tecnologia alternativa para a produção sustentável de camarões

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tecnologia alternativa para a produção sustentável de camarões
Revista Tecnologia & Inovação Agropecuária
TECNOLOGIA
Junho de 2008
ALTERNATIVA PARA A
PRODUÇÃO SUSTENTÁVEL DE CAMARÕES
MARINHOS EM PEQUENA ESCALA
Julio V. Lombardi1
1
Biólogo, Doutor, Pesquisador Científico, Instituto de Pesca - APTA, Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em
Recursos Hídricos. [email protected]
RESUMO
O presente estudo foi realizado em recente projeto desenvolvido pelo Instituto de Pesca APTA /
SAA -SP, sendo os objetivos centrados na geração de tecnologia alternativa para a promoção da criação de
camarões marinhos, dentro dos moldes de sustentabilidade. Verificou-se que a utilização de gaiolas
flutuantes, instaladas diretamente no mar, pode ser uma técnica bastante interessante para
implementação de pequenos empreendimentos de carcinicultura no Litoral Paulista. Esta técnica
dispensa a ocupação de solos e, conseqüentemente, evita a destruição de manguezais e/ou a compra de
grandes extensões de terras, que geralmente são escassas ou mesmo bastante valorizadas devido à
ocupação imobiliária na costa litorânea. A utilização de uma espécie nativa de camarão-rosa
(Farfantepenaues paulensis) foi incluída neste estudo, para garantir a segurança ecológica da atividade. Ao
mesmo tempo, técnicas alternativas de manejo alimentar foram testadas com o intuito de minimizar a
poluição do ambiente, muitas vezes gerada pelo uso de ração no manejo alimentar. Neste contexto,
procurou-se testar um alimento de fácil obtenção na região, integrando outra atividade já desenvolvida
com sucesso pelos produtores locais. Assim, o fornecimento da carne do mexilhão Perna perna
demonstrou ser uma excelente alternativa para alimentação dos camarões, oferecendo condições de
redução do custo operacional, redução da poluição ambiental e adequação à inserção do produto final
nos conceitos de produção orgânica. Concluiu-se que o emprego desta tecnologia de criação de camarões
marinhos pode oferecer condições para o desenvolvimento da atividade de forma sustentável, em vários
aspectos, sejam eles ambiental, social ou econômico.
Palavras-chave: camarões, gaiolas flutuantes, mexilhões, sustentabilidade.
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INTRODUÇÃO
A criação de camarões marinhos, atividade
tecnicamente conhecida como carcinicultura marinha,
tem se expandido rapidamente por todo o mundo,
especialmente em áreas tropicais. As instalações do
sistema tradicional de criação de camarões incluem a
construção de viveiros, através de escavações feitas
diretamente no solo. Este procedimento gera o aspecto
negativo mais criticado pelos ambientalistas, que
condenam a prática da carcinicultura, devido à
ocupação e, muitas vezes, à destruição de áreas
estuarinas ligadas ao ecossistema manguezal, cuja
importância ecológica já é bem conhecida, podendo-se
destacar, principalmente, a sua atuação como berçário
natural para espécies aquáticas marinhas e dulcícolas.
Conseqüentemente, a expansão da atividade sofre
algumas limitações. Além disso, a alta valorização de
terras na costa litorânea, gerada pela ocupação
imobiliária, tem se constituído outro fator limitante à
instalação de grandes empreendimentos de
carcinicultura, especialmente no Litoral Paulista.
Técnicas alternativas de cultivo podem se
constituir em importante estratégia para o
desenvolvimento sustentado da aqüicultura em geral.
Beveridge (1996) aponta os sistemas de tanques-rede e
gaiolas como excelentes alternativas para a criação de
organismos aquáticos, principalmente para a criação de
pei x es, disp ensa n do a ocu p açã o de solos.
Recentemente, nota-se um alto grau de interesse da
comunidade científica em adaptar esta técnica para a
sua utilização na carcinicultura. No Brasil, as principais
pesquisas realizadas com manejo de camarões em
gaiolas foram relatadas por Wasielesky-Jr et al. (1999) e
Lombardi et al. (2006), demonstrando fortes indicativos
para a utilização desta técnica em escala comercial.
A mitilicultura (cultivo de mexilhões) é uma
atividade bastante difundida nas regiões sul e sudeste
do Brasil, particularmente nos Estados de Santa
Catarina e São Paulo, localidades igualmente propícias
para a criação de camarões em gaiolas flutuantes.
Segundo Marques et al. (1998), a carne do mexilhão
Perna perna constitui uma fonte protéica de alto valor
nutritivo. Desta forma, este organismo poderia ser
utilizado na alimentação de camarões, uma vez que o
custo operacional observado para a produção de
mexilhões seria, supostamente, inferior ao custo
observado para a aquisição de ração comercial.
A agregação de valores, bem como a
diferenciação da categoria de produção, são fatores que
podem viabilizar economicamente os pequenos
empreendimentos dentro dos diversos segmentos do
agronegócio.
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A agricultura orgânica é um bom exemplo disso e
vem se destacando como uma excelente forma de
adaptação, facilitando aos pequenos produtores rurais
a colocação de seus produtos no mercado. As técnicas
de produção orgânica são perfeitamente extensíveis ao
âmbito da aqüicultura e podem igualmente servir ao
propósito de inclusão de pequenos empreendedores na
disputa pela melhor adequação de seus produtos.
Neste contexto, a equipe de pesquisadores da
APTA/Instituto de Pesca/SAA-SP gerou,
recentemente, uma tecnologia alternativa para a criação
de camarões marinhos de forma a promover a
atividade, em pequena escala, dentro dos moldes de
sustentabilidade, oferecendo, ainda, a possibilidade de
agregação de valor ao produto final, por vias de
inclusão do mesmo nos conceitos de produção
orgânica.
DISCUSSÃO
Estrutura básica para a criação de
camarões em gaiolas
Por uma questão de sustentabilidade ecológica, o
estudo global foi realizado com a espécie nativa
camarão-rosa (Farfantepenaeus paulensis - figura 1), cujo
detalhamento científico das técnicas de manejo
encontra-se descrito em Lombardi et al. (2008). Em
linhas gerais, a tecnologia gerada revelou a alta
viabilidade do uso de gaiolas flutuantes na criação
deste camarão (figura 2), permitindo a utilização de
áreas descomprometidas com a ocupação de solo. Além
disso, a possibilidade de realização em pequena escala,
integrada com outras atividades já realizadas por
maricultores (figuras 3 e 4), pode gerar um estímulo de
acesso aos pequenos produtores e aos pescadores
artesanais, o que sinaliza para uma boa alternativa de
melhoria da baixa condição socioeconômica das
populações caiçaras, que geralmente vivem da
exploração dos escassos recursos naturais da pesca
artesanal.
A tecnologia gerada permite a criação de
camarões em três fases distintas, que totalizam, no
máximo, seis meses de duração: fase 1 - aclimatação (15
dias), fase 2 - berçário (45 dias) e fase 3 - recria (100 a 120
dias). O sistema assegura uma produtividade média
anual ao redor de 2,5 kg de camarões para cada metro
quadrado de área ocupada por gaiolas.
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Figura 1. Camarão-rosa (Farfantepenaeus paulensis)
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Figura 4. Cordas utilizadas para fixação de mexilhões nas operações
de mitilicultura.
Apesar das dificuldades encontradas nas
tentativas de comparações entre o sistema de produção
em gaiolas e o sistema tradicional de produção, é
possível afirmar que a produtividade em gaiolas chega
a superar, em até dez vezes, aquela observada em
viveiros escavados em solo natural.
Considerações sobre a técnica de
manejo alimentar alternativo
Figura 2. Aspecto geral das gaiolas flutuantes desenvolvidas para a
criação de camarões marinhos
Figura 3. Empreendimento de mitilicultura (cultivo de mexilhões)
instalado no Litoral Norte Paulista
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O estudo incluiu a comparação da performance
da criação de camarões alimentados basicamente com
duas dietas distintas: dieta tradicional = ração comercial
peletizada e dieta alternativa=carne de mexilhão
processada (pré-cozida).
No preparo da dieta alternativa, os mexilhões
passaram por um tratamento de pré-cozimento a fim de
facilitar a sua retirada da concha. Este processo foi
selecionado em testes anteriores, que permitiram a
constatação de que o pré-cozimento promove uma
melhor aglutinação da carne dos mexilhões, o que
colabora para evitar as perdas por fragmentação, que
inevitavelmente ocorreriam com maior intensidade,
caso o alimento fosse fornecido na forma in natura. Uma
bandeja de alimentação também foi desenvolvida para
implementar esta técnica, permitindo o melhor
aproveitamento do alimento oferecido aos camarões,
evitando perdas e minimizando a poluição ambiental.
As análises da composição centesimal realizadas
nos alimentos-teste (carne de mexilhão e ração
comercial) revelaram que, do ponto de vista nutricional,
a ração comercial é superior à carne do mexilhão,
especialmente no teor de proteína bruta: 34% e 19%,
respectivamente.
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Apesar disso, os camarões alimentados com
a carne de mexilhão responderam de maneira
mais positiva ao crescimento, superando aqueles
alimentados exclusivamente com ração. Desta
forma, o manejo alimentar alternativo pôde ser
considerado como mais produtivo, resultando
em maiores valores médios de produtividade:
2,89 kg/m 2 ano contra 1,73 kg/m 2 ano (manejo
alimentar à base de ração comercial).
As taxas de conversão alimentar aparente foram
igualmente baixas para os dois tipos de alimento (ao
redor de 3:1), o que é uma característica comum,
geralmente observada no sistema de criação de
camarões em gaiolas. No entanto, o item alimentação é
o que mais contribui para o cálculo dos custos
operacionais na produção de camarões e, também neste
aspecto, o manejo alimentar alternativo demonstrou ser
mais interessante, pois os cálculos do custo operacional
revelaram valores de: 3,03 US$ por kg de camarão
(produzido com alimento à base de mexilhões), contra
4,08 US$ por kg de camarão (produzido com alimento à
base de ração comercial).
A atividade de mitilicultura já está bastante
difundida nas regiões mais propícias para a criação de
camarões. Portanto, seria procedente que os
mitilicultores utilizassem este recurso para integrar as
duas atividades, ou seja, cultivar mexilhões, também
com o propósito de subsidiar a criação de camarões.
Para isto bastaria uma pequena ampliação do número
de estruturas (cordas) destinadas à produção regular de
mexilhões, reservando-se esta pequena parte para o
manejo alimentar dos camarões. Este tipo de manejo
pode reduzir substancialmente o custo de produção de
camarões, tornando a tecnologia mais acessível aos
pequenos empreendedores. Além disso, a instalação de
cordas de mexilhões na periferia das gaiolas de criação
de camarões pode contribuir para a depuração orgânica
do ambiente, promovendo a sustentabilidade
ambiental, uma vez que os mexilhões são organismos
filtradores e podem absorver as partículas de restos de
alimentos, que porventura sejam carreadas para fora
das gaiolas de camarões.
A administração de alimentos artificiais em
sistemas de gaiolas ou tanques-rede vem sendo
duramente criticada, devido à dificuldade no controle
das sobras alimentares, o que pode gerar um aumento
da carga orgânica ambiental. Neste sentido, o estudo
contemplou a realização de um teste clássico de
atratividade, em que foi constatada a preferência dos
camarões pela carne do mexilhão (melhor percepção do
alimento, melhor aproximação e apreensão do mesmo).
Este aspecto nos leva a inferir que a utilização do
mexilhão como alimento de camarões proporciona
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menor risco de gerar sobras alimentares, podendo
contribuir substancialmente para a diminuição da
exportação de matéria orgânica para o ambiente,
conseqüentemente colaborando para a redução da
poluição da água.
Possibilidade de adequação do
produto aos moldes de produção
orgânica
A agricultura orgânica vem ocupando um espaço
cada vez mais crescente na produção de alimentos
diferenciados, cujos conceitos podem perfeitamente ser
estendidos à aqüicultura. A suspensão do uso de
produtos químicos e industrializados no manejo de
organismos aquáticos, especialmente a supressão do
uso de alimento artificial (ração comercial), é um fator
essencial para a adequação do produto final aos moldes
da aqüicultura orgânica. No entanto, algumas
particularidades do sistema orgânico de produção de
alimentos demonstram que esta prática pode ser mais
viável para empreendimentos que operam em escala
reduzida de produção. Este aspecto reforça a
possibilidade da utilização do manejo alimentar
alternativo (carne de mexilhão) como boa estratégia
para enquadrar o sistema de criação de camarões no
conceito orgânico de produção. Vale lembrar que o
baixo volume de produção, gerado nos sistemas
baseados em escala familiar, pode ser economicamente
compensado pelo alto valor alcançado na venda de um
produto classificado pela sua origem de produção
orgânica.
Este estudo também incluiu algumas análises de
parâmetros bioquímicos da musculatura dos camarões,
que indicaram uma ligeira vantagem do valor
nutricional do produto gerado através dos organismos
alimentados com carne de mexilhão, revelada pelos
melhores resultados nas composições de proteína,
gorduras e sais minerais, conferidas à carne do
camarão.
Da mesma forma, um estudo sensorial,
realizado com o público consumidor, demonstrou
que a alimentação alternativa, à base de carne de
mexilhão, conferiu ao camarão os melhores aspectos
organolépticos relacionados a cor (aumentando a
pigmentação da pele do camarão), odor (realçando o
aroma agradável e característico do produto) e sabor
(acentuando a sua palatabilidade). A figura 5 mostra
um aspecto geral do produto final, de acordo com os
diferentes tratamentos testados.
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MARQUES, H.L.A.; PEREIRA, R.T.L.; CORREA, B.C.
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brown mussel Perna perna (L.) cultured in Ubatuba,
Brazil. Aquaculture 169: 263-273.
WASIELESKY-JR, W.; POERSCH, L.H.; BIANCHINI,
A. 1999. Comparação entre a sobrevivência e o
crescimento do camarão rosa Farfantepenaeus paulensis
cultivado em gaiolas e cercados. Nauplius (Rio Grande),
7: 173-177.
Figura 5. Aspecto visual do produto final (camarões no formato de
filé), após testes com manejo alimentar. A = camarões alimentados
com ração comercial; B e C = camarões alimentados com mexilhões.
CONCLUSÕES
A tecnologia de criação de camarões em
gaiolas flutuantes revelou-se uma boa opção para o
desenvolvimento da atividade em pequena escala. O
manejo alimentar à base de carne de mexilhão
demonstrou ser uma alternativa bastante viável para
substituir o uso de ração comercial. Esta técnica pode
incrementar o retorno econômico, diferenciar e
agregar valor ao produto (classificação de produto
orgânico) e, ao mesmo tempo, enquadrar a atividade
dentro dos moldes de sustentabilidade ambiental,
social e econômica.
REFERÊNCIAS
BEVERIDGE, M.C.M. 1996. Cage Aquaculture. 2nd ed.
Fishing New Books, Oxford
LOMBARDI, J.V.; MARQUES, H.L.A.; PEREIRA,
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LOMBARDI, J.V.; MARQUES, H.L.A.; VIEGAS,
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Farfantepenaeus paulensis in cages using alternative
feeding management: A tentative approach for
promoting sustainable aquaculture in offshore areas.
In: Aquaculture Research Progress. Nakamura, T.K. (ed.).
Nova Science Publishers Inc. NY-USA, “in press”
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