RSTJ 232.indd - Superior Tribunal de Justiça
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Jurisprudência Corte Especial AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO N. 11.712-AL (2013/0050400-0) Relator: Ministro Presidente do STJ Agravante: Arnaldo Fontan Silva Advogados: André Luiz Souza da Silveira Flavio de Moraes Jardim Saulo Lima Brito Agravado: Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas Interessado: Ministério Público do Estado de Alagoas EMENTA Agravo regimental na reclamação. Usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça. Inexistência. Discussão de matéria aparentemente constitucional na ação principal. I - A reclamação tem cabimento para preservar a competência do eg. Superior Tribunal de Justiça ou garantir a autoridade das suas decisões (art. 105, inciso I, alínea f, da Constituição Federal e art. 187 do RISTJ). II - In casu, o Presidente do eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas suspendeu decisão proferida por Desembargador daquela Corte, nos autos de mandado de segurança. III - Idêntica reclamação foi manejada, simultaneamente, perante o eg. Supremo Tribunal Federal, com o mesmo objeto, evidenciando a possibilidade de existência de discussão acerca de matéria constitucional nos autos principais. IV - O fundamento do mandamus, qual seja, o cumprimento do art. 29, inciso IV, da Constituição Federal, relativo ao número de vereadores na composição da Câmara Legislativa, aparentemente, é constitucional (Precedente), motivo pelo qual o órgão competente para apreciar uma eventual reclamação seria o Pretório Excelso e, por conseguinte, o pedido de suspensão de liminar ou sentença que ele se refere. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA V - A desistência da reclamação ajuizada perante a Suprema Corte não implica alteração do entendimento firmado. Agravo regimental desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler, Eliana Calmon, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Herman Benjamin, Sidnei Beneti e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Humberto Martins. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão, João Otávio de Noronha, Maria Thereza de Assis Moura e Napoleão Nunes Maia Filho. Convocado o Sr. Ministro Jorge Mussi. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Gilson Dipp. Brasília (DF), 16 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Gilson Dipp, Presidente Ministro Felix Fischer, Relator DJe 23.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Felix Fischer: Trata-se de agravo regimental interposto por Arnaldo Fontan Silva em face de decisão proferida por esta Presidência, às fls. 69-73, que negou seguimento à reclamação, nos termos do art. 38 da Lei n. 8.038/1990. Naquela ocasião, verificou-se que idêntica reclamação havia sido apresentada ao eg. Supremo Tribunal Federal, em que se pleiteava, da mesma forma, a cassação do decisum proferido pelo em. Presidente do eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, que suspendeu liminar proferida nos autos de mandado de segurança. Tal provimento liminar determinou fosse observado o número de 31 (trinta e um) vereadores no Município de Maceió-AL. 20 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL No pedido apresentado a esta Presidência, neguei seguimento, nos seguintes termos: O pedido não comporta seguimento. De fato, segundo o disposto no art. 4º, § 4º, da Lei n. 8.437/1992: ‘Se do julgamento do agravo de que trata o § 3º resultar a manutenção ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário”. Com base nessa previsão normativa que se aponta usurpada a competência desta Corte. Entretanto, do dispositivo acima transcrito decorre regra inafastável segundo a qual será cabível pedido de suspensão para esta Corte ou para o Pretório Excelso. Em outras palavras, o pedido de suspensão será de competência do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a depender da matéria que seja objeto da ação principal. A toda evidência, mesma sorte seguirá a reclamação correspondente. Nesse sentido, confira-se: “Vale ressaltar, ainda, ser irrelevante, para fixação da competência desta Suprema Corte, o fato de, no pedido de suspensão, ter sido suscitada ofensa a normas constitucionais. É que, ‘para a determinação da competência do Tribunal, o que se tem de levar em conta, até segunda ordem, é - segundo se extrai, mutatis mutandis, do art. 25 da Lei n. 8.038/1990 - o fundamento da impetração: se este é de hierarquia infraconstitucional, presume-se que, da procedência do pedido, não surgirá questão constitucional de modo a propiciar recurso extraordinário” (Rcl n. 543, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, DJ 29.9.1995). (SS n. 2.918-SP, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 25.5.2006, grifei). Na mesma senda, dispõe o art. 25, caput, da Lei n. 8.038/1990, ao estatuir que compete ao Presidente do e. Superior Tribunal de Justiça a suspensão de execução de liminar ou de decisão concessiva de mandado de segurança proferida, em única ou última instância, pelos tribunais federais ou locais, para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, salvo, porém, quando a causa tiver por fundamento matéria constitucional. Assim, se se tratar de tema constitucional, mesmo que concomitante à matéria infra, nesse caso, ainda assim, a competência para exame do incidente será da Suprema Corte. Isso significa que as portas do Superior Tribunal de Justiça somente abrir-se-ão se não houver qualquer assunto constitucional em debate. A propósito do tema, trago à colação precedente emanado da Corte Especial: “(...) se a ação principal possui fundamento constitucional, a competência é do Supremo Tribunal Federal, ao qual eventualmente caberá apreciar o recurso extraordinário. In casu, a causa de pedir, na ação coletiva, ostenta índole constitucional, pois envolve questão relativa ao direito de greve dos servidores RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 21 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA públicos, tendo como parâmetro recentes decisões proferidas pela Suprema Corte, a exemplo do MI n. 670-ES, cujo acórdão encontra-se pendente de publicação, além da aplicação dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Havendo concorrência de matéria constitucional e infraconstitucional, o entendimento desta Corte é no sentido de que ocorre a vis atrativa da competência do em. Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, sendo ‘irrelevante que o acórdão contenha fundamentos constitucional e infraconstitucional” (AgRg na Pet n. 1.310-AL, relator Ministro Paulo Costa Leite). (SLS n. 823-RS, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 14.2.2008, grifei). Pois bem, no caso em exame, verifico que idêntica reclamação foi manejada perante o eg. Supremo Tribunal Federal, com o mesmo objeto, qual seja, a cassação da decisão proferida pelo em. Presidente do eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas. Porém, lá se alega que a matéria é constitucional. Naquela Reclamação (n. 15.117-Alagoas), foi indeferida a liminar pleiteada, em 5 de fevereiro de 2013. O em. Presidente da Suprema Corte, Ministro Joaquim Barbosa, indeferiu a liminar valendo-se, dentre outros, do seguinte fundamento: “Assim, as informações disponíveis no presente momento não permitem afirmar que tenha havido usurpação da competência desta Presidência, uma vez que a decisão reclamada limitou-se a interpretar a legislação municipal apresentada como fundamento para o pedido. Ante o exposto, indefiro a medida cautelar requerida pelo reclamante.” (Rcl n. 15.117, DJE de 5.2.2013) Não obstante essa afirmação - no sentido de não haver matéria constitucional em debate - sabe-se que essa decisão possui caráter precário, pois limitada ao exame do pleito liminar, de modo que seu mérito ainda será decidido pelo Relator, Ministro Gilmar Mendes. Esse o quadro processual, constato que falece competência a esta Corte, neste momento, para apreciar o mérito da reclamação em exame. Isso porque, é necessário que haja manifestação definitiva do Pretório Excelso quanto a sua eventual competência para apreciação do pedido de suspensão decidido pelo em. Presidente do eg. Tribunal de Justiça local, e por conseguinte, da reclamação que se seguiu. Ou seja, o eg. Supremo Tribunal Federal deve afirmar se existe ou não matéria constitucional no writ. Impende destacar, por necessário, que incumbe, no caso concreto, ao Supremo Tribunal Federal a última palavra acerca da existência de matéria constitucional na ação a que se refere o pedido de suspensão formulado na origem. Dessarte, somente se negada essa possibilidade é que poderá esta Presidência deliberar sobre o objeto da reclamação em exame. Caso contrário, se neste momento se pudesse afirmar a natureza meramente infraconstitucional da matéria tratada no mandamus, esta Corte é que usurparia a competência do Pretório Excelso para decidir a natureza da causa originária, 22 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL uma vez que previamente provocado a sobre ela decidir nos autos da referida reclamação (Rcl n. 15.117-AL) em trâmite perante o eg. Supremo Tribunal Federal. Em suma, afirmar a natureza infraconstitucional seria o mesmo que negar a existência de questão constitucional e, portanto, sobrepor-se ao juízo que compete exclusivamente à Suprema Corte. Ante o exposto, nego seguimento à presente reclamação, nos termos do art. 38, da Lei n. 8.038/1990. P. e I. Nas razões do presente agravo, Arnaldo Fontan Silva alega que optou por desistir da reclamação apresentada no eg. Supremo Tribunal Federal, “para evitar que uma decisão proferida por magistrado absolutamente incompetente produza efeitos no tempo, efeitos esses que representam dano irreparável ao reclamante” (fl. 86). Sustenta ser a matéria discutida no mandado de segurança, em trâmite no eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, de cunho infraconstitucional, tendo em vista que “a decisão reclamada se limitou a interpretar a legislação municipal apresentada como fundamento para o pedido” (fl. 86). Segue afirmando que “quem dispõe sobre o número de vereadores de um determinado município é a sua Lei Orgânica, sendo certo que a Constituição Federal traz apenas uma limitação que deve ser seguida, não expressamente fixando a quantidade de cadeiras” (fl. 86). Aduz que “a matéria de fundo dessa demanda, abordada perante as instâncias ordinárias, diz respeito à interpretação da Lei Orgânica do Município de Maceió, relativa ao aumento do número de cadeiras na Câmara Municipal, a revelar a ausência de envergadura constitucional que justifique a atuação do e. STF no presente contexto” (fl. 89). Requer, ao final, a reconsideração da decisão agravada a fim de que se conceda a liminar inicialmente pleiteada, “para o fim de suspender, em caráter preventivo e até o julgamento final do feito, a decisão proferida pelo Presidente do TJAL (fl. 91). Por manter a decisão agravada, submeto o feito à c. Corte Especial. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Felix Fischer (Relator): O inconformismo não procede. RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 23 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA De acordo com o texto constitucional (art. 105, inciso I, alínea f), compete ao col. Superior Tribunal de Justiça julgar a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões. No mesmo sentido, dispõe o art. 187 do Regimento Interno desta eg. Corte Superior, abaixo transcrito: “Art. 187. Para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade das suas decisões, caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público. Parágrafo único. A reclamação, dirigida ao Presidente do Tribunal e instruída com prova documental, será autuada e distribuída ao relator da causa principal, sempre que possível.” In casu, pretende o agravante, sob a alegação de preservar a competência do eg. Superior Tribunal de Justiça, a suspensão do decisum proferido pelo em. Presidente do eg. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, nos autos de pedido de Suspensão de Segurança formulado pelo Ministério Público local. A tese do agravante é de que o Presidente do eg. Tribunal de origem não poderia ter decidido pedido de suspensão formulado contra decisão proferida por Desembargador integrante do mesmo Tribunal. Ocorre que, a depender da matéria tratada no mandado de segurança, a competência, em tese usurpada, pode ser tanto desta Corte como do Supremo Tribunal Federal. E, como assinalei na decisão ora agravada, ao que tudo indica, há questão constitucional em discussão no mandado de segurança, circunstância que, ao mesmo tempo que atrai a competência do Supremo Tribunal Federal, afasta a desta Corte. Isso porque, conforme já sublinhado, havendo matéria constitucional em debate na ação principal, o pedido de suspensão que eventualmente venha a ser aviado, deverá ser manejado perante a Suprema Corte. Vê-se, a propósito, que a decisão proferida no mandado de segurança fundou-se na interpretação do art. 29, inciso IV, da Constituição Federal (fl. 21). Além disso, cumpre destacar, por necessário, precedente emblemático, oriundo da Suprema Corte, em sede de recurso extraordinário, que tratou exatamente da composição de Câmara Legislativa, a evidenciar a natureza constitucional da matéria tratada no mandamus: Recurso extraordinário. Municípios. Câmara de vereadores. Composição. Autonomia municipal. Limites constitucionais. Número de vereadores 24 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL proporcional à população. CF, artigo 29, IV. Aplicação de critério aritmético rígido. Invocação dos princípios da isonomia e da razoabilidade. Incompatibilidade entre a população e o número de vereadores. Inconstitucionalidade, incidenter tantum, da norma municipal. Efeitos para o futuro. Situação excepcional. 1. O artigo 29, inciso IV da Constituição Federal, exige que o número de Vereadores seja proporcional à população dos Municípios, observados os limites mínimos e máximos fixados pelas alíneas a, b e c. 2. Deixar a critério do legislador municipal o estabelecimento da composição das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites máximos e mínimos do preceito (CF, artigo 29) é tornar sem sentido a previsão constitucional expressa da proporcionalidade. 3. Situação real e contemporânea em que Municípios menos populosos têm mais Vereadores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior. Casos em que a falta de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos legislativos Municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia. 4. Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente. 5. Parâmetro aritmético que atende ao comando expresso na Constituição Federal, sem que a proporcionalidade reclamada traduza qualquer afronta aos demais princípios constitucionais e nem resulte formas estranhas e distantes da realidade dos Municípios brasileiros. Atendimento aos postulados da moralidade, impessoalidade e economicidade dos atos administrativos (CF, artigo 37). 6. Fronteiras da autonomia municipal impostas pela própria Carta da República, que admite a proporcionalidade da representação política em face do número de habitantes. Orientação que se confirma e se reitera segundo o modelo de composição da Câmara dos Deputados e das Assembléias Legislativas (CF, artigos 27 e 45, § 1º). 7. Inconstitucionalidade, incidenter tantun, da lei local que fixou em 11 (onze) o número de Vereadores, dado que sua população de pouco mais de 2.600 habitantes somente comporta 09 representantes. 8. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário conhecido e em parte provido (RE n. 19.7917-SP, Pleno, Rel. Min. Maurício Correa, DJ de 7.5.2004). Desse modo, conforme já enfatizado, se julgada a presente reclamação por esta Corte, aí sim, configurar-se-ia usurpação de competência, aparentemente, RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 25 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA pertencente ao Pretório Excelso. Por tal razão, inexiste a alegada afronta à competência destinada a este eg. Tribunal Superior. Ademais, não houve no caso vertente manifestação expressa da Suprema Corte no sentido de que ela não seria competente, pois ainda que sinalizada a possibilidade da matéria não ser constitucional, o pedido liminar foi apreciado. Além disso, nada altera, o pedido de desistência formulado nos autos da reclamação lá ajuizada, eis que remanesce o mesmo cenário: a probabilidade de existência de matéria constitucional tratada na ação principal parece indicar a competência do Supremo Tribunal Federal. Assim, somente com a manifestação peremptória da Suprema Corte, afastando sua competência, serão abertas as portas deste Tribunal. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. É o voto. AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA N. 1.681-SP (2012/0237482-7) Relator: Ministro Presidente do STJ Agravante: Buffet Grecia Antiga Ltda - ME Advogado: Fabio Lousada Gouvea Agravado: Companhia do Metropolitano de São Paulo Metrô Advogado: Eduardo Hiroshi Iguti Requerido: Desembargador Relator do Agravo de Instrumento n. 2104059720128260000 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo EMENTA Agravo regimental na suspensão de liminar e de sentença. Grave lesão à ordem e economia públicas. Existência. Pedido de suspensão deferido. Agravo regimental do particular desprovido. I - Consoante a legislação de regência (v.g. Lei n. 8.437/1992 e n. 12.016/2009) e a jurisprudência deste Superior Tribunal e do c. 26 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL Pretório Excelso, somente será cabível o pedido de suspensão quando a decisão proferida contra o Poder Público puder provocar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. II - Na hipótese, causa lesão à ordem e à economia públicas a decisão que impede, em ação de desapropriação de imóvel por utilidade pública, a imissão provisória na posse pelo ente expropriante, em virtude da ausência de indenização prévia referente ao fundo de comércio, pois tal decisão paralisa obra de suma importância para a cidade de São Paulo-SP, qual seja, a expansão de seu sistema metroviário. III - A indenização pelo fundo de comércio, apesar de devida, não pode obstar a imissão provisória da posse pelo ente expropriante, cujos requisitos são a declaração de urgência e o depósito do valor estabelecido conforme o art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/1941. Agravo regimental desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler, Nancy Andrighi, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Humberto Martins, Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin, Sidnei Beneti, Jorge Mussi, Raul Araújo e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão, Laurita Vaz, João Otávio de Noronha e Napoleão Nunes Maia Filho. Licenciado o Sr. Ministro Gilson Dipp, sendo substituído pelo Sr. Ministro Jorge Mussi. Convocados os Srs. Ministros Raul Araújo e Sebastião Reis Júnior. Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Eliana Calmon. Brasília (DF), 17 de dezembro de 2012 (data do julgamento). Ministra Eliana Calmon, Presidente Ministro Felix Fischer, Relator DJe 1º.2.2013 RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 27 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RELATÓRIO O Sr. Ministro Felix Fischer: Trata-se de agravo regimental interposto por Buffet Grécia Antiga Ltda, em face de decisão proferida por esta Presidência às fls. 325-329, que deferiu o pedido de suspensão formulado pla Companhia do Metropolitano de São Paulo - Metro, sob os seguintes termos: Trata-se de pedido de suspensão de liminar e de sentença formulado por Companhia do Metropolitano de São Paulo - Metrô, em face de r. decisão proferida pelo em. Desembargador Carlos Malheiros, do eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento n. 0210405-97.2012.8.26.0000. Depreende-se dos autos que a ora interessada, Buffet Grecia Antiga Ltda ME, ajuizou, na origem, ação de indenização em desfavor da ora requerente, por discordar do valor de avaliação de seu imóvel, objeto de desapropriação, anteriormente declarado como de utilidade pública para fins de expansão do sistema metroviário da cidade de São Paulo. O D. Juízo da 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo proferiu a seguinte decisão: “2. Fls. 173-182: tendo em vista que a expropriante, requerida nesta demanda, assume os custos com o transporte dos bens de titularidade da autora para o local em que se instalará, a avaliação prévia determinada a fls. 77, que tinha como único quesito o valor deste transporte, perde seu objeto. Em assim sendo, defiro a expedição de mandado de imissão na posse do imóvel expropriado, devendo a requerida, no ato da imissão, responsabilizar-se pela remoção do acervo físico da autora (mobiliário e equipamentos) para local por ela (autora) indicado. 3. esclareço, novamente, que a imissão na posse pela expropriante não impede que se promova, após a consumação do ato, a valoração do fundo de comércio discutido nesta demanda, motivo por que nenhum óbice existe ao cumprimento da imissão.” (fl. 03) Irresignada, interpôs a ora interessada recurso de agravo de instrumento, o qual foi recebido no efeito suspensivo, impedindo-se a imissão provisória na posse do imóvel pela expropriante, ora requerente, tendo em vista a ausência de avaliação prévia do fundo de comércio do imóvel objeto de desapropriação para expansão do metrô da cidade de São Paulo. Veja-se, oportunamente, o seguinte excerto da r. decisão vergastada: “Vistos. 1) A agravante requer a reconsideração da decisão de fls. 247. Alega que há acórdão proferido por esta Egrégia 3ª Câmara de Direito Público, referente ao Agravo de Instrumento n. 0000450-26.2012.8.26.0000, interposto pelo ora agravado, contra decisão proferida a fls. 104 dos autos principais, que determinou a suspensão da imissão na posse até oportuna avaliação provisória do fundo de 28 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL comércio, e depósito judicial da quantia apurada. Referido agravo foi julgado improvido, mantendo-se a decisão agravada em seus exatos termos. [...] Por tais razões, reconsidero a decisão de fls. 247, e o faço para suspender os efeitos da decisão recorrida, bem como a realização da imissão na posse, até que sejam cumpridas as providências determinadas na decisão de fls. 104 dos autos principais.” (fl. 307) Sobre a obra de expansão do metrô em questão, alega a requerente que “Na Linha 5 - Lilás (pertinente ao imóvel em que se pretende a imediata imissão), em operação com 8,4 km de extensão, com as obras de expansão e modernização, serão construídos mais 11,5 km, permitindo a interligação com a rede metroviária [...]” (fl. 05), que “O trecho encontra-se nesse momento em fase final de demolição dos 224 imóveis já desapropriados” (fl. 05), e que “a imissão na posse de referido imóvel já se encontra muito atrasada”. (fl. 05) Afirma, no caso, que “a obra somente se iniciará na área ora em comento quando houver a imissão na posse, pois, sem isso, não será possível desviar o viário e, consequentemente, não será possível abrir a vala, escavar os poços, construir o viaduto e a estação de metrô.” (fl. 06) Sustenta, ainda, que “o atraso na obra pode resultar em desequilíbrio econômico financeiro do contrato com a empresa responsável pela execução da obra, por força dos custos indiretos inerentes à paralisação do trecho em comento.” (fl. 09) Argumenta, ademais, quanto ao mérito da questão, que “uma vez atendidos os requisitos para imissão provisória na posse, quais sejam, alegação de urgência e depósito prévio, não compete ao Ilustre Desembargador impor mais um: a apuração do fundo de comércio da atividade empresarial [...]” (fl. 12), concluindo no sentido de que em sendo a prova eminentemente contábil, seria “totalmente dispensável obstar a imissão na posse pelo Poder Expropriante.” (fl. 14). Postula, ao final, pelo reconhecimento da “regularidade dos atos praticados [...], a reforçar o argumento de que há necessidade imperiosa de sobrestarem-se os efeitos da decisão ora impugnada, que está causando dano inquestionável à economia e ao interesse públicos.” (fl. 16) Requer, desta forma, a suspensão da r. decisão acima colacionada. É o relatório. Decido. A Lei n. 8.437/1992 estabelece que compete ao em. Presidente do e. Tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução de liminar em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, saúde, segurança e economia públicas. Contudo, mais que a mera alegação da ocorrência de cada RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 29 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA uma dessas situações, é necessária a efetiva comprovação do dano apontado (v.g. AgRg na SLS n. 1.100-PR, Corte Especial, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJe de 4.3.2010). Verifica-se, na hipótese, que o que se busca com o presente pedido é a suspensão da r. decisão recorrida, a fim de possibilitar à requerente a imissão na posse do imóvel objeto de desapropriação para expansão do sistema metroviário da cidade de São Paulo-SP. Assiste razão à requerente, pois está suficientemente demonstrado o risco de grave lesão à economia e à ordem públicas. Isto porque pode-se depreender dos autos, inequivocamente, quanto à obra de extensão do metrô da cidade de São Paulo-SP, que a r. decisão atacada privilegia o interesse privado em detrimento do público. Ademais, tenho que o r. decisum reprochado, além de prejudicar a população, resulta em desequilíbrio econômicofinanceiro do contrato firmado com a empresa responsável pelo serviço. Mister asseverar que não se está aqui a negar o direito de indenização do particular decorrente da desapropriação por utilidade pública do imóvel, notadamente no que concerne à indenização pelo fundo de comércio. Quanto ao tema, aliás, cumpre inclusive ressaltar que é firme na jurisprudência desta Corte no sentido de que deve ser incluído na indenização por desapropriação o valor do fundo de comércio (v.g. REsp n. 1.076.124-RJ, 2ª Turma, Relª. Minª. Eliana Calmon, DJe de 3.9.2009). Entretanto, entendo que tal discussão deve possuir guarida em ação própria para tal fim, onde será possível uma cognição exauriente dos procedimentos necessários à apuração dos valores devidos referentes à desapropriação. Desta forma, a r. decisão que agora se pretende suspender causa prejuízo à ordem e economia públicas, na medida em que, a uma, impede a continuação de obra de suma importância para melhoria do transporte público da cidade de São Paulo, prejudicando milhares de cidadãos que serão beneficiados pelo empreendimento, e a duas, causa prejuízos aos cofres públicos inerentes ao desequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Acerca do tema, veja-se, oportunamente, o seguinte precedente da c. Corte Especial: “Pedido de suspensão de liminar e de sentença. Imissão na posse de área declarada de utilidade pública para fins de desapropriação. Lesão à economia pública. Causa lesão à economia pública a decisão que impede a imissão do Estado do Ceará na posse de área destinada à expansão de complexo industrial-portuário, que abrigará refinaria de petróleo, privando o Estado dos investimentos decorrentes das obras e dos tributos a serem arrecadados das empresas que ali se instalarem. Agravo regimental não provido” (AgRg na SLS n. 1.296-CE, Corte Especial, DJe de 11.3.2011). 30 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL Ante o exposto, defiro o pedido para suspender a r. decisão proferida pelo eg. Tribunal a quo nos autos do Agravo de Instrumento n. 0210405-97.2012.8.26.0000. P. e I.” Em suas razões, alega o agravante que, “para obter êxito no pedido de suspensão de liminar, não é suficiente a simples afirmação de que a decisão do Tribunal a quo pode causar grave lesão aos bens jurídicos listados no art. 4º da Lei n. 4.348/1964. Cabe nesse sentido ao Metrô comprovar, de forma inequívoca, que o cumprimento imediato da liminar atacada provocaria sério prejuízo à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública, o que não ocorreu no caso em tela” (fl. 351). Afirma que “não há como pressupor e nem elementos nos autos para concluir-se que este único imóvel de titularidade da ora Agravante esteja obstando o início das obras pelo Agravado” (fl. 358). Reforça que, “caso persista a suspensão concedida, haverá clara contrariedade a jurisprudência desta C. Corte no sentido de incluir na desapropriação o fundo de comércio, eis que abarcado pelo primado da justa e prévia indenização” (fl. 360). Aduz, ainda, que “O não pagamento do valor do fundo de comércio pressupõe indenização injusta, negando a pronta reparação ao dano ou prejuízo sofrido quer pelo locatário ou proprietário do imóvel. Retirar-lhes a possibilidade de exercerem o comércio no local em que se estabeleceram há muitos anos é trazer-lhes indiscutível perda a que não pode ficar insensível o Estado” (fl. 367). Conclui que “o Judiciário não pode mais conceber que os comerciantes sejam assim tratados, pois exercem função social de muito maior relevo que a propriedade imóvel. Esta, às vezes, é usada para especulação e para acrescer rendimentos individuais quando alugada. Já o negócio comercial, só se constrói com o esforço perene de indivíduo ou grupo, para impostos mais elevados e traduz-se na mola mestre da economia.” (fl. 368), sustentando, também, que em virtude da desapropriação, tem perdido clientela, havendo, inclusive, demissão de funcionários. Requer, ao final, o indeferimento da medida intentada pelo ora agravado. Por manter a decisão agravada, submeto o feito à eg. Corte Especial. É o relatório. RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 31 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO O Sr. Ministro Felix Fischer (Relator): O agravo regimental não merece prosperar. Verifico, do teor das razões recursais ora apresentadas, que o recorrente não trouxe argumentos suficientes para a modificação da decisão ora atacada, que deve ser mantida por seus próprios fundamentos. Inicialmente, alega o agravante a ausência, no caso, de comprovação inequívoca, pelo ora agravado, de que o cumprimento imediato da liminar atacada provocaria sério prejuízo à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública. Contudo, como restou consignado na decisão agora agravada, está suficientemente demonstrado o risco de grave lesão à economia e à ordem públicas. Isto porque pode-se depreender dos autos, quanto à obra de extensão do metrô, que a r. decisão objeto do presente pedido de suspensão claramente privilegia o interesse privado em detrimento do público. Ademais, entendo o r. decisum reprochado, além de prejudicar a população, atrasando obra de suma importância para a melhoria do transporte público e consequentemente da situação caótica em que se encontra o tráfego da cidade de São Paulo-SP, resultaria em desequilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com a empresa responsável pelo serviço, em virtude dos custos inerentes ao atraso na execução da obra, gerando, consequentemente, prejuízos aos cofres públicos. De outro plano, cumpre asseverar que, como frisei na decisão ora agravada, não se está aqui a negar o direito de indenização do particular decorrente da desapropriação por utilidade pública do imóvel, no que concerne à indenização pelo fundo de comércio. Ressaltei, inclusive, a existência de jurisprudência pacificada desta eg. Corte no sentido de que deve ser incluído na indenização por desapropriação o valor do fundo de comércio. Veja-se: Administrativo. Desapropriação. Indenização. Fundo de comércio. Possibilidade. Juros compensatórios. Percentual. Necessidade de observância da vigência da MP n. 1.577/1997. Juros moratórios. Termo inicial. Art. 15-B do Decreto-Lei n. 3.365/1941. Aplicação imediata às ações em curso. 1. É firme na jurisprudência desta Corte a orientação de que deve ser incluído na indenização por desapropriação o valor do fundo de comércio. Precedentes. 32 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL 2. A Primeira Seção pacificou o entendimento de que a limitação dos juros compensatórios em 6% ao ano, prevista no art. 15-A do Decreto-Lei n. 3.365/1941, deve ser aplicada apenas no período entre a inovação legislativa promovida pela Medida Provisória n. 1.577/1997 (11.6.1997), e sua suspensão pelo Supremo Tribunal Federal, em virtude da medida liminar proferida na ADI n. 2.332-DF (13.9.2001). 3. Ocorrida a imissão na posse do imóvel desapropriado em 10.4.2002, são devidos juros compensatórios no percentual de 12% (doze por cento) ao ano. 4. Consoante entendimento pacífico da Primeira Seção, a norma constante do art. 15-B do Decreto-Lei n. 3.365/1941, que determina a incidência dos juros de mora somente a partir de 1º de janeiro do exercício financeiro seguinte àquele em que o pagamento deveria ser efetuado, tem aplicação imediata às desapropriações em curso no momento em que editada a MP n. 1.577/1997. 5. Recurso especial parcialmente provido (REsp n. 1.076.124-RJ, 2ª Turma, Relª. Minª. Eliana Calmon, DJe de 3.9.2009). Entretanto, não obstante o reconhecido direito de indenização decorrente de fundo de comércio, tenho que tal discussão não pode obstar a imissão provisória na posse pelo ente expropriante, como quer ver reconhecida a agravante, já que, conforme o disposto no art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/1941, “Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o art. 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens;”. Assim sendo, a discussão sobre a indenização e seus valores deve ocorrer em seara própria para tal finalidade, possibilitando precisa apuração e garantindo-se a justa e prévia indenização. Importante frisar, quanto à prévia e justa indenização, o magistério de José dos Santos Carvalho Filho, in “Manual de Direito Administrativo”, Ed. Lumen Juris, 23ª edição, no seguinte sentido: Indenização prévia significa que deve ser ultimada antes da consumação da transferência do bem. Todavia, o advérbio antes tem o sentido de uma verdadeira fração de segundo. Na prática, o pagamento da indenização e a transferência do bem se dão, como vimos, no mesmo momento. Só por mera questão de causa e efeito se pode dizer que aquele se operou antes desta. De qualquer forma, deve entender-se o requisito como significado que não se poderá considerar transferida a propriedade antes de ser paga a indenização (fls. 925-926). Sobre o tema, ainda, o seguinte precedente do c. Pretório Excelso: RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 33 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ementa: - 1. Preliminar de prejudicialidade rejeitada, ante a diversidade dos procedimentos respectivos e da modalidade de execução, entre a imissão provisoria na posse (a que se refere o mandado de segurança ora em grau de recurso extraordinário) e o julgamento definitivo da ação expropriatoria. 2. Subsiste, no regime da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XXIV), a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal sob a egide das Cartas anteriores, ao assentar que só a perda da propriedade, no final da ação de desapropriação - e não a imissão provisoria na posse do imóvel - esta compreendida na garantia da justa e previa indenização. (RE n. 195.586-DF, Primeira Turma, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 26.4.1996) Assim, pode-se perceber que o instituto da imissão provisória na posse não depende de prévia e justa indenização, que se dará apenas ao final do processo de desapropriação, mas apenas, como dito, da declaração de urgência e do depósito prévio nos termos do Decreto-Lei n. 3.365/1941. Por último, argumenta o agravante a impossibilidade de deferimento do pedido de suspensão, uma vez que a r. decisão atacada pelo incidente apenas deu cumprimento a aresto anteriormente proferido pelo eg. Tribunal a quo, o qual consignou que “a imissão na posse ficou condicionada a indenização do fundo de comércio” (fl. 374). Afirma, neste sentido, que “a decisão pertinente ao Agravo anterior já transitou em julgado, portanto, afigura-se insuscetível, em sede de suspensão de liminar e de sentença, alterar a coisa julgada” (fl. 374). Contudo, no ponto, verifico que melhor sorte não socorre o agravante. É que, segundo de depreende da r. decisão proferida pelo d. Juízo da 3ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo, a avaliação prévia do fundo de comércio tinha como único quesito os custos de transporte de mobiliários e equipamentos (fl. 113). No entanto, como a ora agravada assumiu os custos decorrentes do referido transporte, “a avaliação prévia determinada a fls. 77, que tinha como único quesito o valor desse transporte, perde seu objeto” (fl. 225). Desta forma, entendo que não há descumprimento do decidido anteriormente pelo eg. Tribunal a quo, uma vez que, de maneira superveniente, perdeu-se o objeto daquela decisão. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. É o voto. 34 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL MANDADO DE SEGURANÇA N. 18.514-DF (2012/0098820-5) Relator: Ministro Sidnei Beneti Impetrante: Angela Maria Guedes Pinto Advogado: Anthony Gonçalves e outro(s) Impetrado: Ministro Relator da Reclamação n. 7.840 do Superior Tribunal de Justiça EMENTA Mandado de segurança. Impugnação de decisão judicial. Requisitos: inexistência de recurso judicial cabível e ilegalidade patente ou teratologia. Decisão monocrática que nega conhecimento a agravo regimental. Recurso interposto contra decisão irrecorrível assim reconhecida na Resolução-STJ n. 12/2009. Ausência de teratologia. 1.- Para que seja admissível mandado de segurança contra ato judicial, exige-se, além de inexistência de recurso apto a combatê-lo (Súmula n. 267-STF), que o decisum impugnado seja manifestamente ilegal ou teratológico. Precedentes. 2.- Nos termos do artigo 6º da Resolução-STJ n. 12/2009, é irrecorrível a decisão do Relator havida na reclamação ajuizada contra decisão de Turma Recursal dos Juizados Especiais. Trata-se de regra específica que se sobrepõe ao artigo 258 do RISTJ que prevê o cabimento de agravo regimental contra decisão do relator. 3.- Assim, não se revela teratológica a negativa de conhecimento do Agravo Regimental interposto contra decisão monocrática havida no julgamento da Reclamação de que trata a Resolução n. 12/2009, mesmo que essa negativa se apresente em uma decisão monocrática. 4.- Afirmar que julgamento monocrático do agravo regimental, nesses casos, representaria usurpação da competência do órgão colegiado seria emprestar aparência de regularidade a um recurso que não deve existir. 5.- Denegada a ordem. RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 35 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a ordem, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Gilson Dipp, Eliana Calmon, Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Humberto Martins e Maria Thereza de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Ari Pargendler, Francisco Falcão, Laurita Vaz, Herman Benjamin e Napoleão Nunes Maia Filho. Convocado o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques. Brasília (DF), 5 de junho de 2013 (data do julgamento). Ministro Felix Fischer, Presidente Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 25.6.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Angela Maria Guedes Pinto impetra mandado de segurança contra decisão do E. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva que decidiu monocraticamente Agravo Regimental interposto na Reclamação n. 7.840-RJ e, bem assim, os embargos de declaração que se seguiram. 2.- Trata-se, na origem, de uma ação ordinária proposta por Angela Maria Guedes Pinto contra Elvas Empreendimentos Imobiliários Ltda, Di Carmen Empreendimentos Imobiliários Ltda e Patrimovel Consultoria Imobiliária S.A. visando à restituição de valores pagos para a aquisição de imóvel à título de “sinal” que teria sido lançado como “comissão de corretagem” (fls. 19-25). 3.- A ação, proposta pelo rito sumaríssimo, foi distribuída ao Terceiro Juizado Especial Cível da Comarca de Niterói, e teve o seu pedido julgado improcedente por sentença (fls. 47-48). 4.- O recurso inominado (fls. 51-60), dirigido ao Conselho Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio de Janeiro, também foi julgado improcedente (fls. 80). 36 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL 5.- A Autora ajuizou, então, com fundamento na Resolução-STJ n. 12/2009, uma Reclamação perante esta Corte Superior, a qual foi distribuída ao E. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Reclamação n. 7.840-RJ), alegado dissídio jurisprudencial em relação a julgados desta Corte Superior e também do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. 6.- Essa Reclamação foi decidida monocraticamante pelo E. Relator, em 13.2.2012, nos seguintes termos (fls. 82-84): Trata-se de reclamação, amparada na Resolução n. 12-STJ, proposta por Angela Maria Guedes Pinto contra acórdão proferido pela Terceira Turma do Conselho Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado do Rio de Janeiro, assim sumulado: Acordam os Juízes que integram a Turma Recursal dos JECs, por unanimidade, em conhecer do recurso e, por maioria, negar-lhe provimento para manter a sentença por seus próprios fundamentos, na forma prevista no art. 46 da Lei de Regência, não reconhecendo qualquer violação de princípios jurídico-constitucionais de garantia e destacando que as questões aduzidas no recurso foram debatidas oralmente pelos integrantes do colegiado, com a percuciência necessária, não sendo transcritas as conclusões em homenagem aos princípios informativos previstos no art. 2º da Lei n. 9.099/1995, condenando-se o recorrente nas custas e honorários de 10% do valor da causa, valendo esta súmula como acórdão. Vencido o Exmo. Juiz Tiago Mascarenhas que dava provimento ao recurso para condenar os réus a devolverem em dobro a quantia cobrada a título de comissão de corretagem imobiliária (e-STJ fl. 83). Aduz a reclamante, em síntese, que o acórdão impugnado diverge da jurisprudência desta Corte Superior e do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios consolidada no sentido da ilicitude da transferência do ônus do empreendimento (comissão de corretagem imobiliária) ao consumidor sem a sua aquiescência. É o relatório. Decido. A irresignação não merece prosperar. De início, registre-se que a reclamação ajuizada perante esta Corte, com fulcro no art. 1º, da Resolução STJ n. 12/2009, é instrumento reservado a hipóteses extremas, tendo como pressuposto de admissibilidade ofensa frontal à jurisprudência consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não bastando, para fins de configuração da divergência, a existência de precedentes contrários à decisão da Turma Recursal dos Juizados especiais. RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 37 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A propósito: Reclamação. Resolução n. 12/2009-STJ. Divergência entre Turma Recursal e a jurisprudência desta Corte. Dano moral. Quantum indenizatório. 1.- A expressão “jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” constante no art. 1º da Resolução n. 12/2009-STJ, deve ser interpretada em sentido estrito, admitindo-se como tal, apenas o entendimento reiterado e sedimentado no âmbito desta Egrégia Corte, no que se refere à aplicação da lei, ou seja, para a qual não haja a necessidade do reexame dos fatos ou das provas coligidas ao processo. 2.- Para a verificação da razoabilidade do quantum indenizatório, necessário avaliar a extensão do dano, sua repercussão na esfera moral dos Autores, a capacidade econômica das partes, entre outros fatores considerados no Acórdão recorrido, isto é, situações peculiares de cada demanda. 3.- Não é o caso de cabimento da Reclamação, instrumento reservado a hipóteses extremas, em que se patenteie frontal ofensa a julgados deste Tribunal, cuja solução decorra da aplicação da lei federal e não da melhor ou pior interpretação que se possa dar aos fatos da causa. 4.- Agravo Regimental improvido. (AgRg na Rcl n. 4.260-SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Segunda Seção, julgado em 8.9.2010, DJe 15.9.2010). Nesse passo, a Segunda Seção desta Corte, no julgamento das Reclamações n. 6.721-MT e n. 3.812-ES, na sessão do dia 9 de novembro de 2011, em deliberação quanto à admissibilidade da Reclamação disciplinada pela Resolução n. 12, firmou posicionamento no sentido de que a expressão “jurisprudência consolidada” entende-se apenas por: (i) precedentes exarados no julgamento de recursos especiais em controvérsias repetitivas (art. 543-C do CPC) ou (ii) enunciados de Súmula da jurisprudência desta Corte. Não se admite, com isso, a propositura de reclamações com base apenas em precedentes oriundos do julgamento de recursos especiais. No caso dos autos, a matéria não está disciplinada em enunciado de Súmula deste Tribunal, tampouco há indicação, na petição inicial, de julgamento acerca do tema submetido ao regime dos recursos repetitivos. Além disso, não se evidencia hipótese de teratologia que justifique a relativização desses critérios. Ante o exposto, indefiro de plano a reclamação (artigos 34, inciso XVIII, do RISTJ e 1º, § 2º, da Resolução n. 12-STJ). Publique-se. Intimem-se. Arquive-se. Brasília-DF, 13 de fevereiro de 2012. 38 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL 7.- Contra essa decisão monocrática foi interposto Agravo Regimental (fls. 86-89) que, todavia, não foi levado a julgamento pelo órgão colegiado em princípio competente para tanto, mas decidido monocraticamente pelo próprio Relator, em decisão exarada nos seguintes termos (fls. 90-91): Trata-se de agravo regimental interposto contra a decisão de fls. 92-94 (e-STJ), que indeferiu de plano o processamento da Reclamação, amparada na Resolução STJ n. 12/2009, firme em que “No caso dos autos, a matéria não está disciplinada em enunciado de Súmula deste Tribunal, tampouco há indicação, na petição inicial, de julgamento acerca do tema submetido ao regime dos recursos repetitivos”. É o relatório. Decido. A pretensão recursal não merece prosperar. Nos termos no artigo 6º da Resolução STJ n. 12/2009, são irrecorríveis as decisões proferidas pelo relator, em sede de reclamação destinada a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido: AgRg na Reclamação n. 5.953-DF, Relator Ministro Sidnei Beneti, julgado em 16.6.2011; AgRg na Reclamação n. 5.795-BA, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 28.6.2011; AgRg na Reclamação n. 5.593-MG, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 1º.7.2011 e AgRg na Reclamação n. 5.743-GO, Relator Ministro Sidnei Beneti, DJe de 2.6.2011, este último, assim ementado: Agravo regimental. Resolução n. 12/2009 do STJ. Decisões do relator proferidas em reclamação. Irrecorribilidade. Precedentes. Decisão agravada mantida. Improvimento. I. Conforme determina o art. 6º da Resolução n. 12/2009 desta Corte, as decisões do relator proferidas nas reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência desta Corte Superior são irrecorríveis (AgRg na Rcl n. 4.753RS, Relª. Minª. Nancy Andrighi, DJe 21.10.2010 e RCDESP na Rcl n. 4.223-SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe 3.8.2010). II. O agravo não trouxe nenhum argumento novo capaz de modificar a conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos. Agravo Regimental improvido. Ademais, é de ser reiterado o fundamento de que, ao apreciar as Reclamações n. 3.812-ES e n. 6.721-MT, em 9.11.2011, a Segunda Seção deliberou que a RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 39 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA expressão “jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça”, contida no art. 1º da Resolução n. 12/2009, deve ser entendida como a veiculada tão somente nos precedentes surgidos no julgamento de recursos especiais em controvérsias repetitivas (art. 543-C do CPC) ou por súmulas da Corte. Ante o exposto, não conheço do presente agravo regimental. Publique-se. Intimem-se. Brasília-DF, 15 de março de 2012. 8.- Contra essa decisão foi interposto novo Agravo Regimental, também rejeitado monocraticamente, pelos mesmos fundamentos (fls. 96-97). 9.- Os Embargos de Declaração que se seguiram foram rejeitados igualmente por decisão monocrática (fls. 100-102). 10.- No presente mandado de segurança a Impetrante sustenta, em síntese, que o ato impugnado está revestido de ilegalidade, pois impediu que o Agravo Regimental fosse analisado por órgão colegiado competente, juiz natural da questão. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 11.- A irresignação não merece prosperar. 12.- Na linha dos precedentes desta Corte, para que seja admissível mandado de segurança contra ato judicial, exige-se, além de ausência de recurso apto a combatê-lo (Súmula n. 267-STF “Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”) que o decisum impugnado seja manifestamente ilegal ou teratológico. Nesse sentido: AgRg no MS n. 18.404-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 5.9.2012, DJe 18.9.2012; AgRg no MS n. 17.942RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Segunda Seção, julgado em 27.6.2012, DJe 1º.8.2012; RMS n. 38.721-RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 11.12.2012, DJe 18.12.2012; RMS n. 38.833-MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 18.9.2012, DJe 25.9.2012; RMS n. 10.209-SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 8.5.2012, DJe 16.5.2012; AgRg no RMS n. 37.436-SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 22.5.2012, DJe 29.5.2012. 40 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL 13.- No caso dos autos, a opção da autoridade Coatora, o E. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, de negar conhecimento ao Agravo Regimental interposto na Reclamação n. 7.840-RJ por meio de decisão monocrática não se revela, teratológica. 14.- A negativa de conhecimento destacada encontra previsão expressa no artigo 6º da Resolução n. 12/2009. Trata-se de regra específica que se sobrepõe à regra genérica do artigo 258 do RISTJ, que prevê o cabimento de agravo regimental contra decisão do relator. A respeito da irrecorribilidade desse tipo de decisão já há precedentes desta Corte Superior: Agravo regimental. Reclamação. Resolução n. 12-STJ. Decisão do relator. Irrecorribilidade. Art. 6º. Dissídio jurisprudencial não demonstrado. 1. O art. 6º da Resolução n. 12/2009 desta Corte é taxativo ao dispor que as decisões do relator proferidas nas reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência desta Corte Superior são irrecorríveis. 2. De qualquer forma, não se encontra presente o pressuposto de admissibilidade contido no art. 1º da Resolução n. 12 do STJ, consubstanciado na comprovação de divergência do ato atacado com a jurisprudência consolidada desta Corte. (AgRg na Rcl n. 6.489-CE, Rel. Ministro Og Fernandes, Terceira Seção, julgado em 13.6.2012, DJe 21.6.2012) Agravo regimental na reclamação. Resolução n. 12/2009 do STJ. Art. 6º. Irrecorribilidade da decisão agravada. Ausência de similitude fática entre os julgados. Impossibilidade de reexame de aspectos fáticos. Não cabimento. 1. Dispõe o art. 6º da Resolução n. 12/2009 do STJ: “As decisões proferidas pelo relator são irrecorríveis”. Entendimento pacífico da Segunda Seção. 2. A ausência de similitude fática entre o acórdão impugnado e os paradigmas colacionados impede o exame da reclamação manejada nos moldes da Resolução n. 12/2009 do STJ. (AgRg na Rcl n. 6.580-RJ, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 9.11.2011, DJe 24.11.2011) 15.- O fato de essa negativa de conhecimento ter vindo a lume por meio de uma decisão monocrática e não por uma decisão colegiada, como ocorrido nos precedentes destacados, não configura ilegalidade patente ou teratologia. A rigor tal circunstância não configura nem mesmo inversão procedimental. RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 41 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Com efeito, não é possível sustentar que o Agravo Regimental, nesses casos, deveria ser levado a julgamento pelo órgão colegiado em princípio competente para apreciar esse tipo de recurso, porque, repita-se, a decisão do relator que aprecia a reclamação é impassível de recurso (artigo 6º, da Resolução-STJ n. 12/2009). Admitir que existe um órgão colegiado competente para apreciar o agravo regimental nesses casos é emprestar aparência de regularidade a um recurso que não não deve existir. Perceba-se que há uma contradição em termos quando se afirma que a decisão do Relator, nesse tipo de situação, é irrecorrível e, ao mesmo tempo, que o agravo regimental interposto contra ela deve ser apreciado pelo órgão colegiado competente. Se a decisão é irrecorrível, não importa que a parte insatisfeita venha a atacá-la por agravo regimental, recurso extraordinário, recurso de revista, ou qualquer outra modalidade recursal, todas elas serão igualmente incabíveis. E para o reconhecimento dessa circunstância não será necessário remeter o recurso à apreciação do órgão colegiado, do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior do Trabalho. Imagine-se que, em primeiro grau de jurisdição, o réu interponha recurso extraordinário contra sentença de procedência do pedido. Pergunta-se: o magistrado estará impedido de rejeitar liminarmente o recurso, negando-lhe conhecimento? Decerto que não. E se na justiça comum estadual, a parte interpõe recurso de revista contra acórdão do Tribunal de Justiça, o relator estará obrigado a remeter esse recurso para que o TST se manifeste quanto ao seu descabimento? A resposta, mais uma vez, só pode ser negativa. Nesses dois exemplo, o que justifica a rejeição in limine do recurso é a manifesta ausência do primeiro pressuposto recursal: o cabimento. Essa mesma ausência se faz sentir no caso dos autos, pois o artigo 6º da Resolução STJ n. 12/2009 consigna expressamente que: “As decisões proferidas pelo relator são irrecorríveis”. 16.- A Corte Especial já se posicionou nesse sentido, confira-se: Processual Civil. Agravo em mandado de segurança. Ato judicial. Reclamação. Resolução STJ n. 12/2009. Indeferimento. Decisão unipessoal. Irrecorribilidade. - Mandado de segurança impetrado contra decisão que não conheceu de agravo interposto nos autos de reclamação proposta contra acórdão proferido por Turma Recursal. 42 Jurisprudência da CORTE ESPECIAL - Ausência de teratologia ou ilegalidade na decisão impugnada. - A jurisprudência desta Corte é assente no sentido de que não cabem recursos contra decisão unipessoal que indefira liminarmente reclamação ajuizada com base na Resolução STJ n. 12/2009, ante a ausência dos pressupostos de admissibilidade. - Agravo não provido. (AgRg no MS n. 18.443-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 17.12.2012, DJe 1º.2.2013). 17.- Dessa forma, afastada a teratologia da decisão, descabida sua impugnação por meio de mandado de segurança. 18.- Ante o exposto, denega-se a segurança. RSTJ, a. 25, (232): 17-43, outubro/dezembro 2013 43 Primeira Seção EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL N. 1.254.710-SE (2012/0211060-2) Relator: Ministro Ari Pargendler Embargante: Veículos e Máquinas União Ltda Advogado: Guilherme Mignone Gordo e outro(s) Embargado: Fazenda Nacional Procurador: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional EMENTA Processo Civil. Mandado de segurança. Direito líquido e certo. O art. 1º da Lei n. 1.533, de 1951, a cujo teor o mandado de segurança protegerá ‘direito líquido e certo’, não é uma senha que abre as portas do recurso especial; o único efeito dessa regra é o de que o ‘direito’ que dependa de dilação probatória está excluído do âmbito do writ. Há infração a essa regra quando a sentença ou o acórdão deixam de conhecer do mandado de segurança porque o thema decidendum é erroneamente identificado como questão de fato. Tributário. Compensação. A compensação de créditos e débitos em matéria tributária supõe quantificação dos respectivos valores, exigindo prova incompatível com o rito do mandado de segurança; já a mera declaração de créditos e débitos, identificados por suas espécies, podem ser compensados depende de juízo a respeito de questão eminentemente de direito, suscetível de exame no writ sem necessidade de prova preconstituída. Se, como no caso, o reconhecimento do crédito supõe a declaração de inconstitucionalidade do Decreto-Lei n. 2.445 e do Decreto-Lei n. 2.449, a constituição do direito à compensação tributária se dá pela sentença proferida no mandado de segurança, sujeita a quantificação dos valores à fiscalização no procedimento do lançamento. Embargos de divergência providos para que o tribunal a quo prossiga no julgamento da apelação. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer dos embargos e dar-lhes provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. A Sra. Ministra Eliana Calmon e os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Humberto Martins, Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves e Sérgio Kukina votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Brasília (DF), 22 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro Ari Pargendler, Relator DJe 2.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ari Pargendler: Os embargos de divergência foram opostos contra o seguinte acórdão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator o Ministro Herman Benjamim: “Processual Civil e Tributário. Mandado de segurança. Compensação de tributos. PIS. Cofins. CSLL. Recurso especial. Alínea c. Não demonstração da divergência. Direito líquido e certo. Verificação. Reexame do conjunto fáticoprobatório. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Ausência de prequestionamento. Súmula n. 282-STF. 1. A divergência jurisprudencial deve ser comprovada, cabendo a quem recorre demonstrar as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, com indicação da similitude fático-jurídica entre eles. Indispensável a transcrição de trechos do relatório e do voto dos acórdãos recorrido e paradigma, realizando-se o cotejo analítico entre ambos, com o intuito de bem caracterizar a interpretação legal divergente. O desrespeito a esses requisitos legais e regimentais (art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255 do RI-STJ) impede o conhecimento do Recurso Especial, com base na alínea c do inciso III do art. 105 da Constituição Federal. 2. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a apreciação da suposta violação do art. 1º da Lei n. 1.533/1951, com a consequente verificação 48 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO da existência ou não de direito líquido e certo amparado por Mandado de Segurança, tem sido inadmitida em Recurso Especial, pois exige reexame de matéria fático-probatória, o que é vedado ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos da sua Súmula n. 7. 3. A alegação sobre ofensa ao art. 74 da Lei n. 9.430/1996 não foi analisada pelo acórdão recorrido. Dessa forma, não se observou o requisito indispensável do prequestionamento em relação a essa questão. Incidência, por analogia, da Súmula n. 282-STF. 4. Agravo Regimental não provido.” (e-stj, fl. 480). Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (e-stj, fl. 512-513). As razões do recurso dizem que o acórdão embargado divergiu do que foi decidido pela Primeira Seção no julgamento do Recurso Especial n. 1.111.164, BA, da relatoria do Ministro Teori Albino Zavascki, assim ementado: “Tributário e Processual Civil. Mandado de segurança. Compensação tributária. Impetração visando efeitos jurídicos próprios da efetiva realização da compensação. Prova pré-constituída. Necessidade. 1. No que se refere a mandado de segurança sobre compensação tributária, a extensão do âmbito probatório está intimamente relacionada com os limites da pretensão nele deduzida. Tratando-se de impetração que se limita, com base na Súmula n. 213-STJ, a ver reconhecido o direito de compensar (que tem como pressuposto um ato da autoridade de negar a compensabilidade), mas sem fazer juízo específico sobre os elementos concretos da própria compensação, a prova exigida é a da “condição de credora tributária” (EREsp n. 116.183-SP, 1ª Seção, Min. Adhemar Maciel, DJ de 27.4.1998). 2. Todavia, será indispensável prova pré-constituída específica quando, à declaração de compensabilidade, a impetração agrega (a) pedido de juízo sobre os elementos da própria compensação (v.g.: reconhecimento do indébito tributário que serve de base para a operação de compensação, acréscimos de juros e correção monetária sobre ele incidente, inexistência de prescrição do direito de compensar), ou (b) pedido de outra medida executiva que tem como pressuposto a efetiva realização da compensação (v.g.: expedição de certidão negativa, suspensão da exigibilidade dos créditos tributários contra os quais se opera a compensação). Nesse caso, o reconhecimento da liquidez e certeza do direito afirmado depende necessariamente da comprovação dos elementos concretos da operação realizada ou que o impetrante pretende RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 49 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA realizar. Precedentes da 1ª Seção (EREsp n. 903.367-SP, Min. Denise Arruda, DJe de 22.9.2008) e das Turmas que a compõem. 3. No caso em exame, foram deduzidas pretensões que supõem a efetiva realização da compensação (suspensão da exigibilidade dos créditos tributários abrangidos pela compensação, até o limite do crédito da impetrante e expedição de certidões negativas), o que torna imprescindível, para o reconhecimento da liquidez e certeza do direito afirmado, a pré-constituição da prova dos recolhimentos indevidos. 4. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ n. 8/2008.” (DJe de 25.5.2009). Os embargos de divergência foram impugnados (e-stj, fl. 568-570). O Ministério Público Federal, na pessoa da Subprocuradora-Geral Darcy Santana Vitobello, opinou pelo não conhecimento do recurso (e-stj, fl. 575577). VOTO O Sr. Ministro Ari Pargendler (Relator): 1. Diferentemente das instâncias ordinárias, em que o trabalho do juiz consiste em identificar no litígio os fatos que o distinguem dos demais, para que tanto quanto possível a lei seja aplicada sob um viés circunstanciado, na instância especial o julgamento é inspirado pela uniformização. Os embargos de divergência no Superior Tribunal de Justiça constituem a última etapa da uniformização jurisprudencial, e pressupõem casos idênticos ou assemelhados tais como dimensionados no acórdão embargado e no acórdão indicado como paradigma. Em função disso, o conhecimento dos embargos de divergência está sujeito a duas regras: (a) a de que o acórdão impugnado e aquele indicado como paradigma discrepem a respeito do desate da mesma questão de direito, sendo indispensável para esse efeito a identificação do que neles foi a razão de decidir; (b) a de que esse exame se dê a partir da comparação de um e de outro acórdão, nada importando os erros ou acertos dos julgamentos anteriores (inclusive, portanto, os do julgamento do recurso especial), porque os embargos de divergência não constituem uma instância de releitura do processo. 50 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO No âmbito dos embargos de divergência não se rejulga o recurso especial. O respectivo acórdão é simplesmente confrontado com um ou mais julgados com a finalidade de harmonizar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 2. Os presentes embargos de divergência atacam o acórdão embargado na parte em que deixou de conhecer do recurso especial, pela alínea a, por violação do art. 1º da Lei n. 1.533, de 1951. A esse respeito, o acórdão embargado assim decidiu: “A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a apreciação da suposta violação do art. 1º da Lei n. 1.533/1951, com a consequente verificação da existência ou não de direito líquido e certo amparado por Mandado de Segurança, tem sido inadmitida em Recurso Especial, pois exige reexame de matéria fático-probatória, o que é vedado ao Superior Tribunal de Justiça, nos termos da sua Súmula n. 7” (e-stj, fl. 480). Já para o acórdão indicado como paradigma: “No que se refere a mandado de segurança sobre compensação tributária, a extensão do âmbito probatório está intimamente relacionada com os limites da pretensão nele deduzida. Tratando-se de impetração que se limita, com base na Súmula n. 213-STJ, a ver reconhecido o direito de compensar (que tem como pressuposto um ato da autoridade de negar a compensabilidade), mas sem fazer juízo específico sobre os elementos concretos da própria compensação, a prova exigida é a da “condição de credora tributária” (EREsp n. 116.183-SP, 1ª Seção, Min. Adhemar Maciel, DJ de 27.4.1998)”. Salvo melhor juízo, uma orientação discrepa da outra. 3. O art. 1º da Lei n. 1.533, de 1951, a cujo teor o mandado de segurança protegerá ‘direito líquido e certo’, não é uma senha que abre as portas do recurso especial; o único efeito dessa regra é o de que o ‘direito’ que dependa de dilação probatória está excluído do âmbito do writ. Há infração a essa regra quando sentença ou acórdão deixam de conhecer do mandado de segurança, porque a questão é ‘complexa’, ou porque o direito não é ‘translúcido’ ou porque é ‘controvertido” - e também o thema decidendum é erroneamente identificado como questão de fato. Na lição de Celso Agrícola Barbi, “o conceito de direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende ao modo de ser de um direito subjetivo no processo: a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é atribuída se os RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 51 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo. E isto normalmente só se dá quando a prova for documental, pois esta é adequada a uma demonstração imediata e segura dos fatos” (Do Mandado de Segurança, Forense, Rio de Janeiro, 1976, p. 85). No Agravo Regimental no Mandado de Segurança n. 211.881, DF, o relator p/o acórdão, Ministro Carlos Velloso, redigiu, a esse respeito, ementa didática, a saber: “Direito líquido e certo, que autoriza o ajuizamento do mandado de segurança diz respeito aos fatos. Se estes estão comprovados, de plano, é possível o aforamento do writ’. Segue-se, então, a fase de acertamento da relação fáticojurídica, na qual o juiz faz incidir a norma objetiva sobre os fatos. Se, dessa incidência, entender o juiz nascido o direito subjetivo, deferirá a segurança” (DJ, 19. 4.1991). 4. A espécie, todavia, é sui generis, porque para o efeito declaratório do direito à compensação, basta a alegação do crédito, que mais tarde estará sujeito à fiscalização tributária no procedimento de homologação do lançamento, sendo destituída de qualquer fundamento a peculiaridade destacada no acórdão embargado, a saber: “(...) consoante a pacífica jurisprudência do STJ, é cabível a impetração de Mandado de Segurança com vistas à declaração do direito à compensação tributária, conforme Enunciado da Súmula n. 213-STJ: “O mandado de segurança constitui ação adequada para a declaração do direito à compensação tributária.” Entretanto, excepcionam-se os casos em que inexiste prova préconstituída, tendo em vista ser impossível dilação probatória em mandamus. In casu, o Tribunal a quo consignou que (fl. 250, e-STJ): ‘Da análise do pedido deduzido na exordial evidencia-se que inexiste direito líquido e certo. O crédito invocado depende de constituição no próprio Mandado de Segurança em que a parte postula autorização para efetuar a compensação’.” (e-stj. fl. 484-485). Com efeito, nada impede que o direito à compensação seja constituído no próprio mandado de segurança. Como reconhecer o direito à compensação do que foi pago indevidamente a título de PIS por força do Decreto-Lei n. 2.445 e 2.449, no período de julho de 1988 a outubro de 1995, sem decretar-lhes a inconstitucionalidade? Voto, por isso, no sentido de conhecer dos embargos de divergência para que o tribunal a quo prossiga no julgamento da apelação. 52 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA N. 17.370-DF (2011/0152234-7) Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima Impetrante: Jorge Elias da Silva Advogado: Sidney Seixas de Santana Impetrado: Ministro de Estado da Saúde Interessado: União EMENTA Administrativo. Mandado de segurança. Servidor público. Processo administrativo disciplinar - PAD. Anulação da pena de suspensão, já cumprida pelo servidor, e aplicação de pena mais grave, de demissão, por orientação da Controladoria-Geral da União. Bis in idem e reformatio in pejus. Impossibilidade. Pedido de reintegração julgado procedente. Efeitos funcionais. Retroação à data da demissão. Efeitos financeiros. Retroação limitada à data da impetração. Segurança concedida. 1. “A Autoridade coatora apontada, que impõe a pena de demissão, vincula-se aos fatos apurados e não à capitulação legal proposta pela Comissão Processante. Da mesma forma, o indiciado se defende dos fatos contra ele imputados, não importando a classificação legal inicial, mas sim a garantia da ampla defesa e do contraditório. Por isso, a modificação na tipificação das condutas pela Autoridade Administrativa não importa nem em nulidade do PAD, nem no cerceamento de defesa” (MS n. 13.364-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 26.5.2008). 2. O novo julgamento do processo administrativo disciplinar ofende o devido processo legal, por não encontrar respaldo na Lei n. 8.112/1990, que prevê sua revisão tão somente quando constatado vício insanável ou houver possibilidade de abrandamento da sanção disciplinar aplicada ao servidor público. 3. O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento do feito pela autoridade competente. A essa decisão administrativa, à semelhança do que ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 53 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA atribuída a nota fundamental de definitividade. O servidor público punido não pode remanescer sujeito a novo julgamento do feito para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de seguir orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo administrativo disciplinar. 4. “É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira” (Súmula n. 19STF). 5. Hipótese em que a anulação, pelo Presidente da Funasa, da pena de suspensão aplicada ao Impetrante, após seu cumprimento, não teve por escopo corrigir eventual vício insanável e/ou beneficiá-lo, na medida em que resultou da orientação firmada pela CorregedoriaGeral da União - CGU que, ao reexaminar o mérito das conclusões firmadas pela Comissão processante, entendeu necessária a aplicação de pena mais grave, de demissão. 6. Segurança concedida para anular a pena de demissão aplicada ao Impetrante e determinar à Autoridade Impetrada que o reintegre ao serviço público. Efeitos funcionais que devem retroagir à data da demissão do servidor. Os efeitos financeiros, todavia, devem retroagir à data da impetração, conforme as Súmulas n. 269 e 271-STF, reservando-se a cobrança das diferenças remuneratórias anteriores à impetração às vias ordinárias. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Ari Pargendler, Eliana Calmon e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 28 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministro Arnaldo Esteves Lima, Relator DJe 10.9.2013 54 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO RELATÓRIO O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado por Jorge Elias da Silva contra suposto ato ilegal do Sr. Ministro de Estado da Saúde, consubstanciado na Portaria-MS n. 781, publicado no D.O.U. de 14.4.2011, que o demitiu do cargo de Analista de Suporte do quadro de pessoal da Fundação Nacional de Saúde - Funasa, uma vez que teria ele se valido do cargo para lograr profeito de outrem em detrimento da dignidade da função pública, além de ter causado leão ao erário. Narra o Impetrante, em apertada síntese, que: a) o procedimento administrativo disciplinar que resultou em sua demissão foi instaurado para apurar atos ocorridos no período de 14.6.2006 a 24.10.2006, ou seja, quando ele não mais ocupava, a título eventual a Chefia da Seção de Recursos Logísticos da Coordenação Regional da Funasa no Rio de Janeiro (período de 3.2.2006 a 18.5.2006) ou a Chefia da Divisão de Administração da Coordenação Regional da Funasa naquela mesma localidade (período de 16.2.2006 a 19.5.2006); b) restaria demonstrado que jamais participou do processo de licitação supostamente eivado de irregularidades, mormente porque (fl. 2e): [...] a adesão à ata de registro de preços - Pregão n. 020/2005, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, sobre os bens móveis e serviços a serem adquiridos se deu a partir da autorização da Coordenadora-Geral de Logística e Administração para o Coordenador Regional da Funasa no Rio de Janeiro (DOC. 10). [...] Sua participação no procedimento administrativo limitou-se a preparar a aquisição de bens móveis e serviços, no período compreendido de 10.3.2006 até 18.5.2006, Processo n. 25245.003.526/2006-01, na fase interna do processo licitatório (DOCs. 8D, 9A, 11). c) após ser-lhe aplicada uma pena de suspensão de 30 (trinta) dias, a qual foi cumprida integralmente no período de 16.10.2007 a 14.11.2007, ingressou com um procedimento revisional daquela punição em 17.12.2007, e que resultou na anulação da pena de suspensão; d) o encaminhamento do processo administrativo disciplinar à Autoridade Impetrada “só poderia se referir aos demais partícipes do procedimento”, mas “[n]unca ao ora impetrante, relativamente a quem fora reconhecida a nulidade do procedimento” (fl. 4e); tal equívoco, outrossim, foi agravado pelo fato de que (fl. 4e): RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 55 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O Ministro, ignorando que as instâncias inferiores, por falta de atenção ou desconhecimento estavam a repristinar processo findo, relativamente ao ora impetrante, sem nova oitiva da parte a quem supostamente se imputava algo, nem reabrir contraditório, resolveu apená-lo, aplicando-lhe a mais grave das penas: a demissão do serviço público, consoante Diário Oficial da União - Seção 2, n. 72, de 14.4.2011 (DOC. 18). À luz desses fatos, afirma que o ato de demissão ora impugnado teria afrontado aos arts. 5º, LIV, LV e LVII da Constituição Federal e 22, 128, 143, 153 e 182, parágrafo único, da Lei n. 8.112/1990, pois não bastasse o fato de que sequer estava a responder a um procedimento administrativo disciplinar, não lhe foi assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório. Por fim, além dos pedidos de estilo, requer o Impetrante: 1) Seja concedida liminar, inaudita altera parte, ab initio litis; em favor do impetrante, com a expedição de mandado determinando a sua imediata reintegração no efetivo exercício do seu cargo com o pagamento da remuneração e vantagens correspondentes, até o final da presente lide; 2) No mérito a procedência do presente mandamus para decretação da nulidade de todos os atos praticados no Procedimento Administrativo Disciplinar no 25100.002.645/2007-64, após a decisão do Presidente da Funasa, consubstanciada na Portaria n. 836, de 14.8.2007, anulando a pena de suspensão aplicada a Jorge Elias da Silva (DOC. 12); Em decisão proferida em 5.7.2011, o em. Min. Felix Fischer deferiu o pedido de justiça gratuita e indeferiu o pedido de liminar (fls. 55-56e). Informações da Autoridade Impetrada às fls. 61-80e, acompanhada de documentos (fls. 81-565e). Manifestação da União à fl. 569e. O Ministério Público Federal, em parecer do Procurador Regional da República Francisco Rodrigues dos Santos Sobrinho, no exercício do cargo de Subprocurador-Geral da República, opinou pela denegação da segurança (fls. 574-584e). Em atendimento ao pedido incidental formulado pelo Impetrante, a Autoridade Impetrada fez juntar aos autos a cópia integral do processo revisional instaurado por solicitação do servidor (fls. 600-6.166e). É o relatório. 56 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO VOTO O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima (Relator): Como relatado, cuidase a espécie de mandado de segurança impetrado por Jorge Elias da Silva contra suposto ato ilegal do Sr. Ministro de Estado da Saúde, consubstanciado na Portaria-MS n. 781, publicado no D.O.U. de 14.4.2011, que o demitiu do cargo de Analista de Suporte do quadro de pessoal da Fundação Nacional de Saúde - Funasa, uma vez que teria ele se valido do cargo para lograr profeito de outrem em detrimento da dignidade da função pública, além de ter causado leão ao erário. Nada obstante os vários fatos narrados pelo Impetrante na petição inicial, observa-se que a questão jurídica trazida à apreciação desta Corte é a seguinte: poderia o Impetrante, após cumprir a pena de suspensão de 30 (trinta) dias que, outrossim, foi anulada pela Administração, sofrer nova punição pelos mesmos fatos, sem a prévia abertura de novo procedimento investigatório em que fosse assegurado ao servidor a ampla defesa e o contraditório? Delimitada a controvérsia, para sua adequada compreensão faz-se necessário fixar algumas questões fáticas essenciais, a saber: 1) como narrado pelo Impetrante, foi ele submetido a um procedimento administrativo disciplinar (n. 25100.621.430/2006-66), no qual foi apurado “possíveis irregularidades nos procedimentos para aquisição, pagamento e estocagem de mobiliário adquiridos das empresas Marelli Móveis para Escritório Ltda e Complemento Planejamento e Decorações Ltda” (fl. 5.793e); 2) ao fim desse procedimento disciplinar, restou apurada a culpabilidade do ora Impetrante, uma vez que fora responsável pelas inúmeras irregularidades descritas no relatório final da Comissão Processante (fls. 5.903-5.906e), dentre as quais se destaca: [deixou o servidor] de realizar pesquisa de preços de mercado visando avaliar preliminarmente os preços registrados na ata de Pregão n. 020/2005 (fls. 25-26 e 769), para formar juízo sobre a continuidade ou suspensão do processo de aquisição, preferindo fixar o valor estimativo no PBS n. 04, datado de 20.3.2006 (fl. 660) exatamente igual àquele estipulado pelos fornecedores em 13.6.2006 (fls. 69.691), acarretando em prejuízo aparente estimado de R$ 934.891,28 (fls. 4.8394.840). 3) diante desses fatos, a Comissão sugeriu que fosse aplicado ao ora Impetrante uma pena de suspensão de 30 (trinta) dias, nos seguintes termos (fl. 5.906e): RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 57 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A conduta deste servidor acarretou em lesão ao dever funcional, subsumindose aos tipos dos artigos 116, I, II, III, e IX da Lei n. 8.112/1990, razão porque esta Comissão sugere para o mesmo a penalidade de suspensão, por 30 dias, restando declinar que, além de considerar ser o servidor possuidor de bons antecedentes funcionais (fls. 955-958), o conjunto das faltas apuradas, apesar de causadoras de lesão ao erário, não se subsumiram ao tipo de improbidade administrativa, conforme inferido deste relatório, pelo que afasta-se sugestão de pena de demissão por irreconciliável quebra de confiança na sua conduta funcional; 4) diante das conclusão da Comissão Processante e dos Pareceres Técnicos formulados por sua respectiva assessoria, o Sr. Presidente da Funasa decidiu aplicar ao ora Impetrante a pena de suspensão recomendada (fls. 5.933-5.944e), o que de fato ocorreu por meio da Portaria-Funasa n. 836, de 14.8.2007 (fl. 5.936e); 5) a suspensão foi cumprida no período de 16.10.2007 a 14.11.2007 (fl. 5.952e); 6) em setembro de 2007, diante do prejuízo apurado pela Comissão Processante, decorrente do sobrepreço na aquisição de mobiliário, entendeu o Sr. Presidente da Funasa pela necessidade de instauração de um procedimento de tomada de contas especial em desfavor do Impetrante e outros, “visando o ressarcimento do prejuízo causado ao erário” (fl. 5.944e), o que ocorreu por meio da Portaria-Funasa n. 184, de 18.9.2007 (fl. 5.946e); 7) em dezembro de 2007, por sua vez, o próprio Impetrante requereu a abertura de um processo de revisão da penalidade de suspensão, argumentando, em apertada síntese, que não poderia ser responsabilizado pelas irregularidades apuradas pela Comissão Processante uma vez que à época dos fatos não era ele responsável pelo órgão (fls. 606-609e); 8) em março de 2008 a Controladoria-Geral da União, por meio do Corregedor-Geral, oficiou ao Sr. Presidente da Funasa informando que, diante dos fatos apurados pela Comissão Processante nos autos do PAD n. 25100.621.430/2006-66, em especial o sobrepreço na aquisição dos bens, o ora Impetrante estaria sujeito à pena de demissão prevista no art. 132, X, da Lei n. 8.112/1990, motivo pelo qual recomendou a anulação do (fl. 771e): [...] julgamento do referido processo no que tange ao servidor Jorge Elias da Silva, e que seja realizado novo julgamento, com aplicação da penalidade cabível, em conformidade com as provas contidas nos autos do processo. 58 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO 9) diante da recomendação formulada pela CGU e dos pareceres técnicos de sua assessoria jurídica, entendeu o Sr. Presidente da Funasa em 13.6.2008 pela necessidade de anular parcialmente o julgamento proferido no mencionado processo administrativo disciplinar, tornando sem efeito a pena de suspensão aplicada ao Impetrante, bem como encaminhar os respectivos autos ao Ministro de Estado da Saúde, ora Impetrado, para julgamento do feito (fl. 791e); 10) a Autoridade Impetrada, por sua vez, acatando o parecer formulado pela Consultoria Jurídica quanto à regularidade do processo administrativo disciplinar e gravidade dos fatos imputados ao ora Impetrante, proferiu julgamento no sentido de aplicar-lhe a pena de demissão, com base nos arts. 117, IX, X e XIII, c.c. 136 e 137, caput, e parágrafo único, da Lei n. 8.112/1990, e, naquele mesmo ato, não conhecer do pedido administrativo de revisão do Impetrante (fls. 6.103-6.107e). Pois bem. Verifica-se, de início, ser irrelevante perquirir se as irregularidades imputadas ao Impetrante ocorreram quando ele não ocupava cargo de Chefia, uma vez que, consoante constou do relatório final da Comissão Processante, sua culpa está vinculada justamente ao fato de que ele atuou diretamente na execução de vários contratos de compra de material, que causaram prejuízos ao erário, “sem dar conhecimento ao chefe da DIADM” ou, ainda, “sem promover prévias reuniões com as chefias dos setores” (fl. 5.904e). Nesse contexto, aferir em detalhes o nível de participação do Impetrante nos fatos a ele imputados vai além dos limites do mandado de segurança, haja vista que demandaria dilação probatória. De outro lado, ao contrário do que foi alegado pelo Impetrante, a anulação da pena de suspensão ocorreu ex officio pela Administração Pública, tanto assim que o processo revisional instaurado a pedido do servidor foi considerado prejudicado com o novo julgamento do PAD (fls. 6.103-6.107e). Por conseguinte, não há falar em equivoco da Administração, pois o Impetrante efetivamente estava indiciado no PAD levada a julgamento pela Autoridade Impetrada. Por sua vez, também não procede a tese de cerceamento de defesa do Impetrante, haja vista que a pena de demissão aplicada refere-se aos fatos apurados no PAD n. 25100.621.430/2006-66, durante o qual lhe foi assegurada a ampla defesa e o contraditório. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 59 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Com efeito, é firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que “A Autoridade coatora apontada, que impõe a pena de demissão, vincula-se aos fatos apurados e não à capitulação legal proposta pela Comissão Processante. Da mesma forma, o indiciado se defende dos fatos contra ele imputados, não importando a classificação legal inicial, mas sim a garantia da ampla defesa e do contraditório. Por isso, a modificação na tipificação das condutas pela Autoridade Administrativa não importa nem em nulidade do PAD, nem no cerceamento de defesa” (MS n. 13.364-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 26.5.2008). Nesse mesmo sentido: Administrativo. Servidor público federal. Processo administrativo disciplinar. Ministro de Estado da Previdência Social. Preliminares desacolhidas. Alegação de cerceamento de defesa. Não ocorrido processamento regular. Ausência de proporcionalidade na sanção. Ocorrência. Anulação da portaria demissional. 1. Cuida-se de writ impetrado com o fito de anular processo administrativo disciplinar, bem como portaria de demissão; a penalidade derivou de um complexo processo administrativo, instaurado após operação da Polícia Federal, que visava punir servidores por irregularidades na emissão de certidões previdenciárias. 2. A via mandamental mostra-se adequada para perseguir a anulação de ato demissional quando se alega e comprova que este mostrou-se excessivo, e não amparado nas provas dos autos. Rejeito a preliminar de inadequação. Precedente: MS n. 14.993-DF, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, DJe 16.6.2011. (...) 5. Quanto ao mérito, cabe frisar que a alegação de cerceamento da defesa está baseada no fato de que a autoridade julgadora o puniu com demissão, acatando o parecer da consultoria jurídica, que reinterpretou as provas dos autos; a comissão processante havia - também fundamentadamente - recomendado a punição com advertência ou suspensão. No entanto, não procede a pretensão de que a alteração da capitulação legal obrigue a abertura de nova defesa, já que o indiciado se defende dos fatos, e não dos enquadramentos legais. Precedente: MS n. 14.045-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 29.4.2010. (...) 8. Prejudicado o agravo regimental. Segurança parcialmente concedida. (MS n. 15.810-DF, Rel. Min. Humberto Martins, Primeira Seção, DJe 30.3.2012) Impende ressaltar, todavia, que “no Direito brasileiro aplica-se a teoria da substanciação, por meio da qual apenas os fatos vinculam o julgador, que poderá atribuir-lhe a qualificação jurídica que entender adequada ao acolhimento ou à 60 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO rejeição do pedido, como fruto dos brocardos iura novit curia, e da mihi factum dabo tibi ius. Nesse sentido cfr. REsp n. 1.153.656-DF, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 18.5.2011; AgRg no Ag n. 1.351.484-RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJe 26.3.2012; REsp n. 1.043.163SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 28.6.2010” (REsp n. 1.316.634-ES, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 19.12.2012). Nesse extensão, é possível observar que o Impetrante narrou na petição inicial, de forma clara e precisa, fatos que consubstanciam um indevido bis in idem na punição de infração administrativa. Registro, desde logo, que não desconheço acórdãos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça segundo os quais a vedação preconizada no enunciado da Súmula n. 19-STF (“É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira”) não incide quando a pena anterior é anulada, para que em seu lugar se imponha uma mais grave. A propósito: Previsão legal da pena de demissão. Aplicação errônea da pena de suspensão. A hipótese não é de revisão para beneficiar (art. 174 da Lei n. 8.112/1990) mas de ato da Administração Pública proferido contra expressa letra da lei e passível de correção ex officio. Inaplicabilidade da Súmula n. 19 do STF. Precedente: MS n. 23.146. Nenhuma mácula ocorre com relação ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, se preservada toda a matéria produzida nos autos do processo administrativo onde esses princípios foram observados. Agravo improvido. (RMS-AgRg n. 24.308, Rel. Min. Ellen Gracie, Primeira Turma, DJ de 25.4.2003) Mandado de segurança. Administrativo. Servidor público federal. Processo administrativo disciplinar. Cumprimento da pena de suspensão por trinta dias. Posterior nulidade da suspensão e aplicação da pena de demissão. Nãoocorrência de bis in idem. Precedentes. Legitimidade passiva do Ministro de Estado. Ausência de notificação do servidor para se manifestar acerca da anulação da suspensão e da aplicação da demissão. Ofensa aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. 1. A aplicação inadequada a servidor público federal da pena de suspensão, quando anulada e em seu lugar imposta a pena de demissão prevista na Lei n. 8.112/1991, não incorre na vedação estabelecida pela Súmula n. 19 do Excelso Pretório (“É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira”). Precedentes do Supremo Tribunal Federal e desta Corte. 2. Embora disponha o artigo 141, I, da Lei n. 8.112/1990 que compete ao Presidente da República impor a penalidade de demissão a servidor público RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 61 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA federal vinculado ao Poder Executivo, é possível sua delegação a Ministro de Estado. Precedentes. 3. Incorre em ofensa aos princípios do contraditório e ampla defesa a aplicação de demissão a servidor público federal, após a anulação de prévia pena de suspensão, sem sua prévia notificação a fim de que se manifestasse acerca daquela anulação e da possibilidade de aplicação de pena mais severa. Ocorrência de prejuízo à defesa do impetrante, a determinar a anulação da portaria de sua demissão. 4. Segurança concedida para que seja anulada a portaria que demitiu o impetrante e para que seja ele notificado a fim de que se manifeste acerca da anulação da pena de suspensão e da possibilidade de aplicação de pena mais severa. (MS n. 7.034-DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, DJ de 22.10.2007) Ocorre que, de acordo com o disposto art. 174, caput, da Lei n. 8.112/1990, a revisão do PAD poderá ocorrer de ofício, pela Autoridade competente, quando apresentados fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do servidor punido ou a inadequação da penalidade aplicada. A propósito, confira-se o mencionado dispositivo legal: Art. 174. O processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada. É necessário consignar, todavia, que a única interpretação para esse dispositivo, capaz de harmonizá-lo com o princípio do devido processo legal, é que será admitida a revisão da penalidade aplicada quando for para beneficiar o servidor punido, e nunca para prejudicá-lo. Outra, aliás, não é a regra que prevalece no tocante à revisão de processos administrativos de forma geral, conforme dispõe a Lei n. 9.784/1999: Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da sanção aplicada. Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da sanção. In casu, observa-se que o PAD n. 25100.621.430/2006-66 já havia sido encerrado mediante aplicação da pena cabível ao Impetrante (suspensão), motivo 62 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO pelo qual não poderia o Presidente da Funasa, ainda que por recomendação da Controladoria-Geral da União, anular a pena anterior a fim de encaminhar o PAD a um novo julgamento. A adoção de entendimento diverso importaria a revogação tácita da Súmula n. 19-STF, uma vez bastaria a simples anulação de uma penalidade já aplicada ao servidor para permitir que a Administração Pública, baseada em um mesmo fato já apenado, aplicasse uma segunda pena, como se a primeira fosse. Também não se olvida que, havendo indícios de ilegalidade em seus atos, cabe à Administração Pública exercer seu poder-dever de autotutela, com fundamento nas Súmulas n. 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, que preconizam: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos (Súmula n. 346-STF). A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial (Súmula n. 473-STF). No entanto, em se tratando de processo administrativo disciplinar, há considerar limites à revisão de atos administrativos, diante da submissão ao devido processo legal e aos princípios da ampla defesa e do contraditório. O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento do feito pela autoridade competente. A essa decisão administrativa, à semelhança do que ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser atribuída a nota fundamental de definitividade. O servidor público punido não pode remanescer sujeito a novo julgamento do feito para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de seguir orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo administrativo disciplinar. Por conseguinte, tem-se que o novo julgamento da causa não encontra respaldo na Lei n. 8.112/1990, que prevê a revisão do processo disciplinar tão somente quando, diante de elementos novos a serem considerados, houver possibilidade de abrandamento da sanção aplicada ao servidor público federal. Desse modo, pode-se concluir que o ordenamento jurídico proíbe bis in idem e o reformatio in pejus. Nesse sentido, cito o seguinte precedente: Administrativo. Recurso especial. Servidor público. Processo administrativo disciplinar - PAD. Anulação da pena de suspensão, já cumprida pelas servidoras, RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 63 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA e aplicação de pena mais grave, de demissão, por orientação da ControladoriaGeral da União. Bis in idem e reformatio in pejus. Impossibilidade. Pedido de reintegração julgado procedente. Recurso especial conhecido e provido. 1. É certo que “A Autoridade coatora apontada, que impõe a pena de demissão, vincula-se aos fatos apurados e não à capitulação legal proposta pela Comissão Processante. Da mesma forma, o indiciado se defende dos fatos contra ele imputados, não importando a classificação legal inicial, mas sim a garantia da ampla defesa e do contraditório. Por isso, a modificação na tipificação das condutas pela Autoridade Administrativa não importa nem em nulidade do PAD, nem no cerceamento de defesa” (MS n. 13.364-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 26.5.2008). 2. O novo julgamento do processo administrativo disciplinar ofende o devido processo legal, por não encontrar respaldo na Lei n. 8.112/1990, que prevê sua revisão tão somente quando constatado vício insanável ou houver possibilidade de abrandamento da sanção disciplinar aplicada ao servidor público. 3. O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento do feito pela autoridade competente. A essa decisão administrativa, à semelhança do que ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser atribuída a nota fundamental de definitividade. O servidor público punido não pode remanescer sujeito a novo julgamento do feito para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de seguir orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo administrativo disciplinar. 4. “É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira” (Súmula n. 19-STF). 5. Hipótese em que a anulação, pelo Presidente do Incra, da pena de suspensão aplicada às servidoras não teve por escopo corrigir eventual vício insanável e/ou beneficiá-las, na medida em que resultou da orientação firmada pela Corregedoria-Geral da União (CGU) que, ao reexaminar o mérito das conclusões firmadas pela Comissão processante, entendeu necessária a aplicação de pena mais grave, de demissão. 6. Tendo em vista a ilegalidade do ato que importou na aplicação da pena de demissão das servidoras, é de rigor a reintegração destas aos seus respectivos cargos públicos, com todos os efeitos funcionais e financeiros daí decorrentes (inclusive quanto à pena de suspensão anteriormente aplicada). (...) 10. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 1.216.473-PR, minha relatoria, Primeira Turma, DJe 9.5.2011) O reconhecimento da ilegalidade da demissão do servidor importa, por via de consequência, no dever de a Autoridade Impetrada reintegrá-lo ao seu 64 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO respectivo cargo público, com todos os efeitos funcionais retroativos à data do afastamento do serviço público; quanto aos efeitos financeiros, entretanto, eles retroagem apenas à impetração, devendo a cobrança dos valores anteriores a ela ser realizada nas vias ordinárias. Nesse sentido: Administrativo. Processual Civil. Agravo regimental no recurso em mandado de segurança. Magistério estadual do Rio Grande do Sul. Promoção na carreira. Pagamento de diferenças remuneratórias. Retroatividade. Impossibilidade. Súmulas n. 269 e 271-STF. Agravo regimental desprovido. 1. A Primeira Turma, no julgamento do RMS n. 40.065-RS, na sessão de 21.5.2013, Rel. Min. Benedito Gonçalves, acórdão pendente de publicação, firmou compreensão no sentido de que os efeitos financeiros, quando da concessão da segurança, devem retroagir à data de sua impetração, sendo inviável a cobrança de valores pretéritos no mesmo mandamus, conforme disposto no art. 14, § 4º, da Lei n. 12.016/2009 e Súmulas n. 269/271-STF. 2. Agravo regimental desprovido, ressalvando-se o acesso à via ordinária, se for o caso. (AgRg no RMS n. 40.369-RS, minha relatoria, Primeira Turma, DJe 21.6.2013) Administrativo. Agravo regimental no recurso em mandado de segurança. Servidor público estadual. Magistério. Promoção na carreira publicada no Diário Oficial de 14 de setembro de 2011. Retroação dos efeitos das promoções relativas ao ano de 2002. Efeitos financeiros. Impossibilidade. Incidência das Súmulas n. 269 e 271 do STF. 1. A Primeira Turma, ao analisar caso idêntico ao dos autos, cujo precedente é de minha relatoria, já se manifestou no sentido de que “os efeitos financeiros, quando da concessão da segurança, devem retroagir à data de sua impetração, sendo inviável a cobrança de valores pretéritos no mesmo mandamus, nos termos do 14, § 4º, da Lei n. 12.016/2009” (RMS n. 40.065-RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 5.6.2013). 2. Agravo regimental não provido. (AgRg no RMS n. 40.100-RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 26.6.2013) Ante o exposto, concedo a segurança a fim de reconhecer a nulidade da pena de demissão aplicada ao Impetrante e determinar à Autoridade Impetrada que proceda a imediata reintegração do servidor, com todos os efeitos funcionais retroativos à data do afastamento do serviço público. Quanto aos efeitos financeiros, deverão eles retroagir à data da impetração, nos termos das Súmulas n. 269 e 271-STF, reservando-se às vias ordinárias a cobrança das diferenças remuneratórias anteriores à impetração. É o voto. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 65 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA MANDADO DE SEGURANÇA N. 17.811-DF (2011/0274288-1) Relator: Ministro Humberto Martins Impetrante: Aldo Pinheiro da Fonseca Advogado: Luiz Cesar Barbosa Lopes e outro(s) Impetrado: Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia Interessado: União EMENTA Constitucional e Administrativo. Destituição de cargo em comissão. Imputação de valimento do cargo em detrimento da dignidade da função pública. 1. O mandado de segurança investe contra ato administrativo que aplicou a pena de destituição de cargo em comissão por intermédio de procedimento administrativo disciplinar. 2. Ao impetrante foi imputado o valimento do cargo público para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, nos termos do art. 117, IX, da Lei n. 8.112/1990, porque, exercendo o cargo em comissão de Coordenador-Geral de Apoio Técnico, indicou para contratação irmão, nora, genro e sobrinhos. 3.O valimento do cargo publico foi constatado pela ControladoriaGeral da União, quando da investigação preliminar, e pela Comissão que conduziu o procedimento administrativo disciplinar. 4. O art. 168 da Lei n. 8.112/1990 permite que a autoridade julgadora contrarie as conclusões da comissão processante, desde que o faça com a devida motivação, para retificação do julgamento em atenção aos fatos e provas. Precedentes: MS n. 15.826-DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em 22.5.2013, DJe 31.5.2013; MS n. 16.174-DF, Rel. Ministro Castro Meira, Primeira Seção, DJe 17.2.2012. 5. A existência de dano ao erário é desinfluente para a caracterização do valimento do cargo para obtenção de vantagem pessoal ou de outrem (MS n. 14.621-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 30.6.2010). 66 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO 6. Os antecedentes funcionais do impetrante não são suficientes para impedir a aplicação da penalidade porque “A Administração Pública, quando se depara com situações em que a conduta do investigado se amolda nas hipóteses de demissão ou cassação de aposentadoria, não dispõe de discricionariedade para aplicar pena menos gravosa por tratar-se de ato vinculado” (MS n. 15.517-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 18.2.2011). Segurança denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça “A Seção, por unanimidade, denegou a segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.” Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Ari Pargendler, Eliana Calmon e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 26 de junho de 2013 (data do julgamento). Ministro Humberto Martins, Relator DJe 2.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de mandado de segurança impetrado por Aldo Pinheiro da Fonseca contra ato praticado pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, consubstanciado em sua destituição do cargo em comissão de Coordenador-Geral de Apoio Técnico, Código DAS 101.4, da Assessoria de Coordenação dos Fundos Setoriais - ASCOF da Secretaria Executiva do respectivo Ministério. O impetrante investe contra os termos da Portaria n. 617, de 9 de agosto de 2011, que o destituiu do cargo comissionado de Coordenador-Geral de apoio técnico “sem fundamento plausível e em detrimento do que preceitua o art. 128 da Lei n. 8.112/1990, haja vista restar patente a carência de fundamentação da decisão da autoridade impetrada” (fl. 4, e-STJ). RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 67 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Eis o teor do ato reputado coator (fl. 169, e-STJ): Portaria n. 617 de 9 de agosto de 2011 O Ministro de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação, no uso da competência que lhe foi delegada pelo inciso I do art. 1º do Decreto n. 3.035, de 27.4.1999, de acordo com os artigos 117, inciso IX, 132, XIII, combinado com os artigos 135 e 137, caput, e art. 168, da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e tendo em vista o que consta do Processo Administrativo Disciplinar n. 01200.004030/2010-81, do Ministério da Ciência e Tecnologia, resolve Destituir do cargo em comissão de Coordenador-Geral de Apoio Técnico, Código DAS 101.4, da Assessoria de Coordenação dos Fundos Setoriais - ASCOF da Secretaria Executiva, deste Ministério, o servidor Aldo Pinheiro da Fonseca, matrícula SIAPE n. 7041058, por se valer do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública, observando-se, em conseqüência, o disposto no art. 137, caput, da Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Relata o impetrante que foi instaurado procedimento administrativo disciplinar para apurar infrações relacionadas à “celebração e à execução dos convênios SIAFI n. 522769 e 562409 firmados entre a Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP e a Associação Brasileira das Instituições de Pesquisas Tecnológica - ABIPTI para fins de suporte à Assessoria de Coordenação de Fundos Setoriais - ASCOF” (fl. 9, e-STJ). Argui o impetrante que, “após a realização de atos instrutórios, a comissão de processo administrativo entendeu por bem indiciar o Impetrante por entender presente a violação do Art. 117, IX da Lei n. 8.112/1990, sob o argumento de ter sido comprovado nos autos do PAD que o Impetrante valeuse do cargo para indicar parentes seus para serem contratados no âmbito dos convênios objeto, conforme se abstrai do termo de indiciamento” (fl. 9, e-STJ). Concluídos os trabalhos, a referida Comissão processante sugeriu a aplicação da penalidade de advertência, por não ter havido comprovação de dano ao erário e, ainda, de que as pessoas contratadas, embora indicadas pelo impetrante, desempenharam suas atribuições a contento. Contudo, a autoridade coatora, valendo-se da faculdade conferida pelo art. 168, parágrafo único, da Lei n. 8.112/1990, não acatou tal conclusão e decidiu pela destituição do impetrante do cargo em comissão. Para o impetrante, a penalidade aplicada pela autoridade coatora violou o art. 128 da Lei n. 8.112/1990 porque em nenhum momento fez constar na fundamentação do ato administrativo a natureza e gravidade da infração 68 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO cometida e muito menos os danos causados ao serviço público, bem como as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os seus antecedentes funcionais. Considera que essa omissão macula o ato coator porque malfere os postulados da legalidade, moralidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade e impessoalidade, haja vista que “tanto a autoridade que determinou a instauração do PAD, quando a autoridade coatora, não indicou qual a conduta praticada pelo impetrante que se amoldasse ao que preceitua o inciso IX do Art. 117 da L ei n. 8.112/1990” (fl. 12, e-STJ). Aduz ainda que a Comissão constatou que não houve nenhum proveito pecuniário ao impetrante, não houve dano ao erário e os contratados desempenharam suas atribuições com eficiência. Esses fatos não teriam sido levados em consideração pela autoridade coatora, que teria, ao aplicar a pena combatida, praticado nítida arbitrariedade, à margem da legalidade. Sustenta também a ausência de ilicitude da conduta. Quando muito, admite mera irregularidade desprovida de tipicidade para a aplicação de tão drástica penalidade. Sustenta ademais que “a Súmula Vinculante n. 13, editada pelo Supremo Tribunal Federal e que tratou da questão do nepotismo na administração pública direta ou indireta não dispôs sobre proibição de servidor público informar ou até mesmo indicar funcionário para ser contratado por entidade privada” (fl. 29, e-STJ). Por derradeiro, menciona que o ato administrativo que culminou com a destituição do impetrante do cargo em comissão está desprovido de motivação porque “a ilustre autoridade coatora, sem qualquer fundamentação e com afronta ao preceito constante do Art. 128 da Lei n. 8.112/1990, entendeu por bem não acatar a proposta da comissão processante e aplicar ao Impetrante a penalidade de destituição do cargo” (fls. 37-38, e-STJ). Pediu a concessão de medida liminar para obter a suspensão dos efeitos do ato coator. Quanto ao mérito, pleiteou a declaração de nulidade do ato coator e, por outro lado, a declaração de validade do pedido de dispensa da função que efetuou em 25.7.2011. A medida liminar foi indeferida nos termos da seguintes ementa (fl. 294, e-STJ): Direito Processual e Administrativo. Mandado de segurança. Apuração de responsabilidade feita por intermédio de processo administrativo disciplinar. Destituição de cargo em comissão. Inexistências do fumus boni iuris e do periculum in mora. Liminar negada. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 69 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Prestadas as informações (fls. 306-383, e-STJ), defendeu a autoridade coatora o seguinte: (a) a legalidade do ato coator porque “fundamentado em decisão devidamente motivada e baseada em escorreito PAD, que lhe garantiu ampla defesa e contraditório, não havendo, por conseguinte, violação de direito líquido do autor” (fl. 308, e-STJ); (b) o impetrante “valeu-se do cargo de Coordenador-Geral de Apoio Técnico da ASCOF em proveito próprio e para beneficiar terceiros, pois viabilizou a admissão e manutenção de seu irmão, sua nora, um genro, dois sobrinhos e outras pessoas em contrato de prestação de serviços terceirizados realizado pelo MCTI com a empresa Enhanced Value Soluções e Softwares (EVSS) e, após, com a empresa Visual Locação Serviço Construção Civil e Mineração Ltda (VISUAL), ambos decorrentes de convênio celebrado entre o MCTI e a Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica (ABIPTI)” (fl. 308, e-STJ); (c) “a decisão de destituir o impetrante do cargo comissionado que ocupava nessa Pasta (fls. 88-89) embasou-se no próprio relatório do Colegiado, em Parecer da Consultoria Jurídica do MCTI, no interrogatório do acusado e em outros documentos existentes no PAD, notadamente os emitidos pela Controladoria-Geral da União (CGU) e pelo Ministério Público Federal (MPF), que foram suficientes, para justificar a aplicação da pena capital ao ora impetrante” (fl. 308, e-STJ); (d) o MPF moveu ação de improbidade administrativa contra o impetrante perante a 20ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, tombada sob o número 2009.34.00.036868-3, por conta das indicações ilícitas de parentes e outras pessoas de seu relacionamento pessoal para possibilitar a contratação de todos no período de 2003 a 2008; (e) o impetrante privilegiou interesses particulares e se valeu da sua graduada posição na Administração do MCTI em benefício próprio e de terceiros, em prejuízo do interesse público primário; (f ) os atos praticados pelo impetrante violaram o princípio da moralidade porque possibilitou que terceiros lograssem proveito pessoal em detrimento da dignidade da função pública; (g) a aplicação da penalidade pela autoridade coatora não está adstrita à sugestão da Comissão que conduz o procedimento administrativo disciplinar, 70 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO pelo que pode aplicar outra penalidade, nos termos do art. 168 da Lei n. 8.112/1990; (h) a Administração Pública, constatando a prática de infração, está vinculada à aplicação da penalidade, que, no caso, foi a destituição do cargo em comissão, porque o impetrante estava aposentado do cargo público. O Ministério Público Federal, ouvido a respeito da controvérsia, opinou pela denegação da segurança (fls. 388-393, e-STJ). É, no essencial, o relatório. VOTO O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): Eis os fundamentos da Lei n. 8.112/1990 evocados pela autoridade coatora para aplicar a pena de destituição do cargo em comissão exercido pelo impetrante (fl. 169, e-STJ): Art. 117. Ao servidor é proibido: (...) IX - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública; (...) Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: (...) XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117. (...) Art. 135. A destituição de cargo em comissão exercido por não ocupante de cargo efetivo será aplicada nos casos de infração sujeita às penalidades de suspensão e de demissão. (...) Art. 137. A demissão ou a destituição de cargo em comissão, por infringência do art. 117, incisos IX e XI, incompatibiliza o ex-servidor para nova investidura em cargo público federal, pelo prazo de 5 (cinco) anos. (...) Art. 168. O julgamento acatará o relatório da comissão, salvo quando contrário às provas dos autos. Parágrafo único. Quando o relatório da comissão contrariar as provas dos autos, a autoridade julgadora poderá, motivadamente, agravar a penalidade proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de responsabilidade. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 71 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Para o impetrante, esses fundamentos legais do ato coator não se sustentam porque: (a) está desprovido de fundamentação, violando o art. 128 da Lei n. 8.112/1990 e malferindo ainda os postulados da legalidade, moralidade, motivação, rezoabilidade, proporcionalidade e impessoabilidade; (b) não houve proveito pecuniário ao impetrante nem dano ao erário, e os contratados desempenharam as atividades para as quais foram designados; (c) não há ilicitude na conduta, havendo, quando muito, mera irregularidade. Em suma, são essas as alegações do impetrante que buscam desconstituir a pena aplicada pela autoridade coatora. Analiso cada qual, de per si. (a) ausência de fundamentação do ato coator Não procede a alegação de que o ato coator está desprovido de fundamentação. A Portaria n. 617, de 9 de agosto de 2011, menciona expressamente o conteúdo do Procedimento Administrativo Disciplinar n. 01200.004030/201081 como fundamento para a aplicação da penalidade de destituição do cargo em comissão. Por sua vez, antes de expedir o ato indigitado coator, a autoridade coatora exarou circunstanciada decisão em que consigna expressamente o seguinte (fls. 171-172, e-STJ): Sob o argumento de que a conduta do indiciado “não teria gerado qualquer prejuízo ao erário ou serviço publico federal”, a Comissão propôs a aplicação da pena de advertência. Ocorre, todavia, que a pena proposta pela Comissão contraria a prova por ela própria produzida nos autos, por isso, com fundamento no art. 168 da Lei n. 8.112/1990 e no entendimento contido no Parecer n. 251/2011, da Consultoria Jurídica, e nos Pareceres n. QG 149/98, QG-156/98, QG-176/98, QG-139/98, QG141/98, QG-167/98, QG-177/98, QG-183/98, GM-03/2000 e GM-05/2000, da Advocacia-Geral da União, que possuem caráter vinculante para a Administração Pública (art. 40 da LC n. 73/1993), decido não acatar a proposta da Comissão de inflição da pena de advertência, mas aplicar ao servidor Aldo Pinheiro da Fonseca a pena de destituição do cargo em comissão de Coordenador-Geral de Apoio Técnico, Código DAS 101.4, da Secretaria-Executiva deste Ministério, prevista no art. 132, XIII, combinado com o art. 135 e 137, caput, da Lei n. 8.112/1990, 72 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO por violação ao disposto no inciso IX do art. 117 da mesma Lei, uma vez que o indiciado exerce cargo em comissão, sem vinculo efetivo por estar aposentado. Publique-se este Despacho e a portaria, ora assinada, no Boletim de Pessoal e, em seguida, encaminhe-se o processo ao Coordenador do Sistema CGU - PAD neste Ministério, para fins do disposto nos arts. 3º e 4º, do Anexo aprovado pela Portaria-MCT n. 111/08. O Ministério Público Federal, ao opinar sobre essa alegação do impetrante, foi enfático (fl. 390, e-STJ): Assim, verifica-se que a alegação do impetrante de ausência de fundamentação da decisão que o destituiu do cargo em comissão que ocupava não prospera, eis que a autoridade impetrada divergiu, fundamentadamente, da conclusão da comissão processante quanto à penalidade a ser aplicada, considerando, segundo deflui da leitura do ato que o impetrante quer anular, a natureza e a gravidade do ato - o nepotismo - bem como a agravante de sua reiteração, contaminando os antecedentes funcionais do servidor. A jurisprudência desta Corte considera que a autoridade coatora pode discordar das conclusões da Comissão processante, desde que devidamente fundamentada. Confira-se: Constitucional. Administrativo. Processual Civil. Servidor público federal. Processo disciplinar. Demissão. Fiscalização de obras. Omissão no dever funcional. Prejuízo ao erário. Ministro de Estado do Controle e Transparência. Avocação. Possibilidade. Previsão legal. Modificação do julgamento pela autoridade. Possibilidade. Improbidade. Possível aplicação nos feitos disciplinares. Devido processo legal. Observado. Ausência de direito líquido e certo. 1. Designado para fiscalizar a execução de três obras de reforma e de ampliação da sede da repartição, o impetrante foi demitido do serviço público federal, após procedimento administrativo disciplinar, por se omitir na fiscalização e atestar a realização do serviço, causando ao erário prejuízo de elevada monta, porquanto diversos pagamentos foram realizados indevidamente. 2. A avocação do procedimento administrativo disciplinar pelo Ministério do Controle e da Transparência possui fundamento na Lei n. 10.683/2003 e no Decreto n. 5.480/2005, razão pela qual não há falar em malferimento do direito à ampla defesa. Precedentes: AgRg no MS n. 14.123-DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 25.5.2009; MS n. 14.534-DF, Rel. Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, DJe 4.2.2010. 3. O art. 168 da Lei n. 8.112/1990 permite que a autoridade contrarie as conclusões da comissão processante, desde que o faça com a devida motivação, para retificação do julgamento em atenção aos fatos e provas. Precedente: MS n. 16.174-DF, Rel. Ministro Castro Meira, Primeira Seção, DJe 17.2.2012. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 73 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 4. A improbidade administrativa pode ser evocada pela Administração Pública federal como fundamento para aplicar a pena de demissão, não se exigindo que o Poder Judiciário se pronuncie previamente sobre a sua caracterização. Precedentes: MS n. 14.140-DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, DJe 8.11.2012; REsp n. 981.542-PE, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJe 9.12.2008. 5. Como demonstrado nos autos, a observância da garantia ao silêncio foi respeitada pela comissão processante, não se justificando, portanto, a alegação de violação ao devido processo legal. 6. Caracterizada a desídia do servidor público e, em razão disso, a ocorrência de prejuízo de elevada monta ao erário, mostra-se adequada a aplicação da pena de demissão, cuja previsão expressa está contemplada nos arts. 117, XV, e 132, XIII, da Lei n. 8.112/1990, do qual a autoridade não pode se afastar. Precedente. Segurança denegada. (MS n. 15.826-DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em 22.5.2013, DJe 31.5.2013) Processual Civil e Administrativo. Mandado de segurança. Processo disciplinar. Relatório da comissão processante. Reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. Infração capitulada como passível de demissão. Encaminhamento dos autos ao Ministro de Estado da Justiça. Ilegalidade. Inexistência. Mandado de segurança denegado. 1. Na esfera do Poder Executivo Federal, a competência para aplicar a pena de demissão é do Ministro de Estado a que se vincula o servidor indiciado, por força do que dispõe o art. 1º do Decreto n. 3.035/1999. 2. A mera remessa e o recebimento dos autos de processo administrativo disciplinar não é suficiente para embasar a impetração preventiva, eis que não se pode presumir que a autoridade ora impetrada haveria de praticar ato ilegal ou abusivo que poderia vulnerar direito líquido e certo do servidor ora impetrante. 3. Ademais, não há ilegalidade no ato da Corregedoria-Geral da Polícia Rodoviária Federal que, mesmo reconhecendo a prescrição da pretensão punitiva, encaminhou os autos do processo disciplinar ao Ministro de Estado da Justiça, a quem compete julgá-lo, já que a infração atribuída ao impetrante é punida, em tese, com a pena de demissão. 4. A comissão que preside o inquérito administrativo não pode se sobrepor à autoridade julgadora, aplicando de imediato as conclusões propostas em seu relatório, ao reconhecer a prescrição da pretensão punitiva, pois não ostenta função judicante. 5. A autoridade julgadora não está atrelada às conclusões propostas pela comissão, podendo delas discordar, motivadamente, quando o relatório contrariar a prova dos autos, nos termos do art. 168 da Lei n. 8.112/1990. 74 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO 6. Mandado de segurança denegado. (MS n. 16.174-DF, Rel. Ministro Castro Meira, Primeira Seção, julgado em 14.12.2011, DJe 17.2.2012) Constato que, ao contrário do que defende o impetrante, o ato coator sobeja em fundamentos e motivos para aplicar a pena de demissão ao servidor público. (b) ausência de proveito pecuniário ao impetrante, inexistência de dano ao erário e realização dos serviços contratados O impetrante considera que a viabilização da contratação de terceiros (irmão, nora, genro, sobrinhos) não ocasionou prejuízo algum ao erário porque os contratados desempenharam suas atribuições com eficiência. Não procede a alegação do impetrante. Primeiro, um dos fundamentos utilizados pela autoridade coatora para a aplicação da penalidade recai no art. 117, IX, da Lei n. 8.112/1990, que proíbe o servidor público de valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública. O dispositivo claramente não elege o dano ao erário como razão suficiente para estabelecer referida proibição ao servidor público, como pretende o impetrante. Além disso, considero desnecessária a constatação de eventual prejuízo porque, como já decidiu esta Corte, “o ilícito administrativo de valer-se do cargo para obter para si vantagem pessoal em detrimento da dignidade da função pública, nos termos do art. 117, IX da Lei n. 8.112/1990 é de natureza formal, de sorte que é desinfluente, para sua configuração, que os valores tenham sido posteriormente restituídos aos cofres públicos após a indiciação do impetrante; a norma penaliza o desvio de conduta do agente, o que independe dos resultados” (MS n. 14.621-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 30.6.2010). Segundo, a Controladoria-Geral da União, por intermédio de investigação preliminar, concluiu que o impetrante realmente valeu-se do cargo para indicar irmão, nora, genro e sobrinhos para executar serviços pagos pelo erário. Se não, veja-se (fl. 367, e-STJ): 148. Diante de todo o exposto, há indícios de que várias pessoas foram contratadas, com recursos dos convênios, sem a devida impessoalidade no RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 75 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA processo de seleção, bem como de que algumas dessas pessoas podem ter desempenhado atividades estranhas ao objeto do convênio. Tais contratações teriam sido realizadas por determinação do coordenador da SETEF/ASCOF à época, senhor Aldo Pinheiro da Fonseca, cuja conduta e enquadramento legal correspondente serão objeto de detalhamento no tópico IV deste Relatório Final. Terceiro, embora o impetrante tenha negado em depoimento a indicação de parentes para serem contratados, a Controladoria-Geral da União constatou o oposto, como se infere da seguinte passagem (fl. 364, e-STJ): 137. Ao realizar fiscalização nos Convênios n. 10.05.0027.00 e 01.06.0325.00, a SFC/CGU constatou que “(...) 41 (quarenta e uma) pessoas foram contratadas [no Convênio n. 01.06.0325.00] em decorrência de ofícios expedidos pelo Coordenador da Secretaria Técnica dos Fundos Setoriais [Aldo Pinheiro da Fonseca] à ABIPTI, constando o nome da pessoa a ser contratada. bem como o salário a ser pago” (fl. 8, grifo nosso). Ressai evidente a participação direta do impetrante no processo de escolha das pessoas que deveriam ser contratadas por empresas remuneradas com verba pública, embora tenha ele negado tal fato, como se infere da fl. 111, e-STJ. Quarto, considero que essa conduta do impetrante amolda-se ao nepotismo, afrontando a moralidade e a impessoalidade da Administração Pública. Nesse sentido, precedentes desta Corte: Administrativo. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Nepotismo. Violação a princípios da Administração Pública. Ofensa ao art. 11 da Lei n. 8.429/1992. Desnecessidade de dano material ao erário. 1. Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina em razão da nomeação da mulher do Presidente da Câmara de Vereadores, para ocupar cargo de assessora parlamentar desse da mesma Câmara Municipal. 2. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que o ato de improbidade por lesão aos princípios administrativos (art. 11 da Lei n. 8.249/1992), independe de dano ou lesão material ao erário. 3. Hipótese em que o Tribunal de Justiça, não obstante reconheça textualmente a ocorrência de ato de nepotismo, conclui pela inexistência de improbidade administrativa, sob o argumento de que os serviços foram prestados com “dedicação e eficiência”. 4. O Supremo Tribunal, por ocasião do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 12-DF, ajuizada em defesa do ato normativo do Conselho 76 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO Nacional de Justiça (Resolução n. 7/2005), se pronunciou expressamente no sentido de que o nepotismo afronta a moralidade e a impessoalidade da Administração Pública. 5. O fato de a Resolução n. 7/2005 - CNJ restringir-se objetivamente ao âmbito do Poder Judiciário, não impede – e nem deveria – que toda a Administração Pública respeite os mesmos princípios constitucionais norteadores (moralidade e impessoalidade) da formulação desse ato normativo. 6. A prática de nepotismo encerra grave ofensa aos princípios da Administração Pública e, nessa medida, configura ato de improbidade administrativa, nos moldes preconizados pelo art. 11 da Lei n. 8.429/1992. 7. Recurso especial provido. (REsp n. 1.009.926-SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 17.12.2009, DJe 10.2.2010) Processual Civil e Administrativo. Processo administrativo disciplinar. Nepotismo. Princípio da moralidade administrativa. Princípio da impessoalidade. Violação dos princípios do contraditório e da ampla-defesa. Inexistência. Manutenção da pena de censura aplicada a Juiz de Direito por nomear o pai de sua companheira para o múnus de perito. Art. 41 da Loman. Art. 125, I e III do CPC. 1. Hipótese em que Juiz de Direito impetrou, na origem, Mandado de Segurança, objetivando invalidar a pena de censura que lhe foi aplicada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por ter nomeado o pai de sua companheira para oficiar em diversas perícias médicas em processos de sua responsabilidade, na Vara onde é Titular. 2. A sindicância administrativa prescinde da observância ampla dos princípios do contraditório e da ampla defesa, por se tratar de procedimento inquisitorial, anterior e preparatório à acusação e ao processo administrativo disciplinar, ainda sem a presença obrigatória do investigado. 3. Inexiste nulidade sem prejuízo. Se é assim no processo penal, com maior razão no âmbito administrativo. 4. Na arguição de nulidade, a parte deve indicar claramente o prejuízo que sofreu, bem como a vinculação entre o ato ou omissão impugnados e a ofensa à apuração da verdade substancial, daí decorrendo inequívoco reflexo na decisão da causa (CPP, art. 566). Além disso, cabe observar que, como regra geral, as nulidades consideram-se sanadas se não arguidas em tempo oportuno, por inércia do prejudicado. 5. Juízes auxiliares podem participar da fase instrutória, desde que norma do Tribunal preveja expressamente a possibilidade de o Relator ou o Presidente da Corte Julgadora (in casu, o Corregedor-Geral de Justiça) designar Magistrado de categoria igual ou superior à do interessado. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 77 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 6. É certo que a Loman dispõe que o magistrado não pode ser punido ou prejudicado “pelo teor das decisões que proferir” (art. 41), mas implícita nessa norma está a exigência de que essas mesmas decisões não infrinjam os valores primordiais da ordem jurídica e os deveres de conduta impostos ao juiz com o desiderato de assegurar a sua imparcialidade. 7. A Loman não se presta a acobertar, legitimar ou proteger atos judiciais que violem o princípio da moralidade administrativa, o princípio da impessoalidade ou as regras de boa conduta que se esperam do juiz. 8. A independência dos juízes não pode transmudar-se em privilégio para a prática de atos imorais. A garantia é conferida ao Poder Judiciário como instituição, em favor da coletividade, e deve ser por ele mesmo fiscalizada. 9. O fato de os despachos saneadores que nomearam o pai da companheira do recorrente serem de natureza judicial e, na hipótese, não terem recebido impugnação por recurso, em nada impede a abertura de processo disciplinar e, ao final, a punição do infrator. 10. O nepotismo e o compadrio são práticas violadoras dos mais comezinhos fundamentos do Estado Democrático de Direito e, por isso mesmo, exigíveis não só do Executivo e do Legislativo, mas, com maior razão, também do Judiciário. 11. É aberrante a nomeação, pelo juiz, de parente, cônjuge, consanguíneo ou afim, bem como de amigo íntimo, como perito do juízo, comportamento esse que macula a imagem do Poder Judiciário, corrói a sua credibilidade social e viola frontalmente os deveres de “assegurar às partes igualdade de tratamento” e “prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça” (CPC, art. 125, I e III). 12. Nos termos da Constituição Federal, a união estável é reconhecida como unidade familiar (art. 226, § 3º). 13. Recurso Ordinário não provido. (RMS n. 15.316-SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 1º.9.2009, DJe 30.9.2009) Quinto e último, fere a moralidade administrativa e até o senso comum médio imaginar que a Administração Pública possa ser transformada em negócio de família, como, aliás, adverte Emerson Garcia (Improbidade Administrativa, 4ª Edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 401-407). (c) alegação de ausência de ilicitude Registro ainda que não se pode defender, como de fato defende a inicial, a ausência de ilicitude, porque o nepotismo acarreta ofensa grave aos postulados da Administração Pública. Como decidiu o STF, “A vedação do nepotismo 78 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO não exige a edição de lei formal para coibir a prática, uma vez que decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal” (Rcl n. 6.702 MC-AgR-PR, relator Min. Ricardo Lewandowski). Por derradeiro, os antecedentes funcionais do impetrante não são suficientes para impedir a aplicação da penalidade porque “A Administração Pública, quando se depara com situações em que a conduta do investigado se amolda nas hipóteses de demissão ou cassação de aposentadoria, não dispõe de discricionariedade para aplicar pena menos gravosa por tratar-se de ato vinculado” (MS n. 15.517-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 18.2.2011). No mesmo sentido: MS n. 16.567-DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 18.11.2011). No mesmo sentido: MS n. 15.951-DF, Rel. Ministro Castro Meira, Primeira Seção, DJe 27.9.2011. Não identifico o direito líquido e certo evocado pelo impetrante. Ante o exposto, denego a segurança. É como penso. É como voto. MANDADO DE SEGURANÇA N. 19.827-DF (2013/0051873-2) Relator: Ministro Sérgio Kukina Impetrante: Romildo Antonio Ribeiro Advogado: Rarisio Rodrigues Pereira Impetrado: Ministro de Estado da Justiça Interessado: União EMENTA Mandado de segurança. Anistia. Ato de revisão da portaria concessória. Possibilidade. Inexistência de direito líquido e certo. Denegação da ordem. 1. A redação do art. 53 da Lei n. 9.784/1999 não proíbe – antes, impõe – à administração o dever de rever seus próprios atos. Logo, nula RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 79 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA seria uma eventual decisão no sentido de cercear a legítima atividade administrativa revisora, nas hipóteses – como a ora examinada – em que não existe um ato concreto capaz de causar efetiva lesão a direito adquirido. 2. O direito sujeito à decadência, por força do que dispõe essa norma, é o de anulação de atos dos quais decorram efeitos favoráveis para os administrados de boa fé, mas não o direito-dever de instaurar o procedimento administrativo de revisão que, acaso obstado, impediria até mesmo a eventual comprovação da má-fé a que se refere o artigo 54 da Lei n. 9.784/1999. 3. Não há direito líquido e certo, a ser protegido pela via mandamental, o que afasta, de imediato, a incidência do art. 1º da Lei n. 12.016/2009, impondo-se, em decorrência, a denegação da segurança. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler, Eliana Calmon, Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques e Benedito Gonçalves votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 28 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministro Sérgio Kukina, Relator DJe 3.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sérgio Kukina: Trata-se de mandado de segurança impetrado por Romildo Antônio Ribeiro, militar reformado, apontando como autoridade coatora o Ministro de Estado da Justiça e como ato coator o Despacho n. 2.251, publicado no DOU de 19.12.2012, que autorizou a abertura de processo administrativo de anulação da Portaria MJ n. 1.784, de 29 de setembro de 2006, instrumento este pelo qual lhe foi reconhecida a qualidade de anistiado político. 80 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO Alega, em síntese, a impossibilidade de instauração de qualquer procedimento tendente à anulação da portaria de concessão da anistia, pois alcançada pela decadência de que trata o artigo 54 da Lei n. 9.784/1999. Requereu o benefício da assistência judiciária gratuita e, ainda, a concessão de liminar para garantir a manutenção da prestação mensal continuada, por seu caráter alimentar. O pedido de gratuidade foi deferido pela presidência (fl. 39) e a liminar indeferida, nos termos da decisão às fls. 56. O Ministério Público Federal, pelo parecer de fls. 874 a 876, manifestou-se pela denegação da segurança. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sérgio Kukina (Relator): A pretensão ora veiculada, matéria muitas vezes já debatida nesta Primeira Seção, não comporta acolhimento, pois não configurado, na espécie, o direito líquido e certo que a via mandamental requer. A propósito: Administrativo e Processual Civil. Mandado de segurança. Anistia política. Portaria Interministerial MJ/AGU n. 134/2011. Revisão dos atos de anistia. Súmula n. 266-STF. Fato superveniente. Alteração do pedido e causa de pedir. Impossibilidade. Precedentes da Primeira Seção. 1. A Primeira Seção firmou entendimento de que a revisão determinada pela Portaria Interministerial MJ-AGU n. 134/2011, por consubstanciar-se em simples fase de estudos acerca de eventuais irregularidades nas concessões das anistias com base na Portaria n. 1.104/GM3/1964, não afeta a esfera individual de direitos dos impetrantes. Incidência, por analogia, da Súmula n. 266-STF. 2. Hipótese em que a impetração se dirige contra a própria autorização do Ministro de Estado da Justiça de que fosse instaurado processo de anulação da anistia, mediante o Grupo de Trabalho Interministerial criado pela Portaria MJAGU n. 134/2011. [...] 5. Agravo regimental da União contra decisão concessiva da liminar prejudicado. 6. Mandado de segurança denegado. (MS n. 17.639-ES, Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, DJe 5.11.2012) RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 81 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Na mesma linha, veja-se também o MS n. 8.691-DF, DJe de 7.12.2009, da relatoria do Ministro Mauro Campbel Marques, aprovado à unanimidade dos votos da Primeira Seção. Ademais, a redação do art. 53 da Lei n. 9.784/1999, na verdade, não proíbe – antes, impõe – à administração o dever de rever seus próprios atos. Logo, nula seria uma eventual decisão no sentido de cercear a legítima atividade administrativa revisora, nas hipóteses – como a ora examinada – em que não existe um ato concreto capaz de causar efetiva lesão a direito adquirido. Por sua vez, o art. 54 da referida norma – dispositivo invocado para fundamentar a tese de impossibilidade de revisão do ato anistiador – encontrase assim redigido: Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. Tem-se, daí, que o direito sujeito à decadência, por força do que dispõe essa norma, é o de anulação de atos dos quais decorram efeitos favoráveis para os administrados de boa fé, mas não o direito-dever de instaurar o procedimento administrativo de revisão que, acaso obstado, impediria até mesmo a eventual comprovação da má-fé a que se refere o mencionado artigo. Em tempo, registro que questão idêntica foi recentemente submetida ao exame da Primeira Seção desta Corte, restando o acórdão, unânime, assim ementado: Processual Civil e Administrativo. Mandado de segurança. Anistia política. Despacho que, com base na Portaria Interministerial n. 134/2011, autoriza instauração de procedimento tendente a rever as anistias concedidas com amparo na Portaria n. 1.104/64. Ausência de ameaça de lesão a direito. Manifestação do poder de autotutela. 1. A impetração insurge-se contra despacho do Ministro de Estado da Justiça que, com base na Portaria Interministerial n. 134, de 15.2.2011, determinou instauração de procedimento de revisão de anistias concedidas com fulcro na Portaria GM3 n. 1.104/64. 2. A Portaria Interministerial n. 134/2011 limita-se a: a) determinar que se proceda à revisão das anistias concedidas com fulcro na Portaria n. 1.104GM3/1964 (art. 1º); b) instituir Grupo de Trabalho para promover a averiguação individual das anistias sujeitas à revisão (art. 2º) - o qual funcionará na Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça (art. 6º) -, conferindo-lhe competência para 82 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO deflagrar procedimento contraditório e decidir sobre as questões de mérito relativas às suas atribuições (art. 7º); e c) indicar que, após a revisão, será aberto novo procedimento para anulação das portarias concessivas de anistia, nos casos em que se verificar que o afastamento das Forças Armadas não decorreu de perseguição política (art. 5º). 3. Para que, eventualmente, seja anulada a portaria que concedeu a anistia, será necessário instalar procedimento próprio, conforme o art. 5º da Portaria Interministerial n. 134/2011. 4. Nesse contexto, fica claro que o despacho emitido pela autoridade impetrada, por si, é incapaz de atingir diretamente qualquer direito. Não há sequer ameaça de cassação de anistia ou suspensão dos pagamentos da reparação mensal. 5. Ademais, o reexame das anistias concedidas constitui legítima manifestação do poder de autotutela da Administração, consubstanciado no direito de rever seus próprios atos. Saliente-se novamente que a própria Portaria Interministerial n. 134 evidencia que, tanto na revisão como em eventual procedimento de cassação das anistias, haverá oportunidade de manifestação dos interessados, permitindo o contraditório e a ampla defesa. 6. A Primeira Seção firmou entendimento de que “a análise da tese de decadência administrativa somente terá relevância naquelas hipóteses em que, após realizada a primeira fase de estudos, a Administração vier a instaurar os processos de cassação previstos no art. 5º da Portaria Interministerial n. 134, de 15.2.2011, mormente se considerado que apenas após realizados tais estudos será possível aferir a possibilidade de aplicação da primeira parte do art. 54 da Lei n. 9.784/1999, ou, até mesmo, eventualmente, a exceção prevista em sua parte final, que afasta a decadência nas hipóteses de ‘comprovada má-fé’” (AgRg no MS n. 16.219-DF). 7. Posição adotada pela Primeira Seção do STJ, em 8.6.2011, no julgamento dos Mandados de Segurança n. 16.425-DF e 16.543-DF, de relatoria do e. Min. Arnaldo Esteves Lima. 8. Mandado de Segurança denegado. (MS n. 17.576-DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 1º.2.2013) Não há, pois, direito líquido e certo, a ser protegido pela via mandamental, o que afasta, de imediato, a incidência do art. 1º da Lei n. 12.016/2009, impondose, em decorrência, a denegação da segurança. Sem honorários advocatícios, nos termos do art. 25 da Lei n. 12.016/2009 e Súmula n. 105-STJ. Recolhimento das custas, pelo impetrante, dispensado em função da concessão do benefício da assistência judiciária (art. 3º, II, da Lei n. 1.060/1950). É como voto. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 83 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.217.234-PB (2010/0181699-2) Relator: Ministro Ari Pargendler Recorrente: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama Procurador: André de Souza Melo Teixeira e outro(s) Recorrido: Município de Pitimbu Advogado: Said Abel da Cunha Recorrido: Maria Joserlane Dantas de Oliveira Advogado: Sem representação nos Autos EMENTA Administrativo. Auto-executoriedade dos atos de polícia. Os atos de polícia são executados pela própria autoridade administrativa, independentemente de autorização judicial. Se, todavia, o ato de polícia tiver como objeto a demolição de uma casa habitada, a respectiva execução deve ser autorizada judicialmente e acompanhada por oficiais de justiça. Recurso especial conhecido e provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Decidiu, ainda, cancelar a submissão do recurso ao rito do art. 543-C do CPC, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Castro Meira, Arnaldo Esteves Lima, Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves e Sérgio Kukina votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, ocasionalmente, a Sra. Ministra Eliana Calmon. Compareceu à sessão, o Dr. Cleiton Cursino Cruz, pelo recorrente. 84 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO Brasília (DF), 14 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministro Ari Pargendler, Relator DJe 21.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ari Pargendler: Trata-se de recurso especial interposto pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis Ibama, contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, assim ementado: “Ação civil pública. Ambiental. Interesse de agir. Provimento em parte. I - O embargo de obra irregular por violação a norma ambiental, bem como a sua demolição, constitui sanção de natureza administrativa, cuja competência para sua aplicação é privativa da Administração, descabendo a sua substituição pelo Judiciário. II - Ainda que a demolição se cuidasse de prerrogativa inserida no campo da exigibilidade, seria necessária a sua aplicação em procedimento administrativo regular, o que não restou aqui demonstrado, para, em havendo resistência do particular, ser ativada a jurisdição para a sua execução. III Diversamente, a imposição da obrigação de reparar possível dano ambiental se situa na alçada do Poder Judiciário. IV - Apelação provida em parte” (e-stj, fl. 55). Opostos embargos de declaração (e-stj, fl. 64-68), foram rejeitados (e-stj, fl. 110-115). As razões do recurso especial dizem violado o art. 535 do Código de Processo Civil, o art. 150 do Código Penal e o art. 72, VIII, da Lei n. 9.605, de 1998 alegando “o interesse de agir do Ibama para ação civil pública e para o pedido de demolição nela formulado” (e-stj, fl. 128). O Ministro Francisco Falcão decidiu submeter o presente recurso ao julgamento da Primeira Seção, como representativo da controvérsia, in verbis: “Trata-se de recurso especial interposto pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama, contra o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no qual se discutiu acerca da auto-executoriedade de ato administrativo emanado pela autarquia ambiental que determina o embargo de obra irregular e sua respectiva demolição, a afastar a atuação do Judiciário” (e-stj, fl. 181). RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 85 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Vieram-me os autos conclusos, por atribuição (e-stj, fl. 195). O Ministério Público Federal na pessoa da Subprocuradora-Geral da República, Dra. Maria Caetana Cintra Santos, opinou pelo provimento do recurso (e-stj, fl. 188-194). VOTO O Sr. Ministro Ari Pargendler (Relator): As noções de exequibilidade e de auto-executoriedade expostas na sentença e no acórdão estão de acordo com a melhor doutrina. “A exequibilidade ou operatividade” - leciona Hely Lopes Meirelles - “é a possibilidade presente no ato administrativo de ser posto imediatamente em execução” (Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, São Paulo, 35ª edição, p. 162). “A auto-executoriedade” - segundo o mesmo jurista - “consiste na possibilidade que certos atos administrativos ensejam de imediata e direta execução pela própria Administração, independentemente de ordem judicial. Os autores mais modernos não se cansam de apontar esse atributo nos atos administrativos que o possuem. Entretanto, as nossas Administrações se mostram tímidas na sua utilização e a nossa Justiça, nem sempre atualizada com o Direito Público, em pronunciamentos felizmente raros, tem pretendido condicionar a execução de atos tipicamente auto-executórios a prévia apreciação judicial. Mas, em contraposição a esses julgados esporádicos e errôneos, firma-se cada vez mais a jurisprudência na boa doutrina, reconhecendo à Administração - especialmente quanto aos atos de polícia - o poder de executar direta e imediatamente seus atos imperativos, independentemente de pedido cominatório ou mandado judicial” (op. cit., p. 164). Essa crítica vale para os nossos dias tumultuados em que as autoridades administrativas aguardam decisão judicial para desfazer o bloqueio de estradas. Atos de polícia, como esse, não dependem de intervenção judicial. Quid, como no caso, em que a demolição de uma casa edificada em área vedada legislação ambiental está habitada? Para situações tais, o art. 112, § 3º, do Decreto n. 6.514, de 12 de julho de 2008, dispõe: “Art. 112 - A demolição de obra, edificação ou construção não habitada e utilizada diretamente para a infração ambiental dar-se-á excepcionalmente no 86 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO ato da fiscalização nos casos em que se constatar que a ausência da demolição importa em iminente risco de agravamento do dano ambiental ou de graves riscos à saúde. § 3º - A demolição de que trata o caput não será realizada em edificações residenciais”. Voto, por isso, no sentido de conhecer do recurso especial e de dar-lhe provimento para que a ação seja processada e julgada nos termos da petição inicial. RECURSO ESPECIAL N. 1.369.832-SP (2013/0063165-9) Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogado: Procuradoria-Geral Federal - PGF Recorrido: Henrique Monte do Nascimento Advogado: Jose Wagner Correia de Sampaio EMENTA Previdenciário. Processual Civil. Recurso especial representativo de controvérsia. Omissão do Tribunal a quo. Não ocorrência. Pensão por morte. Lei em vigor por ocasião do fato gerador. Observância. Súmula n. 340-STJ. Manutenção a filho maior de 21 anos e não inválido. Vedação legal. Recurso provido. 1. Não se verifica negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal de origem examina a questão supostamente omitida “de forma criteriosa e percuciente, não havendo falar em provimento jurisdicional faltoso, senão em provimento jurisdicional que desampara a pretensão da embargante” (REsp n. 1.124.595-RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 20.11.2009). 2. A concessão de benefício previdenciário rege-se pela norma vigente ao tempo em que o beneficiário preenchia as condições RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 87 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA exigidas para tanto. Inteligência da Súmula n. 340-STJ, segundo a qual “A lei aplicável à concessão de pensão previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado”. 3. Caso em que o óbito dos instituidores da pensão ocorreu, respectivamente, em 23.12.1994 e 5.10.2001, durante a vigência do inc. I do art. 16 da Lei n. 8.213/1991, o qual, desde a sua redação original, admite, como dependentes, além do cônjuge ou companheiro (a), os filhos menores de 21 anos, os inválidos ou aqueles que tenham deficiência mental ou intelectual. 4. Não há falar em restabelecimento da pensão por morte ao beneficiário, maior de 21 anos e não inválido, diante da taxatividade da lei previdenciária, porquanto não é dado ao Poder Judiciário legislar positivamente, usurpando função do Poder Legislativo. Precedentes. 5. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Napoleão Nunes Maia Filho, Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro Relator. Licenciado o Sr. Ministro Ari Pargendler. Compareceu à sessão, a Dra. Karina Teixeira de Azevedo, pelo recorrente. Brasília (DF), 12 de junho de 2013 (data do julgamento). Ministro Arnaldo Esteves Lima, Relator DJe 7.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima: Trata-se de recurso especial manifestado pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, com base no art. 88 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO 105, III, a e c, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região assim ementado (fls. 97-99e): Previdenciário. Pensão por morte. Legislação aplicável. Presentes todos os requisitos. Consectários. Apelação da parte autora parcialmente conhecida e, na parte conhecida, provida. - Não conhecida parte da apelação do autor em que requer a condenação do INSS à concessão de aposentadoria por invalidez ou auxílio- doença, por não se tratar do objeto da demanda. - A legislação aplicada na concessão do beneficio pensão por morte é aquela vigente na época do evento morte. Assim, a fruição da pensão por morte, em análise, tem como pressupostos a implementação de todos os requisitos previstos na legislação previdenciária para a concessão do beneficio, quais sejam, a existência de um vínculo jurídico entre o segurado mantenedor do dependente e a instituição previdenciária, a dependência econômica entre a pessoa beneficiária e o segurado e a morte do segurado. - Neste caso, versam os autos acerca de estudante universitário que percebia os benefícios de pensão por morte em razão do falecimento de seus genitores, havendo sido estes cancelados por ter alcançado a maioridade. Com efeito, a Lei Previdenciária não prevê a manutenção do beneficio de pensão por morte para aqueles que completam 21 anos de idade, à exceção para os que são inválidos (Lei n. 8.213/1991, art. 77, § 2º). No entanto, entendo que ao decidir a demanda posta em Juízo, o julgador não deve se ater tão-somente à interpretação literal da lei, mas, antes de tudo, deve buscar a sua aplicação de forma que possa atender às aspirações da Justiça e do bem comum, atendendo aos fins sociais a que ela se dirige. - Por fim, se por um lado a maioridade civil implica na habilitação do indivíduo para a prática de todos os atos da vida civil, ela não implica, de outra parte e necessariamente, na sua independência no âmbito econômico, sendo certo que, na grande maioria dos casos, os filhos permanecem economicamente dependentes dos pais quando alcançam a maioridade e estão cursando, com in casu, o curso universitário. Destarte, suspender o beneficio de pensão por morte neste momento, para se ater tão-somente à interpretação literal, da lei, não se coaduna com os princípios constitucionais que resguardam o direito à educação. Assim, entendo que o filho de segurado da Previdência Social faz jus à pensão por morte até os 24 anos de idade, desde que comprovados o ingresso em universidade à época em que completou a maioridade e a dependência econômica. - Restou comprovado que o autor era filho de Sinval do Nascimento e de Cássia Helena Monte do Nascimento, consoante certidão de nascimento. E sua condição de estudante universitário restou amplamente demonstrada pelo demonstrativo de pagamento de mensalidade da universidade e pelo atestado emitido pela instituição de ensino, pelo que se verifica que o autor deixou o curso em 31.12.2004. RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 89 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - Do extrato trimestral de beneficio e da consulta ao Sistema CNIS, verificase que o autor recebeu os beneficios de pensão por morte - NB 0683702467 (a partir de 23.12.1994) e NB 1213248156 (a partir de 5.10.2001). Destarte, restou comprovado que os falecidos, no tempo de seu óbito, possuíam qualidade de segurado. - Quanto ao termo inicial do beneficio, fixo-o na data em que foi cessado indevidamente (9.7.2003), e determino, quanto ao termo final do beneficio, que ele será devido apenas até o momento em que o autor comprovou estar devidamente matriculado em curso universitário (31.12.2004). - A correção monetária das parcelas vencidas se dará, nos termos da legislação previdenciária, das Súmulas n. 8 desta Corte e 148 do C. STJ, bem como da Resolução n. 561/2007 do Conselho da Justiça Federal, da data em que se tomou devido o beneficio. - Os juros de mora são devidos no percentual de 1% ao mês, a partir da citação, na forma do art. 406 da Lei n. 10.406/2002 - Honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor das parcelas vencidas até a data da sentença, conforme orientação desta Turma e observando-se os termos dos §§ 3º e 4º do art. 20 do CPC e o disposto na Súmula n. 111 do C. Superior Tribunal de Justiça. - Apelação da parte autora parcialmente conhecida e, na parte conhecida, provida. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (fls. 109-115e). Sustenta o recorrente, em preliminar, afronta ao art. 535 do CPC, na medida em que os embargos de declaração objetivavam o esclarecimento acerca dos dispositivos legais infra. No mérito, alega violação aos arts. 16, I, e 77, § 2º, II, ambos da Lei n. 8.213/1991, e 4º e 5º do Decreto-Lei n. 4.657/1942 (LINDB), por considerar indevida a manutenção de pensão por morte a filho maior de 21 anos e não inválido. Aduz, ainda, que “não há lacuna no sistema normativo a permitir a aplicação de quaisquer das formas de integração da norma” (fl. 122e). Por fim, em reforço de sua tese, aponta dissídio jurisprudencial com o REsp n. 639.487RS. Sem contrarrazões (fl. 177e). Embora tenha sido dada vista ao Ministério Público Federal, a Coordenadoria da Primeira Seção certifica que não houve apresentação de parecer (fl. 197e). É o relatório. 90 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO VOTO O Sr. Ministro Arnaldo Esteves Lima (Relator): Narram os autos que o recorrido ajuizou ação ordinária em 14.7.2003, postulando o restabelecimento de seus benefícios de pensão por morte, deferidos em 23.12.1994 e 5.10.2001, respectivamente pelo falecimento de seu pai e de sua mãe, cessados em 9.7.2003 devido ao implemento de seus 21 anos de idade. Sustentou, na exordial, que, por não exercer atividade remunerada, e diante da sua condição de órfão e estudante universitário, faz jus ao benefício até completar seus estudos. Contudo, o pedido foi julgado improcedente, ante a falta a vedação legal prevista no art. 16 da Lei n. 8.213/1991. Em grau de apelação, a sentença foi reformada sob o fundamento de que, embora na lei previdenciária não haja previsão de continuidade do benefício para os não inválidos que completam 21 anos de idade, a decisão deve ser norteada pelo princípio da razoabilidade. E, dessa forma, considerou razoável o limite de 24 anos para a percepção da pensão, de forma a permitir a conclusão do nível superior. Irresignada, a autarquia insurge-se neste recurso especial, defendendo que, em momento algum a Lei n. 8.213/1991 excepciona o estudante universitário para prorrogação da idade máxima fixada para o recebimento de pensão por morte. No tocante à apontada omissão, razão não assiste ao recorrente. Verifica-se que “o Tribunal de origem examinou a questão supostamente omitida de forma criteriosa e percuciente, não havendo falar em provimento jurisdicional faltoso, senão em provimento jurisdicional que desampara a pretensão da embargante” (REsp n. 1.124.595-RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 20.11.2009). No mérito, entretanto, razão assiste ao recorrente. É cediço que a concessão de benefício previdenciário rege-se pela norma vigente ao tempo em que o beneficiário preenchia as condições exigidas para tanto. Na esteira desse raciocínio, a Terceira Seção desta Corte fez editar a Súmula n. 340-STJ, segundo a qual “A lei aplicável à concessão de pensão previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado”. No caso concreto, como visto, o óbito dos instituidores da pensão ocorreu, respectivamente, em 23.12.1994 e 5.10.2001, durante a vigência do inc. I do RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 91 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA art. 16 da Lei n. 8.213/1991, o qual, desde a sua redação original, admite, como dependentes, além do cônjuge ou companheiro (a), os filhos menores de 21 anos, os inválidos ou aqueles que tenham deficiência mental ou intelectual. Impende ressaltar, apenas a título de registro, que, na legislação anterior, a Consolidação das Leis da Previdência Social - CLPS, expedida pelo Decreto n. 89.312/1984, fazia distinção etária, garantindo a condição de dependente da filha, se solteira, até os 21 anos, enquanto ao filho, somente até os 18 anos, excetuada a invalidez. A referida diferenciação foi corrigida a partir do advento da Constituição Federal, que, no § 6º do art. 227, determinou que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Dessa forma, a extinção da relação jurídica previdenciária ocorreu, consoante art. 77, II, da Lei n. 8.213/1991, com a maioridade do recorrido. Nesse sentido, transcrevo o ensinamento de Raimundo Nonato Bezerra Cruz (Pensão por Morte do Direito Positivo Brasileiro, 1ª ed., São Paulo: Livraria Paulista, 2005, p. 133): A perda da qualidade de dependente faz desaparecer o status de beneficiário e, via de conseqüência, perece seu direito a qualquer prestação. Temos, neste caso, a perda da vinculação que coloca o dependente fora da incidência da proteção social inerente aos benefícios. A qualidade jurídica de dependente é condição para integrar a relação jurídica de proteção para fazer jus ao benefício da pensão por morte. Não há falar, portanto, em restabelecimento da pensão por morte ao beneficiário, maior de 21 anos e não inválido diante da taxatividade da lei previdenciária, porquanto não é dado ao Poder Judiciário legislar positivamente, usurpando função do Poder Legislativo. A propósito, confiram-se os precedentes transcritos a seguir: Agravo regimental no agravo de instrumento. Fundamentos insuficientes para reformar a decisão agravada. Análise de ofensa a dispositivos constitucionais. Competência exclusiva do STF. Direito Previdenciário. Pensão por morte. Filho maior de 21 anos. Estudante universitário. Prorrogação do benefício até a idade de 24 anos. Impossibilidade. Ausência de previsão legal. Súmula n. 83 do STJ. 1. O agravante não trouxe argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão agravada, razão que enseja a negativa de provimento ao agravo regimental. 92 Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO 2. A análise de suposta ofensa a dispositivos constitucionais compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, inciso III, da Constituição da República, sendo defeso o seu exame em âmbito de recurso especial. 3. A jurisprudência do STJ pacificou o entendimento de que a pensão por morte rege-se pela lei vigente à época do óbito do segurado. Na hipótese dos autos, o falecimento do pai do agravante ocorreu em 16.2.1997, na vigência da Lei n. 8.213/1991, que prevê em seu artigo 77, § 2º, inciso II, a cessação da pensão por morte ao filho, quando completar 21 anos de idade, salvo se for inválido. 4. A perfeita harmonia entre o acórdão recorrido e a jurisprudência dominante desta Corte Superior impõe a aplicação, à hipótese dos autos, do Enunciado n. 83 da Súmula do STJ. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no Ag n. 1.076.512-BA, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Des. conv. TJ-RS), Sexta Turma, DJe 3.8.2011, grifo nosso) Recurso especial. Previdenciário. Pensão por morte. Lei n. 8.213/1991. Idade limite. 21 anos. Estudante. Curso universitário. A pensão pela morte do pai será devida até o limite de vinte e um anos de idade, salvo se inválido, não se podendo estender até os 24 anos para os estudantes universitários, pois não há amparo legal para tanto. Recurso provido. (REsp n. 639.487-RS, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, DJ 1º.2.2006) Previdenciário e Processual Civil. Ofensa ao art. 535 do CPC. Inexistência. Pensão por morte. Dependente de segurado. Filha maior de 21 anos de idade. Perda da qualidade de beneficiária. Extinção do benefício. Caráter alimentar. Restituição. Impossibilidade. Recurso especial parcialmente provido. 1. O Tribunal a quo, ao analisar os embargos declaratórios do INSS, apreciou todas as questões relevantes para o deslinde da controvérsia. Ademais, não há confundir decisão contrária ao interesse da parte com a falta de pronunciamento do órgão julgador. 2. É cediço que a concessão de benefício previdenciário rege-se pela norma vigente ao tempo em que o beneficiário preenchia as condições exigidas para tanto. Na esteira desse raciocínio, vê-se que o fato gerador para a concessão da pensão por morte é o óbito do segurado, instituidor do benefício. 3. O art. 16 da Lei n. 8.213/1991, em sua redação original, não admite, como beneficiários, na condição de dependentes de segurado, indivíduos maiores de 21 anos e menores de 60 anos, exceto se comprovadamente inválidos. 4. Não há falar, portanto, em restabelecimento da pensão por morte à beneficiária, maior de 21 anos e não-inválida, uma vez que, diante da taxatividade RSTJ, a. 25, (232): 45-94, outubro/dezembro 2013 93 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA do diploma legal citado, não é dado ao Poder Judiciário legislar positivamente, usurpando função do Parlamento. 5. A Terceira Seção desta Corte, no âmbito da Quinta e da Sexta Turma, firmou entendimento no sentido da impossibilidade da devolução, em razão do caráter alimentar dos proventos percebidos a título de benefício previdenciário. Aplicase, in casu, o princípio da irrepetibilidade dos alimentos. 6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido. (REsp n. 771.993-RS, de minha relatoria, Quinta Turma, DJ 23.10.2006) Registro, ademais, que a pretensão de extensão da pensão devida a dependente de servidor público, de igual modo, já foi afastada na Corte Especial pelos mesmos fundamentos, verbis: Administrativo. Mandado de segurança. Pensão temporária por morte da genitora. Termo final. Prorrogação. Ausência de previsão legal. 1. A Lei n. 8.112/1990 prevê, de forma taxativa, quem são os beneficiários da pensão temporária por morte de servidor público civil, não reconhecendo o benefício a dependente maior de 21 anos, salvo no caso de invalidez. Assim, a ausência de previsão normativa, aliada à jurisprudência em sentido contrário, levam à ausência de direito líquido e certo a amparar a pretensão do impetrante, estudante universitário, de estender a concessão do benefício até 24 anos. Precedentes: (v.g., REsp n. 639.487-RS, 5ª T., Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 1º.2.2006; RMS n. 10.261-DF, 5ª T., Min. Felix Fischer, DJ 10.4.2000). 2. Segurança denegada. (MS n. 12.982-DF, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 31.3.2008) Ante o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para julgar improcedente o pedido inicial do autor. Deixo de condená-lo nos ônus de sucumbência em razão de ser beneficiário da assistência judiciária gratuita (fl. 18e). Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do Código de Processo Civil. É o voto. 94 Primeira Turma RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 36.422-MT (2011/0267646-2) Relator: Ministro Sérgio Kukina Recorrente: Gabriel Cardim Pazim Advogado: Márcia Niederle e outro(s) Recorrido: Estado de Mato Grosso Procurador: Ana Cristina Costa de Almeida B Teixeira e outro(s) EMENTA Administrativo. Concurso público para formação de oficiais. Idade mínima. Regra editalícia. Interpretação. Violação de princípios. Nulidade. Recurso provido. 1. A menos de dez dias de completar dezoito anos e já emancipado, o recorrente foi eliminado do concurso para oficial da polícia militar, com fundamento em cláusula do edital, porque não apresentava, na data de publicação, a idade mínima requerida no instrumento convocatório. 2. A Lei n. 9.784/1999, que esta Corte tem entendido aplicar-se aos Estados, como o Mato Grosso, que não dispõem de lei própria para disciplinar o processo administrativo, delineia, no seu artigo 2º, princípios a serem observados quando da execução dos procedimentos. Portanto, a atividade administrativa deve pautar-se, dentre outros, pelos princípios da razoabilidade, assim entendido como adequação entre meios e fins, e do interesse público, como vetor de orientação na interpretação de qualquer norma administrativa, inclusive editais. 3. No caso ora examinado, o simples cotejo entre a norma legal inserta no texto do art. 11 da Lei Complementar Estadual n. 231/2005 e o instrumento convocatório é bastante para afirmar que a restrição editalícia – dezoito anos na data da matrícula no curso de formação – decorreu de mera interpretação da Lei, que limitou a idade para ingresso na carreira militar. Em outras palavras, o que a lei dispôs como ingresso na carreira, foi interpretado pelo edital como data da matrícula no curso de formação. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 4. Essa interpretação foi aplicada com tal rigor no caso concreto que, a pretexto de cumprir a lei, terminou por ferí-la, porque: (a) desconsiderou a adequação entre meios e fins; (b) impôs uma restrição em medida superior àquela estritamente necessária ao atendimento do interesse público e, também por isso, (c) não interpretou a lei da forma que melhor garantisse o atendimento do fim público a que se dirige. 5. O ato administrativo de exclusão do impetrante, no contexto em que foi produzido, violou o disposto no art. 2º, parágrafo único, incisos VI e XIII da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e, em consequência, feriu direito líquido e certo do impetrante. 6. Recurso provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ari Pargendler, Arnaldo Esteves Lima e Benedito Gonçalves votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro Sérgio Kukina, Relator DJe 4.6.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sérgio Kukina: Cuida-se, na origem, de mandado de segurança impetrado por Gabriel Cardim Pazim, apontando como autoridade coatora o Comandante Geral da Polícia Militar de Mato Grosso, a quem imputa, como ato coator, a exclusão do impetrante do rol dos candidatos convocados para o curso de formação de oficiais policiais militares daquele estado. A exclusão combatida teria se dado porque o edital de convocação para ingresso no curso foi publicado no dia 10 de março de 2011, nove dias antes do décimo oitavo aniversário do impetrante, que se deu em 19 de março 98 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA daquele ano. Daí, por não ter dezoito anos completos no dia da convocação para o programa de formação, foi o impetrante eliminado, com fundamento em cláusula restritiva do edital. O Tribunal de origem, por decisão unânime, denegou a segurança, pelos fundamentos do acórdão que recebeu a seguinte ementa: Mandado de segurança. Administrativo. Concurso público. Ingresso na carreira policial militar. Fixação de limite de idade. Possibilidade. Segurança denegada. É perfeitamente admissível dispor em edital sobre os limites de idade para o ingresso no quadro das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiro Militar, se há previsão em lei, sem que isso configure afronta a preceitos constitucionais. O recorrente, nas razões do recurso ordinário, sustenta que a decisão administrativa atacada não se mostra razoável e tampouco atende aos princípios que regem a Administração Pública, mormente porque já havia antecipado sua emancipação e tratava-se de inscrição em curso de formação, não de posse em cargo público. Acrescenta que, em hipótese análoga (MS n. 34.547/2011), o mesmo Tribunal de Justiça concedeu a segurança ao fundamento de que “nos termos da Lei Complementar n. 231/2005, o Curso de Formação de Oficiais é fase do certame e, desse modo, a exigência de idade mínima deve ser na data da posse, ou seja, no final do curso” (fl. 183). O Estado do Mato Grosso apresentou contrarrazões ao recurso (fls. 228 a 239), nas quais defende a manutenção do acórdão recorrido, reafirmando a legalidade do limite mínimo de idade para ingresso na carreira militar. O Ministério Público Federal, pelo parecer de fls. 267 a 271, manifestou-se pelo não conhecimento do recurso mas, se conhecido, pelo desprovimento. Na última manifestação nos autos, protocolizada em 8 de maio de 2012, o recorrente informou que, amparado em medida liminar, “já concluiu, com louvor, o 1º ano do Curso de Formação e desde a data de 3.2.2012 se encontra matriculado no 2º ano do referido Curso, conforme Ata de Matrícula que vai junto” (fl. 280). Requer, assim, a concessão da segurança para “garantir a matrícula no Curso de Formação de Oficiais de que trata o Edital n. 001 DGP-PMMT/ DEIP-CBMT/2010, com os corolários em direito” (fl. 193). É o relatório. RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 99 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO O Sr. Ministro Sérgio Kukina (Relator): Consta dos autos que Gabriel Cardim Pazim inscreveu-se no concurso público para ingresso na carreira dos oficiais da Polícia Militar do Estado do Mato Grosso, regido pelo Edital n. 001 DGP-PMMT/DEIP-CBMT/2010 que, dentre outras, trouxe as seguintes exigências: 25.1.1 São requisitos para ingresso nas carreiras militares: I - ser brasileiro; II - estar, no mínimo, com 18 (dezoito) anos na data da matrícula do curso de formação (6ª fase) e, no máximo, com 25 (vinte e cinco) anos no ato da inscrição para o concurso vestibular, de acordo com o Art. 11, II, da Lei Complementar n. 231, de 15 de dezembro de 2005; III - possuir ilibada conduta pública e privada; IV - estar quite com as obrigações eleitorais e militares; V - não ter sofrido condenação criminal com pena privativa da liberdade ou qualquer condenação incompatível com a função militar; VI - não ter sido isentado do serviço militar por incapacidade física definitiva; VII - obter a aprovação nos exames médicos, físicos, psicológicos e intelectual exigidos para a inclusão, nomeação ou matrícula; VIII - ser considerado aprovado em sindicância sobre sua vida pregressa, onde lhe será exigida a apresentação de toda documentação necessária, a fim de que comprove o não impedimento para o ingresso na corporação; IX - possuir, no mínimo, ensino médio completo. O art. 11, inciso II, da Lei Complementar n. 231/2005, referido na cláusula editalícia, dispõe: Art. 11 São requisitos para ingresso nas carreiras militares: I - ser brasileiro; II - estar, no mínimo, com 18 (dezoito) e, no máximo, com 30 (trinta) anos; III - possuir ilibada conduta pública e privada; IV - estar quite com as obrigações eleitorais e militares; V - não ter sofrido condenação criminal com pena privativa da liberdade ou qualquer condenação incompatível com a função militar; VI - não ter sido isentado do serviço militar por incapacidade física definitiva; VII - obter a aprovação nos exames médicos, físicos, psicológicos e intelectual, exigidos para a inclusão, nomeação ou matrícula; 100 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA VIII - ser considerado aprovado em sindicância sobre sua vida pregressa, onde lhe será exigida a apresentação de toda documentação necessária, a fim de que comprove o não impedimento para o ingresso na corporação; IX - possuir, no mínimo, ensino médio completo. A norma acima apresenta-se com a redação dada pela Lei Complementar n. 366/2009. A redação original limitava aos vinte cinco anos a idade máxima para ingresso. A alteração legislativa, portanto, é irrelevante para o deslinde da presente controvérsia. O autos trazem também, às fls. 18 a 20, a emancipação do recorrente, registrada aos 4 de março de 2011. Eis, então, o resumo do quadro fático: em 10 de março de 2011, a menos de dez dias de completar dezoito anos e já emancipado, o recorrente foi eliminado do concurso para oficial da polícia militar, com fundamento na cláusula 25.1.1 do Edital n. 01/2010, porque não apresentava, na data de publicação do edital complementar, a idade mínima requerida no instrumento convocatório. Mesmo assim e por força de liminar, matriculou-se no curso e tem obtido, desde então, bom desempenho. Essa a razão de sua irresignação, que, segundo penso, merece ser acolhida porque o ato administrativo impugnado fere princípios cuja observância é imposta à Administração. Explico. A peça exordial apontou, em essência, dois fundamentos, verbis: Não se mostra razoável e nem atende aos demais princípios que regem a Administração Pública que se negue assento no Curso de Formação de Oficiais ao candidato que vai atingir 18 anos na semana seguinte ao ato de convocação. Ademais do fato de o requerente completar 18 anos no final dessa semana (19.3.2011), cabe anotar também que já prevenindo a possibilidade da ocorrência de eventual óbice na convocação o requerente providenciou a sua emancipação, conforme consta da Escritura Pública de Emancipação. Lavrada no Cartório do 2º Oficio de Santo Antônio de Leverger Livro n. 92. Folhas 144. inserida no Registro de Emancipação n. 119. Livro n. E-02 Folhas 117. Portanto, ainda que se pudesse aplicar pura e simplesmente a letra fria do edital e afastar o candidato aprovado que completa 18 anos em 19.3.2011, a controvérsia se encontraria solucionada pela emancipação lograda justamente com a finalidade de transpor o entrave editalício. (destaquei) RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 101 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA No contexto dos autos, o acolhimento de qualquer dessas razões é suficiente para conceder a segurança. Examina-se, assim, a violação de princípios. A Lei n. 9.784/1999, que esta Corte tem entendido aplicar-se aos Estados, como o Mato Grosso, que não dispõem de lei própria para disciplinar o processo administrativo, delineia, no seu artigo 2º, princípios a serem observados quando da execução dos procedimentos. Da referida norma colhe-se: Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: [...] VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público; [...] XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação. (destaquei). Portanto, por força de expressa disposição legal, a atividade administrativa deve pautar-se, dentre outros, pelos princípios da razoabilidade, assim entendido como adequação entre meios e fins, e do interesse público, como vetor de orientação na interpretação de qualquer norma administrativa, inclusive editais. No caso ora examinado, o simples cotejo entre a norma legal inserta no texto do art. 11 da Lei Complementar Estadual n. 231/2005 e o instrumento convocatório, ambos acima transcritos, é bastante para afirmar que a restrição editalícia – dezoito anos na data da matrícula no curso de formação – decorreu de mera interpretação da Lei, que limitou a idade para ingresso na carreira militar. Em outras palavras, o que a lei dispôs como ingresso na carreira, foi interpretado pelo edital como data da matrícula no curso de formação. Essa interpretação – que em outro contexto poderia ser tida como lícita – foi aplicada com tal rigor no caso concreto que, a pretexto de cumprir a lei, terminou por ferí-la. Isso porque: (a) desconsiderou a adequação entre meios (idade mínima) e fins (posto que a limitação se explica pela maioridade penal, 102 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA já suprida pelo transcurso temporal quando do início do curso de formação); (b) impôs uma restrição em medida superior àquela estritamente necessária ao atendimento do interesse público, pois em nada interessa à sociedade ver um jovem, em tese capacitado porque aprovado em várias etapas de um concurso público extremamente restritivo, ser impedido de ingressar nas fileiras da polícia militar por conta de literal aplicação de uma norma editalícia de questionável legalidade e, também por isso; (c) não interpretou a lei da forma que melhor garantisse o atendimento do fim público a que se dirige. Eis porque, no meu sentir, o ato administrativo de exclusão do impetrante, no contexto em que foi produzido, violou o disposto no art. 2º, parágrafo único, incisos VI e XIII da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e, em consequência, feriu direito líquido e certo do impetrante. Diante do que se expôs, dou provimento ao presente recurso ordinário para, cassando o acórdão recorrido, conceder a segurança, anular o ato administrativo de exclusão do concurso e tornar definitiva a tutela inicialmente concedida na origem, de sorte a confirmar a matrícula do impetrante no Curso de Formação de Oficiais de que trata o Edital n. 01 DGP-PMMT/DEIT-CBMT/2010. Custas pelo órgão a que pertence a autoridade coatora. É como voto. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 43.273-MG (2013/0220620-0) Relator: Ministro Benedito Gonçalves Recorrente: Neiva Martins e outros Advogado: Humberto Lucchesi de Carvalho Recorrido: Estado de Minas Gerais Procurador: Valmir Peixoto Costa e outro(s) EMENTA Administrativo e Processual Civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Divulgação da remuneração dos magistrados RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 103 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA e servidores, vinculando-as a seus nomes. Determinação do Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Resolução n. 151/2012. Ilegitimidade do Presidente do Tribunal de Justiça para figurar como autoridade coatora. 1. Mandado de segurança impetrado contra ato do Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que, em cumprimento ao que foi estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução n. 151/2012, determinou a divulgação de informações referentes à remuneração dos magistrados e servidores do Tribunal, vinculando-as aos seus nomes. 2. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que o Presidente do Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora, quando mero executor de decisão do Conselho Nacional de justiça. A respeito, dentre outros: RMS n. 30.561-GO, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 20.9.2012; RMS n. 33.468MS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 23.4.2012; RMS n. 30.314-MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 1º.12.2011. 3. Recurso ordinário não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Ari Pargendler, Arnaldo Esteves Lima e Napoleão Nunes Maia Filho (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 19 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Benedito Gonçalves, Relator DJe 27.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de recurso ordinário interposto por Neiva Martins, Márcia Helena da Silva, Rosalva Imaculada 104 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA Gomes, Filomena Corrêa de Oliveira Silveira, José Márcio de Resende, Rogério Resende de Oliveira, Rogério Fernandes Coelho, Jacqueline Ribeiro Von Atzingen, Débora Lúcia de Souza Oliveira e José Gumercindo de Oliveira contra acórdão proferido pelo TJ-MG, cuja ementa é a seguinte: Agravo regimental. Argumentos insubsistentes. Decisão monocrática que se mantém. Não há como prover o agravo regimental se insubsistentes os argumentos expendidos pela parte e, ademais, porque se encontra esta devidamente fundamentada e amparada pela legislação que rege a espécie. Os recorrentes alegam que o acórdão recorrido não procedeu à correta interpretação do art. 6º, § 3º, da Lei n. 12.016/2009, porquanto, ao se insurgirem contra a Portaria TJ-MG n. 2.771/2012, o Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais têm legitimidade para constar como autoridade coatora no mandamus. Defende-se ser inconstitucional a determinação de divulgação de informações a respeito da remuneração dos magistrados e servidores do Poder Judiciário, que, no caso, vincula o nome completo do agente público a sua remuneração bruta. Contrarrazões do Estado de Minas Geras às fls. 165 e seguintes, nas quais se suscita que, “em situações similares, que envolviam a mera execução de atos cujo conteúdo provinha do Conselho Nacional de Justiça, este colendo Superior Tribunal de Justiça já sufragou a tese de ilegitimidade passiva do Presidente do Tribunal de Justiça estadual” (fl. 168), “admitir viável a tese da legitimidade passiva da autoridade nomeada coatora levaria ao absurdo de se proclamar que o Presidente do Tribunal de Justiça tem competência para alterar ou suplantar disposições da citada Resolução n. 151/2012 do Conselho Nacional de Justiça, hipótese essa que a toda evidência se mostra insubsistente” (fl. 170). O Ministério Público Federal opina pelo não provimento do recurso, por considerar que o Presidente do Tribunal de Justiça é mero executor material da Resolução n. 151 do CNJ. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Os recorrentes impetraram mandado de segurança contra ato do Presidente do Tribunal de Justiça de Minas RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 105 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Gerais, que, em cumprimento ao que foi estabelecido pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução n. 151/2012, determinou a divulgação de informações referentes à remuneração dos magistrados e servidores do Tribunal, vinculando-as aos seus nomes. Na petição inicial, indicam como ato coator a Resolução CNJ n. 151/2012 e a Portaria n. 2.771/2012, indicando o Presidente do Tribunal de Justiça como autoridade coatora, em razão de o executor da medida. Pretendem que as informações disponibilizadas não vinculem o nome do agente público à remuneração, ao argumento de que violados os direitos à intimidade, à privacidade e à segurança. Do que se observa, a pretensão não merece prosperar. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que o Presidente do Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora, quando mero executor de decisão do Conselho Nacional de justiça. Nesse sentido, dentre outros: Processual Civil. Recurso em mandado de segurança. Autoridade apontada como coatora. Mera executora de decisão proferida pelo Conselho Nacional de Justiça. Ilegitimidade passiva. Recurso ordinário a que se nega provimento (RMS n. 30.561-GO, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 20.9.2012). Processual Civil. Associação. Direitos individuais e conflitantes dos associados. Ilegitimidade ativa. Autoridade coatora. Cumprimento de determinação do CNJ. Ilegitimidade passiva. 1. Controverte-se quanto a medidas adotadas para atender à Resolução n. 80 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que contrariaria o disposto no art. 16 da Lei n. 8.935/1994, no que respeita à ordem a ser observada no preenchimento das serventias. 2. Não há legitimidade ou interesse jurídico do ocupante da serventia a título precário, já que, aberto certame para ambas as espécies - ingresso e remoção -, acha-se em vias de perder sua titularidade qualquer que seja o resultado do mandamus. Restar-lhe-ia mero interesse econômico de protelar a realização do certame, incompatível com o princípio constitucional que estabelece a prévia aprovação em concurso público como forma regular de provimento de cargo e emprego público (art. 37, II, da Constituição Federal). 3. Tratando-se de concurso para ingresso e remoção nas serventias extrajudiciais, existem interesses meramente particulares e, até mesmo, 106 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA conflitantes, dos associados, o que inviabiliza a tutela coletiva do direito pela entidade representante da categoria. 4. Ademais, ainda que assim não fosse, a própria legitimidade das autoridades apontadas como coatoras também não parece existir, uma vez que a jurisprudência desta Corte tem reconhecido que o “ato normativo de Tribunal de Justiça que se destina a cumprir determinação advinda de decisão do CNJ representa simples execução administrativa, o que acarreta a ilegitimidade do Presidente do Tribunal para figurar no polo passivo de mandado de segurança” (RMS n. 29.719-GO, de minha relatoria, DJe 26.2.2010). 5. Recurso ordinário não provido (RMS n. 33.468-MS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 23.4.2012). Administrativo. Processual Civil. Auxílio moradia para magistrados. Suspensão para todos por determinação do Conselho Nacional de Justiça. Retomada do pagamento a partir do exame de cada caso concreto. Juízes casados entre si. Deferimento apenas ao cônjuge mais antigo na magistratura. Aplicação subsidiária do art. 5º, inciso VI, da Portaria n. 251/08 do CNJ. Presidente do Tribunal de Justiça. Legitimidade passiva ad causam. Reconhecida. 1. A autoridade coatora é o agente que, no exercício de atribuições do Poder Público, é responsável pela prática do ato impugnado, contra quem se deve impetrar a ação mandamental. 2. O Presidente de Tribunal de Justiça não pode ser apontado como autoridade coatora em mandado de segurança, quando o ato impugnado é oriundo do cumprimento de determinação do Conselho Nacional de Justiça, mas, na hipótese, há legitimação para compor o pólo passivo da lide, na medida em que os atos contra os quais se dirige a pretensão não foram levados a efeito como corolário direto de comando emanado do CNJ. 3. Recurso ordinário em mandado de segurança conhecido e provido (RMS n. 30.314-MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 1º.12.2011). Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.196.451-MG (2010/0099047-4) Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho Recorrente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais Recorrido: Maria Lúcia Silveira Junqueira e outro RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 107 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Advogado: Márcio Inácio Franco e outro(s) Interessado: Município de Congonhal Advogado: Denilson Marcondes Venâncio e outro(s) EMENTA Administrativo. Improbidade administrativa. Ofensa ao art. 508 do CPC não configurada. Desnecessidade de ratificação dos embargos infringentes após o julgamento dos declaratórios, quando não há modificação do acórdão recorrido. Inovação da causa de pedir em sede de alegações finais. Violação ao art. 264 do CPC configurada. Art. 509 do CPC. Efeito expansivo do recurso. Ainda que inexista litisconsórcio unitário. 1. Em homenagem aos princípios da instrumentalidade da forma e celeridade processual, desnecessária a ratificação dos Embargos Infringentes opostos contra acórdão proferido em sede de apelação após o julgamento de Aclaratórios, quando não houve modificação do acórdão recorrido. 2. Na hipótese dos autos, o Ministério Público, na exordial, limitouse a requerer a condenação das rés, enquadrando-as no art. 9º da Lei n. 8.429/1992, porque haveria auferido vantagem patrimonial indevida; em alegações finais, após concluir que as provas colhidas não seriam suficientes para comprovar o enriquecimento ilícito, o requerimento do Parquet para condenação das acusadas nas sanções descritas nos incisos II e III do art. 12 da Lei n. 8.429/1992, que correspondem às condutas tipificadas nos arts. 10 e 11 da mesma Lei, modifica a causa de pedir, violando o art. 264 do Diploma Processual Civil. 3. Correto o entendimento do Tribunal a quo, no julgamento dos Embargos Infringentes, pela impossibilidade de modificação da causa de pedir em alegações finais. Eventual condenação com base em dispositivo legal diverso do indicado na inicial violaria os princípios da ampla defesa e contraditório, uma vez que as rés se defenderam das acusações descritas na peça vestibular. 4. Ainda que não haja litisconsórcio passivo unitário, há o efeito expansivo subjetivo do recurso interposto por um dos litisconsortes, quando a defesa deles for comum. 5. Nega-se provimento ao Recurso Especial. 108 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ari Pargendler. Brasília (DF), 13 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator DJe 30.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Cuida-se de Recurso Especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, com fundamento na alínea a inciso III do art. 105 da Constituição Federal, em adversidade ao acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais proferido em sede de Embargos Infringentes, ementado nos seguintes termos: Embargos infringentes. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Alteração do pedido formulado na petição inicial. Impossibilidade. Não comprovação do enriquecimento ilícito. Pretensão improcedente (fls. 2.096). 2. Nas razões do Apelo Nobre, alegou o recorrente violação aos arts. 508 do CPC; 264 do CPC; 509 do CPC, sob os seguintes fundamentos: (a) os Embargos Infringentes interpostos pela requerida encontram-se intempestivos, pois não foram ratificados após o julgamento dos Aclaratórios; (b) não infringe o princípio da congruência a decisão judicial que enquadra o ato de improbidade em dispositivo diverso do indicado na inicial; (c) o acolhimento dos Embargos Infringentes interpostos por uma das rés não poderia atingir a outra, que não recorreu. 3. Não foram apresentadas contrarrazões, conforme certidão de fls. 2.180. 4. Parecer de lavra do douto Subprocurador-Geral da República, Moacir Guimarães Morais Filho, opinando pelo provimento do Recurso Especial, a fim RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 109 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de anular os acórdãos proferidos nos Embargos Infringentes, para que a Turma julgadora prossiga na análise das condutas das rés, à luz do disposto nos arts. 10 e 11, VI da Lei n. 8.429/1992 (fls. 2.198-2.202). 5. É o breve relatório. VOTO O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Cuida-se, na origem, de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público em face de Maria Lúcia Silveira Junqueira, ex-prefeita do Município de Congonhal, e Ceila Maria de Souza Mariano, ex-secretária de saúde do mesmo Município. Narrou o Parquet na inicial que entre o período de janeiro de 1997 a julho de 1999, as rés, agindo em conluio e de forma continuada, desviaram e se apropriaram da importância de R$ 15.646,60, destinada pelo SUS aos pacientes inscritos no Programa de Tratamento Fora do Domicílio. 2. O douto Julgador singular julgou improcedentes os pedidos, ao fundamento de que não haveria restado provado que as requeridas utilizaram dos valores em proveito próprio. Insurgindo-se contra a sentença, o Ministério Público e o Município de Congonhal interpuseram recurso de Apelação, em cujo julgamento a Turma, por maioria, reformou a sentença para reconhecer a prática de improbidade administrativa e, por voto médio, condenar as acusadas ao ressarcimento do dano. 3. Em seguida, a ré Maria Lúcia Silveira Junqueira, com o fim de fazer prevalecer o voto minoritário, interpôs Embargos Infringentes, os quais foram acolhidos, nos termos a seguir ementado: Embargos infringentes. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Alteração do pedido formulado na petição inicial. Impossibilidade. Não comprovação do enriquecimento ilícito. Pretensão improcedente (fls. 2.096). 4. Inicialmente, acerca da alegação de intempestividade dos Embargos Infringentes opostos por Maria Lúcia Silveira Junqueira, sob o argumento de que não haveriam sido ratificados após o julgamento dos Aclaratórios, constatase inexistir a suposta ofensa ao art. 508 do CPC. 5. Em homenagem aos princípios da instrumentalidade das formas e celeridade do processo, entende-se desnecessária a ratificação dos Embargos Infringentes opostos contra acórdão proferido em sede de Apelação, antes do 110 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA julgamento de Embargos Declaratórios, quando o julgamento dos Aclaratórios não resultou em modificação do acórdão recorrido. 6. In casu, os Embargos de Declaração foram acolhidos somente para sanar o erro material do acórdão, referente ao nome do advogado que proferiu a sustentação oral, mantendo-se inalterada a decisão no restante. Exigir a ratificação dos Embargos Infringentes após o julgamento dos Declaratórios, quando este nem nada modificou o julgado recorrido, seria prestigiar o o excesso de apego ao formalismo, o que não se coaduna com os princípios que regem o processo moderno. Nesse sentido, já se pronunciou este Superior Tribunal de Justiça, confiram-se os precedentes: Processual Civil. Agravo regimental. Embargos infringentes interpostos antes do julgamento dos embargos de declaração. Desnecessidade de ratificação. Princípio da instrumentalidade das formas. Concurso público. Limitação de idade. A imposição de limite etário em concurso público para as Forças Armadas depende de lei em sentido formal. Impossibilidade de estipulação de critério restritivo mediante edital ou regulamento. Precedentes do STJ. Orientação confirmada pelo STF no regime de repercussão geral. RE n. 600.885-RS. Declarada a não recepção do art. 10 da Lei n. 6.880/1980. Modulação temporal de efeitos. Ressalva da eficácia subjetiva. (...). 3. Preliminarmente, quanto à necessidade de ratificação dos Embargos Infringentes interpostos antes do julgamento dos Embargos de Declaração, sem posterior ratificação, aplica-se, por analogia, o entendimento de que “não se faz impositiva a interposição de novo recurso especial após o julgamento dos embargos de declaração, somente sendo necessária nova interposição quando os embargos declaratórios impliquem na modificação do julgado recorrido, alterando as premissas atacadas no apelo nobre, o que inocorreu no caso” (AgRg no REsp n. 789.341-RJ, Rel. Ministro Francisco Falcão, DJ 6.3.2006). Precedentes: EDcl no REsp n. 323.173-RS, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, DJ 28.10.2002; AgRg no REsp n. 474.513-RJ, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, DJ 9.6.2003; AgRg no Ag n. 757.130-SC, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, DJ 22.6.2006. (...). 10. Dou provimento aos Agravos Regimentais para reconhecer a invalidade da limitação etária imposta pelo regulamento, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no RE n. 600.885-RS (AgRg no AREsp n. 165.640-CE, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 11.9.2012) Processual Civil e Tributário. Embargos de declaração. Acórdão proferido em embargos de declaração que dirimiu divergência em voto proferido por maioria. RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 111 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Interposição de recurso especial. Fundamentos impugnados. Desnecessidade de ratificação das razões do recurso especial. IPI. Isenção e alíquota zero. Princípio da não-cumulatividade. 1. O recurso especial interposto antes do julgamento dos embargos de declaração opostos pela parte contrária está sujeito à pena de não conhecimento se não impugnar os fundamentos do acórdão recorrido. Portanto, devidamente impugnados os argumentos tecidos na instância a quo, torna-se desnecessária a ratificação das razões do recurso especial, em respeito ao princípio da economia processual. (...) 6. Embargos de declaração da Fazenda providos, prestando-lhes efeitos infringentes, desprovidos os embargos opostos pela empresa (EDcl no AgRg no Ag n. 459.472-SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 4.4.2005, p. 169). Embargos declaratórios. Omissão. Desnecessidade de ratificação do recurso especial. - Inexistência de omissão. - Exigência descabida de ratificação do recurso especial após o julgamento dos embargos de declaração opostos pela parte contrária. Excessivo apego à forma, que contraria os princípios da celeridade processual e da instrumentalidade das formas. Embargos rejeitados (EDcl no REsp n. 323.173-RS, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ 28.10.2002, p. 323). Agravo regimental. Recurso especial. Oposição de embargos. Ratificação das razões do recurso. Princípio da instrumentalidade das formas. 1. Dispensável a ratificação das razões do recurso especial quando este foi interposto dentro do prazo de interrupção ocasionado pela oposição de embargos de declaração da parte contrária. 2. Excesso de rigor formal que não se coaduna com o objetivo do direito processual moderno, em homenagem ao princípio da instrumentalidade das formas. (art. 244, do Código de Processo Civil). 3. Agravo regimental improvido (AgRg no REsp n. 474.513-RJ, Rel. Min. José Delgado, DJ 9.6.2003, p. 183). Processual Civil. Recurso especial interposto antes do julgamento dos embargos declaratórios. Desnecessidade de ratificação quando impugnados os fundamentos do acórdão recorrido. I - Não se faz impositiva a interposição de novo recurso especial após o julgamento dos embargos de declaração, somente sendo necessária nova interposição quando os embargos declaratórios impliquem na modificação do julgado recorrido, alterando as premissas atacadas no apelo nobre, o que 112 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA inocorreu no caso. Precedentes: EDcl no AgRg no Ag n. 459.472-SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 4.4.2005 e EDcl no REsp n. 323.173-RS, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ de 28.10.2002. II - O julgamento dos embargos de declaração em nada influenciou a matéria tratada no apelo nobre, eis que aquele decidiu somente acerca dos limites impostos à compensação pelas Leis n. 9.032/1995 e 9.129/1995 e o recurso especial sustentava a impossibilidade da efetivação de compensação de tributos por meio de liminar em mandado de segurança, ou em ação cautelar, ou, ainda, via antecipação de tutela, tendo em vista o caráter satisfativo do provimento. III - Agravo regimental improvido (AgRg no REsp n. 789.341-RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 6.3.2006, p. 237). 7. No tocante ao art. 264 do CPC, correta se mostra sua aplicação pelo Tribunal a quo, que acolheu os Embargos Infringentes para fazer prevalecer o voto minoritário do ilustre Desembargador Moreira Diniz, cujo trecho transcrevo a seguir: Da leitura da petição inicial, verifica-se que o Ministério Público requereu a condenação das requeridas, no que couber, nas sanções do art. 12, I, da Lei n. 8.429/1992 (fl. 10). O referido dispositivo refere-se às sanções aplicadas aos agentes públicos, quando verificada a hipótese de enriquecimento ilícito (art. 9º). Dessa forma, o Ministério Público limitou-se a requerer a condenação das rés, porque auferiram vantagem patrimonial indevida. No decorrer da lide, o órgão Ministerial concluiu que não havia documentação suficiente para comprovar o enriquecimento ilícito, e, em alegações finais, requereu a condenação das rés nos termos do artigo 12, II e III, da Lei n. 8.429/1992 (fl. 1.647). Constata-se que houve alteração da causa de pedir, violando o disposto no artigo 264 do Código de Processo Civil. Nesse ponto, ressalto que não há como falar em subsunção da norma de menor gravidade na de maior gravidade. As condutas descritas nos artigos 9º, 10 e 11, da Lei n. 8.429/1992, são distintas e as condenações também; portanto, se o Ministério Público pretendia que as requeridas fossem condenadas nos termos do artigo 12, II e III, deveria ter formulado pedido nesse sentido na petição inicial. Na verdade, as rés se defenderam da acusação que lhes foi imputada pelo Ministério Público, ou seja, enriquecimento ilícito (artigo 12, I), não havendo defesa quanto às demais modalidades de improbidade, porque não foram acusadas, na petição inicial, de tais práticas. Dessa forma, a alteração posterior do pedido representa violação do principio da ampla defesa e do contraditório (fls. 1.999). RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 113 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 8. Na hipótese dos autos, o Ministério Público, na exordial, limitou-se a requerer a condenação das rés, enquadrando-as no art. 9º da Lei n. 8.429/1992, porque haveriam auferido vantagem patrimonial indevida. 9. No decorrer da instrução, após concluir que as provas carreadas aos autos não seriam suficientes para comprovar o enriquecimento ilícito das requeridas, pleiteou o órgão Ministerial, em alegações finais, a condenação das acusadas nas sanções descritas nos incisos II e III do art. 12 da Lei n. 8.429/1992, as quais correspondem às condutas tipificadas nos arts. 10 e 11 da mesma Lei, alterando, dessa forma, a causa de pedir, e incorrendo, consequentemente, em ofensa ao art. 264 do Diploma Processual Civil. Sobre o aludido dispositivo leciona respeitável doutrina de NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY: Feita a citação, nos termos do CPC 264, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas em lei. Da citação decorre a estabilização do processo, não sendo, dessa forma, permitida a alteração das partes litigantes, salvo nos casos expressamente permitidos em lei (Código de Processo Civil comentado e Legislação Extravagante, São Paulo, RT, 2013, p. 603). 10. Com efeito, constata-se que eventual condenação com base em dispositivo legal diverso do indicado na inicial violaria os princípios da ampla defesa e contraditório, uma vez que as rés se defenderam das acusações e condutas imputadas na exordial. 11. Ademais, em que pese as condutas descritas nos arts. 10 e 11 da Lei de Improbidade possuírem sanções mais brandas que as do art. 9º da mesma Lei, percebe-se que os requisitos caracterizadores dos tipos citados são diferentes. O art. 9º tipifica os atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito; enquanto os arts. 10 e 11 tratam, respectivamente, dos atos de improbidade que causam prejuízo ao erário e dos que atentam contra os princípios da administração pública. 12. Segundo as lições de MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS, para que reste tipificada conduta descrita no art. 9º, deverão estar presentes os seguintes requisitos: dolo do agente público ou de terceiro; vantagem patrimonial oriunda de um comportamento ilegal do agente público ou de terceiro; nexo de causalidade entre a ilicitude da vantagem obtida e o exercício funcional do agente 114 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA público ou de terceiro (O Limite da Improbidade Administrativa, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 182). No que tange aos requisitos das condutas descritas nos arts. 10, ressalta o mencionado autor: a conduta do agente público, ainda que seja omissa, dolosa ou culposa, deverá acarretar prejuízo para o erário, causando-lhe lesão (op. cit., p. 264). Já quanto ao art. 11 da mesma Lei, os requisitos caracterizadores consistem em: ação ou omissão do agente público que viole os princípios éticos (constitucionais) da Administração; comportamento funcional devasso, desonesto, de má-fé, caracterizado por ato ilícito ou ilegal; dolo, caracterizado pela manifesta vontade omissiva ou comissiva de violar princípio constitucional regulador da Administração Pública (op. cit., p. 376-377). 13. Diante desse panorama, constata-se correta a aplicação do art. 264 pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em sede de Embargos Infringentes, pela impossibilidade de alteração da causa de pedir em alegações finais, inexistindo ofensa ao aludido dispositivo federal. 14. Em relação à suposta violação ao art. 509 do CPC, ao argumento de que o recurso interposto por uma das rés não poderia estender seus efeitos para a outra, por não se tratar de hipótese de litisconsórcio passivo unitário, necessário tecer algumas considerações. Apesar de o caput do art. 509 do CPC se aplicar, em tese, somente aos casos de litisconsórcio unitário, vejamos o que dispõe o seu parág. único, in verbis: Havendo solidariedade passiva, o recurso interposto por um devedor aproveitará aos outros, quando as defesas opostas ao credor lhes forem comuns. 15. Desse modo, ainda que não se trate de litisconsórcio unitário, constatase que as defesas e interesses das requeridas são comuns, razão pela qual o recurso interposto por uma delas, aproveita a outra. Trata-se do efeito expansivo subjetivo do recurso, sobre o qual comenta NELSON NERY JÚNIOR, citando os ensinamentos de Barbosa Moreira: Ainda que o litisconsórcio não seja unitário, há o efeito expansivo subjetivo do recurso interposto por apenas um dos litisconsortes, quando as defesas deles forem comuns. O recurso do litisconsorte se estende ao outro, ainda que este tenha aquiescido à decisão ou renunciado ao recurso (Código de Processo Civil comentado e Legislação Extravagante, São Paulo, RT, 2013, p. 1.010). 16. Diante do exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial. É como voto. RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 115 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.377.728-CE (2012/0259096-0) Relator: Ministro Benedito Gonçalves Recorrente: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS Advogado: Procuradoria-Geral Federal - PGF Recorrido: Manuel Pontes de Medeiros Advogados: Flávio Jacinto da Silva Marilia de Paula EMENTA Previdenciário. Recurso especial. Aposentadoria por invalidez. Cumulação com subsídio decorrente do exercício de mandato eletivo. Possibilidade. 1. É possível a percepção conjunta do subsídio decorrente do exercício de mandato eletivo (vereador), por tempo determinado, com o provento de aposentadoria por invalidez, por se tratarem de vínculos de natureza diversa, uma vez que a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente, invalidez para os atos da vida política. 2. Recurso especial não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Arnaldo Esteves Lima e Napoleão Nunes Maia Filho votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ari Pargendler. Brasília (DF), 18 de junho de 2013 (data do julgamento). Ministro Benedito Gonçalves, Relator DJe 2.8.2013 116 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA RELATÓRIO O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de recurso especial interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS contra acórdão, assim ementado (fl. 138-139): Previdenciário. Segurado aposentado por invalidez. Exercício de mandato como vereador. Artigo 46 da Lei n. 8.213/1991. Cancelamento do benefício com base na presunção de recuperação da capacidade laboral. Ilegalidade. Cumulação. Possibilidade. 1. O exercício de cargo eletivo com mandato por tempo certo, não configura retorno às atividades laborais do segurado, nem comprova a aptidão do impetrante para o exercício das atividades laborais que exercia antes de ser acometido pela invalidez. 2. O fato de o segurado titular da aposentadoria por invalidez estar exercendo mandato eletivo não enseja o cancelamento do benefício, pois para que haja a cessação e o retorno do segurado a atividade laborativa, imperiosa a observação do procedimento disposto no art. 47 da Lei n. 8.213/1991. 3. É possível a percepção conjunta dos subsídios da atividade de vereança com os proventos de aposentadoria por invalidez, por se tratar de vínculos de natureza diversa, uma vez que, a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente, invalidez para os atos da vida política. 4. Por se tratar de ação previdenciária, incidem os juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, até a entrada em vigor da Lei n. 11.960/2009, quando haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à Caderneta de Poupança. 5. Honorários advocatícios fixados no percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, nos termos da sentença, devendo ser observado o disposto na Súmula n. 111 do STJ. 6. Apelação parcialmente provida para determinar o restabelecimento do benefício de aposentadoria por invalidez, com efeitos retroativos a partir da cessação. No recurso especial, a parte recorrente alega, além de dissídio jurisprudencial, violação dos artigos 42 e 46 da Lei n. 8.213/1991, sob o argumento de que o aposentado por invalidez que retornar à atividade laboral voluntariamente deve ter seu benefício previdenciário de aposentadoria cancelado, a contar da data do retorno às atividades. Defende, ainda, que o exercício de cargo eletivo configura retorno às atividades laborais, o que autoriza o cancelamento da aposentadoria por invalidez, uma vez que a atividade gera renda que garante a subsistência do segurado. RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 117 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Contrarrazões às fls. 158-164. O presente recurso foi inadmitido pela Corte de origem, ascendendo a esta Corte por força de agravo, no qual determinou-se a reautuação como recurso especial (decisão de fl. 202-203). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): O cerne da demanda se concentra em saber se o segurado do INSS, aposentado por invalidez, pode cumular tal aposentadoria com o subsídio decorrente do exercício de mandato eletivo, por tempo determinado. No caso dos autos, o ora recorrido, após sofrer acidente em serviço (foi alvejado na região da coluna cervical por disparo de arma de fogo durante assalto à agencia bancária em que trabalhava) aposentou-se por invalidez em 1º.10.1997. Contudo, nas eleições de 2004 foi eleito para o cargo político de vereador na Câmara de Vereadores da cidade de Pacatuba-CE, cargo que perdurou de 2005 a 2008. Em 14.6.2010, o INSS cancelou a aposentadoria por invalidez. Como se sabe, o agente político (Presidente da República, Governador, Prefeito, Ministro, Secretário, Senador, Deputado Federal, Deputado Estadual e vereador) não mantém vínculo profissional com a Administração Pública, sendo o exercício de suas atividades um munus público, ainda que considerada, para fins previdenciários, de contribuição obrigatória. Ademais, como ensina Bandeira de Mello, para o exercício das atividades políticas não há necessidade de capacitação técnica ou profissional. Assim, o exercício da atividade temporária de vereança não pressupõe a aptidão do ora recorrido para o exercício das atividades laborais antes desempenhadas. A propósito, transcrevo trecho da obra: São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores. O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um munus público. Vale dizer, o 118 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da sociedade. A relação jurídica que os vincula ao Estado é de natureza institucional, estatutária. Seus direitos e deveres não advêm de contrato travado com o Poder Público, mas descendem diretamente da Constituição e das leis. Donde, são por elas modificáveis, sem que caiba procedente oposição às alterações supervenientes, sub color de que vigoram condições diversas aos tempo das respectivas investiduras (Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores. 2003, P. 229-230) (grifos nosso). Dessa forma, não há que se falar em vedação da percepção conjunta do subsídio da atividade de vereança com os proventos de aposentadoria por invalidez decorrente de acidente de trabalho, uma vez que, sendo os vínculos de natureza distinta, a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente, incapacidade para os atos da vida política. O exercício de cargo eletivo não representa atividade laboral remunerada para fins de cassação da aposentadoria por invalidez, segundo ilustram os seguintes precedentes: Previdenciário. Vereador. Aposentadoria por invalidez. Cumulação. Possibilidade. 1. É possível a percepção conjunta dos subsídios da atividade de vereança com os proventos de aposentadoria por invalidez, por se tratar de vínculos de natureza diversa, uma vez que, a incapacidade para o trabalho não significa, necessariamente, invalidez para os atos da vida política. 2. Agravo interno ao qual se nega provimento (AgRg no Ag n. 1.027.802-RS, Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Sexta Turma, DJe 28.9.2009, grifo nosso). Previdenciário. Cancelamento de aposentadoria por invalidez. Segurado eleito vereador. Inobservância do devido processo legal. 1. O fato de o segurado titular da aposentadoria por invalidez estar exercendo mandato eletivo não enseja o cancelamento do benefício, especialmente quando não comprovada sua recuperação. 2. O ato de cancelamento do benefício sem observar os princípios do devido processo legal e da ampla defesa autorizam a impetração do mandado de segurança, por traduzir ato abusivo e ilegal. 3. Recurso especial a que se nega provimento (REsp n. 626.988-PR, Rel. Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 18.4.2005, grifo nosso). RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 119 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA No mesmo sentido, a decisão monocrática no REsp n. 1.307.425-SC, Min. Castro Meira, publicada no DJe de 28.3.2012. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.406.267-RN (2011/0202207-3) Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte Recorrido: Fernando de Moura Cordeiro Advogado: Tertuliano Cabral Pinheiro e outro(s) EMENTA Administrativo e Processual Civil. Recurso especial. Ação civil pública de improbidade administrativa. Ex-motorista da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte. Subtração de cartão de abastecimento de veículos pertencentes à CAERN, que estava sob a responsabilidade de um servidor da companhia, em horário de almoço. Ausência de nexo causal entre a conduta ilegal e o exercício das funções inerentes à relação empregatícia. Atipicidade da conduta. Ilicitude apenasmente administrativa, que já obteve regular e proporcional penalidade no âmbito interno da CAERN (suspensão de 29 dias e imposição de devolução da quantia de R$ 159,90, indevidamente debitada no referido cartão). Agravo conhecido. Recurso especial parcialmente conhecido e, neste aspecto, desprovido. 1. A mera alegação de ofensa aos arts. 1º, 9º, 10 e 11 da Lei n. 8.429/1992, sem que haja demonstração do em que consiste a violação aos referidos dispositivos legais, atrai o óbice da Súmula n. 284 do STF. 2. In casu, o Órgão Ministerial Estadual ajuizou Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa contra a parte recorrida 120 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA (motorista da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte CAERN), imputando-lhe a conduta de ter subtraído cartão de abastecimento da Companhia, destinado ao abastecimento do veículo Mercedes 608, placa MYC 9488, de responsabilidade do servidor Francisco Pinto Ferreira Neto, quando este se encontrava em horário de almoço, apontando, ainda, que a conduta do recorrente causou prejuízo ao Erário no importe de R$ 159,90, decorrente da utilização indevida do cartão mencionado. 3. Irretocável se mostra o entendimento exarado pelo Tribunal a quo, que desproveu a Apelação do Ministério Público, concluindo pela impossibilidade da procedência do pleito constante na exordial, por não ter o recorrido poder de gestão de bens ou recursos públicos, sequer realizando o ato no exercício de suas atividades laborais, o que inviabiliza a incidência da Lei de Improbidade Administrativa ao caso em exame. 4. Recurso Especial parcialmente conhecido e, neste aspecto, desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer parcialmente do recurso especial e, nessa parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Ari Pargendler e Arnaldo Esteves Lima votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 8 de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator DJe 24.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte interpõe Recurso Especial, lastreado nas alíneas RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 121 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a e c do inciso III da CF/1988, interposto contra acórdão da 3ª Câmara Cível do TJRN, que julgou improcedente a Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa, nos termos da ementa abaixo: Constitucional. Administrativo. Ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público. Vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de emprego público. Ato de gestão não configurado. Não aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Conhecimento e desprovimento do recurso. 1 - Os atos de improbidade administrativa referem-se aos atos, realizados pelo gestor público, que ferem princípios constitucionais, causam danos ao erário ou importam enriquecimento ilícito. 2 - Não se constatando que o ato passível de repressão tenha sido realizado no exercício de função de gestão, não se configura a improbidade, devendo a conduta do agente público ser reprimida por outras vias, que não a ação de improbidade. 3 - Recurso conhecido e desprovido. (fls. 244). 2. Nas razões do Raro Apelo de fls. 254-269, aponta o membro do Parquet, além de dissídio jurisprudencial, ofensa aos arts. 1º, 2º, 4º, 9º, 10 e 11, todos da Lei n. 8.429/1992, sustentando, em suma, que, apesar de o recorrido não deter poder de gestão sobre dinheiro público, sua conduta é plenamente enquadrável nos fatos típicos descritos no art. 9º, caput e art. 10, I da LIA. Assevera que a Lei n. 8.492/1992 alcança todos os agentes públicos, independentemente do nível hierárquico que ocupam. 3. O douto Ministério Público Federal, em parecer de lavra do ilustre Subprocurador-Geral Moacir Guimarães Morais Filho (fls. 321-324), opinou pelo conhecimento do Agravo, para que o Nobre Apelo seja conhecido e provido, conforme o teor da seguinte ementa: 1) Administrativo. Processual Civil. Ação Civil Pública. Improbidade Administrativa. Sentença que determinou extinção sem resolução do mérito sob o argumento que apenas os atos de gestão, praticados pelos administradores, são sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa. Acórdão do Tribunal de origem que manteve a sentença. Violação ao art. 4º da Lei n. 8.429/1992 que estabelece a incidência da Lei de Improbidade Administrativa aos Agentes Públicos, independente de nível ou hierarquia. Aplicabilidade do conceito “agente público” aos empregados públicos da Administração Indireta, por força dos arts. 1º e 2º, da Lei n. 8.429/1992. 2) Divergência jurisprudencial. Conhecimento e provimento para prevalecer entendimento do TJE-RS. Devido cotejamento do acórdão hostilizado com 122 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA paradigma do tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Similitude de caso, que envolve uso indevido de abastecimento de veículo particular com recursos do erário público, com interpretações diversas, o aresto guerreado considera que não se aplica a Lei n. 8.429/1992, ao contrário do paradigma que entende pela configuração da improbidade administrativa. 3) Parecer pela convolação do Agravo em Recurso Especial para que, conhecido e provido este, seja reformada a decisão recorrida. (fls. 321). 4. É o que havia de importante para ser relatado. VOTO O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Inicialmente, no tocante à alegada ofensa aos arts. 1º, 9º, 10 e 11 da Lei n. 8.429/1992, constatase que o recorrente não demonstrou em que consiste a alegada ofensa aos referidos dispositivos legais, atraindo o óbice da Súmula n. 284 do STF. 2. Em relação ao alegado dissídio jurisprudencial e à suposta negativa de vigência aos arts. 2º e 4º da LIA, o Raro Apelo merece conhecimento. 3. Da análise dos autos, dessumem-se os seguintes fatos: o Órgão Ministerial Estadual ajuizou Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa contra a parte recorrida, Fernando de Moura Cordeiro (motorista da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte CAERN), devido ao fato de, em 21.8.2004, o recorrido ter subtraído cartão de abastecimento da Companhia, destinado ao abastecimento do veículo Mercedes 608, placa MYC 9488, de responsabilidade do servidor Francisco Pinto Ferreira Neto, quando este se encontrava em horário de almoço. 4. Os fatos narrados foram apurados em Sindicância instaurada junto à CAERN, que averiguou ter havido o abastecimento de 116,71 litros de combustível, totalizando a quantia de R$ 159,90, tendo o frentista do Posto de Gasolina reconhecido, prontamente, Fernando como o autor do abastecimento com o cartão mencionado. Consequentemente, impuseram-lhe a penalidade de suspensão, pelo prazo de 29 dias, bem como determinaram a devolução do valor apurado. 5. A Sentença extinguiu o processo, sem julgamento de mérito, asseverando que, apesar de o Acusado possuir vínculo empregatício com a Administração Pública, não possuía nenhum dever funcional de administração e não praticou o ato que lhe é imputado no exercício das funções inerentes ao emprego que ocupa. RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 123 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 6. Em sede de Apelação, o Tribunal a quo manteve o entendimento da Sentença acerca da inexistência de ato de improbidade, mas alterou a parte dispositiva do desicum, para julgar improcedente o pedido constante na exordial, negando provimento, dest’arte, ao Recurso Ministerial. 7. Cinge-se a controvérsia em saber se o conceito de Agente Público, delineado nos termos da Lei n. 8.429/1992, engloba a conduta do recorrido, que, ao menos na época, era Motorista da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte e não praticou o ato no exercício funcional administrativo. 8. Nessa seara, constata-se que a aludida conduta do Motorista, apesar de tipificar, em tese, ato criminoso, não legitima o ajuizamento de Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa; em uma análise perfunctória do caso, não se vislumbra o dolo específico de causar prejuízo ao erário, elemento imprescindível para configurar ato de improbidade. 9. Ademais, constata-se que a Lei Improbidade Administrativa foi editada para punir as condutas dos gestores de recursos públicos, ou seja, daqueles que detém o mínimo de poder decisório. Sobre o assunto, destacam-se as lições de MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS: A Lei de Improbidade nasceu do Projeto de Lei n. 1.446/1991, enviado pelo então Presidente Fernando Collor de Mello, que necessitava dar um basta à onde de corrupção que assolava o País naquela época. Sob o rótulo da moralidade, o Ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, do citado governo, deixou registrado em sua Exposição de Motivos que o combate à corrupção era necessário, pois se trata de uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País. Sempre foi uma cultura nefasta em nosso país, como nos países da América do Sul, ver os homens públicos rompendo a coletividade pelos seus maus tratos à coisa pública. (...). A Lei de Improbidade veio à superfície com a finalidade de combater atos que afetem a moralidade e maltratem a coisa pública. Todavia, como a lei em comento possui comandos muito abertos, é necessário que haja uma certa prudência no manejo indiscriminado de ações de improbidade administrativa para que não seja enfraquecida e se torne impotente, pelo excesso da sua utilização, para os casos que não comportem o devido enquadramento (O Limite da Improbidade Administrativa, Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 27). 10. Não se discute a possibilidade de o Motorista ser terceiro beneficiário da conduta de improbidade. Contudo, por não ostentar cargo de gestão e não possuir qualquer poder decisório, entende-se, em princípio, não ser legitimado passivo para figurar na Ação de Improbidade como sujeito ativo do ato. 124 Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA 11. Destaca-se, ademais, que o próprio Tribunal de origem asseverou que a subtração do Cartão de Abastecimento da CAERN, pelo recorrido, não teve qualquer liame com as atribuições exercidas pelo Empregado junto à Administração Pública, conforme atesta o seguinte trecho do Voto do Relator: No caso em comento, observo, pelo conjunto probatório produzido nos autos, que não restou configurado ato de improbidade, pois o réu não realizava ato de gestão de bens ou recursos públicos, nem realizou o ato reportado como ilícito no exercício de suas atividades laborais (...). (fls. 249). 12. Entendimento contrário implicaria condenar, indiscriminadamente, por Ato de Improbidade, todo Agente Público que cometesse qualquer ilícito penal, pela simples condição de possuir vínculo com a Administração Pública, desvirtuando-se, dessa maneira, a utilização da referida Ação Civil Pública de sua finalidade precípua de combater condutas violadoras da moralidade administrativa e da coisa pública. 13. Diante do exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. 14. É o voto. RSTJ, a. 25, (232): 95-125, outubro/dezembro 2013 125 Segunda Turma EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL N. 1.216.168-RS (2010/0189304-9) Relator: Ministro Humberto Martins Embargante: Ministério Público Federal Embargado: Yeda Rorato Crusius Advogado: Fábio Medina Osório Interessado: José Otávio Germano Interessado: João Luiz dos Santos Vargas Interessado: Luiz Fernando Salvador Zachia Interessado: Frederico Cantori Antunes Interessado: Delson Luiz Martini Interessado: Walma Vilarins Menezes Interessado: Rubens Salvador Bordini Interessado: Carlos Augusto Crusius EMENTA Administrativo e Processual Civil. Embargos de declaração recebido como agravo regimental. Improbidade administrativa. Agente político. Aplicação da Lei n. 8.429/1992. Possibilidade. Precedentes. 1. É possível o recebimento de embargos de declaração como agravo regimental, quando constatado que o pleito recursal é marcadamente infringente. Precedentes: EDcl no REsp n. 1.178.156-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 2.5.2013, DJe 10.5.2013; EDcl no AREsp n. 301.702-PE, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 11.4.2013, DJe 16.4.2013. 2. Discute-se nos autos a possibilidade de aplicação da Lei n. 8.429, de 1992 a agente político que exerce o cargo de Governador de Estado. 3. O Tribunal de origem decidiu que “a Lei n. 8.429/1992, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos por atos de improbidade administrativa, não se aplica aos agentes políticos, porquanto estes, nesta condição, não respondem por improbidade administrativa, mas, apenas, por crime de responsabilidade”. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 4. A jurisprudência desta Corte, ao contrário do que decidiu o acórdão recorrido, firmou-se no sentido da “possibilidade de ajuizamento de ação de improbidade em face de agentes políticos, em razão da perfeita compatibilidade existente entre o regime especial de responsabilização política e o regime de improbidade administrativa previsto na Lei n. 8.429/1992, cabendo, apenas e tãosomente, restrições em relação ao órgão competente para impor as sanções quando houver previsão de foro privilegiado ratione personae na Constituição da República vigente” (REsp n. 1.282.046-RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 16.2.2012, DJe 27.2.2012). 5. No mesmo sentido são os precedentes: AgRg no AREsp n. 141.623-MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 6.12.2012, DJe 4.2.2013; REsp n. 1.130.584-PB, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 18.9.2012, DJe 21.9.2012; AgRg no REsp n. 1.127.541-RN, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 4.11.2010, DJe 11.11.2010. 6. Por fim, na sessão do dia 16.9.2013, no julgamento do AgRg na Rcl n. 12.514-MT, de relatoria do Ministro Ari Pargendler, a Corte Especial firmou orientação no sentido de que o foro por prerrogativa de função prerrogativa de função não se estende ao processamento das ações de improbidade administrativa. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental e provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça “A Turma, por unanimidade, recebeu os embargos de declaração como agravo regimental e deu-lhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)Relator(a).” Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques (Presidente) e Eliana Calmon votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 24 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Humberto Martins, Relator DJe 4.10.2013 130 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA RELATÓRIO O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de embargos de declaração interpostos pelo Ministério Público Federal contra decisão monocrática deste relator, cuja ementa guarda os seguintes termos (fl. 288, e-STJ): Processual Civil e Administrativo. Foro competente para processar e julgar a demanda de improbidade administrativa contra Governador de Estado. Entendimento da Corte Especial do STJ no sentido de que o Governador de Estado não se submete à demanda de improbidade administrativa perante o juízo de primeiro grau de jurisdição (Rcl n. 2.790-SC). Agravo regimental provido. Alega o embargante que houve julgamento extra petita, haja vista que “a questão debatida nos autos diz respeito à aplicabilidade da Lei n. 8.429/1992 aos agentes políticos, e não à existência de foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa” (fl. 303, e-STJ). Aduz ainda o embargante que “a parte recorrida não mais ocupa o cargo de Governadora do Estado do Rio Grande do Sul, tendo em vista que não foi reeleita no pleito de outubro de 2010”, razão por que “o Superior Tribunal de Justiça não detém competência originária para processar e julgar ação de improbidade intentada contra ex-ocupante do cargo que atraía o foro especial” (fl. 307, e-STJ). Pleiteia o embargante a supressão das máculas apontadas. Ouvida a respeito, a embargada impugnou os embargos de declaração, sustentando a necessidade de manutenção da decisão embargada. É, no essencial, o relatório. VOTO O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): Inicialmente, considerando o pleito completamente infringente dos embargos de declaração, recebo o recurso como agravo regimental, fundado em inúmeros precedentes desta Corte. A esse título, v.g.: EDcl no REsp n. 1.178.156-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 2.5.2013, DJe 10.5.2013; EDcl no AREsp n. 301.702-PE, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 11.4.2013, DJe 16.4.2013. Ao apreciar o recurso especial interposto pelo Ministério Público Federal, monocraticamente, considerei, fundado em precedentes desta Corte, que a Lei RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 131 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA n. 8.429/1992 aplica-se de aos agentes políticos, a exemplo de Governador de Estado, que é o caso dos autos (fls. 183-185, e-STJ). Ao questionar essa decisão monocrática, a agravada argumentou que “o acórdão do Tribunal de origem seguiu o mesmo entendimento dos precedentes firmados pelo Pretório Excelso e seguidos por esse egrégio STJ (inclusive por sua Corte Especial), no sentido da incompetência do juízo de primeiro grau para processar e julgar pretensão deduzida em ação de improbidade ajuizada em face de Governadora de Estado, por ostentar prerrogativa de foro por crimes comuns perante o STJ (art. 105, inciso I, alínea a, da CF) e para crimes de responsabilidade perante a Assembleia Legislativa (arts. 53, inciso V, da Constituição Estadual e art. 75 da Lei Federal n. 1.079/1950)” (fl. 208, e-STJ). Nova decisão monocrática foi mim proferida, reformando a anterior e mantendo os termos do acórdão de origem (fls. 288-297, e-STJ). Após incisiva manifestação do Ministério Público Federal, via embargos de declaração (fls. 301-307, e-STJ), volto a analisar a questão. Observo que o Tribunal de origem, exclusivamente, restringiu-se a afastar a aplicação da Lei n. 8.429/1992 em autos onde se discute a improbidade administrativa da agravada e de outras pessoas, cujo trâmite ocorre perante Juízo Federal de primeira instância. A ementa do julgado sintetiza a controvérsia (fl. 99, e-STJ): Processual Civil e Administrativo. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Agentes políticos. Inaplicabilidade. A Lei n. 8.429/1992, que regula a ação de improbidade administrativa, não se aplica aos agentes políticos que, nesta condição, não respondem por improbidade administrativa, mas, apenas, por crime de responsabilidade. Põe-se em discussão, assim, a aplicação ou não da Lei n. 8.429/1992 à agravada. Ao analisar detidamente os embargos de declaração interpostos pelo Ministério Público Federal, aqui recebidos como agravo regimental, considero, em melhor análise dos autos, que lhe assiste inteira razão. Primeiramente, reformulo o meu entendimento de que a questão foi decidida sob o enfoque exclusivamente constitucional. Assim o faço por identificar claramente no acórdão recorrido a seguinte passagem (fl. 95, e-STJ): Na esfera infraconstitucional, a Lei n. 1.079/1950, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento, estabelece: 132 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Art. 75. É permitido a todo cidadão denunciar o Governador perante a Assembléia Legislativa, por crime de responsabilidade. Logo, a Lei n. 8.429/1992, que dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos por atos de improbidade administrativa, não se aplica aos agentes políticos, porquanto estes, nesta condição, não respondem por improbidade administrativa, mas, apenas, por crime de responsabilidade. Houve, portanto, pelo acórdão de origem, rejeição à possibilidade de incidência e aplicação da Lei n. 8.429/1992, relativamente aos atos praticados pela agravada, considerados ímprobos pelo Ministério Público Federal, que aforou a respectiva demanda perante a Seção Judiciária da Justiça Federal em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Houve, por outro lado, pela Corte de origem, o reconhecimento de que a agravada submeter-se-ia exclusivamente aos termos da Lei n. 1.079/1950, que “define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento”. Com outras palavras, instaurou-se debate acerca de incidência e aplicação de legislação federal ao caso de que se cuida, circunstância suficiente à abertura de instância perante esta Corte para a apreciação do recurso especial. Por sua vez, o recurso especial investe contra a violação dos arts. 1º, 2º, 3º, 4º e 12, da Lei n. 8.429/1992. Considera que “merece ser afastada a alegação de inaplicabilidade da Lei n. 8.429/1992 em relação aos agentes políticos, pois, como visto acima, as previsões de sanções pela Lei de Improbidade Administrativa, coincidentes com sanções também previstas em outras esferas de responsabilidade, não a descaracterizam impedem a sua aplicação” (fl. 143, e-STJ). Quanto a esse aspecto específico, consubstanciado na aplicação da LIA à agravada, então ocupante do cargo de Governador de Estado, registro que “esta Corte Superior admite a possibilidade de ajuizamento de ação de improbidade em face de agentes políticos, em razão da perfeita compatibilidade existente entre o regime especial de responsabilização política e o regime de improbidade administrativa previsto na Lei n. 8.429/1992, cabendo, apenas e tão-somente, restrições em relação ao órgão competente para impor as sanções quando houver previsão de foro privilegiado ratione personae na Constituição da República vigente” (REsp n. 1.282.046RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 16.2.2012, DJe 27.2.2012). No mesmo sentido, outros precedentes desta Corte: RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 133 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Administrativo. Ação de improbidade administrativa. Tipificação. Indispensabilidade do elemento subjetivo (dolo, nas hipóteses dos artigos 9º e 11 da Lei n. 8.429/1992 e culpa, nas hipóteses do art. 10). Precedentes. Demonstração do elemento subjetivo da conduta. Reexame de matéria fáticoprobatória. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. 1. Está assentado na jurisprudência do STJ, inclusive da Corte Especial que, por unanimidade, o entendimento segundo o qual, “excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (art. 85, V), cujo julgamento se dá em regime especial pelo Senado Federal (art. 86), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4º. Seria incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza” (Rcl n. 2.790-SC, DJe de 4.3.2010 e Rcl n. 2.115, DJe de 16.12.2009). 2. Também está afirmado na jurisprudência do STJ, inclusive da sua Corte Especial, o entendimento de que “a improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei n. 8.429/1992, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10” (AIA n. 30, DJe de 28.9.2011). 3. Não é compatível com essa jurisprudência a tese segundo a qual, mesmo nas hipóteses de improbidade capituladas no art. 10 da Lei n. 8.429/1992, é indispensável a demonstração de dolo da conduta do agente, não bastando a sua culpa. Tal entendimento contraria a letra expressa do referido preceito normativo, que admite o ilícito culposo. Para negar aplicação a tal preceito, cumpriria reconhecer e declarar previamente a sua inconstitucionalidade (Súmula Vinculante n. 10-STF), vício de que não padece. Realmente, se a Constituição faculta ao legislador tipificar condutas dolosas mesmo para ilícitos penais, não se mostra inconstitucional a norma que qualifica com tipificação semelhante certos atos de improbidade administrativa. 4. No caso, as instâncias ordinárias reconheceram expressamente a conduta culposa do agente, conclusão que não pode desfazer sem afronta à Súmula n. 7-STJ. 5. Recurso Especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.130.584-PB, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 18.9.2012, DJe 21.9.2012) Processual Civil. Administrativo. Magistrado. Lei n. 8.492/1992, art. 2º. Conceito de agente político. Compatibilidade com a legislação de improbidade administrativa. 1. Esta Corte Superior tem posicionamento pacífico no sentido de que não existe norma vigente que desqualifique os agentes políticos – incluindo os magistrados 134 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA – da possibilidade de figurar como parte legítima no pólo passivo de ações de improbidade administrativa. Precedentes: AgRg no REsp n. 1.088.258-GO, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16.9.2009; EDcl no AgRg na AIA n. 26-SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Corte Especial, DJe 1º.7.2009. 2. Por mais que seja considerada a aplicabilidade da legislação especial relacionada com o crime de responsabilidade, também subsumem-se os magistrados ao conceito de improbidade administrativa, quando for o caso, na mansa jurisprudência desta Corte Superior. Precedentes: Rcl n. 2.790-SC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 4.3.2010; REsp n. 1.169.762-RN, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 10.9.2010. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp n. 1.127.541-RN, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 4.11.2010, DJe 11.11.2010) Processual. Agravo regimental. Violação do art. 535 do CPC. Alegações genéricas. Súmula n. 284-STF. Submissão à lei de improbidade. Agentes políticos. Possibilidade. 1. Alegações genéricas de violação do artigo 535 do CPC não são suficientes para viabilizar o conhecimento do recurso especial. Inteligência da Súmula n. 284-STF. 2. Os agentes políticos submetem-se aos ditames da Lei n. 8.429/1992. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp n. 141.623-MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 6.12.2012, DJe 4.2.2013) O acórdão de origem, portanto, não consoa com a jurisprudência desta Corte, já que excluiu a possibilidade de a agravada, então detentora do cargo de governador de estado, responder por atos de improbidade nos termos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/1992). Por derradeiro, relativamente ao pleito de reconhecimento da competência jurisdicional da primeira instância jurisdicional para processar e julgar a demanda de improbidade contra a agravada, julgo-o prejudicado, já que não houve a sua recondução ao cargo de governador de estado. Ante o exposto, recebo os embargos de declaração como agravo regimental e dou-lhe provimento para reconhecer que a agravada deve se sujeitar aos termos da Lei n. 8.429/1992. É como penso. É como voto. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 135 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.243.356-SP (2011/0054357-1) Relator: Ministro Castro Meira Relator para o acórdão: Ministro Herman Benjamin Recorrente: Orestes Quércia - Espólio Representado por: Alaide Cristina Barbosa Ulson Quércia - Inventariante Advogado: Flávio Cascaes de Barros Barreto e outro(s) Recorrido: Fazenda do Estado de São Paulo Procurador: Iso Chaitz Scherkerkewitz e outro(s) Recorrido: Luiz Antônio Fleury Filho Advogado: Manoel Giacomo Bifulco Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo EMENTA Administrativo. Processual. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Cetesb. Contratação de aproximadamente 250 funcionários sem concurso público. Autorização do Governador. Ilegalidade. Recurso especial. Ausência de prequestionamento. No mérito, presença do nexo. INTRODUÇÃO 1. Trata-se, originariamente, de Ação Civil Pública por improbidade administrativa contra Orestes Quércia e outros, em decorrência de terem autorizado a contratação de aproximadamente 500 pessoas na Cetesb, sem concurso público, ao longo de seis anos (5.10.1988 a 21.12.1994). 2. A sentença de improcedência foi reformada no Tribunal de origem. No que diz respeito ao presente Recurso, entendeu-se pela responsabilidade do recorrente Orestes Quércia e outros corréus pela contratação em razão das autorizações expressas por eles concedidas. 3. Acompanho o Relator na parte em que não conhece do Especial em relação às alegações de legitimidade e exigibilidade do concurso público. Divirjo, com a devida vênia, da parte final, em que se afirma a falta de nexo de causalidade. 136 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO ESPECIAL 4. Inicialmente, sobre a questão do nexo, o eminente Relator, Ministro Castro Meira, não identificou qual dispositivo de lei teria sido afrontado, a justificar a reforma do acórdão recorrido. Com a leitura do trecho do acórdão que discorre sobre a responsabilidade do recorrente, verifica-se não haver menção a qualquer lei violada. Tampouco apontou-se contrariedade ao art. 535 do CPC. Incidem, portanto, as Súmulas n. 282 e 356-STF. 5. O Recurso Especial também não suscita ofensa a artigo de lei que verse sobre “nexo de causalidade”. No trecho recursal referente ao tema, o recorrente defende a ilegitimidade passiva à luz da natureza jurídica da Cetesb, discussão que não deve ser realizada em Recurso Especial, diante de óbices sumulares bem levantados no voto do eminente Ministro Castro Meira. Logo, o Especial propõe debate por ótica (da qual não se pode conhecer por impedimentos sumulares) diversa da encartada no voto do eminente Ministro Relator (que não foi prequestionada). PRESENÇA DO NEXO DE CAUSALIDADE 6. Caso vencido nessa parte, o acórdão recorrido atesta a presença de nexo por pressupostos irretocáveis. Afirma-se ali que “o Governador não é o administrador direto, todavia, (...) assume para si o poder de autorizar as contratações”. Ao fazer dessa forma, deixa claro que o fato do qual decorre o ato que justificou a condenação (a autorização das contratações) era de competência do recorrente e que, sem ele, tais contratações não teriam sido realizadas. 7. É desnecessário revolver legislação local ou fatos para conceber que as contratações dependiam de tal autorização. O Acórdão é expresso em afirmar isso, nos seguintes termos: “Toda investidura de cargo ou emprego público após a promulgação da Constituição Federal de 1988, imprescinde de concurso público, por isso se o Governador do Estado chamou para si a responsabilidade de autorizar contratações na Cetesb deve responder por seu ato, afinal é o Chefe do Poder Executivo Estadual. As autorizações emanadas de Orestes Quércia estão provadas documentalmente a partir de fls. 3.493-3.522, não havendo RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 137 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA dúvida quanto a sua conduta. (...) Se contratações ou investiduras em emprego público ocorreram por autorização do co-réu, e elas aconteceram sem o devido concurso público, ele deve responder por isto. Provado está nos autos que a CETESB solicitou autorização para várias contratações, não havendo nenhuma indicação de cargos em comissão criados por lei, e que o co-réu expressando a excepcionalidade autorizou as mesmas.” (fls. 197-219v). 8. Assumir tais fatos como verdadeiros é acatar premissa estabelecida pela decisão objurgada; questioná-los, sim, exige revolvimento de legislação local ou de fatos, inviável em Recurso Especial. 9. O Governador não se exime da responsabilidade pela contratação contrária aos ditames da Administração Pública pela simples razão de que competia à Cetesb recusar o cumprimento de imposição ilegal. Há notícia de que o requerimento para a contratação partiu da própria empresa pública, motivo pelo qual cabia ao Governador rechaçá-lo de plano, de forma a preservar o princípio do concurso público. Mais ainda, a ilegalidade está tanto na requisição quanto na anuência, dado que ambos os fatos são determinantes para a produção do resultado ilegal. Posição contrária poderia gerar um insustentável jogo de empurra, incompatível com a realidade dos autos. 10. A chamada “mera autorização” do chefe do executivo já conduziu a condenações análogas, uma delas em demanda praticamente idêntica à dos presentes autos (Cfr. REsp n. 1.135.158-SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 1º.7.2013; REsp n. 1.151.884SC, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 25.5.2012; REsp n. 490.259-RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4.2.2011). CONCLUSÃO 11. Diante do exposto, com vênias ao eminente Ministro Castro Meira, que vota pelo provimento do Recurso Especial por identificar falta de nexo de causalidade, voto por não conhecer do Recurso e, caso vencido nessa parte, por não provê-lo. 138 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Herman Benjamin, divergindo do Sr. Ministro-Relator, a Turma, por maioria, não conheceu do recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Herman Benjamin, que lavrará acórdão. Vencido o Sr. Ministro Castro Meira.” Votaram com o Sr. Ministro Herman Benjamin os Srs. Ministros Humberto Martins e Mauro Campbell Marques. Não participou do julgamento a Sra. Ministra Eliana Calmon, nos termos do Art. 162, § 2º, do RISTJ. Brasília (DF), 6 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministro Herman Benjamin, Relator DJe 4.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Castro Meira: O recurso especial foi interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim sintetizado: Agravo retido. Apreciação das preliminares de incompetência da Vara da Fazenda Pública, competência de uma das Varas Cíveis, inépcia da inicial, litisconsórcio necessário, inexistência de interesses difusos ou coletivos, ilegitimidade do Ministério Público, inadequação da via processual eleita e carência de ação. Preliminares afastadas. Agravo desprovido. Ação civil pública. Ex-governadores do Estado de São Paulo que autorizaram a contratação de pessoal para trabalharem na Cetesb, sem concurso público. Sentença de improcedência. Decisão reformada. Responsabilidade de exgovernadores pela contratação em razão das autorizações por eles concedidas. Ocorrência de dano moral e material à Administração Pública. Necessidade de ressarcimento. Recursos oficial e voluntário da Fazenda providos (e-STJ fl. 3.773). Os embargos de declaração opostos foram julgados nos termos a seguir sumariado: Embargos declaratórios do Ministério Público RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 139 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Alegação de omissão em razão do acórdão não ter analisado o pedido de restituição dos encargos sociais pagos ao pessoal contratado, bem como por não ter aplicado as demais sanções previstas no art. 37, § 4º, da Constituição Federal. Os valores recolhidos a título de encargos sociais não são devidos por nenhum dos réus. Os encargos sociais são obrigações que independem da legalidade da contratação, e lato senso integram o salário do servidor. Inaplicabilidade das penas cumulativamente. Embargos parcialmente acolhidos para declarar que fica afastada a condenação para pagamento de encargos sociais. Embargos declaratórios do réu Antônio Fleury Filho Alegação de omissão, contradição e obscuridade. Inocorrência. Acórdão que de forma concisa rebateu toas as questões alegadas. Prequestionamento. Impossibilidade. Inocorrência dos requisitos legais do artigo 535, do Código de Processo Civil. Embargos rejeitados. Embargos declaratórios do réu Orestes Quércia Prequestionamento. Impossibilidade. Inocorrência dos requisitos legais do artigo 535, do Código de Processo Civil. Embargos rejeitados (e-STJ fl. 3.881). Luiz Antônio Fleury Filho e Orestes Quércia interpuseram embargos infringentes, os quais foram providos, consoante a seguinte ementa: Ação civil pública. Dano moral coletivo. Inocorrência. Ato imputado aos réus não causou agressões aos interesses transindividuais, ao patrimônio valorativo da comunidade, de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico. Recursos providos (e-STJ fl. 3.954). No especial, o espólio de Orestes Quércia alega violação do arts. 267, VI, do Código de Processo Civil, aduzindo: a) ilegitimidade ad causam do Ministério Público para propor a Ação Civil Pública com o fim de tutelar interesse individual da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental, ao argumento de que essa companhia não conta com servidores públicos em seus quadros, mas apenas empregados celetistas, contratados mediante sistema de seleção próprio, nos termos da Lei Estadual n. 118/73 (e-STJ fl. 4.262 e 4.264); b) sua ilegitimidade passiva, por inexistir nexo causal entre a sua conduta de autorizar a contratação de servidores sem prévio concurso público e o alegado prejuízo aos cofres públicos, já que não foi o responsável direto pelas contratações, mas sim a própria Cetesb. (e-STJ fls. 4.266-4.267). 140 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Assevera, outrossim, maltrato aos artigos 1º e 3º, da Lei n. 7.347/1985, sustentando: a) inexistir “nexo causal entre as ações do Recorrente e os atos impugnados pelo Parquet”, porque “as autorizações foram dadas em razão de justificada solicitação e mediante realização do competente processo seletivo” (e-STJ fl. 4.268 e 4.269); b) não ser exigível o concurso público, porque “no caso vertente, foram contratados funcionários para uma sociedade anônima, pelo regime da CLT, nos termos expressos da Lei n. 118/73, que estabelece serem os empregados da Cetesb celetistas, contratados mediante seleção, e sem direito aos benefícios do servidor” (e-STJ fl. 4.270); c) que a ausência de dano impede a condenação relativa às rescisões trabalhistas decorrentes das contratações indevidamente autorizadas (e-STJ fl. 4.268). Afirma que se o Tribunal a quo reconheceu ser devido o pagamento dos salários, a despeito de as contratações terem sido irregulares, “da mesma forma, os funcionários só fizeram jus a verbas rescisórias porque trabalharam e, por diversos motivos, tiveram seus contratos de trabalho rescindidos” (e-STJ fl. 4.273). O Estado de São Paulo e o Parquet Estadual ofertaram contrarrazões alegando, em preliminar, o não conhecimento do recurso. No mérito, pleitearam a manutenção do aresto impugnado (e-STJ fls. 4.345-4.353 e 4.412-4.422). Inadmitido o apelo, subiram os autos por força de provimento ao AG n. 1.350.015-SP (e-STJ fl. 4.474). Em parecer firmado pela ilustre Subprocuradora-Geral da República Dra. Maria Caetana Cintra Santos, o Ministério Público Federal opinou pelo não provimento do recurso especial (e-STJ fls. 4.491-4.501). É o relatório. VOTO Ementa: Administrativo. Ação civil pública. Sociedade de economia mista. Contratação sem concurso público. Ex-Governador. Mera autorização. Nexo de causalidade. Inexistência. 1. O recurso especial foi interposto nos autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 141 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ato de improbidade administrativa supostamente praticado por exGovernador do Estado, por ter autorizado a contratação de pessoal sem concurso público para os quadros da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental - Cetesb. 2. Não é possível examinar a tese de ilegitimidade ad causam do Parquet Estadual para a propositura da presente demanda tampouco sobre a prescindibilidade de realização de concurso público no caso dos autos, visto que ambas são suscitadas com base na Lei Estadual Paulista n. 118/73, impondo-se a aplicação da Súmula n. 280-STF. 3. Para constatar a veracidade das assertivas do recorrente de que “as autorizações foram dadas em razão de justificada solicitação e mediante realização do competente processo seletivo”, bem como que existiram “diversos motivos” para a rescisão dos contratos e não apenas as contratações irregulares, seria imperioso que se realizasse pormenorizado reexame dos documentos coligidos, o que se mostra vedado nesta instância especial, em virtude do impedimento da Súmula n. 7-STJ. 4. A partir da promulgação da Constituição da República de 1988, passou a ser obrigatória a realização de concurso público para o ingresso nos quadros da Administração Pública direta e indireta, nos termos do artigo 37, inciso II. Precedentes do STF e STJ. 5. Do aresto recorrido, verifica-se que o falecido governador limitou-se a autorizar a contratação de pessoal pela sociedade de economia mista, não se podendo inferir que tenha determinado a admissão ao arrepio das normas constitucionais. Ademais, ainda que houvesse ordem contrária ao ordenamento jurídico, caberia aos dirigentes da entidade, máxime em razão da autonomia gerencial, orçamentária e financeira prevista no § 8º do art. 37 da CF/1988, zelar pelo respeito às normas legais, princípios e regras constitucionais quando da contratação do pessoal, não estando obrigados a obedecer a ordens supostamente ilegais. 6. Revela-se ausente o nexo de causalidade entre as contratações ilegais e os prejuízos causados ao erário público relativos às verbas trabalhistas de dispensa imputadas ao gestor. 7. Recurso especial conhecido em parte e provido. 142 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA O Sr. Ministro Castro Meira (Relator): O recurso especial foi interposto nos autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por ato de improbidade administrativa supostamente praticado por ex-Governador do Estado, Orestes Quércia, por ter autorizado a contratação de pessoal, sem concurso público, para os quadros da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental - Cetesb, sociedade de economia mista. A ação foi julgada improcedente em primeiro grau (e-STJ fls. 3.671-3.680) e, em grau de apelação, por maioria, a sentença foi reformada para condenar o ora recorrente a restituir “a quantia gasta com as verbas rescisórias das pessoas contratadas mediante sua autorização, conforme as autorizações encartadas nos autos, e indenizar por dano moral, por ferir a moralidade administrativa no valor correspondente a 20 vezes o valor da última remuneração recebida como Governador de Estado, devidamente atualizada pela Tabela do Tribunal de Justiça, com aplicação do artigo 406 do Código Civil, a partir da citação, com fundamento no artigo 3º, da Lei n. 7.347/1985, que regula a ação civil pública” (e-STJ fl. 3.792). Passo seguinte, o Tribunal de origem, ao acolher os embargos infringentes, excluiu a condenação por danos morais (e-STJ fls. 3.952-3.957). No especial, o espólio de Orestes Quércia alega violação do arts. 267, VI, do Código de Processo Civil e artigos 1º e 3º, da Lei n. 7.347/1985. Passo a apreciar os requisitos de admissibilidade do recurso relativamente a cada uma das irresignações. A análise da alegação de ilegitimidade ad causam do Ministério Público para propor a Ação Civil Pública, ao argumento de que o Parquet vislumbrava defender interesse individual da Cetesb, esbarra no impedimento da Súmula n. 280-STF, porque a tese do recorrente demanda o exame da Lei Estadual n. 118/73. No ponto, aduz que, nos termos do diploma estadual, essa companhia não conta com servidores públicos em seus quadros, mas apenas empregados celetistas contratados mediante sistema de seleção próprio, o que caracterizaria mero interesse individual da referida empresa pública. Além disso, a Corte de origem assentou a legitimidade do Parquet Estadual com base no exame de documentos oficiais, Lei Estadual Paulista e em fundamento constitucional, consoante se extrai do seguinte excerto do voto condutor do aresto recorrido: Depois alega-se carência de ação sob a alegação de que a Cetesb é sociedade anônima não sendo sociedade de economia mista, que em seus quadros não RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 143 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA há servidor público, portanto, não há interesse que justifique a legitimidade do Ministério Público para propor a ação. Da leitura do documento de fls. 83 (cópia da publicação do Diário Oficial do Estado – Poder Executivo), faz perceber a composição acionária da Cetesb, com participação de 100% da Fazenda do Estado de São Paulo, tendo base legal a companhia como sociedade anônima de economia mista e de capital fechado, que foi constituída nos termos da Lei n. 118, de 29.6.1973. O documento oficial afasta a alegação quanto a forma de constituição da companhia e por consequência as demais alegações, porque são decorrentes. No tocante a destinação de eventual condenação os valores serão para o erário público, independente do pedido do Ministério Público, que é uma questão que deve ser apreciada ao final da ação, se julgada procedente. O interesse de agir está presente, pois ao ver do representante do Ministério Público os reús causaram prejuízo ao patrimônio público, portanto devem reparar o dano que causaram. Nos termos do art. 129, III, da Constituição Federal, entre outras, é função do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. O interesse e a legitimidade estão presentes, e não há que se falar que se tenta propor ação popular, porque como está bem expresso na Constituição a ação civil pública também se destina a proteger o patrimônio público, que deve ser entendido não só o patrimônio econômico, mas na sua globalidade, isto é, o patrimônio como a soma de bens materiais, abstratos, econômicos e não só os econômicos que pertencem ao poder público, ou seja, a coletividade. É certo que as duas ações destinam-se ao mesmo campo de ação, e por isso cabível a lembrança de J.M.Othon Sidou ‘de que pontos de similitude aproximam, como dissemos, a ação civil da ação popular, e a própria lei assim dá a entender, no mencionado art. 1º, ao antepor o ‘sem prejuízo’ da última, o que significa que a interposição de uma não impede a impetração da outra’. Assim, não prevalece a alegação. (e-STJ fls. 3.779-3.780 - sem destaques no original). Como se vê, para infirmar as premissas assentadas no aresto recorrido, seria imperioso analisar a controvérsia à luz de dispositivos constitucionais e locais e reexaminar as provas dos autos, providências vedadas sob pena de usurpação de competência do Pretório Excelso e em razão dos óbices contidos nas Súmulas n. 7-STJ e 280-STF. Por óbvio, também em virtude do impedimento da Súmula n. 280-STF, não logra êxito a alegação de que “não era exigível o concurso público in casu”, ao 144 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA argumento de que “no caso vertente, foram contratados funcionários para uma sociedade anônima, pelo regime da CLT, nos termos expressos da Lei n. 118/73, que estabelece serem os empregados da Cetesb celetistas, contratados mediante seleção, e sem direito aos benefícios do servidor” (e-STJ fl. 4.270). Outrossim, em virtude da impossibilidade de revolver o contexto fáticoprobatório, não logra êxito a assertiva de ser indevida a condenação do recorrente ao ressarcimento das verbas rescisórias trabalhistas pagas aos funcionários da Cetesb, ao fundamento de que existiram “diversos motivos” que justificaram a rescisão dos contratos e não só as contratações irregulares por ele autorizadas, consoante consta do acórdão recorrido. Com efeito, o Tribunal a quo, ao condenar o recorrente ao ressarcimento das verbas rescisórias, levou em consideração somente as contratações irregulares, segundo se extrai do seguinte fragmento do acórdão: Não consta dos autos que os contratados tenham recebido seus salário sem trabalhar, ao contrário, a conclusão é de que trabalharam, assim, a Cetesb não sofreu danos financeiros, pois o que pagou foi em contraprestação ao serviço executado. Quem recebeu não deve restituir porque trabalhou e nem os réus, porque não houve o dano financeiro ao erário. Agora, quanto às rescisões contratuais a situação é outra, pois se as contratações inconstitucionais não tivessem ocorrido, os gastos com as verbas trabalhistas de dispensa também não existiriam. Assim, se ainda há alguém trabalhando a situação é inconstitucional precisa ser resolvida pela Administração Pública e quanto aos demitidos o ônus financeiro deve ser arcado pelos réus. Portanto, para os dois réus há a obrigação de ressarcirem a Cetesb os danos causados com as rescisões trabalhistas das contratações que autorizaram (e-STJ fls. 3.789-3.790). Revela-se notório, portanto, que para combater essa premissa seria preciso revisar as provas e fatos dos autos, o que se mostra vedado nos termos da Súmula n. 7-STJ. Na mesma esteira, não é possível conhecer da alegação de maltrato aos artigos 1º e 3º da Lei da Ação Civil Pública, ao fundamento de que “as autorizações foram dadas em razão de justif icada solicitação e mediante realização do competente processo seletivo” (e-STJ fl. 4.268 e 4.269), porque, para verificar a veracidade da assertiva do recorrente, seria imperioso que se realizasse RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 145 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA pormenorizado exame dos documentos coligidos, o que se mostra vedado nesta instância especial. Por fim, em vista do prequestionamento da tese acerca da suposta ilegitimidade passiva, bem como por se tratar de mera revaloração jurídica das condutas especificadas no aresto recorrido, conheço do recurso no ponto. O recorrente afirma inexistir nexo causal entre a sua conduta de autorizar a contratação de servidores sem prévio concurso público e o alegado prejuízo aos cofres públicos, já que não foi o responsável direto pelas contratações, mas sim a própria Cetesb (e-STJ fls. 4.266-4.267). O Tribunal a quo, com riqueza de detalhes, descreveu assim a conduta do recorrente: Passo a apreciar a responsabilidade pretendida quanto ao co-réu Orestes Quércia. Em ofício expedido pela Cetesb ao Ministério Público consta o encaminhamento das listas das pessoas contratadas no período de outubro de 1988 a dezembro de 1990 e de janeiro de 1991 a dezembro de 1994, consignando que todas as contratações foram efetivadas mediante autorização expressa dos senhores Governadores do Estado de São Paulo, dos referidos períodos (fls. 137-138). As listas estão encartadas nos autos, bem como as cópias das autorizações expressas assinadas pelos réus, no exercício da função pública de Poder, como Governador de Estado. Tratando-se a Cetesb de sociedade de economia mista atrelada ao Governo do Estado é evidente que o Governador não é o administrador direto, todavia, quando assume para si o poder de autorizar as contratações deve responder pelo ato praticado. Toda investidura de cargo ou emprego público após a promulgação da Constituição Federal de 1988, imprescinde de concurso público, por isso se o Governador do Estado chamou para si a responsabilidade de autorizar contratações na Cetesb deve responder por seu ato, afinal é o Chefe do Poder Executivo Estadual. As autorizações emanadas de Orestes Quércia estão provadas documentalmente a partir de fls. 3.493-3.522, não havendo dúvida quanto a sua conduta (e-STJ fls.3.785-3.787); O mesmo Ofício que indica as listas e expressa a autorização de Orestes Quércia expressa a autorização de Luiz Antônio Fleury Filho, e o conteúdo deste ofício está corroborado pelas autorizações encartadas nos autos, já indicadas. Desse modo tanto a responsabilização de Orestes Quércia como de Luiz Antônio Fleury Filho são inevitáveis, devendo os mesmos responderem pelas consequências de todas as contratações da Cetesb que foram autorizadas 146 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA expressamente por eles, nos respectivos mandatos, e que estejam documentalmente provadas nos autos, isto é, que as cópias das autorizações estejam nos autos (e-STJ fl. 3.789). Da mera leitura, verifica-se, de fato, que as contratações sem concurso público pela citada empresa pública só se aperfeiçoaram após as expressas autorizações do governador. Todavia, merece reparos a solução jurídica engendrada pelo acórdão recorrido. Como cediço, a partir da promulgação da Constituição da República de 1988, passou a ser obrigatória a realização de concurso público para o ingresso tanto nos quadros da Administração Pública direta como indireta, nos termos do artigo 37, inciso II, ora reproduzido: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998) II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. Nessa senda, colaciono os seguintes precedentes do Pretório Excelso sobre o tema: Constitucional. Administrativo. Agravo regimental em recurso extraordinário. Concurso público. Experiência profissional. Necessidade de lei. Precedentes. 1. É irrelevante para o desate da questão o objeto da investidura, quando em debate a violação direta do art. 37, I, da Constituição Federal. 2. A exigência de experiência profissional prevista apenas em edital importa em ofensa constitucional. Precedentes. 3. A investidura em cargo ou emprego das empresas públicas e sociedades de economia mista, regidas pela CLT, nos termos do art. 173, § 1º, da Constituição Federal, submete-se à regra constitucional do art. 37, II. 4. Agravo regimental improvido (RE n. 558.833 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 8.9.2009, DJe de 24.9.2009); Agravo regimental no agravo de instrumento. Administração pública indireta. Sociedade de economia mista. Concurso público. Inobservância. Nulidade do contrato de trabalho. Efeitos. Saldo de salário. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 147 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. Após a Constituição do Brasil de 1988, é nula a contratação para a investidura em cargo ou emprego público sem prévia aprovação em concurso público. Tal contratação não gera efeitos trabalhistas, salvo o pagamento do saldo de salários dos dias efetivamente trabalhados, sob pena de enriquecimento sem causa do Poder Público. Precedentes. 2. A regra constitucional que submete as empresas públicas e sociedades de economia mista ao regime jurídico próprio das empresas privadas - art. 173, § 1º, II da CB/1988 não elide a aplicação, a esses entes, do preceituado no art. 37, II, da CB/1988, que se refere à investidura em cargo ou emprego público. 3. Agravo regimental a que se nega provimento (AI n. 680.939 AgR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 27.11.2007, DJe de 31.1.2008). Na mesma seara, são os julgados desta Corte: Direito Administrativo. CODEVASF. Empresa estatal prestadora de serviço público. Atuação essencialmente estatal. Influxo maior de normas de direito público. Prescrição quinquenal. Decreto n. 20.910/1932. Aplicabilidade da Súmula n. 39-STJ restrita a empresas que explorem a atividade econômica. (...) 3. As empresas estatais podem atuar basicamente na exploração da atividade econômica ou na prestação de serviços públicos, e coordenação de obras públicas. 4. Tais empresas que exploram a atividade econômica - ainda que se submetam aos princípios da administração pública e recebam a incidência de algumas normas de direito público, como a obrigatoriedade de realizar concurso público ou de submeter a sua atividade-meio ao procedimento licitatório - não podem ser agraciadas com nenhum beneplácito que não seja, igualmente, estendido às demais empresas privadas, nos termos do art. 173, § 2º da CF, sob pena de inviabilizar a livre concorrência. (...) Recurso especial conhecido em parte e improvido (REsp n. 929.758-DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 7.12.2010, DJe 14.12.2010); Direito Administrativo e Processual Civil. Mandado de segurança. Lei n. 8.878/1994. Anistia. Retorno de empregado originário de extinta empresa pública ao serviço. Ilegitimidade passiva do Ministro de Estado das Cidades. (...) 1. Mandado de segurança no qual os impetrantes, anistiados pela Lei n. 8.874/1994, questionam ato que determinara o retorno ao serviço para compor quadro especial em extinção do Ministério das Cidades, sob o regime celetista. 2. “Compete à e. Primeira Seção o julgamento de ações que discutem a concessão de anistia a empregados públicos de empresas públicas e de sociedades de economia mista, que a despeito de se submeterem a concurso público, não 148 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA são equiparáveis aos servidores públicos da Administração direta e indireta fundacional ou autárquica, sujeitos ao Regime Jurídico Único” (CC n. 68.777-DF, Corte Especial, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 11.12.2006, suscitado no MS n. 10.781-DF). 7. Ordem denegada (MS n. 14.828-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 8.9.2010, DJe 14.9.2010). Dessa maneira, revela-se inconteste a necessidade de realização de concurso público para a admissão de pessoal nos quadros da administração pública indireta após a Constituição da República de 1988. No entanto, não há como imputar a prática de ato ilícito ao então Chefe do Poder Executivo pelo simples fato de haver autorizado as contratações pela sociedade de economia mista. Isso porque, de acordo com o acórdão recorrido, o governador limitou-se a autorizar a contratação, não se podendo inferir que tenha determinado a admissão ao arrepio das normas constitucionais. Por outro lado, ainda que houvesse ordem contrária ao ordenamento jurídico, caberia aos dirigentes da entidade, máxime em razão da autonomia gerencial, orçamentária e financeira prevista no § 8º do art. 37 da CF/1988, zelar pelo respeito às normas legais, princípios e regras constitucionais quando da contratação do pessoal, não estando obrigados a obedecer a ordens supostamente ilegais. Assim, forçoso concluir pela ausência de nexo de causalidade entre as contratações ilegais e os prejuízos causados ao erário público relativos às verbas trabalhistas de dispensa imputadas ao gestor. Ante o exposto, conheço em parte do recurso e dou-lhe provimento. É como voto. VOTO-VENCEDOR O Sr. Ministro Herman Benjamin: Os autos foram recebidos neste Gabinete em 7.12.2012. 1. Relatório Trata-se, originariamente, de Ação Civil Pública por improbidade administrativa contra Orestes Quércia e outros, em decorrência de terem autorizado a contratação de aproximadamente 500 pessoas para a Cetesb, sem concurso público, ao longo de seis anos (5.10.1988 a 21.12.1994). RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 149 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A sentença reconheceu que “os cargos preenchidos através de processo seletivo não público não eram de confiança, assim entendidos como aqueles que a lei de regência os classifica como tais e nem foram preenchidos para atender a uma temporária e excepcional necessidade. Os contratos internacionais de cooperação com a Alemanha e Japão informados pela Cetesb não foram os responsáveis pelas contratações ora discutidas. Tampouco ficou demonstrado que outros acordos ou convênios ensejaram excepcional e premente necessidade que dispensasse a exigência da realização do concurso público” (fl. 3.675-STJ); contudo, julgou o feito improcedente. No Tribunal de origem, a sentença foi reformada. Entendeu-se pela responsabilidade do recorrente Orestes Quércia e outros pela contratação em razão das autorizações por eles concedidas, pela ocorrência de dano moral e material à Administração Pública, com o dever de ressarcir a Cetesb pelas verbas rescisórias dos contratados e pagar indenização por danos morais no valor de 20 vezes a última remuneração como Governador. O acórdão desafiou Embargos de Declaração, parcialmente acolhidos para afastar a condenação à restituição de encargos sociais. Sobrevieram Embargos Infringentes, acolhidos para afastar a indenização por dano moral coletivo. O Recurso Especial foi interposto com fundamento no art. 105, III, a, da Constituição da República. O recorrente alega a) ilegitimidade do Ministério Público para propor a Ação Civil Pública; b) ilegitimidade passiva, em razão de falta de nexo entre a autorização de contratação de servidores e o prejuízo aos cofres públicos; c) inexistência de “nexo causal entre as ações do Recorrente e os atos impugnados pelo Parquet”, dado que “as autorizações foram dadas em razão de justificada solicitação e mediante realização do competente processo seletivo”; d) inexigibilidade do concurso público para contratação de funcionários de sociedade anônima, pelo regime da CLT; e) que a ausência de dano impede a condenação pelas rescisões trabalhistas. O Recurso teve seu trânsito determinado por Agravo AG n. 1.350.015-SP. O Ministério Público Federal opina pelo desprovimento do Recurso. O Eminente Relator vota no sentido de não conhecer da seguinte motivação: a) incabível verificar a legitimidade do Parquet, porquanto requer averiguação de lei estadual, de documentos oficiais e de fundamentos constitucionais (Súmulas n. 7-STJ e 280-STF); b) a exigibilidade do concurso público também esbarra na Súmula n. 280-STF, dada a necessidade de análise da Lei n. 118/1973; c) impossível revisar a condenação ao ressarcimento das 150 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA verbas rescisórias por contratações irregulares por força da Súmula n. 7-STJ; d) o exame da fundamentação das autorizações demanda reexame fático. Contudo, entendeu pela ilegitimidade passiva ao argumento de que o simples fato de haver autorizado as contratações pela sociedade de economia mista não caracterizaria ato ilícito e que de tal ato não se pode inferir a admissão ao arrepio das normas constitucionais. Aponta ainda que caberia aos dirigentes da Cetesb zelar pelo respeito à ordem legal e recusar o cumprimento de ordens ilegais. Ao final, atesta a falta de nexo entre as contratações ilegais e os prejuízos causados. Ciente da complexidade do feito, pedi vista para melhor exame dos autos. 2. Não conhecimento integral do Recurso Especial Acompanho o eminente Relator na parte em que não conhece do Especial no que tange à legitimidade do Parquet e reforça a obrigatoriedade do concurso público in casu, pelos fundamentos expostos em seu voto. Contudo, com a devida vênia, divirjo da parte final em que se afirma a falta de nexo de causalidade. O eminente Relator não identificou qual dispositivo de lei teria sido violado, a justificar a reforma do acórdão recorrido. Com a leitura do trecho do acórdão recorrido que discorre sobre a responsabilidade do recorrente (fls. 3.786-3.789-STJ), verifica-se não haver menção a lei violada. Tampouco se apontou ofensa ao art. 535 do CPC. Incidem, portanto, as Súmulas n. 282 e 356-STF. O Recurso Especial também não suscita ofensa a artigo de lei que verse sobre “nexo de causalidade”. No trecho recursal referente ao tema, o recorrente defende a ilegitimidade passiva à luz da natureza jurídica da Cetesb, debate que não deve ser realizado em Recurso Especial, diante de óbices sumulares bem levantados no voto do eminente Relator. Logo, o Especial propõe discussão por ótica (da qual não se pode conhecer por impedimentos sumulares) diversa da encartada no voto do eminente Ministro Relator (que não foi prequestionada). Por essa razão, voto pelo não conhecimento integral do Recurso. 3. Presença de nexo de causalidade Caso vencido nessa parte, prossigo com o exame do nexo de causalidade. O acórdão recorrido recebeu a seguinte fundamentação: RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 151 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em Oficio expedido pela Cetesb ao Ministério Público consta o encaminhamento das listas das pessoas contratadas no período de outubro de 1988 a dezembro de 1990 e de janeiro de 1991 a dezembro de 1994, consignando que todas as contratações foram efetivadas mediante autorização expressa dos senhores Governadores do Estado de São Paulo, dos referidos períodos (fls. 137138). As listas estão encartadas nos autos, bem como as cópias das autorizações expressas assinadas pelos réus, no exercício da função pública de Poder, como Governador de Estado. Tratando-se a Ceteb de sociedade de economia mista atrelada ao Governo do Estado é evidente que o Governador não é o administrador direto, todavia, quando assume para si o poder de autorizar as contratações deve responder pelo ato praticado. Toda investidura de cargo ou emprego público após a promulgação da Constituição Federal de 1988, imprescinde de concurso público, por isso se o Governador do Estado chamou para si a responsabilidade de autorizar contratações na Cetesb deve responder por seu ato, afinal é o Chefe do Poder Executivo Estadual. As autorizações emanadas de Orestes Quércia estão provadas documentalmente a partir de fls. 3.493-3.522, não havendo dúvida quanto a sua conduta. (...) Como expresso o Governador do Estado não administra a Cetesb, por isso não praticou o ato de contratar, mas como autoridade superior do Poder Executivo no Estado de São Paulo autorizou as contratações contrárias ao mandamento constitucional, desse modo praticou ato de responsabilidade. Se as autorizações não tivessem sido dadas as contratações não teriam ocorrido, e somente o Governador estava investido no poder de autorizar, isto por Decreto por ele assinado. Enfim, se contratações ou investiduras em emprego público ocorreram por autorização do co-réu, e elas aconteceram sem o devido concurso público, ele deve responder por isto. Provado está nos autos que a Cetesb solicitou autorização para várias contratações, não havendo nenhuma indicação de cargos em comissão criados por lei, e que o co-réu expressando a excepcionalidade autorizou as mesmas (fls. 197-219v). O mesmo Oficio que indica as listas e expressa a autorização de Orestes Quércia expressa a autorização de Luiz Antonio Fleury Filho, e o conteúdo deste oficio está corroborado pelas autorizações encartadas nos autos, já indicadas. Desse modo tanto a responsabilização de Orestes Quercia como de Luiz Antonio Fleury Filho são inevitáveis, devendo os mesmos responderem pelas 152 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA conseqüências de todas as contratações da Cetesb que foram autorizadas expressamente por eles, nos respectivos mandatos, e que estejam documentalmente provadas nos autos, isto é, que as cópias das autorizações estejam nos autos. Insta afirmar que a ofensa aos princípios constitucionais faz gerar responsabilidade a quem os ofendem, independentemente do elemento subjetivo. Portanto, a conduta dos réus dá respaldo a suas responsabilizações. (fls. 3.786-3.789-STJ). Meu posicionamento converge com o do eminente Relator em relação à necessidade de realização de prévio concurso para investidura em empregos públicos da Cetesb. Conduto, divirjo na parte em que se afirma que não teria havido ilegalidade na contratação. O acórdão atesta que “o Governador não é o administrador direto, todavia, (...) assume para si o poder de autorizar as contratações”. Ao fazer dessa forma, deixa claro que o fato do qual decorre o ato que justificou a condenação (a autorização das contratações) era de competência do recorrente e que, sem ele, tais contratações não teriam sido realizadas. Desnecessário revolver legislação local ou fatos para assumir que as contratações dependiam de tal autorização. O Acórdão é expresso em afirmar isso. Assumir tal fato como verdadeiro é acatar premissa estabelecida pela decisão objurgada; questioná-lo, sim, exigiria o revolvimento de legislação local ou fatos, inviável em Recurso Especial. O recorrente, ao autorizar a contratação, afronta o art. 37 caput e inciso II, que afirma: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) “II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. Por fim, o Governador não se exime da responsabilidade pela contratação contrária aos ditames da administração pública pela simples razão de que competia à Cetesb recusar o cumprimento de imposição ilegal. Há notícia de que o requerimento para a contratação partiu da própria empresa pública, motivo pelo qual cabia ao Governador rechaçá-lo de plano, RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 153 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de forma a preservar o princípio do concurso público. Mais ainda, a ilegalidade está tanto na requisição quanto na anuência, dado que ambos os fatos são determinantes para a produção do resultado ilegal. Posição contrária poderia gerar um insustentável jogo de empurra, incompatível com a realidade dos autos. Acresço que, em outras hipóteses, a mera autorização já conduziu a condenações análogas: Administrativo. Ato de improbidade. Aquisição de caminhão pela prefeitura. Pagamento efetuado. Veículo alienado fiduciariamente e penhorado. Registro em nome do Município. Impossibilidade. Art. 10 da Lei n. 8.429/1992. Ocorrência de dano ao erário. Culpa da ex-Prefeita. Negligência. Recurso não provido. 1. A ação civil pública foi proposta pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina em face da ex-Prefeita do Município de Bocaina do Sul, por supostos atos de improbidade administrativa, decorrentes de irregularidades em procedimentos licitatórios. (...) 4. O acórdão recorrido considerou evidenciada a atuação negligente da gestora pública, ao autorizar o pagamento de um bem sem avaliar a existência de gravames que impossibilitaram a transferência da propriedade. Nesse contexto, tem-se que a prefeita municipal descumpriu com o dever de zelo com a coisa pública, pois efetuou a despesa sem tomar a mínima cautela de aferir que o automóvel estava alienado fiduciariamente, bem como penhorado à instituição financeira. Por outro lado, o dano ao erário está caracterizado pela impossibilidade de se transferir o bem para o patrimônio municipal. In casu, estão presentes os elementos necessários à configuração do ato de improbidade. 5. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.151.884-SC, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 25.5.2012) Recurso especial. Ação civil pública. Improbidade. Violação de deveres de moralidade jurídica e lealdade às instituições. Consultoria jurídica e representação judicial simultânea do Município e dos servidores. Conflito de interesses público e privado. Dano in re ipsa ao patrimônio público incorpóreo. 1. Considerando que o Município contratou advogado exclusivamente para defender interesses da Administração, caracteriza ato de improbidade administrativa a autorização do Prefeito aos seus subalternos, permitindo-lhes a utilização dos serviços jurídicos do causídico para duvidosa finalidade pública defesa em relação à acusação penal e com denúncia recebida por prática de crime de falsificação de documento público, dispensa irregular de licitação, contratação e designação irregular de servidores, desvio e emprego ilegal de verbas públicas e formação de quadrilha -, evidenciando forte indício de conflito de interesses público e privado. 154 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA (...) 5. Recurso Especial provido tão-somente para anular o acórdão de origem, determinando-se nova apreciação do recurso de apelação do Ministério Público local, observadas as diretrizes de hermenêutica do art. 11, caput, da Lei n. 8.429/1992. (REsp n. 490.259-RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4.2.2011) Em situação análoga à presente, confira-se ainda recente julgamento proferido no REsp n. 1.135.158-SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, (DJ em 1º.7.2013) que tem a seguinte ementa: Administrativo e Processual Civil. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Violação do art. 535 do CPC não caracterizada. Legitimidade do Ministério Público e propriedade da via eleita. Foro por prerrogativa de função. Inexistência. Aplicação da Lei n. 8.429/1992 aos agentes políticos. Contratação sem concurso público. Extinta empresa estadual. Art. 11 da Lei n. 8.429/1992. Configuração do dolo genérico. Prescindibilidade de dano ao erário. Cominação das sanções. Art. 12 da LIA. Redução da multa civil. 1. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide. 2. O Ministério Público possui legitimidade para ajuizar ação civil pública objetivando a defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa. 3. Descabe falar em foro por prerrogativa de função, em ação de improbidade administrativa, ante o julgamento da ADIn n. 2.797 pelo STF, que declarou a inconstitucionalidade da Lei n. 10.628/2002, que alterou a redação do art. 84, §§ 1º e 2º, do CPP. 4. Os sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa não são apenas os servidores públicos, mas todos aqueles que estejam abarcados no conceito de agente público, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei n. 8.429/1992. Precedentes. 5. Aplica-se a Lei n. 8.429/1992 aos agentes políticos. Precedente. 6. A caracterização do ato de improbidade por ofensa a princípios da administração pública exige a demonstração do dolo lato sensu ou genérico. Precedentes. 7. O ilícito previsto no art. 11 da Lei n. 8.249/1992 dispensa a prova de dano, segundo a jurisprudência desta Corte. 8. Multa civil reduzida para 25 (vinte e cinco) vezes o valor percebido pelo agente no cargo de governador de Estado à época dos fatos. 9. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.135.158-SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 1º.7.2013). RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 155 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A transcrição de trechos do voto é imperiosa para a constatação da similitude dos casos (grifei): Cuida-se, na origem, de ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, objetivando a responsabilização por improbidade administrativa contra Luiz Antônio Fleury Filho, Jeandernei Luiz Ribeiro e Paschoal Thomeu, em razão da contratação de funcionários junto à Eletropaulo, sem concurso público, no período compreendido entre 15 de março de 1991 e 31 de dezembro de 1994. O Tribunal de origem concluiu pela parcial procedência da ação, apenas em relação a Luiz Antônio Fleury Filho, impondo as sanções de multa civil no valor 50 (cinquenta) vezes a remuneração por ele percebida no cargo, a suspensão de seus direitos políticos e a proibição de contratar e receber benefícios ou inventivos da Administração, por 3 (três) anos. Feitas essas considerações, passo ao exame do recurso especial. (...) Referente à suposta necessidade de comprovação de má-fé ou dolo, para fins de condenação por ato de improbidade, ressalto que esse tema encontra-se pacificado nesta Corte. O posicionamento firmado pela Primeira Seção é que se exige dolo, ainda que genérico, nas imputações fundadas nos arts. 9º e 11 da Lei n. 8.429/1992 (enriquecimento ilícito e violação a princípio), e ao menos culpa, nas hipóteses do art. 10 da mesma norma (lesão ao erário). (...) In casu, a instância ordinária afirmou categoricamente que o agente, apesar de não ter intenção comprovada de lesionar o erário, agiu conscientemente em ofensa aos princípios da administração, ao contratar inúmeras pessoas sem concurso público, que é suficiente para o reconhecimento da presença do elemento subjetivo na hipótese. Apenas para que fique claro, colaciono trecho do aresto recorrido sobre essa questão (fls. 795-808): No caso em julgamento, não há dúvida de que pessoas, todas nominadas nos autos, foram contratadas, por expressa determinação de um dos recorridos, e que elas não se enquadram na exceção legal. Ora, se este favo é veraz e, como acima foi afirmado, era indispensável o concurso, ao meu juízo, houve violação à lei. Interessante notar que existem documentos, especialmente no Anexo de n. 12, que demonstram ter havido o cuidado de efetuar contratação por concurso público. Há, desta maneira, prova, que não se invalida de que 156 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA era hábito da empresa efetuar concursos, os quais eram promovidos com alusão ao Governo do Estado. Adotaram-se, desta maneira, critérios diversos para o mesmo fim, independente da função a ser exercida, e isto é violador do princípio constitucional. Não se poderiam adotar critérios diversos para o mesmo fim. Não há justificativa legal para este procedimento. (...) Julgo que o recorrido não teve a intenção de liberar verba de forma indevida. Ao determinar as contratações, não teve este escopo. Não agiu de forma deliberada para impor a liberação de verba, outra era a finalidade da contratação. Não ficando patenteada esta intenção, ao meu juízo, é de ser rejeitada a possibilidade de aplicação desta norma, que é específica e que exige prova plena daquela intenção. No entanto, não se pode rejeitar que, no que concerne ao artigo 11, I, outra é a solução. Aqui há o desvio da atividade do Administrador. (...) O acusado, como reconhecido acima, ao admitir a contratação sem concurso público, ao meu juízo, violou a Constituição Federal, por não observar os critérios que norteiam o ingresso ao serviço público. Houve, outrossim, como consequência, violação a princípio isonômico, pois somente uma parcela de pessoas obteve essa possibilidade. Este agir fere a moralidade da administração. Foram realizados atos sem fundamento na lei e, para este caso, existe a submissão do ato com a lei. Afigura-se típica a ação e, portanto, incide esta norma. (grifei). Também se firmou o entendimento de que os atos de improbidade por lesão a princípios administrativos, previstos no art. 11 da Lei n. 8.249/1992, independem da ocorrência de dano ou lesão ao erário. Precedentes: REsp n. 799.094-SP, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 16.9.2008, DJe 22.9.2008; REsp n. 988.374-MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 6.5.2008, DJe 16.5.2008; REsp n. 433.888-SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 1º.4.2008, DJe 12.5.2008; REsp n. 1.011.710-RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 11.3.2008, DJe 30.4.2008; REsp n. 757.205-GO, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 27.2.2007, DJ 9.3.2007 p. 299; e REsp n. 695.718-SP, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 16.8.2005, DJ 12.9.2005 p. 234. Ressalto que a alegação do recorrente, no sentido de que apenas teria autorizado as contratações, e não as determinado, é contrária à expressa afirmação do acórdão recorrido, e inviável de modificação nesta via, ante o óbice da Súmula n. 7-STJ. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 157 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Por fim, no tocante à dosimetria das sanções aplicadas, considerando as peculiaridades dos autos, entendo por bem reduzir o quantum devido à título de multa civil. O máximo da multa, como estabelecido em abstrato é 100 (cem) vezes o valor do salário percebido pelo agente no cargo de governador do Estado à época dos fatos. O acórdão fixou em 50 (cinqüenta vezes). a fim de evitar exacerbação da multa considero que hum quarto do valor máximo permitido coloca-se em patamar razoável. Assim, fixando a multa em 25 (vinte e cinco) vezes o valor percebido pelo agente no cargo de governador de Estado à época dos fatos. 4. Conclusão Diante do exposto, com vênias ao eminente Ministro Castro Meira, que vota pelo provimento do Recurso Especial por identificar falta de nexo de causalidade, voto por não conhecer do Apelo e, caso vencido, por não provê-lo. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.286.466-RS (2011/0058560-5) Relatora: Ministra Eliana Calmon Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul Recorrido: Odilon Almeida Mesko Advogado: Luiz Geraldo Telesca Mota EMENTA Administrativo. Ação civil pública. Improbidade administrativa. Assédio moral. Violação dos princípios da administração pública. Art. 11 da Lei n. 8.429/1992. Enquadramento. Conduta que extrapola mera irregularidade. Elemento subjetivo. Dolo genérico. 1. O ilícito previsto no art. 11 da Lei n. 8.249/1992 dispensa a prova de dano, segundo a jurisprudência do STJ. 2. Não se enquadra como ofensa aos princípios da administração pública (art. 11 da LIA) a mera irregularidade, não revestida do elemento subjetivo convincente (dolo genérico). 158 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA 3. O assédio moral, mais do que provocações no local de trabalho – sarcasmo, crítica, zombaria e trote –, é campanha de terror psicológico pela rejeição. 4. A prática de assédio moral enquadra-se na conduta prevista no art. 11, caput, da Lei de Improbidade Administrativa, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém. 5. A Lei n. 8.429/1992 objetiva coibir, punir e/ou afastar da atividade pública os agentes que demonstrem caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida. 6. Esse tipo de ato, para configurar-se como ato de improbidade exige a demonstração do elemento subjetivo, a título de dolo lato sensu ou genérico, presente na hipótese. 7. Recurso especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça “A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a), sem destaque e em bloco.” Os Srs. Ministros Castro Meira, Humberto Martins, Herman Benjamin e Mauro Campbell Marques (Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 3 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministra Eliana Calmon, Relatora DJe 18.9.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Eliana Calmon: Trata-se de recurso especial fundado na alínea a do permissivo constitucional contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado (fl. 499): Apelação cível. Ação de improbidade. Ato atentatório aos princípios da administração pública. Punição indevida a funcionário municipal. Inexistência de ato de improbidade para os fins da Lei n. 8.42911992. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 159 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Conforme abalizada doutrina, a probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa, que mereceu consideração especial e da Constituição, que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políticos. Consiste no dever de o funcionário, no exercício de suas funções, servir a Administração com honestidade, sem se aproveitar dos poderes e facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem. Não é qualquer falta funcional que dá ensejo à condenação nas penas da Lei da Improbidade. No caso, a indevida punição de funcionário não guarda qualquer relação com a moralidade administrativa prevista no art. 11 da Lei n2’ 8.429/1992. Improcedência da demanda. Apelação provida. O recorrente aponta ofensa ao art. 11, caput, da Lei n. 8.429/1992, sob o argumento de ocorrência de ato atentatório aos princípios da Administração Pública, com a consequente aplicação das sanções cabíveis. Sem contrarraazões (certidão de fl. 517), subiram os autos a esta Corte por força de decisão no AREsp n. 9.031-RS (fl. 558). Nesta instância, o Ministério Público Federal pronunciou-se consoante parecer com ementa nos seguintes termos (fl. 569): Administrativo e Processo Civil. Ação Civil Pública. Improbidade Administrativa. Ato atentatório aos princípios da administração pública. 2. Punição indevida a funcionário municipal impedindo-a de trabalhar em suas funções regulares sem qualquer sindicância ou procedimento administrativo disciplinar. 3. Violação aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa. Desvio de finalidade do cargo público de prefeito municipal. 4. Parecer do MPF pelo conhecimento e provimento do recurso especial, a fim de reformar o acórdão hostilizado e restabelecer a sentença. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Eliana Calmon (Relatora): Cuida-se, na origem, de ação civil pública de responsabilidade por ato de improbidade administrativa, proposta pelo Parquet estadual contra Odilon Almeida Mesko, ex-Prefeito de Canguçu-RS. 160 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA O TJ-RS concluiu pela improcedência da ação, reformando integralmente a sentença, que havia condenado o réu à suspensão dos direitos políticos por 3 (três) anos; ao pagamento de multa civil de 5 (cinco) anos no valor da remuneração percebida à época do fato e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 3 (três) anos. Busca o recorrente, o reenquadramento das condutas imputadas ao réu como ato de improbidade, por ofensa aos princípios norteadores da Administração Pública (art. 11 da LIA). Inicialmente, destaco que o recurso especial não depende de incursão no acervo fático-probatório, sabidamente obstada pela Súmula n. 7-STJ, pois os contornos fáticos estão muito bem delimitados nos provimentos judiciais da instância ordinária, notadamente, na sentença de fls. 454-457. Feitos esses breves esclarecimentos, passo ao exame do recurso especial. O caput do art. 11 da Lei n. 8.429/1992 define como ato de improbidade a conduta “que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. Sobre o referido dispositivo, já assentou esta Corte, que a tipificação dessas condutas independe da ocorrência de prejuízo ao erário. Também se pondera neste Tribunal Superior, que nem toda ilicitude é, por si só, ato de improbidade. Ficam de fora do conceito de ato ímprobo as meras irregularidades, não revestidas do elemento subjetivo convincente, que, segundo pacificado nesta Casa, se trata do dolo genérico ou lato sensu, consubstanciado na consciência da ilicitude. Diante desse cenário hermenêutico, cabe a análise dos fatos imputados ao réu na presente ação. Para tanto, aproveito-me de trecho da sentença (fls. 454-455): O Ministério Público ajuizou ação civil pública em desfavor de Odilon Almeida Mesko, já qualificado, aduzindo ter o réu praticado ato de improbidade, por ter atentado contra os princípios da administração pública (art. 11, caput, da Lei n. 8.429/1992). Alegou ter o réu se valido da função de Prefeito Municipal para vingar-se da funcionária pública municipal Célis Terezinha Bitencourt Madrid, obrigando-a a permanecer “de castigo” na sala de reuniões da Prefeitura nos dias RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 161 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 19, 20, 21 e 22 de junho de 2001. Relatou ter o réu sido movido por sentimento de vingança, vez que referida servidora teria levado ao conhecimento do Ministério Público a existência de dívida do Município com o Fundo de Aposentadoria dos Servidores Públicos. Referiu ter o réu ameaçado colocar a servidora em disponibilidade, bem como ter-lhe concedido, sem solicitação, férias de 30 dias. Argumentou ter referido fato dado ensejo à matérias jornalísticas e a instauração de uma comissão especial na Câmara Municipal de Canguçu. Ressaltou ter o réu ofendido os princípios que norteiam a Administração Pública, em especial o da legalidade e o da impessoalidade. Requereu a procedência da ação, ao efeito de declarar o fato imputado ao réu como ato de improbidade administrativa, bem como condenar o réu às sanções previstas no art. 12, inciso III, da Lei n. 8.429/1992. (...) O fato imputado ao réu vem fartamente comprovado através dos documentos juntados com a inicial. Com efeito, as reportagens jornalísticas de fls. 23-24 demonstram, de forma clara, o fato ocorrido, tendo a reportagem do jornal “Zero Hora” exibido, inclusive, uma fotografia da servidora (fl. 23). Ademais, as reportagens referem não se tratar de fato isolado, tendo o réu agido de forma semelhante com, ao menos, cinco servidores. O próprio réu, entrevistado pelo jornal “Zero Hora”, afirma ter agido nos termos descritos na inicial, referindo, inclusive, que “três dias foi muito pouco para ela” (fl. 23). A servidora atingida pelo ato do réu, ao depor perante a Comissão Especial da Câmara de Vereadores local, confirmou os fatos descritos na inicial, asseverando ter denunciado dívida do Município com o Fundo de Aposentadoria dos servidores públicos municipais, tendo, então, lhe sido determinado pelo réu que permanecesse sentada no seu gabinete e, posteriormente, na sala de reuniões, contígua a este. Referiu ter o “castigo” sido presenciado por diversas pessoas ao longo dos quatro dias (fls. 123-125). O restante dos documentos juntados referem, modo contundente, a prática do ato descrito na inicial pelo réu. Cumpre citar os depoimentos dos servidores Genes Gentil Bento e Amadelino da Silva, bem como o servidor Ênio Daniel J. Heinemann (fls. 126-128, 136 e 146-147). Ademais, além da farta prova acerca da ocorrência e da autoria do fato, o próprio réu, representado por advogado, admitiu sua prática em sede de contestação, se limitando a argumentar não se tratar de ato de improbidade (fl. 420) (grifei). Assim, é incontroverso nos autos, inclusive com confissão do próprio acusado, ter o réu, na qualidade de Prefeito, imposto à funcionária pública municipal Célis Terezinha Bitencourt Madrid “castigo”, ao afastá-la de suas funções e obrigando-a a permanecer três dias na sala de reuniões da Prefeitura em junho de 2001. 162 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Também restou comprovado os motivos determinantes de sua conduta: sentimento de vingança, em razão da referida servidora ter denunciado ao Ministério Público a existência de dívida do Município com o Fundo de Aposentadoria dos Servidores Públicos. Os fatos se tornaram públicos e amplamente noticiados na mídia local. A meu sentir, estamos diante de caso clássico de assédio moral, agravado por motivo torpe. O assédio moral, mais do que apenas provocações no local de trabalho – sarcasmo, crítica, zombaria e trote –, é uma campanha de terror psicológico, com o objetivo de fazer da vítima uma pessoa rejeitada. O indivíduo-alvo é submetido a difamação, abuso verbal, comportamento agressivo e tratamento frio e impessoal. Esses elementos, se não todos, estão presentes na hipótese. A conduta do agente foi tão danosa, que já lhe rendeu, na seara civil, decisão indenizatória em favor da servidora, conforme noticiado pelo juízo de 1º grau (fl. 456): É bem de ver, ainda, ter o fato praticado pelo réu prejudicado a servidora pública em questão, estando seu prejuízo individual descoberto pela Lei de Improbidade Administrativa, tanto que esta ingressou com ação ordinária indenizatória em desfavor do réu, a qual foi julgada procedente e confirmada pela Superior Instância, estando em fase de cumprimento (Processo n. 042/1.03.00029898). Todavia, o prejuízo causado à servidora não afasta o prejuízo público, este sim protegido pela Lei de Improbidade Administrativa (grifei). A questão é saber se o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa também abrange atos como o presente, configuradores de assédio moral. A Lei n. 8.429/1992 objetiva coibir, punir e/ou afastar da atividade pública todos os agentes que demonstrem pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida. A partir dessas premissas, não tenho dúvida de que comportamentos como o presente, enquadram-se em “atos atentatórios aos princípios da administração pública”, pois “violam os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém. Ademais, consoante já mencionado, está absolutamente caracterizado o elemento subjetivo na hipótese, a título de dolo genérico. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 163 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Agiu com acerto, portanto, o juízo de 1º grau, ao concluir pela procedência da demanda, pelo reconhecimento de improbidade administrativa, prevista no art. 11 da Lei 8.429/1992. Com essas considerações, dou provimento ao recurso especial, para restabelecer a sentença de fls. 454-457. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.365.433-MG (2013/0016585-3) Relator: Ministro Herman Benjamin Recorrente: Itaú Unibanco S/A Advogados: Landulfo de Oliveira Ferreira Junior Antônio Chaves Abdalla Estefânia Trad Marcelo Alves Cavalcante e outro(s) Alvaro José Eliazar Ubaldo Recorrido: Município de Oliveira Procuradores: Tadahiro Tsubouchi e outro(s) Carlos Alberto de Faria Lobato EMENTA Processual Civil e Tributário. Depósito judicial. Levantamento parcial pelo Município. Instituição de fundo de reserva e preenchimento dos requisitos da Lei n. 10.819/2003. Hipótese que não caracteriza conversão em renda. 1. Cuida-se de Recurso Especial no qual a parte busca reformar acórdão que garantiu o levantamento parcial de depósito judicial pelo Município, consoante expressa autorização do art. 1º, § 2º, da Lei n. 10.819/2003. 2. A Lei n. 10.819/2003 concede ao Município que instituir fundo de reserva destinado a garantir eventual obrigação de ressarcimento o 164 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA repasse de parcela correspondente a 70% do valor dos depósitos em instituição financeira referentes a créditos tributários controvertidos de competência municipal efetuados a partir de sua vigência (arts. 1º e 2º). 3. O STJ já teve a oportunidade de reconhecer a existência desse direito, desde que fosse criado o aludido fundo de reserva e firmado termo de compromisso pelo Chefe do Poder Executivo Municipal, nos moldes do art. 2º da Lei n. 10.819/2003 (REsp n. 773.066-RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 30.8.2006, p. 175; AgRg na MC n. 9.617-SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 30.5.2005, p. 209). 4. In casu, o Tribunal a quo atestou que o Município instituiu o fundo de reserva previsto no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.819/2003 e concluiu que se encontram atendidos os requisitos impostos pelo art. 2º do aludido diploma legal, sobretudo a existência de capital suficiente para garantir a devolução dos recursos, se o ente público vir a sucumbir: “In casu, tanto o termo de compromisso, quanto a apresentação dos gastos municipais e da receita disponível ao Município foram carreadas à f. 53-58 - TJ, comprovando que a Administração Pública do Município de Oliveira dispõe de capital suficiente para efetuar o levantamento do percentual de 70% e devolvê-lo, se for o caso” (fl. 230). 5. Ao contrário do que alega o recorrente, o repasse do percentual em questão não caracteriza hipótese de conversão de depósito em renda (art. 156, VI, do CTN), mas levantamento parcial sob a condição resolutiva de que o contribuinte venha a ser vencedor no processo. Com efeito, estabelece o art. 4º da Lei n. 10.819/2003: “Encerrado o processo litigioso com ganho de causa para o depositante, mediante ordem judicial, o valor do depósito efetuado nos termos desta Lei, acrescido da remuneração que lhe foi originalmente atribuída, será colocado à disposição do depositante pela instituição financeira responsável, no prazo de três dias úteis (...)”. 6. O recorrente sustenta que o art. 535, II, do CPC foi violado, mas aponta omissão acerca de normas que não foram debatidas nos aclaratórios opostos na origem. Essa dissociação entre as razões apresentadas na preliminar do Recurso Especial e aquelas veiculadas nos Embargos de Declaração interpostos no Tribunal a quo implica a incidência, por analogia, da Súmula n. 284-STF. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 165 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 7. O argumento de que a lei ordinária conflita com o disposto no CTN (arts. 151, II, e 156, IV, do CTN), que tem natureza de lei complementar, é matéria de cunho constitucional, motivo pelo qual não pode ser apreciada no âmbito do Recurso Especial, sob pena de usurpação da competência do STF (REsp n. 1.151.573-SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 24.6.2013; AgRg no Ag n. 1.248.980-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 19.8.2011). 8. Não houve prequestionamento dos arts. 827 e 828 do CPC, de modo que se aplica, nesse ponto, o óbice da Súmula n. 211-STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”. 9. Por fim, não há como rever a conclusão do Tribunal a quo sobre o preenchimento dos requisitos legais para o levantamento parcial do depósito pelo Município, porquanto seria necessário revolver o contexto fático-probatório, o que não é admitido pela Súmula n. 7-STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. 10. Recurso Especial conhecido parcialmente e, nessa parte, não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A Turma, por unanimidade, conheceu em parte do recurso e, nessa parte, negoulhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques (Presidente), Eliana Calmon, Castro Meira e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 5 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Herman Benjamin, Relator DJe 26.9.2013 166 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA RELATÓRIO O Sr. Ministro Herman Benjamin: Trata-se de Recurso Especial interposto, com fundamento no art. 105, III, a e c, da Constituição da República, contra acórdão assim ementado: Ementa: Agravo de instrumento. Execução fiscal. Cobrança de ISSQN, taxa de publicidade, TLL e IPTU. Depósito do valor integral da dívida. Levantamento de 70% do importe. Possibilidade. Lei Federal n. 10.819/2003 e Lei Municipal n. 3.043/2011. Comprometimento e garantia de reversibilidade da medida. Ocorrência. Decisão mantida. Nas execuções fiscais em que o valor da dívida é depositado integralmente, o Município que institui o Fundo de Reserva Especial, fica autorizado a levantar 70% desta quantia, desde que se comprometa e garanta a reversibilidade da medida, nos moldes das Leis Federal n. 10.819/2003 e Municipal n. 3.043/2011 (fl. 225). Os Embargos de Declaração foram rejeitados (fls. 248-252). O recorrente alega que houve, além de divergência jurisprudencial, violação dos arts. 9º, II, § 3º, da LEF; 128, 535, 620, 827 e 828 do CPC; 151, II, e 156, VI, do CTN. Apresenta os seguintes fundamentos: a) o Tribunal a quo incorreu em omissão: b) a Lei n. 10.819/2003, ao versar sobre crédito tributário, contraria o CTN; c) o depósito é causa de suspensão da exigibilidade, de modo que, enquanto pendente a Ação Anulatória, não pode haver sua conversão em renda (arts. 151, II, e 156, VI); d) não foram preenchidos os requisitos necessários para o levantamento do depósito; e) há divergência jurisprudencial quanto à obrigatoriedade de o Município comprovar as condições de devolver os recursos imediatamente, caso saia vencido na demanda; f ) ocorreu violação do contraditório e da ampla defesa pela ausência de intimação antes da decisão que determinou o levantamento de parte do depósito. Contrarrazões nas fls. 391-403. É o relatório. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 167 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO O Sr. Ministro Herman Benjamin (Relator): Os autos foram recebidos neste Gabinete em 23.5.2013. A irresignação não merece acolhida. Cuida-se de Recurso Especial no qual a parte busca reformar acórdão que garantiu o levantamento parcial de depósito judicial pelo Município, consoante autorização expressa do art. 1º, § 2º, da Lei n. 10.819/2003, in verbis: Art. 1º Os depósitos judiciais, em dinheiro, referentes a tributos e seus acessórios, de competência dos Municípios, inclusive os inscritos em dívida ativa, serão efetuados, a partir da data da publicação desta Lei, em instituição financeira oficial da União ou do Estado a que pertença o Município, mediante a utilização de instrumento que identifique sua natureza tributária. § 1º Os municípios poderão instituir fundo de reserva, destinado a garantir a restituição da parcela dos depósitos referidos no caput que lhes seja repassada nos termos desta Lei. § 2º Ao município que instituir o fundo de reserva de que trata o § 1º, será repassada pela instituição financeira referida no caput a parcela correspondente a setenta por cento do valor dos depósitos de natureza tributária nela realizados a partir da vigência desta Lei. § 3º A parcela dos depósitos não repassada nos termos do § 2º será mantida na instituição financeira recebedora, que a remunerará segundo os critérios originalmente atribuídos aos depósitos. O Tribunal a quo atestou que o Município instituiu o fundo de reserva de que trata o § 1º do art. 1º da Lei n. 10.819/2003 e concluiu que se encontram atendidos os requisitos impostos pelo art. 2º do aludido diploma legal, sobretudo a existência de capital suficiente para garantir a devolução dos recursos, caso o ente público venha a sucumbir. Confira-se: In casu, tanto o termo de compromisso, quanto a apresentação dos gastos municipais e da receita disponível ao Município foram carreadas à f. 53-58 - TJ, comprovando que a Administração Pública do Município de Oliveira dispõe de capital suficiente para efetuar o levantamento do percentual de 70% e devolvê-lo, se for o caso. Não prevalece, portanto, as insurgências de que aludido Fundo de Reserva foi instituído sem prévia autorização e de inconstitucionalidade formal das Leis n. 10.819/2003 e 3.043/2011, pela impossibilidade de utilização da garantia até a decisão final do litígio, haja vista que aludido levantamento não se pauta 168 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA em confiscatoriedade da propriedade do contribuinte, mas tão somente de recolhimento temporário, eis que reversível a qualquer tempo pelo Município, sem prejuízo às partes. Importante anotar que seria outro o deslinde caso o Município não demonstrasse, através da receita disponível, a possibilidade de devolver importe quando requisitado. Desta forma, tenho que merece ser mantida a decisão, porquanto não há risco de prejuízos financeiros ao agravante que impeçam o desfazimento da medida (fl. 230). O recorrente sustenta que o art. 535, II, do CPC foi violado, mas aponta omissão acerca de normas que não foram debatidas nos aclaratórios opostos na origem. Essa dissociação entre as razões apresentadas na preliminar do Recurso Especial e aquelas veiculadas nos Embargos de Declaração interpostos no Tribunal a quo implica a incidência, por analogia, da Súmula n. 284-STF. O argumento de que a lei ordinária conflita com o disposto no CTN (arts. 151, II, e 156, IV, do CTN), que tem natureza de lei complementar, é matéria de cunho constitucional, razão pela qual não pode ser apreciada no âmbito do Recurso Especial, sob pena de usurpação da competência do STF (REsp n. 1.151.573-SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 24.6.2013; AgRg no Ag n. 1.248.980-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 19.8.2011). Não houve prequestionamento dos arts. 827 e 828 do CPC, de modo que se aplica, nesse ponto, o óbice da Súmula n. 211-STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”. A Lei n. 10.819/2003 concede ao Município que instituir fundo de reserva destinado a garantir eventual obrigação de ressarcimento o repasse de parcela correspondente a setenta por cento do valor dos depósitos em instituição financeira referentes a créditos tributários controvertidos de competência municipal efetuados a partir de sua vigência (arts. 1º e 2º). O STJ já teve a oportunidade de reconhecer a existência desse direito, desde que fosse criado o aludido fundo de reserva e firmado termo de compromisso pelo Chefe do Poder Executivo Municipal, nos moldes do art. 2º da Lei n. 10.819/2003. Nesse sentido: Tributário. Lei n. 10.819/2003. Depósitos judiciais. Repasse aos municípios. Fundo de reserva. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 169 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. Nos termos do art. 1º da Lei n. 10.819/2003, o município terá direito ao repasse, em dinheiro, de 70% (setenta por cento) do valor dos depósitos judiciais realizados, referentes a tributos de competência municipal e seus acessórios, desde que institua fundo de reserva, destinado a garantir eventual restituição da parcela. Os outros 30% (trinta por cento) ficam mantidos na instituição financeira recebedora. 2. Contudo, conforme dispõe o § 2º da mesma lei, a habilitação para o recebimento das transferências fica condicionada à apresentação de termo de compromisso firmado pelo Prefeito, que preveja, a cada repasse, a destinação automática ao fundo de reserva do valor correspondente à parcela dos depósitos judiciais mantida na instituição financeira. Em síntese, dos 70% (setenta por cento) repassados ao município 30% (trinta por cento) têm “destinação automática” para o fundo de reserva. 3. Recurso especial improvido. (REsp n. 773.066-RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 30.8.2006, p. 175). Processual Civil. Medida cautelar para emprestar efeito suspensivo a recurso especial. Levantamento, pelo Município, de valores depositados à conta do juízo. Lei n. 10.819/2003. ISS. Leasing. Incidência. Súmula n. 138-STJ. 1. É legitimo o levantamento do depósito, pelo Município, na forma da Lei n. 10.819/2003, máxime quando ostenta o fundo de reserva, autorizado por lei, e que garante a restituição integral, diante do insucesso da demanda. 2. É sumulado no Eg. STJ que: “O ISS incide na operação de arrendamento mercantil de coisas móveis”. 3. Sobressai o periculum in mora, da ordem mandamental que impõe a devolução de importâncias consumidas com os interesses dos munícipes, em prol de débito consagrado pelo Eg. STJ. 4. Deveras, a ratio essendi da Lei n. 10.819/2003 é explícita na exposição de motivos ao justificar o diploma assentando: “o presente projeto de lei tem por objetivo dar finalidade útil aos recursos que forem objeto de depósito judicial ou extrajudicial de valores referentes a débitos tributários em litígio. A absoluta indisponibilidade destas receitas contrastam com a grave situação financeira dos municípios, legítimos credores de tais quantias, na maior parte dos casos. Não há mais espaço para a ociosidade de tamanho montante de recursos, enquanto processos judiciais tramitam por anos a fio pelas instâncias judiciais do País.” 5. Agravo Regimental desprovido. (AgRg na MC n. 9.617-SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 30.5.2005, p. 209). 170 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Ao contrário do que alega o recorrente, o repasse do percentual em questão não caracteriza a hipótese de conversão de depósito em renda (art. 156, VI, do CTN), mas levantamento parcial sob a condição resolutiva de que o contribuinte venha a ser vencedor no processo. Com efeito, estabelece o art. 4º da Lei n. 10.819/2003: “Encerrado o processo litigioso com ganho de causa para o depositante, mediante ordem judicial, o valor do depósito efetuado nos termos desta Lei, acrescido da remuneração que lhe foi originalmente atribuída, será colocado à disposição do depositante pela instituição financeira responsável, no prazo de três dias úteis (...)”. Por fim, não há como rever a conclusão do Tribunal a quo sobre o preenchimento dos requisitos legais para o levantamento parcial do depósito pelo Município, porquanto seria necessário revolver o contexto fático-probatório, o que não é admitido pela Súmula n. 7-STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. A divergência jurisprudencial apontada se refere aos pontos acima aludidos, os quais não ultrapassam o juízo de admissibilidade recursal. Diante do exposto, conheço parcialmente do Recurso Especial e, nessa parte, nego-lhe provimento. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.371.114-PE (2013/0057369-5) Relatora: Ministra Eliana Calmon Recorrente: União Recorrido: Município de Brejo da Madre de Deus Advogado: Bruno Romero Pedrosa Monteiro EMENTA Administrativo. FUNDEB. Complementação da União. Valor mínimo nacional por aluno. Ajuste. Prazo quadrimestral. Art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007. Marco temporal não peremptório. Prazo mínimo. Art. 54 da Lei n. 9.784/1999. Submissão. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 171 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. Cabe à União, a complementação de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, instituído pela Emenda Constitucional n. 53/2006 (que deu nova redação ao art. 60 do ADCT), regulamentada pela Lei n. 11.494/2007, a fim de garantir o valor mínimo nacional por aluno/ano no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, nos casos em que esse limite não for alcançado com os recursos dos próprios entes federativos. 2. O prazo quadrimestral previsto no art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007, para que a União proceda ao ajuste de complementação de valores, não tem caráter peremptório, deixando o legislador de prever qualquer penalidade em caso de descumprimento. 3. O referido marco temporal deve ser compreendido como prazo mínimo, a fim conferir estabilidade e equilíbrio às relações dos entes participativos do Fundo, aplicando-se, por analogia, o prazo previsto no art. 54 da Lei n. 9.784/1999, para a União rever seus próprios atos. 4. Recurso especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça “A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin e Mauro Campbell Marques (Presidente) votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 24 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministra Eliana Calmon, Relatora DJe 1º.10.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Eliana Calmon: Trata-se de recurso especial fundado na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, assim ementado (fl. 429): 172 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Administrativo e Constitucional. FUNDEB. Ajuste de repasse do FUNDEB decorrente da Portaria n. 1.462/2008 do Ministério da Educação. Violação literal do art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007. Apelação e remessa improvidas. I - Ausência da obrigatoriedade de formação de litisconsórcio passivo, tendo em vista que o ato impugnado foi praticado pela União Federal, única responsável pelo ato impugnado. II - Nos termos da redação do art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007, os ajustes no pagamento da complementação para o FUNDEB devem ser efetuados até o término do primeiro quadrimestre do exercício financeiro seguinte, razão pela qual, com relação aos valores quitados em 2007, tal medida deveria ter lugar até 30 de abril de 2008, não devendo ser determinado pela Portaria n. 1.462, editada em dezembro de 2008. IV - Apelação provida. Sentença reformada. Ambos os embargos de declaração opostos pela União foram parcialmente acolhidos, os primeiros para suprir omissão quanto aos juros moratórios, os quais devem incidir nos termos do art. 1º-F da Lei n. 9.494/1997, com a redação conferida pela Lei n. 11.960/2009, já os segundos para esclarecer que na fixação dos honorários advocatícios, quando vencida a Fazenda Pública, a despeito do § 4º do art. 20 do CPC, pode o juiz estabelecê-los dentro dos limites previstos no § 3º (fls. 478-482 e 493-496). A recorrente aponta contrariedade ao art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007, ao argumento de prever o dispositivo o ajuste da complementação repassada pela União, a maior ou a menor, a ser realizado no primeiro quadrimestre do ano seguinte ao ano de referência do repasse. Sustenta que no presente caso, o ajuste realizado em dezembro de 2008, referente ao repasse de 2007, com base na Portaria n. 1.462/2008, conferiu ao Município prazo superior à previsão legal para devolver os valores que não lhe pertenciam, inexistindo, deste modo, qualquer prejuízo. Aduz que os cálculos de ajuste apenas podem ser realizados após a consolidação do valor nacional do Fundo, “desdobrado por Estado, já que a forma como se estruturou o FUNDEB impõe a observação de critérios nacionais e regionais” (fl. 511), sendo o atraso motivado pelo fato de os dados não terem sido fornecidos tempestivamente pelos Estados. De outra parte, defende a negativa de vigência ao art. 20, § 4º, do CPC, na medida em que a fixação dos honorários advocatícios na importância de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa revela-se exorbitante, por se tratar de causa de baixa complexidade. RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 173 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Com contrarrazões às fls. 525-536, o Tribunal de origem admitiu o recurso especial (fls. 538-539). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Eliana Calmon (Relatora): Inicialmente, entendo necessário tecer alguns breves esclarecimentos acerca do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, instituído pela Emenda Constitucional n. 53/2006 (que deu nova redação ao art. 60 do ADCT), regulamentada pela Lei n. 11.494/2007 (oriunda da conversão da Medida Provisória n. 339/2006), que por sua vez, foi regulamentada pelo Decreto n. 6.253/2007. Enquanto o FUNDEF, que vigorou de 1998 a 2006, se limitava ao ensino fundamental, o FUNDEB, seu substituto, abrange a educação básica, nela compreendida a educação infantil, o ensino fundamental e médio, e a educação de jovens e adultos, além de estender a remuneração proporcional a todos os trabalhadores da educação, e não apenas aos do magistério. O F UNDEB, em seu aspecto contábil, se constitui de recursos provenientes de impostos e de transferências dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, destinados à educação (art. 212 da CF), e de parcela de recursos federais (União), a título de complementação financeira. Como se vê, o objetivo primordial do Fundo é promover a redistribuição dos recursos vinculados à educação, que se dá proporcionalmente ao número de alunos das diversas etapas e modalidades da educação básica presencial, matriculados nas respectivas redes de ensino. O cálculo da proporcionalidade está definido no art. 212 da Constituição Federal. De acordo com os arts. 44 e 48 da Lei n. 11.494/2007, a vigência do fundo compreende o período 2007 a 2020, sendo que a partir do seu terceiro ano a alíquota de retenção do fundo atingirá o patamar de 20% (vinte por cento), calculada sobre as seguintes fontes de impostos e transferências de ordem constitucional (art. 3º do mesmo diploma legal): 1) Fundo de Participação dos Estados - FPE; 2) Fundo de Participação dos Municípios - FPM; 3) Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre prestação de Serviços - ICMS; 174 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA 4) Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações IPIexp; 5) Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações de quaisquer bens ou direitos - ITCMD; 6) Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores - IPVA; 7) Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (cota-parte dos Municípios) - ITRm; 8) Recursos relativos à desoneração de exportações de que trata a LC n. 87/1996; 9) Arrecadação de imposto que a União eventualmente instituir no exercício de sua competência (cotas-partes dos Estados, Distrito Federal e Municípios); 10) Receita da dívida ativa tributária, juros e multas relativas aos impostos acima relacionados. A complementação da União, não inferior a 10% (dez por cento) do total dos recursos apresentados acima, tem por escopo garantir o valor mínimo nacional por aluno/ano no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, nos casos em que esse limite não for alcançado com os recursos dos próprios entes federativos. Isso significa que a União complementará o fundo tão-somente nos Estados cujo per capita se situe abaixo do mínimo nacional, o qual é calculado levando em consideração os seguintes fatores: total geral da receita prevista para o Fundo, em vista das contribuições de Estados, DF e Municípios; número de alunos matriculados nos vários segmentos da educação básica; fatores de diferenciação; e valor da complementação da União para o exercício. O Manual de Orientação do FUNDEB, expedido pelo Fundação Nacional do Desenvolvimento da Educação - FNDE (disponível em www.fnde.gov.br), em relação à estimativa da complementação da União, esclarece: Apenas os repasses da complementação da União têm os seus valores previamente conhecidos, já que os valores mensais são calculados e publicados no início do exercício, por meio de Portaria Interministerial dos Ministérios da Educação e da Fazenda. No final de cada ano, são realizadas estimativas dos valores anuais do Fundo de cada estado para o ano seguinte. Essas estimativas servem de base à realização dos cálculos dos valores por aluno/ano de cada estado e do valor RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 175 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA mínimo nacional por aluno/ano. No final de cada exercício, entretanto, essas estimativas são confrontadas com os valores efetivamente arrecadados. As diferenças identificadas são contornadas por meio de ajustes de contas anuais do Fundo, podendo gerar valores financeiros a creditar ou a debitar aos estados e municípios. Assim, o ajuste da contas do Fundo, levado a efeito pela União, realiza-se com o confronto dos valores estimados com os efetivamente arrecadados pelos Entes Federativos, permitindo, conforme o caso, creditar ou debitar quantias dos municípios e estados. Feitas essas considerações, passo ao exame da presente demanda. Cuida-se, na origem, de ação ordinária ajuizada pelo Ente Municipal, objetivando a declaração de ilegalidade da dedução do valor de R$ 97.492,95 (noventa e sete mil e quatrocentos e noventa e dois reais e noventa e cinco centavos) da conta do FUNDEB, a título de ajuste financeiro, em razão da incidência da Portaria n. 1.462/2008-MEC, editada pelo Ministro da Educação, por suposta violação do prazo previsto no § 2º do art. 6º da Lei n. 11.494/2007, que limita o referido ajuste ao primeiro quadrimestre do exercício financeiro seguinte. Sobrevindo sentença pela improcedência do pedido, apelou o município, ora recorrido, reafirmando direito ao estorno da retenção da cota do FUNDEB com base na citada portaria, em razão da ilegalidade do procedimento adotado. O Tribunal de origem deu provimento à apelação do município, sob o fundamento seguinte (fls. 426-427): Consoante o texto legal, é permitido à União proceder a ajustes nos valores da complementação para o FUNDEB, mas desde que realizados dentro do 1º (primeiro) quadrimestre do exercício financeiro seguinte. Não foi o que ocorreu no caso dos autos. Tratando-se das complementações quitadas durante o exercício de 2007, os ajustes, na forma prevista no dispositivo legal transcrito, somente poderiam ocorrer até o primeiro quadrimestre do ano seguinte, ou seja, até 30 de abril de 2008. Por outro lado, observa-se, com clareza, do teor da Portaria n. 1.462/2008, mais precisamente do seu art. 1º, § 1º, a determinação de ajustes nos valores repassados aos municípios. No caso em tela, tal ocorreu em dezembro de 2008, mês no qual fora editada a Portaria n. 1.462/2008, de modo que houve violação literal ao art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007. 176 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA (...) É induvidoso que, em cabendo ao município o direito de não ver executado o ajuste a que se refere à referida Portaria, há de restaurado seu direito ao recebimento do que lhe era devido, não se podendo cogitar de qualquer ofensa ao art. 167, IV, da Lei Maior. Com essas considerações, dou provimento à apelação para condenar a União a estornar, em favor do município, acima epigrafado, o quantum debitado de sua conta do FUNDEB, a título de complementação da União, em virtude do afastamento da incidência da Portaria n. 1.462/2008, editada pelo Ministro da Educação. A Corte a quo considerou que o ajuste fora do prazo, levado a cabo pela União, violou o § 2º art. 6º da Lei n. 11.494/2007, devendo o débito ser restituído à conta municipal. De fato, a Portaria n. 1.462/2008, editada pelo Ministério da Educação, foi publicada em dezembro de 2008, além do prazo conferido pela Lei para realizar o ajuste financeiro. A questão controversa pode ser assim sintetizada: é possível o acerto de contas pela União fora do período fixado na lei (1º quadrimestre do exercício seguinte)? Transcrevo o teor do dispositivo tido por violado: Lei n. 11.494/2007 Art. 6º A complementação da União será de, no mínimo, 10% (dez por cento) do total dos recursos a que se refere o inciso II do caput do art. 60 do ADCT. (...) 2º A complementação da União a maior ou a menor em função da diferença entre a receita utilizada para o cálculo e a receita realizada do exercício de referência será ajustada no 1º (primeiro) quadrimestre do exercício imediatamente subseqüente e debitada ou creditada à conta específica dos Fundos, conforme o caso (grifei). Pela literalidade da norma, não há indicação de que o prazo em questão seja peremptório, nem há previsão de penalidade em caso de seu descumprimento. Decerto que o marco temporal tem a finalidade de fazer com que as relações entre os entes participativos do Fundo sejam marcadas pela estabilidade e equilíbrio das contas públicas, pois se é certo que um determinado município recebeu a complementação da União a maior, não é menos certo deduzir que RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 177 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA outro recebeu a menor, e é justamente neste lapso de tempo que, ordinariamente, acontece a realocação desses recursos, de forma que nenhum dos participantes sofram prejuízos ou se locupletem com o que não lhe é de direito, em respeito ao equilíbrio federativo. No caso dos autos, a União aduz que o ajuste foi publicado a destempo em razão de vários Estados não terem enviado tempestivamente os dados à Secretaria do Tesouro Nacional, o que gerou atraso na publicação da Portaria, definidora da complementação e redistribuição dos recursos. Como bem explica a União, “os Estados, no início do ano seguinte ao exercício financeiro do FUNDEB, deverão informar as diferenças entre o valor projetado da arrecadação e os valores efetivamente arrecadados, para que o repasse do FUNDEB seja o espelho da realidade e não realizado através de meras suposições. Assim, o ajuste adequa o repasse ao que cada ente federativo arrecadou, sendo, acima de tudo, um instrumento de justiça no aprimoramento do custeio da educação” (fl. 508). Com efeito, o artigo 15 e seu parágrafo único da referida norma estabelecem prazos para a União, os Estados e o Distrito Federal, nos seguintes termos: Lei n. 11.494/2007 Art. 15. O Poder Executivo federal publicará, até 31 de dezembro de cada exercício, para vigência no exercício subseqüente: I - a estimativa da receita total dos Fundos; II - a estimativa do valor da complementação da União; III - a estimativa dos valores anuais por aluno no âmbito do Distrito Federal e de cada Estado; IV - o valor anual mínimo por aluno definido nacionalmente. Parágrafo único. Para o ajuste da complementação da União de que trata o § 2º do art. 6º desta Lei, os Estados e o Distrito Federal deverão publicar na imprensa oficial e encaminhar à Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda, até o dia 31 de janeiro, os valores da arrecadação efetiva dos impostos e das transferências de que trata o art. 3º desta Lei referentes ao exercício imediatamente anterior (grifei). Ocorre que não foi ventilada na instância ordinária, nem mesmo foi objeto de alegação do município em sua exordial, haver descumprimento desses prazos pelos Estados e Distrito Federal – referentes à divulgação dos dados de arrecadação – a justificar a extemporaneidade do acerto realizado pela União. De toda forma, o certo é que o ajuste financeiro de contas referentes em questão decorre de previsão legal, não sendo imprescindível a instauração 178 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA de processo administrativo, o que afasta as alegações formuladas pelo Ente Municipal, no sentido de se garantir eventual contraditório e ampla defesa. Todavia, apesar de o prazo estabelecido no art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007 não ser peremptório, isso não quer dizer que seja indefinido. Assim, atendendo aos ditames da segurança jurídica, para evitar que o erário federal faça ajustes ad eternum, tenho que deve ser aplicada à União, por analogia, o prazo previsto no art. 54 da Lei n. 9.784/1999, o qual estipula prazo decadencial de 5 (cinco) anos para rever os seus atos. Essa interpretação não tem o condão de esvaziar o conteúdo da lei em referência, mas o termo previsto (1º quadrimestre do exercício subsequente) deve ser compreendido como “prazo mínimo” para que a União proceda esse acerto, notadamente quando implicar no estorno de valor já depositado, a fim de evitar o efeito surpresa nos cofres municipais. É de relevo mencionar que outros tribunais adotam essa mesma interpretação legal. Cito precedentes: Constitucional, Financeiro e Processual Civil. FUNDEB (EC n. 53/2006). Portaria MEC n. 1.462/2008 (Lei n. 11.494/2007). Litisconsórcio necessário com o FNDE: inexistência. Competência do Ministro da Educação para a edição do ato. 1 - O FNDE não tem pertinência subjetiva passiva necessária em ações em que se busca o estorno de valores deduzidos por ato do Ministro da Educação, pois agente vinculado à União, a qual deve ser a única ré do processo, notadamente porque a ela compete efetuar as complementações às cotas do FUNDEB. 2 - Inexiste a alegada incompetência do Ministro da Educação para editar a portaria impugnada, pois compete a sua “pasta”, como órgão superior do Poder Executivo Federal, efetuar os ajustes no FUNDEB, monitorar a aplicação dos recursos e divulgar orientações sobre a sua operalização (art. 6º, § 2º, e art. 30 da Lei n. 11.494/2007), não se podendo olvidar, ainda, de sua competência de expedir instruções para execução das leis correlatas a suas atribuições (art. 87 da CF/1988). 3 - A EC n. 53, de 19 de dezembro de 2006, regulamentada pela Lei n. 11.494/2007, instituiu, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB. 4 - Segundo a Lei n. 11.494/2007, os recursos do FUNDEB são compostos de percentuais da arrecadação dos impostos estaduais (art. 3º), devendo a União complementá-los sempre que o valor médio ponderado por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente (art. 4º). RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 179 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 5 - A Portaria n. 1.462, de 1º de dezembro de 2008, do Ministro de Estado da Educação, foi editada com o objetivo de divulgar a o demonstrativo da distribuição dos recursos do FUNDEB no ano de 2007 e os ajustes decorrentes da diferença entre os valores estimado se as receitas efetivas do fundo. A União deduziu parcelas das cotas dos municípios com fundamento no § 2º do art. 1º da portaria. 6 - Os ajustes promovidos pela portaria fundaram-se em autorização [“rectius”: dever/obrigação] de a União recuperar os valores por ela repassados a maior quando das complementações ao FUNDEF e são presumidamente corretos. 7 - O ajuste na distribuição da complementação da União está previsto em lei e o espaço temporal previsto no art. 6º, parágrafo 2º, da Lei n. 11.494/2007 (1º quadrimestre do exercício imediatamente subseqüente) representa o lapso mínimo em que deve ser realizada a compensação, inexistindo o alegado prazo “decadencial” para a promoção dos ajustes. Nesse sentido: AI n. 2009.01.00.017178-6-MA, Rel. Juiz Federal Osmane Antônio dos Santos (Conv.), T8-TRF1, DJe 4.9.2009. 8 - A verba honorária fixada na sentença em R$ 1.000,00 não se mostra excessiva, pois representa somente 0,69% do valor das deduções que o autor pretendia ver estornadas. 9 - Apelação não provida. 10 - Peças liberadas pelo Relator, em Brasília, 22 de janeiro de 2013, para publicação do acórdão. (Tribunal Regional da 1ª Região. Processo: AC n. 0020472-90.2010.4.01.3400DF, Relator: Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral, Sétima Turma, e-DJF1. p. 417, 1º.2.2013, grifei) Constitucional e Administrativo. Município. FUNDEB. Portaria n. 1.462/2008, editada pelo Ministério da Educação. Estorno. Lei n. 11.494/2007. Ajustes de débitos. Prazo quadrimestral inobservado. Presunção de legalidade dos atos administrativos. Possibilidade de desconto ulterior. Princípios da razoabilidade e da vedação ao enriquecimento ilícito. Honorários. Manutenção. 1. Trata-se de apelações cíveis interpostas tanto pelo Município de Exu-PE quanto pela União, contra sentença prolatada pelo douto Juízo da 9ª Vara Federal da SJ-PE, que julgou improcedente o pedido que visava à declaração da nulidade da Portaria n. 1.462, de 1º.12.2008, do Ministério da Educação do Brasil, e o conseqüente ressarcimento da quantia deduzida da cota-parte da Edilidade do FUNDEB, em face do referido texto normativo. Fixou honorários advocatícios sucumbenciais no valor de R$ 700,00, com fulcro no art. 20, parágrafo 4º do CPC. 2. Da leitura do disposto nos artigos 4º, 5º, 6º e 15, da Lei n. 11.494/2007, infere-se claramente que a União detém a prerrogativa de realizar o ajuste da complementação a seu cargo efetivada, para mais ou para menos, em função da diferença entre a receita utilizada para o cálculo e a receita realizada no exercício de referência, sendo certo que dito ajuste haverá de ser procedido no primeiro quadrimestre do exercício imediatamente subseqüente, é dizer, entre os meses de janeiro e abril. 180 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA 3. Ao fixar um período determinado para o exercício daquele direito, de natureza meramente programática, a lei não instituiu um prazo decadencial em prejuízo da União, dado que ali não existe a previsão de qualquer penalidade na hipótese de sua inobservância. Aliás, a Lei n. 11.494 foi promulgada com o propósito de resguardar direitos da União, não restringi-los. 4. Ainda que os descontos tenham sido realizados intempestivamente, tem-se que tal fato, só por si, não é suficiente para o reconhecimento do alegado direito invocado pelo Município, uma vez que o ente, em questão, era sabedor que os valores recebidos a maior seriam passíveis de estorno e, portanto, esperava que isso ocorresse. 5. Desse modo, não há que se falar em ilegalidade da Portaria n. 1.462, a qual está em conformidade com a lei do FUNDEB (Lei n. 11.494), consoante vem entendendo a jurisprudência deste TRF, do que são exemplos os seguintes precedentes: APELREEX n. 200980000037676, Rel. Des. Federal Francisco Barros Dias, DJU 16.6.2011 e AC n. 502.579-AL, Rel. Des. Federal Francisco Wildo, Julgado em 21 de setembro de 2010. 6. Honorários mantidos no valor de R$ 700,00. 7. Apelações a que se nega provimento. (Tribunal Regional da 5ª Região. Processo: 00034095120114058300, AC n. 557.755-PE, Relatora: Desembargadora Federal Niliane Meira Lima (convocada), Primeira Turma, julgamento: 6.6.2013, publicação: DJe 13.6.2013 - p. 189, grifei) Assim, diversamente da conclusão adotada pelo Tribunal a quo, entendo que o acerto realizado pela União, ainda que transcorrido 8 (oito) meses após o termo previsto no art. 6º, § 2º, da Lei n. 11.494/2007, não gera automaticamente ao município o direito de reter os respectivos valores, sob pena de evidente enriquecimento ilícito. Com essas considerações, dou provimento ao recurso da União, invertendo os ônus sucumbenciais, nos moldes fixados na sentença (fls. 328-332). É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.372.512-PR (2013/0064955-0) Relator: Ministro Mauro Campbell Marques Recorrente: Município de Toledo Advogados: Assis Corrêa RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 181 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Wilma Moreira da Cruz Gilson Goulart Júnior e outro(s) Recorrido: Unibanco União de Bancos Brasileiros S/A Advogado: Adilson de Castro Junior Advogados: Daniella Letícia Broering e outro(s) Ivy Manfredini Barbosa EMENTA Processual Civil. Recurso especial. Tributário. ISS. Tributo sujeito a lançamento por homologação. Não ocorrência de pagamento antecipado. Aplicação do art. 173, I, do CTN. Alíquota máxima de 5% prevista na LC n. 100/1999. Limitação que se aplica ao serviço de exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários. 1. A orientação da Primeira Seção desta Corte firmou-se no sentido de que, em regra, o prazo para se efetuar o lançamento é o previsto no art. 173, I, do CTN, ou seja, cinco anos contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. Contudo, tratando-se de tributo sujeito a lançamento por homologação, cujo pagamento ocorreu de modo antecipado, o prazo de que dispõe o Fisco para constituir o crédito tributário é de cinco anos, contados a partir do fato gerador. No caso concreto, não havendo pagamento antecipado, aplica-se a regra prevista no art. 173, I, do CTN (EREsp n. 413.265-SC, 1ª Seção, Rel. Min. Denise Arruda, DJ de 30.10.2006). 2. A Lei Complementar n. 100/1999 alterou o Decreto-Lei n. 406/1968 e a Lei Complementar n. 56/1987, acrescentando serviço sujeito ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (item 101), qual seja, “exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais”. No que concerne ao serviço mencionado, a referida Lei Complementar uniformizou a cobrança do ISS em todo território nacional, estipulando para tal serviço – e tão somente para ele – uma alíquota máxima de 5%. Essa alíquota máxima 182 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA não foi estendida aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999. Nesse sentido: REsp n. 1.182.860-ES, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 23.6.2010. 3. No caso dos autos, em se tratando de serviços bancários cobrados com base no Decreto-Lei n. 406/1968 (regime anterior à vigência da LC n. 116/2003), não é aplicável a limitação prevista no art. 4º da LC n. 100/1999. 4. A reforçar essa tese, há que se destacar que, apenas com o advento da EC n. 37/2002 - que, entre outras disposições, alterou o art. 156, § 3º, I, da CF/1988 - foi estabelecida a previsão de fixação das alíquotas máximas e mínimas do ISS através de lei complementar (federal), em relação aos serviços sujeitos à incidência desse imposto, o que se efetivou apenas com a vigência da LC n. 116/2003 (que regulamentou o preceito constitucional referido). No mesmo sentido, em sede doutrinária, destaca-se o entendimento de Roque Antônio Carrazza. 5. Recurso especial parcialmente provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte resultado de julgamento: “A Turma, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Castro Meira, Humberto Martins e Herman Benjamin votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Eliana Calmon. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques. Brasília (DF), 10 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Mauro Campbell Marques, Relator DJe 17.9.2013 RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 183 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RELATÓRIO O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Trata-se de recurso especial interposto pelo Município de Toledo em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, assim ementado: Tributário. Apelação cível. Embargos a execução fiscal. ISS. Serviços bancários. Incidência de alíquota no percentual de 5% para os meses de maio de 2002 a julho de 2003 nos termos da LC n. 100/1999. Legislação que se aplica ao imposto em geral e não apenas para determinado serviço. Recurso desprovido. Em relação aos meses de maio de 2002 a julho de 2003 é de se aplicar a alíquota no importe de 5%, conforme previsão trazida pela LC n. 100199, que se aplica ao caso já que a mesma se refere ao ISS e não a determinado serviço. Houve a oposição de aclaratórios, os quais foram rejeitados pelo Tribunal de origem. No recurso especial, manifestado com fulcro nas alíneas a e c do permissivo constitucional, sustenta o recorrente que “a interpretação dada pelo acórdão recorrido afronta diretamente o conteúdo do o entendimento exposto no acórdão recorrido afronta diretamente o parágrafo único do art. 173 do CTN, que disciplina a matéria”. Aduz, ainda, que “o acórdão posicionou-se no sentido de que a limitação de alíquota prevista na LC n. 100/1999 se aplica ao ISS e não a determinado serviço. Todavia, este E. Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em sentido contrário, definindo que a alíquota máxima não foi estendida aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999”. Contrarrazões às fls. 729-745 (e-STJ). Juízo positivo de admissibilidade às fls. 747-750 (e-STJ). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): Merece parcial acolhida a pretensão recursal. De início, verifica-se que o entendimento adotado pelo Tribunal de origem está em consonância com a orientação da Primeira Seção desta Corte que se firmou no sentido de que, em regra, o prazo para se efetuar o lançamento é o 184 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA previsto no art. 173, I, do CTN, ou seja, cinco anos contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado. Contudo, tratando-se de tributo sujeito a lançamento por homologação, cujo pagamento ocorreu de modo antecipado, o prazo de que dispõe o Fisco para constituir o crédito tributário é de cinco anos, contados a partir do fato gerador. No caso concreto, não havendo pagamento antecipado, aplica-se a regra prevista no art. 173, I, do CTN. Nesse sentido: Tributário. Embargos de divergência. Embargos à execução fiscal. Extinção do processo de execução. Decadência. Tributo sujeito a lançamento por homologação declarado e não-pago. Correta aplicação do art. 173, I, do CTN. Precedentes. Recurso desprovido. 1. Esta Corte tem-se pronunciado no sentido de que o prazo decadencial para constituição do crédito tributário pode ser estabelecido da seguinte maneira: (a) em regra, segue-se o disposto no art. 173, I, do CTN, ou seja, o prazo é de cinco anos contados “do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado”; (b) nos tributos sujeitos a lançamento por homologação cujo pagamento ocorreu antecipadamente, o prazo é de cinco anos contados do fato gerador, nos termos do art. 150, § 4º, do CTN. 2. No caso dos autos, não houve antecipação do pagamento pela contribuinte, razão pela qual se aplica a orientação no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação cujo pagamento não foi antecipado pelo devedor, incide a regra do art. 173, I, do CTN. 3. Desse modo, conforme bem salientado no acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, mantido pelo aresto embargado, “declarado o débito e não pago, em dezembro/1991, o Fisco tinha cinco anos, contados a partir de 1º.1.1992 para constituir o crédito; não o fazendo, configurada está a decadência”. 4. Embargos de divergência desprovidos. (EREsp n. 413.265-SC, 1ª Seção, Rel. Min. Denise Arruda, DJ de 30.10.2006) Assevera mais o recorrente que o aresto recorrido diverge da orientação desta Corte Superior sobre a matéria. Sustenta que “o acórdão posicionou-se no sentido de que a limitação de alíquota prevista na LC n. 100/1999 se aplica ao ISS e não a determinado serviço. Todavia, este E. Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em sentido contrário, definindo que a alíquota máxima não foi estendida aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999”. No ponto, assiste razão ao recorrente. Dispõe a Lei Complementar n. 100/1999: RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 185 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Art. 3º A Lista de serviços anexa ao Decreto-Lei n. 406, de 31 de dezembro de 1968, com a redação dada pela Lei Complementar n. 56, de 15 de dezembro de 1987, passa a vigorar acrescida do seguinte item: 101 - exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais. Art. 4º A alíquota máxima de incidência do imposto de que trata esta Lei Complementar é fixada em cinco por cento. (grifo nosso) A Lei Complementar n. 100/1999 alterou o Decreto-Lei n. 406/1968 e a Lei Complementar n. 56/1987, acrescentando serviço sujeito ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (item 101), qual seja, “exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais”. No que concerne ao serviço mencionado, a referida Lei Complementar uniformizou a cobrança do ISS em todo território nacional, estipulando para tal serviço – e tão somente para ele – uma alíquota máxima de 5%. Essa alíquota máxima não foi estendida aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999. A corroborar esse entendimento, destaca-se: Processual Civil. Tributário. Ausência de violação ao art. 535 do CPC. Súmula n. 284-STF. ISS. Alíquota máxima de 5%. Exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários. Art. 4º da Lei Complementar n. 100/1999. Lei Municipal n. 2.461/2001. Confronto entre lei local e lei federal. Análise de direito local por esta Corte Superior. Impossibilidade. Súmula n. 280-STF. Ausência de violação ao art. 111, inciso I, do CTN. 1. Se o recorrente não aponta o relevante vício capaz de ensejar a nulidade do acórdão, restringindo-se à afirmação genérica no sentido de que não houve esclarecimento das omissões apontadas nos embargos declaratórios, há incidência da Súmula n. 284 do STF. 2. A Lei Complementar n. 100/1999, - que alterou o Decreto-Lei no 406/1968 e a Lei Complementar no 56/1987, acrescentando serviço sujeito ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (item 101), qual seja, “exploração de rodovia mediante cobrança de preço dos usuários, envolvendo execução de 186 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA serviços de conservação, manutenção, melhoramentos para adequação de capacidade e segurança de trânsito, operação, monitoração, assistência aos usuários e outros definidos em contratos, atos de concessão ou de permissão ou em normas oficiais”-, uniformizou a cobrança do ISS em todo território nacional, estipulando para o referido serviço – e tão somente para ele – uma alíquota máxima de 5%, ou seja, não estendeu tal alíquota máxima aos demais serviços constantes da lista do ISS e, sim, apenas aquele instituído pela Lei Complementar n. 100/1999. Dessa forma, tal alíquota máxima não é aplicada ao serviço de motel prestado pelo recorrente. 3. Não há que se falar em violação ao art. 111, inciso I, do CTN, uma vez que a Lei Complementar n. 100/1999 não dispôs acerca da exclusão ou suspensão do crédito tributário, apenas alterou o Decreto-Lei n. 406/1968 para acrescentar um serviço sujeito ao ISS e fixar sua alíquota máxima em 5%, percentual esse não aplicável aos demais serviços previstos na lista do ISS. 4. A pretensão da parte recorrente é confrontar a Lei Municipal n. 2.461/2001, que estabeleceu a alíquota do ISS em 12% no Município de Serra-ES, com o art. 4º da Lei Complementar n. 100/1999, que estabeleceu alíquota máxima de 5% ao serviço de exploração de rodovia mediante preço dos usuários. 5. Mesmo que assim não fosse, confrontar a Lei Municipal n. 2.461/2001 (Código Tributário do Município de Serra) com o art. 4º da Lei Complementar n. 100/1999, como pretende o recorrente, não é possível nesta Corte Superior, tendo em vista ser incabível rediscussão de matéria decidida com base em direito local, sendo devida a aplicação, por analogia, do Enunciado n. 280 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “Por ofensa a direito local, não cabe recurso extraordinário”. Precedentes: AgRg no REsp n. 745.269-MA, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 19.9.2008; REsp n. 782.394, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 2.8.2007. Ademais, a Emenda Constitucional n. 45/2004 modificou a alínea b do art. 105, III, para atribuir ao STJ apenas os casos em que se julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal, restando a competência acerca do confronto entre lei local e lei federal conferida ao Supremo Tribunal Federal (art. 102, III, d, da CF/1988). 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (REsp n. 1.182.860-ES, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 23.6.2010 - grifou-se) No caso dos autos, em se tratando de serviços bancários cobrados com base no Decreto-Lei n. 406/1968 (regime anterior à vigência da LC n. 116/2003), não é aplicável a limitação prevista no art. 4º da LC n. 100/1999. A reforçar essa tese, há que se destacar que, apenas com o advento da EC n. 37/2002 - que, entre outras disposições, alterou o art. 156, § 3º, I, da CF/1988 RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 187 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - foi estabelecida a previsão de fixação das alíquotas máximas e mínimas do ISS através de lei complementar (federal), em relação aos serviços sujeitos à incidência desse imposto, o que se efetivou apenas com a vigência da LC n. 116/2003 (que regulamentou o preceito constitucional referido). Sobre a matéria, invoco, ainda, a lição do renomado tributarista Roque Antônio Carrazza: O art. 156, § 3º, I, da CF, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional n. 37/2002, atribui à lei complementar competência para fixar as alíquotas máximas e mínimas do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS). (...) De qualquer modo, enquanto tal lei complementar não foi editada, os Municípios eram livres para, atendidos seus peculiares interesses, estabelecer as alíquotas do ISS que bem lhes aprouvessem. Só não poderiam, por óbvio, imprimir a tal imposto feições confiscatórias, para que não houvesse infringência ao art. 150, IV, da CF. (Curso de Direito Constitucional Tributário. 25ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 988-999). Quanto aos ônus sucumbenciais, mantenho o valor fixado no acórdão de fls. 597-628 (e-STJ), apenas redistribuindo-os, a fim de que o recorrido seja condenado em 60% do valor devido e o recorrente em 40% sobre o montante das custas processuais e dos honorários advocatícios. Do exposto, voto por dar parcial provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.382.954-PR (2013/0120920-0) Relator: Ministro Mauro Campbell Marques Recorrente: Banco Volkswagen S/A Advogado: Sílvio Osmar Martins Júnior e outro(s) Recorrido: Fazenda Nacional Advogado: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional 188 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA EMENTA Recurso especial. Processual Civil. Tributário. Aduaneiro. Pena de perdimento de veículo objeto de alienação fiduciária. Possibilidade. Convenção particular não oponível à Fazenda Pública. Aplicação do art. 123, do CTN. Princípios da eticidade e da função social do contrato. Arts. 421 e 2.035, do CC/2002. Jurisprudência do extinto Tribunal Federal de Recursos. Compatibilidade com a Súmula n. 138TFR. 1. É admitida a aplicação da pena de perdimento de veículo objeto de alienação fiduciária. Precedentes: REsp n. 1.268.210-PR, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21.2.2013; REsp n. 1.153.767-PR, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 17.8.2010; extinto TFR, ACR n. 7.962-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Costa Leite, julgado em 26.4.1988. 2. Tal ocorre porque o contrato de alienação fiduciária não é oponível ao Fisco, na forma do que preceitua o art. 123, do Código Tributário Nacional: “Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”. 3. Desse modo, perante o Fisco e para a aplicação da pena de perdimento, o contrato de alienação fiduciária não produz o efeito de retirar a propriedade do devedor fiduciante, subordinando o bem à perda como se dele fosse, sem anular o contrato de alienação fiduciária em garantia efetuado entre credor e devedor que haverão de discutir os efeitos dessa perda na esfera civil. 4. Acaso fosse entregue o bem para a instituição financeira, dar-se-ia a sua venda para abater a dívida do fiduciante que se livraria tanto da pena de perda quanto da dívida perante a instituição financeira, pois esta seria paga com o produto da alienação do bem, e o fiduciante infrator ainda ficaria com o saldo do produto da venda em flagrante confronto com os Princípios de Eticidade e Função Social dos Contratos (art. 421 e 2.035, parágrafo único, do CC/2002), além de retirar a efetividade da legislação tributária. 5. Revisão de entendimento pessoal, restando superados os seguintes precedentes que entendiam de forma contrária: AgRg no RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 189 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA REsp n. 1.313.331-PR, Segunda Tuma, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 11 de junho de 2013; AgRg no REsp n. 952.222-RS, Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 1º.9.2009, DJe 16.9.2009. 6. Posição compatível com o enunciado da Súmula n. 138, do extinto TFR (“A pena de perdimento de veículo utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada se demonstrada a responsabilidade do proprietário na prática do delito”) porque a súmula opera em situação outra onde o direito de propriedade invocado produz efeitos contra a Fazenda Pública, diferente da situação em discussão. 7. Recurso especial não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte resultado de julgamento: “Prosseguindo-se no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Eliana Calmon, acompanhando o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques, a Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator.” A Sra. Ministra Eliana Calmon (voto-vista) e o Sr. Ministro Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator. Não participou do julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes, nos termos do Art. 162, § 2º, do RISTJ. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Herman Benjamin. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Mauro Campbell Marques. Brasília (DF), 3 de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Mauro Campbell Marques, Relator DJe 8.11.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Trata-se de recurso especial interposto com fulcro no permissivo do art. 105, III, a e c, da Constituição 190 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Federal de 1988, contra acórdão que ao reconhecer a aplicação da pena de perdimento a veículo sob alienação fiduciária restou assim ementado (e-STJ fls. 324-329): Tributário. Veículo utilizado como instrumento de ilícito. Contrabando/ descaminho. Aplicação da pena de perdimento. Contrato de alienação fiduciária. Possibilidade. O contrato de alienação fiduciária não impede, por si só, a aplicação da pena de perdimento devida a veículo transportador de mercadoria contrabandeada, haja vista a primazia do interesse público sobre o particular. Precedentes desta Corte. Alega a recorrente que houve violação ao art. 513, V e § 2º, e ao art. 688, do Regulamento Aduaneiro (Decreto n. 6.759/2009). Afirma que o credor fiduciário é terceiro de boa-fé que não teve participação na infração cometida pelo agente e que o direito de propriedade do credor fiduciário deve se sobrepor aos interesses econômicos do fisco. Procura demonstrar o dissídio (e-STJ fls. 357-384). Contrarrazões nas e-STJ fls. 467-471. Recurso regularmente admitido na origem (e-STJ fls. 477). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): Devidamente prequestionados, ainda que implicitamente, os dispositivos legais questionados, conheço do recurso especial. Prejudicado o exame pela alínea c. Quanto ao mérito, observo que o tema não é pacífico neste STJ. Por um lado, há julgados exclusivamente da Segunda Turma deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a pena de perdimento de veículo não pode alcançar aqueles que são objeto de alienação fiduciária. Esta jurisprudência parte da premissa de que para haver a perda é necessário provar que o credor fiduciário proprietário (normalmente instituição financeira) agiu em concurso, ou com dolo ou culpa na infração cometida pelo devedor fiduciante (normalmente pessoa física), ou dela se beneficiou. Invoca-se, nessa linha jurisprudencial, a aplicação da Súmula n. 138, do extinto Tribunal Federal de Recursos: “A pena de perdimento de veículo utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 191 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA se demonstrada a responsabilidade do proprietário na prática do delito”. Seguem precedentes: Tributário e Aduaneiro. Apreensão de veículo alienado fiduciariamente. Transporte de mercadorias internadas irregularmente. Perdimento. 1. Somente é cabível a aplicação de pena de perdimento de veículo quando houver clara demonstração da responsabilidade do proprietário na prática do ilícito. Precedentes. 2. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp n. 1.313.331-PR, Segunda Tuma, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 11 de junho de 2013). Processual Civil e Administrativo. Agravo regimental. Pena de perdimento de veículo. Súmula n. 138 do extinto TFR. Argumento não combatido nas razões do recurso especial. Incidência da Súmula n. 283 do STF. Veículo objeto de contrato de alienação fiduciária. Necessidade de demonstração de participação do proprietário do veículo na prática do ato ilícito. Precedente. Revolvimento do contexto fático-probatório dos autos. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. 1. Da análise dos autos, verifica-se que em momento algum a Corte a quo exclui a possibilidade de aplicação da legislação aduaneira, mormente quanto à pena de perdimento de veículo com base no art. 617, V, do RA, quando o bem for objeto de contrato de alienação fiduciária, antes, o entendimento adotado foi no sentido de que, nesses casos, deve ser demonstrada a participação do proprietário na prática ilícita que motivou a aplicação da referida pena, nos termos da Súmula n. 138 do extinto TFR. 2. [...] 3. Por outro lado, cumpre registrar que a pena de perdimento de veículo utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada se demonstrada, em procedimento regular, a responsabilidade do proprietário na prática do ilícito, consoante previsão expressa no § 2º do art. 617 do RA. Precedentes. 4. O Tribunal a quo, para chegar a conclusão de que não houve responsabilidade do proprietário do veículo na prática do ato ilícito, pautou-se no conjunto fático-probatório dos autos. Portanto, não é possível a esta Corte adotar entendimento diverso do aresto hostilizado, haja vista que tal procedimento esbarra na orientação consagrada na Súmula n. 7 desta Corte. 5. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp n. 952.222-RS, Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 1º.9.2009, DJe 16.9.2009). Por outro lado, na linha de julgado do extinto Tribunal Federal de Recursos, há posicionamento da Primeira Turma e também da Segunda Turma, no sentido de que a pena de perdimento pode ser aplicada a veículo objeto de alienação fiduciária. Transcrevo: 192 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Administrativo. Recurso especial. Veículo objeto de contrato de leasing. Transporte irregular. Descaminho. Perdimento de bem. Possibilidade. Proporcionalidade da sanção. Habitualidade. 1. A pena de perdimento de veículo por transporte de mercadorias objeto de descaminho ou contrabando pode atingir os veículos sujeitos a contrato de arrendamento mercantil que possuam cláusula de aquisição ao seu término, pois ainda que, nessas hipóteses, o veículo seja de propriedade da instituição bancária arrendadora, é o arrendatário o possuidor direto do bem e, portanto, o responsável por sua guarda, conservação e utilização regular. 2. Como já preconizado por ocasião do julgamento do REsp n. 1.153.767-PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 26.8.2010, “admitir que veículo objeto de leasing não possa ser alvo da pena de perdimento seria verdadeiro salvo-conduto para a prática de ilícitos fiscais”, com veículos sujeitos a tal regime contratual. 3. “A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a reiteração da conduta ilícita dá ensejo à pena de perdimento, ainda que não haja proporcionalidade entre o valor das mercadorias apreendidas e o do veículo” (AgRg no REsp n. 1.302.615-GO, Rel. Ministro Teori Zavascki, Primeira Turma, DJe 30.3.2012). 4. Recurso especial não provido (REsp n. 1.268.210-PR, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21.2.2013). Administrativo. Pena de perdimento de veículo. Transporte irregular de mercadorias. Possibilidade. Veículo adquirido em contrato de leasing. 1. Não se aplica a Súmula n. 7-STJ, quando a matéria a ser decidida é exclusivamente de direito. 2. A pena de perdimento de veículo por transporte irregular de mercadoria pode atingir os veículos adquiridos em contrato de leasing, quando há cláusula de aquisição ao final do contrato. 3. A pena de perdimento não altera a obrigação do arrendatário do veículo, que continua vinculado ao contrato. 4. Admitir que veículo objeto de leasing não possa ser alvo da pena de perdimento seria verdadeiro salvo-conduto para a prática de ilícitos fiscais. 5. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido (REsp n. 1.153.767-PR, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 17.8.2010). Processo Penal. Veiculo apreendido. Deposito. I- O contrato de alienação fiduciária opera efeito apenas entre o credor e o devedor, além do que o veiculo apreendido, com pena de perdimento decretada na esfera administrativa, foi especialmente adaptado para o transporte de mercadorias descaminhadas, não sendo o caso, pois, de nomear-se o requerente fiel depositário do mesmo. II- Apelação provida (extinto TFR, ACR n. 7.962-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Costa Leite, julgado em 26.4.1988). RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 193 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Esta segunda posição parte do pressuposto firmado pelo extinto TFR de que o contrato de alienação fiduciária não é oponível ao Fisco, na forma do que preceitua o art. 123, do Código Tributário Nacional, a saber: Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes. Desse modo, perante o Fisco e para a aplicação da pena de perdimento, o contrato de alienação fiduciária não produz o efeito de retirar a propriedade do devedor fiduciante, subordinando o bem à perda como se dele fosse, sem anular o contrato de alienação fiduciária em garantia efetuado entre credor e devedor que haverão de discutir os efeitos dessa perda na esfera civil. Com efeito, depois de muito refletir sobre o tema, com a devida vênia, revejo minha posição adotada no suso transcrito AgRg no REsp n. 952.222RS, de minha relatoria, para adotar o entendimento que historicamente já vinha sendo construído pelo extinto TFR. Isto dada à grande proliferação dos contratos de alienação fiduciária em garantia que se generalizaram em casos que tais onde o infrator se escuda da pena de perda atrás de um contrato firmado com instituição financeira que lhe garante, por lei, somente em caso de inadimplemento, a venda do bem para o pagamento de sua dívida (art. 66, § 4º, da Lei n. 4.728/1965; art. 2º do Decreto-Lei n. 911/1969; art. 1.364, do CC/2002). Transcrevo: Lei n. 4.728/1965 Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com tôdas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal. (Redação dada pelo Decreto n. 911, de 1º.10.1969) (Revogado pela Lei n. 10.931, de 2004) [...] § 4º No caso de inadimplemento da obrigação garantida, o proprietário fiduciário pode vender a coisa a terceiros e aplicar preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da cobrança, entregando ao devedor o saldo porventura apurado, se houver. (Redação dada pelo Decreto n. 911, de 1º.10.1969) [...] 194 Jurisprudência da SEGUNDA TURMA Decreto-Lei n. 911/1969 Art. 2º No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver. Lei n. 10.406/2002 - CC/2002 Art. 1.364. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor. Nessa toada, acaso fosse entregue o bem para a instituição financeira, dar-se-ia a sua venda para abater a dívida do fiduciante que se livraria das duas coisas: da perda (pois o bem pertence à instituição financeira) e da dívida perante a instituição financeira (pois seria paga com o produto da alienação do bem). E mais, se sobejasse algum valor, o devedor fiduciante ainda ficaria com o saldo!!! À toda evidência, esse resultado é indesejável, não só sob o ponto de vista de política fiscal e de prevenção geral e especial da infração tributária cometida, como também do ponto de vista negocial, já que opera contra a Função Social do Contrato (arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do CC/2002) e contra o Princípio da Eticidade desejável nas relações civis. Transcrevo: Lei n. 10.406/2002 - CC/2002 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. [...] Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. A solução, portanto, é aplicar a pena de perdimento de veículo em favor da Fazenda Nacional e manter o direito do credor em reaver o seu crédito junto ao RSTJ, a. 25, (232): 127-196, outubro/dezembro 2013 195 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA devedor fiduciário, consoante o art. 123, do CTN. Tal caminho traz os benefícios de manter a efetividade da legislação tributária e, simultaneamente, preservar o direito de crédito da instituição financeira contra o devedor fiduciante. Considero não haver compreensão melhor para preservar o interesse público. Por fim, registro que o entendimento é perfeitamente compatível com o Enunciado da Súmula n. 138, do extinto TFR (“A pena de perdimento de veículo utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada se demonstrada a responsabilidade do proprietário na prática do delito”). Tal se dá porque a súmula opera em situação outra onde o direito de propriedade invocado produz efeitos contra a Fazenda Pública, diferente da situação em discussão. Desse modo, entendo correta a posição firmada pelo Tribunal de Origem a qual passo a acolher em meus julgados. Ante o exposto, nego provimento ao presente recurso especial. É como voto. VOTO-VISTA A Sra. Ministra Eliana Calmon: O presente recurso especial tem como relator o Ministro Mauro Campbell Marques que em judicioso voto negou provimento ao recurso do Banco Volkswagen S.A. para proclamar a possibilidade de ser aplicada a pena de perdimento de veículo, quando usado em operação de contrabando ou descaminho, mesmo que tenha sido adquirido na modalidade de alienação fiduciária em garantia, considerando não ser possível oponível ao fisco, nos termos do artigo 123 do CTN, convenção particular. Apoiou-se o relator, para tanto, em inúmeros precedentes da Primeira e da Segunda Turmas. Pedi vista dos autos em razão de uma das últimas considerações do relator no final do seu voto quando afirma: “caso fosse entregue o bem para a instituição financeira, dar-se-ia a sua venda para abater a dívida do fiduciante que se livraria das duas coisas: da perda (pois o bem pertence à instituição financeira) e da dívida perante a instituição financeira (pois seria paga com o produto da alienação do bem), ficando o devedor fiduciante com o que sobejasse do valor da dívida. Verifico que a posição adotada pelo relator é firme na jurisprudência reiterada desta Corte, razão pela qual acompanho o relator, negando provimento ao recurso especial. É o voto. 196 Terceira Turma RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 31.942-SP (2012/0008871-4) Relator: Ministro João Otávio de Noronha Recorrente: D de S Advogado: Marcio Bastiglia Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo EMENTA Recurso em habeas corpus. Alimentos. Aceitação de herança pelos credores. Renúncia translativa operada pelo executado. Art. 1.813 do CC. Iliquidez da dívida. Inexistência. Necessidade de simples cálculos matemáticos. Inadimplência de débito alimentar atual. Inadimplemento dos três últimos meses e dos vencidos após o ajuizamento da execução. Súmula n. 309-STJ. 1. Os credores de prestações alimentícias podem aceitar a herança deixada ao devedor de alimentos e à qual ele renunciou (art. 1.813 do Código Civil). 2. A aceitação de herança pelos credores não importa em alteração de rito da ação de execução, sendo cabível apenas que o valor recebido seja subtraído do valor cobrado. 3. Não carece de liquidez a dívida de alimentos quantificável por simples cálculos matemáticos. 4. É cabível o decreto de prisão civil em razão do inadimplemento de dívida atual, assim consideradas as parcelas alimentares vencidas nos três meses antecedentes ao ajuizamento da execução, bem como aquelas que se vencerem no curso da lide. Súmula n. 309-STJ. 5. Recurso em habeas corpus desprovido. Ordem concedida de ofício para que o decreto de prisão se adeque à Súmula n. 309-STJ. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso em habeas corpus, concedendo de ofício a ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro João Otávio de Noronha, Relator DJe 13.6.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se de recurso em habeas corpus interposto por D de S contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e assim ementado: Execução de alimentos. Possibilidade de adoção do rito do art. 733 do Código de Processo Civil. Abatimento do débito que não impede a prisão do devedor. Ordem denegada (fl. 283). Dessume-se dos autos que o recorrente foi condenado ao pagamento de pensão alimentícia em favor de seus dois filhos, no valor total de 7,47 salários mínimos. Em razão do inadimplemento, em 25.9.2002, foi ajuizada ação de execução em desfavor do recorrente para a cobrança dos alimentos devidos desde dezembro de 2001. A prisão foi decretada em 10.12.2003 pela dívida referente a todo o período executado (fl. 18). No ano de 2006, o genitor do recorrente faleceu, deixando herança. O recorrente renunciou ao seu quinhão em favor de outra herdeira, mas os exequentes aceitaram herança na condição de credores do renunciante, na forma do art. 1.813 do CC. Neste recurso, a parte alega que houve alteração tácita de ritos, uma vez que a execução iniciou-se pelo rito do art. 733 do CPC, com o pedido de prisão, mas foi alterada para a modalidade do art. 732, do CPC, com a efetiva expropriação de bens no inventário. Afirma também a ausência de liquidez do débito, tendo em vista que o valor dos bens excutidos não foi abatido da dívida. 200 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não provimento do recurso: - Recurso ordinário em habeas corpus objetivando a revogação do decreto prisional. - O pagamento parcial do débito não afasta a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos. Apenas o pagamento integral da dívida alimentar pode afastar a ordem de prisão decretada com base no art. 733, § 1º, do CPC. Precedentes do STJ. - Parecer, preliminarmente, pelo conhecimento do presente recurso ordinário em habeas corpus e, no mérito, pelo seu não provimento (fl. 341). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): A pretensão não merece prosperar. De início, destaca-se que a forma de execução adotada pelos exequentes é a do art. 733 do CPC, pela qual o devedor é chamado para efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo, cabendo o decreto de prisão caso o devedor não pague nem se escuse. O recorrente assevera que os credores teriam expropriado bens seus. Como a expropriação é incompatível com o pedido de prisão civil, o rito teria se alterado para a forma da execução por quantia certa contra devedor solvente (art. 732 do CPC). Em verdade, não houve expropriação de bens do recorrente, mas aceitação de herança, nos moldes tratados pelo art. 1.813 do CC, que coíbe a renúncia lesiva aos credores: Art. 1.813. Quando o herdeiro prejudicar os seus credores, renunciando à herança, poderão eles, com autorização do juiz, aceitá-la em nome do renunciante. O dispositivo legal mencionado protege aquelas situações em que a renúncia do direito hereditário conflite com direitos de terceiros, ou seja, tenha a aptidão de fraudar credores. Nessa situação, os credores podem aceitar a herança em nome do renunciante até o limite dos seus créditos. No caso dos autos, o genitor do recorrente faleceu, deixando herança, mas este realizou renúncia translativa em favor de outra herdeira. Ao tomar RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 201 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA conhecimento do fato, os exeqüentes, na qualidade de credores, valeram-se da prerrogativa legal e aceitaram a herança em nome do renunciante. O ato de aceitação da herança deu-se nos autos da ação de inventário e foi tomado tão somente para evitar a fraude que o recorrente tentou levar a efeito. Em momento nenhum da execução houve ato dos exeqüentes que importassem em transmudação do rito para aquele previsto no art. 732 do CPC. A conseqüência da aceitação, aqui, é tão somente a subtração do valor recebido daquele valor que vem sendo cobrado. Também não prospera a alegação de ausência de liquidez do título em razão do não abatimento do valor da herança do montante da dívida. A liquidez é a possibilidade de quantificação do valor da dívida. No caso dos autos, não há nenhuma dificuldade em se determinar o valor devido, bastando, para tanto, que se proceda a simples cálculos matemáticos. Por outro lado, observo que a ação foi ajuizada em 25.9.2002 para executar as prestações vencidas desde dezembro de 2001. A prisão foi decretada por todo o período cobrado, que representa 10 (dez) meses antes do ajuizamento da ação. A Súmula n. 309-STJ dispõe que “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”. A súmula mencionada preceitua que a prisão pode ser decretada pelo inadimplemento das três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e daquelas que se vencerem no curso do processo. Logo, a decisão que decreta a prisão pelo inadimplemento de dez prestações contraria a determinação e deve se adequar ao comando sumular. Ante o exposto, nego provimento ao recurso em habeas corpus e, de ofício, concedo a ordem para que se adeque a execução ao enunciado da Súmula n. 309-STJ. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 594.404-DF (2003/0168857-8) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Condomínio Conjunto Nacional 202 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Advogado: Gilberto Ferraro e outro(s) Recorrido: Ancar Gestão de Empreendimentos Ltda Advogado: Arnaldo Versiani Leite Soares e outro(s) EMENTA Recurso especial. Ação de abstenção de uso. Nome empresarial. Nome de domínio na internet. Registro. Legitimidade. Contestação. Ausência de má-fé. Divergência jurisprudencial não demonstrada. Ausência de similitude fática. 1. A anterioridade do registro no nome empresarial no órgão competente não assegura, por si só, ao seu titular o direito de exigir a abstenção de uso do nome de domínio na rede mundial de computadores (internet) registrado por estabelecimento empresarial que também ostenta direitos acerca do mesmo signo distintivo. 2. No Brasil, o registro de nomes de domínio na internet é regido pelo princípio “First Come, First Served”, segundo o qual é concedido o domínio ao primeiro requerente que satisfizer as exigências para o registro. 3. A legitimidade do registro do nome do domínio obtido pelo primeiro requerente pode ser contestada pelo titular de signo distintivo similar ou idêntico anteriormente registrado - seja nome empresarial, seja marca. 4. Tal pleito, contudo, não pode prescindir da demonstração de má-fé, a ser aferida caso a caso, podendo, se configurada, ensejar inclusive o cancelamento ou a transferência do domínio e a responsabilidade por eventuais prejuízos. 5. No caso dos autos, não é possível identificar nenhuma circunstância que constitua sequer indício de má-fé na utilização do nome pelo primeiro requerente do domínio. 6. A demonstração do dissídio jurisprudencial pressupõe a ocorrência de similitude fática entre o acórdão atacado e os paradigmas. 7. Recurso especial não provido. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 203 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide A Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 5 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 11.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial interposto pelo Condomínio Conjunto Nacional, com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Noticiam os autos que, em 12.2.2001, o ora recorrente, Condomínio Conjunto Nacional, situado em São Paulo, propôs ação contra Ancar - Gestão de Empreendimentos Ltda., nova denominação de Âncora Planejamento e Gerência de Empreendimentos Ltda., estabelecida em Brasília, objetivando pronunciamento judicial que determinasse a abstenção pela ré do uso do signo distintivo “Conjunto Nacional” em sítios da internet, especialmente como nome de domínio. O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido (e-STJ fls. 574580). Os embargos de declaração opostos à sentença foram parcialmente acolhidos para a correção de erro material (e-STJ fls. 585-588). Irresignado, o autor interpôs recurso de apelação, não provido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios em acórdão assim ementado: Processual Civil. Civil. Nome de domínio na internet. Registro. Atribuição da FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por delegação do Comitê Gestor Internet do Brasil. Primazia do direito do primeiro requerente. Inexistência de prática de concorrência desleal. Sentença confirmada. 204 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA I - O registro de nome de domínio ou concessão de endereço IP na rede internet é função atribuída à FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por delegação do Comitê Gestor Internet do Brasil, órgão a quem incumbe coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços Internet no país, consoante os termos da Portaria Interministerial MCT/MC n. 147/95. II - Dessa forma, diante da especificidade da matéria que encontra fundamento na Resolução n. 001, de 15.4.1998, do Comitê Gestor Internet do Brasil, à resolução da lide é indiferente as disposições da legislação que cuida da propriedade industrial e do registro público de empresas mercantis e atividades afins, respectivamente, Leis n. 9.279/1996 e 8.934/1994. III - Assim, é de se conferir proteção judicial a quem primeiramente registrou o nome de domínio no referido órgão, que na hipótese foi a apelada. IV - Sem comprovação a alegação de prática de ilícito penal, qual seja, concorrência desleal, é de rigor a rejeição de tal pretensão. V - Recurso improvido (e-STJ fls. 665-666). Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ fls. 680-691). No recurso especial (e-STJ fls. 694-706), o recorrente aponta, além de dissídio jurisprudencial, violação dos artigos 34 e 35, inciso V, da Lei n. 8.934/1995, 124, inciso V, da Lei n. 9.279/1996 e 8º da Convenção de Paris. Sustenta, em síntese, que o registro no nome comercial “Condomínio Conjunto Nacional” no órgão competente (13º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca da Capital do Estado de São Paulo) desde 1956 lhe assegura o direito de utilização exclusiva do nome de domínio equivalente na internet. Com as contrarrazões (e-STJ fls. 755-759), e admitido o recurso na origem (e-STJ fls. 767-769), subiram os autos a esta colenda Corte. O Ministério Público Federal opinou pelo não conhecimento do recurso especial (e-STJ fls. 811-817). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): A irresignação não merece prosperar. Cinge-se a controvérsia a perquirir se a anterioridade do registro no nome empresarial no órgão competente confere automaticamente ao seu titular o direito de utilização exclusiva do nome de domínio equivalente na internet. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 205 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Relevante, para a compreensão do debate, a enumeração dos registros envolvidos na causa, em ordem cronológica: 1) o autor teve o seu nome empresarial “Condomínio Conjunto Nacional” registrado no cartório de registro de imóveis da comarca de São Paulo em 4.9.1956 (e-STJ fl. 586); 2) a ré requereu o depósito no Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI para o registro da marca “Conjunto Nacional Brasília” em 5.3.1997, tendo sido concedido o registro em 20.7.1999 (e-STJ fl. 449); 3) a ré efetuou o registro do nome de domínio “www.conjuntonacional. com.br” na internet em 11.11.1997 (e-STJ fls. 224 e 406) e 4) o autor efetuou o registro do nome de domínico “www. condominioconjuntonacional.com.br” na internet em 16.4.1999 (e-STJ fl. 448). Segundo a argumentação da inicial, o autor é “titular do nome empresarial ‘Condomínio Conjunto Nacional’ desde quando concluiu o empreendimento em 4.9.1956, conforme se extrai da Escritura Pública de Especificação, Divisão e Convenção do mesmo, em 16.6.1969 - oportunidade em que o tabelião reportava-se ao registro do plano geral do Condomínio em 4.9.1956 (13º Registro de imóveis da Capital do Estado de São Paulo - (...)” (e-STJ fl. 10). Sob a ótica do autor, a precedência do registro no nome empresarial lhe conferiria o direito de uso exclusivo sobre o signo distintivo “Conjunto Nacional” no âmbito da internet. Invoca, para tanto, a infringência dos seguintes dispositivos da Lei n. 8.934/1994 (que dispõe sobre o registro público de empresas mercantis e atividades afins), da Lei n. 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial) e da Convenção de Paris: Lei n. 8.934/1994 Art. 34. O nome empresarial obedecerá aos princípios da veracidade e da novidade Art. 35. Não podem ser arquivados: (...) V - os atos de empresas mercantis com nome idêntico ou semelhante a outro já existente; Lei n. 9.279/1996 Art. 124. Não são registráveis como marca: 206 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA (...) V - reprodução ou imitação de elemento característico ou diferenciador de título de estabelecimento ou nome de empresa de terceiros, suscetível de causar confusão ou associação com estes sinais distintivos; Convenção de Paris Art. 8º - O nome comercial será protegido em todos os países da União sem obrigações de depósito ou de registro, quer faça ou não parte de uma marca de fábrica ou de comércio. Da simples leitura dos dispositivos apontados como violados no apelo nobre nota-se que não fazem referência específica sobre a proteção do nome empresarial em relação ao nome de domínio - matéria em debate nos presentes autos -, o que por si só seria suficiente para ensejar o não conhecimento do recurso especial por ausência de comando normativo suficiente para fundamentar a tese defendida nas razões recursais. A despeito disso, e considerando a razoabilidade da invocação da legislação relativa à proteção marcária e ao nome empresarial, na ausência de dispositivos legislativos infraconstitucionais específicos acerca dos nomes de domínio no ordenamento jurídico, tenho que merece ser conhecido o mérito da insurgência recursal que se passa a analisar. O nome empresarial é a denominação que identifica o empresário no exercício de suas atividades e, segundo o art. 1.166 do Código Civil, sua inscrição no registro próprio assegura o uso exclusivo do nome nos limites do respectivo Estado. Já o nome de domínio é o conjunto de caracteres utilizado para facilitar a localização de endereços eletrônicos na rede mundial de computadores (internet). No âmbito empresarial, muitas vezes assume função semelhante à do nome empresarial, qual seja, a de permitir a identificação da atividade econômica desenvolvida por determinada sociedade empresária. O registro de nomes de domínio no Brasil é feito pelo Comitê Gestor da Internet - CGI e, à época do ajuizamento da presente ação, era regrado pela Resolução n. 1/1998 que, em seu artigo 1º, dispõe que o direito ao nome do domínio será conferido ao primeiro requerente que satisfizer, quando do requerimento, as exigências para o registro do nome. Trata-se do princípio “First Come, First Served”, segundo o qual o registro é atribuído ao primeiro requerente que preencher os requisitos, RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 207 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA independentemente da análise mais aprofundada acerca da eventual colidência com marcas ou nomes comerciais registrados anteriormente em outros órgãos (Fonte: http://www.cgi.br/faq/problemas.htm). A adoção de tal preceito não significa, contudo, que a legitimidade do registro do nome do domínio obtido pelo primeiro requerente não possa ser contestada pelo titular de signo distintivo similar ou idêntico anteriormente registrado - seja nome empresarial, seja marca. Tal pleito, contudo, não pode prescindir da demonstração de má-fé, a ser aferida caso a caso, podendo, se configurada, ensejar inclusive o cancelamento ou a transferência do domínio e a responsabilidade por eventuais prejuízos. No caso dos autos, não é possível identificar nenhuma circunstância que constitua sequer indício de má-fé na utilização do nome do domínio pelo primeiro requerente - Conjunto Nacional Brasília. Em primeiro lugar porque, segundo constatado pelas instâncias de cognição plena, nenhuma das partes comprovou o registro específico do termo isolado “Conjunto Nacional” em Junta Comercial, no INPI ou em qualquer outro órgão de registro (e-STJ fl. 578). Além disso, o domínio obtido pela ré (www.conjuntonacional.com.br) identifica-se, ainda que parcialmente, com o signo do qual ela é titular no INPI (“Conjunto Nacional Brasília”); Ademais, não há sequer alegação de que o registro de domínio tenha sido requerido com o objetivo de prejudicar a atividade comercial do autor ou de desviar clientela a fim de auferir lucros indevidos. Até porque as atividades empresariais do autor e da ré são desenvolvidas em unidades federativas distintas (respectivamente São Paulo e Distrito Federal). Outrossim, o registro do nome de domínio “www.conjuntonacional.com. br” obtido pela ré não impediu que o autor obtivesse nome de domínio idêntico ao seu nome empresarial (“www.condominioconjuntonacional.com.br”) (e-STJ fl. 448), que permite, nos mais populares mecanismos de busca da internet, a rápida localização do sítio pelos usuários, já na primeira página da pesquisa. Tampouco foi identificada pelas instâncias de cognição plena situação que pudesse criar confusão entre os estabelecimentos, o que poderia ensejar crime de concorrência desleal. Vale colacionar, no ponto, as considerações da sentença e do acórdão recorrido que ora se reproduzem, respectivamente: 208 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA (...) Alega o Autor que o uso de domínio idêntico ou semelhante com sua marca “Condomínio Conjunto Nacional” causa confusão aos usuários da Internet que procuram obter informações sobre o empreendimento paulista. Todavia, tal alegação não merece acolhida vez que não há nos autos qualquer comprovação da ocorrência de concorrência desleal. A utilização do referido nome de domínio com o termo “Conjunto Nacional” não evidenciou em momento algum a intenção de confundir ou desviar clientes da Autora para o empreendimento da Ré. Ademais, a veiculação do termo conforme documentação acostada aos autos sempre faz referência à cidade de Brasília impedindo a alegada confusão. (...) Pela documentação acostada aos autos às folhas 324-329, verifica-se que a expressão de busca “conjunto nacional” na Internet faz espelhar ao usuário lista de endereços de diversos sites que fazem referência a tais palavras. Note-se que ao proceder tal busca o usuário encontra na listagem que apresenta os nomes de ambos os empreendimentos referidos nos presentes autos, inclusive com referência à cidade em que exercem suas atividades, restando evidente a distinção entre ambos. Certo é que o fato de o domínio estar intimamente ligado ao nome empresarial e ao título do estabelecimento comercial, seja esta virtual ou não, aquele indivíduo que astuciosamente registra endereço eletrônico para confundir usuário ou consumidor, registrando como núcleo marca ou título de estabelecimento comercial de outrem, objetivando assim iludir ou induzir a erro o consumidor, e também lesionar e obter vantagens pecuniárias das empresas titulares das respectivas marcas e títulos, estará praticando o crime de concorrência desleal. Todavia, este não é o caso dos presentes autos. Não há que se falar em impossibilidade da ré em utilizar-se do domínio www.conjuntonacional.com. br pois não registrou o domínio com o intuito fraudulento de vender ao Autor o domínio registrado ou desviar em proveito próprio a clientela de outrem, apenas procurou difundir suas atividades por essa nova via eletrônica e utilizando como núcleo de domínio nome que já é conhecido em sua localidade. Não há confusão entre os dois empreendimentos, pois sempre faz alusão à cidade em que se localiza, Brasília, e evidencia suas características próprias. Desse modo, a parte autora não pode pretender impedir a utilização do desígnio “conjunto nacional” num nome de domínio da Internet ou fora dela, pois o registro do domínio foi efetuado pela Ré antecipadamente e a utilização da expressão referida pelo Conjunto Nacional Brasília se concilia com os bons costumes, pois trata-se de um empreendimento que se situa no centro da capital federal como sempre registrado nos meios de publicidade que veicula (e-STJ fls. 578-579). (...) Cumpre salientar que o site pelo qual a apelada se identificou na rede internet guarda íntima relação com seu estabelecimento comercial que a individualiza no trânsito comercial - sendo conhecido shopping em Brasília -, não havendo sinal RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 209 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de que tenha se apropriado indevidamente de um nome sem qualquer liame com suas atividades ou fins, apenas com a finalidade de auferir ilicitamente benefício econômico em detrimento alheio, ou promover confusão entre estabelecimentos ou nome comercial com conseqüente desvio de clientela, fato que se comprovado tipificaria o delito de concorrência desleal, nos moldes do art. 195 da Lei n. 9.279/1996 (e-STJ fl. 671). Acrescente-se, por fim, que, nos termos dos artigos 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil e 255, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, inviável o conhecimento do recurso especial pela alínea c do permissivo constitucional quando não demonstrada, como na hipótese, a similitude fática entre as hipóteses confrontadas, inviabilizando a análise da divergência de interpretação da lei federal invocada. Assim, sob qualquer ângulo que se analise a matéria, o não provimento do recurso desponta como única solução possível. Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.198.168-RJ (2010/0112326-9) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Odmar Loesch Pereira - Espólio Representado por: Leila Harbache Loesch Pereira - Inventariante Advogado: Maria Helena de Carvalho Bulcão - Defensora Pública e outros Recorrido: Paulo Henrique Machado Pereira e outro Advogado: José Roberto Branco de Oliveira e outro(s) EMENTA Processual Civil. Civil. Recurso especial. Sucessão. Doação. Validade. Doação de pais a filhos. Inoficiosidade. Existência. Arts.: 134, 1.176, 1.576, 1.721 e 1.722 do CC-1916. 1. Recurso especial, concluso ao Gabinete em 20.7.2010, no qual se discute a validade de doação tida como inoficiosa, efetuada pelo de 210 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA cujus aos filhos do primeiro casamento. Inventário de O.L.P., aberto em 1999. 2. A existência de sentença homologatória de acordo, em separação judicial, pela qual o antigo casal doa imóvel aos filhos, tem idêntica eficácia da escritura pública. Precedentes. 3. A caracterização de doação inoficiosa é vício que, se não invalida o negócio jurídico originário – doação –, impõe ao donatárioherdeiro, obrigação protraída no tempo: de, à época do óbito do doador, trazer o patrimônio à colação, para igualar as legítimas, caso não seja herdeiro necessário único, no grau em que figura. 4. A busca da invalidade da doação, ante o preterimento dos herdeiros nascidos do segundo relacionamento do de cujus, somente é cabível se, e na medida em que, seja constatado um indevido avanço da munificência sobre a legítima, fato aferido no momento do negócio jurídico. 5. O sobejo patrimonial do de cujus é o objeto da herança, apenas devendo a fração correspondente ao adiantamento da legítima, in casu, já embutido na doação aos dois primeiros descendentes, ser equalizado com o direito à legítima dos herdeiros não contemplados na doação, para assegurar a esses outros, a respectiva quota da legítima, e ainda, às respectivas participações em eventuais sobras patrimoniais. 6. Recurso não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 6 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 22.8.2013 RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 211 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por Odmar Loesch Pereira - Espólio, fundamentado na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo TJ-RJ. Ação: inventário de Odmar Loesch Pereira. Decisão interlocutória: após sucessivas manifestações da inventariante, quanto aos bens componentes do monte-mor, notadamente com alterações relativas à loja comercial, foi reconhecida a nulidade da doação feita a dois herdeiros, considerando-a inoficiosa por violação da legítima. Acórdão: por unanimidade, deu provimento ao agravo de instrumento interposto interposta pelos recorridos, nos termos da seguinte ementa: Inventário. Doação inoficiosa. 1. A doação de bem imóvel é negócio jurídico consensual, porque se aperfeiçoa com o acordo de vontades entre doador e donatário, independentemente da entrega da coisa. A doação de pais aos filhos não segue a regra geral da inoficiosidade uma vez que o referido ato, na forma do artigo 1.171 do Código Civil de 1916, implica adiantamento de legítima. 3. Os donatários estão obrigados a conferir no inventário do doador, por meio de colação, os bens recebidos, pelo valor que lhes atribuir o ato de liberalidade ou a estimativa feita naquela época, para que sejam igualados os quinhões dos herdeiros necessários, conforme artigo 1.792, § 1º do Código Civil de 1916. (fl. 230, e-STJ). Acórdão em Embargos de Declaração: por unanimidade, rejeitou os embargos de declaração interpostos pelos recorrentes. Recurso especial: Alega violação dos arts. 535 do CPC; 134, 1.721, 1.722, 1.176 e 1.576 do CC-1916. Aponta a falta de prequestionamento de vários dispositivos de lei, que deram suporte ao recurso especial, apesar de ter, na origem, interposto embargos de declaração para sanar a falta. Sustenta que a doação não foi perfectibilizada porquanto não cumpridas as formalidades legais e, ainda que essa tese não seja corroborada, teria ocorrido doação inoficiosa, pelo desrespeito à legítima, fato que daria ensejo à anulação da doação. 212 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Inadmitido o recurso na origem, foi dado provimento ao agravo de instrumento interposto, para melhor exame da matéria (fl. 165, e-STJ). Às fls. 179-182, Parecer do Ministério Público Federal, de lavra do Subprocurador-Geral da República Antônio Fonseca, pelo não provimento do recurso especial. Relatado o processo, decide-se. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia em dizer da validade de doação de imóvel feita a descendentes, no momento da separação do casal, tanto pelo seu aspecto formal, quanto pela sua regularidade em face da vedação à doação inoficiosa. De se ressaltar que, independentemente da manifestação expressa do Tribunal de origem quanto a todos os dispositivos de lei tidos por violados, é fato que houve debate na origem sobre os motes de lastro do recurso especial, o que torna inócua possível discussão quanto ao prequestionamento dos dispositivos legais e, por conseguinte, a análise da alegada violação do art. 535 do CPC. I. Lineamentos Gerais. Historiando os eventos, para melhor compreensão da controvérsia, verificase que o imóvel, que está no centro da discussão, foi doado aos recorridos quando seus pais se separaram, com reserva de usufruto ao ex-cônjuge varão, declaração de vontade que foi parte integrante de acordo de separação homologado judicialmente, mas da qual não foi feita a correspondente escritura pública nem formalizada, junto ao Registro Público, a correspondente transferência de propriedade. À época da manifestação da vontade, tinha o doador – de cujus – conhecimento da existência do nascituro – B.H.P., que não foi contemplado na doação. II. Da validade da doação. A primeira questão que impõe o enfrentamento diz respeito à validade da doação efetuada pelo casal, no ato de sua separação, que foi homologada em juízo, mas não teve o correspondente ato solene de transmissão da propriedade. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 213 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Aqui se confronta a necessidade da efetiva escritura pública para efeitos de validade do negócio jurídico doação, como pugnava o art. 134, II, do CC-1916 – vigente à época, e uma situação fático-jurídica consolidada sob os auspícios do Estado-Juiz, por meio de sentença homologatória de acordo. Nessa senda, não se nega a relevância e necessidade de efetuação do devida escritura pública, como aliás, é repetidamente afirmado, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. No entanto, não se pode ignorar a válida manifestação de vontade, mormente quando formalizada em Juízo, até mesmo, porque é razoável se dessumir que essa doação fosse uma condição pré-acertada para a separação consensual do casal, e para a amigável composição sobre o patrimônio mobiliário e imobiliário que seria dividido. Note-se, não se trata aqui de promessa de doação, fórmula repelida pelo ordenamento jurídico, porquanto o que não existiu foi a formalização cartorial do ato, que pode ser suprida, quando a doação estiver inserida em acordo de separação judicial. Nesse sentido, cita-se posicionamento já cristalizado nesta Turma, do que é exemplo o (REsp n. 32.895-SP, Rel. Min. Castro Filho, DJ 1º.7.2002). Direito Civil. Separação consensual. Partilha de bens. Doação pura e simples de bem imóvel ao filho. Homologação. Sentença com eficácia de escritura pública. Admissibilidade. Doado o imóvel ao filho do casal, por ocasião do acordo realizado em autos de separação consensual, a sentença homologatória tem a mesma eficácia da escritura pública, pouco importando que o bem esteja gravado por hipoteca. Recurso especial não conhecido, com ressalvas do relator quanto à terminologia. Nesse toada, mantém-se o acórdão, quanto ao ponto. III. Da doação inoficiosa. A caracterização de doação inoficiosa é vício que, se não invalida o negócio jurídico originário – doação –, impõe ao donatário-herdeiro, obrigação protraída no tempo, de que, à época do óbito do doador, deverá trazer o patrimônio à colação, para igualar as legítimas, caso não seja herdeiro necessário único, no grau em que figura. A razão de ser da fórmula é a necessidade de igualdade entre os descendentes e o cônjuge supérstite – quando este concorre na herança -, fórmula de há muito adotada pelo Direito pátrio, que consolidou a ideia de 214 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA que mesmo quando, por qualquer razão o ascendente quiser privilegiar algum de seus possíveis herdeiros, com quinhão diferenciado, fica limitado em sua liberalidade pela legítima. Nessa senda, e tomando por premissa que a doação inoficiosa é aferida no momento da liberalidade, nota-se claramente que houve preterição do nascituro B.H.P., que não foi elencado como donatário por seu pai. No entanto, tal fato, por si, não gera a invalidade perseguida pelo espólio recorrente porque, nos termos do art. 1.171 do CC-1916 – aplicável à espécie por força do momento em que foi entabulado o negócio jurídico doação – a legítima do não-donatário, individualmente tomada, é o quantum que deve estar salvaguardado da doação, sob pena de caracterizar a inoficiosidade da liberalidade. Três eram os herdeiros necessários à época da doação: os recorridos (filhos do primeiro casamento do de cujus) e o nascituro – prole de um segundo relacionamento –, e apenas os dois primeiros foram contemplados com a liberalidade. Nesse contexto, podia ser doado, para os dois descendentes, até, aproximadamente 83,3% (oitenta e três inteiros e três décimos por cento) do patrimônio total (50% da parte disponível acrescido das correspondentes frações da legítima, que importavam em, aproximadamente, 33,2% (aproximadamente trinta e três inteiros e dois décimos por cento). Como a doação não atingiu 57% do patrimônio existente à época, doação inoficiosa não houve, cabendo, agora, apenas se trazer o bem doado à colação, para fins de equilibrar ou igualar a legítima. Note-se que aqui, o sobejo patrimonial do de cujus é o objeto da herança, apenas devendo a fração correspondente ao adiantamento da legítima, já embutido na doação aos dois primeiros descendentes, ser equalizado com o direito à legítima dos herdeiros não contemplados na doação, para assegurar a esses outros, a respectiva quota da legítima, e ainda, às respectivas participações em eventuais sobras patrimoniais. Cita-se nesse sentido o posicionamento de Arnaldo Rizzardo: Daí depreender-se que o art. 549 (art. 1.176 do Código anterior) não proíbe a doação que ultrapassar a metade dos bens, e sim a que ultrapassar o valor que o testador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Necessário, pois, que se tenha em vista a norma do art. 1.846 (art. 1.721 do Código revogado): “Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima’. De onde se chega a que, possuindo um pai viúvo RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 215 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA cem mil metro quadrados de terra apenas, e doando a um estranho sessenta por cento do imóvel, configurar-se-á doação inoficiosa. Mas não se o pai tem dois filhos, e o beneficiado for um deles. Isto porque, segundo ilustra Agostinho Alvim, a legítima dos descendentes é a metade do patrimônio, ou seja, cinquenta por cento dos bens, que, no caso, equivale ao disponível. Portanto, cada filho fará jus a vinte e cinco por cento do patrimônio, o que importa em afirmar que a um deles faculta-se ao pai doar toda a sua parte disponível (cinquenta por cento) e mais a legítima do filho (vinte e cinco por cento), atingindo o quanto de setenta e cinco por cento. Assim, a busca da invalidade da doação, ante o preterimento dos herdeiros nascidos do segundo relacionamento do de cujus, somente seria cabível se, e na medida em que, fosse constatado um indevido avanço da munificência sobre a legítima que, repita-se, no debate envolvendo a inoficiosidade da doação, deve ser aferida no momento do negócio jurídico. No mais, o instituto da colação irá, por primeiro, assegurar que os não contemplados com a doação possam, ainda assim, terem resguardo o seu quinhão na legítima, mesmo que seja por redução na doação e, de outra banda, garantir que a vontade do doador seja respeitada no limite da possibilidade legal. Essa é a essência da construção teórica que desagua na fórmula da colação, pois não se pode tolher a liberdade do indivíduo em beneficiar alguém com o patrimônio que lhe é próprio, desde que respeite os limites legais – 50% do patrimônio. Se terceiros podem ser alvo dessa munificência, quanto mais os descendentes, mesmo porque, pode o ascendente doador querer, em face de relações peculiares de gratidão, ou situação pessoal do donatário, diferenciar positivamente, na parte que lhe é disponível, o quinhão hereditário de um dos seus filhos. Dessa forma, não merece reforma o acórdão recorrido. Forte em tais razões, nego provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.209.474-SP (2010/0148220-2) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Edson Coelho - Espólio e outro Representado por: Durvalino Coelho - Inventariante 216 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Advogado: Eugênio Carlos Barboza e outro(s) Recorrido: Tempo Serviços Ltda Advogado: Álvin Figueiredo Leite e outro(s) EMENTA Recurso especial. Responsabilidade civil. Dano moral. Contrato de cartão de crédito celebrado após a morte do usuário. Inscrição indevida nos órgãos de proteção ao crédito. Eficácia post mortem dos direitos da personalidade. Legitimidade ativa da viúva para postular a reparação dos prejuízos causados à imagem do falecido. Inteligência do artigo 12, parágrafo único, do Código Civil. 1. Contratação de cartão de crédito após a morte do usuário, ensejando a inscrição do seu nome nos cadastros de devedores inadimplentes. 2. Propositura de ação declaratória de inexistência de contrato de cartão de crédito, cumulada com pedido de indenização por danos morais, pelo espólio e pela viúva. 3. Legitimidade ativa da viúva tanto para o pedido declaratório como para o pedido de indenização pelos prejuízos decorrentes da ofensa à imagem do falecido marido, conforme previsto no art. 12, parágrafo único, do Código Civil. 4. Ausência de legitimidade ativa do espólio para o pedido indenizatório, pois a personalidade do “de cujus” se encerrara com seu óbito, tendo sido o contrato celebrado posteriormente. 5. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 6. Restabelecimento dos comandos da sentença acerca da indenização por dano moral. 7. Recurso especial parcialmente provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 217 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Justiça, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi (voto-vista), João Otávio de Noronha e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 10 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 23.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial interposto pelo Espólio de Edson Coelho e por Auciliadora Maria Pereira Coelho contra acórdão da 13ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Na origem, o Espólio de Edson Coelho e Auciliadora Maria Pereira Coelho, viúva de Edson, ajuizaram contra American Express Tempo e Cia. ação declaratória de inexigibilidade de cobrança de valores indevidos cumulada com danos morais e antecipação de tutela. Os pedidos da inicial eram (i) a declaração de inexistência de contrato, supostamente, havido entre o falecido e a parte ré; (ii) a indenização pelos prejuízos morais sofridos da cobrança indevida e do apontamento indevido do nome do de cujus nos órgãos de proteção ao crédito. Alegaram que tomaram conhecimento, nos idos de 2006, via cobrança extrajudicial feita pela ré, de um débito em nome do falecido no valor de R$ 15.973,20 (quinze mil novecentos e setenta e três reais e vinte centavos), decorrente de contrato de cartão de crédito adquirido após a sua morte (2004). Por fim, noticiaram o apontamento do nome do falecido nos cadastros de maus pagadores. Citada, a empresa ré arguiu a ilegitimidade ativa da parte para a pretensão indenizatória pelos danos morais, vez que se trata de direito personalíssimo que não se transmite ao espólio, além da ilegitimidade ativa da viúva tanto para o pedido declaratório, quanto indenizatório, por não ter havido envolvimento do seu nome nem na cobrança, nem no apontamento litigioso. 218 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Em julgamento antecipado, a sentença acolheu a preliminar de ilegitimidade ativa da viúva, ora recorrente, quanto à pretensão declaratória, sob o fundamento de que não há menção ao seu nome quanto à alegada falsa contratação, carecendo, assim, inclusive de interesse jurídico. Na mesma linha, acolheu também, a preliminar de ilegitimidade ativa do espólio, também ora recorrente, quanto à pretensão indenizatória, sob o fundamento de que os danos extrapatrimoniais dizem com a dignidade da pessoa humana, tendo esta findado com o passamento do Sr. Edson, ou seja, encerrou-se com a morte. No mérito, a sentença julgou parcialmente procedente o pedido do espólio de ver declarado inexistente o contrato havido entre o falecido e a empresa administradora de cartão de crédito, bem como acolheu o pleito indenizatório da viúva, condenando a ré no pagamento de indenização por danos morais no valor arbitrado em R$ 5.700,00 (cinco mil e setecentos reais), acrescidos de juros de mora da data do apontamento e correção monetária do arbitramento. Irresignadas, as duas partes apelaram da sentença. O Tribunal a quo, no julgamento das apelações cíveis, negou provimento ao recurso da parte autora e deu parcial provimento à apelação da administradora de cartão de crédito, reformando a sentença no tocante à condenação da ré no pagamento de indenização, sob o fundamento de que a viúva não sofreu cobrança vexatória, atribuída esta exclusivamente ao seu falecido marido, não constando o nome dela em órgãos de proteção ao crédito, mantendo, no mais, a sentença recorrida, em acórdão ementado nos seguintes termos: Declaratória de inexistência de débito. Indenização por danos morais. Dívida atribuída à pessoa já falecida à época da celebração do contrato. Inexigibilidade inequívoca. Inexistência de danos morais, entretanto, nem com relação ao morto e nem com relação à viúva, cujo nome não foi envolvido, não sofrendo pessoalmente cobrança alguma. Apelo da ré provido em parte, não provido o dos autores. Na seqüência, os autores (espólio e viúva) interpuseram o presente recurso especial, defendendo, em síntese, que há legitimidade ativa de ambos para a ação indenizatória. Por fim, postularam a indenização pelos prejuízos extrapatrimoniais sofridos decorrentes da cobrança e do apontamento indevidos em nome do falecido. Em suas razões, a parte recorrente sustentou que o acórdão violou os artigos 5º, X e XXXV, e 104, I a III, da Constituição Federal; 113, 139, 159, 166 RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 219 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA e 169 do Código Civil/1916; 186 do Código Civil de 2002; 3º, 12, 535, I e II, do Código de Processo Civil e 39, 46 e 51 do Código de Defesa do Consumidor, bem como apontou dissídio jurisprudencial. Requereu a reforma do julgado com a condenação da parte recorrida para que a indenize pelos prejuízos extrapatrimoniais sofridos. Presentes as contrarrazões, o recurso especial não foi admitido na origem, ensejando a interposição de agravo de instrumento, que foi provido pelo Min. Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ-BA). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas, adianto que merece parcial acolhimento a irresignação recursal. O caso dos autos é peculiar, situando-se em torno de pretensão indenizatória por danos morais em face da celebração de contrato de cartão de crédito entre a administradora demandada e pessoa já falecida quando da sua falsa pactuação. Tem-se tornado fato corriqueiro a ação de pessoas inescrupulosas especializadas na contratação de cartões de crédito com o CPF de pessoas já falecidas. Esses estelionatários utilizam-se do número do CPF de pessoa falecida para adquirir um cartão de crédito e utilizá-lo até a sua suspensão pelo inadimplemento das faturas. Como o titular do cartão já faleceu e, até o momento da cobrança do valor da fatura perante os sucessores, passa um tempo razoável, o ilícito é de demorada constatação e de difícil repressão. A administradora de cartão de crédito, que normalmente celebra seus contratos via telefone ou internet, sem exigir a presença física do consumidor usuário do cartão de crédito, só toma conhecimento da fraude quando deflagra os procedimentos de cobrança extrajudicial. A jurisprudência desta Corte é tranquila no sentido de que o apontamento indevido do nome de consumidores em órgãos de proteção ao crédito produz danos morais, gerando obrigação de indenizar por quem procede à inscrição. No presente caso, porém, a peculiaridade é a celebração do contrato de cartão de crédito após o óbito do usuário, ensejando a inscrição do seu nome nos órgãos de proteção ao crédito como devedor inadimplente. 220 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA A legitimidade para a postulação de danos morais nessas situações constitui matéria bastante complexa, que enseja debate doutrinário a luz das normas do Código Civil acerca dos direitos da personalidade. Antes, porém, de enfrentar essa questão, relembro que, na presente demanda, foram cumuladas duas pretensões (art. 292 do CPC). A primeira pretensão de natureza declaratória busca o reconhecimento da inexistência de contrato entre o de cujus e a empresa administradora do cartão de crédito, que, naturalmente, foi julgada procedente, não ensejando mais discussão. A segunda pretensão, de cunho indenizatório, refere-se à cobrança e ao consequente apontamento indevido do nome do falecido nos órgãos de proteção ao crédito como devedor inadimplente, tendo sido formulada tanto pelo espólio, quanto pela viúva. Com efeito, a sentença julgou procedente o pedido do espólio de declaração de inexistência da dívida, mas afastou o pedido de indenização por danos morais. Em relação à viúva, inversamente, afastou a sua legitimidade para o pedido declaratório, mas acolheu o seu pedido indenizatório. O acórdão recorrido, ao negar provimento ao apelo dos autores e dar parcial provimento ao recurso de apelação da administradora de cartões de crédito, reformou, em parte, a sentença, afastando a condenação da ré ao pagamento de indenização também à viúva, por considerá-la parte ilegítima para postular indenização por danos morais ao seu falecido esposo. Asseverou-se, no acórdão recorrido, que o morto não poderia ter sido vítima de danos morais por ter sido o ato praticado depois de sua morte, não reconhecendo, também, legitimidade ao espólio para postular indenização nesse sentido. Manteve, assim, apenas a procedência da pretensão declaratória de inexistência de contrato por ter sido pactuado após o passamento do devedor, o que não é objeto de discussão neste recurso especial. Desse modo, a controvérsia devolvida ao conhecimento desta Corte situase em torno de estabelecer a legitimidade das duas partes autoras (espólio e viúva) para o pedido de indenização por danos morais, bem como a legitimidade da viúva para o pedido de declaração de inexistência do contrato. Primeiro, quanto à pretensão declaratória de inexistência de contrato, não há falar em ilegitimidade da viúva ou em falta de interesse processual em ver declarado inexistente o contrato que poderia repercutir em seu quinhão hereditário. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 221 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Prevê o enunciado normativo do art. 597 do Código de Processo Civil: Art. 597. O espólio responde pelas dívidas do falecido; mas, feita a partilha, cada herdeiro responde por elas na proporção da parte na herança que lhe coube. (grifei) Incontroverso nos autos que foi cobrado, extrajudicialmente, dos autores, dívida no montante de R$ 15.973,20 (quinze mil novecentos e setenta e três reais e vinte centavos), supostamente contraída pelo de cujus. Portanto, tanto o espólio, quanto a viúva tinham interesse e legitimidade de ver declarada inexistente a obrigação. Esta, enquanto herdeira legítima (art. 1.829, I, II e II, do CC), e, aquele, como responsável por responder pelas dívidas deixadas pelo falecido (art. 597 do CPC). De todo modo, julgado procedente o pedido de declaração de inexistência de contrato formulado pelo espólio, restou prejudicado o mesmo pedido declaratório formulado pela viúva. O cerne do recurso especial concentra-se, assim, na fixação da legitimidade para o pedido indenizatório, exigindo o debate estabelecido nos autos resposta para duas complexas questões: 1. Pode o espólio sofrer dano moral? 2. Pode a viúva postular a reparação de dano moral por ofensa à imagem do falecido esposo? Antes de responder a tais questionamentos, deve-se distinguir o presente caso das hipóteses já julgadas por esta Corte Superior, quando a ofensa moral ocorre antes do passamento do ofendido, sendo a demanda proposta após a sua morte. Esta Terceira Turma, em acórdão anterior ao Código Civil de 2002, enfrentou a questão no julgamento do Recurso Especial n. 302.029-TJ, relatoria da Ministra Nancy Andrighi, não reconhecendo a legitimidade ativa dos herdeiros, sendo a seguinte a sua ementa: Recurso especial. Processual Civil. Acórdão. Omissão. Invalidade. Inexistência. Divergência jurisprudencial. Comprovação. Dano moral. Ação de indenização. Herdeiro da vítima. Legitimidade ativa ad causam. Inexistência de invalidade do acórdão recorrido, o qual, de forma clara e precisa, pronunciou-se acerca dos fundamentos suficientes à prestação jurisdicional invocada. Não se conhece o Recurso Especial pela divergência se inexiste a confrontação analítica dos 222 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA julgados. Na ação de indenização de danos morais, os herdeiros da vítima carecem de legitimidade ativa ad causam. (REsp n. 302.029-RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 29.5.2001, DJ 1º.10.2001, p. 212) Diversamente, porém, no presente caso, a violação moral ocorreu após o passamento da vítima. Ou seja, a contratação irregular do cartão de crédito, a cobrança indevida da dívida constante das faturas e o apontamento indevido nos órgãos de proteção ao crédito, deram-se após a morte do suposto devedor. O acórdão recorrido entendeu que nem o espólio, nem a viúva poderiam postular indenização por ofensa contra o nome e a imagem do falecido. Penso que, nesse ponto, o acórdão recorrido merece parcial reforma. Diz um vetusto adágio jurídico: mors omnia solvit (a morte tudo resolve). Isso inclui os direitos da personalidade, que se encerram com a morte da pessoa natural, consoante expresso na norma do artigo 6º do Código Civil (a existência da pessoa natural termina com a morte). Remanesce, porém, divergência doutrinária acerca da possibilidade de uma eficácia post mortem dos direitos da personalidade. Na doutrina, três correntes foram construídos acerca do tema, merecendo lembrança a didática síntese feita por Ney Rodrigo Lima Ribeiro, em seu artigo denominado Direito à proteção de pessoas falecidas. Enfoque luso-brasileito, na obra Direitos da Personalidade, coordenada pelos Professores Jorge Miranda, Otávio Luiz Rodrigues Junior e Gustavo Bonato Fruet, (São Paulo: Atlas, 2012, p. 442): a) sustentam que a personalidade cessa com a morte (art. 6º do CC), ou seja, que é uma regra absoluta e, por conseguinte, a morte tudo resolve (mors omnia solvit), bem como não há extensão dos direitos de personalidade, os seguintes doutrinadores: Sílvio de Salvo Venosa; Cristiano Chaves; Pontes de Miranda e Silvio Romero Beltrão; b) defendem que a personalidade cessa com a morte (art. 6º do CC), entretanto, é uma regra relativa e, por decorrência, o brocardo jurídico mors omnia solvit não é absoluto, há extensão dos direitos de personalidade após a morte e também é cabível a indenização diante de lesão à pessoa falecida, os seguintes autores: Álvaro Villaça, Silmara J. Chinellato; Ruibens Limongi França; Ingo Wolfgang Sarlet; Gustavo Tepedino; Maria Helena Diniz; Flávio Tartuce; Paulo Lôbo; Francisco Amaral e José Rogério Cruz e Tucci; RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 223 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA c) a doutrina brasileira é quase uníssona em afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988) é o sustentáculo de proteção das pessoas falecidas. No Direito português, o Código Civil de 1966, em seu art. 71, n. 1, prevê uma permanência genérica dos direitos da personalidade post mortem, nos seguintes termos, verbis: Art. 71º (Ofensa a pessoas já falecidas) 1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular. 2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n. 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido. 3. Se a ilicitude da ofensa resultar da falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer as providências a que o número anterior se refere. Na mesma linha, no Direito brasileiro, apesar do encerramento dos direitos da personalidade com a morte de seu titular, há previsão legal expressa de proteção post mortem desses direitos em alguns casos específicos. O Código Civil brasileiro de 2002 estatuiu duas formas de tutela póstuma dos direitos da personalidade nos parágrafos únicos dos seus artigos 12 e 20, verbis: Art. 12. Pode-se exigir que cesse ameaça, ou lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimidade para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. (grifos meus) 224 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Na I e na V Jornada de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal do Superior Tribunal de Justiça, foram aprovados proposições acerca desse tema, mediante os Enunciados n. 5 e 275, verbis: Enunciado n. 5: 1) as disposições do art. 12 têm caráter geral e aplicam-se, inclusive, às situações previstas no art. 20, excepcionados os casos expressos de legitimidade para requerer as medidas nele estabelecidas; 2) as disposições do art. 20 do novo Código Civil têm a finalidade específica de regrar a projeção dos bens personalíssimos nas situações nele enumeradas. Com exceção dos casos expressos de legitimação que se conformem com a tipificação preconizada nessa norma, a ela podem ser aplicadas subsidiariamente as regras instituídas no art. 12. Enunciado n. 12: O rol dos legitimados de que tratam os art. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil também compreende o companheiro.” Na jurisprudência do STJ, destaca-se acórdão da Quarta Turma, relatoria do Ministro Cesar Asfor Rocha, que se pronunciou sobre o tema, reconhecendo proteção à honra de pessoa falecida, em conhecido caso envolvendo a filha da escritora Glória Perez, que fora assassinada e que teve publicada a sua foto pela editora carioca “O Dia”, ao lado de matéria denominada “O Beijo da Traição”. A ementa do acórdão foi a seguinte, verbis: Civil. Danos morais e materiais. Direito à imagem e à honra de pai falecido. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Segundo recurso especial das autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido. (REsp n. 521.697-RJ, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 16.2.2006, DJ 20.3.2006, p. 276) RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 225 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Com efeito, o espólio não pode sofrer dano moral por constituir uma universalidade de bens e direitos, sendo representado pelo inventariante (art. 12, V, do CPC) para questões relativas ao patrimônio do de cujus. Entretanto, o cônjuge sobrevivente e os herdeiros da pessoa falecida podem postular uma reparação pelos prejuízos causados, após a sua morte, por um ato ilícito que atinge a imagem e a memória da pessoa falecida, conforme previsto no art. 12, parágrafo único, do Código Civil de 2002. Assim, no presente caso, apenas a viúva detém legitimidade para reclamar a indenização pelos prejuízos decorrente da ofensa à imagem (direito de personalidade) do falecido marido. Incontroverso o fato de que foi cobrado, extrajudicialmente, da viúva, dívida indevida de R$ 15.973,20 (quinze mil novecentos e setenta e três reais e vinte centavos), supostamente, contraída pelo de cujus, além do apontamento do nome dele nos cadastros de maus pagadores. Desse modo, impõe-se o provimento do recurso especial em relação à viúva, restabelecendo-se os comandos da sentença no que concerne à indenização por dano moral. Ante todo exposto, voto pelo parcial provimento do recurso para julgar procedente o pedido indenizatório formulado por Auciliadora Maria Pereira contra American Express Tempo e Cia, condenando a ré no pagamento da indenização por danos morais arbitrada na sentença. Quanto à sucumbência, considerando-a recíproca em diferentes percentuais, condeno o réu no pagamento de três quartos (75%) das custas processuais e honorários advocatícios, que ora arbitro em 15% sobre o valor atualizado da condenação. Arcará a parte autora com um quarto (25%) das custas e honorários advocatícios de quinhentos reais, autorizada a compensação, nos termos da Súmula n. 306-STJ. Em síntese, voto no sentido do parcial provimento do recurso especial. VOTO-VISTA A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial, nos autos de ação declaratória de inexigibilidade de cobrança de valores indevidos c/c compensação por danos morais, ajuizada por Edson Coelho - Espólio e Auciliadora Maria Pereira Coelho (viúva), em face de American Express Tempo e Cia (Tempo Serviços Ltda). 226 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Sentença (fls. 254-262, e-STJ): preliminarmente, reconheceu a ilegitimidade ativa da viúva para a pretensão declaratória, bem como a do espólio, para a pretensão indenizatória. No mérito, julgou parcialmente procedentes os pedidos, para declarar a inexistência do contrato de cartão de crédito e a inexigibilidade dos débitos dele decorrentes (pedido formulado pelo espólio) e condenar a ré a pagar a Auciliadora Maria Pereira Coelho indenização por danos morais, arbitrada em R$ 5.700,00 (cinco mil e setecentos reais). Acórdão (fls. 363-365, e-STJ): negou provimento ao recurso dos autores e deu parcial provimento ao recurso interposto por Tempo Serviços Ltda, para excluir da condenação a indenização por danos morais. Recurso especial (fls. 379-405, e-STJ): interposto pelos autores, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, em cujas razões alegam violação do art. 186 do CC/2002 e negativa de prestação jurisdicional. Juízo de admissibilidade (fls. 1.011-1.013, e-STJ): o recurso foi inadmitido na origem, dando azo à interposição de agravo de instrumento, provido pelo Min. Paulo Furtado (Desembargador convocado do TJ-BA), em decisão de fl. 451, e-STJ. Voto do Relator: dá parcial provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença, no que concerne à indenização pelos danos morais suportados pela viúva, e, considerando a sucumbência recíproca, em diferentes percentuais, condenar o réu ao pagamento de 75% das custas processuais e honorários advocatícios, arbitrados em 15% sobre o valor atualizado da condenação, arcando os autores com os 25% restantes das custas e com verbas honorárias de R$ 500,00 (quinhentos reais). Revisados os fatos, decido. Inicialmente, consigno que acompanho o Min. Relator, nos termos do voto proferido na sessão de 5.9.2013, pedindo vênia, apenas, para tecer algumas considerações acerca da legitimidade ativa de Auciliadora Maria Pereira Coelho para pleitear a indenização por danos morais. Na hipótese, o dano moral suportado pela viúva, reconhecido na sentença que foi restabelecida pelo Relator, refere-se à ofensa ao próprio direito da personalidade, efeito da cobrança de dívida inexistente, de elevada quantia, e da inscrição indevida do nome do falecido marido nos cadastros de proteção ao crédito. Com efeito, o parágrafo único do art. 12 do CC/2002 não prevê hipótese de substituição processual do falecido pelo cônjuge supérstite ou por parentes, RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 227 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA mas de exercício do direito próprio destes, quando afetados pela ofensa a um direito da personalidade daquele, após a sua morte. Esses legitimados são, em verdade, lesados indiretos, pois sofrem os efeitos do dano causado à pessoa morta, um dano moral reflexo, portanto. Nesse contexto, deve ser ressaltado que não se está diante de pretensão compensatória do dano moral da pessoa morta por lesão à honra ou à imagem desta, mas do dano indireto que essa circunstância causou ao cônjuge sobrevivente, consubstanciado na angústia e indignação sofridas por ele. Forte nessas razões, acompanho o Min. Relator e dou parcial provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.234.887-RJ (2011/0016624-7) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: STM Networks Inc Advogados: Gustavo Fernandes de Andrade e outro(s) André Luiz Souza da Silveira e outro(s) Maria Azevedo Salgado Recorrente: STM Wireless Telecomunicações Ltda Advogados: Antônio Carlos Amorim e outro(s) Cairo Roberto Bittar Hamú Silva Júnior e outro(s) Recorrido: Os mesmos EMENTA Recursos especiais. Processual Civil. Negativa de prestação jurisdicional. Não ocorrência. Violação do art. 273, § 1º, do Código de Processo Civil. Ausência de prequestionamento. Artigo 273, § 6º, do CPC. Antecipação de tutela para levantamento do valor incontroverso do crédito. Possibilidade. Consectários da condenação. Cabimento. 1. Não importa negativa de prestação jurisdicional o acórdão que adotou, para a resolução da causa, fundamentação suficiente, porém 228 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA diversa da pretendida pela recorrente, para decidir de modo integral a controvérsia posta. De tanto resulta que não há falar, na espécie, em violação do artigo 535 do Código de Processo Civil, visto que inexiste qualquer vício a ser sanado em sede de embargos de declaração. 2. A tese recursal vinculada ao § 1º do artigo 273 do CPC, diversa da suscitada nas razões dos aclaratórios, não foi debatida no acórdão hostilizado, sequer de modo implícito, não tendo servido de fundamento à conclusão adotada pelo Tribunal de origem. Resta desatendido, portanto, o requisito específico de admissibilidade do recurso especial concernente ao prequestionamento, o que atrai o óbice constante na Súmula n. 211 desta Corte (v.g.: REsp n. 775.841RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 26.3.2009). 3. Se um dos pedidos, ou parte deles, já se encontre comprovado, confessado ou reconhecido pelo réu, não há razão que justifique o seu adiamento até a decisão final que aprecie a parte controversa da demanda que carece de instrução probatória, podendo ser deferida a antecipação de tutela para o levantamento da parte incontrovesa (art. 273, § 6º, do Código de Processo Civil). 4. Não se discute que a tutela prevista no § 6º do artigo 273 do CPC atende aos princípios constitucionais ligados à efetividade da prestação jurisdicional, ao devido processo legal, à economia processual e à duração razoável do processo, e que a antecipação em comento não é baseada em urgência, nem muito menos se refere a um juízo de probabilidade (ao contrário, é concedida mediante técnica de cognição exauriente após a oportunidade do contraditório). Porém, por questão de política legislativa, a tutela do incontroverso, acrescentada pela Lei n. 10.444/2002, não é suscetível de imunidade pela coisa julgada, inviabilizando o adiantamento dos consectários legais da condenação (juros de mora e honorários advocatícios). 6. Recursos especiais da STM Networks Inc. e da STM Wireless Telecomunicações Ltda. não providos. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide A Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento a ambos os recursos especiais, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 229 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Andrighi, João Otávio de Noronha e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti. Brasília (DF), 19 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 2.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: STM Networks Inc. e STM Wireless Telecomunicações Ltda. interpõem recursos especiais, ambos com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro assim ementado: 1. Agravo inominado em agravo de instrumento. 2. O valor incontroverso do crédito discutido pode ser levantado pelo credor. 3. Precedentes. 4. Recurso provido (fl. 241). Foram acolhidos os declaratórios opostos pela ré e rejeitados os da parte autora (fls. 275-280). Na origem, a STM Wireless Telecomunicações Ltda. propôs ação de cobrança contra a STM Networks Inc. buscando o pagamento de diferenças de comissões, porquanto seria representante e distribuidora exclusiva no Brasil dos produtos de comunicação de satélites pertencentes à empresa ré, situada nos Estados Unidos, percebendo, a princípio, como comissão, 20% (vinte por cento) sobre toda e qualquer venda realizada no território brasileiro. Sustenta STM Wireless que, no curso da negociação do contrato com a Brasil Telecom, firmou um aditivo ao contrato principal com a ré reduzindo a sua comissão para 2,5% (dois vírgula cinco por cento) apenas em relação a dois projetos (PGMU 2005 da Brasil Telecom e da Telemar). A STM Networks, por sua vez, resiste à pretensão, afirmando que o percentual de 2,5% abrange todo o contrato e não somente os dois projetos citados. Em linhas gerais, é essa a controvérsia principal. Em sede cautelar, foi determinado o depósito, em juízo, do valor total pretendido (20% sobre todos os contratos). 230 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Inconformada com a decisão que indeferiu o pedido de levantamento do montante incontroverso (2,5%), ao fundamento de inexistência de liquidez e certeza do crédito, a STM Wirelles interpôs agravo de instrumento que, por maioria, foi provido para deferir o levantamento pela autora/recorrente do valor, em moeda nacional, correspondente a US$ 1.616.765,34 (um milhão seiscentos e dezesseis mil setecentos e sessenta e cinco dólares e trinta e quatro centavos), observada a cotação que tiver na data da emissão do mandado de pagamento. É contra esse acórdão que se insurgem as partes. A autora, STM Wireless Telecomunicações Ltda. aponta como violado o artigo 273, § 6º, do Código de Processo Civil, pois, (...) Apesar da discordância no que tange a alguns pontos da demanda, é certo que as partes jamais divergiram sobre os 2,5% de comissão devidos à Recorrente. (...) Ao conceder o levantamento do valor correspondente à parcela incontroversa da demanda, a 4ª CCTJ nada mais fez do que aplicar o § 6º do artigo 273, do CPC, que assim dispõe: Art. 273 - (...) § 6º - A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. No entanto, ao aplicar tal dispositivo, o v. acórdão deveria ter incluído na indenização, obrigatoriamente, os juros legais e os honorários advocaticios.’ A explicação é simples: nos casos de reconhecimento parcial do pedido não há antecipação dos efeitos da tutela final, mas verdadeiro julgamento antecipado de parte do mérito da demanda. (...) E é assim porque nada mais resta a decidir em relação a essa parte da demanda, que se exauriu quando a Recorrida reconheceu a procedência parcial do pedido formulado pela Recorrente. Dessa forma, o r. decisum proferido pelo c. Tribunal de origem não consiste em mera cognição sumária, mas em provimento exauriente, capaz, inclusive, de produzir coisa julgada material. Por consequência, a execução do julgado é definitiva, e não provisória, não se aplicando o art. 475-O, do CPC. (...) Sendo definitivo o julgado, não existe fundamento para retardar a incidência dos juros e dos honorários para ocasião da sentença, que decidirá somente a parcela do mérito não enfrentada na ocasião da antecipação. (...) RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 231 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Dessa forma, os juros de mora, não há dúvidas, deverão incidir a partir da citação inicial. (...) Sendo indiscutível que a Recorrida reconheceu em parte a procedência dos pedidos formulados pela Recorrente - tanto que formulou pedido de procedência de parte deles (fls. 75) -, e certo que o julgado equivocou-se ao deixar de arbitrar a verba honorária. (...) (fls. 282-297 - grifou-se). Por sua vez, a segunda recorrente, STM Networks Inc. (fls. 306-320), afirma que, além da negativa de prestação jurisdicional (art. 535, II, do Código de Processo Civil), restou violado o artigo 273, §§ 1º e 6º, do Código de Processo Civil, pois (...) o levantamento de tal quantia, fixada em moeda estrangeira, exige, como antecedente lógico, a sua conversão para o valor correspondente na moeda nacional (Real). Esta conversão, contudo, está atrelada à cotação da moeda estrangeira, que, como se sabe, é altamente variável, estando sujeita a constantes flutuações, mesmo em um curto espaço de tempo. Como é intuitivo, a noção de variação cambial traz em seu âmago a idéia de inconstância e instabilidade, o que afasta qualquer tentativa de se atribuir precisão e certeza a algo extremamente mutável. Considerando-se que a constante variação cambial pode alterar o valor correspondente em reais da apontada quantia de US$ 1,616,765.34 de dólares, de acordo com o dia em que a conversão seja realizada, inexiste hoje liquidez quanto ao valor que se pretende imediatamente levantar, pelo singelo motivo que a cotação da moeda estrangeira na presente data muito provavelmente não será a mesma do dia de amanhã, muito menos será igual a do dia do trânsito em julgado desta ação ordinária, o que dá boa mostra dos prejuízos que ambas as partes podem sofrer em razão da conversão antecipada desses valores, antes mesmo que a perícia já determinada em primeira instância indique os valores efetivamente devidos. (...) Nem uma única linha foi dedicada à descrição da forma pela qual foi superada a indefinição acerca da conversão da dita quantia em dólares norte-americanos para a moeda corrente no Brasil (Real). (...) Ao não explicitar, de forma clara e expressa, os motivos que permitem afastar a imprecisão e inexatidão sobre os valores que se pretendem antecipadamente levantar (...) o v. acórdão hostilizado acabou violando o dever legal inserto no § 1º, do art. 273, do CPC (fls. 315-319). 232 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Recursos respondidos (fls. 344-356 e 357-375) e admitidos (fls. 377-379 e 433-435). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): As razões recursais permitem a exata compreensão da controvérsia, não exigindo revolvimento probatório a atrair o óbice da Súmula n. 7-STJ. Posto isso, para melhor clareza, analiso os pontos suscitados nas razões recursais, iniciando pelo especial interposto pela STM Networks Inc. I. Negativa de prestação jurisdicional Aduz o recorrente que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro violou o art. 535, II, do CPC, pois “não enfrentou a questão da variação cambial” suscitada nas razões dos aclaratórios. Contudo, ao que se tem dos autos, entendeu o Tribunal local que “(...) o valor final permanece ilíquido, porém a parte ré, aqui agravada, desde a contestação reconheceu como devido o percentual de 2,5% (dois e meio por cento), e quantifica essa dívida em US$ 1.616.765,34 (um milhão, seiscentos e dezesseis mil, setecentos e sessenta e cinco dólares e trinta e quatro centavos). Ora, se esse valor é indiscutível e se há quantia depositada superior na nossa moeda, nada impede o correspondente levantamento pelo credor” (fl. 243). Assim, deferiu o levantamento pela autora “do valor em reais, correspondente a US$ 1.616.765,34 (um milhão, seiscentos e dezesseis mil, setecentos e sessenta e cinco dólares e trinta e quatro centavos), observada a cotação que tiver na data da emissão do mandado de pagamento” (fl. 245 - grifou-se). Ora, os embargos declaratórios não se prestam ao reexame de matéria já decidida à luz dos fundamentos jurídicos e legais aplicados, tampouco servem para forçar o ingresso na instância extraordinária se não houver omissão, contradição ou obscuridade a serem supridas no acórdão, nem fica o juiz obriga a responder todas as alegações das partes quando já encontrou motivo suficiente para fundar a decisão. Com efeito, não importa negativa de prestação jurisdicional o acórdão que adotou, para a resolução da causa, fundamentação suficiente, porém diversa da pretendida pela recorrente, para decidir de modo integral a controvérsia posta. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 233 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em resumo, não há falar, na espécie, em violação do artigo 535 do Código de Processo Civil, visto que inexiste vício a ser sanado em sede de embargos de declaração. II. Violação do artigo 273, § 1º, do Código de Processo Civil. A tese recursal vinculada ao § 1º do artigo 273 do CPC, diversa da suscitada nas razões dos aclaratórios, não foi debatida no acórdão hostilizado, sequer de modo implícito, não tendo servido de fundamento à conclusão adotada pelo Tribunal de origem. Resta desatendido, portanto, o requisito específico de admissibilidade do recurso especial concernente ao prequestionamento, o que atrai o óbice constante na Súmula n. 211 desta Corte (v.g.: REsp n. 775.841-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 26.3.2009). Registre-se, outrossim, que a questão federal ventilada somente no voto vencido não atende ao pressuposto do prequestionamento (Súmula n. 320-STJ). III. Violação do artigo 273, § 6º, do Código de Processo Civil. Em virtude da conexão das teses recursais atinentes ao referido dispositivo, as razões dos dois apelos especiais são analisadas concomitantemente. Buscando atender ao preceito constitucional que assegura a todos a duração razoável do processo e os meios que garantam a celeridade em sua tramitação (art. 5º, LXXVIII), a Lei n. 10.444, de 7 de maio de 2002, inseriu o § 6º ao artigo 273 do Código de Processo Civil: § 6º A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. À primeira vista, com essa nova disposição legal, permitiu-se ao juiz antecipar a tutela jurisdicional quando uma parte da demanda restar incontroversa. Porém, o que parece ser de simples interpretação, acabou por desafiar abalizada doutrina, que se dividiu quanto à natureza e efeitos da referida decisão. Na Exposição de Motivos do Projeto de Lei n. 3.476, que originou a Lei n. 10.444/2002, lê-se que tal dispositivo “explicita a possibilidade de o juiz, nos casos em que uma parte do pedido ou dos pedidos se torne incontroversa, conceder desde logo a esse respeito a tutela antecipada. Essa sugestão apresentase consentânea com as preocupações de eficiência do novo processo civil”. 234 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Criou-se, assim, uma nova modalidade de tutela antecipatória, como bem observa Wilson Alves de Souza: Disciplinou-se expressamente a possibilidade de mais uma hipótese de concessão da tutela antecipada. Já estavam expressamente previstas as hipóteses de antecipação assecuratória (fundada na situação de urgência – “receio de dano irreparável ou de difícil reparação”, nos termos do art. 273, I) e antecipação punitiva (fundada no “abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu”, nos termos do art. 273, II). A nova hipótese está fundada na incontrovérsia parcial da demanda. (Tutela antecipada em caso de incontrovérsia parcial da demanda - breves comentários à proposta do Poder Executivo de alteração do § 1º do art. 273 do Código de Processo Civil - a segunda etapa da reforma processual civil, - Coordenadores Luiz Guilherme Marinoni e Fredie Didier Jr., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 54) Como observa Marinoni, seria “injusto obrigar o autor a esperar a realização de um direito que não se mostra mais controvertido”. Assim, “se o processo prosseguir, não obstante a evidência de um direito, a tutela antecipatória é o único instrumento, dentro do atual sistema processual, que permite que o procedimento comum atenda ao direito constitucional à tempestividade da tutela jurisdicional, evitando que o autor seja obrigado a esperar indevidamente a tutela de um direito incontrovertido” (Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença. São Paulo: RT, 1997, p. 162-163). Indiscutível, por conseguinte, a clara intenção do legislador de “acelerar” a prestação jurisdicional de um direito manifestamente evidente, incontroverso, que, por circunstâncias meramente processuais, está atrelado a outro direito, controvertido. Vale dizer, enquanto nos demais casos de antecipação de tutela são indispensáveis os requisitos do perigo de dano, da aparência e da verossimilhança para a sua concessão, na tutela antecipada prevista no § 6º do art. 273 do CPC basta a incontrovérsia de uma parte dos pedidos. Com efeito, a tutela antecipada, se vista apenas a regra do caput do art. 273 do estatuto processual civil, confere ao autor, desde que preenchidos os requisitos autorizadores, a antecipação dos efeitos da decisão final de mérito a fim de que, tutelado desde o início, possa suportar todo o trâmite processual até que seus efeitos sejam confirmados pela sentença. O parágrafo 6º do mencionado dispositivo, ao contrário, permite a antecipação baseada na incontrovérsia, seja esta por reconhecimento parcial do pedido pelo réu, pela confissão, pela revelia e ainda pela própria prova inequívoca. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 235 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA É o que elucida Cândido Rangel Dinamarco (A reforma da reforma, São Paulo, Malheiros, 6ª ed., 2003): “Diante do disposto no § 6º do art. 273 e da pujante segurança para julgar, emergente da incontrovérsia sobre fatos, nessa hipótese se dispensa o periculum in mora, ou ‘fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação’, ordinariamente exigido pelo inc. I desse artigo.” Na prática, é a tutela do direito evidente, objetivando a celeridade da prestação jurisdicional. Quanto ao reconhecimento parcial do pedido, hipótese que interessa ao caso, Rogéria Dotti Doria esclarece que “é verdadeira adesão do réu ao pedido do autor, ensejando autocomposição do litígio e dispensando o juiz de dar a sua própria solução ao mérito. O juiz apenas encerra o processo, reconhecendo que a lide se extinguiu por eliminação da resistência do réu à pretensão do autor.” (A tutela antecipada em relação à parte incontroversa da demanda, 2ª ed. São Paulo: RT, 2004) Isto é, se um dos pedidos, ou parcela deles, já se encontre comprovado, confessado ou reconhecido, não há razão que justifique o seu adiamento até a decisão final que aprecie a parte controversa da demanda que carece de instrução probatória. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery bem exemplificam a situação: Havendo admissão parcial da pretensão pelo réu, quando, por exemplo, o autor pede 200 e o réu admite a dívida mas diz que o valor é de 100, na verdade há parte de pretensão sobre a qual não houve controvérsia. Nada consta que o autor peça adiantamento da parte incontrovertida, sob a forma de tutela antecipatória, como, aliás, vem previsto no art. 186 bis do Código de Processo Civil italiano (...) (Código de processo civil comentado e legislação extravagante, São Paulo: RT, 2003, p. 652). Neste ponto, por necessário, volta-se ao caso sob análise. O Tribunal de origem determinou o levantamento da quantia que entendeu incontroversa, “observada a cotação que tiver na data da emissão do mandado de pagamento” (fl. 245), haja vista que “a parte ré, aqui agravada, desde a contestação reconheceu como devido o percentual de 2,5% (dois e meio por cento), e quantifica essa dívida em US$ 1.616.765,34 (um milhão, seiscentos e dezesseis mil, setecentos e sessenta e cinco dólares e trinta e quatro centavos). Ora, se esse valor é indiscutível e se há quantia depositada superior na nossa moeda, nada impede o correspondente levantamento pelo credor” (fl. 243 - grifou-se). 236 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Extraem-se dos autos, sem nenhum revolvimento probatório, porquanto constantes das petições da empresa americana, as seguintes afirmações: STM Networks INC., nos autos da ação de cobrança que lhe move STM Wireless Telecomunicações Ltda. (...) vem expor e requerer a V.Exa, o que se segue: (...) As partes reconhecem que celebraram um Acordo de Distribuição Internacional e posteriormente um aditivo ao mesmo Acordo, em que o percentual de comissão da autora foi reduzido de 20% (vinte por cento) para 2,5% (dois e meio por cento). Não existe nenhuma controvérsia sobre esses dois pontos. (...) Assim, reiterando os termos de sua contestação e demais manifestações constantes dos autos e estando a causa madura para julgamento, requer, nos termos do r. despacho de fls. 407, que seja proferida a sentença, julgando/ condenando: a) procedente o pedido formulado na peça inicial, referente ao percentual de 2,5% sobre os contratos celebrados pela ré, sem condenação em honorários, tendo em vista que, quanto a aquele percentual, nunca houve lide; b) improcedente o pedido formulado, referente ao percentual de 20%; (...) (fls. 7684 - grifou-se). O que reconhece a agravada e sempre reconheceu, é o direito da agravante de receber a comissão de 2,5% sobre o valor do contrato, ou seja, das vendas efetivas dos equipamentos efetuadas pela agravada a Brasil Telecom no tal de (...) o que corresponde a US$ 1,616,765.34. Em todas as petições apresentadas pela ora agravada, somente houve o reconhecimento deste valor. Na petição de fls. 418, a agravante, no item 19, reconhece expressamente somente este valor (...) (fl. 90 grifou-se). Sendo, portanto, indubitavelmente incontroversa essa quantia, cujo valor, a ser levantado, será apurado pela conversão da moeda no dia do pagamento, é de ser reconhecido o direito do autor, não havendo falar em iliquidez do montante. Em outras hipóteses, o STJ tem reconhecido a possibilidade de levantamento parcial, referente à parte incontroversa do crédito: Processual Civil. Administrativo. Agravo regimental no recurso especial. Desapropriação. Execução de sentença. Expedição de precatório. Valor incontroverso. Violação do art. 535 do CPC. Não-ocorrência. Reexame de matéria fática. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. Expedição de precatório alusivo à parte incontroversa da dívida. Possibilidade. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 237 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (...) 3. Qualquer conclusão em sentido contrário ao que decidiu o aresto atacado, relativamente à existência ou não de manifestação expressa contra a expedição do precatório, envolve o reexame do contexto fático-probatório dos autos, inviável em sede de recurso especial, conforme o disposto na Súmula n. 7-STJ. 4. A orientação que tem sido adotada no âmbito desta Superior Corte de Justiça é no sentido de que a impugnação parcial da dívida torna incontroversa a parte que não foi objeto de contestação, havendo, em relação a ela, o efetivo trânsito em julgado, requisito indispensável para a expedição do competente precatório, conforme o disposto no art. 100, § 1º, da Constituição Federal, com a redação dada pela EC n. 30/2000. 5. Agravo regimental desprovido (AgRg no REsp n. 1.073.490-PE, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 3.3.2009, DJe 1º.4.2009 - grifou-se). Agravo regimental. Execução de título judicial. Embargos do devedor parciais. Omissão do acórdão recorrido. Inexistência. Levantamento da parcela incontroversa. Possibilidade. Art. 739, § 2º, do CPC. I - Consoante dispõe o artigo 535 do Código de Processo Civil, destinam-se os embargos de declaração a expungir do julgado eventuais omissão, obscuridade ou contradição, não se caracterizando via própria à rediscussão do mérito da causa. II - Embora o devedor tenha oferecido embargos à execução alegando a iliquidez do título, tal fato não tem o condão de impedir o levantamento do valor incontroverso da dívida, reconhecido como tal pelos cálculos que foram apresentados pelo próprio embargante. Ademais, o fato de haver diferença entre o valor executado e o efetivamente devido não torna nula a execução. Agravo improvido (AgRg no Ag n. 831.868-RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 26.5.2009, DJe 9.6.2009 - grifou-se). Processo Civil. Negativa de prestação jurisdicional. Omissão não verificada. Impugnação ao cumprimento de sentença. Valor incontroverso. Levantamento. Desnecessidade de caução. Coisa julgada. (...) 2. A Jurisprudência desta Corte já assentou que não é necessária caução para levantamento de valores incontroversos, mesmo em sede de execução provisória. Com muito maior razão não há de se exigir caução quando se tratar de execução definitiva com impugnação ao cumprimento de sentença recebida no efeito suspensivo. Isso porque o efeito suspensivo só alcança a parte controvertida da dívida. 3. Os demais temas trazidos no Recurso Especial esbarram na existência de coisa julgada. 238 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 4. Recurso Especial a que se nega provimento (REsp n. 1.069.189-DF, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 4.10.2011, DJe 17.10.2011). Processo Civil. CPC arts. 126 e 515. Reconhecimento parcial do pedido. Pedidos remanescentes. Se o reu, após interposta a apelação, reconhece parcialmente o pedido, não pode o tribunal julgar prejudicado o recurso. Impõe-se-lhe o julgamento da apelação, na parte remanescente, não atingida pelo reconhecimento (CPC, arts. 126 e 515). Recurso provido para que o Tribunal a quo prossiga no julgamento da apelação (REsp n. 13.678-SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, julgado em 2.10.1991, DJ 4.11.1991). Diante do exposto, nego provimento ao recurso da STM Networks Inc. Por outro lado, ao argumento de decisão exauriente, pretende a STM Wireless a incidência dos consectários legais da condenação sobre a parte incontroversa, ou seja, os juros de mora e a fixação da verba honorária. Quanto ao tema, entendeu o Tribunal de origem que os juros de mora e os honorários advocatícios “não são compatíveis com o momento processual e deverão ser decididas na sentença” (fl. 280). É de se recordar que a tutela antecipada, antes da reforma trazida pela Lei n. 10.442/2002, sempre foi vista como medida provisória, oriunda de cognição sumária, na qual o juiz realizava, para sua concessão, um juízo de verossimilhança da alegação, desde que houvesse prova inequívoca do direito alegado. Não se olvide, contudo, que a nova regra trouxe novidade ao tema, quando passou a retratar um caso típico de julgamento antecipado parcial ou fracionado da própria lide. Joel Dias Figueira Junior (Comentários à novíssima reforma do CPC Lei 10.444, de 07 de maio de 2002 -, Ed. Forense, 2002), por exemplo, afirma que “se a antecipação da tutela tomou como fundamento o reconhecimento parcial do pedido, ou, no caso de cumulação de ações, o reconhecimento integral de uma das demandas, a decisão concessiva dos efeitos fáticos, nada obstante interlocutória (de mérito), não será provisória, mas satisfativa definitiva, sendo impossível, por conseguinte, o juiz modificar o conteúdo decisório, quando da prolação de sentença de mérito. Nesse caso, estamos diante, na realidade, não de tutela antecipada, mas de verdadeiro julgamento antecipado e fracionado da lide com execução imediata da decisão em sua parte incontroversa, decorrente do reconhecimento do pedido (parcial) ou integral de uma das ações cumuladas”. Na mesma linha, Marinoni esclarece que, “segundo o § 4º do art. 273, ‘a tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 239 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA decisão fundamentada’. Este preceito não se aplica à hipótese de tutela antecipatória em caso de não contestação ou de reconhecimento jurídico do pedido. Nestes casos, a tutela antecipatória é fundada em cognição exauriente, e não em cognição sumária. A cognição sumária é a cognição típica dos juízos de probabilidade e de verossimilhança, e somente um juízo provável, porque provisório, pode racionalmente justificar a revogação ou modificação da tutela.” (Tutela antecipatória e julgamento antecipado - parte incontroversa da demanda - RT, 5ª ed., p. 105) Fredie Didier Jr., analisando o mesmo artigo, afirma que a decisão “interlocutória que versa sobre parte do mérito, é definitiva, fundada em cognição exauriente (juízo de certeza, não de verossimilhança), apta a ficar imune pela coisa julgada material e passível de execução também definitiva.” (Inovações na antecipação dos efeitos da tutela e a resolução parcial do mérito. Revista Gênesis de Direito Processual Civil, n. 26, out. 2002, p. 717) Igualmente, Luiz Rodrigues Wambier defende que “Na hipótese do 6º, vai-se ainda mais longe: parte do objeto do processo tornou-se incontroversa de modo tal que não fosse a necessidade de instrução probatória quanto à outra parte, ainda incontroversa já seria possível proferir sentença de procedência.” (Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. vol. 1. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 384 - grifou-se) A contrario sensu, parte da doutrina entende que o dispositivo encerra tão somente um novo caso de antecipação de tutela, exatamente por não ser possível, na atual sistemática do Código de Processo Civil brasileiro, fracionar ou cindirem momentos distintos do julgamento, mesmo com a nova definição de sentença contida no art. 162, § 1º, do Código de Processo Civil, dada pela Lei n. 11.232/2005. Em verdade, seguindo a nova escola italiana e passando a conceituar os tipos de provimento judicial pelo seu conteúdo, avançamos pouco em relação à celeridade processual, mormente pelo fato de que, no sistema italiano vigente, afastou-se a necessidade de a sentença ter seus capítulos julgados em um único momento, justamente visando evitar o retardamento e o prejuízo ao processo. Conceituou-se sentenza non-definitiva como “la sentenza che non definisce il giudizio, cosiché il processo debba continuare dopo la sua pronuncia (cfr. art. 279, secondo comma, n. 4); con essa il giudice decide una parte della materia controversa, che può riguardare tanto il merito, quanto le questioni preliminari” (tradução livre: “a sentença que não define o julgamento, assim o processo deve continuar depois de sua pronúncia (cf. art. 279, segundo parágrafo, n. 4); com ela, o juiz 240 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA decide uma parte da matéria controvertida, que pode concernir tanto ao mérito, quanto a questões preliminares”). Como bem lembra Rogéria Dotti Dória, contudo, “sempre predominou em nosso ordenamento jurídico o princípio chiovendiano ‘della unità e unicità della decisione’. Isso significava que mesmo diante de um pedido referente a questão unicamente de direito e outro dependente de instrução probatória, o juiz deveria proferir uma única decisão ao final do processo e após a colheita das provas. Em outras palavras, não lhe era permitido antecipar o julgamento daquele pedido que já se encontrava ‘maduro’ para aprecição” (A Tutela antecipada em relação à parte incontroversa da demanda, São Paulo: RT, 2000, p. 92). No mesmo sentido, a ponderação de Teori Albino Zavascki ao argumentar que “para a imediata tutela da parte incontroversa do pedido, talvez a melhor solução tivesse sido a da cisão do julgamento, permitindo sentença parcial, mas definitiva, de mérito. Ter-se-ia, com essa solução, a possibilidade de outorgar, relativamente ao pedido incontroverso, a imediata, completa e definitiva tutela jurisdicional. Não foi essa, todavia, a opção do legislador, que preferiu o caminho da tutela antecipada provisória. Com isso, limitou-se o âmbito da antecipação aos efeitos executivos da tutela pretendida.” (Antecipação da tutela em face de pedido incontroverso. Revista Jurídica, n. 301, Nov/2002, p. 30-35) Também exigindo a expressa e inequívoca previsão normativa para o fim do princípio da unidade da sentença, posicionou-se Athos Gusmão Carneiro, porquanto “a melhor solução, pelo menos no aguardo de novidades legislativas (...), será manter sobre o caráter de antecipação propriamente dita as parcelas dos pedidos não contestados, portanto, sem formação de coisa julgada, subsistindo a possibilidade de sua alteração ou revogação na pendência da demanda. A decisão interlocutória será confirmada, ou não, na sentença a ser prolatada após o contraditório pleno.” (Da antecipação da tutela. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 64) Cândido Rangel Dinarmarco, no mesmo sentido, lembra que “o legislador não quis ousar mais, a ponto de autorizar nesses casos um parcial julgamento antecipado do mérito, prevalecendo à rigidez do procedimento brasileiro, no qual o mérito deve ser julgado em sentença e a sentença será sempre uma só no processo (Art. 459, c/c art. 269, II, e art. 162, § 1º)” (Tutela jurisdicional, vol. 81, São Paulo, Revista dos Tribunais). Assim, a despeito das reformas que se sucederam visando à modernização do sistema processual pátrio, deixou o legislador de prever expressamente a RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 241 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA possibilidade de cisão da sentença. Daí a diretiva de que o processo brasileiro não admite sentenças parciais, recaindo sobre as decisões não extintivas o conceito de “decisão interlocutória de mérito”. Outra não tem sido a linha de pensamento adotada por esta Corte, conforme se verifica nos seguintes precedentes: - A jurisprudência desta Corte admite a Ação Rescisória no caso de falsa decisão interlocutória, isto é, de sentenças substancialmente de mérito, entendido como o núcleo da pretensão deduzida em Juízo, o que se evidencia em situações como a de rejeição de pedidos cumulados ou julgamento incidental de reconvenção (REsp n. 628.464-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi) (REsp n. 685.738-PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 24.11.2009, DJe 3.12.2009 - grifou-se). - A ação rescisória pode ser utilizada para a impugnação de decisões com conteúdo de mérito e que tenham adquirido a autoridade da coisa julgada material. Em que pese incomum, é possível que tais decisões sejam proferidas incidentalmente no processo, antes da sentença. Isso pode ocorrer em três hipóteses: (i) em diplomas anteriores ao CPC/1973; (ii) nos processos regulados pelo CPC em que, por algum motivo, um dos capítulos da sentença a respeito do mérito é antecipadamente decidido, de maneira definitiva; e, finalmente (iii) sempre que surja uma pretensão e um direito independentes do direito em causa, para serem decididos no curso do processo. Exemplo desta última hipótese é a definição dos honorários dos peritos judiciais e do síndico na falência: o direito à remuneração desses profissionais nasce de forma autônoma no curso do feito, e no próprio processo é decidido, em caráter definitivo. Não há por que negar a via da ação rescisória para impugnar tal decisão (REsp n. 711.794-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5.10.2006, DJ 23.10.2006 - grifou-se). Desse último precedente vale destacar o seguinte excerto: Mesmo no processo de conhecimento regulado pelo CPC, é comumente aceita na doutrina a idéia de que a sentença, ainda que, materialmente, consista de um ato uno, pode ser compartimentalizada e, do ponto de vista substancial, dividir-se em tantos capítulos quantos sejam os pedidos formulados pelo autor (ou pelo réu, em hipótese de reconvenção, declaração incidental ou pedido contraposto). Essa idéia, que tem sua origem no pensamento de Chiovenda, foi amplamente desenvolvida no direito italiano. Nada obsta, porém, que ela seja também aplicada no âmbito do direito brasileiro. Nesse sentido, confira-se, por todos, Cândido Rangel Dinamarco, Capítulos da sentença, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 63. O mais comum é que todos esses capítulos sejam decididos ao mesmo tempo, no mesmo ato. Mas é possível que haja a antecipação da decisão em relação a algum ou alguns deles. Nessas hipóteses, não há por que negar ao prejudicado o direito à propositura da ação rescisória. Essa é a opinião de Flávio Luis Yarshell (Ação 242 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA rescisória: Juízos rescindente e rescisório, Malheiros, 2005, p. 187), para quem “o julgamento de cada capítulo ganha autonomia, de tal sorte, inclusive, que o trânsito em julgado passa, na hipótese de fracionamento, a se operar em momentos diversos, com implicações importantes, uma das quais – talvez a mais evidente – é atinente ao prazo para o ajuizamento da ação rescisória”. Uma situação como essa, naturalmente, seria excepcional. Porém, não se pode afastar a possibilidade de sua ocorrência. A 4ª Turma do STJ já a enfrentou, por ocasião do julgamento do REsp n. 100.902-BA, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJ de 29.9.1997, assim ementado: Processual Civil. Ação rescisória. Decisão rescindenda tomada em agravo de instrumento. Se a prestação jurisdicional principal pode ser compartimentalizada, no caso de cumulação de pedidos, de sorte ser dirimida por etapas, qualquer decisão parcial que destrama o mérito de cada pedido, ainda que seja tomada em agravo de instrumento e mesmo que tenha natureza processual, enseja, em tese, o ingresso de ação rescisória. Hipótese em que a decisão rescindenda, improvendo agravo de instrumento, desconstituiu a garantia hipotecária e criou intransponível obstáculo capaz de impedir que prosperasse a pretensão do então exeqüente deduzida na execução, pelo menos na parte de ter o seu crédito assegurado com a garantia hipotecária daquele bem. Recurso conhecido e provido. (grifou-se). Com efeito, Flávio Luiz Yarshell, bem lembrado no referido voto, já defendia que “situação diversa ocorre se a antecipação da tutela se dá porque parte da demanda é incontroversa, conforme dicção do § 6º do art. 273 do CPC. É que, nesse caso, conforme anteriormente acenado, parece lícito afirmar que não há mais o caráter de ‘provisório’ no ato; tanto que a doutrina tem afirmado que, nessa hipótese, não vigora o limite do ‘perigo de irreversibilidade’ de que fala o § 2º do art. 273 da lei processual”. E, conclui, afirmando que, “mesmo veiculado por decisão interlocutória, há julgamento do mérito, a ensejar desconstituição por ação rescisória”. (Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 197). Ao que se tem, portanto, a decisão que antecipa a tutela da parte incontroversa da demanda, a bem da verdade, é de natureza meritória e satisfativa, porém, por questão de política legislativa, foi mantida no rol do artigo 273 do Código de Processo Civil, relacionando-se, erroneamente, com o juízo de cognição sumária. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 243 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Corroborando tal entendimento, Marinoni ensina que: É obvio que esta tutela antecipatória é fundada em cognição exauriente, e não em cognição sumária. Se o julgamento ocorre quando não faltam provas para a elucidação da matéria fática, não há juízo de probabilidade, mas sim juízo capaz de permitir a declaração da existência do direito. No presente caso, em que é aplicável o § 6º do art. 273, somente não há coisa julgada material em razão de uma questão de política legislativa. Em outros termos, tendo permanecido inalterado o art. 273 quanto ao aspecto da possibilidade de revogação e modificação da tutela (art. 273, § 4º), esta pode ser revogada ou modificada ao final, muito embora somente possa ser concedida no caso de cognição exauriente (Tutela antecipatória e julgamento antecipado: parte incontroversa da demanda. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 146 - grifou-se). Daniel Amorim Assunção Neves, na mesma linha, assevera que a “necessidade de julgamento antecipado de parte da lide, embora se reconheça poder de fato trazer mais benefícios à efetividade da entrega jurisdicional, necessita obrigatoriamente de mudança legislativa, de forma a recepcionar circunstâncias com modificações procedimentais e mesmo de conceituação de alguns institutos processuais.” (A reforma do CPC, São Paulo: RT, 2003 grifou-se) Em vista do quanto exposto, não se discute que a tutela prevista no § 6º do artigo 273 do CPC atende aos princípios constitucionais ligados à efetividade da prestação jurisdicional, ao devido processo legal, à economia processual e à duração razoável do processo, e que a antecipação em comento não é baseada em urgência, nem muito menos se refere a um juízo de probabilidade (ao contrário, é concedida mediante técnica de cognição exauriente após a oportunidade do contraditório). Porém, como já dito, por questão de política legislativa a tutela acrescentada pela Lei n. 10.444/2002 não é suscetível de imunização pela coisa julgada. Assim sendo, não há como na fase de antecipação da tutela, ainda que com fundamento no § 6º do artigo 273 do CPC, permitir o levantamento dos consectários legais (juros de mora e honorários advocatícios), que deverão ser decididos em sentença. Caso é, portanto, de negar provimento também ao recurso especial interposto por STM Wireless Telecomunicações Ltda. Em vista de todo o exposto, nego provimento aos dois recursos especiais. É o voto. 244 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA RECURSO ESPECIAL N. 1.291.808-SP (2011/0142982-9) Relator: Ministro João Otávio de Noronha Recorrente: Ricardo Priolli da Cunha Advogados: Marcio de Oliveira Risi e outro(s) Marcus Vinicius Souza Mamede Igor Carneiro de Matos Recorrido: Advocacia Gonçalves Coelho S/C e outros Advogado: Cândido da Silva Dinamarco e outro(s) EMENTA Processual Civil. Execução. Intimação com hora certa. Equiparação ao procedimento de citação. Comunicado previsto no art. 229 do CPC. 1. O procedimento de intimação da penhora com hora certa, na vigência da Lei n. 8.953/1994, é perfeitamente admissível nos casos em que, como o dos autos, caracterizar-se o intuito de ocultação do devedor. 2. Na citação com hora certa, o prazo da contestação começa a fluir com a juntada aos autos do mandado respectivo, e não do comprovante de recepção do comunicado a que se refere o art. 229 do CPC. 3. Recurso especial desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 245 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Dr(a). Marcio de Oliveira Risi, pela parte recorrente: Ricardo Priolli da Cunha Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro João Otávio de Noronha, Relator DJe 7.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Ricardo Priolli da Cunha interpõe recurso especial com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Carta Magna, a fim de que seja reformado acórdão do TJSP que julgou intempestivos embargos à execução, afastando a nulidade de penhora realizada com base no art. 227 e segs. do CPC (intimação com hora certa), por entender que a comunicação prevista no art. 229 (“Feita a citação com hora certa, o escrivão enviará ao réu carta, telegrama ou radiograma, dando-lhe de tudo ciência”), não obstante obrigatória, não invalida o ato se realizada após o prazo de 48 horas a que se refere o art. 190. Eis a ementa do julgado: Execução. Contrato de honorários advocatícios. Embargos do devedor rejeitados por intempestivos. Prazo para oposição dos embargos iniciado no dia seguinte ao da juntada aos autos da execução do mandado de intimação do devedor dos termos da penhora. Intimação que, no caso, se deu com hora certa. Alegação de que a comunicação prevista no artigo 229, do Código de Processo Civil, não ocorreu no prazo previsto pelo artigo 190 do mesmo codex, nem dentro do prazo para oposição dos embargos. Nulidade não reconhecida. Recurso não provido (e-STJ, fl. 131). Nas razões do especial, pugna o recorrente pela tempestividade dos embargos do devedor, aduzindo violação dos arts. 190 e 229 do CPC, além de divergência jurisprudencial. Argumenta, em síntese, que a intimação com hora certa somente se aperfeiçoa com os procedimentos previstos nos arts. 190 e 229 do CPC. Assevera que, “no caso em tela, temos que o cumprimento pelo serventuário [...] se deu após mais de trinta dias da realização do ato, o que o torna inócuo para o fim que se destina, pois, em tese, já havia a muito se escoado o prazo para eventual defesa” (fl. 149). 246 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA As contrarrazões foram apresentadas às fls. 229-253. Inadmitido o recurso no Juízo de origem (fls. 255-256) e interposto o respectivo agravo (AREsp) da citada decisão, foram os autos encaminhados ao STJ, tendo o Ministro Massami Uyeda, então relator do feito, “convertido os autos em recurso especial para melhor análise da matéria” (fl. 343). É o breve relatório. VOTO O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): Ab initio, cumpre salientar que o procedimento de intimação da penhora com hora certa, na vigência da Lei n. 8.953/1994, é perfeitamente admissível nos casos em que, como o dos autos, ficar caracterizado o intuito de ocultação do devedor. Confiram-se os seguintes precedentes do STJ: Processo Civil. Penhora. Intimação com hora certa. - A intimação da penhora com hora certa é admissível, desde que presentes os pressupostos a que alude o art. 227 do CPC. - Recurso não conhecido. (REsp n. 38.127-SP, relator Ministro Antônio Torreão Braz, DJ de 21.2.1994.) Civil/Processual penhora. Intimação com hora certa. A intimação do art. 669 pode ser feita pela forma prevista no art. 227, ambos do Código de Processo Civil, verificados os pressupostos, não exigindo este último que se consigne na certidão do Oficial de Justiça as horas em que procurado o intimando em seu endereço. (REsp n. 7.737-SP, relator Ministro Dias Trindade, DJ de 22.4.1991.) Do último, destaco os seguintes fundamentos: O art. 227 do Código de Processo Civil estabelece a forma de intimação com hora certa, quando há suspeita de ocultação do intimando, procurado por três vezes em seu endereço. E essa forma de intimação, tanto quanto as demais previstas no Código é aplicável não apenas ao processo de conhecimento, mas dado o seu caráter de norma geral, a todas as outras dos demais processos, inclusive o de execução. Daí se conclui que também a intimação a que se refere o art. 669, para dar ciência da intimação da penhora ao devedor, pode ser feita pela forma prescrita no art. 227, não havendo incompatibilidade entre os dois dispositivos, que, ao contrário, se completam. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 247 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Esclarecida a questão, passo ao exame da matéria de fundo suscitada no especial, que diz respeito ao aperfeiçoamento da citação (no caso, intimação) realizada com base no art. 227 do CPC. Ao justificar a intempestividade dos embargos à execução opostos pelo ora recorrente, pontuou o acórdão recorrido que a comunicação prevista no art. 229 do CPC “não interfere no prazo da contestação, constituindo mera formalidade complementar” (fl. 133). Tal entendimento está em perfeita harmonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme demonstram os seguintes precedentes: Processual Civil. Citação. Hora certa. Prazo de defesa. Cômputo. Comunicado do art. 229 do CPC. Relação. Inexistência. 1. O comunicado previsto no art. 229 do CPC serve apenas para incrementar a certeza de que o réu foi efetivamente cientificado acerca dos procedimentos inerentes à citação com hora certa, sendo uma formalidade absolutamente desvinculada do exercício do direito de defesa pelo réu. Sendo assim, a expedição do referido comunicado não tem o condão de alterar a natureza jurídica da citação com hora certa, que continua sendo ficta, tampouco interfere na fluência do prazo de defesa do réu. 2. O comunicado do art. 229 do CPC não integra os atos solenes da citação com hora certa, computando-se o prazo de defesa a partir da juntada do mandado citatório aos autos. Precedentes. 3. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.084.030-MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 18.10.2011.) Processual Civil. Citação com hora certa. Prazo. O prazo da contestação, na citação com hora certa, inicia-se a partir da juntada do mandado aos autos e não da data da recepção da carta enviada pelo escrivão. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 180.917-SP, relator Ministro Ari Pargendler, DJ de 16.6.2003.) Processual Civil. Citação com hora certa. Validade. I - Na citação com hora certa o prazo da contestação começa a fluir da juntada do mandado e não do comprovante de recepção da correspondência do escrivão. II - Recurso conhecido e provido para anular o processo a partir do saneador. (REsp n. 8.633-MG, relator Ministro Waldemar Zveiter, DJ de 29.4.1991). Na mesma linha, veja-se a doutrina de Humberto Theodoro Júnior: Recebido o mandado, o escrivão procederá à sua juntada aos autos e expedirá, em seguida, carta, telegrama ou radiograma, dando ao réu ciência da citação concluída por hora certa (art. 229). 248 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Essa comunicação é obrigatória, mas não integra os atos de solenidade da citação, tanto que o prazo de contestação começa a fluir da juntada do mandado e não do comprovante de recepção da correspondência do escrivão (art. 241, n. I). Trata-se, na verdade, de reforço das cautelas impostas ao oficial de justiça e que tendem a diminuir o risco de que a ocorrência não chegue ao efetivo conhecimento do réu. A citação em causa, no entanto, não depende do conhecimento real do citando, pois o Código a trata como forma de citação ficta e presumida, tanto que dá curador especial à parte, caso incorra em revelia (art. 9º, n. II). (Curso de Direito Processual Civil, 50ª ed. Forense, 2009, vol. 1, p. 266). Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial. É o voto. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Srs. Ministros, acompanho integralmente o voto do Sr. Ministro Relator. Na verdade, a citação por hora certa é ficta até certo ponto, porque o art. 228 determina a ciência de uma pessoa da família ou de algum vizinho. Então, na verdade, de algum modo, ele teve conhecimento, não havendo impugnação da citação por hora certa em si, apenas da questão relativa à comunicação. Além disso, segundo uma certidão do escrivão judicial, ele não era o único réu; havia o coexecutado, Fábio, que foi citado em momento processual anterior, em função de uma petição juntada aos autos. Então, com certeza, ele já tinha tido ciência anterior e estava realmente se ocultando; com isso, fica bem claro que as providências foram todas legais. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.321.739-SP (2012/0088797-0) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Mapfre Vera Cruz Seguradora S/A RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 249 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Advogado: Magda Lúcia das Neves e outro(s) Recorrido: Butoh Restaurante Ltda Advogado: Paulo Alves Esteves e outro(s) EMENTA Recurso especial. Civil, Processual Civil e Consumidor. Responsabilidade civil. Roubo de veículo. Manobrista de restaurante (valet). Ruptura do nexo causal. Fato exclusivo de terceiro. Ação regressiva da seguradora. Excludente da responsabilidade civil. Consumidora por sub-rogação (seguradora). 1. Ação de regresso movida por seguradora contra restaurante para se ressarcir dos valores pagos a segurado, que teve seu veículo roubado quando estava na guarda de manobrista vinculado ao restaurante (valet). 2. Legitimidade da seguradora prevista pelo artigo 349 do Código Civil/2002, conferindo-lhe ação de regresso em relação a todos os direitos do seu segurado. 3. Em se tratando de consumidor, há plena incidência do Código de Defesa do Consumidor, agindo a seguradora como consumidora por sub-rogação, exercendo direitos, privilégios e garantias do seu segurado/consumidor. 4. A responsabilidade civil pelo fato do serviço, embora exercida por uma seguradora, mantem-se objetiva, forte no artigo 14 do CDC. 5. O fato de terceiro, como excludente da responsabilidade pelo fato do serviço (art. 14, § 3º, II, do CDC), deve surgir como causa exclusiva do evento danoso para ensejar o rompimento do nexo causal. 6. No serviço de manobristas de rua (valets), as hipóteses de roubo constituem, em princípio, fato exclusivo de terceiro, não havendo prova da concorrência do fornecedor, mediante defeito na prestação do serviço, para o evento danoso. 7. Reconhecimento pelo acórdão recorrido do rompimento do nexo causal pelo roubo praticado por terceiro, excluindo a responsabilidade civil do restaurante fornecedor do serviço do manobrista (art. 14, § 3º, II, do CDC). 8. Recurso especial desprovido. 250 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, A Terceira Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha. Brasília (DF), 5 de setembro de 2013 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 10.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial interposto por Mapfre Vera Cruz Seguradora S.A. contra acórdão da 32ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, dando provimento ao recurso da parte recorrida (Butoh Restaurante Ltda.), reformou a sentença que a condenara em ação de regresso a ressarcir a seguradora os valores pagos a consumidor que teve o seu veículo roubado, quando estava sendo conduzido por manobrista (valet) do restaurante réu, ementado nos seguintes termos: Seguradora. Ação Regressiva. Roubo de Veículo conduzido por motorista de serviço de estacionamento valet. Culpa do proprietário do estabelecimento ou qualquer preposto não configurada. Força maior. Excludente reconhecida. Indenização indevida. Sentença reformada. Recurso provido. Em suas razões, a seguradora/recorrente sustentou que o acórdão recorrido violou os artigos 186 e 349 do Código Civil, bem como apontou dissídio jurisprudencial com precedentes específicos do Superior Tribunal de Justiça, onde a interpretação acenou para o sentido de que roubo ou furto não configuram caso fortuito, por se tratar de evento previsível. Postulou conhecimento e provimento do recurso. Presentes as contrarrazões, o recurso especial foi admitido. É o relatório. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 251 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas. O caso dos autos merece destaque por duas questões jurídicas relevantes devolvidas ao conhecimento desta Corte. A primeira delas é a possibilidade de a seguradora atuar como consumidora, por sub-rogação, em ação de regresso, pleiteando direitos e garantias do seu segurado/consumidor contra o causador do dano (fornecedor de serviço). A segunda questão diz com a ocorrência de força maior ou fato exclusivo de terceiro, como causa de rompimento do nexo de causalidade e consequente afastamento da responsabilidade civil na hipótese do roubo de veículo conduzido por manobrista de restaurante (serviço de valet). Na origem, a seguradora, ora recorrente, ajuizou ação de regresso contra restaurante que oferecera serviço de manobrista ao seu segurado, momento em que o veículo foi roubado. A sentença julgou procedente o pedido, condenando o restaurante a ressarcir à seguradora os gastos tidos com o seu segurado, reconhecendo defeito na prestação do serviço prestado, por entender não haver quebra do nexo causal o roubo ocorrido com o veículo do consumidor, sendo a seguinte a sua motivação: O furto e/ou roubo de veículo na região dos Jardins, em São Paulo, é fato absolutamente previsível. Até por isso há na região inúmeros estacionamentos e restaurantes que proporcionam serviço de manobrista para os veículos de seus clientes. É a insegurança quanto à possibilidade de furto e roubo que fez gerar a necessidade de oferecimento desse serviço diferencial aos clientes dos restaurantes daquela região. Portanto, não é possível afirmar que a ocorrência de um fato esperado possa ser eximente de responsabilidade objetiva.” O Tribunal de origem, dando provimento ao recurso de apelação do restaurante, reformou a sentença, julgando improcedente o pedido da seguradora, reconhecendo a quebra do nexo causal, com a seguinte fundamentação, verbis: Ocorre, porém, que a excepcionalidade do evento que resultou no despojamento da coisa, que difere da ocorrência de simples furto, ou mesmo de qualquer descuido de preposto da ré, é bastante para a configuração da excludente de responsabilidade. 252 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Com efeito, respeitado o entendimento do magistrado a quo, é forçoso reconhecer que a ação violenta, praticada mediante emprego de arma de fogo, embora previsível, torna inevitável o ato, levando ao desaparecimento do nexo causal, valendo anotar que a obrigação de cuidar da segurança pública incumbe ao estado e não ao particular. Destaco ainda, que no acórdão recorrido, da sua ementa, extrai-se a análise da ausência de prova de participação culposa, tanto do proprietário do restaurante, quanto do seu preposto/manobrista, verbis: Seguradora. Ação Regressiva. Roubo de Veículo conduzido por motorista de serviço de estacionamento valet. Culpa do proprietário do estabelecimento ou qualquer preposto não configurada. Força maior. Excludente reconhecida. Indenização indevida. Sentença reformada. Recurso provido.” (grifos meus) Eis a moldura fática desenhada pelas instâncias de origem, que permite reconhecer que o roubo do veículo foi a causa exclusiva do evento danoso, independentemente de se qualificá-lo como força maior ou como fato exclusivo de terceiro. Adianto não merecer provimento ao recurso especial. O primeiro ponto a destacar é a possibilidade de a seguradora aturar como consumidor por sub-rogação. O dispositivo do artigo 349 do Código Civil/2002 legitima a seguradora a pleitear em ação de regresso todos os direitos do seu segurado, que, no caso, era consumidor do restaurante, verbis: Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à divida, contra o devedor principal e os fiadores. (grifei) Assim, no caso, há plena incidência do Código de Defesa do Consumidor, pois a hipótese dos autos é de responsabilidade civil pelo fato do serviço (art. 14 do CDC). Nesse sentido, merecem lembrança alguns precedentes desta Corte: Agravo regimental. Agravo em recurso especial. Ação de reparação por perdas e danos. Aplicação do CDC. Súmula n. 83 do STJ. Responsabilidade da recorrente. Súmula n. 283-STF. 1. A relação entre a segurada e a recorrente é de consumo. Assim, incide o Código de Defesa do Consumidor na relação entre a seguradora - que se sub-rogou nos direitos da segurada - e a recorrente. Incidência da Súmula n. 83 desta Corte. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 253 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2. Ademais, a recorrente não cuidou de impugnar o fundamento do acórdão recorrido de que sua responsabilidade permaneceria, ainda que afastada a inversão do ônus da prova prevista no CDC, uma vez que não demonstrou a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da recorrida. Incidência da Súmula n. 283-STF. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp n. 271.489-SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11.4.2013, DJe 17.4.2013) Agravo regimental. Recurso especial. Responsabilidade civil. Ação regressiva da seguradora contra o causador do dano. Transporte marítimo. Relação de consumo. Prescrição. Inocorrência. Súmula n. 83-STJ. Decisão agravada mantida. Improvimento. I. A relação entre a segurada e a transportadora é de consumo. Assim, incide o Código de Defesa do Consumidor na relação entre a seguradora - que se sub-rogou nos direitos da segurada - e a transportadora, aplicando-se o prazo prescricional do artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. Incidência da Súmula n. 83 desta Corte. II. O agravo não trouxe nenhum argumento novo capaz de modificar a conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos. III. Agravo Regimental improvido. (AgRg no REsp n. 1.202.756-RJ, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 14.12.2010, DJe 17.2.2011) Agravo regimental. Extravio de bagagem. Indenização. Ação regressiva. Seguradora. Inversão do ônus da prova. Falta de prequestionamento. Súmulas n. 282 e 356-STF. CDC. Código Brasileiro de Aeronáutica. Inaplicável. - A inversão do ônus da prova não foi objeto de discussão na formação do acórdão recorrido. Súmulas n. 282 e 356-STF. - Em casos de extravio de bagagem incide o CDC, não mais se aplicando os limites indenizatórios do Código Brasileiro de Aeronáutica, ainda que em ações regressivas movidas por seguradoras. Precedentes. (AgRg no AgRg no Ag n. 256.225-SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma, julgado em 24.5.2005, DJ 27.6.2005, p. 361) Dessa forma, a responsabilidade civil do restaurante recorrido, embora diante de uma seguradora, permanece objetiva, forte no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor: Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços (...)” (grifei). 254 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Assim, não se discute a culpa do restaurante, devendo a sua defesa ser concentrada nas hipóteses previstas no parágrafo 3º do artigo supracitado, que constituem as causas de exclusão da responsabilidade civil do fornecedor, verbis: § 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.” (grifei) O fato exclusivo de terceiro, que importa ao deslinde da demanda, para ser caracterizado, para excluir a responsabilidade objetiva, deve ser a causa adequada e exclusiva do dano, sem a concorrência de outros fatores, especialmente o defeito na prestação do serviço pelo fornecedor demandado, hipótese em que persistiria a plena responsabilidade do fornecedor de serviços. Em síntese, o fato de terceiro ou a força maior, como reconhecido pelo acórdão recorrido, devem surgir como causa adequada e exclusiva do dano sofrido pelo prejudicado para ensejar o rompimento do nexo causal. Nos serviços de manobristas (valets) ofertados por restaurantes nas grandes cidades, deve-se estabelecer uma distinção entre a ocorrência de furto ou roubo de veículo para efeito de responsabilidade civil. Nas hipóteses de roubo, caracteriza-se o fato de terceiro ou a força maior, podendo-se discutir apenas eventual concorrência do demandado, mediante uma prestação defeituosa do seu serviço, para o evento danoso (fato exclusivo ou concorrrente). Nas hipóteses de furto, em que não há violência, permanece a responsabilidade, pois o serviço prestado mostra-se defeituoso por não apresentar a segurança legitimamente esperada pelo consumidor. No caso concreto, a sentença entendeu não ter sido rompido o nexo causal entre o roubo do veículo e o serviço de manobrista oferecido dada a previsibilidade pelo restaurante da ocorrência desse tipo de evento danoso naquela localidade, devendo responder tanto pelo furto, quanto pelo roubo. O Tribunal de origem, diversamente, entendeu que o caso de roubo, embora previsível, é inevitável, rompendo esse fato de terceiro o nexo de causalidade entre o dano causado ao consumidor (perda patrimonial) e o serviço prestado pelo estabelecimento (manobrista). Correta a conclusão do acórdão recorrido, esposando a orientação jurisprudencial tradicional desta Corte Superior, traçada pelo eminente Ministro RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 255 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Eduardo Ribeiro, acerca da distinção entre a previsibilidade e a inevitabilidade do fato para caracterização da força maior, verbis: Automóvel. Roubo ocorrido em posto de lavagem. Força maior. Isenção de responsabilidade. O fato de o artigo 14, § 3º do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código Civil. A inevitabilidade e não a imprevisibilidade é que efetivamente mais importa para caracterizar o fortuito. E aquela há de entender-se dentro de certa relatividade, tendo-se o acontecimento como inevitável em função do que seria razoável exigirse. (REsp n. 120.647-SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 16.3.2000, DJ 15.5.2000, p. 156) Em recente julgamento, esta Terceira Turma, em acórdão da minha relatoria, analisou a hipótese do roubo em estacionamento de supermercado, quando não se reconheceu a ocorrência de quebra do nexo causal, sendo a decisão ementada nos seguintes termos: Recurso especial. Civil e Processo Civil. Responsabilidade civil. Consumidor. Roubo de veículo em estacionamento de supermercado. Denunciação à lide da seguradora do estabelecimento comercial. Danos materiais e morais. 1. Roubo de camionete, mediante assalto a mão armada, em estacionamento de supermercado. 2. A ocorrência de roubo não constitui causa excludente de responsabilidade civil nos casos em que a garantia de segurança física e patrimonial do consumidor é inerente ao serviço prestado pelo estabelecimento comercial. 3. Reconhecimento da ocorrência de danos materiais e morais. 4. Procedência do pedido formulado na denunciação da lide da seguradora, na forma do art. 101, II, do CDC respeitados os limites da apólice de seguro. 5. Jurisprudência atual do STJ acerca do tema. 6. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.182.072-PR, desta relatoria, Terceira Turma, julgado em 3 de outubro de 2012). Como pode ser observado, a tese jurídica esposada naquele julgado foi no sentido de que a ocorrência de roubo não constitui causa excludente de responsabilidade civil nos casos em que a garantia de segurança física e patrimonial do consumidor é inerente ao serviço prestado pelo estabelecimento comercial. Assim, o serviço prestado mostrou-se defeituoso por não atender à 256 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA segurança legitimamente esperada pelo consumidor, não sendo o roubo a causa exclusiva do evento danoso. Na mesma linha, merecem referência dois acórdãos desta Terceira Turma, cujas ementas são as seguintes, verbis: Recurso especial. Ação de indenização por danos morais em razão de roubo sofrido em estacionamento de supermercado. Procedência da pretensão. Força maior ou caso fortuito. Não reconhecimento. Conduta omissiva e negligente do estabelecimento comercial. Verificação. Dever de propiciar a seus clientes integral segurança em área de seu domínio. Aplicação do direito à espécie. Possibilidade, in casu. Dano moral. Comprovação. Desnecessidade. “Damnum in re ipsa”, na espécie. Fixação do quantum. Observância dos parâmetros da razoabilidade. Recurso especial provido. I - É dever de estabelecimentos como shoppings centers e hipermercados zelar pela segurança de seu ambiente, de modo que não se há falar em força maior para eximi-los da responsabilidade civil decorrente de assaltos violentos aos consumidores; II - Afastado o fundamento jurídico do acórdão a quo, cumpre a esta Corte Superior julgar a causa, aplicando, se necessário, o direito à espécie; III - Por se estar diante da figura do “damnum in re ipsa”, ou seja, a configuração do dano está ínsita à própria eclosão do fato pernicioso, despicienda a comprovação do dano. IV - A fixação da indenização por dano moral deve revestir-se de caráter indenizatório e sancionatório, adstrito ao princípio da razoabilidade e, de outro lado, há de servir como meio propedêutico ao agente causador do dano; V - Recurso Especial conhecido e provido. (REsp n. 582.047-RS, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 17.2.2009, DJe 4.8.2009) Responsabilidade civil. Ação de conhecimento sob o rito ordinário. Assalto à mão armada iniciado dentro de estacionamento coberto de hipermercado. Tentativa de estupro. Morte da vítima ocorrida fora do estabelecimento, em ato contínuo. Relação de consumo. Fato do serviço. Força maior. Hipermercado e shopping center. Prestação de segurança aos bens e à integridade física do consumidor. Atividade inerente ao negócio. Excludente afastada. Danos materiais. Julgamento além do pedido. Danos morais. Valor razoável. Fixação em saláriosmínimos. Inadmissibilidade. Morte da genitora. Filhos. Termo final da pensão por danos materiais. Vinte e quatro anos. - A prestação de segurança aos bens e à integridade física do consumidor é inerente à atividade comercial desenvolvida pelo hipermercado e pelo shopping RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 257 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA center, porquanto a principal diferença existente entre estes estabelecimentos e os centros comerciais tradicionais reside justamente na criação de um ambiente seguro para a realização de compras e afins, capaz de induzir e conduzir o consumidor a tais praças privilegiadas, de forma a incrementar o volume de vendas. - Por ser a prestação de segurança e o risco ínsitos à atividade dos hipermercados e shoppings certers, a responsabilidade civil desses por danos causados aos bens ou à integridade física do consumidor não admite a excludente de força maior derivada de assalto à mão arma ou qualquer outro meio irresistível de violência. - A condenação em danos materiais e morais deve estar adstrita aos limites do pedido, sendo vedada a fixação dos valores em salários-mínimos. - O termo final da pensão devida aos filhos por danos materiais advindos de morte do genitor deve ser a data em que aqueles venham a completar 24 anos. - Primeiro e segundo recursos especiais parcialmente providos e terceiro recurso especial não conhecido. (REsp n. 419.059-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19.10.2004, DJ 29.11.2004, p. 315) Na colenda Quarta Turma do STJ, no mesmo sentido, monocraticamente, o ilustre Ministro Luis Felipe Salomão, reforçou esse entendimento de que a ocorrência de roubo não constitui força maior como causa excludente de responsabilidade civil de hipermercado, nos casos em que o risco e a prestação de segurança são inerentes à atividade do estabelecimento, verbis: Processual Civil. Direito Civil. Recurso especial. Ausência. Preqüestionamento. Súmula n. 211-STJ. Ação de indenização por danos materiais e morais. Força maior ou caso fortuito. Não-reconhecimento. Roubo. Estacionamento. Hipermercado. Responsabilidade objetiva. Aplicação. Direito à espécie. Danos morais. Fixação. Quantum. Danos materiais. Apuração. Liquidação por arbitramento. Recurso conhecido em parte e, na extensão, provido. (REsp n. 601.026-SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, decisão monocrática, julgado em 30.4.2010). Nesse mesmo sentido, foi a alegação da parte recorrente sustentando dissídio jurisprudencial entre o acórdão recorrido e a orientação acima assinalada. Todavia, tanto a jurisprudência indicada no recurso especial, quanto a acima aludida acenam para hipóteses de responsabilização de supermercados, bancos, shopping centers, enfim, empresas que fornecem estacionamentos aos seus consumidores como técnica para captação de clientela, não apenas em face do conforto, mas também da segurança oferecida, que se torna uma legítima expectativa do público consumidor. 258 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No caso dos autos, diferentemente, há um restaurante que oferta serviço de manobrista (valet) aos seus clientes. Não há exploração de um estacionamento cercado com grades, tratando-se de simples comodidade ao cliente que não deseja ficar rodando com seu veículo na busca de uma vaga para estacionar o seu carro na rua. Evidente que a diligência na guarda da coisa, preservando a sua integridade material, é incluída neste serviço. Entretanto, as exigências de garantia da segurança física e patrimonial do consumidor são menos contundentes do que os estacionamentos de shopping centers e hipermercados, pois o serviço é prestado na via pública, não podendo responder pela ocorrência de assalto a mão armada (roubo). Portanto, mostrou-se correta a conclusão do acórdão recorrido, que deve ser mantida. Ante todo exposto, nego provimento ao recurso especial. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.353.907-RJ (2012/0152053-4) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Cavalo Marinho Comestíveis Ltda Advogados: Luiz Eduardo Marinho de Brito Chaves e outro(s) Gustavo Coutinho Barros da Silva e outro(s) Mario Victor Vida Azevedo e outro(s) Recorrido: João Correa de Mendonça e outros Advogados: Leonardo Orsini de Castro Amarante e outro(s) Thalles Messias de Andrade EMENTA Recurso especial. Direito Processual Civil. Impugnação ao cumprimento de sentença. Garantia integral do juízo. Exigência. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 259 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1.- Os embargos opostos contra a execução fundada em título extrajudicial dispensam, para o seu conhecimento e processamento, que o Juízo esteja seguro, mas o mesmo não ocorre, na fase de cumprimento de sentença, em relação à impugnação a esse cumprimento. Precedentes. 2.- A garantia integral do juízo é pressuposto para o processamento da impugnação ao cumprimento de sentença, não bastando que tenha havido penhora de valor correspondente a apenas parte da dívida. Inteligência do Art. 475-J, § 1º, do CPC. 3.- Recurso Especial improvido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator. Dr(a). Mario Victor Vida Azevedo, pela parte recorrente: Cavalo Marinho Comestíveis Ltda Brasília (DF), 6 de agosto de 2013 (data do julgamento) Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 21.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Cavalo Marinho Comestíveis Ltda interpõe Recurso Especial com fundamento nas alíneas a do inciso III, do artigo 105, do permissivo constitucional, manejado contra Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Relator o Desembargador Marcelo Lima Buhatem, assim ementado (fls. 612-614): Agravo interno no agravo de instrumento decisão monocrática que deu parcial provimento ao recurso, nos termos do art. 557, § 1º-A, do CPC. Recurso de agravo interno de mérito próprio, ora dialogando com os requisitos genéricos da aplicação do art. 557 do CPC, ora com o próprio mérito do recurso originário. Essência infringente do recurso de agravo interno. Necessidade de levar ao 260 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA colegiado decisão monocrática proferida pelo relator. Decisão unipessoal que deve ser mantida já que preencheu os requisitos para a sua aplicação no mérito. Processual Civil. Agravo de instrumento. Demanda indenizatória em fase de cumprimento de sentença. Impugnação. Rejeição liminar. Garantia do juízo. Valor integral do crédito exequendo. Requisito de admissibilidade precedentes. Hipótese de não conhecimento. Recurso principal que restou assim subementado: 1. Agravo de instrumento interposto contra decisão que, nos autos da demanda indenizatória, em fase de cumprimento de sentença, rejeitou liminarmente a impugnação sob o argumento de que o impugnante não garantiu o Juízo pelo valor total da execução. 2. Alega a agravante, em síntese, que a garantia do juízo não é requisito de admissibilidade da impugnação, ressaltando, a título de argumentação, que não há norma ou dispositivo legal prevendo que a garantia deva ser integral. 3. Aduz que o juízo se encontra devidamente garantido, uma vez que o valor penhorado, já levantado pelos agravados, corresponde a 84% do valor incontroverso. 4. Ab initio, rejeito a preliminar arguida pelos agravados, uma vez que o juízo a quo informou às fls. 548 que a agravante cumpriu o disposto no art. 526, do CPC. 5. Pela nova sistemática do CPC, introduzida pela Lei n. 11.232/2005, na execução de sentença, que se faz pelo instituto do cumprimento da sentença, o oferecimento da impugnação pressupõe a prévia garantia do juízo, mediante a penhora ou depósito integral do valor exequendo, consoante o disposto no art.475-J, § 1º do CPC. 6. Ressalta-se, que o tratamento aqui dispensado é diverso daquele previsto para os embargos do devedor à execução por título extrajudicial, que não exige a garantia do juízo. Tal distinção se faz ante a necessidade de se impor maior garantia ao cumprimento de um título executivo formado sob o pálio do contraditório e da ampla defesa, onde foi oportunizada à parte a defesa de seus interesses e a produção probatória. 7. In casu, a penhora efetuada apurou um valor menor do que o crédito executado, de modo que o juízo não se encontra totalmente garantido. 8. Não obstante, tratando-se de requisito formal, a ausência de garantia do juízo enseja apenas o não conhecimento da impugnação, e não sua rejeição, sob pena de se furtar ao devedor discutir o quantum exequendo. 9. Assim, impõe-se a reforma da decisão agravada apenas para afastar a liminar rejeição da impugnação viabilizando, de tal forma, posterior conhecimento da mesma, desde que garantido integralmente o juízo. Nega-se provimento ao agravo interno. 2.- O agravante, nas razões do especial, sustenta em síntese, que a admissibilidade da impugnação ao cumprimento da sentença não está RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 261 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA condicionada ao depósito ou penhora da integralidade do valor requerido na execução como forma de garantia da execução. O Tribunal de origem, assim não o reconhecendo, teria violado o artigo 475-J, § 1º, do Código de Processo Civil o qual mencionaria apenas a necessidade de que tenha havido penhora, para que possa ser apresentada a impugnação, sem exigir que essa penhora corresponda ao total da dívida. Acrescenta que, na hipótese dos autos, com maior razão seria necessário apreciar a impugnação ao cumprimento de sentença, porque verificada a garantia parcial do juízo pela penhora on line. 3.- Não admitido na origem, o Recurso Especial teve seguimento por forma de Agravo ao qual se deu provimento em sede de embargos declaratórios com efeitos infringentes (fls. 714-717 e 748-749). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 4.- Trata-se, na origem, de ação ordinária pelo rito sumário proposta em 1999 por João Correa de Mendonça, Terezinha Maria de Mendonça e Jorge Diego de Mendonça contra Cavalo Marinho Comestíveis Ltda, visando ao recebimento de indenização por danos morais e materiais decorrentes do falecimento de ente querido ocorrido no naufrágio do barco “Bateau Mouche IV”, no litoral do estado do Rio de Janeiro, durante o reveillon de 1988/1989 (fls. 20-31). 5.- A Sentença (fls. 51-56) julgou procedente o pedido condenando a Ré ao pagamento: a) de pensão correspondente à 1/3 dos vencimentos da vítima, desde o seu falecimento até a idade em que completaria 65 anos, b) indenização pelos custos do funeral, e c) danos morais no importe de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para cada um dos autores. 6.- Em sede de apelação, a pensão mensal foi majorada para 2/3 dos vencimentos da vítima e a indenização por danos morais, para R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais) (fls. 60-70). 7.- Em 12.7.2006 os Autores pleitearam o cumprimento da sentença, na forma do artigo 475-A, § 1º, do Código de Processo Civil (fls. 86-87) trazendo planilha que indicou, como valor da execução, o total de R$ 717.754,42 (setecentos e dezessete mil, setecentos e cinquenta e quatro reais e quarenta e dois centavos) (fls. 94). 262 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 8.- Intimada a efetuar o pagamento do valor indicado no prazo de 15 dias (fls. 98) a Ré ofereceu bens à penhora (fls. 127-130) que foram recusados pelos Exequentes (fls. 152). Deu-se, então, nova intimação da Ré para que efetuasse o pagamento voluntário da dívida, sob pena de incidência da multa prevista no artigo 475-J (fls. 173). Não verificado o pagamento voluntário, deu-se a penhora on line, com bloqueio de R$ 369.251,77 (fls. 334), sento que a Executada admitiu como devida a quantia de R$ 436.366,00 (fls. 366). 9.- Tendo em vista a ausência de garantia total do juízo, sobreveio a rejeição da impugnação ao cumprimento da sentença ofertada pelo Recorrido (fls. 381-390). 10.- No presente Recurso Especial importa saber em primeiro lugar se é necessário garantir o juízo para que se possa apresentar impugnação ao cumprimento da sentença e, em segundo lugar, admitindo-se que seja necessária essa garantia, se ela deve corresponder à totalidade ad dívida ou se, ao contrário, basta que a penhora represente uma parcela dessa mesma dívida. 11.- A turmas que compõe a 2ª Seção desta Corte já se manifestaram no sentido de que os embargos opostos contra a execução fundada em título extrajudicial dispensam, para o seu conhecimento e processamento, que o Juízo esteja garantido, mas que o mesmo não ocorre, na fase de cumprimento de sentença, em relação à impugnação ao cumprimento da sentença. Na linha desses precedentes, a garantia do juízo é condição de admissibilidade para a impugnação ao cumprimento da sentença. Nesse sentido: Recurso especial. Fase de cumprimento de sentença. Impugnação. Garantia do juízo. Insurgência da executada. 1. Violação aos artigos 165, 458, II e 535 do CPC não configurada. Acórdão hostilizado que enfrentou, de modo fundamentado, todos os aspectos essenciais à resolução da lide. 2. A garantia do juízo é pressuposto para o processamento da impugnação ao cumprimento de sentença, nos termos do art. 475-J, § 1º do CPC. “Se o dispositivo - art. 475-J, § 1º, do CPC - prevê a impugnação posteriormente à lavratura do auto de penhora e avaliação, é de se concluir pela exigência de garantia do juízo anterior ao oferecimento da impugnação”. (REsp n. 1.195.929-SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 24.4.2012). (REsp n. 1.303.508-RS, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 21.6.2012, DJe 29.6.2012); RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 263 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recurso especial. Direito Processual Civil. Cumprimento de sentença. Garantia do juízo. Exigência. Exegese do art. 475-J, § 1º, do Código de Processo Civil. Impugnação. Cabimento. Registro da penhora. Necessidade. Recurso provido. I - A garantia do juízo é pressuposto para o processamento da impugnação ao cumprimento de sentença. Inteligência do Art. 475-J, § 1º, do CPC. II - No cumprimento de sentença, executa-se título executivo judicial, em que a instrução probatória é ampla. Por seu turno, nos embargos do devedor, de título executivo extrajudicial, a situação difere-se, sensivelmente, na medida em que o embargante não tem oportunidade de contraditório e ampla defesa. III - Se o dispositivo - art. 475-J, § 1º, do CPC - prevê a impugnação posteriormente à lavratura do auto de penhora e avaliação, é de se concluir pela exigência de garantia do juízo anterior ao oferecimento da impugnação. Tal exegese é respaldada pelo disposto no inciso III do artigo 475-L do Código de Processo Civil, que admite como uma das matérias a serem alegadas por meio da impugnação a penhora incorreta ou avaliação errônea, que deve, assim, preceder à impugnação. (REsp n. 1.195.929-SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 24.4.2012, DJe 9.5.2012). 12.- Dessa forma, assentada a necessidade de que o juízo deve estar seguro para que seja admitida a impugnação ao cumprimento da sentença é possível avançar e afirmar que a admissibilidade da impugnação pressupõe a garantia integral do Juízo. Não se pode interpretar a lei de modo a se permitir que a exigência destacada é apenas parcial, porque isso abriria as portas para uma série de manobras as quais, em última análise, acabariam por esvaziar o próprio escopo da regra, que é o de abreviar a realização, em concreto, de um direito que foi depurado a longo de todo um processo de conhecimento no qual observada a ampla defesa, o contraditório e a cognição plena e exauriente, em mais de um grau de jurisdição. 13.- Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.383.354-SP (2013/0074298-9) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Citizen Watch do Brasil S/A 264 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Advogado: Eduardo de Freitas Alvarenga Recorrido: Mercadolivre.com Atividades de Internet Ltda e outro Advogados: Antônio de Figueiredo Murta Filho e outro(s) André Luiz Souza da Silveira e outro(s) Luis Henrique do Carmo Porangaba e outro(s) Daniele Maia Teixeira Coelho Conrado Steinbruck Frazao e outro(s) EMENTA Civil e Comercial. Comércio eletrônico. Site voltado para a intermediação de venda e compra de produtos. Violação de marca. Inexistência. Princípio do exaurimento da marca. Aplicabilidade. Natureza do serviço. Provedoria de conteúdo. Prévia fiscalização da origem dos produtos anunciados. Desnecessidade. Risco não inerente ao negócio. Ciência da existência de violação de propriedade industrial. Remoção imediata do anúncio. Dever. Disponibilização de meios para identificação de cada usuário. Dever. 1. O art. 132, III, da Lei n. 9.279/1996 consagra o princípio do exaurimento da marca, com base no qual fica o titular da marca impossibilitado de impedir a circulação (revenda) do produto, inclusive por meios virtuais, após este haver sido regularmente introduzido no mercado nacional. 2. O serviço de intermediação virtual de venda e compra de produtos caracteriza uma espécie do gênero provedoria de conteúdo, pois não há edição, organização ou qualquer outra forma de gerenciamento das informações relativas às mercadorias inseridas pelos usuários. 3. Não se pode impor aos sites de intermediação de venda e compra a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos anunciados, na medida em que não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado. 4. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 265 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/1988, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa. 5. Ao ser comunicado da existência de oferta de produtos com violação de propriedade industrial, deve o intermediador virtual de venda e compra agir de forma enérgica, removendo o anúncio do site imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. 6. Ao oferecer um serviço virtual por meio do qual se possibilita o anúncio para venda dos mais variados produtos, deve o intermediador ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um dos usuários, a fim de que eventuais ilícitos não caiam no anonimato. Sob a ótica da diligência média que se espera desse intermediador virtual, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. 7. Recurso especial a que se nega provimento. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Dr(a). Antônio de Figueiredo Murta Filho, pela parte recorrida: Mercadolivre.Com Atividades de Internet Ltda. Brasília (DF), 27 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 26.9.2013 266 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por Citizen Watch do Brasil S.A., com fulcro no art. 105, III, a e c, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ-SP. Ação: medida cautelar inominada, ajuizada pela recorrente em desfavor de Mercadolivre.com Atividades de Internet Ltda. e Ebazar.com.br Ltda., objetivando impedir as recorridas de praticarem, em seus sites na Internet, atos de comércio tendentes à venda de produtos com a marca “Citizen”. Decisão interlocutória: o Juiz de primeiro grau de jurisdição deferiu o pedido liminar, impedindo a comercialização de produtos da marca “Citizen” por meio dos sites eletrônicos mercadolivre.com.br e arremate.com.br, mantidos pelas recorridas. A decisão foi impugnada pelas recorridas via agravo de instrumento. Acórdão: o TJ-SP deu provimento ao agravo, revogando a liminar, nos termos do acórdão (fls. 480-483, e-STJ) assim ementado: Medida cautelar destinada a obstar o uso da marca “Citizen” em comércio eletrônico. Revogação da liminar concedida para este fim. Possibilidade de regular comercialização de produtos por terceiros, sem violação dos direitos da marca. Providência que fica condicionada à comprovação de efetiva violação de direitos. Embargos de declaração: interpostos pelas recorridas, foram rejeitados pelo TJ-SP (fls. 500-503, e-STJ). Recurso especial: alega violação dos arts. 476, I, e 535, I e II, do CPC; e 129 e 132, III, da Lei n. 9.279/1996, além de dissídio jurisprudencial (fls. 506524, e-STJ). Prévio juízo de admissibilidade: o TJ-SP negou seguimento ao especial, dando azo à interposição do AREsp n. 314.602-SP, conhecido para determinar o julgamento do recurso principal (fl. 598, e-STJ). É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a determinar se a intermediação de compra e venda de produtos via Internet, sem autorização RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 267 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA dos titulares das respectivas marcas, caracteriza violação de propriedade industrial. I. Da negativa de prestação jurisdicional. Violação dos arts. 476, II, e 535, I e II, do CPC. Da análise do acórdão recorrido verifica-se que a prestação jurisdicional dada corresponde àquela efetivamente objetivada pelas partes, sem vício a ser sanado. O TJ-SP se pronunciou de maneira a abordar todos os aspectos fundamentais do julgado, dentro dos limites que lhe são impostos por lei, tanto que integram o objeto do próprio recurso especial e serão enfrentados adiante. O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica obscuridade, contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão conforme o que ele entender relevante à lide. Não está o Tribunal obrigado a julgar a matéria posta a seu exame nos termos pleiteados pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento, consoante dispõe o art. 131 do CPC. Constata-se, em verdade, a irresignação da recorrente com o resultado do julgamento e a tentativa de emprestar aos embargos de declaração efeitos infringentes, o que não se mostra viável no contexto do art. 535 do CPC. Outrossim, no que tange à suposta violação do art. 476, II, do CPC, a simples recusa do TJ-SP, ainda que de forma implícita, de instaurar o incidente de uniformização de jurisprudência permite inferir pela inexistência de similitude entre o acórdão recorrido e os julgados alçados a paradigma pela recorrente. Dessa forma, não se vislumbra a violação dos arts. 476 e 535 do CPC. II. Da intermediação de compra e venda de produtos via Internet. Violação dos arts. 129 e 132, III, da Lei n. 9.279/1996. Inicialmente, cumpre delimitar a controvérsia posta a desate nestes autos. Na espécie, estamos diante de empresas que mantêm sites voltados para a intermediação de venda e compra de produtos via Internet. Sendo assim, o presente julgamento examinará a alegação de violação de propriedade industrial única e exclusivamente à luz dessa modalidade de serviço virtual – intermediação de venda e compra de produtos – de maneira que as conclusões aqui alcançadas, salvo melhor juízo, a ser exercido oportunamente em processos específicos, não se aplicam a outras espécies de serviços de venda 268 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA e compra via Internet, notadamente aqueles prestados por sites especializados na venda direta de produtos ou na pesquisa e comparação de preços e de produtos anunciados on-line. A recorrente ajuizou medida cautelar objetivando – segundo transcrição feita nas razões recursais, do próprio pedido formulado na petição inicial – compelir as recorridas a “se absterem de praticar quaisquer atos de comércio, tais como a exposição à venda e compra, diretamente ou a pedido de terceiros, em qualquer meio material e, principalmente, em seus sites de compra e venda (...) quaisquer produtos assinalados com a marca nominativa “Citizen” e suas variações figurativas (...), bem como de todo material de propaganda e impressos onde as mesmas apareçam, a qualquer título” (fl. 508, e-STJ). A liminar pleiteada pela recorrente foi deferida, mas revogada pelo TJ-SP em sede de agravo de instrumento, sob a alegação de que “a comercialização de produtos com a marca “Citizen”, por si, não configura violação dos direitos da marca”, ressalvando que “nada obsta que aqueles que os tenham adquirido de forma regular, os vendam. Nem configura ilícito algum a atividade comercial especializada de compra de relógios desta marca para subsequente revenda” (fl. 482, e-STJ). Na ótica da recorrente, porém, o acórdão recorrido negou vigência aos arts. 129 e 132, III, da LPI, na medida em que “a proteção conferida ao titular do registro [da marca] lhe garante o direito de uso exclusivo no território nacional, podendo este, por consequência, determinar distribuidores e vedar as importações paralelas”, acrescentando que, na espécie, “os contratos de distribuição firmados pelo titular da marca em outros territórios não permitem a exportação dos produtos para o Brasil” (fls. 516-517, e-STJ). Acrescenta, ainda, que “a procedência ilícita dos produtos vendidos, tanto de contrafação como de importação paralela, pode ser extraída, por exemplo, dos próprios preços anunciados” (fl. 513, e-STJ). Nota-se, em primeiro lugar, que as razões recursais induzem a modificação do pedido, uma aparente tentativa de correção da pretensão inicial, com vistas a infirmar os fundamentos do acórdão recorrido. Nesse aspecto, vale repisar que, originalmente, a recorrente buscou impedir as recorridas de praticarem atos de comércio oriundos de “quaisquer produtos assinalados com a marca nominativa “Citizen” e suas variações figurativas” (fl. 508, e-STJ), ou seja, não foi feita nenhuma ressalva limitando a proibição a produtos de procedência ilícita, como os fruto de contrafação ou importação paralela. RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 269 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O próprio TJ-SP destaca que a pretensão da recorrente foi “deduzida de forma genérica, contra qualquer referência à sua marca” (fl. 482, e-STJ). Ainda que se possa supor que, entre os milhares de anunciantes dos sites das recorridas, exista a oferta de produtos de procedência ilícita, constitui fato notório que a grande maioria dos usuários está atuando dentro da legalidade, bastando que qualquer um acesse as respectivas páginas na Internet para confirmar a existência de inúmeras mercadorias originais, novas e usadas, postas a venda ou revenda não apenas por pessoas jurídicas, mas também por pessoas físicas. Não bastasse isso, o acórdão recorrido afasta categoricamente qualquer demonstração de que tenha havido a violação de direitos marcários da recorrente, de sorte que o acolhimento da tese recursal exigiria o revolvimento do substrato fático-probatório dos autos, procedimento que encontra óbice no Enunciado n. 7 da Súmula-STJ. Quanto à assertiva de que os preços anunciados dos produtos evidenciariam a origem ilícita dos produtos, não se pode esquecer que os sites em questão possibilitam vendas na forma de leilão, em que o vendedor assume o risco no oferecimento de produtos a preço inicial bastante reduzido. Assim, cumpria à recorrente demonstrar nos autos em que circunstâncias houve o oferecimento de produtos com a sua marca a preços supostamente baixos, e não apenas formular alegações genéricas que, vale repisar, não foram acompanhadas das devidas provas. Seja como for, a procedência ou não do presente recurso especial deve ser analisada a partir da pretensão contida na petição inicial, de impedir a intermediação da venda e compra virtual, pelas recorridas, de todo e qualquer produto da marca “Citizen”. Assim posta a questão, e partindo da premissa adrede fixada de que, na sua maioria, os produtos ofertados em sites como os das recorridas são de origem lícita (ou pelo menos de que inexiste prova em sentido contrário), não há como livrar a hipótese dos autos da incidência do comando do art. 132, III, da LPI, segundo o qual o titular da marca não poderá impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento. Cuida-se do denominado princípio do exaurimento da marca, pelo qual, após a primeira venda do produto no mercado, o direito sobre a marca se esvazia, impedindo o seu titular de invocar a exclusividade para obstar as vendas subsequentes. 270 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Ao comentar o mencionado dispositivo legal, Luiz Guilherme Loureiro esclarece haver o “esgotamento do direito de propriedade industrial”, salientando que “se ele [titular da marca], ou um seu licenciado, promoveu a venda do produto onde se encontra aposta a marca, não pode impedir que este produto seja redistribuído pelo comprador” (A lei de propriedade industrial comentada. São Paulo: LEJUS, 1999, p. 276). Também o STJ já teve a oportunidade de se manifestar acerca da “exaustão do direito à marca”, consignando tratar-se da “impossibilidade de o titular da marca impedir a circulação do produto após este haver sido introduzido no mercado nacional” (REsp n. 930.491-SP, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 19.4.2011). Dessarte, depois de os produtos da recorrente serem lançados no mercado nacional por intermédio de distribuidores oficiais, não há como impedir a livre revenda dessa mercadoria por pessoas físicas e jurídicas, inclusive pelo meio virtual. Por outro lado, ainda que, apenas para argumentar, se pudesse admitir a tese recursal de impedir as recorridas de promoverem atos de comércio envolvendo produtos de procedência ilícita, não se pode ignorar que os sites por elas mantidos – mercadolivre.com.br e arremate.com.br – se dedicam exclusivamente a intermediar a venda e compra de produtos, aproximando as partes interessadas, disponibilizando ferramentas que, em princípio, tornam o negócio mais fácil, rápido e seguro. Em outras palavras, esses sites disponibilizam ofertas criadas por terceiros, interessados em vender produtos, recebendo o acesso de outras pessoas, interessadas em compra-los, qualificando-se, no âmbito da Internet, ao menos de forma preponderante, como uma espécie do gênero provedor de conteúdo, pois não editam, organizam ou de qualquer outra forma gerenciam as informações relativas às mercadorias inseridas pelos usuários. Nesse contexto, não se lhes pode impor a responsabilidade de realizar a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos cuja venda intermediam, por não se tratar de atividade intrínseca ao serviço prestado. Vale dizer, sites como os mantidos pelas recorridas em momento algum garantem a qualidade ou a procedência dos produtos, limitando-se a estabelecer mecanismos para que o próprio comprador, sentindo-se de alguma forma insatisfeito ou ludibriado pelo vendedor, não conclua a negociação. Rui Stocco bem observa que quando o provedor de Internet age “como mero fornecedor de meios físicos, que serve apenas de intermediário, repassando RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 271 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA mensagens e imagens transmitidas por outras pessoas e, portanto, não as produziu nem sobre elas exerceu fiscalização ou juízo de valor, não pode ser responsabilizado por eventuais excessos” (Tratado de responsabilidade civil, 6ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 901). Conforme destaquei no julgamento do REsp n. 1.316.921-RJ, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 29.6.2012, “não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/1988, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa”. O serviço prestado pelas recorridas não deixa de ter caráter informativo, propiciando, por exemplo, a aproximação de pessoas com interesses comuns e a obtenção do histórico de vendedores e compradores. Oportuna, também, menção a voto vista que proferi no julgamento do REsp n. 1.125.739-SP, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 10.2.2012, versando sobre os limites de responsabilidade de proprietários e administradores de shopping center pela comercialização de produtos contrafeitos nos espaços por eles alugados. Ainda que na espécie estejamos em um ambiente virtual, me parece que as recorridas podem ser de alguma forma equiparadas a “locadoras” de espaço em seus sites para o desenvolvimento do comércio eletrônico. Naquela ocasião, ponderei que “não há como imputar ao locador o dever de fiscalizar a atividade efetivamente desenvolvida por cada locatário, de sorte a confirmar a eventual prática de algum ilícito civil ou criminal. A relação locatícia não confere ao locador poder de polícia sobre os locatários”. O raciocínio se aplica ao meio virtual. Não há como impor àquele que mantém site de intermediação de vendas o dever de prévia fiscalização das atividades desenvolvidas por cada um dos anunciantes, de modo a verificar se o produto oferecido é de procedência lícita. Note, por oportuno, que isso não significa deixar a sociedade, notadamente empresários, desamparada frente à prática crescente de contrafação e importação paralela. Além do dever do Estado de atuar na fiscalização, controle e repressão de atividades ilícitas, sobretudo aquelas notórias, nada impede o próprio titular 272 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA da marca ou até mesmo terceiros de denunciarem a oferta de produtos com violação de propriedade industrial, hipótese em que, ciente da ilegalidade, caberá ao provedor providenciar a imediata remoção do anúncio do site, sob pena, aí sim, de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. Outra não foi a solução encontrada por esta Corte para a responsabilidade dos provedores de rede social de relacionamento via Internet pelo conteúdo das informações veiculadas nos respectivos sites, em relação à qual se considerou razoável “exigir dos provedores um controle posterior, vinculado à sua efetiva ciência quanto à existência de conteúdo ilícito” (REsp n. 1.308.830-RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 19.6.2012. No mesmo sentido: AgRg no AREsp n. 308.163-RS, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe de 21.5.2013; AgRg no AREsp n. 137.944-RS, 4ª Turma, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, DJe de 8.4.2013; e 1.300.161-RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 26.6.2012.) No caso específico dos autos, por exemplo, o próprio Mercadolivre admite disponibilizar um veículo para que qualquer interessado denuncie gratuitamente a violação de direitos do autor, marcas, patentes, modelos e desenhos industriais, bem como solicite a remoção do respectivo anúncio. Mais do que isso, de forma análoga ao que foi decidido em relação aos provedores de rede social de relacionamento, mostra-se razoável exigir que sites de intermediação de venda de produtos mantenham condições de identificar cada um de seus anunciantes, a fim de que nenhum ilícito caia no anonimato. Portanto, sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. Como tenho ressalvado em outros processos envolvendo direito digital, ainda que não ideais, certamente incapazes de conter por completo a utilização da rede para fins nocivos, a solução ora proposta se afigura como a que melhor equaciona os direitos e deveres dos diversos players do mundo virtual. Na análise de Newton De Lucca “a implementação de medidas drásticas de controle de conteúdos na Internet deve ser reservada para casos extremos, quando estiver presente manifesto interesse público e desde que ponderado o potencial prejuízo causado a terceiros, não havendo de ser adotada nas demais hipóteses, principalmente quando se tratar de interesse individual, salvo em situações absolutamente excepcionais, que representarão exceções raríssimas” (op. cit., p. 400). RSTJ, a. 25, (232): 197-274, outubro/dezembro 2013 273 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA As adversidades indissociáveis da tutela das inovações criadas pela era digital dão origem a situações cuja solução pode causar certa perplexidade. Há de se ter em mente, no entanto, que a Internet é reflexo da sociedade e de seus constantes avanços. Se, ainda hoje, não conseguimos tutelar com total equidade direitos seculares e consagrados, seria utópico contar com resultados mais eficientes nos conflitos relativos à rede mundial de computadores. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial. 274 Quarta Turma AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL N. 1.232.385-MG (2011/0012085-6) Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira Agravante: Nutrivip do Brasil Comércio de Alimentos Construção Papelaria e Eletro Eletrônicos Ltda. Advogado: Maria Cláudia Salles Nogueira e outro(s) Agravado: Millenium S/A Fomento Mercantil Ltda. Advogado: Mário Cezar Pedrosa Soares e outro(s) EMENTA Processual Civil. Agravo regimental no recurso especial. Recolhimento de custas e porte de remessa e retorno via internet. Possibilidade. Ausência de impugnação em contrarrazões. Petição enviada por fax. Falta de página. Não conhecimento. Decisão mantida. 1. A Resolução do STJ n. 4/2010, vigente à época da interposição do especial, admite a emissão das guias de recolhimento por meio da internet. Quanto ao recolhimento, o referido texto normativo não veda o pagamento por meio da rede mundial de computadores. 2. O próprio sítio do Tesouro Nacional, cuja utilização é recomendada pela referida Resolução, estabelece que a GRU Simples poderá ser paga no Banco do Brasil por meio da internet. Não pode a parte de boa-fé ser prejudicada, devendo ser admitido o recolhimento pela internet, com a juntada de comprovante emitido pelo sítio do banco. Aplicação, ademais, do art. 11 da Lei n. 11.419/2006. 3. Havendo dúvida acerca da autenticidade do comprovante de recolhimento de custas, pode-se determinar, de ofício ou a requerimento da parte, a apresentação de documento idôneo. Não suprida a irregularidade, será reconhecida a deserção. 4. No caso, não houve impugnação da parte em contrarrazões de recurso especial, mas somente no agravo regimental, após o provimento da irresignação da parte contrária. 5. No mérito recursal, nos termos da pacífica jurisprudência do STJ, a falta de página da petição enviada por fax desrespeita o art. 4º REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA da Lei n. 9.800/1999 e impede o conhecimento do correspondente recurso. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. ACÓRDÃO A Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão, Raul Araújo Filho e Maria Isabel Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 6 de junho de 2013 (data do julgamento). Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator DJe 22.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de agravo regimental (e-STJ fls. 670-685) interposto contra decisão desta relatoria que deu provimento ao recurso especial para cassar o acórdão recorrido e restabelecer a sentença. Em suas razões, a agravante aponta deserção do recurso especial (e-STJ fl. 670): Cabe informar que Vossa Excelência deu provimento a um recurso deserto, nulidade absoluta que poderá ser reconhecida de ofício, posto que as custas processuais (guia GRU) foram recolhidas pela internet (fls. 500), o que deixa dúvidas sobre a fé pública do documento. No mérito, argumenta a aplicabilidade, ao seu recurso, do princípio da instrumentalidade, tendo em vista que a ausência de página na petição enviada por fax não acarretaria prejuízo ao cabal entendimento da apelação (e-STJ fls. 678-679). Ao final, requer o provimento do presente agravo regimental, para não se conhecer do recurso especial. É o relatório. 278 Jurisprudência da QUARTA TURMA VOTO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira (Relator): A insurgência não merece ser acolhida. A agravante não trouxe nenhum argumento capaz de afastar os termos da decisão agravada, razão pela qual deve ser mantida por seus próprios fundamentos (e-STJ fls. 666-667): Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão do TJMG assim ementado (e-STJ 456-457): Ação ordinária. Duplicata. Inexistência de relação negocial. Cobrança e protesto. Irregularidade. Consectários. Demonstrado nos autos que as duplicatas levadas a protesto padecem de lastro, isto é bastante para autorizar o acolhimento da pretensão declaratória de inexistência de relação jurídica, bem assim a reparação de danos morais à vista disto experimentados por cuja indenização respondem endossante e endossatário, este último porque cientificado a respeito do desfazimento do negócio jurídico. Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ 494-497). Nas razões do recurso, fundamentado no art. 105, III, alíneas a e c, da CF, a recorrente alega ofensa aos arts. 7º, 13 e 15 da Lei n. 5.474/1968, 515 e 535 do CPC, 4º da Lei n. 9.800/1999, 96 e 188 do CC/2002. É o relatório. Decido. O recurso merece provimento. De acordo com a jurisprudência desta Corte, “é ônus da parte, ao utilizar mecanismos digitais ou mecânicos de remessa de petições ao STJ, zelar pela integridade, idoneidade e conformação adequada das peças” (AgRg no AREsp n. 2.857-PE, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 5.5.2011, DJe 12.5.2011). Nesse sentido, entende-se que, “ausente uma das páginas da petição encaminhada por fax, resta descumprida a norma do art. 4º da Lei n. 9.800/1999” (AgRg nos EDcl na Pet n. 4.772-RJ, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Corte Especial, julgado em 9.11.2006, DJ 5.2.2007, p. 175), não podendo ser conhecido o recurso. Assim, sendo incontroverso que a petição de apelação interposta via fax não estava completa (e-STJ fl. 470), o recurso não podia ter sido conhecido. Diante do exposto, com fundamento no art. 557 do CPC, dou provimento ao recurso especial, para cassar o acórdão recorrido e restaurar a sentença de primeiro grau. Publique-se e intimem-se. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 279 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em relação ao argumento de deserção do recurso especial, não assiste razão à agravante. De início, cumpre registrar que realmente existem precedentes desta Corte inadmitindo o pagamento das despesas processuais via internet. Esta egrégia Quarta Turma teve a oportunidade de enfrentar a questão no julgamento do AgRg no REsp n. 1.103.021-DF, julgado em 26.5.2009, DJe 8.6.2009. Naquela ocasião, prevaleceu o entendimento do relator, o eminente Ministro Luis Felipe Salomão, segundo o qual os comprovantes de pagamento das despesas processuais extraídos, pela internet, do sítio do banco, seriam incapazes de comprovar a autenticidade do preparo. Contudo, naquele caso, havia uma peculiaridade, pois o comprovante juntado pela parte não possuía cabeçalho nem rodapé, circunstância que conduzia a dúvidas acerca de sua idoneidade, dando a entender que poderia ter sido criado em editor de textos. Importante, a propósito, reportar-se ao voto vencido, proferido no mencionado julgamento pelo eminente Ministro João Otávio de Noronha, no qual Sua Excelência afirma: Por ocasião da Lei n. 11.636/2007, quando este Tribunal passou a cobrar custas judiciais em processos originários e também recursais, foi editada a Resolução n. 1-STJ, segundo a qual as custas deverão ser recolhidas mediante GRU disponível no site deste Tribunal (...). Como se vê, a resolução indica que o pagamento deve ser realizado no Banco do Brasil, mas não faz nenhuma restrição quanto a que seja feito via internet. Não se pode descartar que a utilização do meio eletrônico para pagamento de quaisquer débitos/contas que necessitem de intermediação bancária avança freneticamente. Trata-se de uma realidade e pode-se dizer que a sociedade está passando por uma espécie de desmaterialização de documentos. Isso é fato e não pode ser olvidado pelo julgador. Nesse contexto, não creio que possa ser contestada a validade jurídica dos documentos de fls. 990-991 tão-somente porque foram impressos pelo contribuinte, que preferiu a utilização da internet para recolhimento das custas. Soma-se a isso mais um fator: o de que as relações sociais partem do pressuposto de que há boa-fé entre seus co-partícipes. Nas mais diversas áreas das relações humanas, esse princípio vigora. Ele vai desde as relações íntimas pessoais, tal como a confiança que se deposita em parentes e amigos, cujos compromissos são selados por um mero aperto de mãos, estendendo-se às relações obrigacionais reguladas pelo direito. 280 Jurisprudência da QUARTA TURMA Na esfera jurídica, passando pelas relações contratuais, chega-se ao direito processual de forma geral, o qual não constitui exceção à regra de que as partes, em princípio, agem de boa-fé. Tanto é assim que a exceção é prevista expressamente nos artigos 14 e seguintes do Código de Processo Civil, outorgando-se poderes ao julgador para penalizar aquele que foge à regra geral, ou seja, aquele que age de má-fé. Penso que a orientação contida no citado voto vencido deva ser adotada no presente agravo regimental. De fato, no caso concreto, os comprovantes de pagamento das custas e do porte de remessa e retorno foram extraídos da internet. Todavia, tal circunstância, por si só, não é suficiente para conduzir à deserção do recurso. O processo civil brasileiro vem passando por contínuas alterações legislativas, de modo a se modernizar e a buscar celeridade, visando a efetivar o princípio da razoável duração do processo. Nesse contexto, insere-se a Lei n. 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial. Na vida cotidiana, é cada vez mais frequente a realização de múltiplas transações por meio dos mecanismos oferecidos pelos avanços da tecnologia da informação, particularmente no meio bancário (internet banking), em razão das facilidades e da celeridade que essas modalidades de operação proporcionam. Há, inclusive, um forte incentivo das instituições financeiras nesse sentido. No que diz respeito ao recolhimento das despesas processuais, no âmbito deste Superior Tribunal, a Resolução n. 4/2010, vigente à época da interposição do especial, estabelecia, em seu art. 6º, § 1º, que as guias de recolhimento das custas e do porte e remessa e retorno deveriam ser emitidas no sítio do Tesouro Nacional (o mesmo se verifica nas posteriores resoluções). Confira-se: Art. 6º O recolhimento das custas judiciais e do porte de remessa e retorno dos autos será realizado mediante Guia de Recolhimento da União – GRU Simples. § 1º A GRU é emitida no sítio do Tesouro Nacional, podendo ser acessada por meio do sítio do Tribunal: http://www.stj.jus.br/. Como se vê, a referida resolução expressamente previa a utilização da internet como o meio para emissão das guias referentes às despesas processuais. Quanto ao pagamento, o referido texto normativo não fixava a maneira pela qual deveria ocorrer, isto é, não estabelecia se o pagamento deveria ser feito obrigatoriamente na agência bancária, ou se poderia ser utilizado outro modo. Em tais condições, não há como deixar de admitir o pagamento das guias por meio da internet. Parece ser um contrassenso o uso do meio eletrônico na RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 281 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA tramitação do processo judicial, a emissão das guias por meio da rede mundial de computadores e, ao mesmo tempo, coibir o seu pagamento pela mesma via, obrigando o jurisdicionado a se dirigir a uma agência bancária. Com efeito, não há, na legislação de regência, norma que vede expressamente o pagamento pela internet ou determine que este ocorra na agência bancária ou em terminal de auto atendimento. No caso dos autos, o recorrente recolheu as custas pela internet e juntou o comprovante, de forma eletrônica. O próprio sítio do Tesouro Nacional, cuja utilização é recomendada pela Resolução n. 4/2010, informa ao contribuinte, in verbis: “Quais são os tipos de GRU? Existem 2 tipos de GRU: a GRU Simples e a GRU Cobrança, cada qual com uma aplicação específica. A GRU Cobrança pode ser paga em qualquer instituição financeira até a data de vencimento. Já no caso da GRU Simples, seu pagamento tem de ser efetuado exclusivamente no Banco do Brasil por meio da internet, dos terminais de auto-atendimento, diretamente no guichê do caixa ou, em casos específicos, por meio de depósito (GRU Depósito) ou de DOC ou TED (GRU DOC/ TED). (...) Como efetuar o pagamento da GRU em caso de greve do Banco do Brasil? “O contribuinte que for cliente do Banco do Brasil poderá efetuar o pagamento da GRU pela internet ou por meio dos terminais de auto-atendimento. O contribuinte que não for cliente do Banco do Brasil deverá entrar em contato com o Órgão Público para o qual será efetuado o pagamento a fim de obter orientações sobre como proceder. O Órgão é o responsável por fornecer uma alternativa para o pagamento como, por exemplo, a autorização do pagamento por meio de DOC/TED” (https://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt/politica-fiscal/ gru, acesso em 17.4.2013). Com a devida vênia, o argumento segundo o qual o comprovante emitido pela internet não goza de fé pública não pode conduzir à deserção do recurso especial. A legislação processual presume a boa-fé dos atos praticados pelas partes e por seus procuradores. Nesse sentido, os arts. 365, IV, e 736, parágrafo único, do CPC preveem a possibilidade de o próprio advogado declarar como autênticas cópias de peças processuais juntadas aos autos. Ademais, cabe lembrar a Lei n. 11.419/2006: 282 Jurisprudência da QUARTA TURMA Art. 11. Os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida nesta Lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais. Por essas razões, penso ser possível admitir o recolhimento das custas e do porte de remessa e retorno por meio da internet, com a consequente possibilidade de juntada de comprovantes emitidos pelo sítio do banco. Não pode a parte de boa-fé ser surpreendida com a declaração de deserção do recurso apenas pelo fato de ter optado pelo pagamento das custas por meio da internet, sobretudo porque, (i) inexiste norma que expressamente vede que o recolhimento ocorra dessa forma, (ii) a informatização do processo é uma realidade, positivada na Lei n. 11.419/2006, devendo o Poder Judiciário prestigiar os instrumentos que facilitem o cumprimento das formalidades processuais por meio eletrônico e (iii) o próprio Tesouro Nacional autoriza o pagamento pela internet. Tratando de situação análoga e reconhecendo a possibilidade de uso de guias recolhidas pela internet, o seguinte recente julgado do egrégio TST: Recurso de revista. Recurso ordinário. Deserção. Na hipótese, o Tribunal de origem não conheceu do Recurso Ordinário, por deserção. O protocolo do Recurso Ordinário foi realizado pelo sistema e-doc, razão pela qual fica dispensada a autenticação das guias de recolhimento de custas e do depósito recursal. Recurso de Revista conhecido e provido. (Processo: RR-1170-96.2010.5.18.0012, Data de julgamento: 29.5.2013, Relator: Desembargador convocado João Pedro Silvestrin, 8ª Turma, DEJT 3.6.2013). Contudo, por óbvio, havendo dúvida acerca da autenticidade do comprovante (como no precedente desta Quarta Turma antes mencionado), o Tribunal a quo ou o relator poderá, de ofício ou a requerimento da parte contrária, determinar a apresentação de documento idôneo e, caso não suprida a irregularidade, declarar a deserção. No caso concreto, todavia, não vislumbro indício de irregularidades nos comprovantes de fls. 549-552 (e-STJ), especialmente considerando a identidade entre o código de barras constante da guia GRU e aquele presente no comprovante de pagamento emitido pelo banco. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 283 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Além disso, o recorrente não impugnou o recolhimento das custas nas contrarrazões do recurso especial, mas apenas no agravo regimental, após o provimento do recurso da parte contrária. Assim, rejeito a preliminar de deserção do recurso especial. Quanto ao mérito recursal, em que pese a argumentação apresentada pela agravante, o recurso não deve prosperar. Com efeito, a egrégia Corte Especial pacificou o entendimento segundo o qual a falta de uma das páginas da petição encaminhada por fax descumpre o art. 4º da Lei n. 9.800/1999 e impede o conhecimento do recurso. Nesse sentido: Agravo regimental. Embargos de divergência. Súmula n. 315-STJ. Fax. Indeferimento liminar. 1. Ausente uma das páginas da petição encaminhada por fax, resta descumprida a norma do art. 4º da Lei n. 9.800/1999. 2. “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento que não admite recurso especial” (Súmula n. 315-STJ). 3. Não há ilegalidade no indeferimento liminar dos embargos de divergência quando não satisfeita a norma do art. 4º da Lei n. 9.800/1999 ou quando não cabível o mencionado recurso. 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg nos EDcl na Pet n. 4.772-RJ, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Corte Especial, julgado em 9.11.2006, DJ 5.2.2007, p. 175). Processo Civil. Agravo regimental nos embargos de divergência. Fac-símile. Ilegível. Impossibilidade de verificar a identidade entre a petição enviada e a via original. Responsabilidade do recorrente. Não conhecimento. 1. É dever das partes zelar pela qualidade e fidelidade do material transmitido via fac-símile, nos termos do art. 4º da Lei n. 9.800/1999. 2. Sendo a peça transmitida via fax ilegível, por conter diversas páginas com letras extremamente reduzidas ao ponto de inviabilizar sua leitura, não é possível verificar a identidade entre o material transmitido e seu original, o que impede o conhecimento do recurso. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg nos EAg n. 777.376-MS, de minha relatoria, Segunda Seção, julgado em 14.3.2012, DJe 20.3.2012). Processual Civil. Recurso especial. Medida cautelar. Apelação. Intempestividade. Não comprovação de apresentação da via fac-símile. Agravo regimental improvido. 284 Jurisprudência da QUARTA TURMA I. Nos termos do art. 4º da Lei n. 9.800/1999, a parte que fizer uso de sistema de transmissão via fax torna-se responsável pela qualidade e fidelidade do material transmitido, e por sua entrega ao órgão judiciário. II. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg na MC n. 12.458-DF, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 6.3.2007, DJ 2.4.2007, p. 273). Portanto, a decisão agravada, no mérito, encontra-se em consonância com a pacífica jurisprudência desta Corte Superior, razão pela qual deve ser mantida por seus próprios fundamentos. Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental. É como voto. VOTO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: Srs. Ministros, acompanharei o voto do eminente Relator e justificarei a alteração do entendimento, porque naquela ocasião em que proferido o voto e que acabou prevalecendo no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.103.021, no sentido de que os comprovantes de pagamentos das despesas extraídas da Internet, no sítio do Banco, seriam incapazes de comprovar a autenticidade do preparo, já, hoje, não mais se justificam, primeiro pelos motivos invocados pelo Ministro Relator. Além dessas circunstâncias, que tornaram aquele caso peculiar e além dos fundamentos que traz V. Exa., apenas justifico que o olhar para a questão da admissibilidade, naquele momento, em 2009, era um, e o julgador não pode estar afastado do momento em que decide. Hoje, a situação é outra. A segurança em relação ao tema avançou bastante, e também a questão da admissibilidade do recurso já não se faz mais, pelo menos em relação à guia, tão rigorosa como se fez no passado. De modo que com essa fundamentação, a justificar a mudança de posicionamento, diante da peculiaridade do caso, dos fundamentos que traz V. Exa. e das novas circunstâncias que advieram depois da prolação daquele voto, acompanho o voto de V. Exa. no sentido de negar provimento ao agravo regimental. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 285 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 684.648-RS (2004/0114530-1) Relator: Ministro Raul Araújo Recorrente: Banco do Brasil S/A Advogado: Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz e outro(s) Recorrido: Egídio Tranquilo Piaia Advogado: Vera Regina Alves Adegas - Defensora Pública Interessado: Délcio Afonso Swarowski EMENTA Recurso especial. Civil. Execução por quantia certa. Cédula rural pignoratícia. Garantia do penhor não honrada. Penhora de área de terras rurais anteriormente hipotecada ao mesmo credor em execução diversa. Embargos à execução. Alegação de impenhorabilidade do bem (CF, art. 5º, XXVI; CPC, art. 649, VIII (antes inciso X); DecretoLei n. 167/1967, art. 69). Procedência. Recurso desprovido. 1 - A pequena propriedade rural, ainda que oferecida anteriormente em hipoteca ao mesmo credor, não pode ser penhorada para pagamento de cédula rural pignoratícia, não honrada com o penhor inicialmente contratado. 2 - Em harmonia com o disposto no art. 5º, XXVI, da Constituição da República, a nova redação do inciso VIII (antigo inciso X) do art. 649 do CPC suprimiu a anterior exceção legal, afastando qualquer dúvida: nem mesmo eventual hipoteca é capaz de excepcionar a regra que consagra a impenhorabilidade da pequena propriedade rural sob exploração familiar. 3 - Recurso especial desprovido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Quarta Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Ministro Relator. 286 Jurisprudência da QUARTA TURMA Brasília (DF), 8 de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Raul Araújo, Relator DJe 21.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Raul Araújo: Banco do Brasil S/A ajuizou ação de execução por quantia certa contra Egídio Tranquilo Piaia, em junho de 2002, com fundamento em uma cédula rural pignoratícia no valor de R$ 7.260,00 (sete mil, duzentos e sessenta reais), com garantia constituída na colheita da lavoura de milho, especificada à fl. 4 dos autos em apenso. À fl. 28, também em apenso, consta certidão do Oficial de Justiça acerca do não pagamento do débito e da ausência de nomeação de bens, o que levou a que se procedesse a buscas no Cartório de Registro de Imóveis local, tendo ocorrido a consequente penhora de uma área de terras rurais de propriedade do executado (71.250 metros quadrados), que já estavam hipotecadas ao Banco do Brasil em razão de anterior dívida entre as mesmas partes. Egídio Tranquilo Piaia opôs embargos à execução, alegando, na parte que interessa ao presente julgamento, que a penhora não poderia recair sobre o referido imóvel de sua propriedade, por se tratar da única área de terra que possui, da qual retira o seu sustento e de sua família, sendo o bem, por isso, impenhorável. A r. sentença (fls. 71-77) julgou parcialmente procedentes os embargos, tão somente para determinar a limitação dos juros remuneratórios em 12% ao ano. Acerca da questão da impenhorabilidade, que é o que efetivamente interessa ao presente julgamento, assim decidiu o magistrado de piso: Não há que se falar em impenhorabilidade do imóvel constrito, pois o embargante, juntamente com sua esposa, ofereceram em hipoteca o imóvel penhorado na fl. 21 dos autos da execução, renunciando, desta forma, ao beneficio insculpido na Lei n. 8.009/1990. Por ter o embargante a liberdade de dispor de seus bens, tinha ele a faculdade, como o fez, de dar em hipoteca a pequena propriedade, abrindo mão da impenhorabilidade legalmente instituída. A hipoteca cedular do imóvel rural penhorado foi convencionada pelas partes, onde seguramente consta a anuência expressa do embargante e sua esposa com a constituição do direito real de garantia, tendo sido o mesmo devidamente registrado, consoante se depreende da fl. 21 da execução apensa. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 287 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Assim, por já ter sido o bem constrito dado em hipoteca, para garantia de outra dívida contraída junto ao embargado, a impenhorabilidade não pode ser oposta pelo embargante também no presente caso, nos exatos termos do art. 3º, inc. V, da Lei n. 8.009/1990, aplicado por analogia. Dessa forma, sendo penhorável o imóvel constrito, é perfeitamente válida a penhora efetivada nos autos da execução, até porque o embargante não ofereceu nenhum outro bem para garantir o processo executivo. Interpostas apelações por ambas as partes, a 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por unanimidade de votos, deu parcial provimento ao recurso do embargante e negou provimento ao do Bancoembargado, em aresto que guarda a seguinte ementa: Ação revisional. Cédula de crédito rural. Contra-razões de apelação. Intempestividade. A interposição das contra-razões de apelação fora do prazo previsto no art. 508 do CPC leva ao seu não-conhecimento. Formulação de pedido diverso dos submetidos à apreciação do magistrado “a quo”. Inovação. Não-conhecimento, sob pena de supressão de instância. Não se conhece de pedido formulado em sede recursal diverso daqueles submetidos à apreciação do 1º Grau, sendo vedada a inovação, sob pena de supressão de instância. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Diante do teor do art. 3º, § 2º, do CDC, não há qualquer dúvida de que as operações bancárias estão sujeitas à aplicação de tal diploma legal. Juros remuneratórios. Os juros remuneratórios são limitados a 12% ao ano, observado o caso concreto. Capitalização. A capitalização mensal é vedada, a não ser nas operações com nota de crédito comercial, industrial ou rural, desde que pactuada, como no presente caso. Multa moratória. A redução da multa moratória para 2% somente é possível nas cédulas e contratos celebrados após a alteração do art. 52 do CDC, ocorrida em 1º.8.1996. Impenhorabilidade. Hipoteca. Imóvel rural. Aplicação dos artigo 5º, XXVI, da CF e 649, X, do CPC. Não caracterização da renúncia prevista na Lei n. 8.009/1990. Não é admissível a penhora de propriedade rural quando se tratar de terras que servem de sustento para a família do pequeno agricultor, aplicando-se ao caso o 288 Jurisprudência da QUARTA TURMA disposto no artigo 5º, XXVI, da CF e artigo 649 , X, do CPC, desimportando que o mesmo tenha sido oferecido para hipoteca, não havendo que se falar em renúncia ao benefício insculpido na Lei n. 8.009/1990. Prequestionamento. A apresentação de questões para fins de prequestionamento não induz à resposta de todos os artigos referidos pela parte, mormente porque foram analisadas todas as questões que entendeu o julgador pertinentes para solucionar a controvérsia posta na apelação. Apelação do autor parcialmente conhecida e provida em parte. Desprovida a apelação do demandado. (fls. 138-139). Opostos embargos de declaração pelo Banco do Brasil S/A, foram rejeitados (fls. 164-168). Banco do Brasil S/A interpõe, então, o presente recurso especial, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, sustentando, preliminarmente, violação ao art. 535, II, do CPC, por negativa de prestação jurisdicional. No mérito, alega violação aos arts. 649, X, do CPC (com a redação existente à época), e 3º, V, da Lei n. 8.009/1990, e, para tanto, defende o seguinte: Dispõe o art. 649, X, do CPC, que são absolutamente impenhoráveis, entre outros, “o imóvel até um módulo, desde que seja o único de que disponha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário.” Vê-se, claramente, que o legislador definiu com bastante precisão os bens, absolutamente insuscetíveis de penhora, dentre eles a pequena propriedade rural - até um módulo -, excepcionando a hipótese do proprietário ter dado esse bem em garantia de financiamento agropecuário, exatamente, como na espécie. (..) De outro lado, a Lei n. 8.009/1990, que trata da impenhorabilidade do bem de família, regulamentando o art. 5º, XXVI da Carta Magna, dispõe no seu art. 3º, V: Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista, ou de outra natureza, salvo se movido: (...) V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; A interpretação sistemática dos diversos dispositivos infraconstitucionais que tratam da justa impenhorabilidade do bem de família, enquanto regra, ao RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 289 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA contrário do entendimento esposado no acórdão recorrido, permite a penhora da pequena propriedade desde que dada em garantia real de financiamento agropecuário, sendo inaplicável à espécie o § 2º, art. 4º da Lei n. 8.009/1990 que, aliás, em artigo precedente - art. 3º, V - admite esta exceção. Impende observar que a Lei n. 8.009/1990, veio a regulamentar o art. 5º, XXVI, definindo o que é pequena propriedade rural, outrossim, como e quando deve ser protegida. Assim, o pressuposto fundamental que resta ínsito em toda legislação acerca da proteção ao bem de família, no caso, uma pequena propriedade rural, é a sua impenhorabilidade, ressalvada a hipótese do devedor, livremente, dela dispor, dando em garantia de financiamento agrícola. Destarte, temos que a proteção à pequena propriedade rural, discutida no presente recurso, não encontra respaldo na legislação infraconstitucional, devendo o devedor responder pelas dividas que assumiu, com as demais propriedades (...). A impenhorabilidade de bens do devedor é uma exceção, enquanto a regra é a penhorabilidade, de tal sorte que a interpretação do art. 649, VI (sic), deverá ser restrita. De outra parte, necessário considerar que o imóvel penhorado foi hipotecado ao Banco em diversas operações. As conseqüências que daí resultam atingem diretamente o benefício da impenhorabilidade de todos os bens que a tenham, por força de lei. Parece óbvio que, ao indicar o bem de sua propriedade para garantia do empréstimo que fez junto a uma Instituição Financeira, o devedor entende que o bem é supérfluo. Ou, ainda, pode o devedor necessitar do financiamento para negócios próprios, e tirar vantagens outras com ditos negócios, assim dá em garantia os bens que possui, para poder alcançar os benefícios que comina. Assim, apresenta-se procedimento eivado de má-fé, aquele do Recorrido que, após indicar imóvel para garantia do financiamento, e obter os recursos desejados, vem alegar, em Embargos, sua impenhorabilidade. Ora, há que se ressalvar que no art. 649, inc. X, a indicação de bem à penhora equivale à ressalva feita quanto à hipoteca para fins de financiamento agropecuário, onde o módulo, a princípio impenhorável, perde tal qualidade, podendo ser excutido para pagamento de obrigações contratadas. A v. decisão recorrida merece reforma também se analisada, por analogia, sob o aspecto regulado pela Lei n. 8.009190, que em seu art. 3º, excepciona a impenhorabilidade do bem de família, quando ocorrente “execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real (....)” Tal dispositivo aplica-se ao caso presente, eis que a exceção funda-se, em espécie, sobre a existência de oferecimento do imóvel (em tese impenhorável) como garantia da dívida em execução. 290 Jurisprudência da QUARTA TURMA (...) Aqui, referimos, especialmente, o art. 3º, inc. V, da Lei n. 8.009/1990 que excepciona a regra geral sobre a impenhorabilidade, sendo certo que, tendo sido o imóvel oferecido como garantia real, inaplicável a Lei n. 8.009/1990, com o objetivo de declarar insubsistente penhora. Como bem relatado e demonstrado nos autos, a penhora foi concretizada sobre bem dado como garantia espontaneamente pelo devedor. A letra da lei é clara, e inequívoca sua interpretação. A vontade do devedor afasta a impenhorabilidade de um bem, quando este é oferecido à penhora. (fls. 179-182) Apresentadas contrarrazões (fls. 205-228), o recurso foi admitido (fls. 241244) e encaminhado a esta Corte. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): De início, em relação à suposta ofensa ao artigo 535, II, do CPC, cumpre salientar que o recorrente fez apenas alegação genérica de sua vulneração, apresentando uma fundamentação deficiente que impede a exata compreensão da controvérsia. Incide, na hipótese, a Súmula n. 284-STF. Nesse sentido, salienta o Ministro Sidnei Beneti, que “a ausência de demonstração de como ocorreu a ofensa ao art. 535, do CPC é deficiência, com sede na própria fundamentação da insurgência recursal, que impede a abertura da instância especial, a teor do Enunciado n. 284 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, aplicável por analogia, também ao Recurso Especial” (AgRg no Ag n. 1.162.073-MG, Terceira Turma, DJe de 12.5.2010). No mérito, o thema decidendum é apenas o referente à impenhorabilidade do bem em questão. No ponto, como relatado, assim decidiu o v. aresto recorrido: Com relação à impenhorabilidade dos bens, merece provimento a apelação do autor, uma vez que descabe a penhora de propriedade rural quando se tratar de terras que servem de sustento para a família do pequeno agricultor, aplicando-se ao caso o disposto no artigo 5º, XXVI, da CF e artigo 649, X, do CPC, desimportando que o mesmo tenha sido oferecido para hipoteca, não havendo que se falar em renúncia ao benefício insculpido na Lei n. 8.009/1990 (fls. 146-147). São os seguintes os dispositivos legais apontados como violados nas razões de recurso especial. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 291 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Do Código de Processo Civil: Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: (...) X - O imóvel rural, até um módulo, desde que este seja o único de que disponha o devedor, ressalvadas a hipoteca para fins de financiamento agropecuário. Os incisos do referido artigo do CPC tiveram nova redação e renumeração a partir da Lei n. 11.382/2006, tendo agora o inciso VIII, antes inciso X, acima transcrito, o seguinte teor: Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: (...) VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família; (Redação dada pela Lei n. 11.382, de 2006). Da Lei n. 8.009/1990, são questionados os seguintes dispositivos: Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (...) V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; (...) Portanto, não está em discussão a caracterização do bem penhorado como sendo pequena propriedade rural, ressaltando-se, inclusive, que o Banco não impugnou tal alegação. Cinge-se a controvérsia em determinar se a pequena propriedade rural oferecida primeiramente em hipoteca, como garantia de pagamento de dívida anterior entre as mesmas partes, pode ser posteriormente penhorada para pagamento de cédula rural pignoratícia, não honrada com o penhor inicialmente contratado. Em relação ao mencionado art. 3º, V, da Lei n. 8.009/1990, sua análise não é pertinente ao caso dos autos, pois não se trata, como dispõe o texto de lei, de execução da hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real (na primeira dívida entre as partes), mas sim de execução da cédula rural pignoratícia (segunda dívida entre as mesmas partes), na qual foi penhorado o imóvel rural em virtude de não ter sido honrado o pagamento da cédula apesar da garantia pignoratícia. 292 Jurisprudência da QUARTA TURMA Ressalte-se, ademais, que a regra é a impenhorabilidade e as suas exceções devem ser interpretadas restritivamente. Nesse sentido, confira-se: Recurso especial. Ação anulatória. Acordo homologado judicialmente. Oferecimento de bem em garantia. Pequena propriedade rural. Impenhorabilidade. Equiparação à garantia real hipotecária. Descabimento. 1. - A proteção legal assegurada ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990 não pode ser afastada por renúncia, por tratar-se de princípio de ordem pública, que visa a garantia da entidade familiar. 2. - A ressalva prevista no art. 3º, inciso V, da Lei n. 8.009/1990 não alcança a hipótese dos autos, limitando-se, unicamente, à execução hipotecária, não podendo benefício da impenhorabilidade ser afastado para a execução de outras dívidas. Por tratar-se de norma de ordem pública, que visa a proteção da entidade familiar, e não do devedor, a sua interpretação há de ser restritiva à hipótese contida na norma. 3. - Recurso Especial improvido. (REsp n. 1.115.265-RS, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 24.4.2012, DJe de 10.5.2012). É importante citar também o disposto no art. 69 do Decreto-Lei n. 167/1967, que dispõe sobre títulos de crédito rural e dá outras providências, nestes termos: Art. 69. Os bens objeto de penhor ou de hipoteca constituídos pela cédula de crédito rural não serão penhorados, arrestados ou seqüestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro empenhador ou hipotecante, cumprindo ao emitente ou ao terceiro empenhador ou hipotecante denunciar a existência da cédula às autoridades incumbidas da diligência ou a quem a determinou, sob pena de responderem pelos prejuízos resultantes de sua omissão. É simples e clara a redação da aludida norma, tendo o Superior Tribunal de Justiça se pronunciado, quando de sua análise, nos seguintes precedentes, dentre outros: Processual Civil. Execução. Embargos de terceiro. Penhora incidente sobre bem hipotecado com base em cédula de crédito rural. Inexistência de concordância do credor privilegiado. Interesse processual. Existência. Nulidade da constrição. Decreto-Lei n. 167/1967, art. 69. Verba honorária. Manutenção. I. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento pacífico no sentido da impossibilidade de penhora de bem já hipotecado por força de cédula de crédito rural, ex vi da vedação contida no art. 69 do Decreto-Lei n. 167/1967. II. Hipótese em que não foi demonstrado ter havido anuência do credor hipotecário, ainda que intimado o credor para manifestar-se na execução, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 293 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA circunstância que possibilitaria a atenuação da regra (REsp n. 13.682-SP, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, unânime, DJU de 16.5.1994). III. Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp n. 471.313-MT, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 18.2.2003, DJ de 14.4.2003, p. 231). Cédula rural. Hipoteca. Execução de terceiro. Penhora dos bens hipotecados. Imunidade. Os bens hipotecados em garantia de cédula rural estão imunes à penhora por outras dívidas do devedor. Inocorrência, no caso dos autos, das circunstâncias que poderiam ser consideradas para abrandamento do privilégio (vencimento da dívida hipotecária; anuência do credor). Precedentes. A alegação de insolvência de terceira pessoa não tem importância para o julgamento da causa. Recurso conhecido e provido para acolhimento dos embargos de terceiro oferecidos pelo banco credor da cédula rural. (REsp n. 325.079-RO, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 12.3.2002, DJ de 20.5.2002, p. 149). Crédito rural. Penhora. Art. 69 do Decreto-Lei n. 167/1967. Precedentes da Corte. 1. Na linha de precedentes da Corte, os bens “vinculados à cédula de crédito rural não podem ser penhorados em execução de outra dívida”. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 255.092-SP, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 17.5.2001, DJ de 13.8.2001, p. 147). Analisando controvérsia análoga, esta eg. Quarta Turma, no julgamento do REsp n. 262.641-RS, da relatoria do saudoso Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, concluiu que “a parte final do art. 649, X, CPC não restou recepcionada pela Constituição de 1988, cujo art. 5º, XXVI, considera impenhorável a pequena propriedade rural de exploração familiar”. Entendeu-se, naquela ocasião, que o art. 649, X, do CPC, estava em desconformidade com a norma inserta no art. 5º, XXVI, da CF/1988, a qual dispõe que “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento”. 294 Jurisprudência da QUARTA TURMA A nova redação do inciso VIII do art. 649 do CPC suprimiu a anterior exceção legal, não restando nenhuma dúvida: nem mesmo eventual hipoteca é capaz de excepcionar a regra que consagra a impenhorabilidade da pequena propriedade rural sob exploração familiar. Portanto, não há violação aos dispositivos legais apontados nas razões de recurso especial. Por fim, o alegado dissídio jurisprudencial não foi comprovado nos moldes exigidos pelo RISTJ, pois foram colacionadas apenas ementas dos julgados paradigmas, sem que tenha havido menção às circunstâncias que identificam ou assemelham os acórdãos confrontados. Não procedeu, portanto, ao devido cotejo analítico entre os arestos paradigmas trazidos no especial e a hipótese dos autos, de modo que não ficou evidenciada a sugerida divergência pretoriana. Por todo o exposto, nego provimento ao recurso especial. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 959.213-PR (2007/0132051-3) Relator: Ministro Luis Felipe Salomão Relator para o acórdão: Ministra Maria Isabel Gallotti Recorrente: R M K T e outro Advogados: Andréa Gomes e outro(s) Vanessa Cristina Cruz Scheremeta e outro(s) Recorrido: N K V Advogado: Carlos Joaquim de Oliveira Franco e outro(s) EMENTA Recurso especial. União estável. Início anterior e dissolução posterior à edição da Lei n. 9.278/1996. Bens adquiridos onerosamente antes da vigência da norma legal. 1. Não configura ofende o art. 535 do CPC a decisão que examina, de forma fundamentada, todas as questões submetidas à apreciação judicial. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 295 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2. Demonstrado que as instâncias de origem não apreciaram a efetiva contribuição de um dos conviventes para a construção do patrimônio comum, prova considerada irrelevante para o deslinde da controvérsia, mas entenderam aplicável a presunção legal do esforço comum prevista na Lei n. 9.278/1996, também em relação aos bens adquiridos antes de sua entrada em vigor, não tem incidência, no caso presente, o óbice da Súmula n. 7-STJ. 3. A violação aos princípios do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada encontra vedação em dispositivo constitucional (art. 5º XXXVI), mas seus conceitos são estabelecidos em lei ordinária (LINDB, art. 6º). Dessa forma, não havendo na Lei n. 9.278/1996 comando que determine a sua retroatividade, mas decisão judicial acerca da aplicação da lei nova a determinada relação jurídica existente quando de sua entrada em vigor - hipótese dos autos - a questão será infraconstitucional, passível de exame mediante recurso especial. Precedentes do STF e deste Tribunal. 4. A presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio dos conviventes foi introduzida pela Lei n. 9.278/1996, devendo os bens amealhados no período anterior a sua vigência, portanto, serem divididos proporcionalmente ao esforço comprovado, direito ou indireto, de cada convivente, conforme disciplinado pelo ordenamento jurídico vigente quando da respectiva aquisição (Súmula n. 380-STF). 5. Os bens adquiridos anteriormente à Lei n. 9.278/1996 têm a propriedade - e, consequentemente, a partilha ao cabo da união disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando respectiva aquisição, que ocorre no momento em que se aperfeiçoam os requisitos legais para tanto e, por conseguinte, sua titularidade não pode ser alterada por lei posterior em prejuízo ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5, XXXVI e Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º). 6. Os princípios legais que regem a sucessão e a partilha de bens não se confundem: a sucessão é disciplinada pela lei em vigor na data do óbito; a partilha de bens, ao contrário, seja em razão do término, em vida, do relacionamento, seja em decorrência do óbito do companheiro ou cônjuge, deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar. 296 Jurisprudência da QUARTA TURMA 7. A aplicação da lei vigente ao término do relacionamento a todo o período de união implicaria expropriação do patrimônio adquirido segundo a disciplina da lei anterior, em manifesta ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. 8. Recurso especial parcialmente provido. ACÓRDÃO Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Ministra Maria Isabel Gallotti, dando parcial provimento ao recurso, divergindo do relator, e o voto do Ministro Antonio Carlos Ferreira, no mesmo sentido, e a refificação do voto do Ministro Raul Araújo, para acompanhar a divergência, e o voto do Ministro Marco Buzzi, acompanhando a divergencia, a Quarta Turma, por maioria, deu parcial provimento ao recurso. Vencido o relator. Lavrará o acórdão a Ministra Maria Isabel Gallotti, nos termos do art. 52, II, do RISTJ. Votaram com a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti os Srs. Ministros Raul Araújo Filho, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi. Brasília (DF), 6 de junho de 2013 (data do julgamento). Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora p/ acórdão DJe 10.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. N. K. do V. ajuizou ação de dissolução de união estável cumulada com partilha de bens em face dos herdeiros de seu falecido companheiro J. R. F. T. Narra que após a dissolução da sociedade conjugal que mantinha, passou a viver com J. R. F. T, constituindo nova entidade familiar. Afirma que a união foi mantida publicamente, perdurando do início do ano de 1985 até o falecimento de seu companheiro, em outubro de 1998. Assevera que a união era notória, inclusive perante a comunidade, tendo sido inscrita pelo de cujus em órgãos previdenciários, na qualidade de sua dependente. Sustenta ser psicóloga, com cursos de especialização e mestrado, e que ministra aulas, participa de congressos, seminários e treinamentos. Alega que consta do testamento público, providenciado pelo seu falecido companheiro, que instrui a inicial, o reconhecimento da união e os invocados direitos patrimoniais. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 297 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O Juízo da 2ª Vara de Família da Comarca de Curitiba prolatou decisão interlocutória, antecipando a questão de mérito, manifestando o entendimento de que, “comprovada a existência de união estável, deve a sua dissolução ser regida pela Lei n. 9.278/1996, que instituiu a presunção de condomínio sobre os bens adquiridos pelos companheiros”. (fls. 28-32) Interpuseram as rés R. M. K. T. e T. C. K. T. agravo de instrumento para o Tribunal de Justiça do Paraná, que negou provimento ao recurso. O acórdão tem a seguinte ementa: Agravo de instrumento. Ação de reconhecimento e dissolução de união estável c.c. partilha de bens. Procedência do pedido com determinação de partilha dos bens amealhados pelo casal. Agravo das herdeiras do de cujus alegando que não houve comprovação do esforço comum para aquisição do patrimônio como requer a Lei n. 8.971/1994. Desprovimento. Se a união estável nasceu em 1985 e teve seu término em 1998, aplica-se a Lei n. 9.278/1996, mesmo que constituída anteriormente à sua publicação, uma vez que a lei tem efeito imediato e geral. Presunção de que o patrimônio foi adquirido em comum esforço de ambos os conviventes. Recurso desprovido. A Lei n. 9.278/1996, tem aplicação imediata e geral, conforme preconiza o art. 6º da LICC, inclusive para as uniões estáveis surgidas anteriormente a sua publicação e que não estava rompida quando surgiu a Lei, portanto a Lei n. 9.278/1996 deve ser aplicada no caso concreto, pois a convivência more uxório nasceu em 1985 e somente terminou em 1998. É irrelevante saber, se a Agravada tinha condições de contribuir financeiramente direta ou indiretamente para a formação do patrimônio, pois uma vez reconhecida a união estável se aplica a regra da comunhão parcial. Opostos embargos de declaração, foram rejeitados. Inconformadas com a decisão colegiada, interpuseram as rés recurso especial com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, sustentando divergência jurisprudencial e violação dos artigos 6º da Lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro e 5º da Lei n. 9.278/1996. Afirmam que a questão em discussão influencia diretamente a fase probatória, porquanto se discute nos autos justamente a necessidade de comprovação do esforço comum, no que tange aos bens adquiridos na constância da união. Alegam que a questão central é quanto aos efeitos criados pela Lei n. 9.278/1996, se podem atingir as uniões iniciadas onze (11) anos antes de sua vigência. 298 Jurisprudência da QUARTA TURMA Sustentam, ademais, o que se poderia admitir em relação à comunhão dos bens é unicamente a presunção do esforço comum quanto aqueles adquiridos após a vigência da Lei n. 9.278/1996, mas não em relação aos absorvidos anteriormente ao advento do referido diploma legal. Asseveram que o de cujus, quando se uniu a recorrida, já era advogado de renome, fundador de um dos maiores escritórios de advocacia trabalhista do Paraná. Expõem ter havido o prequestionamento da tese recursal, todavia, caso se entenda que não houve, requerem a anulação do acórdão dos embargos de declaração, por violação do artigo 535 do Código de Processo Civil. Em contrarrazões, afirma a recorrida que: a) o recurso veicula tese contrária à jurisprudência do STJ; b) não houve demonstração da divergência jurisprudencial; c) não houve violação do princípio da irretroatividade da lei, pois a união foi extinta pelo falecimento do companheiro após a vigência da Lei n. 9.278/1996. Opina o Ministério Público Federal pelo “improvimento do presente recurso”. É o relatório. VOTO VENCIDO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Preliminarmente, observo que, conforme decidido à fl. 238 pelo ilustre Vice-Presidente do Tribunal de origem, não é caso de retenção do recurso especial, pois a decisão recorrida apreciou a tese de mérito central, que constitui a causa de pedir da ação, de modo que a decisão interlocutória enseja o exaurimento do objeto do próprio recurso especial (nesse sentido, são os seguintes precedentes: AgRg na MC n. 18.176-DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma; REsp n. 966.163-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma). Ademais, a questão tem reflexos no inventário que, segundo narrado pela autora na inicial, encontra-se em trâmite em outro Juízo, visto que os bens que pertencerem à companheira não integram o acervo hereditário: Direito Civil e Processual Civil. Família e sucessões. Inventário e partilha. Agravo de instrumento. Tempestividade e correta formação do recurso. Reserva de bens sobre a provável meação da ex-companheira anteriormente deferida. Posse e administração dos bens que a integram. Princípio da dignidade da pessoa humana. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 299 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. Consiste o litígio entre o inventariante, sobrinho do falecido, e aquela que afirma ser ex-companheira do autor da herança, pelo período de 37 anos, até seu falecimento, tendo por base fática a estabelecida pelo TJ-BA, no sentido de que é alta a probabilidade de que a união estável perdurou o tempo aludido, pendente ainda de julgamento ação para o seu reconhecimento. 2. A administração pelo inventariante do acervo hereditário, tornado indivisível pelas regras do Direito das Sucessões, não esbarra no direito de meação, este oriundo do Direito de Família, e que é conferido ao companheiro quando da dissolução da união estável ou pela morte de um dos consortes. 3. O art. 1.725 do CC/2002 estabelece o regime da comunhão parcial de bens para reger as relações patrimoniais entre os companheiros, excetuando estipulação escrita em contrário. Assim, com a morte de um dos companheiros, do patrimônio do autor da herança retira-se a meação do companheiro sobrevivente, que não se transmite aos herdeiros do falecido por ser decorrência patrimonial do término da união estável, conforme os postulados do Direito de Família. Ou seja, entrega-se a meação ao companheiro sobrevivo, e, somente então, defere-se a herança aos herdeiros do falecido, conforme as normas que regem o Direito Sucessório. 4. Frisa-se, contudo, que, sobre a provável ex-companheira, incidirão as mesmas obrigações que oneram o inventariante, devendo ela requerer autorização judicial para promover qualquer alienação, bem como prestar contas dos bens sob sua administração. 5. Recurso especial conhecido, mas não provido. (REsp n. 975.964-BA, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.2.2011, DJe 16.5.2011). Outrossim, o acórdão recorrido obtempera a respeito do perigo de dano de difícil reparação: Entretanto, se não for apreciado o agravo de instrumento transformando-o em retido, tudo indica, que as ora Agravantes, como herdeiras da herança, poderão ter um prejuízo irremediável, pois estes bens uma vez partilhados pertencerão aos seus respectivos beneficiários, nada impedindo a alienação, o que exigiriam delas um enorme esforço jurídico para tentar recuperar o prejuízo. Destarte, o presente recurso deve ser apreciado como agravo de instrumento, para que se evite às Agravantes, lesão grave e de difícil reparação. (fl. 163) 3. A questão controvertida consiste em saber se podem ser aplicadas as mesmas regras da Lei n. 9.278/1996, no que tange à comunhão de bens adquiridos por união estável (“concubinato puro”) iniciada antes de sua vigência, mas que perdurou e encerrou-se em outubro/1998, com a morte do varão. A decisão de primeira instância dispôs: 300 Jurisprudência da QUARTA TURMA A persistência em produzir provas inúteis, me obriga a antecipar a questão de mérito. O que se busca com a presente ação é tão somente o reconhecimento da união estável com os efeitos patrimoniais sobre a meação dos bens adquiridos durante a união. No máximo, além do reconhecimento da união, será decidido se os bens indicados na exordial foram adquiridos durante a união e podem ser objeto de partilha no inventário. [...] 3) Outrossim, cumpre destacar que qualquer prova no sentido de saber se a autora tinha condições de contribuir financeiramente para a formação do patrimônio é irrelevante, pois uma vez reconhecida a união estável, se aplica a regra da comunhão parcial. Irrelevante o elemento dependência econômica para a configuração da união livre estável, ao contrário do sistema anterior em que a divisão dependia da prova de colaboração conjunta para a formação do acervo patrimonial. [...] Cumpre destacar que a Lei n. 9.278/1996 aplica-se às uniões estáveis existentes quando da sua vigência, ainda que iniciada a convivência anteriormente, mas não atinge as relações extintas até 29.12.1994. Como no presente caso a união inicouse em 1984 e somente se extinguiu em 1998, por certo a ela se aplicam as regras do § 3º, do artigo 226 da CF., posteriormente regulamentada pela Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996 e atualmente pelo artigo 1.723 do Código Civil. (fls. 28-30). O acórdão recorrido, por seu turno, consigna: Quanto ao mérito, sem razão as ora Agravantes, que tentam crer que a ora Agravada não possui direito a meação, sob o pressuposto que a união estável foi constituída anteriormente a Lei n. 9.278/1996, necessitando de prova da contribuição efetiva da companheira nos bens adquiridos durante a união estável. Dispõe o artigo 5º, da Lei n. 9.278/1996, que: Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou pro ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrário e em contrato escrito. Conforme denota-se dos autos, a união estável do casal já existia desde 1985, e durante a vigência da união estável do casal, presumi-se que os bens foram contraídos pelo esforço de ambos. Por outro lado, não há como acolher a pretensão das Agravantes, de que a Lei somente regularia situações futuras, não podendo ter seus efeitos estendidos em relações anteriores a sua vigência, ainda que essas relações jurídicas tivessem continuidade após o nascimento da Lei. [...] RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 301 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Desta feita, percebe-se que a Lei n. 9.278/1996 tem aplicação imediata e geral, inclusive para as uniões estáveis surgidas anteriormente a sua publicação, conseqüentemente deve ser aplicada ao caso concreto, pois, frisa-se a convivência more uxório começou em 1985 e teve seu término em 1998, com o falecimento do companheiro J. R. Dessa forma, é irrelevante saber se a Agravada tinha condições de contribuir financeiramente para a formação do patrimônio, afinal uma vez reconhecida a união estável se aplica a regra da comunhão parcial. Assim, tendo em vista que os bens foram adquiridos por esforço comum dos conviventes, agiu bem o Magistrado (....) [...] A douta Procuradoria Geral de Justiça, em seu parecer de fls. 134-146, esgotou o tema, pois vejamos: “É totalmente sem suporte algum tal teoria levantada pelas agravantes, uma vez que era aplicada ao caso sub judice as regras da união estável apontada na Lei n. 9.278/1996 (atualmente é o Código Civil de 2002) que não estabelecia prazo mínimo para constituição de uma união estável, devendo esta ser apenas duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família, conforme estabelece o art. 1º da referida Lei, não apontando qualquer lapso temporal mínimo para sua constituição. Outrossim, mesmo que fosse aplicada a Lei n. 8.971/1994, que estabelecia que o prazo mínimo para que se constituísse uma união estável era de cinco anos, sabe-se que a sentença que reconhece a união estável é uma sentença declaratória e que, portanto, tem seus efeitos ex tunc, retroagindo a data do início do convívio, sendo absurdo pensar que a união estável só teria início após os cinco anos. Portanto todo patrimônio adquirido por qualquer dos companheiros a título oneroso deve ser partilhado entre ambos” (fls. 145-146) Diante do exposto, voto pelo desprovimento do agravo de instrumento, mantendo-se inalterada a decisão monocrática, por esses e por seus próprios fundamentos. (fls. 164-168). Não controvertem as partes, portanto, quanto ao fato de que houve união estável entre o genitor das recorrentes e a recorrida, no período de 1985 a 1998, tendo a convivência se findado em decorrência do falecimento daquele. 3.1. O concubinato, anteriormente à Constituição Federal de 1988 (que reconhece, no artigo 226, § 3º, a união estável como entidade familiar) e às Leis n. 8.971/1994 e n. 9.278/1996, já era realidade social reconhecida pela jurisprudência, inclusive do STF, que editara várias súmulas dispondo a respeito do tema. Igualmente, havia normas infraconstitucionais dispondo a respeito de algumas questões relativas ao concubinato, bem como a Súmula n. 159 302 Jurisprudência da QUARTA TURMA - do extinto TFR -, a qual estabelecia que “é legitima a divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos”. Como havia lacuna na legislação, nos termos dos artigos 126 do Código de Processo Civil e 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o caso deve ser solucionado de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Com efeito, para colmatar a lacuna, o STF veio a editar o Enunciado da Súmula n. 380-STF, no já distante ano de 1964: As lacunas voluntárias ou intencionais são as que o legislador, propositadamente, deixa em aberto, porque a matéria, por ser assaz complexa, exigiria normas excessivamente minuciosas ou porque, por não se sentir em condições adequadas, entende ser mais propício confiar ao juiz a missão de encontrar a norma mais específica. As não-intencionais ou involuntárias são as que podem surgir quando o elaborador da norma não observou o direito cabalmente (lacuna da previsão), seja porque a matéria não existia na época (lacuna desculpável), seja porque não examinou o caso corretamente (lacuna indesculpável). Por outras palavras, as lacunas podem ser intencionais ou involuntárias conforme resultem da deliberação do legislador em não regular certas situações por não reputá-las amadurecidas, deixando-as entregue à decisão judicial, ou da omissão decorrente da pouca visão do elaborador de normas. [...] Endossando essas idéias, podemos dizer que a elaboração das normas individuais, no cumprimento da missão integradora, não é uma criação autônoma do juiz, mas conforme o sistema, recorrendo-se tão-somente às pautas autorizadas pela norma. Além disso, o processo judicial não tem por escopo acabar com ressentimentos, eliminar conflitos, mas pôr-lhes fim. A decisão, em seu conceito moderno, soluciona uma questão sem eliminá-la, pois ressentimentos, decepções não podem ser institucionalizados. A decisão jurídica distingue-se das demais, porque é idônea para terminar conflitos, pondo-lhes um “fim”. Pôr fim não quer dizer eliminar incompatibilidades; significa tão-somente que os conflitos não podem mais ser retomados no plano institucional (coisa julgada), não tendo, portanto, o poder de eliminar as dúvidas, que podem subsistir após a decisão dos conflitos. (DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, ps. 87 e 106) Dessarte, embora seja certo que, anteriormente às Leis n. 8.971/1994 e n. 9.278/1996, não havia normatização dispondo a respeito dos bens adquiridos durante a sociedade conjugal; existia, inequivocamente, o reconhecimento RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 303 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de que da união exsurgia direitos de natureza patrimonial, que deveriam ser reconhecidos, no caso de sua dissolução. A doutrina esclarece: Desfeito o equívoco de que união estável não é família, ela deixa o campo meramente do Direito das Obrigações para ser tratado, convenientemente, pelo Direito de Família. É Orlando Gomes, muito antes da Constituição de 1988, quem nos garante: “Não deixam de ser de família as relações ente concubinos e entre eles e sua prole”. Não é o ato formal de casamento que que realmente interessa ao Estado, mas o que ele representa como forma de união duradoura entre um homem e uma mulher para finalidades essenciais à vida social (...). Da mesma forma não se pode condenar a política de reconhecimento dos efeitos da união livre, em nome de falsos pressupostos éticos. [...] Nas palavras do cientista de Direito João Baptista Villela, em trabalho intitulado Concubinato e Sociedade de Fato: fenômeno presumivelmente tão antigo quanto as primeiras manifestações gregárias do ser humano, o concubinato adquiriu na sociedade contemporânea, depois de ter sido exorcizado, a princípio pelo casamento e logo depois pelo casamento civil, ampla extensão e importância decididamente singular. Esta importância tem sido cada vez mais absorvida pelo Direito. Podemos observar isto, principalmente, pelas decisões dos Tribunais, que são os grandes responsáveis pelo estabelecimento dos parâmetros de proteção a estes casamentos informais, já que a normatização e textos legislativos esbarra em dificuldades e contradições, como se disse no capítulo anterior. As tendências e as tentativas de estabelecer os efeitos da união estável são sempre no sentido de equipará-la a um casamento oficial, fazendo-se uma analogia às regras definidas de um casamento civil, mas com as peculiaridades e os cuidados morais, às vezes até mesmo moralistas, de cada Tribunal. Podemos dizer, então, que de um casamento informal, ou seja, de uma união estável, estabelecem-se relações pessoais e patrimoniais com conseqüentes efeitos jurídicos. [...] Provavelmente, os motivos pelos quais se opta pelo não-casamento transcendem uma simples escolha consciente, se considerarmos os efeitos jurídicos das relações pessoais de união estável. 304 Jurisprudência da QUARTA TURMA [...] Mas o que está no cerne dessa relação é a comunhão de afetos, e esta não se rompe sem dor, sem sofrimento. [...] Alguns autores chegam a enumerar como causa da opção pela união estável alguns fatores de ordem prática e de conveniência, como leis previdenciárias que favorecem a mulher solteira e viúvas pensionistas, empresas que não admitem mulheres casadas etc. [...] Apesar de todas as tentativas de regulamentar este tipo de relação, não há, no Direito brasileiro, um estatuto que discipline ou regule por completo a união estável. [...] Os textos legislativos, ou dispositivos em leis esparsas, surgiram em decorrência de uma evolução jurisprudencial, como as normas em matéria previdenciária ou os dispositivos da lei de locação. Os efeitos patrimoniais dessas relações foram demarcados, em nosso Direito, principalmente pela jurisprudência. Esta, por muito tempo, foi vacilante em relação à matéria. [...] O “espírito” jurisprudencial sobre o direito concubinário, para suas conseqüentes repercussões patrimoniais, teve como esteio, por muito tempo, três súmulas do Supremo Tribunal Federal, que contêm os elementos balizadores e refletem uma evolução que se vem fazendo. [...] A partir daí temos os elementos referenciais, nos quais os Tribunais sempre se pautaram. É certo que há posições diferenciadas sobre o assunto e mesmo interpretações menos e mais extensivas sobre essas súmulas. Por exemplo, quando se fala, na Súmula n. 380, em “esforço comum” para efeitos de partilha, o entendimento mais recente é de que não é necessário que a contribuição de uma das partes tenha sido financeira. Basta que uma delas tenha dado suporte doméstico para que a outra pudesse construir ou realizar, ou seja, basta que tenha sido uma contribuição indireta. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, ps. 50-65). A começar de 1950, alcançou a matéria grande desenvolvimento, gerando debates e dirigindo-se para o reconhecimento do direito da mulher – (...) chegando a culminar no Supremo Tribunal Federal que, num dos muitos julgamentos, assentou: “A jurisprudência do STF predomina no sentido de RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 305 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que se for reconhecida no curso da união livre more uxorio a existência de uma sociedade de fato, pela conjugação de esforços entre os concubino na formação do patrimônio, tem direito a mulher à partilha dos bens. A medida maior ou menor da colaboração da mulher naqueles esforços é secundária e se reconhecida pelo Tribunal que julgou os fatos, não pode ser reexaminada em recurso extraordinário”. Ao homem se estendeu o mesmo direito, em tempos pretéritos: “O concubinário tem o direito de pleitear a partilha dos bens do casal, adquiridos com as economias de ambos durante a mancebia”. Ficou praticamente cristalizado o direito com a Súmula n. 380 do STF, que assegurava: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. [...] Foi com a Constituição Federal de 1988 que se tornou dogma o direito a ponto de inserir o concubinato estável em uma forma de família, proclamando o artigo 226, § 3º: [...] Nada mais fez a Carta Federal que reconhecer um fenômeno social comum e generalizado em todo o país, tornando-se necessária a sua regulamentação. Seguiram-se, nesse intento, a Lei n. 8.971, de 29.12.1994, tratando dos direitos dos companheiros a alimentos e a sucessões; e a Lei n. 9.278, de 13.5.1996, com regras sobre a conversão da união estável em casamento. [...] Não entram na comunhão, os bens que um dos conviventes trouxe, o que é um paradigma universal, segundo revela Humberto Ruiz: [...] No mínimo há de se comprovar a presença do convivente no lar, dando suporte à vida do outro convivente, nem que seja em atividades domésticas, como desde o início pontifica na antiga jurisprudência: [...] O Superior Tribunal de Justiça implantou essa mesma linha: “Constatada a contribuição indireta da ex-companheira na constituição do patrimônio amealhado durante o período de convivência more uxório, a contribuição consistente na realização das tarefas necessárias ao regular gerenciamento da casa, aí incluída a prestação de serviços domésticos, admissível o reconhecimento da existência da sociedade de fato e conseqüente direito à partilha proporcional”. Este o ponto de vista defendido por Álvaro Villaça Azevedo, autor do anteprojeto da Lei n. 9.278, reportando-se em vasta jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: 306 Jurisprudência da QUARTA TURMA “Mesmo a admitir-se, com a citada Súmula n. 380, que é indispensável o esforço comum dos concubinos nessa formação do seu patrimônio, há que entender-se esse esforço em sentido amplo, pois nem sempre ele resulta de natureza econômica, podendo implicar estreita colaboração de ordem pessoal, às vezes de muito maior valia”. Realça-se, no Superior Tribunal de Justiça, “a contribuição indireta” do (a) companheiro (a), podendo essa contribuição consistir “na realização das tarefas necessárias ao regular gerenciamento da casa, aí incluída a prestação de serviços domésticos”. Importa, ainda, que, durante a administração do lar por qualquer um dos conviventes, se formem ou ampliem as economias das quais resultará o patrimônio comum, o que não acontece na hipótese do companheiro ou da companheira, antes da união de fato, já ser rico e não tendo havido, posteriormente, um acréscimo de bens em virtude da concorrência, na sua formação, da outra pessoa a quem se ligou. (RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, ps. 913-925). A jurisprudência do STF, sintetizando as decisões retiradas das Cortes locais, firmou, nas suas súmulas, as seguintes teses em relação ao concubinato: a) Súmula n. 382: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”. b) Súmula n. 35: “Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina tem direito a ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio”. c) Súmula n. 380: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. [...] A Constituição Federal de 1988 elevou a união estável entre o homem e a mulher ao status de entidade familiar, a merecer a proteção do Estado. [...] A inovação foi amplamente louvável. Como afirmamos antes, não era possível ignorar o concubinato. [...] O Min. Carlos Alberto Direito, em trabalho a respeito da matéria, afirmou que: “Ora, se a união estável é entidade familiar, como determinado pela Constituição, não se pode mais tratar a união entre homem e a mulher, sem o ato civil do casamento, como sociedade de fato, ou concubinato, eis que não se trata mais de mancebia, amasiamento, mas de entidade familiar. [...] RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 307 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Tivemos o ensejo de historiar a evolução do concubinato/união estável, evidenciando que, por longo tempo, só ensejou restrições por parte do legislador e que, finalmente, a partir da década de 1960, quando ainda não se admitia o divórcio em nosso país, a doutrina e a jurisprudência foram, aos poucos, afastando as sanções que pesavam sobre a relação entre companheiros, especialmente quando não envolvendo o adultério, com a conseqüência de admitir que os efeitos patrimoniais de uma sociedade de fato deveriam ser reconhecidos mesmo quando tinha suas origens na coabitação entre um homem e uma mulher que, embora não casados, viviam como se o fossem. Na mesma fase houve uma evolução quanto aos direitos não patrimoniais, admitindo-se, em virtude da Lei n. 6.515, de 26.12.1977, que a concubina pudesse usar o nome do companheiro no caso de união estável. [...] Na realidade, também surgiram dúvidas quanto ao efeito imediato do art. 226, § 3º, da CF, entendendo alguns que a sua vigência deveria depender de regulamentação pela lei ordinária, enquanto outros preferiam considerá-lo de caráter auto-aplicável. [...] Para maior segurança jurídica, formou-se rapidamente um consenso no sentido de ser aconselhável a elaboração de uma lei que completasse o texto constitucional, permitindo a uniformização da jurisprudência e o consenso da doutrina. Foi respondendo a esses anseios do mundo jurídico que veio a ser aprovada a Lei n. 8.971, de 29.12.1994, que introduziu definitivamente o concubinato no direito de família e no direito sucessório. (WALD, Arnold. O Novo Direito de Família. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, ps. 297-305). Além disso, antes mesmo da edição dessas duas Leis da entidade familiar, a doutrina e a jurisprudência vinham concedendo aos companheiros os mesmos direitos dos casados, não havendo razoabilidade, pois, em edificar-se um retrocesso social. [...] Porém, se a entidade familiar foi desfeita antes da Constituição Federal de 1988, aí não poderão ser aplicadas as Leis n. 8.971/1994, n. 9.278/1996 e o Código Civil de 2002, visto que somente a partir da maior Carta Jurídica do País é que foi criado um estatuto legal, que resguardou os direitos dos casados aos companheiros. Em outros termos, se a união estável foi criada e dissolvida antes da Constituição Federal de 1988, aplica-se o Direito das Obrigações. Agora, se a entidade familiar foi criada e desfeita a contar da Carta Magna, ou, ainda, se edificada e rompida durante a vigência dessa Carta Cidadã, aí sim se aplicam todas as regras do Direito de Família. (WELTER, Pedro Belmiro. Estatuto da União Estável. 2 ed.: Porto Alegre: Síntese, 2003, ps. 111-113). 308 Jurisprudência da QUARTA TURMA 3.2. Desse modo, não é despiciendo consignar que, em data mais próxima ao início do concubinato mantido pela recorrida e o de cujus - e, portanto, da realidade social dentro da qual foi mantida a união estável, o legislador, suprindo a omissão de outrora, veio a regular a matéria. As Leis n. 8.971/1994 e n. 9.278/1996 vieram a regulamentar as matérias relativas à união estável, atinentes aos alimentos, sucessão e ao regime de bens. Prescreve o artigo 5º da Lei n. 9.278/1996, dispositivo tido por violado: Art. 5º Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito. Como bem observa Reinaldo Franceschini, no que diz respeito ao patrimônio, em relação à jurisprudência dos Tribunais pátrios, esse dispositivo apenas explicitou a presunção de que a aquisição decorreu do esforço comum: No que diz respeito ao patrimônio, o art. 5º da referida lei trata dos bens móveis e imóveis adquiridos pelos conviventes na constância da união estável e a título oneroso, considerando-os fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação escrita em contrário. O disposto neste artigo já era o entendimento do Judiciário, externado na Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal. Com a redação do art. 5º da Lei n. 9.278/1996, criou a presunção de que o patrimônio adquirido durante a união estável foi gerado pelo esforço comum, devendo ser partilhado em partes iguais, na hipótese de dissolução da união estável, caso não tenha sido ajustado nada em sentido contrário, por escrito. Essa presunção é relativa, como ressalva Euclides Benedito de Oliveira, pois o condomínio se exclui por estipulação contratual em contrário, e pode haver a hipótese de o bem ter sido adquirido com o produto da venda de outros adquiridos anteriormente à união. (FREIRE, Reinaldo Franceschini. Concorrência Sucessória na União Estável. Curitiba: Juruá, 2009, p. 38). Rodrigo da Cunha Pereira, com propriedade, pondera que a presunção do esforço comum é um tardio reconhecimento ao papel historicamente desempenhado pelas mulheres na sociedade brasileira, visto que significa conferir o necessário e merecido valor ao suporte doméstico (esforço indireto) prestado pelo convivente que, evidentemente, não se restringe ao mesmo trabalho realizado por uma empregada doméstica: RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 309 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O “espírito” jurisprudencial sobre o direito concubinário, para suas conseqüentes repercussões patrimoniais, teve como esteio, por muito tempo, três súmulas do Supremo Tribunal Federal, que contêm os elementos balizadores e refletem uma evolução que se vem fazendo. [...] A partir daí temos os elementos referenciais, nos quais os Tribunais sempre se pautaram. É certo que há posições diferenciadas sobre o assunto e mesmo interpretações menos e mais extensivas sobre essas súmulas. Por exemplo, quando se fala, na Súmula n. 380, em “esforço comum” para efeitos de partilha, o entendimento mais recente é de que não é necessário que a contribuição de uma das partes tenha sido financeira. Basta que uma delas tenha dado suporte doméstico para que a outra pudesse construir ou realizar, ou seja, basta que tenha sido uma contribuição indireta: [...] Com isto e sempre refletindo as alterações dos costumes, o Superior Tribunal de Justiça, por sua 4ª Turma, em acórdão do Ministro Fontes de Alencar, inclinou-se a adotar a posição mais liberal, reconhecendo a contribuição indireta para a formação do patrimônio formado durante a relação conbinária, na seguinte decisão em um Recurso Especial: [...] Parece-nos ser mesmo esta a posição mais moderna do Direito corroborada mais de uma vez pelo Superior tribunal de Justiça. [...] O significado e a importância da contribuição indireta estão muito além das relações decorrentes de uma união estável. Este entendimento significa o reconhecimento do necessário suporte doméstico, historicamente dado pelas mulheres. Significa atribuir um conteúdo econômico a esse tão desvalorizado trabalho. A atribuição de um “valor econômico” a esse trabalho significa dar-lhe seu merecido valor. [...] Suporte doméstico não significa as tarefas desenvolvidas muitas vezes por uma “empregada doméstica”. É muito mais que isso. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, ps. 50-65). 3.3. No caso, são possíveis, em tese, duas soluções jurídicas para o período de vazio legal, isto é, anteriormente ao instituto jurídico da união estável: adotar a literalidade da vetusta Súmula n. 380-STF, ou aplicar as regras da lei que veio a ser editada no decurso do concubinato. No que tange à Súmula n. 380-STF, embora não se cuide de regra legal, o escólio de Eros Roberto Grau é valioso para a compreensão de seu texto contemporaneamente: 310 Jurisprudência da QUARTA TURMA 33. A atualização do direito Um outro aspecto reclama ponderação. É que a interpretação do direito encaminha a atualização do direito. Ela sempre, necessariamente, se dá no quadro de uma situação determinada e, por isso, deve expor o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente (não no contexto da redação do texto). Todo texto pretende ser compreendido em cada momento e em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Isto - observa Marí [1991:243] - e a afirmação de Gadamer, de que compreender e aplicar constituem o anverso e o reverso de uma mesma medalha. As leis - segundo Gadamer [1991:380 e ss.] - não pretendem ser interpretadas historicamente, cabendo à interpretação torná-las concretas em sua validade jurídica. O texto deve ser compreendido em cada situação concreta de maneira nova e distinta. A mobilidade histórica da compreensão, relegada a segundo plano pela hermenêutica romântica, representa o verdadeiro centro de uma hermenêutica adequada à consciência histórica (o intérprete tem de apreender a tensão natural entre o momento da construção do texto - o passado- e o momento da construção da norma - o presente- e, assim, enfrentar a mobilidade da situação concreta à qual se há de aplicar essa norma) [p. 380]. O intérprete não pretende outra coisa senão compreender o texto, compreender o que diz a tradição e o que dá sentido e significação a ele. Para compreender isso não lhe é dado querer ignorar-se a si próprio e à situação hermenêutica em que se encontra. Está obrigado a relacionar o texto a esta situação, se é que pretende discernir algo nele [p. 396]. [...] Pelo contrário, está obrigado a reconhecer que as circunstâncias sofreram alterações e, conseqüentemente, a determinar em novos termos a função normativa da lei [pp. 389-390]. A tarefa da interpretação consiste em dar concreção à lei em cada caso, isto é, em sua aplicação. Linhas acima afirmei que se dá na interpretação de textos normativos algo análogo ao que se passa na interpretação musical. Não há uma única interpretação correta (exata) da Sexta Sinfonia de Beethoven: a Pastoral regida por Toscanini, com a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por Von Karajan, com a Filarmônica de Berlim. Não obstante uma seja mais romântica, mais derramada, a outra mais longilínea as duas são autênticas - e corretas. Mais do que isso ocorre, pois se altera, no tempo, o “modo de ouvir” as sinfonias, de modo que poderíamos dizer que o intérprete da Sexta Sinfonia a interpreta em coerência com as circunstâncias determinantes dessas alterações no “modo de ouvir” a música, e - paradoxalmente - a interpretação, hoje, sob a regência do RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 311 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA próprio Beethoven, da Sexta Sinfonia não seria tida como correta (...) (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, ps. 120-122). A matéria, relativa à regulação de fatos pretéritos do concubinato puro, com base na solução ulteriormente conferida pelo legislador, foi apreciada por este colegiado no julgamento do REsp n. 397.168-SP, assim ementado: Civil. Recurso especial. União estável. Herança. Falecimento do companheiro sem ascendentes ou descendentes. Aplicabilidade da Lei n. 8.971/1994 a fatos pendentes. Possibilidade. Sociedade de fato. Comunhão de aqüestos. Inexistência de retroatividade (art. 6º da LICC). 1 - A união estável, quer antes, quer depois da edição da Lei n. 8.971/1994, gera direitos e obrigações, já que é um fato jurídico, e, como tal, desafia a proteção estatal. Logo, tais relações foram equiparadas as sociedades de fato, sendo os bens sujeitos ao chamado regime de comunhão de aqüestos. 2 - Se tal relação, que se perpetua durante um longo período, configura-se pelo animus que inspira os companheiros a viverem como casados fossem, não se pode alegar que a Lei n. 8.971/1994, ao regular a matéria acerca dos alimentos e da sucessão de tais pessoas, somente surtiria efeitos futuros, deixando ao desabrigo toda a construção legislativa e pretoriana de que se tem noticia. Inexistindo referência na lei do termo inicial da contagem do prazo qüinqüenal para aquisição do direito, deve-se aplicá-la, revestida que é do caráter benéfico, a todos os fatos pendentes. 3 - Assim, no caso concreto, já que dúvidas não há nos autos de que a autora era companheira do falecido por longos 07 (sete) anos; que o mesmo não deixou descendentes e ascendentes; que nos termos da lei esta é herdeira da totalidade dos bens deixados (art. 2º, III, da Lei n. 8.971/1994), porquanto a mesma atinge as situações pendentes; não há que se falar em violação ao art. 6º da LICC. 4 - Recurso não conhecido. (REsp n. 397.168-SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 26.10.2004, DJ 6.12.2004, p. 315). No mencionado precedente, relatado pelo eminente Ministro Jorge Scartezzini, Sua Excelência - mencionando precedentes desta Corte e do STF, da relatoria do Ministro Moreira Alves conferindo solução que destoa da literalidade da Súmula n. 380-STF - alertou que, desprezar o disposto na Lei n. 8.971/1994, significaria “deixar ao desabrigo toda a construção legislativa e pretoriana de que se tem noticia”: 312 Jurisprudência da QUARTA TURMA Inicialmente, anoto que o cerne da questão no presente recurso especial cinge-se na aplicabilidade imediata ou não da Lei n. 8.971/1994 aos direitos sucessórios das pessoas que vivem no regime de comunhão estável. A comunhão de bens entre marido e mulher, ou entre companheiros, não tem antecedentes romanos, como alguns pensam (Digesto XXXIV, 1, 16, 3), mas sim, têm suas origens nos costumes germânicos da idade média (in, “Direito de Família”, SILVIO RODRIGUES, p. 165). Chegou ao nosso ordenamento, através das Ordenações Afonsinas (Livro 4, Título 12, parág. 5º) e, posteriormente, as Manuelinas e Filipinas. Antes mesmo da edição da Lei n. 8.971/1994 e da própria Constituição Federal da 1988, mais exatamente a cinco decênios, a jurisprudência pontificou o reconhecimento da sociedade de fato entre concubinos para fins patrimoniais, havendo inclusive, verbete sumular no Pretório Excelso (Súmula n. 380-STF). Alguns dizem que os direitos da concubina ou da companheira são frutos da criação jurisprudencial, consolidados pela Magna Carta de 1988. Todavia, conforme ensina-nos ANTÔNIO CHAVES (in, RT 623/13), “(...) assim terá sido a princípio. Mas José Tavares (‘O Concubinato’, Suplemento Jurídico do DER, PJ, 108, julho-setembro/1982) enumera a série de textos legais que já regulamentam a matéria: reconhecimento de filhos (Lei n. 6.515, de 26.12.1977); Lei de Acidentes do Trabalho (Dec.-Lei n. 7.036, de 10.11.1944); seguro de acidentes do trabalho (Lei n. 6.367, de 19.10.1976); renda do presidiário (Lei n. 2.699, de 17.6.1954); em matéria previdenciária (Lei n. 4.297, de 23.12.1963), Dec. n. 76.022, de 24.7.1975 e n. 77.077, de 24.1.1976; salário-família do funcionário público, a pensão de viúva, tanto a de servidor com a de empregado vinculado ao Sistema da Previdência Social, e o imposto de renda (onde a concubina pode ser considerada dependente para efeitos de isenção) (...)”. Desta forma, dúvidas não há que a união estável, quer antes, quer depois da edição da Lei n. 8.971/1994, irradia direitos e obrigações, já que é um fato jurídico, e, como tal, desafia a proteção estatal. Logo, equiparou-se tais relações as sociedades de fato, sendo os bens sujeitos ao chamado regime de comunhão de aqüestos. MOURA BITTENCOURT, com precisão, assevera acerca da colaboração da companheira na aquisição ou manutenção dos bens, o seguinte: Se o dever de consciência não chega a ditar o cumprimento da obrigação natural, pelo espontâneo atendimento, - terá lugar a obrigação jurídica. Os repertórios de jurisprudência dão notícia de decisões assim norteadoras. É suficiente a permanência da concubina no lar, nas lides domésticas, em cooperação útil e, só com isso, reconhecem-se efeitos patrimoniais à sociedade more uxorio, não se precisando exigir participação da companheira fora do lar, em trabalho produtivo. Serve, pois, para demonstração da sociedade de fato a colaboração da concubina no lar, deduzida de uma abnegada vida em comum, ou da RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 313 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA convivência more uxorio, por muitos anos, já decidiu o Supremo Tribunal. (in, “Concubinato”, 3a. edição, 1985, p. 104). Na mesma esteira, ou seja, pela contribuição indireta, voto do ilustre Ministro Moreira Alves, in RSTJ 25/335, ao registrar que “(....) admite-se que essa colaboração possa decorrer do próprio labor doméstico, nos casos em que, graças à administração do lar pela mulher, se façam, ou se ampliem economias, graças as quais se forma o patrimônio comum”. Elucidativas, neste particular, as palavras do Ministro Athos Carneiro, quando Relator do REsp n. 13.785-PR: “Realmente, se do trabalho e da atividade de duas pessoas em conjunto surge um patrimônio, ou resultam acréscimos ao patrimônio já existente de uma delas, é evidente que no plano do direito das obrigações e do direito das coisas resultou um condomínio sobre o patrimônio surgido, ou sobre a parcela acrescida, pouco importando se um dos partícipes na formação do patrimônio já é casado, e pouco importando se os partícipes mantêm ou não convivência more uxório.” No mesmo sentido, os precedentes contidos nos REsp n. 60.073-DF, Rel. p/ acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, DJU 15.5.2000 e REsp n. 38.657-SP, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 25.4.1994. Logo, se a união estável se configura pelo animus que inspira os companheiros a viverem como casados fossem, não se pode alegar que a Lei n. 8.971/1994, ao regular a matéria acerca dos alimentos e da sucessão de tais pessoas, somente surtiria efeitos futuros, deixando ao desabrigo toda a construção legislativa e pretoriana de que se tem noticia. Inexistindo referência na lei do termo inicial da contagem do prazo qüinqüenal para aquisição do direito, deve-se aplica-la, revestida que é do caráter benéfico, a todos os fatos pendentes. Nesse passo, cabe destacar que, no caso, não há falar em conflito, pois isso só se poderia ser cogitado caso houvesse norma anterior versando acerca do patrimônio adquirido pelos conviventes, pois há “possibilidade de conflito somente entre duas normas positivas que se achem em pé de igualdade”. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 27) A doutrina esclarece esse fenômeno de aparente retroatividade da Lei: Realmente, fosse o “mundo jurídico” de outra natureza, e não seria possível falar-se em retroatividade, ao menos nesta acepção. No mundo físico ou material, ninguém pode “voltar ao passado”, de forma que aquilo que aconteceu não mais aconteça, ou aquilo que se processou de uma certa forma deixe de ter assim se processado. Não há como “retro-agir” neste particular campo da realidade. O mesmo, todavia, não acontece no universo dos fenômenos ideais. 314 Jurisprudência da QUARTA TURMA [...] Hoje, em pensamento, é perfeitamente possível se considerar que o passado não se fez idealmente realizar desta ou daquela forma, para os fins presentes que de momento se pretendem ver alcançados. É o que ocorre com o universo formado pelas normas jurídicas. Por serem realidades ideais, podem agir valorativamente sobre o passado, para disciplinar condutas no tempo presente. Valoram o que ocorreu no tempo anterior à sua própria existência, para hoje ditarem comandos ou prescrições acerca do que pode, deve ou não ser realizado de forma lícita. Tal constatação, aliás, nos é bem esclarecida, com inigualável maestria, por Gaetano Pace. Sustentando que a retroatividade deve sempre ser entendida como uma “valoração jurídica do passado” (“valutazione giurídica del passato”), afirma que “se la norma, come comando, é rivolta essenzialmente verso il futuro, la norma come valutazione (cioé come criterio di valutazione dei fatti umani), puó anche rivolgersi verso il passato”. Assim, acaba por concluir, “la valutazione retroattiva viene a consistere in uma nuova e diversa valutazione che si sostituisce a quella originária cioé in una rivalutazione giuridica”. Claro, assim, ao contrário do que parecem mesmo pensar alguns, a retroatividade de uma lei não implica que se pretenda “comandar” (dirigir comandos) o passado, visto que tal seria impossível. Sua “invasão” ao período anterior à sua vigência implica unicamente que juridicamente o passado será “valorado” diferentemente, para fins de que no presente sejam dadas de certa forma as condutas humanas que se pretende prescrever. Valorará um passado (positivo ou negativo), anteriormente considerado como juridicamente irrelevante, como relevante, (ou vice-versa); afirmará que os efeitos de um fato jurídico passado, definidos de acordo com a lei de seu tempo, passam a ser valorativamente outros, desde o início da sua projeção. [...] Seu conceito recai unicamente na função “valorativa” destas normas, e nunca propriamente na sua função de prescrever condutas, também chamada por alguns de “imperativa”. Por fim, para que não passe sem o devido realce, torna-se importante assentar a constatação que resta implícita em tudo que acabamos de afirmar, que é a de que a valoração que decorre da ação retroativa da lei nova é sempre uma ação jurídica modificadora do passado. Uma norma que em nada altera juridicamente o período que antecedeu a sua vigência não pode, por conseguinte, ser entendida como retroativa. [...] Realmente, sendo a lei o instrumento pelo qual se institui em um dado plano hierárquico do ordenamento jurídico certas normas de direito positivo, nada mais óbvio que o “agir retroativo” de um diploma legislativo seja, em última instância, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 315 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA o “agir sobre o passado” das próprias normas que o integram. E sendo assim, nada mais evidente, ainda, que o modus pelo qual uma norma valorativamente “invade” o período jurídico decorrido antes da sua vigência deva ser, em alguma medida, ditado pelos próprios elementos que constituem a sua estrutura. Donde decorrer a necessidade, para a precisa delimitação conceitual da retroatividade, do estudo dos componentes da norma jurídica que, em princípio, podem dar ensejo à própria configuração da ação pretérita de uma lei, em uma dada situação concreta de alteração legislativa. (CARDOZO, José Eduardo Martins. Da Retroatividade da Lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, ps. 257-260). Calha novamente a abalizada lição de Carlos Maximiliano, quanto aos fatos, que os classifica como “pendentes”, em regra, prevalece a norma recente. Outrossim, o renomado doutrinador observa que a norma recente, que reconhece um princípio de justiça ou que cria um novo instituto jurídico, aplica-se aos fatos pretéritos; fazendo, ainda, com menção à lição de Ihering, ponderação que reputo, no caso em apreço, irretorquível: “A conservação de institutos caducos, inspirada pelo respeito a indivíduo, não corresponde à idéia do Direito; ofende-a; porquanto, onde esta impera, tôda injustiça, uma vez reconhecida, cessa. Desarrazoado seria mantê-los, quando ‘não passam de máscaras vazias, das quais a vida se retirou desde que as doutrinas e os princípios aos quais êles deviam a existência, sucumbiram sob a anátema da História’.”: A lei aplica-se imediatamente. A regra, para o juiz, é fazer observar o Direito vigente, salvo nos casos em que o Direito revogado conserva uma certa ultraatividade. O princípio dominante consiste em que as leis novas se aplicam às relações jurídicas permanentes, ou constituídas depois de entrar em vigor a norma recente, isto é, as relações que surgem ou perduram na vigência do último diploma. (20) [...] 9- Retroatividade é o transporte da aplicação da lei a uma data anterior à de sua publicação, a ficção da preexistência da lei. [...] Não há conflito entre Costumes, nem entre Jurisprudências. [...] Efeitos de situações anteriores, os quais se desenvolvem ainda e não chegaram ao seu estado final antes do advento da lei nova, pela mesma se regem. [...] Quanto aos fatos pendentes (facta pendentia) em geral, prevalece a norma recente. Ocorrem quatro espécies ou possibilidades: a) situações jurídicas em 316 Jurisprudência da QUARTA TURMA curso de constituição no momento do advento da lei nova; b) situação jurídica em curso de efeitos, isto é, efeitos posteriores ao momento referido; c) situação jurídica em curso de extinção, ao tempo em que sobrevem o diploma modificador das condições de extinção; d) situações de puro fato, de caráter durável, que, na vigência das regras abrogadas, não haviam produzido a constituição, nem a extinção de uma situação jurídica, e que estavam ainda em curso ao surgirem os últimos mandamentos atribuindo-lhes aquêle poder de constituir ou extinguir. Nas quatro hipóteses formuladas a solução é uma só: imperam os derradeiros preceitos. [...] 44 - O excesso de cautela em evitar o parcel de retroatividade levaria o temeroso de Silas a esbarrar em Caribides; fugindo de um mal, cairia em outro, e maior: o direito do povo à vida, o da consciência geral de desenvolver-se e expandir-se, correria o risco de ser sacrificado pela superabundância de cuidados e atenções para com prerrogativas individuais. Um direito, embora concreto, que pretenda ilimitada, eterna duração, assemelhase á criança que levanta a mão contra a própria mãe; pois tôda franquia jurídica advém do perpétuo evolver. Aplica-se aos fatos que nasceram sob o domínio da lei antiga, a norma recente que reconhece um princípio científico ou de justiça: por exemplo, supressão da pena cominada para certos atos; investigação da paternidade. Não há direito adquirido no tocante a instituições, ou institutos jurídicos. Aplicase logo, não só a lei abolitiva, mas também a que, sem os eliminar, lhes modifica essencialmente a natureza. Em nenhuma hipótese granja acolhida qualquer alegação de retroatividade, posto que, às vêzes, tais institutos envolvam certas vantagens patrimoniais que, por equidade, o diploma último ressalve ou mande indenizar. 45 - A conservação de institutos caducos, inspirada pelo respeito a indivíduo, não corresponde à idéia do Direito; ofende-a; porquanto, onde esta impera, tôda injustiça, uma vez reconhecida, cessa. Desarrazoado seria mantê-los, quando “não passam de máscaras vazias, das quais a vida se retirou desde que as doutrinas e os princípios aos quais êles deviam a existência, sucumbiram sob a anátema da História”. Não se acoima de retroativa a aplicação integral e imediata de uma lei abolitiva da escravidão, da enfiteuse, do fideicomisso perpétuo, da hereditariedade de funções públicas, de equiparação de ginasios particulares aos oficiais. A norma que ampara os filhos naturais, observa-se em relação ao tempo anterior, favorece - a prole nascida antes da promulgação. [...] A lei criadora de um instituto jurídico observa-se com amplitude, sem restrição alguma; não há perigo de incorrer em retroatividade, de prejudicar situação RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 317 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA estabelecida. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, ps. 20-63). Fábio Ulhoa Coelho leciona que, pela analogia, o magistrado deve buscar no ordenamento uma norma que diga respeito à situação assemelhada, já que é de se pressupor que o Poder, com competência para disciplinar a matéria, tenderia a prestigiar os mesmos valores ou adotar iguais critérios aos que o inspiraram na edição de norma regulando situação semelhante: Pela analogia, o juiz deve buscar, no ordenamento em vigor, uma norma jurídica que diga respeito à situação semelhante à do caso em julgamento. Já que não existe nenhuma norma que trate especificamente do caso, determina a lei que o juiz se valha de norma aplicável a fatos assemelhados. O emprego da analogia pressupõe que a autoridade com competência para disciplinar em termos gerais aquela matéria, quando fosse fazê-lo, tenderia a prestigiar os mesmos valores ou adotar iguais critérios aos que a inspiraram na edição de outra norma para uma situação próxima. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: parte geral. 3 ed.: São Paulo, Saraiva, vol. 1, 2009, p. 75). No mesmo diapasão: Direito Civil. Previdência privada. Embargos de declaração no recurso especial. Benefícios. Complementação. Pensão post mortem. União entre pessoas do mesmo sexo. Princípios fundamentais. Emprego de analogia para suprir lacuna legislativa. Necessidade de demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização da união estável, com a evidente exceção da diversidade de sexos. Igualdade de condições entre beneficiários. [...] - Conquanto questionável a premissa constitucional fixada pelo TJ-RJ, de que o conceito de união estável não contempla uniões entre pessoas do mesmo sexo, o recurso especial trouxe debate diverso e sob viés igualmente distinto foi a matéria tratada no STJ, porquanto ao integrar a lei por meio da aplicação analógica do art. 1.723 do CC/2002, o acórdão embargado decidiu a temática sob ótica nitidamente diversa daquela adotada no acórdão recorrido sem necessidade de tanger o fundamento constitucional nele inserto, porque não definiu a união homoafetiva como união estável, mas apenas emprestou-lhe as consequências jurídicas dela derivadas. - Vale dizer, a decisão do STJ terá plena eficácia não sendo, de forma alguma, limitada em seu alcance pela fixação da tese constitucional, transitada em julgado, ainda que o STF viesse a referendar a conclusão de índole constitucional albergada pelo TJ-RJ. - Assim, inaplicável, na hipótese julgada, o entendimento da Súmula n. 126 do STJ, que apenas aponta a inviabilidade de recurso especial quando o recurso extraordinário que veicule idêntica temática for obstado na origem. Aí sim, 318 Jurisprudência da QUARTA TURMA ocorrendo efetiva prejudicialidade entre possível decisão do STJ e a existência, na origem, de fundamento constitucional inatacado, é de rigor a incidência do aludido óbice. - A embargante pretende, em suas ponderações, tão somente rediscutir matéria jurídica já decidida, sem concretizar alegações que se amoldem às particularidades de que devem se revestir as peças dos embargos declaratórios. - A tentativa obstinada no sentido de que incidam óbices ao conhecimento do recurso especial deve ser contemporizada quando em contraposição a matéria de inegável relevo social e humanitário. - Ao STJ não é dado imiscuir-se na competência do STF, sequer para prequestionar questão constitucional suscitada em sede de embargos de declaração, sob pena de violar a rígida distribuição de competência recursal disposta na CF/1988. Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no REsp n. 1.026.981-RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22.6.2010, DJe 4.8.2010). Nesse passo, é conveniente trazer novamente à baila as lições de Maria Helena Diniz e Eros Roberto Grau: A analogia legis ou individual, na terminologia de Karl Larenz, consiste na aplicação de uma norma existente destinada a reger caso semelhante ao não previsto, importando uma maior vinculação a uma determinada norma, partindo da similitude entre as hipóteses (prevista e não prevista) quanto a seus aspectos essenciais, chegando assim à conclusão da igualdade da conseqüência jurídica. Gostaríamos de trazer à colação os dizeres de Del vecchio: “merced a la analogía, el ámbito de aplicación de la ley, se extiende más allá del repertorio de caso, originariamente, previsto, con tal de que se trata de supuesto similar o afin a aquéllo, y siempre que la ratio legis valga igualmente para un y para otro”. A analogia legis apóia-se num dispositivo legal existente, que é aplicável à hipótese similar, constituindo-se, portanto, num argumento lógico, numa autêntica reconstrução normativa, produto, por um lado, de uma segurança e estabilidade jurídica e, de outro lado, da flexibilidade do direito. Procura encontrar um fundamento valorativo da norma que permita que nela se englobe a situação não regulada, que, por sua vez, apresenta certa semelhança com o fato contido nessa norma. (DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, ps. 87 e 106). 35. A “vontade do legislador” [...] A respeito dela Carlos Maximiliano [1957:33-51] produziu libelo contundente: “A lei não brota do cérebro de seu elaborador, completa, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 319 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA perfeita, como um ato de vontade independente, espontâneo” [p. 35]. “O legislador não tira do nada, como se fora um Deus; é apenas o órgão da consciência nacional” - daí por que pode a lei ser mais sábia do que o legislador (...) [...] “Em uma das forjas da lei, no Parlamento, composto, em regra, de duas Câmaras, fundem-se opiniões múltiplas, o conjunto resulta de frações de idéias, amalgamadas; cada representante do povo aceita por um motivo pessoal a inclusão de palavra ou frase, visando a um objetivo particular a que a mesma se presta; há o acordo aparente, resultado de profundas contradições. Bastas vezes a redação final resulta imprecisa, ambígua, revelando-se o produto da inelutável necessidade de transigir com exigências pequeninas a fim de conseguir a passagem da idéia principal” [p. 39]. “O projeto peregrina pelos dois ramos do Poder Legislativo, em marchas e contramarchas, recebendo retoques de toda ordem, a ponto de renegar afinal, espantado do aspecto definitivo da própria obra, o autor primitivo da medida. Como descobrir, naquele labirinto de idéias contraditórias e todas parcialmente vencedoras, a vontade, o pensamento, a intenção diretora e triunfante?” [p. 40]. [...] “Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o seu autor” [p. 48]. [...] A lei, aliás - o texto normativo, em verdade -, já foi dito, costuma ser mais inteligente do que o legislador. (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, ps. 124127). 4. O caso em julgamento é peculiar, pois há norma tratando da mesma situação jurídica que, inclusive, inequivocamente a abrange, pois o concubinato perdurou durante a sua vigência. Bem por isso, salta aos olhos a seguinte indagação: em havendo constatação de que havia inequívoca lacuna da lei a respeito da matéria em debate, é razoável conferir duas soluções para a mesma situação jurídica?! Ademais, cabe consignar haver também outra singularidade que reputo relevante: o artigo 5º, caput, da Lei n. 9.278/1996 previu que os conviventes poderiam dispor a respeito do patrimônio adquirido na constância da união para que, portanto, não se presumisse o esforço comum: 320 Jurisprudência da QUARTA TURMA Art. 5º Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito. § 1º Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união. § 2º A administração do patrimônio comum dos conviventes compete a ambos, salvo estipulação contrária em contrato escrito. Ora, se no período de incidência da Lei, o de cujus, que segundo aduzem as recorrentes, era advogado conceituado, não buscou afastar a presunção de haver um condomínio - no que tange ao acervo patrimonial obtido no decorrer da união - é prudente, e coerente com a autonomia da vontade, presumir, desprezando a solução oferecida pela lei, que quisesse afastar a presunção para o período de lacuna da lei?! 5. Ademais, em recente julgado da Segunda Seção, relativo ao EREsp n. 964.780-SP, ficou definido que, quando o legislador é silente a respeito do efeito temporal de determinado instituto jurídico que vem a ser consagrado pela lei (caso do instituto da união estável, criado para disciplinar o concubinato puro), por técnica de política judiciária, cabe ao Poder Judiciário suprir a lacuna: Processo Civil. Embargos de divergência em recurso especial. Deserção e ausência de representação processual inocorrentes. Civil. Propriedade industrial. Marca. Caducidade. Efeitos prospectivos (ex nunc). Finalidade da lei. [...] 3. Denomina-se técnica de política judiciária a discussão sobre a direção para frente (ex nunc) ou para trás (ex tunc) - e a extensão - limitada ou ilimitada - da atividade temporal dos efeitos de determinado instituto jurídico. Quando o legislador é silente acerca de sua definição, cabe ao Poder Judiciário preencher essa lacuna. Precedente do STF. [...] 6. A prospectividade dos efeitos da caducidade é a mais adequada à finalidade do registro industrial, pois confere maior segurança jurídica aos agentes econômicos e desestimula a contrafação. 7. Embargos de divergência acolhidos para prevalecer a orientação do REsp n. 330.175-PR, que reconhece efeitos prospectivos (ex nunc) da declaração de caducidade da marca industrial. (EREsp n. 964.780-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 10.8.2011, DJe 29.8.2011). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 321 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA No mencionado precedente, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, Sua Excelência dispôs: Antes de se fazer essa distinção, devemos compreender a finalidade que se pretende conferir à compreensão da mens legis. Essa finalidade é denominada técnica de política judiciária. Ou seja: quando o legislador não optou por definir de forma explícita a atividade temporal de determinado instituto jurídico, cabe ao Poder Judiciário delimitar sua direção – para frente (ex nunc) ou para trás (ex tunc) – e sua extensão – limitada a um ponto no tempo ou ilimitada. Essa técnica advém da jurisprudência da Corte Suprema dos Estados Unidos e foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 2.240-BA. Naquela situação, o STF – diante de uma situação fática consolidada no tempo (criação do Município Luis Eduardo Magalhães-BA) – debateu a atividade dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da lei estadual que formalizou o novo ente municipal. A precitada técnica foi esmiuçada no voto-vista do Min. Gilmar Mendes na seguinte passagem (fl. 315 do acórdão): (...) a jurisprudência americana evoluiu para admitir, ao lado da decisão de inconstitucionalidade com efeitos retroativos amplos ou limitados (limited retrospectivity), a superação prospectiva (prospective overruling), que tanto pode ser limitada (limited prospectivity), aplicável aos processos iniciados após a decisão, inclusive ao processo originário, como ilimitada (pure prospectivity), que sequer se aplica ao processo que lhe deu origem. Vê-se, pois, que o sistema difuso ou incidental mais tradicional do mundo passou a admitir a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro. [...] Diante dessas premissas, a direção temporal dos efeitos da caducidade mais adequada à finalidade do registro industrial é – sem dúvidas – a prospectividade (ex nunc). Nesse passo, como a Corte local apura que houve esforço (direto) comum na formação do acervo patrimonial, é também Rodrigo da Cunha Pereira que alerta sobre a dificuldade de se chegar a outra decisão que não seja a de dividir o patrimônio por igual: É nesse pressuposto que a nossa jurisprudência evoluiu. É aí que a Súmula n. 380 do STF se assenta, considerando a comunhão da companheira como participação em uma sociedade de fato e que, dissolvida, deve ter o conseqüente partilhamento patrimonial. É justo que da vida em comum, da comunhão de 322 Jurisprudência da QUARTA TURMA interesses, quando de sua dissolução, se busque, uns contra os outros, o arrimo necessário aos seus direitos. Nesta sociedade há também uma comunhão de direitos e obrigações. É com base na teoria da sociedade de fato que os Tribunais buscaram, inicialmente, o suporte de suas decisões. Foi no campo do Direito das obrigações que eles se sustentaram. Com o art. 226, § 3º, da Carta Constitucional estabelecendo que a união estável também é família, a doutrina tomou outro rumo. Mas a evolução vem se fazendo. Basta voltarmos aos exemplos de reconhecimento da participação indireta na construção do patrimônio do casalde-fato e o da Súmula n. 382 do STF, que diz ser dispensável, na caracterização do concubinato, a vida sob o mesmo teto. O art. 3º da Lei n. 8.971/1994 e o art. 5º da Lei n. 9.278/1996 constituem a síntese e o reflexo dessa evolução quando estabelecem que se “os bens deixados pelo (a) autor (a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do (a) companheiro (a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens”, e “os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito”. O Código Civil de 2002 consolidou esse entendimento, estabelecendo que na “União Estável, salvo convenção válida entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens” (art. 1.725). 3.1 Critério de partilhamento Uma outra dificuldade que vinham encontrando os julgadores para estar mais próximos do justo, já que se esteiavam na teoria da sociedade de fato, diz respeito ao critério de partilha, ou seja, se se poderá dividir em partes iguais, ou qual o percentual que caberá a cada um no partilhamento. Na verdade, são raros os casos em que se torna possível, mesmo por estimativa, chegar a percentuais que não sejam de 50% para cada um. É que essas sociedades têm como essência a informalidade e longe estão de controles contábeis, embora em alguns raros casos seja possível proceder a uma medição contábil. Mas a maioria das decisões são no sentido de se estabelecer uma meação, à semelhança de um casamento pelo regime da comunhão parcial de bens. [...] Em síntese, se os conviventes nada pactuarem, serão condôminos dos bens cuja origem for a aquisição onerosa, isto é, exclui-se doações ou heranças recebidas. Cessa, também, a comunhão em caso de sub-rogação, isto é, aquisição de um acervo, durante a convivência, com o produto de bens, cuja aquisição data anteriormente à união. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, ps. 50-65). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 323 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A solução legislativa, além de ser a mais razoável para disciplinar a situação jurídica dos companheiros, mostra-se sábia e de todo conveniente. É que o afastamento da presunção de que o patrimônio - adquirido na constância da união - foi amealhado por meio do trabalho e da colaboração comum dos companheiros traria, nos casos em que a união for dissolvida pela morte de um dos conviventes, em regra, desequilíbrio processual em prejuízo dos herdeiros do de cujus; visto que, normalmente, terão maior dificuldade - se comparado ao companheiro sobrevivente -, em demonstrar quais são os bens adquiridos pelo esforço direto de cada um dos companheiros. 6. Igualmente, em julgado realizado neste ano, referente ao REsp n. 1.171.820-PR, a Terceira Turma se valeu, sem qualquer ressalva, da presunção constante no artigo 5º da Lei n. 9.278/1996 para a partilha de patrimônio adquirido no decorrer de união iniciada anteriormente à vigência desse Diploma legal: Direito Civil. Família. Alimentos. União estável entre sexagenários. Regime de bens aplicável. Distinção entre frutos e produto. 1. Se o TJ-PR fixou os alimentos levando em consideração o binômio necessidades da alimentanda e possibilidades do alimentante, suas conclusões são infensas ao reexame do STJ nesta sede recursal. 2. O regime de bens aplicável na união estável é o da comunhão parcial, pelo qual há comunicabilidade ou meação dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união, prescindindo-se, para tanto, da prova de que a aquisição decorreu do esforço comum de ambos os companheiros. 3. A comunicabilidade dos bens adquiridos na constância da união estável é regra e, como tal, deve prevalecer sobre as exceções, as quais merecem interpretação restritiva, devendo ser consideradas as peculiaridades de cada caso. 4. A restrição aos atos praticados por pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos representa ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana. 5. Embora tenha prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que o regime aplicável na união estável entre sexagenários é o da separação obrigatória de bens, segue esse regime temperado pela Súmula n. 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união, sendo presumido o esforço comum, o que equivale à aplicação do regime da comunhão parcial. 6. É salutar a distinção entre a incomunicabilidade do produto dos bens adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da Lei n. 9.278, de 1996, e a comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou 324 Jurisprudência da QUARTA TURMA pendentes ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V, do CC/2002, correspondente ao art. 271, V, do CC/1916, aplicável na espécie. 7. Se o acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do excompanheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, opera-se a comunicação desses frutos para fins de partilha. 8. Recurso especial de G. T. N. não provido. 9. Recurso especial de M. DE L. P. S. provido. (REsp n. 1.171.820-PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7.12.2010, DJe 27.4.2011). No invocado precedente, cuja relatora para o acórdão foi a ilustre Ministra Nancy Andrighi, Sua Excelência registrou: Vale dizer, a lide resume-se a perquirir acerca da necessidade ou não da comprovação do esforço comum para a aquisição do patrimônio a ser partilhado, com a peculiaridade de que, no início da união estável, assim reconhecida pelo TJ-PR pelo período de 12 anos (de 1990 a 2002), um dos companheiros era sexagenário. [...] E é exatamente nesse ponto do voto do i. Min. Relator que rogo as máximas vênias para dele divergir, pois, ao mesmo tempo em que adere ao posicionamento sufragado pela 3ª Turma e também pelo STF, a considerar presumido o esforço comum para a aquisição do patrimônio do casal, declara não haver espaço para presunções ante a afirmação contida no acórdão recorrido de que a companheira não teria contribuído para a constituição do patrimônio a ser partilhado. Ora, se a hipótese é de presunção do esforço comum, é irrelevante a declaração contida no acórdão impugnado de que inexistente a colaboração mútua. Se essa contribuição é legalmente presumida, não há necessidade de ser perquirida a sua existência. Afinal, a questão jurídica posta a desate é exatamente a de se a hipótese é de presunção ou de comprovação do esforço comum. Aderindo-se ao posicionamento de que o esforço é presumido, afasta-se, por decorrência lógica, a necessidade de sua comprovação ou, ainda, de sua ausência, ou qualquer declaração a esse respeito contida no acórdão recorrido. Avançando-se nessa ordem de ideias para adentrar nas peculiaridades da lide em julgamento e verificando-se que o patrimônio é composto apenas de bens imóveis e rendas provenientes de aluguéis oriundos desses mesmos imóveis, chega-se à conclusão de que, do ponto de vista prático, para efeitos patrimoniais, não há diferença no que se refere à partilha dos bens com base no regime da comunhão parcial ou no da separação legal contemporizado pela Súmula n. 377 do STF. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 325 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Assim acontece porque, ao sofrer essa contemporização, o regime da separação legal adquire contornos idênticos aos da comunhão parcial de bens, que permite a comunicação dos aquestos. As feições de ambos os regimes – o da comunhão parcial e o da separação legal – portanto, confundem-se, ante a incidência da Súmula n. 377 do STF. Reputo pertinente, por fim, a distinção entre a incomunicabilidade do produto dos bens adquiridos anteriormente ao início da união, contida no § 1º do art. 5º da Lei n. 9.278, de 1996, e da comunicabilidade dos frutos dos bens comuns ou dos particulares de cada cônjuge percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão, conforme previsão do art. 1.660, V, do CC/2002, correspondente ao art. 271, V, do CC/1916, aplicável na espécie. Essa diferenciação é salutar para o julgamento deste processo, porque o acórdão recorrido categoriza como frutos dos bens particulares do excompanheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não como produto de bens eventualmente adquiridos anteriormente ao início da união, o que permite, por assim dizer, a comunicação desses frutos para fins de partilha, com a já mencionada contemporização permitida pela incidência, na espécie, da Súmula n. 377 do STF, que tem o condão de desvirtuar o regime da separação legal para igualá-lo ao da comunhão parcial de bens. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial interposto por G. T. N., pedindo vênia ao i. Min. Rel. para divergir apenas no tocante ao recurso especial de M. DE L. P. S., dando-lhe provimento e determinando, por consequência, o retorno do processo à origem a fim de que se proceda à partilha dos bens comuns do casal, declarando, por conseguinte, a presunção do esforço comum para a sua aquisição. No mesmo diapasão, confiram-se precedentes desta Turma: Recurso especial. União estável. Reconhecimento judicial. Término da relação após a edição da Lei n. 9.278/1996. Partilha de bens. Impossibilidade de responsabilizar a recorrida pelos débitos da empresa. Recurso especial parcialmente conhecido e nessa parte não provido. 1. Não há que se falar em ofensa ao artigo 535 do CPC, se o Tribunal recorrido examinou as questões pertinentes ao litígio, sabendo-se que ao órgão julgador é suficiente que apresente os fundamentos de sua convicção. 2. Esbarra no óbice na Súmula n. 7-STJ, o exame de afronta ao § 1º do artigo 5º da Lei n. 9.278/1996, alegada ao fundamento de que os bens havidos na constância da união estável, foram adquiridos por sub-rogação. 3. Afirmando o acórdão que inexiste responsabilidade solidária da convivente pelas dívidas da empresa, por não haver a comprovação que qualquer dos débitos tenha sido contraído em data anterior a 1999, época do término da união, impossível se afigura a apreciação dessa matéria em sede de recurso especial. 4. Incontroversa a união estável pelo período de 18 anos, cujo término se deu sob a vigência da Lei n. 9.278/1996, é cabível a partilha dos bens adquiridos durante o convívio. 326 Jurisprudência da QUARTA TURMA 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (REsp n. 986.290-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22.2.2011, DJe 28.2.2011). Recurso especial. Reexame de prova. I - Impossibilidade de reexame de prova em recurso especial. II - Não ofende o art. 1719, III, do Codigo Civil o acordão que, tendo admitido o “companheirato”, “reconheceu a presunção do esforço comum na aquisição daquele imovel, pouco importando que a companheira (obreira sem empregada) não exercesse, ao tempo de sua aquisição, trabalho remunerado”. III - Conflito pretoriano não demonstrado. IV - Recurso não conhecido. Decisão unanime. (REsp n. 361-RJ, Rel. Ministro Fontes de Alencar, Quarta Turma, julgado em 25.9.1989, DJ 30.10.1989, p. 16.510). 7. Destarte, incontroversa a união estável, cujo término se deu sob a vigência da Lei n. 9.278/1996, é cabível a partilha dos bens adquiridos durante o convívio, nos termos desse Diploma. Ademais, o acórdão recorrido pondera, à fl. 165, que “tendo em vista que os bens foram adquiridos por esforço comum dos conviventes, agiu bem o Magistrado”. Desse modo, fica límpido que o Tribunal reconhece a contribuição da recorrente na construção do patrimônio comum dos conviventes, nos moldes da literalidade do Enunciado da Súmula n. 380-STF; e que a decisão tomada pelo Tribunal de origem decorreu de fundamentada convicção amparada na análise dos elementos existentes nos autos, de modo que a eventual revisão da decisão recorrida esbarraria no óbice intransponível imposto pela Súmula n. 7 desta Corte. Note-se: Processo Civil. Recurso especial. Causa decidida à base de fatos, segundo a solução pretoriana consolidada na Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, in verbis: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 92.131-ES, Rel. Ministro Ari Pargendler, Terceira Turma, julgado em 16.12.1999, DJ 21.2.2000, p. 119). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 327 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Agravo. Sociedade de fato. Patrimonio comum. Dissidio. Ausencia. Não provimento. Sociedade de fato entre concubinos e formação do patrimonio resultante do esforço comum reconhecidas com apoio nas provas dos autos. Inadmissibilidade de reexame das provas e dos fatos atraves do recurso extremo. Inexistencia de dissidio com a Sumula n. 380 do STF. Agravo desprovido. (AgRg no Ag n. 9.206-RS, Rel. Min. Claudio Santos, Terceira Turma, julgado em 21.6.1991, DJ 2.9.1991, p. 11.811). 8. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial. É como voto. VOTO-VISTA A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Trata-se de recurso especial interposto por R.M.K.T e outra, com base nas alíneas a e c, do art. 105, da Constituição, contra acórdão proferido pela 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, que, em agravo de instrumento, confirmou decisão de indeferimento de provas em ação de reconhecimento de união estável e partilha de bens entre o pai das recorrentes e N.K.V, ora recorrida, com início em 1985 e dissolução em 1998, em razão da morte do varão, considerando aplicáveis as regras estabelecidas pela Lei n. 9.278/1996 durante todo o período. A referida decisão declarou o direito à meação da companheira sobrevivente em decorrência da presunção legal de esforço comum na aquisição do patrimônio constituído durante todo o relacionamento, inclusive em relação aos bens adquiridos em período anterior à vigência da referida lei (13.5.1996). Alegam as recorrentes violação aos arts. 535, do CPC, em razão de o acórdão recorrido não ter se manifestado sobre o princípio da irretroatividade das leis; 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga LICC), sob o argumento de que os dispositivos da Lei n. 9.278/1996 não podem retroagir para atingir e modificar relações patrimoniais definitivamente constituídas quando de sua edição; e 5º, da Lei n. 9.278/1996, porque aplicado a situação por ele não abrangida, que, segundo entende, passou a dispensar a prova do esforço comum na constituição do patrimônio dos companheiros apenas em relação aos bens adquiridos a partir de sua vigência. Afirmam, ainda, que o acórdão recorrido adotou entendimento divergente do TJMG e do TJRJ. 328 Jurisprudência da QUARTA TURMA O relator, Ministro Luís Felipe Salomão, preliminarmente, afastou a retenção do recurso especial (CPC, art. 542, § 3º), por considerar que a decisão interlocutória confirmada pelo acórdão recorrido examinou o mérito da questão submetida à apreciação judicial, esgotando, dessa forma, o próprio mérito da causa. Em relação às demais alegações, conheceu do recurso e a ele negou provimento, entendendo aplicável a regra da Lei n. 9.278/1996 relativa à presunção de condomínio dos bens dos companheiros adquiridos durante toda a união estável, iniciada em data anterior à referida lei e extinta em 1998, com a morte de um dos conviventes. Após vista dos autos, passo a proferir meu voto. Anoto, inicialmente, que N. K. V. ajuizou ação de reconhecimento e dissolução de união estável com J.R.F.T., cumulada com partilha dos bens adquiridos onerosamente durante de convivência, que alegou compreender o período de janeiro de 1985 a outubro de 1998, reconhecendo-se o direito à meação da autora da ação (fls. 53-67). Mediante a decisão interlocutória de fls. 28-32, foi determinada a aplicação das regras de condomínio estabelecidas pela Lei n. 9.278/1996, em relação aos bens adquiridos a título oneroso durante todo o período da união estável, abrangido o patrimônio constituído em data anterior à vigência da referida lei, independentemente da comprovação do esforço comum, posicionamento confirmado pelos acórdãos de fls. 160-168 e 180-186, ora impugnados. O presente recurso tem por objeto, portanto, a aplicação das regras de presunção do esforço comum aos bens adquiridos em data anterior à vigência da Lei n. 9.278/1996, nas hipóteses de uniões estáveis iniciadas em data anterior, mas dissolvidas já na vigência da referida lei. I Assim delimitada a questão, acompanho o entendimento do relator de afastar a retenção de recurso especial. Rejeito, igualmente, a alegação de ofensa ao art. 535 do CPC. Com efeito, o voto condutor do acórdão proferido nos embargos de declaração opostos pelas oras recorrentes examinou a questão relativa à alegação de violação ao princípio a irretroatividade da lei, como se observa na seguinte passagem (fls. 183-184): RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 329 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ora, se a Câmara entendeu que a Lei n. 8.278/1996, embora tenha sido editada após o início da união estável versada nos autos teria aplicabilidade ao caso concreto, porque passou a viger antes do término da convivência comum, não se há de falar em omissão na análise específica do principio da irretroatividade das leis, conforme pretende fazer crer as embargantes. Ao reconhecer que a Lei n. 8.278/1996 aplica-se à união estável havida entre a Agravada e seu finado companheiro, porque o término da convivência entre ambos findou-se quando já editada e em pleno vigor a referida lei, evidentemente entendeu-se também que não houve infringência ao princípio da irretroatividade das leis, sendo desnecessário a abordagem desse tema. Não existe, pois, ofensa ao art. 535 do CPC. II O voto do eminente relator, após tecer minuciosa análise da questão jurídica posta no recurso especial - aplicabilidade do regime de comunhão parcial aos bens adquiridos onerosamente, durante a união estável, mas antes da entrada em vigor da Lei n. 9.278/1996 - afirma que o Tribunal de origem reconheceu a contribuição da recorrente na construção do patrimônio comum dos conviventes, nos moldes da literalidade do Enunciado da Súmula n. 380STF, convicção esta formada com base nos elementos de prova existentes nos autos, o que atrairia o óbice da Súmula n. 7. Com a devida vênia, as instâncias de origem não concluíram, com base na análise das provas dos autos, tenham sido os bens descritos na inicial adquiridos por esforço comum dos conviventes. Decidiu-se pela existência de presunção legal de esforço comum, com base na aplicação do regime da Lei n. 9.278/1996, também em relação aos bens adquiridos antes de sua entrada em vigor, sendo precisamente este o motivo pelo qual a decisão agravada, confirmada pelo acórdão recorrido, indeferiu o pedido de produção de provas. A prova de esforço comum foi considerada irrelevante para o deslinde da controvérsia, como se observa das seguintes passagens da referida decisão (fls. 28-30): “A persistência em produzir provas inúteis me obriga a antecipar questão de mérito. O que se busca com a presente ação é tão somente o reconhecimento da união estável com os efeitos patrimoniais sobre a meação dos bens adquiridos durante a união. No máximo, além do reconhecimento da união, será decidido se os bens indicados na exordial foram adquiridos durante a união e podem ser objeto de partilha no inventário. A inicial e contestação limitam os termos da entrega da atividade jurisdicional. Vale dizer, que a lide se limita a discutir se houve a união pelo período apontado, 330 Jurisprudência da QUARTA TURMA bem como que bens foram efetivamente adquiridos durante o período da união ou se foram adquiridos no período, mas com recursos anteriores a existência da união. Qualquer outra questão, deve ser discutida em ação própria em sede do Juízo universal do Inventário. Outrossim, cumpre destacar que qualquer prova no sentido de se saber se a autora tinha condições de contribuir financeiramente para formação do patrimônio é irrelevante, pois uma vez reconhecida a união estável, se aplica à regra da comunhão parcial. Irrelevante o elemento dependência econômica para a configuração da união livre estável, ao contrário do sistema anterior em que a divisão de bens entre os parceiros dependia de prova de colaboração conjunta para formação do acervo patrimonial. A Lei n. 9.278/1996 confere aos conviventes a co-propriedade dos bens adquiridos na constância da união estável e a título oneroso; presumem juris tantum fruto do trabalho e da colaboração comum. A luz do quanto disposto na Lei n. 9.278/1996 que regulamentou o § 3º do art. 226 da Constituição Federal, há que se partilhar igualmente entre as partes todo o patrimônio na constância da união estável ainda que, para tanto, a mulher só tenha contribuído indiretamente através da prestação de serviço doméstico. Cumpre destacar que a Lei n. 9.278/1996, aplica-se às uniões estáveis existentes quando da sua vigência, ainda que iniciada a convivência anteriormente, mas não atinge as relações extintas até 29.12.1994. Como no presente caso a união iniciouse em 1984 e somente se extinguiu em 1998, por certo a ela se aplicam as regras do § 3º, do artigo 226 da CF, posteriormente regulamentada pela Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996 e atualmente pelo artigo 1.723 do Código Civil. Vale dizer, que comprovada a existência da união estável, deve a sua dissolução ser regida pela Lei n. 9.278/1996, que instituiu a presunção de condomínio sobre os bens adquiridos pelos companheiros, sendo desnecessária, a partir de então, a comprovação da contribuição econômica à formação do patrimônio erguido na vigência da sociedade de fato. E do voto condutor do acórdão recorrido (fls. 164-167): Quanto ao mérito, sem razão as ora Agravantes, que tentam crer que a ora Agravada não possui direito a meação, sob o pressuposto de que a união estável foi constituída anteriormente a Lei n. 9.278/1996, necessitando de prova da contribuição efetiva da companheira nos bens adquiridos durante a união estável. Dispõe o artigo 50, da Lei no. 9.278/1996, que: Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrário e em contrato escrito. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 331 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Conforme, denota-se dos autos, a união estável do casal já existia, desde 1985, e durante a vigência da união estável do casal, presume- se que os bens, foram contraídos pelo esforço de ambos. Por outro lado, não há como acolher a pretensão das Agravantes, de que a Lei somente regularia situações futuras, não podendo ter seus efeitos estendidos em relações anteriores a sua vigência, ainda que essas relações jurídicas tivessem continuidade após o nascimento da Lei. (...) Desta feita, percebe-se que a Lei n. 9.278/1996 tem aplicação imediata e geral, inclusive para as uniões estáveis surgidas anteriormente a sua publicação, conseqüentemente deve ser aplicada ao caso concreto, pois, frisa-se a convivência more uxório começou em 1985 e teve seu término em 1998, com o falecimento do companheiro João Regis. Dessa forma, é irrelevante saber se a Agravada tinha condições de contribuir financeiramente para formação do patrimônio, afinal um vez reconhecida a união estável se aplica a regra da comunhão parcial. Afasto, portanto, o óbice da Súmula n. 7-STJ. III Em relação ao art. 6º da Lei de Introdução, disciplinador do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, e ao art. 5º da Lei n. 9.278/1996, anoto, em primeiro lugar, que foi atendido o prequestionamento da questão federal, sendo certo, de outra parte, que o deslinde da controvérsia não demanda reexame do conjunto fático-probatório dos autos. Embora não seja pacífico o tema, reconheço que há acórdãos do STJ segundo os quais, havendo dispositivo constitucional com o mesmo conteúdo da regra legal cuja violação se alega, como é o caso do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, a questão é constitucional, não susceptível de apreciação na via do recurso especial. Orienta-se a jurisprudência do Supremo Tribunal, todavia, no sentido de que não cabe recurso extraordinário por ofensa aos princípios constitucionais da legalidade, do devido processo legal, da coisa julgada, do direito adquirido, entre outros, se, para apreciá-la, for necessária a interpretação de legislação ordinária. É elucidativo o acórdão no AgRg no AG n. 135.632-RS, cuja ementa, lavrada pelo eminente Ministro Celso de Mello, tem o seguinte teor: 332 Jurisprudência da QUARTA TURMA Agravo de instrumento. Recurso extraordinário. Servidores administrativos. Vantagens pecuniárias. Alegação de ofensa à constituição. Inocorrência de conflito direto e imediato com o texto da lei fundamental. Aspectos meramente legais pertinentes à noção de direito adquirido (LICC, art. 6º, § 2º). Ofensa à constituição por via reflexa. Ausência de impugnação dos fundamentos em que se assentou o ato decisório questionado. Pretendido desdobramento do recurso extraordinário em recurso especial. Impossibilidade. Recurso improvido. Caráter ordinário do conceito de direito adquirido. - O sistema constitucional brasileiro, em cláusula de salvaguarda, impõe que se respeite o direito adquirido (CF, art. 5º, XXXVI). A Constituição da República, no entanto, não apresenta qualquer definição de direito adquirido, pois, em nosso ordenamento positivo, o conceito de direito adquirido representa matéria de caráter meramente legal. Não se pode confundir, desse modo, a noção conceitual de direito adquirido (tema da legislação ordinária) com o princípio inerente à proteção das situações definitivamente consolidadas (matéria de extração constitucional), pois é apenas a tutela do direito adquirido que ostenta natureza constitucional, a partir da norma de sobredireito inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta Política. Tendo-se presente o contexto normativo que vigora no Brasil, é na lei, e nesta, somente - que repousa o delineamento dos requisitos concernentes à caracterização do significado da expressão direito adquirido. É ao legislador comum, portanto - sempre a partir de uma livre opção doutrinária feita dentre as diversas correntes teóricas que buscam determinar o sentido conceitual desse instituto - que compete definir os elementos essenciais à configuração do perfil e da noção mesma de direito adquirido. Cabe ter presente, por isso mesmo, a ampla discussão, que, travada entre os adeptos da teoria subjetiva e os seguidores da teoria objetiva, influenciou, decisivamente, o legislador ordinário brasileiro na elaboração da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), pois, como se sabe, a LICC de 1916 (que entrou em vigor em 1917) consagrou a doutrina sustentada pelos subjetivistas (art. 3º), enquanto a LICC de 1942, em seu texto, prestigiou a teoria formulada pelos objetivistas (art. 6º), muito embora o legislador, com edição da Lei n. 3.238/1957), que alterou a redação do art. 6º da LICC/42, houvesse retomado os cânones inspiradores da formulação doutrinária de índole subjetivista que prevaleceu, sob a égide dos princípios tradicionais, na vigência da primeira Lei de Introdução ao Código Civil (1916). Em suma: se é certo que a proteção ao direito adquirido reveste-se de qualificação constitucional, consagrada que foi em norma de sobredireito que disciplina os conflitos das leis no tempo (CF, art. 5º, XXXVI), não é menos exato - considerados os dados concretos de nossa própria experiência jurídica - que a positivação do conceito normativo de direito adquirido, ainda que veiculável RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 333 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA em sede constitucional, submete-se, no entanto, de lege lata, ao plano estrito da atividade legislativa comum. (...) (DJ 3.9.1999). Os conceitos de direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada são dados por lei ordinária (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º), sem aptidão, portanto, para inibir o legislador infraconstitucional. Assim, se a lei ordinária contiver regra de cujo texto se extraia ordem de retroatividade, em prejuízo de situação jurídica anteriormente constituída, a ofensa será direta ao art. 5º inciso XXXVI da Constituição, passível de exame em recurso extraordinário. Diversamente, caso se cuide de decidir acerca da aplicação da lei nova a determinada relação jurídica existente quando de sua edição, a questão será infraconstitucional, impugnável mediante recurso especial. É precisamente este o caso dos autos. Com efeito, não há dispositivo algum na Lei n. 9.278/1996 que determine a aplicação retroativa de seus dispositivos. O art. 10 estabelece sua vigência a partir da correspondente publicação (13.5.1996), sem ordenar a retroatividade de nenhum de seus preceitos. Dessa forma, se ofensa houve ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito - questão debatida no presente recurso especial - ela não decorre do texto da Lei n. 9.278/1996 (caso em que haveria alegação de ofensa direta ao art. 5º inciso XXXVI da CF), mas da interpretação feita pelo acórdão recorrido dos conceitos legais de direito adquirido e ato jurídico perfeito (possível ofensa ao art. 6º da LICC), ensejadora da aplicação de lei nova (Lei n. 9.278/1996) à situação jurídica já constituída quando de sua edição. Conheço, pois, do recurso especial em relação à violação de ambos os dispositivos legais (art. 6º da Lei de Introdução e art. 5º da Lei n. 9.278/1996) e passo a examinar o mérito. IV A despeito da existência de precedente desta Turma no REsp n. 986.290RS, também da relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, penso que a questão merece mais profunda reflexão, instigada pelo bem elaborado voto de Sua Excelência no presente caso. Divirjo, com a devida vênia, do eminente relator, quando entende que, antes da edição da Lei n. 9.278/1996, havia lacuna legal acerca do regime de bens dos conviventes não casados, passível de suprimento pelo Poder Judiciário, 334 Jurisprudência da QUARTA TURMA mediante a aplicação retroativa da referida lei para disciplinar a partilha dos bens adquiridos antes de sua entrada em vigor. Até a entrada em vigor da Constituição de 1988, as relações patrimoniais entre pessoas não casadas eram regidas por regras de direito civil estranhas ao direito de família. O entendimento jurisprudencial sobre a matéria encontravase consolidado no Enunciado n. 380 da Súmula do STF, assim redigido: Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum. Como se extrai dos precedentes da referida súmula, notadamente o RE n. 9.855, relator o Ministro Orozimbo Nonato, a partilha do patrimônio se dava não como reconhecimento de direito derivado de convivência familiar, mas de contrato informal de sociedade civil, cujos frutos fossem resultado de contribuição direta dos conviventes (sócios de fato) por meio de trabalho e/ou dinheiro. É certo que a evolução da realidade social foi ensejando normas legais e jurisprudência protegendo a companheira, em matéria previdenciária e acidentária (Súmulas n. 159-TFR e n. 35-STF). No campo das relações patrimoniais entre conviventes, não havia, porém, até outubro de 1988, fundamento para a invocação, sequer por analogia, de princípios de direito de família. Editada a Constituição de 1988, seu art. 226 reconheceu “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.” Friso que a Constituição não equiparou a união estável ao casamento, tanto que preconizou fosse facilitada, por lei, a sua conversão em matrimônio. O compromisso formal assumido com o casamento evidencia a estabilidade jurídica da relação, dando segurança recíproca aos cônjuges e também aos terceiros que com eles mantém relações jurídicas, favorecendo, portanto, a organização da vida social. Por força da nova Constituição, os litígios cuja causa de pedir seja a relação entre os conviventes passaram a ser da competência de varas de família, tendo suas decisões inspiradas, nos limites do compatível com as leis em vigor, por princípios extraídos analogicamente do direito de família. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 335 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A interpretação do que fosse “contribuição para a formação do patrimônio comum” tornou-se mais abrangente, compreendendo não apenas a contribuição direta em determinada atividade econômica, por meio de trabalho ou capital, e a indireta, por meio de serviços domésticos que resultassem em economia para a família, mas também a solidariedade e o apoio recíprocos no âmbito familiar. Esta evolução jurisprudencial, com base na Constituição de 1988, está bem clara no seguinte precedente: Direito Civil. Sociedade de fato. Reconhecimento de participação indireta da ex-companheira na formação do patrimônio adquirido durante a vida em comum. Partilha proporcional. Cabimento. Fixação nesta instância. Possibilidade. Critérios. Indenização por serviços prestados. Ressalva. Recurso parcialmente provido. I - Constatada a contribuição indireta da ex-companheira na constituição do patrimônio amealhado durante o período de convivência “more uxório”, contribuição consistente na realização das tarefas necessárias ao regular gerenciamento da casa, aí incluída a prestação de serviços domésticos, admissível o reconhecimento da existência de sociedade de fato e conseqüente direito à partilha proporcional. II - Verificando-se que haja diminuição de despesas (economia) proporcionada pela execução das atividades de cunho doméstico pela ex-companheira, há que se reconhecer patenteado o “esforço comum” a que alude o Enunciado n. 380 da Súmula-STF. III - Salvo casos especiais, a exemplo de inexistência de patrimônio a partilhar, a concessão de uma indenização por serviços domésticos prestados, prática de longa data consagrada pela jurisprudência, não se afeiçoa à nova realidade constitucional, que reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar” (art. 226, § 3º, da Constituição). IV - O arbitramento da parcela devida à companheira pode ser fixado nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso, com objetivo de evitar inconvenientes e atraso na solução jurisdicional. V - Na fixação do percentual, que necessariamente não implica meação no seu sentido estrito (50%), recomendável que o seu arbitramento seja feito com moderação, proporcionalmente ao tempo de duração da sociedade, a idade das partes e a contribuição indireta prestada pela concubina, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso. (REsp n. 183.718-SP, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 18.12.1998). 336 Jurisprudência da QUARTA TURMA A Lei n. 8.971, de 29.12.1994, foi a primeira a regulamentar o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. A condição de companheiro foi reconhecida desde que comprovado prazo de convivência de mais de cinco anos ou a existência de prole em comum (art. 1º). Quanto à sucessão, foi reconhecido ao companheiro, enquanto não constituir nova união, o direito de usufruto de parte dos bens da herança e, na falta de descendentes ou ascendentes, o direito à totalidade da herança (art. 2º). Dispôs o art. 3º que “quando os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do (a) companheiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens.” Até então, não se cogitava de presunção legal de esforço comum, para efeito de partilha igualitária de patrimônio entre os conviventes. A partilha de bens, ao cabo da união estável, dava-se mediante a comprovação, e na proporção respectiva, do esforço de cada companheiro, direto ou indireto, para a formação do patrimônio amealhado durante a convivência. Foi, então, editada a Lei n. 9.278, de 10.5.1996, a partir da qual o reconhecimento da união estável não mais depende de tempo de convivência e nem da existência de prole, sendo seus requisitos legais “a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, com o objetivo de constituição de família”. A Lei n. 9.278/1996 estabeleceu presunção legal relativa de comunhão dos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável. Não há esta presunção se a aquisição se der com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união. Trata-se de regime legal dispositivo, na medida em que podem os conviventes estipular em sentido contrário (art. 5º). O entendimento de ambas as Turmas que compõem a 2ª Seção deste Tribunal encontra-se pacificado no sentido de que as regras relativas ao patrimônio dos companheiros estabelecidas pela Lei n. 9.278/1996 não se aplicam às uniões estáveis dissolvidas antes de sua vigência, devendo a partilha de bens submeter-se à prova do esforço comum (REsp n. 147.098-DF, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 7.8.2000; REsp n. 174.051RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ 1º.7.2002; REsp n. 1.097.581-GO, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 9.12.1999). Nessa mesma linha, a 2ª Seção, ao examinar o REsp n. 914.811-SP, pacificou a orientação de que, na hipótese de sociedade de fato dissolvida antes da vigência da Lei n. 9.278/1996 e de participação indireta na constituição do patrimônio, afasta-se a meação, devendo a partilha ser estabelecida com RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 337 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA observância dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, encontrando-se a ementa do acórdão assim redigida: Processual Civil e Civil. Recurso especial. Concubinato. Reconhecimento e dissolução. Art. 6º, § 1º, da LICC. Ausência de prequestionamento. Súmula n. 7 do STJ. Inaplicabilidade. Partilha de bens. Contribuição indireta. Lei n. 9.278/1996. Não-incidência. Percentual compatível. Princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Precedentes do STJ. 1. É inviável o conhecimento de suposta ofensa a norma infraconstitucional se não houve prequestionamento nem a oposição de embargos declaratórios para provocar o seu exame pelo Tribunal de origem. 2. Afasta-se o óbice da Súmula n. 7 do STJ quando não se está a perquirir as circunstâncias fáticas do feito, mas tão-somente saber se a maternidade, criação e formação dos filhos pela concubina, bem como a dedicação por ela proporcionada ao réu para o exercício de suas atividades – como reconhecidamente albergado no aresto de origem –, mostram-se aptas, bastantes por si sós, para embasar a meação dos bens arrolados na peça preambular. 3. Demonstrado no acórdão recorrido, de forma inconteste, que a contribuição da concubina-autora para formação do patrimônio comum dos conviventes ocorreu de forma indireta, impõe-se o afastamento da meação, por sucumbir frente à prevalência da partilha dos bens que, a par das circunstâncias dos autos, não há que ser em partes iguais. 4. Inaplicabilidade, ainda que por analogia, das disposições prescritas na Lei n. 9.278/1996. 5. Incidência de normas legais e orientações jurisprudenciais que versam sobre concubinato, especialmente a Lei n. 8.971/1994 e a Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, delimitando que a atribuição à companheira ou ao companheiro de metade do patrimônio vincula-se diretamente ao esforço comum, consagrado na contribuição direta para o acréscimo ou a aquisição de bens mediante o aporte de recursos ou força de trabalho. 6. Levando-se em conta a moderação e o bom senso recomendados para a hipótese em apreço, o arbitramento, no percentual de 40% (quarenta por cento) sobre o valor dos bens adquiridos na constância do concubinato e apurados na instância ordinária, apresenta-se compatível com o caso em apreço, por encontrar amparo nos sempre requeridos critérios de razoabilidade e proporcionalidade. 7. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (Rel. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJ de 21.11.2008). Destaco do voto condutor do referido acórdão as seguintes passagens: Ausente a demonstração da ocorrência de igualitárias participações ou esforços comuns direcionados à aquisição de bens constitutivos do acervo 338 Jurisprudência da QUARTA TURMA patrimonial em nome do recorrente, a concubina-autora, ora recorrida, está a carecer da pretensão formulada no juízo a quo, diante da ausência de fato gerador permissivo do estabelecimento de seu direito à metade dos bens. E assim quero entender, porque, somente a partir do regime da Lei n. 9.278/1996 – cuja aplicação fora afastada na espécie, ainda que por analogia –, é que se estabeleceu que os bens adquiridos na constância da união estável por um ou pelos conviventes passariam a pertencer a ambos, em condomínio ou partes iguais. Não no caso destes autos, pois as normas legais e orientações jurisprudenciais versando especificamente sobre concubinato, entre as quais a Lei n. 8.971/1994 e a Súmula n. 380 do Pretório Excelso, bem delimitam que a atribuição à companheira ou ao companheiro de metade do patrimônio vincula-se diretamente ao esforço comum, consagrado na contribuição direta para o acréscimo ou aquisição de bens, mediante o aporte de recursos ou força de trabalho. A propósito do tema, leio SÍLVIO RODRIGUES, in “Direito Civil Aplicado”, volume 8, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 85: Portanto, até o advento da Lei de 1996 e do preceito acima transcrito, a mera existência da união estável não gerava a presunção de serem comuns os bens adquiridos em nome de um dos conviventes durante aquela convivência. Continuava a viger, em sua plenitude, a Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, que para possibilitar a divisão daquele patrimônio exigia a demonstração do concurso de esforço comum. Tal situação não foi alterada pela superveniência da Constituição de 1988, porque o § 3º do art. 226 daquela Carta não era auto-aplicável e dependia de regulamentação. Tanto que dependia de regulamentação que o legislador ordinário, por duas vezes, a regulamentou. Fê-lo, a primeira vez, na Lei n. 8.971/1994 e fê-lo, pela segunda vez, na Lei n. 9.278/1996. E só a partir da publicação desta última é que se dispensou o companheiro, ou a companheira, de provar sua participação no granjeio do patrimônio comum, para poder pleitear sua divisão (Súmula n. 380 do STF). (...) Destarte, levando-se em conta a moderação e o bom senso recomendados para a hipótese em apreço, o arbitramento, no percentual de 40% (quarenta por cento) sobre o valor dos bens adquiridos na constância do concubinato e apurados na instância ordinária, apresenta-se compatível com o caso em apreço, por encontrar amparo nos sempre requeridos critérios de razoabilidade e proporcionalidade (...) Esta era a regência legal e jurisprudencial das relações patrimoniais entre companheiros até a entrada em vigor da Lei n. 9.278/1996: não havia presunção RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 339 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA legal de esforço comum para a partilha de bens. Ao final do relacionamento, os bens amealhados no período eram divididos proporcionalmente ao esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente. Com a edição da Lei n. 9.278/1996, os bens a partir de então adquiridos por pessoas em união estável passaram a pertencer a ambos em meação, salvo se houvesse estipulação em sentido contrário ou se a aquisição patrimonial decorresse do produto de bens anteriores ao início da união. Os bens adquiridos anteriormente à Lei n. 9.278/1996 têm a propriedade - e, consequentemente, a partilha ao cabo da união - disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando respectiva aquisição (Súmula n. 380 do STF). Com efeito, a aquisição da propriedade dá-se no momento em que se aperfeiçoam os requisitos legais para tanto e, por conseguinte, sua titularidade não pode ser alterada por lei posterior em prejuízo ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5, XXXVI e Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º). O tema é analisado de forma exaustiva por Francisco José Cahali, em seu livro “Contrato de Convivência na União Estável”, do qual transcrevo: Com o advento da Lei n. 9.278/1996, pelo seu art. 5º, foi criado um novo sistema jurídico para prevalecer quanto às relações patrimoniais decorrentes da união estável. Até então não existia comando normativo próprio para a questão, sendo alicerçada a repercussão patrimonial da união estável pela jurisprudência, consagrando a Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, com sua diversidade de interpretação até mesmo nos Tribunais Superiores. Em transitório momento, também por criação doutrinária e jurisprudencial, estendeu-se à dissolução em vida da união o primeiro dispositivo legal sobre os efeitos patrimoniais da relação, consistente na participação do viúvo nos bens adquiridos durante a convivência, quando do falecimento do convivente, introduzido pela Lei n. 8.971/1994. De qualquer forma, sua interpretação coincidia com aquela dada ao enunciado sumular, de tal sorte que a polêmica para a aferição da “contribuição” ou “colaboração” recíproca ainda longe estava de encontrar unidade no pensamento jurídico refletido pela doutrina e jurisprudência. Daí por que se ter na Lei n. 9.278/1996 a pioneira previsão legislativa de efeitos patrimoniais da união estável, introduzindo, enquanto fonte normativa, o regime jurídico próprio dessa relação. 340 Jurisprudência da QUARTA TURMA Como lei nova, sua incidência segue o princípio geral de irretroatividade previsto no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, admitida a aplicação imediata à situação jurídica em curso. Esse panorama, em superficial análise, poderia levar a crer que a lei nova incide diretamente nas uniões estáveis em curso, fazendo prevalecer o comando contido na norma a todos os efeitos jurídicos da união. Entretanto, a amplitude na produção de efeitos encontra limite na disposição maior, contida no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Compatibilizando essas duas regras, temos a imediata aplicação da novel legislação à situação em curso, mas sem atingir os efeitos da união estável já produzidos e os atos jurídicos já aperfeiçoados antes da lei. A hipótese de incidência da norma é a aquisição patrimonial durante a convivência; e o preceito é a previsão de participação conjunta sobre os bens, a partir do momento em que entrar em vigor a presunção legal. Nesse contexto, o regime patrimonial criado só pode ter incidência com relação aos bens adquiridos a partir de então. Sobre o patrimônio preexistente, tem aplicação o ordenamento jurídico então vigente (STF, Súmula n. 380, e, posteriormente, Lei n. 8.971/1994). Isto porque a titularidade dos bens se consuma no momento da respectiva aquisição, tornando-se um ato jurídico perfeito, com a realidade jurídica então existente, além de outorgar ao titular o direito adquirido, tornando o negócio jurídico imune à nova legislação. Exemplificando, o domínio sobre um imóvel adquirido em 1970 segue as regras da época quanto à sua constituição. Uma vez aperfeiçoado o ato pelo sistema normativo então vigente, o ato jurídico fica imune à modificação legislativa, conferindo ao respectivo titular o direito adquirido de fazer prevalecer a sua propriedade regularmente constituída. A seu turno, a união estável vivenciada em 1970 possuía a repercussão patrimonial existente à época, irradiando efeitos patrimoniais das luzes refletidas pela Súmula n. 380. Assim, aquele imóvel adquirido pelo convivente em 1970 terá sua situação jurídica realizada pelo sistema normativo da época, imune às modificações posteriores. Em linhas gerais, pois, em função da irretroatividade da norma ao patrimônio adquirido anteriormente à Lei n. 9.278/1996 não se aplica a regra de comunicabilidade nesta prevista, presumindo a participação comum e outorgando o condomínio em partes iguais de 50%. Concluindo taxativamente pela inaplicabilidade da Lei n. 9.278/1996 às situações patrimoniais pretéritas, YUSSEF SAID CAHALI assim se manifestou em parecer: RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 341 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA “Estamos agora diante de um direito novo, modificador do anterior”. (...) “Ora, essa presunção, que assim se pretenda absoluta (‘juris et de jure’), irrefragável, de participação igualitária dos companheiros na formação do patrimônio durante a união estável, consubstancia uma inovação legal relevante em favor da concubina. E como tal, somente pode ser aplicada em relação aos bens adquiridos após a Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, que regulou o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988. Pois de outra forma, estaria sendo violado o direito de propriedade exclusiva do bem adquirido pelo esforço único de um dos concubinos, direito adquirido de propriedade exclusiva este definitivamente adquirido antes da entrada em vigor da referida Lei; portanto, com ofensa a um direito adquirido de propriedade individual e exclusiva, diante da imposição, por lei posterior, de um condomínio ou co-propriedade ou perda da metade daquele direito exclusivo de propriedade, que resultaria do artigo 5º da mencionada Lei.” (...) “Uma coisa é a união concubinária que, facta pendenti, sujeita-se à regência do direito adquirido; e coisa diversa é o ato de aquisição da propriedade – conceitualmente unus actus, representando facta pretérita, que, ocorrido na vigência do direito anterior, assegura ao respectivo titular a plenitude dos direitos enunciados no artigo 524 do Código Civil, na sua condição de proprietário exclusivo do bem por ele então adquirido com seu único esforço. Essa distinção em nada interfere no princípio de efeito imediato da lei nova: ‘Dans cette situation, chacune des deus lois en présence, la loi ancienne et la loi nouvelle, s’applique strictement dans son domaine: la loi nouvelle respecte tous les effets juridiques produits dans le passé, mais elle gouverne seule et sans partage l’avenir à compter du jour de as promulgation (PAUL ROUBIER, Le Droit Transitoire, p. 10; 2ª Ed., Éd.Dalloz, 1960)”. Nesse sentido escreve GUILHERME CALMON NOGUEIRA GAMA, com preciosa profundidade na análise da questão, como é a tônica de seu completo trabalho: “Uma observação é importante no que se refere ao regime de bens: mesmo que em 30 de dezembro de 1994 ainda vigorasse a união extramatrimonial fundada no companheirismo com aquisição patrimonial anterior à vigência da lei, é de se notar que com relação aos bens adquiridos anteriores àquela data não prevalece o disposto no artigo 3º, da Lei n. 8.971/1994, pois caso contrário haveria retroatividade, o que é vedado no ordenamento jurídico brasileiro nestas situações, aplicando-se, portanto, o sistema vigente na época da aquisição do bem (Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, com a interpretação jurisprudencial mais consentânea com a realidade, admitindo-se a contribuição indireta) (...) Quanto aos bens adquiridos a partir de 30 de dezembro de 1994, prevalece o disposto no artigo 3º, da Lei citada, inclusive quanto ao critério de partilhamento dos bens, ou seja, a metade. Todas as ponderações feitas relativamente às inovações da Lei n. 8.971/1994, são válidas para às matérias introduzidas pela Lei n. 9.278/1996”. 342 Jurisprudência da QUARTA TURMA Também CLAUDIA GRIECO TABOSA PESSOA: “(...) a criação de um regime de bens para as uniões estáveis não teve o condão de puramente suprimir as hipóteses de incidência da Súmula n. 380 do Supremo Tribunal Federal, que ainda continuará sendo pertinente para todos os casos de uniões concubinárias extintas anteriormente ao Estatuto do Concubinato (ou, no tocante às uniões ainda subsistentes, para os bens adquiridos anteriormente ao advento do novo diploma legal)”. EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA: “Incidem os mesmos princípios da irretroatividade quanto ao direito de meação, desde sua previsão nas Leis n. 8.971/1994 e n. 9.278/1996. Mas com importante ressalva quanto às situações anteriores, que já eram admitidas na jurisprudência, nos termos da Súmula n. 380 do STF (partilha dos bens adquiridos pelo esforço comum, na dissolução da sociedade de fato), de tal sorte que a disposição legal sobre meação ou condomínio não constitui propriamente uma inovação, mas simples explicitação do direito e dos pressupostos para a sua aquisição”. E SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA: “É evidente que tal regime, que inclui tanto os bens móveis quanto imóveis, só se aplica a partir da vigência da Lei n. 9.278. Assim sendo, aqueles bens adquiridos por um dos companheiros antes de 10 de maio de 1996 não serão alcançados por esta presunção de esforço comum, não se considerando em condomínio, e sua partilha, entre os companheiros, uma vez dissolvida a união, obedecerá às regras do sistema antigo, aplicando-se a Súmula n. 380 do STF, que exige a prova da efetiva contribuição para a aquisição”. (Saraiva, 2002, p. 153-158). Em idêntico sentido, o parecer do Ministro Eduardo Ribeiro, exarado em caso semelhante de partilha de bens adquiridos antes da vigência da Lei n. 9.478/1996, cuja união estável perdurou após a sua edição: “A primeira lei que, no âmbito do direito privado, cuidou da situação jurídica dos companheiros foi a que tomou o n. 8.971, de dezembro de 1994. Nela se reconheceu direito a alimentos e, em certas circunstâncias, a usufruto dos bens do companheiro ou companheira, em caso de morte de um deles. Estabeleceu, ainda, que teria o(a) companheiro(a) sobrevivente direito a metade dos bens deixados pelo autor(a) da herança se “resultarem de atividade em que haja colaboração do(a) companheiro(a). (...) Com a edição da Lei n. 9.278, de 10.5.1996, é que se estabeleceu que os bens adquiridos por um ou por ambos os conviventes, a título oneroso, na constância da união estável, seriam considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, a ambos passando a pertencer em condomínio. Como se verifica do § 1º do artigo 5º, estabeleceu-se uma presunção, que só se afasta se a aquisição se fizer com o produto de bens adquiridos antes de iniciada a união. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 343 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o novo Código Civil, que dispôs ser aplicável aos conviventes o regime da comunhão parcial, salvo se houver contrato escrito. Isso posto, cumpre verificar qual o direito incidente, quanto aos bens adquiridos no período em que, segundo o acórdão, houve união estável, ou seja, de 1974 a setembro de 2004, quando se deu o óbito de MG. Não parece seja possível contestar que, quando LB, uma vez realizados os pressupostos a isso necessários, adquiriu determinado bem, passou a ter direito adquirido em relação à propriedade desse, que ingressou em seu patrimônio. Não estando em vigor a Lei n. 9.278/1996, tornou-se sua proprietária exclusiva. A acolher-se a tese do acórdão, ter-se-ia de admitir, como juridicamente aceitável, que, por força de lei superveniente, parte ideal, correspondente a metade desse bem, teria sido retirada de seu patrimônio e transferida para o companheiro. Ora, se o bem integra o patrimônio de alguém e dele é retirado, em virtude de lei ulteriormente editada, parece manifesto que configurado desrespeito frontal ao direito adquirido. O acórdão recorrido, como assinalado, sustentou que o relacionamento entre as partes havia de ser encarado como um todo, não podendo “ser seccionado em vários momentos como se ele houvesse se iniciado e acabado conforme foram sendo editadas e derrogadas as várias leis que se sucederam ao longo de sua duração”. O argumento, pede-se vênia para ponderar, é de manifesta fragilidade. Não há dúvida de que o relacionamento foi um só, protraído no tempo. A regulamentação jurídica, entretanto, variou, daí advindo consequências diferenciadas. A solução nada tem de surpreendente ou de heterodoxa. É isso mesmo que se verifica, quando há sucessão de leis. Inúmeras relações perduram por largos períodos e os direitos vão sendo adquiridos, em seu curso, tendo em vista as normas que sucessivamente as regulem. De todo injustificável que se aplique a lei por último vigente a todo o tempo em que se deu a relação continuativa, de molde a desconstituir direitos já formados, integrantes do patrimônio dos respectivos titulares. Note-se, ainda, que nem mesmo se poderia invocar a doutrina, aceita por alguns, embora contrastante com o direito brasileiro, de que o princípio do respeito aos direitos adquiridos não se aplicaria, quando se tratasse de lei de ordem pública. Com efeito, da regulamentação da matéria relativa a regime de bens resulta que disponível o direito dos companheiros. De acordo com o artigo 5º da Lei n. 9.278/1996 e, de igual modo, com o artigo 1.725 do Código Civil, é possível, mediante contrato escrito, afastar a incidência das normas legais que cuidam da comunicação dos bens havidos durante a união. Em suma, aplicar a lei nova, de maneira a transferir significativa parcela do patrimônio de uma pessoa para outra, constitui violência a direito adquirido, que não é tolerado por nosso ordenamento jurídico (nomes abreviados pela signatária). 344 Jurisprudência da QUARTA TURMA Este entendimento em nada é confrontante com o acórdão da 4ª Turma, da relatoria do Ministro Jorge Scartezzini no REsp n. 397.168-SP, assim ementado: Civil. Recurso especial. União estável. Herança. Falecimento do companheiro sem ascendentes ou descendentes. Aplicabilidade da Lei n. 8.971/1994 a fatos pendentes. Possibilidade. Sociedade de fato. Comunhão de aqüestos. Inexistência de retroatividade (art. 6º da LICC). 1 - A união estável, quer antes, quer depois da edição da Lei n. 8.971/1994, gera direitos e obrigações, já que é um fato jurídico, e, como tal, desafia a proteção estatal. Logo, tais relações foram equiparadas às sociedades de fato, sendo os bens sujeitos ao chamado regime de comunhão de aqüestos. 2 - Se tal relação, que se perpetua durante um longo período, configura-se pelo animus que inspira os companheiros a viverem como casados fossem, não se pode alegar que a Lei n. 8.971/1994, ao regular a matéria acerca dos alimentos e da sucessão de tais pessoas, somente surtiria efeitos futuros, deixando ao desabrigo toda a construção legislativa e pretoriana de que se tem noticia. Inexistindo referência na lei do termo inicial da contagem do prazo qüinqüenal para aquisição do direito, deve-se aplicá-la, revestida que é do caráter benéfico, a todos os fatos pendentes. 3 - Assim, no caso concreto, já que dúvidas não há nos autos de que a autora era companheira do falecido por longos 07 (sete) anos; que o mesmo não deixou descendentes e ascendentes; que nos termos da lei esta é herdeira da totalidade dos bens deixados (art. 2º, III, da Lei n. 8.971/1994), porquanto a mesma atinge as situações pendentes; não há que se falar em violação ao art. 6º da LICC. 4 - Recurso não conhecido. (REsp n. 397.168-SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 26.10.2004, DJ 6.12.2004, p. 315). A união estável caracteriza-se como sequência de fatos contínuos cujo conjunto é qualificado pelo direito. Aos que já viviam ou passassem a viver em união estável por cinco anos a lei conferiu os direitos nela especificados a partir do momento em que entrou em vigor. Às uniões pendentes, quando da edição da Lei n. 8.971/1994 e, depois, da Lei n. 9.278/1996, aplicam-se imediatamente as respectivas regras em relação aos fatos ocorridos após a respectiva entrada em vigor. Assim, no dia da entrada em vigor da Lei n. 8.971/1994, os que se encontravam em união estável há mais de cinco anos (ou tinham prole comum), passaram, imediatamente, a ter direito a alimentos recíprocos em caso de RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 345 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA necessidade, sem ter que esperar o decurso de outros cinco anos após a lei para obter tal tipo de amparo. Igualmente, a sucessão do companheiro morto após a entrada em vigor da Lei n. 8.971/1994 é regida por tal diploma legal. Com a edição da Lei n. 9.278/1996, deixou de ser necessário o prazo de convivência de 5 anos para a caracterização de união estável. Assim, dada a conjugação da Lei n. 8.971/1994 com a Lei n. 9.278/1996, conviventes há menos de 5 anos, sem prole, passaram a integrar a ordem de vocação hereditária um do outro se o óbito ocorreu após a edição da lei de 1996. É importante distinguir, todavia, os princípios legais que regem a sucessão dos aplicáveis à partilha de bens. A sucessão é disciplinada pela lei em vigor na data do óbito. Sendo o óbito posterior à Lei n. 8.971/1994, naturalmente o companheiro terá direito à herança desde que satisfeitos os requisitos legais nela prescritos. Daí o acórdão no REsp n. 397.168-SP ter deferido o direito à sucessão em favor de quem, na data do óbito, qualificava-se como companheira do falecido, ou seja, possuía, com ele, vida em comum, independentemente de o período haver sido iniciado antes da entrada em vigor da Lei n. 8.971/1994. A partilha de bens, ao contrário, seja em razão do término, em vida, do relacionamento, seja em decorrência do óbito do companheiro ou cônjuge, deve observar o regime de bens e o ordenamento jurídico vigente ao tempo da aquisição de cada bem a partilhar. A aplicação da lei vigente ao término do relacionamento a todo o período de união implicaria expropriação do patrimônio adquirido segundo a disciplina da lei anterior, em manifesta ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, como já longamente demonstrado, além de causar insegurança jurídica, podendo atingir até mesmo terceiros. O caso dos autos é emblemático da expropriação e insegurança jurídica que resultariam do acolhimento da tese sustentada na inicial, a saber, meação de patrimônio adquirido pelo companheiro desde os primeiros dias de união estável, quando não vigorava sequer a Constituição de 1988, sem necessidade de prova de esforço comum. Com efeito, a recorrida ajuizou ação em face dos herdeiros de seu falecido companheiro, afirmando que “por volta de janeiro de 1985”, passou a viver com João Régis Fassbender Teixeira, relacionamento que perdurou até o seu óbito em outubro de 1998 (e-STJ fl. 54). Narra que ele a inscreveu como sua dependente junto aos órgãos previdenciários e fez lavrar testamento público, no qual lhe legou o usufruto de 346 Jurisprudência da QUARTA TURMA dois imóveis e a totalidade das suas cotas no escritório de advocacia “Professor João Régis Fassbender Teixeira Sociedade de Advogados”, conforme contrato social, além de designá-la como beneficiária de seguros de vida e pensões previdenciárias. (e-STJ fl. 55). Passa, então, a descrever o patrimônio acumulado durante a convivência, enumerando diversos imóveis, dois deles adquiridos no próprio ano de 1985 quando iniciada a convivência (discriminados nas letra “l” e “m”, à fl. e-STJ 59). Prossegue afirmando que, além dos doze imóveis descritos no capítulo anterior da inicial, o falecido doou, por ato unilateral, a filhos seus, três imóveis, adquiridos em agosto de 1986, em setembro de 1986 e em dezembro de 1987. Ressalva a possibilidade de existência de outros bens cuja existência desconheça adquiridos durante a convivência, os quais se reserva o direito de trazer aos autos uma vez localizados (e-STJ fl. 60). As instâncias de origem reconheceram o direito de meação da recorrida sobre todos os bens adquiridos de 1985 até o óbito de João Régis Fassbender. Somente não foram deferidas providências em relação aos bens registrados em nome dos dependentes do falecido, os quais entendeu o juízo de primeiro grau não poderem ser objeto de decisão nestes autos, devendo os direitos da autora ser buscados em “ação própria, para posteriormente ser efetuada eventual partilha em sede de inventário (adiantamento de legítima)”. (e-STJ fl. 28). Isso significa que bens adquiridos pelo falecido no próprio ano em que iniciada a convivência, muitos anos antes da promulgação da Constituição, foram declarados como propriedade comum da autora e seu companheiro, independentemente de prova de esforço comum, a serem partilhados meio a meio. Nesta época, a legislação em vigor não reconhecia a existência de união estável. A divisão do patrimônio dependia do reconhecimento da existência de sociedade de fato, segundo normas de direito civil, alheias ao direito de família (Súmula n. 380-STF). Esses bens pertenciam apenas ao falecido e, se ele deles dispôs, o fez validamente de acordo com as leis da época. Hoje podem estar sob o domínio de seus filhos ou de qualquer terceiro, não sendo jurídico que seus titulares sejam expropriados por força de aplicação retroativa de lei editada em 1996. Observo que o falecido legou o usufruto de bens imóveis e cotas societárias à recorrida, buscando ampará-la, em época na qual a partilha de bens entre conviventes dependia de prova de esforço comum. É de se indagar se tomaria RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 347 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a iniciativa de legar-lhe bens, se pudesse antever, à luz do direito então vigente, que seria ela titular da metade de todos os bens adquiridos desde 1985, aí incluídos os que doou a seus filhos. Penso, pois, com a devida vênia, que o entendimento do eminente relator, no sentido da existência de lacuna legislativa ensejadora da retroação da Lei n. 9.278/1996, por analogia, para atingir a propriedade de bens adquiridos em data anterior à sua edição, representa radical alteração de antiga orientação do STF e deste Tribunal sobre o tema, consolidada desde a Súmula n. 380-STF, publicada em 3.4.1964. Anoto que esse mesmo posicionamento poderia ser invocado para sustentar o direito à meação também nas uniões dissolvidas antes da Lei n. 9.278/1996, presumindo-se o condomínio em todos os casos. Ademais, antes da edição da Lei n. 9.278/1996, os companheiros não dispunham de instrumento eficaz, caso desejassem dispor sobre a forma de aquisição do patrimônio durante a união estável, sendo certo que a presunção relativa do condomínio e a possibilidade de celebração de contrato escrito em sentido contrário foram inseridas no ordenamento jurídico em conjunto pela norma do art. 5º da referida lei, vigendo, até então, a regra da comprovação do esforço comum dos conviventes, baseada em sólida orientação jurisprudencial, inclusive do STF. Antes disso, não havendo presunção legal de meação de bens entre conviventes, não haveria sequer razão para que os conviventes fizessem estipulação escrita em contrário a direito dispositivo inexistente. Assinalo que a convicção manifestada no presente voto limita-se a afastar a presunção de condomínio dos bens adquiridos onerosamente antes da vigência da Lei n. 9.278/1996 contida no acórdão recorrido, o que não significa vedar qualquer possibilidade de partilha de bens, mas apenas estabelecer os parâmetros para que as instâncias de origem, após a fase de instrução, examinem a presença do esforço comum e estabeleçam, como entenderem de direito e com a observância dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade, a forma de divisão do patrimônio adquirido antes da vigência da referida lei. Em face do exposto, dou parcial provimento ao recurso especial, para determinar que a partilha dos bens adquiridos onerosamente antes da entrada em vigor da Lei n. 9.278/1996 obedeça a critérios norteados pelo esforço comum. É como voto. 348 Jurisprudência da QUARTA TURMA VOTO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Sr. Presidente, inicialmente cumprimento V. Exa. e a Sra. Ministra Isabel Gallotti pelos votos primorosos e instigantes. Independentemente das características deste caso, nossa decisão contribuirá para a uniformização da interpretação do Direito Federal sobre as diversas repercussões patrimoniais que podem advir das situações da espécie da que ora se trata. Com a devida vênia de V. Exa., acompanho a divergência no sentido de observar, porque na partilha dos bens inventariados, o regime jurídico vigente à época da aquisição do patrimônio na forma delineada pelo voto da Sra. Ministra Isabel Gallotti. Entendo que essa é a maneira mais justa de resolver as controvérsia da espécie e de respeitar o direito adquirido. Peço vênia a V. Exa., e acompanho o voto da Sra. Ministra Isabel Gallotti no sentido de dar parcial provimento ao recurso especial. RETIFICAÇÃO DE VOTO O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, com a devida vênia de V. Exa., modifico meu voto anterior e adiro à divergência. Dou parcial provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.155.395-PR (2009/0170609-0) Relator: Ministro Raul Araújo Recorrente: Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho Advogado: Mariana Lobato Silva Matida e outro(s) Recorrido: Caixa Econômica Federal - CEF Advogado: Augusto Carlos Carrano Camargo EMENTA Civil e Consumidor. Recurso especial. Contrato de penhor. Joias. Furto. Fortuito interno. Reconhecimento de abuso de cláusula RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 349 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA contratual que limita o valor da indenização em face de extravio dos bens empenhados. Violação ao art. 51, I, do CDC. Ocorrência de danos materiais e morais. Recurso especial provido. 1. No contrato de penhor é notória a hipossuficiência do consumidor, pois este, necessitando de empréstimo, apenas adere a um contrato cujas cláusulas são inegociáveis, submetendo-se à avaliação unilateral realizada pela instituição financeira. Nesse contexto, deve-se reconhecer a violação ao art. 51, I, do CDC, pois mostra-se abusiva a cláusula contratual que limita, em uma vez e meia o valor da avaliação, a indenização devida no caso de extravio, furto ou roubo das joias que deveriam estar sob a segura guarda da recorrida. 2. O consumidor que opta pelo penhor assim o faz pretendendo receber o bem de volta, e, para tanto, confia que o mutuante o guardará pelo prazo ajustado. Se a joia empenhada fosse para o proprietário um bem qualquer, sem valor sentimental, provavelmente o consumidor optaria pela venda da joia, pois, certamente, obteria um valor maior. 3. Anulada a cláusula que limita o valor da indenização, o quantum a título de danos materiais e morais deve ser estabelecido conforme as peculiaridades do caso, sempre com observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. Recurso especial provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Quarta Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira. Brasília (DF), 1º de outubro de 2013 (data do julgamento). Ministro Raul Araújo, Relator DJe 29.10.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Raul Araújo: Cuida-se de recurso especial interposto por Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho, com fundamento nas alíneas a e c do 350 Jurisprudência da QUARTA TURMA permissivo constitucional, contra v. acórdão proferido pelo eg. Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF - 4ª Região). Narram os autos que, em 2.10.2007, Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho propôs ação declaratória de nulidade de cláusula de contrato de penhor cumulada com reparação de danos materiais e morais contra a Caixa Econômica Federal, doravante Caixa, ora recorrida, tendo em vista o furto de joias que o promovente penhorara perante a ora recorrida. Em sentença às fls. 123-139, o il. magistrado de piso julgou parcialmente procedente o pedido para condenar a Caixa ao pagamento de indenização a título de danos materiais de até 4 (quatro) vezes o valor das avaliações das joias empenhadas, observado o limite de 100% (cem por cento) do valor de mercado destes bens, abatendo-se o valor do empréstimo não quitado. Inconformadas, ambas as partes interpuseram apelações. O recurso da Caixa foi provido, ao passo que o apelo do ora recorrente foi desprovido, nos termos do v. acórdão assim ementado (fl. 205): Responsabilidade civil. Dano material e moral contrato de penhor de jóias. Furto. Indenização. CDC. Validade. Ausência de nexo causal. Indenização indevida. Sucumbência. Honorários advocatícios. Ausência de mácula que invalide a cláusula de contrato de penhor de jóias, que limita o valor da indenização devida em caso de furto, roubo ou, extravio dos objetos. Situação justificável, amparada pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 51, inciso I, segunda parte). Precedentes desta Turma. A indenização correspondente a 1,5 vezes o valor de avaliação dos bens empenhados, acrescida da devida atualização, se mostra razoável e proporcional à perda material sofrida pela autora. Ausentes os requisitos previstos na legislação civil que justifiquem a condenação da ré à reparação dos abalos emocionais sofridos em face do evento danoso. Sucumbência da Autora. Honorários advocatícios fixados com base no art. 20, § 4º, do CPC. Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (acórdão às fls. 221232). Irresignado, Nilson de Jesus Baptista Ribas Filho interpôs o presente recurso especial, no qual alega violação aos arts. 4º, 6º, IV e VI, 14, § 3º, 24, 25 e 51, I, do CDC. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 351 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Assevera que a cláusula do contrato de penhor que limita a indenização a 1,5 vezes o valor de avaliação do bem empenhado é abusiva e, por consequência, deve ser considerada nula, pois visa limitar a responsabilidade civil do fornecedor do serviço. Aduz que a própria Caixa admite a existência do dano material, pois o extravio das joias é decorrente do furto ocorrido em sua agência bancária. Sustenta também a ocorrência de dano moral. Aduz, ainda, que a responsabilidade do fornecedor somente pode ser afastada se comprovada a culpa do consumidor ou de terceiro, o que não teria ocorrido no caso em liça. Pela divergência jurisprudencial, o recorrente aponta dois paradigmas que, no seu entender, corroboram suas alegações. Sem contrarrazões (certidão à fl. 342). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): Inicialmente, não se discute no presente recurso o dever da recorrida de indenizar os danos materiais sofridos pelo recorrente. Os bens empenhados estavam sob a guarda da Caixa e se deve levar em consideração a natureza da atividade exercida pela instituição financeira. Dessa forma, o furto ocorrido deve ser entendido como fortuito interno, inerente à atividade explorada pela ora recorrida. Nesse sentido, confira-se precedente desta eg. Quarta Turma que reconhece a responsabilidade de instituição financeira em caso de furto a seu cofre: Recurso especial (art. 105, III, a e c da CFRB). Ação de indenização de danos morais e materiais. Furto a cofre de banco. Inocorrência de caso fortuito. Aresto estadual reconhecendo a responsabilidade civil da instituição financeira. (...) 6. A disponibilização de cofre em banco a clientes evidencia nítida relação contratual com multiplicidade de causas, defluentes da concorrência de elementos comuns aos ajustes de locação, de depósito e de cessão de uso, sem que qualquer dessas modalidades prepondere sobre as demais, decorrendo dessa natureza heterogênea um plexo de deveres aos quais se aderem naturalmente uma infinidade de riscos. 352 Jurisprudência da QUARTA TURMA 7. Por isso, mais do que mera cessão de espaço ou a simples guarda, a efetiva segurança e vigilância dos objetos depositados nos cofres pelos clientes são características essenciais a negócio jurídico desta natureza, razão pela qual o desafio de frustrar ações criminosas contra o patrimônio a que se presta a resguardar constitui ônus da instituição financeira, em virtude de o exercício profissional deste empreendimento torná-la mais suscetível aos crimes patrimoniais, haja vista a presunção de que custodia capitais elevados e de que mantém em seus cofres, sob vigilância, bens de clientes. 8. Daí porque é inarredável a conclusão de que o roubo ou furto perpetrado contra a instituição financeira, com repercussão negativa ao cofre locado ao consumidor, constitui risco assumido pelo fornecedor do serviço, haja vista compreender-se na própria atividade empresarial, configurando, assim, hipótese de fortuito interno. (...) 11. Recurso especial desprovido. (REsp n. 1.250.997-SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 5.2.2013, DJe de 14.2.2013). O cerne da irresignação, no tocante à indenização por danos materiais, consiste em definir se a cláusula que limita a indenização pelo furto, roubo ou extravio da joia empenhada no contrato de penhor celebrado entre o ora recorrente e a Caixa é abusiva e, por consequência, nula. Acerca do tema, assim assentou o v. acórdão regional (fl. 202): A cláusula contratual que estabelece o valor da indenização devida pela Caixa - nos casos de roubo, furto ou extravio das jóias empenhadas - era de pleito conhecimento da contratante, que anuiu às condições estabelecidas para a obtenção do empréstimo e resgate da dívida, quando necessitou dos serviços oferecidos pela instituição financeira reconhecida. À luz da regra de proteção do consumidor, para que seja reconhecida a nulidade da referida cláusula, impõe-se demonstrar que o limite da indenização esteja relacionado a presença de vícios (de qualquer natureza) nos produtos ou serviços prestados, renúncia ou disposição de direitos, conforme refere a primeira parte da redação do inciso I do art. 51. Todavia, tais hipóteses não se confirmam no caso destes autos. Do contrário, na interpretação deste Relator, o limite imposto pela Caixa está relacionado a situações excepcionais (roubo, furto ou extravio), plenamente justificáveis, conforme ressalva introduzida pelo legislador na segunda parte do inciso I. Pelo que, não vislumbro a presença de mácula que invalide a regra contratual, tampouco de condição demasiadamente desproporcional e equidistante dos princípios da boa-fé e da livre vontade, que devem balizar o contrato. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 353 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Por conseguinte, reputo razoável e proporcional o valor correspondente a 1,5 vezes o de avaliação das jóias, para fim de reparação da perda material sofrida pela autora, uma vez que os bens objeto do penhor não receberam classificação superior, que denotasse a presença de complementos preciosos, valor inestimável ou marca superavaliada pelo mercado. O entendimento exarado pelo eg. Tribunal a quo, data venia, não parece acertado. Com efeito, no contrato de penhor celebrado com a Caixa, é notória a hipossuficiência do consumidor, pois este, necessitando de empréstimo, apenas adere a um contrato cujas cláusulas são inegociáveis, submetendo-se, inclusive, à avaliação unilateral realizada pela instituição financeira. Nesse avença, a avaliação, além de unilateral, é focada precipuamente nos interesses da recorrida, sendo que o valor da avaliação é sempre inferior ao preço cobrado do consumidor no mercado varejista de joias. Nesse contexto, mostra-se abusiva a cláusula contratual que limita, em uma vez e meia o valor da avaliação, a indenização devida no caso de extravio, furto ou roubo das joias que devem estar sob a segura guarda da recorrida (v. CC/202, art. 1.435: CC/1916, art. 774). Note-se que, ao submeter-se ao contrato de penhor perante a Caixa, que detém o monopólio de empréstimo sob penhor de bens pessoais, o consumidor demonstra não estar interessado em vender as joias empenhadas, preferindo transferir apenas a posse temporária delas ao agente financeiro, em garantia do empréstimo. Pago o empréstimo, tem plena expectativa de retorno dos bens. Por isso mesmo, é muito comum que pessoas de classe média recorram a tal modalidade de empréstimo, justamente por terem alguma estima pelas joias que, às vezes, são até de tradição familiar, confiando no retorno certo dos bens após a quitação do empréstimo. Na hipótese, o promovente trouxe, com a inicial, avaliação que aponta o valor de mercado das joias como sendo de R$ 29.688,00 (vinte e nove mil, seiscentos e oitenta e oito reais). Por sua vez, a Caixa, segundo o autor, se propôs a pagar o montante de R$ 3.280,59 (três mil, duzentos e oitenta reais e cinquenta e nove centavos) pelas joias, descontado o valor do empréstimo. Na mesma linha de raciocínio ora estabelecida, convém destacar o julgamento do REsp n. 273.089-SP, de relatoria do em. Ministro Raphael de 354 Jurisprudência da QUARTA TURMA Barros Monteiro, DJ de 24.10.2005, desta eg. Quarta Turma, de cujo judicioso voto se extrai o seguinte excerto: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras – dilo a Súmula n. 297 desta Casa. Se o é, pode reputar-se como abusiva a cláusula que limita o quantum indenizatório a 1,5 da avaliação unilateral procedida pela ora recursante. Invocável, a respeito, o disposto no art. 51, inciso IV, da Lei n. 8.078, de 11.9.1990. A propósito, confira-se o que já teve ocasião de decidir esta Turma quando do julgamento do REsp n. 83.717-MG, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, cujo voto focou o caráter de adesão celebrado entre as partes, assim como a situação de dependência do consumidor em relação à entidade financeira, a despeito de o CDC não ser aplicável àquele caso por ter sido a avença firmada antes de sua edição. No mesmo sentido, confira-se o seguinte julgado da eg. Terceira Turma: Direito Civil. Penhor. Danos morais e materiais. Roubo/furto de jóias empenhadas. Contrato de seguro. Direito do Consumidor. Limitação da responsabilidade do fornecedor. Cláusula abusiva. Ausência de indício de fraude por parte da depositante. I - O contrato de penhor traz embutido o de depósito do bem e, por conseguinte, a obrigação acessória do credor pignoratício de devolver esse bem após o pagamento do mútuo. II - Nos termos do artigo 51, I, da Lei n. 8.078/1990, são abusivas e, portanto, nulas, as cláusulas que de alguma forma exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios no fornecimento do produto ou do serviço, mesmo que o consumidor as tenha pactuado livre e conscientemente. III - Inexistente o menor indício de alegação de fraude ou abusividade de valores por parte da depositante, reconhece-se o dever de ressarcimento integral pelos prejuízos morais e materiais experimentados pela falha na prestação do serviço. IV - Na hipótese dos autos, em que o credor pignoratício é um banco e o bem ficou depositado em cofre desse mesmo banco, não é possível admitir o furto ou o roubo como causas excludentes do dever de indenizar. Há de se levar em conta a natureza específica da empresa explorada pela instituição financeira, de modo a considerar esse tipo de evento, como um fortuito interno, inerente à própria atividade, incapaz de afastar, portanto, a responsabilidade do depositário. Recurso Especial provido. (REsp n. 1.133.111-PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 6.10.2009, DJe de 5.11.2009). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 355 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Assim, reconhecida a violação ao art. 51, I, do CDC, deve-se estabelecer o valor justo da indenização por danos materiais, a qual deve atender estritamente aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. No caso em liça, considerando-se suas peculiaridades, em que as joias furtadas foram avaliadas pela Caixa em menos de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais), mostrase adequada a fixação da referida indenização segundo os dois parâmetros limitadores fixados na r. sentença, a qual determinou “(...) o valor da indenização por danos materiais em quatro vezes o valor da avaliação, para atingir os 100% (cem por cento) do valor de mercado, devendo ser abatido o valor do empréstimo ainda não quitado” (fl. 128). Por sua vez, anulada a referida cláusula contratual, deve-se examinar a responsabilidade da Caixa no tocante também aos danos morais pleiteados. Quanto a essa temática, assim assentou o v. acórdão vergastado (fl. 203): No tocante aos danos morais alegados, não há dúvida de que o furto das jóias tenha promovido dissabores à autora, em razão da impossibilidade de resgate futuro dos bens. No entanto, não estão presentes os requisitos legais que autorizam a responsabilização da ré pelos abalos emocionais sofridos, quais sejam, ausência de conduta imputável e, consequentemente, de nexo causal em relação ao evento danoso, conforme já referido nesta decisão, com base nos arts. 186, 1.188 e 927 do Código Civil. Novamente, merece reforma o v. acórdão vergastado, porque a cláusula que restringia a responsabilidade da Caixa já foi anulada, por ser considerada abusiva, nos termos do art. 51, I, do CDC. Conforme já salientado, o consumidor que decide pelo penhor assim o faz pretendendo receber o bem de volta, e, para tanto, confia que o mutuante o guardará pelo prazo ajustado. Se a joia empenhada fosse para o proprietário um bem qualquer, sem nenhum valor sentimental, provavelmente o consumidor optaria pela venda da joia, e, certamente, obteria um valor maior. Assim, entende-se presente o dano moral pleiteado, o qual, nas circunstâncias do caso, deve corresponder ao valor do dano material apurado, o que, no panorama formado nos autos, mostra-se proporcional e razoável. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para, reconhecendo a violação ao art. 51, I, do CDC, condenar a Caixa ao pagamento de indenização a título de danos materiais de até 4 (quatro) vezes o valor das avaliações das joias empenhadas, observado o limite de 100% (cem por cento) do valor de mercado desses bens, abatendo-se o valor do empréstimo não quitado, bem como fixar 356 Jurisprudência da QUARTA TURMA o quantum devido a título de danos morais no valor correspondente aos danos materiais apurados, sem o abate do valor do empréstimo, invertendo-se os ônus da sucumbência, com honorários advocatícios de 20% do valor da condenação (CPC, art. 20, § 3º). É como voto. VOTO A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, acompanho, inclusive quando à indenização, tendo em vista os parâmetros dados pela sentença restaurada por V. Exa., que se baseia nas peculiaridades do caso e, também, em depoimento de servidor da Caixa Econômica Federal. Portanto, dou provimento ao recurso especial, acompanhando o voto de Vossa Excelência. RECURSO ESPECIAL N. 1.170.239-RJ (2009/0240262-7) Relator: Ministro Marco Buzzi Recorrente: Luciana Couto Sanches e outros Advogado: Diogo Gomes de Oliveira e outro(s) Recorrente: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. Advogado: Renato José Lagun e outro(s) Recorrido: Os mesmos Recorrido: Centro Radiológico da Lagoa Ltda. Advogado: Sílvio Viola EMENTA Recursos especiais. Ação de indenização por danos morais, decorrentes de exame médico, cujo resultado indicou, erroneamente, ser o feto portador de “síndrome de down”. Transação celebrada entre um dos devedores solidários e os demandantes. Instâncias ordinárias RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 357 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que condenaram o codevedor solidário ao pagamento de indenização aos pais, excluída a hipótese de reparação à filha, então nascituro à época dos fatos. Insurgência dos demandantes e da operadora de plano de saúde. 1. Hipótese em que pais e filho ingressaram em juízo postulando danos morais suportados durante a gestação, em razão de erro médico, consistente em diagnóstico indicativo de ser o feto portador de “Síndrome de Down”. Exames posteriores que afastaram a aludida patologia cromossômica. Demanda deflagrada contra a operadora de plano de saúde e nosocômio. Transação entabulada entre os autores e este último, único não insurgente. 2. Irresignação interposta por Golden Cross S/A. 2.1 Violação ao art. 535 do CPC inocorrente. Acórdão local devidamente fundamentado, tendo enfrentado os aspectos fáticojurídicos essenciais à resolução da controvérsia. Desnecessidade de a autoridade judiciária enfrentar todas as alegações veiculadas pelas partes, quando invocada motivação suficiente ao escorreito desate da lide. Não há vício que possa nulificar o acórdão recorrido ou ensejar negativa de prestação jurisdicional, mormente na espécie em que houve exame explícito do tema reputado não analisado. 2.2 Extinção da obrigação (dever de indenizar) ante a transação e quitação parcial firmada entre os demandantes e um dos devedores solidários (hospital). Tese afastada. Subsistência da obrigação quanto ao codevedor solidário, não abrangido pelo instrumento liberatório, cujos efeitos devem ser aquilatados por meio de interpretação restritiva (art. 843 do CPC). Precedentes. 2.2.1 A quitação da dívida outorgada pelo credor a um dos devedores solidários por meio de transação, não aproveita aos codevedores, senão até a concorrência da quota-parte pela qual era responsável, sobretudo quando o acordo expressamente exclui de sua abrangência o codevedor, no caso, a operadora do plano de saúde, a qual responde pelo saldo, pro rata. 3. Apelo extremo dos autores. 3.1 Em que pese entender o STJ “que o nascituro também tem direito a indenização por danos morais” (Ag n. 1.268.980-PR, Rel. 358 Jurisprudência da QUARTA TURMA Ministro Herman Benjamin, DJ de 2.3.2010), não são todas as situações jurídicas a que submetidas o concebido que ensejarão o dever de reparação, senão aquelas das quais decorram consequências funestas à saúde do nascituro ou suprimam-no do convívio de seus pais ante a morte destes. Precedentes. 3.2 Na hipótese dos autos, o fato que teria ocasionado danos morais àquela que era nascituro à época dos fatos, seria o resultado equivocado do exame de ultrassonografia com Translucência Nucal, que indicou ser ela portadora de “Síndrome de Down”. Contudo, segundo a moldura fática delineada pela Corte a quo, a genitora, no dia seguinte ao recebimento do resultado equivocado, submeteu-se, novamente, ao mesmo exame, cujo diagnóstico mostrou-se diverso, isto é, descartou a sobredita patologia. Não se ignora o abalo psíquico que os pais suportaram em virtude de tal equívoco, dano, contudo, que não se pode estender ao nascituro. 3.3. Almejada majoração do quantum indenizatório fixado a título de reparação pelos danos morais suportados pelos pais. Inviabilidade. Necessidade, para tal reconhecimento, de revolvimento dos aspectos fáticos delineados nas instâncias ordinárias. Inadmissibilidade em sede de recurso especial, ante o óbice da Súmula n. 7 do STJ. 3.4 O vínculo que une as partes e do qual exsurge o dever de indenizar é, inequivocamente, contratual, razão pela qual os juros moratórios referentes à reparação por dano moral, em tal caso, incidem a partir da citação. A correção monetária do valor da indenização pelo dano moral dá-se a partir da data em que restou arbitrada, no caso, do acórdão que julgou a apelação, consoante o Enunciado n. 362 da Súmula do STJ. 4. Recursos especiais improvidos. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, negar provimento aos recursos especiais, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Vencidos os Senhores Ministros Maria Isabel Gallotti e Raul Araujo que davam provimento ao recurso da Golden Cross e julgava prejudicado o recurso RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 359 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de Luciana Couto Sanches e outros. Votaram vencidos os Srs. Ministros Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 21 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro Luis Felipe Salomão, Presidente Ministro Marco Buzzi, Relator DJe 28.8.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Buzzi: Trata-se de recursos especiais, interpostos por Luciana Couto Sanches e Outros, de um lado, e Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., de outro, no intuito de reformar o acórdão proferido pela colenda Sétima Câmara Cível do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Na origem, Luciana Couto Sanches, Waldir Moreira Corrêa Junior e Gabriela Sanches Corrêa promoveram ação de indenização em face de Centro Radiológico da Lagoa e Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., tendo por desiderato a condenação das empresas rés ao pagamento de indenização por danos morais a ser fixada judicialmente, em virtude da elaboração de exame de ultrassonografia com Translucência Nucal, cujo resultado, erroneamente, indicou que o feto gestado por Luciana seria portador de Síndrome de Down. Expuseram os autores, em sua peça exordial, que Luciana Couto Sanches, grávida de quatorze semanas da terceira autora, em 13.9.2003, procedeu ao exame de ultrassonografia com Translucência Nucal, destinado a identificar a ocorrência ou não de síndromes cromossômicas no feto, dentre elas, a Síndrome de Down. Noticiaram que o referido exame, ministrado por médica e funcionária do Centro Radiológico da Lagoa, apontou, como resultado, translucência nucal de 3 mm de espessura, o que indicaria ser o feto portador de Síndrome de Down (diagnóstico que se dá aos resultados de translucência nucal superiores a 2,5 mm). Narraram os autores que, diante do referido resultado, a médica recomendou que a primeira autora realizasse outros exames (Amniocentese e biópsia de vilo corial), os quais trariam riscos à gestação, além de não serem indicados para gestantes com idade inferior a trinta e cinco anos de idade, caso 360 Jurisprudência da QUARTA TURMA da primeira autora. Alegaram que tal situação lhes causou indescritível estado de aflição, consternação e drama emocional, a ponto de a primeira autora, no dia seguinte ao do exame (4.9.2003), ter sido levada à emergência do Hospital Reno Lambert, em decorrência do grande estresse e nervosismo em que se encontrava. Relataram, ainda, que, nesse mesmo dia, segundo a orientação de uma médica particular, a primeira autora efetuou novo exame de ultrassonografia, ocasião em que se constatou diagnóstico não indicativo de Síndrome de Down, pois o exame apresentou, como resultado, translucência nucal normal, medindo 1,4 mm de espessura, com a identificação da presença de osso nasal. Ressaltaram, no ponto, que o exame do osso nasal restou completamente desconsiderado na primeira oportunidade, o que evidencia a ocorrência de erro grosseiro. Anotaram que a primeira autora repetiu o retrocitado exame (pela terceira vez, portanto), ocasião em que obtiveram a confirmação de que os réus incorreram em inadmissível equívoco. Não obstante, afirmaram que o abalo emocional perdurou durante todo o período gestacional. Por tais fatos, sustentaram a legitimidade passiva dos réus para responder pelos danos morais suportados, anotando, ainda a possibilidade de a terceira autora (filha dos primeiros autores, sobre quem recaiu o diagnóstico) fazer jus à pretendida indenização (fls. 03-44). Em sede de contestação, Centro Radiológico da Lagoa Ltda. rechaçou integralmente a pretensão expendida na inicial. Apontou a ilegitimidade da terceira autora, que, à época dos fatos ainda era um nascituro, não se afigurando possível, por isso, suportar danos morais. No mérito, consignou, citando doutrina médica, que, “quando se detecta um aumento da translucência nucal, deve-se fazer exames de acompanhamento até a 20ª semana de gestação para ver se ela desapareceu ou evolui para um espessamento nucal”. Conclui, assim, que, em se tratando de responsabilidade de médico, curial a demonstração de culpa, inocorrente na espécie (fls. 139-155). Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., em sua contestação, aduziu não ser parte legítima para responder pelos danos descritos na inicial, notadamente por ser mera administradora de planos de saúde. Ressaltou, ainda, que a primeira ré não é sua preposta, tampouco sua representante autônoma, o que inviabiliza, de acordo com a legislação consumerista, a responsabilidade solidária. No mérito, aponta a inexistência de erro laboratorial, afirmando que a margem de erro do exame em tela é de 3 a 4% (fls. 158-166). Os autores e a ré, Centro Radiológico da Lagoa Ltda., firmaram, entre si, acordo, homologado judicialmente, culminando na extinção do processo, com fulcro no artigo 269, III, do CPC, apenas em relação a esta (fls. 317-320 e 326). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 361 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O r. juízo a quo (37ª Vara Cível da Comarca da Capital-RJ), ao final, entendeu por bem julgar improcedente o pedido indenizatório delineado na inicial, sob os seguintes fundamentos: I) inviabilidade da ocorrência de abalo psicológico da terceira autora, na condição de nascituro, à época dos fatos; II) o diagnóstico de existência de anomalia só surgiu das conclusões dos dois primeiros autores da ação, já que nada nos autos contribui para que se infira que a médica houvesse aventado essa possibilidade, III) o acordo celebrado entre os autores e o devedor solidário, aproveita o outro, extinguindo, por conseguinte, a obrigação (fls. 131-133). Irresignados, os autores apresentaram recurso de apelação, ao qual o egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro conferiu parcial provimento, para condenar a ré, Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. a pagar aos dois primeiros autores, “a título de danos morais a quantia de R$ 6.000,00 (seis mil reais), divididos em partes iguais entre eles, corrigida a partir desta decisão e com juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, a partir da citação, impondo-se à apelada os ônus sucumbenciais, arbitrados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação”. O aresto restou assim ementado: Responsabilidade civil. Erro de diagnóstico médico. Falha na prestação do serviço. Dever de indenizar. Dano moral. A falha na prestação do serviço, concernente a diagnóstico, que indicou equivocadamente feto portador de anomalia genética, enseja o dever de reparação moral. Provimento parcial do apelo. Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados (fls. 581-585). Os autores da ação interpõem recurso especial, fundamentado nas alíneas a e c, do permissivo constitucional, apontando dissídio jurisprudencial e ofensa aos artigos 2º, 286, 255, 277 e 927, todos do Código Civil; e 4º, I, do Pacto de São José da Costa Rica. Pugnam pela majoração da verba indenizatória, ao argumento de que fazem jus à integral reparação do dano, não se revelando razoável a fixação R$ 6.000,00 (seis mil reais), tão-somente por ter sido este o valor, objeto de transação, que redundou na extinção do processo em relação à ré, Centro Radiológico da Lagoa Ltda. Insurgem-se contra a improcedência do pedido indenizatório, em relação à terceira autora, nascituro à época dos fatos, ao argumento de que este ser, já dotado de personalidade jurídica, passou por “dor, sofrimento e constrangimento o suficiente para ter sua vida ameaçada e colocada em risco”. Aduzem, ainda, que, em se tratando de débito decorrente de ato ilícito, a correção monetária e os juros de mora devem incidir desde o evento danoso. Por fim, suscita a existência de dissenso jurisprudencial (fls. 587-616). 362 Jurisprudência da QUARTA TURMA Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., em seu apelo nobre, fundado na alínea a, inciso III, do artigo 105 da CF, indica violação dos artigos 535 do Código de Processo Civil; 275 e 844, § 3º, do Código Civil. Preliminarmente, alega que o Tribunal de origem incorreu em omissão, pois, embora instado, deixou de se manifestar sobre o argumento consistente na inexistência de dívida comum, notadamente porque o quantum perseguido deveria ser arbitrado judicialmente. No mérito, aduz, em suma, que, “inexistindo cobrança de valor certo ou determinado, a título de indenização por danos morais, jamais se poderia afirmar que a transação celebrada entre os recorridos e a 1ª ré compreenderia pagamento parcial de dívida” (fls. 664-676). Após decisão de admissão do recurso especial, em razão do provimento do Agravo de Instrumento n. 1.112.751-RJ (fl. 730), exarado pelo eminente Ministro João Otávio de Noronha, os autos ascenderam a esta egrégia Corte de Justiça. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): As insurgências recursais não merecem prosperar. 1. Passa-se, inicialmente, à analise do recurso especial interposto por Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., já que veicula questões que, a depender do desfecho a elas conferido, repercutem no recurso contraposto pela parte adversa. 1.1. Sobre a prefacial aventada, a alegação de negativa de prestação jurisdicional não encontra respaldo nos autos. Efetivamente, o Tribunal de origem enfrentou, detidamente, as matérias que lhe foram submetidas em sede de recurso de apelação, adotando, segundo sua convicção, fundamentação suficiente, porém, contrária às pretensões exaradas pela parte recorrente, o que não autoriza, a toda evidência, a oposição dos embargos de declaração, os quais, como é de sabença, têm cabimento apenas quando a decisão objurgada apresentar qualquer dos vícios de julgamento constantes do artigo 535 do Código de Processo Civil. Na hipótese dos autos, ao contrário do sustentado pela recorrente, a Corte de Justiça Estadual reconheceu expressamente a existência de dívida comum, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 363 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA consistente na obrigação solidária de ressarcir os danos morais sofridos pelos autores da ação, conforme se denota, claramente, do seguinte excerto do acórdão recorrido: [...] Apesar de se tratar de uma pretensão de reparação moral decorrente de obrigação solidária, o seu valor foi dimensionado em quantia certa no pedido inicial. Destarte, a transação com um dos réus não impede que os autores busquem a reparação integral, cobrando a diferença da outra co-obrigada, conforme dispõe o artigo 275 do Código Civil: “O credor tem direito a exigir e receber de um dou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto” Ademais, na avença celebrada às fls. 252255 há expressa referência (itens “2” e “4”) que o conflito se encerraria tão somente em relação ao transacionante (Centro Radiológico da Lagoa) e que os autores continuariam a demanda em face da Apelada, para reparar integralmente os danos que sofreram. Vê-se, portanto, que a apontada omissão atribuída ao acórdão objurgado revela-se insubsistente. 1.2. No mérito, controverte-se, no presente recurso especial, se a transação efetivada entre os credores e o codevedor de obrigação solidária (consistente no ressarcimento dos prejuízos, de ordem moral, suportados por aqueles), em que se consigna expressamente que a quitação não é extensiva ao codevedor remanescente, tem o condão de extinguir, como um todo, a dívida. Esclareça-se, de plano, que a recorrente não se insurge quanto ao reconhecimento de sua responsabilidade solidária, tampouco em relação à ocorrência dos danos morais suportados pelos recorridos. Tais matérias estão, portanto, preclusas. Enfatize-se: não houve impugnação quanto aos mencionados temas, motivo pelo qual não se pode considera-los devolvidos a esta instância Superior. Não obstante, apenas para efeito de esclarecimento, a relação existente entre as requeridas, segundo veiculado na petição inicial (f. 27), dá-se pelo fato de a Clínica Centro Radiológico da Lagoa Ltda. consubstanciar serviço médico credenciado pela Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda., operadora do plano de saúde contratado pelos autores da ação. Como é de sabença, o Superior Tribunal de Justiça perfilha o posicionamento de ser solidária a responsabilidade entre a operadora de plano de saúde e o hospital (ou clínica) conveniado/credenciado, decorrente da má prestação de serviço, pelos prejuízos daí percebidos pelo contratante do plano. 364 Jurisprudência da QUARTA TURMA Nesse sentido: Responsabilidade solidária das operadoras de plano de saúde. Erro médico. Defeito na prestação do serviço. Dano moral reconhecido. Valor da indenização. Majoração. Recurso provido. 1. Se o contrato for fundado na livre escolha pelo beneficiário/segurado de médicos e hospitais com reembolso das despesas no limite da apólice, conforme ocorre, em regra, nos chamados seguros-saúde, não se poderá falar em responsabilidade da seguradora pela má prestação do serviço, na medida em que a eleição dos médicos ou hospitais aqui é feita pelo próprio paciente ou por pessoa de sua confiança, sem indicação de profissionais credenciados ou diretamente vinculados à referida seguradora. A responsabilidade será direta do médico e/ou hospital, se for o caso. 2. Se o contrato é fundado na prestação de serviços médicos e hospitalares próprios e/ou credenciados, no qual a operadora de plano de saúde mantém hospitais e emprega médicos ou indica um rol de conveniados, não há como afastar sua responsabilidade solidária pela má prestação do serviço. 3. A operadora do plano de saúde, na condição de fornecedora de serviço, responde perante o consumidor pelos defeitos em sua prestação, seja quando os fornece por meio de hospital próprio e médicos contratados ou por meio de médicos e hospitais credenciados, nos termos dos arts. 2º, 3º, 14 e 34 do Código de Defesa do Consumidor, art. 1.521, III, do Código Civil de 1916 e art. 932, III, do Código Civil de 2002. Essa responsabilidade é objetiva e solidária em relação ao consumidor, mas, na relação interna, respondem o hospital, o médico e a operadora do plano de saúde nos limites da sua culpa. 4. Tendo em vista as peculiaridades do caso, entende-se devida a alteração do montante indenizatório, com a devida incidência de correção monetária e juros moratórios. 5. Recurso especial provido. (REsp n. 866.371-RS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 27.3.2012, DJe 20.8.2012). Agravo regimental. Recurso especial. Ação de indenização. Erro médico. Falecimento do paciente. Preliminar de negativa de prestação jurisdicional afastada. Ausência de contradição e omissão no acórdão recorrido. Responsabilidade solidária. Empresa prestadora do plano de assistência à saúde. Legitimidade passiva para figurar na ação indenizatória. Dano moral. Quantum indenizatório fixado dentro dos padrões de razoabilidade e proporcionalidade. Recurso improvido. 1. Ausente a ocorrência de contradição e omissão no julgado recorrido, afastase a preliminar de negativa de prestação jurisdicional. 2. Em caso de erro cometido por médico credenciado à empresa prestadora do plano de assistência à saúde, esta é parte legítima para figurar no pólo passivo da RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 365 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ação indenizatória movida pelo associado, respondendo solidariamente pela má prestação do serviço médico. 3. A revisão por esta Corte do montante fixado pelas Instâncias ordinárias a título de dano moral, exige que o valor tenha sido arbitrado de forma irrisória ou exorbitante, circunstância que não se verifica no caso concreto. A condenação solidária das rés por dano moral em R$ 380.000,00 (trezentos e oitenta mil reais), tendo em vista o erro médico que resultou em óbito do paciente, não se encontra fora dos padrões de razoabilidade e proporcionalidade. Precedentes. 4. Recurso improvido. (AgRg no REsp n. 1.037.348-SP, Terceira Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe de 17.8.2011). Civil e Processual. Ação de reparação de danos. Plano de saúde. Erro em tratamento odontológico. Responsabilidade civil. Litisconsórcio necessário não configurado. Cerceamento de defesa inocorrente. Matéria de prova. Reexame. Impossibilidade. Prequestionamento. Ausência. Súmulas n. 282 e n. 356-STF. I. A empresa prestadora do plano de assistência à saúde é parte legitimada passivamente para a ação indenizatória movida por filiado em face de erro verificado em tratamento odontológico realizado por dentistas por ela credenciados, ressalvado o direito de regresso contra os profissionais responsáveis pelos danos materiais e morais causados. II. Inexistência, na espécie, de litisconsórcio passivo necessário. III. Cerceamento de defesa inocorrente, fundado o acórdão em prova técnica produzida nos autos, tida como satisfatória e esclarecedora, cuja desconstituição, para considerar-se necessária a colheita de testemunhos, exige o reexame do quadro fático, com óbice na Súmula n. 7 do STJ. IV. Ausência de suficiente prequestionamento em relação a tema suscitado. V. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 328.309-RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 17.3.2003. Civil e Processual. Ação de indenização. Erro médico. Cooperativa de assistência de saúde. Legitimidade passiva. CDC, arts. 3º e 14. I. A Cooperativa que mantém plano de assistência à saúde é parte legitimada passivamente para ação indenizatória movida por associada em face de erro médico originário de tratamento pós-cirúrgico realizado com médico cooperativado. II. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 309.760-RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 18.3.2002). Civil e Processual. Ação indenizatória. Ressarcimento de despesas médicohospitalares. Plano de saúde. Alegação de erro de diagnóstico no atendimento 366 Jurisprudência da QUARTA TURMA pela rede credenciada. Cirurgia de urgência realizada em nosocômio diverso. Cobertura negada. Extinção do processo por ilegitimidade passiva ad causam. Incorreção. Procedimento da lide. I. A prestadora de serviços de plano de saúde é responsável, concorrentemente, pela qualidade do atendimento oferecido ao contratante em hospitais e por médicos por ela credenciados, aos quais aquele teve de obrigatoriamente se socorrer sob pena de não fruir da cobertura respectiva. II. Recurso conhecido e provido, para reconhecer a legitimidade passiva da ré e determinar o prosseguimento do feito. (REsp n. 164.084-SP, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir passarinho Junior, DJ de 17.4.2000). Civil. Responsabilidade civil. Prestação de serviços médicos. Quem se compromete a prestar assistência médica por meio de profissionais que indica, é responsável pelos serviços que estes prestam. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 138.059-MG, Relator Ministro Ari Pargendler, Terceira Turma Data do Julgamento 13.3.2001). Ressalte-se novamente, a questão da origem da solidariedade está preclusa. Fez-se a ponderação acima apenas para delimitar a controvérsia ora em exame. Retomando o tema principal. A insurgente questiona, tão-somente, os reflexos da transação operada entre os credores e o codevedor, que, segundo sua compreensão, por se tratar de obrigação solidária, ensejariam a quitação do débito também em relação a sua obrigação, na dicção do § 3º do artigo 844 do Código Civil. Razão, entretanto, não lhe assiste. Na realidade, a transação realizada entre codevedor solidário e o credor somente enseja a extinção da dívida em relação aos demais devedores, nos termos do § 3º do artigo 844 do Código Civil, se a referida contratação abarcar a dívida em comum, como um todo. Diversamente, caso a quitação decorrente da transação referir-se, apenas, à parte da dívida, os demais devedores permanecerão vinculados ao débito, solidariamente, descontado, contudo, o valor afeto ao pagamento parcial. Os efeitos jurídicos decorrentes do pagamento parcial, efetivado por um dos devedores solidários, no tocante à subsistência da obrigação comum em relação aos demais obrigados, são peremptoriamente delimitados pelo Código Civil, especificamente em seus artigos 275 e 277. Pela pertinência, transcreve-se os mencionados dispositivos legais: RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 367 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto. Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura da ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores. Art. 277. O pagamento parcial feito por um dos devedores e a remissão por ele obtida não aproveitam aos outros devedores, senão até à concorrência da quantia paga ou relevada. Na solidariedade passiva, constituída para atender os interesses do credor, a este é dada a possibilidade de cobrar integralmente o débito de um dos devedores solidários, sem que tal proceder encerre qualquer ato de liberação em relação aos demais devedores. Da mesma forma, o credor pode cobrar de cada devedor a respectiva quota-parte da dívida em comum, hipótese em que o pagamento por um dos devedores (de sua parte, tão-somente) não importa, a toda evidência, na quitação integral da obrigação. Por óbvio, nesse caso, os demais devedores permanecerão obrigados solidariamente pelo remanescente do débito (descontado, portanto, o valor referente ao pagamento parcial). Na hipótese dos autos, como se trata de apenas dois devedores solidários, a liberação do devedor que, por meio da transação, obteve a quitação de sua quota parte, faz com que o devedor remanescente responda pelo saldo, pro rata. Caio Mário, referindo-se à abrangência do pagamento parcial efetivado por um dos devedores solidários, ou à remissão por ele obtida, é assente em fixar a aludida linha de exegese, evidenciando a conservação da obrigação em relação aos demais, deduzido desta o valor afeto à parcial quitação: todos os devedores continuam obrigados pelo remanescente, acrescendo que o vínculo continua com as mesmas características, isto é, subsiste a solidariedade entre todos os devedores pelo saldo devedor. Daí a consequência imediata: efetuando um dos devedores pagamento parcial, ficam os demais exonerados até a concorrência da quantia paga, e solidariamente devedores do restante (...). A remissão, obtida por um dos devedores, prevalece na extensão em que foi concedida, aproveitando aos demais co-devedores, até a concorrência da quantia relevada (Código Civil de 2002, art. 277). Há, pois, diferença nos efeitos da remissão, na solidariedade ativa e na passiva, pois que, se naquela a que concede qualquer credor extingue a obrigação, nesta opera a extinção até a concorrência da quantia remitida, ou seja, na parte correspondente ao devedor perdoado. Por isso é que a doutrina aconselha uma ressalva: em se tratando de remissão pessoal, isto é, 368 Jurisprudência da QUARTA TURMA o perdão dado pelo credor a um determinado devedor, somente este se exonera da obrigação, e nada mais deve, cabendo tão-somente abater, na totalidade da dívida, a parte correspondente ao devedor forro (...). Se o credor houver perdoado toda a dívida, extingue-se a obrigação, e é oponível a todos os co-obrigados. Sendo a remissão dada a um dos co-devedores, Fica este liberado, mas a faculdade de demandar o pagamento aos demais co-obrigados está subordinada à dedução da parte relevada. Se o credor exigir de qualquer delas a solução da obrigação, o devedor demandado pode opor ao credor a remissão, somente até à concorrência da parte remetida, pois quanto ao remanescente a solidariedade sobrevive. O mesmo que ocorre com a remissão estende-se a qualquer outra modalidade de solução da obrigação (...). Renunciando em favor de um ou de alguns dos devedores, altera-se a situação de todos os coobrigados, em situação análoga a do credor que recebe pagamento parcial de um dos devedores, ou lhe remite parte da dívida. Exonerando da solidariedade um ou mais devedores, subsiste ela quanto aos demais. A redação do parágrafo único do art. 282 do Código Civil de 2002 não foi feliz. Reproduzindo sempre, quase literalmente, o velho Código, deixou uma dúvida que ele afastava. Dizia, então, que ao credor renunciante somente era lícito acionar aos demais, abatendo no crédito a parte correspondente ao devedor remitido. Embora não o diga expressamente, outro não deve ser o entendimento do parágrafo. Se ao credor, renunciando à solidariedade em favor de um dos co-devedores, fosse lícito reclamar a dívida toda contra qualquer dos outros, estaria realizando uma renúncia apenas nominal, sem efeito prático. Demais disso, beneficiando um credor com a renúncia, estaria agravando a situação dos demais, contra o disposto no art. 278 do novo Diploma. O conceito de renúncia é o mesmo que advém do art. 114 do Código Civil de 2002. Pode ser expressa, quando o credor declara, sem reservas, que abre mão da solidariedade e restitui aos devedores a faculdade de solver por partes. É tácita quando resulta de uma atitude ou comportamento do credor, incompatível com a solidariedade. Lembram os autores, como casos de renúncia tácita: a) receber o credor quota parte de um devedor, dando-lhe quitação; b) demandar judicialmente um dos devedores, pela sua parte na dívida: não se confunde a situação com a do credor que ajuíza ação contra um devedor pela dívida toda; c) receber o credor, habitualmente, a partir de um dos devedores nos juros e frutos. Essas outras hipóteses ocorrentes deixam, entretanto, de constituir uma renúncia à solidariedade, se o credor ressalvar o direito de manter o vínculo da solidariedade (Código Civil de 2002, art. 282) (Instituições de direito civil, vol. 02. Teoria geral das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2004, 20ª ed. pp. 96, 104). Outro não é o escólio de Sílvio de Salvo Venosa: [...] Se o credor já recebeu parcialmente a dívida, não poderá exigir dos demais codevedores a totalidade, mas deverá abater o que já recebeu. O credor pode exigir parcialmente a dívida apenas se desejar, porque a obrigação não é essa. No entanto, se já foi paga parcialmente, por iniciativa de um dos devedores e com a concordância do credor, os demais devedores podem pagar o saldo, não sendo RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 369 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA mais obrigados pela dívida toda (cf. MONTEIRO, 1979, v. 4, p. 188, LOPES, 1966, v. 2, p. 162; e WALD, 1979, P. 41, entre outros). Da mesma forma operamos com a remissão parcial. Ocorre o contrário, porém, do que sucede na solidariedade ativa (art. 269). Quando o credor perdoa a dívida em relação a um dos devedores solidários, isso não faz com que a dívida desapareça com relação aos demais devedores, que permanecem vinculados à solução da dívida, com abatimento daquela parte que foi dispensada pelo credor. Se, contudo, a remissão ocorrer totalmente e sem ressalvas, atinge toda a dívida e todos os devedores. O mesmo contexto se aplica a todas as modalidades de extinção das obrigações (Código Civil Interpretado, Editora Atlas, São Paulo, 2010, p. 308). Na espécie, o instrumento particular de transação celebrado entre os recorridos e o Centro Radiológico da Lagoa Ltda., conforme reconhecido pelo Tribunal de origem, não deixa margem de dúvida acerca da abrangência do pacto, consignando expressamente que o acordo teve por finalidade encerrar o conflito de interesse existente entre as partes contratantes, tão-somente, “perdurando assim o litígio somente em face de Golden Cross”. Conforme preceitua o artigo 843 da lei adjetiva civil, os termos de uma transação devem ser interpretados restritivamente. Nessa medida, os direitos declarados ou reconhecidos em tal contratação produzem efeitos em relação às partes nela envolvidas, sem beneficiar ou prejudicar terceiros que dela não fizeram parte (“res inter alios acta”). Assim, atendo-se aos termos pactuados, não se afigura possível estender os efeitos da quitação conferida ao devedor solidário, relativa, única e exclusivamente, à sua quota-parte da dívida em comum, ao codevedor que, na transação, não interveio. Em situação similar a tratada nos autos, destaca-se os seguintes precedentes desta Corte: Responsabilidade civil. Indenização. Explosão de navio. Derramamento de óleo. Contenção. Não ocorrência. Responsabilidade solidária entre a administradora do porto e empresa proprietária do navio. Transação. Quitação parcial. Exclusão de um dos devedores. Quantum indenizatório remanescente. Divisão pro rata. 1. A quitação dada a um dos responsáveis pelo fato, réu da ação indenizatória, no limite de sua responsabilidade, não inibe a ação contra o outro devedor solidário. 2. Quando o credor dá quitação parcial da dívida - mesmo que seja por meio de transação - tal remissão por ele obtida não aproveita aos outros devedores, senão até a concorrência da quantia paga ou relevada. 370 Jurisprudência da QUARTA TURMA 3. Fica explicitado que a transação significou a liberação do devedor que dela participou com relação à quota-parte pela qual era responsável. Em razão disso, a ação contra a Recorrida somente pode ser pelo saldo que, pro rata, à esta cabe. 4. Recurso Especial não provido. (REsp n. 1.079.293-PR, Relator Ministro Carlos Fernando Mathias - Juiz Federal convocado do TRF 1ª Região, Quarta Turma, DJe 28.10.2008) grifos desta Relatoria. Dirieto Civil. Solidariedade passiva. Transação com um dos co-devedordes. Outorga de quitação plena. Presunção de renúncia à solidariedade. Direito Civil. Indenização. Dano efetivo. Danos morais. Alteração pelo STJ. Valor exorbitante ou ínifmo. Possibilidade. Direito Processual Civil. Sucumbência. Fixação. Pedidos formulados e pedidos efetivamente procedentes. - Na solidariedade passiva o credor tem a faculdade de exigir e receber, de qualquer dos co-devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum. Havendo pagamento parcial, todos os demais co-devedores continuam obrigados solidariamente pelo valor remanescente. O pagamento parcial efetivado por um dos co-devedores e a remissão a ele concedida, não alcança os demais, senão até a concorrência da quantia paga ou relevada. - Na presente lide, contudo, a sobrevivência da solidariedade não é possível, pois resta apenas um devedor, o qual permaneceu responsável por metade da obrigação. Diante disso, a conseqüência lógica é que apenas a recorrida permaneça no pólo passivo da obrigação, visto que a relação solidária era constituída de tão-somente dois co-devedores. - O acolhimento da tese da recorrente, no sentido de que a recorrida respondesse pela integralidade do valor remanescente da dívida, implicaria, a rigor, na burla da transação firmada com a outra devedora. Isso porque, na hipótese da recorrida se ver obrigada a satisfazer o resto do débito, lhe caberia, a teor do que estipula o art. 283 do CC/2002, o direito de exigir da outra devedora a sua quota, não obstante, nos termos da transação, esta já tenha obtido plena quitação em relação à sua parte na dívida. A transação implica em concessões recíprocas, não cabendo dúvida de que a recorrente, ao firmá-la, aceitou receber da outra devedora, pelos prejuízos sofridos (correspondentes a metade do débito total), a quantia prevista no acordo. Assim, não seria razoável que a outra devedora, ainda que por via indireta, se visse obrigada a despender qualquer outro valor por conta do evento em relação ao qual transigiu e obteve quitação plena. - Os arts. 1.059 e 1.060 do CC/2002 exigem dano material efetivo como pressuposto do dever de indenizar. O dano deve, por isso, ser certo, atual e subsistente. Precedentes. - A intervenção do STJ, para alterar valor fixado a título de danos morais, é sempre excepcional e justifica-se tão-somente nas hipóteses em que o quantum seja ínfimo ou exorbitante, diante do quadro delimitado pelas instâncias ordinárias. Precedentes. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 371 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - A proporcionalidade da sucumbência deve levar em consideração o número de pedidos formulados na inicial e o número de pedidos efetivamente julgados procedentes ao final da demanda. Precedentes. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesse ponto, provido. (REsp n. 1.089.444-PR, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma DJe 3.2.2009) grifos desta Relatoria. Direito Civil. Responsabilidade solidária. Acordo entre as partes. Quitação parcial. Exclusão de um dos devedores 1. O art. 844, § 3º, do Código Civil estabelece que a transação não aproveita nem prejudica senão aos que nela intervierem. Contudo, se realizada entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue-se a dívida em relação aos codevedores. 2. A quitação parcial da dívida dada pelo credor a um dos devedores solidários por meio de transação, tal como ocorre na remissão não aproveita aos outros devedores, senão até a concorrência da quantia paga. 3. Se, na transação, libera-se o devedor que dela participou com relação à quota-parte pela qual era responsável, ficam os devedores remanescentes responsáveis somente pelo saldo que, pro rata, lhes cabe. 4. Agravo provido. (AgRg no REsp n. 1.002.491-RN, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJe 1º.7.2011) grifos desta relatoria. Ressalta-se, ainda, que a argumentação expendida pela recorrente, no sentido de que a dívida não poderia ser considerada comum, pois pendente de fixação do valor devido no bojo da ação indenizatória, não prospera, pois carente de amparo legal. Assinala-se, no ponto, restar incontroverso nos autos que Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. e Centro de Radiológico da Lagoa Ltda. são solidariamente responsáveis pela obrigação de ressarcir os prejuízos, de ordem moral, suportados pelos ora recorridos. Assim, o fato de o valor do débito depender de definição judicial, efetivamente, não desnatura a obrigação que é solidária, tampouco leva à conclusão de que a retrocitada transação abarcaria, como um todo, o valor devido. Em se tratando de ação de indenização por danos morais, não é demasiado destacar que, mesmo que os autores tivessem requerido a condenação dos réus ao pagamento de determinado valor, este seria meramente estimativo, e, como tal, igualmente dependente de fixação judicial. Não obstante, a solidariedade da obrigação remanesceria incólume. No caso em exame, levando-se em conta o valor despendido pelo codevedor, Centro de Radiológico da Lagoa Ltda., para quitar a sua parcela do débito (R$ 372 Jurisprudência da QUARTA TURMA 6.000,00 - seis mil reais), devidamente aceito pelos recorridos, o Tribunal de origem arbitrou, de forma equânime, como seria de rigor, a mesma quantia, referente à parte da dívida de responsabilidade da ora recorrente, Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. Referido quantum consiste justamente no saldo, pro rata, da obrigação. Conclui-se, portanto, que a transação entabulada entre os credores e o codevedor solidário, por se referir exclusivamente a sua quota-parte do débito, não enseja a extinção da obrigação em relação ao outro devedor, não se aplicando à espécie o § 3º do artigo 844 do Código Civil, tal como pretendido pela recorrente. 2. Passa-se, doravante, a sopesar as razões do recurso especial interposto por Luciana Couto Sanches, Waldir Moreira Corrêa Junior e Gabriela Sanches Corrêa. Discute-se, no presente apelo nobre, se a terceira autora, à época dos fatos, na condição de nascituro, faz jus à indenização por danos morais, em virtude da elaboração de exame de ultrassonografia com Translucência Nucal, cujo resultado, erroneamente, indicou que seria portadora de Síndrome de Down. Debate-se, também, se a fixação de R$ 6.000,00, a título de indenização por danos morais, relativo à quota-parte do débito da Golden Cross, revela-se irrisório. Questiona-se, ainda, o termo a quo para a incidência da correção monetária e dos juros de mora. 2.1. No ponto, os insurgentes proclamam a possibilidade de a terceira recorrente sofrer danos morais, mesmo ostentando a qualidade de nascituro quando do erro de diagnóstico já aludido, o qual teria lhe impingido efeitos psicológicos deletérios. A insurgência não merece prosperar. Primeiramente, ressalte-se o inequívoco avanço, na doutrina, assim como na jurisprudência, acerca da proteção dos direitos do nascituro. A par das teorias que objetivam definir, com precisão, o momento em que o indivíduo adquire personalidade jurídica, assim compreendida como a capacidade de titularizar direitos e obrigações (em destaque, as teorias natalista, da personalidade condicional e a concepcionista), é certo que o nascituro, ainda que considerado como realidade jurídica distinta da pessoa natural, é, igualmente, titular de direitos das personalidade (ao menos, reflexamente). Os direitos da personalidade, por sua vez, abrangem todas as situações jurídicas existenciais que se relacionam, de forma indissociável, aos atributos RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 373 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA essenciais do ser humano. Segundo a doutrina mais moderna sobre o tema, não há um rol, uma delimitação de tais direitos. Tem-se, na verdade, uma cláusula geral de tutela da pessoa humana, que encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, norteador do Estado democrático de direito. Nesse sentido, manifesta-se autorizada doutrina: Em especial, a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana no texto constitucional permitiu que fosse superada a controvérsia entre as teorias pluralistas, defensora da existência de múltiplos direitos da personalidade, e monista, que sustentava a existência de um único direito de personalidade, originário e geral. Ambas revelam-se insuficientes, mostrando-se vinculadas ao paradigma dos direitos subjetivos patrimoniais, em especial ao modelo do direito de propriedade (Gustavo Tepedino, “A tutela da Personalidade”, p. 45). [...] Como ressalta Pietro Perlingieri: “A esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ter. Na categoria do ‘ser’ não há a dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica (Perfis, p. 155)”. Portanto o princípio previsto no artigo 1º, III, da Constituição funciona como uma cláusula geral da personalidade, permitindo a utilização dos mais diversos instrumentos jurídicos para sua salvaguarda (Tepedino, Gustavo; Barboza, Heloísa Helena; Moraes, Maria Celina Bodin de, Código Civil Interpretado conforme à Constituição da República, Vol I, 2ª Edição Revista e Atualizada, Ed. Renovar, 2007, p.33) Assim, a retrocitada cláusula geral permite ao magistrado, com esteio no princípio da dignidade da pessoa humana, conferir, em cada caso concreto, proteção aos bens da personalidade, consistentes na composição da integridade física, moral e psíquica do indivíduo, compatível com o contexto cultural e social de seu tempo. Nessa linha de raciocínio, é certo que o nascituro, compreendido como o ser já concebido, mas ainda inserido no ventre materno, por guardar em si a potencialidade de se tornar a pessoa humana, é merecedor de toda proteção do ordenamento jurídico, destinada a garantir o desenvolvimento digno e saudável no meio intra-uterino e o conseqüente nascimento com vida. Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, em decisão célebre e paradigmática, exarada no bojo da Ação Direita de Inconstitucionalidade sobre a Lei de Biossegurança (ADI n. 3.510-DF), bem delimitou o parâmetro de proteção que se deve conferir à vida, em desenvolvimento no meio intra-uterino. Traz-se à colação a ementa do julgado, deveras esclarecedora, no que importa à controvérsia: 374 Jurisprudência da QUARTA TURMA [....] III - A Proteção constitucional do direito à vida e os direitos infraconstitucionais do embrião pré-implanto. O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria “natalista”, em contraposição às teorias “concepcionista” ou da “personalidade condicional”). E quando se reporta a “direitos da pessoa humana” e até dos “direitos e garantias individuais” como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais “à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica. Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança (“in vitro” apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição. [...] (STF, ADI n. 3.510-DF, Relator Ministro Ayres Brito, DJ. 28.5.2010). Delineados tais apontamentos, reconhece-se a possibilidade, em tese, de o nascituro vir a sofrer danos morais, decorrentes da violação da dignidade da pessoa humana (em potencial), desde que estes, de alguma forma, comprometam o seu desenvolvimento digno e saudável no meio intra-uterino e o consequente nascimento com vida, ou repercutam na vida após o nascimento. É bem verdade que a possibilidade de o nascituro ser indenizado por danos extrapatrimoniais é excepcional, somente se justificando a condenação, na linha de precedentes deste Superior Tribunal de Justiça, ante a projeção de danos por sobre a qualidade da gestação, aptos a afetarem a saúde fetal, ou que resultem na privação da convivência com seus genitores (AREsp n. 150.297-DF, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJ de 10.12.2012; Ag n. 1.268.980-PR; AgRg no RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 375 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ag n. 1.092.134-SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, julgado em 17.2.2009, DJe 6.3.2009; e, REsp n. 931.556-RS, Relator Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 5.8.2008). Assim, em que pese entender o STJ “que o nascituro também tem direito a indenização por danos morais” (Ag n. 1.268.980-PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJ de 2.3.2010), não é toda situação jurídica a que submetida o concebido que ensejará o dever de reparação, senão aquelas, conforme enfatizado, das quais decorram consequências funestas à saúde do nascituro ou suprimamno do convívio de seus pais ante a morte destes (REsp n. 399.028-SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 15.4.2002). Na hipótese dos autos, o fato que teria ocasionado danos morais à terceira autora, nascituro à época dos fatos, seria o resultado equivocado do exame de ultrassonografia com Translucência Nucal, que indicou ser ela portadora de “Síndrome de Down”. Ocorre que, segundo a moldura fática delineada pela Corte a quo, a genitora, no dia seguinte ao recebimento do resultado do exame que trazia a equivocada informação quanto à síndrome cromossômica, submeteu-se, novamente, ao mesmo exame, cujo resultado mostrou-se diverso, isto é, descartou a sobredita patologia. Não se olvida, tampouco se minimiza, o abalo psíquico que os pais suportaram em virtude de tal equívoco, dano, contudo, que não se pode estender ao nascituro, na esteira dos precedentes desta Corte Superior. Portanto, não há se falar em dano moral suportado pelo nascituro, pois, dos contornos fáticos estabelecidos pelas instâncias ordinárias, sobressai clarividente que tal erro não colocou em risco a gestação, e tampouco repercutiu na vida da terceira autora, após seu nascimento. No ponto, registre-se que os exames que poderiam colocar a gravidez em risco (Amniocentese e biópsia de vilo corial), como sustentado, não foram realizados. Mesmo o mal-estar suportado pela primeira-autora, após o recebimento da notícia, não importou em riscos à gravidez, a considerar a documentação colacionada aos autos e levada em conta pelo Tribunal de piso. Assim, irretorquível as decisões exaradas pelas instâncias ordinárias, que, de forma uníssona, afastaram o pedido de indenização por dano moral efetivado pela terceira autora, na condição de nascituro, à época dos fatos. 2.2. Da mesma forma, razão não assiste aos recorrentes, no que se refere à pretensão de majorar a verba indenizatória a ser paga pela codevedora Golden Cross, fixada pela Corte de Justiça Estadual em R$ 6.000,00 (seis mil reais). 376 Jurisprudência da QUARTA TURMA A argumentação expendida pelos recorrentes, em que se argumenta ser ínfimo o quantum indenizatório, além de encerrar inequívoca contradição no proceder dos recorrentes, que reputaram tal valor absolutamente suficiente para reparar o dano moral suportado, em relação à parte da obrigação de responsabilidade da outra codevedora, desconsidera, em absoluto, o regramento pertinente às obrigações solidárias, já exposto. Efetivamente, não há uma razão lógica para que os recorrentes, ao mesmo tempo em que consideram justo e razoável o valor de R$ 6.000,00 (seis mil reais), para que a devedora solidária (Centro de Radiológico do Lago Ltda.) quite sua quota-parte da obrigação, conforme acordado nos termos da transação entre eles entabulada, reputem irrisório tal valor, em relação à parte da obrigação a ser suportada pelo devedor remanescente (Golden Cross). Como assinalado, quando da análise do recurso especial da Golden Cross, em se tratando de apenas dois devedores solidários, a liberação do devedor que, por meio da transação, obteve a quitação de sua quota parte, faz com que o devedor remanescente responda pelo saldo, pro rata. Desta forma, o Tribunal de origem, ao fixar o referido valor, também para o devedor solidário, bem observou, como seria de rigor, os efeitos gerados pelo pagamento parcial efetuado por um devedor, em se tratando de obrigação solidária. Ademais, o quantum indenizatório arbitrado, isoladamente considerado, não pode ser considerado ínfimo. Não obstante o grau de subjetivismo que envolve o tema, uma vez que não existem critérios predeterminados para a quantificação do dano moral, esta Corte Superior tem reiteradamente se pronunciado no sentido de que a indenização deve ser suficiente a restaurar o bem estar da vítima, desestimular o ofensor em repetir a falta, não podendo, ainda, constituir enriquecimento sem causa ao ofendido. Com a apreciação reiterada de casos semelhantes, concluiu-se que a intervenção desta Corte ficaria limitada aos casos em que o quantum fosse irrisório ou excessivo, diante do quadro fático delimitado em primeiro e segundo graus de jurisdição. Assim, se o arbitramento do valor da compensação por danos morais foi realizado com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível sócio-econômico do recorrido e, ainda, ao porte econômico do recorrente, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, fazendo uso de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, o STJ tem RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 377 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA por coerente a prestação jurisdicional fornecida (REsp n. 259.816-RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 27.11.2000). Na espécie, em que pese o abalo psíquico suportado pelos dois primeiros autores, decorrente do resultado da ultrassonografia que indicava, erroneamente, ser o feto portador de Síndrome de Down, é certo que, já no dia seguinte, mediante a repetição do exame, a verdade dos fatos foi restabelecida. Um terceiro exame, efetuado imediatamente, dissipou, conforme noticiado, as dúvidas do casal sobre a saúde do filho vindouro. Ainda que se repute verossímil a alegação de que o sentimento de angústia dos pais tenha perdurado por algum tempo, o equívoco do exame, em si, não influiu no sadio desenvolvimento da gestação. Assim, a quantia de R$ 6.000,00 (seis mil reais), somada ao valor despendido pela outra devedora solidária (Centro Radiológico do Lago Ltda. (no mesmo valor), perfazendo a importância de R$ 12.000,00 (doze mil reais), revela-se razoável e proporcional aos danos suportados, guardadas as peculiaridades do caso. Portanto, o pedido de majoração da verba indenizatória, por todos os ângulos que se aborde a questão, não comporta acolhimento. 2.3. Por fim, os recorrentes insurgem-se contra o termo a quo, fixado, pelo Tribunal de origem, para a incidência da correção monetária e dos juros moratórios. Conforme relatado, a Corte de Justiça Estadual condenou a ora recorrida, ao pagamento, a título de danos morais, no importe de R$ 6.000,00, a ser corrigido a partir daquela decisão e com juros de mora de 1% ao mês, a incidir da citação. O vínculo que une as partes e do qual exsurge o dever de indenizar é, inequivocamente, contratual, razão pela qual os juros moratórios referentes à reparação por dano moral, em tal caso, incidem a partir da citação. A correção monetária do valor da indenização pelo dano moral dá-se a partir da data em que restou arbitrada, no caso, por ocasião da prolação do acórdão que julgou a apelação, consoante o Enunciado n. 362 da Súmula do STJ. Nesse sentido: Agravo regimental em recurso especial. Ação de indenização por danos morais. Erro médico. Negativa de prestação jurisdicional. Responsabilidade contratual. Juros moratórios. Correção monetária. Termo inicial. 1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte. 378 Jurisprudência da QUARTA TURMA 2. Os juros moratórios referentes à reparação por dano moral, na responsabilidade contratual, incidem a partir da citação. 3. A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento, consoante a Súmula n. 362-STJ. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp n. 1.132.658-MG, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 29.8.2012). E ainda: AgRg no AREsp n. 182.174-PA, Relator Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe 29.8.2012, REsp n. 933.067-MG, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma DJe 17.12.2010; REsp n. 1.127.279 Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Data da Publicação 19.2.2013; Ag n. 1.390.524 Relator Ministro Raul Araújo, Data da Publicação 9.3.2012. Escorreito, portanto, os termos iniciais da correção monetária e dos juros monetários fixados na origem. 3. Do exposto, nego provimento aos recursos especiais interpostos por Luciana Couto Sanches, Waldir Moreira Corrêa Junior e Gabriela Sanches Corrêa e Golden Cross Assistência Internacional de Saúde Ltda. É como voto. VOTO VENCIDO O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, reputo relevantes salientar os aspectos que restam preclusos, nos termos do voto do eminente Relator, para evitar que repassemos determinados pontos envolvidos na lide. Peço vênia para acompanhar a divergência inaugurada pela eminente Ministra Isabel Gallotti. Entendo também que a regra do § 3º do art. 844 do Código de Processo Civil tem o exato significado para situações como essa que temos sob julgamento, e não para aquelas referidas no judicioso voto do eminente Relator. Temos aqui a solidariedade entre a clínica e o plano de saúde, mas, na cadeia interna, a causadora única do dano sendo a clínica, a Golden Cross poderia, mediante ação regressiva, cobrar o que tivesse de pagar ao consumidor em razão da solidariedade. A cadeia externa é de solidariedade, mas a interna é regressiva. Neste caso, pode-se facilmente distinguir entre a cadeia externa e a cadeia interna, sendo aplicável a regra do § 3º do art. 844. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 379 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA VOTO-ANTECIPADO (VENCIDO) A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, acompanho as teses expostas pelo eminente Relator, quando afirma que se trata de relação de consumo e que, portanto, há relação de solidariedade entre o hospital e o plano de saúde. Se o plano de saúde credenciou o hospital e o hospital cometeu um vício de serviço - e aqui não se discute se esse exame com resultado errado foi um vício de serviço, isso já está precluso, se houve dano moral a despeito de no dia seguinte ter sido refeito o exame, tudo isso é matéria preclusa que não está em discussão - então, de fato, temos um serviço prestado defeituosamente pelo Hospital da Lagoa, que causou dano moral. E temos a responsabilidade solidária do plano de saúde que credenciou esse hospital. Toda essa parte do voto do Relator não me causa dúvida, está na linha da jurisprudência deste Tribunal. Mas na solidariedade, que pode resultar da lei ou do contrato, há uma relação interna e uma relação externa. Na relação externa, ou seja, dos devedores solidários em relação a esse casal, não há dúvida de que o casal poderia cobrar toda a reparação só da Golden Cross, só do hospital ou de ambos. Minha divergência se situa quanto à relação interna. Ensina Caio Mário da Silva Pereira: Também uma consequência da distinção entre as relações internas e as relações externas na solidariedade passiva é esta: independentemente de ser a dívida solidária do interesse de um só dos devedores, o credor pode havê-la de qualquer deles. Mas, internamente, se for do interesse exclusivo de um só, responderá este por toda ela para com aquele que houver pago (Código Civil de 2002, art. 285). Neste ponto, abre o Código exceção à regra do art. 283. Ao aludir à divida que interessar exclusivamente a um dos devedores, o Código refere-se ao fato de, pelo título, ou pelas circunstâncias, um dos devedores for o obrigado principal. É o que ocorre com a solidariedade decorrente de fiança ou aval, em que a dívida interessa ao devedor principal. Solvida a obrigação pelo fiador ou avalista, tem o direito de ser reembolsado, na sua totalidade, contra o afiançado ou avalizado. Corolário deste princípio é que, se a obrigação for solvida pelo devedor principal, não tem direito a agir contra os fiadores ou avalistas para deles haver sua quota na dívida, embora esta, em relação ao credor, seja comum a todos os sujeitos ao vínculo de solidariedade. 380 Jurisprudência da QUARTA TURMA Então, em relação ao credor, havia uma dívida comum que ele poderia exigir tanto do plano de saúde quanto do hospital. Ele tinha essa opção. Fez, então, uma transação com um dos devedores solidários, que era o hospital. O hospital foi o causador direto do dano; era o devedor principal. O plano somente era responsável por haver credenciado o hospital. Nenhum outro ato era imputado ao plano. Essa transação não foi parcial, foi total, porque deu plena quitação àquele devedor solidário, ao causador do dano. Entendo que essa quitação foi total, porque, a partir dela, eximiu-se totalmente a responsabilidade da Clínica da Lagoa. É certo que, no instrumento de transação, expressou o credor que pretendia continuar com a ação contra a Golden Cross. Isso, a meu ver, não torna a quitação parcial. Parcial seria se o credor afirmasse “estou dando quitação só dos danos materiais, mas não dos morais”, caso em que poderia prosseguir em relação à parte não quitada perante ambos os devedores solidários. Mas não, ele deu quitação total para o Hospital da Lagoa e disse que pretendia prosseguir em relação à Golden Cross. Impõe-se, portanto, a aplicação do art. 844, § 3º, do Código Civil, fundamento do recurso especial, segundo o qual: A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível. (...) § 3º Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos codevedores. O Relator citou precedentes deste Tribunal, um deles é bastante interessante, do Ministro João Otávio de Noronha (REsp n. 1.002.491-RN), em que havia um dano causado por um erro médico, e a ação foi proposta contra o anestesista e contra a clínica. Houve um acordo entre a vítima e o anestesista. A vítima prosseguiu com a ação contra a clínica e se entendeu que o fato de ter sido dada a quitação ao anestesista não impedia o prosseguimento da ação contra a clínica. A solução foi perfeita, no caso julgado pelo Ministro João Otávio de Noronha, porque havia a imputação de responsabilidade à clínica por uma circunstância diversa da imputada ao anestesista. No citado precedente, houve um erro do médico, e, além desse erro, a clínica contribuiu para o resultado danoso, porque não tinha suporte para prestar socorro em caso de eventual reação adversa. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 381 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Houve, portanto, duas causas as quais contribuíram para o resultado: o erro do médico e a falta de estrutura da clínica. Quando o credor fez o acordo com o médico, o médico, naturalmente, só pode responder pelo erro que cometeu, e não pela falta de estrutura da clínica. Por isso afirma o voto do Ministro João Otávio de Noronha, que a ação contra a clínica pode prosseguir em relação a sua quota-parte de responsabilidade. Ele concluiu que a clínica ficava liberada apenas no limite da quota-parte do médico por ele já quitada, e disse o seguinte na ementa: A quitação parcial da dívida dada pelo credor a um dos devedores solidários por meio de transação não aproveita aos outros devedores, senão até a concorrência da quantia paga. Se, na transação, libera-se o devedor que dela participou com relação à quota-parte pela qual era responsável, ficam os devedores remanescentes responsáveis somente pelo saldo que, pro rata, lhes cabe. O acórdão do Ministro Carlos Mathias (REsp n. 1.079.293) também aprecia circunstância muito parecida, em que é possível verificar um ato ilícito ou um defeito praticado por ambos os elementos da cadeia. Aqui foi acidente em que um navio explodiu. A ação de indenização foi proposta contra o proprietário do navio que explodiu e contra a empresa responsável pelo porto. Houve um acordo com o proprietário do navio e prosseguiu-se com ação contra o porto. E se concluiu que o acordo com o proprietário do navio não isentava, não abrangia a quota-parte do porto, porque o porto falhou na contenção de óleo em caso de vazamento. Houve uma falta de serviço da empresa do porto. Nesses dois casos, e naquele da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, também referente a esse acidente no porto, pode-se dizer que o dano decorreu de uma conduta do dono do navio e de outra do porto, ou uma do médico e outra do hospital. Assim, das circunstâncias de fato da causa, na relação interna da solidariedade, não se pode dizer que o médico, ao indenizar, tenha respondido também pela deficiência de estrutura do hospital e nem que o dono do navio, ao indenizar, tenha respondido pela deficiência da estrutura do porto. O credor poderia exigir a composição do dano plenamente de cada um dos dois. Mas não se pode dizer que cada um dos responsáveis fosse o responsável único na relação interna. Na relação interna da solidariedade, ambos eram responsáveis, e na falta de especificação no título judicial, presume-se que meio a meio era a responsabilidade. 382 Jurisprudência da QUARTA TURMA No caso ora em julgamento, o que acontece? Houve erro de diagnóstico em um exame. Esse erro não foi causado pelo plano de saúde. O plano de saúde está respondendo apenas porque ele garante o serviço prestado pelo hospital que ele credenciou. Ou seja, o hospital fez o exame, houve um erro no exame, o hospital pagou a indenização pactuada com a vítima. Fez uma transação por meio da qual nada mais poderá ser exigido dele, hospital, porque ele fez uma composição. O autor pretende que essa composição seja parcial, porque ele pretende mais um pouco de indenização da parte do plano de saúde. Mas não se alega, por exemplo, que o plano tenha atrasado dias na expedição de uma guia de autorização ou tenha cometido qualquer falha que pudesse justificar responsabilidade própria, que não a de garante da qualidade do serviço do profissional credenciado. Poderia, em tese, haver a situação de uma pessoa doente pedindo ao plano uma guia para tratamento, e o plano demorasse dez dias para liberar a guia, e depois o médico ainda cometesse um erro de procedimento, e ele viesse a sofrer lesão grave ou até morrer. Nesta hipótese figurada, a culpa seria do plano que atrasou a autorização para o tratamento e do médico que cometeu o erro de procedimento, e, na relação interna da solidariedade, haveria responsabilidade de ambas as partes. Neste caso, não. O erro foi todo do hospital. O hospital recebeu quitação plena. Por este motivo, penso que quando é dada quitação integral ao devedor principal, nada mais pode ser exigido contra aquele que tinha obrigação solidária em face do credor, mas que tinha o direito de ser ressarcido em face daquele que pagou. O que vai acontecer nesse caso? Se entendermos que essa obrigação da Golden Cross não é apenas de garante da qualidade do serviço prestado pelo seu credenciado, se entendermos o autor pode exigir uma indenização autônoma da Golden Cross, a Golden Cross terá direito de cobrar dele, hospital, em regresso, porque ela foi condenada a esse pagamento simplesmente porque o credenciado prestou mal o serviço. E, neste ponto, lembro o acórdão do Ministro Aldir Passarinho Junior, no REsp n. 328.309-RJ, também citado no voto do eminente Relator, em que ele diz: A empresa prestadora do plano de assistência à saúde é parte legitimada passivamente em ação de indenização movida por filiado em face de erro verificado em tratamento odontológico realizado por dentistas por ela RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 383 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA credenciados, ressalvado o direito de regresso contra os profissionais responsáveis pelos danos materiais e morais causados. (grifo não constante do original). Ou seja, se o dano já foi indenizado pelos profissionais credenciados, nada mais pode ser cobrado do garante, no caso, o plano de saúde, tendo em vista o disposto no art. 844, § 3º, do Código Civil. No presente caso, já houve quitação dada ao Hospital da Lagoa. Não se imputa nenhum ato ao plano de saúde, exceto haver credenciado esse hospital. Se não se considerar, na linha do que dispõe o art. 844, § 3º, do Código Civil, que a quitação dada ao hospital que cometeu o erro não abrange a quitação do plano de saúde e se condenar o plano de saúde a uma indenização autônoma, que, ao meu ver, se justificaria se houvesse uma parcela de sua responsabilidade na relação interna da solidariedade, estar-se-á dando margem para que o plano vá exercer direito de regresso contra o Hospital da Lagoa, único causador do erro de procedimento. Figuro outro exemplo de cadeia de consumo. Se alguém compra um carro com vício de fabricação, respondem pelo defeito do carro, perante o consumidor, tanto o fabricante quanto a concessionária. Ambos respondem solidariamente. Pode ser exigido um carro novo tanto da fábrica quanto da concessionária. Mas, se a fábrica compuser o dano, fornecendo um carro novo, não se pode exigir um outro carro da concessionária. Ao contrário, se a concessionária repuser o carro, ela poderá pedir à fábrica o ressarcimento pelo prejuízo de ter tido que recompor. Isso porque a obrigação é de interesse exclusivo da fábrica, única causadora do dano. Se houver uma transação entre o consumidor e a fábrica, mediante a qual o consumidor aceite ficar com o carro defeituoso e mais metade do valor de um carro novo, sendo dada quitação à fábrica, não poderá o consumidor exigir mais valor algum da concessionária, a qual respondia solidariamente, na relação externa, perante o consumidor, mas nenhuma responsabilidade tinha, pelo defeito de fabricação, na relação interna da solidariedade. Em síntese: no caso dos autos foi dada quitação ao devedor principal. A despeito da afirmação feita no termo de quitação de que pretendia o consumidor prosseguir com seu pleito perante o plano de saúde, nada mais pode ser exigido daquele que responderia apenas como garante, com direito de regresso contra o causador do dano. A circunstância de haver solidariedade entre todos os integrantes da cadeia de consumo não significa que, na relação interna entre eles, não se deva observar 384 Jurisprudência da QUARTA TURMA quem foi o causador do dano; se ambos têm parcela de culpa pelo evento e quais estão respondendo apenas como garantes em razão do privilégio que a lei dá ao consumidor de poder se ressarcir plenamente perante cada um dos integrantes da cadeia de fornecedores. Pedindo vênia ao relator, dou provimento ao recurso especial da Golden Cross e julgo prejudicados os demais recursos. VOTO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Sr. Presidente, com a devida vênia da divergência, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator. RECURSO ESPECIAL N. 1.327.619-MG (2012/0114670-9) Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti Recorrente: Samarco Mineração S/A Advogado: João Dácio de Souza Pereira Rolim e outro(s) Recorrido: Ana Maria da Costa Pereira Advogado: Antônio Marques Carraro Júnior e outro(s) EMENTA Recurso especial. Juízo arbitral. Cassação de sentença extintiva sem exame de mérito. Reforma. Maioria. Embargos infringentes. Descabimento. Instâncias ordinárias esgotadas. Cláusula compromissória cheia. Vício de consentimento alegado. Artigo 8º, parágrafo único, 20, 32 e 33, da Lei n. 9.307/1996. Recurso especial provido. 1. Não são cabíveis embargos infringentes contra acórdão que, conquanto por maioria, cassa a sentença extintiva e determina a reapreciação da questão na primeira instância. 2. Tratando-se de cláusula compromissória “cheia”, na qual é designado o órgão arbitral eleito, estabelecida em documento RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 385 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA escrito, por partes maiores e capazes, acerca direitos disponíveis, devem as questões acerca de sua interpretação, validade e eficácia ser, em princípio, dirimidas pelo árbitro, restando à parte interessada a possibilidade de impugnação da sentença arbitral nas hipóteses previstas no art. 33 da Lei n. 9.307/1996. 3. Recurso especial conhecido e provido. ACÓRDÃO A Quarta Turma, por unanimidade, conheceu do recurso especial e deulhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão e Raul Araújo Filho votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 20 de agosto de 2013 (data do julgamento). Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora DJe 28.8.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Samarco Mineração S/A interpõe recurso especial, no qual se alega violação aos artigos 535, 267, V, 269, III, 467, 468, 471, do Código de Processo Civil, 104, 171, 849, do Código Civil, 4º, 8º, parágrafo único, 20 e 33, da Lei n. 9.307/1996, associada a dissídio jurisprudencial, em face de acórdão com a seguinte ementa (e-stj fl. 921): Apelação cível. Ação anulatória. Agravo retido. Não conhecimento. Recurso. Negativa de seguimento. Hipóteses. Não caracterização. Acordo. Compromisso arbitral. Nulidade. Competência do Poder Judiciário. Sentença cassada. Não se conhece o agravo retido interposto pela parte se não existe, em sede de apelação ou contrarrazões, pedido expresso de sua apreciação. O recurso de apelação deve ser admitido quando as alegações da parte são suficientes à demonstração do interesse pela reforma do julgado. “Cabe ao Poder Judiciário decidir sobre nulidade de cláusula compromissória fundada em vício de consentimento”. V.v. A sentença de mérito demanda, pela sua natureza e forma, meios próprios de rescisão ou anulação de seu conteúdo e não pode expor-se, depois de transitada em julgado, a demanda anulatória de ato jurídico cumulada com indenização. 386 Jurisprudência da QUARTA TURMA Seguiram-se-lhe embargos de declaração, rejeitados. Colhe-se dos autos que a recorrida, Ana Maria da Costa Pereira, ajuizou ação visando à anulação de cláusula de arbitragem, cumulada com outros pedidos. A sentença extinguiu o processo sem resolução de mérito, nos termos do artigo 267, VII, do Código de Processo Civil, ao fundamento de que o pedido anulatório há de ser apreciado no juízo arbitral, haja vista a existência da referida cláusula de arbitragem homologada judicialmente. Assim consignou o Tribunal Estadual, à e-stj fl. 923: Trata-se de apelação interposta à sentença que, nos autos da “ação anulatória de ato jurídico, cumulada com indenização e com medida cautelar de bloqueio de honorários periciais”, movida por Ana Maria da Costa Pereira em face de Samarco Mineração S/A, julgou extinto o processo sem resolução do mérito, por entender que a existência de compromisso arbitral afasta a competência da Justiça Estadual para o exame das pretensões, inclusive aquela correspondente à anulação do compromisso arbitral. A Corte mineira, todavia, cassou a sentença, determinando-se a apreciação do mérito. Afirmou o acórdão local “que foi celebrado acordo em medida cautelar de Produção Antecipada de Provas, homologado em audiência perante o Juízo de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Ponte Nova, no qual se instituiu a cláusula compromissória de arbitragem” (e-stj fl. 933). Entendeu, contudo, o Tribunal de origem que, “a despeito da existência de cláusula compromissória em negócio jurídico homologado judicialmente, a ação de origem veicula pretensão de sua anulação com fundamento em vício de consentimento, o que devolve ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, afastada a incidência do artigo 267, inciso VII do CPC” (e-stj fl. 933). Isso porque “o suposto vício da referida cláusula precede à instauração do juízo arbitral” (e-stj fl. 935), a par de que “a própria sentença do Juízo Arbitral está sujeita ao crivo do Poder Judiciário, quando questionada a validade do compromisso, a teor do disposto nos arts. 32, I e 33 da Lei n. 9.307/1996 (...)”. Concluiu, assim, que “se a parte interessada pode pleitear a nulidade da sentença arbitral sob a alegação de nulidade do compromisso, nada obsta que desde logo peça que este seja anulado” (e-stj fl. 936). O acórdão deu provimento à apelação por maioria, vencido o revisor, que mantinha a sentença, daí o recurso especial, no qual se sustenta omissão pelo RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 387 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Tribunal local, violação à coisa julgada e competência do juízo arbitral para decidir a questão acerca da validade da cláusula de arbitragem. A recorrida apresentou contrarrazões, nas quais alega o cabimento de embargos infringentes, de modo que instância ordinária não estaria esgotada, requerendo que não se conheça do recurso especial. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora): Com razão o recorrente. De início, afasta-se a alegação de que a instância ordinária não foi exaurida. Isso porque não houve apreciação de mérito pela sentença e nem pelo acórdão estadual, que se limitou ao juízo de cassação, o qual antecede, como se sabe, ao de reforma, determinando-se o prosseguimento do processo na primeira instância. Nesse caso, ainda que por maioria o julgamento proferido pelo Tribunal de segundo grau, são incabíveis embargos infringentes. Para exame, mutatis mutandis: Processual Civil. Violação do art. 530 do CPC. Acórdão que, por maioria, anula sentença. Não cabimento dos embargos infringentes. 1. O art. 530 do CPC dispõe que “cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória”. 2. Portanto, para o cabimento dos embargos infringentes, deve haver uma reforma da sentença de mérito. O juízo de reforma, mediante um julgamento em que se reconhece um error in judicando, não se confunde com o juízo de anulação, em que há a constatação de error in procedendo. 3. O juízo de anulação jamais poderia levar à reforma da sentença, pois, em razão dele, esta deixaria de existir. Não há a substituição da sentença pelo acórdão, mas simplesmente a decretação da sua inexistência jurídica em razão da nulidade processual. 4. Assim, quando a lei condiciona a interposição dos embargos infringentes à reforma da sentença de mérito, não inclui a situação na qual o acórdão exerce um juízo de anulação, ainda que proferido em processo de execução. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp n. 1.296.769-AL, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 13.11.2012, DJe 20.11.2012). 388 Jurisprudência da QUARTA TURMA No mérito, a mesma sorte lhe assiste. Esta Corte Superior, por meio das Turmas que compõem a Segunda Seção, tem sufragado a tese de que quando pactuada cláusula compromissória cheia, ou seja, ao menos com a eleição do órgão arbitral, cabe ao juízo arbitral o exame de eventual vício da cláusula de arbitragem ou compromisso arbitral. Assim, é prematuro o ajuizamento de ação anulatória antes que o juízo arbitral instituído livremente pelas partes, ao menos em princípio, analise suas alegações, haja vista que, nos termos do artigo 8º, parágrafo único, 20, 32 e 33, da Lei n. 9.307/2006, cabe ao árbitro decidir acerca da existência, validade e eficácia do compromisso arbitral ou da cláusula compromissória. Para exame: Processo Civil. Convenção arbitral. Violação ao art. 535 do CPC não configurada. Análise da validade de cláusula compromissória “cheia”. Competência exclusiva do juízo convencional na fase inicial do procedimento arbitral. Possibilidade de exame pelo judiciário somente após a sentença arbitral. 1. Não ocorre violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil quando o Juízo, embora de forma sucinta, aprecia fundamentadamente todas as questões relevantes ao deslinde do feito, apenas adotando fundamentos divergentes da pretensão do recorrente. Precedentes. 2. A cláusula compromissória “cheia”, ou seja, aquela que contém, como elemento mínimo a eleição do órgão convencional de solução de conflitos, tem o condão de afastar a competência estatal para apreciar a questão relativa à validade da cláusula arbitral na fase inicial do procedimento (parágrafo único do art. 8º, c.c. o art. 20 da LArb). 3. De fato, é certa a coexistência das competências dos juízos arbitral e togado relativamente às questões inerentes à existência, validade, extensão e eficácia da convenção de arbitragem. Em verdade - excluindo-se a hipótese de cláusula compromissória patológica (“em branco”) -, o que se nota é uma alternância de competência entre os referidos órgãos, porquanto a ostentam em momentos procedimentais distintos, ou seja, a possibilidade de atuação do Poder Judiciário é possível tão somente após a prolação da sentença arbitral, nos termos dos arts. 32, I e 33 da Lei de Arbitragem. 4. No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil (Camarb) como tribunal arbitral para dirimir as questões oriundas do acordo celebrado, o que aponta forçosamente para a competência exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral, impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito, consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso. Precedentes da Terceira Turma do STJ. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 389 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 5. Recurso especial provido. (REsp n. 1.278.852-MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 21.5.2013, DJe 19.6.2013). Direito Civil e Processual Civil. Arbitragem. Acordo optando pela arbitragem homologado em juízo. Pretensão anulatória. Competência do juízo arbitral. Inadmissibilidade da judicialização prematura. 1. - Nos termos do artigo 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem a alegação de nulidade da cláusula arbitral instituída em Acordo Judicial homologado e, bem assim, do contrato que a contém, deve ser submetida, em primeiro lugar, à decisão do próprio árbitro, inadmissível a judicialização prematura pela via oblíqua do retorno ao Juízo. 2. - Mesmo no caso de o acordo de vontades no qual estabelecida a cláusula arbitral no caso de haver sido homologado judicialmente, não se admite prematura ação anulatória diretamente perante o Poder Judiciário, devendo ser preservada a solução arbitral, sob pena de se abrir caminho para a frustração do instrumento alternativo de solução da controvérsia. 3. - Extingue-se, sem julgamento do mérito (CPC, art. 267, VII), ação que visa anular acordo de solução de controvérsias via arbitragem, preservando-se a jurisdição arbitral consensual para o julgamento das controvérsias entre as partes, ante a opção das partes pela forma alternativa de jurisdição. 4. - Recurso Especial provido e sentença que julgou extinto o processo judicial restabelecida. (REsp n. 1.302.900-MG, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 9.10.2012, DJe 16.10.2012). No caso em exame, a cláusula compromissória, estabelecida em acordo homologado em juízo, elegeu a Câmara Arbitral Empresarial - Brasil - Camarb, com foro em Belo Horizonte, para dirimir quaisquer dúvidas ou controvérsias decorrentes dos fatos em questão (implantação do mineroduto). Não questiona a recorrida haver celebrado o acordo no qual contida a cláusula. Igualmente não há dúvidas acerca de sua capacidade civil. Conforme ressaltado pela sentença, a cláusula compromissória é formalmente válida, consta de acordo escrito, celebrado por partes maiores e capazes, acerca de direitos disponíveis, e foi, inclusive, homologada em audiência (Lei n. 9.307/1996, arts. 1º e 2º). Trata-se de “cláusula cheia”, de forma que correta a extinção do processo judicial sem exame do mérito (CPC, art. 267, VII). As questões referentes ao alegado vício de consentimento deverão ser apreciadas pelo juízo arbitral, 390 Jurisprudência da QUARTA TURMA restando à parte interessada a possibilidade de impugnação da respectiva decisão final nas hipóteses previstas no art. 33 da Lei n. 9.307/1996. Em face do exposto, conheço e dou provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença, que extinguira o processo sem exame de mérito. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.334.097-RJ (2012/0144910-7) Relator: Ministro Luis Felipe Salomão Recorrente: Globo Comunicações e Participações S/A Advogados: José Perdiz de Jesus e outro(s) João Carlos Miranda Garcia de Sousa e outro(s) Recorrido: Jurandir Gomes de França Advogado: Pedro D’alcântara Miranda Filho e outro(s) EMENTA Recurso especial. Direito Civil-Constitucional. Liberdade de imprensa vs. Direitos da personalidade. Litígio de solução transversal. Competência do Superior Tribunal de Justiça. Documentário exibido em rede nacional. Linha Direta-Justiça. Sequência de homicídios conhecida como Chacina da Candelária. Reportagem que reacende o tema treze anos depois do fato. Veiculação inconsentida de nome e imagem de indiciado nos crimes. Absolvição posterior por negativa de autoria. Direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram pena e dos absolvidos. Acolhimento. Decorrência da proteção legal e constitucional da dignidade da pessoa humana e das limitações positivadas à atividade informativa. Presunção legal e constitucional de ressocialização da pessoa. Ponderação de valores. Precedentes de direito comparado. 1. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 391 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal. 2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, que reabriu antigas feridas já superadas pelo autor e reacendeu a desconfiança da sociedade quanto à sua índole. O autor busca a proclamação do seu direito ao esquecimento, um direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado. 3. No caso, o julgamento restringe-se a analisar a adequação do direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações. 4. Um dos danos colaterais da “modernidade líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”, de modo que, na atual sociedade da hiperinformação, parecem evidentes os “riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 111-113). Diante dessas preocupantes constatações, o momento é de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados. 5. Há um estreito e indissolúvel vínculo entre a liberdade de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda 392 Jurisprudência da QUARTA TURMA se autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua e diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do qual nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode descurar - nem o povo, nem as instituições democráticas -, encontra na imprensa livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente consigo reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade democrática. 6. Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo qual passou a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de sua inegável virtude histórica, a mídia do século XXI deve fincar a legitimação de sua liberdade em valores atuais, próprios e decorrentes diretamente da importância e nobreza da atividade. Os antigos fantasmas da liberdade de imprensa, embora deles não se possa esquecer jamais, atualmente, não autorizam a atuação informativa desprendida de regras e princípios a todos impostos. 7. Assim, a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores. 8. Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea com o fato de que, a despeito de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 393 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais direitos posteriormente reconhecidos. Exegese dos arts. 11, 20 e 21 do Código Civil de 2002. Aplicação da filosofia kantiana, base da teoria da dignidade da pessoa humana, segundo a qual o ser humano tem um valor em si que supera o das “coisas humanas”. 9. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de determinada época. Todavia, a historicidade da notícia jornalística, em se tratando de jornalismo policial, há de ser vista com cautela. Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos; mas também há crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos, obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo dos prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal às estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”. 10. É que a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada à custa de vários desvios de legalidade, por isso não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Por isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode significar um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia. 11. É evidente o legítimo interesse público em que seja dada publicidade da resposta estatal ao fenômeno criminal. Não obstante, é imperioso também ressaltar que o interesse público – além de ser conceito de significação fluida – não coincide com o interesse do público, que é guiado, no mais das vezes, por sentimento de execração pública, praceamento da pessoa humana, condenação sumária e vingança continuada. 394 Jurisprudência da QUARTA TURMA 12. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, é imperiosa a aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com base não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente do direito positivo infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito à passagem do tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrandose ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. Precedentes de direito comparado. 13. Nesse passo, o Direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos: prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada, prazo máximo para que o nome de inadimplentes figure em cadastros restritivos de crédito, reabilitação penal e o direito ao sigilo quanto à folha de antecedentes daqueles que já cumpriram pena (art. 93 do Código Penal, art. 748 do Código de Processo Penal e art. 202 da Lei de Execuções Penais). Doutrina e precedentes. 14. Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos registros da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos. 15. Ao crime, por si só, subjaz um natural interesse público, caso contrário nem seria crime, e eventuais violações de direito resolver-seiam nos domínios da responsabilidade civil. E esse interesse público, que é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo penal, finca raízes essencialmente na fiscalização social da resposta estatal que será dada ao fato. Se é assim, o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas consumadas irreversivelmente. E é nesse interregno temporal que se perfaz também a vida útil da informação RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 395 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA criminal, ou seja, enquanto durar a causa que a legitimava. Após essa vida útil da informação seu uso só pode ambicionar, ou um interesse histórico, ou uma pretensão subalterna, estigmatizante, tendente a perpetuar no tempo as misérias humanas. 16. Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana. 17. Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos - historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável. 18. No caso concreto, a despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado – com muita razão – um fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente em situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em rede nacional. Nem a liberdade de imprensa seria tolhida, nem a honra do autor seria maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito. 19. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado. No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda 396 Jurisprudência da QUARTA TURMA ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma reconhecida “vergonha” nacional à parte. 20. Condenação mantida em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), por não se mostrar exorbitante. 21. Recurso especial não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo Filho, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro Luis Felipe Salomão, Relator DJe 10.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Jurandir Gomes de França ajuizou ação de reparação de danos morais em face da TV Globo Ltda. (Globo Comunicações e Participações S.A.). Informou o autor ter sido indiciado como coautor/partícipe da sequência de homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, na cidade do Rio de Janeiro, conhecidos como Chacina da Candelária, mas que, ao final, submetido a Júri, foi absolvido por negativa de autoria pela unanimidade dos membros do Conselho de Sentença. Noticiou que a ré o procurou com o intuito de entevistá-lo em programa televisivo (Linha Direta - Justiça) - posteriormente veiculado -, tendo sido recusada a realização da referida entrevista e mencionado o desinteresse do autor em ter sua imagem apresentada em rede nacional. Porém, em junho de 2006, foi RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 397 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ao ar o programa, tendo sido o autor apontado como um dos envolvidos na chacina, mas que fora absolvido. Segundo entende, levou-se a público situação que já havia superado, reacendendo na comunidade onde reside a imagem de chacinador e o ódio social, ferindo, assim, seu direito à paz, anonimato e privacidade pessoal, com prejuízos diretos também a seus familiares. Alega que essa situação o prejudicou sobremaneira em sua vida profissional, não tendo mais conseguido emprego, além de ter sido obrigado a desfazer-se de todos os seus bens e abandonar a comunidade para não ser morto por “justiceiros” e traficantes e também para proteger a segurança de seus familiares. Por entender que a exposição de sua imagem e nome no mencionado programa foi ilícita e causou-lhe intenso abalo moral, pleiteou o autor indenização no valor de 300 (trezentos) salários mínimos. O Juízo de Direito da 3ª Vara Cível da Comarca da Capital-RJ, sopesando, de um lado, o interesse público da notícia acerca de “evento traumático da história nacional” e que repercutiu “de forma desastrosa na imagem do país junto à comunidade internacional”, e, de outro, o “direito ao anonimato e ao esquecimento” do autor, entendeu por bem mitigar o segundo, julgando improcedente o pedido indenizatório (fls. 130-137). Em grau de apelação, a sentença foi reformada, por maioria, nos termos da seguinte ementa: Apelação. Autor que, acusado de envolvimento na Chacina da Candelária, vem a ser absolvido pelo Tribunal do Júri por unanimidade. Posterior veiculação do episódio, contra sua vontade expressa, no programa Linha Direta, que declinou seu nome verdadeiro e reacendeu na comunidade em que vivia o autor o interesse e a desconfiança de todos. Conflito de valores constitucionais. Direito de Informar e Direito de Ser Esquecido, derivado da dignidade da pessoa humana, prevista no art.1º, III, da Constituição Federal. I - O dever de informar, consagrado no art. 220 da Carta de 1988, faz-se no interesse do cidadão e do país, em particular para a formação da identidade cultural deste último. II - Constituindo os episódios históricos patrimônio de um povo, reconhece-se à imprensa o direito/dever de recontá-los indefinidamente, bem como rediscutilos, em diálogo com a sociedade civil. III - Do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, e do direito que tem todo cidadão de alcançar a felicidade, restringe-se a informação, contudo, no que toca àqueles que, antes anônimos, foram absolvidos em processos criminais e retornaram ao esquecimento. 398 Jurisprudência da QUARTA TURMA IV - Por isto, se o autor, antes réu, viu-se envolvido em caráter meramente lateral e acessório, em processo do qual foi absolvido, e se após este voltou ao anonimato, e ainda sendo possível contar a estória da Chacina da Candelária sem a menção de seu nome, constitui abuso do direito de informar e violação da imagem do cidadão a edição de programa jornalístico contra a vontade expressamente manifestada de quem deseja prosseguir no esquecimento. V - Precedentes dos tribunais estrangeiros. Recurso ao qual se dá provimento para condenar a ré ao pagamento de R$ 50.000,00 a título de indenização (fls. 195-196). Opostos embargos infringentes, também por maioria, foram eles rejeitados nos termos da seguinte ementa: Embargos infringentes. Indenizatória. Matéria televisivo-jornalística: “chacina da Candelária”. Pessoa acusada de participação no hediondo crime e, alfim, inocentada. Uso inconsentido de sua imagem e nome. Conflito aparente entre princípios fundamentais de Direito: Informação “vs” Vida Privada, Intimidade e Imagem. Direito ao esquecimento e direito de ser deixado em paz: sua aplicação. Proteção da identidade e imagem de pessoa não-pública. Dados dispensáveis à boa qualidade jornalística da reportagem. Dano moral e dano à imagem: distinção e autonomia relativa. Indenização. Quantificação: critérios. 1. Trata-se de ação indenizatória por dano moral e à imagem, fundada não em publicação caluniosa ou imprecisa, mas no só revolver de fatos pretéritos que impactaram drasticamente a esfera da vida privada do autor - acusado que fora, injustamente, de participação na autoria de crime de inglória lembrança, a “chacina da Candelária”. Por isto mesmo, não aproveita à ré a alegação de cuidado com a verdade dos fatos e sua não distorção - alegação que, conquanto veraz, não guarda relação com a causa de pedir. 2. Conquanto inegável seja o interesse público na discussão aberta de fatos históricos pertencentes à memória coletiva, e de todos os pormenores a ele relacionados, é por outro lado contestável a necessidade de revelarem-se nome completo e imagem de pessoa envolvida, involuntariamente, em episódio tão funesto, se esses dados já não mais constituem novidade jornalística nem acrescem substância ao teor da matéria vocacionada a revisitar fatos ocorridos há mais de década. Não é leviano asseverar que, atendido fosse o clamor do autor de não ter revelados o nome e a imagem, o distinto público não estaria menos bem informado sobre a Chacina da Candelária e o desarranjado inquérito policial que lhe sucedeu, formando uma vergonha nacional à parte. 3. Recorre-se ao juízo de ponderação de valores para solver conflito (aparente) de princípios de Direito: no caso, o da livre informação, a proteger o interesse RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 399 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA privado do veículo de comunicação voltado ao lucro, e o interesse público dos destinatários da notícia; e o da inviolabilidade da intimida- de, da imagem e da vida privada. A desfiguração eletrônica da imagem do autor e o uso de um pseudônimo (como se faz, em observância a nosso ordenamento, para proteção de menores infratores) consistiria em sacrifício mínimo à liberdade de expressão, em favor de um outro direito fundamental que, no caso concreto, merecia maior atenção e preponderância. 4. Das garantias fundamentais à intimidade e à vida privada, bem assim do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, extraíram a doutrina e a jurisprudência de diversos países, como uma sua derivação, o chamado “direito ao esquecimento”, também chamado pelos norte-amercianos de “direito de ser deixado em paz”. Historicamente, a construção desses conceitos jurídicos fez- se a bem da ressocialização de autores de atos delituosos, sobretudo quando libertados ou em vias de o serem. Se o direito ao esquecimento beneficia os que já pagaram por crimes que de fato cometeram, com maior razão se deve observá-lo em favor dos inocentes, involuntariamente tragados por um furacão de eventos nefastos para sua vida pessoal, e que não se convém revolver depois que, com esforço, a vítima logra reconstruir sua vida. 5. Analisado como sistema que é, nosso ordenamento jurídico, que protege o direito de ressocialização do apenado (art. 748 do CPP) e o direito do menor infrator (arts. 17 e 18 do ECA), decerto protegerá também, por analogia, a vida privada do inocente injustamente acusado pelo Estado. 6. O direito de imagem não se confunde com o direito à honra: para a violação daquele, basta o uso inconsentido da imagem, pouco importando se associada ou não a um conteúdo que a denigra. Não sendo o autor pessoa pública, porque a revelação de sua imagem já não traz novidade jornalística alguma (pois longínqua a data dos fatos), o uso de sua imagem, a despeito da expressa resistência do titular, constitui violação de direito a todos oponível, violação essa que difere da ofensa moral (CF. art. 5º, V, da CF). 7. Tomando em linha de conta a centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana, a severidade dos danos decorrentes da exibição do programa televisivo na vida privada do autor (relançado na persona de “suspeito” entre as pessoas de sua convivência comunal), e o conteúdo punitivo-pedagógico do instituto da indenização por dano moral, a verba aparentemente exagerada de R$ 50.000,00 se torna adequada - tanto mais em se tratando do veículo de comunicação de maior audiência e, talvez, de maior porte econômico. Desprovimento do recurso (fls. 297-299). 400 Jurisprudência da QUARTA TURMA Opostos embargos de declaração (fls. 315-320), foram eles rejeitado (fls. 323-326). Sobrevieram, assim, recursos especial e extraordinário. O recurso especial está apoiado na alínea a do permissivo constitucional, no qual se alegou ofensa aos artigos 333, inciso I, e 535 do Código de Processo Civil e artigos 186, 188, inciso I, 927 e 944 do Código Civil. Sustenta a recorrente, Globo Comunicações e Participações S.A., inexistir dever de indenizar por ausência de ilicitude, uma vez que a ideia do programa Linha Direta Justiça é absolutamente comum no Brasil e no exterior e que incontáveis vezes veículos de comunicação divulgaram programas jornalísticos sobre casos criminais célebres (livros, jornais, revistas, rádio, cinema e televisão se dedicam rotineiramente a publicar matérias sobre crimes de grande repercussão no passado). Aduz, por outro lado, não ter havido nenhuma invasão à privacidade/ intimidade do autor, porque os fatos noticiados já eram públicos e fartamente discutidos na sociedade, fazendo parte do acervo histórico do povo. Argumenta que se tratou de programa jornalístico, sob forma de documentário, acerca de acontecimento de relevante interesse público, tendo a emissora se limitado a narrar os fatos tais como ocorridos, sem dirigir nenhuma ofensa à pessoa do autor, ao contrário, deixando claro que teria sido inocentado. Assim, mostrar-se-ia incabível o acolhimento de “um direito ao esquecimento ou o direito de ser deixado em paz”, que sobrepujaria o direito de informar da recorrente. Informa também que não seria possível retratar a trágica história dos homicídios da Candelária sem mencionar o recorrido, porque se tornou, infelizmente, uma peça chave do episódio e do conturbado inquérito policial. Assim, a ocultação do recorrido ou dos demais inocentados pelo crime “seria o mesmo que deixar o programa jornalístico sem qualquer lógica, pois um dos mais relevantes aspectos que envolveram o crime foi justamente a conturbada e incompetente investigação promovida pela policia” (fl. 343). Nesse passo, sintetiza a recorrente que “o simples fato da pessoa se relacionar com a notícia ou fato histórico de interesse coletivo já é suficiente para mitigar seu direito à intimidade, tornando lícita a divulgação de seu nome e de sua imagem independentemente de autorização”. Pleiteia, subsidiariamente, o reconhecimento de inexistência de dano moral ou a exorbitância da indenização. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 401 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Na origem, negou-se seguimento aos recursos especial e extraordinário (fls. 444-460) em decisão contra a qual foram opostos agravos para o STJ e para o STF (fl. 462). Os autos ascenderam a esta Corte por força de decisão proferida no Ag. n. 1.306.644-RS, ao qual dei provimento para melhor exame da matéria (fl. 519). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Em termos de conhecimento deste recurso especial, uma observação inicial se impõe. É inegável que o conflito aparente entre a liberdade de expressão/ informação, ora materializada na liberdade de imprensa, e atributos individuais da pessoa humana - como intimidade, privacidade e honra - possui estatura constitucional (art. 5º, incisos IV, V, IX, X e XIV, arts. 220 e 221 da Constituição Federal), não sendo raras as decisões apoiadas predominantemente no cotejo hermenêutico entre os valores constitucionais em confronto. Porém, em contrapartida, é de alçada legal a exata delimitação dos valores que podem ser, eventualmente, violados nesse conflito, como a honra, a privacidade e a intimidade da pessoa, o que, em última análise, atribui à jurisdição infraconstitucional a incumbência de aferição da ilicitude de condutas potencialmente danosas e, de resto, da extensão do dano delas resultante. Forma-se, a partir daí, um cenário perigoso ao jurisdicionado, que, em não raras vezes, tem subtraídas ambas as vias recursais, a do recurso especial e a do recurso extraordinário. Diversos precedentes há, nesta Corte Superior de Justiça, a afirmar que a celeuma instalada entre a alegação de dano moral e a liberdade de imprensa resolve-se pela via do recurso extraordinário, ora negando o especial interposto, ora exigindo a interposição de recurso extraordinário simultâneo, por força da Súmula n. 126-STJ. Nesse sentido, entre muitos outros, são os seguintes precedentes, nos quais se afirmou ser de índole parcial ou totalmente constitucional controvérsia análoga à que ora se analisa: AgRg no Ag n. 1.340.505-SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 10.4.2012; REsp n. 1.001.923PB, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 13.3.2012; 402 Jurisprudência da QUARTA TURMA AgRg no Ag n. 1.185.400-SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 19.5.2011; AgRg no REsp n. 1.125.127-RJ, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.5.2011. Não obstante, quando a controvérsia chega ao Supremo Tribunal Federal não se conhece do recurso extraordinário interposto, quase sempre por se entender que a celeuma instalou-se no âmbito infraconstitucional e a violação à Constituição Federal, se existente, seria reflexa. Nesse sentido, apenas a título de exemplos, confiram-se os seguintes precedentes: AI n. 685.054 AgR, Relator(a): Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 21.8.2012; AI n. 763.284 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 12.6.2012; RE n. 597.962 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 27.3.2012; AI n. 766.309 AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 10.11.2009; Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 16.9.2008; AI n. 631.548 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 6.4.2010. Apenas para registro, o primeiro precedente acima citado corresponde, no STJ, ao Ag. n. 1.394.533-DF, ao qual foi negado provimento por razões já mencionadas. Por sua vez, o Ag. n. 851.325-RJ (referente ao conhecido caso “Doca Street”), também foi negado no STJ por fundamentos análogos, por entender que a controvérsia era exclusivamente constitucional, e, ascendendo os autos ao STF, também não se conheceu do recurso (AI n. 679.343 AgR, Relator(a): Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 11.12.2012). Na verdade, a mesma controvérsia ocorre quando se analisam questões alusivas, por exemplo, a direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito, institutos todos regulados pela Constituição de 1988 e pela Lei de Introdução ao Código Civil (atual Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro LINDB). É certo que há diversos precedentes do STJ entendendo que a matéria contida no art. 6º da LINDB, relativa à preservação do ato jurídico perfeito, por exemplo, tem natureza constitucional. E, ao reverso, o STF, de forma incisiva, abraça entendimento de que a “alegação de ofensa aos princípios da legalidade, prestação jurisdicional, direito adquirido, ato jurídico perfeito, limites da coisa julgada, devido processo legal, contraditório e ampla defesa configura, quando muito, ofensa meramente reflexa às normas constitucionais” (RE n. 563.816 AgR, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 26.10.2010). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 403 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Adota-se a doutrina segundo a qual constituem coisas diversas a proteção constitucional de determinado princípio e o alcance normativo do seu conteúdo. De fato, diversas vezes o Poder Constituinte, sem embargo de indicar determinado valor como objeto de proteção constitucional, não aprofundou sua definição conceitual ou seu alcance. Nessa linha, é Rubens Limongi França quem delimita, de um lado, a proteção constitucional do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, e, de outro, o nítido contorno infraconstitucional adotado no sistema brasileiro no que tange a esses valores: A Constituição vigente determina simplesmente o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Não apresenta, como se deu com a Lei de Introdução ao Código Civil, bem assim a Lei n. 3.238, de 1957, uma definição de Direito Adquirido. De onde a questão: o conceito de Direito Adquirido constitui matéria constitucional ou de caráter ordinário? [...] A previsão, no texto constitucional, que não existe, ainda que houvesse, não traria como consequência o corolário de que de natura o assunto apresenta caráter constitucional. Por outro lado, a realidade jurídica, à face das leis extravagantes e do teor dos pronunciamentos dos nossos colégios judicantes, nos mostra que, muito embora a Constituição tenha consagrado um instituto de bases assentadas na consciência jurídica nacional, essas bases não são rígidas e absolutas, mas sujeitas, em vários dos seus aspectos, a mutações e aprimoramentos. Desse modo, formular na Constituição um conceito de Direito Adquirido implicaria em subtrair-lhe muitas das suas possibilidades de progresso, tanto através da Doutrina e da Jurisprudência, como da própria legislação extravagante (FRANÇA, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro: doutrina da irretroatividade das leis e do direito adquirido. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 403-404). Na Corte Especial, questão análoga já foi enfrentada, recebendo tratamento sintetizado na seguinte ementa (nas partes que interessam): Processual Civil. Embargos de divergência. Dissenso interno a respeito da interpretação de normas processuais que disciplinam o incidente de declaração de inconstitucionalidade. CPC, arts. 480 a 482. Controle por recurso especial. Cabimento. [...] 2. A concretização das normas constitucionais depende, em muitos casos, da intermediação do legislador ordinário, a quem compete prover o sistema com 404 Jurisprudência da QUARTA TURMA indispensáveis preceitos complementares, regulamentares ou procedimentais. Dessa pluralidade de fontes normativas resulta a significativa presença, em nosso sistema, de matérias juridicamente miscigenadas, a ensejar (a) que as decisões judiciais invoquem, simultaneamente, tanto as normas primárias superiores, quanto as normas secundárias e derivadas e (b) que também nos recursos possa ser alegada, de modo concomitante, ofensa a preceitos constitucionais e a infraconstitucionais, tornando problemática a definição do recurso cabível para as instâncias extraordinárias (STF e STJ). [...] 4. [...] Assim, embora, na prática, a violação da lei federal possa representar também violação à Constituição, o que é em casos tais um fenômeno inafastável, cumpre ao STJ atuar na parte que lhe toca, relativa à correta aplicação da lei federal ao caso, admitindo o recurso especial. 5. Embargos de divergência conhecidos e providos. (EREsp n. 547.653-RJ, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 15.12.2010, DJe 29.3.2011). Com efeito, avulta a responsabilidade do Superior em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse passo, a partir dessa reflexão, penso que a jurisprudência do STJ deve ser atualizada e harmonizada, principalmente porque: a) com a Emenda Constitucional n. 45, o cenário tornou-se objetivamente diverso daquele que antes circunscrevia a interposição de recursos especial e extraordinário, pois, se anteriormente todos os fundamentos constitucionais que serviram ao acórdãos eram impugnáveis - e deviam ser, nos termos da Súmula n. 126-STJ - mediante recurso extraordinário, agora, somente as questões que, efetivamente, ostentarem repercussão geral (art. 102, § 3º, da Constituição Federal) é que podem ascender à Suprema Corte (art. 543-A, § 1º, do CPC); b) no atual momento de desenvolvimento do direito é inconcebível a análise encapsulada dos litígios, de forma estanque, como se os direitos civil, penal ou processual pudessem ser “encaixotados” de modo a não sofrer ingerências do direito constitucional. Esta Turma já afirmou, no julgamento do REsp. n. 1.183.378-RS, que, depois da publicização do direito privado, vive-se a chamada constitucionalização RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 405 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA do direito civil, momento em que o foco transmudou-se definitivamente do Código Civil para a própria Constituição Federal, de modo que os princípios constitucionais alusivos a institutos típicos de direito privado (como família e propriedade) passaram a condicionar a interpretação da legislação infraconstitucional. Na expressão certeira de Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa humana assume dimensão transcendental e normativa, e a Constituição passa a ser não somente “o documento maior do direito público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e conferindo-lhe unidade” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60). Nessa linha de evolução, penso que também por essa ótica deva ser analisado o papel do Superior Tribunal de Justiça, notadamente das Turmas de Direito Privado. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, não me parece possível a esta Corte de Justiça analisar as celeumas que lhe aportam “de costas” para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita (REsp n. 1.183.378-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25.10.2011); e assim o fazendo, não se há falar também em usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, já decidiu o STF não haver usurpação, pelo STJ, no julgamento de demanda com “causa de pedir fundada em princípios constitucionais genéricos, que encontram sua concreta realização nas normas infraconstitucionais” (Rcl n. 2.252 AgR-ED, Relator(a): Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 18.3.2004). Na mesma direção, afirmou-se na Suprema Corte que “o Superior Tribunal de Justiça, ao negar seguimento ao recurso especial com fundamento constitucional, exerc[e] o chamado controle difuso de constitucionalidade, que é possibilitado a todos os órgãos judiciais indistintamente” (Rcl n. 8.163 AgR, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 3.11.2011). 406 Jurisprudência da QUARTA TURMA No último precedente acima citado, o eminente Ministro Marco Aurélio interveio aduzindo que, “ultrapassada a barreira de conhecimento do especial, o Superior Tribunal de Justiça, como todo e qualquer órgão investido do ofício judicante, exerce e deve exercer - não está compelido a aplicar uma lei inconstitucional - o controle difuso de constitucionalidade”. Nessa ordem de ideias, em artigo jurídico recém publicado, o eminente Ministro Teori Albino Zavascki também lança novas luzes sobre a celeuma e esquadrinha com clareza a possibilidade de jurisdição constitucional no âmbito do recurso especial, sobretudo em questões interdisciplinares, com soluções apoiadas transversalmente em diversos setores do direito, concluindo que, no mais das vezes, as posições simplificadoras que afirmam, peremptoriamente, ser competência exclusiva do STF o conhecimento de questões constitucionais partem de uma má compreensão do sistema. Nesse sentido, confiram-se as palavras de Sua Exa.: Foi talvez a dificuldade de acomodação a essa nova sistemática, inédita em nossa história, o fator determinante da acentuada tendência a estratificar, de modo quase absoluto, a competência das duas Cortes Superiores, como se não houvesse a abertura de vasos comunicantes entre as suas principais funções institucionais. Há certamente equívocos e exageros nessas posições estremadas, notadamente se considerarmos o sentido amplo de que se reveste o conceito de “guarda da Constituição” e, por consequência, o vasto domínio jurídico em que atua a jurisdição constitucional. Realmente, a força normativa da Constituição a todos vincula e a todos submete. [...] Pois bem: qualquer que seja o modo como se apresenta o fenômeno da inconstitucionalidade ou o seu agente causador, ele está sujeito a controle pelo Poder Judiciário. Aí reside justamente a essência do que se denomina jurisdição constitucional: é a atividade jurisdicional do Poder Judiciário na interpretação e aplicação da Constituição. Nessa seara, não há dúvida que ao STF cabe, precipuamente, a guarda da Constituição; todavia, também é certo que essa não é atribuição exclusivamente sua. Pelo contrário, se nos tocasse apontar um signo marcante e especial do Poder Judiciário brasileiro, esse certamente é o da competência difusa atribuída a todos os seus órgãos e a todos os seus agentes para, até mesmo de ofício, cumprir e fazer cumprir as normas constitucionais, anulando, se necessário, atos jurídicos, particulares ou administrativos, concretos ou normativos, com elas incompatíveis. Em outras palavras: todos os órgãos do Poder Judiciário estão investidos da jurisdição constitucional, não se podendo imaginar que tal atribuição seja estranha ao plexo de competência de um dos principais tribunais da Federação, que é o STJ. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 407 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA [...] Não parece equivocado, de qualquer modo, o alvitre segundo o qual o controle de constitucionalidade de normas é uma função subutilizada no STJ, o que se explica, em alguma medida, pelo desconhecimento de seu manejo e das suas virtualidades, mas, sobretudo, porque, não sendo uma de suas funções típicas, o Tribunal prefere devolver o julgamento da matéria constitucional às instâncias ordinárias, a exemplo do que faz com as questões de fato e de prova, em hipóteses em que é indispensável um novo julgamento da causa. [...] É preciso anotar, todavia, que as estatísticas registram apenas os incidentes de inconstitucionalidade efetivamente instaurados e levados à apreciação da Corte Especial, em observância à norma do art. 97 da CF (LGL 1988\3) (princípio da reserva de plenário). Ora, essa é uma - talvez a menos significativa - das várias faces com que se apresenta a jurisdição constitucional do Tribunal. Referidos incidentes, com efeito, somente são instaurados nas limitadas situações em que um dos órgãos fracionários, valendo-se da técnica da declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, faz juízo positivo de ilegitimidade da norma; não, porém, quando faz juízo negativo, hipótese em que a apreciação da questão se esgota no âmbito do próprio órgão fracionário, dispensada a observância da reserva de plenário. E certamente há jurisdição constitucional também nessa segunda hipótese. O incidente é dispensado, ademais, quando há precedente do STF ou da própria Corte Especial a respeito da questão constitucional (art. 481, parágrafo único, CPC (LGL 1973\5)). [...] Se acrescentarmos a todas essas situações as muitas e muitas outras em que as normas e princípios constitucionais são invocados na jurisprudência do STJ como parâmetro para a adequada interpretação e aplicação das leis federais e dos tratados, haveremos de concluir que, mesmo em julgamentos de recursos especiais, é muito mais fecunda do que parece a jurisdição constitucional do STJ (ZAVASCKI, Teori Albino. Jurisdição Constitucional do Superior Tribunal de Justiça. In. Revista de Processo, v. 212, Set/2012. p. 13). De fato, o que se veda é o conhecimento do recurso especial com base em alegação de ofensa a dispositivo constitucional, não sendo defeso ao STJ - aliás, é bastante aconselhável - que, admitido o recurso, aplique o direito à espécie, buscando na própria Constituição Federal o fundamento para acolher ou rejeitar a violação do direito infraconstitucional invocado ou para conferir à lei a interpretação que melhor se ajusta ao texto constitucional. Por exemplo, em demandas de responsabilidade civil, como no caso em exame, o comando legal segundo o qual aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo (art. 927 do CC/2002), somente é bem 408 Jurisprudência da QUARTA TURMA aplicado se a aventada ilicitude for investigada em todo ordenamento jurídico, no plano legal e constitucional. No caso em apreço, o confronto entre liberdade de informação e os direitos da personalidade, a par de transitar também pelos domínios do direito constitucional, pode ser bem solucionado a partir da exegese dos arts. 11, 12, 17, 20 e 21, do Código Civil. 3. No mérito, afasto a alegação de ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil, tendo em vista que o acórdão ora hostilizado enfrentou todas as questões essenciais ao desate da controvérsia, não havendo ponto omisso, obscuro ou contraditório apto a nulificá-lo. Na verdade, tanto os acórdãos proferidos em grau de apelação e embargos infringentes quanto a sentença ostentam fundamentações robustas, tendo sido o delicado tema ora em exame enfrentado com bastante esmero e profundidade em todas as instâncias - embora com soluções opostas -, um sinal de que o Poder Judiciário, a despeito da avalanche de processos que o soterra, mostra-se sensível a demandas paradigmáticas como a presente. 4. Nesse passo - e já avançando para a questão de fundo -, a controvérsia ora instalada nos presentes autos diz respeito a conhecido conflito de valores e direitos, todos acolhidos pelo mais alto diploma do ordenamento jurídico, mas que as transformações sociais, culturais e tecnológicas encarregaram-se de lhe atribuir também uma nova feição, confirmando a máxima segundo a qual o ser humano e a vida em sociedade são bem mais inventivos que o estático direito legislado. Neste campo, o Judiciário foi instado a resolver os conflitos por demais recorrentes entre a liberdade de informação e de expressão e os direitos inerentes à personalidade, ambos de estatura constitucional. Na verdade, o mencionado conflito é mesmo imanente à própria opção constitucional pela proteção de valores quase sempre antagônicos, os quais, em última análise, representam, de um lado, o legítimo interesse de “querer ocultarse” e, de outro, o também legítimo interesse de se “fazer revelar”. Diversos precedentes deste Superior Tribunal de Justiça analisaram casos de confronto entre publicações jornalísticas e alegadas ofensas aos direitos da personalidade. As soluções conferidas, nesses casos, quase sempre estiveram inseridas em um contexto de ilicitude da publicação - em razão de conteúdo difamatório ou inverídico - e em um cenário de contemporaneidade da notícia. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 409 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Bem por isso esta Quarta Turma, analisando os contornos de eventual ilicitude de matérias jornalísticas, abraçou a tese segundo a qual a liberdade de imprensa, por não ser absoluta, encontra algumas limitações, como: “(I) o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi)” (REsp n. 801.109-DF, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 12.6.2012). Por outro enfoque, assinalando o traço da contemporaneidade que, de regra, marca a atividade jornalística, no REsp n. 680.794-PR, de minha relatoria, desta Turma, julgado em 17.6.2010, afirmei que, embora não se permitam leviandades por parte do jornalista, também não são exigidas verdades absolutas, provadas previamente em sede de investigações no âmbito administrativo, policial ou judicial. Exige-se - como assinalado no voto condutor do citado precedente -, com a rapidez e velocidade possíveis, uma diligência séria que vai além de meros rumores, razão por que reafirmei também o dito popular segundo o qual “informação velha não vira notícia”, adágio que a história, nos presentes autos, parece estar a desmentir. Agora, uma vez mais, o conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade ganha a tônica da modernidade, analisado por outro prisma, desafiando o julgador a solucioná-lo a partir de nova realidade social, ancorada na informação massificada que, diariamente, se choca com a invocação de novos direitos, hauridos que sejam dos já conhecidos direitos à honra, à privacidade e à intimidade, todos eles, por sua vez, resultantes da proteção constitucional conferida à dignidade da pessoa humana. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia transita exatamente na ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o entendimento do autor, reabriu antigas feridas já superadas e reacendeu a desconfiança da sociedade quanto à sua índole, circunstância que lhe teria causado abalo cuja reparação ora se pleiteia. O autor busca a proclamação do seu direito ao esquecimento, um direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado. 5. A tese do direito ao esquecimento ganha força na doutrina jurídica brasileira e estrangeira, tendo sido aprovado, recentemente, o Enunciado n. 531 410 Jurisprudência da QUARTA TURMA na VI Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF-STJ, cujo teor e justificativa ora se transcrevem: Enunciado n. 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados. 5.1. Cabe desde logo separar o joio do trigo e assentar uma advertência. A ideia de um direito ao esquecimento ganha ainda mais visibilidade - mas também se torna mais complexa - quando aplicada à internet, ambiente que, por excelência, não esquece o que nele é divulgado e pereniza tanto informações honoráveis quanto aviltantes à pessoa do noticiado, sendo desnecessário lembrar o alcance potencializado de divulgação próprio desse cyberespaço. Até agora, temse mostrado inerente à internet - mas não exclusivamente a ela - a existência de um “resíduo informacional” que supera a contemporaneidade da notícia e, por vezes, pode ser, no mínimo, desconfortante àquele que é noticiado. Em razão da relevância supranacional do tema, os limites e possibilidades do tratamento e da preservação de dados pessoais estão na pauta dos mais atuais debates internacionais acerca da necessidade de regulação do tráfego informacional, levantando-se, também no âmbito do direito comparado, o conflituoso encontro entre o direito de publicação - que pode ser potencialmente mais gravoso na internet - e o alcance da proteção internacional dos direitos humanos. A União Europeia, depois de mais de quinze anos da adoção da Diretiva n. 46/1995/CE (relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação da informação), que foi seguida pela Diretiva n. 2002/58/CE (concernente à privacidade e às comunicações eletrônicas), acendeu, uma vez mais, o debate acerca da perenização de informações pessoais em poder de terceiros, assim como o possível controle de seu uso - sobretudo na internet. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 411 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A Vice-Presidente da Comissão de Justiça da União Europeia, Viviane Reding, apresentou proposta de revisão das diretivas anteriores, para que se contemple, expressamente, o direito ao esquecimento dos usuários de internet, afirmando que “al modernizar la legislación, quiero clarificar específicamente que las personas deben tener el derecho, y no sólo la posibilidad, de retirar su consentimiento al procesamiento de datos [...]”, e que o primeiro pilar da reforma será el derecho a ser olvidado: “un conjunto completo de reglas nuevas y existentes para afrontar mejor los riesgos para la privacidad en Internet” (http://www.20minutos.es/ noticia/991340/0/derecho/olvido/facebook/. Acesso em 2 de maio de 2013). Na mesma linha, em recente palestra proferida na Universidade de Nova York, o alto executivo da Google Eric Schmidt afirmou que a internet precisa de um botão de delete. Informações relativas ao passado distante de uma pessoa podem assombrá-la para sempre, causando entraves, inclusive, em sua vida profissional, como no exemplo dado na ocasião, de um jovem que cometeu um crime em relação ao qual as informações seriam expurgadas de seu registro na fase adulta, mas que o mencionado crime poderia permanecer on-line, impedindo a pessoa de conseguir emprego. “Na América” - afirmou Schimidt -, “há um senso de justiça que é culturalmente válido para todos nós. A falta de um botão delete na internet é um problema significativo. Há um momento em que o apagamento é uma coisa certa” (Google’s Schmidt: The Internet needs a delete button. Google’s Executive Chairman Eric Shmidt says mistakes people make when young can haut them forever. (Disponível em: <http://news.cnet.com/8301-1023_3-57583022-93/ googles-schmidt-the-internet-needs-a-delete-button/>. Acesso em 10 de maio de 2013). Em maio de 2011, o espanhol El País, por intermédio da jornalista Milagros Pérez Oliva, também publicou interessante reportagem acerca do denominado derecho al olvido, retratando caso da ginasta Marta Bobo, noticiada no ano de 1984, no mesmo El País, em uma matéria curta, mas categórica: “Marta Bobo sufre anorexia”. A reportagem dava conta de que três atletas, entre elas Marta Bobo, disputariam as medalhas de ginástica rítmica nos Jogos Olímpicos, “pero Marta, con 29 kilos a sus 18 años, con anorexia diagnosticada, se encuentra en Los Ángeles en contra de los consejos del psiquiatra. Su situación, no ya anímica, sino física, ha podido ser peligrosa”. Agora, com 45 (quarenta e cinco) anos, Marta Bobo convive com a mencionada notícia, que garante ser falsa, em páginas da internet, que converte o passado em um presente 412 Jurisprudência da QUARTA TURMA contínuo. Tal circunstância, noticia Milágros Pérez, tem dado lugar a uma nova demanda social - “el derecho al olvido” - que afeta a todos, em relação à qual se espera que a União Européia se pronuncie (Disponível: http://elpais.com/ diario/2011/05/15/opinion/1305410404_850215.html. Acesso em 2 de maio de 2013). Com efeito, é atual e relevante o debate acerca do chamado direito ao esquecimento, seja no Brasil, seja nos discursos estrangeiros, debate que, no caso em exame, é simplificado por não se tratar de informações publicadas na internet, cujo domínio do tráfego é evidentemente mais complicado e reclama mesmo uma solução - legislativa ou judicial - específica. Portanto, a seguir, analisa-se a possível adequação (ou inadequação) do mencionado direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações. 6. Grosso modo, entre outras assertivas contrárias à tese do direito ao esquecimento, afirmam-se que: i) o acolhimento do chamado direito ao esquecimento constitui atentado à liberdade de expressão e de imprensa; ii) o direito de fazer desaparecer as informações que retratam uma pessoa significa perda da própria história, o que vale dizer que o direito ao esquecimento afronta o direito à memória de toda a sociedade; iii) cogitar de um direito ao esquecimento é sinal de que a privacidade é a censura do nosso tempo; iv) o mencionado direito ao esquecimento colidiria com a própria ideia de direitos, porque estes têm aptidão de regular a relação entre o indivíduo e a sociedade, ao passo que aquele finge que essa relação não existe - um “delírio da modernidade”; v) o direito ao esquecimento teria o condão de fazer desaparecer registros sobre crimes e criminosos perversos, que entraram para a história social, policial e judiciária, informações de inegável interesse público; vi) ou uma coisa é, na sua essência, lícita ou é ilícita, não sendo possível que uma informação lícita transforme-se em ilícita pela simples passagem do tempo; vii) quando alguém se insere em um fato de interesse coletivo, mitiga-se a proteção à intimidade e privacidade em benefício do interesse público e, ademais, uma segunda publicação (a lembrança, que conflita com o esquecimento) nada mais faz do que reafirmar um fato que já é de conhecimento público; viii) e, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 413 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA finalmente, que programas policiais relatando acontecimentos passados, como crimes cruéis ou assassinos célebres, são e sempre foram absolutamente normais no Brasil e no exterior, sendo inerentes à própria atividade jornalística. 7. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, unanimemente reconhecido como um dos mais perspicazes pensadores do nosso tempo e preciso intérprete dos sinais da modernidade - por ele nomeada de “modernidade líquida” -, lança novas luzes acerca da atual configuração do antigo conflito entre os espaços público e privado - entre a informação e a privacidade. Com boa dose de desesperança, Bauman afirma que um dos danos colaterais dessa “modernidade líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”, tendo nascido uma inédita sociedade confessional, em que espaços antes reservados à exploração de questões de interesses e preocupações comuns são agora utilizados como “depositórios geradores dos segredos mais secretos, aqueles a serem divulgados apenas a Deus ou a seus mensageiros e plenipotenciários terrestres”: Se você quer saber qual dos lados [das esferas pública e privada] está hoje na ofensiva e qual está (tenaz ou tibiamente) tentando defender dos invasores seus direitos herdados ou adquiridos, há coisas piores a fazer que meditar sobre o profético pressentimento de Peter Ustinov (expresso em 1956): “Este é um país livre, madame. Nós temos o direito de compartilhar a sua privacidade no espaço público” (BAUMAN, Zygmunt. Privacidade, sigilo, intimidade, vínculos humanos - e outras baixas colaterais da modernidade líquida. In. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 110). De fato, na atual sociedade da hiperinformação parecem evidentes os “riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 113). Por outro lado, o antigo conflito entre o público e o privado ganha uma nova roupagem na modernidade: a inundação do espaço público com questões estritamente privadas decorre, a um só tempo, da expropriação da intimidade/ privacidade por terceiros, mas também da voluntária entrega desses bens à arena pública. Constroem-se “amizades” em redes sociais em um dia, em número superior ao que antes se construía em uma vida, e essa fragilidade de vínculos humanos contribui para o processo erosivo da privacidade. 414 Jurisprudência da QUARTA TURMA Porém, sem nenhuma dúvida, mais grave que a venda ou a entrega graciosa da privacidade à arena pública, como uma nova mercadoria para o consumo da coletividade, é sua expropriação contra a vontade do titular do direito, por vezes um anônimo que pretende assim permanecer. Essa tem sido uma importante - se não a mais importante - face do atual processo de esgarçamento da intimidade e da privacidade, e o que estarrece é perceber certo sentimento difuso de conformismo, quando se assiste a olhos nus a perda de bens caros ao ser humano, conquistados não sem enorme esforço por gerações passadas; sentimento difundido por inédita “filosofia tecnológica” do tempo atual pautada na permissividade, para a qual ser devassado ou espionado é, em alguma medida, tornar-se importante e popular, invertendo-se valores e tornando a vida privada um prazer ilegítimo e excêntrico, seguro sinal de atraso e de mediocridade. Como bem observa Paulo José da Costa Júnior, dissertando acerca do direito de ser deixado em paz ou o direito de estar só (the right to be let alone): Aceita-se hoje, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso presente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de investigação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas. O conceito de vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma deformação progressiva em muitas camadas da população. Realmente, na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privatividade, contemplação e interiorização vem sendo posta em xeque, numa escala de assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notadas (COSTA JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 16-17). Portanto, diante dessas preocupantes constatações acerca do talvez inevitável - mas Admirável - Mundo Novo do hiperinformacionismo, o momento é de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados. 8. Outro aspecto a ser analisado é a aventada censura à liberdade de imprensa. No ponto, nunca é demais ressaltar o estreito e indissolúvel vínculo entre a liberdade de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda se autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua e diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 415 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA qual nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode descurar - nem o povo nem as instituições democráticas -, encontra na imprensa livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente consigo reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade democrática. É sintomática, nesse sentido, a mensagem conjunta de Ban Ki-moon, Secretário-Geral da ONU, e Irina Bokova, Diretora-Geral da Unesco, proferida no dia 3 de maio de 2013 (Dia Mundial da Liberdade de Imprensa), dando conta de que, nos últimos dez anos, mais de 600 (seiscentos) jornalistas foram mortos, muitos em cobertura de situações não conflituosas, e que nove entre dez casos de homicídios de jornalistas permanecem impunes, circunstância que renova a preocupação com a liberdade de imprensa ainda na atualidade (Íntegra da mensagem disponível em http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/ about-this-office/single-view/news/joint_message_ununesco_on_the_ocasion_ of_world_press_freedom_day_2013/, acesso em 10.3.2013). Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo qual passou a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de sua inegável virtude histórica, a mídia do século XXI deve fincar a legitimação de sua liberdade em valores atuais, próprios e decorrentes diretamente da importância e nobreza da atividade. Os antigos fantasmas da liberdade de imprensa, embora deles não se possa esquecer jamais, atualmente, não autorizam a atuação informativa desprendida de regras e princípios a todos impostos. O novo cenário jurídico subjacente à atividade da imprensa apoia-se no fato de que a Constituição Federal, ao proclamar a liberdade de informação e de manifestação do pensamento, assim o faz traçando as diretrizes principiológicas de acordo com as quais essa liberdade será exercida, reafirmando, assim como a doutrina sempre afirmou, que os direitos e garantias protegidos pela Constituição, em regra, não são absolutos. Desse modo, depois de a Carta da República afirmar, no seu art. 220, que “[a] manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, logo cuida de explicitar alguns princípios norteadores dessa liberdade, como a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 220, § 1º). Na mesma direção, como que o § 3º do art. 222, em alguma medida, dirigisse o exercício de tal liberdade, afirma-se que “[os] meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão 416 Jurisprudência da QUARTA TURMA observar os princípios enunciados no art. 221”, princípios dos quais se destaca o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (inciso IV). Com isso, afirma-se com todas as letras que, não obstante a Carta estivesse rompendo com o paradigma do medo e da censura impostos à manifestação do pensamento, não se poderia hipertrofiar a liberdade de informação, doravante garantida, à custa do atrofiamento dos valores que apontam para a pessoa humana. E é por isso que a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores. Nos primeiros quadrantes do século passado, a atividade informativa - não obstante fosse diariamente confrontada pela força opressiva do próprio Estado não o era com valores antes desprotegidos, e que só vieram a receber relevância constitucional em 1988. Basta lembrar que a doutrina brasileira, em tempos pretéritos, embora cogitasse da reparabilidade em tese do dano moral, resistia em reconhecer o acolhimento desse direito no ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, confira-se o registro histórico de Yussef Said Cahali acerca do tema: Uma coisa é admitir a tese da reparabilidade do dano moral; outra coisa é reconhecer que o nosso direito civil, em suas fases anteriores, a tivesse perfilhado. Na fase da legislação pré-codificada, Lacerda de Almeida manifestou-se adepto da teoria negativista da reparação: “As cousas inestimáveis repelem a sanção do Direito Civil que com elas não se preocupa”. Também Lafayette: “O mal causado pelo delito pode constituir simplesmente em um sofrimento físico ou moral, sem relação direta com o patrimônio do ofendido, como é o que resulta do ferimento leve que não impede de exercer a profissão, ou de ataque à honra. Nestes casos não há necessidade de satisfação pecuniária. Todavia, não tem faltado quem queira reduzir o simples sofrimento físico ou moral a valor: são extravagâncias do espírito humano”. [...] Assim Orlando Gomes, reconhecendo que já então prevalecia a doutrina da reparabilidade do dano moral, mas como o Código Civil de 1916 não inseria qualquer preceito alusivo a ele, contestava os que se manifestavam no sentido de que, perante o nosso direito, o dano moral poderia ser reparado (CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 39-40). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 417 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Vale dizer, o cenário protetivo da atividade informativa que atualmente é extraído diretamente da Constituição converge para a liberdade de “expressão, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inciso IX), mas também para a inviolabilidade da “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, inciso X). Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea, a meu juízo, com o fato de que, a despeito de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais direitos posteriormente reconhecidos. A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana garante que o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao de todas as coisas criadas por ele próprio, como o mercado, a imprensa e até mesmo o Estado, edificando um núcleo intangível de proteção oponível erga omnes, circunstância que legitima, em uma ponderação de valores constitucionalmente protegidos, sempre em vista os parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade, que algum sacrifício possa ser suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e direitos. Na verdade, essa ideia de que o ser humano tem um valor em si que supera o das “coisas humanas”, além de ser a base da construção da doutrina da dignidade da pessoa humana, é ensinamento que já vai para mais de dois séculos, e pode ser condensado nas seguintes palavras de Kant: Agora eu afirmo: o homem - e, de uma maneira geral, todo o ser racional - existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou 418 Jurisprudência da QUARTA TURMA daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm um valor apenas condicional, pois se não existissem as inclinações e as necessidades que nelas se fundamentam seria sem valor o seu objeto. As próprias inclinações, porém, como fontes das necessidades, tão longe estão de possuir um valor absoluto que as torne desejáveis em si mesmas que, muito pelo contrário, melhor deve ser o desejo universal de todos os seres racionais em libertar-se totalmente delas. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (e é um objeto de respeito) (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009, pp. 58-59). Na legislação infraconstitucional, adota-se com suficiente clareza essa pauta, em regra, preferencial pela dignidade da pessoa humana quando em conflito com outros valores, como, por exemplo, os arts. 11, 20 e 21 do Código Civil de 2002: Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. No Supremo Tribunal Federal, por ocasião da análise de um conflito entre as normas do Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro da Aeronáutica, juntamente com tratados internacionais, prevaleceu o primeiro por RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 419 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA razões de natureza constitucional fundadas na proteção da pessoa em detrimento do serviço (RE n. 351.750, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 17.3.2009). Colho do voto do Ministro Cezar Peluso o seguinte trecho: Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor tem por escopo, não regrar determinada matéria, mas proteger certa categoria de sujeito, ainda que também protegido por outros regimes jurídicos (art. 7º). Daí seu caráter especialíssimo. Enquanto as normas que compõem o chamado Direito Aeronáutico são especiais por força da modalidade de prestação de serviço, o Código é especial em razão do sujeito tutelado. E, como advém logo do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, há de, em caso de conflito aparente de normas, preponderar o sistema direto protetivo da pessoa em dano do regime jurídico do serviço ou do produto. Resolvendo controvérsia idêntica, na relatoria do REsp n. 1.281.090-SP, Quarta Turma, julgado em 7.2.2012, asseverei, com amparo da doutrina do Ministro Herman Benjamin, que “enquanto o CBA consubstancia-se como disciplina especial em razão da modalidade do serviço prestado, o CDC é norma especial em razão do sujeito tutelado, e, como não poderia deixar de ser, em um modelo constitucional cujo valor orientador é a dignidade da pessoa humana, prevalece o regime protetivo do indivíduo em detrimento do regime protetivo do serviço” (BENJAMIN, Antônio Herman V.. O transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. in. Revista de direito do consumidor, n. 26, abril/julho, 1998, Editora Revista dos Tribunais, p. 41). Com efeito, no conflito entre a liberdade de informação e direitos da personalidade - aos quais subjaz a proteção legal e constitucional da pessoa humana -, eventual prevalência pelos segundos, após realizada a necessária ponderação para o caso concreto, encontra amparo no ordenamento jurídico, não consubstanciando, em si, a apontada censura vedada pela Constituição Federal de 1988. 9. Outro aspecto a ser abordado é o suposto comprometimento da historicidade de um tempo com o acolhimento do direito vindicado no presente caso - crimes e criminosos que entraram para a história poderiam simplesmente desaparecer -, assim também o conflito entre a tutela ora buscada e o inegável interesse público que há por trás de noticiários criminais. 9.1. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens 420 Jurisprudência da QUARTA TURMA capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de determinada época. Assim, um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos da história de uma sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por inúmeras razões. É que a notícia de um delito, o registro de um acontecimento político, de costumes sociais ou até mesmo de fatos cotidianos (sobre trages de banho, por exemplo), quando unidos, constituem um recorte, um retrato de determinado momento e revelam as características de um povo na época retratada. Nessa linha de raciocínio, a recordação de crimes passados pode significar uma análise de como a sociedade - e o próprio ser humano - evolui ou regride, especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia. E, de fato, é com uma inegável sensação de progresso ético e moral que as páginas de Cesare Beccaria são lidas atualmente, quando dão notícia de um gênero particular de delito: [...] que cobriu a Europa de sangue humano e levantou funestas fogueiras, onde corpos vivos serviam de pasto às chamas. Era um alegre espetáculo e uma grata harmonia para a cega multidão ouvir os gemidos dos miseráveis, que saíam dos vórtices negros de fumaça, fumaça de membros humanos, entre o ranger dos ossos carbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes [...] (BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013 (Coleção RT - Textos Fundamentais), p. 132). O que se espera é mesmo que as futuras gerações, por intermédio do registro histórico de crimes presentes e passados, experimentem idêntico sentimento de evolução cultural, quando, na posteridade, se falar em Chacina da Candelária, Chacina do Carandiru, Massacre de Realengo, Doroty Stang, Galdino Jesus dos Santos (Índio Galdino-Pataxó), Chico Mendes, Zuzu Angel, Honestino Guimarães ou Vladimir Herzog. E há também quem queira exatamente o caminho inverso ao esquecimento, o de perpetuar no imaginário de todos suas tragédias particulares até como forma de reivindicação por mudanças do sistema criminal, fazendo de suas feridas uma bandeira, como foi o caso da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, importante personagem das reformas legislativas concernentes à punição e prevenção da histórica violência doméstica e familiar contra a mulher, cuja luta contribuiu para a edição da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 421 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A historicidade da notícia jornalística, todavia, em se tratando de jornalismo policial, há de ser vista com cautela por razões bem conhecidas por todos. Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos, mas também há crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos, obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo dos prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal às estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”. No ponto, fazse necessário desmistificar a postura da imprensa no noticiário criminal, a qual - muito embora seja uma instituição depositária de caríssimos valores democráticos - não é movida por um desinteressado compromisso social de combate ao crime. Essa característica da imprensa voltada para o noticiário criminal é muito bem explicitada pela Juíza Federal Simone Schreiber, em tese de doutorado apresentada na UERJ sob a orientação de Luís Roberto Barroso, que traz diversos estudos na área do jornalismo e do processo penal. Como exemplo, a autora citou o trabalho da jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense Sylvia Moretzohn, acerca da lógica que guia a atividade de imprensa, pondo novas luzes na falsa ideia de “mídia cidadã”: A jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense Sylvia Moretzohn, em acurado estudo sobre a lógica empresarial da fabricação de notícia e a construção da verdade jornalística, põe em discussão algumas premissas de matriz iluministas que supostamente norteariam a atuação da mídia e que, na verdade, cumprem a função (mistificadora) de conferir à imprensa um lugar de autoridade, pairando acima das contradições sociais e ao mesmo tempo livre das burocracias e controles que amarram as instituições estatais. Segundo a autora, a ideia de que, no estado democrático, a imprensa cumpre a função social de esclarecer os cidadãos, reportando-lhes a verdade de forma desinteressada e neutra, esconde o fato de que as empresas de comunicação agem, como não poderia deixar de ser, sob uma lógica empresarial; de que as eleições de pauta envolvem decisões políticas (e não técnicas); e de que a “verdade” reportada nada mais é do que uma versão dos fatos ocorridos, intermediada pela linha editorial do veículo e pela subjetividade dos jornalistas que redigem a matéria (SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358). O programa chamado Linha Direta - que guarda alguma semelhança com o seu posterior Linha Direta Justiça -, veiculado pela emissora parte nos presentes autos, também ganhou especial atenção no mencionado trabalho. Segundo Schreiber, o programa valia-se das seguintes técnicas: 422 Jurisprudência da QUARTA TURMA 1. Em primeiro lugar, pontua flashes das cenas violentas protagonizadas por atores (apenas flashes da reconstituição dramatizada dos fatos, retratando o momento exato do cometimento do crime, pois a reconstituição integral será apresentada ao longo do programa) e a apresentação da vítima, sua biografia, geralmente através de depoimentos de seus parentes e amigos, e naturalmente ressaltando suas qualidades e seus sonhos, dramaticamente interrompidos pela tragédia ocorrida. 2. A estória começa a ser contada através de dramatização, conjugada com depoimentos das testemunhas (estas reais). Aquele que é apontado como autor do fato criminoso raramente é ouvido e quando o é, sua versão dos fatos é imediatamente colocada em dúvida pelos esquetes de dramatização. O ator que desempenha o papel de criminoso, além de guardar sempre traços físicos parecidos com os do próprio, semelhança que é acentuada pela constante transposição entre os arquivos jornalísticos e a dramatização, geralmente é apresentado como uma pessoa cruel, fria, qualidades destacadas pelo sorriso irônico, pelo olhar, pela fala, e ainda pelos recursos sonoros utilizados. 3. A principal técnica utilizada pelo Linha Direta é a conjugação de jornalismo e dramatização. A transposição de imagens e dados jornalísticos (fotos dos suspeitos, depoimentos dos familiares da vítima e de testemunhas, depoimentos de policiais e promotores responsáveis pelo caso) para o ambiente de dramatização se faz muitas vezes de maneira bastante sutil, de modo a criar no telespectador a certeza de que os fatos se passaram exatamente da maneira como estão sendo mostrados pelos esquetes de simulação. Ao final do programa, o telespectador estará convencido da versão apresentada, não restando qualquer dúvida de que os fatos se passaram daquela forma. A culpa do criminoso está definitivamente comprovada. Saltam aos olhos, entretanto, os riscos que podem advir de tal certeza. Não é difícil verificar em alguns casos a fragilidade da versão dos fatos apresentados na televisão (SCHREIBER, Simone. Op. cit., p. 362-363). Ainda conforme noticiado por Schreiber, o programa foi inclusive objeto de aprofundada pesquisa pela cadeira “Laboratório de Direitos Humanos”, oferecida pelo Programa de Pós-Graduação da UERJ, tendo sido constatados episódios em que “determinados fatos apresentados na reconstituição não pod[iam] ser confirmados por ninguém, a não ser pelos próprios criminosos, que, até então, estavam foragidos e portanto não foram ouvidos pela polícia ou pela Justiça”, assim também “algumas cenas de simulação inspiradas em suposições, pois a verdade dos fatos apontados é simplesmente impossível de ser confirmada” (MENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência. Um estudo do linha direta. Rio de Janeiro: Editora Quartet, 2002). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 423 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Outra perniciosa disfunção da exploração midiática do crime é a potencial influência direta no resultado do julgamento de delitos submetidos ao Júri, e, mais grave, mediante a veiculação de provas inadmissíveis em juízo. Não é novidade o uso, pelo jornalismo investigativo, de microcâmeras, de interceptação de som ambiente ou de depoimento de “testemunhas” não identificadas, espécies de prova cuja utilização em processo criminal é unanimemente rechaçada pela jurisprudência e doutrina. Porém, em um crime de repercussão nacional, a notícia jornalística frequentemente está apoiada nessas provas colhidas informalmente, às quais o popular - que posteriormente comporá o Conselho de Sentença - terá prévio acesso direto de forma massificada, insistente e cansativa. Em crimes dolosos contra a vida de grande repercussão, a exploração midiática exacerbada faz com que o Conselho de Sentença tenha contato com a “verdade jornalística” em tempo imensamente superior à “verdade dos autos”, extraída da prova legitimamente produzida no processo e submetida ao contraditório, circunstância que influencia - quando não efetivamente compromete - o julgamento justo, do ponto de vista do devido processo legal substantivo, a que todo acusado tem direito. Pelo menos em meia dúzia de crimes noticiados nacionalmente na última década, não se pode negar, os acusados já iniciaram o julgamento condenados, e com essa condenação popular prévia e sumária, certamente, contribuiu a natural permeabilidade dos jurados ao hiperinformacionismo a que tiveram amplo contato anteriormente. Com efeito, a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada à custa das mencionadas vicissitudes, e, por isso, penso que a historicidade do crime não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Por isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode significar um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia. 424 Jurisprudência da QUARTA TURMA Portanto, a questão da historicidade do crime, embora relevante para o desate de controvérsias como a dos autos, pode ser ponderada caso a caso, devendo ser aferida também a possível artificiosidade da história criada na época. 9.2. Quanto ao interesse público subjacente ao delito, assim também na cobertura do processo criminal, cumpre ressaltar que, pelo menos nos crimes de ação penal pública, esse interesse sempre existirá, caso contrário nem seria crime, e eventuais violações de direito resolver-se-iam nos domínios da responsabilidade civil. Nesses casos, além de violação a direitos individuais, o crime eleito pela lei como de ação penal pública constitui lesão a interesses da própria sociedade – ou no mínimo uma ameaça. Assim, há legítimo interesse público em que seja dada publicidade da resposta estatal ao fenômeno criminal, na esteira do alerta de Martin Luther King, para quem “a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos. A injustiça que se comete em um lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares”. Não obstante, é imperioso também ressaltar que o interesse público – além de ser conceito de significação fluida – não coincide com o interesse do público, que é guiado, no mais das vezes, por sentimento de execração pública, praceamento da pessoa humana, condenação sumária e vingança continuada. Essa é a doutrina constitucionalista sobre o tema: Decerto que interesse público não é conceito coincidente com o de interesse do público. O conceito de notícias de relevância pública enfeixa as notícias relevantes para decisões importantes do indivíduo na sociedade. Em princípio, notícias necessárias para proteger a saúde ou a segurança pública, ou para prevenir que o público seja iludido por mensagens ou ações de indivíduos que postulam a confiança da sociedade têm, prima facie, peso apto para superar a garantia da privacidade (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 373). Por outro lado, dizer que sempre e sempre o interesse público na divulgação de casos judiciais deve prevalecer sobre a privacidade ou intimidade dos envolvidos pode confrontar a própria letra da Constituição, que prevê solução exatamente contrária, ou seja, de sacrifício da publicidade (art. 5º, inciso LX): A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 425 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A solução que harmoniza esses dois interesses em conflito é a preservação da pessoa, com a restrição à publicidade do processo, tornando pública apenas a resposta estatal aos conflitos a ele submetidos, dando-se publicidade da sentença ou do julgamento, nos termos do art. 155 do Código de Processo Civil e art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. 10. Cabe agora enfrentar a tese de aplicação do direito ao esquecimento no direito brasileiro. No ponto, ressalto que é pelo Direito que o homem, cravado no tempo presente, adquire a capacidade de retomada reflexiva do passado – estabilizando-o – e antecipação programada do futuro – ordenando-o e conferindo-lhe previsibilidade. Tempo e Direito, portanto, são fenômenos que guardam relação intrínseca, de modo que tanto o Direito confere significação à passagem do tempo, quanto este interfere na manifestação do Direito. Caso contrário, o tempo, para o ser humano, seria mero “tempo cronológico, uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida” (FERRAZ JUNIOR, Tércio. Segurança jurídica, coisa julgada e justiça. In. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol. 1, n. 3. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, p. 265). Sobre o tema, François Ost, filósofo do direito e professor na Faculdade Saint Louis, Bruxelas, assevera que a “justa medida temporal” à que o Direito visa: [...] permite entrever, na verdade, o duplo temor suscitado pela ação coletiva: de uma parte, do lado do passado, o perigo de permanecer fechado na irreversibilidade do já advindo, um destino de carência ou de infelicidade, por exemplo, condenada a perpetuar-se eternamente; de outra parte, do lado do futuro, o pavor inverso que suscita um futuro indeterminado, cuja radical imprevisibilidade priva de qualquer referência. Nenhuma sociedade se acomoda com seus temores; tanto que todas elas elaboram mecanismos destinados, pelo menos parcialmente, a desligar o passado e ligar o futuro (OST, François. O Tempo do direito. Tradução Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 38). Em termos de instrumental jurídico, o Direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos: prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Em alguns desses casos, a justiça material, por vezes fetichista, sede vez à segurança jurídica que deve existir nas relações sociais. 426 Jurisprudência da QUARTA TURMA Especificamente quanto à prescrição, afirma Ost ser ela o “direito a um esquecimento programado”, ressaltando também a especial aplicação do direito ao esquecimento no direito ao respeito à vida privada: Em outras hipóteses, ainda, o direito ao esquecimento, consagrado pela jurisprudência, surge mais claramente como uma das múltiplas facetas do direito a respeito da vida privada. Uma vez que, personagem pública ou não, fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade – muitas vezes, é preciso dizer, uma atualidade penal –, temos o direito, depois de determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído. Em uma decisão de 20 de abril de 1983, Mme. Filipachi Cogedipresse, o Tribunal de última instância de Paris consagrou este direito em termos muito claros: “[...] qualquer pessoa que se tenha envolvido em acontecimentos públicos pode, com o passar do tempo, reivindicar o direito ao esquecimento; a lembrança destes acontecimentos e do papel que ela possa ter desempenhado é ilegítima se não for fundada nas necessidades da história ou se for de natureza a ferir sua sensibilidade; visto que o direito ao esquecimento, que se impõe a todos, inclusive aos jornalistas, deve igualmente beneficiar a todos, inclusive aos condenados que pagaram sua dívida para com a sociedade e tentam reinserir-se nela (OST, François. Op. cit. p. 160-161). 10.1. Sobre o caso Marlene Dietrich – julgado no Tribunal de Paris -, René Ariel Dotti afirma ter sido uma pedra fundamental na construção do direito ao esquecimento, tendo a Corte parisiense reconhecido expressamente que “as recordações da vida privada de cada indivíduo pertencem ao seu patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem intenção malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a vida”. O direito ao esquecimento, como uma das importantes manifestações da vida privada, estava então consagrado definitivamente pela jurisprudência, após um lenta evolução que teve, por marco inicial, a frase lapidar pronunciada pelo advogado Pinard em 1858: “O homem célebre, senhores, tem o direito a morrer em paz”! (DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92). Na jurisprudência de direito comparado, além do que já foi acima citado, colacionam-se outros julgamentos que reconheceram explicitamente o direito ao esquecimento como uma decorrência imediata do direito à privacidade, notadamente no caso “Melvin vs. Reid” – ocorrido em 1931, no Tribunal de Apelação da Califórnia – e o caso “Lebach” – República Federal da Alemanha. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 427 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em “Melvin vs. Reid”, figurava no litígio Gabrielle Darley, que havia se prostituído e acusada de homicídio no ano de 1918, posteriormente tendo sido inocentada. Gabrielle abandonara a vida licenciosa e constituiu família com Bernard Melvin, readquirindo novamente o prestígio social. Ocorre que, muitos anos depois, Doroty Davenport Reid produziu o filme chamado Red Kimono, no qual retratava com precisão a vida pregressa de Gabrielle. O marido Melvin, então, buscou a reparação pela violação à vida privada da esposa e da família, tendo a Corte californiana reconhecido a procedência do pedido, entendendo que uma pessoa que vive um vida correta tem o direito à felicidade, no qual se inclui estar livre de desnecessários ataques a seu caráter, posição social ou reputação (DOTTI, René Ariel. Op. cit. p. 90-91). Em Lebach, 1969, um lugarejo situado na República Federal da Alemanha, ocorrera uma chacina de quatro soldados que guardavam um depósito de armas e munições, tendo sido condenados à prisão perpétua dois acusados, e um terceiro partícipe a 6 anos de reclusão. Uma TV alemã produziu, então, documentário que retrataria o crime mediante dramatização por atores contratados, em cuja veiculação, todavia, seriam apresentadas fotografias reais e os nomes de todos os condenados, inclusive as possíveis ligações homossexuais que existiam entre eles. O documentário seria apresentado em uma noite de sexta-feira, dias antes de o terceiro condenado deixar a prisão após o cumprimento da pena. Este pleiteou uma tutela liminar para que o programa não fosse exibido, arguindo a proteção de seu direito ao desenvolvimento, previsto na Constituição alemã. Ascendendo o caso até o Tribunal Constitucional alemão, a Corte decidiu que a rede de televisão não poderia transmitir o documentário caso a fotografia ou o nome do reclamante fossem expostos. O acórdão recebeu a seguinte ementa: 1. Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face de cada programa, primeiramente da proteção do Art. 5 I 2 GG. A liberdade de radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto. 2. As normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual-Artística (Kunsturhebergesetz) oferecem espaço suficiente para uma ponderação de interesses que leve em consideração a eficácia horizontal (Ausstrahlungswirkung) da liberdade de radiodifusão segundo o Art. 5 I 2 GG, de um lado, e a proteção à personalidade segundo o Art. 2 I c. c. Art. 5 I 2 GG, do outro. Aqui não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência 428 Jurisprudência da QUARTA TURMA [absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da população. 3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização). 10.2. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, não tenho dúvida da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos centrados não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente no direito positivo infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito à passagem do tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. No âmbito civil, por exemplo, a prescrição é um grande sinalizador da vocação do sistema à estabilização das relações jurídicas. Também no direito do consumidor, o prazo máximo de cinco anos para que constem em bancos de dados informações negativas acerca de inadimplência (art. 43, § 1º) revela nítida acolhida à tese do esquecimento, porquanto, paga ou não a dívida que ensejou a negativação, escoado esse prazo, a opção legislativa pendeu para a proteção da pessoa do consumidor – que deve ser esquecida – em detrimento dos interesses do mercado, quanto à ciência de que determinada pessoa, um dia, foi um mau pagador. Não é crível imaginar, por exemplo, que haveria alguma legalidade na conduta de uma empresa que, a despeito do escoamento do prazo de manutenção do nome do inadimplente nos bancos de proteção ao crédito, fizesse veicular na RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 429 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA mídia, para quem quisesse saber – ou até mesmo ad aeternum –, as mesmas informações desabonadoras constantes no cadastro, a cuja passagem do tempo de manutenção a lei conferiu significado próprio, que é o esquecimento. Porém, é mesmo no direito penal que o direito ao esquecimento se faz mais vicejante. O art. 93 do Código Penal prevê o instituto da reabilitação, que “alcança quaisquer penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o sigilo dos registros sobre seu processo e condenação”. Na mesma linha, o art. 748 do Código de Processo Penal afirma que, concedida a reabilitação: A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal. René Ariel Dotti, em comentário ao instituto da reabilitação penal, assevera que: A reabilitação é medida de Política Criminal, consistente na restauração da dignidade social e na reintegração do condenado ao exercício dos direitos e deveres sacrificados pela sentença. Nessa definição deve-se ter em linha de análise dois aspectos distintos: a) a declaração judicial de recuperação do exercício de direitos, interesses e deveres e da condição social de dignidade do ex-condenado; b) o asseguramento do sigilo dos registros sobre o processo e a condenação (DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 701). A doutrina penalista, por outro lado, obtempera que o instituto da reabilitação penal – que só se perfaz mediante pleito do egresso do sistema penitenciário, depois de cumpridas as exigências do art. 94 do Código Penal – está até em absoluto desuso, diante da possibilidade de o ex-detento obter os mesmos efeitos de forma automática por força do art. 202 da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/1984), que possui a seguinte redação: Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci acrescenta: 430 Jurisprudência da QUARTA TURMA [...] não há razão para ingressar com pedido de reabilitação se a finalidade for garantir o sigilo da folha de antecedentes para fins civis, pois o art. 202 da Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) cuida disso [...]. Trata-se de medida automática assim que julgada extinta a pena, pelo cumprimento ou outra causa qualquer, prescindindo inclusive de requerimento do condenado. Por outro lado, o mesmo se faz, isto é, comunica-se ao Instituto de Identificação, quando há absolvição ou extinção da punibilidade (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 973). No ponto, é importante o realce: se os condenados que já cumpriram a pena tem direito ao sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos registros da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos. A jurisprudência do STJ é tranquila em reconhecer o direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram pena ou dos absolvidos: Recurso ordinário em mandado de segurança. Inquérito policial arquivado. Absolvição. Processo Penal. Cancelamento de registro na folha de antecedentes. Possibilidade. Recurso provido. 1. O cancelamento dos dados nos terminais de identificação, relativos a inquérito arquivado e a processo penal em que o réu foi absolvido, é pura e legítima conseqüência da garantia constitucional da presunção de não culpabilidade. 2. Recurso provido. (RMS n. 15.634-SP, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, julgado em 17.8.2006, DJ 5.2.2007, p. 379). Recurso especial. Penal. Inquérito policial. Arquivamento. Inclusão do nome nos terminais do Instituto de Identificação. Sigilo das informações. “Se o Código de Processo Penal, em seu art. 748, assegura ao reabilitado o sigilo de registro das condenações criminais anteriores, é de rigor a exclusão dos dados relativos a sentenças penais absolutórias e inquéritos arquivados dos terminais de Instituto de Identificação, de modo a preservar as franquias democráticas consagradas em nosso ordenamento jurídico.” Recurso provido. (REsp n. 443.927-SP, Rel. Ministro José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 10.6.2003, DJ 4.8.2003, p. 366). Recurso em mandado de segurança. Denunciação caluniosa. Trancamento da ação penal. Folha de antecedentes. Cancelamento de registro. Possibilidade. Precedentes do STJ. Recurso provido. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 431 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento no sentido de que, por analogia aos termos do art. 748 do Código de Processo Penal, devem ser excluídos dos terminais dos Institutos de Identificação Criminal os dados relativos a inquéritos arquivados, a ações penais trancadas, a processos em que tenha ocorrido a reabilitação do condenado e a absolvições por sentença penal transitada em julgado ou, ainda, que tenha sido reconhecida a extinção da punibilidade do acusado decorrente da prescrição da pretensão punitiva do Estado. 2. Recurso provido para que sejam canceladas as anotações realizadas pelo Instituto de Identificação Ricardo Glumbenton-IIRGD relativas ao Processo-Crime n. 240/92, em que ocorreu o trancamento da Ação Penal n. 240/05. (RMS n. 24.099-SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 8.5.2008, DJe 23.6.2008). Administrativo. Recurso ordinário em mandado de segurança. Antecedentes criminais. Inquéritos arquivados. Exclusão de dados do registro do Instituto de Identificação da Polícia Civil. 1. Por analogia ao que dispõe o art. 748 do CPP, que assegura ao reabilitado o sigilo das condenações criminais anteriores na sua folha de antecedentes, devem ser excluídos dos terminais dos Institutos de Identificação Criminal os dados relativos a inquéritos arquivados e a processos em que tenha ocorrido a absolvição do acusado por sentença penal transitada em julgado, de molde a preservar a intimidade do mesmo. 2. “A lei confere ao condenado reabilitado direito ao sigilo de seus registros criminais, que não podem constar de folha de antecedentes ou certidão (arts. 93, do CP e 748, do CPP). O réu absolvido, seja qual for o fundamento, faz jus ao cancelamento do registro pertinente, em sua folha de antecedentes.” (RMS n. 17.774-SP. Rel. Min. Paulo Medina, Sexta Turma, DJ 1º.7.2004, p. 278). Recurso provido. (RMS n. 18.540-SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 20.3.2007, DJ 30.3.2007, p. 300). 10.3. Desde sempre se reconheceu que a verdade é uma limitação à liberdade de informar. Vale dizer que a liberdade de informação deve sucumbir perante a notícia inverídica, como preceituam diversos precedentes da Casa. Em essência, o que se propõe aqui é, a um só tempo, reafirmar essa máxima, mas fazer acerca dela uma nova reflexão, que conduz à conclusão de que essa assertiva, na verdade, é de mão única, e a recíproca não é verdadeira. Embora a notícia inverídica seja um obstáculo à liberdade de informação, a veracidade da notícia não confere a ela inquestionável licitude, muito menos transforma a liberdade de imprensa em um direito absoluto e ilimitado. 432 Jurisprudência da QUARTA TURMA Nesse ponto, a verossimilhança da informação é apenas um, mas não o único, requisito interno do exercício da liberdade de imprensa. Ninguém teria dúvida quanto à ilicitude da divulgação inconsentida acerca de hábitos sexuais de duas pessoas (anônimas ou públicas), ou o modo pelo qual elas se relacionam na vida íntima, mesmo que se trate de uma verdade incontestada. Tomando-se como exemplo os já citados bancos de dados restritivos de crédito, a lei impõe que eles não sejam eternos. Nunca se cogitou que a imposição a que se apaguem essas informações consubstanciasse censura ao direito de informar ou ao direito de ser informado, mesmo que exista nisso um inegável interesse público do mercado em se precaver contra quem, um dia, não honrou com suas obrigações contratuais. Por esse motivo, fatos mais graves, do ponto de vista de seu potencial difamante, não podem também permanecer eternamente na memória da sociedade – não por seu natural armazenamento neuropsíquico, infenso a qualquer reação jurídica, mas por obra de veículos de informação. Como se afirmou anteriormente, ao crime, por si só, subjaz um natural interesse público, caso contrário nem seria crime. E esse interesse público, que é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo penal, finca raízes essencialmente na fiscalização social da resposta estatal que será dada ao fato. Se é assim, o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas consumadas irreversivelmente. E é nesse interregno temporal que se perfaz também a vida útil da informação criminal, ou seja, enquanto durar a causa que a legitimava. Após essa vida útil da informação, seu uso só pode ambicionar, ou um interesse histórico, ou uma pretensão subalterna, estigmatizante, tendente a perpetuar no tempo as misérias humanas. Não se pode, pois, nesses casos, permitir a eternização da informação. Especificamente no que concerne ao confronto entre o direito de informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos absolvidos em processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em regra, ao último, ressalvando-se – como aqui se ressalvou – a hipótese de crimes genuinamente históricos, quando a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável: RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 433 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 374). Mas não é por isso tudo que a informação ou comunicação de fatos criminosos sejam ilimitadas, infensas a qualquer restrição. Máxime quando se tem em conta a divulgação de um fato criminoso associado a certa pessoa a quem se atribua sua autoria. Há uma primeira restrição que, na palavra de Hermano Duval, diz com o direito ao esquecimento que assiste ao condenado, o que para Costa Andrade representa um direito à ressocialização do criminoso, não estranho à legislação pátria [...]. Por esse direito, então, aquele que tenha cometido um crime, todavia já cumprida a pena respectiva, vê a propósito preservada sua privacidade, honra e imagem. Cuida-se inclusive de garantir ou facilitar a interação e reintegração do indivíduo à sociedade, quando em liberdade, cujos direitos da personalidade não podem, por evento passado e expirado, ser diminuídos. Isso encerra até corolário da admissão, já antes externada, de que fatos passados, em geral, já não mais despertam interesse coletivo. Assim também com relação ao crime, que acaba perdendo, com o tempo, aquele interesse público que avultava no momento de seu cometimento ou mesmo de seu julgamento. É claro que essa consideração não se aplica àqueles crimes históricos, que passam enfim para a história, aos grandes genocídios, como é o exemplo nazista, citado por Costa Andrade. Aliás, pelo contrário, esses são casos que não devem mesmo ser esquecidos (GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001, p. 89-90). Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana. 434 Jurisprudência da QUARTA TURMA 11. Voltando-me para o caso concreto, julgado na mesma assentada com o REsp. n. 1.335.153-RJ, não tenho dúvida em manter o acórdão ora hostilizado. A despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado – com muita razão – um fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente em situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em rede nacional. Nem a liberdade de imprensa seria tolhida nem a honra do autor seria maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado. No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma reconhecida “vergonha” nacional à parte. Nesse sentido, confira-se a fundamentação do acórdão, cujo voto condutor é da lavra do eminente Desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres: A própria embargante, em suas profundas razões, nos fornece relato fidedigno dos fatos, em trecho que peço licença para reproduzir: “Na realidade, o embargado, chamado a prestar depoimento apenas para confirmar o álibe de seu cunhado, policial militar, foi equivocadamente reconhecido por alguns menores sobreviventes do crime”. “Note-se que toda a inconsistência e contradição da atrapalhada investigação policial - que culminou com a prisão de três inocentes foram amplamente noticiadas no programa”. “Conforme fartamente divulgado na imprensa mundial, dois dias após o bárbaro crime, a policia do Rio de janeiro, numa atitude temerária, comunicou que os assassinatos haviam sido desvendados, com a prisão de seus supostos autores, dentre os quais se encontrava, por uma infelicidade, o embargado, além de dois policiais militares inocentes”. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 435 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA “Entretanto, cerca de três anos após o crime e apenas dias antes do julgamento, o ex-soldado da Polícia Militar Nelson Oliveira dos Santos Cunha, sofrendo, segundo consta, uma crise de consciência, decidiu revelar a um pastor evangélico tudo o que sabia acerca daquele nefasto episódio”. “E apenas cinco dias antes do julgamento dos acusados da chacina, um advogado procurou os promotores de justiça que atuavam no caso, com a informação de que seu cliente - o ex-soldado da Polícia Militar Nelson Oliveira dos Santos Cunha - estava envolvido no crime e tinha importantes revelações a fazer. “Poucos dias depois, o ex-soldado Nelson Oliveira dos Santos Cunha prestou depoimento diante de promotores e autoridades envolvidas na apuração da chacina e confessou a sua participação no crime”. “’Em seu depoimento o ex-soldado inocentou três dos quatro acusados, dentre os quais se encontrava o embargado, revelando o nome dos reais envolvidos. O depoimento do ex-soldado, obviamente, caiu como uma bomba sobre o processo criminal, gerando uma completa reviravolta no seu rumo”. “Após o depoimento do ex-soldado, os outros envolvidos foram presos e condenados juntamente com ele pelos crimes cometidos na Candelária. E como não poderia deixar de ser, o embargante e os outros inocentes que se encontravam presos foram finalmente absolvidos e libertados”. Resta incontroverso que a ora embargante não faltou com a verdade ao narrar os fatos, nem se reportou ao ora embargado de maneira desrespeitosa. Não é nesses termos que o pedido se coloca. Por outro lado, parece-nos de fato inquestionável que a balbúrdia que marcou a investigação policial da “Chacina da Candelária” se tornou fato indissociável do próprio crime, e que qualquer documentário que se disponha a revisitar aquele triste episódio cometeria falta jornalística se não mencionasse as trapalhadas do inquérito. Também não se questiona que aquele inglório episódio faz parte de nossa História coletiva, como um seu triste capítulo, que convém recontar às presentes e futuras gerações, para que não mais se repita, e para que se especulem as raízes de tal mazela. Mas não é esta a questão central. Não se quer negar à imprensa o direito de recontar fatos notórios, nem seus pormenores. Quer-se, antes, chamar atenção para a necessária ponderação entre o direito de informar, que diz com toda a coletividade, de um lado, e o direito à vida privada e à intimidade, de outro - ambos, direitos fundamentais garantidos por cláusula pétrea da Constituição Federal. [...] 436 Jurisprudência da QUARTA TURMA Mas, embora não haja dúvida do interesse público em revisitar os fatos envolvidos na investigação da Chacina da Candelária, será correto supor que a omissão do nome e imagem do autor, ora embargado, atentaria conta o interesse público? Estaria a reportagem comprometida? Estaria comprometido o direito coletivo à informação, caso fosse poupada a imagem do autor e se usasse um pseudônimo? Isto é o que a Lei impõe para o caso de infrações cometidas por menores de idade, em defesa dos direitos da criança e do adolescente que, porventura, tenha acabado de cometer ato delituoso. Sem dúvida há, nisto, uma restrição à informação; mas não nos parece que essa restrição atente contra o interesse público, nem contra o interesse privado do veículo de comunicação: a população em geral não estará menos bem informada, nem estará o meio de comunicação impedido de transmitir a noticia em sua essência. Igualmente, penso que, se houvesse sido atendido o clamor do ora embargado, também nessa hipótese o distinto público não estaria menos bem informado sobre a Chacina da Candelária, apenas e tão-somente por ignorar o nome completo e a imagem de alguém que, acusado há mais de década da prática de crime hediondo, foi absolvido à unanimidade pelo Tribunal do Júri. Não seria leviano supor que o nome e a imagem do autor só foram memorizados por pessoas de seu círculo de convivência, pois a enorme maioria dos telespectadores, minutos depois da exibição do programa, sequer lembraria o seu primeiro nome. Daí que, num juízo de ponderação, nos pareça forçoso concluir que a omissão do nome e imagem do autor em nada comprometeria a qualidade jornalística; mas, por outro lado, a sua publicação repercutiu, severamente, no âmbito da vida privada do ora embargado. [...] A atitude de poupar o autor, como visto, não prejudicaria o conteúdo informativo da matéria jornalística; os fatos retratados no documentário, ainda que públicos e notórios, e ainda que muito além de um crime corriqueiro, havia se passado mais de uma década atrás. Não havia qualquer atualidade na revelação da identidade daquele homem acusado injustamente de tão bárbaro crime; não havia, tampouco, interesse público significativo na divulgação desse pormenor. Bem ao revés, havia grande, e justificado receio daquele homem em ter sua identidade religada ao episódio que, se foi triste para todo o nosso Povo, foi calamitoso para a história pessoal do autor. A ora embargante, que entrou em contato com o embargado para dele tentar tomar depoimento na forma de entrevista jornalística, foi plenamente RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 437 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA informada da vontade do autor, de não se ver outra vez relembrado pelo infausto acontecimento. [...] Se o direito ao esquecimento vale para os que já pagaram por crimes que de fato cometeram, com tão maior razão se deve observá-lo em favor dos inocentes, involuntariamente tragados por um processo kafkiano de eventos por si só nefastos para sua vida pessoal, e que não se convém revolver depois que, com esforço, a vítima logra reconstruir sua vida. Não vejo como concluir que nosso ordenamento jurídico, que protege o direito de ressocialização do apenado e o direito do menor infrator, não proteja, com tão mais razão, a vida privada do inocente injustamente acusado pelo Estado. Deveras, os valores sociais ora cultuados conduzem a sociedade a uma percepção invertida dos fatos, o que gera também uma conclusão às avessas: antes de enxergar um inocente injustamente acusado, visualiza um culpado acidentalmente absolvido. Por outro lado, o quantum da condenação imposta nas instâncias ordinárias (R$ 50.000,00) não se mostra exorbitante, levando-se em consideração a gravidade dos fatos, bem como a sólida posição financeira da recorrente, circunstância que me faz manter o acórdão também nesse particular. 12. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial. É como voto. VOTO A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, acompanho o voto de Vossa Excelência. Ressalto que a controvérsia em exame nada se relaciona com censura, pois não foi inibida a apresentação do episódio na televisão, a despeito da vontade em sentido contrário declarada pelo autor e da proteção ao direito de imagem consagrada no art. 20 do Código Civil em vigor. Cuida-se, após o fato consumado, de compor os prejuízos alegados na inicial. Registro que, neste caso, consta do acórdão recorrido que o autor alega ter tido que se mudar da comunidade onde morava; sofreu ameaças, ódio social contra si e seus familiares; não foi admitido como porteiro; não recebeu serviços de serralheria, e, da análise dos documentos dos autos, concluiu o acórdão de origem, textualmente, que a “posterior veiculação do episódio contra a sua vontade 438 Jurisprudência da QUARTA TURMA expressa no programa Linha Direta, que declinou seu nome verdadeiro, reacendeu, na comunidade em que vivia o autor, o interesse e a desconfiança de todos.” Penso, portanto, assim como V. Exa., que o episódio, famoso na história recente nacional, poderia ser rememorado sem mencionar o nome verdadeiro e a imagem do autor, contra sua manifestação de vontade expressa. E quanto ao valor da indenização, também o mantenho. Nego provimento ao recurso especial. VOTO O Sr. Ministro Marco Buzzi: O direito ao esquecimento é admitido pelo direito pátrio, mas o exame quanto ao seu cabimento, por óbvio, depende de cada caso concreto, conforme destacou o eminente Ministro Antônio Carlos Ferreira. Na hipótese em tela, como bem anotado pelo ilustre Relator, as instâncias ordinárias firmaram que não houve a divulgação de dados inverídicos. Os dados são verdadeiros. Contudo, a reprodução em programa de TV do caso da Chacina da Candelária, que é um fato internacionalmente conhecido, reacendeu a discussão e o interesse da comunidade pelo episódio, ensejando situações de desconfiança em relação à pessoa do recorrido. Mais do que isso, observa-se da moldura fática já existente nos autos que o recorrido precisou sair da comunidade em que residia, foi alvo de ameaças, perdeu oportunidade de emprego, enfim, padeceu de uma série de consequências diretamente vinculadas à divulgação da matéria. Sem dúvida, a posterior vinculação do episódio no programa Linha Direta, com menção ao nome verdadeiro do recorrido, contra sua vontade expressa, fez renascer na comunidade em que vivia o autor o interesse por esse episódio, e causou, como frisei, a desconfiança de muitos que o cercavam. Por essas razões, acompanho o voto do Relator, negando provimento ao recurso especial, cumprimentando-o pela qualidade, como sempre, de suas ponderações. VOTO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Sr. Presidente, atualizei a quantia, joguei rapidamente no sistema, e o valor atualizado seria de R$ 76.000,00 RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 439 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (setenta e seis mil reais), que entendo ser até baixo em relação à repercussão que o fato trouxe para a vida do cidadão. Portanto, acompanho o voto de V. Exa., negando provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.335.153-RJ (2011/0057428-0) Relator: Ministro Luis Felipe Salomão Recorrente: Nelson Curi e outros Advogado: Roberto Algranti e outro(s) Recorrido: Globo Comunicação e Participações S/A Advogados: José Perdiz de Jesus João Carlos Miranda Garcia de Sousa e outro(s) Rodrigo Neiva Pinheiro e outro(s) EMENTA Recurso especial. Direito Civil-Constitucional. Liberdade de imprensa vs. Direitos da personalidade. Litígio de solução transversal. Competência do Superior Tribunal de Justiça. Documentário exibido em rede nacional. Linha Direta-Justiça. Homicídio de repercussão nacional ocorrido no ano de 1958. Caso “Aida Curi”. Veiculação, meio século depois do fato, do nome e imagem da vítima. Não consentimento dos familiares. Direito ao esquecimento. Acolhimento. Não aplicação no caso concreto. Reconhecimento da historicidade do fato pelas instâncias ordinárias. Impossibilidade de desvinculação do nome da vítima. Ademais, inexistência, no caso concreto, de dano moral indenizável. Violação ao direito de imagem. Súmula n. 403STJ. Não incidência. 1. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, 440 Jurisprudência da QUARTA TURMA ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal. 2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o entendimento dos autores, reabriu antigas feridas já superadas quanto à morte de sua irmã, Aida Curi, no distante ano de 1958. Buscam a proclamação do seu direito ao esquecimento, de não ter revivida, contra a vontade deles, a dor antes experimentada por ocasião da morte de Aida Curi, assim também pela publicidade conferida ao caso décadas passadas. 3. Assim como os condenados que cumpriram pena e os absolvidos que se envolveram em processo-crime (REsp. n. 1.334/097-RJ), as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento – se assim desejarem –, direito esse consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por si, inesquecíveis feridas. Caso contrário, chegar-se-ia à antipática e desumana solução de reconhecer esse direito ao ofensor (que está relacionado com sua ressocialização) e retirá-lo dos ofendidos, permitindo que os canais de informação se enriqueçam mediante a indefinida exploração das desgraças privadas pelas quais passaram. 4. Não obstante isso, assim como o direito ao esquecimento do ofensor – condenado e já penalizado – deve ser ponderado pela questão da historicidade do fato narrado, assim também o direito dos ofendidos deve observar esse mesmo parâmetro. Em um crime de repercussão nacional, a vítima – por torpeza do destino – frequentemente se torna elemento indissociável do delito, circunstância que, na generalidade das vezes, inviabiliza a narrativa do crime caso se pretenda omitir a figura do ofendido. 5. Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 441 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 6. É evidente ser possível, caso a caso, a ponderação acerca de como o crime tornou-se histórico, podendo o julgador reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exacerbada exploração midiática, e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se com um segundo abuso só porque o primeiro já ocorrera. Porém, no caso em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos. 7. Não fosse por isso, o reconhecimento, em tese, de um direito de esquecimento não conduz necessariamente ao dever de indenizar. Em matéria de responsabilidade civil, a violação de direitos encontra-se na seara da ilicitude, cuja existência não dispensa também a ocorrência de dano, com nexo causal, para chegar-se, finalmente, ao dever de indenizar. No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um “direito ao esquecimento”, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes. 8. A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, circunstância da qual se conclui não ter havido abalo moral apto a gerar responsabilidade civil. Nesse particular, fazendo-se a indispensável ponderação de valores, o acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança. 9. Por outro lado, mostra-se inaplicável, no caso concreto, a Súmula n. 403-STJ. As instâncias ordinárias reconheceram que a imagem da falecida não foi utilizada de forma degradante ou desrespeitosa. Ademais, segundo a moldura fática traçada nas instâncias ordinárias – assim também ao que alegam os próprios recorrentes –, não se vislumbra o uso comercial indevido da imagem da falecida, com os contornos que tem dado a jurisprudência para franquear a via da indenização. 10. Recurso especial não provido. 442 Jurisprudência da QUARTA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Votaram vencidos os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti e Marco Buzzi. Os Srs. Ministros Raul Araújo Filho e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 28 de maio de 2013 (data do julgamento). Ministro Luis Felipe Salomão, Relator DJe 10.9.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Nelson Curi, Roberto Curi, Waldir Cury e Maurício Curi ajuizaram ação de reparação de danos morais, materiais e à imagem em face da TV Globo Ltda. (Globo Comunicações e Participações S.A.). Afirmam os autores serem os únicos irmãos vivos de Aida Curi, vítima de homicídio no ano de 1958, crime que ficou nacionalmente conhecido por força do noticiário da época, assim também o processo criminal subsequente. Sustentam que o crime fora esquecido pelo passar do tempo, mas que a emissora ré cuidou de reabrir as antigas feridas dos autores, veiculando novamente a vida, a morte e a pós-morte de Aida Curi, inclusive explorando sua imagem, mediante a transmissão do programa chamado Linha Direta-Justiça. Entendem que a exploração do caso pela emissora, depois de passados tantos anos, foi ilícita, tendo ela sido previamente notificada pelos autores para não fazê-lo, indicando estes, ademais, que houve enriquecimento ilícito por parte da ré com a exploração de tragédia familiar passada, auferindo lucros com audiência e publicidade. Por isso pleitearam indenização por danos morais – em razão de a reportagem ter feito os autores reviver a dor do passado –, além de danos materiais e à imagem, consistentes na exploração comercial da falecida com objetivo econômico. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 443 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O Juízo de Direito da 47ª Vara Cível da Comarca da Capital-RJ julgou improcedentes os pedidos dos autores (fls. 854-869), tendo a sentença sido mantida em grau de apelação, nos termos da seguinte ementa: Indenizatória. Programa “Linha Direta Justiça”. Ausência de dano. Ação indenizatória objetivando a compensação pecuniária e a reparação material em razão do uso, não autorizado, da imagem da falecida irmã dos Autores, em programa denominado “Linha Direita Justiça”. 1 – Preliminar – o juiz não está obrigado a apreciar todas as questões desejadas pelas partes, se por uma delas, mais abrangente e adotada, as demais ficam prejudicadas. 2 – A Constituição Federal garante a livre expressão da atividade de comunicação, independente de censura ou licença, franqueando a obrigação de indenizar apensa quando o uso da imagem ou informações é utilizada para denegrir ou atingir a honra da pessoa retrata, ou ainda, quando essa imagem/ nome foi utilizada para fins comerciais. Os fatos expostos no programa eram do conhecimento público e, no passado, foram amplamente divulgados pela imprensa. A matéria foi, é discutida e noticiada ao longo dos últimos cinquenta anos, inclusive, nos meios acadêmicos. A Ré cumpriu com sua função social de informar, alertar e abrir o debate sobre o controvertido caso. Os meios de comunicação também têm este dever, que se sobrepõe ao interesse individual de alguns, que querem e desejam esquecer o passado. O esquecimento não é o caminho salvador para tudo. Muitas vezes é necessário reviver o passado para que as novas gerações fiquem alertas e repensem alguns procedimentos de conduta do presente. Também ninguém nega que a Ré seja uma pessoa jurídica cujo fim é o lucro. Ela precisa sobreviver porque gera riquezas, produz empregos e tudo mais que é notório no mundo capitalista. O que se pergunta é se o uso do nome, da imagem da falecida, ou a reprodução midiática dos acontecimentos, trouxe, um aumento de seu lucro e isto me parece que não houve, ou se houve, não há dados nos autos. Recurso desprovido, por maioria, nos termos do voto do Desembargador Relator (fls. 974-975). Opostos dois embargos de declaração, foram ambos rejeitados. Sobrevieram então recursos especial e extraordinário. No especial, que está apoiado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, alega-se, além de dissídio, violação aos artigos 14, V, 17, IV e V, 18, caput e § 2º, 444 Jurisprudência da QUARTA TURMA 131, 165, 286, II e III, 302, 334, IV, 436, 458, II, e 535 do Código de Processo Civil; 12, 186, 884 e 927, caput e parágrafo único, do Código Civil; 6º, VIII, e 12 do Código de Defesa do Consumidor. Sustentam os recorrentes a nulidade dos acórdãos e da sentença por deficiência de fundamentação, omissão, má apreciação das provas, equivocada distribuição do ônus probatório e indeferimento de outras provas necessárias ao desate da controvérsia. No mérito da causa, alegam os recorrentes o direito ao esquecimento acerca da tragédia familiar pela qual passaram na década de cinquenta do século passado, direito esse que foi violentado pela emissora ré, por ocasião da veiculação da reportagem não autorizada da morte da irmã dos autores. O especial, inicialmente, não foi admitido na origem. Com a interposição do AREsp. n. 15.007-RJ, dei-lhe provimento para melhor exame da questão (fl. 1.400). O recurso extraordinário também não foi admitido, constando nos autos agravo pendente de apreciação pelo STF. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Em termos de conhecimento deste recurso especial, uma observação inicial se impõe. É inegável que o conflito aparente entre a liberdade de expressão/ informação, ora materializada na liberdade de imprensa, e atributos individuais da pessoa humana - como intimidade, privacidade e honra - possui estatura constitucional (art. 5º, incisos IV, V, IX, X e XIV, arts. 220 e 221 da Constituição Federal), não sendo raras as decisões apoiadas predominantemente no cotejo hermenêutico entre os valores constitucionais em confronto. Porém, em contrapartida, é de alçada legal a exata delimitação dos valores que podem ser, eventualmente, violados nesse conflito, como a honra, a privacidade e a intimidade da pessoa, o que, em última análise, atribui à jurisdição infraconstitucional a incumbência de aferição da ilicitude de condutas potencialmente danosas e, de resto, da extensão do dano delas resultante. Forma-se, a partir daí, um cenário perigoso ao jurisdicionado, que, em não raras vezes, tem subtraídas ambas as vias recursais, a do recurso especial e a do recurso extraordinário. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 445 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Diversos precedentes há, nesta Corte Superior de Justiça, a afirmar que a celeuma instalada entre a alegação de dano moral e a liberdade de imprensa resolve-se pela via do recurso extraordinário, ora negando o especial interposto, ora exigindo a interposição de recurso extraordinário simultâneo, por força da Súmula n. 126-STJ. Nesse sentido, entre muitos outros, são os seguintes precedentes, nos quais se afirmou ser de índole parcial ou totalmente constitucional controvérsia análoga à que ora se analisa: AgRg no Ag n. 1.340.505-SP, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 10.4.2012; REsp n. 1.001.923PB, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 13.3.2012; AgRg no Ag n. 1.185.400-SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 19.5.2011; AgRg no REsp n. 1.125.127-RJ, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.5.2011. Não obstante, quando a controvérsia chega ao Supremo Tribunal Federal não se conhece do recurso extraordinário interposto, quase sempre por se entender que a celeuma instalou-se no âmbito infraconstitucional e a violação à Constituição Federal, se existente, seria reflexa. Nesse sentido, apenas a título de exemplos, confiram-se os seguintes precedentes: AI n. 685.054 AgR, Relator(a): Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 21.8.2012; AI n. 763.284 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 12.6.2012; RE n. 597.962 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 27.3.2012; AI n. 766.309 AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 10.11.2009; Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 16.9.2008; AI n. 631.548 AgR, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 6.4.2010. Apenas para registro, o primeiro precedente acima citado corresponde, no STJ, ao Ag. n. 1.394.533-DF, ao qual foi negado provimento por razões já mencionadas. Por sua vez, o Ag. n. 851.325-RJ (referente ao conhecido caso “Doca Street”), também foi negado no STJ por fundamentos análogos, por entender que a controvérsia era exclusivamente constitucional, e, ascendendo os autos ao STF, também não se conheceu do recurso (AI n. 679.343 AgR, Relator(a): Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 11.12.2012). Na verdade, a mesma controvérsia ocorre quando se analisam questões alusivas, por exemplo, a direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito, institutos todos regulados pela Constituição de 1988 e pela Lei de Introdução ao Código Civil (atual Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB). 446 Jurisprudência da QUARTA TURMA É certo que há diversos precedentes do STJ entendendo que a matéria contida no art. 6º da LINDB, relativa à preservação do ato jurídico perfeito, por exemplo, tem natureza constitucional. E, ao reverso, o STF, de forma incisiva, abraça entendimento de que a “alegação de ofensa aos princípios da legalidade, prestação jurisdicional, direito adquirido, ato jurídico perfeito, limites da coisa julgada, devido processo legal, contraditório e ampla defesa configura, quando muito, ofensa meramente reflexa às normas constitucionais” (RE n. 563.816 AgR, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 26.10.2010). Adota-se a doutrina segundo a qual constituem coisas diversas a proteção constitucional de determinado princípio e o alcance normativo do seu conteúdo. De fato, diversas vezes o Poder Constituinte, sem embargo de indicar determinado valor como objeto de proteção constitucional, não aprofundou sua definição conceitual ou seu alcance. Nessa linha, é Rubens Limongi França quem delimita, de um lado, a proteção constitucional do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, e, de outro, o nítido contorno infraconstitucional adotado no sistema brasileiro no que tange a esses valores: A Constituição vigente determina simplesmente o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Não apresenta, como se deu com a Lei de Introdução ao Código Civil, bem assim a Lei n. 3.238, de 1957, uma definição de Direito Adquirido. De onde a questão: o conceito de Direito Adquirido constitui matéria constitucional ou de caráter ordinário? [...] A previsão, no texto constitucional, que não existe, ainda que houvesse, não traria como consequência o corolário de que de natura o assunto apresenta caráter constitucional. Por outro lado, a realidade jurídica, à face das leis extravagantes e do teor dos pronunciamentos dos nossos colégios judicantes, nos mostra que, muito embora a Constituição tenha consagrado um instituto de bases assentadas na consciência jurídica nacional, essas bases não são rígidas e absolutas, mas sujeitas, em vários dos seus aspectos, a mutações e aprimoramentos. Desse modo, formular na Constituição um conceito de Direito Adquirido implicaria em subtrair-lhe muitas das suas possibilidades de progresso, tanto através da Doutrina e da Jurisprudência, como da própria legislação extravagante (FRANÇA, Rubens Limongi. Direito intertemporal brasileiro: doutrina da irretroatividade das leis e do direito adquirido. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 403-404). Na Corte Especial, questão análoga já foi enfrentada, recebendo tratamento sintetizado na seguinte ementa (nas partes que interessam): RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 447 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Processual Civil. Embargos de divergência. Dissenso interno a respeito da interpretação de normas processuais que disciplinam o incidente de declaração de inconstitucionalidade. CPC, arts. 480 a 482. Controle por recurso especial. Cabimento. [...] 2. A concretização das normas constitucionais depende, em muitos casos, da intermediação do legislador ordinário, a quem compete prover o sistema com indispensáveis preceitos complementares, regulamentares ou procedimentais. Dessa pluralidade de fontes normativas resulta a significativa presença, em nosso sistema, de matérias juridicamente miscigenadas, a ensejar (a) que as decisões judiciais invoquem, simultaneamente, tanto as normas primárias superiores, quanto as normas secundárias e derivadas e (b) que também nos recursos possa ser alegada, de modo concomitante, ofensa a preceitos constitucionais e a infraconstitucionais, tornando problemática a definição do recurso cabível para as instâncias extraordinárias (STF e STJ). [...] 4. [...] Assim, embora, na prática, a violação da lei federal possa representar também violação à Constituição, o que é em casos tais um fenômeno inafastável, cumpre ao STJ atuar na parte que lhe toca, relativa à correta aplicação da lei federal ao caso, admitindo o recurso especial. 5. Embargos de divergência conhecidos e providos. (EREsp n. 547.653-RJ, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 15.12.2010, DJe 29.3.2011). Com efeito, avulta a responsabilidade do Superior em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse passo, a partir dessa reflexão, penso que a jurisprudência do STJ deve ser atualizada e harmonizada, principalmente porque: a) com a Emenda Constitucional n. 45, o cenário tornou-se objetivamente diverso daquele que antes circunscrevia a interposição de recursos especial e extraordinário, pois, se anteriormente todos os fundamentos constitucionais que serviram ao acórdãos eram impugnáveis - e deviam ser, nos termos da Súmula n. 126-STJ - mediante recurso extraordinário, agora, somente as questões que, efetivamente, ostentarem repercussão geral (art. 102, § 3º, da Constituição Federal) é que podem ascender à Suprema Corte (art. 543-A, § 1º, do CPC); 448 Jurisprudência da QUARTA TURMA b) no atual momento de desenvolvimento do direito é inconcebível a análise encapsulada dos litígios, de forma estanque, como se os direitos civil, penal ou processual pudessem ser “encaixotados” de modo a não sofrer ingerências do direito constitucional. Esta Turma já afirmou, no julgamento do REsp. n. 1.183.378-RS, que, depois da publicização do direito privado, vive-se a chamada constitucionalização do direito civil, momento em que o foco transmudou-se definitivamente do Código Civil para a própria Constituição Federal, de modo que os princípios constitucionais alusivos a institutos típicos de direito privado (como família e propriedade) passaram a condicionar a interpretação da legislação infraconstitucional. Na expressão certeira de Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa humana assume dimensão transcendental e normativa, e a Constituição passa a ser não somente “o documento maior do direito público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e conferindo-lhe unidade” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60). Nessa linha de evolução, penso que também por essa ótica deva ser analisado o papel do Superior Tribunal de Justiça, notadamente das Turmas de Direito Privado. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, não me parece possível a esta Corte de Justiça analisar as celeumas que lhe aportam “de costas” para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita (REsp n. 1.183.378-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25.10.2011); e assim o fazendo, não se há falar também em usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, já decidiu o STF não haver usurpação, pelo STJ, no julgamento de demanda com “causa de pedir fundada em princípios constitucionais genéricos, que encontram sua concreta realização nas normas infraconstitucionais” (Rcl n. 2.252 AgR-ED, Relator(a): Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 18.3.2004). RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 449 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Na mesma direção, afirmou-se na Suprema Corte que “o Superior Tribunal de Justiça, ao negar seguimento ao recurso especial com fundamento constitucional, exerc[e] o chamado controle difuso de constitucionalidade, que é possibilitado a todos os órgãos judiciais indistintamente” (Rcl n. 8.163 AgR, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 3.11.2011). No último precedente acima citado, o eminente Ministro Marco Aurélio interveio aduzindo que, “ultrapassada a barreira de conhecimento do especial, o Superior Tribunal de Justiça, como todo e qualquer órgão investido do ofício judicante, exerce e deve exercer - não está compelido a aplicar uma lei inconstitucional - o controle difuso de constitucionalidade”. Nessa ordem de ideias, em artigo jurídico recém publicado, o eminente Ministro Teori Albino Zavascki também lança novas luzes sobre a celeuma e esquadrinha com clareza a possibilidade de jurisdição constitucional no âmbito do recurso especial, sobretudo em questões interdisciplinares, com soluções apoiadas transversalmente em diversos setores do direito, concluindo que, no mais das vezes, as posições simplificadoras que afirmam, peremptoriamente, ser competência exclusiva do STF o conhecimento de questões constitucionais partem de uma má compreensão do sistema. Nesse sentido, confiram-se as palavras de Sua Exa.: Foi talvez a dificuldade de acomodação a essa nova sistemática, inédita em nossa história, o fator determinante da acentuada tendência a estratificar, de modo quase absoluto, a competência das duas Cortes Superiores, como se não houvesse a abertura de vasos comunicantes entre as suas principais funções institucionais. Há certamente equívocos e exageros nessas posições estremadas, notadamente se considerarmos o sentido amplo de que se reveste o conceito de “guarda da Constituição” e, por consequência, o vasto domínio jurídico em que atua a jurisdição constitucional. Realmente, a força normativa da Constituição a todos vincula e a todos submete. [...] Pois bem: qualquer que seja o modo como se apresenta o fenômeno da inconstitucionalidade ou o seu agente causador, ele está sujeito a controle pelo Poder Judiciário. Aí reside justamente a essência do que se denomina jurisdição constitucional: é a atividade jurisdicional do Poder Judiciário na interpretação e aplicação da Constituição. Nessa seara, não há dúvida que ao STF cabe, precipuamente, a guarda da Constituição; todavia, também é certo que essa não é atribuição exclusivamente sua. Pelo contrário, se nos tocasse apontar um signo marcante e especial do Poder Judiciário brasileiro, esse certamente é o da 450 Jurisprudência da QUARTA TURMA competência difusa atribuída a todos os seus órgãos e a todos os seus agentes para, até mesmo de ofício, cumprir e fazer cumprir as normas constitucionais, anulando, se necessário, atos jurídicos, particulares ou administrativos, concretos ou normativos, com elas incompatíveis. Em outras palavras: todos os órgãos do Poder Judiciário estão investidos da jurisdição constitucional, não se podendo imaginar que tal atribuição seja estranha ao plexo de competência de um dos principais tribunais da Federação, que é o STJ. [...] Não parece equivocado, de qualquer modo, o alvitre segundo o qual o controle de constitucionalidade de normas é uma função subutilizada no STJ, o que se explica, em alguma medida, pelo desconhecimento de seu manejo e das suas virtualidades, mas, sobretudo, porque, não sendo uma de suas funções típicas, o Tribunal prefere devolver o julgamento da matéria constitucional às instâncias ordinárias, a exemplo do que faz com as questões de fato e de prova, em hipóteses em que é indispensável um novo julgamento da causa. [...] É preciso anotar, todavia, que as estatísticas registram apenas os incidentes de inconstitucionalidade efetivamente instaurados e levados à apreciação da Corte Especial, em observância à norma do art. 97 da CF (LGL 1988\3) (princípio da reserva de plenário). Ora, essa é uma - talvez a menos significativa - das várias faces com que se apresenta a jurisdição constitucional do Tribunal. Referidos incidentes, com efeito, somente são instaurados nas limitadas situações em que um dos órgãos fracionários, valendo-se da técnica da declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, faz juízo positivo de ilegitimidade da norma; não, porém, quando faz juízo negativo, hipótese em que a apreciação da questão se esgota no âmbito do próprio órgão fracionário, dispensada a observância da reserva de plenário. E certamente há jurisdição constitucional também nessa segunda hipótese. O incidente é dispensado, ademais, quando há precedente do STF ou da própria Corte Especial a respeito da questão constitucional (art. 481, parágrafo único, CPC (LGL 1973\5)). [...] Se acrescentarmos a todas essas situações as muitas e muitas outras em que as normas e princípios constitucionais são invocados na jurisprudência do STJ como parâmetro para a adequada interpretação e aplicação das leis federais e dos tratados, haveremos de concluir que, mesmo em julgamentos de recursos especiais, é muito mais fecunda do que parece a jurisdição constitucional do STJ (ZAVASCKI, Teori Albino. Jurisdição Constitucional do Superior Tribunal de Justiça. In. Revista de Processo, v. 212, Set/2012. p. 13). De fato, o que se veda é o conhecimento do recurso especial com base em alegação de ofensa a dispositivo constitucional, não sendo defeso ao STJ - aliás, é bastante aconselhável - que, admitido o recurso, aplique o direito à espécie, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 451 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA buscando na própria Constituição Federal o fundamento para acolher ou rejeitar a violação do direito infraconstitucional invocado ou para conferir à lei a interpretação que melhor se ajusta ao texto constitucional. Por exemplo, em demandas de responsabilidade civil, como no caso em exame, o comando legal segundo o qual aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo (art. 927 do CC/2002), somente é bem aplicado se a aventada ilicitude for investigada em todo ordenamento jurídico, no plano legal e constitucional. No caso em apreço, o confronto entre liberdade de informação e os direitos da personalidade, a par de transitar também pelos domínios do direito constitucional, pode ser bem solucionado a partir da exegese dos arts. 11, 12, 17, 20 e 21, do Código Civil. 3. No mérito, afasto a alegação de ofensa aos arts. 131, 165, 286, II e III, 302, 334, IV, 436, 458, II, e 535 do Código de Processo Civil, tendo em vista que o acórdão ora hostilizado enfrentou todas as questões essenciais ao desate da controvérsia, não havendo ponto omisso, obscuro ou contraditório apto a nulificá-lo. Na verdade, tanto o acórdão proferido em grau de apelação quanto a sentença ostentam fundamentações robustas, tendo sido o delicado tema ora em exame enfrentado com bastante esmero e profundidade em todas as instâncias, um sinal de que o Poder Judiciário, a despeito da avalanche de processos que o soterra, mostra-se sensível a demandas paradigmáticas como a presente. Os arts. 14, inciso V, 17, incisos IV e V, e 18, caput e § 2º, do Código de Processo Civil, assim também os arts. 6º, VIII, e 12 do Código de Defesa do Consumidor não foram objeto de prequestionamento, mostrando-se mesmo irrelevantes ao desate da controvérsia. 4. A questão posta nos presentes autos diz respeito a conhecido conflito de valores e direitos, todos acolhidos pelo mais alto diploma do ordenamento jurídico, mas que as transformações sociais, culturais e tecnológicas encarregaram-se de lhe atribuir também uma nova feição, confirmando a máxima segundo a qual o ser humano e a vida em sociedade são bem mais inventivos que o estático direito legislado. Neste campo, o Judiciário foi instado a resolver os conflitos por demais recorrentes entre a liberdade de informação e de expressão e os direitos inerentes à personalidade, ambos de estatura constitucional. 452 Jurisprudência da QUARTA TURMA Na verdade, o mencionado conflito é mesmo imanente à própria opção constitucional pela proteção de valores quase sempre antagônicos, os quais, em última análise, representam, de um lado, o legítimo interesse de “querer ocultarse” e, de outro, o também legítimo interesse de se “fazer revelar”. Diversos precedentes deste Superior Tribunal de Justiça analisaram casos de confronto entre publicações jornalísticas e alegadas ofensas aos direitos da personalidade. As soluções conferidas, nesses casos, quase sempre estiveram inseridas em um contexto de ilicitude da publicação - em razão de conteúdo difamatório ou inverídico - e em um cenário de contemporaneidade da notícia. Bem por isso esta Quarta Turma, analisando os contornos de eventual ilicitude de matérias jornalísticas, abraçou a tese segundo a qual a liberdade de imprensa, por não ser absoluta, encontra algumas limitações, como: “(I) o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de crítica jornalística com intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi)” (REsp n. 801.109-DF, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 12.6.2012). Por outro enfoque, assinalando o traço da contemporaneidade que, de regra, marca a atividade jornalística, no REsp n. 680.794-PR, de minha relatoria, desta Turma, julgado em 17.6.2010, afirmei que, embora não se permitam leviandades por parte do jornalista, também não são exigidas verdades absolutas, provadas previamente em sede de investigações no âmbito administrativo, policial ou judicial. Exige-se - como assinalado no voto condutor do citado precedente -, com a rapidez e velocidade possíveis, uma diligência séria que vai além de meros rumores, razão por que reafirmei também o dito popular segundo o qual “informação velha não vira notícia”, adágio que a história, nos presentes autos, parece estar a desmentir. Agora, uma vez mais, o conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade ganha a tônica da modernidade, analisado por outro prisma, desafiando o julgador a solucioná-lo a partir de nova realidade social, ancorada na informação massificada que, diariamente, se choca com a invocação de novos direitos, hauridos que sejam dos já conhecidos direitos à honra, à privacidade e à intimidade, todos eles, por sua vez, resultantes da proteção constitucional conferida à dignidade da pessoa humana. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia transita exatamente na ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 453 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA entendimento dos autores, reabriu antigas feridas já superadas quanto à morte de sua irmã, Aida Curi, no distante ano de 1958. A tese dos autores é a proclamação do seu direito ao esquecimento, de não ter revivida, contra a vontade deles, a dor antes experimentada por ocasião da morte de Aida Curi, assim também pela publicidade conferida ao caso décadas passadas. A tese do direito ao esquecimento ganha força na doutrina jurídica brasileira e estrangeira, tendo sido aprovado, recentemente, o Enunciado n. 531 na VI Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF-STJ, cujo teor e justificativa ora se transcrevem: Enunciado n. 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados. 1. Cabe desde logo separar o joio do trigo e assentar uma advertência. A ideia de um direito ao esquecimento ganha ainda mais visibilidade - mas também se torna mais complexa - quando aplicada à internet, ambiente que, por excelência, não esquece o que nele é divulgado e pereniza tanto informações honoráveis quanto aviltantes à pessoa do noticiado, sendo desnecessário lembrar o alcance potencializado de divulgação próprio desse cyberespaço. Até agora, temse mostrado inerente à internet - mas não exclusivamente a ela - a existência de um “resíduo informacional” que supera a contemporaneidade da notícia e, por vezes, pode ser, no mínimo, desconfortante àquele que é noticiado. Em razão da relevância supranacional do tema, os limites e possibilidades do tratamento e da preservação de dados pessoais estão na pauta dos mais atuais debates internacionais acerca da necessidade de regulação do tráfego informacional, levantando-se, também no âmbito do direito comparado, o conflituoso encontro entre o direito de publicação - que pode ser potencialmente mais gravoso na internet - e o alcance da proteção internacional dos direitos humanos. 454 Jurisprudência da QUARTA TURMA A União Europeia, depois de mais de quinze anos da adoção da Diretiva n. 46/1995/CE (relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação da informação), que foi seguida pela Diretiva n. 2002/58/CE (concernente à privacidade e às comunicações eletrônicas), acendeu, uma vez mais, o debate acerca da perenização de informações pessoais em poder de terceiros, assim como o possível controle de seu uso - sobretudo na internet. A Vice-Presidente da Comissão de Justiça da União Europeia, Viviane Reding, apresentou proposta de revisão das diretivas anteriores, para que se contemple, expressamente, o direito ao esquecimento dos usuários de internet, afirmando que “al modernizar la legislación, quiero clarificar específicamente que las personas deben tener el derecho, y no sólo la posibilidad, de retirar su consentimiento al procesamiento de datos [...]”, e que o primeiro pilar da reforma será el derecho a ser olvidado: “un conjunto completo de reglas nuevas y existentes para afrontar mejor los riesgos para la privacidad en Internet” (http://www.20minutos.es/ noticia/991340/0/derecho/olvido/facebook/. Acesso em 2 de maio de 2013). Na mesma linha, em recente palestra proferida na Universidade de Nova York, o alto executivo da Google Eric Schmidt afirmou que a internet precisa de um botão de delete. Informações relativas ao passado distante de uma pessoa podem assombrá-la para sempre, causando entraves, inclusive, em sua vida profissional, como no exemplo dado na ocasião, de um jovem que cometeu um crime em relação ao qual as informações seriam expurgadas de seu registro na fase adulta, mas que o mencionado crime poderia permanecer on-line, impedindo a pessoa de conseguir emprego. “Na América” - afirmou Schimidt -, “há um senso de justiça que é culturalmente válido para todos nós. A falta de um botão delete na internet é um problema significativo. Há um momento em que o apagamento é uma coisa certa” (Google’s Schmidt: The Internet needs a delete button. Google’s Executive Chairman Eric Shmidt says mistakes people make when young can haut them forever. (Disponível em: <http://news.cnet.com/8301-1023_3-57583022-93/googlesschmidt-the-internet-needs-a-delete-button/>. Acesso em 10 de maio de 2013). Em maio de 2011, o espanhol El País, por intermédio da jornalista Milagros Pérez Oliva, também publicou interessante reportagem acerca do denominado derecho al olvido, retratando caso da ginasta Marta Bobo, noticiada no ano de 1984, no mesmo El País, em uma matéria curta, mas categórica: “Marta Bobo sufre anorexia”. A reportagem dava conta de que três atletas, entre elas Marta Bobo, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 455 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA disputariam as medalhas de ginástica rítmica nos Jogos Olímpicos, “pero Marta, con 29 kilos a sus 18 años, con anorexia diagnosticada, se encuentra en Los Ángeles en contra de los consejos del psiquiatra. Su situación, no ya anímica, sino física, ha podido ser peligrosa”. Agora, com 45 (quarenta e cinco) anos, Marta Bobo convive com a mencionada notícia, que garante ser falsa, em páginas da internet, que converte o passado em um presente contínuo. Tal circunstância, noticia Milágros Pérez, tem dado lugar a uma nova demanda social - “el derecho al olvido” - que afeta a todos, em relação à qual se espera que a União Européia se pronuncie (Disponível: http://elpais.com/diario/2011/05/15/opinion/1305410404_850215.html. Acesso em 02 de maio de 2013). Com efeito, é atual e relevante o debate acerca do chamado direito ao esquecimento, seja no Brasil, seja nos discursos estrangeiros, debate que, no caso em exame, é simplificado por não se tratar de informações publicadas na internet, cujo domínio do tráfego é evidentemente mais complicado e reclama mesmo uma solução - legislativa ou judicial - específica. Portanto, a seguir, analisa-se a possível adequação (ou inadequação) do mencionado direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações. 6. Grosso modo, entre outras assertivas contrárias à tese do direito ao esquecimento, afirmam-se que: i) o acolhimento do chamado direito ao esquecimento constitui atentado à liberdade de expressão e de imprensa; ii) o direito de fazer desaparecer as informações que retratam uma pessoa significa perda da própria história, o que vale dizer que o direito ao esquecimento afronta o direito à memória de toda a sociedade; iii) cogitar de um direito ao esquecimento é sinal de que a privacidade é a censura do nosso tempo; iv) o mencionado direito ao esquecimento colidiria com a própria ideia de direitos, porque estes têm aptidão de regular a relação entre o indivíduo e a sociedade, ao passo que aquele finge que essa relação não existe - um “delírio da modernidade”; v) o direito ao esquecimento teria o condão de fazer desaparecer registros sobre crimes e criminosos perversos, que entraram para a história social, policial e judiciária, informações de inegável interesse público; vi) ou uma coisa é, na sua essência, lícita ou é ilícita, não sendo possível que uma informação lícita transforme-se em ilícita pela simples passagem do tempo; vii) 456 Jurisprudência da QUARTA TURMA quando alguém se insere em um fato de interesse coletivo, mitiga-se a proteção à intimidade e privacidade em benefício do interesse público e, ademais, uma segunda publicação (a lembrança, que conflita com o esquecimento) nada mais faz do que reafirmar um fato que já é de conhecimento público; viii) e, finalmente, que programas policiais relatando acontecimentos passados, como crimes cruéis ou assassinos célebres, são e sempre foram absolutamente normais no Brasil e no exterior, sendo inerentes à própria atividade jornalística. 7. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, unanimemente reconhecido como um dos mais perspicazes pensadores do nosso tempo e preciso intérprete dos sinais da modernidade - por ele nomeada de “modernidade líquida” -, lança novas luzes acerca da atual configuração do antigo conflito entre os espaços público e privado - entre a informação e a privacidade. Com boa dose de desesperança, Bauman afirma que um dos danos colaterais dessa “modernidade líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”, tendo nascido uma inédita sociedade confessional, em que espaços antes reservados à exploração de questões de interesses e preocupações comuns são agora utilizados como “depositórios geradores dos segredos mais secretos, aqueles a serem divulgados apenas a Deus ou a seus mensageiros e plenipotenciários terrestres”: Se você quer saber qual dos lados [das esferas pública e privada] está hoje na ofensiva e qual está (tenaz ou tibiamente) tentando defender dos invasores seus direitos herdados ou adquiridos, há coisas piores a fazer que meditar sobre o profético pressentimento de Peter Ustinov (expresso em 1956): “Este é um país livre, madame. Nós temos o direito de compartilhar a sua privacidade no espaço público” (BAUMAN, Zygmunt. Privacidade, sigilo, intimidade, vínculos humanos - e outras baixas colaterais da modernidade líquida. In. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 110). De fato, na atual sociedade da hiperinformação parecem evidentes os “riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 113). Por outro lado, o antigo conflito entre o público e o privado ganha uma nova roupagem na modernidade: a inundação do espaço público com questões RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 457 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA estritamente privadas decorre, a um só tempo, da expropriação da intimidade/ privacidade por terceiros, mas também da voluntária entrega desses bens à arena pública. Constroem-se “amizades” em redes sociais em um dia, em número superior ao que antes se construía em uma vida, e essa fragilidade de vínculos humanos contribui para o processo erosivo da privacidade. Porém, sem nenhuma dúvida, mais grave que a venda ou a entrega graciosa da privacidade à arena pública, como uma nova mercadoria para o consumo da coletividade, é sua expropriação contra a vontade do titular do direito, por vezes um anônimo que pretende assim permanecer. Essa tem sido uma importante - se não a mais importante - face do atual processo de esgarçamento da intimidade e da privacidade, e o que estarrece é perceber certo sentimento difuso de conformismo, quando se assiste a olhos nus a perda de bens caros ao ser humano, conquistados não sem enorme esforço por gerações passadas; sentimento difundido por inédita “filosofia tecnológica” do tempo atual pautada na permissividade, para a qual ser devassado ou espionado é, em alguma medida, tornar-se importante e popular, invertendo-se valores e tornando a vida privada um prazer ilegítimo e excêntrico, seguro sinal de atraso e de mediocridade. Como bem observa Paulo José da Costa Júnior, dissertando acerca do direito de ser deixado em paz ou o direito de estar só (the right to be let alone): Aceita-se hoje, com surpreendente passividade, que o nosso passado e o nosso presente, os aspectos personalíssimos de nossa vida, até mesmo sejam objeto de investigação e todas as informações arquivadas e livremente comercializadas. O conceito de vida privada como algo precioso, parece estar sofrendo uma deformação progressiva em muitas camadas da população. Realmente, na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privatividade, contemplação e interiorização vem sendo posta em xeque, numa escala de assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notadas (COSTA JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 16-17). Portanto, diante dessas preocupantes constatações acerca do talvez inevitável - mas Admirável - Mundo Novo do hiperinformacionismo, o momento é de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados. 8. Outro aspecto a ser analisado é a aventada censura à liberdade de imprensa. 458 Jurisprudência da QUARTA TURMA No ponto, nunca é demais ressaltar o estreito e indissolúvel vínculo entre a liberdade de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda se autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua e diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do qual nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode descurar - nem o povo nem as instituições democráticas -, encontra na imprensa livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente consigo reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade democrática. É sintomática, nesse sentido, a mensagem conjunta de Ban Ki-moon, Secretário-Geral da ONU, e Irina Bokova, Diretora-Geral da Unesco, proferida no dia 3 de maio de 2013 (Dia Mundial da Liberdade de Imprensa), dando conta de que, nos últimos dez anos, mais de 600 (seiscentos) jornalistas foram mortos, muitos em cobertura de situações não conflituosas, e que nove entre dez casos de homicídios de jornalistas permanecem impunes, circunstância que renova a preocupação com a liberdade de imprensa ainda na atualidade (Íntegra da mensagem disponível em http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/ about-this-office/single-view/news/joint_message_ununesco_on_the_ocasion_ of_world_press_freedom_day_2013/, acesso em 10.3.2013). Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo qual passou a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de sua inegável virtude histórica, a mídia do século XXI deve fincar a legitimação de sua liberdade em valores atuais, próprios e decorrentes diretamente da importância e nobreza da atividade. Os antigos fantasmas da liberdade de imprensa, embora deles não se possa esquecer jamais, atualmente, não autorizam a atuação informativa desprendida de regras e princípios a todos impostos. O novo cenário jurídico subjacente à atividade da imprensa apoia-se no fato de que a Constituição Federal, ao proclamar a liberdade de informação e de manifestação do pensamento, assim o faz traçando as diretrizes principiológicas de acordo com as quais essa liberdade será exercida, reafirmando, assim como a doutrina sempre afirmou, que os direitos e garantias protegidos pela Constituição, em regra, não são absolutos. Desse modo, depois de a Carta da República afirmar, no seu art. 220, que “[a] manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 459 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA logo cuida de explicitar alguns princípios norteadores dessa liberdade, como a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 220, § 1º). Na mesma direção, como que o § 3º do art. 222, em alguma medida, dirigisse o exercício de tal liberdade, afirma-se que “[os] meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221”, princípios dos quais se destaca o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (inciso IV). Com isso, afirma-se com todas as letras que, não obstante a Carta estivesse rompendo com o paradigma do medo e da censura impostos à manifestação do pensamento, não se poderia hipertrofiar a liberdade de informação, doravante garantida, à custa do atrofiamento dos valores que apontam para a pessoa humana. E é por isso que a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores. Nos primeiros quadrantes do século passado, a atividade informativa - não obstante fosse diariamente confrontada pela força opressiva do próprio Estado não o era com valores antes desprotegidos, e que só vieram a receber relevância constitucional em 1988. Basta lembrar que a doutrina brasileira, em tempos pretéritos, embora cogitasse da reparabilidade em tese do dano moral, resistia em reconhecer o acolhimento desse direito no ordenamento jurídico pátrio. Nesse sentido, confira-se o registro histórico de Yussef Said Cahali acerca do tema: Uma coisa é admitir a tese da reparabilidade do dano moral; outra coisa é reconhecer que o nosso direito civil, em suas fases anteriores, a tivesse perfilhado. Na fase da legislação pré-codificada, Lacerda de Almeida manifestou-se adepto da teoria negativista da reparação: “As cousas inestimáveis repelem a sanção do Direito Civil que com elas não se preocupa”. Também Lafayette: “O mal causado pelo delito pode constituir simplesmente em um sofrimento físico ou moral, sem relação direta com o patrimônio do ofendido, como é o que resulta do ferimento leve que não impede de exercer a profissão, ou de ataque à honra. Nestes casos não há necessidade de satisfação pecuniária. Todavia, não tem faltado quem queira reduzir o simples sofrimento físico ou moral a valor: são extravagâncias do espírito humano”. 460 Jurisprudência da QUARTA TURMA [...] Assim Orlando Gomes, reconhecendo que já então prevalecia a doutrina da reparabilidade do dano moral, mas como o Código Civil de 1916 não inseria qualquer preceito alusivo a ele, contestava os que se manifestavam no sentido de que, perante o nosso direito, o dano moral poderia ser reparado (CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 39-40). Vale dizer, o cenário protetivo da atividade informativa que atualmente é extraído diretamente da Constituição converge para a liberdade de “expressão, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inciso IX), mas também para a inviolabilidade da “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, inciso X). Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea, a meu juízo, com o fato de que, a despeito de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais direitos posteriormente reconhecidos. A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana garante que o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao de todas as coisas criadas por ele próprio, como o mercado, a imprensa e até mesmo o Estado, edificando um núcleo intangível de proteção oponível erga omnes, circunstância que legitima, em uma ponderação de valores constitucionalmente protegidos, sempre em vista os parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade, que algum sacrifício possa ser suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e direitos. RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 461 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Na verdade, essa ideia de que o ser humano tem um valor em si que supera o das “coisas humanas”, além de ser a base da construção da doutrina da dignidade da pessoa humana, é ensinamento que já vai para mais de dois séculos, e pode ser condensado nas seguintes palavras de Kant: Agora eu afirmo: o homem - e, de uma maneira geral, todo o ser racional - existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim. Todos os objetos das inclinações têm um valor apenas condicional, pois se não existissem as inclinações e as necessidades que nelas se fundamentam seria sem valor o seu objeto. As próprias inclinações, porém, como fontes das necessidades, tão longe estão de possuir um valor absoluto que as torne desejáveis em si mesmas que, muito pelo contrário, melhor deve ser o desejo universal de todos os seres racionais em libertar-se totalmente delas. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (e é um objeto de respeito) (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução: Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009, pp. 58-59). Na legislação infraconstitucional, adota-se com suficiente clareza essa pauta, em regra, preferencial pela dignidade da pessoa humana quando em conflito com outros valores, como, por exemplo, os arts. 11, 20 e 21 do Código Civil de 2002: Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. 462 Jurisprudência da QUARTA TURMA Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. No Supremo Tribunal Federal, por ocasião da análise de um conflito entre as normas do Código de Defesa do Consumidor e o Código Brasileiro da Aeronáutica, juntamente com tratados internacionais, prevaleceu o primeiro por razões de natureza constitucional fundadas na proteção da pessoa em detrimento do serviço (RE n. 351.750, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 17.3.2009). Colho do voto do Ministro Cezar Peluso o seguinte trecho: Com efeito, o Código de Defesa do Consumidor tem por escopo, não regrar determinada matéria, mas proteger certa categoria de sujeito, ainda que também protegido por outros regimes jurídicos (art. 7º). Daí seu caráter especialíssimo. Enquanto as normas que compõem o chamado Direito Aeronáutico são especiais por força da modalidade de prestação de serviço, o Código é especial em razão do sujeito tutelado. E, como advém logo do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, há de, em caso de conflito aparente de normas, preponderar o sistema direto protetivo da pessoa em dano do regime jurídico do serviço ou do produto. Resolvendo controvérsia idêntica, na relatoria do REsp n. 1.281.090-SP, Quarta Turma, julgado em 7.2.2012, asseverei, com amparo da doutrina do Ministro Herman Benjamin, que “enquanto o CBA consubstancia-se como disciplina especial em razão da modalidade do serviço prestado, o CDC é norma especial em razão do sujeito tutelado, e, como não poderia deixar de ser, em um modelo constitucional cujo valor orientador é a dignidade da pessoa humana, prevalece o regime protetivo do indivíduo em detrimento do regime protetivo do serviço” (BENJAMIN, Antônio Herman V.. O transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. in. Revista de direito do consumidor, n. 26, abril/julho, 1998, Editora Revista dos Tribunais, p. 41). Com efeito, no conflito entre a liberdade de informação e direitos da personalidade - aos quais subjaz a proteção legal e constitucional da pessoa humana -, eventual prevalência pelos segundos, após realizada a necessária ponderação para o caso concreto, encontra amparo no ordenamento jurídico, não consubstanciando, em si, a apontada censura vedada pela Constituição Federal de 1988. 9. Outro aspecto a ser abordado é o suposto comprometimento da historicidade de um tempo com o acolhimento do direito vindicado no presente RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 463 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA caso - crimes e criminosos que entraram para a história poderiam simplesmente desaparecer -, assim também o conflito entre a tutela ora buscada e o inegável interesse público que há por trás de noticiários criminais. 9.1. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de determinada época. Assim, um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos da história de uma sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por inúmeras razões. É que a notícia de um delito, o registro de um acontecimento político, de costumes sociais ou até mesmo de fatos cotidianos (sobre trages de banho, por exemplo), quando unidos, constituem um recorte, um retrato de determinado momento e revelam as características de um povo na época retratada. Nessa linha de raciocínio, a recordação de crimes passados pode significar uma análise de como a sociedade - e o próprio ser humano - evolui ou regride, especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia. E, de fato, é com uma inegável sensação de progresso ético e moral que as páginas de Cesare Beccaria são lidas atualmente, quando dão notícia de um gênero particular de delito: [...] que cobriu a Europa de sangue humano e levantou funestas fogueiras, onde corpos vivos serviam de pasto às chamas. Era um alegre espetáculo e uma grata harmonia para a cega multidão ouvir os gemidos dos miseráveis, que saíam dos vórtices negros de fumaça, fumaça de membros humanos, entre o ranger dos ossos carbonizados e o frigir das vísceras ainda palpitantes [...] (BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Tradução: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013 (Coleção RT - Textos Fundamentais), p. 132). O que se espera é mesmo que as futuras gerações, por intermédio do registro histórico de crimes presentes e passados, experimentem idêntico sentimento de evolução cultural, quando, na posteridade, se falar em Chacina da Candelária, Chacina do Carandiru, Massacre de Realengo, Doroty Stang, Galdino Jesus dos Santos (Índio Galdino-Pataxó), Chico Mendes, Zuzu Angel, Honestino Guimarães ou Vladimir Herzog. 464 Jurisprudência da QUARTA TURMA E há também quem queira exatamente o caminho inverso ao esquecimento, o de perpetuar no imaginário de todos suas tragédias particulares até como forma de reivindicação por mudanças do sistema criminal, fazendo de suas feridas uma bandeira, como foi o caso da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, importante personagem das reformas legislativas concernentes à punição e prevenção da histórica violência doméstica e familiar contra a mulher, cuja luta contribuiu para a edição da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). A historicidade da notícia jornalística, todavia, em se tratando de jornalismo policial, há de ser vista com cautela por razões bem conhecidas por todos. Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos, mas também há crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos, obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo dos prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal às estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”. No ponto, fazse necessário desmistificar a postura da imprensa no noticiário criminal, a qual - muito embora seja uma instituição depositária de caríssimos valores democráticos - não é movida por um desinteressado compromisso social de combate ao crime. Essa característica da imprensa voltada para o noticiário criminal é muito bem explicitada pela Juíza Federal Simone Schreiber, em tese de doutorado apresentada na UERJ sob a orientação de Luís Roberto Barroso, que traz diversos estudos na área do jornalismo e do processo penal. Como exemplo, a autora citou o trabalho da jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense Sylvia Moretzohn, acerca da lógica que guia a atividade de imprensa, pondo novas luzes na falsa ideia de “mídia cidadã”: A jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense Sylvia Moretzohn, em acurado estudo sobre a lógica empresarial da fabricação de notícia e a construção da verdade jornalística, põe em discussão algumas premissas de matriz iluministas que supostamente norteariam a atuação da mídia e que, na verdade, cumprem a função (mistificadora) de conferir à imprensa um lugar de autoridade, pairando acima das contradições sociais e ao mesmo tempo livre das burocracias e controles que amarram as instituições estatais. Segundo a autora, a ideia de que, no estado democrático, a imprensa cumpre a função social de esclarecer os cidadãos, reportando-lhes a verdade de forma desinteressada e neutra, esconde o fato de que as empresas de comunicação agem, como não poderia deixar de ser, sob uma lógica empresarial; de que as eleições de pauta envolvem decisões políticas (e não técnicas); e de que RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 465 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a “verdade” reportada nada mais é do que uma versão dos fatos ocorridos, intermediada pela linha editorial do veículo e pela subjetividade dos jornalistas que redigem a matéria (SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358). O programa chamado Linha Direta - que guarda alguma semelhança com o seu posterior Linha Direta Justiça -, veiculado pela emissora parte nos presentes autos, também ganhou especial atenção no mencionado trabalho. Segundo Schreiber, o programa valia-se das seguintes técnicas: 1. Em primeiro lugar, pontua flashes das cenas violentas protagonizadas por atores (apenas flashes da reconstituição dramatizada dos fatos, retratando o momento exato do cometimento do crime, pois a reconstituição integral será apresentada ao longo do programa) e a apresentação da vítima, sua biografia, geralmente através de depoimentos de seus parentes e amigos, e naturalmente ressaltando suas qualidades e seus sonhos, dramaticamente interrompidos pela tragédia ocorrida. 2. A estória começa a ser contada através de dramatização, conjugada com depoimentos das testemunhas (estas reais). Aquele que é apontado como autor do fato criminoso raramente é ouvido e quando o é, sua versão dos fatos é imediatamente colocada em dúvida pelos esquetes de dramatização. O ator que desempenha o papel de criminoso, além de guardar sempre traços físicos parecidos com os do próprio, semelhança que é acentuada pela constante transposição entre os arquivos jornalísticos e a dramatização, geralmente é apresentado como uma pessoa cruel, fria, qualidades destacadas pelo sorriso irônico, pelo olhar, pela fala, e ainda pelos recursos sonoros utilizados. 3. A principal técnica utilizada pelo Linha Direta é a conjugação de jornalismo e dramatização. A transposição de imagens e dados jornalísticos (fotos dos suspeitos, depoimentos dos familiares da vítima e de testemunhas, depoimentos de policiais e promotores responsáveis pelo caso) para o ambiente de dramatização se faz muitas vezes de maneira bastante sutil, de modo a criar no telespectador a certeza de que os fatos se passaram exatamente da maneira como estão sendo mostrados pelos esquetes de simulação. Ao final do programa, o telespectador estará convencido da versão apresentada, não restando qualquer dúvida de que os fatos se passaram daquela forma. A culpa do criminoso está definitivamente comprovada. Saltam aos olhos, entretanto, os riscos que podem advir de tal certeza. Não é difícil verificar em alguns casos a fragilidade da versão dos fatos apresentados na televisão (SCHREIBER, Simone. Op. cit., p. 362-363). Ainda conforme noticiado por Schreiber, o programa foi inclusive objeto de aprofundada pesquisa pela cadeira “Laboratório de Direitos Humanos”, 466 Jurisprudência da QUARTA TURMA oferecida pelo Programa de Pós-Graduação da UERJ, tendo sido constatados episódios em que “determinados fatos apresentados na reconstituição não pod[iam] ser confirmados por ninguém, a não ser pelos próprios criminosos, que, até então, estavam foragidos e portanto não foram ouvidos pela polícia ou pela Justiça”, assim também “algumas cenas de simulação inspiradas em suposições, pois a verdade dos fatos apontados é simplesmente impossível de ser confirmada” (MENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência. Um estudo do linha direta. Rio de Janeiro: Editora Quartet, 2002). Outra perniciosa disfunção da exploração midiática do crime é a potencial influência direta no resultado do julgamento de delitos submetidos ao Júri, e, mais grave, mediante a veiculação de provas inadmissíveis em juízo. Não é novidade o uso, pelo jornalismo investigativo, de microcâmeras, de interceptação de som ambiente ou de depoimento de “testemunhas” não identificadas, espécies de prova cuja utilização em processo criminal é unanimemente rechaçada pela jurisprudência e doutrina. Porém, em um crime de repercussão nacional, a notícia jornalística frequentemente está apoiada nessas provas colhidas informalmente, às quais o popular - que posteriormente comporá o Conselho de Sentença - terá prévio acesso direto de forma massificada, insistente e cansativa. Em crimes dolosos contra a vida de grande repercussão, a exploração midiática exacerbada faz com que o Conselho de Sentença tenha contato com a “verdade jornalística” em tempo imensamente superior à “verdade dos autos”, extraída da prova legitimamente produzida no processo e submetida ao contraditório, circunstância que influencia - quando não efetivamente compromete - o julgamento justo, do ponto de vista do devido processo legal substantivo, a que todo acusado tem direito. Pelo menos em meia dúzia de crimes noticiados nacionalmente na última década, não se pode negar, os acusados já iniciaram o julgamento condenados, e com essa condenação popular prévia e sumária, certamente, contribuiu a natural permeabilidade dos jurados ao hiperinformacionismo a que tiveram amplo contato anteriormente. Com efeito, a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada à custa das mencionadas vicissitudes, e, por isso, penso que a historicidade do crime não deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 467 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado. Por isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode significar um corretivo – tardio, mas possível – das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia. Portanto, a questão da historicidade do crime, embora relevante para o desate de controvérsias como a dos autos, pode ser ponderada caso a caso, devendo ser aferida também a possível artificiosidade da história criada na época. 9.2. Quanto ao interesse público subjacente ao delito, assim também na cobertura do processo criminal, cumpre ressaltar que, pelo menos nos crimes de ação penal pública, esse interesse sempre existirá, caso contrário nem seria crime, e eventuais violações de direito resolver-se-iam nos domínios da responsabilidade civil. Nesses casos, além de violação a direitos individuais, o crime eleito pela lei como de ação penal pública constitui lesão a interesses da própria sociedade – ou no mínimo uma ameaça. Assim, há legítimo interesse público em que seja dada publicidade da resposta estatal ao fenômeno criminal, na esteira do alerta de Martin Luther King, para quem “a injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos. A injustiça que se comete em um lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares”. Não obstante, é imperioso também ressaltar que o interesse público – além de ser conceito de significação fluida – não coincide com o interesse do público, que é guiado, no mais das vezes, por sentimento de execração pública, praceamento da pessoa humana, condenação sumária e vingança continuada. Essa é a doutrina constitucionalista sobre o tema: Decerto que interesse público não é conceito coincidente com o de interesse do público. O conceito de notícias de relevância pública enfeixa as notícias relevantes para decisões importantes do indivíduo na sociedade. Em princípio, notícias necessárias para proteger a saúde ou a segurança pública, ou para prevenir que o público seja iludido por mensagens ou ações de indivíduos que postulam a confiança da sociedade têm, prima facie, peso apto para superar 468 Jurisprudência da QUARTA TURMA a garantia da privacidade (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 373). Por outro lado, dizer que sempre e sempre o interesse público na divulgação de casos judiciais deve prevalecer sobre a privacidade ou intimidade dos envolvidos pode confrontar a própria letra da Constituição, que prevê solução exatamente contrária, ou seja, de sacrifício da publicidade (art. 5º, inciso LX): A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. A solução que harmoniza esses dois interesses em conflito é a preservação da pessoa, com a restrição à publicidade do processo, tornando pública apenas a resposta estatal aos conflitos a ele submetidos, dando-se publicidade da sentença ou do julgamento, nos termos do art. 155 do Código de Processo Civil e art. 93, inciso IX, da Constituição Federal. 10. Cabe agora enfrentar a tese de aplicação do direito ao esquecimento no direito brasileiro. No ponto, ressalto que é pelo Direito que o homem, cravado no tempo presente, adquire a capacidade de retomada reflexiva do passado – estabilizando-o – e antecipação programada do futuro – ordenando-o e conferindo-lhe previsibilidade. Tempo e Direito, portanto, são fenômenos que guardam relação intrínseca, de modo que tanto o Direito confere significação à passagem do tempo, quanto este interfere na manifestação do Direito. Caso contrário, o tempo, para o ser humano, seria mero “tempo cronológico, uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida” (FERRAZ JUNIOR, Tércio. Segurança jurídica, coisa julgada e justiça. In. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol. 1, n. 3. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2005, p. 265). Sobre o tema, François Ost, filósofo do direito e professor na Faculdade Saint Louis, Bruxelas, assevera que a “justa medida temporal” à que o Direito visa: [...] permite entrever, na verdade, o duplo temor suscitado pela ação coletiva: de uma parte, do lado do passado, o perigo de permanecer fechado na irreversibilidade do já advindo, um destino de carência ou de infelicidade, por exemplo, condenada a perpetuar-se eternamente; de outra parte, do lado do futuro, o pavor inverso que suscita um futuro indeterminado, cuja radical imprevisibilidade RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 469 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA priva de qualquer referência. Nenhuma sociedade se acomoda com seus temores; tanto que todas elas elaboram mecanismos destinados, pelo menos parcialmente, a desligar o passado e ligar o futuro (OST, François. O Tempo do direito. Tradução Élcio Fernandes. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 38). Em termos de instrumental jurídico, o Direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos: prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Em alguns desses casos, a justiça material, por vezes fetichista, sede vez à segurança jurídica que deve existir nas relações sociais. Especificamente quanto à prescrição, afirma Ost ser ela o “direito a um esquecimento programado”, ressaltando também a especial aplicação do direito ao esquecimento no direito ao respeito à vida privada: Em outras hipóteses, ainda, o direito ao esquecimento, consagrado pela jurisprudência, surge mais claramente como uma das múltiplas facetas do direito a respeito da vida privada. Uma vez que, personagem pública ou não, fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade – muitas vezes, é preciso dizer, uma atualidade penal –, temos o direito, depois de determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído. Em uma decisão de 20 de abril de 1983, Mme. Filipachi Cogedipresse, o Tribunal de última instância de Paris consagrou este direito em termos muito claros: “[...] qualquer pessoa que se tenha envolvido em acontecimentos públicos pode, com o passar do tempo, reivindicar o direito ao esquecimento; a lembrança destes acontecimentos e do papel que ela possa ter desempenhado é ilegítima se não for fundada nas necessidades da história ou se for de natureza a ferir sua sensibilidade; visto que o direito ao esquecimento, que se impõe a todos, inclusive aos jornalistas, deve igualmente beneficiar a todos, inclusive aos condenados que pagaram sua dívida para com a sociedade e tentam reinserir-se nela (OST, François. Op. cit. p. 160-161). 10.1. Sobre o caso Marlene Dietrich – julgado no Tribunal de Paris -, René Ariel Dotti afirma ter sido uma pedra fundamental na construção do direito ao esquecimento, tendo a Corte parisiense reconhecido expressamente que “as recordações da vida privada de cada indivíduo pertencem ao seu patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem intenção malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a vida”. O direito ao esquecimento, como uma das importantes manifestações da vida privada, estava então consagrado definitivamente pela jurisprudência, após 470 Jurisprudência da QUARTA TURMA um lenta evolução que teve, por marco inicial, a frase lapidar pronunciada pelo advogado Pinard em 1858: “O homem célebre, senhores, tem o direito a morrer em paz”! (DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92). Na jurisprudência de direito comparado, além do que já foi acima citado, colacionam-se outros julgamentos que reconheceram explicitamente o direito ao esquecimento como uma decorrência imediata do direito à privacidade, notadamente no caso “Melvin vs. Reid” – ocorrido em 1931, no Tribunal de Apelação da Califórnia – e o caso “Lebach” – República Federal da Alemanha. Em “Melvin vs. Reid”, figurava no litígio Gabrielle Darley, que havia se prostituído e acusada de homicídio no ano de 1918, posteriormente tendo sido inocentada. Gabrielle abandonara a vida licenciosa e constituiu família com Bernard Melvin, readquirindo novamente o prestígio social. Ocorre que, muitos anos depois, Doroty Davenport Reid produziu o filme chamado Red Kimono, no qual retratava com precisão a vida pregressa de Gabrielle. O marido Melvin, então, buscou a reparação pela violação à vida privada da esposa e da família, tendo a Corte californiana reconhecido a procedência do pedido, entendendo que uma pessoa que vive um vida correta tem o direito à felicidade, no qual se inclui estar livre de desnecessários ataques a seu caráter, posição social ou reputação (DOTTI, René Ariel. Op. cit. p. 90-91). Em Lebach, 1969, um lugarejo situado na República Federal da Alemanha, ocorrera uma chacina de quatro soldados que guardavam um depósito de armas e munições, tendo sido condenados à prisão perpétua dois acusados, e um terceiro partícipe a 6 anos de reclusão. Uma TV alemã produziu, então, documentário que retrataria o crime mediante dramatização por atores contratados, em cuja veiculação, todavia, seriam apresentadas fotografias reais e os nomes de todos os condenados, inclusive as possíveis ligações homossexuais que existiam entre eles. O documentário seria apresentado em uma noite de sexta-feira, dias antes de o terceiro condenado deixar a prisão após o cumprimento da pena. Este pleiteou uma tutela liminar para que o programa não fosse exibido, arguindo a proteção de seu direito ao desenvolvimento, previsto na Constituição alemã. Ascendendo o caso até o Tribunal Constitucional alemão, a Corte decidiu que a rede de televisão não poderia transmitir o documentário caso a fotografia ou o nome do reclamante fossem expostos. O acórdão recebeu a seguinte ementa: 1. Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face de cada programa, primeiramente da proteção do Art. 5 I 2 GG. A liberdade de RSTJ, a. 25, (232): 275-518, outubro/dezembro 2013 471 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto. 2. As normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual-Artística (Kunsturhebergesetz) oferecem espaço suficiente para uma ponderação de interesses que leve em consideração a eficácia horizontal (Ausstrahlungswirkung) da liberdade de radiodifusão segundo o Art. 5 I 2 GG, de um lado, e a proteção à personalidade segundo o Art. 2 I c. c. Art. 5 I 2 GG, do outro. Aqui não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência [absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da população. 3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização). 10.2. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, não tenho dúvida da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos centrados não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente no direito positivo infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito à passagem do tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. No âmbito civil, por exemplo, a prescrição é um grande sinalizador da vocação do sistema à estabilização das relações jurídicas. Também no direito do consumidor, o prazo máximo de cinco anos para que constem em bancos de dados informações negativas acerca de inadimplência 472 Jurisprudência da QUARTA TURMA (art. 43, § 1º) revela nítida acolhida à tese do esquecimento, porquanto, paga ou não a dívida que ensejou a negativação, escoado esse prazo, a opção legislativa pendeu para a proteção da pessoa do