Territórios Urbanos e Políticas Culturais
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Territórios Urbanos e Políticas Culturais
Caderno especial.p65 1 18/10/04, 13:17 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Naomar Monteiro de Almeida Filho Reitor FACULDADE DE ARQUITETURA Antonio Heliodorio Lima Sampaio Diretor PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO Eloísa Petti Pinheiro Coordenadora CADERNOS PPG-AU/FAUFBA Número Especial Territórios Urbanos e Políticas Culturais Ana Fernandes Paola Berenstein Jacques Editoras Damile Menezes (apoio) Francisco de Assis da Costa Paola Berenstein Jacques (coordenação) Núcleo de Apoio à Produção Editorial - NAPE Beneficiário de auxílio financeiro CAPES Brasil Programa de Cooperação Universitária CAPES/COFECUB Projeto nº 440/04 (Biênio inicial 2004-2005, renovável para 2006-2007) CAPES - Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior COFECUB - Comité Français dÉvaluation de la Coopération Universitaire avec le Brésil Caderno especial.p65 2 18/10/04, 13:17 Ano II número especial 2004 COFECUB Caderno especial.p65 3 18/10/04, 13:17 Francisco de Assis da Costa Capa Alana Gonçalves de Carvalho Projeto Gráfico e Editoração Editora da Universidade Federal da Bahia Apoio Editorial Biblioteca Central UFBA Cadernos PPG-AU/FAUFBA / Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. - Ano 2, número especial, (2004) - Ana Fernandes, Paola Berenstein Jacques (Org.). - Salvador : PPG-AU/FAUFBA, 2004v. : il. 110 p. Semestral. ISSN 1679-6861. 1. Arquitetura Literatura científica Salvador (BA). 2. Urbanismo Literatura científica Salvador (BA). 3. Universidade Federal da Bahia Pós-Graduação. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. CDU 72(813.8) CDD 720.098142 Caderno especial.p65 4 18/10/04, 13:17 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 7 PROJETO DE PESQUISA 11 EQUIPE 19 ARTIGOS Paola Berenstein Jacques ESPETACULARIZAÇÃO URBANA CONTEMPORÂNEA 23 Lilian Fessler Vaz A CULTURALIZAÇÃO DO PLANEJAMENTO E DA CIDADE novos modelos? 31 Marcia SantAnna A CIDADE-ATRAÇÃO Patrimônio e valorização de áreas centrais no Brasil dos anos 90 43 Carmem Beatriz Silveira O ENFOQUE URBANÍSTICO-CULTURAL NO PLANEJAMENTO A PARTIR DA DÉCADA DE 1980 os projetos de Revitalização Urbana na cidade do Rio De Janeiro 59 Marcia Noronha dos Santos Ferran ATUANDO NA MARGEM Projetos culturais participativos nos suburbios do rio e de Paris 73 Ana Clara Torres Ribeiro ORIENTE NEGADO cultura, mercado e lugar 97 Caderno especial.p65 5 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 6 18/10/04, 13:17 APRESENTAÇÃO Esse número especial dos Cadernos do PPG-AU/FAUFBA marca o início do acordo de cooperação universitária CAPES/COFECUB, centrado na questão Territórios Urbanos e Políticas Culturais. Reúne, assim, uma versão resumida do projeto que lastreia o trabalho conjunto de professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação do Brasil e da França, e textos já produzidos por seus participantes brasileiros, que enfocam diferentes abordagens e situações empíricas do tema/objeto de interesse. Por um lado, comparece a crítica aos processos contemporâneos de espetacularização das cidades, seja nos modos de intervenção, seja no próprio âmbito do planejamento, do urbanismo e da preservação. Paola Berenstein Jacques percorre algumas idéias de não-cidade cidades-museu ou cidades-genéricas para, contrapondo-se a elas, propor estratégias de contra-espetacularização, através do popular e do espaço público vivificado. Lilian Fessler Vaz historia o processo de redução dos horizontes do planejamento urbano a sua vertente menos incerta do projeto urbano, constatando a crise do moderno e se interrogando sobre o papel do marketing, da imagem e das chamadas identidades locais. De outro lado, experiências concretas em cidades brasileiras e francesas são analisadas, possibilitando um mergulho empírico na produção cultural de nossas cidades hoje. Márcia SantAnna nos faz percorrer as políticas patrimoniais dos anos 1990 em três áreas centrais brasileiras (Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo), analisando tanto o papel das diferentes instâncias institucionais por elas responsáveis, como os processos de deslocamento dos centros na dinâmica urbana contemporânea, o lugar dos diferentes usos do território turismo, cultura, habitação, negócios na reproposição de centros ou ainda o esvaziamento do próprio conceito de patrimônio na produção da chamada cidade-atração. A força dos homens lentos e a experiência cotidiana são os pontos de partida da análise que faz Carmen B. Silveira sobre projetos de requalificação no Rio de Janeiro, caminho por ela vislumbrado enquanto possibilidade de confluência entre revitalização urbana e desenvolvimento urbano. A experiência das Lonas Culturais no Rio de Janeiro e das Friches Culturelles em Aubervilliers, abordada por Márcia N. S. Ferran, traz à luz interessantes experiências de produção de novos territórios de ação artístico-cultural e de exploração de novas possibilidades de alteridade nessa produção. Por fim, reinvindicando a reinvenção do mercado, através dos signos de solidariedade, sociabilidade e sabedoria, Ana Clara Torres Ribeiro nos defronta com alternativas ao perverso processo de globalização, de forma a que os vínculos entre 7 Caderno especial.p65 7 18/10/04, 13:17 espaço público, cultura, natureza, linguagem e mercado possam plenamente se manifestar, expandindo as fronteiras da vida coletiva e espontânea dos espaços urbanos e fazendo emergir oportunidades criativas, insubordinadas e disruptivas. Crítica, experiência e utopia nos parecem caminhos indispensáveis à constituição de outros territórios urbanos Ana Fernandes 8 Caderno especial.p65 8 18/10/04, 13:17 PROJETO DE PESQUISA Caderno especial.p65 9 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 10 18/10/04, 13:17 TERRITÓRIOS URBANOS E POLÍTICAS CULTURAIS Programa de Cooperação Universitária CAPES-COFECUB Biênio 2004/2005 O projeto Territórios urbanos e políticas culturais representa a consolidação, e também um novo desdobramento, de uma colaboração já existente entre professores-pesquisadores brasileiros (PPG-AU/UFBA, IPPUR e PROURB/UFRJ) e franceses (CNRS, Universidade de Paris e Universidade de Bordeaux) na área de ensino e pesquisa. A nova proposta - que parte do intercâmbio já iniciado - visa ampliar o escopo dos trabalhos, dar sistemática a essa cooperação interinstitutional (nacional e internacionalmente) e também envolver um número maior de pesquisadores, entre professores doutores e doutorandos, atuando sobretudo no aperfeiçoamento docente e na formação de alunos da pós-graduação. A parceria entre UFBA e UFRJ também permite que os laços de cooperação acadêmica entre os programas de pós-graduação nacionais envolvidos (PPG-AU em Salvador, IPPUR e PROURB no Rio de Janeiro) se desenvolvam. Pretendemos explorar várias dimensões do campo das relações entre urbanismo e cultura, entre elas o papel que a cultura vem desempenhando nos processos de revitalização urbana, e, em particular, analisar as políticas culturais, as suas relações com os planos, projetos e as políticas urbanas, e suas consequências sociais. Para melhor explorar o campo de relações entre urbanismo e cultura, nos centraremos nas recentes transformações que colocam as cidades contemporâneas no contexto da espetacularização e da culturalização urbana. A partir de uma abordagem interdisciplinar e crítica, nos indagamos principalmente sobre alternativas de inclusão para se tentar escapar da gentrificação (expulsão da população de baixa renda) geralmente resultante desses processos urbanos. A interface entre políticas urbanas e políticas culturais parece estar dominada hoje pelos processos de revitalização urbana nos quais a cultura é usada como estratégia principal, em que se destacam equipamentos culturais monumentais em primorosos espaços públicos. Potencializados por eficiente marketing, tornam-se casos espetaculares e paradigmáticos. Decorrentes deste uso primordialmente econômico da cultura, seus efeitos já vem sendo criticados. Outras experiências de natureza participativa buscam corrigir desigualdades e democratizar o acesso às oportunidades culturais. A provisão da cultura para as populações excluídas se tornou um desafio fundamental nas políticas culturais e urbanas. É este campo que 11 Caderno especial.p65 11 18/10/04, 13:17 nos propomos a investigar. Visamos o conhecimento do universo contemporâneo do uso prioritariamente social da cultura nas políticas urbanas, suas dimensões teóricas e empíricas, seus impasses, conflitos e limites. Nos anos 1990 os processos urbanos foram progressivamente induzidos pela competitividade entre as cidades. Através de novos planos estratégicos passou-se a oferecer não somente melhores condições de acessibilidade, comunicação, segurança e educação - recuperando edifícios e áreas abandonadas, ampliando a oferta de espaços públicos - mas também a enfatizar os aspectos culturais e simbólicos. O lugar, a sua imagem e a sua identidade se tornaram fundamentais. Como a especificidade e a dita identidade de cada povo se encontram fortemente ancoradas na imagem e na cultura local, é principalmente através da cultura que as cidades podem se individualizar, acentuando essas identidades, ou seja, marcando seu lugar no panorama mundial. Por isso, privilegia-se nas políticas e projetos urbanos recentes revelar, reforçar ou criar a imagem, ou identidade, de cada cidade. Podemos acrescentar que mais do que a própria cidade material, o que se vende hoje é sobretudo a imagem de marca da cidade. Este é um dos fatores que fazem a cultura se destacar como estratégia principal dos projetos urbanos, e a ênfase das políticas urbanas recair sobre as políticas culturais. O contexto da espetacularização e da culturalização da cidade é indissociável das estratégias de revitalização urbana que buscam prover a cidade de uma nova imagem de marca que lhe garanta um lugar no novo mapa das redes internacionais. Pode-se destacar neste enfoque, a contribuição dos equipamentos culturais e de suas arquiteturas, cada vez mais visados pela mídia e pela indústria do turismo. Estes passam assim a ser as principais "âncoras" de megaprojetos urbanos que se inserem nos novos planos estratégicos. O que poderia ser classificado como uma "culturalização" ou "musealização" (proliferação dos museus nas cidades) urbana contemporânea. Por outro lado, o que significa a atual patrimonialização ou museificação (transformação das cidades em museus) urbana? Essas mega- intervenções muitas vezes se iniciam por uma patrimonialização das próprias cidades, também tendo em vista uma revitalização urbana que possibilitaria uma efetiva inserção destas cidades dentro de uma competitiva rede global de cidades ditas culturais, ou seja, turísticas. A união cada vez mais freqüente entre os interesses da indústria turístico-cultural e interesses político-urbanos estariam delineando uma específica gestão urbanocultural que transforma a própria cidade em espetáculo (no sentido debordiano) a ser consumido. Esta forma espetacular de cultura tem sido responsável por grandes transformações urbanas. Tudo isto seria em parte explicado pela crescente necessidade de visibilidade da cultura que segundo Henri-Pierre Jeudy (1999) al- 12 Caderno especial.p65 12 18/10/04, 13:17 cança seu ápice nos dias atuais: Uma experiência cultural que não é tornada visível não existe. Esta visibilidade responde a uma necessidade de legitimação das ações empreendidas. Não se trata somente de conquistar um público mas de engendrar os efeitos de difusão que permitem prosseguir a ação de lhe conferir uma figura de exemplaridade. As políticas culturais participam cada vez mais na transformação das cidades. O que parece predominar nas intervenções espaciais, tanto nas criações artísticas quanto nas criações arquitetônicas, em relação as finalidades dessas políticas culturais, são as questões de "território" e de "laços sociais". Os projetos públicos, encomendados a arquitetos, artistas, urbanistas ou paisagistas, estão cada vez mais relacionados à reabilitação de áreas abandonadas, e implicam na conjunção de uma dimensão patrimonial à um projeto contemporâneo, ou seja, implicam em fenômenos de atualização e de presentificação da cidade historicamente construída e vivida. O primeiro objetivo específico de nossa pesquisa é de estudar a relação entre o trabalho dos arquitetos e artistas na reestruturação de territórios urbanos e das articulações políticas e culturais que legitimam as escolhas e as finalidades de uma "política urbana". Além da pura conservação patrimonial há uma intenção de pensar o futuro da cidade em termos de uma "estética urbana". O artista ou o arquiteto são chamados para propor projetos que não interfiram na configuração já existente de um território urbano, mas que, entretanto, devem representar "nossa época" para as gerações futuras. A articulação entre políticas urbanas e culturais precisa ser investigada, incluindo os arranjos institucionais que têm permitido tal articulação, e os interesses envolvidos. A ação a ser investigada não deve se restringir à dos políticos, arquitetos, artistas ou urbanistas, já que a articulação entre políticas urbanas e políticas culturais envolve mudanças nas reinvindicações sociais e no seu atendimento pelo poder público. É nesse âmbito que a categoria projeto será problematizada como epicentro empírico e teórico-analítico da pesquisa, ou seja, analisaremos a passagem, e uma possível inversão, entre as políticas urbanas e culturais e os projetos propriamente ditos. Trata-se de uma temática que depende de análises do poder nas esferas de concepção e da execução de intervenções urbanas. No centro de todo projeto de intervenção urbana, se coloca a questão do tratamento das potencialidades dos territórios da cidade e de sua história. Nosso segundo objetivo específico será de analisar a gestão contemporânea da simbologia dos signos culturais urbanos. Essa gestão é somente patrimonial? Como aparecem os nossos símbolos? Essa transformação simbólica de territórios urbanos pode estar associada â forma de apropriação destes pelos atores sociais. Além da transformação dos símbolos 13 Caderno especial.p65 13 18/10/04, 13:17 culturais, uma simbologia pré-existente, negada, também deve ser considerada. Nesta direção, a categoria "territórios urbanos" deve ser assumida, além da categoria "projeto", como fio condutor do debate transdisciplinar, na medida em que esta é mais abrangente e aberta e, assim, permite e estimula a análise dos sujeitos sociais que se apropriam desses territórios. Dentro do questionamento sobre a reestruturação das cidades contemporâneas, e do papel que exercem nesses processos as "políticas urbanas", nosso terceiro objetivo específico será estudar quais são essas modalidades políticas e culturais que permitem que esses territórios urbanos se transformem, tanto no plano territorial quanto no plano da vida social e cultural. Se trata de analisar como essas operações de urbanismo conseguem ou não dar uma nova configuração cultural aos territórios urbanos, segundo os critérios de avaliação necessários e suas formas de aplicação, e também os próprios limites da gestão urbana, mas partindo da hipótese de que o critério cultural é o predominante. Dentro da questão geopolítica da organização de patrimônios internacionais, e do papel que estes patrimônios têm nas políticas tanto culturais quanto urbanas; um exemplo empírico desse projeto de pesquisa será de estudar as modalidades políticas e culturais - segundo que critérios de avaliação e suas aplicações, segundo que imposições de gestão urbana e suas implicações - que fazem com que uma cidade possa ganhar, por exemplo, um estatuto de patrimônio da humanidade. A temática do patrimônio cultural urbano se subordina ao tema maior da atual articulação entre políticas urbanas e políticas culturais, sendo ela importante a ser observada, sobretudo dentro de uma análise comparativa. Bibliografia de referência ARANTES, Otília, VAINER, Carlos, MARICATO, Ermínia, A Cidade do pensamento único. Rio de Janeiro, Vozes, 2000 BAUDRY, Patrick, PAQUOT, Thierry (org.), Lurbain et ses imaginaires, Bordeaux, Maison des Sciences de lHomme d Aquitaine, 2003 BIANCHINI, F. & PARKINSON, M. Cultural policy and urban regeneration - the west European experience. Manchester, Manchester University Press, 1993. BOYER, Christine, The city of collective memory: its historical imagery and architectural entertainement, Cambridge-Massachusetts, MITpress,1994 CAUQUELIN, Anne, Essai de philosophie urbaine,PUF,1982 CAUQUELIN, Anne, Lart contemporain, PUF Que sais- je? 1996. 6ème éd, 2000 CAUQUELIN, Anne, Linvention du paysage, Plon, 1989, rééd. PUF, 2000 CLAVEL, Maité, Sociologie de lurbain, Paris, Ed.Anthropos, 2002 CERTEAU, Michel de, La culture au pluriel. Paris, Éditions du Seuil, 1974 DEBORD, Guy, La societé du spectacle, Paris , Ed. Gallimard, 1967 DEUTSCHE, Rosalyn, Evictions. Art and Spatial politics, Cambridge-Massachusetts, MITpress, 1998 14 Caderno especial.p65 14 18/10/04, 13:17 FERNANDES, Ana, Consenso sobre a cidade? em: BRESCIANI, Maria Stella (org.) Palavras da cidade. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001, pp. 317/328. FERRAN, Marcia de Noronha Santos, Participação, Política Cultural e Revitalização Urbana nos subúrbios cariocas: O caso das Lonas Culturais. 2000. Dissertação mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Urbanismo. 2000 JACQUES, Paola Berenstein (org), Apologia da deriva, escritos situacionistas sobre a cidade, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003 JACQUES, Paola Berenstein, Estética da ginga, a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Casa da Palavra/Rioarte, 2001 JEUDY, Henri- Pierre, Memórias do Social, Rio de Janeiro , Forense Universitária, 1990. JEUDY, Henri- Pierre, Les Usages Sociaux de LArt. Paris, éditions Circé, 1999. JEUDY, Henri-Pierre, La machinerie Patrimoniale. Paris, Sens&Tonka, 2001 JEUDY, Henri-Pierre, La critique de lesthétique urbaine, Paris, Sens&Tonka, 2003 LEFEBVRE, Henri, Le droit à la ville. Paris, Ed.Anthropos, 1968 LEFEBVRE, Henri, La production de lespace, Paris, Ed.Anthropos, 1985 LEFEBVRE, Henri, A vida cotidiana no mundo moderno, São Paulo, Ática, 1991 RIBEIRO, Ana Clara Torres, O espetáculo urbano no Rio de Janeiro: comunicação e promoção cultural, Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 1992 SANTOS, Milton, O espaço do cidadão, São Paulo, Nobel, 1989 SMITH, Neil, The new urban frontier, gentrification and the revanchist city, Londres, Routledge, 1996 SORKIN, Michael (org.), Variations on a theme park: the new american city and the end of public space, New York, Hill and Wang, 1992 VAZ, Lilian Fessler e JACQUES, Paola Berenstein - Reflexões sobre o uso da cultura nos processos de revitalização urbana em: Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR, Rio de Janeiro, 2001, pp. 664/674. 15 Caderno especial.p65 15 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 16 18/10/04, 13:17 EQUIP E Caderno especial.p65 17 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 18 18/10/04, 13:17 Coordenação Brasileira Paola Berenstein Jacques (PPG-AU/FAUFBA) Coordenação Francesa Henri-Pierre Jeudy (CNRS-Paris/ Université de Paris I) Participantes Brasil professores doutores Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ) Ana Fernandes (PPG-AU/FAUFBA) Lilian Fessler Vaz (PROURB/FAU/UFRJ) doutorandos Adriana Mattos de Caula (PPG-AU/FAUFBA) Adriana Nascimento (IPPUR/UFRJ) Carmen B. Silveira (IPPUR/UFRJ) Fabiana Gobbo (PROURB/FAU/UFRJ) José Clewton do Nascimento (PPG-AU/FAUFBA) Luiz Fernando Janot (PROURB/FAU/UFRJ) Marcia SantAnna (PPG-AU/FAUFBA) Thais B. Portela (IPPUR/UFRJ/co-orient.PPG-AU/FAUFBA) Participantes França professores doutores Anne Cauquelin (Université de Paris X-Nanterre/Université de Picardie) Maité Clavel (Université de Paris X-Nanterre) Patrick Baudry (Université de Bordeaux III) doutorandos André Luiz Bernardi da Silva (Université de Paris I-Sorbonne) Aurélie Chene (Université de Bordeaux III) Dominique Trouche (Université de Bordeaux III) Emmanuel Villeminot (Université de Paris I- Sorbonne) Ilaria Brocchini (Université de Paris I-Sorbonne) Laurent Gitton (Université de Bordeaux III) Marcia Ferran (Université de Paris I-Sorbonne/co-orient. PPG-AU/FAUFBA) Nathalie Claude (Université de Bordeaux III) Séverine Florent (Université de Bordeaux III) 19 Caderno especial.p65 19 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 20 18/10/04, 13:17 ARTIGOS Caderno especial.p65 21 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 22 18/10/04, 13:17 Paola Berenstein Jacques ESPETACULARIZAÇÃO URBANA CONTEMPORÂNEA A crise da noção de cidade se torna visível hoje principalmente através das idéias de não-cidade: seja por congelamento - cidade-museu e patrimonialização desenfreada - seja por difusão - cidade genérica e urbanização generalizada. Procuramos mostrar que essas duas correntes do pensamento urbano contemporâneo, apesar de aparentemente antagônicas, tendem a um resultado bem semelhante: a espetacularização das cidades contemporâneas. O atual momento de crise da noção de cidade se torna visível principalmente através das idéias de não-cidade: seja por congelamento - cidade-museu e patrimonialização desenfreada - seja por difusão - cidade genérica e urbanização generalizada. Essas duas correntes do pensamento urbano contemporâneo, apesar de aparentemente antagônicas, tendem a um resultado bem semelhante e que pode ser chamado de espetacularização das cidades contemporâneas. A corrente mais conservadora, pós-modernista tardia ou neo-culturalista, radicaliza a preocupação pós-moderna com as culturas pré-existentes, e preconiza a petrificação ou o pastiche do espaço urbano, principalmente de centros históricos, provocando uma museificação e patrimonialização, e também o surgimento da cidade-parque-temático e de uma disneylandização urbana, exemplos típicos da cidade-espetáculo1. A corrente dita progressista, neo-modernista, retoma alguns princípios modernistas - sem a mesma preocupação social ou utopia dos primeiros modernos - principalmente a idéia de Tabula Rasa, e faz a apologia da grande escala (XL2) e dos espaços urbanos caóticos, geralmente periféricos ou de cidades da periferia mundial: junkspaces, cidades genéricas, cidades-shoppings ou espaços terminais do capitalismo selvagem, que também são mostrados de uma forma totalmente espetacular3. Essa quase esquizofrenia dos discursos contemporâneos sobre a cidade vem surgindo muitas vezes simultaneamente em uma mesma cidade, com propostas preservacionistas para os centros históricos, que se tornam receptáculos de turistas, e com a construção de novos bairros ex-nihilo nas áreas de expansão periféricas, que se tornam produtos para a especulação imobiliária. Muitas vezes os atores e patrocinadores destas propostas também são os mesmos, assim como é semelhante a não-participação da população em suas formulações, e a gentrificação4 das áreas como resultado, demonstrando que as duas correntes antagônicas são faces de uma mesma moeda: a mercantilização espetacular das cidades. 23 Caderno especial.p65 23 18/10/04, 13:17 De fato, nas políticas e nos projetos urbanos contemporâneos, principalmente dentro da lógica do planejamento estratégico, existe uma clara intenção de se produzir uma imagem singular de cidade. Essa imagem, seja ela forjada ou não, seria fruto de uma cultura própria, da dita identidade de uma cidade. O que se vende hoje internacionalmente é, sobretudo, a imagem de marca da cidade e, paradoxalmente, essas imagens de marca de cidades distintas, com culturas distintas, se parecem cada vez mais. Haveria então uma imagem de cidade padrão internacional? Um consenso global sobre uma cidade modelo? Ou estaríamos diante de um tipo de internacionalismo do particularismo?5 Neste novo processo urbano do mundo globalizado a cultura vem se destacando como estratégia principal da revitalização urbana pois esses particularismos culturais geram slogans que podem marcar um lugar singular no competitivo mercado internacional, onde cidades do mundo todo disputam turistas e investimentos estrangeiros6. Essa contradição - as imagens de cidades, a princípio fruto de culturas distintas, que curiosamente acabam se parecendo cada vez mais entre si - pode ser explicada: cada vez mais essas cidades precisam seguir um modelo internacional extremamente homogenizador, imposto pelos financiadores multinacionais dos grandes projetos de revitalização urbana. Este modelo visa basicamente o turista internacional - e não o habitante local - e exige um certo padrão mundial, um espaço urbano tipo, padronizado. Como já ocorre com os espaços padronizados das cadeias dos grandes hotéis internacionais, ou ainda dos aeroportos, das redes de fast food, dos shopping centers, dos parques temáticos ou dos condomínios fechados, que também fazem com que as grandes cidades mundiais se pareçam cada vez mais, como se formassem todas uma única imagem: paisagens urbanas idênticas, ou talvez mesmo, como diz Rem Koolhaas, genéricas7. No centro das cidades consideradas históricas, o que ocorre talvez seja ainda mais inquietante, uma vez que essas áreas a princípio deveriam preservar a memória cultural de um lugar, de uma população e muitas vezes de toda uma nação. O modelo de gestão patrimonial mundial, por exemplo, segue a mesma lógica de homogeneização: ao preservar áreas históricas, de forte importância cultural local, utiliza normas de intervenção internacionais que não são pensadas nem adaptadas de acordo com as singularidades locais. Assim, esse modelo acaba tornando todas essas áreas - em diferentes países de culturas das mais diversas - cada vez mais semelhantes entre si. É um processo de museificação urbana em escala global8, os turistas visitam o mundo todo como se visitassem um grande e único museu. A memória da cultura local que deveria ser preservada - se perde, e em seu lugar são criados grandes cenários para turistas. Na maior parte das vezes, a própria população local, responsável e guardiã das tradições culturais, é expulsa do local 24 Caderno especial.p65 24 18/10/04, 13:17 da intervenção, pelo processo de gentrificação. Nas periferias ricas isso não chega a ocorrer, uma vez que estas áreas já são projetadas dentro de uma idéia de segregação social, e ainda oferecem um nível de vigilância total, também dentro de um padrão internacional de segurança, que serve também como justificativa para um amplo processo de privatização de espaços públicos, o que vem ocorrendo de forma sistemática na maioria das áreas de expansão das cidades contemporâneas. São condomínios fechados, praças de alimentação e corredores de shoppingcenters em profusão9. O processo contemporâneo de espetacularização das cidades é indissociável dessas estratégias de marketing urbano, ditas de revitalização, que buscam construir uma nova imagem para a cidade que lhe garanta um lugar na nova geopolítica das redes internacionais. As maiores vedetes são os grandes equipamentos culturais, franquias de museus e suas arquiteturas monumentais - cada vez mais espetaculares e visados pela indústria do turismo que passam a ser as principais âncoras de megaprojetos urbanos. Na nova lógica de consumo cultural urbano, a cultura passou a ser concebida como uma cultura-econômica, nem mais um produto industrializado como no início da indústria cultural, mas sim como uma simples imagem de marca, ou grife de entretenimento, a ser consumida rapidamente. Com relação às cidades, o que ocorre não é muito diferente. A competição é acirrada e as municipalidades se empenham para melhor vender a imagem de marca, ou logotipo, da sua cidade, privilegiando basicamente o marketing e o turismo, através de seu maior chamariz: o espetáculo. No aforisma 34 do livro clássico de Guy Debord A sociedade do espetáculo de 1967, já está anunciado: O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem. Teríamos três momentos que poderíamos chamar de espetacularização urbana: o inicial, de embelezamento ou modernização das cidades, em que se começa a moldar as imagens urbanas modernas; em seguida se começa a vendê-las como simulacros, - o caso de Las Vegas estudado por Venturi é clássico; e hoje o que se vende é a imagem de marca da cidade e, mais do que isso, consultorias internacionais de marketing urbano que visam criar novas imagens de marca de cidades que utilizam a cultura como fachada tanto para a especulação imobiliária quanto para a propaganda política. A IS (Internacional Situacionista) grupo de artistas, pensadores e ativistas lutava contra o espetáculo, a cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja, contra a não-participação, a alienação e a passividade da sociedade. O principal antídoto situacionista contra o espetáculo seria o seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social, principalmente no da cultura. O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma conseqüên- 25 Caderno especial.p65 25 18/10/04, 13:17 cia da importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia da vida cotidiana moderna10. A irônica crítica urbana situacionista parece ser ainda tão atual exatamente por ter visado, dentro do contexto dos anos 1950-196011 na Europa, combater o que seriam os primórdios dessa nova espetacularização urbana contemporânea. A importância hoje do pensamento situacionista sobre a cidade estaria exatamente na enorme força crítica que ainda emana dessas idéias. Como parte integrante, importante e central, de uma crítica situacionista bem mais vasta artística, social, cultural e, sobretudo, política está a problemática urbana e, principalmente, uma crítica à própria disciplina que surge da modernização das cidades: o urbanismo. As doutrinas, teorias e fundamentos básicos do urbanismo foram questionados e criticados de forma radical pelos situacionistas desde os anos 1950.12 Diante do aparente consenso sobre a cidade contemporânea, diante do que pode ser chamado de cidade do pensamento único13, uma crítica pertinente talvez seja mais urgente no cenário atual do que novos modelos, paradigmas ou mesmo propostas urbanas. O pensamento urbano situacionista, e principalmente sua crítica ao urbanismo enquanto disciplina espetacular, poderia ser visto ainda hoje, pelo próprio "campo" do urbanismo, como um convite à reflexão, à auto-crítica e ao debate. As idéias situacionistas sobre a cidade, principalmente contra a transformação dos espaços urbanos em cenários para espetáculos turísticos, levam a uma hipótese clara: a existência de uma relação inversamente proporcional entre espetáculo e participação popular. Ou seja, quanto mais espetacular forem as intervenções urbanísticas nos processos de revitalização urbana, menor será a participação da população nesses processos e vice-versa. Mas essa equação não é absoluta, variações na proporção de espetacularização também podem ocorrer: quanto mais passivo (menos participativo) for o espetáculo, mais a cidade se torna um cenário, e o cidadão um mero figurante; e no sentido inverso, quanto mais ativo for o espetáculo que no limite deixa de ser um espetáculo no sentido debordiano14 , mais a cidade se torna um palco e o cidadão, um ator protagonista ao invés de mero espectador. A relação entre espetacularização e gentrificação, no sentido inverso, também seria diretamente proporcional, uma vez que o processo de espetacularização urbana traz sempre consigo um tipo de gentrificação espacial e também cultural, com a expulsão dos mais pobres das áreas de intervenção. Os excluídos desse processo de espetacularização talvez levem consigo a chave da sua reversão, que seria, como sugeriam os situacionistas, a própria participação popular. As favelas, por exemplo, seriam um exemplo máximo dessa participação popular15, uma vez que os moradores são os verdadeiros responsáveis por sua 26 Caderno especial.p65 26 18/10/04, 13:17 construção efetiva, ao contrário do morador da cidade formal, que muito raramente se sente envolvido na construção do seu espaço urbano e, em particular, dos espaços públicos de sua cidade. Essas áreas seriam verdadeiras máquinas de guerra contra a espetacularização urbana, máquinas que promovem uma guerra sem trégua, sem linha de combate de frente ou de retaguarda, numa multiplicidade de ações, de táticas de sobrevivência, preenchendo todos os vazios urbanos existentes, resultando, desse modo, em configurações informais que escapam ao controle do Plano que pressupõe direcionar o crescimento da cidade16 Poderíamos imaginar que essas máquinas de guerra, formas alternativas de resistência ou fissuras no sistema globalizado, ainda conseguiriam fugir do processo de espetacularização. Mas os técnicos, arquitetos e urbanistas responsáveis por projetos e intervenções em favelas se esforçam exatamente no sentido inverso. Na maioria dos casos, em vez de seguir os movimentos já iniciados pelos moradores, e de se aproveitar da participação popular já existente, os profissionais impõem sua própria lógica construtiva, diretamente ligada à cultura e à estética da cidade formal, que tende mais uma vez ao espetáculo. Sintomas claros dessa nova espetacularização são as excursôes de turistas às favelas, os prêmios internacionais recebidos por arquitetos e urbanistas por suas grandes obras intervenções espetaculares em favelas, e a última exposição brasileira na Bienal de Veneza que reuniu vários desses projetos premiados sob o título mais que representativo: Favelas Upgrading17. Apesar dessa espetacularização generalizada, as cidades brasileiras, de uma forma geral, talvez até por sua informalidade, ainda conseguem manter algum tipo de diversidade, de multiplicidade no espaço urbano. Mesmo estando sujeitos ao rolo compressor homogenizador da cidade-espetáculo, atores sociais urbanos ainda conseguem reverter o processo ao se apropriar de espaços públicos, para habitação ou encontros ou eventos dos mais variados. E isso vem ocorrendo à revelia de planos estratégicos ou outros planos, que muitas vezes passam a incorporar esses lugares em seus projetos à posteriori, numa clara tentativa de espetacularizá-los. A tão sonhada (re)vitalização urbana o sentido de revitalização aqui não seria mais o econômico, mas sim o de vitalidade, como vida decorrente da presença de um público e atividades diversificadas só poderia se realizar de forma não espetacular quando ocorrer uma apropriação popular e participativa do espaço público. O que evidentemente não pode ser completamente planejado, predeterminado ou formalizado. A maior questão das intervenções não estaria na requalificação em si do espaço físico, material pura construção de cenários mas sim no tipo de uso que se faz do espaço público, ou seja, no próprio público frequentador desses espaços. Somente através de uma participação efetiva o espaço público 27 Caderno especial.p65 27 18/10/04, 13:17 pode deixar de ser cenário e se transformar em verdadeiro palco urbano: espaço de trocas, conflitos e encontros. Paola Berenstein Jacques é professora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Notas 1 Sobre a patrimonialização das cidades européias ver JEUDY, Henri-Pierre. La machinerie Patrimoniale. Paris, Sens&Tonka, 2001 e sobre a disneylandização urbana norte-americana ver SORKIN, Michael (ed.), Variations on a theme park: the new american city and the end of public space, New York, Hill and Wang, 1992, a corrente mais difundida hoje que vai nessa direção é o chamado New Urbanism, com projetos como a cidade Celebration, construída pela Disney Corporation. 2 Alusão à Bíblia neo-moderna, o livro S,M,L,XL, New York, The Monacelli Press, 1995, de um dos maiores representantes desta corrente, o arquiteto holandês Rem Koolhaas. 3 Um bom exemplo recente desse tipo de espetacularização foi a exposição Mutations (2000/2001), em Bordeaux; ver catálogo publicado por ACTAR e Arc en Rêve, Barcelona/Bordeaux, 2001. 4 Elitização, expulsão da população mais pobre, termo desenvolvido por Neil Smith em The new urban frontier, gentrification and the revanchist city, Londres, Routledge, 1996. 5 Ver FERNANDES, Ana Consenso sobre a cidade? em: BRESCIANI, Maria Stella (org.) Palavras da cidade. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001, pp. 317/328. 6 Ver VAZ, Lilian Fessler e JACQUES, Paola Berenstein Reflexões sobre o uso da cultura nos processos de revitalização urbana em: Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR, Rio de Janeiro, 2001, pp. 664/674. 7 Ver KOOLHAAS, Rem, The Generic City em S,M,L,XL, New York, The Monacelli Press, 1995, pp. 1239/1264. 8 Ver JEUDY, Henri-Pierre La Machinerie Patrimoniale, Paris, Sens&Tonka, 2001 e La critique de lesthétique urbaine, Paris, Sens&Tonka, no prelo (livros que serão publicados no Brasil em um único volume com o título Espelho das cidades, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, no prelo). 9 Ver The Harvard Design School Guide to Shopping / Harvard Design School Project on the City, Chuihua Judy Chung (org), New York, Taschen, 2002. 10 Ver: Internacional Situacionista, JACQUES, Paola Berenstein (org), Apologia da deriva, escritos situacionistas sobre a cidade, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003 e, Guy Debord, A sociedade do Espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. 11 Os anos 1960 foram marcados mundialmente pela organização das minorias culturais, pelos movimentos de contracultura ou de culturas alternativas ou marginais, pelas manifestações revolucionárias e pelas revindicações sociais e culturais mais diversas. Um dos maiores símbolos da época, a manifestação estudantil de maio de 1968 em Paris, reuniu vários grupos, ditos revolucionários ou contraculturais, e, entre eles, aqueles que formaram uma das base teórica do movimento: os situacionistas. 12 É evidente que o contexto histórico dessa crítica situacionista deve ser sempre levado em consideração para que a crítica situacionista possa de fato servir como base inspiradora para a construção de uma crítica da situação urbana contemporânea. 13 Ver: ARANTES, Otília, VAINER, Carlos, MARICATO, Ermínia, A Cidade do pensamento único. Rio de Janeiro, Vozes, 2000. 14 DEBORD, Guy A sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. 15 Ver nosso livro Estética da ginga, a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Casa da Palavra/Rioarte, 2001. 16 Palestra de Pasqualino Magnavita no XXI encontro ARQUISUR em Salvador em setembro de 2002, publicada em CDROM organizado por Ana Fernandes (FAUFBA, 2002). 17 Ver o catálogo FAVELAS UPGRADING, La Biennale di Venezia, 8. Mostra Internazionale dArchitettura, Fundação Bienal de São Paulo, São Paulo, 2002. 28 Caderno especial.p65 28 18/10/04, 13:17 Bibliografia ARANTES, Otília, VAINER, Carlos, MARICATO, Ermínia, A Cidade do pensamento único. Rio de Janeiro, Vozes, 2000 DEBORD, Guy A sociedade do Espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997 FERNANDES, Ana Consenso sobre a cidade? em: BRESCIANI, Maria Stella (org.) Palavras da cidade. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001, pp. 317/328. IS, JACQUES, Paola Berenstein (org), Apologia da deriva, escritos situacionistas sobre a cidade, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003 JACQUES, Paola Berenstein e VAZ, Lilian Fessler Reflexões sobre o uso da cultura nos processos de revitalização urbana em: Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR, Rio de Janeiro, 2001, pp. 664/ 674. JACQUES, Paola Berenstein, Estética da ginga, a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, Casa da Palavra/Rioarte, 2001 JEUDY, Henri-Pierre. La machinerie Patrimoniale. Paris, Sens&Tonka, 2001 JEUDY, Henri-Pierre La critique de lesthétique urbaine, Paris, Sens&Tonka, no prelo KOOLHAAS, Rem. S,M,L,XL, New York, The Monacelli Press, 1995 SMITH, Neil, The new urban frontier, gentrification and the revanchist city, Londres, Routledge, 1996 SORKIN, Michael (org.), Variations on a theme park: the new american city and the end of public space, New York, Hill and Wang, 1992 Algumas idéias desse texto já foram desenvolvidas em outros artigos em periódicos (sobre patrimônio ver revista RUA nº 8, PPG-AU/FAUFBa, 2003) ou livros (sobre situacionistas ver apresentação de Apologia da Deriva, escritos situacionistas sobre a cidade, Casa da Palavra, 2003). 29 Caderno especial.p65 29 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 30 18/10/04, 13:17 Lilian Fessler Vaz A CULTURALIZAÇÃO DO PLANEJAMENTO E DA CIDADE novos modelos? O termo culturalização vem sendo difundido, referindo-se tanto aos espaços revitalizados, quanto à prática do planejamento que os engendra. Procuramos neste paper esboçar um histórico desta modalidade de planejamento, localizando no tempo e no espaço algumas das suas manifestações iniciais, caracterizando as suas especificidades e o contexto em que se manifestaram. A ênfase recai sobre algumas características urbanísticas e culturais, que serão analisadas enquanto manifestações da pós-modernidade, e confrontadas com características do planejamento no contexto da modernidade. Introdução Nas últimas décadas vêm se difundindo diversos planos, projetos e políticas urbanas e culturais que se utilizam da cultura como estratégia principal. Seja tratando de preservação de sítios históricos, de ocupação de áreas degradadas ou vazios, de revitalização de áreas centrais ou periféricas, ou mesmo da expansão urbana, a tônica das intervenções recai na reabilitação ou na recriação de ambientes históricos, na construção de equipamentos culturais marcantes, no cuidadoso desenho dos espaços públicos, no uso da arte pública e da animação cultural, entre outros recursos. Os resultados desta regeneração cultural vêm sendo criticados e discutidos nos campos da arquitetura e do urbanismo, do planejamento e das ciências sociais. Criticam-se os conhecidos processos de gentrificação, mas também novos processos para os quais vêm se cunhando novos termos: a estetização, a patrimonialização, a museificação, a midiatização, a espetacularização, entre outras. O termo culturalização vem sendo difundido referindo-se tanto aos espaços revitalizados quanto à prática do planejamento que os engendra. Procuramos neste paper esboçar um histórico desta modalidade de planejamento, localizando no tempo e no espaço algumas das suas manifestações iniciais, caracterizando as suas especificidades e o contexto em que se manifestaram. A ênfase recai sobre algumas características urbanísticas e culturais, que serão analisadas enquanto manifestações da pós-modernidade, e confrontadas com características do planejamento no contexto da modernidade. Para concluir, discutimos as tendências observadas, questionando se estamos diante de uma tendência passageira ou se é possível se referir a um novo modelo de planejamento um planejamento urbano e cultural. 31 Caderno especial.p65 31 18/10/04, 13:17 As intervenções urbanas e a cultura A história urbana mostra que às transformações de ordem econômica e social se seguem a adequação das estruturas, das formas e das imagens das cidades. Depois da industrialização/ urbanização a cidade transformou-se radicalmente, adequando-se à nova condição de centro de produção material. Atualmente, na economia pós-industrial, novas transformações estão em curso: a produção não-material obriga, mais uma vez, as cidades a se renovarem. Com a cidade industrial, a necessidade de enfrentar os novos desafios, buscando prever, direcionar e controlar as mudanças fez surgir e desenvolver o urbanismo e o planejamento urbano. Com a cidade pós-industrial, vem se difundindo novas formas de intervenção, através dos planos estratégicos e dos projetos urbanos. No primeiro caso, visava-se a adequação da cidade à produção material. No segundo, visa-se a produção imaterial, ou seja, de bens não materiais correntes: serviços, informações, símbolos, valores, estética, além de conhecimento e tecnologia. Para a economia na cidade industrial, importava a proximidade de fontes de matérias primas e de energia, a disponibilidade de capital, de força de trabalho e de um mercado local. Para a nova economia que, segundo Peter Hall (2001, p.8) deixou de ser a economia informacional e se tornou a economia cultural, e que, segundo Arantes (1998, p. 152), tem na cultura a sua nova mola propulsora, as exigências são radicalmente diferentes. A utilização da cultura como instrumento de revitalização urbana, faz parte de um processo bem mais vasto de utilização da cultura como instrumento de desenvolvimento econômico. Para a sociedade de consumo consideram-se adequadas as áreas urbanas que disponham de meios de transporte e de comunicação avançados, que apresentem qualidade em termos residenciais e ambientais, alto nível de ofertas culturais e educacionais, atendendo aos condicionamentos locais mas também aos globais. Esta soma de qualidades decorre da disputa entre as cidades que buscam apresentar as melhores condições para atrair moradores, capitais, investimentos, empresas e turistas. Algumas zonas são privilegiadas nestes processos de renovação urbana, como centros históricos, áreas centrais degradadas e vazios urbanos resultantes do processo de desindustrialização - antigas zonas portuárias, ferroviárias e industriais1. As transformações urbanas buscam, portanto, reverter os efeitos danosos das mudanças econômicas pós-fordistas e adequar o ambiente construído à nova economia. As novas zonas de intervenção devem oferecer condições para a produção e o consumo da cultura e para o turismo de uma maneira geral. Devem ainda atender às condições de desenvolvimento da economia simbólica, no sentido apontado por Zukin (1995), da produção de espaços e de significados culturais na cidade. 32 Caderno especial.p65 32 18/10/04, 13:17 As transformações espaciais não são consideradas somente na sua dimensão fisicoterritorial, mas envolvem, em grau crescente, ponderações de ordem simbólica. O lugar, a imagem e a identidade, elementos profundamente ancorados na cultura local se tornaram fundamentais. No mundo global, onde a modernização gerou a estandardização e a homogeneidade, e em que muitas cidades industriais viram diluir-se a sua identidade, a diferenciação através da pujança da identidade local se torna um trunfo essencial. E a identidade está fortemente ancorada na imagem e na cultura local. Neste sentido considera-se que é principalmente através da cultura que as cidades poderão se individualizar, acentuando suas identidades, marcando seu lugar no panorama mundial. A importância da economia cultural na cidade envolve, portanto, aspectos diferentes e entrelaçados, em que se destacam a indústria cultural, a indústria do turismo e a economia simbólica. Nas últimas décadas foram inúmeros os planos, projetos e intervenções urbanas nos quais a cultura2 se destacou como fator principal. No campo do planejamento urbano e do urbanismo emergiram novos termos e expressões que retratam esta importância: lugares e territórios culturais, pólos e distritos culturais, engenharia cultural (Haumont, 1996), cultural planning (Evans, 2001), planificación cultural (Wervijnen, 2000), regeneração cultural (Wansborough & Mageean, 2000), culturalização da cidade (Meyer, 1999 e Hausserman, 2000), entre outros. A seguir, procuramos localizar, através de uma perspectiva histórica, alguns momentos e características do planejamento e do projeto urbano, assinalando suas características e o contexto da sua emergência na chamada Era da Cultura. Cabe enfatizar que não se trata aqui de uma discussão teórica acerca dos diferentes termos e conceitos surgidos, mas de uma tentativa de compreender os diferentes contextos e condições que favoreceram o seu surgimento no final do século XX. Alguns termos e conceitos serão explicitados no desenvolvimento do texto. Planejamento e projeto de intervenções urbanas Embora o recurso ao fator cultural no planejamento e no projeto urbanos possa ser observado em diferentes áreas da cidade, privilegiaremos aqui aquelas que visam as áreas consolidadas das cidades. Não se trata, portanto, do planejamento cultural enquanto provisão e distribuição de equipamentos e atividades culturais no território da cidade, no sentido do aménagement culturel ou do arts planning. Nem tampouco do cultural planning enquanto abordagem cultural do planejamento urbano. Trata-se aqui das intervenções urbanísticas, conforme conceituado por Portas (1998): ... o conjunto de programas e projetos (...) que incidem sobre os tecidos urbanizados dos aglomerados, sejam antigos ou relativamente recentes, 33 Caderno especial.p65 33 18/10/04, 13:17 tendo em vista: a sua reestruturação ou revitalização funcional (...); a sua recuperação ou reabilitação arquitetônica (...); finalmente a sua reapropriação social e cultural (...). Mais especificamente, trata-se de projetos para intervenções urbanísticas nas quais se faz uso estratégico de recursos culturais tendo por objetivo o desenvolvimento local, e que podem ou não estar associadas a planos e políticas culturais. As intervenções que vêm buscando readaptar os tecidos urbanos existentes a novas situações vêm recebendo, a cada novo contexto, novas denominações, em geral com o prefixo re: renovação, reestruturação, revitalização, reabilitação, requalificação, regeneração, entre outras. Uma rápida revisão destes momentos e denominações permite situar numa perspectiva histórica a emergência da dimensão cultural no quadro das intervenções urbanísticas3. Desde meados do século XIX buscava-se o embelezamento e o saneamento da cidade industrial, atuando sobre áreas centrais densamente ocupadas e encortiçadas; as reformas urbanas de Paris e de Viena tornaram-se formas clássicas de intervenção. Em meados do século XX, a renovação urbana sob os ideais do modernismo, do racionalismo e do funcionalismo, permitiu a emergência e/ou o desenvolvimento de centros modernizados, adensados e verticalizados. Por oposição a essa forma de intervenção, muitas vezes realizada depois de reduzir o tecido urbano existente à tabula rasa, e a partir das críticas à destruição do patrimônio edificado, ao rompimento de elos sociais existentes, à especulação imobiliária sempre presente, surgiu nos anos 60/70 a revitalização ou reabilitação urbana. Nesta nova prática urbanística, rejeita-se a rua como espaço apenas de circulação e os tecidos urbanos monótonos e homogêneos, definidos em função do zoneamento e de índices urbanísticos; e retoma-se a composição urbana, recuperando-se os espaços públicos, a tipologia das edificações e a morfologia urbana (Choay & Merlin, 1988, p. 579). As propostas passaram a se pautar por projetos urbanos, ancorados na cultura arquitetônica e valorizando o desenho urbano. Desde os anos 70/80 a ênfase nos espaços públicos, no regionalismo, na preocupação com o patrimônio construído e a história incorporaram à política urbana uma dimensão cultural. A difusão da prática de revitalização de centros ou outros ambientes históricos, e não apenas de monumentos isolados ampliaram esta dimensão cultural. Nos anos 80/90 surge o projeto urbano, paralelamente ao planejamento estratégico, ao marketing urbano, e a atuação ativa e agressiva dos governos locais em parcerias com agentes privados. Nos projetos urbanos de intervenção pontual concentrada, vultuosos recursos são investidos em algumas estruturas ou edificações, dotados de visibilidade midiática, que se considera capazes de disseminar conta- 34 Caderno especial.p65 34 18/10/04, 13:17 minações positivas sobre o entorno e de contribuir para a constituição de uma nova imagem urbana. Portas (1998) retoma Campos Venuti, para quem as intervenções através de projetos urbanos podem ser divididas em três tipos, que denomina de gerações urbanísticas. A primeira remete aos anos 60, ao fim dos CIAMs, às propostas inovadoras como as do Team X; a segunda, dos anos 70/80, enfatizava os espaços públicos, a diversidade e as diferenças, a história e a memória, valorizando a arquitetura local e usando como modelos de programa o IBA de Berlim e o SAAL de Portugal; a terceira, dos anos 80/90, se insere num planejamento estratégico e se utiliza de projetos arquitetônicos de griffe, que contribuem para a formação de uma nova imagem urbana, tendo por paradigma Barcelona. Nos anos 90, os projetos da terceira geração foram também chamados de projetos de requalificação urbana e regeneração urbana. Nesta associação do planejamento empresarial, do projeto urbano e da estratégia cultural com o marketing verifica-se uma importante inflexão: a abordagem culturalista dos anos 60 se torna um culturalismo de mercado (Arantes 2000, p. 48), em que tudo o que se refere à cultura se torna mercadoria. Nesta metamorfose, a cultura se torna o grande negócio da cidade-mercadoria, e esta se torna cada vez mais espetacular. Há que se considerar, portanto, dois pontos de inflexão no que se refere ao cultural: o primeiro, que remete à revitalização associada à memória, ao patrimônio e a demandas locais e o segundo, que remete à mercantilização, à globalização e à espetacularização da cidade e da cultura. Os contextos sócio-econômicos e políticos destas inflexões se evidenciam também na observação das mudanças ocorridas no âmbito das políticas culturais, como nos mostra Bianchini (1993). O tema sem importância, neutro, não-politizado dos anos 50/60 transformou-se, após 68, quando houve uma associação da ação cultural com a ação política. As políticas culturais dos anos 70, marcadas pela ênfase no desenvolvimento comunitário, na participação, na democratização do espaço público, na revitalização da vida social através da animação cultural e do redesenho urbano, foram, nos anos 80, substituídas. No clima do neo-conservadorismo e neo-liberalismo, as políticas culturais deixaram de dar respostas a objetivos dos movimentos sociais para dar respostas a objetivos de desenvolvimento econômico. Mas não apenas como instrumentos para diversificar a base econômica local ou para alcançar coesão social. Os subsídios deram lugar a incentivos e isenções para investimentos, os movimentos sociais a parcerias, o planejamento ao projeto urbano, a renovação à regeneração urbana. E esta, para maximizar as potencialidades econômicas locais deu ênfase à imagem urbana e a projetos culturais emblemáticos 35 Caderno especial.p65 35 18/10/04, 13:17 (festivais, exposições, promoção anual das cidades capital européia da cultura, edificações culturais marcantes, etc.). No estudo destes processos, Bianchini (1993) identificou influências precursoras norte-americanas de intervenções em áreas históricas e waterfronts de Baltimore, de Boston e de Nova Iorque. No entanto, os casos europeus de inserção de equipamentos culturais de grande destaque tornaram-se paradigmáticos: o Centro Georges Pompidou, de Paris, o Museu de Arte Contemporânea e o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona e o Museu Guggenheim de Bilbao. Muitas vezes, mesclam-se os dois princípios de revitalização: a recuperação do ambiente histórico existente e a criação de equipamentos culturais como âncoras de projeto. No caso de ambientes históricos preservados, as próprias edificações aludem à cultura local; no caso de novas arquiteturas, é seu uso que atribui a chancela cultural. Estas âncoras são cercadas por espaços públicos primorosamente desenhados, nos quais se instalam obras de arte pública e se realizam ações de animação cultural. Um novo renascimento urbano emergiu a partir de planos e projetos nos quais a cultura se destaca como estratégia principal, e a ênfase das políticas urbanas recai sobre as políticas culturais. Regeneração cultural4 foi o termo que se originou no meio anglo-saxônico referindo-se às intervenções em áreas consolidadas através desta modalidade de planejamento e de projeto urbano. Nas áreas renovadas, a criação de atividades culturais, turísticas e recreacionais, de equipamentos como museus, galerias, teatros, etc., de festivais e de um ambiente comercial do tipo fun shopping resulta num ambiente de consumo denominado por Meyer (1999, p. 44) urbanismo culturalizado. Para Häusserman (2000, p. 258), atualmente a cultura usada como um produto mágico utilizado pelo marketing urbano resulta numa culturalização da cidade. Transformações no pensar e no fazer cidade Observando as diversas transformações ocorridas na concepção e na prática urbanística nas últimas décadas, nos parece como uma mirada a um objeto através de um caleidoscópio, que fragmenta e multiplica a imagem daquele objeto inúmeras vezes. O objeto uno se deixa observar através de múltiplos aspectos parciais, sempre diferentes, cada um deles revelando o seu sentido quando percebido como um detalhe da passagem da cidade da produção à cidade do consumo, dos tempos modernos aos pós-modernos, da era industrial à era da cultura. Deixando de lado a dimensão filosófica, econômica, política e social, procuraremos abordar rapidamente alguns aspectos, principalmente os pertinentes às dimensões urbanísticas e culturais5. 36 Caderno especial.p65 36 18/10/04, 13:17 Segundo Meyer (1999: 18), esta nova maneira de pensar o urbano e o planejamento se iniciou com dois livros marcantes. Soft City de Jonathan Raban (já apontado por Harvey), em que o autor mostra que a soft city é mais importante que a hard city. E Cidades Invisíveis de Italo Calvino, que mostra que a realidade da vida urbana é constituída não somente pelo seu visível, mas muito mais pelo invisível domínio dos seus sentidos, pelo simbólico, pelo cultural. Por oposição ao planejamento funcionalista ou moderno, este novo modo de planejamento, em que identidade cultural e valor cultural se tornam conceitos centrais e o significado cultural da forma, estrutura e função urbanas se tornam referências, este novo modo pode ser chamado de pós-moderno. O domínio do racionalismo e do funcionalismo no pensamento urbanístico modernista foi engendrado e mostrou-se adequado aos objetivos do planejamento da cidadeprodução, mas revelou-se pouco propício aos objetivos da cidade-consumo. Novos modos de pensar se associam, por vezes, a crises. E crises são períodos de transformações, em que cânones consagrados são postos em cheque, e em seus lugares emergem outras modalidades de pensamento e de ação. Nos anos 70/80, em meio à crise urbana, a crise dos paradigmas e a do planejamento, e às críticas aos resultados e às conseqüências deste planejamento, despontaram novas alternativas que substituíram os antigos modelos e as práticas consagradas. Sem se deter no conteúdo das críticas e no pensamento dos autores precursores, apontaremos aqui rapidamente as mudanças nas abordagens das questões urbanas. Um dos princípios do modo de pensar moderno, a premissa da tabula rasa, do recomeçar do zero, impondo a ruptura da cidade com o seu passado, é abandonado diante da recorrente destruição do patrimônio construído. Em seu lugar, emerge a preocupação com a história e com a preservação do parque imobiliário existente. A referência moderna ao homem universal, que induzia o pensamento à homogeneização e à generalização, é substituído pela preocupação com o outro, com as minorias, com as diferenças. A intenção de lidar com o todo, ampliando as escalas e homogeneizando as proposições para grandes áreas indiferenciadamente, é substituído pela atenção à diversidade, à especificidade dos fragmentos, à busca do sentido de lugar. Dentre os fragmentos urbanos atualmente convertidos em problemas estão os recortes monofuncionais degradados: os vazios fabris, portuários e ferroviários. Para a revitalização dos vazios da cidade pós-industrial, o predomínio da funcionalidade, e a função como princípio ordenador do pensamento urbanístico já não cabem mais. Nos anos 80, a funcionalidade como lógica do planejamento sofre novo revés, pois até os centros foram perdendo sua função específica enquanto 37 Caderno especial.p65 37 18/10/04, 13:17 centralidade maior. Referindo-se aos centros urbanos norte americanos na década de 80, dizia Friederichs, citado por Meyer (1999: 44): Central Business Districts activities, in short, are no longer Central or Business. Para evitar a degradação dos centros urbanos tradicionais, procura-se promover um mix de usos e desenvolvêlos como centros culturalizados. Os fragmentos em questão não têm mais funções específicas; e a funcionalidade já não pode mais ser considerada como antes. Assim, a forma, que no modernismo seguia a função, procurou novas funções e se tornou independente delas, dando ensejo ao re-desenho da cidade. Efetivamente, uma nova abordagem impôs-se como reação aos excessos do movimento modernista, em termos de desprezo pela forma, pela cidade histórica e pela arquitetura tradicional. Desta maneira, emergiu uma abordagem valorizando a arquitetura, a tipologia e a morfologia. Neste quadro urbanístico-cultural, uma referência especial cabe aos espaços livres públicos. Augustin (1998:12) mostra que os espaços públicos se transformaram na passagem da cidade-produção (fundada sobre o zoneamento de territorialidades estabelecidas) para a cidade-consumo (formada de territorialidades mais fluidas e maleáveis). Na sociedade fordista, o espaço é essencialmente para a produção, e a rua é para a circulação; na sociedade pós-industrial, os espaços se tornam lugares de consumo, de espetáculos e de festas. E ainda de turismo e de sociabilidade. De acordo com Zukin (1995: 259), Public spaces are the primary site of public culture; they are a window into the citys soul. Esta frase é sintomática dos novos sentidos dos espaços livres públicos, e radicalmente diferentes daqueles adotados no modernismo espaços de circulação e espaços livres. Estes pontos sumariamente anotados são apenas alguns dos diversos aspectos aos quais é preciso fazer referência ao tratar da emergência do planejamento e do projeto urbano para a regeneração cultural. Mas são pontos como o desenho urbano e a arquitetura que estão na base das representações da cidade e sintetizam a imagem da cidade que o marketing urbano potencializa. São imagens das áreas regeneradas, com seu antigo patrimônio histórico e cultural reabilitado, seus novos equipamentos culturais, seus espaços públicos cuidadosamente planejados e projetados, para terem o máximo de visibilidade, para que as imagens tenham o máximo de divulgação. Huyssen (2000: 91) identifica neste ponto uma inversão no enfoque da cidade como texto para a cidade como imagem: O discurso da cidade como um texto, nos anos 1970, era, sobretudo um discurso que envolvia arquitetos, críticos literários, teóricos e filósofos determinados a explorar e criar novos vocabulários para o espaço urbano. Mas o discurso atual da cidade como imagem é o dos empreendedores 38 Caderno especial.p65 38 18/10/04, 13:17 e políticos que buscam aumentar a receita da cidade com turismo e convenções, para o que se recorre ao marketing e a práticas urbanísticas tidas como bem sucedidas. Inverteu-se também a relação entre a dinâmica urbana e a presença da cultura, principalmente a visibilidade de equipamentos culturais e do patrimônio histórico e cultural. No passado, apenas cidades ricas apresentavam equipamentos e patrimônio cultural como demonstração do seu alto nível de desenvolvimento cultural; hoje, o recurso à exibição desta cultura é apenas um meio, uma tentativa de alcançar um suposto desenvolvimento (Cortinovois et al., 1993 e Evans, 2001). Regeneração cultural6 um modelo? Sendo ou não considerada como um modelo de intervenção, o planejamento culturalizado, através da regeneração cultural vem se difundindo por grande número de cidades, apresentando diferentes resultados e avaliações. Aparentemente, os projetos menos ambiciosos e menos midiáticos têm sido menos divulgados e criticados; já os mais espetaculares deram origem a muitas publicações tanto de cunho publicitário quanto de caráter crítico, a ponto de se observar, em diferentes discursos, novos termos específicos. Autores de diferentes origens têm analisado os resultados destas intervenções, captando, nomeando e criticando novas tendências sócio-culturais e espaciais. Apesar dos diferentes enfoques, e de algumas diferenças de concepção, podem-se citar, esboçando minimamente, as que consideramos como as principais tendências. Cabe, inicialmente acentuar as tendências observadas nos centros históricos, de excessos de: patrimonialização7 - atribuição excessiva do status de patrimônio, conduzindo ao engessamento das dinâmicas espaciais e sócio-culturais; musealização - multiplicação de museus em prédios históricos e/ou museificação8 - tombamento excessivo de prédios históricos, tornando a cidade inteira, um museu; e disneyficação9 - em que a imagem resultante remete à Disneylândia. Abrangendo não apenas os casos estritos de revitalização de centros históricos, mas também os de criação de novas arquiteturas vanguardistas, podem-se listar, apesar do risco da simplificação e da descontextualização excessivas, mais algumas tendências. Dentre as de natureza sócio-espacial, assinalamos a já referida culturalização10, uma profusão de equipamentos e atividades culturais, turísticas e de lazer num ambiente de consumo semelhante a um grande shopping mall a céu aberto. Nestes ambientes verifica-se geralmente uma estandartização dos espaços, decorrente da adoção dos mesmos modelos, muitas vezes financiados pelos mesmos investidores, visando os mesmos usuários e buscando os mesmos efei- 39 Caderno especial.p65 39 18/10/04, 13:17 tos. Ironicamente, esta homogeneização faz com que as imagens urbanas, que deveriam revelar a especificidade de cada cidade, se tornem cada vez mais semelhantes. Para se contrapor à esta homogeneização, recorre-se muitas vezes à adoção de efeitos estéticos nos espaços urbanos através da arquitetura, do design, do paisagismo, da iluminação, do mobiliário urbano e da arte pública, resultando numa estetização11 dos espaços. Da mesma maneira, busca-se a diferenciação através do recurso à escala monumental, incorrendo na monumentalização12 excessiva. A prática de marketing, anunciando a imagem e a identidade local, e ainda a crença de que visibilidade seja igual a sucesso, e a decorrente amplificação desta visibilidade através da mídia, vem sendo denominada de midiatização. Duas tendências, no entanto, parecem recorrentes: a gentrificação13- expulsão da população moradora, devido à valorização dos imóveis da área e a espetacularização da cidade (no sentido atribuído por Debord14), a que todos assistem, estupefatos, numa passividade consumista, alienante e sem participação. A proliferação de imagens, eventos, festivais, ícones arquitetônicos, espaços públicos renovados e primorosamente desenhados, cuja dimensão simbólica é potencializada e enobrecida pela cultura, se torna matéria prima para o marketing urbano. Anuncia-se a cultura e a cidade revitalizada um espetáculo a ser consumido. As abordagens críticas visam casos particulares, mas também os casos bem sucedidos que se tornaram modelos: waterfronts, Paris, Barcelona, Bilbao, entre outros. E sabemos que a crítica tem o poder de desconstruir os modelos. Afinal, o que são modelos de planejamento urbano? Reforma urbana haussmanniana, renovação urbana modernista, planejamento participativo, planejamento estratégico, entre outros termos, têm sido considerados desta maneira. Talvez também as garden cities, o movimento city beautiful, a renovação urbana cuidadosa berlinense, os grands travaux parisienses, as IBAs alemães, os waterfront developments norte americanos, práticas que certamente tiveram muitos seguidores. Da mesma maneira podem ser consideradas outras práticas contemporâneos como a revitalização, a reabilitação, a requalificação, a regeneração urbanas, surgidas em diferentes situações, assim como as diversas cidades-modelo de planejamento, de empreendimento e de intervenção. Tratam-se de experiências urbanas que em algum momento se destacaram, tiveram boa aceitação e foram praticadas em outras cidades, recebendo muitas vezes, novas denominações. Algumas certamente não passaram de modismos, outras se tornaram paradigmáticas. Talvez possa se dizer que haja um ou outro modelo (padrão ideal a ser copiado) de planejamento, talvez se deva apenas dizer que haja tipos (padrões que habitualmente se repetem em uma época) de planejamento15. 40 Caderno especial.p65 40 18/10/04, 13:17 Algumas práticas podem ser erigidas como fórmulas. Em algumas situações é possível identificar a cidade (ou o plano ou o projeto ou a intervenção) de que se tenha originado uma prática, ou seja, identificar o modelo original. Em outras não, pois as práticas de planejamento, projeto e intervenção urbanas costumam ser complexas, compostas de diferentes componentes, adquirindo feições próprias e adequandose às condições locais. O que nos importa assinalar é que cada uma destas práticas surgiu em certo contexto, como resposta a certos desafios, tirando partido de certas condições, viabilizando certas possibilidades, concretizando determinações específicas de diversas ordens social, econômica, política, espacial, técnica, institucional, cultural. Seja adotando modelos, seja desenvolvendo experiências próprias. Foi o que aconteceu nos tempos modernos, na cidade-produção da economia industrial; e é o que pode ser percebido atualmente, na cidade dos tempos pósmodernos, da sociedade do consumo, da economia da cultura. Como esboçado neste paper, o planejamento passou por inúmeras adequações ao longo deste percurso, que serão certamente ainda muito estudadas em suas dimensões teóricas e empíricas, enriquecendo o debate apenas iniciado sobre a questão. Lilian Fessler Vaz é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Notas 1 No presente paper trataremos apenas de casos de intervenções em tecidos urbanos existentes, e não de áreas de expansão. 2 Não cabe nos limites do paper uma discussão sobre conceitos de cultura. Ver a respeito: Vaz e Jacques, 2001. No caso, trata-se geralmente de uma cultura mercantilizada, globalizada e espetacular. 3 Ver a respeito: Vaz e Jacques, 2001. 4 Observe-se que no contexto anglo-saxônico a expressão regeneração urbana é largamente utilizada, além de regeneração social e regeneração cultural. 5 A discussão sobre a passagem do planejamento moderno ao planejamento estratégico não será abordada aqui. Ver a respeito: Meyer 1999, Portas 1998, Vainer 2000 e Monclús 2003. 6 Para alguns autores, o termo regeneração cultural aplica-se apenas no caso de revitalização urbana com a criação de distritos culturais. Wansborough e Mageean (2000) compreendem os distritos culturais como áreas espacialmente distintas e limitadas com alta concentração de ofertas culturais, tanto em termos de consumo quanto de produção. 7 Jeudy, 1990. 8 Huyssen, 2000 e Jeudy 1990. 9 Zukin, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº. 24, 1996, P. 205/219, e Huyssen, 2000. 10 Meyer, 1994 e Häussermann, 2000. 11 Jeudy 2003. 12 Jeudy, 1999. 13 Arantes, 2000, Miles, 2001 e Zukin 1995. 41 Caderno especial.p65 41 18/10/04, 13:17 14 Debord, 1967. 15 Devilliers (1974) refere-se a modelos e tipos arquitetônicos. Modelo é um padrão que deve ser copiado, no qual estão definidos valores intrínsecos; com a repetição que busca copiar o modelo, difunde-se o tipo. O tipo é uma abstração em que se identificam as propriedades espaciais comuns a uma classe de edificações. Não se trata de um tipo ideal, mas de um padrão habitualmente produzido numa época. Bibliografia ARANTES, O. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: EDUSP, 1998. . Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.,VAINER, C. e MARICATO, E. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000. BIANCHINI, F. e PARKINSON, M. Cultural policy and urban regeneration the West European experience. Manchester: Manchester University Press, 1993. CHOAY, F. e MERLIN, P. Dictionnaire d´urbanisme et de l´aménagement. Paris: Presses Universitaires de France, 1998. CORTINOVOIS et al. Culture et requalification urbaine. Paris: ANFIAC, 1993 DEBORD, G. (1967). A sociedade do espetáculo. 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Resaltaremos, através da análise das intervenções de preservação e re-qualificação realizadas nas áreas centrais das cidades de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, alguns aspectos desse processo, assim como as características gerais e contornos da nova prática. Os anos 90 e os novos indicadores da prática de preservação O patrimônio cultural instituído pelo Estado é uma construção social que resulta sempre do embate de forças e dos consensos construídos a respeito do que deve ser destacado da massa de objetos e práticas existentes e preservado como parte integrante da história e da memória nacional. Essa produção social de patrimônio envolve operações de seleção, de proteção, de conservação e de promoção que, ao mobilizarem e produzirem saberes e discursos, estabelecerem regras e desencadearem ações, dão a conhecer a norma que preside a prática de preservação num dado momento.1 No Brasil, há uma tradição de estudos que privilegia as operações de seleção e salvaguarda de bens culturais como os principais indicadores dos sentidos e objetivos da prática preservacionista, mas a produção social de patrimônio não se esgota nessas ações iniciais. Ocorre também durante o processo de manutenção e gestão do patrimônio constituído, isto é, no âmbito das operações que visam a conserválo, mantê-lo e promovê-lo. A intervenção que conserva, restaura, reabilita ou dá uso a um bem protegido, bem como as ações que o promovem, põem em circulação na sociedade idéias, imagens e objetos concretos que fixam uma determinada noção de patrimônio e desencadeiam uma prática que institui uma norma de preservação. Dessas operações surgem os quadros que permitem ver o que se instituiu como patrimônio num dado período, a prática que essa noção ensejou e que estratégias e objetivos políticos e econômicos a comandaram. Até os anos 70, as operações de constituição e preservação do patrimônio brasileiro concentravam-se no plano federal e eram realizadas unicamente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. A partir daquela década, ou- 43 Caderno especial.p65 43 18/10/04, 13:17 tros organismos estaduais e municipais passaram também a implementá-las, mas, até os anos 80, em função de uma autoridade longamente construída e de um saber socialmente reconhecido, essa instituição federal ainda ditava os contornos gerais da prática de preservação predominante. Nos anos 90, esse cenário se transformou completamente. O primeiro indício da transformação foi proporcionado pela onda de intervenções executadas em áreas centrais e sítios históricos de várias cidades do Nordeste, na esteira do projeto de recuperação do Pelourinho, em Salvador. A Rua do Bom Jesus, em Recife; o bairro da Ribeira, em Natal, e a Praia de Iracema, em Fortaleza, estão entre as intervenções do gênero que eclodiram na primeira metade dos anos 90 e ilustram o início desse processo. Essas intervenções - que produziram espaços muito semelhantes destinados ao turismo e ao lazer - alcançaram estrondoso sucesso de público e colocaram, rapidamente, as cidades onde foram executadas em evidência no cenário nacional. Concebidas e financiadas por governos municipais ou estaduais, essas iniciativas funcionaram como poderosas peças promocionais das respectivas cidades, do seu patrimônio e de suas administrações, desempenhando importante papel nos pleitos eleitorais subseqüentes.2 Paralelamente, em metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, proliferaram intervenções de re-qualificação de espaços públicos e de reabilitação de imóveis nos centros antigos, acompanhadas de farta produção discursiva sobre o caráter estratégico dessas áreas e de seu patrimônio para a cidade e para a economia urbana.3 Impulsionados por essas intervenções locais politicamente bem-sucedidas e no rastro de interesses vinculados ao desenvolvimento do turismo e à internacionalização do setor de serviços, surgiram na esfera federal vários programas que trouxeram novas fontes de financiamento para projetos de preservação e introduziram novos atores nos processos locais em andamento.4 Baseados em renúncia fiscal, empréstimo externo e recursos orçamentários, esses programas passaram a financiar boa parte das intervenções já iniciadas, imprimindo-lhes novos rumos e colocando no centro da cena patrimonial agências financeiras nacionais e multilaterais - como a Caixa Econômica Federal e o Banco Interamericano de Desenvolvimento -, além de parceiros internacionais, como o Governo francês. Intervenções e programas implementados nos anos 90 mostravam que, no Brasil do final do século XX, o patrimônio ressurgia como um importante recurso econômico e assomava como um instrumento promocional de grande força e uma excelente porta de entrada para o desenvolvimento de negócios nas áreas de projeto, consultoria, venda de know how, equipamentos e serviços urbanos. Essas ações indicavam ainda que, pela primeira vez no Brasil, os principais focos de produção e 44 Caderno especial.p65 44 18/10/04, 13:17 exteriorização da prática de preservação haviam se deslocado para os planos estadual e municipal e, no nível do governo central, do IPHAN para o Ministério da Cultura e seus novos parceiros. Nos anos 90, em suma, os principais pontos deflagradores de operações de preservação e, portanto, de produção de patrimônio, passaram a se localizar no plano local, e, no nível do poder central, deslocaram-se para as instituições executoras dos programas que foram implantados. Esvaziado, sem recursos, com funções reduzidas e com uma estrutura operacional tornada precária em todos os sentidos, o IPHAN deixou de ser o locus principal de exteriorização da norma preservacionista. As intervenções locais e os novos programas nacionais, movimentando somas consideráveis em comparação com o magro orçamento da instituição, tomaram o seu lugar. Em seguida, se destacará, através da análise das intervenções de preservação e re-qualificação realizadas nas áreas centrais das cidades de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, alguns aspectos desse processo, assim como as características gerais e contornos da nova prática.5 . Um pouco de história urbana As áreas centrais das cidades estudadas sofreram sucessivos processos de deslocamento de funções a partir do século XIX que configuraram espaços diferenciados, tanto em termos de dinâmica, quanto de utilização. Contudo, todas as três cidades chegaram à metade do século XX com uma estrutura ainda fortemente polarizada em uma única centralidade, a qual só se tornou crítica e inadequada com o intenso crescimento urbano deflagrado pela aceleração da industrialização da economia após os anos 50. Vinculado ainda a interesses do capital imobiliário e à popularização do automóvel, esse crescimento espraiado e orientado para a periferia, formou novas centralidades em todas essas cidades, mas teve intensidades e durações distintas, bem como promoveu impactos diversos nas áreas centrais mais antigas de cada uma delas. A diversidade e a abrangência desses impactos decorreram de especificidades locais relacionadas ao grau de polaridade econômica, regional e nacional, de cada cidade; às condições de acessibilidade e infra-estrutura existente em cada área central; ao volume de investimentos realizados nesses setores e nas novas áreas de expansão; à localização dos vetores dinâmicos de investimentos imobiliários e, por fim, ainda que de modo secundário, ao grau de constrangimento interposto pelas legislações urbanísticas e de proteção à renovação dos bairros centrais. O centro antigo mais atingido por processos de fragmentação e deslocamento de funções, esvaziamento demográfico, popularização e perda de qualidade urbana foi o de Salvador, seguido pelo de São Paulo e, por fim, pelo do Rio de Janeiro. Assim, no que toca à estrutura e à dinâmica urbana, bem como ao sistema de 45 Caderno especial.p65 45 18/10/04, 13:17 centralidades, as três cidades apresentavam, no início dos anos 90, situações bem diversas. O Rio de Janeiro apresentava uma estrutura ainda claramente polarizada no centro antigo, o qual abrigava uma área central de negócios ainda relativamente forte e dinâmica. Salvador, por seu turno, apresentava forte tendência de transferência total de polaridade comercial, financeira e de serviços do centro velho para a nova centralidade de alcance metropolitano que se consolidava nas cercanias do Shopping Iguatemi. São Paulo, finalmente, encontrava-se imersa num processo profundo de fragmentação e deslocamento de funções que drenou atividades do centro antigo e gerou um sistema encabeçado por três centralidades que disputavam entre si polaridade, dinâmica e investimentos. No que diz respeito ao patrimônio urbano protegido, as três cidades também apresentavam, no começo da última década, configurações espaciais e histórias de preservação muito distintas. Salvador, com uma grande área protegida contínua, localizada no coração do centro antigo, possuía um centro histórico de configuração morfológica relativamente homogênea e não renovada, abrigando no seu interior apenas um pequeno setor de tecido modernizado onde, até os anos 60, desenvolviam-se importantes atividades comerciais e de serviços. A grande área protegida resultante de vários tombamentos realizados a partir dos anos 30 mantinha, no início dos anos 90, um uso predominantemente habitacional, com algumas áreas de comércio popular localizadas próximas a terminais de transportes públicos. Uma população extremamente pobre e marginalizada ocupava os casarões existentes no coração do centro histórico e o tecido urbano ao redor era basicamente apropriado por estratos de renda média e baixa. A antiga área central de negócios da cidade, localizada na Cidade Baixa em setor renovado que tangencia o centro histórico, ainda apresentava, no final dos anos 80, uma razoável dinâmica. Ao longo da última década, entretanto, sofreu grande esvaziamento na medida em que toda a função financeira foi deslocando-se para a área do Iguatemi. No que tange às políticas de preservação, alguns setores do centro histórico de Salvador, como os bairros do Pelourinho e do Maciel, foram alvo, a partir dos anos 60, de projetos e intervenções de recuperação com vistas à promoção do turismo e à melhoria da qualidade habitacional, mas nenhuma dessas iniciativas reverteu o quadro de deterioração reinante. O Rio de Janeiro, no começo dos anos 90, apresentava um caso de configuração espacial de patrimônio quase inversa à de Salvador, com uma área central de negócios moderna cercada, como uma ilha, de setores protegidos por todos os lados. Esse conjunto tinha e ainda tem uso predominantemente comercial, de 46 Caderno especial.p65 46 18/10/04, 13:17 serviços e institucional e apresentava, à época, uma tendência de popularização crescente. A área central de negócios era dotada de boa qualidade urbana, mas nos bairros periféricos a situação de deterioração do parque imobiliário era grave. Habitações ocupadas por estratos de renda mais baixos existiam apenas nos setores que nunca foram alcançados pela dinâmica do núcleo principal. Toda a área central, entretanto, possuía excelente acessibilidade, com avenidas de trânsito rápido, sistemas de transportes ferroviário, metroviário, náutico e aéreo ligando-a ao resto da cidade, à região metropolitana e a outros estados. No início da década passada, o trabalho de preservação dos conjuntos de valor patrimonial, realizado com apoio técnico e com incentivos fiscais do município, completava dez anos e apresentava bons resultados nos setores dinâmicos do centro que não haviam sido modernizados. O centro de São Paulo, no início dos anos 90, era um setor totalmente modernizado, com imóveis e pequenos conjuntos protegidos em boa parte de sua extensão. A área apresentava uso predominantemente comercial, de serviços e negócios e abrigava os remanescentes da atividade financeira, administrativa e de negócios que caracterizou a centralidade até os anos 60. Esse núcleo apresentava-se muito esvaziado e em franco processo de popularização, especialmente devido ao grande crescimento do comércio informal. De modo análogo ao Rio, o uso habitacional vinculado a estratos de renda média e baixa predominava apenas nos bairros periféricos. A acessibilidade da zona central, por meio de avenidas de trânsito rápido e transporte de massa, era, entretanto, muito boa. No que toca ao patrimônio, à exceção do trabalho de proteção desenvolvido depois dos anos 70 pela prefeitura e pelo Governo do Estado, nenhum projeto sistemático de preservação havia sido ainda implantado. As intervenções de preservação e re-qualificação implementadas durante os anos 90 nessas três cidades, foram, assim, marcadas por histórias urbanas e de preservação específicas e enfrentaram distintas situações do ponto de vista da estrutura e da dinâmica urbana e funcional. Implementaram, entretanto, ações de natureza muito semelhante, cujo maior ou menor sucesso, se relacionou a esse solo histórico e urbano sobre o qual se implantaram e não aos seus próprios poderes e méritos. As intervenções dos anos 90 Nas três cidades focalizadas as intervenções executadas tiveram a intenção de dinamizar, intensificar e reforçar a utilização das áreas centrais e do seu patrimônio, bem como transformar o perfil de uso popular que havia se instalado ou que ame- 47 Caderno especial.p65 47 18/10/04, 13:17 açava se instalar em setores considerados econômica e simbolicamente importantes. As estratégias adotadas por cada cidade foram, contudo, distintas. Em Salvador se perseguiu essa meta através da dinamização do turismo e do comércio no centro histórico, sem a implementação de medidas voltadas para o retorno ou a manutenção de funções centrais ou para o fortalecimento do uso habitacional existente. No Rio de Janeiro, o reforço e o desenvolvimento de atividades culturais e de lazer e o melhoramento da qualidade urbana do centro, comandaram as intervenções. No centro de São Paulo, o incentivo ao investimento privado e à produção imobiliária, conjugado a medidas de re-qualificação de espaços públicos, preservação de grandes monumentos e implantação de equipamentos culturais, deram o tom das iniciativas. Em todas as três cidades, essas intervenções de melhoramento da qualidade urbana foram conjugadas a medidas de controle do acesso e do uso dos espaços re-qualificados.6 As intervenções de melhoramento envolveram, principalmente, vias e logradouros públicos; a restauração de exemplares arquitetônicos importantes; a valorização ou inserção de objetos artísticos no espaço público; a instalação ou a renovação do mobiliário urbano; a recuperação de fachadas; a reciclagem de imóveis para novos usos; o deslocamento de terminais de transportes públicos e a provisão de estacionamentos para automóveis particulares. Uma vasta empresa de criação de áreas centrais mais ordenadas, visualmente agradáveis, seguras e preservadas foi posta em marcha, com vistas à atração de atividades e usuários capazes de dinamizá-las economicamente e promover a valorização do parque imobiliário. Essas intervenções de natureza mais física foram acompanhadas de medidas de controle do uso dos espaços como a eliminação ou o ordenamento do comércio informal; a instalação de barreiras para controlar o acesso e o trânsito em logradouros e vias; a mudança de uso; o deslocamento de moradores; a implantação de segurança pública ou privada especial e a realização de eventos culturais e de lazer em logradouros re-qualificados. Em Salvador, a população pobre residente no Pelourinho foi retirada do setor por meio da instalação de atividades comerciais nos imóveis que ocupava, do oferecimento de indenizações ou da simples transferências para outros locais. No Rio de Janeiro, moradores de rua foram expulsos do centro mediante ações policiais drásticas ou por meio da implantação de obstáculos ao uso e acesso de determinados espaços. Apenas em São Paulo, no final da década de 90, projetos de assistência e re-inserção social foram iniciados em resposta a fortes pressões de movimentos sociais. As intervenções executadas nas áreas centrais de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo foram, de um modo geral, pontuais e não obedeceram a planos que abar- 48 Caderno especial.p65 48 18/10/04, 13:17 cassem o conjunto dos respectivos territórios. Foram guiadas, contudo, por uma lógica de dinamização econômica, valorização imobiliária e controle da presença popular que integrou as ações executadas. Apenas em São Paulo, planos de maior alcance foram elaborados, mas não foram executados.7 Apesar dessa baixa execução do planejado, decorrente, em grande parte, de um excesso de otimismo com relação à participação da iniciativa privada nos projetos propostos, os planos elaborados contribuíram para desenvolver e consolidar um pensamento sobre a área central que, atualmente, coloca São Paulo à frente das outras cidades em termos de propostas e capacidade de viabilização de projetos. No Rio de Janeiro e em São Paulo as intervenções tenderam a se concentrar nos principais logradouros e artérias dos núcleos mais dinâmicos e setores de maior valor simbólico das áreas centrais. Em Salvador, o vínculo com o desenvolvimento do turismo comandou a localização das intervenções, concentrando-as nos sítios mais deteriorados do centro histórico e nos logradouros e corredores viários mais importantes que lhes dão acesso. A maioria das intervenções nessa cidade localizou-se ao longo dos caminhos do turismo, focalizando apenas parte da área comercialmente mais dinâmica do centro e pequenos trechos do seu antigo setor financeiro. No final da década, o fraco desempenho dessas intervenções no que toca à atração de investimentos privados de monta, novas atividades e transformação significativa dos quadros de esvaziamento e deterioração existentes, impulsionou o surgimento de estratégias voltadas para o atendimento a demandas existentes como o desenvolvimento da função residencial para estratos sociais de menor renda. Esse fracasso das ações de re-qualificação como pólos de atração, deveu-se ao desinteresse do mercado imobiliário formal e dos segmentos sociais mais abastados pelas regiões centrais, à existência de vetores de investimentos imobiliários mais dinâmicos e lucrativos em outras zonas e ao caráter epidérmico das intervenções realizadas, o que não lhes permitiu interferir nos processos estruturais que afetam nossos bairros históricos. Deveu-se ainda à opção de transformar a todo custo o quadro de apropriação popular desses setores, ignorando-se suas potencialidades como áreas para a solução dos problemas habitacionais desses estratos. No Rio de Janeiro, devido ao núcleo principal do centro ter mantido importância funcional maior na estrutura da cidade e uma dinâmica de uso e ocupação mais aquecida, as intervenções de re-qualificação apresentaram um desempenho melhor em face de seus objetivos iniciais. Não tiveram força, entretanto, para provocar transformações nos bairros periféricos, cujo quadro de deterioração e subutilização permaneceu inalterado. De um modo geral, portanto, à exceção dessa cidade, a iniciativa privada não respondeu da maneira esperada às estraté- 49 Caderno especial.p65 49 18/10/04, 13:17 gias de atração de investimentos deflagradas pelo poder público, oscilando entre um comportamento indiferente, especulador ou simplesmente oportunista. Os enclaves criados nas áreas centrais de Salvador e São Paulo para dinamização do turismo ou para animação cultural, por exemplo, permaneceram dependentes de recursos públicos para funcionamento e manutenção, e apresentaram, até o fim da década, um baixo poder indutor de transformações nos quadros urbanos em que se inserem. Os projetos de aproveitamento habitacional para rendas mais baixas implantados no final dos anos 90 no vácuo aberto por esses fracassos de mercado tiveram execução mínima nas três cidades e permanecem ainda como intervenções de caráter experimental. As dificuldades para desenvolvimento desses programas têm sido enormes por causa de entraves fundiários, financeiros, burocráticos, legais, urbanísticos e tecnológicos de todo tipo e, ainda, em razão de uma ação pouco agressiva do setor público no sentido de enfrentá-los. Despontaram, entretanto, como propostas dotadas de grande potencial de regeneração de certos setores e de produção de situações mais adaptadas às nossas demandas reais e à nossa realidade urbana e econômica. As intervenções habitacionais tenderam a se localizar de modo disperso nos bairros centrais ao sabor das oportunidades de aquisição ou desapropriação, privilegiando imóveis antigos em ruínas cuja situação possibilitasse um aproveitamento mais intenso de espaços internos e lotes. Em decorrência, entretanto, dos custos ainda altos da produção habitacional em sítios históricos e das grandes limitações dos financiamentos existentes, essas intervenções tenderam a preservar ou a resgatar apenas fachadas principais, a promover remembramentos, a super-ocupar lotes e a subdividir intensamente espaços internos remanescentes, com vistas à viabilização financeira das operações. Em São Paulo, as propostas de reabilitação vinculadas ao uso habitacional surgiram da pressão dos movimentos sociais que invadiram imóveis vazios ou abandonados no centro da cidade. 8 Desenvolveram-se, portanto, em campo próprio e oposto ao dos projetos de re-qualificação existentes. Somente no final da década de 90, foram envidados esforços, em São Paulo, para compatibilizar essas demandas e iniciativas. Em Salvador e no Rio de Janeiro, contudo, os projetos habitacionais foram incorporados aos programas de re-qualificação e dinamização econômica em andamento com um caráter complementar. Assim, a tendência mais recente dos projetos de regeneração e re-povoamento de áreas centrais de grandes cidades é conjugar medidas de dinamização econômica a outras de desenvolvimento do uso habitacional para faixas de renda média e baixa, aproveitando-se as linhas de financiamento disponíveis. O que se verifica então é que, na medida em que o 50 Caderno especial.p65 50 18/10/04, 13:17 modelo de re-incorporação de áreas centrais esvaziadas ao mercado, por meio da criação de atrações urbanas e de áreas re-qualificadas, foi se revelando limitado e inadequado ao nosso contexto social e econômico, surgiu a tendência de adaptá-lo às demandas existentes. No novo modelo que surge, as ações vinculadas à reanimação de atividades econômicas e imobiliárias tendem a se concentrar nos núcleos principais dos centros e setores com maior potencial de renovação, e as relacionadas à produção habitacional, nos bairros periféricos a esses núcleos ou nos setores de grande concentração de imóveis de valor histórico. A promoção do uso habitacional nas áreas centrais das cidades estudadas surgiu então, no final da década de 90, como o grande desafio das municipalidades, especialmente diante da impossibilidade de se ocupar todo o território esvaziado dessas áreas apenas com atividades direcionais, administrativas, comerciais ou produtivas. Se esse uso, entretanto, terá ou não um maior significado social ou contribuirá, efetivamente, para um desenvolvimento mais equilibrado e democrático dessas cidades, assim como para uma preservação mais sustentável do seu patrimônio, é uma questão que está vinculada a opções políticas, ao nível de organização das camadas populares e à ampliação ou não dos processos de gentrificação instalados em alguns pontos desses centros antigos. Em suma, a relevância urbana, social e cultural das intervenções de preservação das próximas décadas está vinculada a um projeto de cidade que logre conciliar dinamização econômica e valorização do patrimônio, com ações voltadas para a melhoria das condições habitacionais e de vida da população. A norma de produção e preservação do patrimônio nos anos 90 As operações de conservação do patrimônio urbano deram o tom da prática de preservação nos últimos anos, ultrapassando em número e freqüência as operações de seleção e de salvaguarda de bens culturais. Foram comandadas basicamente pela utilização dada ao bem de valor patrimonial e pelas estratégias de dinamização econômica e valorização imobiliária que o envolveram, mas vincularam-se também à qualidade da prática desenvolvida em cada cidade em períodos precedentes. O Rio de Janeiro, por exemplo, em decorrência da excelência do trabalho desenvolvido pelo Corredor Cultural, nos anos 80, apresentou, do ponto de vista da preservação do patrimônio, intervenções de qualidade técnica superior às das outras cidades. Em Salvador, atreladas a exíguos prazos políticos e a violentas estratégias de promoção do Governo do Estado da Bahia, as intervenções foram, de um modo geral, de péssima qualidade. 51 Caderno especial.p65 51 18/10/04, 13:17 As operações de conservação do patrimônio caracterizaram-se, no período, pela reciclagem de edifícios e espaços públicos e, como visto, pela sua adaptação para novos usos e atividades. Nessa empresa, a eliminação de anexos de serviços, o rompimento de relações de parcelamento, o super aproveitamento de espaços internos e lotes foi uma constante. O foco da preservação esteve, principalmente, na valorização, recuperação e reconstituição minuciosa de fachadas principais, com grande ênfase na reconstituição e até re-invenção de elementos concebidos como de especial valor patrimonial. As operações de conservação caracterizaram-se ainda pelo uso de estratégias de isolamento entre o novo e o antigo, verificando-se a tendência de se operar em pólos extremos, isto é, ou por meio da produção de pastiches ou de formas absolutamente contrastantes. O contextualismo e as estratégias de integração, típicos dos anos 80, foram relativamente abandonados, verificando-se uma espécie de retorno a uma estética patrimonial de viés modernista, baseada no contraste, na monumentalidade da intervenção e na introdução de objetos de impacto estético no espaço. Predominou, ainda, no período, uma postura de descolamento da arquitetura nova ou recuperada do desenho ou do tecido urbano existente que levou para o espaço público as estratégias de projeto baseadas no contraste e no rompimento de relações morfológicas. Relações pré-existentes de parcelamento, de ocupação de lotes, de distinção entre espaço público e privado e a forma original de logradouros públicos não constituíram, no geral, elementos julgados merecedores de preservação. As intervenções tenderam a ignorar a história urbana e a conferir aos logradouros ares pasteurizados de shopping mall. Buscou-se trazer para o mundo da rua os estímulos visuais e as sensações de ordem e segurança que caracterizam esses equipamentos comerciais, com a transposição de sua linguagem estética, informação dirigida e materiais de acabamento para os espaços re-qualificados. Nos anos 90, imperou, portanto, uma concepção de patrimônio urbano de caráter fachadista e concentrado em poucos elementos arquitetônicos. Essa concepção foi favorecida e reforçada pela lógica financeira e promocional que presidiu a montagem e a execução da maioria das operações e pelo vínculo dessas ações com o entretenimento, com o lazer cultural e com um turismo de espetáculos. Decorreu ainda de uma falta generalizada de compromisso com o papel informativo, documental e social do patrimônio. Esses contornos da prática foram ainda produzidos pela entrega das intervenções a profissionais e instâncias não especializadas em preservação do patrimônio e a grandes estrelas da arquitetura e do urbanismo nacional e internacional. O patrimônio urbano foi objeto de intervenções utilitárias e espetaculares que não tiveram grandes preocupações com perdas de documentação histórica, arqueológica, 52 Caderno especial.p65 52 18/10/04, 13:17 arquitetônica e urbanística. De um modo geral e isso foi especialmente visível em Salvador , as intervenções foram empreendidas sem um conhecimento mais fino do patrimônio existente, tendo sido rara e localizada a realização de estudos históricos, arqueológicos, tipológicos e morfológicos consistentes para apoiá-las. Essas práticas de conservação foram grandemente reforçadas e induzidas pelos programas montados no plano federal. As limitações de suas linhas de financiamento, modelos de intervenção e a ausência de um sistema adequado de subsídios promoveram a formação de enclaves apartados da realidade ou operações de reabilitação do patrimônio edilício que preservaram apenas elementos existentes no exterior visível dos imóveis. O aproveitamento econômico do patrimônio nos anos 90 não significou, portanto, um maior cuidado com as intervenções ou com a substância documental do patrimônio. Sistemas construtivos antigos, ofícios e modos de fazer tradicionais ligados à construção não foram resgatados, exceto em algumas intervenções realizadas em grandes monumentos e no trabalho de algumas oficinas-escola que se implantaram no período. A prática desenvolvida nesses nichos, contudo, não foi disseminada nem apropriada, ainda que parcialmente, no grosso das intervenções. Ao contrário, nos anos 90, o aproveitamento do patrimônio urbano trouxe para o campo da preservação apenas as práticas mais convencionais e limitadas da construção civil. Uma vez que o suporte físico é o que corporifica o patrimônio construído, as operações de conservação, em última instância, determinam o que será ou não preservado e a idéia de patrimônio que entrará em circulação ampla no conjunto da sociedade. Na medida em que deixem em segundo plano ou ignorem a função memorial, informativa e documental dos bens culturais, funcionam, ainda que involuntariamente, como instrumentos de produção de um patrimônio vazio de significados e de caráter meramente cenográfico. No bojo das intervenções realizadas na última década, o patrimônio foi promovido, principalmente, mediante a realização de eventos nas áreas re-qualificadas e sua apresentação como novas atrações urbanas. Esse tipo de abordagem mesclou-se às operações de conservação e utilizou estratégias de projeto que incluíram o uso de cores vivas e chamativas nas fachadas, técnicas de iluminação, a introdução no espaço de novos objetos, mobiliário especial, sinalização. Essas estratégias transformaram áreas recuperadas em ambientes pitorescos e também em peças publicitárias de si próprias e de seus promotores e patrocinadores.9 Os sítios urbanos que passaram por intervenções de preservação do patrimônio funcionaram, então, simultaneamente, como objetos e veículos de promoção. Aliadas às ações de con- 53 Caderno especial.p65 53 18/10/04, 13:17 servação, essas operações forneceram os grandes quadros visuais que atualizaram e concretamente difundiram a noção de patrimônio urbano no período. Essa noção, em última análise, correspondeu a tudo o que pudesse ser rapidamente identificado como antigo e divulgado como patrimônio recuperado. Restrita à capacidade do objeto arquitetônico ou urbano de comunicar e exibir rapidamente sua natureza patrimonial, a nova concepção resultou, se comparada à noção produzida nos anos 80 que tinha um caráter mais histórico e antropológico , em redução e estetização do conceito. Ao mesmo tempo, por seu fundo utilitário, promocional e vinculado à valorização imobiliária, promoveu uma ampliação do universo de bens passíveis de submissão à lógica da preservação. Tal ampliação, entretanto, não significou, no Brasil, que o patrimônio urbano tenha se transformado numa mercadoria imobiliária importante ou altamente disputada. Nas grandes cidades, a reciclagem e a reutilização do patrimônio edilício permaneceram restritas aos setores que sofreram intervenções financiadas pelo poder público, sem a ocorrência de crescimento de demanda por essas áreas ou por imóveis antigos no mercado consumidor. Em razão da permanência desse desinteresse pelo patrimônio urbano nos segmentos sociais para os quais o mercado imobiliário trabalha, e da dificuldade de acesso da população mais pobre ao financiamento da habitação, o aproveitamento econômico do patrimônio, nos anos 90, se vinculou mais ao fortalecimento de imagens, ao consumo cultural e ao lazer urbano do que à renda fundiária ou ao valor imobiliário. Na última década, especialmente em decorrência de seu uso como veículo promocional, o patrimônio urbano foi grandemente despojado de profundidade histórica e concentrado na superfície e na aparência das formas. Foi lugar de um novo tipo de renovação urbana que na realidade não preserva apenas lança mão das formas antigas e usa a noção de patrimônio como mote para um novo tipo de homogeneização espacial. A cidade histórica brasileira, concebida, em outras épocas, como monumento artístico e como testemunho dos processos históricos de formação da nação, fechou o século XX como mais uma atração urbana. O patrimônio produzido e preservado nessa cidade-atração foi o que sobrou dessa nova e, ao mesmo tempo, já velha abordagem. 54 Caderno especial.p65 54 18/10/04, 13:17 Foto 1 Salvador, interior de quarteirões do Pelourinho. Eliminação de anexos de serviço e rompimento de relações de parcelamento para a instalação de praças de alimentação. Foto 2 - Salvador, Praça da Sé: pastiche ou contraste? 55 Caderno especial.p65 55 18/10/04, 13:17 Foto 3 - São Paulo, Praça do Patriarca. Objeto de impacto estético para valorização do espaço recuperado. Foto 4 Novo piso da Praça XV: re-qualificação com uso de linguagem de shopping center (foto do Arquivo da Prefeitura do Rio de Janeiro). 56 Caderno especial.p65 56 18/10/04, 13:17 Foto 5 Salvador, bairro de Santo Antônio - interior de lotes remembrados para abrigar empreendimento habitacional: obra convencional e projeto que preserva apenas as fachadas principais, ignora relações de ocupação e parcelamento típicas do conjunto tombado. Foto 6 - São Paulo, cela da antiga Delegacia de Ordem Política e Social DOPS cujo prédio foi transformado nos anos 90 em centro cultural.Um patrimônio sem profundidade histórica 57 Caderno especial.p65 57 18/10/04, 13:17 Marcia SantAnna é doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Notas 1 O termo norma é utilizado aqui no sentido de conjunto de práticas, discursos e procedimentos que cria padrões de comportamento e passa a orientar a abordagem, o tratamento, a utilização e a própria constituição de certos objetos no seio da sociedade. A esse respeito, ver FOUCAULT, Michel. Soberania e disciplina. In: ______ Microfísica do Poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984b. p.179-192 e, do mesmo autor, Vigiar e punir: nascimento da prisão. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 1987, e História da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Ver também sobre a norma enquanto agente de criação de padrões de comportamento social, COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p. 50-51. 2 Ver mais a respeito da apropriação eleitoral da intervenção no Pelourinho, FERNANDES, Antônio Sérgio. Empresarialismo urbano em Salvador: a recuperação do Centro Histórico Pelourinho. 1998. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Urbano e Regional)- Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1998. 3 Sobre as intervenções realizadas nas áreas centrais de Salvador, Rio de Janeiro e em São Paulo, ver VIEIRA, Natália Miranda. O lugar da História na cidade contemporânea: revitalização do Bairro do Recife x recuperação do Pelourinho. 2000. Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000; MAGALHÃES, Roberto Anderson de Miranda. A requalificação do centro do Rio de Janeiro na década de 1990. 2001. Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001; AMADIO, Décio. Alguma coisa acontece...: uma investigação sobre o Centro de São Paulo. 1998. Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998; ARANTES, Otília. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ______; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p.11-74; FELDMAN, Sara. Tendências recentes de intervenção em centros metropolitanos. In: SÃO PAULO (SP). Câmara Municipal. Comissão de Estudos sobre Habitação na Área Central: Relatório final. São Paulo, 2001, e MOTTA, Lia. A apropriação do patrimônio urbano: do estético-estilístico nacional ao consumo visual global. In: ARANTES, Antonio A. (Org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 256-287. 4 O Programa Monumenta, do Ministério da Cultura, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento BID; o Programa de Revitalização de Sítios Históricos, da Caixa Econômica Federal e o Programa URBIS, do Ministério da Cultura e do IPHAN. Além desses programas implementados a partir da segunda metade da década de 90, foram também muito utilizados em intervenções realizadas no Rio de Janeiro e São Paulo, os benefícios fiscais do Programa Nacional de Apoio à Cultura PRONAC, criado em 1991. 5 No presente texto, serão enfatizados os contornos da prática de preservação proporcionados pelas intervenções nas áreas centrais de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Uma descrição mais detalhada do papel dos programas nacionais na construção dessa norma será feita em outra oportunidade. 6 Ver a esse respeito, MAGALHÃES, op. cit., p. 86-117. 7 Ver Ver MEYER, Regina Maria Prosperi; IZZO JÚNIOR, Alcino. Pólo Luz: Sala São Paulo, cultura e urbanismo. São Paulo: Viva o Centro, 1999, p. 27 e AMADIO, op. cit. 8 Ver a esse respeito, BONDUKI, Nabil. Habitação na área central de São Paulo: uma opção por uma cidade menos segregada, por um centro sem exclusão social. In: SÃO PAULO (SP). Câmara Municipal. Comissão de Estudos sobre Habitação na Área Central: Relatório final. São Paulo, 2001. p.3-10. 9 Sobre o uso do espaço urbano em estratégias publicitárias para o reforço de imagens públicas e marcas comerciais ver KLEIN, Naomi. No Logo: taking aim at the brand bullies. New York: Picador, 2002. Este artigo foi originalmente publicado no Livro do Seminário Internacional Museus & Cidades / organização Afonso Carlos M. dos Santos, Carlos Kessel e Cêça Guimaraens. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2004. Sintetiza parte das pesquisas realizadas para a elaboração de tese de doutorado defendida em abril de 2004, junto ao PPGAU/FAUFABa, intitulada A Cidade-Atração: a norma de preservação de centros urbanos no Brasil dos anos 90. 58 Caderno especial.p65 58 18/10/04, 13:17 Carmen B. Silveira O ENFOQUE URBANÍSTICO-CULTURAL NO PLANEJAMENTO A PARTIR DA DÉCADA DE 1980 Os projetos de revitalização urbana na cidade do Rio de Janeiro. Neste paper procuramos identificar algumas concepções de memória e sua relevância para compreender aspectos significativos do planejamento urbano, atualmente bastante vinculado às questões culturais. Referimo-nos ao enfoque nitidamente urbanístico-cultural dos chamados projetos de revitalização urbana que têm a atribuição de preservar o patrimônio cultural urbano, e, portanto, a memória da cidade. Introdução Pretendemos desenvolver, inicialmente, algumas discussões recentes no âmbito da história e das ciências sociais relativas aos conceitos de memória e suas implicações no planejamento urbano recente1 . Desse modo, procuramos identificar algumas concepções de memória e sua relevância para compreender aspectos significativos do planejamento urbano, atualmente bastante vinculado às questões culturais. Posteriormente, referimo-nos ao enfoque nitidamente urbanístico-cultural dos chamados projetos de revitalização urbana que têm a atribuição de preservar o patrimônio cultural urbano, e, portanto, a memória da cidade. Consideramos os novos projetos de revitalização como as formas atuais dos conhecidos planos e projetos de renovação urbana. Verificamos, igualmente, a necessidade de compreender esses novos projetos como alternativas de desenvolvimento urbano, ou seja, de procurar desvendar algumas possibilidades de intervenções urbanas que abarquem os problemas sociais, examinando-se as políticas urbanístico-culturais em curso. A sua vinculação a um projeto de desenvolvimento social torna-se necessária, conforme se pretende expor, no que segue, aludindo à visão de Fernandes2 e Santos3 . Ambos procuram questionar as ações públicas nas áreas centrais, lugares privilegiados para os investimentos do Estado relativos aos projetos de revitalização. No item subseqüente, buscamos esclarecer as concepções de patrimônio cultural envolvidas nessas políticas urbanístico-culturais4 . Finalmente, tecemos alguns comentários sobre as legislações concernentes a tais políticas na cidade do Rio de Janeiro, bem como dos projetos urbanos a partir da década de 1980, denominados de projetos de preservação / revitalização / requalificação ou reabilitação urbanas. Privilegiamos os atores envolvidos nas concepções e promoções das 59 Caderno especial.p65 59 18/10/04, 13:17 políticas e planos urbanos recentes e procuramos identificar noções de memória nos planos e projetos urbanos que buscam a preservação da memória e a revitalização urbanas, tendo em vista a possibilidade de se estruturar um projeto de desenvolvimento urbano. Aspectos culturais do pensamento sobre a(s) memória(s) e a(s) política(s) cultural(ais) No âmbito das políticas urbanas de revitalização, emergem as políticas urbanísticoculturais destinadas a preservar a memória de determinados espaços da cidade. Cabe indagar, inicialmente, qual memória se pretende preservar, para que e para quem. Recentemente vem ocorrendo uma reatualização da história da teoria da memória devido às transformações profundas ocorridas no século XX. O abandono das ideologias e interpretações universais, isto é, a condição de desesperança em relação a uma utopia coletivista possível na chamada era dos extremos, revela uma humanidade tratando, por um lado, de um mundo revolucionado pelo avanço significativo das novas tecnologias da informação e da comunicação e, por outro, de um mundo vivenciando graves problemas de extermínio de vidas humanas em contextos nacionalistas e da chamada limpeza étnica5 . Em decorrência a esse quadro de descrenças e acentuados contrastes, a busca do conhecimento se expressa, freqüentemente, numa busca de auto-conhecimento e o universal passa cada vez mais pelo individual: a questão da memória se evidencia em numerosos campos, dentre os quais, interessa frisar neste texto, o das políticas urbanas e culturais. Assinalando a existência de uma arte da memória contemporânea, SeligmannSilva ressalta as mudanças do último século e aponta seu momento crucial - a Segunda Guerra Mundial -. a partir da qual o discurso da memória adquire especial relevância. Anteriormente, já havia sido retomado por intelectuais como Bergson, Aby Warburg, Walter Benjamin e Maurice Halbwachs e Proust, mas, no pós-guerra, tal discurso se dissemina em diversos campos sociais. A necessidade de recosturar as identidades antes oprimidas e impedidas de se manifestar, ao lado do próprio movimento de luto pela perda de vidas gerada pela Grande Guerra, pelos movimentos de auto-afirmação das minorias e pelas lutas contra governos totalitários e autoritários, gerou uma cultura da memória (...). Assim, essa cultura da memória surge de movimentos de resistência ao esquecimento nos discursos e ações do poder público e à cultura da amnésia, do apagamento do passado, que caracteriza nossa sociedade globalizada pós-industrial6 . 60 Caderno especial.p65 60 18/10/04, 13:17 Na mesma direção, revela-se o pensamento de DAlessio7 , ao afirmar que a memória nacional uniformizou lembranças, exercendo, portanto, uma função opressora em relação às experiências lembradas por pessoas e grupos. Segundo a autora, a entrada em cena das memórias subterrâneas faz aflorar conflitos entre memórias emergentes e memórias estabelecidas, estas organizadoras da ordem social. Compreende-se, desse modo, o debate sobre a memória da cidade como um campo de conflitos, evidenciando-se que as políticas culturais tendem a priorizar a implementação de projetos / intervenções físicas nas centralidades do tecido urbano construindo, muitas vezes, verdadeiros teatros de memória8 . Pode-se dizer que a construção da memória da cidade constitui-se como uma questão fundamental para a identidade dos seus habitantes. Assim, os critérios de escolha/ seleção de projetos de preservação da memória urbana são especialmente relevantes, pois projetos expressivos de determinados grupos passam a representar oficialmente a sociedade local. Contudo, constata-se que na implementação das políticas culturais privilegia-se, muitas vezes, a construção de cenários patrimoniais relacionados à história oficial, deixando submersas outras memórias, outras possíveis escolhas. De acordo com Jeudy, subjacente às preocupações habituais da salvaguarda dos patrimônios, encontra-se uma busca de valorização das memórias coletivas das sociedades. Independentemente do interesse muitas vezes obsessivo de resguardar objetos, emerge um movimento de consagração de todos os signos culturais9 . Nesse contexto, verifica-se uma proliferação de museus, nos quais objetos, imagens e relatos são conservados como testemunhos de culturas, de inovações técnicas ou da identificação de diferentes modos de vida. Trata-se de amplo empreendimento que se propõe a estocar e classificar tais testemunhos. Jeudy, entre diversos autores, ressalta essas constatações e indaga se é a novidade que suscita o medo ou se isso resulta da incidência das grandes transformações industriais que engendra uma angústia da perda do sentido da existência. Para o autor, a conservação, sob todos os aspectos, continuaria então a promover estratégias asseguradoras diante da ameaça de desaparecimento dos signos culturais da identidade.... Considera que esse movimento de museificação das cidades adviria da preocupação com a queda das crenças nos grandes valores da humanidade e constituiria uma reserva de transmissão dos conhecimentos e das práticas, um verdadeiro teatro das memórias (idem)10 . Retomando as indagações iniciais, sobre qual memória se pretende preservar, para que e para quem, os três autores acima mencionados acionam alguns aspectos fundamentais. Alude-se, primeiro, à preocupação de Seligmann-Silva de buscar 61 Caderno especial.p65 61 18/10/04, 13:17 esclarecimento sobre as origens dessa reatualização do pensamento sobre a memória, apontando o período pós Segunda Guerra como momento de reafirmação dessa temática. Ora, foi nessa época que se desencadearam, em grandes cidades européias, processos de reconstrução de suas áreas centrais destruídas pela guerra e grupos de urbanistas norte-americanos e europeus passaram a refletir mais intensamente sobre a necessidade de reconstituir ou não aspectos dos espaços do passado. Portanto, o tema da memória ressurge nos anos 1950, em meio aos projetos de recuperação de espaços perdidos pelos acontecimentos dramáticos, embora não estivesse nomeado enquanto tal11 . A discussão proposta por DAlessio, como diversos outros autores, refere-se aos conflitos nos tratamentos do tema da memória, à compreensão da existência de diversas memórias, não de uma única, oficial, a ser aceita e celebrada passivamente. Nas escolhas dos trechos da cidade, dos tipos de arquitetura, dos rituais e outros elementos da cultura urbana a serem preservados, evidencia-se a existência de grupos distintos com suas respectivas memórias nem sempre conciliáveis. Portanto, a autora revela um campo tenso, onde se deve atentar para a complexidade da seleção dos fragmentos urbanos a serem preservados e celebrados como espaços de memória. Finalmente, a aguda reflexão de Jeudy problematiza essa temática trazendo à discussão a valorização das memórias coletivas das sociedades, subjacente às propostas de preservação do patrimônio. No seu estudo, para além dos conflitos evidenciados por DAlessio, expõe a questão dos excessos a respeito da preservação, apontando as tendências muitas vezes obsessivas de se preservar todos os signos culturais. A despeito da necessidade de se observar a evidência da opressão nos processos de decisão, como mostra DAlessio, e da necessidade de movimentos de resistência ao apagamento das memórias, como lembra Seligmann-Silva com o surgimento de uma cultura da memória como reação a uma cultura da amnésia, Jeudy questiona as estratégias asseguradoras da memória e adverte em relação à museificação das cidades contemporâneas. Desse modo, apontou-se aqui apenas alguns aspectos de um debate que tem se ampliado recentemente, com numerosos pesquisadores de disciplinas acadêmicas distintas abordando os problemas da memória, da preocupação com a criação de teatros de memória nas chamadas políticas culturais. Projetos de revitalização e alternativas de desenvolvimento urbano centro e centralidade, funções e ações sociais Aborda-se, primeiramente, a indagação apresentada em texto anterior12 , que se afigura significativa para explicitar a discussão aqui proposta: os chamados projetos 62 Caderno especial.p65 62 18/10/04, 13:17 de revitalização urbana, atualmente em desenvolvimento na cidade do Rio de Janeiro, não deveriam estar mais nitidamente relacionados a uma proposta de revitalização social? Na análise realizada naquele texto, esboçou-se um quadro a respeito de alguns projetos de revitalização em curso no Rio de Janeiro e alertou-se para a complexidade dos problemas que envolvem uma ação do poder público no intuito de preservar o patrimônio cultural urbano. Assim, observa-se que a memória da cidade abrangida pelos projetos de preservação urbana suscita um trabalho profundo e ambicioso e que a implementação das atuais propostas de revitalização no contexto municipal não logrará atingir facilmente os objetivos enunciados. Pode-se considerar os novos projetos de revitalização como as formas atuais dos conhecidos planos e projetos de renovação urbana, que muitas vezes resultam em processos de elitização dos espaços revitalizados. No entanto, alguns objetivos de preservação urbana vinculada à preservação social podem ser alcançados, a depender do enfoque preconizado nesses projetos. Por este motivo, para auxiliar a compreensão destas ações do poder público, torna-se imprescindível associá-los ao estabelecimento de alternativas de desenvolvimento urbano. Ou seja, trata-se de procurar desvendar algumas possibilidades de intervenções urbanas que abarquem os problemas sociais, examinando-se as políticas urbanístico-culturais em curso. A sua vinculação a um projeto de desenvolvimento social é inextricável, conforme se pretende expor no que segue, aludindo à visão de Fernandes13 e Santos14 . Ambos procuram questionar as ações públicas nas áreas centrais, lugares privilegiados para os investimentos do Estado relativos aos projetos de revitalização. Fernandes respalda-se na conferência proferida por Santos15 para afirmar que, em 1958, este estudioso já apontava o fenômeno ao tratar do centro de Salvador (na sua tese de doutorado) a respeito das cidades médias ou grandes, ambas reguladas pela força do lucro. De maneira similar ao exposto no item anterior, sobre o tema da memória, Fernandes registra algumas questões que facilmente acometem o pensamento de quem escuta o termo revitalização de áreas centrais: o que se entende por revitalizar, o que revitalizar, por que revitalizar, para quê e para quem. Na visão de Santos, o tema da sua conferência intitulada Salvador: Centro e Centralidade na Cidade Contemporânea, num primeiro momento, indicaria que a questão seria a de uma forma - o centro - e a de uma função - a centralidade. Utilizando a sugestiva expressão rejuvenescimento para nomear o debate recente sobre as áreas centrais das cidades, o autor enfatiza que o problema dessas ações é de método. Assim, recomenda, sabiamente, que: diante da realidade nós não te- 63 Caderno especial.p65 63 18/10/04, 13:17 mos de obrigatoriamente nos limitar a descrever a partir do livro dos mestres. A experiência deve ser um ponto de partida (p.29, grifo nosso, apud Fernandes, 2003). Santos16 sublinha as características do centro antigo, em certas épocas limitado, quase congelado, onde as funções típicas da centralidade se superpunham, escolhendo aqui e ali subespaços especializados. Tratava-se de um centro que comandava toda a estrutura urbana, incluindo a vida econômica, a vida política e a cultural; constituía um centro polifuncional e monopólico, o único centro da cidade. Num momento posterior, verifica uma multipolarização da cidade, com especializações dos seus espaços e conseqüente redistribuição das funções urbanas. Ocorre, então, uma gradativa decadência do centro velho, concomitante ao surgimento de subcentros. Esse momento marca uma mudança funcional da cidade, onde o turismo evidencia-se como fator crucial na compreensão da centralidade: junto aos habitantes com sua lógica de consumo do centro vinculada ao seu poder aquisitivo e à sua possibilidade de mobilização, afluem os turistas, dispostos a estar em toda parte e que começam a repovoar, a recolonizar, a refuncionalizar e a revalorizar o velho centro. No que tange ao terceiro momento, o atual, identificado por Santos como o do rejuvenescimento parcial do velho centro adaptado às exigências do turismo, procura-se entender as questões abordadas como questões que podem ser relacionadas ao caso da cidade do Rio de Janeiro. Com efeito, busca-se entender as questões do centro e da centralidade através das novas funções urbanas, desencadeadas com a ampliação da função do Estado, graças às exigências da sociedade em relação a respostas públicas à sua demanda e à expansão de um sistema financeiro exigente de localizações precisas. A primeira questão evidenciada pelo autor é a da instalação das técnicas, dos macrosistemas técnicos e sua localização. Com a ampliação crescente dos sistemas técnicos, a humanidade tem vivenciado crises sócio-espaciais decorrentes de mudanças tecnológicas. Como exemplo, recorda que a humanidade já viveu sem telefones, mas havia formas de convivialidade direta que desapareceram. O desaparecimento da convivialidade direta contribuiu decisivamente para a fragmentação do centro; ambos, convivialidade direta e fragmentação do centro resultaram da implantação dos macrosistemas técnicos modernos na cidade. Outra questão significativa é a revolução que ocorre na idéia do consumo de proximidade e do consumo de distância, atribuindo nova dimensão ao centro e conduzindo à questão do movimento na cidade e a questão da acessibilidade. A idéia de consumo conquistou rapidamente a sociedade brasileira e impediu o desenvolvimento de uma cidadania completa. Aqui ocorreu, então, uma produção de con- 64 Caderno especial.p65 64 18/10/04, 13:17 sumidores mais-que-perfeitos. Os europeus e norte-americanos são consumidores imperfeitos, porque se defendem das artimanhas do consumo e das artimanhas dos negociantes, enquanto nós não nos defendemos nem de um nem dos outros, ampliando por conseguinte a possibilidade de instalação de comércios, graças igualmente à creditização da sociedade brasileira. Aqui a moda dos cartões de crédito se difundiu rapidamente e, além disso, a notória imaginação nacional desenvolveu outros meios de multiplicação do crédito. Nesse novo contexto, o centro torna-se o lugar do movimento rápido; e o centro velho apresenta-se como lugar do movimento lento. Na concepção de Santos, na cidade, a velocidade intelectual e política maior não se instala nas áreas de movimento rápido e sim naquelas de movimento lento. No Brasil, os que vivem nas áreas luminosas da cidade, as áreas do movimento rápido, são embotados para o entendimento do mundo - as classes médias e as classes além da classe média. Nas áreas do movimento lento há uma rapidez possível, uma acuidade na percepção do movimento do mundo exatamente porque os pobres estão isentos do consumo mais-que-perfeito. Tal consumo impossibilita a contemplação das mudanças, porque as classes médias e as classes acima das médias não querem mudar nada. Elas querem o presente, um presente mais aperfeiçoado. E o presente não é mudança, só o futuro é mudança. No estudo de Fernandes, destacam-se as suas observações a respeito das cidades médias17 . Na sua percepção, a cidade média apresenta uma (aparente?) contradição, isto é, conseguiu conservar o monopólio funcional do centro antigo, mas não conseguiu guardar a realidade do movimento lento que caracterizava o centro antigo, conforme Milton Santos. O consumo mais-que-perfeito é o que parece presidir o uso que hoje se faz dos espaços públicos do centro da cidade. Com efeito, a cidade média analisada por Fernandes configura-se, atualmente com dois centros: o antigo, embora ainda exercendo uma gravidade muito intensa sobre as funções urbanas em sua direção, e o outro, novo, onde o consumo mais-que-perfeito se acomoda com mais conforto e desenvoltura, o shopping center. A autora pergunta se seria possível perceber o movimento lento mencionado por Milton Santos, no centro antigo de algumas cidades médias paulistas, onde as classes mais pobres agora circulam à vontade ao menos nos chamados jardins públicos da cidade? No entanto, não observa ali experiências de contemplação das mudanças, de convivialidade direta. Ali também se vêem transeuntes, consumidores e trabalhadores em circulação, preocupados em chegar ao seu destino. Feitos esses comentários, referentes aos textos de Santos e Fernandes, resta assinalar que ambos propõem a recriação dos espaços de convivência como forma de 65 Caderno especial.p65 65 18/10/04, 13:17 reconstituir espaços com a cultura da troca, da convivialidade direta, perdida no tempo da aceleração contemporânea. Os exemplos para tal recriação, para Santos, seriam os lugares de resistência às mudanças espaciais, os espaços dos pobres que permaneceram em determinados pontos da cidade que lograram preservar, tantos aspectos físicos como sociais. Fernandes, por seu turno, verifica que a perda de sociabilidade também ocorre na cidade média, onde o centro antigo mantém o monopólio das funções centrais. Estudar os espaços a partir da experiência, reafirma Santos, evocando a busca dos aspectos mais ricos da vida urbana preservados pelos pobres. Segundo Fernandes, a sua proposta de promover o mundo dos homens e sua esfera pública trata-se de uma utopia, necessária para uma efetiva revitalização das áreas centrais. A tese proposta pelos dois textos, apresenta algumas semelhanças com os estudos realizados pelos urbanistas europeus e norte-americanos, a respeito da retomada da centralidade da cidade, examinando os centros das grandes cidades européias destruídos na Segunda Guerra18 . Conforme as próprias palavras de Fernandes supracitadas, a sua pretensão seria de uma utopia urbana. Interessa salientar que ambas as análises são propensas a identificar potencialidades no tecido social, o que apontaria indícios, sinais cristalizados no território, que propiciassem um efetivo desenvolvimento urbano no tratamento dos centros e centralidades das cidades médias e grandes. Entretanto, torna-se imprescindível reforçar a inelutável necessidade de abordar os projetos de revitalização como projetos de desenvolvimento urbano no seu sentido mais amplo, abarcando a revitalização social, cultural e espacial, com igual profundidade nas ações relativas a cada uma delas. Para trabalhar na preservação / revitalização do espaço concreto, deve-se atuar, também na preservação do conteúdo dessas formas. A esse respeito, pode-se destacar que, no caso do Rio de Janeiro os exemplos de preservação urbana / memória da cidade que não levaram em conta a íntima relação existente entre as edificações preservadas e a vida que nelas se desenrola, não obtiveram o sucesso de outros investimentos públicos que se mostraram sensíveis ao ambiente social que envolve os trechos preservados. Finalmente, ressalta-se que a abordagem de Fernandes apóia-se, além de Santos, em outra interlocução privilegiada, a de Hannah Arendt, e descreve a sua apropriada concepção de que a destruição do mundo comum é geralmente precedida pela destruição da pluralidade humana, que escraviza os homens e os impede de agir e se revelar, especialmente quando predominam as tiranias (...). O mundo comum extingue-se quando a pluralidade e o conflito em torno das idéias cessam (Arendt, apud Fernandes, op. cit.). Neste sentido, as ações de políticas culturais 66 Caderno especial.p65 66 18/10/04, 13:17 conseqüentes, compromissadas com o desenvolvimento urbano em sentido amplo e igualitário precisam atentar para a preservação da memória dos lugares, com sua riqueza e complexidade urbanas, construídas no decorrer das vidas desses lugares. As palavras de Anísio Teixeira: a minha tese é a de que a diversificação é a condição do florescimento das culturas, e a uniformidade, a condição de sua morte e petrificação 19 também são extremamente sugestivas no que concerne às preocupações que devem nortear políticas urbanístico-culturais de revitalização urbana, para que respeitem os espaços construídos historicamente e estimulem o florescimento da criatividade nas culturas locais. Políticas culturais patrimônio cultural Procuramos identificar, inicialmente, algumas concepções de patrimônio cultural envolvidas nas políticas culturais20 de revitalização urbana, privilegiando os atores envolvidos nas suas concepções. Considerando-se que, no contexto das políticas públicas referidas ao chamado patrimônio cultural urbano há uma clara imbricação entre o conceito de patrimônio e a preservação da memória da cidade, a elucidação deste conceito torna-se especialmente relevante para problematizar a relação entre patrimônio cultural urbano e a construção de identidades. Assim, de acordo com Gonçalves (2002), o patrimônio é mais do que uma política cultural. O patrimônio tem um papel cognitivo e construtivo universal21 . O autor ressalta que a idéia de patrimônio firma-se como categoria na modernidade, surgindo com a formação dos Estados nacionais modernos, ao final do século XVIII e início do século XIX22 . Em apoio ao pensamento urbanístico ou do planejamento urbano, torna-se necessário refletir sobre o patrimônio: como essa categoria é usada e com que significados? No mundo contemporâneo, como indica a antropologia, tem sido uma palavra muito utilizada no cotidiano, com diversos significados. Um dos mais correntes associa patrimônio a bem de herança ou à transmissão de bens familiares, por intermédio de leis, de uma geração a outra. É usada como acumulação, representação, troca, ponte entre passado, presente e futuro, apropriação e perda. Neste sentido, patrimônio tanto pode se referir à acumulação, como à distribuição, à destruição de bens materiais, simbólicos. A concepção atual da antropologia enfatiza as relações sociais, e, menos, a cultura material. Assim, patrimônio passa a ser uma categoria da vida social e mental que orienta ângulos relevantes da vida coletiva, com diversas acepções e qualificações: patrimônio social, cultural, arquitetônico, econômico. Portanto, do ponto de vista moderno, trata-se de uma categoria passível de especificações por saberes especializados. 67 Caderno especial.p65 67 18/10/04, 13:17 Tratando do patrimônio cultural como apropriação e perda, assinala-se finalmente que:A história, assim como a antropologia (...), desempenha um papel importante na articulação das narrativas nacionais sobre patrimônio cultural. No entanto, enquanto antropólogos, historiadores ou folcloristas, escrevem textos de descrição e análise de sociedades, culturas, instituições, rituais, etc., aqueles que lidam pragmaticamente com o chamado patrimônio cultural dedicam-se às práticas de colecionar, restaurar e preservar objetos com o propósito de expô-los para que possam ser vistos e preencham as funções pedagógicas e políticas que lhe são atribuídas. Desde seu começo enquanto um gênero cultural nas sociedades modernas, desde fins do século XVIII e inícios do século XIX, as chamadas práticas culturais de preservação histórica têm estado voltadas para a identificação, coleta, restauração e preservação de objetos culturais no sentido geral deste termo (Bann 1984; Lagarde, 1979). Estes podem ser pensados como parte de um sistema de objetos (Baudrillard 1968) cujo papel no processo de formação de identidades de grupos e categorias sociais nas modernas sociedades ocidentais tem sido discutido por vários autores (Santos Gonçalves, 1996, p.21-22). (Grifo nosso). Políticas culturais, preservação da memória e revitalização urbanas um projeto de desenvolvimento urbano? Neste item, trata-se das políticas culturais relativas às intervenções urbanas que buscam a preservação da memória e a revitalização urbanas, tendo em vista a possibilidade de se estruturar um projeto de desenvolvimento urbano. Desse modo, tecemos alguns comentários sobre as legislações urbanísticas / culturais na cidade do Rio de Janeiro, bem como dos projetos urbanos a partir da década de 1980, denominados de projetos de preservação / revitalização / requalificação ou reabilitação urbanas. Recentemente, mediante a preservação do patrimônio cultural, o tema da memória vem assumindo relevância nas políticas culturais da metrópole do Rio de Janeiro. Contudo, visando contextualizar, de forma sintética, os antecedentes dessas políticas, interessa salientar alguns aspectos da ação do poder público nos últimos cem anos. Portanto, no início do século XX grandes projetos e intervenções urbanas passaram a transformar a fisionomia da cidade-capital do país, mormente na área central e seus arredores. Pode-se afirmar que, grosso modo, no período delimitado pelo início do século XX até meados da década de 1970, as políticas públicas de intervenção no espaço físico da cidade do Rio de Janeiro pautaram-se por uma atuação nitidamente de renovação urbana23 . Desde o final da década de 1970, 68 Caderno especial.p65 68 18/10/04, 13:17 entretanto, verificou-se uma mudança nessa atuação, desencadeando-se outro período, fundamentado em políticas urbanístico-culturais de preservação / revitalização urbanas24 . Desse modo, a partir da década de 1980, mediante a implementação do Projeto Corredor Cultural, legislação urbanística / cultural precursora, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro passa a atuar em projetos de preservação, revitalização, requalificação e/ou conservação urbana. A área central e outras centralidades têm sido objeto de diversos planos e intervenções, sobretudo nas duas últimas gestões administrativas, através da Secretaria Municipal de Urbanismo. Destacase a atuação da Secretaria Municipal das Culturas e da Secretaria Estadual de Cultura na implementação de suas políticas que, de um modo geral, vêm se constituindo em investimentos significativos nas áreas centrais e apresentando algumas ações nas áreas periféricas. Desde meados da última década, essas duas secretarias municipais vêm exercendo tais atividades de acordo com os objetivos do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro e, seguindo uma tendência mundial no campo do urbanismo, enfatizam aspectos da história e da memória urbana. Neste contexto, assinala-se a utilização da cultura como instrumento de desenvolvimento econômico e da memória com um papel relevante na criação de espaços diferenciados pelas suas especificidades históricas consideradas como suportes de memória. A respeito dessas políticas, destaca-se a legislação urbanística que prevê a implementação das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural APACs; o Projeto de Revitalização da Praça Tiradentes; o Distrito Cultural da Lapa25 e o Plano de Recuperação e Revitalização da Região Portuária. Tais exemplos abrangem trechos significativos da cidade e, com exceção do caso das APACs que extrapola os limites do centro, referem-se a espaços contidos na área central da cidade. Considerando que cada um desses projetos envolve uma atuação ampla e complexa no espaço da cidade, cumpre observar que o patrimônio cultural urbano e, conseqüentemente, a memória da cidade, constituem, ambos, objeto de implementação de propostas ambiciosas que dificilmente poderão atingir os seus objetivos. Como é sabido, também são amplos e complexos os problemas sociais que devem ser tratados pela mesma gestão municipal que pretende implementar os projetos de revitalização urbana. Pode-se complementar retomando a questão delineada no segundo item deste texto, de que os projetos de revitalização urbana deveriam estar mais nitidamente relacionados a uma proposta de desenvolvimento urbano em sentido mais amplo, abarcando a revitalização social, cultural e espacial, com igual profundidade nas ações relativas a cada uma delas. 69 Caderno especial.p65 69 18/10/04, 13:17 Na investigação dos aspectos da construção da memória urbana nas políticas culturais, as quais têm sido implementadas sobretudo nas centralidades urbanas, cabe sublinhar que tais políticas constituem ferramentas essenciais de construção dessa memória. Portanto, delineiam uma particular memorialística da cidade ao inscrever no tecido urbano uma leitura que torna memoráveis alguns aspectos do ambiente construído 26 . Esses trechos tornados memoráveis, certamente serão reconhecidos por determinados setores, mas possivelmente não haverá uma vinculação clara com muitos outros, portanto, a construção de identidade social também ficará restrita a alguns setores da sociedade. Finalizando, cabe enfatizar que a implementação de políticas culturais seletivas, valorizando espaços específicos da cidade, reforça distâncias sociais, mas, por outro lado, grupos sociais instalados nas áreas periféricas, mais pobres, com potencial de percepção dos chamados homens lentos, vêm apresentando reivindicações que podem estimular e, por vezes, transformar políticas27 . A apropriação dessas reivindicações populares pelo poder público deverá ser analisada, com maior aprofundamento, na busca da compreensão dos projetos de revitalização urbana como projetos de desenvolvimento urbano, em sentido amplo e igualitário, conforme se observou no decorrer deste texto. Carmen B. Silveira é doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Notas 1 Buscamos reconstituir alguns aspectos da história do pensamento sobre a memória, através de Marcio SeligmannSilva, 2001; Márcia Mansor DAlessio, 1998 e Henri-Pierre Jeudy, 1990 e 2001. 2 FERNANDES, Ana Cristina. Revitalização de Áreas Centrais, 2003. 3 SANTOS, Milton. Salvador: centro e centralidade na cidade contemporânea, 1995. 4 Conforme José Reginaldo S. Gonçalves. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil, 1996 e Autenticidade, Memória e Ideologia Nacionais: o problema dos patrimônios culturais, 1989. 5 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A escritura da memória: mostrar palavras, narrar imagens, 2001, p. 92. 6 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Op. Cit., p.101. 7 DALESSIO, Márcia Mansor. Intervenções da memória na historiografia: Identidades, Subjetividades, Fragmentos, Poderes, 1998, p.277. 8 JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social, 1990. 9 JEUDY, Henri-Pierre, op. cit., 1990 Para uma discussão mais aprofundada a respeito dessa retomada da questão da memória como crucial para o entendimento das políticas urbano-culturais recentes, ver Centralidades no Tecido Urbano: A Construção de Identidades e os Espaços de Memória. SILVEIRA, Carmen B., apresentado no Rio de Janeiro Conference Historical dimensions of the Relationship Between Space and Culture, 2003. Nesse artigo desenvolvemos algumas idéias de Jacques Le Goff, Pierre Nora, Jean-Pierre Jeudy , em parte apresentado acima, entre outros. 10 Ver, a respeito, TYRWHITT, J., SERT, J. L., e ROGERS, E. N. The Heart of the City: towards the humanization of urban life. CIAM 8. New York, 1952. 11 SILVEIRA, Carmen B. Centralidades no Tecido Urbano: A Construção de Identidades e os Espaços de Memória. Op. cit., 2003. 12 70 Caderno especial.p65 70 18/10/04, 13:17 13 FERNANDES, Ana Cristina. Revitalização de Áreas Centrais, 2003. 14 SANTOS, Milton. Salvador: centro e centralidade na cidade contemporânea, 1995. Contribuição do mestre apresentada no Seminário Pelourinho; o Peso da História e Tendências Recentes. Organização do Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFBa, em 1994. Texto publicado no livro, Pelo Pelô: História, Cultura e Cidade, Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes (org.), PPG-AU/FAUFBA, EDUFBA, 2002. 15 16 Refere-se ao Pelourinho, trecho da área central de Salvador, tema central do Seminário acima mencionado. 17 No seu texto, Fernandes examina o centro da cidade de São Carlos, cidade Média do interior de São Paulo. Referimo-nos ao livro publicado por TYRWHITT, J., SERT, J. L., e ROGERS, E. N. The Heart of the City: towards the humanization of urban life. CIAM 8. New York, 1952. 18 19 Apud Campofiorito, Ítalo (1985). Muda o mundo do Patrimônio, p. 4. Conforme José Reginaldo Gonçalves. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil, 1996 e Autenticidade, Memória e Ideologia Nacionais: o problema dos patrimônios culturais, 1989. 20 No texto aqui desenvolvido a respeito do patrimônio, estão sendo consideradas, basicamente, as idéias de José Reginaldo Santos Gonçalves, apropriadas da sua tese de doutorado A Retórica da Perda - os discursos do patrimônio cultural no Brasil, publicada em 1996; e as anotações da palestra proferida pelo mesmo autor na mesa redonda intitulada Patrimônio de Lúcio Costa, sob a coordenação da Professora / historiadora Margarida de Souza Neves, por ocasião do Seminário Internacional Um Século de Lúcio Costa, realizado de 13 a 17 de maio de 2002 no Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro. 21 Em publicação recente, Françoise Choay (2001) desenvolve estudo específico sobre a questão do Patrimônio. Considerando a emergência do Patrimônio Histórico na modernidade e identificando o seu surgimento a partir do século XV sob a denominação de antigüidades, a autora relaciona monumento e cidade histórica, patrimônio arquitetônico e urbano. 22 Refiro-me, aqui, às grandes reformas e/ou intervenções urbanas realizadas no decorrer do século XX, como a Reforma Passos, o arrasamento do Morro do Castelo, a renovação da área da Cinelândia, a construção da Avenida Presidente Vargas, da Avenida Brasil e da Avenida Perimetral, estas últimas incluídas entre as demais obras de abertura de vias e conseqüentes desapropriações do período rodoviarista, das décadas de 1950 / 60. Na década de 1950 também ocorre o Arrasamento do Morro de Santo Antônio e na de 1970a Renovação dos bairros do Estácio e do Catumbi. Vaz e Silveira, 1998. 23 24 VAZ e SILVEIRA. Áreas Centrais, Projetos Urbanísticos e Vazios Urbanos. In: Território, nº 7, 1999, p. 57. 25 Este projeto foi parcialmente implementado sob a coordenação da Secretaria Estadual de Cultura. Notas de aula da disciplina História e Tempo, do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC RIO. 26 Como é caso das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural - APACs e do Projeto Lonas Culturais, implementadas pela Secretaria Municipal das Culturas. 27 Bibliografia DALESSIO, Márcia Mansor. Intervenções da memória na Historiografia: Identidades, Subjetividades, Fragmentos, Poderes. São Paulo: Projeto História trabalhos da memória, nov., 1998, p. 269 - 280. CAMPOFIORITO, Ítalo. Muda o mundo do Patrimônio, 1985. FERNANDES, Ana Cristina. Revitalização de Áreas Centrais, 2003. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. Cap. Sinais Raízes de um Paradigma Indiciário (p.143179). São Paulo: Companhia das Letras, 1989 / 2002. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. 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Revista do IAB Instituto de Arquitetos do Brasil, ano 29, nº 81. Rio de Janeiro, 1998. VAZ, Lilian e SILVEIRA, Carmen B. Áreas Centrais, Projetos Urbanísticos e Vazios Urbanos. In: RevistaTerritório, nº 7. Rio de Janeiro, LAGET/UFRJ, 1999. 72 Caderno especial.p65 72 18/10/04, 13:17 Márcia de N. S. Ferran ATUANDO NA MARGEM Projetos culturais participativos nos subúrbios do Rio e de Paris Em contraste com a intensa circulação contemporânea de modelos internacionais de grandes eventos e políticas culturais espetaculares, um aspecto ainda pouco analisado concerne a importância de iniciativas e processos culturais locais1 incidindo sobre subúrbios empobrecidos ou áreas peri-urbanas, muitas vezes consideradas espaços-problemas 2 e associando argumentos sócio-culturais a objetivos de revitalização urbana. Gozando de pouca visibilidade, estes tipos de experiência vêm, no entanto, se multiplicando desde os anos 1980 na França, país tradicionalmente exportador de modelos e formatos nesta área e, durante os anos 1990, no Brasil, por sua vez conhecido pela importação de modelos vindos do outro lado do Atlântico. Introdução Visamos neste artigo, a partir do estudo da experiência das Lonas Culturais 3 nos subúrbios do Rio de Janeiro e da experiência da Friche culturelle Villa Mais dIci em Aubervilliers- subúrbio de Paris, ilustrar modos particulares pelos quais agentes sociais vêm contribuindo para uma certa inclusão dos subúrbios4 no mapa de processos artístico-culturais, inaugurando novos modos de gestão, ao mesmo tempo que testemunhando etapas diferentes em cada contexto nacional. Os exemplos foram escolhidos inicialmente pela conjunção de dois fatores em comum, o primeiro de ordem sócio-espacial ambos, localizando-se em subúrbios carentes estigmatizados, reapropriam espaços e constituem tipos alternativos de equipamentos culturais polivalentes; o segundo fator, de ordem do conteúdo propositivo, em direta relação com o primeiro fator: em ambos os casos, os agentes sociais invocam esta inserção sócio-espacial como elemento norteador de suas ações culturais e artísticas, sublinhando um canal permanente de diálogo com moradores e vizinhança. Eles assumem assim, o papel de mediadores culturais se movendo num campo de tensões estabelecido por mecanismos e margens-de-manobra frente a prioridades políticas em várias escalas. Sem pretender uma comparação sistemática, a abordagem é feita considerando relações atualizadas das dicotomias público/privado e centro/periferia e buscando apontar desafios que se colocam a uma gestão cultural participativa face à conjunção contemporânea entre gestão urbana e política cultural. Brasil: nova valorização da diversidade cultural Presenciamos no Brasil, principalmente a partir de meados da década de 90 uma fase de valorização da diversidade cultural do país, alçada ao paradoxal papel de 73 Caderno especial.p65 73 18/10/04, 13:17 bastião tanto da resistência à globalização, quanto de atributo fetiche para que o país firme sua posição na nova rede mundial. Diferentes níveis de governos, sociedade civil e organizações não governamentais vêm desenvolvendo ações e traçando planos que tomam como premissa o valor intrínseco de uma miraculosa e abrangente noção de cultura, estabelecendo alianças e acionamentos simbólicos de novos tipos. A recém-criada Secretaria de Apoio e Proteção da Identidade Cultural nos quadros do Ministério da Cultura composto no governo do presidente Lula vem consolidar esta ênfase no seio do poder público nacional. Já no nível municipal, é significativa a recente valorização de heranças e elos ibero- americanos pela prefeitura do Rio de Janeiro, que no ano 2000 promoveu uma série de eventos, estampando o título de Capital Íbero-Americana de Cultura5 , ano em que, na escala nacional, se produzia também o mega-evento Brasil-500 anos. Se a articulação entre Estado e capital privado na área das políticas culturais ainda predomina, uma frente original de organizações sociais vem surgindo a partir da década de 90, visando a colocar em pauta uma noção mais antropológica de cultura e incluir demandas de setores populares da sociedade. Esta frente, ainda que não organizada, revela iniciativas de agentes culturais isolados (ex: artistas plásticos que criam circuitos ou galerias-móveis) ou de coletivos de agentes sociais e produtores culturais em meio a este contexto de aposta no cultural por parte do Poder Público que, por sua vez, oscila entre discurso democratizante e modalidades não participativas de gestão. Algumas vezes estas iniciativas acabam por transformar-se em políticas. Este é o caso do projeto cultural que trataremos a seguir, localizado na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Co-gestão nas Lonas Culturais: entre Movimento Cultural e Instrumento Político. Lonas Culturais- a cultura como instrumento de transformação social é o nome de um projeto da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, através do qual são construídos equipamentos culturais, com capacidade para um público de 400 pessoas, em estrutura metálica e lonas resinadas tensionadas e infra-estrutura de apoio, cuja coordenação de atividades se faz em parceria com ONGs culturais dos bairros em que se localizam. A prioridade é garantida aos subúrbios cariocas além da Zona Oeste, havendo previsões de extensão a outros bairros carentes de qualquer equipamento cultural. As Lonas existentes, por ordem de criação, são as de Campo Grande, Bangu, Realengo, Vista Alegre, Anchieta e Guadalupe. Embora pareçam circos as Lonas são permanentes. 74 Caderno especial.p65 74 18/10/04, 13:17 Anunciado inicialmente como experiência inovadora de democratização da cultura e de práticas participativas de decisões sobre o espaço periférico da cidade do Rio de Janeiro, recentes manobras políticas e rumos impostos à dinâmica destes equipamentos indicam que estas qualidades precisam ser compreendidas antes de tudo como potenciais a serem garantidos permanentemente mais do que garantidos à priori. Vejamos então, nas palavras do documento elaborado pelo RioArte (Instituto Municipal de Arte e Cultura) Projeto Lonas Culturais- A cultura como instrumento de transformação social, seus objetivos : · Implantar uma rede regionalizada de espaços culturais de baixo custo e fácil execução, em diversos bairros da cidade, reutilizando as lonas remanescentes da RIO-92 6 . · Atender a demanda por equipamentos urbanos de cultura nos bairros mais distantes da zona sul e da área central da cidade, horizontalizando e democratizando o acesso ao produto cultural. O morador da zona oeste, por exemplo, gastava aproximadamente uma hora se deslocando ao centro ou zona sul, para consumir o produto cultural da cidade, hoje, as Lonas Culturais de Bangu e Campo Grande suprem esta demanda. · Incentivar a produção dos artistas locais. (a partir das Lonas Culturais, vários artistas têm despontado para o mercado cultural formal da cidade). · Viabilizar a formação de platéia através da Rede Pública Municipal de Ensino. · Oferecer uma política cultural permanente a outras regiões da cidade, buscando, inclusive, que o desdobramento destas ações resultem em ganho social. · Resgatar a participação efetiva das comunidades atribuindo-lhe o necessário grau de responsabilidade através da co-gestão, na produção e apropriação da coisa pública (equipamento urbano de cultura). O documento citado é acompanhado por uma síntese dos resultados obtidos com a implantação das duas primeiras Lonas em Campo Grande e em Bangu, e ainda um quadro expressivo de custos/benefícios7 . A presença deste quadro indica que, apesar das intenções sociais do Projeto, ele só se fortalece a partir do momento em que o ganho social se traduz em ganhos quantificáveis. Podemos distinguir três grandes períodos no processo de construção das Lonas Culturais. O primeiro período, de 1993 a 1995, inclui a fase inicial (que iniciou-se em 1993 em Campo Grande) quando houve apenas a liberação e implantação das lonas, vindas da Eco-92 para Campo Grande, Bangu e Realengo, e o começo do repasse de verba mensal pela Secretaria Municipal de Cultura, a partir de meados 75 Caderno especial.p65 75 18/10/04, 13:17 de 1994. Nesse período também houve aumento de pedido de Lonas, concomitante ao funcionamento e apropriação dos espaços pelas comunidades e a reivindicação de mais infra-estrutura de apoio e serviços de urbanização. Este momento é marcado pela pressão mais organizada e pela sensibilização do RioArte tendo em vista um apoio financeiro permanente, o que resultou na criação do projeto oficial em 1996 e na configuração de uma rede de Lonas. Este apoio e visibilidade se deram apenas à medida que o público do conjunto das Lonas alcançou 65 mil pessoas, ultrapassando o público da Rede Municipal de Teatros, localizados em áreas valorizadas da cidade. É neste instante que aquelas lonas, até então só conhecidas pelo público dos subúrbios cariocas, despertam a atenção política, começando oficialmente a se integrar à Rede Municipal de Teatros e passando a se chamar Lonas Culturais. Novas unidades começam a ser planejadas a fim de dar continuidade ao circuito já existente, inspiradas no modelo circense proveniente da Eco-92 e, ao mesmo tempo, oferecendo nova tecnologia de construção e infraestrutura de apoio, com camarins, salas de administração, banheiros e bar. O segundo período cobre os anos de 1996 a 1998 e se inicia com a inclusão das Lonas Culturais na Rede Municipal de Teatros e a criação do projeto Lonas Culturais visando à formação de uma rede de Lonas. Este período testemunha o início dos projetos de reforma das Lonas e projetos de reurbanização das praças onde se localizam, como em Bangu (articulada neste caso também com a construção de um viaduto) e em Realengo. O ano de 1999 marcou o início da terceira e mais recente fase, com uma grande divulgação na imprensa e multiplicação de público, o que contribuiu para que as organizações conseguissem também o aumento de verba repassada. Através da Câmara de Vereadores, criando uma emenda orçamentária, triplicou-se o valor anual, que era de sessenta mil reais por Lona (o que representava cinco mil reais mensais) em 1999, e passou a ser desde janeiro de 2000, cento e oitenta mil reais. O aumento crescente do número de espetáculos e de espectadores foi determinante para ampliação do orçamento público anual destinado a cada Lona e se expressa nas estimativas oficiais8 , que indicam um público de 125 mil pessoas nas cinco Lonas entre janeiro e julho de 2000, representando 50% do total de público de toda a Rede Municipal de Teatros. Neste período foram inauguradas as Lonas Culturais de Vista Alegre, Anchieta, e Guadalupe. Uma inovação deste nova fase é a busca de parcerias com a iniciativa privada por parte dos dois agentes principais, as ONGs e a Secretaria Municipal de Cultura. Um momento decisivo na visibilidade do projeto se deu em abril de 1999, quando uma matéria na primeira página do Caderno B do Jornal do Brasil anunciava: SUCESSO SAI DA LONA- Sempre 76 Caderno especial.p65 76 18/10/04, 13:17 lotadas, as Lonas Culturais se firmam como palco alternativo de lazer e de cursos nas Zonas Norte e Oeste9 . Semeando um processo: mobilização e união anteriores ao sucesso O sucesso no entanto não foi repentino, trazendo consigo uma história de reivindicação, um trajeto onde a participação da comunidade unida aos agentes culturais locais organizados (posteriormente transformados em ONGs) foi decisiva para a conquista daquele espaço. Tão importante quanto o Projeto Lonas Culturais, enquanto expressão de uma decisão política do governo municipal, foi o projeto social que legitimou a sua existência, qual seja o de grupos de artistas que, desde 1989, vinha organizando ações em prol da construção de equipamentos culturais em áreas periféricas da cidade mobilizando comunidades locais e a mídia. Cabe resgatar brevemente a história de três grupos atuantes em diferentes momentos da conquista das Lonas. São eles: UGATZO, MIC e TÔ NA LONA. A primeira Lona foi instalada em janeiro de 1993 em Campo Grande, devido à preexistência do grupo UGATZO- União de Grupos e Artistas de Teatro da Zona Oeste-, que já organizava espetáculos num teatro de arena sobre o qual foi montada a lona da nave-mãe da Eco-92, no contexto do início da gestão de César Maia como prefeito. Não havia, naquele momento, nenhum apoio permanente financeiro da Secretaria Municipal de Cultura. Um dos fundadores desta ONG, Ives Macena, havia passado pelo aterro do Flamengo por ocasião da Eco-92 e avistado as coloridas tendas armadas. Com a bagagem de um bem sucedido projeto chamado Circolar que dirigia em Divinópolis, MG, até 1986 com apoio do MEC (Ministério da Educação e Cultura), ele estava engajado na revitalização do teatro de arena Elza Osborne10 em Campo Grande junto com uma atriz fundadora do teatro. Desejavam aumentar suas possibilidades de utilização através da cobertura do espaço ainda em arena. As Lonas lhes pareceram a solução ideal, de instalação prática, baixo custo e o grande trunfo de parecer um circo. Iniciado o caminho de requisição das lonas, uma informação importante veio logo à baila: as tendas, estruturas em lona tensionada, que haviam abrigado os fóruns no encontro internacional, haviam sido doadas por países estrangeiros com a instrução de serem aproveitadas posteriormente em projetos sócio-culturais. Através da assessoria especial de gabinete do prefeito foram tomadas as primeiras medidas para a doação da lona. 77 Caderno especial.p65 77 18/10/04, 13:17 Em 1994 uma audiência pública com a secretária de cultura, contou com a participação de um movimento de Bangu e o MIC (Movimento de Integração Cultural) articulados para reivindicar novas Lonas. A segunda Lona foi instalada em Bangu, após diversas manifestações dos dois grupos, e acabou sendo invadida por mendigos e marginais, uma vez que não havia sido fornecida nenhuma infra-estrutura de apoio. Seguiu-se então um novo período de reivindicação pela construção de serviços de apoio, o que só veio a acontecer em 1995. A terceira Lona foi instalada em Realengo, em 1994. O Movimento de Integração Cultural-MIC, que coordena a Lona Cultural João Bosco em Vista Alegre foi criado em 1989 com o propósito de trazer um espaço alternativo para o subúrbio e também de integrar os artistas, uma vez que, também segundo o MIC, o morador do subúrbio e principalmente quem lida com arte; eles são muito desorganizados. Em paralelo, as mesmas pessoas do MIC formaram o grupo teatral Mania-de-Palco, que se apresentava na rua, em praças e escolas públicas do subúrbio, pois era mais fácil chegar nas pessoas. O objetivo era chamar a atenção da sociedade civil organizada e encaminhar pedidos de implantação de equipamentos culturais e de lazer. Ao fim de cada apresentação o grupo fazia um apelo à comunidade, tentando uma mobilização conjunta. O grupo compara sua atuação a outros que atuam com arte em espaço públicos. Em 1992, por ocasião da Eco-92 e a partir da previsão de disponibilidade das lonas após o evento (divulgada pela imprensa na época), o grupo, em conjunto com a UGATZO, começou a batalha pela instalação do equipamento. O espaço e a cara da Lona eram considerados ideais para os propósitos das associações. Em 1995, foi finalmente aprovada a construção da Lona de Vista Alegre. Porém, o MIC teve ainda que brigar muito para garantir sua construção de fato, o que se deu apenas em abril de 1999. Iniciou-se assim, um período de lobby político que visava sensibilizar o chefe de gabinete do Rioarte para o potencial das Lonas nos subúrbios. Para isso, o MIC se encarregou de levá-lo à Lona de Bangu num dia de semana, quando ele presenciou um enorme público assistindo a um show. As Lonas teriam sido assim arrancadas à força da prefeitura como um cala-boca das constantes reivindicações. No final do ano de 1996 com o processo político de mudança de gestão na prefeitura um clima de insegurança teria se instalado no movimento quanto à continuidade do Projeto Lonas Culturais. No entanto, com a continuidade da mesma administração no RioArte, o Projeto ganhou maior vulto e o MIC também foi mantido na coordenação da Lona de Vista Alegre. 78 Caderno especial.p65 78 18/10/04, 13:17 A história da Lona de Anchieta também conta com a atuação anterior de um grupo de artistas do bairro, que haviam, por diversas ocasiões, tentado erguer um movimento cultural mais contínuo (como teria sido o caso, no começo dos anos noventa, do GCA-Grupo Cultural de Anchieta), até inaugurarem, em 1995, a Casa de Artes de Anchieta. Nesta Casa, a partir de 1996, os talentos locais, até então dispersos, passaram a se encontrar regularmente no projeto Conversa Afinada, que apresentava música, poesia, teatro, cinema e debates, num pequeno auditório. Adaílton Medeiros, cujo pai havia construído o prédio sede da Casa em 1970, agora à frente de um grupo que incluía amigos também produtores culturais, já via com clareza o papel da cultura num bairro de subúrbio: Virar de cabeça para baixo a vida pacata e conformada dos moradores da região e provar que ali, escondidos, existiam grandes talentos. Era preciso promover positivamente a imagem do bairro, que só aparecia em jornais nas páginas policiais, e atrair recursos através de parcerias com empresas e instituições para manter projetos e, ao mesmo tempo, elevar a qualidade de vida da região. Se aquela localidade estava abandonada pelo poder público, se os políticos só apareciam ali em época de eleições, se os próprios empresários achavam suicídio fazer investimento ali, era óbvio que a auto-estima das pessoas estava lá embaixo. O único jeito era mudar de estratégia e usar armas mais humanas para mudar tudo aquilo, as armas da educação e da cultura. (revista Lona Cultural Carlos Zéfiro, v.1, n.1, p. 4). Com estas premissas, Adaílton começou a levantar discussões, já no final de 1996, sobre a necessidade de um grande movimento para a conquista de uma Lona Cultural em Anchieta, tendo como exemplo a recente aprovação da construção da Lona de Vista Alegre, já dentro do Projeto com a Prefeitura. Com a adesão de artistas e membros da comunidade local e adjacências, o movimento teve o suporte também de uma rádio AM e contou com apoio do tradicional bloco de arrastão da região denominado Bloco do Boi em diferentes momentos de reivindicação junto ao poder público. Para gerir a Lona foi criada uma organização não governamental chamada Tô na Lona que englobou, além do núcleo inicial da Casa das Artes, vários artistas amigos, chegando a um grupo de vinte e três pessoas. A história destes três grupos evidencia que as Lonas são um novo tipo de equipamento cultural que surgiu como se fosse sob encomenda para necessidades específicas através da demanda de grupos locais organizados; apesar de terem aspecto circense, não são efêmeras nem itinerantes. Após implantadas as lonas, o que as legitimou e identificou, num cenário marcado, entre outras carências, pela quase ausência de equipamentos culturais, foi sua proposta de congregar atividades diversas a partir de necessidades locais à presença de artistas consagrados11 e abertura a bandas iniciantes. Alguns exemplos ilustram esta diversidade: 79 Caderno especial.p65 79 18/10/04, 13:17 · Lona João Bosco em Vista Alegre: Evento Suburbagem, com objetivo de atrair a juventude em torno de espaço para novos grupos de rock, chega a reunir 500 pessoas trimestralmente. Forró na Lona, que acontece às sextas-feiras e tornouse um ponto de encontro entre várias gerações. Cursos vários como modelo e manequim, capoeira, teatro infantil e dança para terceira idade, ciclo de palestras sobre saúde familiar, público: 32.29912 . · Lona Carlos Zéfiro em Anchieta: Projeto Conversa Afinada: encontro com estudantes da rede pública sobre temas específicos, projeto Cinema sem Tela com debate, festas comunitárias, projeto Natalino, etc., público: 14.690. · Lona Gilberto Gil em Realengo: Curso de escultura em legumes, de teatro infantil, variedades circenses, evento Conversa Fiada: debates abertos com presença de convidados, público:17.504. · Lona Teatro de Arena Elza Osborne em Campo Grande: vários projetos comunitários; Encontrar-se, Resgate, Entrelace, Coral, Grupo de Poesia, etc... Público: 20.693. Uma das conquistas alcançadas pelo Projeto é a integração de objetivos sociais e urbanísticos. Neste sentido, estes bairros de subúrbio, divulgados quase tão somente pelos índices de violência, passaram a ser respeitados como núcleos de produção cultural. As praças e espaços públicos anteriormente abandonados foram reapropriados pela população local. Inversa e perversamente, o sucesso tem sido responsável, através da visibilidade que acarreta, pela substituição de critérios democráticos por critérios clientelistas no momento de escolha de novas localidades a receberem Lonas. Revela-se uma tendência que apaga as raízes do projeto, tornando-o cada vez mais um instrumento de promoção política e não de transformação social, como pretende. Neste processo estão presentes fragilidades e condutas de todos os atores envolvidos. Mas será realmente incontornável a oposição entre institucionalização e autonomia neste campo cultural? Serão estas ONGs instrumentalizadas? Sem dúvida há motivações explicitamente práticas que podem explicar a transformação de certos grupos em ONGs, o que por si só mereceria um debate acerca da legitimidade destas organizações. Neste momento focaremos atenção em questões como: Se já existe uma representatividade no bairro, que se mostra no momento de reivindicação da Lona, quais os mecanismos que se colocam como inibidores de uma mobilização mais permanente? Por que os grupos das diferentes Lonas, que percebem uma necessidade comum a todos, não se unem frente ao Órgão Público? Quais são as possibilidades de autonomia? 80 Caderno especial.p65 80 18/10/04, 13:17 Embora seja por demais extenso diagnosticar toda a complexidade do quadro, cabe sublinhar alguns elementos reveladores. Por parte do Órgão Público percebe-se alguns fatores incongruentes com a proposta inicial: · Os contratos são genéricos e pouco detalhados, deixando os grupos em constante estado de insegurança. Sua duração de um ano desestimula, por sua vez, a elaboração de propostas de longo alcance, inclusive em termos estéticos, e inviabiliza um dos objetivos do projeto que é o de oferecer uma política cultural permanente a outras regiões da cidade, buscando, inclusive, que o desdobramento destas ações resultem em ganho social. · Sem prever e estimular a participação de grupos e conselhos populares no processo de escolha de bairros a receberem Lonas, e absorvendo demandas de figuras políticas, fica solapada a almejada horizontalização e democratização do acesso ao produto cultural. Esta perspectiva evidencia a deturpação do conceito original do Projeto: o fato de serem equipamentos construídos apenas mediante a reivindicação e mobilização de grupos da própria comunidade e estarem enraizados na cultura local. · Sem estabelecer critérios transparentes para esta escolha o Projeto se enquadra cada vez mais nos moldes de gestão de equipamentos culturais tradicionais, onde os coordenadores são escolhidos dentro de um círculo fechado e elitista, dificultando também que propostas locais sejam contempladas, e impedindo que a cogestão se exerça de fato. No que tange aos grupos coordenadores das Lonas, as fragilidades mostram-se não menos complexas. Em primeiro lugar eles estão ligados ao órgão público, não só pela cessão do equipamento físico mas também por uma dependência financeira. Este ponto torna-se crucial, uma vez que a verba mensal, considerada indispensável, na realidade significa um laço de dependência e cerceamento. Por um lado, ele ocorre porque nem todos os grupos se articulam verdadeiramente para captar verbas; por outro lado, aqueles grupos que já tinham experiência como produtores autônomos e mais facilmente chegam a buscar outras fontes para compor seu orçamento são submetidos à um controle do RioArte que filtra as possíveis parcerias de acordo com seus interesses, na prática inviabilizando qualquer movimento de maior autonomia daqueles grupos. No sentido inverso, no entanto, o RioArte busca parcerias com bancos como BNDES e com investidores no âmbito do Mercosul. Outro ponto que emerge igualmente da questão financeira é a intermediação necessária de agentes políticos como vereadores para pressionar a liberação de verba, aprovada em audiências públicas. Este agente se torna uma ponte indispen- 81 Caderno especial.p65 81 18/10/04, 13:17 sável certamente com comprometimentos posteriores dos conteúdos propostos por cada Lona. Uma fragilidade importante diz respeito ao planejamento de ação. De modo geral, os objetivos são imediatos, carecem de visão a longo prazo, ao que se alia um temor demasiado da perda da coordenação da Lona, incentivado por contratos que precisam ser renovados anualmente. Assim, as alianças, que necessariamente têm de congregar visões partidárias diversas são evitadas, pois podem implicar em represálias por parte do poder público. Deste modo, um mecanismo fundamental no primeiro momento, o de união de grupos de bairros diferentes, é abandonado após a conquista do espaço. O perfil artístico da composição dos grupos, embora seja a razão mesma de existência de todo o projeto se acompanha, no dia-a-dia do equipamento, de uma carência de habilidades gerenciais. Com a tarefa principal de coordenar e dar vida a um equipamento cultural polivalente, as tarefas administrativas e financeiras significam um problema não facilmente contornado por equipes majoritariamente formadas por artistas. Some-se a isto a já referida não autonomia para busca de parcerias e patrocínios. No que tange às programações artísticas, propostas independentemente em cada Lona, alguns grupos apresentam uma tendência de privilegiar a realização de shows de artistas consagrados (sem dúvida um ingrediente estratégico para inserir subúrbios carentes, desconectados do eixo valorizado, no roteiro de cultura e lazer da cidade), em detrimento das programações cotidianas como cursos, palestras e debates. Embora não presente em todos os grupos, esta tendência acarreta a construção de uma imagem generalizada do projeto reduzindo as Lonas à concepção de casa de shows. Esta valorização da cultura como espetáculo se opõe e dificulta a legitimação do potencial do projeto enquanto instrumento de transformação social. Contexto Francês: o movimento dos Espaços Intermediários O Ministério de Cultura e Comunicação da França lançou, em outubro de 2000, uma pesquisa que tinha como tarefa mapear e estudar espaços culturais alternativos em toda a França que escapavam, numa primeira instância, ao planejamento do próprio Ministério; eles ficariam conhecidos posteriormente como espaços intermediários. Uma parte considerável destes espaços são abrigados em friches industriellles13 , que mereceram em seguida um programa especial do Ministério num panorama de reconversão de antigas áreas industriais obsoletas para usos culturais, onde se empregará também a noção de patrimônio industrial. 82 Caderno especial.p65 82 18/10/04, 13:17 Algumas condições prefiguram o contexto de sistematização das reivindicações de agentes do meio artístico em direção aos espaços intermediários, até então sem caráter organizado e fruto de ações isoladas14 . Como motivação, consolida-se como argumento uma impossibilidade de inventar novas aventuras nos lugares e práticas instituídas. Enquanto conteúdo, a característica marcante é o deslocamento da ênfase num objeto artístico autônomo e quase cego aos dados sociais reais, à valorização da noção de processos em projetos que reivindicam natureza artística e profissional singulares. Conceitualmente, nota-se portanto uma importante transformação, que diz respeito à uma redefinição da própria noção de campo artístico. Sob a chave mais abrangente de espaços intermediários, duas dimensões principais se articulam em torno do fenômeno Friches Industrielles: uma relativa ao projeto cultural e outra relativa ao projeto urbano.15 Veremos em seguida como estas duas dimensões se articulam e se anunciam através de um exemplo situado na periferia de Paris. Villa Mais dIci friche cultural de proximidade Em 1999, por uma indicação da prefeitura de Auberviliers, subúrbio próximo de Paris, a companhia de marionetes gigantes Les Grandes Personnes ocupa os locais disponíveis de antigos galpões da Compagnie des Entrepôts et Magasins Géneraux de Paris, nos limites entre Aubervilliers e Paris. Sua ocupação dura 3 anos, após os quais busca-se um novo local e novamente a municipalidade indica uma outra friche industrial, porém pouco adequada às necessidades técnicas do grupo. Este segundo espaço, vizinho a um conjunto habitacional já freqüentado por artistas foi, no entanto, aproveitado por um outro coletivo de artistas. Enfim, em 2003, a companhia Les Grandes Personnes se articula a outros agentes culturais e, juntos, concebem um projeto para ocupação de um antigo depósito de madeira e carvão do fim do séc. XIX, desocupado desde 1999 e pertencente a um proprietário privado. Para gerir o projeto, funda-se uma nova associação sem fins lucrativos chamada Villa Mais dIci, que deverá ser o organismo âncora administrador do contrato de aluguel do imóvel, além de captar outros parceiros investidores e selecionar os diversos ocupantes temporários e permanentes do espaço que dispõe de mais de dois mil metros quadrados, contando com um pátio central descoberto de 500 metros quadrados. Com uma gestão associativa o projeto prevê a adesão de múltiplas parcerias para se desenvolver: o proprietário privado do espaço, com o qual a associação propõe um contrato de longa duração, nas condições compatíveis com a operacionalização 83 Caderno especial.p65 83 18/10/04, 13:17 do projeto; as companhias residentes, membros da associação que investirão no correr do tempo sua energia e seus recursos; as coletividades territoriais, Cidade de Aubervilliers, Comunidade de aglomeração, Conselho Geral de Seine-Saint-Denis, Região da Ile-de-France, assim como o Ministério da Cultura e a Comunidade Européia, aos quais é solicitado um apoio financeiro; as empresas locais e atores econômicos privados, aos quais é solicitado um apoio sob forma de mecenato de empresa; as estruturas e associações locais existentes (...) com os quais a Villa Mais dIci pretende construir uma parceria durável. Além disto, a Villa Mais dIci se inscreverá nas diferentes redes nacionais e européias, federando as friches culturelles.1 Apostando no uso misto entre ateliês, escritórios e moradia, a nova associação Villa Mais dIci, alusão à Vila Médicis -símbolo do mecenato artístico, esclarece as intenções de seu projeto no dossiê de apresentação: trata-se de um renouvellement urbain à Aubervilliers. Com o subtítulo de friche culturelle de proximité, o grupo responsável enfatiza sua singularidade, a de se inserir no bairro Quatre-Chemins, considerado sensível pelos critérios sócio-econômicos e a de abrir um canal permanente com os moradores. Esta não é, no entanto, uma tarefa simples: o bairro é marcado por uma grande diversidade étnica, chegando a 30% de estrangeiros, dos quais 80% são originários de países fora da Comunidade Européia - as origens mais presentes são magrebinos, africanos e asiáticos. A taxa de desemprego ultrapassa 33%.2 De vocação comercial historicamente, concentra hoje muitos conjuntos de habitação social, que estão recebendo renovação, já que a grande maioria data de antes de 1975, sendo que alguns estão sendo demolidos devido à condições insalubres. Neste quadro de carências sociais e urbanísticas, o projeto se insere nas prioridades da Politique de la Ville 3 . De iniciativa portanto associativa, o projeto não deixa de retomar alguns pontos previstos no projeto não realizado da Cité des Arts, de iniciativa municipal no início da década de 1990. As características e particularidades partilhadas e invocadas pela equipe proponente como formadoras mesmo da originalidade da associação são: uma forte ancoragem local, um engajamento importante na vida cidadã e cultural de Aubervilliers; uma disposição de intervir no espaço público e no espaço social; uma abertura sobre a cultura e as práticas sociais dos países do sul; uma inserção nos meios culturais nacionais e internacionais 4 . Estas disposições serão reiteradamente acionadas pelos diferentes agentes por nós entrevistados, numa busca de legitimação da função artística num subúrbio de memória e de perspectivas onde comunidades vindas do mundo inteiro buscam trocar e se integrar, cujos artistas buscam se exprimir, inventar uma nova arte de cidade. 84 Caderno especial.p65 84 18/10/04, 13:17 Sobre como se define uma friche culturelle de proximité os objetivos são: um lugar de trabalho e de invenção pluridisciplinar, um lugar de difusão e de trocas interculturais, um lugar de desenvolvimento de práticas participativas aberto ao bairro e à cidade. Devido ao equipamento já existir concretamente, assim como os grupos fixos e associações âncoras de trabalho, a ocupação do espaço se iniciou antes mesmo da definição total das parcerias para investimentos. O orçamento prevê somente para obras de adequação técnica do local 560.000 euros. As fontes previstas são mecenato, Comunidade Européia e coletividades territoriais, além da renda dos produtos e espetáculos. Atraindo grupos de áreas artísticas diversas, a gestão da friche se caracteriza por articular a função exposição à função de moradia. Assim, a presença constante de artistas, produtores culturais-inquilinos do espaço, embasa quase sempre o argumento da inserção no bairro, que pode se acompanhar da ênfase numa postura estética ligada ao processo mais do que à obra-de-arte como um fim: Eu queria dar novo rumo à minha situação pessoal e profissional e queria criar um lugar coletivo onde, ao mesmo tempo, pudessem morar em conjunto pessoas que têm vontade de fazer coisas no meio artístico. Então, a idéia era que cada um tivesse seu espaço mas, sobretudo, que houvesse uma estimulação entre todo mundo (...). Em relação à Villa, o que me interessa é realmente produzir eventos culturais, a parte de difusão e o fato que já existam salas de espetáculos disponíveis e espaços como o grande pátio central. (produtora cultural da Associação Ethnoart, sediada na friche)5 Eventos menores também já foram organizados, como um encontro paralelo ao segundo Fórum Social Europeu que recebeu o nome de Fórum Social Local. Eventos de bairro também já começam a ser divulgados. Podemos citar como exemplos da diversidade de programação: · Ateliês e estágios abertos ao público: marionetes gigantes e eventos festivos urbanos. Teatro: clown, comédia delarte, de apartamento. Escritura teatral. Figurino de Teatro. Artes plásticas e ilustração. Fotografia. Som e vídeo. · Encontros e eventos: Domingos Xenófilos: organizado pela associação Ethnoart, residente na friche com os seguintes objetivos: Ilustrar a riqueza e complexidade de uma dada cultura e oferecer um novo olhar sobre as pessoas que dela provêm; abalar os estereótipos e preconceitos, desenvolver a escuta, o diálogo e a tolerância, oferecer aos habitantes locais provenientes de comunidades concernidas um espaço de expressão e reconhecimento. Propor um quadro etnológico em torno de várias expressões artísticas oferecendo aportes intelectuais interdisciplinares. Guinguettes dici: organizado pela coordenação da Villa Mais dIci, a fim de proporcionar encontros conviviais e festas familiares dos habitantes. Conferências do 85 Caderno especial.p65 85 18/10/04, 13:17 Fórum Social Local, organizado pelo Fórum Social Local a fim de estimular a participação dos habitantes na vida local. Carnaval cosmopolita: Desfiles festivos anuais pelas ruas da cidade com figurinos, marionetes gigantes, música. · Espetáculos, Projeções de filmes, Ensaios de Circo (atividades previstas após finalização das obras de arquitetura necessárias) Uma outra característica enfatizada pelos coordenadores do projeto é uma certa independência da prefeitura, que deve contribuir com pequena parte de financiamento embora tenha dado seu aval para o caráter social embutido na proposta. Esta certa ambigüidade emerge na fala do vice-presidente da associação, também responsável pela formatação do dossiê público do projeto: De nossa parte, nós não tivemos de jeito algum a lógica de perguntar : o que é financiável atualmente? e daí propor algo nestes termos. Nós não partimos de uma estratégia oportunista. Logo de princípio, constituiu-se um coletivo que se perguntou o que as pessoas queriam fazer e quais as sinergias que se podia construir (...) Nossa atitude foi completamente outra. (...) Talvez entre as coisas que nós queremos fazer e que a prefeitura poderia financiar, eu acho que há uma dimensão importante que é a de proximidade. Nós somos uma friche, porque multidisciplinar, e há todo um lado de competências artísticas, mas nós temos realmente a intenção que seja de proximidade (...) Nós queremos estar abertos ao bairro, concernir os habitantes, convidá-los a vir aqui, propor estágios. O fato que Aubervilliers seja uma cidade cosmopolita com muitas comunidades étnicas diferentes: nós não somos indiferentes a isto, nós queremos fazê-las comunicar com os artistas, isto é parte integrante do projeto ! E esta dimensão de proximidade, é uma coisa que a prefeitura deve financiar, deveria financiar porque nós assumimos como uma delegação que contribui à dinamizar o bairro, contribui a renovação urbana, algo que deveria à princípio concernir a prefeitura...6 Iniciando em 2004, seu segundo ano de funcionamento, a iniciativa parece se diferenciar de outras friches de Aubervilliers, também nascidas durante os 1990 porém mais voltadas para a criação artística contemporânea (Les Laboratoires dAuberviliers, 1994, Art Liquide). Somente a médio prazo poderemos analisar os verdadeiros impactos do projeto cultural. Contextos diferentes e processos semelhantes? Após esta exposição condensada dos dois projetos, tentaremos agora levantar pontos de análise, num duplo movimento do local ao global, observando como a cultura hoje se coloca como ponto de interseção, num campo que poderíamos chamar de intermediário entre social e arte. Mediadores, redes, motivações e trajetórias Tanto nos subúrbios do Rio de Janeiro quanto no subúrbio de Paris temos como pano-de-fundo o contexto antropológico delineado pelo fato de que, ainda com os 86 Caderno especial.p65 86 18/10/04, 13:17 limites uma rede informal de cooperação7 , os espaços citados têm sido vividos enquanto fóruns de encontro artistas-população. Em paralelo a esta rede social, uma rede espacial se estabelece atuando como condição indispensável na dinâmica de programação e divulgação das Lonas, ou como horizonte desejável na Villa Mais dIci. Estas redes são tecidas por pessoas que têm um potencial de mediação cultural. Ao transitarem em diferentes atividades e participarem de grupos cada vez mais diversificados no cotidiano urbano, elas concentram um poder de portavoz entre camadas sociais na maior parte do tempo isoladas. Gilberto Velho e Karina Kuschnir num trabalho sobre mediação e metamorfose enfatizam que: ...os mediadores, em princípio, são importantes agentes de mudança da organização social, nos termos de Raymond Firth (1951). A partir do cotidiano, de decisões e ações localizadas, de alterações e invenções de papéis sociais, desenvolvem projetos, criam novos espaços, inovam e redefinem situações. Em sociedades onde individualismo e holismo aparecem em combinações híbridas, o mediador, por todas as suas características, expressa dramaticamente as tensões e conflitos entre essas visões de mundo. (Velho e Kuschnir, 1996: 105) 8 Este é o caso dos artistas e produtores culturais envolvidos nos dois projetos aqui citados, que circulam por vários bairros de subúrbio e do centro e, ao mesmo tempo, se relacionam com pessoas do poder público que, por sua vez, possuem acesso a decisões sobre investimentos tais como equipamentos culturais públicos. Seus projetos invocam palavras-chave bastante semelhantes: artistas locais, ganho social, cultura como instrumento de transformação social no caso das Lonas e proximidade, ancoragem local, invenção pluridisciplinar, trocas interculturais, sinergias no caso da Villa. Ao se singularizarem como instrumento de transformação social ou como friche culturelle de proximité deflagram uma multiplicidade de associações simbólicas e de papéis acionados em graus diferentes pelo Poder público, pelo meio artístico e pelos potenciais financiadores. Se em ambos os contextos há um desejo expresso de partilhar a produção cultural com a população vizinha, os graus deste partilhar são diferentemente expressos pelos componentes dos grupos franceses e dos grupos brasileiros. Talvez este seja mesmo o ponto mesmo mais agudo e mais complexo de contraste entre as duas realidades, já que emerge de processos históricos pautando sobre valores educacionais e sobre concepções filosóficas particulares em cada país. Dois campos principais neste sentido merecem ser destacados: a instituição escolar (Léducation Nationale, o famoso ensino público francês) e o valor da arte na concepção Republicana da França (conhecida nos atuais debates sobre liberalização de mercados culturais como lexception française). Com capital cultural9 (Bourdieu, 1979) mais homogêneo, quase todos os componentes franceses apresentam diplomas em áreas artísticas ou em técnicas de espetáculo, ou mesmo curso de pós- 87 Caderno especial.p65 87 18/10/04, 13:17 graduação, apresentando um alto nível de articulação teórica que confere uma grande autonomia nas negociações com outros agentes. Vindos de disciplinas artísticas e técnicas especializadas, os componentes dos grupos alcançam uma divisão de tarefas segundo competências específicas, otimizando a gestão. Em contraste, no caso dos agentes presentes nas Lonas, apresentam trajetórias mais heterogêneas, prevalecendo a combinação entre nível universitário incompleto aliado à ensino autoditada em artes. Contando normalmente com colaboradores voluntários da vizinhança mais ou menos temporários, acabam por acumular várias funções e lidam por isto mesmo, com a população vizinha público-alvo com uma perspectiva mais horizontal. Neste sentido parece haver um desnível conceptor/ receptor menor do que no caso francês. Entre público e privado, entre nacional e local: margens de manobra Derivando de contextos nacionais totalmente diferentes em matéria de política cultural, em ambos os casos o debate se estabelece aludindo a processos de institucionalização e uma certa contradição entre discurso e prática por parte dos agentes sociais envolvidos, que embora reclamem a independência política e artística dos projetos, operam num consenso legitimador do papel preponderante do Poder público no setor cultural, muitas vezes acionando para isto, o espaço do sócio-cultural. No caso da França o resultado do Rapport Lextrait sobre as friches culturelles pondera: A nova dinâmica não é fruto de uma política de animação dos territórios, mas de uma urgência política e poética de reinscrição do artista na cité, vivida e revelada pelos próprios artistas. Isto que é trabalhado por esta nova forma de engajamento de artistas e das populações é uma outra definição de arte. 10 A abordagem estética propriamente dita se coloca num quadro de questionamento do papel da arte e reatualiza as práticas do campo inaugurado pelas políticas culturais dos anos 70 relativo ao sócio-cultural, em permanente jogo de remetimento ao puramente artístico. Neste sentido, na França, o novo dado parece estar não no caráter original dos projetos culturais, visando espaços intermediários mas, antes, na sua grande quantidade e no fato de se inscreverem territorialmente nas cidades, redirecionando a atenção para áreas periféricas ou marginalizadas e enfim usando esta inscrição como argumento de legitimação. Outrossim, embora merecendo atualmente suporte dos agentes públicos, estas iniciativas dependem de ações locais, independente das medidas de Descentralização, empregadas pelo Secretariat d´Etat au Patrimoine et à La Décentralisation Culturelle: Quase sempre, o modo de apoio associado a esta iniciativa do político se inscreve à margem da política cultural majoritária: pode-se qualificá-la de intermediária ou ainda Mesmo no 88 Caderno especial.p65 88 18/10/04, 13:17 caso onde as coletividades locais são as mais implicadas...é a margem para sustentar a margem...nós estamos em matéria de descentralização cultural, face à primeira onda de projetos que não terão sido antecipadamente legitimados nacionalmente pelo Ministério da Cultura. Se preliminarmente a existência de políticas culturais para subúrbios não é objeto de consenso, muitos estudos-de-caso vêm apontando a relação entre políticas públicas ditas de discriminação positiva e o papel da cultura. Ao centrar sua abordagem sobre a presença multicultural ZOIA (1997)11 percebe que: A ação cultural em subúrbio coloca em cena uma filosofia e valores à partir dos quais conjugam-se duas idéias: a integração pelo poder político (os valores clássicos do desenvolvimento e da arte cultivada) e, neste últimos anos, a integração pela comunidade cultural (pluralismo cultural). As iniciativas sobre este plano são então de duas ordens: fazer penetrar a cultura no subúrbio e fazer emergir e reconhecer uma ou várias culturas específicas(op.cit, p.147. tradução nossa) Se guardarmos como elemento decisivo do contexto de emergência de políticas culturais nos subúrbios a implantação da Politique de la Ville em 1981, no nível nacional, e se levarmos em conta a análise de Donzelot (2003)12 , segundo a qual os mecanismos utilizados por esta missão para fazer sociedade privilegiam mais uma qualificação do território do que uma emancipação do indivíduo, podemos detectar as superposições, mas igualmente as lacunas de uma ação pública na cultura, nascida sob os auspícios de tal missão interministerial. As superposições dizem respeito aos vários registros utilizados por diferentes ministérios que passaram a financiar ações culturais locais, ao perceberem a cidade e seus problemas sociais como um objeto necessariamente multidisciplinar. Dialeticamente, as lacunas emergem justamente de um uso generalizado, de uma culturalização indiscriminada que acaba por colocar em xeque uma verdadeira autonomia do cultural. A nosso ver, são justamente estas lacunas que configuram e possibilitam o espaço de ação dos grupos e coletivos aqui citados. Assim, na França, uma margem-de-manobra não desprezível emanando do cidadão se configura através do meio associativo, bastante desenvolvido e pautado por uma Lei específica criada em 1901. Esta Lei, no entanto, durante o período pósguerra, havia proibido o direito de associação aos estrangeiros, sanção que só foi derrubada em 1981. A partir de então, nos subúrbios empobrecidos, é o meio associativo que iria catalizar iniciativas que contemplam a diversidade cultural, agindo como um complemento da política cultural municipal e recorrendo a diferentes possibilidades de financiamentos interministeriais e em várias escalas de governo, abertas pela Politique de la Ville, não isenta de intenções de integração à cultura francesa. No caso de Aubervilliers, quase 50% das iniciativas culturais partem de associações ligadas às comunidades culturais estrangeiras presentes na cidade. 89 Caderno especial.p65 89 18/10/04, 13:17 Da mesma maneira os agentes da associação Villa Mais dIci, ao sublinharem a relação com a população local multicultural do bairro Quatre-Chemins, acabam por responder a um forte critério para os financiamentos de projetos sócio-culturais no contexto da Politique de la Ville. Esta potencialidade fica então latente. No Brasil, ao contrário da França o campo da cultura não tem um aporte estatal consolidado, tendo sido paulatinamente delegado ao setor privado, processo que alcançou o auge nos anos 1980 e 1990, através de leis de incentivos fiscais beneficiando empresas que promovessem áreas artísticas e culturais. Neste contexto, a experiência das Lonas Culturais acaba por tornar-se modelo para uma Política Cultural Nacional de pouca tradição incitativa e, por isto mesmo, sem as vantagens e desvantagens de uma Política Cultural tida por centralizadora, como a Francesa. Sua observação expõe as potencialidades e os limites de associações entre sociedade civil organizada e Poder público. De fato, a trajetória deste projeto, do anonimato dos subúrbios a estandarte da política cultural municipal, ilustra os mecanismos e motivações dos agentes sociais e políticos envolvidos, em constante dinâmica ao longo do tempo. Recentes trocas de grupos coordenadores impostas pela municipalidade revelam as indefinições e contradições de seu estatuto ambíguo, situado entre projeto cultural comunitário e competência de instituição pública. Interfaces Em termos urbanísticos, o projetos sublinham novas interfaces entre revitalização urbana e política cultural, entre público e privado, entre centro e periferia. O primeiro nível de interface, entre revitalização urbana e política cultural, se dá no sentido inverso de processos recentes que têm articulado função cultural, resgate social e renovação urbana, apelando maciçamente para o caráter fetichizado da cultura, onde o homem tem cada vez menos participado das decisões de seu espaço consagrando-se um espectador da vida tornada espetáculo13 . O segundo ponto de interface da criação destes novos tipos de equipamento cultural, com gestão participativa indica a necessidade de reavaliação da relação público-privado, e pode ser ilustrado pela implantação das Lonas em espaços públicos, geralmente praças ou parques. Apesar de serem públicas, as praças anteriormente eram freqüentadas apenas por pequenos grupos, devido à imagem deteriorada, à presença de grupos marginais, à ausência de policiamento, além da falta de mobiliário urbano adequado. O espaço público, nestes casos, era percebido mais como espaço de ninguém do que como espaço de todos, de utilização quase particular ao invés de coletiva. Apenas a partir da construção de um equipamento, e da sua apropriação participativa por parte da população, houve uma melhoria física e 90 Caderno especial.p65 90 18/10/04, 13:17 de imagem das praças, um aumento da auto-estima da população moradora dos bairros e, conseqüentemente, ampliação e democratização do acesso, possibilitando uma efetiva utilização pública e coletiva. Tendência semelhante pode-se perceber na Villa Mais dIci, onde um espaço de estatuto realmente privado, anteriormente em estado de desativação e testemunhando um passado industrial revoluto, passa a abrir as portas e a receber moradores da vizinhança que começam a se apropriar ainda timidamente deste equipamento sui-generis. No terceiro processo de interface há uma crescimento contagiante entre centro e periferia. O projeto das Lonas é o primeiro a oferecer um equipamento cultural fixo com programa especificamente cultural no subúrbio do Rio de Janeiro, o que por si só indica uma mudança de arranjos entre centro e periferia da cidade. De fato, em gestões democráticas de grandes metrópoles14 , o maior desafio têm sido reverter o antagonismo centro-periferia como estigma social e cultural. A esta reversão corresponde uma fusão entre modelos globais e traços locais, uma composição ou ainda uma certa contaminação centro-periferia15 (no caso dos pequenos centros culturais construídos nas banlieues de Paris após a inauguração do grande centro cultural Georges Pompidou, o famoso Beaubourg na área central da capital francesa). Desafios Em que medida então podem estes projetos escapar a uma espetacularização da cidade como um todo e a uma certa estetização da miséria16 , quase sempre presentes nos modelos internacionais de grandes eventos e políticas culturais? Acreditamos que apenas na medida em que continuarem dando espaço para participação dos moradores locais, dentro de rede de cooperação e fugindo do monumental ! Pela conjugação da participação e da arquitetura alternativa e polivalente (circo no caso das Lonas e fabril no caso da Villa), que remete à memória do subúrbio e assim se encontra na esfera do cotidiano17 . Ambos os fatores, nos parecem formar a originalidade e especificidade da propostas aqui apresentadas. Se eliminarmos um ou outro não teremos efeitos sociais dinâmicos nem efetivo papel edificante da cultura, mas apenas sua reificação. Sem a participação do local teríamos um morador da periferia mais uma vez à mercê das decisões das esferas dominantes sejam elas na cultura ou no urbanismo. Por outro lado se eliminarmos o aspecto simbólico dos espaços, ou se forem construídos apenas grandes teatros cairemos na armadilha do monumental, que tende a patrimonializar e museificar qualquer manifestação cultural que engloba. Portanto para o gestor urbano em subúrbios com as características descritas aqui, a busca de um lugar e de uma programação que atraiam a diversidade de culturas 91 Caderno especial.p65 91 18/10/04, 13:17 Friche Villa Mais dIci, Aubervilliers. Friche Villa Mais dIci, Aubervilliers. 92 Caderno especial.p65 92 18/10/04, 13:17 Lona Cultural Vista Alegre, Rio de Janeiro. Lona Cultural Anchieta, Rio de Janeiro. 93 Caderno especial.p65 93 18/10/04, 13:17 presentes será um desafio. Desafio tanto maior tendo em vista a própria diferença cultural quase sempre existente entre conceptores e receptores da política urbana. Os habitantes deverão também sofrer todas as conseqüências das mudanças de interesse dos agentes decisores (na França operando no contexto das Politiques de la Ville, Contrat-de-Ville e recentemente no contexto das grandes operações de reconquista das friches industrielles) além dos efeitos peculiares ligados ao poder simbólico próprio do campo cultural. Neste quadro, o papel dos sujeitos-coletivos na gestão de processos culturais se faz tão ou mais importante. A partir das associações civis se estabelece, em paralelo ou em complementação a uma suposta política cultural institucional, o que poderíamos chamar de ação cultural de baixo-para-cima (em relação aos agentes decisores tradicionais) ou ainda da periferia para dentro (em relação aos conteúdos 18 tradicionalmente abrangidos) marcada por uma pluralidade cultural intrínseca ao tecido social urbano. Ela simboliza uma salvaguarda face a personalismos políticos possíveis numa política cultural municipal19 e aos riscos de cooptação pelo Poder público, enfraquecedora de esforços coletivos já empreendidos, que se revelam uma constante à medida que o projeto ganha visibilidade. Márcia de N. S. Ferran é doutoranda da Universidade de Paris I Pantheon / Sorbonne. Notas 1 Com efeito isto se deve também à hiper valorização de uma concepção materialista de cultura; assim esquece-se quase sempre que a fabricação da cultura, no sentido antropológico começa na escala micro, local. Mas se levarmos em conta o exemplo Francês que conseguiu se impor como referência de Política cultural nacional, vemos como ela nasceu num contexto de preocupações nacionalistas por um lado e de preocupações de reafirmação face à uma imagem internacional por outro lado. 2 Sem entrar aqui numa análise histórica pormenorizada partimos do princípio que o subúrbio empobrecido é o espaço modelo de diversas diásporas modernas e contemporâneas, a conjunção mesmo da diversidade e dos desafios da alteridade. O lugar que simboliza a busca humana eterna e desesperada por melhores condições de vida. Ele é por tudo isto um fermento de inovações resultando da diversidade cultural presente. Um espaço-chave tanto para o urbanista quanto para o antropólogo. 3 Este projeto foi objeto de pesquisa de mestrado entre 1999 e 2000 que resultou na dissertação apresentada ao PROURB/UFRJ, intitulada Participação, política cultural e revitalização urbana nos subúrbios cariocas: o caso das Lonas Culturais. 4 Guiada por diferentes agentes sociais, esta inclusão dos subúrbios, pode se dar sob várias modalidades de gestão e parceria, das quais destacamos duas principais: 1) no contexto de grandes projetos inter municipais ou nacionais espetaculares (multiplicando-se em festivais, capitais culturais Européias, Fóruns, etc) ; 2) através de projetos socio-culturais locais mais perenes com gestão participativa. Iremos tratar aqui de exemplos da segunda modalidade, partindo do princípio que muitas vezes estas modalidades são complementares num mesmo recorte territorial e numa mesma gestão política. 5 Título concedido pela União das Cidades-Capitais Ibero-americanas (UCCI), por ocasião da XII Reunião do Comitê de Cultura realizada em Havana em 1997. 6 Evento internacional, que reuniu entidades e organizações não-governamentais (ONGs) nacionais e internacionais em torno do tema do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, realizado no Rio de Janeiro em 1992, mais conhecido como Eco-92. 7 Além do custo de R$405.000,00, para construção, o RioArte paga às ONGs uma verba mensal, que em 2000 passou de R$5.000,00 a R$15.000,00. 94 Caderno especial.p65 94 18/10/04, 13:17 8 Levantamento realizado pelo RioArte, levantamentos anteriores indicavam um crescimento de 23.371 em 1995 à 67.581 em 1997. 9 Matéria publicada no caderno B do Jornal do Brasil, sexta-feira, 23 de abril de 1999. Inaugurado em 1958 como Teatro de Arena com formato originalmente grego, era parte integrante do Teatro Rural do Estudante, e fruto da idéia implantada por Pascoal Carlos Magno, que defendia a criação de núcleos de teatro em todo o Brasil. Este teatro inicial é assim contemporâneo à criação do Teatro de Arena em São Paulo, movimento em oposição ao TBC (Teatro brasileiro de comédia) abrindo espaço para novos atores e dramaturgos. Encontravase desativado desde a década de 80, após ter sediado a Comlurb na década de 70. 10 11 Cabe destacar que de todas as manifestações é a música que congrega e atrai maior quantidade de público. 12 De acordo com levantamentos do RioArte para meses de janeiro a junho de 2000, incluindo aí público dos shows. Conforme patente no número dedicado à Ré-génération, du patrimoine à l´objet. Revista Architecture IntérieureCREE, jan-fev 2002. França. 13 14 Friches industrielles, lieux culturels. COLLOQUE DE LA LAITERIE. La Documentation Française, 1993. Relação esta embasadora no caso da Friche La Belle de Mai conforme visto em NOUVEL, J. 1995. Un projet culturel pour un projet urbain. Friche la Belle-de-Mai. 15 Dossier de partenariat. (juin 2003). Villa Mais dIci. Renouvellement urbain à Aubervilliers : une friche culturelle de proximité. p.11 16 17 Fonte : Observatoire social de la ville dAubervilliers, 1999. Efetivamente, é a implantação da chamada Politique de la Ville no âmbito nacional que iria lançar novas esperanças para Aubervilliers, assim como para outras cidades desfavorecidas. Para cada uma delas seria feito, através de seleção de candidaturas, um Contrat de Ville, que outorga financiamentos específicos do Estado, mediante metas definidas num prazo de quatro anos. A tônica destes contratos recai sobre um misto de discriminação positiva e descentralização. Sua implantação foi decorrente e visava reverter um contexto de vários episódios de violência urbana e revoltas concentradas em bairros de habitação social de cidades médias da França no fim dos anos 70. 18 Dossier de partenariat. junho 2003. Villa Mais dIci. Renouvellement urbain à Aubervilliers : une friche culturelle de proximité. p.9 19 20 Entrevista realizada em 10/11/2003 na Villa Mais dIci. 21 Entrevista realizada em 07/01/2004 na Villa Mais dIci. Entendido na nossa análise, por aquilo que os antropólogos denominam rede de interações sociais ou rede de cooperação conforme: Becker, Howard. 1982. Art Worlds. University of Califórnia Press. 22 23 Velho, Gilberto; Kuschnir, Karina. 1996. Mediação e metamorfose. Revista Mana, v.2, n.1,abr. Conforme. Bourdieu, Pierre. 1979. La Distincion. Critique sociale du jugement. Les éditions de Minuit, Paris. Uma análise das três formas de capital cultural elencadas por Bourdieu: corporificado, objetificado e institucionalizado; no contexto de Aubervilliers e no contexto da Villa Mais dici seria sem dúvida fundamental para compreensão do alcance das ações culturais propostas. 24 Lextrait, Fabrice. 2001. Lieux intermédiaires-une nouvelle époque de l´action culturelle. Rapport au Secretariat d´État au Patrimoine et à la Decentralisation Culturelle. vol. 2, p. 2. 25 Zoia, G. (1997) "La mobilisation de réferences multiculturelles pour laction dans les quartiers en difficulté". In : Metral, J. 1997. (coord). Les aléas du lien social. Ministère de la Culture et de la Communication. 26 27 Donzelot, Jacques.2003. Faire Société. La Politique de la ville aux Etats-Unis et en France. Seuil, Paris. Nos referimos aqui ao sentido atribuído por Guy Debord, contrapondo-se à participação. Debord, G. 1992. La Société du Spectacle. Paris. Ed. Gallimard. (1a. ed.1967) 28 Conforme Marilena Chauí relata sobre sua experiência à frente da Secretaria de Cultura de São, em Chauí, Marilena. 1993. Uma opção radical e moderna: Democracia Cultural. Em: Revista Pólis, São Paulo, n.12. 29 30 Tendência prevista por Claude Mollard. 1979. "Le centre et la périphérie". En: révue Autrement. n.118, Paris. 31 Tendência criticada por Henri-Pierre Jeudy (1999) em Les usages sociaux de lArt. Circe, Paris. Compreendido aqui como oposto do monumental e também em referência à esfera analisada por Michel de Certeau. 1994. Artes de fazer: a invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes. 32 Infelizmente um procedimento desejável porém ainda raro para as ações culturais, é da pesquisa de demanda frente aos moradores. Por contraste entre "política de oferta praticada pela maioria dos serviços culturais e política de demanda que identifica desejos e aspirações reais através de enquetes. Dicotomia percebida por Lucchini, F. 2002. La Culture au service des Villes. Ed. Anthropos, Paris. 33 Neste sentido, iniciativas inter-municipais parecem oferecer resultados mais perenes além de atualizarem o tema das redes no que tange à função cultural. 34 95 Caderno especial.p65 95 18/10/04, 13:17 Caderno especial.p65 96 18/10/04, 13:17 Ana Clara Torres Ribeiro ORIENTE NEGADO cultura, mercado e lugar O desenvolvimento urbano predominante hoje ignora as relações ancestrais entre espaço público, mercado e cultura. Desejamos mostrar que, no momento, o que importa não é negar o mercado, propósito inútil e com pouca possibilidade de angariar adesões entusiastas, mas, sim, negar o mercado que sustenta a denominada globalização perversa, difusora massiva de ideologias. As relações históricas entre comércio, gestão e sociabilidade devem ser valorizadas. Essas relações, presentes na memória das classes populares, alimentam a vida espontânea dos espaços urbanos. O direito à cidade fundamenta-se no acesso à terra urbana, o que envolve sobretudo a garantia da habitação. Historicamente, para as classes populares, a conquista deste direito exigiu o enfrentamento de oposições expressivas das alianças das classes dominantes com os estratos sociais médios nicho de origem dos profissionais envolvidos com a construção da cidade e a regulamentação dos seus usos e com os poderes instituídos, responsáveis pelo controle social e pelos investimentos. As marcas, os limites e os custos sociais deste enfrentamento podem ser reconhecidos na paisagem de tantas cidades européias, onde as pequenas ruelas e as paredes irregulares agora expurgadas das epidemias, das guerras, da miséria e da fome constituem um registro extraordinário da desigualdade social e do confinamento oriundo de tantas radicais exclusões. Neste sentido, é suficiente recordar, aqui, os bairros judeus da rede de cidades históricas da península ibérica; o desesperante cemitério israelita de Praga e as mourarias. Além disto, os sempropriedade, como afirma Elizete Menegat (2003), foram sistematicamente excluídos da possibilidade de permanecer num determinado ponto da obra coletiva que é a cidade (Lefebvre, 1969). Como recordá-los num período tão caracterizado pelo ênfase nos objetos, na eficácia da matéria e por uma forma de adesão à imagem que, em grande parte, exarceba as referências à pedra e omite a carne? E, também, por uma forma de manipulação técnica da imagem que, ao reconstituir virtualmente o passado e completá-lo, oculta a ação do tempo e, portanto, os limites do próprio trabalho? Nas palavras de Simmel: O valor estético da ruína unifica o desequilíbrio, o eterno devir da alma que luta consigo mesma, com o contentamento formal, com a delimitação fixa da obra de arte. Por isso, onde não há mais restos da ruína suficientes para fazer sentir a tendência à elevação, ela perde sua sedução metafísico-estética (s/d apud Souza e Oëlze, 1998). Sem marcas e nem registros, os segmentos excluídos da cidade só podem ser pensados pelo seu antagônico: a riqueza e a propriedade; as formas e os mode- 97 Caderno especial.p65 97 18/10/04, 13:17 los hegemônicos do direito e do urbanismo. Estas breves palavras visam, apenas, assinalar o contraste entre as leituras politicamente necessárias da paisagem urbana, que podem ser apoiadas pela atual valorização do patrimônio histórico, e a informação geralmente estimulada pelo turismo e pela promoção cultural dos lugares. Transformados em atratores de fluxos de consumidores animados por promessas de acesso à cultura, os ambientes urbanos preservados, higienizados e estetizados por um gosto potencialmente único oferecem resistência à apreensão da vida de relações que animava e articulava, explicando-os, palácios e casebres. Sem dúvida, o estímulo à contemplação, que é tão presente nos arranjos estetizantes dos acervos históricos e na cenarização clean ajustada ao tipo médio do consumidor de cultura, equaliza lugares e descontrói possibilidades de aprendizado (Ribeiro, 1991). Visita-se, com o mesmo ânimo e a mesma ausência de estímulo à reflexão moral, masmorras, exposições de instrumentos de tortura, restos mortais depositados em vitrines sem respeito à crença que lhes deu origem, pinacotecas e fábricas. Até que ponto as cargas de subjetividade, que existem em cada objeto, podem resistir à voragem de memórias e à produção do espetáculo que caracterizam a contemporaneidade (Simmel, 1902)? Ou ainda, segundo Milton Santos (1996) conduzido por Sartre (1967), até que ponto a perda de sentido do prático inerte afeta a ação que acontece no presente? O alisamento do ambiente preservado, assim como a sua museificação e mercadorização, frequentemente acompanhadas de sintomas de voyeurismo e morbidez, constituem ameaças à ação social na medida em que reduzem a possibilidade de diálogo criador e criativo entre gerações e culturas. Aliás, o argumento preservacionista só se sustenta, ao nosso ver, na medida em que trocas intersubjetivas com as gerações anteriores tanta vezes difíceis, dolorosas e inspiradoras podem de fato acontecer. Tais trocas encontram-se limitadas, entretanto, quando a multiplicidade dos objetos e das altervativas de percurso atordoa o processo de reflexão do passado, confundindo o conhecimento necessário com o lazer ansioso, ininterrupto e sempre fugaz. A construção do diálogo autônomo com o passado, como demonstram com rara força os jovens guias das obras de Orozco em Guadalajara e os professores do Museu Nacional de Antropologia da cidade do México, depende não apenas de informações corretas mas, também, da transposição dos estímulos materiais da memória à reflexão dos dilemas vivenciados no presente. A natureza desta transposição, que é racional e emocional, interfere nos vínculos entre matéria e ação. É por esta razão que cabe indagar: quem reúne os fragmentos oriundos do 98 Caderno especial.p65 98 18/10/04, 13:17 preservacionismo num discurso alimentador da ação socialmente conseqüente? Quem desenha a estrutura do caleidoscópio originado dos elos entre hipermodernidade (técnica, interesse e estratégia) e os estratos preservados do passado? Discurso e imagem constituem os termos-chaves da disputa do processo comunicacional que envolve e condiciona os fluxos de pessoas e mercadorias que reúnem, hoje, cultura, mercado e lugar. Como adverte Muniz Sodré, ao analisar a comunicação contemporânea e seus produtos: A complexidade dessa nova ordem tecnocultural não nos permite pensá-la, entretanto, como mera instrumentação da esfera econômica. Não há dúvida de que tal ordem, aparentemente apartidária, adequa-se politicamente às perspectivas social-democráticas que, de um lado, atribuem ao mercado a responsabilidade pela alocação dos principais recursos econômicos e, de outro, reservam ao Estado o papel de garantia dos direitos de propriedade e de estímulo ao progresso tecnocientífico última das utopias do capital. Cultura é aí, portanto, algo pragmaticamente vinculado ao mercado (1996:31). Os impulsos que unem cultura e mercado, mediados pela nova base técnica de sustento das atividades econômicas, acontecem nos lugares, em consonância com as estratégias traçadas por aqueles que mapeiam bens culturais (objetos, hábitos e comportamentos) e com a busca contínua por inovação que faz girar a roda, desejada cada vez mais rápida, do consumo. Estes movimentos, que difundem os códigos da nova ordem tecnicocultural, desestabilizam e cenarizam lugares, produzindo formas mais sutis de desapropriação cultural e de alienação consumista e, ainda, ameaças permanentes aos investimentos públicos e privados. Afinal, a redução da complexidade, individualmente percebida e sofrida, é indispensável à complexa operação de comando dos fluxos que atualmente modificam os usos da cidade, sob o estímulo de chamamentos da cultura ou da natureza. Esta operação, calcada sobretudo em informação excepcional, corresponde aos processos de ordenação e, logo, de controle do acaso e da incerteza que constituem o próprio âmago da ordem tecnocultural. Porém, o controle do acaso e da incerteza, que impede a ação espontânea e a experiência do surpreendente, equaliza lugares, fragilizando o seu poder de sedução e a sua capacidade de apoiar a reflexão e a ação transformadoras. De forma ainda mais radical, poderia ser dito que os lugares tendem a perder a sua uniquiness, ou seja, as suas características mais íntimas e profundas, amoldandose a funções necessárias à preservação eficiente dos fluxos da rede mundial de 99 Caderno especial.p65 99 18/10/04, 13:17 cidades e do mercado global. Nestas tendências, manifesta-se o fenômeno da ocidentalização do mundo, estudado por Serge Latouche (1994). Este fenômeno, que conjuga economia e pretensões civilizatórias, pressiona o próprio ocidente, racionalizando os usos do espaço historicamente construído e criando redes especializadas, e usualmente excludentes, de cooperação entre operadores da ordem tecnocultural. As exigências da eficiência sistêmica desta cooperação transparecem em referências culturais que transformam passeios no Rio, por exemplo, em verdadeiros safaris ou a produção do rum, em Cuba, num alegre, miniaturizado e lúdico revival da escravidão. Também a urbanização difusa (Gottdiener, 1993), característica da última modernidade, pressiona a rede histórica de cidades, contribuindo para reduzir a sociabilidade aberta pela aceleração dos fluxos mundiais e para acondicionar os lugares ao programa dominante, ou seja, à programação de usos do espaço urbano imposta, aos lugares e aos seus habitantes, com apoio nos novos suportes técnicos da comunicação e da informação. É com base nestes processos, conduzidos pelo mercado, que desejamos refletir o Oriente negado. Sobre mercado e cultura Os movimentos responsáveis pelo alisamento do espaço; pela mercadorização da cultura e pela cenarização da paisagem encontram a resistência do cotidiano, do espaço banal e do denominado, por Milton Santos, homem lento. Nas palavras deste último autor: Para os migrantes e para os pobres de um modo geral, o espaço inorgânico é um aliado da ação, a começar pela ação de pensar, enquanto a classe média e os ricos são envolvidos pelas próprias teias que, para seu conforto, ajudaram a tecer: as teias de uma racionalidade invasora de todos os arcanos da vida, essas regulamentações, esses caminhos marcados que empobrecem e eliminam a orientação ao futuro. Por isso, os espaços luminosos da metrópole, espaços da racionalidade, é que são, de fato, os espaços opacos (1994:85). Os excluídos e marginalizados, os sem-propriedade e os perigosos de ruelas e becos do passado agora metamorfoseados em objetos de curiosidade e negócio reproduzem-se nos anônimos, nos sem-teto e nos migrantes clandestinos de hoje. Estes herdeiros da exclusão (Castel, 1995) têm sido o alvo privilegiado de novas formas de vigilância e controle e, também, de políticas orientadas pelo ideário da tolerância zero (Pinto, 2000). Tais políticas, em contínuo processo de detalhamento gerencial e técnico, buscam afastá-los dos lugares luminosos, onde acontecem os programas que unem patrimônio, cultura e lazer. 100 Caderno especial.p65 100 18/10/04, 13:17 Com este afastamento, a iluminação de lugares que, no passado, condensavam a dor e a desigualdade, apóia o ocultamento da dor e da desigualdade do presente, principalmente quando ocorre a mutação mercantil, denunciada por Nestor Garcia Canclini (1983), do étnico no típico. Tal mutação decorre de práticas classificatórias de costumes e de elementos da cultura material orientadas pelo olhar do consumidor e do vendedor de serviços e, não daquele que é o verdadeiro desbravador de oportunidades criativas, insubordinadas e disruptivas. Porém, é dele e dos seus espaços inorgânicos que advêm as inovações realmente radicais, capazes de impulsionar um grande espectro de novos e atraentes bens culturais, de especial relevância para a juventude, como demonstram o funk e o hip-hop (Vianna, 1997; Carrano, 2003). É com base nestas observações que pode ser dito que a pauta política do direito à cidade, além da habitação e do conjunto de direitos urbanos mais comumente reconhecidos, precisaria incluir o direito à originalidade e ao efetivo encontro de formas autônomas de vida, onde se inclui a reinvenção tanto da democracia (Santos, 2002) quanto do mercado. A homogeneização da cultura e a equalização dos lugares renegam raízes e sustentam a eficácia abstrata, que é antagônia à experiência dos homens lentos e, portanto, ao depósito de ensaios, de acertos e erros, e às manifestações da subjetividade que são intrínsicos à obra. Assim, se a cidade é obra e não somente produto ou mercadoria, como afirma Henri Lefebvre, torna-se indispensável rever diretrizes atuais da política urbana que, ao estimularem o consumo, espetacularizam a cultura, a cidade e os seus usos. Esta política tem insistido na atualização de atos do palácio ou expressivos de uma empobrecida alegoria do príncipe maquiavélico roteiros deslumbrantes, arquitetura de grife, mega eventos, messianismo cultural do Estado numa conjuntura em que o crescimento da violência, do racismo e da guerra exigem a horizontalização das oportunidades econômicas e de criação. Apaguemos portanto, pelo menos por algum tempo, os holofotes e escutemos o rumor e os gritos dos espaços inorgânicos, imaginando-os menos distantes, menos segregados, menos folclorizados. O que poderia ser apreendido numa experiência como esta? Talvez, outras formas de fazer cidade e de aprender, neste fazer, com a cultura do Outro: mortos e vivos. Desta experiência hipotética, também poderia advir a descoberta de formas de realização da economia menos excludentes, competitivas e desapropriadoras de territórios e bagagens culturais. Assim, com a noção de Oriente negado, pretende-se indicar tanto as áreas ainda não atingidas frontalmente pela ordem tecnocultural como a força dos espaços inorgânicos e dos homens lentos nas resistências à exclusão em espaços lumino- 101 Caderno especial.p65 101 18/10/04, 13:17 sos do agir hegemônico. Estas resistências são particularmente relevantes pelas formas de dominação que caracterizam a ocidentalização do mundo. Como diz Serge Latouche: Com a descolonização, os missionários chutados do Ocidente deixaram o centro do palco, mas o branco ficou nos bastidores e puxa os cordões. Esta apoteose do Ocidente não é mais a presença real de um poder humilhante por sua brutalidade e sua arrogância. Ela se apóia nos poderes simbólicos cuja dominação abstrata é mais insidiosa, mas, por isso mesmo, menos contestável. Esses novos agentes da dominação são a ciência, a técnica, a economia e o imaginário sobre o qual elas repousam: os valores do progresso (1996: 26). Entre as resistências, incluem-se as práticas sociais que buscam garantir a circulação e a permanência do Outro nos espaços públicos. É indispensável reafirmar a circulação e a permanência como dimensões essenciais do direito à cidade, frente à crise do trabalho, ao aumento da exclusão social e à difusão de ideários de segurança que ampliam a segregação sócio-espacial e cultural. Neste contexto, manifesta-se a precariedade do diagnóstico que hoje sustenta as propostas hegemônicas de reestruturação urbana - economia de serviços e inovações tecnológicas, apoiadas em empreendedorismo (Harvey, 1996; Compans, 1999). Com base neste diagnóstico, divulga-se modelos de política urbana responsáveis pelo esvaziamento de centros históricos e pela desintegração mercantil dos lugares, ao que cabe acrescentar o desconhecimento dos vínculos tradicionais entre espaço público, mercado, cultura e linguagem. O que importa, no momento, não é negar o mercado, propósito inútil e com pouca possibilidade de angariar adesões entusiastas, mas, sim, negar o mercado que sustenta a denominada, por Milton Santos, globalização perversa, difusora massiva de ideologias: Um mercado avassalador dito global é apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferenças locais são aprofundadas. Há uma busca de uniformidade, ao serviço dos atores hegemônicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o culto ao consumo é estimulado (Santos, 2000: 18, 19). Através dos elos indissociáveis entre economia e política, instalam-se as condições para que, juntamente com a expansão avassaladora do mercado citada por Milton Santos, ocorra a crise da política. Sinais desta crise podem ser claramente identificados em propostas que reduzem a problemática urbana à sua dimensão local, criando a ideação de um mundo conformado por uma espécie de edição atualizada de cidades-estados que, ironicamente, poderíamos associar à frágil alegoria do príncipe antes citada. De fato, não é difícil associar a idéia de cidades-estados à cidade do pensamento único, reconhecida por Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia 102 Caderno especial.p65 102 18/10/04, 13:17 Maricato (2000), e nem tampouco a alegoria do príncipe às obrigações hoje atribuídas aos prefeitos. Porém, enquanto a política adequa-se a orientações estratégias que conduzem à focalização dos investimentos e à hierarquização de prioridades em cada política social, aumentam a competição entre lugares e o nível da abstração das relações mercantis, articuladas à financeirização da economia. Desta maneira, a logística que apóia a localização de empresas e iniciativas é a mesma que acelera o desenraizamento de populações e culturas, ampliando as contradições sociais no epicentro dos lugares aquinhoados pelas formas mais avançadas de realização do capitalismo. A periferia desloca-se para o centro, como demonstra a relevância assumida pelo tema da exclusão social nos países centrais, por mais que sejam fortalecidos os mecanismos de segurança e as barreiras que procuram reter a luta pelo acesso a oportunidades. Afinal, a própria ampliação dos mercados tensiona, permanentemente, os novos muros, físicos ou virtuais, que acompanham a globalização da economia. Além disto, a desestabilização de formas de vida, originada na competitividade entre corporações, aumenta a transumância e amplifica necessidades de consumo, num período em que a reestruturação produtiva destila a seletividade social. Neste período, grandes transformações espaço-temporais rompem perspectivas evolucionistas e possibilidades de generalização de modelos para o planejamento da economia e para o ordenamento do espaço, apesar da extraordinária pressão exercida, sobre os governos locais, para que ocorra a aceitação de diretrizes da denominada nova gestão. As transformações espaço-temporais atingem diretamente o planejamento urbano, desafiando a totalidade das políticas públicas e as formas de convencimento que, historicamente, associaram política e cultura. As ágeis hibridações espaço-temporais criam o predomínio da incerteza, que busca-se evitar através de acréscimos técnicos e da absorção exarcebada de leituras estratégicas dos contextos sociais. Entretanto, a crise da modernidade, que resulta em crise institucional e das normas que orientam as expectativas coletivas, impõem a reflexão simultânea e tentativa tanto dos direcionamentos característicos da hiper-modernidade quanto da pré-modernidade, como também propôs Henri Lefebvre (1984). Aliás, a própria interrogação ética da hiper-modernidade, em suas conseqüências cotidianas, depende da recusa ao aprisionamento da reflexão nos códigos político-culturais e nos determinantes econômicos do Ocidente. Não se trata, apenas, de aceitar ou tolerar a existência de outros comportamentos e culturas ou, ainda, de pleitear a defesa de um harmonioso multiculturalismo mas, de 103 Caderno especial.p65 103 18/10/04, 13:17 dialogar com as práticas do Outro passado e presente em busca de alternativas para a crescente desigualdade social e a violência. Da mesma maneira que acontecem, atualmente, fortes questionamentos às esferas institucionalizadas da vida social, responsáveis pela experiência de cidadania restringida e de democracia minimalista (Coutinho, 1991; Bobbio, 1985), comuns a tantas sociedades, crescem os desafios relacionados à reconstrução da capacidade integradora da economia, como exemplificam as iniciativas reunidas no conceito de economia solidária (Singer, 2001), as extensas redes de trocas construídas em vários países latino-americanos, o crescimento do número das cooperativas populares e as práticas de auto-gestão que procuram recuperar empresas falidas e plantas industriais estagnadas. Acredita-se, a partir destes exemplos e da extensão alcançada pela crise societária, que precisem ser particularmente valorizados os vínculos históricos entre comércio e sociabilidade construídos pelo Outro, para além da versão hegemônica de mercado que acompanha a ocidentalização do mundo. O exame dos vínculos entre comércio e sociabilidade correspondem à possibilidade de reflexão da inteligência que constrói reais caminhos para a negociação entre culturas e, também, para a superação do lucro e da competição como únicos comandos das trocas econômicas. As trocas econômicas e os movimentos do intercâmbio constróem mediações que orientadas pela linguagem, por solidariedade e pela cooperação podem resis- tir ao rigor e à eficiência, e logo à exclusão, exigidos por agentes econômicos dominantes e, também, ao predomínio do valor de troca sobre as necessidades e carências humanas, expressas em valores de uso e noutras dádivas, como indicam Brasilmar Ferreira Nunes e Paulo Henrique Martins: Bourdieu (1994), por exemplo, enxerga na cidade algo mais amplo que uma economia de trocas mercantis, sendo este algo as trocas simbólicas ( ) Mauss (1999), por outro lado, diria que a cidade é um fato total, no qual a atividade econômica constitui apenas uma das partes da troca geral e onde a troca de bens materiais vale tanto quanto a troca de gentilezas, festas, sorrisos, etc (2001: 16, 17). A atividade relacional é constitutiva da troca e do intercâmbio, que podem ultrapassar os objetos e a negociação mercantil, incluindo, potencialmente, a subjetividade e a totalidade da cultura. É esta possibilidade que transparece na vitalidade dos mercados pré-colombianos retratada pelo próprio colonizador (Benítez, 1986); na liberdade vivenciada nas cidades medievais e na inteligência popular que conquista milimetricamente espaços de negociação nas áreas luminosas do Rio de Janeiro. Assim, a própria noção hegemônica de mercado pode ser questionada por sua incapacidade de oferecer condições de construção cultural da sociabilidade, na 104 Caderno especial.p65 104 18/10/04, 13:17 medida em que recusa as carências e as táticas (Certeau, 1998) dos homens lentos e desconhece a autonomia relativa dos lugares. Nesta direção, José de Souza Martins (1997) oferece exemplos da racionalidade alternativa que orienta a produção camponesa face àquela orientada pelas ordens do mercado capitalista e, também, exemplos de economia não-monetarizada que expressam os movimentos da frente de expansão que constrói o território brasileiro. Este autor ainda traz referências ao comércio extracapitalista que se realiza entre tribos indígenas, como indicam os processos estudados por Dominique Gallois entre o povo Waiãpi: Os estudos de Gallois sobre esse povo mostram uma complexa e surpreendente teia de relacionamentos entre diferentes grupos indígenas, incluindo um grupo de ex-escravos negros fugidos das fazendas da Guiana francesa e retribalizados, para fazer circular esses produtos entre eles. Um comércio inteiramente extracapitalista e, até se poderia dizer, extracomercial porque inteiramente estranho aos princípios e realidades econômicos em que esses produtos foram gerados (p. 171). Estas rápidas referências apóiam a afirmação de que os impactos da globalização sobre a economia e a política podem adquirir uma face dialógica, completamente diversa daquela que, de forma ininterrupta, estimula a competitividade e difunde atos programados e estreitamente geridos. A diversidade cultural, cujo contraditório acesso é viabilizado pelos próprios fluxos econômicos na escala mundial, trazem a possibilidade de aprendizados radicalmente novos. Tais aprendizados, se bem estudados e apropriados, contêm promessas de resgate de práticas ancestrais, ainda presentes na memória das classes populares. Estas práticas, unindo mercado e sociabilidade, poderiam permitir a valorização da vida espontânea dos lugares, auxiliando no desvendamento de formas urbanas inclusivas e na real revitalização dos espaços públicos. Por que seguir, cegamente, modelos que negam a força dos lugares, a sua historicidade e a sua originalidade? Trata-se, agora, de retomar percursos abandonados na modernidade radicalizada (Giddens, 1990), como tão bem indicado por Henri Lefebvre (1984) ao realizar a análise crítica da vida cotidiana na denominada sociedade burocrática de consumo dirigido. A subordinação irrefletida às determinações desta sociedade, associada à ordem tecnocultural, tem ampliado desigualdades e processos de exclusão, o que atinge a própria riqueza da vida urbana e, em conseqüência, a relevância societária, que é econômica e política, dos espaços públicos. O mercado constitui uma categoria a ser rigorosamente revista, sob os sígnos da solidariedade (Millán, 1994), da sociabilidade e da sabedoria na negociação inteligente e efetivamente criadora de condições essenciais à vida coletiva. 105 Caderno especial.p65 105 18/10/04, 13:17 Ana Clara Torres Ribeiro é professora do Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 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