O BEIJO BIZANTINO DE KLIMT

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O BEIJO BIZANTINO DE KLIMT
O BEIJO BIZANTINO DE KLIMT
Fabiana Mendes de Mendonça – IFSUL
Introdução
A arte antes de tudo é a expressão do artista, não apenas de sua
habilidade e talento, mas de sua essência, experiência de vida e bagagem cultural.
Gustav Klimt foi um pintor que teve papel fundamental na história da arte
contemporânea, principalmente na virada do século XX, quando experimenta novas
formas de expor suas idéias. O quadro O Beijo é um exemplo de obra em que o
pintor agrega suas vivências, conhecimentos e crenças produzindo uma obra de
incrível valor cultural. Este quadro é uma das obras mais reproduzida de todos os
tempos e causa um fascínio muito grande nas pessoas devido a sua beleza estética
e simbolismo alegórico.
A estética bizantina na obra de Klimt
Gustav Klimt foi um artista bastante polêmico e controverso que representou o
movimento Art Nouveau¹, em um período de transição e busca da liberdade artística.
Segundo Beckett (1997):
“[...] Gustav Klimt (1862-1918) é uma síntese curiosa e refinada de
simbolismo e art nouveau. Os austríacos reagiram entusiasticamente aos
artifícios decorativos do art nouveau, e Klimt é quase a encarnação do
artifício. O artista pintou vastos frisos² ornamentais com cenas alegóricas e
executou retratos ao gosto elegante da época, unindo contornos estilizados
e as cores inaturais do simbolismo a seu próprio conceito de beleza,
essencialmente harmônico.”
Gustav, filho de Ernst Klimt, cinzelador de metais, e, Anne Finster, nasceu em
17 de julho de 1862 na cidade de Baumgarten, perto de Viena na Áustria. Aos 14
anos de idade foi estudar na Escola de Artes e ofícios de Viena. No ano de 1882,
com 20 anos, Klimt abriu um atelier com o irmão mais novo, Ernst, e um amigo
estudante. Durante 15 anos produziu vários murais para prédios públicos, ganhando
notoriedade pela qualidade realista de suas obras que se assemelhavam a
fotografias.
Klimt buscou influências e inspirações em outras artes e estilos desprezados
na época, como as artes japonesa, chinesa, egípcia e micênica. No ano de 1894, foi
encarregado de pintar três grandes painéis³ para o teto do auditório da Universidade
de Viena, representando os cursos de Filosofia, Medicina e Jurisprudência. Mas os
professores e diretores da Universidade não estavam preparados para a arte de
Klimt, e ficaram chocados com o complexo conjunto de imagens e símbolos, do
primeiro painel do pintor, a Filosofia. A composição deste painel contou com corpos
nus representados em poses tidas como obscenas pelos conservadores da época, e
com olhos semicerrados e bocas entreabertas o que causava um efeito de erotismo,
visto pela Universidade como uma provocação e um desrespeito a instituição, sendo
a obra categoricamente rejeitada.
No entanto, esta era a nova arte de Klimt, que havia abandonado o estilo que
o consagrou até ali, e procurava uma nova forma de expressão, assim, juntamente
com outros artistas vienenses pediu demissão da Academia de Artes em 1897 e
fundou a Associação dos Artistas Austríacos, ou Secessão de Viena, como ficou
mais conhecida, sendo Klimt o primeiro presidente do grupo. Em 1898 aconteceu a
primeira exposição da Secessão. Em 1900 seu painel A Filosofia foi duramente
criticado outra vez e recusado como arte pelos professores da Universidade, mas,
neste mesmo ano, Gustav ganhou uma medalha de ouro na Feira Mundial de Paris.
Outra polêmica aconteceu em 1901, com a pintura A Medicina, na exposição da
Secessão, censurada desta vez pelos deputados. Em 1902, pintou o friso Beethoven
(figura 1) em homenagem a 9ª sinfonia de Beethoven, com seu estilo típico.
Figura 1: Klimt, Parte de O Friso Beethoven, 1902.
Fonte: http://www.allposters.com.br/
Klimt fez uma viagem pela Europa em 1903 e visitou as cidades de Veneza,
Florença e Ravena. A partir desta viagem em que o artista teve contato com a arte
bizantina sua obra se transformou e entrou na fase mais exuberante e requintada de
sua carreira a chamada Fase Dourada. Em 1905, após ser alvo de pesadas críticas
e perceber que não mais concordava com os ideais do grupo, Klimt decidiu desligarse da Secessão, retirou seus painéis e devolveu seus honorários, iniciando um
período de liberdade em que desenvolveu seu próprio estilo. Apesar dos sucessivos
escândalos envolvendo os painéis da Universidade, Gustav passou a ser o artista
preferido da sociedade local e se especializou em pintar retratos, rostos e corpos
femininos envoltos em um mundo de ornamentações.
Breve história da arte bizantina
A arte bizantina desenvolveu-se no império romano a partir da influência de
diversas culturas. Sua origem foi o cristianismo e representava a união de forças
entre a Igreja e o Estado. Uma arte que impressiona pelo seu aspecto majestoso e
pelo colorido resplandecente de suas obras.
O império romano teve seu território invadido pelos povos bárbaros por volta
do século IV, por esse motivo, no ano de 395, o imperador Teodósio decidiu dividir
seus domínios em dois impérios: o Império Romano do Ocidente, que ficou com a
capital Roma, e o império Romano do Oriente, com a cidade de Constantinopla
como capital. O Império Ocidental não resistiu e acabou em poder dos invasores, já
o Império do Oriente apesar de sofrer vários conflitos políticos conseguiu manter sua
integridade.
Constantinopla foi fundada no ano 330 pelo imperador Constantino, onde
havia uma antiga colônia grega chamada Bizâncio, daí a origem do termo
“bizantino”, usado para denominar tudo que é proveniente desta região. Esta cidade
localiza-se em uma região favorável entre a Europa e a Ásia, dessa forma, recebeu
influências tanto Greco-romanas como das culturas orientais, desenvolvendo uma
arte única a partir da combinação de diferentes estilos.
O esplendor da arte bizantina se deu com a afirmação e oficialização do
cristianismo, pois a arte cristã deixou de ter caráter simples e popular, como era a
arte cristã primitiva e, adquiriu um aspecto luxuoso para expressar a riqueza e o
poder do Império. A intenção é demonstrar toda a autoridade do imperador que é
considerado um ser sagrado, governando como representante direto de Deus na
Terra. Assim sendo, não era raro ver o imperador e sua mulher retratados com
auréolas e, na presença de personagens divinos, como a virgem Maria e o menino
Jesus.
Figura 2: Mosaico O Imperador Justiniano e sua
Figura 3: Detalhe do mosaico de Justiniano,
comitiva, 546-548. Ravena, Itália
546-548. Ravena, Itália
Fonte: http://blogartecedvf.blogspot.com.br/
Fonte: http://blogartecedvf.blogspot.com.br/
Devido ao caráter teocrático, a expressão máxima da arte bizantina se deu
nas igrejas através da arquitetura, da pintura de afrescos e principalmente dos
mosaicos (figuras 2 e 3). Adotou-se a lei da frontalidade, onde todas as figuras são
representadas em uma posição de frente, verticalizadas e rígidas, para transmitir
uma sensação de proteção ao observador mas, também para invocar uma atitude de
respeito e devotamento. Além disso, foi determinada a posição que cada
personagem sagrado deveria ocupar na composição, e, o simbolismo presente nas
imagens. Outra regra era a bidimensionalidade, ou seja, imagens planas com
ausência de perspectiva, sem profundidade. Todas essas convenções ditadas pelo
clero tinham a função de organizar a arte, transformando os artistas em meros
executores das obras, pois não podiam se expressar através dela. Ironicamente,
Klimt passou a se destacar com mais personalidade e individualidade justamente
quando incorporou algumas dessas características à sua obra.
No século VI quando o imperador Justiniano resolveu unificar o Império
Romano novamente, começou uma luta pela conquista do território do ocidente. O
alvo de Justiniano foi a cidade de Ravena, que ficava num ponto estratégico para a
conquista da Península Itálica. A cidade foi tomada no ano de 540 tornando-se
domínio bizantino, e foi nesta cidade que Klimt entrou em contato com a estética dos
mosaicos bizantinos da igreja de São Vital (figura4).
A arte dos mosaicos foi usada por vários povos de diferentes culturas, porém,
foram os artistas bizantinos que atingiram a excelência em sua realização, pois esta
foi a forma de expressão artística mais utilizada pelo império romano do oriente.
Acima de tudo, a arte do interior das igrejas, pretendia demonstrar toda a riqueza e
poder do império e, deslumbrar os fiéis com toda a sua exuberância e beleza. Desse
modo, os materiais utilizados foram as pedras preciosas e o ouro, maior bem
existente na terra. Esses materiais aplicados nos tetos das abóbodas, quando
atingidos pela luz do dia, causavam um efeito arrebatador no observador e foi este
efeito que tanto impressionou Gustav Klimt. A aura suntuosa criada por essas obras,
que pareciam mostrar ao espectador, todo esplendor do paraíso, nenhuma outra
arte conseguiu reproduzir.
Figura 4: Mosaico O Bom Pastor – século V
Igreja São Vital - Ravena, Itália
Fonte: http://artebizantinaturmad.blogspot.com/
O Beijo – Auge da Fase Dourada
Gustav Klimt vivia em uma época de transformações e inovações onde se
libertava das amarras da arte tradicional e abraçava novas formas de expressar sua
arte impregnada de erotismo, beleza e significado. O Beijo é talvez uma das obras
mais bem sucedida da história da arte ocidental devido ao grande número de
reproduções feitas dessa pintura. Ao visitar a Igreja de Ravena, Klimt ficou tão
admirado com a beleza estética dos afrescos e mosaicos bizantinos, com seus
reflexos dourados e sua profusão de cores luminosas que, a partir deste momento,
agregou essas cores vibrantes e brilhos metálicos à sua arte, junto a uma profusão
de elementos, formas geométricas e arabescos, e, muito movimento impresso nos
tecidos e nas ornamentações exuberantes.
Nesta fase, o artista mantém sua admiração pelas mulheres e, as retrata
fortes e dominantes sobre os homens, contrariando os valores da sociedade daquela
época que ditavam um comportamento feminino recatado (figuras 5 e 6). Klimt
acreditava que toda essa opressão obrigava a mulher a vestir um pudor que
encobria sua sensualidade e seus desejos sexuais. Dessa forma, o feminino sempre
foi seu principal tema, mas, ele também explorava a ambigüidade, e abordava os
questionamentos humanos como a vida e a morte, a alegria e a tristeza, o medo e o
êxtase. Gustav afastou-se um pouco da realidade e se aprofundou nos assuntos
ocultos e espirituais, gerando em seus quadros a representação de figuras etéreas,
que parecem flutuar em um clima de fantasia e sonho.
Figura 5: Klimt, Danae, 1907-1908
Figura 6: Klimt, Mãe e filho,1907
Fonte: http://www.allposters.com.br/
Fonte: http://www.allposters.com.br/
Assim como nos mosaicos, Klimt fez uso do ouro em suas obras e, como seu
pai manipulava metais, ele conhecia várias técnicas para o uso desse material. O
auge de sua Fase Dourada foi o quadro O Beijo, célebre obra que virou símbolo do
caráter transitório deste artista, e da liberdade artística que houve após o
rompimento com a arte convencional e clássica. Estudos superficiais indicam que
nesta tela, Klimt pode ter usado uns oito tipos de folhas de ouro e várias técnicas
distintas, além de gesso para produzir diferentes tipos de brilhos e texturas. Porém,
este quadro nunca saiu de exposição, por ser uma das obras mais visitadas do
mundo, o que impossibilitou um estudo mais aprofundado de sua estrutura.
Figura 7: Klimt, O Beijo, 1907-1908. Fonte: http://www.allposters.com.br/
O Beijo foi exposto pela primeira vez em maio de 1908 em Viena e recebido
com grande admiração pelo público. Na mesma ocasião foi adquirido para o acervo
nacional austríaco. Esta é uma obra extremamente instigante e enigmática, que
provoca o observador, ela retrata o momento sagrado de plenitude de um abraço
sexual, como descreve Wendy (1997), “O Beijo é uma imagem fascinante da perda
do eu, uma perda que todos os enamorados vivenciam”, e talvez pelo fato de retratar
esse momento íntimo e genuíno, é que esta obra seja tão encantadora e atraente.
Esta pintura é uma mistura de realismo e abstração, onde o fundo tem um
vazio dourado que transporta o observador para um mundo irreal. Pinheiro analisa o
quadro O Beijo em seu artigo:
“[...] acredito que em nenhuma outra tela o dualismo se apresenta de forma
tão intensa e explícita quanto nessa: nas linhas retas do manto masculino
em contraposição às flores e traços arredondados do manto feminino; no
contraste entre a pele clara da mulher e a pele escura do homem; entre a
atividade presente no ato de abraçar masculino em oposição à passividade
da entrega feminina [...]. Se à primeira vista, a tela parece apontar para a
possibilidade de ocorrência de um encontro perfeito entre duas pessoas,
ilusão que se estabelece no momento da entrega apaixonada, o detalhe
destacado por Klimt, que a um passo da entrega, efetivada sobre um
convidativo e inocente campo florido, abre-se um abismo sem fim,
demonstra que basta um pequeno deslize, um simples desencaixe que o
impossível da relação afetiva se faz, nos precipitando ao vazio” (PINHEIRO,
2008).
Toda essa representação simbólica pode ser compreendida através do
entendimento da mentalidade de Klimt e, de sua posição em relação à situação da
mulher na sociedade daquela época. Esta é, sem dúvida, uma das obras mais
investigadas de todos os tempos e há muitas especulações a seu respeito como, por
exemplo, sobre o casal retratado que muitos acreditam ser o próprio Klimt e Emilie,
sua amante, no entanto, o pintor tinha uma predileção por ruivas e retratou várias ao
longo de sua carreira podendo, a modelo de O Beijo, ser qualquer uma delas.
Considerações finais
Klimt sempre sofreu violentas críticas devido ao realismo de suas imagens
impregnadas de um erotismo explícito, no entanto, ao apropriar-se do estilo
bizantino, ele cobriu os corpos com adornos e, manteve o aspecto naturalista na
representação dos rostos, mãos e pés. O Beijo é uma obra de extrema importância
para a arte contemporânea, pois representa a ruptura com o conservadorismo, uma
afronta a moralidade da época e, a renovação da arte num período de busca da livre
expressão artística.
Nessas pinturas extremamente ricas, cobertas de brilhos dourados e
prateados, cores luminosas e movimento, os elementos alegóricos e o simbolismo,
característicos do estilo polêmico de Klimt, continuaram fluindo, porém com uma
beleza estética absolutamente deslumbrante. Enquanto os mosaicos de São Vital
retratavam o céu, Klimt representava através de suas obras o que para ele era
sagrado, seu paraíso sensual.
Notas
1 Art Nouveau é um estilo artístico que se desenvolveu entre 1890 e a I Guerra Mundial (1914-1918) na Europa
e nos Estados Unidos, espalhando-se para o resto do mundo.
2 Friso é uma faixa que divide uma superfície de parede geralmente na parte superior. Pode ser um relevo ou
ornamentação.
3 Os painéis pintados por Klimt para representas os cursos de Filosofia, Medicina e Jurisprudência foram
destruídos durante a I Guerra Mundial.
Referências
PROENÇA, Graça. História da Arte. 16ª edição. São Paulo: Editora Ática, 2005.
BECKETT, Wendy. História da Pintura. 1ª Ed. São Paulo: Editora Ática, 1997.
PINHEIRO, Nadja Nara Barbosa. Freud e Klimt em Viena “fin-de-siècle”: interfaces entre
psicanálise e arte. Cogito, vol.9, 2008. Disponível em < http://pepsic.bvsalud.org/>Acesso
em: 25/03/2012.
BENISSIMO. O Pintor Polêmico Gustav Klimt. Ícones. Disponível em
<http://www.benissimo.com.br/novosite/icones_de_estilo.asp?cod=37&tit=O+Pintor+Pol%EA
mico+Gustav+Klimt> Acesso em 25/03/2012.
ESCOLA, Brasil. A Arte Bizantina. História da Arte. Disponível em
<http://www.brasilescola.com/historiag/arte-bizantina.htm> Acesso em 25/03/2012.
CABO, Manan Terra. Klimt e a alteridade do feminino. III Encontro de História da Arte, s/n.
Disponível em <http://maccouto.sites.uol.com.br/klimt.htm> Acesso em 25/03/2012.
ON LINE, Folha. Biografia - Gustav Klimt (19862-1918), Fantasias Douradas. Coleção Folha
Grandes Mestres da Pintura. Disponível em <http://mestres.folha.com.br/pintores/20/>
Acesso em 25/03/2012.
BBC, Documentário. A Vida Privada das Obras Primas: Gustav Klimt – O Beijo (2007).
Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=mSrCqbw1bwg&feature=related> em
25/03/2012.