Diante do Pai - A Prática do Lamento
Transcrição
Diante do Pai - A Prática do Lamento
SÉRIE DIANTE DO PAI A PRÁTICA DO LAMENTO ESTUDO Nesta nova série de estudos dos grupos pequenos da Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera, analisaremos algumas práticas da antiguidade que precisam ser relembradas e incorporadas à nossa espiritualidade contemporânea. Nesta primeira semana, aprenderemos um pouco sobre o lamento. 1 O que é o lamento? O povo de Deus no Antigo Testamento experimentou a presença de Deus por toda a sua história como um Deus Redentor, aquele que os salva da situação de opressão e aflição. Ao descrever os poderosos atos do Senhor e quem ele é para nós, o salmista valoriza o diálogo entre Deus e o homem. E neste diálogo são constantes e importantes dois elementos: tanto o clamor por livramento quanto a resposta de louvor e agradecimento pela libertação provida. O salmo de lamento é uma forma de expressão do povo de Israel que busca alcançar do Senhor Deus o livramento para a aflição sofrida.1 A pessoa que ora “clama das profundezas” (Sl 130:1) pela sua situação, pois reconhece que precisa do auxílio divino. Esta é a função principal do lamento: clamar pela compaixão do Altíssimo Deus. O lamento é uma prática antiga importante exatamente por causa disto. Ao apelar ao único tribunal que pode mudar sua situação problemática, o homem reconhece que o Senhor Deus é o Juiz todo-poderoso e Rei soberano sobre toda a terra. No lamento o suplicante se coloca em submissão à vontade divina, e se dirige a Deus de forma condizente com esta atitude. Diferentemente de outros povos que tentavam bajular seus deuses para que cedessem aos seus pedidos, os israelitas prestam um louvor comedido na ocasião de uma oração de lamento, muitas vezes relembrando ações divinas passadas de livramento.2 Além disso, ao reconhecer que precisa de Deus, o homem do Antigo Testamento se declara limitado e falho; ele não é idealizado como um herói infalível ou espiritualizado como um santo sem falhas. Muito pelo contrário, o ser humano é sempre descrito no relato bíblico como corrupto e rebelde após a Queda (Gn 3). A Bíblia é muito franca quanto aos lapsos e pecados dos personagens de suas histórias; não procura esconder seus erros. E é por meio destas falhas e artimanhas que nós acabamos complicando a vida (Ec 7:29) e gerando situações de perigo e sofrimento para nós mesmos e para os outros ao nosso redor. Devido a esta nossa condição de pecadores, torna-se parte da natureza de nossas vidas derramarmos nossos corações em lamentações diante do Criador. Do mesmo modo, é uma parte da natureza divina que o Senhor se preocupe com nosso clamor e ouça nossas vozes de súplica (Sl 116:1). É interessante observar que não há texto no Novo Testamento que proíba o lamento do povo de Deus, ou que sinalize que a fé em Cristo exclui o lamento do relacionamento pessoal com 1 Em português usamos a mesma palavra (lamento) para designar este lamento pela aflição e o lamento pelos mortos. Contudo, os termos originais são diferentes e estas orações cumprem papéis diferentes. O lamento pelos mortos olha para trás e chora a perda de uma outra pessoa; o lamento pela aflição chora pelos sofrimentos do próprio suplicante e olha para o futuro, para a salvação que só o Senhor pode prover. Outra diferença significativa é que, enquanto o lamento pelos mortos é dirigido à comunidade, o lamento pela aflição só é dirigido a Deus, o único que pode salvar. 2 Em geral, apenas nos salmos de lamento comunitário. 2 Deus. Jesus nunca repreendeu os que se aproximavam dele pedindo compaixão. Há instruções claras nas cartas apostólicas para que aprendamos a viver alegres e a sofrer com perseverança e resignação o sofrimento por causa da fé. Mas de forma alguma isto exclui o momento de derramar o coração diante do Pai e suplicar por sua misericórdia diante de nossas angústias. Infelizmente, o Cristianismo ocidental parece ter excluído esta antiga prática espiritual de seu ensino e de sua vida comunitária.3 A falta de reconhecimento dos revezes da vida e a imposição de um estilo de vida “sempre feliz” como norma para os cristãos levam à construção de uma vida espiritual distorcida e sem autenticidade. Precisamos, pois, recuperar a prática do lamento bíblico, pois é um meio importante de nos relacionarmos com Deus. À vista disso, é importantíssimo esclarecer que o lamento bíblico é muito diferente da murmuração.4 A murmuração apenas extravasa nossa autocomiseração, geralmente exagerando no tamanho dos problemas para ganhar a simpatia dos ouvidos alheios. Além de efetivamente não buscar uma solução à situação, a reclamação apenas fomenta a rebeldia contra o Criador. Já no lamento bíblico, a pessoa declara o problema de forma minimizada e mais genérica, confessa sua incapacidade em resolver o problema, suplica pela graciosa ajuda do Senhor e se dispõe a confiar nele e louvá-lo pelo seu amor. Assim, o lamento tem dentro da oração e da adoração do povo de Deus uma função de reabilitação daqueles que sofrem, levando-os a estarem mais perto de Deus. Ao praticarmos o lamento bíblico, aprenderemos a dar voz às nossas angústias de uma forma correta e significativa ao único que é capaz de intervir com eficácia em nossas vidas e nos dar a verdadeira paz. 2 Praticando o lamento A maioria dos salmos de lamento apresenta uma estrutura geral muito semelhante. Esta estrutura consiste em: invocação, queixa, petição, confissão de fé, e voto de louvor. O Salmo 13 é tido como o modelo clássico de um lamento individual por apresentar todas as partes da estrutura de forma simples e concisa. O salmo usa em seus poucos versículos mudanças dramáticas de discurso, indo de protestos indignados (vv.1-2) e petições ardentes (vv.3-4) a uma profissão de fé genuína (v.5) e a um compromisso de adoração (v.6). Veja o texto do salmo já estruturado nestas subdivisões na tabela da próxima página. Para aprendermos a praticar o lamento, vamos analisar brevemente cada subdivisão: Invocação: estabelece que a audiência do lamento é o Senhor Deus. O salmista já manifesta uma inquietação com a aparente ausência de ação de Deus. REFLITA: A quem você dirige seu lamento? Queixa: o salmista descreve sua angústia, mencionando 3 participantes (Deus, ele mesmo, e seus inimigos). Observe sua sinceridade em afirmar seu desapontamento com Deus! Deus já conhece o seu coração mesmo, porque então fingir que está tudo bem? Mesmo ao reclamar5 e expressar sua decepção, implicitamente o salmista declara que só Deus pode resolver suas inquietações e tristezas. Observe também que ele não fica cantando uma ladainha de problemas, mas é sucinto e genérico, de forma a não dar ocasião para a autocomiseração. 3 Talvez devido à influência do estoicismo grego, que buscava a impassibilidade (ou seja, a supressão de manifestações sentimentais) em face da dor ou de infortúnios. 4 Quanto à murmuração, o relato bíblico deixa claro que isto irrita muito ao Senhor (Nm 14:27; Jo 6:43; 1Co 10:10; Fp 2:14; 1Pe 4:9). 5 Note que ele não está murmurando, mas expressando genuinamente seus sentimentos diretamente ao Senhor, pois deseja que Deus atue em sua vida trazendo livramento. 3 REFLITA: E você? É sincero com Deus? Como você pode apresentar a Deus suas queixas sem murmurar? Petição: o salmista suplica claramente que Deus faça alguma coisa! Ele reconhece que sozinho não consegue dar conta da situação. Assim, como incentivo para que Deus ouça seus pedidos, ele lista como motivações a possibilidade de morrer devido à situação e de ser causa de gozação dos seus inimigos (que, indiretamente, também estarão gozando do Deus do salmista que foi incapaz de livrá-lo). REFLITA: Quais são seus pedidos ao Senhor Deus? Por que Deus deveria ouvir sua súplica? Apresente seus motivos! Texto bíblico do Salmo 13 Estrutura do lamento Invocação inicial 1 Para sempre te esquecerás de mim? Até quando esconderás de mim o teu rosto? Deus Queixa 2 Suplicante Inimigo Pedidos Petição 4 Olha para mim e responde, Senhor, meu Deus. Ilumina os meus olhos, ou do contrário dormirei o sono da morte; os meus inimigos dirão: "Eu o venci", e os meus adversários festejarão o meu fracasso. 5 Eu, porém, confio em teu amor; o meu coração exulta em tua salvação. 6 Quero cantar ao Senhor pelo bem que me tem feito. Confissão de fé Voto de louvor Até quando terei inquietações e tristeza no coração dia após dia? Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim? 3 Motivação Até quando, Senhor? Confissão de fé: o lamento bíblico não leva ao desespero, porque sempre conclui com uma declaração de confiança no poder e no amor de Deus. O salmista fala de seus problemas, mas seu olhar logo se volta novamente para quem pode prover o livramento desejado. Ele não foca as dificuldades, mas sim o seu Senhor. Numa expressão de fé no cuidado gracioso divino, ele se entrega nas mãos de Deus e aguarda com perseverança a manifestação dele em seu favor. REFLITA: Como você pode expressar ao Senhor que confia totalmente nele? Lembrese de incluir em suas orações uma declaração de confiança e espera em Deus. Voto de louvor: o salmista termina sua oração se comprometendo a louvar ao Senhor por aquilo que ele irá fazer na sua vida. Deus se agrada desta atitude de gratidão e de proclamação a outros daquilo que ele fez em nossas vidas (1Pe 2:9). Observe como a oração que se iniciou com um lamento agora termina com uma nota de esperança e vitória. O salmista faz a transição da dor e decepção para a alegria e confiança em Deus. Ele não está sozinho nesta luta, e agora pode mais uma vez seguir seu caminho renovado pela certeza de que o Senhor o ouviu e irá agir em sua vida com amor. 4 REFLITA: Você não precisa fazer “promessas” para obter algo de Deus. Mas o Senhor gosta de ver você expressando seu compromisso de adorá-lo e louvá-lo por tudo o que ele tem feito por você. Como e quantas vezes você tem expressado isto em oração? Lembre-se de que cada oração é uma expressão individual de seu relacionamento com Deus. Não existem fórmulas mágicas para resolver seus problemas. Mas, na medida em que você aprende a se expressar sinceramente diante do Pai em oração, sua vida será transformada de dentro para fora. Pode ser até que a situação que você está enfrentando não mude muito externamente, mas sua reação a esta situação e sua visão do que está acontecendo em sua vida certamente serão levadas a se ajustar com a visão que Deus tem de você e de sua vida. Concluímos o estudo hoje com a recomendação do apóstolo Pedro para que você lance sobre o Senhor toda a sua ansiedade, porque ele sempre cuida de você (1Pe 5:7)! BIBLIOGRAFIA BOSMA, Carl J. “A close reading of Psalm 13: daring to ask the hard questions”. Páginas 125-159 em LEDER, Arie C. (ed.). Reading and hearing the Word: from text to sermon. Grand Rapids: CRC Publications, 1998. SCHULTZ, Samuel J.; SMITH, Gary V. Panorama do Antigo Testamento. Curso Vida Nova de Teologia Básica v.2. São Paulo: Vida Nova, 2005. WESTERMANN, Claus. Praise and lament in the Psalms. Atlanta: John Knox, 1981.