meu trabalho tem notoriedade
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meu trabalho tem notoriedade
ENTREVISTA “Meu trabalho tem notoriedade” Alçado ao patamar de referência após o ingresso na National Geographic e Magnum, David Alan Harvey mantém o foco nas ruas E 38 “Eu sou ambos: achado e perdido em um ímpeto simultâneo de sentimentos e necessidades primitivas. Eu pego a câmera e fotografo”. Foi por meio do seu livro Divided Soul que realmente conheci o fotógrafo norte-americano David Alan Harvey e foi quando este deixou de ser um nome desconhecido para ocupar um lugar de destaque na minha prateleira. Não precisaria de uma investigação aprofundada para reconhecer as características que o projetaram ao status de renomada referência quando o assunto em pauta é fotojornalismo, muito menos uma batalha de neurônios para elucidar as razões que motivaram a National Geographic e a prestigiada agência Magnum a recrutarem-no para um lendário time da cena fotográfica que continua sendo alvo Roberta Tavares Fotos: David Alan Harvey de inspiração e aspiração de tantos. E lá se vão cores, iluminação, composição, sensualidade, sutileza e mistério para enfatizar as nuances do cotidiano, a rotina sobrepondo o monótono, as interações geo-socioculturais, a naturalidade urbana como diferenciador de cultura, fluxo, comportamento. Nachtwey tem a guerra, Ansel Adams a paisagem, David Harvey tem as ruas. E com as ruas vêm as interrogações. E na procura de mais respostas, ele veio ao Rio de Janeiro para concretizar a fase final de seu projeto sobre uma cidade“que se comunica como nenhuma outra cultura o faz”. Do nome na capa de um livro, das mãos e olhos por detrás de obras obrigatórias para qualquer um que se intitule apaixonado por fotografia para o homem sentado na minha frente, simples, com sorriso largo, que atende com muito entusiasmo a cada pergunta. Eu acreditava que conhecia muito sobre David Alan Harvey até o momento em que ele me concedeu esta entrevista exclusiva para a Photo Magazine: Comovocêlidacomaideia,opesoemocionalepsicológicodeserumíconeda fotografiamundial?Apressãodeserobservado,aexpectativadecríticas,abusca dacriatividadeeinspiração,ocercode bajuladores,oconstantedesafiodemantercaracterísticasparasaciaropúblico ouaviciosacobrançadasuperação... Temosexemplosehistóricosdementese artistasbrilhantesquerecorremaalternativas(drogas,álcooleatésuicídio)aos limiteshumanos,comoaprópriapolêmica egeniosafotógrafaNanGoldindefendia. Comofuncionaabagagemdosucessono seu processo criativo? Eu deixo a bagagem do sucesso de lado e faço do meu processo criativo o mais leve possível, ao passo que consigo carregá-lo sem ser lesionado pelo mesmo, sem sofrimento, sem angústia. O processo criativo em si me interessa, esse é meu foco, não a repercussão do produto final. Caso contrário, ficaria escravo dessa expectativa, ficaria preso na ideia de receptividade ou não receptividade e acabaria perdendo a identidade como dono do processo, manipulando para aceitação ou perdido procurando maneiras de me libertar. Isso explica as drogas, álcool, suicídio. Como fotógrafo e pessoa criativa, você não deve se contentar com um plano singular. Você é o mais importante, você primeiro, fazer e reconhecer aquelas fotos como legado, seu melhor, como sua assinatura e libertá- David Alan Harvey: fidelidade ao processo criativo. Na página ao lado, imagem do ensaio Living Proof, realizado no Bronx em 2007. Abaixo, imagem de Divided Soul feita na Praia do Forte, Bahia, em 2000 39 Acima, imagem feita em Cuba em 1999. Abaixo, mais uma do ensaio Living Proof. Na outra página, mais uma cena cubana las ao público. Na verdade, o meu trabalho tem notoriedade. Gosto dessa palavra. Não sucesso, pois cria um peso maior que qualquer capacidade intelectual psíquica humana é capaz de suportar. 40 Continuandonestasensívelabordagem sobre egos: Como equilibrar a linha tênueentreserumdosgrandesídolos dafotografia,comtodooegocentrismo queseriaesperado,eDavidAlanHarvey,um simplesmoradordasossegadaCarolina doNorte,passeandocomumacâmera nopescoço,batendofotosdevizinhose estranhosemseusrespectivoscotidianos, tomandocontadosseusgatos,preparandofogueira,reverenciandoacadamanhã as ondas e o silêncio? Na verdade, essas palavras, ídolo, ícone, me assustam. Criam muita grandiosidade. Fico feliz pelo fato das pessoas reconhecerem meu trabalho e darem a ele atenção, reflexão e respeito. Sei que é difícil acon- tecer e quando acontece é o auge que um fotógrafo pode atingir. Sou agradecido, quero retribuir o respeito, por isso venho conquistando amigos, sejam eles em galerias, palestras, workshops, seja em pubs, festas, mas principalmente sejam eles pessoas que fazem parte do meu cotidiano, da minha história, pois são essas pessoas e momentos que me inspiram. Minha fotografia é cheia delas. A autenticidade das pessoas em seus meios, a naturalidade, as raízes. Eu tento ser autêntico com meu meio, com minhas raízes, seja na Carolina do Norte, na tranquilidade e paz do meu lar, seja em compromissos de trabalho e com a minha conturbada agenda. Hoje,oquesignificaserumfotógrafo daMagnum?Oquemudoudesdeoanode 1993, no qual você foi agenciado? Em um rápido paralelo, a Magnum continua a mesma: fiel em sua ética, estrutura e objetivos desde quando entrei e desde quando me interessei por ela. Ainda é uma agência conceituada por investir e dar condições aos associados de trabalhar em projetos que acompanharão a História e, consequentemente, levarão seu nome junto. Legado, acessibilidade, visibilidade, influência, estrutura e apoio... Essa continua sendo a Magnum. Considero-a o pé de entrada para demais agências abraçarem o fotojornalismo, se unirem em torno de informação, negócios e estímulo. O que mudou é que ela cresceu e se ajustou, tem criado ainda mais canais audiovisuais, o desenvolvimento de multimídia, novas iniciativas para se destacar em um mercado difícil, com a transição entre publicações e a nova era da tecnologia e Internet. Fazer justiça a um nome poderoso na economia atual não é fácil. Eu entendo as motivações de fotógrafos em fazer parte dessa agência. Eu só tenho que agradecer, além do que fiz muitos amigos, talentosos, com interesses comuns, comprometidos com o alto padrão e o objetivo do fotojornalismo. Dogarotinhoreclusodomundoexteriordevidoàpólioaosseisanosdeidade paraentãoviragrandeironia:faculdadedefotografia,NationalGeographic, Magnum.Umfotógrafoconsagrado pelasuavisãodasruas,pelaobsessãoem interagireentenderomundoexterior. Seconcordarmoscomoditadodequea vidaéfeitadeironias,essapoderiaser consideradaamaiorironiadasuavida? Aquelefatoláatrás,aquelelimitado espaço,cortinas,aquelepequenoburaco queteconectavaaomundo...Alicomeçaria a reviravolta na sua vida? Certamente a maior e melhor ironia da minha vida. Claro que na época não entendia dessa forma, mas hoje não tenho dúvida. Foi ali o pontapé inicial. Todo meu senso de percepção, curiosidade, a necessidade do mundo exterior, a necessidade da vida lá fora, de entender o medo, as angústias que vão além do entendimento, a liberdade e a dimensão de possibilidades começaram ali, durante aquele isolamento por dois meses. Eu devia isso a mim, segui esses instintos. Fui afortunado com minha mãe, Mariana, que durante esses dois meses viveu em desespero e lágrimas e depois passou a lutar e me ajudar a construir esse senso de liberdade, de escolhas, caminhos e me apoiou como ninguém quando me decidi por fotografia. Eu precisava da fotografia tanto quanto de me sentir naquele mundo do lado de fora. “ Divided Soul é o trabalho que vai sempre me preceder 41 DividedSoulparecemarcarsuaassinatura nocenáriodafotografiacontemporânea. Foialiquevocêdefatoadotouacultura espanholacomoumadasgrandesbases paraseutrabalho,especialmentedepois deseufascínioexibidoemCuba?Comose deuessarelaçãocomasparticularidades latinaseamoldagemdoqueseriareconhecido como estilo David Harvey? Divided Soul é o trabalho que vai sempre me preceder, é ainda o trabalho que as pessoas me reconhecem e fico satisfeito com isso. Foi um relato de 30 anos de viagens, pesquisas, artes, como pintura e literatura, sobre a cultura hispânica, desde a História até o seu impacto atualmente, com migração dos povos hispânicos nas 42 Américas. Comecei com a publicação de Cuba, quando percebi que devia um maior aprofundamento diante de tudo que sabia e de toda a extensão dessa rica cultura e povos. O resultado faz parte da minha convivência e história nesses lugares. Tive sorte que esses lugares e meu tema me forneceram as cores, sensualidade, a criatividade em iluminação, passaram a dar personalidade ao meu estilo de fotografia. Equalsuaposiçãosobreestilo?Vocêestá maisparaotimedeSebastiãoSalgado, quetendeapriorizarumalinearidade, fidelidadeecomprometimentocomascaracterísticasqueoconsagraramouvocê estámaisparaSallyMann,queseadapta aotempodela,àsnecessidadesdela,eà liberdade de aspirar outros rumos? Eu sou admirador de ambos, eles sabem, uma vez que os dois são amigos próximos. O que eu gosto em ambos é que eles são fiéis ao que querem e são felizes dessa forma. Salgado continua deixando a marca dele. Ele preza por um estilo que o identifica em quaisquer livros que você tenha em mãos. Você logo sabe, é Salgado. Ele continua com aquele formato e estilo e não tende a mudar, pois é o que o inspira e intriga e haverá sempre um assunto, um momento na História urgindo a assinatura do Salgado. Mann age pelo “agora”, por questões e sensos que ela sente e a necessidade de expressão. Ela não tem medo de aceitar novas aventuras, sair de um plano e mergulhar em outro. As crianças e filhos que foram a inspiração inicial já cresceram, os personagens mudaram, as perspectivas mudaram, ela dá liberdade para o coração, olhos e seu senso de sensibilidade e impacto se focarem e serem inspirados por outros caminhos. Tem que se ter muita coragem para isso. Por isso me identifico mais com Mann. Cores,composição,sensualidade,cotidiano,fotografiaderua.aspessoassempre descrevemseutrabalhoseguindoquase queintuitivamenteessamesmasequência. Então,euolhoparaolivroTellitlikeitis, araíz,oinício,epossovermais,algomais intimista.Então,qualseriaasualeitura, oquevocêadicionariaaessasequência? Temalgoamaisquenãoestamosvendo? Minha leitura: olhar para fora da caixa, buscar elementos além da minha esfera, cultura, do que me foi ensinado. É o que me inspira. As cores, composição e todas essas características citadas são veículos. Eu concordo. Eu acrescentaria beleza, pois pode perceber que todos nas minhas fotos, mulheres, homens, idosos, ricos, personalidades, gângsteres, todos aparecem belos. As mulheres, a presença feminina é muito expressiva em meu trabalho. Identificação, fotografia continua sendo o meu espelho, me identifico e me reconheço ali dentro. Evocêacreditaquehajaadistânciacerta entrepessoaleprofissional?Pareceser tãodifícilestabelecerolimiteentreo nãomuitopertoeonãomuitolongeou onãomuitosobrevocê,masaquantidade certaparaconferirsuaidentidadeepersonalidade.qualamedidacerta?Quantas vezesumfotógrafotemquesefazeressa perguntaequantasvezeselesefrustrará não encontrando a resposta? Assim que você pega na câmera, essa pergunta deve imperar. Sempre. A maneira que você vai encontrar essa resposta determina o grau de profissionalismo, a maneira de expressar determina o fotógrafo que é. Isso diferencia fotógrafos bons de fotógrafos excepcionais. Quem consegue ter isso em balança vai estar entre os 10% representados pelos excepcionais. Não tem uma receita definida. Ninguém, profissional algum conseguiria explicar. “ Éfácilencontrarbons fotógrafos,maséraro quebonsfotógrafosse tornem ótimos ” Tem que haver uma conexão da maneira que seja, seja muito próximo do elemento humano do projeto, como é o caso do Bill Allard e o qual eu também prefiro, ou mais reservado, sem contato caloroso, íntimo ou profundo, como preferido por James Nachtwey, Robert Frank e Eugene Richards. Todos estes são fotógrafos brilhantes. O coringa não é estar mais próximo ou optar por uma distância, mas se conseguir encontrar uma balança, uma conexão que fale alto na fotografia, a fotografia aconteça, é quase orgástica a sensação, e as pessoas se interessam. Jáfalamosdeexposição,identidadee agoradeaspirações.FalemosdeBurn,a revistavirtualquevocêeAntonKusters criaram,direcionadaaosfotógrafos emergentes,incentivandoadiscussão, revisão,atroca de experiênciasobre fotografiadocumental.Vocêconsidera esseofeitoquedefiniriasuatrajetória nafotografia?Opalcodesuasaspirações pessoaiseprofissionaisnestemomento? Burn veio para resumir minha carreira e todas as minhas ideologias como fotógrafo, que seriam valorizar temas que instiguem minha curiosidade a ponto de se transformarem em interesse e inspiração, criar meios de exposição, discutir desde projetos a outros assuntos recorrentes à profissão e, mais importante, estar aberto a aprender e ensinar. Com a Burn tive a oportunidade de retribuir todos aqueles que no meu começo de carreira tiveram direta e indiretamente influência e me ajudaram a atingir o clímax do meu potencial. Com a Burn quero atingir os fotógrafos emergentes, dar assistência, advertir, analisar projetos pessoais juntos e, eventualmente, criar novos caminhos. É também um espaço que acolhe críticos, fotógrafos renomados, curadores, toda uma indústria que conhece, que se preocupa e faz da Burn uma comunidade tão respeitada. Lembrodeterlidoque“édifícilencontrarbonsfotógrafos.NationalGeographicestásempreprocurando.Magnum Ao lado, imagem de Divided Soul, captada em Trinidad, Cuba, em 2003. Acima, foto feita na capital cubana em 1999 idem,masédifícilalgoespetacularsurgir namesa”.Essaéumadasfrasesmaisimpactantesquejámedeparei,especialmente vindadeumprofissionaltãoengajado naáreaepresumindoaquantidadede fotógrafosedeprojetosqueaparecem. Vocêapontaalgumarazão?Fotógrafo bom, mas que não está pronto ainda paraopróximonívelpodeserumadessas razões?Vocêpoderiacitartrêscaracterísticasqueseparamumótimofotógrafo de um fotógrafo qualquer? Mas é verdade. Sou feliz por fazer parte das duas maiores instituições voltadas, cada qual a seu jeito, ao fotojornalismo: Magnum e National Geographic. E essa é a constante busca de ambos, eles recebem milhares de portfolios e submissões por semana, mas, ao fim delas, talvez um ou nenhum irá realmente chamar a atenção. O nível da fotografia, tecnicamente e em nível contextual, evoluiu muito. É fácil 43 Divided Soul, Tegucigalpa, Honduras, 1982 encontrar bons fotógrafos, mas é raro que bons fotógrafos se tornem ótimos. Por quê? As razões podem ser muitas: empatia, falta de olhar crítico, egocentrismo, teimosia, falta de identidade, de personalidade, de assinatura, falta de confiança, de paciência. Um fotógrafo que se destaca, que tem diferencial, vai além de fotos e técnicas. O mercado, o editor ao lado, o público sabem e sentem isso. Sobre as três características, eu apostaria em motivação, personalidade, constante aprendizado e interesse. Quanto a isso, o Brasil está bem representado. A começar pela obra sublime de fotógrafos como Salgado e Miguel Rio Branco, e alguns projetos e estudantes que venho conhecendo. 44 Para quem jáveio dezvezes ao Brasil, doiscarnavais,concretizoutrabalhoem Salvador,fasefinaldemaisumlivrosobre oRio,oqueopaístemquetefazsempreretornar?VocêacreditaqueoBrasilsejaum daqueleslugaresdoqualsuacâmeranuncasesentirásatisfeitaehaverásempreum mistérioamaisesperandoporseusolhos? Definitivamente… Entre idas e vindas ao Brasil, venho acumulando dez anos. O que me trouxe aqui foi minha latente curiosidade sobre cultura latina, que acabou parte representada em Divided Soul. Vim para explorar uma cultura distante da minha, estar no meio de um tornado de emoções, uma explosão de cores, paixão, contrastes, sangue, fogo, os hábitos simples saudando a simplicidade da natureza humana. Vim procurando sinais disso. Felizmente, encontrei todos esses elementos em estado natural de exposição. Encontrei poesia, sensualidade, a hospitalidade, pessoas genuínas, um povo de verdade. Hoje, preciso estar perto desses elementos, porque se você não os entende, se não se mistura com eles, você está fora da linguagem. Está fora do lado real e emocional. Brasil é a linguagem que comecei a compreender, diversos lados unidos por uma convergente: beleza. Brasil é a linguagem que vai falar comigo e com minha câmera para sempre. Festadegalaemhotelcincoestrelasem Copacabana,funkemfaveladoRiona noiteseguinte,carnavalderuanaLapa, acessovipadesfiledasescolasdesamba emcamarote,pubsrodeadosdeintelectuais,artistasedesignersenodiaseguinte contratandoumambulantedapraiade Ipanemaparatrabalharnasuaequipe.Os contrastesquemoldaramsuaestadiano Riopoderiamserconsideradosaideia-chavedotrabalhoquevemrealizandoaqui? Não há lugar como o Rio de Janeiro, ou outro lugar onde me sinta mais à vontade, seja como fotógrafo, seja como homem. Por isso não demorou para o projeto do livro tomar seu curso natural. Depois de duas visitas ao Rio com esse propósito e mais uma programada para maio deste ano, terei quatro meses trabalhando nas interações dos cariocas, tanto sociais, físicas, religiosas, cotidianas, ambientais, culturais e econômicas. Todas essas interações vêm com prós e contras, clichês, contrastes, originalidade. Não bani nada, quero esse Rio que ferve, que chora, que sangra, que é visceral, que é romântico. Quero ser fiel ao Rio como o Rio tem sido fiel ao meu projeto. 45