a questão da mestiçagem na poética e na música brasileira
Transcrição
a questão da mestiçagem na poética e na música brasileira
Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 A QUESTÃO DA MESTIÇAGEM NA POÉTICA E NA MÚSICA BRASILEIRA The question of miscegenation in Brazilian music and poetics Selma Sângele Rocha FREITAS1 RESUMO Este trabalho tem por propósito apresentar uma breve abordagem acerca de questões concernentes à cultura, identidade e mestiçagem tomando-se por base o poema Canção do Exílio, de Murilo Mendes. O enfoque prioritário do trabalho reside na análise de diversos elementos de mestiçagem presentes no poema. Ademais, é estabelecida uma relação analógica com a obra de Gonçalves Dias, fonte de inspiração desta entre outras canções do exílio nas quais manteve relações de mestiçagem e, ainda, com a música Pátria Minha de Vinicius de Moraes. Palavras-chave: Cultura; mestiçagem; identidade; cruzamento; tradução. ABSTRACT This paper aims at the present a brief overview on matters pertaining to culture, identity and racial taking based on the poem Song of the Exile, of Murilo Mendes. The priority focus of the work lies in the analysis of various components of mixing present in the poem.Moreover, it established an analogical relation with the work of Gonçalves Dias, a source of inspiration of this and other songs of exile in which he maintained relations of racial and also with the song My Fatherland Vinicius de Moraes. Key words: Culture; miscegenation, identity, intersection; translation. INTRODUÇÃO A modernidade e as várias transformações advindas da era industrial levaram as pessoas a se afastarem de suas tradições, de suas histórias, e de seus sentimentos de pertencimento a uma cultura, a uma comunidade. O homem moderno ou, segundo alguns autores, pós-moderno, despertencido e desraizado é cativo de um modelo fragmentado de percepção e inserção na vida que o coloca em crise com a sua própria identidade. No entanto, é inerente à sua natureza humana ser constituído a partir de diversas raízes, posto o caráter relacional da vida que impõe o estabelecimento constante de vínculos físicos e simbólicos com tudo com o qual se relaciona. O contínuo cruzamento de elementos culturais, históricos, 1 lingüísticos, entre outros que se encontram e se imbricam sem perder a sua integridade, é o que constitui o processo de mestiçagem, tão natural na cultura brasileira. Tal processo é o ponto de partida para este trabalho, que discute questões relativas à cultura, à identidade, e à mestiçagem – cujo conceito é aqui abordado à luz dos postulados de Laplantine e Nouss – tomando-se por base o poema Canção do Exílio, de Murilo Mendes. O enfoque prioritário do artigo reside na análise de diversos componentes de mestiçagem presentes no poema, percebidos sobretudo diante da comparação com a obra de Gonçalves Dias, que notadamente serviu de inspiração a Murilo Mendes e, ainda, com a música Pátria Minha, de Vinícius de Moraes, afinal, a composição musical é a linguagem artística que melhor exemplifica a mestiçagem. Nela, os elementos de mestiçagem são Pós-graduanda do curso de Especialização em Literatura Brasileira: Formação do Cânone e Contrapontos Críticos, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XX - [email protected]. Vivências. Vol.6, N.9: p.50-57, Maio/2010 50 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 evidenciados no uso comum da reescrita sob a forma de transcrição, do empréstimo ou da citação – ou da auto-citação - conforme atestam Laplantine e Nouss (2008, p. 105). 1 CULTURA A noção de cultura vem suscitando intensos e contraditórios estudos nas mais diversas áreas relacionadas às ciências sociais. A contradição reside no fato de que o termo “pode tanto designar um panteão de grandes obras ‘legítimas’ como tomar um sentido mais antropológico, por englobar as maneiras de viver, sentir e pensar, próprias de um grupo social”. (CUCHE, 1996 apud MATTELART e NEVEU, 2006, p. 11). No que diz respeito especificamente à cultura brasileira Vannucchi (2002, p. 13), apoia-se na lição autorizada de Darci Ribeiro, não para defini-la, mas para compreendê-la à luz da configuração social do Brasil: A conjunção dos três elementos – indígena, africano e europeu – possibilitou um novo tecido cultural que foi e vem sendo diferenciado pelas influências do meio, pelas diversas atividades econômicas pela criatividade nativa e pela incorporação de outros contextos culturais estrangeiros. Assim, só se é possível compreender a cultura brasileira como uma entidade complexa, produto da sua formação étnica, social, política e econômica mestiça. Vannucchi (2002) propõe ainda que a cultura só poderá ser conceituada como autorealização da pessoa humana no seu mundo enquanto estabelece entre os dois uma interação dialética e social. Pois a cultura só existe em seres humanos concretos, pertencentes a um povo, a uma classe, estabelecidos em um território, com um determinado regime político, dentro de certa realidade econômica, numa dinâmica de maior ou menor velocidade de mudanças. Afinal, a cultura não se cristaliza apenas no plano do conhecimento teórico, mas também no da sensibilidade, da ação e da comunicação. O conceito de identidade largamente utilizado pelas ciências humanas, sobretudo a partir da década de sessenta, passa a ser utilizado no domínio dos estudos literários a partir do momento em que as literaturas emergentes recusam a classificação de literaturas periféricas e reivindicam um estatuto autônomo no interior do campo instituído, como assevera Bernd (2002). Para essa autora, o conceito de identidade não pode afastar-se do de alteridade: a identidade que nega o outro, permanece no mesmo, e a exclusão do outro leva à visão especular, que é redutora, uma vez que só se é possível conceber o ser dentro das relações que o ligam ao outro. Bernd (2002, p.18) afirma ainda que a busca da identidade possa funcionar de duas diferentes maneiras: a) como sistema de vasos estanques […] que origina cristalizações discursivas que condenam à morte a “literariedade” dos textos, pois a inquietação da linguagem é a própria essência do literário; ou b) como processo [...] em permanente movimento de construção/desconstrução, criando espaços dialógicos e interagindo na trama discursiva sem paralizá-la.Nesta última acepção, concebido como continuidade, como síntese inacabada, o conceito de identidade se sustenta logicamente e se revela extremamente útil para iluminar a leitura de textos que, produzidos em situações de cruzamento e de domínio cultural, procuram reencontrar ou redefinir seu território. A reflexão sobre esses conceitos é fundamental para a compreensão da literatura produzida no bojo das sociedades modernas. Frequentemente definidas como sociedades de mudança constante, rápida e permanente, mas sobretudo, de uma forma altamente reflexiva, essas sociedades são caracterizadas por diferentes divisões sociais que produzem uma variedade de identidades. Segundo Stuart (1999, p. 22), se “tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados.” Em consonância com essa concepção, as identidades estáveis do passado são desarticuladas, todavia, outras articulações são 2 IDENTIDADE Vivências. Vol.6, N.9: p.50-57, Maio/2010 51 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 permitidas como a criação de novas identidades e a produção de novos sujeitos. 3 MESTIÇAGEM O termo mestiçagem tem sido recorrente nos estudos contemporâneos da literatura. É comum constatar em muitas obras literárias o cruzamento - de linguagens, de meios de expressão - que gera novos sentidos nessa confrontação e diálogo e não na fusão. Esse cruzamento, confrontação e diálogo, são apresentados por Laplantine e Nouss (2002) como elementos fundamentais da mestiçagem. Assim, mestiçagem na poesia e na música brasileira são aqueles cruzamentos produtores de sentidos novos que os poetas buscam para suas obras, ainda que partam de uma obra já consagrada, num processo de revisitação ou de paródia, como ocorre nas obras analisadas neste artigo. Esses cruzamentos, conforme postula Cattani (2006), opõe-se aos paradigmas no novo, do original, que marcaram a arte moderna, juntamente com os princípios de pureza e de unidade de cada forma de expressão, uma vez que os poetas vêm cada vez mais assumindo os princípios da “impureza”, da diversidade, da justaposição de opostos dentro de uma mesma obra. No entanto, esses cruzamentos não levam à fusão de opostos, pois a mestiçagem contradiz precisamente essa ocorrência, visto que segundo os seus princípios, os componentes mantêm sua integridade gerando constantemente novos e complexos sentidos. Nesse contexto Laplantine e Nouss (2002, p. 10) asseveram: Mesmo se o sincretismo procede à abolição das diferenças pela associação e enxerto, e não por subtracção e ablação como o purismo, é a mesma violência da redução à unidade que está em curso o mesmo processo de integração num todo homogêneo e indiferenciado. O múltiplo acha-se vencido, pois é absorvido no uno. Diante desse caráter eminentemente diversificado e em constante evolução da mestiçagem, Laplantine e Nouss consideram Freitas, S.S.R. desencorajador o ato de tentar defini-la, posto ser sua única regra a ausência de regras. “Cada mestiçagem é única, particular e traça o seu próprio futuro. O resultado do encontro mantémse desconhecido [...]” (LAPLANTINE & NOUSS, 2002, p. 10). A mestiçagem ocorre tanto nos vários elementos que compõem cada obra quanto nas várias fissuras reais ou imaginárias que permitem a pluralidade de sentidos. Desse modo, as obras assim concebidas interpelam e desafiam o leitor a perceber a coexistência de diferentes elementos lingüísticos e culturais dentro de um único espaço literário de representação, configurando uma sintonia entre o campo literário e as constantes mudanças socioeconômicas e políticas promovidas atualmente pela globalização. No mundo globalizado, a economia passa a abolir simbolicamente as fronteiras entre os territórios gerando novas configurações de centros e de margens. Na esfera literária, isso leva muitos autores a criarem novos mundos a partir de produções já existentes, buscando extrair delas outros significados, determinando o encontro e a troca entre elas, sem que uma se torne a outra, ou que esta seja reabsorvida pela primeira. Afinal, o “pensamento da mestiçagem é um pensamento da mediação e da participação em pelo menos dois universos”, asseguram Laplantine e Nouss (2002, p.80). Outrossim, esses autores configuram o tempo da mestiçagem como tempo presente, porque sendo continuamente renovado acaba por assegurar a permanência das criações e dos encontros. “É também em si mesmo um tempo mestiço visto que comporta a junção do passado e do futuro, tensão em que se constitui.” (Idem, 2002, p. 115). Daí ser possível abranger na análise, a seguir, obras de tempos distintos como o poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, assentada no Romantismo, a obra homônima do poeta modernista Murilo Mendes, e ainda a composição Pátria Minha de Vinícius de Moraes, nas quais cada componente conserva a sua identidade e definição, ao mesmo tempo em que se abre ao outro. 4 ANÁLISE 52 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 Dentre os vários exemplos de mestiçagem na poesia esta análise deter-se-á no poema Canção do Exílio, de Murilo Mendes, no qual o poeta claramente converte a obra homônima, de Gonçalves Dias, em uma paródia, embora o tema do exílio tenha uma conotação diferente por tratar de um exílio em seu próprio país. No que tange à presença da mestiçagem na música ressalta-se aqui a composição Pátria Minha de Vinícius de Moraes, justamente por também dialogar com o poema gonçalvino. 4.1 A Canção do Exílio, de Gonçalves Dias O poema de Gonçalves Dias, composto, em 1843, quando o poeta se encontrava em Coimbra realizando seus estudos universitários, apresenta o nacionalismo e também o sentimento de saudade entre outras características marcantes do Romantismo brasileiro, período literário no qual foi escrito. O nacionalismo impresso na canção, bem ao gosto da sensibilidade brasileira, associado à idealização da natureza e da pátria marca o ápice da proposta romântica de construção de uma identidade nacional. Embora a questão da identidade já fosse recorrente aos artistas do Brasil desde o período colonial, é no romantismo que ela passa a ser amplamente discutida, sendo retomada e aprofundada depois, por ocasião do centenário da Independência, quando um grupo de artistas e intelectuais começa a “engendrar um projeto de Independência Cultural contra o atraso herdado do passado colonial, propondo um redescobrimento do Brasil, agora pelos próprios brasileiros”. (ALVES, 2008, p. 98). O modernismo que se origina desse projeto apresenta um nacionalismo por vezes radical. Por volta dos anos sessenta essa questão da identidade volta a ser discutida pela corrente musical tropicalista e ainda está presente nos dias de hoje. É possível perceber sua manifestação, por exemplo, no fragmento abaixo da canção de Lenine (1999), na qual os diferentes elementos de identidade são conjuntamente Vivências. Vol.6, N.9: p.50-57, Maio/2010 articulados de modo a expressar a mestiçagem, tão imbricada na cultura brasileira: Jack Soul Brasileiro E que o som do pandeiro É certeiro e tem direção Já que subi nesse ringue E o país do swing É o país da contradição Eu canto pro rei da levada Na lei da embolada Na língua da percussão A dança, a muganga, o dengo A ginga do mamulengo É o charme dessa nação A presença de elementos culturais diversos - como o “mamulengo”, espécie de fantoche comum na Grécia Antiga, a “percussão”, instrumento de batuque cuja origem é atribuída aos negros africanos e o pandeiro, instrumento proveniente da Arábia, - segundo a própria letra, constitui o “charme dessa nação”, afinal o eu lírico se define brasileiro e tal fato já justifica que a sua música perpasse com naturalidade por todas as culturas, num exemplo privilegiado de mestiçagem. Quanto ao sentimento de saudade presente tanto na “Canção do Exílio” gonçalvina, quanto na obra de Murilo Mendes, Laplantine e Nouss (2002, p. 108) retratam-no como um “sentimento mestiço que significa sofrer do prazer passado e, ao mesmo tempo, ter prazer no sofrimento de hoje”. A Canção do Exílio, poema romântico amplamente parodiado, sobretudo pelos poetas modernistas, tornou-se uma espécie de símbolo da nacionalidade brasileira. Maior evidência disso é a presença de seus versos citados no Hino Nacional Brasileiro, em mais uma relação de intertextualidade tipicamente mestiça, como podemos verificar nos versos: “Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida em teu seio mais amores”. 4.2 Canção do Exílio, de Murilo Mendes Murilo Mendes foi um dos poetas modernistas que também converteu a Canção do Exílio gonçalvina em uma evidente paródia, 53 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 embora no poema de Murilo a questão do exílio e, por conseguinte, a da saudade sejam observadas sob uma ótica diferente, posto que trate de um exílio em sua própria terra e a saudade refere-se ao sentimento de perda das coisas naturais do Brasil. O poema é uma espécie de protesto contra a colonização cultural do seu país. Assim, elementos de outras culturas se integram para compor uma tradução da sua pátria atual tão diferente da pátria outrora idealizada por Gonçalves Dias. Já nos primeiros versos o poema apresenta as “macieiras da Califórnia / onde cantam os gaturamos de Veneza”, simbolizando a invasão da cultura norteamericana e européia em território brasileiro, quando em vez de sabiás quem canta agora são os pássaros multicoloridos vindos de outro país. Nos versos seguintes, Murilo refere-se, mormente ao poeta Cruz e Souza, filho de escravos negros e também à poesia simbolista aos quais acusa pelo distanciamento que mantinham da realidade brasileira: “os poetas da minha terra / são pretos que vivem em torres de ametista”. Nos versos “os sargentos do exército / são monistas e cubistas” surgem termos referentes à doutrina filosófica apregoada por Haeckel e ao movimento artístico liderado por Picasso, cujos pressupostos bastante distintos, sugerem oposição de ideias. Enquanto o monismo propõe que o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade, quer seja do ponto de vista da substância, quer seja do ponto de vista das leis pelas quais o universo se ordena, o cubismo se realiza na decomposição geométrica das formas naturais, como de se fossem contemplados simultaneamente por todos os ângulos ou, ainda, na colagem dos objetos. A técnica de colagem consiste em construir uma obra a partir de diferentes materiais. Essa técnica é destacada por Laplantine e Nouss como exemplo de mestiçagem formal nas artes modernas. Para eles, a colagem perpetra a mestiçagem na produção da obra e não apenas na reprodução: “A lógica é da iconografia cubista: quebrar as formas e justapor os fragmentos com vista a uma composição nova Freitas, S.S.R. que conserve os traços da fissura.” (LAPLANTINE & NOUSS, 2008, p. 109). O poema segue apresentando situações que levam o eu-lírico a sentir-se exilado dentro do seu próprio país, que se mostra excludente, pois é oneroso para seu povo usufruir das flores “mais bonitas” e das “frutas mais gostosas” porque “custam cem mil-réis a dúzia”. O advento das transformações tecnológicas possibilita que uma réplica da Gioconda italiana, emoldurada em um quadro, testemunhe as desavenças comuns no cotidiano familiar brasileiro, em: “Os sururus em família têm por/ testemunha a Gioconda”. Por fim, os últimos versos evidenciam ainda mais a tradução da ideia de exílio e saudade gonçalvinos, no entanto, a falta que o eu-lírico sente é especialmente de coisas genuinamente brasileiras como a carambola e até o sabiá que também perde a sua identidade nacional. 4.3 A música Pátria Minha, de Vinícius de Moraes Na esfera musical brasileira a mestiçagem pode ser ricamente ilustrada, uma vez que as produções nacionais são marcadas pela mistura de elementos composicionais oriundos dos vários povos que constituem essa nação. Nesse particular, ressalta-se aqui a composição de Vinícius de Moraes, Pátria Minha, cuja própria concepção musical denominada Bossa-Nova reflete amplamente a questão da mestiçagem. Segundo Brito (1960 apud Campos, 2008 p. 22) o movimento bossanovista “procura integrar melodia, harmonia, ritmo, e contraponto na realização da obra, de maneira a não se permitir a prevalência de qualquer deles sobre os demais”. No que concerne aos aspectos relativos à letra, novamente encontramos o tema do exílio e amor à pátria reforçando as questões de identidade nacional já mencionada e ainda de mestiçagem por apresentar um dialogismo intertextual com outros poemas que tratam dessa temática. A mestiçagem é notória já na forma do poema que incorpora elementos do gênero narrativo. Além disso, algumas estrofes são fragmentadas, de modo que aparece a quebra do verso que pode ocasionar a leitores desatentos uma ligeira confusão. Por exemplo, na primeira estrofe o poeta fala sobre a “[...] íntima / Doçura e 54 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 vontade de chorar [...]”, mas coloca a palavra “íntima” no primeiro verso. Vinícius exerceu cargos diplomáticos em Los Angeles, na Califórnia e no Uruguai e enquanto esteve longe do Brasil descreveu na canção “Pátria Minha” a saudade que sentira da sua pátria com a mesma paixão que devotava às mulheres. Aliás, esse é um traço característico em sua obra que aparece várias vezes no poema quando o poeta personifica a terra amada como uma mulher a qual deseja “beijar os olhos”, “miná-la, de passar-lhe as mãos pelos cabelos...”. No entanto, Vinicius, bem como Murilo Mendes também verte um olhar crítico sobre a sua pátria não se limitando a idolatrála cegamente, como o fez Gonçalves Dias, o que é verificável na terceira estrofe: Vontade de mudar as cores do vestido (auriverdes!) tão feias De minha pátria, de minha pátria sem sapatos E sem meias, pátria minha Tão pobrinha! Nesses versos, o poeta aborda uma triste questão da realidade social existente no Brasil, que é o problema da pobreza. Na segunda estrofe Vinícius afirma não saber o que é a sua pátria, fato que pode ser entendido como referência às diversas culturas que a compõe. Todavia, ainda que seja difícil compreendê-la, na distância em que se encontra, só as lágrimas aliviam a amargura dessa incompreensão e da saudade. O poeta rememora, na sexta estrofe, uma de suas estadas na Nova Inglaterra (EUA) quando observava o céu e visualizava duas estrelas que ficam próximas da constelação do Cruzeiro do Sul, esperando ver surgir a imagem da Cruz do Sul que o remeteria à terra amada, porém o dia amanhece logo em seguida. Essa imagem do Cruzeiro do Sul é emblemática no que tange à questão da identidade nacional, visto que ela se encontra na Bandeira brasileira e no escudo do exército nacional. Nota-se que o Hino Nacional Brasileiro também é bastante parodiado ou citado em muitas composições poéticas ou Vivências. Vol.6, N.9: p.50-57, Maio/2010 não, comprovando o que foi dito até sobre a escrita ser mestiça no domínio literário. No poema em estudo, versos do hino apresentam-se ora intentando acentuar um momento saudosista do poeta, como na sétima estrofe, “[...] pátria minha / ‘Amada, idolatrada, salve, salve! ’”; ora visando rechaçar o que canta o próprio hino, nas estrofes nove, dez e doze, como podemos constatar a seguir: Pátria minha...A minha pátria não é florão, nem ostenta Lábaro não; a minha pátria é desolação De caminhos, a minha pátria é terra sedenta E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular Que bebe nuvem, como terra E urina mar. Mais do que a mais garrida a minha pátria tem Uma quentura, um querer bem, um bem Um libertas quae sera tamen Que um dia traduzi num exame escrito: “Liberta que serás também” E repito! [...] Não te direi o nome, pátria minha Teu nome é pátria amada, é patriazinha Não rima com mãe gentil Vives em mim como uma filha, que és Uma ilha de ternura: a ilha Brasil, talvez. Nesses versos, são expressas, ainda, características relativas à aspectos geográficos da sua pátria que possui caminhos desolados e “terra sedenta”, provavelmente numa alusão ao sertão nordestino e a vida castigada do seu povo. Em contapartida, a terra querida tem “uma quentura, um querer bem”, ou seja, uma cordialidade que faz com que seja amada apesar dos seus problemas. Num bom exemplo de mestiçagem lingüística, a frase em latim que marcou o movimento da Inconfidência mineira “Libertas quae sera tamen” aparece numa bem humorada tradução do poeta para “Liberta que serás também” sugerindo que quem liberta recebe a liberdade em troca. Quando na verdade, a tradução correta seria “Liberdade ainda que tardia”, uma vez que o movimento ao qual faz referência visava 55 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 a Independência do Brasil e a criação de um Estado Republicano. Finalmente, a última estrofe apresenta um lugar de cruzamento, para onde convergem elementos culturais completamente díspares formando um texto rico e mestiço. Nos dois primeiros versos da última estrofe do poema Vinícius de Moraes revisita a peça Shakespeare Romeu e Julieta quando, num dado momento, o casal enamorado refere-se aos pássaros cotovia e rouxinol como símbolos do dia e da noite respectivamente. Agora chamarei a amiga cotovia E pedirei que peça ao rouxinol do dia Que peça ao sabiá Para levar-te presto este avigrama: “Pátria minha, saudade de quem te ama... Vinícius de Moraes.” Porém, neste caso, é preciso que seja um rouxinol do dia para que possa pedir ao sabiá - novamente a recorrência ao pássaro gonçalvino que simboliza a terra querida para enviar um “avigrama” à sua pátria falando da sua saudade e do seu amor. A criação da palavra avigrama, um telegrama levado por uma ave, já implica uma mestiçagem do termo ave com telegrama. Por fim, conclui o poema como quem finda uma carta, remetendo suas sudações e assinando, associando mais uma vez outro gênero textual ao gênero poético. CONSIDERAÇÕES FINAIS As várias transformações advindas da era da modernidade desviaram as pessoas de suas tradições e de seus sentimentos de pertencimento a uma cultura. O que fez com que o homem pós-moderno, despertencido e desraizado, cativo de um modelo fragmentado de percepção e inserção na vida, se sentisse em crise com sua própria identidade. Fato que impôs na arte e na literatura o estabelecimento constante de vínculos físicos e simbólicos com tudo com o qual o homem se relacionasse, possibilitando o encontro de elementos culturais, históricos, lingüísticos, Freitas, S.S.R. entre outros, sem que houvesse perdas das suas integridades num processo de mestiçagem. À luz dessas considerações foi apresentada uma breve análise dos poemas Canção do Exílio, de Murilo Mendes, inspirado na obra homônima de Gonçalves Dias e, ainda da composição musical Pátria Minha de Vinicius de Moraes que trazem em seu bojo questões concernentes à cultura, identidade e mestiçagem. Foram constatados também diversos elementos de mestiçagem e pontos de identidade na canção contemporânea de Lenine, Jack Soul Brasileiro. Essas obras operam encontros entre si e conduzem a reflexões sobre identidade, sobre raízes e sobre lugares, sobre cultura, que levam ao assunto principal deste trabalho, que é a questão da mestiçagem. REFERÊNCIAS ALVES, Júlia Falivene. Com que cara chegaremos ao terceiro milênio? In: KUPSTAS, Márcia. Org. Identidade Nacional em Debate. São Paulo: Moderna, 2008. BAUMAN, Zygmuunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecci. Trad.: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. 2. ed. Rio Grande do Sul: UFRRGS, 2003. CATTANI, Icleia Borsa. Cruzamentos e tensões: Mestiçagens na arte contemporânea no Brasil e no Canadá. In: Revista Interfaces Brasil/ Canadá, Rio Grande, Nº 06, 2006. Disponível em: < http://www.revistabecan.com.br/arquivos>. Acesso em: 21, set. 2009. DIAS, Gonçalves. Canção do Exílio. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/tex to/bn000100.pdf> .Acesso em: 20, set. 2009. HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Trad. Tomás Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 3. ed. Rio de Janeiro: DP &A, 1999. LAPLANTINE, François. ;NOUSS, Alexis. A Mestiçagem. Trad. Ana Cristina Leonardo. Lisboa: Piaget, 2002. LARAIA, ROQUE DE Barros. Cultura: Um conceito antropológico. 17. ed. Rio de Janeiro. J. Zahar, 2005. 56 Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI ISSN 1809-1636 LENINE. Jack Soul Brasileiro. In: LENINE. Na pressão. São Paulo:1999. MATTELARD, Armand.; NEVEU, Erik. Introdução aos Estudos Culturais. São Paulo; Parábola, 2004. MENDES, Murilo. Canção do Exílio. Disponível em: <http://www.horizonte.unam.mx/brasil/murilo1.ht ml>. Acesso em: 20, set. 2009. MORAES, Vinícius de. Poesia Completa e Prosa. Ed: Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1998, p. 383. VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira: O que é? Como se faz? 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002. Recebido em abril de 2010 e aprovado em maio de 2010. Vivências. Vol.6, N.9: p.50-57, Maio/2010 57