1. Os surdos, a música e a educação.

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1. Os surdos, a música e a educação.
OS SURDOS, A MÚSICA E A EDUCAÇÃO
Profª Dra. Nídia Regina Limeira de Sá 1
RESUMO
Este texto procura mostrar a importância de se considerar o olhar do
próprio surdo no ensino de música para surdos. Alerta a que muitas abordagens na
Educação Musical desconsideram as marcas culturais surdas, dão a impressão de
que se está forçando o surdo a participar de algo que não leva em conta suas
características biológicas, que atenta contra sua identidade, que não considera a
cultura surda. Defende que o objetivo de ajudar o surdo a conhecer a importância da
música há que demandar um trabalho diferente daquele que se realiza com os
ouvintes. Defende ainda que os surdos têm o direito de passar por experiências
educacionais em grupos de surdos, constituindo estratégias de identificação num
processo sócio-histórico autêntico, não comandado. Conclui que “conhecer música”
é um direito que os surdos têm, mas que compete aos profissionais da área
convencê-los, encantá-los, atraí-los para a importância deste artefato cultural das
comunidades ouvintes.
Palavras-Chave: educação musical, música, surdos.
OS SURDOS, A MÚSICA E A EDUCAÇÃO
BA-BOO-MA-RANG-RANG-RANG. BA-BOO-MA-RANG-RANG-RANG. É
com uma tabuleta com estes dizeres que o professor John Leeds (William Hurt)
começa a tentar ensinar música para sua aluna surda no filme Filhos do Silêncio,
baseado na peça de Mark Medoff, que conta a história de amor de Leeds, um
professor de surdos, e a surda Sarah (Marlee Maltin, que, por sinal, ganhou o Oscar
de Melhor Atriz por este trabalho). Leeds consegue um bom resultado, porque sai do
mero “ensino de música” e mistura música com dança e com percepção das
vibrações. É emocionante a tentativa que ele faz ao tentar explicar, por gestos, o
que é a música, para sua amada, que nunca ouviu.
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Professora da Universidade Federal do Amazonas – Faculdade de Educação – Departamento de Teoria e
Fundamentos. E-mail para contato: [email protected]
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Outros tipos de vivências com música para surdos são apresentados no
filme “Adorável Professor” (Mr. Hollan´s Opus - 1995), quando, o professor Glen
Holland (Richard Deyfruss – também indicado para o Oscar de Melhor Ator neste
trabalho) tenta fazer o seu filho surdo vivenciar a música sentando em cima de uma
caixa de som ou quando ele tenta cantar a música "Beautiful Boy", de John Lennon,
na formatura de seu filho, numa escola de surdos, colocando recursos tecnológicos
de jogos de luzes para acompanhar a orquestra. Esta música escolhida, quando diz
"life is what happens while you’re busy making other plans", ou seja, “a vida é o que
acontece quando você está ocupado fazendo outros planos”, serve para ilustrar a
disparidade de sentimentos envolvidos entre o sonho de ser um famoso músico e a
realidade de haver sido um “simples” professor de música e pai de um filho surdo.
Tenho assistido muitas manifestações de insatisfação por parte de surdos
adultos que, ao analisarem a maneira como a inclusão da música é feita na
Educação de Surdos, sentem-se agredidos pelo fato de que muitas abordagens dão
a impressão de que se está forçando o surdo a participar de algo que
desconsideram as marcas culturais surdas, dão a impressão de que se está
forçando o surdo a participar de algo que não leva em conta suas características
biológicas, que atenta contra sua identidade, que não considera a cultura surda e
que é uma imposição dos ouvintes. Estamos tratando de um território contestado,
logo, é necessário que alguns pressupostos sejam definidos, para que se possa
pensar em conseguir sucesso na relação do surdo com a música, ou no objetivo
pedagógico de utilizar a Educação Musical para auxiliar o surdo a desenvolver-se
como pessoa que reflete sobre todo o seu contexto social.
É muito importante que sejam questionados os objetivos pedagógicos a
serem perseguidos com as atividades musicais para surdos: o que se pretende é
oferecer aos surdos o direito de conhecer este elemento cultural humano tão
importante, ou, o que se pretende é obrigar os surdos a participarem de algo que
não faz sentido para eles? Estamos tratando de uma oferta ou de uma
obrigatoriedade? De uma troca ou de um pacote depositado?
Entendo que os surdos podem ter acesso à música: de sua forma, de seu
jeito próprio. Segundo Helena Coelho,
o canto é uma forma de comunicação pelo toque. A energia enviada pelo
cantor por intermédio das vibrações sonoras de sua voz “toca” de forma
fisicamente mecânica o tímpano do ouvinte. Mas não só o tímpano. Todo o
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corpo do cantor é uma fonte sonora esférica e todo o corpo do ouvinte é um
receptor sonoro imerso no campo dessas vibrações. Assim sendo,
falar/cantar e escutar é uma espécie de “toque absoluto” (Coelho, 1991).
Olhando por este ângulo, é possível dizer que os surdos podem curtir este
“toque” proporcionado pela música. A experiência da surdez potencializa não
apenas a visão, mas todo o corpo do surdo, levando-o a experimentar as vibrações
de forma até mais intensa que os ouvintes.
Os surdos têm opiniões sobre a música e suas expressões. Noutro
trabalho, entrevistei um surdo que disse:
Surdo nenhum ouve música ou gosta de corais... No coral de surdos tem
que prevalecer a expressividade do surdo na arte, não se trata de
acompanhar o som. Toda a cadência, toda a sequência não tem que ser
conforme o som (Sá, 2002, p. 169).
Ora, os surdos não estão alheios às expressões culturais características
dos ouvintes: sabem que elas existem e emitem opiniões sobre as mesmas. As
dissonâncias que surgem quando comunidades ouvintes e surdas se encontram é
que, muitas vezes, os ouvintes pensam que os surdos “devem” apreciar a música
como eles apreciam e os surdos pensam que os ouvintes estão encontrando mais
uma forma de ressaltar sua “falta” ou de fazer com que os surdos sejam como eles
(como se os ouvintes fossem o padrão).
É necessário, então, entender que ser surdo é muito mais que não ouvir,
que não falar, que não cantar, que não tocar instrumento: esta perspectiva da
“negatividade” embaça a perspectiva da potencialidade. Ser surdo é experimentar
uma forma diferenciada de ser, a qual se baseia primordialmente nas experiências
visuais para a leitura do mundo. Em verdade, surdez é muito mais que privação
sensorial, muito mais que a experiência de uma falta.
Os surdos não têm como única característica a surdez, por isto não
podemos falar dos surdos como uma totalidade, entretanto, podemos falar deles
como um grupo sócio-cultural, comunitário e plural. Logo, não podemos falar em
Educação Musical para surdos pensando num surdo idealizado, pois os surdos
diferem muito entre si e os diferentes graus de surdez, aliados às diferentes
experiências familiares, sociais e culturais, certamente diferenciarão os graus
de interesse pela música, ou pela Educação Musical, ou pelos instrumentos
musicais.
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Há surdos que odeiam música, mas há surdos que amam a música. Há
surdos que entendem a música, há surdos que nem querem entender a música. Há
surdos que se emocionam com a música, há surdos que se sentem indiferentes com
a música. Há surdos que têm maiores condições de deliciar-se com a música. Há
surdos que jamais passarão por uma experiência de sentir prazer na presença de
alguma peça musical. Tudo isto porque existem diferentes graus de surdez e
diferentes experiências sociais com a música: isto faz uma enorme diferença quanto
aos objetivos educacionais.
No entanto, independentemente das diferenças que existem entre os
surdos,
a
surdez
impõe-se
como
uma
característica
que
ultrapassa
as
determinações de classe, de gênero, de raça, fazendo com que se possa falar dos
surdos como um grupo que compartilha modos de existir e que, por causa desta
característica ressaltante, tendem a formar comunidades que compartilham
experiências, interpretações, significados e representações. Isto faz com que seja
possível dizer que os surdos, de modo geral, não têm muito interesse pela
música, sabendo-se que esta afirmação não envolve todos os surdos. Da mesma
forma, se pode afirmar que os surdos, de modo geral, têm muito interesse pela
dança, sabendo-se, também, que esta afirmação não envolve todos os surdos.
A possibilidade de se pensar no “grupo dos surdos” leva-nos a verificar
que “os surdos” têm que ser chamados a opinarem sobre o tema, pois, muita
contribuição se pode extrair das visões deles próprios sobre a Educação Musical.
Deve-se, por exemplo, perguntar: qual a visão dos surdos em geral, sobre a
obediência aos comandos dos ouvintes nas apresentações musicais de grupos de
surdos que meramente copiam o ouvinte-modelo que se põe a fazer sinais,
acompanhando a música que os ouvintes estão apreciando, e, muitas vezes, tendo
que repetir refrões diversas vezes? Quem são os surdos que se propõem a seguir
estas sugestões dos ouvintes? Ora, as imposições educacionais, políticas e clínicopatológicas sobre os surdos os fazem distanciar-se daquilo que caracteriza as
comunidades surdas politicamente organizadas (em verdade, poucos sabem o que
caracteriza as marcas culturais surdas de existir e de conviver).
Questionando as estratégias
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Existem surdos e surdos, mas, algumas características são comuns à
maioria dos surdos: utilizam prioritariamente a visão para captar as informações do
meio; têm a potencialidade natural para usar uma língua gesto-visual; estão
constituindo sua história na luta contra a opressão e a discriminação, dentre outras
características.
Estas
características
reafirmam
a
necessidade
de
estratégias
educacionais completamente diferentes das que são utilizadas para os
ouvintes, não só na Educação Musical, mas em todas as propostas educacionais.
Ajudar o surdo a apreciar a música e a conhecer a importância da música nas
sociedades humanas há que demandar um trabalho completamente diferente
daquele que se realiza com os ouvintes. Os objetivos e as estratégias
pedagógicas serão outros, pois o público é diferenciado.
Geralmente o corriqueiro é se ver surdos incluídos em classes regulares,
sendo convidados a participar de aulas/atividades musicais junto aos demais alunos
ouvintes, conduzidos por professores ouvintes. Nestas atividades se trabalha o
ritmo, mas também a melodia, o timbre, a harmonia, é claro. Ora, o surdo não tem
acesso natural a estas dimensões da música, então, as estratégias para que eles
venham a entender a música devem ser muito bem planejadas.
Uma questão importante é: acaso se pode resolver as questões que
envolvem uma aula de Educação Musical para surdos apenas com a presença de
intérpretes de Língua de Sinais (LIBRAS) nas salas de aula? Certamente que não.
O uso da Língua de Sinais em sala de aula é algo conquistado
recentemente no Brasil. A despeito da luta pelo direito de ter um intérprete em sala
de aula, deve-se saber que a presença de um intérprete de LIBRAS não resolve
todas as questões que envolvem a educação deste grupo diferenciado cultural e
lingüisticamente. As atividades de Educação Musical são um exemplo de que a
presença de intérprete não é a única providência a ser tomada para que se
alcance o êxito escolar e o desenvolvimento de todas as potencialidades do
aluno surdo.
Em verdade, infelizmente, há ainda uma grande resistência em se usar
educacionalmente a língua natural dos surdos. Assim, é imprescindível que
inicialmente se questione se as propostas de Educação Musical para os surdos têm
garantida a presença da Língua de Sinais Brasileira ou se, além da dificuldade de
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acessar os conhecimentos musicais o surdo ainda tem que vencer a dificuldade de
acesso à língua do professor ouvinte. A discussão passa pelo questionamento do
uso de uma língua anti-natural quando há uma língua natural disponível.
No entanto, é necessário ampliar a discussão lingüística, pois ela sozinha
não dá conta da complexidade da questão. Outras questões surgem: com tais
atividades se está pretendo oferecer aos surdos um conhecimento a mais ou se está
impondo modelos ouvintes? O surdo “normalizado” é o surdo que canta, é o
surdo que toca, é o surdo que fala? As propostas de Educação Musical acaso
estão baseadas numa visão quase que “terapêutica”, segundo a qual a música
poderia funcionar como uma terapia para pessoas deficientes, patológicas?
Quem é o professor de Educação Musical para surdos? É o professor
ouvinte monolíngüe que tem como objetivo transformar o surdo em um “ouvinte de
segunda categoria”? Ou é um professor que está prevenido contra a supremacia da
língua oficial na escola, que conhece adequadas estratégias de ensinoaprendizagem, que enfatiza as potencialidades dos surdos, que tem qualificação
técnica para este trabalho específico? A área da Educação Musical é pontual para
se discutir estas questões.
Por que querem que o surdo aprenda música? Por que a Educação
Musical faz parte de um currículo para surdos?
Se as razões para este aprendizado não ficarem muito claras para os
professores, para os pais, e, principalmente, para os surdos, continuaremos
assistindo a uma resistência dos surdos para com tudo o que diz respeito à
música, o que poderá ser uma pena, pois o conhecimento musical pode ser
utilizado em prol do desenvolvimento dos surdos em inúmeras áreas.
Apontando a necessidade de mudanças
O que se tem a fazer é discutir as assimetrias de poderes e saberes
(entre surdos e ouvintes, entre surdos e surdos, entre ouvintes e ouvintes, entre
grupos e grupos, entre grupos e indivíduos) e discutir os efeitos sociais das
representações, imposições e expectativas que os professores, os pais e a
sociedade têm sobre os surdos e os efeitos individuais das imposições que lhes
fazem. Estamos falando de surdos aceitáveis para a sociedade dos que ouvem?
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Estamos vivendo um tempo em que, infelizmente, é quase um paradigma
a idéia de que os surdos têm que ser incluídos em escolas regulares (a despeito da
resistência que esta idéia traz em alguns fóruns de discussão acadêmica e política).
Ora, por que não podemos pensar numa proposta para a Educação Musical de
surdos feita em espaços exclusivos, ou seja, tendo como alvo apenas os
surdos – seja na escola, seja na associação, seja em cursos, seja em oficinas?
O que nos impede de pensar em estratégias exclusivas para eles, estratégias
que atendam às suas necessidades de um trabalho eminentemente visual?
Na minha opinião, o tema da inclusão escolar deve continuar debaixo de
suspeitas, à luz dos recursos lingüísticos, cognitivos, e sócio-culturais de que o
surdo necessita em seu período de escolarização. Penso que questionar a inclusão
nas aulas de Educação Musical é necessário, para que seja pensada e viabilizada
uma proposta de Educação Musical pautada em processos de aprendizagem
significativos, prazerosos e eficazes para este grupo específico, e não para que
consiga performances de canto ou de execução de instrumentos musicais, como que
para atestar o “heroísmo” de quem “venceu a deficiência” após um treinamento
exaustivo.
No meu entender, as propostas de trabalho educacional específico para
surdos facilitam a formação da identidade surda e o aprimoramento cognitivo. Todo
espaço onde suas características distintas possam ser consideradas são espaços de
vida cultural. Ora, os surdos têm o direito de passar por experiências
educacionais em grupos de surdos, caso assim o desejem, constituindo
estratégias de identificação num processo sócio-histórico autêntico, livre,
particular, não comandado; isto é plenamente possível (talvez não unicamente,
mas primordialmente) em espaços que respeitem sua condição sócio-lingüística e
cultural.
Na realidade, a questão central não é “em que espaço os surdos estão
sendo educados”, mas, quais são as reais oportunidades de aprendizado e quais as
políticas de significação e as oportunidades de participação que lhes estão
disponíveis.
Defendo espaços privilegiados pelo uso prioritário da Língua de Sinais na
educação de surdos, sim, mas não nego que, se a discussão se detiver apenas na
luta pelo uso da Língua de Sinais, outros determinantes fundamentais serão
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apagados. Certamente o uso da Língua de Sinais é um determinante fundamental,
mas não é o único. O que proponho não diz respeito a um enfrentamento entre
“língua oral X língua de sinais”, ou a uma polarização “cultura ouvinte X cultura
surda”, o que busco diz respeito à discussão sobre as assimetrias do poder e do
saber entre surdos e ouvintes (SÁ, 2002).
O cuidado que se tem que tomar é que facilmente o ensino da
música pode se tornar uma marca do ouvintismo – imposições colonialistas dos
ouvintes sobre os surdos.
O texto de Sérgio Lulkin retrata e comenta a “expressão cultural
amordaçada” no caso dos surdos:
O coral com surdos faz uma ponte entre a produção sonora – o canto, a
música, o som – e uma produção visual. A música e a letra passam pela
apreciação e seleção de um professor ouvinte que faz uma tradução para a
língua de sinais. (...). Os sinais são conduzidos por um maestro que ouve a
canção, assim como o público ouvinte, e vai regendo de acordo com a fonte
sonora. (...) Invariavelmente temos um professor (maestro) de costas para o
público, sinalizando para os alunos que seguem, automaticamente, seus
movimentos. O maestro sinaliza canções que jamais fazem parte do
repertório lingüístico dos “cantores”. Nem mesmo são memorizadas. (...) Se
considerarmos as propostas pedagógicas contemporâneas que defendem
uma educação direcionada para a autonomia do sujeito, para o uso da
língua como construtora de um locus cultural, então os procedimentos
apresentados costumeiramente nas performances artísticas negam, com
evidência, os princípios que norteiam estas propostas.
Existem apresentações de corais (de pessoas surdas) que incorporam
aspectos do som como a pulsação, o ritmo, o movimento, a harmonia, e
transformam o sinal lingüístico, encontrando neles a metáfora, guardando
parte do sentido original e criando novos sentidos através dos códigos que
se estabelecem nos espetáculos. E passam a ser de uma percepção
pública, compartilhada; passam a constituir uma memória cultural.
Logo, poderíamos advogar pelo sentido cultural da escuta onde há o
aprendizado da língua de sinais e a disposição para leitura e produção das
linguagens do corpo (...) para o conhecimento que possa ser produzido
centralmente pelo paradigma da visão e a sua relação com uma observação
crítica permanente, chegando a uma denúncia da violência implícita dos
processos educativos para pessoas surdas, centrados no domínio da fala e
da audição (Lulkin, 1998, p. 48).
Daí se depreende a facilidade com que as marcas culturais da surdez são
mais facilmente negadas que possibilitadas.
Não é demais ressaltar o óbvio: os surdos não ouvem, logo, não
experimentam a música da mesma maneira que os ouvintes, tal como os ouvintes
não têm uma percepção visual como a têm os surdos. Sendo isto uma realidade, há
que se pensar: que especificidades deveriam ser respeitadas nas atividades de
ensino da cultura musical para surdos? Que argumentos justificariam fazer um
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trabalho de Educação Musical tendo, juntos, surdos e ouvintes? Que cuidados
deveriam ser tomados?
Por exemplo: quando os surdos estão juntos, em eventos da comunidade
surda, a maioria deles não valoriza as apresentações de surdos que tocam
instrumentos (alguns deles até consideram deselegante um surdo querer se
apresentar tocando instrumento quando sabe que a maioria dos surdos não tem
capacidade de apreciar o que está sendo executado). É óbvio que eles mesmos
precisam aprender a respeitar as opções dos surdos que optam por aprender a
tocar, e, eles têm que ter a clareza de que alguns surdos, pelas características de
sua surdez, conseguem apreciar a música mais que outros! Ainda que não se trate
de proibição, o aprendizado de instrumentos não deve ser ressaltado para os
surdos em geral, visto que a ausência do sentido da audição torna esta atividade
mecânica e muitas vezes sem sentido, demandando um extenso treinamento para a
obtenção de resultados ínfimos.
Não estou querendo dizer que para entender a música é necessário ser
ouvinte, e nem que a música é um fenômeno que só pode ser experimentado pela
audição, ou que a música não lhes pertence, ou que não possam tocar instrumentos.
Em verdade, diversos surdos têm manifestações não apenas rítmicas, mas até
melódico-vocais, sim. Há surdos, mesmo com surdez profunda ou severa, que
chegam a “cantar” as músicas das quais decoraram a letra, principalmente quando
estão sozinhos ou quando estão num grupo que está cantando aquela melodia
conhecida. Há surdos que criam frases melódicas e se divertem com isto. Cantar,
tocar, conhecer e entender a música é um direito que os surdos têm, caso
assim o queiram.
A música é uma forma de arte importantíssima dado o que representa
para a história da humanidade. Os surdos precisam compreender que ela sempre
foi, e ainda é, usada nas reuniões sociais, nos esportes, nas guerras, na busca
espiritual, no lazer, na manifestação de sentimentos, enfim, que sempre foi um
poderoso instrumento de comunicação. Se o surdo não receber nenhuma
informação sobre a música, perderá uma gama muito importante de informações
sobre a sociedade, ou seja, deixará de exercer o direito ao saber e perderá uma
valiosa parte da cultura da humanidade, mas, este fato não justifica que os ouvintes
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exerçam poder sobre as suas vontades, constrangendo-os (Haguiara-Cervelline,
2003).
Nem todos os surdos podem usar resíduos auditivos para apreciar a
música, mas todos podem usar sua inteligência para compreender a música.
As pessoas surdas podem perceber o ritmo, a dinâmica da música, o timbre do
cantor, as vibrações, mas tudo isto tem que ser apresentado num contexto
significativo, não num contexto mecânico, dificultoso, obrigatório.
Muito pode ser feito pela junção de música e dança, de música e teatro. A
música pode ser muito útil nas manifestações culturais dos surdos, como o teatro, a
mímica, o humor (a maioria destas manifestações são também pensadas para os
ouvintes apreciarem, o que é natural, visto que vivemos numa sociedade de
diferentes). Os surdos devem entender que a música provoca (mais) emoções nos
ouvintes, e estas emoções podem ser entendidas pelos surdos.
No entanto, se se vai usar a música como apoio para o alcance de outros
objetivos, como a melhora da fala, que isto seja dito ao surdo, para que ele não fique
com a impressão de que “aquilo” é tudo o que ele pode vivenciar sobre música. A
utilização mecânica da música em sessões de “terapias”, as meras apresentações
artísticas com instrumentos, minimizam as possibilidades de desenvolver o interesse
pela música. O princípio subjacente é: conhecer música é um direito que os
surdos têm, mas compete aos profissionais da área atraí-los, convencê-los,
sensibilizá-los, encantá-los. Não se dá assim com toda a Educação?
REFERÊNCIAS
Coelho, Helena de S.N.W.: Técnica Vocal para Coros. São Leopoldo, Sinodal,
1991.
Haguiara-Cervelline, Nadir. A musicalidade do surdo: representação e estigma.
São Paulo: Editora Plexus, 2003.
Lulkin, Sérgio. O discurso moderno na educação dos surdos: práticas de controle
do corpo e a expressão cultural amordaçada. In: SKLIAR, Carlos. A surdez: um olhar
sobre as diferenças. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998.
Sá, Nídia Regina. Cultura, poder e educação de surdos. Manaus: Editora da
Universidade Federal do Amazonas, 2002.
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Sá, Nídia Regina. Cultura, poder e educação de surdos. São Paulo: Edições
Paulinas, 2007.
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