dos agentes inalatórios através dos alvéolos pulmonares é efectivamente mais rápida na criança do que no adulto 3. A história da anestesia loco-regional na criança, é ao mesmo tempo muito antiga e muito recente. Há mais de um século que August Bier descreveu os efeitos da raqui-anestesia numa criança de 11 anos e, em Espanha, Patricio Borobio publicava em 1903 uma série de 15 casos de “raqui- cocainização” em crianças 4; estas técnicas caíram, entretanto, em desuso devido ao auge da anestesia geral. Foram redescobertas nos anos 80 sendo desde então amplamente utilizadas 5. A sua aplicação no controlo da dor pós-operatória e cirurgia de ambulatório contribuíram para despertar o seu interesse. Associase habitualmente a uma anestesia geral, permitindo que as necessidades da mesma diminuam proporcionalmente à eficácia do bloqueio. Entre as vantagens que se reconhecem actualmente para a anestesia loco-regional, combinada com a anestesia geral, poderemos enumerar as seguintes: - Diminui a resposta ao stress; - Proporciona uma maior estabilidade hemodinâmica; - Permite reduzir as doses da anestesia geral inalatória ou intravenosa; - Acelera o recobro; - Permite uma deambulação precoce; - Diminui o tempo de permanência na Unidade pós-anestésica 6. Assinalam-se no entanto, alguns inconvenientes: - Requer destreza a quem a pratica; - Poderá atrasar o inicio do tempo cirúrgico; - A combinação de duas técnicas distintas poderá representar um risco duplo 7. Surgiu assim o conceito de risco-benefício, sendo demonstrado num estudo da Associação de Anestesiologistas Pediátricos de Expressão Francesa (ADARPEF), uma baixa incidência de complicações (23 incidentes, nenhum mortal, em 24 409 anestesias), embora cerca de metade se pudessem ter evitado se tivesse sido utilizada uma prática correcta 8,9. Destaca-se ainda a segurança dos bloqueios periféricos relativamente aos centrais e a influência da experiência do Anestesiologista na baixa incidência de complicações nos doentes mais novos ou nas crianças a quem foi administrado um bloqueio epidural torácico 10. 2. Situação actual À medida que os anos avançam, a necessidade de um maior treino na anestesia de crianças é cada vez maior, uma vez que a abordagem cirúrgica de patologias de alto risco, como a cirurgia neonatal e tratamento cirúrgico de cardiopatias congénitas vai evoluindo. Actualmente, podemos constatar uma diminuição da cirurgia neonatal, devido ao aumento do número de interrupções voluntárias da gravidez por malformações diagnosticadas in útero, no entanto, cada vez mais anestesiamos um maior número de grandes prematuros em condições críticas, que sobrevivem graças aos progressos das Unidades de Neonatologia. Neste momento em alguns países da Europa tal como em Portugal, encontramos dois cenários possíveis: por um lado os grandes centros de referência onde se faz a cirurgia mais complexa e onde se concentram os anestesiologistas mais experientes em anestesia pediátrica, por outro lado os hospitais distritais onde também se faz cirurgia pediátrica frequentemente em regime de ambulatório, onde com muita sorte haverá um anestesiologista com mais experiência em pediatria e que consiga transmitir os seus conhecimentos aos colegas. Na realidade, ao concentrar-se a cirurgia/anestesia pediátrica em alguns centros, diminuem o número de Anestesiologistas com mais experiência nesta área, aumentando os que consideramos “polivalentes”. Esta situação tem gerado alguns debates, sobre qual deve ser o número mínimo aconselhável de anestesias em crianças, para se manter a actualização e o treino. No início da década de 90, no Reino Unido, teve grande repercussão o resultado de um inquérito sobre as mortes relacionadas com a anestesia (National Confidential Enquiry into Perioperative Deaths – Lunn JN) 11. Baseado neste trabalho Lunn recomenda que nenhum cirurgião ou anestesiologista deve exercer a prática pediátrica de forma ocasional ou esporádica. Para manter a sua capacidade razoavelmente actualizada, o autor propõe como mínima a seguinte actividade assistencial para o anestesiologista pediátrico: 12 anestesias/ano em Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 23 A Anestesia pediátrica crianças com menos de 6 meses (uma/mês), 50 em crianças com menos de 3 anos (uma/semana), 300 em crianças com menos de 10 anos (uma/dia). Um outro artigo importante e com dados fornecidos através de um inquérito, Auroy 12 analisa a relação entre as complicações detectadas e o volume de anestesias pediátricas efectuadas. Como resultado mais importante encontra uma diferença estatisticamente significativa no número de complicações observadas num grupo de anestesiologistas que realizam entre 1 a 100 anestesias pediátricas/ano (7 complicações/1000 anestesias) e entre 100 a 200 (2,8 complicações/1000 anestesias) relacionadas com o grupo que pratica mais de 200/ano (1,3 complicações/1000 anestesias). Numa comunicação posterior, Murat I 13 ponderou todas estas recomendações e sugeriu o envio de todas as crianças com menos de 1 ano para um centro infantil especializado, ao mesmo tempo que aconselha que as crianças com menos de 7 anos devem ser anestesiadas por especialistas com uma prática não inferior a 100 anestesias pediátricas/ano. Há evidência suficiente para assegurar que a experiência do Anestesiologista melhora o cuidado prestado e a segurança da criança. Para além de números e percentagens, a anestesia pediátrica é um campo suficientemente amplo e complexo que justifica a dedicação praticamente exclusiva dos profissionais. O Anestesiologista especializado em pediatria trabalhará num local, preferencialmente em centros de referência, onde o seu objectivo será: - Adquirir uma maior experiência na cirurgia de alta complexidade (cirurgia fetal, neonatal, cardíaca, transplantação, etc); - Transmitir esta experiência a todos os outros; - Contribuir para a formação contínua dos anestesiologistas “polivalentes”, formação e ensino dos internos de especialidade. 3. Em Portugal 3.1. A Associação Portuguesa de Anestesiologistas Pediátricos (APAP) Desde muito cedo, a actividade cirúrgica pediátrica em Portugal concentrou-se em Hospitais Pediátricos (Hospital D. Estefânia – Lisboa – 1877; Hospital Maria Pia – Porto – 1882) surgindo os primeiros Serviços de Anestesia Pediátrica e com eles Anestesiologistas que dedicavam uma grande parte da sua actividade ou a totalidade à anestesia de crianças. Na década de cinquenta são construídos os dois maiores Hospitais Centrais do país (Hospital Sta. Maria – Lisboa – 1954 e Hospital S. João – Porto – 1959) com Serviços de Cirurgia Pediátrica; só muito mais tarde surge o Hospital Pediátrico de Coimbra (1977) aumentando assim o número de Anestesiologistas que se dedicam a esta área. Em Maio de 1982 realiza-se o “I Fim-de-semana de Anestesiologia Pediátrica do Centro Hospitalar de Coimbra”, organizado no Hospital Pediátrico de Coimbra, como resposta a uma necessidade cada vez maior de discussão de questões relacionadas com a anestesia de crianças (o II realizou-se em 1984, o III em 1988, o IV em 1990 e V em 1992). Os “Weekend of Pediatric Anesthesia”, a partir de 1994 (VI Fim de Semana), continuaram a ter uma periodicidade regular de dois em dois anos, até 2000. Estes encontros internacionais, tinham como palestrantes Anestesiologistas com experiência reconhecida na área da Anestesia Pediátrica Europeia; entre os convidados destacam-se Jackson-Rees, Paolo Busoni, Isabelle Murat, LloydThomas, Nishan Goudsouzia, Anneke Meursing e David Hatch. Em 1985 é organizado pela Federação Europeia de Anestesiologistas Pediátricos (FEAPA) o “I European Congress of Paediatric Anaesthesia”. Em 1993, por altura do “3rd European Congress of Paediatric Anaesthesia” é publicado pela British Paediatric Association, um documento que tentava divulgar algumas orientações 24 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 relativamente à transferência de crianças para Hospitais com pessoal treinado neste grupo etário: “The transfer of Infants and Children for Surgery” com a colaboração de representantes do Royal College of Anaesthetists e da Association of Anaesthetists of Great Britain and Ireland. Os autores confirmam que a morbilidade anestésica/cirúrgica é maior nas crianças com menos de três anos, recomendando que devem ser transferidas para centros especializados sempre que se trate de intervenções de urgência 14. Como resultado da necessidade de discussão de algumas questões relacionadas com a anestesia pediátrica em Portugal e, principalmente, alertar para a necessidade de experiência nesta área e uniformização do seu ensino, surge a “Associação de Anestesiologistas Pediátricos Portugueses”, impulsionada por Anestesiologistas que dedicavam grande parte da sua actividade à anestesia de crianças. A Associação Portuguesa dos Anestesiologistas Pediátricos (APAP) foi criada em 28 de Julho 1994, sendo a sua I Assembleia Geral efectuada em Coimbra (Setembro 1995), para eleição dos Corpos Dirigentes e elaboração definitiva dos Estatutos (Direcção: Presidente - Carlos Couceiro, 1º Vice-Presidente - Isabel Neves, 2º Vice-presidente - Fernanda Barros, Secretário - João Isaac, Tesoureiro - Graça Paiva). Esta Associação tinha como finalidade a “defesa e promoção, nos aspectos educacionais e de formação, da Anestesiologia Pediátrica, bem como a divulgação de conhecimentos de Anestesia Pediátrica e de Cuidados Intensivos Pediátricos a outros técnicos de saúde, designadamente a médicos Anestesiologistas e Intensivistas”. Para a execução das suas atribuições competia à Associação: “promover os esforços necessários para assumir papel interveniente na uniformização de programas educacionais na área da Anestesia Pediátrica e de Cuidados Intensivos pediátricos e na racionalização de métodos e técnicas; promover ainda reuniões científicas periódicas, nomeadamente conferências, colóquios, simpósios, mesas redondas ou cursos especializados; compilar e divulgar documentos científicos entre os seus membros; fomentar relações com organizações congéneres estrangeiras e com outras Sociedades Científicas Portuguesas; estimular a investigação e a divulgação de trabalhos científicos; desenvolver o espírito de solidariedade e apoio recíproco entre os seus associados, para o exercício de direito e obrigações”. Foi o Dr. Carlos Couceiro, na altura director do Serviço de Anestesiologia do Hospital Pediátrico de Coimbra e presidente da APAP, o representante desta na FEAPA, desde 1995. Além da organização dos Weekend referidos anteriormente, foi elaborado durante este período, pelo Serviço de Anestesiologia do Hospital Pediátrico de Coimbra, um pequeno livro de bolso sobre os fármacos mais utilizados em Anestesia Pediátrica e respectivas doses (Guia de Administração de Fármacos - 1998). No Congresso Europeu de Anestesia Pediátrica, organizado de 4 em 4 anos pela FEAPA, Portugal foi convidado a colaborar por diversas vezes; além da participação nas palestras, o número de abstracts, sob a forma de comunicação oral ou poster, foi aumentando progressivamente (o 1º foi apresentado em Helsínquia, no V European Congress of Paediatric Anaesthesia, 2001: Barros F, Vargas S. Continuous thoracic epidural analgesia with ropivacaine 0,2 % for pectus excavatum repair). 3.2. A Secção de Anestesia Pediátrica da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia As crianças têm necessidades especiais, pois são física e emocionalmente diferentes dos adultos; os cuidados prestados devem ser ministrados por pessoal especializado; a concentração dos serviços cirúrgicos pediátricos aumenta o treino reduzindo a prática ocasional; são necessárias guidelines nacionais de forma que os internos de especialidade saibam sem qualquer dúvida quando contactar o especialista responsável; são estas algumas das recomendações para os serviços cirúrgicos pediátricos dos A Anestesia Pediátrica autores de “Extremes of Age”, na sequência de um inquérito realizado no Reino Unido sobre “Mortes per-operatórias em Anestesia Pediátrica” 15. Também em Portugal algumas questões se foram equacionando, principalmente no que se refere à transferência de crianças para Centros especializados (terciários) com recursos técnicos e humanos adequados à gravidade da sua situação. No Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos começa a ser discutido um novo programa de Internato de Especialidade e com ele alterações em relação ao treino em algumas valências, entre elas a Anestesia Pediátrica. Uma das grandes preocupações nesta área é “onde e como” deve ser ensinada a anestesia em crianças e qual o número de anestesias suficientes para que um Anestesiologista possa ser considerado “com experiência em Pediatria”. Assim, em Assembleia-Geral Extraordinária da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia (SPA), de 2 de Julho de 2005, sublinhou-se a importância da existência de Secções e Grupos de Estudo para a vitalidade e dinamização da Sociedade. Definiram-se algumas secções (Pediatria e Anestesia Locoregional) tendo a primeira ficado entregue ao grupo que protagonizava a nível nacional esta área temática (Associação Portuguesa de Anestesistas Pediátricos). A APAP praticamente já não tinha actividade desde há alguns anos; reúnem-se então, por sugestão da direcção da SPA, em Maio de 2006 no Hospital Pediátrico de Coimbra, pela primeira vez, um grupo de Anestesiologistas que dedicam grande parte da sua actividade à Anestesia Pediátrica, com a finalidade de preparação do I Encontro de Anestesia Pediátrica a realizar em 2007, tentando colocar à discussão dos Anestesiologistas Portugueses questões relacionadas com a prática da Anestesia Pediátrica. Esta Comissão Organizadora do Encontro de Anestesia Pediátrica e dinamizadora da criação da Secção de Anestesia Pediátrica definiu a periodicidade anual para os Encontros Pediátricos, alternando um Encontro de dois dias com Reunião de trabalho de um dia só. Foi iniciado todo o processo de extinção da APAP, o que se verificou em 17/02/07, seguindo-se reuniões de preparação do I Encontro, que se realizou em 25 e 26 de Maio de 2007. Em 24/05/08 realizou-se o II Encontro da Secção de Anestesia Pediátrica na Figueira da Foz e a I Assembleia Geral da Secção de Anestesia Pediátrica da SPA, tendo como único ponto da Ordem de trabalhos, a eleição da Direcção que foi eleita por unanimidade (Presidente: Pedro Ribeiro, Secretária: Fernanda Barros e Vogal: Isabel Neves). Os Encontros anuais mantiveram-se, salientando-se em 2010 a organização do I Workshop sobre “Ecografia em Anestesia Regional Pediátrica” com a colaboração do Dr. Steve Roberts do Alder Hey Hospital, de Liverpool. 4. A Sociedade Europeia de Anestesiologia Pediátrica (ESPA) Em 2009, em Varsóvia realizou-se o 7º European Congress of Paediatric Anaesthesia e ao mesmo tempo o Founding Congress of the European Society for Paediatric Anaesthesiology, criando-se assim a Sociedade Europeia de Anestesiologia Pediátrica (ESPA), sendo incentivada a inscrição de todos os Anestesiologistas interessados nesta área. A mudança da FEAPA, uma Federação de Associações Nacionais, para uma Sociedade trouxe um grande número de vantagens; talvez a mais importante seja a ligação directa entre a Sociedade e os seus membros, os Anestesiologistas que trabalham na Europa. No entanto, uma das desvantagens da mudança de “federação de associações nacionais” para “sociedade internacional” foi o enfraquecimento da ligação entre as várias sociedades nacionais. Para prevenir este problema foi criado o “Advisory Council of Representatives of National Societies” (ACORNS), um fórum de comunicação entre delegados de cada associação nacional de anestesiologia pediátrica na Europa. Este órgão consultivo pretende manter uma linha de comunicação entre a Sociedade Europeia e as Associações Nacionais. O ACORNS trabalhará com as Associações Nacionais identificando os problemas relacionados com a prestação de cuidados anestésicos às crianças explorando oportunidades e melhorando estes serviços. As reuniões serão anuais, geralmente na altura do Congresso Europeu, tendo-se realizado a primeira em Berlim, em Setembro de 2010. Em Outubro do mesmo ano, foi contactado o Dr. Schouten, presidente da Sociedade Europeia de Anestesia Pediátrica, tendo sido actualizada toda a informação referente a Portugal e enviado ainda um pequeno resumo da actividade da Secção de Anestesia Pediátrica da SPA, para publicação na Newsletter nº2 da ESPA. Em 2011, as Associações Nacionais foram contactadas pela primeira vez para indicarem os seus representantes e propostas de temas a discutir na segunda reunião do ACORNS, em Setembro, na altura do III Congresso Europeu. De futuro este órgão poderá ter um papel extremamente importante na melhoria da qualidade dos serviços prestados às crianças quer nos próprios países individualmente quer em toda a Europa. Isto poderá ser conseguido através da avaliação das necessidades e recursos de cada país trocando experiências ou criando mesmo outras formas de cooperação. Bibliografia 1-Pernick MS. A Calculus of Suffering. Pain, Professionalism, and Anesthesia in Nineteenth-Century America. New York, Columbia University Press, 1985. 2 - Gallardo AP. Avances en Anestesia Pediátrica. Barcelona, Edika Med, 2000. 3 - Puyal CH. Passado, Presente y Futuro de la Anestesia Pediatrica. In: Avances en Anestesia Pediátrica. Gallardo EP eds. Barcelona, Edika Med, 2000: 1-4. 4 - Borobio P. La Raqui-Cocainização en el niño. La Clinica Moderna (Zaragoza) 1903; 2: 107-9. 5 - Rowney DA, Doyle E. Epidural and subarachnoid blockade in children. Anaesthesia 1998; 53: 980-1001. 6 - Puyal CH. Introducción a la anestesia locorregional pediátrica. In: Anestesia Locorregional en Pediatria. Vargas DB, Barbero FR, Tejado JC eds. Madrid, Arán Ediciones S.L., 2005: 17-19. 7 - Yaster M. Regional Anesthesia. 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O objetivo principal foi conhecer o ensino em Anestesiologia que se pratica em Portugal. Numa tentativa de uniformizá-lo e promover novas oportunidades e parcerias com os diferentes serviços, permitindo uma maior mobilidade de internos e um importante intercambio de experiências. Foram convidados todos os serviços portugueses de Anestesiologia com idoneidade formativa e todos os anestesiologistas interessados na formação de internos, ocupando ou não cargos de responsabilidade no grupo de ensino do seu serviço. A participação foi surpreendentemente maciça! Estiveram presentes 37 colegas de 20 instituições diferentes. A reunião foi moderada pelos colegas: Daniela Chaló, Rui Guimarães e Vítor Oliveira, que sugeriram um plano de trabalhos, de maneira a facilitar uma ordem nas intervenções, não permitindo esquecer nenhum assunto de relevo. A participação foi acesa e as ideias brotaram! A ordem de trabalhos proposta foi a seguinte: 1. Discutir a aplicação do Decreto de Lei aprovado no Diário da República, 1ªsérie, nº18-26 de Janeiro de 2011, portaria 49/2011; 2. Dar a conhecer as capacidades formativas ou as áreas clínicas de destaque de cada serviço, incluindo possibilidade de estágios opcionais previstos no programa de formação; 3. Partilhar as atividades que atualmente são desenvolvidas durante o internato nos vários serviços de Anestesiologia em todo o país e discutir possível interação e sinergias entre os mesmos (reuniões conjuntas, cursos, etc); 4. Formação de um grupo de trabalho dos vários serviços interessados, criando uma rede de contactos para futuros encontros, troca de informações e planificação de atividades conjuntas. Apresenta-se um resumo da reunião: 1. Foi discutido o articulado legal regulador do Internato, da sua adequação às diferentes realidades de formação (hospitais centrais/ hospitais periféricos) e das dificuldades que este impõe aos serviços na organização dos estágios. Perorou-se acerca dos limites formais em tempo e em saber na formação em Anestesiologia. 2. Estágios Regulares e Estágios Opcionais: Foi proposta a ideia de criar um portefolio de valências/serviços para a realização de estágios (regulares e opcionais), uniformizado e parametrizado, que possibilite o acolhimento de internos de diferentes instituições. Sugeriu-se que nessa dinâmica de intercâmbio seja realçado o papel da avaliação desses estágios pelos internos que os frequentarem e da necessidade de criar um sistema de feedback anónimo que, a posteriori possibilite a divulgação e promoção dos bons desempenhos. 3. Avaliação do Internato e Exame Europeu de Anestesiologia (European Diploma in Anaesthesiology EDA): Debateram-se os problemas práticos na aplicação do EDA, concretamente a dificuldade técnica de como converter a nota do EDA numa nota em escala de 20 valores na avaliação anual ou final de internato. Foram apresentados exemplos da forma como 2 hospitais (H. Pedro Hispano - Matosinhos, e C.H.Porto) ponderam essa nota. 4. Foi proposto realizar um levantamento de áreas/necessidades 26 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 de formação para os internos, não colmatadas pela oferta actual de mercado, com vista a organizar iniciativas para responder a essas lacunas. Foram avançados os seguintes exemplos: Introdução às Metodologias de Investigação, Competências não técnicas, Liderança, Comunicação e Trabalho em Equipa, Formação de Formadores/ Orientadores. 5. Criação de dois grupos de trabalho com colegas disponíveis para trabalhar em conjunto no âmbito do ensino e formação em Anestesiologia: Grupo 1 (Rui Guimarães, Francisco Matos, Tiago Fernandes, Diana Mota, José Carlos Sampaio) • Criação de uma matriz de identificação e caracterização de serviços, estágios regulares e estágios opcionais (exemplos de critérios a incluir: áreas clínicas de destaque, duração do estágio, número limite de internos por estágio, responsável de estágio, distribuição horária, objectivos, distribuição actividade, comentários/observações) • Identificar Áreas para a realização de Estágios Opcionais • Estabelecer contactos com o Colégio da Especialidade para eventual parceria e cooperação. Grupo 2 (Vítor Oliveira, Mafalda Martins, Ana Bernardino, Manuel Vico) • Criar sistema de partilha de informação relativa a estágios internacionais, compilando e partilhando feedbacks, diligências/ burocracias, contactos, referências, dicas, etc, de quem já realizou esses estágios. • Inventariação de áreas/necessidades de formação para internos. A reunião terminou com um jantar de convívio muito agradável! Agradece-se a presença de todos, lançando outro desafio, não só aos presentes mas também a outros colegas interessados neste grupo de trabalho: Uma próxima reunião do Grupo de Formação e Ensino da SPA, no dia 15 de Junho de 2012 às 18h30, no Hotel Porto Palácio, no Porto. Daniela Chaló Rui Guimarães Vítor Oliveira NOTA Estiveram presentes na reunião de 9 de Março (37 colegas): Alexandra Puga, Ana Bernardino, Angel Madrigal, António Costa, Carlos Correia, Clara Sarmento, Daniela Figueiredo, Daniela Chaló, Diana Mota, Dora Catré, Elena Segura, Fátima Gonçalves, Filipa Lança, Francisco Matos, Helena Salgado, Isabel Duque, Isabel Pascoal, Joana Mourão, Jorge Reis, José A. Bismarck, José Carlos Sampaio, José Miguel Pêgo, José Peralta, Jorge Tavares, Lucindo Ormonde, Mafalda Martins, Manuel Vico, Manuela Proença, M.Luísa Gomes, Paula Alves, Rui Guimarães, Sandra Gestosa, Susana Vargas, Tiago Faria, Tiago Fernandes, Vítor Miguel Oliveira. Provenientes das seguintes instituições: Centro Hospitalar do Alto Ave (Guimarães), Centro Hospitalar do Porto, Centro Hospitalar do São João, Centro Hospitalar Trásos-Montes e Alto Douro (Vila Real), Centro Hospitalar de V.N. Gaia/ Espinho, Centro Hospitalar do Baixo Vouga (Aveiro), Centro Hospitalar Lisboa Norte (Sta Maria), Centro Hospitalar Tondela Viseu, Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (HUC, CHC e Hospital Pediátrico), Hospital Amato Lusitano (Castelo Branco), Hospital da Luz, Hospital da Marinha, Hospital de Braga, Hospital de Faro, Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo, Hospital Fernando Fonseca (Amadora Sintra), IPO Porto, Maternidade Alfredo da Costa, Unidade Local de Saúde Matosinhos (Hospital Pedro Hispano), Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho. Normas de Publicação: A Revista da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia publica manuscritos considerados de importância para a Anestesiolo gia, Cuidados Intensivos, Terapêutica da Dor e Ciências Básicas, dando prioridade a Artigos Originais, Artigos de Revisão e Casos Clínicos. Publica ainda, temas de interesse noutras áreas, tais como: Ensino, Ética ou História da Anestesia. Os Editoriais são normalmente reservados aos Editores e à Direcção da S.P.A., podendo contudo, serem aceites os escritos de outros sócios, a pedido ou por iniciativa própria. Os manuscritos enviados para publicação, não devem ter sido publicados ou simultaneamente presentes para publicação, em qualquer outra parte (exceptuam-se os artigos publicados com a designação de “Intercâmbio”). Quando aceites, ficam propriedade da Revista, só podendo ser reproduzidos com autorização desta. As opiniões e metodologias neles expressas são da inteira responsabilidade dos autores, mesmo quando sujeitos a revisão editorial. Por artigo original entende-se todo aquele que, baseado em material clínico e/ou experimental, pela sua originalidade, objectivo e qualidade de metodologia, representa um esforço de contribuição concreto na esfera do conhecimento cientifico. Quando pressuponha uma anterior investigação ou tratamento dos dados colhidos, para esclarecimento das conclusões, deve ser referenciado com o subtítulo “comunicação prévia”.O artigo de revisão é todo aquele que resulta de uma síntese crítica de informação contida em publicações existentes, apoiando-se fundamentalmente as afirmações nele referidas em citações bibliográficas recentes (últimos cinco anos). O caso clínico consiste na apresentação de uma história clínica, cuja evolução apresenta particularidades dignas de registo. CONSIDERAÇÕES LEGAIS Os artigos baseados em investigação clínica no Homem, devem deixar bem explícito que os ensaios foram conduzidos de acordo com as normas éticas da declaração de Helsínquia. Se se tratar de investigação animal, os autores devem estar atentos ao Decreto- lei l29/72, de 6/7/92 e à Portaria I005/92, de 23/I0/92. Nos casos clínicos, os autores, devem evitar quaisquer dados que identifiquem o doente, tais como o nome ou iniciais deste, fotografias que permitam a sua identificação (salvo com consentimento expresso) ou ainda referências hospitalares. A inclusão de material já publicado, como ilustrações ou quadros, implica a autorização do seu autor e editor. Preparação de manuscrito e suporte informático Devem ser enviadas três cópias de cada, em formato A4, escritos em língua portuguesa. As folhas devem ser dactilografadas de um só lado, a dois espaços, com margens não inferiores a 2,5 cm e paginadas. A primeira página deve conter o título e uma abreviação deste, não ultrapassando os 50 caracteres e espaços. Nesta página, deve ainda constar o nome e o apelido dos autores, categoria profissional, local de trabalho, direcção e telefone do autor, a contactar para troca de correspondência. Na página que se lhe segue deve constar o resumo e as palavras-chave em português, seguindo-se-lhe o título, o resumo e as palavras-chave em inglês. Estas deverão basear-se, sempre que possível, na terminologia do Index Medicus e não exceder o número de 10 (os editores, reservam-se o direito de revisão destas, quando justificada). Deverá ser entregue, uma disquete com a cópia do manuscrito, em formato de documento Word (Windows 97 ou outra versão anterior) ou de texto (.txt) ambos para PC. Os autores devem guardar uma cópia do material enviado, para a eventualidade da sua revisão ou extravio. Os manuscritos dividem-se consoante o tipo: ARTIGO ORIGINAL Subdivide-se, regra geral em: Sumário: Deve conter informação sucinta sobre o objectivo, metodologia, resultados e conclusões e ser elaborado de modo a permitir a compreensão do trabalho, sem necessidade de recorrer ao texto. Introdução: não deve ser referenciada com título. Deve ser concisa e conter as razões e objectivos do trabalho, podendo incluir referências sucintas e informação considerada pertinente para o tema tratado e com bibliografia devidamente referenciada. Metodologia: devem ser descritos os métodos utilizados, de modo claro e objectivo, de forma a que a experiência possa ser devidamente interpretada e reproduzida pelo leitor. Igualmente, no que se refere a análise estatística, deve ser referido, neste capítulo, o método usado. Resultados: a apresentação de resultados deve ser feita de forma clara, reportando a significância a níveis de probabilidade e evitando repetições desnecessárias do texto, quadros e gráficos. Discussão: devem ser relacionados e interpretados os factos observados, assim como o seu significado em relação a estudos já publicados. Os dados considerados de interesse para as conclusões devem também ser discutidos. Os artigos originais não devem ultrapassar as quinze páginas. ARTIGO DE REVISÃO Para além do título, pode subdividir-se em sub-capítulos e alíneas, segundo o critério dos autores. Os artigos de revisão não podem ultrapassar quinze páginas. CASO CLÍNICO Para além do título e resumo, deve conter uma introdução sucinta, sem título, focando a razão de ser do relato clínico, podendo conter referências bibliográficas pertinentes. A esta introdução, segue-se a descrição do caso, sob o título “Caso Clínico”, em que se relatam os dados relevantes da doença actual, antecedentes pessoais e familiares, exames auxiliares, terapêutica e técnicas. Relatando o caso segue-se a Discussão, em que se analisam as características especiais do caso e se aprecia o seu significado, à luz da bibliografia existente. Os casos clínicos não devem ultrapassar as seis páginas. QUADROS Os quadros representam uma relação de dados em linhas horizontais. Se neles figurarem unidades (referentes aos resultados), devem ser colocadas no topo das colunas (não as repetindo nas linhas horizontais).Devem numerar-se com algarismos romanos, segundo a ordem de citação no texto, identificados com legendas na parte superior e apresentados em páginas separadas. ILUSTRAÇÕES Por ilustrações, consideram-se os esquemas, gráficos e fotografias. Numeram-se com algarismos árabes, pela ordem de citação no texto. Os esquemas e gráficos devem ser executados em papel branco e a sua identificação, com número de citação, autor e titulo do artigo, deve ser feita no reverso, a lápis. As legendas devem ser apresentadas em páginas separadas. AGRADECIMENTOS Se existem, devem ser curtos. BIBLIOGRAFIA As referências bibliográficas devem ser numeradas pela ordem em que são mencionadas no texto e identificadas neste por algarismos árabes, entre parênteses rectos. Os títulos das revistas ou jornais devem ser abreviados de acordo com o modelo utilizado no Índex Medicus. As referências de ma nuscritos ainda não publicados não devem ser consideradas como fontes bibliográficas. Exemplos de referências bibliográficas correctas: Revista: Jaeger MJ, Scheultetus RR.The effect of Brain circuit on gas exchange. Can J Anaesth 1897; 34:26-34. Livro: Greene NM. Key words in anaesthesiology, 3rd ed. New York, Elsevier, 1988. Capitulo de Livro: Hull CJ. Opioid Infusions for the management of post – operative pain. In: Smith G, Covino BG, eds. Acute pain. Butterworths,1985:155-179. CARTAS AO EDITOR Poderão ou não referir-se a material publicado na revista. Será, no entanto, dada prioridade de publicação às relacionadas com material já editado. NOTA Estas normas de publicação representam apenas uma orientação para os Autores que pretendem dar o seu contributo para a edição desta Revista. Para informação mais detalhada do modo de elaboração de um artigo cientifico, poderão ser consultados diversos textos dedicados a este tema, dos quais de destacam: -Bailar JC, Mosteller F. Guidelines for statistical reporting in articles for medical Journals. Annals of Internal Medicine 1988: 266-273 -Baron DN. Units, symbols and abbreviations: a guide for biological and medical editors and authors. 4th ed. London: Royal Society of Medicine Services, 1988:64 -Dudley H.The presentation of original work in Medicine and Biology. Churchill Livingstone, 1977. -Huth EH, Kinning K, Lock SP et al. eds. Uniform requirements of manuscripts submmited to Biomedical Journals. Annal of Internal Medicine, 1988; 108: 258-265. -Smith G. ed. Extended guide to contributors. British Journal of Anaesthesia,1990; 64: 129-136. Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012 27 28 Revista SPA | Vol. 21 - nº3 | 2012