O outro lado do “espelho”
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O outro lado do “espelho”
11-06-2008 13:25 JORNAL 52a59.qxd Page 52 Fotojornalismo Fotojornalismo O outro lado do “espelho” No ano em que bateu o recorde de candidaturas, o 8º Prémio de Fotojornalismo Visão/BES, voltou a reunir um júri de “peso”. Jean-François Leroy, Yuri Koyzirev, Philipe Blenkinsop, Susan Smith e Nöel Quidu parecem não ter tido grande dificuldade em chegar a um consenso relativamente à foto vencedora, da autoria de Augusto Brázio. Uma imagem tocante, classificaram, em consonância com uma das ideias mais fortes que nos deixaram durante a conferência sobre fotojornalismo, realizada no Museu da Electricidade: é preciso humanizar a informação, conduzir o leitor para além do que os olhos vêem. Por Maria José Mata e Marisa Torres da Silva É preciso humanizar a informação, conduzir o leitor para além do que os olhos vêem. 52 |Abr/Jun 2008|JJ «O fotojornalismo está bem e recomenda-se. Quando vemos o trabalho fantástico que o Yuri Kozyrev está a fazer no Iraque, percebemos isso. A crise está nas revistas, porque querem comprar retratos, por exemplo, do Brad Pitt, da Angelina Jolie ou de jogadores de futebol. A imprensa é que está doente, não o fotojornalismo.» A eloquência é uma característica do discurso de Jean-François Leroy, presidente do júri do Prémio Visão/Bes de Fotojornalismo. Esta frase foi proferida numa breve conversa com a JJ, poucos minutos depois da conferência sobre fotojornalismo que encerrou a oitava edição deste prémio, e dá conta da sua recusa em aceitar a ideia de uma crise disseminada no meio. «O fotojornalismo estará morto quando deixar de conseguir de organizar o “Visa”. Mas, todos os anos, recebo 10 mil fotografias e funciona.», asserta. O «Visa Pour L’Image» é um dos festivais de fotojornalismo mais prestigiados em todo o mundo, onde oitenta por cento das imagens apresentadas a concurso nunca foram publicadas. Leroy, director-geral do evento, assume essa opção: «Geralmente, todas as histórias sobre gente feliz são publicadas, porque as revistas não se interessam com o sofrimento, a morte ou a fome. Por isso, criei o “Visa”, para mostrar o tipo de imagens que não são mostradas, fotografias jornalísticas na verdadeira acepção da palavra.» Imagens como as que Philip Blenkinsop, então freelancer, fez, em 2003, no Laos, e que momentos antes tinham colado o olhar da assistência aos ecrãs espalhados pelo espaço onde decorreu a conferência, no Museu da Electricidade. Essas fotografias, embora premiadas internacionalmente (prémios Aministia Internacional para Fotojornalismo, World Press Photo e Visa Pour L’image), nunca chegaram a ser publicadas pelas revistas norteamericanas. «Não querer ver é repugnante», qualificou o fotógrafo. A sua eventual publicação em livro é uma possibilidade em aberto, mas, a concretizar-se, o próprio Blenkinsop confessou que «não irá ajudar aquelas pessoas, será mais uma espécie de obituário glorificado». O trabalho feito no Laos é composto por imagens fortíssimas de uma guerra pela sobrevivência, travada pelo Hmong, um grupo de veteranos combatentes que lutou ao lado dos Estados Unidos durante a Guerra do Vietname e que, posteriormente, foi abandonado à sua própria sorte. Mais do que denunciadoras de uma indignidade, são um convite ao testemunho responsável e comprometido com a 52a59.qxd 11-06-2008 13:25 Page 53 situação mostrada. É impossível ser-lhes indiferente. Esse convite é extensivo às imagens dos conflitos na Libéria (2003) e no Haiti (2004), captadas pela lente de Noël Quidu, da agência Gamma, ou ainda às fotografias do antes e depois da recente guerra do Iraque, da autoria de Yuri Kozyrev, membro da Noor, também mostradas ao público presente na conferência. Sofrimento, horror e morte são os condimentos inevitáveis a partir dos quais cada fotógrafo constrói a sua narrativa sobre os acontecimentos. Por cada história mostrada há várias, ocultas, que a sustentam. Perante situações limite, no terreno, nem sempre é fácil estabelecer fronteiras entre “o que” e “quando” fotografar ou não. Para Philip Blenkinsop, «a primeira responsabilidade é humanística». Momentos há em que se pode e intervir nas situações, ajudar alguém, e nessas alturas deve deixar-se a câmara de lado. Mas também há outros em que, acrescentou, «sabemos que não podemos fazer nada, e então aí devemos fazer a foto pois ela vai, pelo menos, servir como prova do que aconteceu». Para quem fotografa, há ainda outro desafio: «salvar a própria vida e ao mesmo tempo tirar a fotografia», lembrou Nöel Quidu. NÃO AO “RETRATISMO” «Muitas pessoas estão apenas a fazer retratos e pensam que são jornalistas. Não, não são», afirmou taxativamente Jean-François Leroy à JJ, manifestandose contra aquela que considera ser uma tendência actual da fotografia jornalística. A fotografia vencedora do Prémio Visão/BES deste ano foge, precisamente, a essa tendência. O seu autor, Augusto Brázio, freelancer e membro da agência Kameraphoto, retrata uma jovem de 19 anos, que acabava de dar à luz o seu terceiro filho, em casa, quando foi assistida pelo INEM. A imagem é, nas palavras do Presidente do júri, «extremamente tocante. Quando olho para a imagem, não quero saber o nome da mulher e o que ela está a fazer, mas quero saber se o bebé está bem, se sobreviveu, se foi vítima de um acidente, de uma bomba, de uma tragédia…». Esta capacidade de interrogar os factos e de mobilizar o espectador para o que está para além do que olhos captam é um dos desafios do fotojornalismo. Num mundo permanentemente inundado por imagens, nem sempre é fácil. O caminho, apontou Philip Blenkinsop, é «humanizar a informação». Criar mecanismos de identificação, dando a conhecer quem são as pessoas por detrás dos acontecimentos, acredita, ajuda a «fazer com que os outros percebam que elas são seres humanos, iguais a nós». Há histórias difíceis de vender mas, como observou Leroy, o objectivo primordial dos fotógrafos não Jean-François Leroy, presidente do júri do Prémio Visão/Bes de Fotojornalismo JJ|Abr/Jun 2008|53 11-06-2008 13:25 JORNAL 52a59.qxd Page 54 Fotojornalismo é ganhar dinheiro, eles querem, sobretudo, testemunhar o mundo e contribuir para o testemunho futuro. «Este métier é muito difícil. Conseguimos manter-nos por convicção profunda», assinalou Quidu. Alguns dos fotógrafos anualmente distinguidos com os mais prestigiados prémios de fotojornalismo a nível mundial são VENCEDORES DO 8º PRÉMIO VISÃO/BES DE FOTOJORNALISMO GRANDE PRÉMIO Augusto Brázio (freelancer/Kameraphoto) CATEGORIAS Notícias Augusto Brázio, freelancer Menções honrosas Hernâni Pereira, Diário de Notícias Mário Proença, World Picture News Pedro Correia, Jornal de Notícias. Reportagem do Quotidiano Rodrigo Cabrita, Diário de Notícias, Menções honrosas João Carvalho Pina, Kameraphoto e Paulo Duarte, ½ de Formato. Reportagem Noticiosa João Carvalho Pina, Kameraphoto, Menção honrosa Gonçalo Lobo Pinheiro, freelancer Vida Quotidiana Bruno Simões Castanheira, Jornal de Notícias, Menções honrosas Artur Vaz Oliveira e Paulo Maria , ambos freelancer Retrato Vasco Neves, Diário de Notícias Menções Honrosas Daniel Rocha e Enric Vives-Rubio, ambos Público. Espectáculo Nacho Doce, Reuters Menções honrosas Ângela Mendes Ferreira e Filipe Paiva, ambos freelancer. Desporto Nicolas Asfouri, France Presse Menções honrosas António Pedro Santos, Sol Luís Efigénio, freelancer Natureza Eduardo Barrento, freelancer Menções honrosas Alfredo Cunha, Jornal de Notícias José Luís Pereira Jorge, freelancer. 54 |Abr/Jun 2008|JJ freelancer. O estatuto de independência tem um preço, recordado por Blenkinsop, que desde o ano passado integra a Noor, uma nova agência, de que é co-fundador. «Ser freelancer não é fácil, mas nunca vendam a vossa integridade! Façam a história que vos pedem, mas façam-na à vossa maneira.», aconselhou aos profissionais presentes na assistência. A união pode fazer a força e as agências, consentiu, podem ser uma boa ajuda, sobretudo se forem constituídas por um bom grupo de profissionais, que se movam em função dos mesmos objectivos. No meio das dificuldades e desafios debatidos ao longo da tarde, nesta conferência, o cenário descrito por Susan Smith, directora-adjunta da National Geographic, acabou por destoar pela positiva. Ao mostrar alguns dos trabalhos publicados na revista, Susan Smith realçou as excepcionais condições de trabalho proporcionadas aos fotógrafos: um ano ou mais de presença no terreno, nalguns casos com direito a um assistente. Confrontada com a beleza das imagens produzidas, fez questão de frisar que o mais importante é criar uma narrativa, contar uma história: «não procuramos fotografias bonitas; interessa-nos sobretudo o comportamento, as atitudes dos animais fotografados, as surpresas». A National Geographic situa-se num nicho de mercado, nem por isso menos apelativo para os profissionais da imagem. Interpelada por um dos presentes sobre a abertura a novos talentos, Susan Smith admitiu que, neste momento, «não há espaço para novos fotógrafos», mas está sempre à procura de um novo olhar. No fundo, aquilo que valoriza qualquer fotógrafo, seja em que categoria for. Habitualmente tida como um espaço de diálogo e discussão aberta entre profissionais e aspirantes, a conferência sobre fotojornalismo que encerrou o Prémio de Fotojornalismo Visão/BES deste ano revelou-se, sobretudo, um espaço onde as imagens “falaram” mais do que as palavras, convidando o olhar dos presentes a ver para lá do “espelho” do(s) mundo(s) nelas captado(s). JJ 52a59.qxd 11-06-2008 13:25 Page 55 Entrevista Philip Blenkinsop à JJ «O fotojornalismo não perdeu a alma, mas são tempos perigosos» Tem 43 anos, é inglês, mas desde cedo foi viver para a Austrália, o que lhe permite, hoje, ter dupla nacionalidade e dois passaportes, que usa consoante a vontade. Desconhecemos qual deles escolheu para esta viagem desde a Tailândia - onde reside há duas décadas - até Portugal, aonde se deslocou para integrar o júri da oitava edição do Prémio de Fotojornalismo Visão/BES. Nesta entrevista à JJ, um dos mais prestigiados e premiados fotógrafos da actualidade, que tem seguido de perto os acontecimentos mais relevantes do continente asiático, revela-se um ser humano sensível e um profissional comprometido. Apesar da violência física e psíquica dos momentos que já fotografou, Philp Blenkinsop mantém a capacidade de se emocionar com as situações e as pessoas. Nas montanhas de Timor, viveu uma das suas experiências mais marcantes, aqui recordada na primeira pessoa. Maria José Mata e Marisa Torres da Silva Integrou o júri do 8º Prémio de Fotojornalismo Visão/BES. Qual é a importância deste tipo de galardões? O que se ganha e quem ganha? Acho que são muito importantes. Uma competição tão bem organizada e competente como esta pode ajudar a dar a conhecer alguns dos melhores trabalhos, mais inteligentes, que tentam ir mais longe. E é sempre bom ter um pouco de reconhecimento ao nosso trabalho, para tirar a dor ao que fazemos. Porque não? É um prémio com um montante considerável, que pode permitir às pessoas fazer “estórias” que de outra forma não poderiam contar, por não terem recursos disponíveis. Acho que é uma óptima iniciativa, que poderia eventualmente ser complementada com workshops e outras coisas do género. Afirmou algures que não se considera fotojornalista, embora tenha começado a sua carreira num jornal australiano. Prefere considerar-se, simplesmente, fotógrafo? Sim, há demasiadas pessoas se apelidam fotojornalistas… Não é que eu não me veja como fotojornalista, mas a palavra perdeu a sua força. É apenas um termo, faço o que faço, podem chamar-me fotojornalista se quiserem, mas eu prefiro não usar a palavra em relação a mim mesmo. Conheço muita gente que diz “sou fotojornalista” e depois descobrimos que a maior parte do seu trabalho é fotografar os bastidores de uma rodagem de um filme. Mas gostam do termo fotojornalista. A palavra é sobre-utilizada. O fotojornalismo perdeu a alma? É uma questão estética, ética, ou ambas? Não… Há fotógrafos que estão a fazer um trabalho incrível, com muita alma. Mas a fotografia está a tornar-se mais acessível a muito mais pessoas do que dantes, é muito mais fácil fotografar e disseminar fotografias. O fotojornalismo não perdeu a sua alma, mas são tempos perigosos. Há tantas pessoas a tirar fotografias, sem regulação… Não estou a sugerir que deva haver uma regulação, no sentido de decidir quem pode e quem não pode ser fotojornalista. Mas acho que a democratização da fotografia é muito perigosa. Está também a referir-se ao chamado “fotojornalismo do cidadão”, como foi feito durante os atentados de Londres, em 2005? Isso também pode ser perigoso? Não, acho que não. Estar envolvido num acidente ou tragédia e tirar fotografias é muito diferente de pessoas comprarem máquinas fotográficas e viajarem pelo mundo a tirar fotografias, no sentido de vender os seus trabalhos às revistas e fazer dinheiro. Estou apenas a sugerir que, hoje em dia, é mais fácil ver alguém a tirar e a vender fotografias, a quem lhe falte o grau certo de responsabilidade. Quanto mais gente houver a fazer isso, mais probabilidades temos de ver fotografias nas quais não podemos confiar ou acreditar. Não estou a dizer que isto não acontecia antes do digital, mas hoje o campo abriuse. Toda gente está em posição de tirar fotografias, mandá-las para revistas, publicá-las online. E acho que isto comporta o perigo de se deixar de acreditar no que se vê numa revista ou num jornal. Como é que sabemos que uma determinada fotografia não é falsa? Fala do problema da manipulação fotográfica? JJ|Abr/Jun 2008|55 11-06-2008 13:25 JORNAL 52a59.qxd Page 56 Fotojornalismo Sim, também. Dantes o processo de alguém se tornar fotógrafo era moroso, difícil e trabalhoso; agora é quase imediato. Não é preciso saber praticamente nada, todas as potencialidades da máquina são acessíveis ao indivíduo. Mas o conhecimento da tecnologia não implica o conhecimento de princípios éticos, modos de comportamento adequados, história da imagem. Muitas pessoas chegam à profissão demasiado “verdes”. poder dizer a ninguém “Temos uma fotografia onde não se pode ver que a criança está morta” por ser perturbador para os leitores. Isso não me importa minimamente. E também não é justo para os leitores, porque se está a adulterar uma realidade, a mentir, a censurar uma cena. O meu trabalho não é esterilizar as notícias, torná-las limpas. reacção seja a indiferença. Se se trata de uma imagem de alegria, sintam a alegria; se se trata de uma imagem de sofrimento, sintam o sofrimento. Numa entrevista, há uns tempos atrás, afirmou: “Para muitas pessoas, a fotografia tem a ver com interpretar a vida como gostariam que ela fosse, mas o meu trabalho não é isso. É sobre a realidade – a vida tal como Mas as pessoas também se podem ela é.” Será que uma fotografia pode habituar ao horror de certas imagens, ser assim tão “limpa”? Afinal, tirar A questão da manipulação foi muito por se tornarem demasiado uma fotografia é um acto discutida em relação aos atentados familiares, como dizia Susan interpretativo por natureza, o de 11 de Março, em Madrid, ocasião Sontag… resultado de um conjunto de em que alguns jornais publicaram a Sim e não. As imagens têm de ser inteligentes. Creio que quanto mais horrível uma situação for, mais difícil é fotografá-la. Acho que muitos fotógrafos, quando vêem uma situação destas, acham que não têm de pensar nela, porque já é demasiado dramática. Mas, na verdade, é o contrário. Por exemplo, a história que fiz no Bornéu [em 1999], que abordava a questão do canibalismo, requeria uma escolha estética muito cuidadosa. Usar formatos de filme pequenos ou grandes faz uma diferença abissal; os primeiros são muito sérios e sombrios, os outros são quase gratuitos. Por isso, há o perigo de tornar as pessoas insensíveis, e também por isso é que é tão importante empregar uma estética inteligente, para proporcionar uma interpretação adequada. escolhas individuais… imagem de um membro humano dilacerado pelas ferragens e outros optaram por colocar a mesma foto, mas reenquadrada ou com o membro disfarçado, para evitar chocar o espectador. O que pensa disso? Falei especificamente sobre isso numa entrevista de rádio, na Austrália. O Daily Telegraph australiano, que li nesse dia no avião, manipulou digitalmente a fotografia, colocando pedras no local do membro despedaçado (ao contrário do que fez o Libération). Na altura, afirmei que aquilo era um escândalo e que o editor de imagem devia ser imediatamente despedido. Mas que direito é que alguém tem de mudar a história? O argumento geral era de que mostrar o braço ou a perna iria incomodar o espectador. Mas ninguém pensa como é que a família da vítima se sentiu ao ver que, simplesmente, apagaram ou disfarçaram o seu membro? Essa família não existe? Não há dor? Não há realidade? Como fotógrafo, a minha responsabilidade é para com as pessoas que fotografo. Não tenho qualquer responsabilidade perante o leitor, não quero saber se ele fica perturbado, se vomita, se estrago o pequeno-almoço de alguém. Realmente, não quero saber. A mim preocupam-me a dor e as vidas das pessoas que fotografo, e é isso que tento mostrar. Ninguém deveria 56 |Abr/Jun 2008|JJ Exactamente. Mas escolho interpretar a realidade da forma como a sinto, com toda a informação que tenho no momento, com o que vejo e o que ouço. Quando tiro uma fotografia, tento apresentar uma cena da forma mais verdadeira e honesta que consigo. Mas é tudo muito subjectivo, claro, o que escolho ver é diferente do que outra pessoa escolheria ver. Mas esperamos que quem tira a fotografia seja honesto, tenha a capacidade de empatia e possua bons valores humanos. Viveu nas montanhas de Timor-Leste com os guerrilheiros da Fretilin. Como sabe, a questão timorense mobilizou Portugal de forma particular e você foi testemunha de um momento extremamente importante da história do país. O que Diz que não quer saber do leitor ou é que o mobilizou a si, como espectador, mas falando assim não fotógrafo? parece. Afinal, preocupa-se com a Foi o facto de ser outro sítio triste, onde as pessoas sofriam uma opressão horrível. Havia poucas notícias sobre o assunto. Fui numa boa altura, em Julho de 1998, depois da demissão do general Suharto e antes da independência [em Setembro de 1999]. Foi uma decisão jornalística. interpretação que o seu trabalho pode ter. Quero que o espectador veja o que aconteceu realmente. Quero que as minhas fotografias produzam um efeito no leitor. Nesse sentido, importo-me com ele, agora não quero saber se as minhas fotos o vão perturbar. Porque determinadas realidades são, de facto, muito perturbadoras! Pretendo que as minhas fotos provoquem um sentimento, não quero que a Tomada por si? Sim. Sabia muito pouco de Timor, apenas que era um sítio onde 52a59.qxd 11-06-2008 13:25 Page 57 ninguém ia e onde estavam a acontecer coisas horríveis. Conheci na altura Jill Jollife, uma jornalista australiana que veio viver para Lisboa depois da invasão da Indonésia, em Timor, para estudar português e acompanhar mais de perto a história. Ela tinha estado lá, queria seguir a causa e escrever sobre Timor-Leste. Conheci-a em Bangkok, quando lá foi mostrar um documentário. Fiquei fascinado com as caras destas pessoas, eram incrivelmente fotogénicas e muito fortes. Apresentei-me à Jill e perguntei-lhe quais eram as possibilidades de entrar em TimorLeste. Ela olhou-me de uma forma estranha e perguntou-me se eu queria lá ir, ao que respondi que sim. Ficou muito contente, porque estava à procura de uma pessoa que quisesse ir e até então ninguém tinha dito que sim. Quanto tempo esteve em Timor? Passámos cerca de quatro semanas nas montanhas, onde tive uma experiência incrível. Senti que aquelas pessoas dariam a vida por mim e senti-me muito próximo deles todos. Quando chegou a hora de partirmos, juntaram-se numa fila e deram-nos presentes de despedida e cartas escritas por si. Muitos deles [guerrilheiros] choravam. Um homem ficou muito embaraçado e por isso fugiu para a selva, para chorar mais à vontade. Fui ao encontro dele e demos um longo abraço. Todos estávamos tristes por termos que partir. Foi um momento muito especial, um dos melhores da minha vida. Apesar do perigo e de todas as preocupações, foi uma época de alegria para mim, onde conheci pessoas muito boas. Vive frequentemente na fronteira entre a vida e a morte. Como lida com isso, consegue ter uma vivência “normal”? Mas eu não quero ter uma existência normal! [risos] Lido com a morte e a tragédia o melhor que posso, mas muitas vezes fico zangado com as pessoas. Acho que o maior problema, para mim, seria viver no ocidente. É muito agradável estar aqui [em Lisboa] mas olho em volta e vejo o dinheiro, a água a sair da torneira, o desperdício… E acho tudo muito vazio, porque não é a vida real. Prefiro estar com pessoas que lutam pela sua sobrevivência. Aí sim, sinto que estou a viver uma vida. Fundou recentemente a agência Noor, em conjunto com outros fotógrafos. Numa época em que se fala no domínio de duas ou três agências internacionais em termos de cobertura mediática dos conflitos, qual será o caminho das novas agências? O que é que o levou a fazer parte da Noor? Escolhi este conjunto de fotógrafos, porque são boas pessoas e estão na profissão pelas razões certas. A sua motivação é muito humanitária. Estive uns anos na agência francesa Vu, uma agência incrível, mas muito diversificada, em termos de estilos. Com a Noor, penso que conseguimos criar uma agência de fotografia mais centrada em notícias e em problemáticas. A agência foi lançada em Setembro de 2007, por isso ainda é muito cedo para ver resultados. JJ JJ|Abr/Jun 2008|57 11-06-2008 13:25 JORNAL 52a59.qxd Page 58 Fotojornalismo Entrevista Noël Quidu à JJ «A ética jornalística consiste na denúncia do horror da guerra» Nöel Quidu é habitualmente designado como um fotógrafo de guerra. Olhando para o seu currículo no qual constam três prémios obtidos no World Press Photo, com fotografias tiradas em diferentes conflitos armados – o facto não parece merecer discussão. Nesta entrevista, dada à JJ numa tarde solarenga, em Lisboa, onde esteve como membro do júri dos Prémios de Fotojornalismo Visão/BES, Quidu justifica a sua função no terreno com um dever de denúncia que obrigue os políticos a agir. Para este fotógrafo francês, que integra os quadros da agência Gamma desde 1988 e tem no seu portfólio os grandes acontecimentos mundiais dos últimos vinte anos (desde a primeira Guerra do Golfo, passando pelos conflitos na ex-Jugoslávia, até às guerras civis na Costa do Marfim e na Libéria, entre tantos outros) o principal papel do fotojornalista é provocar a reflexão e “fazer” a história. Maria José Mata e Marisa Torres da Silva Grande parte do seu trabalho tem sido desenvolvido em zonas de conflito. Sente-se mais protegido ou mais exposto por detrás da câmara? Quando estou a fazer um trabalho sobre uma guerra, sei exactamente o que fazer e estou preparado para o que vai acontecer. O jornalismo é um trabalho muito esquizofrénico: durante o trabalho, sou jornalista, mas quando acabo, sou um homem como outro qualquer. Há esses dois lados. A câmara é uma protecção, não sei porquê. Sei o que estou a fazer e que estou a denunciar alguma coisa que mais ninguém sabe. Assim, os políticos podem ver e podem fazer alguma coisa a partir daí. Quando parte para um determinado trabalho, procura deliberadamente um “olhar” ou simplesmente “encontra-o”? O que é que vem primeiro? Depende de se estou pela primeira vez numa zona de conflito ou se já lá tiver estado mais de cinco vezes. Neste caso, começo a perceber o funcionamento das coisas. Claro que já sei o que espero encontrar, porque leio sempre jornais e vejo 58 |Abr/Jun 2008|JJ 52a59.qxd 11-06-2008 13:25 Page 59 Fotografias em Belgrado e na Libéria televisão previamente, para me informar. Mas é sempre diferente quando se chega ao meio do cenário da guerra. Enquanto jornalista, estou lá para denunciar e é assim que resisto ao horror. Cubro os acontecimentos, apesar de tudo, porque as situações devem ser denunciadas. É uma questão ética, para si? Ética, no sentido em que um jornalista nunca deve esquecer que o é. Amo esta profissão, porque está totalmente ligada aos processos democráticos. Vemos que, nos países onde a democracia não se desenvolveu, há sempre problemas com a imprensa, vemos jornalistas na prisão, como aconteceu recentemente no Zimbabwe. A ética jornalística consiste na denúncia do horror da guerra. Por isso, os fotojornalistas têm a possibilidade de tirar fotos que traumatizem as pessoas, para que elas não possam fazer de conta que a situação não existe. Os políticos também são obrigados a dizer qualquer coisa. O nosso trabalho é, então, dizer: “Atenção! Até onde é que vamos? O que podemos fazer para que isto pare?” Num mundo em que os conflitos se gerem de uma forma cada vez mais calculada, do ponto de vista da gestão daquilo que interessa “mostrar” ou “esconder”, qual é a margem de manobra dos fotojornalistas? Quando vamos para a linha da frente, encontramos profissionais que defendem a causa do seu povo ou da sua nação. No entanto, para um jornalista estrangeiro, aquela não é a sua guerra e, por isso, não adere à propaganda, mantém a sua verdade e o seu sentido de justiça. Quando vou, por exemplo, para a região do Médio Oriente, o meu objectivo não é denunciar nem os israelitas nem os palestinianos, mas sim dizer: “Voilá. Isto é assim”. Não fabrico as minhas fotografias. Aliás, nunca falo quando as tiro. O propósito de um jornalista não é defender nem ganhar causas, mas antes denunciar uma situação, para que alguma coisa seja feita. Até porque numa guerra, a maior parte das pessoas que morrem são civis, não fizeram nada. Li uma afirmação sua em que dizia que “muitas vezes, as imagens são as únicas coisas que retemos da história”. A responsabilidade do fotojornalista, deste ponto de vista, é enorme. Sente esse ‘peso’, essa responsabilidade? Sim, há fotografias que provocaram uma mudança na opinião pública e, por isso, mudaram a história. Quando uma imagem é muito simbólica, as pessoas apercebem-se da enormidade do horror, no fundo, da verdade. A fotografia tem um impacto intelectual sobre as pessoas que a vêem e, acima de tudo, sobre os políticos que decidem por nós. Portanto, para mim, o papel do fotojornalista é muito claro: provocar a reflexão. Essa procura da “verdade” reflectese na forma como fotografa? A verdade é essencial para o bom jornalismo e, por isso, gosto das fotografias simples. O meu objectivo não é fazer fotografias “belas”, com grandes preocupações estéticas, mas sim fazer fotografias “boas”, fortes, com informação. Lida muito com a morte. A fotografia imortaliza-a. Isso condiciona a forma como encara a vida? Não. As guerras existem desde o princípio do mundo. Não gosto de ver essas situações, mas quando tiro uma fotografia, tenho sempre esperança de que haja uma acção por parte dos políticos. Considero que a minha missão foi cumprida quando isso acontece, ou quando, por exemplo, os responsáveis por uma situação são julgados por um tribunal internacional. Quando me dizem que sou um fotógrafo de guerra, digo sempre que estou em guerra contra a política, porque os políticos são sempre os verdadeiros responsáveis. JJ JJ|Abr/Jun 2008|59