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Progetto ETTS - DCI-NSAED/2010/234-237 www.etts.eu Os mercados do sexo. Tráfico, turismo sexual e clientes na era da globalização de Emanuela Abbatecola, Sebastiano Benasso e Cristina Pidello Tradução: Sabrina Marques, Valeria Abrocesi A informação contida nesta publicação não reflecte necessariamente a posição ou opinião da Comissão Europeia 1 1. MERCADOS DO SEXO E DO TRAFICO DE PESSOAS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO ............................................... 3 (Emanuela Abbatecola) ....................................................................................................................................................... 3 1.1. Sobre o conceito de trafico de pessoas................................................................................................................... 3 1.2. O delineamento da pesquisa ................................................................................................................................... 7 1.3. A pesquisa na Itália ................................................................................................................................................. 8 1.3.1. As prostitutas estrangeiras são migrantes? ..................................................................................................... 8 1.3.2. Comparação entre o racket nigeriano e o albanês ........................................................................................ 10 1.3.3. Evoluções e mudanças .................................................................................................................................. 17 1.3.4. As famílias: cúmplices ou vitimas? ................................................................................................................ 22 1.3.5. Trabalho e dia a dia ....................................................................................................................................... 23 1.3.6. A saúde na exploração .................................................................................................................................. 27 1.3.7. A prostituição em locais fechados. Apartamentos e bares ............................................................................ 31 1.4. A pesquisa na Romênia ........................................................................................................................................ 33 1.4.1. Mudanças. 2007, o ano da virada.................................................................................................................. 33 1.4.2. Organização das redes e estrategias de aliciamento .................................................................................... 36 1.4.3. As rotas do trafico de pessoas....................................................................................................................... 42 1.4.4 Exploração, violência e estrategias de subjugação ........................................................................................ 42 1.4.5. Condições de vida e trabalho ........................................................................................................................ 46 1.4.6. A fuga, o retorno e a dificuldade de reintegração .......................................................................................... 50 1.4.7. Como as garotas veem os clientes ................................................................................................................ 53 1.5. A pesquisa no Brasil .............................................................................................................................................. 55 1.5.1. A evolução do fenômeno do trafico de pessoas no Brasil ............................................................................. 55 1.5.2. Tipos de trafico e pontos críticos da legislação brasileira .............................................................................. 58 1.5.3. Protagonistas do trafico de pessoas, vulnerabilidade e formas de aliciamento ............................................. 60 1.5.4. Aquele discreto limite entre turismo sexual e trafico de pessoas................................................................... 68 1.5.5. Redes, rotas e exploração no trafico de mulheres – e trans – brasileiras ..................................................... 73 1.5.6. A saúde em condições de exploração ........................................................................................................... 80 1.5.7. Trabalho autônomo, cafetinagem e agencias que exploram o mercado do sexo .......................................... 82 1.5.8. Retornar ......................................................................................................................................................... 83 1.6. A pesquisa na Espanha......................................................................................................................................... 86 1.6.1. Uma visão geral ............................................................................................................................................. 86 1.6.2. Aliciamento, redes e formas comuns de exploração ..................................................................................... 90 1.6.3. Exploração e fatores de riscos à saúde ....................................................................................................... 101 1.6.4. E depois? ..................................................................................................................................................... 102 2. TRAVESTIS E TRANSEXUAIS BRASILEIROS: MIGRANTES OU TRAFICANTES? ................................................ 104 (Cristina Pidello) .............................................................................................................................................................. 104 2.1 Introdução. A migração interna do Brasil.............................................................................................................. 104 2.1.1. Migrar para se prostituir ............................................................................................................................... 106 2.2. Código Penal brasileiro: não se refere somente à mulheres, mas à “pessoas”................................................... 107 2.3. O abandono do próprio contexto social de referência ......................................................................................... 110 2.3.1 A figura e o papel da “Cafetina” .................................................................................................................... 111 2.3.2 A via das dívidas........................................................................................................................................... 114 2.3.3. As bombardeiras: a transformação do corpo por vias informais e ilegais .................................................... 116 2.4. Migrar para fora do país: a Europa vista como o paraíso das travestis ............................................................... 120 2.4.1. Fluxos migratórios fantasmas ...................................................................................................................... 124 2.4.2. Traficantes ou redes sociais? ...................................................................................................................... 125 2.4.3. L’arrivo nel “Bel Paese”: l’Italia .................................................................................................................... 128 2.4.4. As condições de moradia das pessoas TT brasileiras na Itália ................................................................... 133 2.4.5. Ordem de expulsão ..................................................................................................................................... 135 2.4.6. Assistência às trans vitimas do trafico ......................................................................................................... 138 3. MASCULINIDADE EM CENA. CLIENTES E REPRESENTAÇÕES NO MERCADO DO SEXO NA ITÁLIA (Sebastiano Benasso) ......................................................................................................................................................................... 142 3.1. Premissa ............................................................................................................................................................. 142 3.2. Breve nota metodológica. .................................................................................................................................... 143 3.3. O espelho mágico. Reflexões das palavras dos clientes e análises dos seus imaginários ................................. 144 3.4. As primeiras experiências e a caracterização dos “outros” clientes .................................................................... 152 3.5. A remoção do desejo feminino e da "deslegitimação" da masculinidade hegemônica........................................ 160 3.6. As conversas do “Fórum da Gostosona” como palco da masculinidade hegemônica ........................................ 164 3.7. Conclusões .......................................................................................................................................................... 173 Anexação 1 ................................................................................................................................................................ 174 Bibliografia.................................................................................................................................................................. 175 2 1. MERCADOS DO SEXO E DO TRAFICO DE PESSOAS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO (Emanuela Abbatecola) 1.1. Sobre o conceito de trafico de pessoas Kara escreveu: o trafico do sexo é um dos eventos mais terríveis do capitalismo global, criado pelas dolorosas desigualdades difundidas no processo de globalização, como o agravamento da pobreza nas áreas rurais, a crescente dependência econômica dos pobres, a exploração e a transferência de riquezas e recursos dos países subdesenvolvidos aos países ricos, a crescente redução da liberdade dos seres humanos no mundo civilizado (Kara, 2010, p. 25). A prostituição na era da globalização, portanto, implica também a escravidão de milhares de mulheres (biológicas e transexuais) e meninas, embora saibamos que, o fenômeno do trafico de pessoas não é realmente novo. Mas o que queremos realmente dizer com o termo “trafico de pessoas”? O Protocolo de Palermo, adotado pelas Nações Unidas em 2000, e em vigor desde dezembro de 2003, assinado (em março de 2013) por 154 países, afirma, no art.3, que: a) Trafico de pessoas significa aliciamento, transporte, transferimento, alojamento ou acolhimento de pessoas, usando a força ou ameaças ou outras formas de chantagem, desde sequestro, à fraude, ao engano, ao abuso de poder, ou de uma posição de vulnerabilidade, ou através do “dar e receber” uma quantia de dinheiro ou vantagens para obter a permissão de uma pessoas que há autoridade sobre uma outra, para fins de exploração A exploração compreende, como minimo, a exploração da prostituição de outras mulheres e outras formas de exploração sexual, ou praticas como o trabalho escravo, ou serviços forçados ou a remoção de órgãos; b) O consentimento de uma vitima do trafico de pessoas, explorada, é descrito na letra a) do presente artigo, e deve ser irrelevante se nenhum um dos meios referidos na letra a) for utilizado; c) Aliciamento, transporte, transferimento, alojamento e acolhimento de um menor para fins de exploração, é considerado “trafico de pessoas”, mesmo não envolvendo nenhum dos meios referidos na letra a) do presente artigo; d) «menor» indica qualquer pessoa abaixo de 18 anos. O trafico de pessoas é um fenômeno que pode acontecer dentro e fora do território nacional – no segundo caso, é chamado de “trafico interno” - e deslocamento de uma pessoa no espaço é central. No paragrafo a) do art. 3 do Protocolo de Palermo, estão elencadas varias ações consideradas critérios de definição do fenômeno do trafico de pessoas, sem que seja necessário que estejam todas presentes em conjunto. Aliciamento, transporte, transferimento, podem constituir o ato ilícito do trafico de pessoas, desde que operem por meio de ameaças ou força (física, psicológica e/o sexual), contra a vontade do indivíduo. No paragrafo b) é especificado como o consentimento da vitima não invalida o crime. Este ultimo é um ponto muito importante do Protocolo, porque, como veremos adiante, a condição de vulnerabilidade socio-economica-cultural, leva muitas vezes a aceitar projetos de migração arriscados e condições de vida e de trabalho degradantes ou consideradas inaceitáveis Tanto a analise do fenômeno, quanto a definição das ações de contraste, por isso, é essencial saber separar as condições de exploração de um eventual 3 consentimento de quem está sendo explorado, para que não haja contradição. O conceito de trafico de pessoas (traficância) não deve ser confundido com o de trafico (contrabando), porque enquanto o trafico (contrabando) vai diminuindo conforme os migrantes entram ilegalmente em um país diferente, o trafico de pessoas se auto-alimenta com a exploração da pessoas, um vez chegada ao país de destino. Tab. 1 - Diferença entre trafico de pessoas e contrabando de migrantes TRAFICO DE PESSOAS Crime nacional e transnacional Acontece com ou sem o consentimento da pessoa A exploração da pessoa continua mesmo após a chegada no país de destino O ganho principal vem da exploração continua da vitima e uma minima parte vem da facilitação da entrada ao país de destino CONTRABANDO DE MIGRANTES Crime transnacional Há consentimento da pessoa Termina com a chegada dos migrantes no país de destino O preço pago pelos migrantes é a fonte de renda dos contrabandistas Facilitação da entrada de migrantes no novo país de destino. Fonte: Secretaria Nacional da Justiça 2013 O protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional Organizado para combater o contrabando de migrantes via terrestre, marítima e aérea, exige que os estados adotem sistemas de proteção das vitimas de trafico mais tranquilos do que aqueles considerados necessários para as vitimas de contrabando, o que, muitas vezes, leva à pratica de repatriação forçada, que longe de combater as redes criminosas envolvidas no trafico, pode realmente fortalecê-los através da criação de novas fontes de aliciamento. O Protocolo de Palermo não possui nenhuma influência judicial obrigatória em relação aos estados signatários, mas pode ser considerado uma boa ferramenta para criar uma harmonização da legislação à nível internacional sobre a questão do trafico e do contrabando de pessoas, e para estimular a cooperação entre os estados, a fim de implementar ações de prevenção e repressão do fenômeno em questão. Um aspecto central no debate internacional sobre o tema do trafico e do contrabando de pessoas, é o rotulo de “vitima”, figura controversa e debatida na literatura e a qual muitas das pessoas envolvidas no trafico, não se reconhecem, porém usaremos este rotulo para deixar a leitura mais clara e fluida. O art. 6 do Protocolo de Palermo, sobre a proteção às vitimas do trafico e contrabando, afirma: (1) Em casos adequados e na medida do permitido pela legislação interna, cada estado signatário deve proteger a privacidade e a identidade da vitima do trafico de pessoas, mesmo excluindo a publicidade dos processos judiciais relativos ao trafico. (2) Cada estado signatário deve garantir que o seu sistema jurídico ou administrativo contenha medidas que permitam, em casos apropriados, oferecer às vitimas do trafico de pessoas: a) informações sobre os relativos; b) assistência para permitir que as suas opiniões e preocupações sejam apresentadas e consideradas nas fases adequadas do processo penal contra os autores do crime, de modo a não prejudicar os direitos da defesa. (3) Cada estado signatário deve considerar medidas para recuperação do estado físico, psicológico e social da vitima do trafico de pessoas e, em casos apropriados, em colaboração com outras organizações não governativas, e outras organizações interessadas e outras instituições sociais, oferecer: a) um alojamento adequado; b) orientação e informação, em especial, em relação aos direitos reconhecidos pela lei, em uma linguagem que a vitima do trafico entenda; c) assistência medica, psicológica e material; e d) oportunidade de emprego, oportunidades de educação e formação (4) Cada estado signatário deve considerar, quando for aplicar as disposições do 4 presente artigo, a idade, o sexo, e as necessidades especiais das vitimas do trafico de pessoas, em particular, as necessidades especiais dos menores, incluindo alojamento, educação e cuidados adequados. (5) Cada estado signatário deve esforçar-se para garantir a segurança física da vitima do trafico de pessoas enquanto estiverem em seu próprio território (6) Cada estado signatário garante que seu próprio sistema judicial interno contenha medidas que oferecem às vitimas do trafico de pessoas, a possibilidade de obter uma indenização pelos danos sofridos. Como observado acima, o Protocolo de Palermo não possui nenhuma influencia judicial obrigatória em relação aos estados signatários, mas serve sempre como uma diretriz para estimular os estados a adotarem medidas adequadas em relação às vitimas, harmonizando, o máximo possível, os eventos. Um ponto enfatizado é a necessidade de ter mais atenção à proteção da identidade e à privacidade dos dados das vitimas. Muitas vezes, as pessoas traficadas ou envolvidas no trafico de pessoas com fins de exploração sexual, são ameaçadas de morte, ou é a família que é ameaçada, quando a pessoa não paga o que deve, ou denuncia ou foge. Ciente da violência potencial das estrategias implementadas pelas redes criminosas, a Convenção de Palermo impôs como obrigação de todos os estados signatários, terem a disposição determinadas medidas de proteção para a pessoa que decidisse denunciar, a qual deve ser garantida a segurança física, alojamento, e outras medidas que regularizem a sua permanência no país de destino. Um outro documento importante, embora talvez menos citado do que o Protocolo de Palermo, é o European Council Convention on Action Against Trafficking in Human Being, (Convenção do Conselho Europeu sobre a Luta Contra o Trafico de Pessoas), de maio de 2005, em vigor desde 2008, quando foi retificada por dez estados: até hoje (maio de 2014) os estados signatários são já 42. A convenção fala da questão do trafico no âmbito da violação dos direitos humanos, de onde provém o direito à proteção das pessoas vitimas do trafico. Trafico de pessoas é, portanto, uma violação dos direitos humanos. Como sabemos, existem diferentes formas de trafico, mas as estimativas indicam o trafico de pessoas a fim de exploração sexual como uma das formas mais difusas. Como pode ser visto no gráfico 1, tanto nos dados da Eurostat de 2013, como no UNODOC de 2010, referindo-se ao período 2008-2010, houve clara prevalência da incidência ligada ao mercado do sexo em comparação aquelas que se referiam ao trabalhoescravo ou outros tipos de trafico (incluindo a delicada questão do trafico de órgãos, ainda muito pouco investigada), com diferença entre os dois primeiros, que varia de 36-61 pontos percentuais, dependendo das fontes examinadas. Graf. 1 Incidência das diferentes formas de trafico de pessoas (%) Trafficking 2008-2010 14% sexual 61% (79%) 25% labour 25% (18%) 61% Fonte: Eurostat 2013 (UNODOC, 2010) 5 others 14% (3%) O trafico de pessoas surge como um fenômeno muito caracterizado do ponto de vista do sexo da vitima, isto é, segundo as estimativas, o graf. 2 e 3 indicam uma prevalência de mulheres entre as vitimas (80% vs. 20%), de homens explorados (75% vs. 25%). A proposito deste ultimo dado, a pesquisa do projeto ETTS confirma, o que foi já dito em trabalhos anteriores, sobre o trafico de pessoas para exploração sexual, onde os exploradores são homens, se a exploração for operada por albaneses e romenos, enquanto que no racket nigeriano, bem como na exploração das trans brasileiras, são as mulheres a mostrar um papel dominante (maman e cafetinas). Graf. 2 Sexo das vitimas do trafico de pessoas 80 80 68 70 60 50 40 20 30 20 12 17 3 10 0 Female (80%) Male (20%) Total Adults Childern Fonte: Eurostat 2013 Graf. 3 Sexo do explorador 75 80 60 40 25 20 0 Traffickers Female (25%) Male (75%) Fonte: Eurostat 2013 O percentual das ditas vitimas (as quais, como veremos, nem sempre se reconhecem como tal), parece variar dependendo do tipo de trafico em questão Como mostra o gráfico 4, as mulheres prevalecem, no que diz respeito à exploração sexual (96% vs. 4%) e as outras formas de trafico (72% vs. 28%), enquanto o trabalho-escravo parece envolver um maior numero de homens. 6 Graf. 4 Classificação da vitima em base ao tipo de trafico 96 100 77 80 72 60 40 28 23 20 4 0 Sexual Labour Female Other Male Fonte: Eurostat 2013 Como sabemos, se tratam de estimativas, ou seja, dados indicativos sujeitos à distorções ligadas à dificuldade de investigar mundos submersos, conectados com o crime organizado. No entanto podemos notar uma coerência de fundo, entre as descrições emersas e o modo como a sociedade constrói e impõe a identidade do gênero: o mercado de trabalho como uma dimensão fundamental da identidade masculina tradicional (Abbatecola, 2002), e a sexualidade feminina como uma sexualidade de serviço, para o uso e consumo pela sexualidade “hidráulica” masculina, que precisa dar vazão sempre que o desejo surge (Ciccone, 2009). Nem todas as mulheres estrangeiras que trabalham no mercado do sexo são “vitimas do trafico de pessoas”, mas as estimativas falam de um fenômeno inquietante que deveria ser questionado e fazer-nos pensar. Trafico de pessoas significa violência, muitas vezes brutal e até letal, uma violência que podemos definir contra o gênero, a qual possui raízes, que podem ser traçadas na nossa sociedade, nos modelos culturais dominantes, no modo como vemos o feminino (“as mulheres são”), e masculino (“os homens são”) e as relações entre os gêneros A violência entre gêneros, nas diversas manifestações onde começa a ganhar corpo, deve ser combatida, mas qualquer que seja o programa de luta à violência, deve começar pela informação e pelo conhecimento. Por isso, no nosso projeto ETTS, escolhemos dedicar tempo e energia à pesquisa, com a finalidade de monitorar o fenômeno e de recolher evoluções e mudanças nestes quatro países parceiros: Itália, Espanha, Romênia e Brasil. 1.2. O delineamento da pesquisa A ideia por trás do projeto foi de investigar o fenômeno do trafico para fins de exploração sexual, comparando alguns países de destino para as mulheres (biológicas ou transexuais) vitimas do trafico de pessoas – Itália e Espanha – e alguns países de origem das vitimas – Romênia e Brasil. Nos quatro países foram realizadas pesquisas qualitativas, coordenadas pela Universidade de Gênova, através de técnicas de entrevista semi-estruturadas a testemunhas privilegiadas (assistentes sociais, policiais, magistrados, etc) e suas estorias de vida, contadas sob total proteção, por mulheres que se liberaram recentemente da exploração. As pesquisadoras trabalharam com trechos de entrevista – como toalhas flexíveis – previamente discutidas em reunião com a equipe. Os trechos apresentavam a mesma estrutura e se diferenciavam somente por alguns adaptamentos contextuais e/ou pelo desejo de aprofundar, a nível local, alguns temas. Somente no que diz respeito ao fenômeno do trafico de pessoas para fins de exploração sexual, foram desenvolvidas 93 entrevistas qualitativas, cuja distribuição nos quatro países parceiros é indicada na tabela 2. 7 Tab. 2 Entrevistas qualitativas sobre o trafico de mulheres para fins de exploração sexual Itália Romênia Espanha Brasil1 Brasil2 Brasil3 Cidade Turim n. entrevistados n. estorias de vida TO T. Sevilha Brasília Fortaleza Guarulhos 8 Bucarest e 12 13 10 10 10 63 6 5 6 / 10 3 30 Nome entrevistador Francesca Rascazzo e Monica Reynaldo Monica Reynaud o Gabriela Chiroiu Vanessa Casado Eliana Nombre Maria Dolores Mota e Federica Rossetti Rejane Alexander De La Costa e Cristina Pidello Total de Entrevistas 14 17 19 10 20 13 93 Neste capitulo, vamos tratar principalmente do trafico de mulheres biológicas E no segundo capitulo, iremos nos aprofundar nos resultados da pesquisas sobre o trafico de transexuais brasileiras. 1.3. A pesquisa na Itália 1.3.1. As prostitutas estrangeiras são migrantes? A partir do final dos anos oitenta, as ruas italianas começaram a encher-se de mulheres1 – biológicas e transexuais – vindas da Nigéria, da América Latina, da Albânia e, mais tarde, de países do leste europeu (Carchedi, 2000; Da Pra Pochessia, 2001; Abbatecola 2006 e 2010). Dentro de seis meses/um ano, essas garotas sumiram e começaram a chegar, principalmente, garotas nigerianas, de cor, isso, e depois fomos constatar que eram nigerianas. E a partir dai começaram a marcar presença, em menos de um ano e meio/dois anos, das garotas albanesas, brancas, que tinham, começaram a chegar vários outros grupos: moldavos, ucranianos, russos, até chegar, nestes últimos anos, aos países da Comunidade Europeia. Portanto, romenos, búlgaros, tchecos, e continuando sempre presente também o grupo dos nigerianos, principalmente com presença de alguns grupos latino-americanos, centro-americanos. A entender: Colômbia, Republica Dominicana, estes países. E por ultimo, o grupo de trans italiano e latinoamericano, em particular, brasileiro. [Testemunha, T1, ONR]. A prostituição visível é, portanto, predominantemente estrangeira, mas dificilmente, nos estudos sobre o tema estão incluídos dentro de um discurso mais geral sobre migração (Bimbi, 2001; Abbatecola, 2005). É raro, de fato, que as prostitutas estrangeiras sejam representadas como “migrantes”: mulheres com intenção migratória mais ou menos realista e/ou ingenua (excluindo, talvez, pelo menos em uma primeira fase, garotas sequestradas), projetos, intenções ou sonhos que, muitas vezes, induzem a aceitar “contratos” migratórios pouco claros, se não em relação ao “destino” da prostituta, e menos ainda com relação às condições do exercício de tal profissão; mulheres que deixam suas casas, famílias, pais, irmãos, 1 De 1995 a 2000 chegaram também menores albaneses, romenos e marroquinos, onde a prostituição é muito menos visível e pouco investigada. 8 muitas vezes filhos, e que mandam para o seu país (quando os exploradores dão permissão) as chamadas “remessas”; mulheres que tem que lidar com países de cultura, língua e costumes diferentes, com a clandestinidade e a invisibilidade social que isso implica, com a desconfiança de quem os considera “estrangeiras” e portanto, “diferentes” de nós; mulheres que cultivam projetos para o “depois” que nem sempre é previsto um retorno à pátria, mas uma viagem de vez em quando para ver os filhos e os parentes mais próximos (Abbatecola, 2005). Na realidade, existe em literatura, reflexões sobre as ligações entre exploração sexual, migração e trafico de pessoas (ver como exemplo, Campani, 2000; Ambrosini, 2002), mas é como se a referencia ao discurso mais geral sobre migração fosse reduzido ao deslocamento do país de origem ao país de destino, e depois se perde quando o foco muda para outros pontos interessantes: as prostitutas estrangeiras, são predominantemente, em primeiro lugar: prostitutas, vitimas, escravas, mas dificilmente migrantes. Em termos de produção cientifica, a prostituição estrangeira diz respeito, em primeiro lugar, aos estudos sobre o desvio de comportamento (“mal necessário”, “vicio tolerado”), ou ainda aos fender studies (questão de mulher?), como pode ser visto no Manual de Sociologia da Migração: E ainda os fender studies denunciavam as diferentes formas de discriminação e de exploração (inclusive sexual) das quais as mulheres migrantes são vitimas, e explorar a realidade e as perspectivas de suas relações com mulheres nativas (Zanfrini, 2004, p. 60). Ao mesmo tempo, é difícil que seja posto em relevo as relações entre prostituição estrangeira e outros setores do mercado de trabalho, nos quais os migrantes se encontram em condições de exploração, muitas vezes, semelhante (Bimbi, 2001; Abbatecola, 2005). Mas as prostitutas estrangeiras, em primeiro lugar, não são migrantes? Não seria talvez o desejo e /ou a necessidade (socialmente mediada pelo network das primeiras migrantes) que a trouxe para a Europa ocidental? E confiar em traficantes e em redes criminosas não seria talvez o primeiro passo para a realização de um projeto migratório? Por qual motivo é difícil pensar a um trabalho sexual como resultado de um percurso migratório? Ver a prostituição estrangeira com as lentes dos processos migratórios, permite de enquadrá-la em termos sociológicos, desconstruindo assim a invariabilidade naturalizante de imagens estereotipadas, nas quais se geralmente se encontra. Como se sabe, os migrantes são “necessários” mas não são “bem vindos” (Zolberg, 1997), por isso assistimos, há décadas, a forte contradição, por um lado, a abertura econômica, por outro, a dificuldade politica e social (Ambrosini, 2011). Os mercados precisam de mão-de-obra em setores específicos, onde a demanda de nativas é excelente e a sociedade se defende dos “estrangeiros”, os “diferentes” de nós, construindo barreiras simbólicas. A alteridade é uma diferença que assusta, perturba, aborrece; deve ser controlada, e este controle pode ser feito de três formas complementares: através da linguagem (“extracomunitário”; “ empregada”; “puta”); criando e reforçando esteriótipos (Colombo, 1999); definindo e delimitando as margens de manobra e os graus de liberdade concedidos aos estrangeiros. Assim, nascem os bairros para estrangeiros, e começa um processo de integração subordinada (Ambrosini, 1999) onde o estrangeiro é admitido somente se aceitar ser hierarquicamente inferior: os imigrantes se sentem aceitos, talvez, sob um ponto de vista pessoal, quando eles têm um nome e um lugar definido na sociedade – útil, modesto, possivelmente invisível (Ambrosini, 2011, p. 175 trad. própria). Em alguns aspectos, as mulheres são vistas como menos ameaçadoras, porém são facilmente sociáveis, e então, mais aceitas (Ambrosini, 2004), mas estas mulheres, muitas vezes desejadas, protegidas, ajudadas, também são reduzidas a papéis subordinados, relacionados às dimensões mais tradicionais da feminilidade, hoje desafiados pelas mulheres ocidentais. É assim que são as migrantes que vemos: empregadas, domesticas, esposas tradicionais e prostitutas (Luciano, 1994; Abbatecola, 2006; Massari, 2009). Cria-se, então, uma hierarquia étnica (Massari, 2009) entre mulheres nativas e mulheres migrantes (o mesmo vale 9 para os homens), então as possibilidades profissionais para as migrantes são socialmente definidas, independentemente dos percursos biográficos, educacionais e profissionais (Kofman et al. 2000; Sassen, 2002). 1.3.2. Comparação entre o racket nigeriano e o albanês Na Itália, os dois principais racket, historicamente envolvidos na exploração da prostituição de rua e na escravização de mulheres e menores, somente nigerianos e albaneses, muito diferentes em termos de estrategia, composição de gênero dos vértices, evolução no tempo. A característica mais notavel do racket nigeriano é o forte papel das mulheres nigerianas. Desde os primeiros fluxos migratórios no final dos anos oitenta, as exploradoras também foram mamas ou madames, ex sex workers, ou até vitimas do trafico, que fizeram carreira comprando jovens conterrâneas, depois de ter conseguido quitar a divida. As mamas, figuras carismáticas, amadas e temidas, respeitadas e admiradas, acolhedoras e protetoras, mas sempre potencialmente violentas, foram as rainhas incontestáveis da exploração sexual das nigerianas durante todo os anos noventa e boa parte da década do seculo XXI. Os homens ficaram por muitos anos em segundo plano, invisíveis, exercitando (aparentemente?) tarefas relacionadas à obtenção de dinheiro ou a missões punitivas. Enfim, os homens vinham quando as mamas exigiam serviços específicos, e depois desapareciam novamente no nada. Então, depois de 2006, algo parece ter mudado. Os homens, os namorados e os maridos das mamas, saíram de suas tocas, e hoje, a hipótese é que são eles que controlam o trafico de pessoas, não só em relação ao mercado do sexo, mas também em relação à mendicância. Assim, existem casais onde quem explora é a mulher, mas é o marido quem detém a chave dos negócios [Testemunha, T2, Caritas] Era o marido dela que achava as garotas; era o marido dela que era se ocupava da viagem.. aqui na Itália tinha ela que as esperava. Era uma coisa feita bem a nível amador, “familiar”, não tão familiar assim, digamos, “era uma gestão familiar, estamos falando de catorze/quinze garotas e era o próprio marido que.. quer dizer, esta senhora não apenas trazia as garotas, mas trouxe também o “amante”, o faz-tudo pra cá, aquele que é responsável pela gestão de uma determinada situação: trazer as garotas, ir buscar os filhos na escola, levá-los pra casa, terminar os afazeres domésticos, ela precisava de um taxista e ele, além de amante, era também seu taxista, um faz-tudo, ele também veio clandestinamente para a Itália, sempre trazido por ela. O marido que ficava la na Nigéria, organizava o transporte dessas pessoas: passagem, documentos, enfim, tudo [Testemunha, T10, Policia] Os homens também adquiriram um importante papel nos ritos mágico-religiosos, inicialmente conduzidos exclusivamente na casa da cafetina ou de alguma outra mulher conhecida, e agora são conduzidos, às vezes, por supostos “pastores”(Bedin e Donadel, 2007). Na relação com as vitimas do trafico, no entanto, a cafetina continua a manter uma posição central. É ela a referencia, é ela quem comanda e decide hierarquias e deveres. É ela a ambivalente “madrasta”. O racket albanês, no entanto, desde a sua criação no inicio dos anos noventa, foi exclusivamente dominado pelos homens. Ao longo dos anos, algumas mulheres – as namoradas, as preferidas – conseguiram conquistar um pequeno espaço, assumindo funções de supervisão e obtendo pequenos privilégios (como, por exemplo, a possibilidade de não trabalhar em caso de indisposição, concordar formar diversas de 10 divisão de dinheiro), mas o trafico de mulheres do leste europeu – comandado por albaneses e, mais tarde também romenos, com fortes conexões com as redes criminosas – sempre foi caracterizado por uma predominância masculina, e não apenas em termos de caracterização do gênero dos lideres. “Fui estuprada, violentada, não queria trabalhar de prostituta, mas me obrigaram, daí me para ser gentil”, e então começou a namorar com o explorador albanês, consequentemente, por conta disso, ela tinha uma certa liberdade “Eu ia pra boate dançar, esse tipo de liberdade que eu estou falando, mas se não trouxesse o dinheiro que ele pedia, era porrada”. Então, mesmo nesta situação nojenta, porque é uma situação desgostosa, mas conseguia um pouco de dinheiro pra si, e não era pouco, mas era uma situação de violência Todas as vezes que ela tentava ir embora, ou conhecia alguém pra sair, ela era censurada. [Testemunha, T2, Caritas] Machismo, do ponto de vista simbólico, são, portanto, as estrategias de subjugação, principalmente com base na violência: sexual, física, psicológica, realizada de forma continua; violência que poderíamos definir como “preventiva”, imediatamente imposta para definir hierarquias, papéis e regras do jogo, bem como anular a subjetividade da pessoa “escravizada”. vi como eles batem nas meninas. Vi quando.... com aquilo ali (indicando o fio do mouse, ndr], bateram numa menina, num réveillon, quando saímos e quando tornamos. Ele bateu nela enquanto eu dormia, daí acordei e vi tudo, me assustei, em mim nunca tinham batido. Daí, me bateram uma vez só, quando falei com aquele cliente [Estorias de vida, Moldava, D2] me espancavam, batiam minha cabeça no chuveiro, me ameaçava com uma faca, mas eu falava: “pode me matar, eu não tenho medo, se é pra viver assim, prefiro morrer, do que viver deste jeito, vai ser melhor assim”. E ele me dizia: “Ah, você é cabeça-dura então?” E começava tudo de novo… [Estorias de vida, Romena, D3] Se eu não estava bem, tinha que avisar e dizer porque eu não estava bem, mas se ele dissesse “tranquila, não é nada, você tem que sair* (*trabalhar na rua; prostituir-se)”, eu tinha que sair. Se eu não quisesse sair e ele dissesse “sai”, começavam as ameaças, na verdade, as ameaças sempre existiram, pois se eu quisesse ir embora “mas você me deu sua palavra, não pode ir embora, se quiser ir embora agora, vai encontrar um furgão na frente da tua casa que vai te pegar e te levar pra onde eles quiserem pra fazer o que eles quiserem.. - sei lá - te levam com as mãos amarradas, com os olhos vendados, judiam da tua família, colocam uma bomba na tua casa, estupram tua mãe, teu pai, teu irmão, matam você na hora, você tem certeza que não quer ir trabalhar? Se você ligar pros teus pais daqui há cinco minutos, você acha que eles vão estar vivos ou mortos? Você não pode ir embora, porque você é só uma prostituta e tem ir pra rua trabalhar, você tem que trabalhar até acabe a operação que os outros estão fazendo dentro da prisão, você tem que fazer dinheiro porque eu estou morrendo.. é isso que você quer, me ver morto? É assim que você me ama? Mas vai se f..”, sei lá, quando ele descobriu que eu saia com este senhor, me disse: “toma cuidado quando sai com esse cara, porque ele está enchendo tua cabeça de besteiras, fala mentiras, toma cuidado, fala pra ele ter cuidado quando fala, de ficar com a língua quietinha, pois sabemos muito bem quem ele é, onde mora, onde trabalha”, de fato, ameaçavam até este senhor, e também, toda vez que eu estava gravida, e que não queria sair, eu ligava pra ele e dizia pra vir em casa “vem que eu to melhor”, e ele me dizia “fala pro cara que está aí com você pra não falar demais porque, 11 de repente, podemos encontrá-lo e fazê-lo em pedacinhos” [Estorias de vida, Albanesa, D1]. A violência física (geralmente, não só aquela sexual) está sempre presente também no racket nigeriano, mas vem usada como um dispositivo para desencorajar possíveis rebeliões e punir que tentar escapar às armações da cafetina. …depende muito de quem explora. A pior das situações que vi, foi uma menina que foi escalpelada, tiraram o couro cabeludo dela porque ela não tava a fim de trabalhar, então começaram a tortura escalpelando a menina. Quer dizer, eu cheguei ao hospital com o relato de uma garota que estava gravemente ferida, e quando a enfermeira me disse: “no saquinho ali no chão, tem o escalpo da garota”, eu fiquei sem palavras. Na minha frente tinha praticamente uma múmia, pois a garota estava enfaixada da cabeça aos pés, e quando me contou o que houve, custei a acreditar. Sobre o trafico de pessoas, o assunto me leva a viajar pelos anos passados, quando eu estudava sobre o trafico de negros, escravos, etc e dizia: “Aqui, ao invés de andar pra frente, estamos indo pra trás”; então, quando me falaram do escalpo, eu disse: “Igual aos índios”, é realmente difícil de acreditar. Este foi o mais absurdo que vi como tortura às garotas, fora as queimaduras de cigarro, de ferro de passar, as chicotadas, de tudo e mais um pouco [Testemunha, T8, Policia Local] Algumas testemunhas privilegiadas falam sobre uma maior violência das cafetina hoje, do que no passado. Não temos meios para verificar se efetivamente é assim. Certamente, o racket nigeriano se torna violento com quem se rebela, e podemos hipotetizar que as garotas que pedem ajuda aos serviços, são aquelas que sofreram maior opressão por serem potencias rebeldes. As mulheres nigerianas sofrem mais violência agora também porque, quando chegam na comunidade, são mais nervosas. Com base na violência que passaram, elas chegam na comunidade e mostram sua raiva. Contam que foram espancadas, e de fato, motivo valido pra essas mulheres quererem ir embora para onde tem menos violência, devem resistir à ambivalência, torcer pra conseguir suportar, mas existe um limite para a violência física exagerada. As ultimas garotas nigerianas que foram pra policia, é porque sofreram espancamentos e ferimentos, e foram levadas ao pronto socorro, esta é a coisa mais frequente. As exploradoras batem, machucam, e se a exploradora for casada, como cada vez mais acontece, o marido pode violentá-la se ela se rebela. É raro isso, aconteceu a uma garota só, mas se acontece com uma que seja, eu falo... [Testemunha, T2, Caritas] O racket nigeriano é capaz de matar, se preciso, mas se concentra, de preferencia, em formas mais eficazes de submissão psicológica, onde os ingredientes principais parecem ser: a divida, os ritos mágicos, a relação ambivalente com a maman. Vamos começar pela divida. As garotas recrutadas na Nigéria por figuras chamadas de “patrocinadores”, devem assinar um contrato, onde se compromete em pagar uma soma, bastante grande (entre 50 e 60 mil euros). As garotas aceitam - muitas vezes se iludindo com os tempos de pagamento da divida – e apesar de serem quase esmagadas por anos, por uma divida considerável, algumas acreditam que isso seja, de algum modo, o preço para chegar na Europa. 12 São uns 50/60 mil euros. Agora depende não sei do que, só sei que a faixa é mais ou menos essa. Divida liquida, porque a garota ainda tem que dar mais dinheiro à maman: tem que pagar a metade do aluguel, comida, luz, etc.. Por isso a garota, visto o preço que tem no mercado, ela é obrigada a trabalhar, trabalhar duro, às vezes até doze, treze horas sem parar. Como a controlam? O controle é feito principalmente através do vodu, é o que as assusta mais. [Testemunha, T8, Policia Local)] Então um dia ela disse que não aguentava mais, antes de ser presa em Novara e ser mandada de volta para a Nigéria Eu trabalhava em Novara. Agora que não trabalho mais em Novara, disse que eu tenho que pagar 700 euros a cada dez dias, mas o aluguel não está incluído neste valor, nem as despesas. Disse que para as despesas são 70 euros, porque agora tudo custa muito caro. [Estorias de vida, Nigeriana, D6] Me disseram que ela, esta T. que é dona deste local, viveu na Itália por muitos anos, e que ela conhece todas as leis, e que eu devo dar a ela 250 euros por mês pelo local, todos os meses [Estorias de vida, Nigeriana, D5]. “Nãooooo, você não pode ficar com nenhum dinheiro!”, elas vasculham as tuas coisas. Se você tem que comprar qualquer coisa, como um vestido, uma roupa, ela vai ao mercado, compra a roupa pra você, e você tem que dar 20 euros pra ela, e você não tem voz ativa pra dizer “ não “. Ela é quem fazia tudo? Até a comida ela comprava pra você, ela é quem fazia as compras? Sim. Toda vez quem cozinhava era eu, ela ia fazer as compras, mas quem pagava também era eu, 50 euros toda sexta-feira. [Estorias de vida, Nigeriana, D5] Nem sempre existe esta clareza no “contrato” no que diz respeito à divida, no sentido que muitas vezes, as garotas sabem que devem pagar o dinheiro da viagem, mas ninguém diz a elas que, a esta divida (aumentada), serão somados o aluguel, as despesas, o aluguel do “ponto” (pedaço de calçada onde trabalharão), assistência medica e outros: Me avisou, antes de eu ir, que teria que trabalhar na rua. Me disse também, sim, ela me disse quanto eu teria que pagar. Me disse que tinha aluguel pra pagar, despesas, também luz e gás e tudo mais, mas quando eu estava na Nigéria ela não tinha me dito que teria todas essas coisas pra pagar. E me disse que quando eu chegasse, teria que pagar a pessoa que me trouxe. Depois, não sei o que ela pretende que eu... acho que, se é ela quem eu tenho que pagar, é na casa dela então que devo estar... e essas coisas todas. Quer dizer então que você tinha que devolver o dinheiro da viagem e tudo mais, ou seja, tinha que pagar tudo o que eles gastaram pra trazer você pra cá? Sim, mas é sempre mais do que dizem… Muito mais do que eles realmente gastaram… É , porque pra vir pra cá não chega a dez mil, eu creio, mas ela me disse que teria de pagar 60 mil euros. Quando cheguei, tinha outra garota nigeriana. Tinha que pagar 250 de aluguel. Eu pago 250, ela paga 250. Dormia na cozinha, era só uma cama bem pequenininha, a garota trabalhava à noite, e eu de dia, então, quando eu dormia, ela ainda nem tinha chegado em casa. No total, eu e ela pagávamos 500 euros pra dormir naquela caminha ali. Aquela que me trouxe não pagava nada, pois a casa não custava, só o 13 ponto mesmo. E depois, a casa parecia mais um contêiner: um quarto com cozinha, não acredito que chegue nem a 500 euros. E ainda as despesas de 50 euros pra pagar toda semana. [Estorias de vida, Nigeriana, D6]. O que mantem essas garotas ligadas ao racket, tanto hoje como há vinte anos atras, é o medo em relação aos poderes dos ritos mágicos, o que nós chamamos vodu. Em Nigéria, esses ritos ainda são feitos, antes da viagem, misturando pelos pubianos com outras partes do corpo (unhas, sangue e outros), e juntamente a isso, se reconhece um grande poder: o poder da pena de morte em caso de rebelião Mas uma vez que é feito, não sei como se chama em Itália. o vodu, não se pode mais voltar atras. Quem foi que o realizou? Na Nigéria, antes de ser vir pra cá, nos levam em um lugar onde se faz o vodu, eles pegam... algumas coisas, intimas também.. e colocam ali. Não sei o que fazem, depois, com essas coisas, talvez se você não paga as pessoas que te trouxeram, coisas podem acontecer.. Você sabia que tinham feito vodu pra você antes de partir, e que isto era uma coisa muito poderosa. Você então tinha que fazer tudo o que estas pessoas te pediam e não podia negar porque você tinha medo que te fizessem algo? Sim Entendo. O que poderia te acontecer? É como me disseram na Nigéria: “se você não pagar, aquela pessoa pode morrer”. Entendi Sim. Mas não sei te dizer se é verdade mesmo. Talvez o faça por medo [Estorias de vida, Nigeriana, D6] Eu disse “não, cheguei na Itália, minha maman fez uma coisa pra mim, não posso fugir, ela me fez um vodu. Me deu água, com uma coisa do pernilongo, tudo dentro da água, eu já bebi, não posso escapar pois tenho medo, não quero morrer” [Estorias de vida, Nigeriana, D4] Interessante também é a relação ambivalente com a cafetina. Em uma pesquisa de alguns anos atrás, uma senhora responsável por uma comunidade, conta que ficou mal quando uma garota lhe disse “você é a minha maman ” (cfr. Abbatecola, 2006). Como era possível que ela a comparasse à sua cafetina, sua exploradora? Serà que as garotas exploradas pelo racket nigeriano veem a maman com olhos diferentes dos nossos? A maman, no racket nigeriano, é sim a exploradora, mas é também um ponto de referencia neste difícil percurso migratório: a maman é presente, dá conselhos, acompanha, ajuda, é uma que também “já passou” por tudo isso e por isso pode entender melhor. Mas ser for a garota a “não querer entender nem aceitar”, aí a maman muda de cara, e sabe ser má e violenta. 14 O lance é que, se você traz dinheiro pra casa, não tem problema. Pode brincar, rir, fazer tudo junto, mas se voltasse pra casa sem dinheiro, era um grande problema, fazem escândalo [Estorias de vida, Nigeriana, D6]. Sim, ela prepara a comida, daí, quando ela vier hoje à noite, ela diz que se eu trabalhei bem, aí ela me dá comida, e nos dias que não trabalho bem, ela diz “tem alguém que vai ao trabalho, mas não trabalha, e então não vai comer nada, não vai tomar banho”, e acordar de manhã e ir trabalhar sem comer nada, sem tomar banho, vai trabalhar assim [Estorias de vida, Nigeriana, D4] E depois, a maman é uma pessoa que goza de respeito e estima na comunidade, pois é vista como uma pessoa que “conseguiu vencer na vida”, é uma pessoa cujo projeto de migração foi bem-sucedido, ficou rica, ela tirou da pobreza não só si mesma, mas também a família que ficou na Nigéria; a maman é, portanto, uma mulher que pode voltar ao seu país de origem de cabeça erguida, pois seu projeto migratório é foi um sucesso. Enfim, a maman pode se tornar um modelo a ser imitado. O acordo feito com o racket prevê que, uma vez paga a divida, a garota é livre. Poderá escolher – mesmo se estiver em condições de migrante clandestina – se tomar um outro rumo ou continuar a trabalhar de maneira independente e, talvez, por sua vez, tornarse também uma maman, aliciando garotas para serem exploradas. As mulheres do leste europeu, exploradas pelo racket, igualmente, não tem nenhuma chance de salvação Formalmente, não existe um limite para a exploração, e pra fazer carreira, se existir a possibilidade, é limitada às funções de supervisão, as quais, no entanto, não consentem de haver uma real liberdade de ação e /ou de decisão O racket albanês, desde o inicio dos anos noventa até o ano dois mil, evoluiu muito rapidamente em termos de organização, passando de uma estrutura informal – que não era uma rede, se tratava simplesmente de homens solteiros que chegavam na Itália com a “namorada” – a um clã ramificado, com organizações hierárquicas internas especificas, pontos estratégicos nos países de destino, e lideres locais manipulados pelo boss do fis (clã). A partir de 1996, as “namoradas” albanesas não eram mais assim tão “convenientes”, seja pela imigração forçada, implementada pela policia italiana, em acordo com a policia albanesa, seja pela conscientização, mesmo em virtude da intensificação das campanhas de informação e sensibilização na Albânia, pois o racket pode se tornar transnacional, comprando garotas de outros países do leste (Ucrânia, Moldávia, Romênia, etc) em verdadeiros mercados (Abbatecola, 2006; 2012). As garotas albanesas sumiram, por muitos anos, das ruas italianas para, mais tarde aparecer nos últimos tempos, mesmo sendo estas mais adultas que aquelas do inicio dos anos noventa, e também parecem adotar novas formas de locomoção, no sentido de se beneficiar da possibilidade de entrar regularmente (agora que a Albânia faz parte da Comunidade Europeia) através de uma autorização de permanência por motivos turísticos: Agora as albanesas vem pra cá com a autorização de permanência por motivos turísticos, ficou mais fácil, por isso elas voltaram. Ficam aqui dois meses, depois desaparecem, daí voltam depois de seis meses, algumas, e assim vai. Notei que, enquanto as mulheres albanesas estavam sumidas, ninguém mais as via, agora elas voltaram e a cafetina me disse que elas entram com a autorização de permanência por motivos turísticos São mais velhas, são mais maduras, as mulheres albanesas [Testemunha, T4, Medico]. Trabalhei também em outubro, economizei um pouco de dinheiro, mas o visto turístico vencia dia 8 de novembro, três meses se passaram e, praticamente, neste ambiente, uma pessoa que não tem documentos, dá o passaporte ao cafetão, o cafetão manda pra Albânia, para uma alfandega ao sul da Albânia, um policial corrupto mete dois carimbos, 15 então, é como se eu tivesse entrado e tivesse saído de novo [Estorias de vida, Albanesa, D1] Em relação às albanesas que hoje estão começando a vir para a Itália, pois o fato de hoje não ser necessário o visto para entrar, fez reaparecer a presença albanesa que por décadas tínhamos perdido de vista. Enquanto que, nos anos noventa, haviam somente nigerianas e albanesas, que depois sumiram, seja porque houve uma grande obra do governo Prodi, e em seguida, D'Alema, por uma especie de convenção muito forte com o governo albanês – para impedir principalmente a saide de Vlora, próprio por causa do trafico de pessoas, com a presença de uma mafia albanesa (vamos chamá-la assim) para o governo do processo de aliciamento, e uma mafia italiana da costa da Pugila, a Sacra Corona Unita, responsável pela “logística”: as garotas chegavam, então, tinham que procurar uma casa rapidamente, roupas, documentos e uma rede organizada [Testemunha, T1, ONR]. É evidente que os racket controlam o trafico de documentos e exploram economicamente as conterrâneas, até quando se trata do Permesso di Soggiorno (autorização de permanência): Sim. Quando fui depois pra Albânia, ele me disse que se eu quisesse ter todos os documentos italianos em ordem, eu tinha que pagar 10 mil euros, tudo incluso nos 10 mil euros; eu praticamente devia ter pedido ao explorador pra me deixar trabalhar sozinha todo o mês de janeiro, pois minha mãe tava doente, e precisava de todo o dinheiro, e depois, em fevereiro, se recomeçava, entende. Mas, praticamente, todo o dinheiro que eu ganhei em janeiro, tive que dar tudo pra ele, não sobrou nada pra mim, foi um período muito ruim da minha vida, que nem sei (Estorias de vida, Albanesa, D1). A violência continua sendo a principal estrategia de “controle”, mas no fim dos anos noventa, começaram a aparecer também os primeiros acordos de divisão dos lucros, para atrair jovens mulheres que deixaram de ser chantageadas por ameaças de violência à famílias, na verdade, desconhecidas. No geral, a impressão que dá é que o cenário é muito mais complexo e variável do que no inicio (começo dos anos 90), com muita coisa ainda para descobrir entre os casos de redução da escravidão e as formas de exploração mais leves que, mesmo assim, entram na definição de trafico de pessoas discutida anteriormente. É um tipo de modelo ambivalente em relação a prostituição, pois se ganha dinheiro, mas não é totalmente assim.. lembro do inicio dos anos 90 com as garotas albanesas, elas não ganhavam nenhum tostão Davam todo o dinheiro aos seus “protetores”, que controlavam até a quantidade de preservativos, portanto, dez preservativos representariam 500 mil liras, ou seja, 50 mil liras por preservativo. E os exploradores controlavam a tal ponto que, iam ver até onde elas jogavam os preservativos usados. Havia um controle muito forte que as impedia de escapar dessa situação de trafico. Hoje, no que se diz respeito ao aliciamento, podemos dizer então que existe um sistema de “geometria variável” [Testemunha, T1, ONR] 16 Sim, quando eu voltava pra casa de noite, pegavam todo o meu dinheiro, me deixavam com 10 euros pra comprar cigarro e tomar um café de manhã [Estorias de vidas, D3, Romena] Vim da Romênia com um cigano que me levou na primeira vez a Bari. Depois de um mês, chegaram os albaneses, me levaram a força, trabalhei pra eles por dois meses, e baixou a policia em casa, revistou a casa, e prendeu os caras. Mas estes albaneses eram malvados, me batiam sempre, me pediam dinheiro, ficavam o dia todo dando rolê de carro controlando [Estorias de vida, Romena, D3] Durante os anos 90 e até a segunda metade da primeira década do XXI século, o racket nigeriano e albanês dominaram o cenário da prostituição italiana de rua. Depois os albanês optaram por estrategias operativas mais discretas, enquanto os romenos, que já estavam aqui antes, mas sempre em papéis subordinados, ganharam maior visibilidade, criando novas parcerias e implementando estrategias que, por certos aspectos, se assemelham às dos albaneses do inicio. 1.3.3. Evoluções e mudanças O cenário descrito acima, portanto, começa a mudar na segunda metade da primeira década do seculo XXI. O racket albanês, duramente atingido pelas ações repressivas da policia italiana, graças a acordos bilaterais entre os dois países em questão, parece sair lentamente de cena em um primeiro momento, e nas ruas são os romenos que começam a ganhar maior visibilidade, e cujas estrategias de aliciamento e exploração serão mais profundamente analisadas no paragrafo dedicado ao trabalho de campo realizado na Romênia Um momento marcante foi em 2007, ano que a Romênia ingressou na Comunidade Europeia. À partir daquele momento, aumenta o numero de romenas nas ruas, muitas vezes exploradas (mas, como veremos, não é só isso) por seus “namorados” romenos que conheceram em seu país. Tivemos o que eu chamaria de ruptura epistemológica devido a presença da Comunidade. Quando entraram na UE (União Europeia) em 2007, já existiam romenas nas nossas ruas, e portanto também, nos programas de proteção social, mas em 2007 com a entrada da Bulgária, e em particular, da Romênia, pois outros países já tinham entrado antes, como a Polônia, a Republica Tcheca, a Eslováquia, mas com a entrada da Bulgária e da Romênia, mudaram muito os sistemas de aliciamento que, agora, são muito parecidos com os do leste da Europa [Testemunha, T1, ONR] Isso foi durante os anos de evolução da prostituição, por isso agora tem muito mais garotas romenas que se prostituem e muito mais exploradores romenos, apesar que, repito, os romenos são, em alguns aspectos, menos malvados que os albaneses [Testemunha, T8, Pol.] Os albanês, no entanto, não desapareceram, como parecia alguns anos atras, eles simplesmente se adaptaram à repressão, tornando-se menos visíveis O que se pode perceber pelas entrevistas, é que os albaneses cederam apenas uma parte do território para os romenos, sem renunciar ao papel de domínio e 17 controle do território. Alugando espaços, comprando garotas de outros países e estabelecendo acordos com os romenos: Antes ainda, a prostituição, a principio, era gerenciada pelos albaneses, depois os albaneses – sempre por aquele motivo que depois as garotas lhes denunciavam, etc – o que fizeram? Com a chegada dos primeiros romenos, os albanês começaram a ceder a eles as praças que usavam pra colocar meninas, assim, tendo menor o risco de ser interceptado, ou investigado ou denunciado pelas próprias meninas. Por anos, os albaneses cederam posto aos romenos: a cidade agora é dominada por exploradores albaneses, mas também por tantos romenos que, ou exploram as garotas por conta deles, ou criam seus próprios espaços, mesmo sendo poucos, pois a maioria ainda está na mão dos albaneses, ou então, eles alugam os espaços dos albaneses para colocar as garotas para se prostituirem [Testemunha, T8, Pol.] Isto nos leva a falar de outro aliciamento: o do leste da Europa. Além do albanês, que está reaparecendo, mesmo estando ausente por um longo período, dez/ quinze anos, hoje temos todo o leste da Europa à disposição, como parte da ex-URSS, Moldávia e Ucrânia principalmente, que realizaram uma grande forma de aliciamento de garotas da União Soviética para a Europa, e aqui, devemos dizer que, entrou em cena também a mafia russa. Porém, na Itália, a maior parte do controle do trafico é feito, principalmente, por um eixo albanes-romeno, que controla todas as situações [Testemunha, T1, ONR] Certamente, há uma forte conexão romenos e albaneses, em relação ao controle das ruas, assim dizem também as pessoas que trabalham na Unidade das ruas, e também em relação às sul-americanas que estão ainda nas ruas. Em alguns casos, esse controle por romenos e albaneses está relacionado à presença deles naquele território, em outros casos, se trata somente de uma passagem (de pessoas): a ultima jovem romena que atendemos, ela vinha da Romênia, o seu namorado – que depois ela nos contou: “talvez tenha sido ele quem me vendeu”, mas quem a explorava aqui era um albanês Mas daí.. mafia russa e mafia albanesa certamente se cruzam [Testemunha, T2, Caritas] Nas estorias das meninas de hoje surge outra novidade. Considerando que, antes, os exploradores albaneses pareciam mais ser mais sedentários, ou suscetíveis a não ficarem longe da mulher explorada, hoje em dia não são raras as estorias de exploradores que, de um dia pro outro, voltam pra Albânia e desaparecem sem deixar rastros, deixando margens de manobra à pessoa explorada, antes impensável Podemos supor que se trate, também neste caso, de estrategias de enfrentamento às ações de fiscalização da policia, juntamente ao fato que, como sugerido por uma testemunha privilegiada, existe um excesso de oferta: As formas de controle mudaram muito, porque no incio dos anos 90, tinha um cafetão para cada três meninas, que as orientava passo a passo, e hoje, nem nas ruas eles ficam. Antes, os cafetões vinham da Albânia com 3 meninas e morava com elas, hoje, eu acredito que eles façam bem diferente. Mas, também há uma coisa a se dizer: a oferta é muito maior que a procura, então, se o cafetão perde uma ou duas meninas – que entraram no nosso programa de proteção social – uns anos atras, era guerra; hoje eles nem ligam pois depois acham outras cinco. Portanto este é um ponto fraco: a oferta é muito maior que a procura. Na rua, muitas garotas te dizem: “tá difícil de trabalhar, hoje atendi só dois clientes” [Testemunha, T1, ONR] 18 A gente trabalhava na rua, daí, depois que este albanês foi embora com a mulher, tínhamos mais liberdade, porque, quer dizer, a mulher na cadeia, o albanês que fugiu, tivemos um pouco de sorte, éramos mais livres, dava pra trabalhar até em casa [Estorias de vida, Moldava, D2] A figura do “namorado” também não desapareceu, mas não aquele “namorado-de-casa” de antigamente, que atraiam a garota apaixonada com falsas promessas de casamento, invés disso, são homens que “acompanham” as meninas no caminho da prostituição, usando estrategias diferentes e complementares: fazem a garota se apaixonar, e depois fazem chantagem no sentido sentimental (“…mas você disse que me amava!”), mas também mostram a elas a atraente oportunidade de ter um vislumbre de ganhos: Eu o amava de verdade e você aceitou essa coisa em vista de um futuro hipotético com ele, quer dizer, você aceitou porque, independentemente de qualquer coisa, você queria.. Sim, também pelos ganhos, porque, no fim, uma casa, um carro, sabe.. receberia a parte que me tocava, porque, na verdade, eu não tinha nada, nem um bem material, então era muito tentador.. [Estorias de vida, Albanesa, D1]. Pode acontecer também que os “namorados” vendam as garotas para um outro albanês, mas sem abrir mão de explorá-la economicamente. Neste caso o explorador, formalmente, é aquele que está na Itália, enquanto o “namorado” permanece na Albânia, porém, fica pedindo pra mandar dinheiro pra ele, continuamente: […] Já na Albânia me dizia que tinha uma hernia de disco, na zona lombar, e quando eu estava aqui, em novembro, pelo telefone ela me dizia “ não me sinto bem, não estou por nada bem, estou morrendo, tenho que ir pro hospital colocar pino na perna, encontrei o assassino do meu irmão”, porque eu te falei que o irmão tinha falecido, “encontrei o assassino do meu irmão e matei ele, ele atirou na minha perna”, não sei se pegou só de raspão ou se a bala ficou dentro, não entendi bem, só sei que em três semanas, eu devo ter dado a ela 4 mil euros, todas as minhas economias que tinha guardado durante os meses [Estorias de vida, Albanesa, D1]. Os “namorados” de hoje fazem uso de novas tecnologias que não eram conhecidas na época dos primeiros “namorados” albaneses (inicio dos anos 90). Neste sentido, o papel do Facebook é muito significativo: Bem, tudo começou dia 5 de fevereiro de 2012, no Facebook, atual meio de contato entre as pessoas. Eu estava fazendo faxina em casa, e me chega um convite de uma desconhecida no Facebook, de fato, naquela época, não aceitava assim qualquer pedido de amizade, pensava “desconhecido.. quem é que o conhece?” mas daí eu aceitei, e começaram aquelas conversas tipo: “oi, tudo bem, qual o seu nome, você é linda, jovem, ah, e estuda também..”, porque, no segundo ano de faculdade, nos primeiros meses, eu aluguei uma casa com meu irmão, nesse meio tempo eu trabalhava, nos últimos dois anos em um call center e o aluguel era eu quem pagava, “humm, você é assim brilhante que, no meio tempo, você trabalha e estuda, e estuda e trabalha”, esta conversa começou às duas da tarde e terminou às quatro da manhã do dia seguinte. Era uma pessoa muito 19 romântica, dizia “eu gosto de Celentano (cantor italiano), escuto Celentano todos os dias, gosto de passear pelos bosque, jardins, nas ruas quando chove, ir ao lago” essas bobagens que uma garota como eu, ainda virgem naquela época, pensava “minha nossa senhora, encontrei meu príncipe encantado!” [Estorias de vida, Albanesa, D1] Mudam as formas de engajamento, mas mudam também os acordos. Enquanto as primeiras albanesas eram sempre e totalmente enganadas e aceitavam vir pra Itália na perspectiva de um plano de vida juntos, as romenas, assim como as novas albanesas, todas as meninas, em geral, são conscientes, também porque uma pessoas consciente cria menos problemas, trabalha melhor e é, economicamente, mais rentável: No começo disse assim que precisavam de uma garota pra ser, simplesmente, uma boneca, daí no dia seguinte, dois dias depois, disse “não é pra ser só uma bonequinha, vai ter que trabalhar também e... “ para uma garota trabalhar, simplesmente tem que (desculpe o termo) abrir as pernas e acabou, pega o dinheiro, no momento que está com a outra pessoa, se sente meio assim, em dificuldade, mas depois se contenta quando pega a grana e diz: “oh, to rica!” Olha só, em dez minutos eu abri as pernas e ganhei 50 euros, eu sou uma rainha, né!”, era muito bom com as palavras, pois dizia “agora você faz parte dos serviços secretos, você deu a tua palavra, então não pode mais voltar atras” e eu disse “ok, se faço parte, então tenho que me sacrificar”, também porque tinha me contado de outros casos, de outras garotas que tinham trabalhado assim pra ganhar a vida, e que hoje tinham tudo, então, praticamente, fora o trabalho, tinham casa, lojas, carros, e eu cai como uma tonta que sou (sarcasmo), e disse “sim” [Estorias de vida, Albanesa, D1] A estrategia dos “namorados” - albaneses e romenos, normalmente “sentimentalmente envolvidos” com suas compatriotas – jogam com a ambiguidade. As garotas se sentem mais livres e se iludem com a ideia de poder tirar vantagem dessa situação em termos econômicos significativos, mas na realidade é só violência e exploração: Não, boa porcentagem das famílias das vitimas não tem nem ideia do que as meninas fazem. A menina vem pra cá, depois avisa aos pais que achou o lugar, e depois manda dinheiro pra eles. No começo pensam realmente de ter dinheiro, mas depois são obrigadas a deixar quase tudo que ganharam, 60, 70%, ao namorado-explorador vagabundo, que com a grana compra um carro e fica rodando pelos bares, etc, jogando naquelas slot machines, torrando todo o dinheiro ganho com a prostituição das garotas. Essa é a bela vida que fazem, digamos assim [Testemunha, T8, Policia Local] Em Milão, são as mulheres romenas que dominam a área, com uma grande rotatividade, com mudanças, uma grande dificuldade de ter acesso a elas, pois sempre dizem: “quando eu quiser, eu paro”. Existem situações de violência e exploração ali também, mas a impressão que dão, é que aqui elas têm maior liberdade, maior possibilidade de escolha, que em alguns casos, é até verdade, mas de acordo com a Unidade de rua, a liberdade delas não é assim total, pois elas pagam pelo ponto. Tente não ficar no teu ponto.. de fato, a violência ainda existe [Testemunha, T2, Caritas] Táxi pra ir, táxi pra voltar. Mas tinha uma coisa estranha que, aqueles albaneses diziam “olha que vocês não estão ganhando dinheiro pra mim, é pra vocês o dinheiro”. Mas se eu chegava tarde de carro, de carro, tipo 10, 5 minutos era já tarde.. minha nossa senhora, nunca mais!! Eu chegava em casa e apanhava quase todas as noites.. Gritavam comigo, 20 como se eu fosse uma.. não sei como se diz em italiano, aquela que faz tudo o que lhe mandam... uma escrava [Estorias de vida, Moldava, D2] Dia 11, comprei um teste de gravidez, na verdade, comprei dois, e vi que estava gravida, daí, depois de três dias, tive hemorragia e não conseguia levantar de tanta cólica, praticamente estava tendo um aborto espontâneo, e este “policial” [gíria para indicar o namorado albanês] sabia muito bem que eu estava com cólica, me ouviu chorando por telefone, sabia que eu não ia conseguir colocar nada dentro porque já tava doendo, imagina se coloco um “ob” e chega um cliente querendo fazer sexo... a cólica era forte, se pusesse o “ob” que encostava no útero, ia ser uma dor insuportável Então, quando estava menstruada, fazia o impossível para não ir ao trabalho e ele fazia o impossível pra me obrigar a trabalhar, dizia “o patrão não quer saber se você tá mal, tá gravida, você deu sua palavra, prometeu nos dar 10 mil euros para obter os documentos então, esses 10 mil euros, quem é que paga? Não me interessa se você ficou gravida, a culpa é tua se você tá gravida, vai trabalhar”, então, praticamente, a culpa era minha porque não tinha os 15 euros para comprar a pilula, tinha dado todo dinheiro pra ele [Estorias de vida, Albanesa, D1]. Continua ainda hoje, como antes, o mercado das mulheres: albaneses que vendem as próprias “namoradas” a outros albaneses (sem nunca sair de cena); albaneses que compram romenas, moldavas e outras mulheres do leste europeu: […] Para que eu ir com o traficante, o traficante tinha que dar pra ele (o albanês) um ponto pra trabalhar, pois conhecia muita gente, e pra ele, achar um ponto, era fácil, um ponto na rua, 3 mil euros e uma garota romena, pois neste ambiente, as romenas são vendidas como enfeites de mesa, um enfeite de mesa [Estorias de vida, Albanesa, D1] O racket nigeriano tem mantido por décadas, estrategias de subjugação essencialmente inalteradas em sua estrutura principal, pois são eficazes e bem sucedidas. As únicas mudanças parecem se relacionar com a maior visibilidade dos homens, como já foi descrito, e um uso diferente dos passaportes. Enquanto, no passado, as garotas chegavam com seus passaportes originais, o qual era depois sequestrado pela cafetina, e devolvido somente após o saldo da divida, agora parece que o racket use passaportes falsos para viagens ao exterior, como os quais eles conseguem trazer varias garotas. No final dos anos 80, inicio dos anos 9, era fácil achar onde elas moravam, pois nós íamos na casa delas. Antes de mim, outros colegas também – soube disse lendo os atos – e a situação que se encontrava era esta: exploradora, duas, três, uma vez tinha até 14 em uma casa, pois tinham juntado duas casas, e encontravam-se ali uma cafetina, catorze garotas, catorze passaportes escondidos embaixo da cama da cafetina. As razões [destas mudanças, ndr] não os conheço. Mas o fato é que, como o tempo, as coisas não são mais assim, não existe mais a cafetina que hospeda a garota em casa e esconde seu passaporte, repito, não conheço os motivos, mas houve uma mudança, uma mudança nesse sentido, porque depois, com o tempo, davam à garota traficada na Nigéria, um passaporte, normalmente original, como suporte, portanto um passaporte emitido pelo departamento de emigração nigeriana, porém certamente falsificado pois 21 contém normalmente dados, informações pessoais e, às vezes, até a foto diferente. Então, este passaporte, uma vez que o traficante acompanha a garota até a Itália, este passaporte volta com ele para a Nigéria, e com este mesmo passaporte eles fazem passar outras garotas [Testemunha, T10, Pol.] Se no final, a exploradora é sempre a cafetina, mesmo no caso das nigerianas pode existir um namoradocumplice, cujo papel ambíguo nem sempre parece surgir das estorias, assim como no testemunho abaixo: Quando eu disse ao meu namorado da Nigéria - que me apresentou o homem que me trouxe pra cá – que eu já tinha pago quase 25 mil euros, mas que ainda faltava dar mais, esse homem ia sempre encontrar o meu namorado na Nigéria, e agora tá começando a criar problemas com ele, dizendo que eu não paguei isso, não paguei aquilo, não fiz isso. Porque no começo, quando eu cheguei na Itália, fui na delegacia pra fazer.. porque.. no primeiro dia, ele me deixou na Porta Usa (estação do metro de Turim, próximo à delegacia, ndr), pois eu não conhecia nada. Ele me deixou ali, daí conheci um homem que me levou até a delegacia, fui pedir asilo politico. Se eles me derem um documento, então tinha que fazer algo de belo, e não trabalhar nas ruas. Eu disse “tudo bem”. Fiquei com este homem, que me levou até a delegacia, alguns dias, depois liguei pro meu namorado, disse que me deram documento por 3 meses, e eu estava muito feliz por terem me dado o documento. Disseram pra ir pra escola, e fazer algo de belo. E eu disse “tudo bem”. Mas daí, enquanto contava essas coisas pro meu namorado na Nigéria, ele disse: “por favor, estou com um grande problema, agora eles estão tenho problemas comigo aqui na Nigéria Volta agora lá pra Nigéria tá pra eles, por favor, não quero problemas, mesmo que você não traga o dinheiro pra mim, não tem problema, basta que pague a tua divida, por favor. Estou com medo”. Porque agora eles … Lá na Nigéria não é como aqui que, se acontece qualquer coisa, você chama a policia. Na Nigéria, se você chamar a policia, tem que pagar, tem que pagar isso, tem que pagar aquilo. Os policiais escutam somente os ricos, não você que é pobre. Assim, voltei pra eles, sim [Estorias de vida, Nigeriana, D5] 1.3.4. As famílias: cúmplices ou vitimas? Há décadas a comunidade internacional se questiona sobre o papel das famílias das vitimas, sobre cumplicidade, níveis de conhecimento da situação Como sempre, o cenário é complicado e não existem respostas claras. O que emerge de todo o rico material de pesquisa, coletado nos diversos países parceiros do projeto, é que os rackets vão procurar meninas para aliciar, em lugares onde sabem que existe vulnerabilidade, onde a economia representa somente uma das dimensões, e não necessariamente a principal. Em todas as estorias podemos observar situações de desconforto relacionadas à presença de diferentes formas de pobreza, entre elas, uma relação que desempenha um papel secundário O trecho de entrevista selecionado é apenas um dos possíveis cenários: Minha mãe me abandonou quando eu tinha 6 ano, e nunca mais a vi.. Fugia de casa, porque ela (minha madrasta; o pai saiu pra trabalhar) me dizia tantos palavrões, um monte de palavrões Uma vez me jogou de calcinha.. na frente dos meus irmãos. e me dizia coisas feias, um monte de palavrões na frente deles. Me bateu uma vez na frente da minha melhor amiga e eu fugia de casa. Não aguentava mais. Uma vez eu tentei... por culpa do meu namorado, ex-namorado.. me suicidar, tomei uns remédios, fui parar no hospital, fiquei 26 horas em coma, quase 3 semanas no hospital; quando saí, estava melhor um pouco, mas depois, de novo, os problemas. [Estorias de vida, Moldava, D2] 22 As famílias, por vezes, desconhecem, ou às vezes elas sentem que tem algo, mas não intervém, na esperança de lucro, enquanto em outros casos, como o daquela garota moldava que acabamos de ler o trecho da sua vida ainda breve, mas perturbada, em papel protagonista. Irina (vamos chamá-la assim) conta que foi seu pai quem a acompanhou ao ônibus que a trouxe, graças ao intermédio de sua tia, da prima, já na Itália, e claramente cúmplices dos exploradores. Irina nega que seu pai soubesse de alguma coisa, mas qualquer que seja a verdade, no seu caso, o papel da família parece evidente: E ela me acompanhou até Kishinev (capital da Moldávia), dali meu pai me acompanhou até a Ucrânia em um grande ônibus, e ali entrei em outro, que me trouxe, depois de viajar a noite toda, a Kiev (capital da Ucrânia). Liguei pra minha tia, disse “to sozinha aqui, você acredita? De noite chegam um garotos negros aqui, o que será que vai me acontecer, to sozinha!”. E ela me disse “espera aquela mulher te ligar”. Ok, esperei, ela me liga e diz “ali tem um Mc Donald’s, vai pra lá que daqui a pouco meu primo chega aí e te ajuda a chegar no aeroporto pra vir pra cá.. quando chegar em T., tem minha prima chamada C. que tem a minha idade, e mora aqui há seis meses. Eu não sabia de nada, não sabia de nada. Ela me abraça e me beija, porém me pareceu meio estranho ter visto 2 homens [Estorias de vida, Moldava, D2] Na Nigéria também é comum as famílias terem papeis ambivalentes: Na Nigéria, isso mesmo, na Nigéria existe só se a garota some. Porque às vezes ainda tem aqueles clientes que tentam convencê-las … a não voltar (pras ruas). (Os exploradores) imediatamente contatam as famílias das vitimas, não se sabe como; a família consegue contatar a garota, e ela acaba voltando pra trás [Testemunha, T8, Policia Local]. De acordo com o testemunho acima, não é raro que sejam as próprias famílias a convencer a garota a voltar em caso de fuga, mesmo não sendo claro o quanto eles se envolvem neste jogo, por medo das retalhações, além do desejo de um ganho financeiro. A retalhação é de fato uma realidade documentada, principalmente na Nigéria, e na Romênia, porém mais raramente, as ameaças se traduzem em ações concretas. Enquanto a garota se comporta como se deve, faz o que tem que ser feito, as famílias (romenas) não são ameaçadas, e até aquelas poucas que denunciam, não sofrem toda essa... Quer dizer, a ameaça existe, mas raramente acontecem retalhações na Romênia [Testemunha, T8, Policia Local] Quando a exploração é transnacional, como nos casos onde os albaneses exploram garotas do leste europeu, vindas de vários países e compradas, por sua vez, em mercados transnacionais, as famílias estão bem protegidas das formas de retalhação, pois são mais difíceis de serem localizadas. 1.3.5. Trabalho e dia a dia Com relação às condições de trabalho e de vida cotidiana, existem fortes pontos em comum entre a experiencia das nigerianas e a das garotas do leste europeu. Em ambos os casos, os ritmos de trabalho são desgastantes e as condições, muito criticas: muitas horas na rua (em alguns casos até mais de 12h), 23 independentemente das condições meteorológicas ou do estado de saúde das garotas, fora os vários clientes ao dia, pois quem explora ( seja nigeriano, albanês ou romeno) quer dinheiro e não aceita desculpas. Eu trabalhava: segunda, terça, quarta e domingo, das nove da noite até as três da manha. E quinta, sexta e sábado até as quatro. Independentemente do tempo la fora.. nossa senhora, tempo ruim... faltava 20 pra 4 da manha, não tinha mais ninguém na rua, um frio, eu chorava, dizia, “vai, liga pra ele, liga e diz “20 minutos. Não tem mais ninguém, a gente vai pra casa, estamos morrendo aqui”. E ela ligava. “Fiquem aí só mais 10 minutos então. Meninas, daí só vai ficar faltando 10 minutos pro final, fiquem aí até o fim e depois vocês voltam pra casa”, era assim [Estorias de vida, Moldava, D2] Eu vivia junto com minha cafetina.. tinha uma outra garota que trabalhava em Milano, isso, ela ia pra Milão trabalhar, e eu trabalhava em Caluso. Pegava o ônibus às 8:30 da manha, e voltava às 7:30 da noite. Chegava em Turim às 8:30 da noite... trabalhava o dia inteiro.. até mais de 20-25 clientes... [Estorias de vida, Nigeriana, D4]. Quando eu estava com o cigano, eu trabalhava só de dia, trabalhava o dia todo e à noite já estava em casa, mas com os albaneses, eu trabalhava de dia e também à noite. De dia, trabalhava das 9 até às 19 em Carmanhola. De noite, das 21 às 4 em Moncalieri [Estorias de vida, Romena, D3]. Os dias eram muito longos e não sobrava tempo pra nada mais. Chegava de trem às 7 da manha em Milão, e 15 pras 9 voltava à noite. Daí pegava o metro até o trabalho. Saía às 5 da manha, porque os ônibus começam a circular às 5:30, esta era a primeira condução até o metro, depois metro até a estação Central de Milão Chego em casa em Turim às 9 da noite, daí, chegando em casa, ainda tenho que comer, tomar banho, e dormir até às 5 ou 6 [Estorias de vida, Nigeriana, D5] Quando comecei a trabalhar... acordava, tomava banho, me vestia, me maquiava, e ficava a noite inteira de pé, cansada, voltava pra casa e dormia, o dia todo dormia, e de noite, de novo, acordava, maquiagem, banho etc, e assim eu nunca saía. Não sabia o que era dia o que era noite [Estorias de vida, Moldava, D2] Embora as garotas nigerianas aparentemente tenham mais liberdade, pois são mais livres para se deslocar, visto que trabalham, normalmente, em uma cidade diferente em relação a cidade que vivem, e nestes longos trechos onde viajam sozinhas, ou ficam nas ruas, ou saem com privados (por telefonemas ou encontros), e quanto à questão de quem administra os ganhos, existe também um forte controle, principalmente com as garotas novas ou as que são mais teimosas, as menos “confiáveis” . Uma vez até, a unidade de rua estava fazendo uma interceptação, e chegou um que começou a bater... bem, talvez alguns episódios sejam esporádicos, mas estão se repetindo, o que acontecia no inicio onde os albaneses eram muito rígidos Daí se tinha um 24 controle ou não, era indireto, e não incomodava as UDS (Unidades de rua), mas agora parece que deve voltar esta controle. Talvez dependa da área, e acho que dependa também das garotas, pois se elas são jovens, mais forte é o controle [Testemunha, T2, Caritas] A partir do momento que ela me levou pra rua, eu não falava mais com ninguém, porque eu tinha medo dela. Ela ficava sempre ali, me vigiando, vendo o que eu estava fazendo. Até pra ligar pra minha família era impossível. E eu continuava ali, mas depois de uns 5 ou 6 meses que ela não ia pro trabalho, então, ela não trabalhando mais, ficava em casa. É, porque antes ela trabalhava comigo, me perguntava se eu queria ligar pra minha família, quando chegava em casa, eu comprava a recarga pro celular dela e ligava. Eu colocava no “viva voz” assim ela também escutava [Estorias de vida, Nigeriana, D6] Ficavam rondando, olhando. Até os clientes me contavam. Uma vez quis me bater, gritava comigo, e se não respondia, minha prima me dizia “responde se não quiser apanhar” Então eu disse “oi”, porque se você fica quieta, você apanha [Estorias de vida, Moldava, D2] Isso, dava tudo pra ela [maman ndr], depois ela ainda revistava tudo, a bolsa e tal pra ver se tinha mais dinheiro, se não achava nada, te devolvia a bolsa. E começava a gritar que o dinheiro não bastava, trabalha mais, tem que trabalhar mais... na rua, tinha sempre alguém pra vigiar se estou trabalhando, o quanto estou trabalhando, e contavam tudo pra ela, e quando vou trabalhar, a maman me da um celular, me avisa quando tem batida policial, aí dependendo, eu vou pro trabalho, tranquila. Quando chegava em casa, ela controlava até quantos clientes ligavam pra gente… não posso porque tenho medo, porque minha maman é muito má, e o seu marido também [Estorias de vida, Nigeriana, D4] Eles é que me levavam e me buscavam (do trabalho). Sim, eu os via sempre fazendo a ronda, de carro, olhavam, me chamavam [Estorias de vida, Romena, D3] No caso das nigerianas, o controle é feito por outras mulheres nigerianas: as controladoras, ou seja, prostitutas nigerianas que estão mais adiantadas com o pagamento de suas dividas, e portanto, estão em um grau mais avançado de suas “carreiras”; e outras maman proprietárias dos lugares pra alugar: Neste lugares, tem sempre uma prostituta mais velha, que já está quase terminando de pagar sua divida, então a maman diz a ela “vai você, você já tá terminando de pagar sua divida mesmo, assim você vigia a garota pra mim”, e depois, esta será uma que, no final, quando tiver acabado de pagar a divida, vai ser ela a futura maman de outras garotas, a mais velha das prostitutas ou a proprietária do ponto, pois tantas cafetinas que mandam suas garotas trabalhar fora de Turim, recorrem à outras cafetinas que possuem um ponto chamado joint, que, por sua vez, a cafetina paga pra por a garota ali pra se prostituir. Por isso, às vezes o controle dos joint é feito pela “segunda cafetina” [Testemunha, T8, Policia Local] 25 No caso da exploração das garotas do leste europeu, porém, o controle é feito formalmente pelos homens – namorado, explorador ou seus subordinados – não podendo faltar as formas mais informais de controle também, pelas garotas de confiança, também exploradas, mas com uma relação privilegiada com o explorador. Geralmente, as romenas moram com os namorados, o namorado também passa pra controlar, com a desculpa de ir falar um “oi”. Passa muitas vezes pra ver se estão ali no ponto. Depois comenta: “mas porque você demorou assim tanto com um cliente?”, mesmo assim, elas continuam ali [Testemunha, T8, Policia Local] Uma vez ele me bateu, só porque eu falei com um cliente pela internet, sabe, eu confiava na minha prima, mas ela tinha entrado com os albaneses, já tava acostumada com eles, não tava do meu lado, ficava do lado deles. Qualquer coisa que eu fizesse, imediatamente ela ia contar pra eles. Então, eu não sabia que a minha prima me traía Eu contei pra ela “é, eu falo com os clientes pela internet”. Imagina, naquela época lá, não se podia nem falar, nem dar o telefone pros cliente e falar pela internet. Eu confiava nela. Quando contei pra ela, ela disse “e agora o problema é só seu” [Estorias de vida, Moldava, D2] As relações fora do trabalho parecem limitadas, para todas elas, independentemente da nacionalidade, aos protagonistas do mercado do sexo – exploradores e exploradoras, clientes “apaixonados”, outras prostitutas -, mas hoje, assim como há dez anos atras, as garotas do leste europeu aparecem mais sozinhas, sem nenhum tipo de conforto, do tipo, amizade. As nigerianas, etc, parecem encontrar, com maior facilidade, amigas com quem possam contar, embora devam sempre selecionar, cuidadosamente, suas relações: […] Daí fiz amizade ali [na rua ndr.], aí pedi que me ajudasse a mandar dinheiro vez ou outra pra minha mãe, só que a mulher que me trouxe pra cá não sabia disso [Estorias de vida, Nigeriana, D6] Tinha alguém em quem você podia confiar? Tipo, aquele dia que você diz “hoje não aguento mais, tenho que conversar com alguém”, pra desabafar com alguém? Não, não conseguia falar, eu tinha medo que eles contassem tudo pros albaneses, e então, eu nunca abria a boca, se abrisse, era só pra falar besteira, só isso [Estorias de vida, Moldava, D2] As albanesas de hoje, embora seriamente exploradas e controladas, desfrutam – quando são consideradas confiáveis – de uma liberdade inimaginável no passado, por isso pode acontecer que os exploradores deixem que elas saiam com um cliente apaixonado, desde que a situação permaneça sob controle e não se torne “perigosa”. Com relação às razoes para tal tolerância, podemos hipotizar que se trate de uma forma estratégica de gratificação para conseguir ter as garotas ligadas a eles. […] Um cliente meu comprou um celular Samsung Galaxy pra mim, porque eu não tinha dinheiro pra comprar um, também porque ele tava apaixonado por mim e queria me ver sempre, praticamente, ele me deu o celular só por causa do skype. Com este telefone 26 dava pra ouvir radio também, então eu pegava um ônibus, qualquer um, dava um role pra me distrair e depois voltava pra casa, me arrumava e depois ia trabalhar. Então, a diversão era sair com este cliente ou dar um role de ônibus, porém, eles sabiam que este cliente me levava sempre pra passear, seja o traficante (explorador, ndr), que o policial [namorado, ndr.] que é uma pessoa que cuida de mim, de fato, se alguma vez eu precisasse, o próprio traficante dizia “mas porque você não liga pra aquele lá, e fala pra ele vir te ajudar”, de fato, pro traficante não era um problema, mas o policial dizia “fala pra ele calar a boca” [Estorias de vida, Albanesa, D1] 1.3.6. A saúde na exploração Experimentar o que é a prostituição de rua em situação de trafico de pessoas, significa submeter-se a condições de vida e de trabalho que possam comprometer a saúde Por uma questão de clareza de analise, podemos dividir os fatores de risco em quatro tipos diferentes, relacionados em dimensão entre eles: ambiente, exploração, cliente, violência de gênero O primeiro tipo tem a ver com o ambiente, ou seja, com as condições de trabalho. Trabalhar na rua, de pé, por longas horas, ou então ao relento, ou debaixo de chuva, comendo pouco e mal, tudo isso resulta em um inevitável acumulo de cansaço e de stress e uma consequente diminuição da imunidade. Somado a isso, o tipo de trabalho que fazem, que facilmente pode levar à inflamação do aparelho genital, podendo piorar devido à falta de condições de limpeza e higiene adequadas. Em relação aos consumos “de risco”, com todas essas estorias contadas pelas garotas entrevistadas, esse trabalho as poderia levar (o condicional é obrigatório) a considerar com maior frequência os problemas ligados ao alcoolismo, ou às drogas. Pode acontecer de os clientes oferecerem drogas a elas, mas aparentemente, é mais provável que elas sejam induzidas a consumir álcool – é mais barato e mais acessível – e que por vezes, pode se tornar um instrumento para se entorpecer e tornar o momento presente menos insuportável: Às vezes, quando ia trabalhar, bebia álcool, cerveja, pra não pensar muito. Todos os dias, quando penso na vida que faço, bebo, e choro, choro porque tenho que estar sozinha num quarto, e de pensar nisto, choro, choro [Estorias de vida, Nigeriana, D6] […] Meu corpo estava pesado, não sentia mais nada. No começo sim, bebia com gosto. Depois, minha prima também começou, aí, toda noite tava as duas, bêbadas Eu bebia bastante junto com ela. Eles confiavam nela, o que fazia uma, fazia a outra [Estorias de vida, Moldava, D2] O risco de alcoolismo é maior pra quem trabalha nos night clubs, onde as garotas são obrigadas a beber com os clientes o maior tempo possível, fazendo faturar também o proprietário do bar. Todas as condições citadas acima – cansaço, frio, álcool, má alimentação, etc. - são agravadas pelas condições de exploração e pela impossibilidade de escolher o que é melhor pra si: limitar o numero de horas ou a quantidade de clientes, ou simplesmente, não trabalhar quando não se está bem, ou cansada, ou está muito frio. Me deu um chute na barriga (um cliente), eu fiquei assim (se inclinou pra frente, segurando a barriga com a mão, ndr) e eu disse à minha prima “olha, tá doendo muito, vou pra casa, estou com muita dor, já fui operada”, “não, você quer ir pra casa porque não 27 tá a fim de trabalhar”, bem, isso ela me dizia sempre, mesmo quando eu não estava bem, e aquela mulher, quando eu estava gravida, vomitava, lá fora chovia, ventava, eu não estava bem, vomitava, meia hora depois, de novo, não sei porque, vomitava 30 vezes ao dia, tantíssimo. E dizia “olha que eu não to bem, posso ir pra casa?”, “Não, porque agora eu to precisando de dinheiro, 2 horas não é nada, não vai morrer por isso” [Estórias de vida, Moldava, D2] Mesmo se você não estiver bem, tem que ir trabalhar do mesmo jeito, é sim, igual uma vez, quando eu ainda não tinha os documentos, então eu tinha medo da policia me pegar e me prender ou levar pra algum carcere. Então, eu estava com um cliente, no carro, chegou a policia, e eu fugi... quebrei o pé.. e então não conseguia caminhar direito. Cheguei em casa e ela me deu um remédio.. pra poder ir trabalhar naquele dia mesmo. “Chega de reclamar, não tá andando direito, mas vai ter que trabalhar do mesmo jeito” [Estorias de vida, Nigeriana, D6] No caso de mal estar ou doença, quem explora (independentemente da nacionalidade) não quer ouvir desculpas: antes de tudo, o trabalho. Muito raramente os médicos são chamados, e os remédios, são improvisados, e pro hospital, tem que ir sozinho, não tem outro jeito. E mesmo em raros casos de hospitalização, aqueles que exploram, começam a pressionar a garota pra ela pedir pra ter alta, mesmo contra os conselhos do medico, para poder voltar imediatamente pro trabalho. Não estava me sentindo muito bem, tomei remédio, mas não passou. Fiquei mal, não conseguia nem andar, mas me mandavam pro trabalho do mesmo jeito. Um dia, eu não estava mais aguentando, não conseguia nem levantar da cadeira, porque não estava bem mesmo, então ela (cafetina, ndr) chamou uma ambulância e me levaram pro hospital. No hospital me disseram que eu tinha tido um aborto incompleto... Sim, fiz uma cirurgia. Fiquei ali por 3 dias, pois ainda não estava em forma. E ela, quando vinha me ver ou me ligava, dizia “você vai falar pra eles (médicos, ndr) que quer ir pra casa, diz que você quer ir embora” …e eu dizia que não tinham me dado alta ainda.. “vai lá falar pra ele, se não eles vão ficar te segurando aí por vários dias, vai lá falar...” Ela me perturba todos os dias, insiste que tenho que falar pro medico deixar me dar alta, e eu já disse que não posso, eles não deixam ainda. E se eu quiser ir embora, tenho que assinar um documento. E ela dizia, “assina, assina o documento” e eu assinei, é. Naquele dia, cheguei em casa, e fui direto trabalhar, naquela mesma noite!! [Estorias de vida, Nigeriana, D6] Minha nossa senhora, que canseira!! Eu tinha que fazer uns exames de saúde, sabe? E ela (cafetina, ndr) disse pra eu ir pro hospital Amedeo de Savoia, fazer os exames de sangue e tudo mais. E quando eu tinha que ir buscar os resultados, ela desconversava. “Então, vamos?” “Amanha, amanha, amanha a gente vai..” Aí ela foi com a minha prima e, quando voltaram, eu tava curiosa pra saber o que era que me incomodava tanto... aqui embaixo (problema ginecológico, ndr), aí ela disse “fica tranquila que tá tudo bem, tudo bem”, depois, quando eu estava na comunidade, fui me controlar e soube que eu tinha uma doença, clamídia, me curei. Não, não me levavam pro medico, quer dizer, me levaram uma vez só, quando eu estava gravida, e uma outra vez quando me operaram. Apendicite. Se não, eu morria ali [Estorias de vida, Moldava, D2] Eles é que iam comprar os remédios, mas era você quem pagava [Estorias de vida, Nigeriana, D5] 28 A terça dimensão é aquela relativa ao comportamento dos clientes, incluindo também os turistas sexuais: São muitos (clientes que veem pra cá pra fazer turismo sexual). Eles não nos contam, mas é possível intuir por varias coisas. Quando perguntamos de suas viagens: “Sim, já fui pra Tailândia”, então, é obvio. Ou então, veem de países onde houve alguma epidemia de recente, daí nos contam.. Atendemos uma quantidade de turistas, que, certamente, uma pequena parcela, são turistas sexuais (difícil quantificar o numero). Uma pequena parcela de pessoas que foram pra China, Tailândia, Egito, Marrocos; já aconteceu de alguma mulher ter ido à Jamaica ou em países cubanos, enfim, existem também as turistas femininas. Nenhum deles vai dizer: “sai com crianças”. Podemos imaginar, pois se tratam de homens de meia-idade, que frequentemente vão à Tailândia, mas dizem que vão pra lá porque as mulheres lá são muito agradáveis, porém fazem sexo 10 vezes ao dia. Alguém pode ser soro positivo. Daí, vai pra lá, porque desta maneira.. alguém é soro positivo, justamente por isso. É raro, mas já aconteceu de um homem ir procurar outro homem em Cuba, mas é raro [Testemunha, T4, Ambulatório]. Como sabemos, existem muitos homens que pedem pra fazer sexo sem proteção, estando dispostos a pagar muito mais em troca do que querem. A oportunidade de ganhar mais dinheiro pode ser uma forte tentação para as garotas mais severamente exploradas, principalmente em noites com poucos clientes. O medo de sofrer violência como consequência do pouco ganho, pode realmente levá-las a aceitar. No entanto, as pessoas entrevistadas mostraram-se muito cientes dos riscos e disseram que nunca o fizeram, apesar que, dizer não, pode também provocar reações até violentas da parte dos clientes. Isso, muitos vem e dizem “te do 500 euros pra fazer sem camisinha, é como fazer sem colocar a luva” e eu dizia, “não, não", abri a porta do carro e desci imediatamente. Eu sei que vão me chamar de “puta”, “biscate”, e então eu disse “obrigada, vou para um outro lugar” [Estorias de vida, Nigeriana, D4] A respeito das mulheres que trabalham nas ruas, o entendimento delas em relação às possíveis consequências do sexo sem proteção, foi confirmado por uma das testemunhas privilegiadas, mesmo parecendo contraditório, com alta frequência de abortos relatados em outro depoimento: Com respeito ao conhecimento que elas tem (com relação a prostituir-se), existe uma conscientização, não digo de todas elas, mas sabem que existem doenças silenciosas. Por isso, ou você está desesperada e tá precisando de muito dinheiro, então aceita de não usar camisinha, mas se não, as nigerianas dizem que se os clientes pedem pra não usar, elas não fazem. Existe um aumento da conscientização Assim relata a Unidade de rua [Testemunha, T2, Caritas] […] Na minha experiencia, acontece muito de ouvir as estorias destas mulheres que falam de varias experiencias de interrupção da gravidez, feitas também em modo clandestino, sem uma estrutura hospitaleira, mulheres que contam que tiveram quatro, cinco, seis, oito, dez abortos (Testemunha, T6, Assistente Fanon] 29 Dizer não, no então, nem sempre é suficiente porque, as garotas contam que, muitas vezes, a camisinha fura, ou então casos de clientes que tentam tirar a camisinha sem que a garota perceba: Tinham uns idiotas de merda que tiravam a camisinha sem que você percebesse [Estorias de vida, Moldava, D2] […] Mas eu nunca fiz sexo sem camisinha, é que muitas vezes, ela fura, furo porque o cliente quer fazer com força, não sei como explicar, mas muitas vezes fura [Estorias de vida, Nigeriana, D5] Sim, uma vez, em 2010, a camisinha furou. Eu trabalhava em Novara, o cara era um marroquino, eu acho, e eram em dois amigos, e levou eu e uma amiga pra casa. A camisinha furou, e ele.. Sim, sim, ele gozou dentro. Eu disse “não”, e ele disse que se não deixasse, ele não levaria nem eu nem minha amiga de volta pra Novara. Porque, na verdade, ele nos levou pra Trecate, perto de Novara. Depois deixou a gente na estrada em Trecate. Caminhamos a pé até achar uma carona. Naquele mês, ou um mês depois, eu não lembro, não descia. Daí uma amiga me deu um remédio pra tomar, mas eu não tinha dito nada ainda à pessoa que me trouxe pra cá, porque, se digo, ela vai pensar que eu to com um “black boy” aqui dentro. Elas são assim.. [Estorias de vida, Nigeriana, D6] Este ultimo depoimento, fala sobre um cliente que continua a relação mesmo com o preservativo furado (causando uma gravidez indesejada) e não paga, pede de volta o dinheiro e deixa na estrada, longe do lugar de trabalho, seja a garota, seja a sua amiga, e eis que é introduzido o quarto fator de risco: a violência de gênero Violência não só de quem explora, mas também de muitos clientes, os quais agem com violência contra as mulheres que trabalham na rua pois são mulheres prostitutas Tinham uns clientes gentilíssimos, eram muito educados, mas também tinham uns bem babacas, uma vez me roubaram até o celular, e me bateram também. Um cara idiota, e eu tinha acabado de tirar os pontos da cirurgia [Estorias de vida, Moldava, D2] [...] Tem muitos que veem pra pegar droga, outros veem pra transar, muitos que se drogam, depois transam e ainda roubam o nosso dinheiro, batem na gente, levam tudo, bolsa e tudo mais, e vão embora com o dinheiro. Eu sempre choro, choro. Vou pra casa e conto pra minha cafetina, que o cara pegou a droga, a minha bolsa, me bateu e foi embora. E daí minha cafetina me bate mais ainda porque eu deixei a droga na bolsa... e por muitas outras coisas, quando drogados, esses marroquinos que bebem álcool, eles vem pra rua, e quando você acaba de transar com eles, eles pedem o dinheiro também. E se você diz “não, não posso”, já tem um com um pedaço de pau assim (e faz o gesto de quem bate com um bastão, ndr). Tem um drogado que eu atendo na rua, e depois de duas horas transando, eu não fiz nada, só disse “ to cansada disto, posso ir embora”! E ele “eu não posso te levar agora, fica comigo até eu acabar tudo!” e eu disse, “já fiquei duas horas com você, to cansada, deixa eu ir embora!” e o senhor pega a pistola e mostra pra mim, “se você for então vai morrer agora”, então eu disse “ok” e fiquei lá Depois eles foram embora e ainda levaram todo o meu dinheiro.. e você encontra tanta gente assim... da vontade de sair batendo [faz o gesto de quem vai dar um soco, ndr] [Estorias de vida, Nigeriana, D4] 30 Na rua se vê de tudo. Por exemplo, tem aquele que é bom, como uma vez que eu estava trabalhando na rua, veio um homem que tinha me visto, viu que eu estava ali já há um tempo e nada, e se não trabalho, depois quando chego em casa, é sempre um drama, eu choro.. daí esse homem veio, não fez nada, viu a minha situação, e me deu 100 euros, assim, sem eu precisar fazer nada pra ele, e me falou pra ir embora pra casa. Cem euros assim, por nada. Ele era bom. Tem gente assim, mas também tem gente que, não só comigo, porque eu tenho também uma amiga que, antes a gente trabalhava juntas, próximas uma da outra. Um homem levou ela, e bateu nela e depois ele.. roubou tudo, dinheiro, celular. Comigo também aconteceu uma vez em Novara, saí com um homem, ele bateu na minha cara, depois pegou todo meu dinheiro, celular também, tudo. O motivo porque eu estou cansada de trabalhar com isso, é porque uma amiga minha morreu, mataram ela na estrada ali, e a pessoa que tinha saído com ela, tinha chegado em mim antes, imagina se eu tivesse saído com ele, talvez seria eu a vitima … entende? [Estorias de vida, D6, Nigeriana] Como sabemos, a categoria dos clientes do mercado do sexo – cujo aprofundamento se encontra no quarto capitulo desta pesquisa – é muito heterogênea, e é potencialmente representada em uma linha que vai desde o cliente respeitoso àquele violento, passando pela figura, não menos ambivalente, do cliente “salvador”. Nem todos são violentos, mas o próprio fato de que a violência represente uma constante nas experiencias narradas pelas mulheres que trabalham na rua, nos faz refletir como, e questiona os modelos culturais que são cenários para tais dinâmicas, através da ligação aos processos de construção social do homem, da mulher, das relações entre os gêneros e da diferença entre “mulheres de bem” e “mulheres indignas” 1.3.7. A prostituição em locais fechados. Apartamentos e bares O cenário da prostituição no apartamento é mais heterogênico em termos de desempenho, custos e protagonistas. Existe também uma hierarquia muito clara entre as trabalhadoras do sexo, as quais se dividem em (Costantini, 2010): 1) escort de luxo – tarifa por tempo, a qual inclui a experiencia em si (noitada, jantar) além do ato sexual, tarifa a tempo, chamada pelos clientes de “girlfriend experience”; 2) acompanhantes escort, chamadas também de “hostess” ou “modelos” – mulheres biológicas ou transexuais que podem contar com uma agencia de intermediações – a tarifa é sempre por tempo e o serviço sexual pode acontecer em casa ou na casa de clientes ou em apartamentos dedicados a isso; 3) escort, também chamada pelos clientes de “apartamento”, ou “loft” - cuja tarifa depende do serviço prestado, como as prostitutas de rua que os cliente definem “on the road”. Os grupos criminosos envolvidos na exploração da prostituição, muitas vezes transnacional, são formados por romenos, albaneses, moldavos, ucranianos, sul americanos, e chineses, assistidos em atividades de apoio organizada por agencias ou indivíduos (incluso os italianos). Normalmente, no segundo ou terceiro nível de hierarquia é que encontramos formas mais ou menos pesadas de exploração: no caso das acompanhantes escort existe uma exploração quando existe a intermediação de uma agencia, enquanto que, no caso das “garotas de apartamento” o mesmo acontece devido à presença de outras pessoas desconhecidas no apartamento. Também nos bares, assim como nos apartamentos, o nível de exploração é variável, principalmente nos locais a consumo interno (Costantini, 2010), e as prostitutas aliciadas são trabalhadoras que chegam de outros setores do mercado, como a rua ou o apartamento, por vezes com um baixo poder contratual, além de serem transferidas com frequência A alta rotatividade das prostitutas, no entanto, é um dado constante nos diferentes setores do mercado do 31 sexo – rua, apartamentos, bares – usada como um instrumento pelos exploradores, não só pra satisfazer os gostos dos clientes, mas também para desviar ações de fiscalização e evitar que as garotas se tornem potencialmente autônomas, construindo relacionamentos de confiança com os clientes ou com outras realidades existentes no território As variáveis que ajudam a definir a qualidade do processo migratório, bem como a prostituição, são muitas – idade, proveniência, características das redes ligadas ao trafico de pessoas, tipo de contrato concordado com o traficante, redes de apoio no país de destino, presença ou não de documentos, conhecimento da língua, etc. - e por si só, o setor de mercado em questão não diz nada sobre a presença ou não de exploração, e/ou escravidão Na rua, assim como nos apartamentos e bares, se encontram, portanto, graus de liberdade muito diferentes (Abbatecola, 2012). Até alguns anos atras, nos apartamentos, trabalhavam principalmente garotas brasileiras, colombianas e sul americanas, hoje em dia só tem romenas, polacas e outras garotas do leste europeu. Não tem mais tantas nigerianas, visto que africanas e de pessoas cor, são consideradas como “mercadoria de segunda”, como, de fato, se percebe pelas baixas tarifas cobradas. Um dos entrevistados atribuiu essa diferença do “valor de mercado” baseando-se num fator puramente estético, mas o autor acredita que essa diferença dependa, na verdade, de uma cultura dissimuladamente racista – embora não o admita – onde a dicotomia preto-branco define hierarquias precisas. As modalidades de aliciamento são iguais. Há um fator estético a ser considerado. Nos apartamentos, as garotas são definitivamente mais... não tem nigerianas, pois são as menos populares, são as que custam menos e, fisicamente, não estão à alteza de … é um dado a ser considerado [Testemunha, T1, ONR] Existe uma hierarquia seja na rua, no nightclub e nos apartamentos, sendo que estes últimos representam um setor do mercado onde as tarifas são mais elevadas, pois a mercadoria é “de qualidade”. No entanto, não são segmentos fechados, são comunicantes de tal modo a não ser considerado como necessariamente definitivos: Sob alguns aspectos, o circuito do trafico de pessoas, é diferente (entre apartamento e rua), pessoas e etnias bem diferentes, no entanto, em parte é igual, pois as romenas estão seja nos apartamentos que nas ruas. Existe uma escada pra subir e uma pra descer: se as garotas que estão nas ruas conseguem se emancipar, são agradáveis e já tem uma clientela, elas vão pro apartamento. As garotas que trabalham nos nightclubs e que não aguentam mais, porque não é nada fácil trabalhar ali. Muitas vezes, elas perdem mais do que ganham, pois elas tem que fazer os clientes beberem, tem que fazer toda uma serie de coisas e, se não fizer fizer nenhum programa, no fim da noite, quando for acertar as contas com o patrão, vai ganhar pouco, e nem todas as garotas querem fazer um programa para o patrão, usando o seu cliente; muitas vezes, estas garotas lutam para não pagar o fato de estar em um nightclub, pois tem que ficar ali o dia todo e custa tanto. “quantas garrafas você fez o cliente beber?... então vou descontar da tua paga”. As vezes, as que não saíram com nenhum cliente, arriscam não ganhar nada mesmo, existe um controle muito rígido, pois muitas delas tem contrato de dançarinas, mas sendo extracomunitárias, lhes é concedida uma autorização de permanência com validade de duas semanas, então, existe esse forte controle por parte dos exploradores, pois eles poderiam virar e dizer: “vou te demitir semana que vem”. Então, eles tem um controle muito forte sobre a garota, por isso, muitas delas escolhem ir pros apartamentos ou pra rua, existem situações também que dos apartamentos, vão pra ruas. Por exemplo, neste período de crise, se você conhece o apartamento você vai; o apartamento é um circuito muito mais discreto e desconhecido do que a rua, e então, tem garotas que estão em apartamentos, mas descem na rua pra ganhar mais. Então, se trata de uma estrada que sobe e desce, mesmo os circuitos sendo diferentes [Testemunha T1, ONR] 32 As redes que controlam os apartamentos, nos conta uma testemunha, não são diferentes daquelas que controlam a rua, embora a organização da prostituição nos apartamentos tem uma estrutura mais complexa, se trata, na verdade, de níveis de comunicação diferentes e não exclusivos (podem trabalhar na rua e no apartamento no mesmo período) : […] A garota bonita que já tem a sua clientela formada, sempre de acordo com seu namorado-explorador, decide sair das ruas. Faz sua propaganda através da internet e trabalha só com hora marcada [Testemunha T8, Policia Local] Os apartamentos, portanto, representam um circuito aparentemente privilegiado do mercado, em relação ao da rua, mas a diferença na qualidade das condições de trabalho custa caro pras garotas exploradas, sujeitas a níveis de controle mais rigorosos e redução de oportunidades de escapar. 1.4. A pesquisa na Romênia 1.4.1. Mudanças. 2007, o ano da virada Também na Romênia, as pessoas entrevistadas como testemunhas privilegiadas, indicam o ano de 2007 como o “divisor das águas”. A entrada na Comunidade Europeia trouxe profundas mudanças: desde então, atravessar a fronteira ficou mais fácil, e isso pôde, de qualquer forma, forçar as redes criminosas a rever as próprias estrategias de aliciamento, tornando-os mais “suaves.” Não tenho certeza se se trata de um fenômeno em crescimento ou em diminuição.. mas acho que o trafico está mais visível Agora, obviamente, é mais fácil atravessar as fronteiras usando somente o documento de identidade. Por outro lado, nos outros países europeus, existem importantes assentamentos romenos e, imagino que existam redes criminosas já bem organizadas e estruturadas. Sei que hoje se fala de novas tendencias, e de um aliciamento mais suave, assim como as formas de exploração, baseadas mais no abuso emocional e na manipulação ao invés da violência física Mas se eu tiver que me basear nos casos tratados por mim ou por outras organizações, os métodos de aliciamento e as formas de exploração variam muito. Nós trabalhamos com mulheres exploradas mas, ultimamente, tem vindo sempre mais pessoas do sexo masculino, vitimas do trafico de pessoas, obrigados a cometer crimes, a pedir esmola ou são explorados no mercado do trabalho (Testemunha, T1, Al., Psicologa). Antes de 2007, ano em que a Romênia entrou para a Comunidade Europeia, os métodos eram baseados na violência, nos raptos e sequestros, embora esses métodos não sejam completamente desaparecidos. Depois de 2007, observou-se uma sofisticação nos métodos, passando da força física para um constrangimento a nível emocional. O ponto crucial desta manipulação psicológica e emocional é a vulnerabilidade do gênero (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). Existe uma tendencia para uma especie de “acordo” entre o explorador e a vitima, uma especie de “consenso”, por exemplo, no que diz respeito à pratica da prostituição dentro de certos limites legais; os exploradores encontram o jeito certo para “convencer” as 33 garotas e, num certo sentido, elas não se sentem exploradas (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa). Os exploradores usariam, hoje, a manipulação emotiva e psicológica, para convencer as garotas a cumprir as regras, tornando-as cúmplices e pouco cientes do nível de exploração ao qual estão sendo submetidas, esta representação do fenômeno também foi evidenciada em entrevistas feitas na Itália e na Espanha. As fronteiras não são mais um problema, as redes tornaram-se mais móveis. Uma outra mudança consiste no fato de que as redes criminosas pararam de atuar em um único país... agora atuam em mais países, buscando destinações menos conhecidas, mas que tem grande procura. Por exemplo, tendem a deslocar-se da Espanha para o Reino Unido, ou da Itália para a Suíça, e aos países do norte (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa). Enquanto que, até a primeira metade dos anos 10 do seculo XXI, as garotas repatriadas para a Romênia vinham, principalmente, de países como a ex-Iugoslávia, a partir de 2004-2005, as metas principais começaram a ser a Itália e a Espanha, seguidas, nos últimos anos também, pelo Reino Unido, Alemanha e outros países do norte da Europa. Se, no inicio, quando comecei a trabalhar, a maior parte das vitimas vinham da exIugoslávia, a partir de 2004-2005, a Espanha e a Itália começaram a se tornar países de destino para a exploração sexual, e continuam sendo as principais metas; por outro lado, mais recentemente, os países do norte da Europa representam novas metas, e aumentou também o trafico interno de pessoas para fins de exploração sexual (Testemunha, T3, GSA, Presidente Associação). Embora Itália e Espanha continuem sendo principais metas de destino, as rotas foram mudadas. Em 2011 e 2012 apareceram novos destinos, mais atraentes, como o Reino Unido e a Alemanha, os países do norte, não muitos, a Bélgica inclusa. No entanto, continuamos a falar de Espanha, Itália e Grécia (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora). Um novo dado relevante, está relacionado ao fato que a Romênia, de país de origem, passou a ser país de destino, com novos casos de exploração sexual envolvendo garotas da Moldávia Acredito que o fenômeno do trafico de pessoas tenha aumentado desde quando eu comecei a trabalhar nesta área Apesar de a Romênia ser um país de origem, tornou-se também um país de destino para as vitimas de exploração sexual, provenientes da Moldávia (Testemunha, T3, GSA, Presidente Associação). O trafico interno de pessoas – em aumento – envolve garotas cada vez mais jovens, às vezes muito jovens (12, 13, 14 anos), as quais são “testadas” e selecionadas no mercado interno, assim, as “melhores” são direcionadas aos mercados externos, assim que atingirem a maioridade. 34 As vitimas são cada vez mais jovens (12, 13 o 14 anos…menores). Estas menores são primeiramente exploradas no mercado interno – uma especie de treinamento e processo de aprendizagem, apoiadas e encorajadas pelo explorador que, faz de maneira que ele se torna “protetor” delas, uma pessoa que cuida delas – e as melhores são “promovidas” para o trafico externo e continuam a serem exploradas também no exterior. (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa). Essencialmente, quando falamos de trafico externo de pessoas, falamos de pessoas adultas, pois, por lei, é mais difícil fazer um menor de idade atravessar a fronteira. Como modelo, algumas das vitimas adultas exploradas no exterior foram anteriormente exploradas na Romênia por muitos anos, quando eram menores de idade, para depois “mudar-se” para o exterior uma vez que elas tenham atingido a maioridade (Testemunha, T1, Al, Psicologa). Sobre os garotos explorados, temos pouquíssimas informações, exceto que se trata de menores de idade, geralmente “alugados” por uma semana por clientes homens. Se observarmos a situação dos homens (garotos) explorados, as pesquisas nos mostram que se trate, principalmente, de menores de idade. As entrevistas feitas na Itália, mostraram que a forma de exploração dos garotos é diferente das garotas. Nos falaram de situações nas quais os “clientes” podem “alugar” um garoto por uma semana, hospedando o garoto em questão na própria casa e fazendo com que ele se torne disponível o tempo todo para realizar eventuais desejos sexuais. Também neste caso, o cliente é do sexo masculino. Portanto, seja no caso das garotas que dos garotos, encontramos um elemento comum: o cliente do sexo masculino (Testemunha, T4, LA, Pesquisadora). No caso de garotas menores de idade, existe muitas vezes, a cumplicidade da própria família – a qual recebe uma gratificação econômica. O período da exploração no território nacional é utilizado pelo explorador para construir uma relação de confiança e para inculcar, gradualmente, a ideia de um futuro no exterior como um objetivo tentador. Eu tive que lidar com casos em que as famílias eram conscientes do fato que a filha deles era vitima de exploração e aceitavam a situação em troca de dinheiro (Testemunha, T7, MB, Assistente Social). Se se trata de menor de idade, os documentos são falsos, e existe a cumplicidade da família buscando criar uma relação de confiança entre o menor (garoto ou garota) e o estranho. Mas, por esse motivo, os menores são explorados primeiro na Romênia, para consolidar a relação entre o explorador e a família (que normalmente recebe uma gratificação econômica se a filha/o filho trabalham bem), e para construir esta relação de confiança (projeto de vida juntos), enquanto a ideia de ir trabalhar no exterior é inculcada gradualmente... com promessas de maiores ganhos, melhores oportunidades, mais dinheiro para a família.. até elas atravessarem a fronteira (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa). 35 1.4.2. Organização das redes e estrategias de aliciamento Os exploradores são geralmente compatriotas, organizados em grupos fundados na família, que agem com ajuda de apoios locais e cúmplices localizados por todo o território Os papeis são claramente divididos e nada parece ser nada improvisado ou feito por acaso. Um dado importante é que, às vezes, na rede criminosa, estão envolvidos também a família da garota explorada ou até mesmo o marido. […] Parece que ser vendida ou explorada pelo marido ou por alguém da família, não seja uma exceção (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). A própria noção de trafico de pessoas pressupõe a existência de um grupo organizado. Estes grupos podem agir a nível nacional ou internacional, e podem incluir membros da própria família, e até membros da família da vitima. Tivemos casos em que os exploradores eram os próprios pais da vitima (Testemunha, T6, MM). Falando da Romênia, os grupos são bem organizados, muito familiarizados com o sistema de trabalho, o que fazer, quem procurar, como usar discrição no exterior, e como se infiltrar sutilmente na vida das potenciais vitimas; são muito bem organizados a nível nacional, contam com apoios locais. Existem muitos casos onde, infelizmente, as pessoas da família fazem parte da rede (Testemunha, T7, MB, Inspetora de Policia). […] As vezes, os exploradores vem do circulo interno de amizades, da família ou de um grupo de pessoas que a vitima conhece. Por exemplo, nas redes podemos encontrar uma família inteira envolvida no trafico de pessoas (Testemunha, T9, B., Policia). O racket criminoso é organizado como uma rede, mesmo nos países de destino, com divisões das funções das tarefas, a fim de garantir um deslocamento eficaz pelo território e uma gestão estratégica do contrabando de migrantes e do trafico de pessoas. Podem ter quartel general deles em Londres, mas a exploração pode ocorrer em outro lugar. Coordenar tudo de forma centralizada torna mais fácil para garantir o tempo necessário para que a vitima se acostume com o que esta acontecendo, e para segurar as rédeas de toda a operação (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora). O aliciamento é realizado, portanto, por pessoas – homens ou mulheres – diretamente envolvidos na exploração. Todas os depoimentos recolhidos, seja na Romênia que na Itália, convergem para descrever quem pratica o aliciamento como uma pessoa próxima, presente no circulo social da vitima – conhecido, vizinho, amigo, namorado, parente, etc-. Ou então uma pessoa dotada de grandes capacidades manipuladoras e capaz de se infiltrar na vida da garota, buscando ganhar sua confiança. 36 O aliciamento é feito por homens ou mulheres, membros da família, ou então um amigo da escola, ex-colega, etc., pessoas da comunidade que tem um determinado papel na mesma; pessoas que voltam do exterior com uma situação econômica muito melhor e que aliciam pessoas. Neste ultimo caso, funciona como um exemplo positivo, estoria de sucesso! A estoria de sucesso ainda cola por aqui! Em muitos casos, as famílias sabem quem é a pessoa... daí, devagarinho, e com jeitinho, esta pessoa consegue se tornar um amigo de confiança da família, sempre disponível e que promete coisas. Por isso, a vitima em potencial não espera o pior de uma pessoa assim tão boa e confiável (Testemunha, T1, Al, Psicologa). Um dos pontos fortes de quem alicia consiste em convencer, a garota em questão com estrategia e paciência, a participar do projeto migratório: entram na vida delas, procuram descobrir seus pontos fracos e suas necessidades, se aproveitam de seus desejos – dinheiro, afeto ou ambos – fazendo de maneira que pareça que a “escolha” de sair do país seja delas, como se elas tivessem tido a liberdade de decidir isso, apesar de o que foi prometido, nunca corresponde à realidade: Descrevem uma situação a elas completamente diferente do que elas encontrarão, dão a impressão de total liberdade de escolha em relação a aceitar ou não a incrível quantidade de dinheiro que sempre faz parte da situação descrita (Testemunha, T1, Al, Psicologa). São duas as principais estratégias de aliciamento: oferecendo um emprego atraente e bem remunerado, ou fingindo em ser o “príncipe” encantado. No primeiro caso, quem alicia conhece muito bem as dificuldades e as necessidades da garota, e se aproveita disso, oferecendo soluções sob medida. Para confundir a garota, eles as apressam, forçando-as a decidir rapidamente, sem um tempo para pensar com calma ou informar-se sobre a veracidade da proposta. Notamos que a oferta de um emprego muitas vezes é feita por pessoas próximas à vitima, uma pessoa de confiança, que conhece bem as necessidades da garota e lhe propõe um trabalho que se encaixa exatamente com o que ela precisa. Ele diz, por exemplo: “sei que você quer que tua mãe tenha o melhor tratamento do qual ela precisa, aí eu achei este trabalho pra você. Você vai se sacrificar, vai pro exterior, trabalha lá por alguns meses e você vai conseguir o dinheiro para curá-la, ajudá-la” Ou então, “Eu sei que você gostaria que teus irmãos continuassem a frequentar a escola, então eu encontrei a melhor solução pra te ajudar”. Assim, quem alicia, parte do problema que conhece. Além disso, dá pouco tempo para a vitima se decidir: “tem que me dar a resposta até amanha”, ou “tem que decidir até segunda-feira, caso contrario, alguém vai tomar seu lugar, principalmente nos dias de hoje, que muitas pessoas estão desempregadas”. Fazem muita pressão, e as aconselham a não dizer nada a ninguém e de não ir atras de outras informações (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). A oferta é sempre tentadora e decisiva, no que diz respeito a um problema contingente (o tratamento de um parente doente, o dinheiro para os estudos, etc.), e essa pressa de ter pouco tempo pra decidir (“pegar ou largar!”), induz facilmente à decisões precipitadas tomadas sem um maior aprofundamento, sem poder buscar maiores informações 37 Além disso, as vitimas aliciadas provem de áreas pobres, vulneráveis, onde as pessoas estão desesperadas, e uma simples promessa já é suficiente para aceitar qualquer coisa, sem fazer perguntas, apesar de que os trabalhos propostos não exigem qualificações (Testemunha, T9, B., Policia). As propostas de trabalho adquirem credibilidade especialmente à luz da atual crise econômica e da numerosa quantidade de compatriotas que vivem fora do país . Acredito que a principal forma de aliciamento seja a falsa promessa de emprego, tendo em conta que, a oferta de migração de trabalhadores pareça muito mais plausível, especialmente na atual crise econômica na Romênia em comparação com outros países ocidentais onde a situação parece ser melhor. No momento, são mais de 3 milhões de romenos que trabalham fora do país e que devem encontrar um emprego. Por isso, o fato que alguém tenha amigos ou conhecidos que já trabalham no exterior e que possam ajudar a achar um emprego em um outro país é bastante credível, mas as vitimas descobrem a verdade só mesmo quando chegam lá E onde acontece o aliciamento? Acredito que em qualquer lugar, no campo, na cidade (…) O perfil é o de migrante romeno que, no caso das mulheres, significa um nível de escolaridade não elevado (ensino médio ou no máximo, ensino superior). A vulnerabilidade consiste no fato que a pessoa que recebe a oferta normalmente não suspeita de nada, devido ao ambiente em que vive (família desestruturadas ou ausência de alternativas na própria comunidade). Mesmo se algo não parece convincente, será sempre melhor do que eles têm em casa. De uma certa maneira, aceitam a ideia que, uma vez ali no país de destino, elas vão poder administrar a situação à modo delas, ou então que “o diabo não é tão ruim como parece” (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora). A segunda estrategia de aliciamento é a do “príncipe encantado”, do “homem perfeito”, que entra gradualmente na vida da garota, aproveitando-se do seu desejo de amar e ser amada. Conhecemos casos de garotas traficadas onde o aliciamento durou meses, durante o qual o comportamento dele era “perfeito”, muito focado nas necessidades de afeto da garota e esperando um dia ser capaz de melhorar a sua situação, graças a este novo homem que vai resolver tudo. Sabemos de “namorados” que prometiam construir juntos um futuro no exterior, onde encontrariam dinheiro para voltar para a Romênia, comprar uma casa, ter uma família, filhos. Uma vez fora do país, porém, eles diziam à garota que ela tinha que se prostituir, pois as coisas não estavam indo como deveriam, pois ele não estava conseguindo achar um emprego, e então ela teria que “se vender” para salvar a relação, pra salvar ele e ela mesma e continuarem a viver ali. A mensagem era que a mulher teria que se sacrificar para poder continuar vivendo juntos, com a promessa de que ninguém viesse a saber; ela seria considerada uma heroína e teria salvado a situação, e nada poderia comprometer seu relacionamento. A estrategia do “príncipe encantado” ou do “homem perfeito” parece ser muito comum (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). No caso da oferta de emprego, o aliciador/explorador, conhecendo muitos detalhes e vulnerabilidades da vida da garota escolhida, usa sua competência e habilidade manipulativa, aproveitando-se desta vulnerabilidade. Neste sentido, as famílias problemáticas, onde existe essa lacuna de afeto, são ótimos alvos do aliciamento. 38 A segunda estrategia é aquela do namorado, figura ainda utilizada, um pouco menos com respeito aos anos passados; o explorador, como um bom psicologo, sabe bem quem escolher e procura jovens moças e rapazes vindos de lugares onde há carência de afeto familiar, onde não recebem atenção, onde o contexto social distorcido faz com que a potencial vitima esteja a procura de afeto, amor e atenção em outros lugares, com outras pessoas (Testemunha, T7, MB, Assistente Social). […] Estórias marcadas por situações de abuso, violência, ou situações de desigualdade de gêneros no contexto familiar, embora nem sempre se trate de casos de extrema violência ou abuso. Sabemos de casos de negligencia, que induzem crianças, principalmente as meninas, a nunca estarem satisfeitas com os próprios desejos emocionais, e a cultivar um baixo grau de autoestima e uma grande desvalorização de si mesma (Testemunha, T7, MB, Assistente Social). Naturalmente, o conceito de vulnerabilidade esteve sempre incorporado na sociedade, nos modelos culturais e nos processos de construção social da feminilidade e da masculinidade. E então, para melhor entendermos as dinâmicas e as formas de exploração, pode ser útil entender como o contexto cultural consegue dar forma e criar desejos, expectativas, ilusões com respeito às possibilidades, com respeito a si mesmo, ao seu próprio valor. O amor, por exemplo, é um sentimento natural e transversal, mas não neutro. É a sociedade quem define, no espaço e no tempo, as suas características: o que é ou não o amor; quais são os amores legítimos e quais aqueles ilegítimos (portanto, puníveis); que lugar que o amor ocupa em sua própria definição, e nos percursos de vida de homens e mulheres; que os modelos dos papeis de uma casal em seu relacionamento são prescritos de acordo com o gênero a que pertencem. Com respeito a isso, uma das entrevistadas aponta, com perspicácia, que: Parece que a promessa de amor feita pelo explorador, mesmo em situação de exploração, funcione, e isto tem a ver com a dimensão do gênero. O amor é o desejo mais importante para uma garota, e a mensagem que o amor é importante é continuamente transmitida pela mídia, qualquer tipo de amor, sem antes se questionar se a outra pessoa é a pessoa certa ou se ela pode te machucar; muitas vezes, o explorador usa esse tipo de argumento: “te amo, não posso viver sem você. Fica! Não vá embora!”. Para “prender” a pessoa, fazem chantagem emocional (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). Às garotas, futuras mulheres, ensinam que o amor é importante e que deve vir estar acima de qualquer coisa. O amor é importante também porque um homem vai poder te proteger e te ajudar nas dificuldades da vida, e isso poderá ser feito somente por um homem forte e confiante. No caso do aliciamento, o aspecto do gênero é muito importante, principalmente se pensarmos na educação das garotas: pouca importância é dada ao nível de escolaridade, e grande importância é dada ao objetivo de encontrar um homem que as proteja, um marido forte, capaz de proteger a mulher. Enfim, o sucesso de uma garota é medido na sua capacidade de encontrar um bom homem, o homem certo, e se tornar uma boa dona de casa, uma boa esposa e boa mãe As mais jovens não são tão convencidas de conseguir cuidar de si mesmas, de ser independentes e confiantes em si próprias; se prefere projetar esse poder/força para o pai, o irmão, um homem, do que tentar convencer as garotas que elas são capazes de mudar as próprias vidas, de serem independentes e capazes de cuidar de si mesmas (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). 39 A ideia de que a mulher é o sexo frágil, não independente e necessitada de amor e de proteção masculina, foi criada pela sociedade e reproduzida e fortalecida no âmbito familiar, especialmente naquelas famílias onde a divisão de papeis era fortemente marcada, tradicionalmente e desigualmente. Em famílias onde os papeis de homens e mulheres são muito diferentes, ou seja, famílias em que a mãe parece ter pouco poder de decisão, muitas vezes, ela própria é vitima de violência, às vezes até extrema violência física; onde o pai é a figura autoritária que toma decisões, que dá ordens aos outros membros; onde, se o pai vai embora ou morre, o seu papel é imediatamente assumido por outro homem da família, o irmão mair velho ou o novo companheiro da mãe (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). Enfim, os processo de construção social da identidade feminina são também moldados pelas mensagens transmitidas pelos meios de comunicação, segundo as quais, a juventude, a beleza e a sexualidade seriam o único poder verdadeiro de negociar que as garotas têm nas mãos Existe um forte processo de sexualização das garotas transmitido tanto pela TV como pela sociedade […] As garotas são socializadas para se ver como objetos sexuais, como se tivessem valor só nesse setor, e se a família reforça essas mensagens, a vulnerabilidade ao trafico de pessoas, aumenta, porque, infelizmente, a exploração sexual é vista como uma coisa normal (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). O aliciamento é, portanto, facilitado pelos modelos educativos que induzem as garotas a irem buscar o amor – de um homem forte que as possa proteger e cuidar – e a considerar o próprio corpo e a própria sexualidade como objeto de desejo e, então, apostar no seu poder de se vender. Então, quando você é socializada à ideia de que o amor é importante e de que a tua sexualidade é uma importante arma, talvez até a única arma que você tem, fica fácil se transformar em objeto de uma estrategia que age a nível emocional. Muitas das garotas entrevistadas e muitos especialistas apontaram que as garotas queriam ir embora de casa, das condições de vida difíceis, seja por via da violência que sofriam, seja porque eram obrigadas a começar a trabalhar muito cedo para ajudar a sustentar a família (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro). Sem dívida, estes modelos não são, por si só, fatores determinantes, mas sim facilitadores, principalmente na presença de outros fatores de vulnerabilidade, como as dificuldades sócio-econômicas, a ausência de relações afetivas significativas e saudáveis dentro da família, ou também, a incidência de situações de abuso psico-físico-sexual Como já visto antes, de fato, o explorador é: […] Um bom psicologo, investiga e analisa as potenciais vitimas, identifica as vulnerabilidades para depois, com paciência e competência, beneficiar-se (Testemunha, T3, GSA, Presidente Associação). 40 Das entrevistas realizadas na Romênia, assim como nos outros países parceiros, surge a importância do papel da internet no aliciamento destas garotas, e a importância deste instrumento parece estar relacionada com ambas estrategias: a oferta de trabalho, assim como a tática do “príncipe encantado” Não temos muita experiencia, mas recentemente, a internet parece ser um método muito eficaz (Testemunha, T1, A, Psicologa). Recebemos um e-mail assim: Achei trabalho em Cipro/ Ótimo, onde encontrou a informação?/ Na internet/ E o que dizia o anuncio?/ “Oferecemos trabalho em um hotel, 2.000 euro por mês. Não é necessário saber a língua ou ter experiencia” (Testemunha, T9, B., Policia). No caso de anuncio de emprego, como este descrito no depoimento acima, a impressão que dá é que as garotas se contentem facilmente com as fascinantes descrições apresentadas, sem se preocupar em saber mais. Como sempre, porém, depende muito também da capital social e da cultura pessoal, ou seja, dos recursos sócio-culturais que a garota dispõe, e as mais vulneráveis parecem ser aquelas socialmente mais frágeis Acho que existem duas categorias: tem pessoas que pedem mais informações, e isso depende de que ambiente elas veem. Se a pessoa tem família e possui recursos a serem mobilizados, então a garota se informa ou, pelo menos, viajam com um minimo de informações e dinheiro. Assim, se acontece alguma coisa, elas têm a possibilidade de voltar, fugir, telefonar, etc. Na segunda categoria, estão as pessoas sem recursos, pois a maioria das pessoas aliciadas são muito jovens, principalmente as garotas, a influencia das gangues, do grupo, torna-se fundamental, unidas ao desejo e ao entusiasmo de construir uma vida.. enquanto o perigo/senso de aventura, pode dar um outro sentido ao futuro delas. Normalmente, as pessoas buscam pouca informação e aceitam a oferta, mesmo terem ouvido por ai, que podem acontecer coisas ruins. Depende da situação de cada um, mas a ideia que “não vai acontecer comigo” é muito forte (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora). Algumas pessoas possuem mais ferramentas para perceber que tem algo errado na proposta recebida, alguns que tem menos, mas tendencialmente, como disse a testemunha anterior, “é fácil cair na armadilha do “não vai acontecer comigo”. 41 1.4.3. As rotas do trafico de pessoas As rotas consistem principalmente, mas não exclusivamente, viagens terrestres, a fim de evitar o controle invasivo nos aeroportos. Quando os grupos criminosos organizados têm dinheiro, a vitima pode ser transportada ao exterior de avião, utilizando o aeroporto Henri Coanda Airport; Na maioria dos casos se utilizam meios terrestres, de varias companhias de transporte; é muito mais fácil pois a vitima não é exposta aos controles aeroportuários, e tem poucas possibilidades de procurar e tentar contatar alguma instituição estadual, pois quando se atravessa a fronteira, não é preciso descer do carro e, normalmente, quem dirige fica também responsável pelos documentos de viagem. No aeroporto, a fiscalização é maior, e a vitima pode mais facilmente reivindicar o seu status de vitima (Testemunha, T10, MS, Policia) O transporte se dá via aérea ou terrestre. No caso dos menores de idade, os exploradores precisam de uma autorização dos pais, os quais são mais ou menos cientes do que está acontecendo, portanto, para todos os efeitos, a saída do país é dentro da legalidade (Testemunha, T6, MM, Inspetor de Policia). A entrada da Romênia na Comunidade Europeia facilitou a mobilidade geográfica, e nos últimos anos, parece que as rotas do trafico de moças romenas, alargou os próprios horizontes até incluir também outros países extraeuropeus como o México, os Estados Unidos e o Canadá. Baseado em alguns casos tratados nos últimos anos, parece que as rotas se estenderam também para outros continentes. Por exemplo, pessoas são levadas para a Espanha (tendo Ibiza como objetivo) – maior possibilidade de deslocamento na Europa, facilitada depois de 2007 – e de lá, são levadas para o México, EUA e Canada. Até onde eu sei, por trás disso, ainda existe uma rede ativa e potente na Europa e na América no Norte, muito difícil de se desmantelar, apesar dos esforços e da cooperação das autoridades legais(Testemunha, T11, P., Promotor) 1.4.4 Exploração, violência e estrategias de subjugação A retorica dominante que resulta das entrevistas, parece favorecer uma reconstrução em termos de uma mudança gradual de formas de exploração baseadas na brutal violência física, a estrategias onde a violência usada é, essencialmente, psicoemocional, mas não por isso, menos grave. A violência tende a ser substituída com outras formas de controlo não-violentos Por exemplo, no caso do namorado, chega o momento em que nasce a necessidade de ter mais dinheiro, para o aluguel, para a alimentação, para passear e conhecer lugares, economizar para poder comprar casa.. e assim, ela irá “trabalhar” só até conseguir dinheiro suficiente.. coisa que não vai acontecer nunca. Ou então, convencem ela a ter um filho, mas só pra depois usar o filho pra fazer chantagem com ela. Outra forma de chantagem consiste em gravar os encontros com os clientes para depois chantageá-la, dizendo que se não obedecer, eles vão mostrar o vídeo para a família, “ assim todos vão 42 saber o que realmente você esta fazendo no exterior.. [a violência] consiste mais em chantagens psicológicas, emocionais, ameaças, violência verbal, medo (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa). Atualmente, o controle usando a violência física, não é mais usado; os exploradores usam mais é um tipo de chantagem psicológica-emocional, e isto dificulta muito a identificação das pessoas exploradas como vitimas. Um hematoma é visível.. mas um problema psicológico não é. A vitima sofre violência e chantagem emocional, e ouve sempre que não vale nada. Claro, a violência física é usada somente quando “necessário”, mas normalmente os exploradores partem da dimensão emocional (Testemunha, T7, MB, Assistente Social). Na realidade, como sempre, o cenário é mais complexo, e a violência parece persistir, embora não exclusivamente. A parte da violência extrema persiste, no sentido que, há espancamentos, estupros.. a violência extrema pode ser utilizada também como exemplo para as outras, para que continuem a ser mais disponíveis (Testemunha, T4, IA, Funcionaria Operativa). Usam violência física e verbal, ameaças, privação de alimentos, surras, torturas. Pode até acontecer de matarem uma vitima para aterrorizar e servir de exemplo para as outras, para que continuem obedecendo a toda e qualquer ordem. Uma tragedia (Testemunha, T9, B, Policia). Mesmo em alguns depoimentos de garotas obrigadas a se prostituir, relatam recorrentes episódios de violência física: Era normal. Todo dia me davam ordens, muitas vezes se comportavam em modo violento.. me batiam sempre por qualquer motivo: ou por não ter trazido dinheiro suficiente pra casa, ou por não sorrir o bastante.. ou algo que eu fiz. No começo, eu reagia.. mas logo entendi que não tinha chance. A minha única chance de sobreviver era obedecer sempre (Estorias de vida, I, RV1). […] “Olha.. isso é o que você precisa saber.. vai, tenta.. este homem vai pedir pra você fazer com ele”... eu gritei “NAO, eu nunca vou fazer essas coisas! Colocar a minha boca no p--- dele... prefiro morrer!! Vocês me disseram que eu teria que colher uvas, que me trouxeram pra isso, colher uvas! Se não é assim, então quero voltar pra casa”. O homem estava agitado.. fechou com a chave, e eu lhe disse que queria ir ao banheiro.. queria sair pela janela e voltar pra casa. Naquele momento eu percebi... um minuto depois ele me bateu com tanta força que senti minha cabeça chicotear enquanto eu me chocava com o armário. “por que, por que?.. vou contar pra minha mãe”. Ele me insultava com todos os tipos de palavrões e me disse “você vai onde eu quiser!”... eu respondi que não iria. Ele me deu um soco na boca, sangrava... depois me puxou pelos cabelos e me empurrou pro carro. Eu gritava, e dizia que ia pular do carro… mas ele imediatamente bloqueou as portas e, quando eu tentei abrir uma porta, ele disse “olha, se você não se comporta bem, pego a pistola e te mato”. Eu tentava pensar em um modo de fugir. Estávamos ainda em pátria, não tinha policia na rua, ninguém podia me ouvir se eu gritasse ou se batesse com força na porta... eram 5 da manha.. eu continuava a chorar e gritar e, de vez em quando, 43 ele se virava e me dava um tapa na cara... então, eu chorava ainda mais.. e chorava…[…] Me lembro dos primeiros dias, a primeira semana.. saia correndo pelo quarto dizendo que não queria fazer, e ele me batia. Dai a A. também começou a me bater.. ela me empurrava para um quarto onde tinha uns homens que me diziam como e o que eu tinha que fazer. Estes homens davam a grana pra A., e não pra mim... e A. dividia com ele. Era 150 euros a hora.. A. me ameaçava o tempo todo, me dizendo que deveria estar ali com aquele homem e fazer tudo o que ele pedisse, do contrario, me castigaria…cortavam os meus cabelos, faziam cortes nas minhas costas… faziam de mim o que bem queriam […] (Estorias de vida, A., RV2). A violência, sempre fortemente presente, é utilizada como estrategia de aniquilação da personalidade, e tendem a diminuir quando a garota se mostra, finalmente, dócil e confiável: Normalmente, eles colocam varias garotas no mesmo apartamento. As vitimas sofrem violência física e são, sistematicamente, humilhadas, a tal ponto que, com o tempo, a personalidade delas é destruída, aniquilada, e se colocam inteiramente à disposição da rede – é o que chamamos de Síndrome de Estocolmo. Assim, pouco a pouco, tornam-se parte da rede, e é provável que as mesmas se tornem aliciadoras. Uma vez demonstrada a sua plena confiabilidade, as vitimas são organizadas em blocos, e continuam a prestar serviços sexuais sob a supervisão dos exploradores. Uma boa parte do dinheiro vai pra rede, enquanto a vitima fica com uma pequena quantia do faturado, mas só depois de ter pagado o aluguel, alimentação e outras necessidades (Testemunha, T11, P., Promotor). Eu continuava a trazer o dinheiro pro L., e ele começou a confiar mais em mim, porque eu tinha me tornado mais obediente, e dava a ele o que ele queria… eu era uma boa menina. Ele confiava a tal ponto que, um dia, comprou-me um celular que custava 80 euros.. me prometeu que compraria uns vestidos pra eu mandar pra casa pros meus filhos.. depois foi embora da cidade... eles tinham um casarão em algum lugar perto de Bucareste, me falaram… (Estorias de vida, A., RV2). Os diferentes repertórios da violência também parecem mudar de acordo com o clã, com o nível de submissão/aceitação da garota, mas também com o tipo de estrategia usada pelos exploradores: mais emocional, psicológica, e manipuladora no caso dos namorados; mais física, com episódios de espancamentos, torturas e ameaças, quando quem explora não pretende estabelecer uma relação sentimental com a garota. A situação é ligeiramente diferente se a exploração ocorre dentro ou fora da relação de casal. A exploração na relação de casal, no inicio, não são previstos sacrifícios, ameaça; é mais uma manipulação emocional, baseada nos sentimentos de ligação entre a vitima e o parceiro, o qual não é visto como “explorador”, mas como companheiro. Para outras vitimas.. a violência verbal e as ameaças existem desde o inicio. Hoje eu falei com uma moça que, de imediato, disseram de quanto era a divida, e quando ela respondeu que não se submeteria a fazer serviços sexuais, foi então ameaçada de morte, com a sua tesourinha de unha... portanto, sim, as ameaças ainda são utilizadas, voltadas à família ou aos parentes, principalmente se a vitima deixou filhos na casa com a família..(Testemunha, T3, GSA, presidente Associação). O namorado, principalmente no comecinho, tende a encenar um papel no qual se coloca como aquele com 44 o quem passar a vida juntos. A prostituição faz parte dos sacrifícios que a moça terá que passar visando o bem comum, ou as dificuldades que virão, sacrifícios que são recompensados por ele quando, de forma inteligente, elenca as diferenças de tratamento em relação as outras garotas que também trabalham no mercado do sexo. […] Usam palavras doces quando fazem a chantagem emocional, quando prometem um futuro juntos, quando usam comparações do tipo: “eu não te bato como faz o clã X.. eu te trato melhor.. não te faço trabalhar todas as horas...”, coisas deste tipo, coisas que podem parecer simples, mas que, visto a situação, deixam a pessoa totalmente sob pressão Ou então, se você nunca ouviu alguém dizer algo doce em sua vida, de repente, o seu mundo adquire um novo sentido. Além disso, se você não sabe o que é ter uma família, e daí vem o teu explorador dizendo que com ele você terá uma família, e que é assim que é a vida.. (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora). Existem também clãs que optam por manipular, estrategicamente, o consentimento das garotas, prometendo recompensas econômicas e/ou falando pra elas que mandaram dinheiro para a família delas. Ou ainda, fazendo-as sentirem-se culpadas ou jogando toda a responsabilidade em manter o bem da família ou da relação pseudo-amorosa. Existem também redes que optaram por não usar a violência física, talvez até nem tanta violência emocional, e às vezes, até oferecem às vitimas alguma recompensa, ou dinheiro, ou fazem em modo com que saibam que eles mandaram dinheiro pra casa delas.. ou ainda, induzindo a vitima a acreditar que é culpada.. ou que é uma boa menina e de ter que fazer todo o possível para não desapontar, a partir do momento em que são dadas as responsabilidades: “você esta fazendo isso por mim, ou pela tua família, ou pela nossa relação”. Este mix de medo de sofrer violência física e a ideia de ser recompensada e valorizada, produz um forte efeito... assim, valorizá-la é o melhor método para mantê-la (Testemunha, T1, Al., Psicologa). Outras estrategias de subjugação comuns são: o sequestro do documento (de identidade, passaporte), sem o qual a garota não pode circular livremente, e a divida pelas custos suportados pelos exploradores pelos diferentes serviços recebidos, bem menor que o valor exigido das nigerianas, mas geralmente sem fim. Sequestram os documentos e os meios de comunicação, como celular, ou o chip. Daí eles te explicam que você tem uma divida pra pagar pelos serviços recebidos e a única maneira para pagar a divida, é trabalhar no lugar prometido, mas que também estão livres para fazer o que quiserem, uma vez paga a divida (Testemunha, T3, GSA, Presidente Associação). Atualmente, os exploradores sequestram as carteiras de identidade, impedindo-os de se deslocar ou escapar. (Testemunha, T11, P., Promotor). Depois que chegam, se encontram em uma condição de exploração e pedem para trabalhar para saldar uma divida sem fim. Em alguns casos, os exploradores fazem a vitima acreditar que o que elas estão fazendo é ilegal, e que se a policia baixar, é bom que eles combinem o que dizer para não acabar na prisão. Então, de um modo ou de outro, a 45 vitima se convence que é culpada e que deve pagar para que a sua culpa não seja descoberta… mas a divida não acaba nunca (Testemunha, T1, Al., Psicologa). A divida – uma divida que nunca será paga!! (Testemunha, T9, B., Policia). Muitas vitimas não tem nem ideia de quanto ganham por dia, pois recebem pouco dinheiro, e não ganham o bastante para pagar uma divida sem fim (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa). Me amordaçou e me levou pro banheiro, me bateu com violência e me disse: “se fizer de novo, te mato. Você tem que fazer o que eu mandar porque você ta me devendo 3.600 euros, pois L. pagou esse preço quando te comprou do C. Estava confusa... porque desse dinheiro... eu não tinha recebido nada, só alguma coisinha que C. mandou pra minha mãe (Estorias de vida, A., RV2). 1.4.5. Condições de vida e trabalho Com relação às condições de vida e de trabalho, os depoimentos ressaltam muitos pontos de convergência seja entre os diferentes tipos de trafico – interno x externo – seja entre os diferentes tipos de trabalho – na rua ou em apartamentos, por exemplo. Nos apartamentos onde vivem (e, muitas vezes, trabalham), as garotas geralmente são pouco saudáveis e sem espaço para si mesmas, por isso, não é raro que muitas delas façam turnos para dormir na mesma cama ou no sofá Tivemos que lidar com vitimas que eram exploradas no exterior, mas também vitimas do trafico interno e nês identificamos alguns elementos em comum. Os exploradores não as levam para um hotel 4 estrelas. Geralmente vivem em apartamentos sujos, onde são obrigadas a se prostituir (Testemunha, T9, B., Policia). - E a casa? Como era o apartamento? - Eu dormia no sofá e tinha uma grande TV a plasma.. - Quem fazia a faxina? - Eu…(Estorias de vida, A., RV2). Em termos de condições de vida em geral, as vitimas não tinham mais o controle de suas próprias vidas. Geralmente, ficam muitas garotas num mesmo apartamento, que dormem em colchoes ou poltronas, trabalhando e revezando pra dormir, pensando somente em estar disponível quando necessário, satisfazer o cliente e ganhar algum dinheiro (Testemunha, T5, COC, Funcionaria Operativa). O dia a dia é marcado pelos momentos de trabalho, longos e desgastantes, e por um alto numero de clientes, essas características são compartilhadas por todas as pessoas que trabalham com sexo e são exploradas pelos racket, independentemente da nacionalidade ou do pais de destino. 46 […] acordar, comer e se preparar para o chamado “trabalho”... eu tinha que estar bonita e ficar na vitrine, sorrir e esperar os clientes. O cliente chegava, eu pegava o dinheiro, e fazia meu trabalho... depois chegava o rapaz e pegava o dinheiro, talvez porque tivesse medo que alguém sumisse com o dinheiro. Depois de 10-12 horas passadas assim, é que finalmente, ia dormir, tomar um banho. Esta era mais ou menos a nossa rotina diária Minimo 10 horas ao dia, e até 15, 20, de fim de semana (Estorias de vida, T, RV3). - Quantos clientes ao dia? − Bom, uns 14-15, 16 se eu trabalhasse até tarde da noite.. e se eu trabalhasse das 6 da manhã às 6 da tarde, eram mais, uns 30... é muito, né?! O L. acariciava meu rosto com aquela sua mão enorme... eu tinha medo dele... até tentava me ensinar o que dizer aos clientes, algo como “Hallo, wi gehtsdia”, não vou dizer o que isto significa... mas eu dizia somente “oi”. Fazia telefonemas para trazer clientes nos apartamentos e escrevia tudo em um caderno... 400 euros de aluguel. A gente começava de manhã cedinho e parava só tarde da noite... este era o nosso programa de trabalho... (Estorias de vida, A., RV2). O controle por parte dos exploradores é constante e serrado, e invade diferentes esferas da vida: a liberdade de ir e vir, então pode ser impossível só o fato de atravessar a rua, sozinhas, para comprar comida na vendinha em frente de casa; ter algum dinheiro, dinheiro esse sistematicamente retirado e controlado após cada programa; a relação com os familiares, os quais poderão ser contatados só na presença de alguém, que controle tudo o que é falado; a relação com os clientes, de modo que as garotas são orientadas a não se abrir com eles, mesmo porque, entre eles, pode ser que um seja infiltrado, mandado de proposito pelo racket para verificar sua confiabilidade. - Ali perto tinham umas lojinhas e L. comprava comida.. - E você? Alguma vez você saiu pra comprar comida? - Não, nunca…nunca me deixaram sair pra lugar nenhum.. - Ok, mas pelo menos te perguntavam o que você gostaria de comer? - Não, não - Nunca? - Não, comia aquilo que eles decidiam. Carne ou batata.. compravam muita comida, asa de frango, porco... - Eles tinham carro? - Sim, uma BMW… - Te levava de carro pro night club ou você ia a pé? - De carro. Ele levava e depois vinha buscar. - Entendi, controlava vocês o tempo todo então? Você tinha credito no telefone pra poder ligar pra quem quisesse? (7) Só 1 euro quando voltavam pra Romênia.. pra poder chamá-los caso acontecesse alguma coisa, e eles entrariam em contato com um amigo deles, o B. - que morava perto da gente – e pedir pra ele ver o que estava acontecendo. 47 - Então, podia usar só pra entrar em contato com eles. E credito pra ligar pra tua casa, pra tua mãe? - Oh, não - Você disse que falou com tua mãe uma vez... não falou mais desde então? - Sim. - Sempre daquele jeito.. com eles que te vigiam o tempo todo? - Sim, eram eles que telefonavam pra mim. Diziam que eu tinha que falar só com minha mãe e de dizer pra ela pra não ir à policia. Fazia um mês que não ligava pra ela, e ela tinha ido na policia levando a minha foto, e dizendo a eles que era um mês que ela não tinha noticias minhas e que estava preocupada. Foi também na casa daquela mulher e bateu nela, e pediu pra ela deixar eu voltar pra meus filhos … depois de um tempo, minha mãe ligou pro L. e consegui falar com ela... mas se eu quisesse falar com minha mãe ou meus filhos... eles teriam me jogado o celular na cabeça (Estorias de vida, A., RV2). Não tentava nem falar com os clientes, pois me disseram, desde o começo, pra não falar com eles, se não eles mandariam um amigo deles (disfarçado de cliente) pra me vigiar, ver se eu falava ou não... então, não podia confiar em ninguém (Estorias de vida, B., RV4). - Durante aquele período, você podia entrar em contato com a tua família? - De jeito nenhum... não podia ligar pra eles, era proibido e não tinha modo. Pensei em pedir ajuda pros clientes, mas tinha medo das consequências - Podia mandar dinheiro pra família? - Não, não podia ligar pra eles, não podia mandar dinheiro pra casa (Estorias de vida, T., RV3). Geralmente moram em apartamentos privados, lugares alugados, têm pouquíssima liberdade de movimento, devem ser sempre acompanhadas quando saem (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação). Tudo isso é agravado pela ausência de uma relação de confiança que possa trazer alivio e conforto. Com as garotas com quem você trabalha, prevalece um clima de competição e desconfiança, enquanto que, com outras que trabalham em outros lugares, você não tem nenhum contato. - Como você descreveria a tua relação com as outras mulheres que se encontravam na tua mesma situação? - Hum, todo dia tinha uma guerra pelo dinheiro, então não posso dizer que era extraordinária; e mais, não tinha nenhum contato com aquelas que não trabalhavam comigo... - mas vocês podiam conversar entre vocês? - Sim, mas quase sempre tinham outras pessoas, assim ninguém falava nem mais nem menos (Estorias de vida, T, RV3). 48 A qualidade de vida resulta muito carente: ritmos de trabalho desgastantes, alimentação não regular e aleatória (come-se o que tem), sono muitas vezes perturbado, também pelo fato de não haver uma cama de verdade, que não seja compartilhada, alto risco de contrair infecções ou doenças sexualmente transmissíveis e abortos em condições não seguras. Tudo isso tende a colocar em risco a saúde destas jovens mulheres. As condições são péssimas... a alimentação é inadequada e o sono.. um padrão muito longe de ser aquele padrão de uma normal vida saudável (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação). Às vezes, naturalmente, os exploradores as obrigam ao aborto... às vezes pagam clinicas, outras fazem de maneira ilegal... sem as condições medicas adequadas...(Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação). Sei de casos onde a camisinha foi usada, mas existem casos onde o explorador não cuida deste aspecto. A coisa importante pra eles é que a vitima saia com o cliente e traga dinheiro. Muitas vezes aconteceu de a garota levar uma surra porque os clientes pediam pra não usar preservativo e elas tinham se recusado (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora). No entanto, das entrevistas realizadas na Romênia, assim como nos outros países, a saúde das garotas não parece ser uma preocupação pra quem as explora. A prevenção não existe e a cura é, essencialmente, caseira e improvisada. Do pondo de vista das organizações criminosas, investir na saúde da mulher que trabalha pra eles no mercado do sexo, é caro e arriscado, pois pode levar outras pessoas a descobrir a verdade sobre a existência de graves formas de exploração Então, não vale a pena arriscar, pois no momento em que uma garota adoece, pode ser facilmente substituída Existem varias doenças sexuais transmissíveis, ou a AIDS. As garotas não são levadas ao medico para serem controladas periodicamente. O explorador não quer levar a garota pro medico por medo de ser descoberta a situação de exploração. Além disso, as condições de trabalho na rua são terríveis No verão, 40 graus; no inverno, -20 graus, e elas são obrigadas a ficarem ali. Os exploradores não se preocupam porque, se uma garota fica doente, eles podem rapidamente subsisti-la. Do ponto de vista deles, portanto, não tem sentido investir na saúde, pois significaria gastar dinheiro e arriscar que a condição de exploração seja descoberta (Testemunha, T9, B., Policia). Mesmo quando moram num apartamento, as condições de vida não são saudáveis A jornada de trabalho delas é superior a 12-14 horas; não há condições de saúde Se a garota adoece, o importante é que ela não pare de trabalhar, por isso, curam os sintomas com métodos empíricos As garotas trabalham nas ruas, em bordeis ou expostas nas vitrines. No caso de gravidez, devem se livrar da criança; com relação aos preservativos, são orientadas a usá-los, mas de não fazê-lo no caso em que o cliente o solicite, pois o trabalho delas consiste em prestar serviços ao maior numero possível de clientes.. enquanto ninguém se preocupa com a saúde delas (Testemunha, T7, M.B., Assistente Social). 49 Em relação à saúde, um fato preocupante relatado por uma das testemunhas, é a pratica recente de obrigar as garotas a tomar anticoncepcional sem o consentimento delas e sem os exames médicos necessários Uma novidade: assim que as garotas entram no giro, elas são obrigadas a tomar anticoncepcional por 3 a 6 meses, sem o consentimento delas e, obviamente, sem a supervisão de um medico (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação). O consumo forçado de drogas não parece ser um problema em relevo, pois custa muito e reduz o desempenho, enquanto o abuso de álcool aparece sempre como um nó problemático: álcool como estrategia utilizada dos exploradores para amansar as garotas; álcool escolhido por quem trabalha no mercado do sexo em condição desumanas, para se anestesiar. As garotas que trabalham nos night clubs tem que beber e fazer de maneira que os clientes bebam também... poucos são os casos de drogas, também porque não seria conveniente pro explorador ter garotas viciadas em droga… significaria gastar dinheiro... no entanto, tivemos dois casos de garotas viciadas nos últimos três anos. Com relação ao álcool, muitas vezes bebem para suportar as condições de exploração (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação). O álcool é utilizado pelos exploradores para amansar as vitimas, ou pelas vitimas para esquecer ou aliviar a dor, como uma anestesia (Testemunha, T7, MB, Assistente Social). 1.4.6. A fuga, o retorno e a dificuldade de reintegração Se, no inicio, as garotas são induzidas, por estrategias manipuladas pelos exploradores, a “escolher” um projeto migratório dos sonhos, depois, o impacto com a realidade, a desilusão com relação às promessas recebidas, a dura vida a que são forçadas e a violência contra elas, tudo isso faz nascer nelas um profundo desejo de fugir. - Quando foi a primeira vez que pensou em fugir? - Desde o primeiro momento. Tentei muitas vezes, e no fim, consegui. - Como você fez? - (Sorri) depois de muito esforço e varias tentativas fracassadas... rolou um escândalo, fui espancada brutalmente, e alguém viu, em particular, a dona do bar, a mulher ficou apavorada e queria chamar a policia. No final, por medo de ser preso, o cara que tinha me batido, me deixou sozinha e parou de me controlar. - Além desta senhora, mais alguém te ajudou? - Não, ninguém Ela foi a única. E graças a ela eu consegui fugir e voltar pra casa (Estorias de vida, T, RV3). 50 A chance de fugir pode nascer de uma intervenção corajosa de uma pessoa não envolvida no mercado do sexo, assustada pelas marcas visíveis de violência física, como no caso do depoimento acima. Em outros casos, no entanto, podem ser os próprios clientes ou as organizações e entidades envolvidas na luta ao trafico de pessoas a apresentar-se como uma tábua de salvação Uma ou outra conseguiu escapar, ou ajudada por um cliente, ou por uma organização ou, simplesmente, fugindo mesmo.. vão pra policia ou pras ONGs que possuem uma unidade de rua (principalmente na Itália, e isso é uma boa coisa).. tem que dar uma declaração, e se decidem cooperar com as autoridades, podem ser então inseridas em programas de proteção e são livres para decidir se querem ficar ou voltar pra casa (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa). Às vezes, são as próprias garotas a organizarem suas fugas. Até os exploradores romenos, assim como os albaneses, às vezes voltam pros seus países, deixando a garota considerada “de confiança”, finalmente sozinha. Com relação às razões destas viagens repentinas à pátria de origem, temos algumas hipóteses: se trata de uma estrategia para despistar a policia; ou a necessidade de administrar “negócios” urgentes na pátria; necessidade de renovar o permesso di soggiorno (autorização de permanência). Depois de ter sofrido assedio e violência, esta ausência repentina e inesperada do explorador pode ser uma otina chance para reconquistar a liberdade, como conta uma das entrevistadas: Acreditava em tudo o que eu dizia.. fazia tudo o que ele queria para não apanhar.. me batiam forte, até sangrar... muitas vezes me queimaram com cigarro, no pescoço, no rosto, no peito, nas mãos, onde queriam, como se eu fosse..oh Deus! Depois que eu tinha dado todo o dinheiro, me deixaram só com 1 euro de credito no celular, porque eu era “uma boa menina”, “tinha me adaptado à situação, gostava, e me comportava como uma filha”... disse que ia comprar uma casa pra ele e uma pra mim e meus filhos.. naquele dia, comprou 10 maços de Marlboro, comida, avelãs, frango e me perguntou se ia ficar em casa.. eu respondi que sim, e ele não deixou ninguém de guarda na porta.. escondeu as chaves atras do computador.. disse que ia viajar por duas semanas.. pensei então que pudesse escapar naquelas duas semanas, mesmo que tivesse que vagar pelas ruas em busca da policia... então, se despediu de mim, me disse que se me comportasse bem ia me trazer um presentinho.. como se eu fosse uma criança a esperar um doce.. Por um dia, não fiz nada, pois queria ter certeza de que eles tivessem chegado na Romênia e ficava só imaginando onde eles poderiam estar.. tinha medo que estivesse ainda nas redondezas e que pudessem voltar... quando soube que estavam perto de A. disse a mim mesma que eu também iria lá. Comecei a andar pelo quarto, falando com a TV e com minha almofada vermelha (minha joaninha). Disse a mim mesma que iria ligar pra aquele cliente que tinha muito dinheiro e um telefone celular enorme, pra dizer “vou pra Romênia ver meus filhos”. Daí, vi a policia na frente do outro prédio. Não podia abrir a janela porque tava trancada com cadeado e então, peguei uma cadeira, joguei contra a janela que explodiu em pedacinhos, abri a janela e me feri levemente a mão.. achei as chaves de casa, tive que fazer força pra abrir a porta.. depois liguei pro 112, como se estivesse na Romênia, e me atenderam (Estorias de vida, A., RV3). Nem todas, depois da fugo, decidem voltar ao país de origem, e o retorno não esta livre de desvantagens. O retorno, por exemplo, prevê uma assistência somente se for organizado pela IOM (International Organization for Migration), ou então a garota volta sozinha e sem nenhuma assistência 51 Se a IOM [International Organization for Migration] estiver envolvida, então falamos de repatriação assistida, que prevê um acompanhamento. Tem uma pessoa que te acompanha significa ter uma assistência durante a viagem de retorno, que pode ser do tipo medica, no caso em que a vitima tenha problemas médicos, físicos ou esteja sob tratamento psiquiátrico Pode também se tratar de um acompanhamento ligado à segurança, sempre que haja um envolvimento da IOM, onde é previsto o recebimento no aeroporto em totais condições de segurança. Mas se se trata de uma repatriação normal, é difícil dizer o que poderia acontecer no momento em que a vitima viaja sozinha, sem acompanhamento, entregue ao motorista do ônibus – bem longe de ser um “especialista” – que pode ser muito mais informado sobre a exploração que sobre a assistência ou proteção Desculpa falar, mas é o que acontece, é a realidade! (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação). De acordo com uma das testemunhas, os abrigos não são numericamente suficientes e o período de acompanhamento previsto por lei é muito curto: 3 meses para uma adulta e 6 meses para uma menor de idade. A maior parte do trabalho de reintegração é feito, portanto, por Organizações Não Governativas (ONGs). Os abrigos são em numero insuficiente e, mesmo se tivessem mais – há uns anos atrás – foram fechados por diversas razoes: em primeiro lugar, eram muito visíveis (a localização deveria ser secreta); além disso, falta o pessoal especializado; e ainda.. eram muito grande, e isso complicava os problemas de segurança. Por isso, hoje, existem pouquíssimos refúgios com relação ao numero muito alto de vitimas identificadas. Normalmente as ONGs oferecem assistência por um longo período às vitimas. Diferente da situação dos departamentos de assistência social que, de certa forma, são justificados pela lei dizendo que podem fazer bem pouco, porque a lei prevê períodos muito curtos: 3 meses para adultos e 6 meses para menores. A possibilidade de estender o período depende de uma decisão tomada durante o processo penal. Com base na lei, se trataria mais de uma ação finalizada para tamponar uma situação de crise, ao invés de um verdadeiro percurso de assistência Então, todo o processo de reintegração é de responsabilidade das ONGs (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação). Outro elemento critico, de acordo com uma testemunha, reside no fato que muitas garotas não se veem como vitimas, fato este que dificulta a identificação Como mencionado anteriormente, as estrategias de dominação dos exploradores romenos usam eficazes sistemas de manipulação emocional, destinadas a induzir as garotas a “escolher” de fazer parte de um projeto migratório cujo resultado está bem longe das expectativas. Na Romênia, uma vitima pode ser identificada seja formalmente – no sentido que ela aceita de depor contra os exploradores, graças também ao depoimento – seja informalmente, através da ONG.. O problema maior é que algumas não se veem como vitimas.. por isso é muito difícil fazer a vitima tomar consciência da própria condição. às vezes pode ser até arriscado pois pode significar acrescentar um trauma a um outro já existente. Por esse motivo, é um processo longo, caracterizado por muitos encontros informais com a pessoa (Testemunha, T5, COC, Funcionaria Operativa). Talvez o maior problema seja a nível cultural. Em todas as culturas – embora com diferentes gradações – se tornar um objeto sexual, para uma mulher, significa renunciar à cidadania simbólica e perder alguns 52 direitos, como o direito ao respeito e à proteção Neste sentido, O’ Connell Davidson (2001) fala de prostituição, de forma eficaz, em termos de morte social. Quem se encontra na situação de ter que vender sexo em troca de dinheiro, não importa se por “escolha” ou porque é obrigada, se torna, aos olhos da sociedade, uma não-cidadã, uma mulher qualquer, sujeita a violentos processos de estigmatização e culpabilização. Na Romênia, infelizmente, muitas pessoas pensam que todas as vitimas de trafico de pessoas são prostitutas!! E quando isso acontece, a pessoa sofre um segundo trauma (Testemunha, T9, B., Policia). O que torna difícil o reinserimento e o alto risco de recaída no trafico de pessoas é o comportamento da comunidade e das autoridades. Mais especificamente, gostaria de falar do comportamento em geral, no qual a responsabilidade da experiencia da exploração recai sobre a vitima. Falando com varias pessoas, entre as quais estão também pessoas que deveriam fornecer suporte às vitimas do trafico de pessoas, se fala sempre da “responsabilidade” e da “culpa” da vitima. Dizem que se ela tivesse se comportado bem, tivesse sido uma “boa menina”, com vestidos apropriados e um comportamento descente, sem fazer coisas que são naturais para uma garota da sua idade, como se apaixonar ou sair com rapazes, então não se encontraria em uma situação assim, terrível De certa maneira, a sociedade não se limita a punir quem erra, vai além, e faz o mesmo também com as meninas que foram estupradas a 10 anos e que não tiveram nenhum apoio da família ou da comunidade porque ninguém acreditava nelas e ainda as consideravam culpadas (Testemunha, T2, LA, Diretora do Centro). Muitas vezes, os processos de estigmatização são amplificados pela violência da linguagem mediática, como no caso do próximo depoimento, que fala de meninas de 11, 12 anos, obrigadas a se prostituir e definidas por alguns jornalistas como “bombas de AIDS”, portanto, representadas como uma ameaça à saúde dos clientes “vitimas”. Às vezes, as reportagens dos meios de comunicação espelham como a sociedade vê estes casos: meninas de 11, 12 anos, obrigadas a se prostituir, são chamadas de “bombas de AIDS”, enquanto os homens – que são ou foram clientes – são chamados de “vitimas”, embora se saiba que estas meninas foram infectadas por alguns clientes (Testemunha, T4, LA, Pesquisadora). 1.4.7. Como as garotas veem os clientes Como sabemos, nem todos os clientes são violentos, e alguns se mostram, particularmente, generosos, oferecendo presentes caros dos quais, no entanto, as garotas exploradas não poderão usufruir. Me traziam presentes, relógios, brincos, até de ouro... um celular grande da Samsung, ou um Galaxy S3. Mas estes presentes não iam pra mim, embora fossem pra mim... eu simplesmente agradecia (Estorias de vida, A. RV2). 53 Apesar disso, à pergunta “que imagem te vem em mente quando se pensa aos clientes?”, as respostas relatam representações bem negativas: - E com relação aos clientes? Que imagem te vem em mente pensando neles? - Algo de terrível Como posso dizer.. nojento, nauseante... um monstro! (Estorias de vida, A., RV2). Pessoas sem valor. Se um ser humano é capaz de.. e pensa que uma pessoa – mulher ou homem – possa ser seu (sua) em troca de dinheiro.. então, como posso dizer... falta um pouco de humanidade, gente sem valor... (Estorias de vida, T, RV3). Como sempre, não faltam estorias de violência Um cara quebrou uma garrafa na minha cabeça. Mas quando L. ficou sabendo, castigou o cara... (Estorias de vida, A., RV2). Normalmente (quando te tratavam mal), a gente avisava as outras e íamos falar com M. pra pedir ajuda... tinham uns clientes loucos que nos batiam dentro do quarto (Estorias de vida, D., RV4). Entre os clientes, tem aquele que ajuda a fugir, e quem se comporta com indiferença quando alguém pede ajuda, seja essa explicita ou indireta (chora). Pedi ajuda pra muitos clientes... mas todos diziam que tinham medo dele (Estorias de vida, A., RV2). - Já pediu ajuda alguma vez? - Sim, tentei.. mas não falava a língua deles.. então, chorava enquanto fazia sexo, o cliente via que eu chorava.. não sabia como fazer pra me comunicar, não sabia o que fazer e continuava a chorar e chorar... (Estorias de vida, AN., RV5). Em certos casos, os clientes podem fingir não conhecer a situação de exploração, mas em outros, como nos depoimentos que acabamos de ver, decidem, conscientemente, ignorar o problema, praticando o “consumo” de maneira não-critica e tornando-se cúmplices do sistema do trafico de pessoas e da exploração. 54 1.5. A pesquisa no Brasil 1.5.1. A evolução do fenômeno do trafico de pessoas no Brasil O Brasil é um país que, já há alguns anos, está tendo um crescimento econômico-cultural extraordinário ao ponto que, como dito por algumas testemunhas privilegiadas, passou de país de origem de consistentes fluxos migratórios para país de destino, com chegadas não irrelevantes de países europeus que, tradicionalmente, representavam uma saída significativa para os migrantes brasileiros: Espanha e Portugal. Neste momento, o Brasil está crescendo, está se tornando um país para receber imigrantes. Temos alguns dados, por exemplo, onde no ano passado, não – minto - em 2011 era, nós recebemos tantíssimos imigrantes espanhóis. E recebemos mais imigrantes espanhóis no Brasil do que brasileiros que foram pra Espanha. Foi a primeira vez na história que tivemos essa inversão do fluxo imigratório na Espanha. Isto é, Espanha, Portugal, são países que, pela proximidade da língua, eram os países que mandavam mais imigrantes, exceto pros Estados Unidos, obviamente, aquela coisa do sonho americano, né? Então, na Europa, tinham estes dois países como principais destinos dos brasileiros. E tivemos uma inversão do fluxo (Bras1, Funcionário, SNPDCA). Sem duvida, é claro que o numero de pessoas que procuram o Brasil como destino é aumentado, é duplicado, triplicado, seja para fazer um período ou, simplesmente, para mudar de vida, acredito que o Brasil é sempre mais reconhecido a nível internacional, se fala muito do Brasil, apesar da crise mundial, quer dizer, o Brasil não está enfrentando a crise, pois o quadro é de um país em desenvolvimento, tem trabalho e portanto atrai muita gente, acho que isso, inclusive, é muito utilizado pelos aliciadores para enganar as vitimas, como um modo para trazê-las aqui, e então, o numero de vitimas estrangeiras trazidas aqui a fim de serem exploradas, aumentou (Guar2, Caritas). Como se sabe, no entanto, a imigração e o trafico de pessoas são fenômenos estreitamente relacionados entre eles e então, o Brasil, atraindo tantos migrantes, está se tornando também, um país de destino para vitimas do trafico de pessoas, especialmente pessoas vindas da América Latina e exploradas no mercado do trabalho domestico e industrial, além daquele do sexo. Eu acredito que existe um perfil importante para ser estudado, aprofundar-se sempre mais, o perfil da vitima estrangeira. Cada vez mais, o Brasil aparece como país, não só de origem, mas de destino final da vitima. Não digo que antes não fosse, mas agora é muito mais evidente, principalmente, vitimas latino americanas para trabalhos domésticos, exploração sexual e trabalho escravo nas industrias têxteis (Bras3, coordenadora, SNG). O que vemos no Brasil, ultimamente, é que existe também um movimento de importação da mão de obra escrava, principalmente da Bolívia e do Paraguai, para a industria têxtil Isto acontece principalmente em São Paulo, em Jaraguá, pois se trata de um grande centro para produção de roupas, foram já encontradas muitas vitimas do Paraguai e também da Bolívia, em uma cidade no interior de Goiás, uma cidadezinha de 50 mil habitantes. Portanto, este é um movimento que, com certeza, preocupa; o acesso dos traficantes à mão de obra considerada econômica Paraguaios e bolivianos sofrem 55 exploração próprio por causa de sua vulnerabilidade social, eles vem em busca de uma vida melhor, mas depois se encontram em uma situação difícil, a rotina de trabalho, as longas horas de trabalho, 16 horas por dia, não é por nada fácil (Bras4, Juiz, CNJ). No Brasil, assim como nos outros países parceiros do projeto, os depoimentos enfatizam o papel da internet, como uma novidade. Contatar garotinhas para trabalhos atraentes, ou situações onde são aliciadas, através do Facebook, ou outros sites bolados para isso, como “Brasil Cupido” por um “fascinante” gringo, seduzem a garota, que se apaixona por eles, e as iludem com o papo de um futuro melhor. Aqui volta o tema do “príncipe encantado” e das dimensões culturais da vulnerabilidade do gênero, já discutida anteriormente falando do caso da Romênia Bom, vou começar falando da nova modalidade de aliciamento que é através da internet. Nós recebemos aquele caso do distrito de Sobral, onde 3 adolescentes estavam pra ser contratadas para trabalhar como modelos em São Paulo. O aliciador mandou o dinheiro, e as garotas começaram a se transformar, melhorar os cabelos, as roupas, a diretora da escola onde estudavam percebeu: “a família declarou não receber nenhuma renda e estas garotas se transformam assim! Mas depois diziam – 'na verdade, amanhá vamos viajar.'” Então a comunidade escolar, a diretoria da escola, conseguiu impedir este aliciamento a tempo. Muito interessante. Este é um caso que uso como exemplo quando vou pro interior do Estado para convidar as escolas a participar desta luta. Existem também outros tipos de redes sociais, como o Facebook, Brasil Cupido, por exemplo, inclusive, temos um caso deste site, de garotas que procuram uma relação afetiva, e daí, chega aquele gringo grandão, alto, forte, de olhos azuis, né? Aquele perfil do “príncipe encantado” que escutamos dizer a vida toda das nossas mães, e as garotas se foram, foram morar no exterior, viajar de avião, tirar fotos pra depois colocar no Facebook – isto eu já ouvi de uma delas – sonham em poder encontrar o príncipe encantado e vão E eles, realmente, mandam as passagens pra elas, sabe? Tenho que me lembrar de um caso do qual nos ocupamos. O cara viu o perfil da garota no site e escreveu: “oi, sou divorciado, tenho 2 filhos, sou trabalhador autônomo, tenho uma boa condição de vida, viajo pro Brasil periodicamente, e você é linda, maravilhosa, gostaria de poder conhecer uma mulher como você para poder compartilhar a minha vida, estarei no Brasil do dia …. ao dia... só pra te conhecer, estou perdidamente apaixonado. Se você quiser, fale com a minha tradutora, fulana, que está no Brasil”. Então, claramente se vê a ação deste aliciador, a intermediaria que seria, como o aliciador ali da novela, que seria a Lívia (não eu), e a tradutora que seria a Vanda (exemplos da novela “Salve Jorge”). Enfim, este aliciamento é muito acentuado nos sites da internet, infelizmente não temos uma lista de todos estes sites, mas trabalhamos em conjunto com as informações fornecidas pelas ONGs internacionais, pela policia e pela ABIN (Agencia Brasileira de Inteligência), conforme vão chegando (Bras2, coordenadora NETP). As organizações criminosas, hoje, usam muito as redes sociais, os sites de encontros, enfim, através do qual eles aliciam as vitimas, com promessas (Guar1, ASBRAD). 56 Muitos depoimentos relatam o impacto positivo de uma recente e famosíssima novela chamada “Salve Jorge”, que estava passando no mesmo período em que foram feitas as entrevistas (outubro 2012- maio 2013), num dos canais nacionais da televisão brasileira (Rede Globo). Se trata de uma produção de grande sucesso que enfrenta o tema do trafico de mulheres para fins de prostituição. A protagonista é Morena, mãe solteira, com grandes dificuldades econômicas, mora em uma favela na periferia do Rio de Janeiro, com um filho pequeno e a mãe Morena, despejada de sua casa, aceita a proposta de Wanda de ir trabalhar no exterior, por alguns meses, no setor da moda e do espetáculo, e é contratada, juntamente a outras garotas, por Lívia, que é, na realidade, a proprietária de um night club e diretamente envolvida com a rede do trafico de pessoas. De fato, quando chega na Turquia, Morena e as outras garotas serão vendidas e irão descobrir que serão destinadas ao mercado do sexo. De acordo com os depoimentos, a novela teve a importante função de sensibilizar a opinião publica, informar as pessoas a respeito do fenômeno e quebrar o estigma que afeta as meninas envolvidas na exploração. Parece terem aumentado as denuncias e a conscientização e o termo “trafico de pessoas” parece ser mais familiar e compreensível em relação ao seu uso na linguagem comum. Acredito que a novela Salve Jorge esclareça muitas coisas, inclusive, o Núcleo que antes recebia umas duas denuncias por mês de possíveis casos de trafico, neste ultimo mês, depois que começou a novela, já recebeu umas cinco ou seis denuncias; as pessoas estão procurando se informar mais sobre esse assunto. Mesmo estes trabalhos que fizemos com as escolas, aumentaram a curiosidade dos adolescentes, pois aqui, no estado do Ceará, é normal que um adolescente seja vitima do aliciamento com falsas promessas de ser modelo, dançarina, e os rapazes, jogadores de futebol. Já estão recebendo este tipo de proposta e, quando chegam ao destino, por exemplo, em São Paulo, é pra fazer trabalho escravo, ou então chegam ali esperando uma proposta que nunca vai acontecer […] Nós fazemos um trabalho nas escolas, com os professores, e de fato, depois que começou esta novela, os estudante falam mais facilmente sobre o assunto. Antes gastávamos 15, 20 minutos para explicar que não se tratava de trafico de drogas, nem de armas, mas de trafico de pessoas, e que podia acontecer com qualquer um, pessoas como você, como eu.. e eles demoravam um pouco pra entender. Mas hoje, as pessoas já comparam até com as situações da novela: “acontece mesmo? Mas é tudo de verdade?” Porém existe ainda uma falta de informação principalmente dentro do Estado. […] Minha filha sumiu, meu filho sumiu, eu acho que existe uma situação de trafico de pessoas”, hoje, a situação do trafico de pessoas foi reforçada graças à novela (Salve Jorge), o uso desta expressão “trafico de pessoas”. Agora conseguem usar mais esta expressão A novela não está salvando a nação, mas está, de alguma maneira, ajudando (Bras2, Coordenadora, NETP). 57 1.5.2. Tipos de trafico e pontos críticos da legislação brasileira No Brasil, assim como na Romênia, o trafico de pessoas não é só internacional, mas também interno. Além disso, existem diversos tipos de trafico de pessoas, além daquele com a finalidade de exploração sexual: o trafico de pessoas para exploração laboral, trafico de órgãos; trafico de menores destinados à mendicância; trafico de pessoas para fins de matrimonio servil, muito difícil de descobrir. O trafico de pessoas para fins de prostituição, o trafico de órgãos e o trafico para a exploração da mão de obra. Mas tem também o trafico para adoção, trafico para – uma coisa que o movimento feminista está trazendo à tona – o matrimonio civil, que é ainda mais difícil de ser descoberto, porque muitos homens vindos de países europeus procuram mulheres brasileiras para o casamento, mas quando chegam no exterior, tornam-se verdadeiras empregadas domesticas, subordinada (Fort2, Freira, ONG). Não é assim fácil de explicar. Existem vários tipo de trafico interno, per exemplo, o aliciamento no trafico de menores de idade, adolescentes é diferente do aliciamento que tem no trafico de travestis e de mulheres (jovens ou não), não é igual à exploração, não é igual à promessa de uma vida melhor. Por isso é importante fazer essa distinção No trafico interno, por exemplo, tivemos casos de menores que foram raptados e explorados na mendicância, e rodaram todo o Brasil. Por exemplo, o caso de uma garota, muito jovem, com a promessa de ir à uma festa, em uma fazenda, em uma cidadezinha, então, é uma transgressão da adolescência, da infância, não é? E dai, usam todos os meios para convencer a pessoa, né? É difícil estabelecer uma esquema preciso. Eu sempre digo, cada vitima, um caso diferente, é uma nova situação (Bras5, Jornalista). De acordo com vários depoimentos, um dos pontos críticos da legislação brasileira consiste precisamente em não levar em conta os diferentes tipos de trafico. O que acontece é que existe somente o reato de trafico de pessoas para fins de exploração sexual. E ali, não vem considerado o trafico dos órgãos, a adoção ilegal, a escravidão por dividas, e nenhuma destas modalidades que sabemos que existem. Isto tem dificultado muito o Ministério Publico a punir tais casos, e é um fator estimulante para as quadrilhas, pois a impunidade é muito grande. Esperamos que agora o Congresso esteja sensibilizado. Foi enviado recentemente, no mês de dezembro, um projeto para modificar a lei, caracterizando um tipo de trafico de pessoas mais abrangente, prevendo todas as formas de exploração e, visto que o momento é bastante favorável, por causa da novela Salve Jorge, que trouxe maior visibilidade ao problema, esperamos que isso chegue também ao Congresso Nacional, a fim que esta mudança de lei seja adotada imediatamente (Bras4, Juiz, CNJ). 58 O conceito que usamos para o trafico de pessoas é aquele previsto pelo Protocolo de Palermo. O Código Penal define o trafico de pessoas especificamente para exploração sexual. Então, estamos tentando fazer esta alteração na lei, a fim de permitir a integração do conceito de trafico de pessoas, conforme descrito pelo Protocolo, que é mais amplo e se estende também ao trafico de órgãos, a exploração da mão de obra, a exploração sexual, e por aí vai.. (Bras1, Funcionário, SNPDCA). Hoje, praticamente, no Código Penal é previsto somente o trafico de pessoas para fins de exploração sexual, de mulheres, mas sabemos que existem outras modalidades, digamos, desta pratica criminosa que, infelizmente não é contemplada na legislação (Bras6, Politico, CPI). A outra situação, no entanto, é a quantidade de mulheres que recebem propostas de trabalho, não ligadas à prostituição, para ir ao exterior; é ali que percebemos que o trafico de pessoas não é somente ligado à exploração sexual. Quer dizer, exitem mulheres que vão de um lugar a outro para trabalhar, sabemos que a situação se tornou famosa através daquelas vitimas do trafico de pessoas que trabalham nas industrias têxteis, ou que fazem casamento forçado, servil, no sentido que, quando casa, se torna empregada, prisioneira, não pode sair, não consegue ter o minimo de autonomia. Então, estes casos, também, são situações de total exploração Hoje, nós vemos o crime de exploração sexual como mais conhecido, com o qual trabalhamos mais e, historicamente, o mais presente na maior parte dos casos e, percebemos que existe uma falta de conhecimento em relação a estas outras realidades de exploração, dificultando a identificação do caso como trafico de pessoas, mesmo porque, é o mais difícil de descobrir, incluindo a responsabilidade, porque na nossa lei, hoje, existe esta ligação, ou seja, a lei vincula o trafico de pessoas à prostituição. Por isso, é difícil identificar certos casos como reato de trafico de pessoas, então, este registro não consta nem na justiça, nem na segurança publica. Então, estas realidades são subvalorizadas, mas sabemos que exitem estes outros tipos de exploração (Bras7, responsável, Núcleo Antiviolência). Alguns depoimentos enfatizam também a escassez de sanções, a quase total impunidade dos exploradores ligadas à forma de penalização, e a vulnerabilidade das vitimas e dos familiares em caso de denuncia. É ridículo, pois no Brasil, é muito mais grave o trafico de drogas, de cocaína, onde a pena vai de 5 a 15 anos, em comparação com o trafico de pessoas. Nós sugerimos ao grupo CNJ, ao Ministério da Justiça e ao Congresso Nacional, o aumento da pena de 6 a 15 anos de reclusão, mas parece que será aprovado só de 4 a 10 anos. O traficante é seguro da impunidade; sabe que se a pena é de 8 anos, ele deverá cumprir pena em regime semiaberto, ou seja, vai só dormir na prisão, mas durante o dia está livre, então, vai continuar traficando. Assim, na minha opinião, o sistema penal, o sistema de repressão no Brasil, serve de estimulo ao trafico de pessoas. Por esse motivo, a urgente necessidade de modificar a legislação (Bras4, Juiz, CNJ). A própria pena, a dosimetria da pena, né? Uma pessoa, principal acusado de um crime deste tipo, tem a mesma pena de uma pessoa que roubou um celular, ou seja, de 1 a 4 59 anos - pena extremamente leve para um crime que viola os direitos humanos mais importantes de uma sociedade: a vida humana, o ser humano (Bras6, Politico, CPI). Temos já dificuldade com relação às denuncias dos casos porque, na maior parte dos casos, as vitimas se sentem envergonhadas, e tem medo de denunciar, pois são ameaçadas, a família é ameaçada. No Brasil, não existe um sistema adequado de proteção As vitimas ficam muito vulneráveis O Estado não dá à família da vitima, quando esta faz a denuncia, um sistema de proteção Nem a vitima, nem sua família são levadas à um lugar seguro. Não existe um sistema de reintegração da vitima no mercado de trabalho, por exemplo. Por isso, a vitima não se sente por nada segura para denunciar a quadrilha, e todos esses motivos acabam gerando uma grande impunidade no Brasil, sendo este um fator estimulante para as quadrilhas (Bras4, Juiz, CNJ). Enfim, ainda com relação aos pontos críticos da atual legislação brasileira, os depoimentos indicam a ausência de limites com relação à liberdade de movimento de menores de idade no território nacional. As pessoas menores de idade, para viajar dentro dos limites nacionais, não é necessário a presença de um adulto, nem de um tutor, nem da autorização dos pais. Esta total liberdade irá, de fato, tornar essas pessoas mais vulneráveis ainda, facilitando a ação das redes criminosas e de potenciais exploradores. [Os meios de transporte] são terrestres e não terrestres, porque hoje, por exemplo, um jovem de 13 anos pode viajar no interior no território nacional; a lei permite, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) permite, sem a autorização dos pais, nem de tutores, nem juiz, nem nada. Um jovem pode pegar um avião em Belém do Pará, e chegar em São Paulo, basta ter um documento de identidade. Ele é livre para se deslocar, viajar. E esta é uma das coisas, por exemplo, que queremos corrigir na legislação, tentar inibir um pouco mais a vulnerabilidade que um jovem de doze anos, uma criança de doze anos pode ter com essa autonomia de movimento, viajando dentro do território nacional (Bras6, Politico, CPI). Portanto, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, são considerados menores quem tem de 0 a 12 anos, adolescentes de 12 a 18, e podem viajar sozinhos, pois a questão de viajar sozinhos foi internamente discutida em fóruns, conferencias, em termos de movimentos sociais, inclusive, é uma questão discutida também pelo Governo (Guar1, ASBRAD). 1.5.3. Protagonistas do trafico de pessoas, vulnerabilidade e formas de aliciamento As potenciais candidatas ao aliciamento são mulheres biológicas – prostitutas ou não – e mulheres trans, para as quais o mercado do sexo parece ser a única possível saída, frente a uma sociedade ainda fechada às mudanças e ao respeito discriminante com relação a quem parece violar o tabu de uma identidade de gênero, sem considerar o corpo biológico Praticamente, existem três perfis diferentes de vitimas, na região de Goiás, por exemplo, existem muitos casos de mulheres vitimas do trafico; estas mulheres vão pro exterior sem saber que terão que se prostituir, nem que serão exploradas, vão em busca de trabalho 60 como barista, garçonete, cuidadora, dançarina, modelo. As garotas aqui do Ceará, pela nossa experiencia, elas sabem já que terão de se prostituir, mas elas não conhecem as condições em que vão se prostituir, acreditam que vão ganhar em dólares, em euros, que vão poder fazer turismo, viajar, “mandar dinheiro pra mãe”, mas quando chegam ao destino, não é nada daquilo, não podem escolher os clientes, são obrigadas a trabalhar varias horas por dia, a divida é enorme. A divida dos travestis é ainda maior, pois saem daqui já endividados, por exemplo, com megahair, tratamento hormonal, prótese de silicone, então, a divida dos travestis é muito mais alta do que a das mulheres, e quando chegam la, a realidade é outra, elas sabem que terão de se prostituir, mas a realidade é sempre outra, mesmo assim, para aquelas que conseguem voltar, e conseguem se livrar da divida e do esquema todo, elas acham que vale a pena viajar e passar por todo esse tipo de violência ali, tem sempre aquela esperança, talvez de ganhar um pouco mais, assim para poder mandar dinheiro pra família, pro filho, pros parentes, e esta é uma outra dificuldade com relação ao “reato trafico de pessoas”, pois mexe com a esperança e os sonhos das pessoas, elas nunca vão pensar que algo de terrível possa acontecer, que podem morrer, etc.. Procuram sempre tentar obter melhorias que, realmente, aqui não tem (Bras2, Coordenadora NETP). As vitimas são geralmente prostitutas que trabalham e dizem “ah! Vou te uma vida melhor, vou me prostituir e ficar rica”, só que ela vai, daí fazem ela pagar a passagem, a estadia, praticamente, a pessoa trabalha de graça, todo o dinheiro representa divida, de roupas, da viagem. Ou existem aquelas ainda mais ingenuas, “ah, tenho que viajar, fazer um curso de formação, me prometeram isso e aquilo”, daí chegam lá e se trata de prostituição (Fort8, Delegado). Quem explora escolhe, como sempre, as candidatas em case aos indicadores de vulnerabilidade sócioecomonica e afetiva: garotas muito jovens vindas de famílias problemáticas ou que já são mães solteiras, e sozinhas; nível de escolaridade baixo; vidas problemáticas, marcadas pela violência Olha, o perfil destas pessoas é de vulnerabilidade econômica e sócio-afetiva (Bras6, Responsável pelo Núcleo). Pelos dados que tivemos até agora, pelo que observamos, as vitimas são geralmente muito jovens, de 18 a 30 anos. São pessoas de baixo nível de escolaridade, vindas de famílias de baixa renda, pobres. Muitas são “chefe de família”, ou seja, a família é dependente dessa pessoa. No caso do trafico de pessoas para fins de exploração sexual, a maior parte das vitimas, já se encontra em situação de prostituição, e aceita as propostas, as quais são, geralmente, propostas fascinantes de uma vida melhor, uma renda melhor. Normalmente é assim: “Escuta, você vai ter que se prostituir, mas vão te pagar em euro, em dólar” e aqui, normalmente, a pessoa que se prostitui recebe em reais e, muitas vezes, pouco. Temos também noticias, em Goiânia especialmente, de vitimas universitárias que vão em busca de um sonho, o desejo de se tornar modelo; sabem dos serviços sexuais, mas estão sempre em busca de algo mais, algo maior, um glamour que, na realidade, não passa de uma ilusão Elas compram essa ilusão e, acredito eu que, nem mesmo elas tem ideia do que vai acontecer, e mesmo assim, vão em busca desta ilusão, deste sonho. Mas a grande maioria das vitimas são pessoas de baixa escolaridade, em situação de vulnerabilidade social e econômica Geralmente possuem pelo menos um filho, são mães solteiras e vão, pensando que farão programas sexuais por 180 euros, 200 euros, e isso é uma coisa absolutamente irreal (Bras4, Juiz, CNJ). 61 As vitimas do trafico interno, principalmente adolescentes, já há tempos explorados pela comunidade onde vivem, pela família, talvez já tenham sofrido algum tipo de violência e vão pras ruas e rodam pelas cidades do interior, trabalhando em salões de massagem, em pequenos bordeis, de modo que a mercadoria não se torne obsoleta, então vão pra estas cidades que possuem estradas movimentadas, postos de gasolina, onde tem um grande movimento de caminhoneiros, de modo que possam ser exploradas ao longo da estrada. E então, o trafico internacional é a partir dos 18 anos. Geralmente são mulheres que já tem filhos, um ou dois, que moram com as avós, não existe aquela estrutura familiar tradicional: pai, mãe e filho, é outra coisa, se trata de famílias monoparentais, formadas pela mãe, os seus filhos, as irmas, os filhos das filhas, e então, elas saem daqui já com filhos, ou então, ainda não tiveram filhos, mas podem voltar gravidas ou com filhos, resultado da estadia no exterior; de qualquer maneira, se trata de um contexto de família não estruturada, ou seja, desestruturada, talvez tenham já sofrido algum tipo de violência, ou exploração, ou violência domestica dentro da própria família, elas devagarinho nos contam as coisas (Bras2, Coordenadora NETP). As estorias contadas pelas garotas entrevistadas – todas jovens, às vezes já com filhos, e um baixo livel de escolaridade – parecem confirmar o quanto enfatizado pelos depoimentos citados há pouco: Sim, [fui violentada] pelo meu tio! E neste caso, meu pai deveria ser a primeira pessoa a me ajudar, certo? Me ajudar... ao invés disso, foi o primeiro a encobrir, para não ter escândalo na família. E, como resultado deste estupro, tive uma filha, e a gente vive como irmas, entende? É uma situação complicada. Eu tenho 34, e minha filha tem 15, quase 16. Ela não sabe que sou a mãe dela, a gente se trata como irmas, pra onde eu vou, eu levo ela comigo. Pois eu nunca vou abandoná-la Olha, você vai me desculpar mas, depois daquilo que aconteceu comigo, a família pra mim não existe, concorda comigo? Porque eu tinha um valor de família e foi destruído, entendeu? Desde aí eu ganhei o mundo, eu sai, então... cai numa vida, (inaudível) cai numa vida é... promíscua, certo? Então eu to assim... trabalhando, me prostituindo (Estorias de vida, V., Fort7R). Casei, fui embora com ele, tive minha filha. Sofri muito com minha filha. Já passei a noite fora de casa, no frio, debaixo de chuva com minha filha, ainda pequena. Nossa Senhora! A minha menina era a coisa mais linda, linda, parecida de revista, assim loirinha dos olhos verdes, uma beleza inexplicável, mas minha filha passava a noite debaixo de chuva comigo pois a gente não podia voltar pra casa, porque simplesmente, aquele bêbado não deixava a gente entrar, quebrava tudo o que tinha na frente, e o que sobrava, ele ia lá e quebrava. Era assim, um desastre, uma cruz que carreguei nas costas. Quando tive minha filha, eu tinha 17 anos, e larguei do cara que eu estava quando tinha 19, porque não aguentava mais, sabe. Daí, um dia, tinha uma minha amiga que ia sempre pro Beira Mar (bairro de Fortaleza), eu nem sabia o que tinha nesse bairro, o que ele representava, eu não era daqui, sou do interior. Minha amiga me disse “menina, você já sofreu assim tanto, não tem nada pra você nem pra tua filha, porque não vem comigo pra praia de noite?” (Estorias de vida, Y., Fort6R). O que estimula as mulheres a aceitarem ofertas arriscadas é sempre a necessidade e o sonho de melhorar a própria situação de vida. Neste sentido, podemos falar de escolha, mas sob duras condições vinculativas. O trafico de pessoas está sempre ligado a um sonho, um sonho bem sonhado e mal (Fort2, Freira, ONG). 62 Tem muitos que agridem muitas meninas aqui, entendeu? Assim, eu falo assim, ninguém tá aqui por gostar, tá por necessidade, porque tem pessoas que dizem “Ah, são prostitutas? Ah, elas tão aqui porque elas gostam disso”. Não, não é fácil você um cara cada noite, não é fácil. Às vezes você passa uma semana sem não ter um real no bolso, não é fácil. Você ter filhos, família para sustentar, aluguel para pagar. Agora mesmo, eu to tendo que pagar 600,00 reais de aluguel, não tenho um centavo, tá entendendo? E eu já sei, to no limite, a moça lá fica me cobrando, me cobrando, me cobrando, me cobrando, você tá entendendo? (Estorias de vida, V., Fort7R). É a velha estoria do príncipe encantado, acreditam sempre no melhor. Mesmo as garotas que encontramos. Inclusive, a presidente da APROS, Rosarina Sampaio, quando nos vemos em reuniões varias, eu lhe digo: “não Rosarina, existem algumas correntes feministas que defendem a autonomia da mulher, a mulher pode se prostituir porque é dona do próprio corpo “o corpo é meu, faço dele o que quiser”. E ela me diz: “não, Lívia, as garotas que conheço não vão porque querem... sim sim.. falo destas garotas prostitutas mesmo, não vão porque querem. Estou acompanhando um caso onde a vitima, na época, tinha 5 filhos, ninguém dava emprego pra ela, e ela, na necessidade, com 5 filhos, com os horários todos confusos, acabou na prostituição. Também as garotas que encontramos nas ruas: “foi a maneira que encontrei, não tinha nenhum diploma, não consegui seguir com os estudos” ou então porque não gostavam mesmo de estudar, não tinham nenhuma estrutura familiar em casa, não queriam estudar em casa, “e foi isso que consegui achar, porque era mais fácil, mais pratico” (Bras2, Coordenadora, NEPT). As propostas usadas como iscas por quem alicia, tem a ver com um trabalho feito dentro ou fora do país, e no caso de mulheres que já trabalhavam como prostitutas ou trans, a proposta se refere explicitamente ao mercado do sexo. A oferta, nestes casos, se torna mais tentadora pela atração dos grandes lucros e da boa vida e – para as trans – também pela possibilidade de transformar o próprio corpo de modo coerente. Falam muitas coisas né. Que vão pra lá, passam necessidade, é mais ou menos a vida que passou agora na novela né. Aquilo ali não é ficção, é vida real né. Muitas vezes aquilo ali realmente acontece. Então quando elas vão é pra trabalho né, foi o que passou na novela. É, a maioria é. Eu fui, passei lá três meses mas eu fui férias, tá entendendo. Ele, uma pessoa séria, responsável. Mas tem muitas meninas que vão para trabalho, as vezes sai daqui enganada né com mil propostas que hoje ela vai dormir pobre e amanhã vai amanhecer rica né. Isso aí não existe. Lá fora é uma vida totalmente diferente. (Entrevista, N., Fort5R). Não, ele disse, ó “Você vai, você vai ganhar muito dinheiro, porque lá as brasileiras são requisitadas”, coisa e tal... aquela deslumbramento que te... deslumbram a visão. Aí eu fui, né. Foi tudo certo, passagem, tudo... chegar lá ele... é uma história, que nem passou na novela (Salve Jorge), é uma história que realmente acontece, eles tomam teu passaporte, você fica... entendeu? Toda noite você tem que sair e... manhã, tarde e noite, entendeu? (Entrevista, V., Fort7R). Bem, temos duas situações, né, que identificamos como mais frequentes Umas se trata de mulheres prostitutas que sabem que vão pra lá pra isso, tem vontade, talvez, de se prostituir em outros países, ou outros estados dentro do Brasil, e recebem propostas que, 63 pra elas são propostas pra melhorar a situação em que vivem no trabalho, ligado à prostituição. Porém, quando chegam ao destino, de fato, se dão conta que as promessas não foram realizadas (Bras7, Responsável pelo Núcleo). Se para as mulheres a oferta de emprego no mercado do sexo representa, geralmente, uma escolha com condições vinculantes, para muitas garotas e trans, parece ser a “única escolha”, diante a da própria família e de uma sociedade que ainda não está pronta a aceitar, com serenidade, aqueles que não entram nos modelos tradicionais. Bem, existem tantos casos de pais, e também de filhos, que não querem ter um colega gay, imagina um travesti.. “então, eles põe a gente pra fora de casa no começo de nossas vidas, assim, a gente fica sem opção de trabalho, de estudo, porque as empresas não nos dão esse direito, porque, além de não ter diploma, não deixam nem a gente fazer um curso de formação, então, não somos capazes de desenvolver um determinado serviço. Daí, o que nos resta é a prostituição, que não é por nada fácil, é a própria sociedade que nos empurra para a prostituição, é a própria sociedade que nos procura, é a própria sociedade que nos agride, é a própria sociedade que nos joga pedras, que nos massacra, pra depois querer limpar a cidade como disseram” (Fort9, Coordenadora, ATC). Os travestis contam sempre isso. Claro que alguns deles dizem: “é serio, é um aspecto da minha personalidade de travesti, gosto de me prostituir para me sentir desejado, etc..”Alguns. Mas a grande maioria deles diz: “olha, fui expulsa de casa muito cedo, não tinha família. Encontrei outras como eu, e acabei me prostituindo, era o único modo de que eu tinha pra sobreviver.” Vemos muito isso no nosso trabalho, em depoimentos nacionais e nas pesquisas. E bem assim mesmo, as travestis, no inicio: “ah que lindo! ... trabalhar o dia todo de cabeleireiro, mas com a prostituição posso ter ainda mais! Ganhar mais dinheiro!” Porque é assim, os ambientes de trabalho são esses: cabeleireiro, manicure, esteticista, entendeu? Não é que tem uma vaga de maquiadora pra todas, nem todas têm esse interesse, é um desafio, um desafio também pra elas, porque na verdade, é uma oportunidade que elas nunca tiveram, e vão porque querem ganhar a grana delas, querem sobreviver, querem se vestir bem, querem ficar lindas, querem ser tratadas como damas, por isso deixam o Brasil, porque acreditam que os europeus, por exemplo, são mais gentis, não as tratarão mal, mas as tratarão como damas, como gostariam de ser tratadas aqui, e não vão sofrer violência (Bras2, Coordenadora, NETP). A homossexualidade é uma escolha sexual, ok? Travestis e transexuais, travestis principalmente, quem estuda o travesti sabe que, na fase inicial, são expulsos de casa, não são aceitos na escola. Então, a atividade sexual, o trabalho sexual é uma escolha de trabalho preferencial pra eles, e ali, naquele momento, entram, a meu ver, na mesma situação das prostitutas. Eles podem se encontrar em uma situação de exploração ou em uma situação de não exploração. Podem entrar em um giro normal de prostituição e, em um certo momento, cair na rede do trafico de pessoas. Podem sair desta situação de exploração e voltar para a situação de prostituição (Bras8, Antropóloga). 64 As mulheres, os trans, fazem essa escolha, apesar das difíceis condições e a ausência de alternativas mais concretas e definitivas. De qualquer maneira, se trata de uma escolha, e talvez seja por esse motivo que não conseguem – ou não querem – se enxergar como vitimas. A grande dificuldade é justamente essa, porque, na maioria dos casos, a vitima viaja de livre e espontânea vontade. Tai a dificuldade. De acordo com os dados da Policia Federal, 90% das mulheres que são traficadas para fins de exploração sexual, não se reconhecem como vitimas, pois elas querem mesmo sair do país. Mas o que elas não entendem são as condições que encontraram lá fora. Mas sabem do fato que serão exploradas sexualmente, muitas vezes, tentam sair da situação, não admitem terem sido enganadas, querem ter o direito de ir e vir estabelecido pela Constituição É essa a nossa dificuldade (Bras4, Juiz, CNJ). Mas elas (trans) não se reconhecem, né, enquanto vítimas, elas consideram que as artistas, as atrizes têm empresários, que ganham em cima daquela atriz, então elas: “Por que o cafetão, entre aspas, não pode ganhar também”. Então aparecendo alguma possibilidade, alguma chance, alguma mudança de vida para aquela menina, aquela travesti, então “melhor do que ficar aqui” sem nenhuma perspectiva, na situação em que ela está. “Vou tentar, pode ser que dê certo, pode ser que não, então é na tentativa né” (Bras2, Coordenadora, NETP). No caso do Brasil, em situações parecidas com aquelas descritas pela Romênia, quem alicia é, normalmente, uma pessoa próxima da vitima: uma vizinha de casa, a cabeleireira do bairro, costureira, um parente. Olha, quem aliciava as vitimas eram pessoas, geralmente, muito próximas a elas, uma cabeleireira que gostavam muito, ou uma pessoa que trabalhava com dança; na verdade A., que foi o maior aliciador daqui, era costureiro; então, eram pessoas que tinham acesso à vitima, pessoas conhecidas, muitas vezes uma convida a outra, sabe.. entrou sem querer nesta situação e chama a amiga também, ou alguém da família, a família se mobiliza, ajuda, mas, antes disso acontecer, tem família que não tá nem aí, especialmente se não existe ainda uma violência extrema, uma situação de opressão, eles não denunciam, não se sentem vitimas (Fort4, Delegado, DDM). Assim, pelo que a gente vê, através da nossa assistência, é que o aliciador, normalmente, é alguém muito próximo à vitima. Então, pode estar envolvido em redes domesticas, nos contatos mais próximos, tipo, uma amiga, alguém da mesma comunidade. São pessoas que inspiram confiança e que, mesmo não estando pertinho, de qualquer maneira, inspiram confiança (Bras7, Responsável pelo Núcleo). Estas armadilhas que vem do próprio vizinho de casa, do amigo, do proprietário do bar, do namorado, do ex-marido, de todas as partes, em modos diferentes, eu já vi todas as possíveis formas de aliciamento (Guar1, ASBRAD). 65 Não é raro que as aliciadas de ontem se tornem aliciadoras de amanha, fazendo o jogo, passando aquela imagem de uma migração de sucesso. Geralmente são pessoas da própria comunidade, que procuram passar uma imagem de confiança, de sucesso no exterior, ou seja, “fui, voltei, ganhei grana, comprei minha casa, me transformei (no caso das trans), tive sucesso, você também pode ter sucesso”. Então, muitas vezes a vitimas de outrora se torna aliciadora e, quando existe um contato, por exemplo, uma pessoa no exterior que quer explorar a vitima na Itália, ela procura uma pessoa aqui, de preferencia uma pessoa que fale a língua, que demonstre sucesso e as boas coisas que obteve no exterior, para tentar seduzir estas vitimas o mais rápido possível; por isso, não são quadrilhas, são só estrangeiros, estrangeiros que se organizam em quadrilhas e recebem ajuda de pessoas daqui, as quais trabalhavam já com esses cafetões, estes intermediários que trabalhavam já no mercado do sexo (Bras2, Coordenadora, NETP). Sabemos também que muitas das vitimas tem a grande possibilidade de tornarem-se, por sua vez, exploradoras. Elas são aprisionadas neste sistema e se tornaram vitimas e, por um ou outro motivo, quando chegam ao destino, acabam se tornando aliciadoras ou exploradoras. Acontece quando chegam ao destino, se encontram em situações muito diferentes da situação em que se encontravam antes, então, para ter um pouco mais de benefícios dentro desta situação de escravidão, começam a aliciar também (Bras1, funcionário, SNPDCA). Não, não se trata de uma organização E isto a gente ouviu de mais de 50 interlocutores diferentes. Ou seja, o que nós chamamos de trafico de pessoas não é administrado por nenhuma grande organização Se tratam de pequenas redes que, talvez não se vejam nem como redes. Simplesmente, são pessoas que voltam pra sua cidade natal, são pagas pelos próprios patroes, e contam uma estoria muito otimista, muito positiva da experiencia que viveram no exterior, aos amigos, parentes, enfim, pessoas conhecidas. Praticamente, ninguém se deixa enganar por um estranho. Normalmente, o que a gente chama de rede são: amigos do bairro, familiares, pessoas conhecidas, porque isso traz muita confiança pra vitima. Tem aquela prima que voltou muito bem vestida, com joias, etc, dizendo que na Europa se ganha bem, assim, a vitima confia na sua prima, na amiga da prima, na tia da amiga da prima. Então, as redes sabem exatamente onde ir para aliciar as vitimas. Começam nos bairros, onde encontram um maior numero de pessoas conhecidas. É muito mais fácil (Bras9, L., ministra). Geralmente, as vitimas são aliciadas por uma rede criminosa e, quando digo “rede criminosa”, não estou falando de uma rede criminosa bem estruturada, grande, não. Às vezes, se trata de uma única pessoa, uma vizinha de casa, às vezes, uma pessoa da própria família, que viveu uma situação de trafico, e foi promovida a aliciadora local. Então, ela volta pro seu país, pra sua cidade natal, e tenta aliciar algumas pessoas, com promessas de emprego, incluindo trabalho como prostituta. Mesmo porque, o trafico de pessoas não se opõe às politicas (Bras3, Coordenadora, SNG). Se não são estrangeiras, são brasileiras. Às vezes, um brasileiro casa com um estrangeiro e vai morar no exterior. Este estrangeiro, talvez, está já envolvido com situações de prostituição, então começa a aliciar por aqui, talvez tenha algum amigo, um conhecido 66 que esta a par da situação e quer ganhar algum dinheiro com isso; ou então tem aqueles conhecidos da família (Fort8, Delegado). Muitas vezes, as famílias são cúmplices, porque, mesmo quando não estão diretamente envolvidas na exploração, não perguntam e nem se intrometem, exceto porém quando param de receber dinheiro. A gente desconfia [das famílias]. Não é que elas dizem “ah, fui explorada pela minha mãe”, elas dizem, por exemplo.. a garota deste caso que estávamos falando me diz: “sabe, eu tinha que trazer dinheiro pra casa, não importava como eu ia ganhar o dinheiro, o importante era trazer dinheiro pra casa. Claro que minha mãe e meu pai sabiam o que eu fazia, mas não falavam nada, queriam só o dinheiro”. E pra gente, isto é um problema, um desafio, ver que a família da vitima denuncia o caso só quando a vitima desaparece, por exemplo no exterior, ou então, em outra cidade do Brasil. “E aí, como foi que esta vitima desapareceu? Vocês perceberam porque ela não ligava ou não escrevia mais?” “não, é que ela parou de nos mandar dinheiro”. Então, mesmo se a vitima não dá as caras, não diz nada sobre como são suas condições de vida, etc, mas manda dinheiro, então a família pensa que tá tudo bem, e nem pensa em procurar o núcleo Nós recebemos casos onde a família procurou a vitima somente quando não recebia mais o dinheiro, mas, às vezes, é tarde demais. Neste caso, né, a gente conseguiu localizar a vitima, ela estava bem, não era vitima do trafico, como tinha dito, inicialmente a família. Este caso já foi direcionado ao Consulado e à Embaixada, mas de qualquer forma, como te dizia, as famílias nos procuram pra fazer denuncia somente quando as garotas ou garotos param de mandar dinheiro; foi até ilustrado por uma pesquisa “Viagens Transatlânticas”, publicada recentemente pelo Ministério da Justiça, que fala de uma mãe.. tinha esse contato entre mãe e filha, pelo telefone, a filha dizia: “eu to passando por isso.. sofrendo com aquilo.. não aguento mais..”, e a mãe dizia: “filha, escuta, eu to acabando de reformar a casa, aguenta firme mais um pouco, manda ainda um pouco de dinheiro, e depois pode fazer o que você quiser”. Existe esta relação de total dependência, a família que fica aqui e precisa do dinheiro que a vitima ganha, com muito esforço, no exterior (Bras2, Coordenadora, NETP). Porque agora, a minha mãe me respeita, porque tem dinheiro entrando na sua conta do banco, entende? Quem dita as regras é o dinheiro, se tenho dinheiro, toda a minha família me aceita, é bem assim, quando não tiver mais dinheiro, minha família me ignora. Pra nós, travestis, a situação é bem assim, uma situação muito.. quer dizer, não importa se estou doente ou não, se tenho AIDS ou não, mas se eu mando dinheiro pra família, tudo muda, talvez comprem uma casa com a grana, mas que seja bem longe de mim... vez em quando vem me visitar, comemos juntos... se não, fica ai na tua casa e não venha encher o saco (Fort9, Transexual militante). 67 1.5.4. Aquele discreto limite entre turismo sexual e trafico de pessoas O trafico de pessoas, então, nasce de um sonho mal realizado, o sonho de melhorar as próprias condições de vida, sair da miséria, fugir de situações familiares problemáticas – quando não, violentas. Mas o sonho, para muitas, é sempre aquele do “príncipe encantado”, do gringo - o turista estrangeiro – que chega, encanta e prometem a elas um futuro rosa, não só do ponto de vista econômico Sonhos que, na maior parte dos casos, batem de frente com a realidade. A mulher tem sempre essa ilusão de se casar, de ficar bem, disto e daquilo. Você viu o que aconteceu três, cinco dias atras, uma garota aqui do Ceará casou com um alemão, mas o alemão tratava mal as crianças e coisas desse tipo.. trancava ela em casa, como um carcere privado, e ela, o que podia fazer? Voltou pra cá, pro Ceará, sem dinheiro, como antes. Então, existe ainda quem se ilude com o casamento, o que podemos fazer? (Fort9, trans militante). Tem muitas garotas do Ceará que vão principalmente pra Espanha, em Santiago de Compostela, e é uma novidade interessante que vimos nas pesquisas: não só casos de exploração sexual, mas casos individuais, onde eles as levam daqui já com promessa de casamento; quando chegam ao destino, não se casam mas as fazem trabalhar como escravas nos trabalhos domésticos, ou então, como escravas sexuais de alguns amigos e parente. As mulheres e as trans que vão pro exterior, acreditam que o gringo seja seu príncipe encantado, vemos muito esta situação Elas querem sempre encontrar um gringo loiro, alto, rico, o príncipe encantado das fabulas que ouviam quando pequenas, contadas pela mãe, então vão em busca do casamento dos sonhos, em busca de amor, e não só em busca de dinheiro, mas de um homem perfeito, deste amor que nunca encontraram por aqui (Bras2, Coordenadora, NETP). Estou feliz, festejo pois estou indo viver lá agora, é uma pessoa que conheço há três anos; não tem nenhum perigo que me trate mal, pois eu já vi muitos casos de homens que pegam as mulheres, colocam elas pra se prostituir, coisas assim. O meu é meu marido, ele me ama, né? Tem três anos (Entrevista, A., Fort8R). O turismo sexual pode ser feito a titulo de experiencia, ou pode se tornar um trampolim para o trafico de pessoas. O turismo sexual funciona como um trampolim para o trafico de pessoas, e é o que acontece: o turista chega, conhece a garota, se apaixona pela garota, ela, com aquele sonho de encontrar seu “príncipe encantado”, que seria a melhor coisa que poderia acontecer na sua vida. Em geral, eles (os turistas) mantém as garotas por um período, aqui no Estado, pois as garotas tem uma condição econômica muito desfavorável; em seguida, as levam embora, com falsas promessas que , na Itália vai ser uma fabula, e então começa 68 o trafico de pessoas, garotas que se submetem à violência, a serem escravas do sexo, do trabalho doméstico. Via muito isso. As garotas, vitimas do trafico de pessoas, tinham entre 18 e 24 anos, jovens, morenas, não eram negras, eram morenas, bem miúdas de constituição, magras, tinham o corpo um pouco infantil, assim, sem peito. Ninguém dava 18 anos pra elas! Tinha tipo um perfil de preferência por essas garotas, ou seja, a garota morena.. e eu sempre me perguntei porquê, ah é porque as “cearenses” são mais afetuosas, são quentes. O turista sexual fazia certas comparações quando a gente interrogava eles; eles dizima “ah não!, as alemãs são muito arrogantes, as inglesas são muito frias..”. Sabe, tinham até o perfil das cearenses, ou seja, o estereótipo delas. É engraçado como eles veem as mulheres daqui e pensam que são fáceis de cortejar, de manter, muitas vezes, próprio por causa da própria condição econômica, a baixa escolaridade, a pobreza, e na própria família, muitas foram abusadas sexualmente durante a infância, então, pra ela.. ela pensa que ele é seu príncipe encantado, de verdade.. ela não foi por causa do convite, “ah, eu fui porque eu quis”, mas depois, quando as coisas começam a dar errado lá [no exterior], elas se encontram em uma situação de restrição e violência, e é ali que entendem o que é o trafico de pessoas (Fort4, Delegado, DDM). No inicio, eles tentaram esconder esta relação do turismo sexual com o trafico de pessoas, mas na pratica isso ocorre, a gente sabe que existe uma relação. Nós tentamos desconstruir esse termo “turismo sexual”. Um dia, eu estava tendo aulas em uma escola sobre turismo, e me perguntam: “Doutora, existe o direito de corrupção?” e eu: “não, existe o direito ambienta, o direito penal”. E ela: “então não chame de turismo sexual, né? Quer dizer, existem exploradores sexuais que usam estas estruturas turísticas para desenvolver essa atividade ilegal.” Desde então, parei de usar esta expressão “turismo sexual”. Mas existe mesmo, é visível, às vezes, quando as garotas estão nos focos de prostituição, tem uns taxistas que chegam assim, misteriosamente, passando como se estivessem fazendo a ronda, ou algo do tipo, pras redes hoteleiras, principalmente nestes hotéis e restaurantes de estrangeiros.. tem aqueles que são de propriedade do estrangeiro, ou então que o estrangeiro é diretor, empresário.. se suspeitamos de alguma coisa, a gente avisa a policia, a delegacia que ajuda os turistas, ou a policia federal, dependendo do caso. Mas vemos que existe, e é por isso que o trabalho de prevenção que fizemos nos hotéis, nas associações dos taxistas, nos pontos turísticos, por exemplo, no mercado central; nós estamos intensificando, principalmente agora com a Copa; vemos que existe essa preocupação também nas cidades litorâneas.. os proprietários dos buggys.. Tem também “empresários” que possuem os “books” (de fotografias) das garotas, pra oferecer pros turistas. Nas feiras também... aconteceu, por exemplo, durante a festa do Padre Cicero. Tinha essa pessoa que mostrava esse álbum com fotos de garotas. Infelizmente existe. Existe uma relação, tanto é verdade que já estamos organizando um curso sobre o tema exploração sexual, trafico de pessoas e turismo, para os profissionais da segurança publica, assim eles serão capazes de identificar, seja no aspecto mais teórico dos Direitos Humanos, seja nos aspectos práticos, esta ligação, e o que fazer, como se comportar, como quebrar o preconceito, porque muitos dizem: “ah, se ela foi, é porque quis ir, é uma garota de programa, entre aspas, e ela vai porque quer”, e ninguém pode fazer nada, porque quando a adolescente é explorada, ela não pode dizer se pra ela tá bom ou não (Bras2, Coordenadora, NETP). Sim. As duas coisas são colegadas. O turismo sexual é este lado da moeda. Através dele, os estrangeiros entram em contato com as casas noturnas do Brasil, com os bordeis, conhecem mulheres e homens brasileiros, fazem os primeiros contatos que, mais tarde, darão vida a este fluxo. Então, estas duas coisas estão intimamente ligadas (Bras9, L., ministra). 69 Tentamos, então, reconstruir melhor os cenários do turismo, a partir dos depoimentos. O envolvimento é bastante fácil e mais próximo de uma abordagem não relacionada à compra de sexo. Então, assim, tu tá sentada em uma mesa, o cara começa a te flertar e te chamar pra mesa, aí tu vai lá, bate um papo e rola de combinar, certo, o valor. Aí ele vai lá, uma hora é tanto, tá ótimo, vai. Agora, se ele gostar, ele vira teu cliente, entendeu? Ou então ele fala “Oh, vou passar 20 dias aqui, quero você 20 dias comigo, quanto é que tu fecha o pacote para 20 dias?” É assim. (Entrevista, V., Fort7R). Os turistas, segundo as testemunhas, sejam eles estrangeiros ou não, não são muito jovens, de classe media, trabalhador, profissionais de médio escalão Acredito que sim, sabe porque? As pessoas que vem de uma classe social mais alta, da Europa, normalmente... não quer dizer que não venha gente assim, mas, normalmente quem vem é de classe social mais baixa, la da Europa. Não acredito que venham empresários especialmente para isso, o que vem é operário, de uma classe inferior mesmo, chegam aqui com dólares, euros, o dinheiro deles vale mais aqui (Fort, Taxista 2). São homens maduros, e as garotas são muito jovens. De fato, não se vê muito rapaz jovem, só homens mais maduros. (Fort, Taxista1). Os turistas são brasileiros e estrangeiros. Todos, todos. Os homens daqui, de Fortaleza, os turistas, os nativos do lugar. A maior parte das garotas não estão na beira mar; estes turistas não ficam o dia todo no mar, eles se informam onde tem garotas a um bom preço e vão nas periferias procurá-las (Fort1, NETP). O europeu, tipo assim, os trabalhos deles lá fora é assim, uma classe que você, assim, desvaloriza aqui no Brasil, é tipo o que, construção civil, garçom, bombeiro hidráulico, que lá é bem remunerado, recebe muito bem. E aqui no Brasil não. Tipo (ele) trabalha um, dois anos junta aquela quantia de dinheiro e vem para o Brasil né. Aí quando chega aqui a menina pensa que é rico, milionário, mas não é né. É, trabalhador. É uma vida que quando eles retornam ao país deles né não tem aquela vida lá de festa todos os dias não. É tudo regrado. Dia de festa, dias de trabalho né. Tudo tem suas regras mas de um pouco de cada coisa. Então a maioria são mesmo trabalhadores. Trabalhadores. O meu trabalha com construção, aí ele ganha muito bem porque lá fora né é mais, o euro né (Entrevista, N., Fort5R). Quanto a nacionalidade, em Fortaleza a maioria são italianos, seguidos pelos holandeses e suíços, noruegueses e, ultimamente, também os chineses, enquanto parece ter menos espanhóis nem norte americanos. 70 Italiano. O italiano, a maioria são italianos, depois vem os suíços, os holandeses e .. mais raramente, os espanhóis, e ainda mais raramente, os americanos. ah.. aqui é como se fosse a segunda casa dos italianos, Beira Mar, a segunda casa (Entrevista, P., Fort10R). É muito mais italiano que holandês, não muito inglês, não muito espanhol. Um pouquinho de tudo, sabe? Mas assim, nem velhos e novos, um pouco acima de 40, 50 60 anos, mas assim , sobre esse negócio de sexo eu não sei, que a metade vem que eu conheço para ver o lugar, outros vêm para sexo turismo mesmo, como a gente já sabe (Entrevista, H., Fort01R). Bom… Holanda, Itália, Portugal, Noruega, Suíça, mas depende do lugar... agora estão chegando um monte de chineses, tem uma grande empresa aqui no centro de Fortaleza (Entrevista, T., For04R) Algumas mulheres não acreditam que exista uma diferença substancial entre os homens que vêm de outros países, porém, algumas acreditam que exitem sim diferenças, e que os “piores” são os italianos. Bom, pessoalmente, não tem nenhuma diferença, mudam só de endereço e nome, porque os homens são praticamente todos iguais. Para mim não tem nada de diferente, só o país e a língua, tirando isso, não tem nada mesmo de diferente. Gringos e brasileiros tem, praticamente, o mesmo jeito de fazer as coisas. (Entrevista, H., Fort01R). Eu não gosto dos italianos, são os piores, os piores homens de todas as especies. Te digo uma coisa, serei um pouco mal educada mas, se um dia eu for presidente do Brasil, eu mando os italianos embora do meu país. Sinceramente, eles são uns porcos, nojentos. São ruins. É inútil comparar, eles são ridículos, mal educados. Uns verdadeiros palhaços. Melhor que ninguém me eleja presidente deste país, se não, se eu for eleita, os italianos não entrarão mais no meu país, nunca mais. Eles são uns tiranos, não valorizam a mulher, não querem nem saber, quer dizer, pensam que só porque estão pagando, podem praticamente estuprar a mulher. Não, assim não. Não é assim que funciona. Tudo tem que ser feito com delicadeza, até o sexo. Não tem amor, mas tem sexo. O sexo é uma relação Todas as relações sexuais devem ser vividas com afeto, com ternura. Por que falo de afeto, porque não tem amor, tem só sexo, mas ele está pagando por um sexo com afeto, com carinho, nós podemos sentir carinho por tantas coisas, por um animal, um cachorro, um gatinho, né? Então, porque não conseguem tratar uma mulher como se deve? Eu não gosto deles. Depois, tem outra coisa, quando chegam aqui, parece que usam uma mascara. Aqui eles têm um comportamento, no país deles, outro, são totalmente diferentes. No país deles são umas cobras, maltratam as mulheres, judiam muito das mulheres no país deles. Aqui eles são doces, gentis, mas vai pro país deles, vai, e você vai ver. Eu nunca fui e não tenho nenhuma vontade de ir (Entrevista, Y., Fort6R). 71 Este ultimo depoimento é interessante porque nos permite refletir sobre duas dimensões sugestivas. Primeiro, o tipo de masculinidade encenada nesta troca de sexo por dinheiro (Tabet, 2004), que é muitas vezes uma masculinidade que se define também através de uma sexualidade hidráulica (Ciccone, 2009), como uma válvula de escape, no qual a outra pessoa – a parceira sexual – é um objeto. Adicionado à isso, a representação dicotômica do feminino, que ainda prevalece em todas as sociedades ocidentais (embora com diferentes nuances), que rotula a “mulher de bem”, portadora de direitos e digna de respeito, e a “vadia”, aquela que perdeu o direito ao respeito e à proteção justamente por ser objeto sexual, por ser prostituta (O’ Connell Davidson, 2001). Com base em tal processo de construção social da masculinidade hegemônica, o cliente pode se sentir autorizado em realizar um ato sexual como se a outra não fosse uma pessoa. Tudo, então, se torna legitimo, até os modos brutais, a falta de respeito e até mesmo a violência O cliente/turista, mesmo se ele “estupra” alguém, maltrata, ou se mostra indiferente ao desespero de quem pede ajuda – como no caso descrito no capitulo anterior, da garota romena que chorava durante o sexo – não perde sua dignidade como cidadão e continua a ser um homem de bem, aos seus olhos e aos olhos da sociedade. Continua sendo “homem”. A segunda dimensão diz respeito, no entanto, às narrativas sobre o turismo sexual. As mulheres entrevistadas – mulheres ou trans – encenam performances destinadas a afirmar a dimensão das relações humanas e o distanciamento da realidade da prostituição, em seu verdadeiro sentido, então, essa troca econômica existe, mas parece ser um detalhe pouco importante em termos de definição da situação Tem uns que é mais assim, não sei como é que dá para explicar. Tem uns homens mais safados, tens uns mais comportados,os mais discretos, tem os que chegam logo: “ quanto é?” . O que é isso? Eu não estou a venda, né. Não sabem chegar perto de uma mulher, “quanto é? Quanto você quer?’’ Não é assim. Você não pode estar sentada no bar tranquila que já chega: ah! vai ali na Beira Mar, vai um pouco na discoteca, e sai para se divertir, não pode. Hoje, você é assediada em qualquer lugar que você estiver, seja na praia, na discoteca, no cabaré, em qualquer lugar que você chega. Mas fora isso, tem muito homem legal (Entrevista, H., Fort01R). Ele te pega ali, te leva pro apartamento, te paga e se ele gostou de você, te telefona. Se ele gostou, ele liga: “ah! A gente se vê amanha, gostei de você, vamos continuar saindo juntos até o fim das minhas ferias”. Aí eu: “ok”. Só que quando eu saio com ele, não estou ganhando dinheiro me prostituindo, tô saindo porque tô gostando, porque ele me dá presentes, assim, viajo, vou pra Canoa, pra Jericoacoara, essas coisas assim. Como eu falei, né, eu saio pouco com ele. Não se trata de escolher, porque, se chega um e diz: “ei! Sai comigo, te dou tanto”, a quantidade de grana pode ser que não valha a pena. Então se trata disto: se eu tiver que sair com uma pessoa, eu saio, mas com uma pessoa que valha a pena; não saio com qualquer um só pela grana, não, eu gosto de sair quando sinto vontade, quando quero mesmo (Entrevista, G., Fort03R, TS). No turismo sexual, esse cenário de troca de sexo por dinheiro muda, o que permite construir diferentes representações no que diz respeito ao relacionamento cliente/turista – definido também como cliente amigo ou namorado – e portanto, o seu papel no jogo da troca e na sociedade em geral. Seja qual for o nível de aderência às representações da realidade, um dos êxitos é aquele de diluir o estigma, favorecendo a operação camuflagem (mais eficaz para as mulheres que para as trans), e que as permite de serem menos percebidas pelos outros e de perceberem-se menos ainda como “vadias”. 72 De certa forma, esta função de camuflagem também funciona para o “turista”, que pode, mais facilmente que o cliente tradicional, fazer um discurso que tende a absolver a si mesmo (para um maior aprofundamento sobre a figura do cliente, consultar o quarto capitulo deste relatório). Em outras palavras, a construção de um quadro “artificial” onde reescrever o roteiro da relação cliente/prostituta e aplicá-lo no verdadeiro contexto do jogo da sedução entre homens e mulheres livres e conscientes, permite aos turistas sexuais falarem de suas próprias experiencias de relações sexuais a pagamento, minimizando os aspectos puramente econômicos de compra e venda, e suavizando a questão do desequilíbrio de poderes através das lentes estetizadas do relacionamento romântico entre “namorados”. Por estas dinâmicas, também muitas vezes aparecem representações de matriz colonialista que, do ponto de vista dos clientes, por um lado exacerbam as conotações estereotipadas construídas baseadas nas etnias – as sul americanas alegres, “calientes” e despreocupadas, as africanas sexualmente “animalescas” etc.. - e por outro lado, se aproveitam das condições de privação das “namoradas” como uma condição através da qual se autoabsolver ou até se vangloriar - “dando presentes, de qualquer maneira, você esta praticando uma boa ação pra essas pessoas que não tem nada...”-. 1.5.5. Redes, rotas e exploração no trafico de mulheres – e trans – brasileiras Todos os depoimentos coletados sobre o trafico de pessoas concordam com uma coisa, que não se podemos falar de grandes organizações internacionais envolvidas nesta gestão Seja no caso do trafico interno, seja do trafico internacional, se tratariam de pequenos grupos organizados em redes, de modo a proporcionar uma clara visão do trabalho e uma vantagem econômica pra todos. Não, não é uma associação internacional, são redes organizadas, grupos. Este, por exemplo, o aliciador de lá era o Zíngaro, casado com uma brasileira, R., então, esses dois, R. e o Zíngaro, foram eles que organizaram tudo. Ele era proprietário de um bar em Salamanca, e vinha pegar garotas daqui. Estava quase levando 5 garotas de uma vez só, mas conseguiu levar só 2 ou 3, porque as outras desistiram por algum motivo, ele vinha sempre aqui procurar mão de obra, digamos assim (Bras6, Politico, CPI). O que temos nas mãos, na verdade, são só provas. Evidencias. Assim, sabemos que, tanto no trafico internacional de pessoas, como no trafico interno, nacional, existe um certo nível de organização Normalmente tem uma quadrilha organizada, onde um deles fica no lugar de origem, para aliciar pessoas, um pra fazer o transporte, um pra receber a pessoa e outro pra explorá-la É uma cadeia. Começa no lugar de origem da vitima, depois chega no destino. Todos ganham: o aliciador, o transportador, o recepcionista e o explorador (Bras1, Funcionário, SNPDCA). Bom, daquilo que vimos, é muito difícil traçar um perfil adequado, um perfil único do traficante, mesmo porque, a rede do trafico de pessoas possui muitos atores, desde o aliciador que, em muitos casos, pode ser um membro da família da vitima; os taxistas, os proprietários de bares e restaurantes, discotecas. Depois, tem os componentes da rede que são responsáveis pelo transporte destas vitimas, no caso do trafico internacional. Daí, tem o beneficiário direto, que seria o chefe da quadrilha de exploradores que, 73 normalmente, pelo que a gente viu, são pessoas que vivem aqui no Brasil; tem também membros da quadrilhas que ficam no país de origem, e outros no país de destino. Por isso, nós achamos muito difícil traçar um perfil único, pois percebemos que é muito variável Principalmente agora, onde existe uma participação também dos traficantes de drogas neste mercado do trafico de pessoas! Então, é um perfil, pelo que vemos, pelo que lemos, muito complexo de ser definido exatamente (Bras4, Juiz, CNJ). As rotas do trafico são muitas, e estão sujeitas a mudanças continuas, mesmo em relação aos controles e às ações repressivas. No que diz respeito ao trafico interno, também sujeito à mudanças, existem fluxos importantes do Norte ao Sudeste e, na zona de Fortaleza, do interior para o litoral. O Estado de Goiás parece ser o centro nevrálgico, seja como destinação para o trafico interno, seja como centro de aliciamento para o trafico internacional. Sendo que para este último é mais difícil ainda reconstruir as rotas. O que sabemos é que, muitas vezes, as brasileiras envolvidas no trafico de pessoas, chegam em um país diferente ao de destino. Estas rotas mudam muito, porque muitas vezes a policia consegue identificar uma rota, esta é flutuante, muda, e vai em outra direção, acontece muito isso. De qualquer forma, de acordo com todos os estudos sobre o tema, realizados pela ONU, pelo Ministério da Justiça e, juntamente às nossas investigações, existe aproximadamente 240 rotas de trafico interno e internacional. Foi o que conseguimos identificar até agora (Bras6, Politico, CPI). O que vimos nos últimos dois anos é que aconteceu uma mudança no movimento das rotas, ou seja, Goiás se tornou um destino para as vitimas, especialmente vitimas do Norte do Brasil. Uma coisa que percebemos aqui é que ocorreu um aumento no trafico de adolescentes, de transexuais adolescentes, para fins de exploração sexual aqui em Goiás. Sabemos que é uma coisa que varia muito. As primeiras rotas eram de Goiânia direto pra Portugal, pela facilidade do idioma. Depois, com o tempo, procuraram percursos alternativos, porque existia uma opressão maior naquele país, assim como na Espanha. E temos noticias de pessoas que vão pra Argentina pra depois ir pra Espanha, ou então, para outros países da América Latina, e temos noticias também de pessoas que tentam chegar na Europa, via Africa. Acredito que a Policia Federal esteja fazendo o mapeamento destas rotas. Existe uma variedade de rotas feitas propositadamente para tentar fugir da repressão E, na maioria dos casos, as vitimas são instruídas a não falar do motivo da viagem. Normalmente, inventam uma desculpa, dizendo que vão fazer turismo, ou visitar um parente (Bras4, Juiz, CNJ). As brasileiras normalmente entram em um país que não é o país do destino final. De qualquer maneira, elas conseguem encontrar, aliás, se deixam encontrar pelos aliciadores, ou pelas redes de exploração, dificultando o controle pelas autoridades nacionais. Então, quem está indo para a Espanha, entra em Portugal (Bras9, L., ministra). Tem muitos casos de travestis e transexuais que saem do Norte e vem pro Sudeste, uma rota interna. Chegam ao destino, com aquela velha promessa de transformação do corpo, coisa que não tem no Norte, como, a aplicação de silicone, aplicação de hormônios, 74 megahair, a mudança da imagem da pessoa, falo deste tipo de publico, obviamente. A mesma coisa acontece no Nordeste, seja no interior, seja no litoral, a questão do turismo sexual. Na própria cidade de Fortaleza, sabemos que é muito forte esse movimento do interior pro litoral. Em Goiás, sabemos que existe um histórico de vitimas que foram pelas rotas europeias. Não só pra Espanha, Portugal e Itália, mas também Suíça, que é uma rota muito importante sempre. Depois, existem as rotas internacionais que, na verdade, têm o Brasil como destino final. Vemos sempre mais bolivianos, paraguaios, sendo traficados para fazer trabalhos domésticos, ou para ser explorado sexualmente no Sudeste. Vemos todos esses movimentos (Bras3, Coordenadora, SNG). O trafico internacional tem como meta principal a Europa e, particularmente, país como Portugal, Espanha, Holanda, Suíça e Itália Então, naquele período, na região da Niquelândia, que ficava no Norte, perto de Uruaçu, tínhamos já notado um grande êxodo para a Europa, principalmente Portugal, Espanha, Holanda, Suíça, Itália (Bras4, Juiz, CNJ). Com relação à viagem, o meio mais utilizado no trafico internacional é o avião, onde as garotas – ou trans – viajam com documentos normais que, muitas vezes, são sequestrados quando chegam ao destino. Enquanto que, no trafico interno, a viagem é principalmente via terrestre, pois, como foi visto, as estradas são controladas com muito menos frequência. Bem, como base na nossa experiencia de assistência, elas vão para o exterior, é tudo muito bem organizado. Compram a passagem, possuem o passaporte original. Aquela estoria de falsificar documentos não acontece. É tudo legal, tudo nos conformes (Bras7, Responsável pelo Núcleo). No trafico interno, tivemos casos onde as pessoas eram trazidas do Nordeste ao Sudeste do país. Quem explora vai na prisão procurar candidatos no meio da população mais pobre... chegam la, aliciam e levam pra São Paulo, Rio de Janeiro, para as grandes cidades, para depois, explorá-las sexualmente Recentemente, tivemos em Altamira, no Pará, o caso destes mulheres que foram levadas ao Rio Grande do Sul e Santa Catarina, enfrentaram seis dias de ônibus para chegar em Altamira (Bras1, Funcionário, SNPDCA). Vão de avião, são muito bem orientadas... quando vão buscar o passaporte, se vestem elegante, para disfarçar a verdadeira condição de pobreza delas (Fort1, NETP). Uma coisa era clara: quem fazia toda a documentação da garota era a mesma pessoa a levava pro exterior; assim que chegavam ao destino, sequestravam os seus documentos. As garotas não podiam ficar com seus documentos, ficavam com a pessoa que lhes pagou 75 a passagem. Foram unanimes em dizer isso, todas as garotas disseram isso (Fort3, Associação das Prostitutas). A exploração segue repertórios conhecidos, já vistos em outros países parceiros do projeto, sem diferenças muito importantes entre o trafico interno e aquele internacional. Além do sequestro de documentos – especialmente relevante na dimensão do trafico internacional de pessoas – um elemento que se repete sempre, é o da divida eterna, a qual se somam ainda todos os outros gastos, como, aluguel, alimentação, aquisição de bens de consumo, medicamentos e, para as trans, os custos de tratamentos com silicone colocado pelas bombardeiras. Sequestram o passaporte delas, daí, as meninas ficam com medo, né, porque estão sem documento, estão ali ilegalmente, são prostitutas, são transexuais, e depois, no caso das trans é ainda pior, também porque: estrangeiras, transexuais e prostitutas… elas tem sempre medo de procurar as autoridades locais, quando quem as explora apresenta a elas o valor da divida, “gata, tem ainda isso pra pagar, cabelo, passagem, roupas, etc..” então elas ficam presas em casa, neste recinto, e é lá onde moram e trabalham (Lívia, Fort1, NETP). No caso de vitimas de exploração sexual, elas são forçadas a realizar um numero de “programas” muito maior do que o considerado normal, enfim, e se encontram mais endividadas ainda. Podemos notar que, em todos os casos, o modo mais usado para continuar a explorar da garota, é o endividamento. Então, eles as “dão de presente” a passagem de avião, mas, depois, elas vão ter que pagar tudo, porque os gastos aumentam.. não é só a passagem, tem hospedagem, o sabonete liquido que usa, tudo o que, entre aspas, parecia ser oferecido, na verdade, ela vai ter que pagar. Então, os gastos aumentam, a divida aumenta. Mas elas têm sempre aquela perspectiva: “vou suportar a situação até eu conseguir pagar toda a minha divida, assim que eu conseguir, estarei livre, e vou poder tomar conta do meu próprio trabalho com a prostituição...” mas daí, ficam presas ali (Bras10, Diretora do Núcleo, SPM). A maioria das vezes, elas dizem que usavam o preservativo.. inclusive, estes preservativos eram vendidos pelas cafetinas, e isso aumentava ainda mais a divida, e não é só isso, além dos preservativos, tinha também: roupa de cama, aluguel do quarto... qualquer coisa aumentava ainda mais a divida delas (Bras2, Coordenadora, NETP). Tinha o caso das trans, menores de idade, envolvidas no trafico interno. Foram traficadas de Pará para Goiás. Era a mesma coisa. O aliciador faz promessas, quem explora, paga o deslocamento quando a vitima chega, eles “bombam” ela – não sei se você já ouviu falar neste termo “bombada”, quer dizer que fazem injeções de silicone no bumbum, nos peitos, e para modelar o corpo – por isso, praticamente, desde o começo da viagem, já começam as dividas. E a pessoa é obrigada a se submeter à situações de servidão para pagar a divida e a outras ameaças porque, como já disse, o aliciador está sempre bem perto da vitima, ou então, conhece a família da vitima, e isso faz sim com que a vitima acredite nas ameaças, pois a pessoa sabe onde ela mora, onde mora sua família. Então, é mais fácil ainda de acreditar (Bras5, Jornalista). 76 Com relação ao grau de consciência da existência da divida, os depoimentos se contradizem, mas podemos hipotizar que tal contradição aparente seja, na verdade, um reflexo da variedade de situações, portanto, algumas tendem a ser mais conscientes que outras. Estas mulheres chegam já com uma divida de 3000 reais cada. Mas elas não sabem, não lhes dão essa informação. Sabem que que vão pra lá pra se prostituir. Onde estavam antes, já o faziam, porém, quando foram aliciadas, não lhes disseram que, primeiro: onde quer que as levassem elas já teriam essa divida inicial de 3000 reais. Segundo: que tudo aquilo que elas usarem seria somado à divida. Terceiro: iriam morar em verdadeiras prisões, em condições desumanas. As condições desumanas são, talvez, o aspecto menos importante, a partir do momento que estão violando o direito delas à liberdade, já se aplica a servidão por divida. A pessoa é explorada desde o inicio, desde o transporte, depois a trancam em um quarto onde ela deve servir cinco, seis clientes ao dia, sem receber um centavo por isso, e em condições desumanas. Então, para nós, isto é considerado trafico de pessoas. A pessoa foi levada de sua cidade, foi aliciada, levada para um outro lugar, diferente do que está acostumada, com finalidade de ser explorada (Bras1, Funcionário, SNDPDCA). Então, quando a gente sai do Brasil, a gente tá sabendo quanto vai pagar, a gente tá sabendo que tem que pagar diária, a gente tá sabendo que tem que pagar pro local pra trabalhar, tem que pagar transporte pra ir do local onde mora pro setor, então, tem tudo isso. Elas pensam que é só juntar o dinheiro e trazer pro Brasil, não! Existe um bocado de sofrimento como existe aqui no Brasil, só que lá é mais fácil, enquanto a menina passa um ano, dois anos, traz 50 mil euros, que é 150 mil reais, é diferente daqui que tem um ano e ela num ganha mil reais, na prostituição de 20 reais por dia... e as despesas que ela tem que pagar (Fort9, Transexual militante). Muitas vezes, à divida e aos gastos, são somadas multas para quem não obedece as regras definidas e impostas por quem explora. É, as multas. Nos bordéis, ou pro traficante mesmo.. existem regras, eles fazem as regras. Se estas pessoas, vitimas do trafico, não respeitam as regras, são multadas. Isso funciona seja com o trafico interno que no trafico internacional, como no caso das trans. No caso das trans, se o cliente leva ela pra casa, depois do trabalho, ela é multada. Imagina! Se ela não paga uma prestação da divida, ou se esquece de limpar alguma coisa, tipo, esqueceu um copo sujo, existem multas. No caso do trafico internacional e da exploração, as multas são aplicadas porque a vitima tava menstruada e, consequentemente, recusou um cliente... tem, depois, outras situações (Bras5, Jornalista). Tudo é tratado como se fosse uma negociação comercial. Então, a garota chega, e o proprietário da atividade simplesmente lhe diz: " Olha, você me deve ainda 9 mil euros, então, enquanto você não me paga, vai receber só, sei la, uns 20, 30 euros por dia para os gastos, e as condições de trabalho são as seguintes: vai ter que fazer pelo menos 10 programas por dia, e nos dias em que não irá trabalhar, vai ter que pagar multa, se se recusar sair com cliente, vai ter multa, além de ter que pagar a diária, o aluguel, as roupas, bebidas”. É assim que funciona (Bras9, L., Loiza). 77 Mulheres e trans vivem e trabalham mais nos bordeis (embora algumas trabalhem também nas ruas) em condições de graves privação da liberdade de movimento, a tal ponto que quase todos os depoimentos falam de “prisão”, tornando-se impossivel sair sozinhas, ou dar um simples telefonema pra casa. As informações que temos são que elas ficam nestas casas de tolerância, nestes bordeis, onde tem quartos, não podem sair quando querem, como se fosse uma prisão O que sabemos é que elas são obrigadas a trabalhar muitas horas por dia, saindo com uma quantidade de clientes que vai desde 8 a 40 homens, mulheres, casais, enfim, elas praticamente vivem emprisionadas, saem poucas vezes, e quando saem , tem que ser acompanhadas por alguém, é mais ou menos o que sabemos: saem acompanhadas por alguém, ou então ficam trancadas nesta prisão dentro de casa, vigiadas por um capataz, mas que, na verdade, são informantes (Fort1, NETP). Elas tem que trabalhar, a garota, por exemplo, era obrigada a fazer pelo menos 5 programas cada noite, por 6 meses, para poder balancear a divida, de acordo com o que ela nos contou em seu depoimento. Uma coisa absolutamente degradante do ponto de vista de condição humana. Ela não podia responder ao telefone se não tivesse ninguém do lado, não tinha direito de entrar e sair livremente. Ela não podia pegar o dinheiro dos programas, porque era descontado do aluguel. Vimos esta mesma coisa na região de Xingu, na hidrelétrica de Belo Monte (Bras6, Politico, CPI). São envolvidas... e muitas vezes, tem já aquela amiga que passou por uma situação do tipo, e que também foi convidada por outras amigas, mas o que elas não sabem, é sobre as condições de trabalho em que se encontrarão, a prisão, os documentos sequestrados, a não possibilidade de comunicar-se com a família, e a obrigação e fazer tantos programas sexuais ao dia – às vezes, vemos também nos telejornais, de 10 a 15 programas sexuais por dia – são também obrigadas a se drogar para conseguir suportar esta rotina, então, acabam se tornando escravas do sexo (Bras4, Juiz, CNJ). Não. Não, a ligação é só uma vez, uma ligação uma vez no mês, entendeu? E assim, como eles sabiam que eu não tinha muito contato com a minha família, pra eles era bem mais fácil. Eles pegam mais as meninas que não tem quase contato com a suas famílias, não tem problemas. Eles investigam a tua vida, certo? Então pra eles tanto faz, tanto fez, já que tu não tem família. Tanto é que eu conheço meninas, tem meninas que tem cinco, seis anos que estavam lá, ou estão, não sei, até hoje (Entrevista, V., Fort7R). Até os ritmos de trabalho são desgastantes. O tempo todo fazendo programa! De manhã, de tarde e de noite, não interessa (Entrevista, V., Fort7R). 78 As garotas dificilmente ficam na mesma cidade por muito tempo. Geralmente mudam de “ponto” a cada 3 meses. Estas mudanças continuas impedem que se crie uma forte ligação com os clientes ou outras pessoas do lugar. Diminuindo assim as oportunidades de fuga e as garotas se tornam ainda mais vulneráveis Existe um grande movimento na Europa, elas chamam “mudar a praça”. Raramente as garotas ficam na mesma cidade por muito tempo. Geralmente, a cada três meses, elas são levadas, sem algemas, como itinerantes, para uma outra cidade. Este também é um modo para dificultar que se criem amizades, vínculos, raízes, de modo que a vitima fique sempre vulnerável, sem amigos com quem contar, sem ajuda ou mesmo sem informação sobre o que fazer, sobre como conseguir sair daquela situação (Bras9, L., ministra). A violência é um outro ingrediente da exploração que aparece também no caso dos brasileiros. Violência psicológica e física, principalmente, que se torna ainda mais grave no caso das transexuais, muitas vezes consideradas uma “aberração da natureza” ou uma forma de perversão que não é tolerável Violência através de ameaças ou espancamento, violência praticada não só por quem explora, mas também pelos clientes. Violência física, tivemos o caso de uma mulher que afirmava ter sofrido violência física, mas ela estava tao traumatizada que não conseguia nem contar o tipo de violência física, chorava sempre e não conseguíamos concluir a assistência Não tivemos nenhum caso de rituais mágicos (Fort1, NETP). No caso das transexuais, a situação é ainda pior, tem muito mais violência por causa da discriminação, e a exploração é feita por outra trans. Se trata de um mercado fechado, violento, com vários distúrbios psiquiátricos derivados da situação de pressão a que são submetidas. Muitas vezes, os clientes delas, sendo homens, são também sujeitos à problemas psicológicos, quando negam ter tido relações com uma trans. Tudo isso acaba gerando violência, muito mais violência, violência física Então, as situações de abuso físico são mais comuns para as trans comparado às mulheres. As mulheres são, geralmente, submetidas à violência psicológica, ameaças, mas os casos graves de abuso físico, pelo que ouvimos, são muito mais dramáticos no caso das transexuais (Bras9, L., Ministra). É porque quando eu falo disso, é como se eu vivesse aquela coisa, aquele sofrimento, de estar ali na esquina e levar uma pedrada na cara, uma manga, ovos na cara, entendeu? Fezes na cara, porque as fezes já aconteceu comigo. Eu fui pra rua, tava fazendo um trabalho de prevenção aí o cara me chamou: “aí”, eu: “oi”, ele: “quanto é o programa?” Eu: “não faço programa”, ele: “faz não?”, Aí pá, um prato de merda na minha cara. Por que isso? Que mal eu fiz? Por que essa violência? (Fort9, Transexual militante). 79 1.5.6. A saúde em condições de exploração A exploração coloca sempre em risco o bem estar psico-físico das pessoas envolvidas, atuando em diversos níveis O primeiro é aquele da repercussão emotiva da violência, seja essa física, psicológica ou sexual. Algumas violências deixam sinais incanceláveis e não é sempre fácil esquecer. Quando chegam [as vitimas], recebem assistência, e são em condições piedosas, física e psicologicamente falando. Um pouco mais de um ano atras, teve uma vitima a quem demos assistência, era uma trans que estava na Itália, e chegou com disturbos póstraumáticos gravíssimos; esta sob cura psiquiátrica pois foi submetida a tuto que é tipo de violência na Itália Então, suas condições físicas e psicológicas são as piores possíveis (Bras4, Juiz, CNJ). Um segundo nível é aquele das doenças sexualmente transmissíveis, onde o risco é amplificado a pedido, pela maiorias dos cliente, de ter relações sexuais sem camisinha Ouvi uma das garotas dizer que ela foi obrigada a fazer sem camisinha. Depois, quando voltou, fez uns exames, tava tudo bem, mas ela tinha sido obrigada a fazer isso, quando estava no exterior, porque pagavam mais por isso. Ela era forçada pela sua cafetina a fazer tudo o que o estrangeiro quisesse; e se ele pagasse um preço mais alto pra fazer sexo sem proteção, então ela tinha que fazer porque o valor era maior (Bras2, Coordenadora NETP). Um terceiro nível refere-se especificamente as garotas transexuais. Um dos depoimentos dizia que o trafico de pessoas geralmente nasce de um sonho mal realizado, e o sonho das transexuais é aquele de transformar o próprio corpo de maneira coerente com o que se sente, com o que se é. O que desejam é um corpo feminino, e as exploradoras – as cafetinas, também transexuais brasileiras – as atraem para si com promessas de realizar o sonho delas. Para isso, são levadas às bombadeiras, que injetam nelas, sem nenhum controle do ponto de vista medico, o perigosíssimo silicone industrial. Os efeitos de tais aplicações podem ser devastantes: deformações devidas ao deslocamento do silicone no corpo, dificuldade em andar, tumores, edemas, morte causada por infecções generalizadas. No caso das transexuais, não tem medico, tem só as bombadeiras; é uma coisa mais informal entre colegas, também transexuais, que fazem aplicações de silicone de maneira muito artesanal. Não sabemos quem são essas bombadeiras, que realizam essa dolorosa 80 aplicação, sem cuidados médicos Não é uma rede de saúde do estado o do município (Fort1, NETP). Enfim, um quarto nível se refere ao abuso de álcool e drogas. Enquanto no caso do trafico de nigerianas e romenas, a droga geralmente não representa assim um problema relevante, para as brasileiras – mulheres ou trans – o uso e abuso de drogas, além do álcool, é visto com frequência nos depoimentos. Talvez um outro problema igualmente grave é o alcoolismo e a dependência de drogas, uma vez que os proprietários das casas noturnas sabem que ganham muito mais dinheiro com a venda de bebidas alcoólicas e drogas, do que com a exploração da prostituição. Por isso, as pessoas que trabalham neste mercado são induzidas, seja pelo explorador, seja pelo cliente, a consumir drogas e álcool Então, no fim se cria uma dependência química (Bras9, L., Ministra). A questão da droga é muito forte, não só no caso das mulheres, mas também no caso das trans e travestis, que bebem e se drogam, junto com o cliente, então, existe também uma situação de dependência química e forte depressão (Bras3, Coordenadora, SNG). Bom, temos uma boa quantidade de relatórios de mulheres que tiveram problemas com drogas. Sabemos que elas se submetem a um sistema de controle, se é que podemos chamá-lo assim, controle geral da saúde, então, elas são obrigadas a fazer exames periódicos para detectar se têm alguma doença sexualmente transmissível ou coisa do tipo, e os resultados destes exames, geralmente ficam na mão dos aliciadores. Então, te digo, não é uma preocupação das meninas, tipo: “ah! Tenho que fazer uns exames aí pra ver se eu to bem”, não é uma iniciativa delas, mas dos aliciadores. Assim, as mulheres se encontram em uma situação onde, se ficam doentes, ou têm qualquer problema de saúde, elas saem do circuito e não recebem nenhum tipo de assistência (Bras7, Responsável pelo Núcleo). Elas mesmas, só para ir para o trabalho, beber, se drogar pra ir para o trabalho, não é eles não, pelo menos que eu conheço não. Hoje em dia, os homens não estão mais nem fazendo quase isso, são as mulheres mesmo o que eu vejo. Agora, diminuiu um pouco porque elas estão indo embora, quando volta... (Entrevista, H., Fort1R). Como vimos no caso da Romênia sobre o consumo de bebidas alcoólicas, o uso e abuso de álcool e drogas pode ser induzido pelos proprietários das casa noturnas, bares, mas, às vezes, são as próprias mulheres a procurar tais substancias para conseguir suportar o dia de trabalho. 81 1.5.7. Trabalho autônomo, cafetinagem e agencias que exploram o mercado do sexo Se, por um lado é fácil cair nas armadilhas das redes de exploração, por outro, não é fácil trabalhar no mercado do sexo de maneira autônoma No Brasil, assim como na Europa, até as ruas são controladas pelas autoridades locais, que controlam e dividem o território Hum.. é um pouco complicado para as mulheres que querem trabalhar com sexo de maneira autônoma, pois, pela nossa experiencia, observando este trabalho noturno, vemos, existem já algumas zonas dominadas, por exemplo, por uma cafetina, por uma pessoa influente, então, para as prostitutas que, por exemplo, quiserem fazer o ponto ali no poste 3 do Beira Mar – é só um exemplo, na verdade, nem existe este o poste 3 – ela vai precisar de segurança, vai precisar de alguém que a observe de longe, pra ver se alguém a trata mal, se tem alguém com intenção de brigar, assim, ela tem melhores condições de trabalho, não vão ter outras prostitutas em competição pelo mesmo ponto de trabalho, não vai ter risco de cliente que possa praticar violência à mulher. Já aconteceu? Elas contam que, para evitar estas situações, elas entram no esquema da exploração, da cafetinagem. Acabam tendo que pagar um “aluguel” pelo ponto de trabalho. Até as trans reclamaram disso, acabam sempre nesta rede de exploração, então, a maioria não é autônoma, é explorada. Se sentem autônomas porque estão pagando para ter um manager, por exemplo, mas, de qualquer forma, estão já dentro desta rede de exploração, o dinheiro dos programas não é 100% delas, elas tem que dar alguma coisa pros “guardinhas”, entre aspas, por todo o tempo que a protegeu naquele ponto, um ponto de trabalho mais legal, cheio de clientes ricos, que pagam mais, aí.. Então, existe, e este mapeamento dos vários pontos de trabalho, estas informações, elas não nos dão, porque têm medo (Lívia, Bras2, Coordenadora, NETP). É muito difícil trabalhar como free-lancer nos países europeus. Em alguns deles, existe a mafia que controla o mercado. Por exemplo, acabamos de ouvir que na Itália existe uma mafia. Por exemplo, na rua, ninguém chega de maneira free-lance em uma esquina de uma rua pra se prostituir, porque cada esquina, de cada rua, cada pedaço de calçada, tem um dono. Tem a mafia albanesa, a mafia italiana. Então, de qualquer maneira, a pessoa vai continuar a ser explorada (Bras9, L., Ministra). A exploração parece ser inevitável, embora não necessariamente enquadrada como trafico de pessoas, mas as mulheres entrevistadas, como já foi dito, não se veem como vitimas, pois escolheram participar de um projeto migratório, embora a escolha tenha sido feita em condições vinculantes devido à situação de vulnerabilidade socio-economico-afetiva em que viviam, sem ter ideias claras de todas as implicações da exploração. Sob este ponto de vista, é muito importante o depoimento de uma trans que entrevistamos: 82 É um pouco exagerada a palavra cafetina a meu ver. Quer dizer, eu moro com uma cafetina e tal... Isso não existe. Exitem cafetinas, mas muitas destas alugam quartos para as meninas como se fosse uma pensão Eu moro numa pensão, tenho que pagar a diária, se você é homem, hétero, você diz que é hétero, vai morar numa casa, tem que pagar o aluguel daquela casa, daquele hotel, daquela pensão A dona da pensão não quer saber se você é ladrão, assassino, pra ela não interessa o que você faz, desde que pague o aluguel. Claro que estou falando de um modo, assim, depreciativo, mas a dona da pensão não quer saber mesmo o que você faz ou deixa de fazer. Ela precisa só do dinheiro para cobrir as despesas. Então, no caso das transexuais, acontece mais ou menos assim, elas não querem saber se você se prostitui, se você estuda, se não estuda, se tem família ou não.. O importante é pagar o aluguel em dia, se ficar 3 dias sem pagar, são quase 100 reais, então, no quarto dia, ela bota você pra fora, entendeu, e não você não pode nem pegar tuas coisas, até você pagar todo o dinheiro que está devendo. Ela também tem direitos, então, eu não posso negar o direito dela, que ela me deu comida, me deu água, me deu luz, me deu um teto, e eu não pago?!? Com certeza ela vai fazer o boca a boca, então, outra casa que me recolher, ela vai lá e diz: “olha, fulana me fez isso isso e isso, tá me devendo 100 reais e, pelo desaforo que ela fez, por ter fugido de casa, então não é 100, é 200 reais”... Por isso que dizem que existe um tipo de cafetinagem devido ao que ela aprontou, entendeu, devido ao auê que a travesti fez, entende? As cafetinas não são assim ruins como dizem, elas podem até te dar dicas de como arrumar casamento, para conseguir ficar no país, tem vários benefícios. Então, tem o lado bom e o lado ruim (Fort9, Transexual militante). Neste depoimento é possível perceber um forte e interessante paralelo com o caso do trafico de nigerianas e com o papel ambivalente da maman, vista por muitas nigerianas, como uma especie de madrasta, aquela que, sim, talvez a tenha enganado e certamente tira proveito econômico do trabalho de outras compatriotas, mas no fundo, também é aquela pessoa que estava sempre la nos momentos de necessidade e sem a qual, o desejo de morar na Europa, nunca teria acontecido (Abbatecola, 2006, 2012). 1.5.8. Retornar Cair nas redes da exploração para realizar um sonho é relativamente fácil Difícil é sair. Denunciar nem sempre é a solução, pois os riscos são altos. Como nos conta um ativista, denunciando, na melhor das hipóteses, pode ser que consigam prender uma das peças da engrenagem e, a partir daquele momento, a vida de quem denuncia estará, de qualquer modo, em perigo. Fugir significa começar a viver no medo, medo pela segurança de si mesmo e da própria família. Quando eu denuncio, voltando né, aí eu tenho que cair fora da cidade, por exemplo se eu tô na Itália, tenho que ir pra Portugal, pra França, eu tenho que ir pra Equador, pra qualquer canto... Porque a cafetina ou o cafetão eles podem não ser presos, porque existe um esquema, um esquema como se fosse um trafico de seres humanos, existe sim isso. Então eu sou gerenciado por uma pessoa, então na medida que eu denuncio uma, caiu uma peça daquela, eu não cheguei lá no chefão principal, se o chefão passa por mim e é 83 como se eu nem conhecesse, entendeu? Só que tem um gerente, como existe no trafico de drogas né, tem a pessoa que olha, tem os orelhudo, tem o gerente, contador, é quase desse jeito... Então eu denuncio, aquela peça é quebrada, aquele elo é quebrado, só que a ramificação daquele já se faz do outro lado, já se vira outro esquema, não é mais aquele, eu tô marcada, entende? Eu tô marcada, no dia que eles me encontrarem, eu sou eliminada... (Fort9, Transexual militante). Elas têm medo de serem julgadas pela sociedade e mais medo ainda das ameaças dos traficantes (Bras4, Juiz, CNJ). Muitas delas se sentem também ameaçadas, então, quando retornam, elas têm medo: “...e agora, o que vai acontecer comigo? As redes criminais vão vir me procurar, vão usar minha família”. Então, existe esse medo de como será a vida a partir daquele momento. Por isso, geralmente, devem entrar no programa de proteção à vitima da Secretaria pelos Direitos Humanos, ou um programa de proteção às testemunhas, também da Secretaria pelos Direitos Humanos (Fort1, NETP). Retornar é difícil, especialmente quando o projeto migratório não deu certo. Quando a pessoa emigra, ela põe em jogo não só o próprio futuro e o futuro da própria família, mas também sua identidade, seu “eu”, sua dignidade. Ninguém espera o fracasso, e é por este motivo que, quando retornam (mesmo que temporariamente), elas “pintam de rosa” a experiencia que tiveram no exterior. Quem fracassou, experimenta a vergonha, e isso pode ser muito desencorajador. Tem vitima que passa de 4 a 6 meses só pra decidir se retornar ou não, porque elas têm medo de voltar pro Brasil, buscam sempre uma situação melhor, elas têm medo de ver a família, têm vergonha de falar: “olha, eu fui e voltei com uma mão na frente e outra atras”, ou “do jeito que fui, voltei”. “Tentei. Falei pra todo mundo da minha família, pros amigos, parentes, que eu fui tentar a sorte no exterior, muito dinheiro, e, no fim, volto sem nada”. Enfim, têm vergonha. Pensam muito se é melhor voltar, ou ficar por lá (Bras2, coordenadora, NETP). A vergonha e o senso de culpa são,por vezes, ligados à própria experiencia de prostituição, agravada pela condição de exploração, e pelo estigma que acompanha as pessoas que trabalham no mercado do sexo. A vitima? Olha, a primeira coisa a se dizer é que a vitima do trafico de pessoas, normalmente, não se reconhece como vitima de trafico de pessoas. Ela acredita estar vivendo uma situação que não funcionou, se sente sempre culpada, é muito vulnerável, tem vergonha, muitas vezes porque está saindo de uma situação de exploração, então, elas sentem vergonha do próprio corpo, e de toda a situação em que se encontra. As muitas horas de trabalho, a humilhação e as situações desumanas e, ainda por cima, se sentem culpadas! Então, pra elas, retornar não é fácil, não saber como a família vai acolher, a comunidade, então ela tem vergonha, se sente culpada (Bras3, Coordenadora, SNG). 84 Um preconceito muito grande, “elas vão porque querem, e ponto.” pela minha experiencia de três anos como pesquisadora e coordenadora do Núcleo, ouvi dizer por muitos doutores, pós-doutorados: “Se este é um problema que saiu do país, que fique por lá, é uma doença que saiu daqui, então, se desaparecer, melhor”. Existe ainda este grande preconceito. Primeiro, a ignorância sobre o tema do trafico de pessoas, até porque, nem todo mundo sabe que o trafico de pessoas é crime. E não estou falando do trafico de drogas não! E nem do trafico de armas. Depois que a gente começa a explicar o que é o trafico de pessoas, que existe mesmo, que é crime e é previsto pelo Código Penal, etc, as pessoas dizem: “ah, mas isso acontece só com as prostitutas e se acontece só com elas... quem serão estas mulheres prostitutas? É melhor que fiquem por lá, que morram lá!!”, então, existe ainda esse preconceito por parte da sociedade em relação a esta luta contra o trafico de pessoas (Bras2, coordenadora, NETP). A sociedade pode ser cruel com as aquelas pessoas que vendem sexo em troca de dinheiro, mais do que aqueles que exploram ou aqueles que compram sexo de pessoas que são exploradas, então, deveria ser considerada também uma mudança cultural – em todos os países – neste desafio contra o trafico de pessoas e contra a exploração. 85 1.6. A pesquisa na Espanha 1.6.1. Uma visão geral As entrevistas realizadas na Espanha a testemunhas privilegiadas e garotas exploradas sexualmente, confirmam o que foi emerso das pesquisas dos outros países parceiros. O trafico de pessoas para fins de exploração sexual, diz respeito principalmente a nigerianas, romenas, brasileiras e chinesas, embora sobre esta ultima, se saiba muito pouco. Tivemos alguns casos de garotas chinesas. Normalmente existe um grande mistério sobre como elas são escolhidas, aliciadas e transportadas, mas imaginamos que tenha, certamente, uma ligação com o pagamento de dividas. Quando elas chegam aqui, elas tem que pagar. Às vezes, elas podem ter vindo parar na Espanha com uma ilusão, através de uma oferta de emprego por parte de uma compatriota. Depois tornam-se vitimas de extorsão (Depoimento, P5, Advogado de defesa). Nem todas as brasileiras – mulheres ou transexuais – parecem ser vitimas do trafico de pessoas, embora não possamos excluir as formas de exploração Sobre as vitimas brasileiras do trafico de pessoas posso falar pouco, pois embora exista uma alta porcentagem de garotas que se prostituem, não conseguimos identificar casos reais de trafico, invés disso, descobrimos episódios de prostituição nos night clubs. Além disso (as brasileiras) tem maior liberdade de movimento, e não notamos uma falta de autonomia que normalmente outras nacionalidades têm No caso das transexuais brasileiras, o fenômeno do trafico de pessoas é pouco relevante. Estivemos com algumas delas, que se prostituíam nos apartamentos ou nos night clubs com uma renda mensal de 2 mil euros, uma situação muito diferente da de vitimas de trafico que não podem controlar seu próprio dinheiro, como, por exemplo, as romenas (Depoimento, P2, Assessora). No caso das garotas brasileiras, elas vinham principalmente pra trabalhar de modelo, como dama de companhia, ou pra cuidar de pessoas idosas. Às vezes, vinha com o namorado que, quando chegava, deixava ela em um night club, depois de ter sequestrado seu passaporte (Depoimento, P3, Diretora, ACF). As garotas nigerianas chegavam principalmente do estado de Edo, e é próprio o trafico das nigerianas a atrair mais a atenção da opinião publica e das instituições, pois é a mais visível – mais de rua que indoor – e de certa forma, mais “exótica”. A pratica conhecida dos ritos de magia – como o vodu – atrai a curiosidade e alimenta a fantasia, sendo diferente do modo de fazer racionalista dos europeus. No nosso trabalho, trabalhamos com garotas nigerianas, vindas do estado de Edo (Depoimento, P2, Assessora, Accem). 86 Estamos muito, muito concentrados no problema, visto que as redes africanas, por causa de sua visão do conceito de mulher, de ser humano, e por outras conotações que traz consigo, até pelo aspecto espetacular, não? Por causa do vodu, por causa do modo como são exploradas essas garotas, na rua, não? É muito evidente, é muito à mostra (Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF). Em virtude das estrategias postas em pratica pelo racket, a abordagem das garotas de programa nigerianas é mais fácil Como analisado no terceiro paragrafo deste capitulo, ilustrando os resultados da pesquisa na Itália, o racket nigeriano sabe ser extremamente violento com quem se rebela ou não entra nas regras do jogo, impostas por eles. No entanto, a estrategia mais usada é a do controle psicológico através: dos ritos mágicos – acreditam muito nisso -; o relacionamento ambivalente com a maman – amada e odiada, exploradora e ao mesmo tempo, suporte -; enfim, a divida. As nigerianas consideradas “confiáveis” gozam de vantagens como uma margem de movimento maior em comparação às romenas, que têm um controle mais cerrado e, então, mais difícil até de se relacionar, por exemplo, com os operadores das unidades de rua. Para as nigerianas, existe o vodu (unhas, pelos pubianos, foto). Eles têm um mundo só deles, que não conseguimos entender, devido à diferença cultural que existe. Parece ser uma realidade muito mais diferente do que, por exemplo, das vitimas romanas. Elas também são constantemente controladas, pelo celular, mas sofrem menos o controle físico do que as vitimas romenas porque, entre outras coisas, por vezes a exploradora não mora nem no mesmo lugar onde mora a vitima. O vodu é muito potente, é um verdadeiro obstaculo, difícil de atravessar, até mesmo para as garotas que já saíram do circuito. Elas te dizem claramente que o vodu mata, e pra elas é uma realidade, mesmo que, pra nós, seja difícil de acreditar (Depoimento, P2, Assessora). As nigerianas têm um contato maior com as nossas unidades que trabalham nas ruas, em compensação, aproximar-se das romenas é mais complicado. Mesmo para nós que trabalhamos nas unidades de rua, é difícil trabalhar com elas (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.). Na Espanha também, falando do trafico de romenas, os depoimentos indicam o ano 2007 como o ano “divisor das águas”, mesmo não necessariamente no sentido positivo. A entrada da Romênia na Comunidade Europeia facilitou, certamente, o deslocamento de um país a outro, viagens mais diretas e confortáveis No entanto, a conquista de novos direitos de cidadania, não só ajudou mais ainda a mascarar os casos de exploração, mas também enfraqueceu a eficácia das investigações, seja no que diz respeito aos serviços, os quais são colocados à disposição e pensados especialmente para ajudar imigrantes ilegais, clandestinos ou com alguma irregularidade administrativa. A maioria veio via terrestre, de ônibus, viajando junto com outras mulheres. Mas muitas outras chegam de avião, principalmente desde que a Romênia entrou a fazer parte da União Europeia, onde se supõe que a mobilidade entre os países seja livre para os cidadãos comunitários (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA). 87 As garotas diziam que antes que a Romênia entrasse na UE, elas iam pra Itália; e depois começaram a chegar diretamente em Madrid (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Uma das principais dificuldades é, sem duvida, o fato que as mulheres romenas façam parte da União Europeia, e se por um lado isto favorece o acesso a seus direitos, por outro, dificulta muito as investigações sobre a questão do trafico de pessoas. A outra é que as garotas não denunciam. O 59bis não está funcionando como deveria […] Continua um fracasso o processo de identificação das vitimas ou de potenciais vitimas do trafico de pessoas (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA). Em comparação às romenas, que não tem mais problemas de ilegalidade, desde 2007 a situação piorou, já que as ações (sociais) são destinadas, principalmente, aqueles que tem estão em situação de irregularidade administrativa, e elas não se encontram em uma situação deste tipo, e então, elas estão ficando de fora de muitos serviços, em muitos casos (Depoimento, P11, Coordenadora, ICAS). Com relação às acoes de fiscalização, em particular, foram detectados dois tipos de problemas: os efeitos da repressão sobre a vulnerabilidade das garotas, e a ineficácia da punição infligida aos exploradores. Em áreas “nobres”, trabalhamos com barreiras policiais e multas em nome do pudor, mas, às vezes, essas politicas locais destinadas a combater a prostituição visível – e não a exploração -, induzem as redes a individuar lugares mais na periferia, escuros e isolados, onde desenvolver a atividade de prostituição As garotas se encontram, então, trabalhando em condições de risco e de vulnerabilidade com relação à violência dos clientes, violência sempre presente em potencial. A alternativa – para as romenas – é o trabalho nos night clubs, onde, porém, o controle é ainda mais cerrado, e onde a ação das associações tendem a desaparecer, pela falta de oportunidade de envolvimento. Em Huelva, ficavam bem perto do centro, em Gran Capitan, devido às politicas locais, incomodavam muito e toda a zona se transformou em um bairro pra gente rica, assim, tiraram elas dali e elas acabaram nas ruas ou em lugares mais escondidos, não iluminados, e assim, são ainda vulneráveis porque ali são agredidas sem que ninguém perceba, a pedradas, na escuridão Ou então são obrigadas a ir pros night clubs (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Nos night clubs elas não podem se relacionar com mais ninguém além dos clientes ou das pessoas que trabalham ali, exceto em casos onde o cliente paga pra sair com ela (neste caso, tem uma maior liberdade). Nos night clubs, as garotas se relacionam muito com os cozinheiros, os cabeleireiros, as vendedoras de lingerie, uma verdadeira mafia, quando não podiam nem sair para comprar roupas. Vendiam a elas tudo muito caro e assim, a divida continuava a aumentar (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Bem, nós tivemos reuniões com instituições que nos disseram, claramente, que as portarias que penalizam as mulheres, tornam a perseguição do trafico de pessoas mais difícil De qualquer modo, elas nos dizem que precisam porque elas tem que comer, e se as perseguem, elas irão para algum outro lugar (Depoimento, P4, Medico, MdM). 88 As sentenças proferidas contra os exploradores, com base nos depoimentos, são muito curtas. Mesmo quando são pegos, são liberados depois de pouco tempo, e isto não só coloca em risco a segurança das garotas, mas também, desencoraja fazer qualquer denúncia Nós trabalhamos muito em colaboração com o Departamento de Imigração, e vimos que, mesmo quando prendem pessoas envolvidas com a mafia ou com a rede do trafico, depois de quatro dias, já estão soltas. No caso da mafia chinesa, prenderam todos, mas me contaram que ela (a garota que tinha denunciado) tinha que ter cuidado quando saía na rua porque logo logo, eles seriam soltos. Às vezes, chega a ser frustrante ver como estes homens sejam soltos assim, em tao pouco tempo. Não sabemos se é assim por questões legais ou por laxismo na aplicação da pena. É claro que se trata de um negocio interessante para muitas pessoas (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Os depoimentos falam de prostituição e trafico de pessoas, e não de turismo sexual, embora ultimamente em Granada é possível observar um fenômeno de moda, parecido, em alguns aspectos, com o turismo sexual. Se trata da pratica de celebrar a despedida de solteiro na cidade, contratando alguns pacotes fechados que contém, entre outras opções, também “massagens especiais”. Em Granada, não sei se se poderia chamar de “turismo sexual”, pois, sem duvida, têm muita coisa em comum – ultimamente tá na moda, entre os homens, vir pra cidade pra fazer a despedida de solteiro, e sei que em muitos pacotes para a despedida de solteiro, entre as muitas atividades propostas, oferecem também massagem “com final feliz” e um tour nos night clubs, então, alguma relação tem! (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA). Na Espanha também, assim como em todos os países, o trafico de pessoas não diz respeito somente à exploração sexual. Em Huelva, por exemplo, o fenômeno da exploração do trabalho infantil – no campo da colheita de morangos - é bem conhecido, e que envolve, em particular, colombianas e marroquinas. Em Huelva, vinham com a desculpa dos morangos, que era a isca, para depois explorá-las sexualmente, principalmente no caso das romenas, mas também vinham colombianas e marroquinas para exploração laboral (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Nos parágrafos seguintes, vamos ilustrar os principais aspectos do trafico das nigerianas e, principalmente, das romenas, com alguma menção à exploração das brasileiras. Os resultados das entrevistas e dos depoimentos confirmam o que já foi dito em relação aos casos, italianos e romenos, apresentados na presente relação, aos quais se faz referencia para um estudo mais aprofundado. 89 1.6.2. Aliciamento, redes e formas comuns de exploração Como sempre, o aliciamento é feito apelando para as necessidades e dimensões da vulnerabilidade das meninas, e não se trata somente de vulnerabilidade econômica Normalmente, o que acontece com as garotas romenas e brasileiras, é que são elas que tem que sustentar a família, sem dinheiro, então, aceitam certas situações, sem nem menos saber os detalhes. As romenas são muito desesperadas, procuram trabalho e, às vezes, alguma conhecida propõe um trabalho. De aeroportos a bares dedicados a este tipo de coisa, e se (os exploradores) conhecem bem a estoria, elas ficam mais vulneráveis ainda. As romenas chegam de Costanza, Braila, Bucarest; com a família grande, e uma situação de pobreza significativa, precisam fazer dinheiro pra mandar pra família... (Depoimento, P3, Diretora ACF). Sim, tem família, tem os pais, irmãos e tem também um filho, que neste momento está nas mãos do estado romeno. O pai dela batia nela, insultava e gritava; batia nela sempre, sempre, sempre (Estorias de vida, v6, Cristina, Romania). O que eu queria era... eu tinha uma filha de.... minha filha tinha 8 meses quando eu tinha 14 anos. Tive ela com 13 anos, e quando eu tava com 14, conheci umas pessoas, e estas pessoas me propuseram de vir trabalhar na Espanha... fazendo faxina (Estorias de vida, V5, Alma, Brasil). O pai do filho dela disse que em Bucarest tinha uma pessoa que poderia achar um emprego na Espanha. Então, ela viu isso como um via de fuga, concordou com tudo, e no fim, descobriu que a pessoa de Bucarest tinha vendido ela pra uma pessoa aqui na Espanha, e pôs ela pra... Aconteceu o que aconteceu, e agora essa pessoa está presa (Estorias de vida, V6, Cristina, Romênia) No caso das romenas, geralmente exploradas pelos compatriotas, aparece com muita força o papel do contexto familiar e das amizades no aliciamento e na exploração São muitos os depoimentos que falam sobre isso. No caso das romenas, que são aquelas que conheço melhor, a maioria foi aliciada por pessoas próximas a elas, principalmente os “namorados” ou amigos, amigos de família (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA). 90 Em um dos casos, de fato, tivemos uma garota em condições físicas e psicológicas muito graves, e chegamos a suspeitar que a própria mãe da garota a tivesse vendido, devido à algumas coisas que a garota dizia nos momentos de lucidez […] As romenas falam muito de uma isca, que é uma oportunidade de trabalho, do tipo domestico ou na agricultura, mas a realidade dos fatos é que muitas vezes, essas ofertas são feitas por um membro da família, primos, primas, cunhados,etc. A maioria do contexto familiar. A pessoa que quer aliciar uma garota pode muito bem contatar qualquer familiar até diretamente da Espanha (Depoimento, P2, Assessora, Accem). A mafia em si eu não conheço, mas o que eu sei é que a maioria das garotas conta que foi aliciada pelo namorado, ou irmas, cunhados, etc.. e depois foram exploradas sexualmente (P3) As romenas que nos contaram alguma coisa foram aliciadas pela família ou pelo cafetão, quer dizer, pelo “namorado”. Muitas delas vinham de Breila. Depois, o que vimos é que os homens não as deixam sozinhas nem por um segundo, nem mesmo nos hospitais, e isso se percebe mesmo se elas não nos contam (Depoimento, P4, Medico, MdM). São muito frequentes os casos de aliciamento pelo “namorado”, figura também presente nas entrevistas e estorias de vida e sobre a qual falamos longamente no paragrafo sobre a pesquisa na Romênia O “namorado” aparece progressivamente na vida da vitima escolhida - percebidas como vulneráveis -, criando uma relação de dependência psicologico-afetiva, da qual ela não vai sair fácil Muitas romenas contam que chegaram aqui junto com o “namorado”, depois descobriram que o mesmo rapaz explorava várias outras garotas. Se trata de violência de gênero porque as mulheres são completamente submissas. Acreditam de verdade que o rapaz seja namorado dela, que tenha sentimentos por ela. E ainda dão todo o dinheiro pra eles. Existem algumas relações de casais onde ele enche ela de porrada, e ainda por cima, a explora sexualmente. As garotas normalmente veem de uma situação de miséria, pobreza la da Romênia, com muitas responsabilidades familiares, principalmente com filhos que ficaram no países natal (Depoimento, P8, Assistente Social, VT). As que eu conheci, a maioria chegou com o namorado; foi ele que as enganou e que as trouxe aqui, praticamente em todos os casos. De fato, isto as faz experimentar um ódio muito profundo por essa pessoa em quem elas acreditavam (Depoimento, P9, Psicologa). Mesmo sendo esta situação extremamente ligada à criminalidade organizada transnacional, os casos que seguem são, principalmente, ligados aos “namorados”. Nem sempre são enganadas com relação às atividades que deverão desenvolver, mas muitas vezes, não conhecem as condições (Depoimento, P10, Advogado do Estado). 91 Bem, então vou te contar. Digamos que as pessoas que me colocaram nesta situação me foram apresentadas na festa de um amigo. Depois daquele dia, comecei a sair com um deles, e falando com eles, aos poucos, me fizeram perceber que tinha a possibilidade de vir pra cá, que poderia ganhar muito dinheiro e ter uma vida mais digna […] porque eu tinha uns problemas com meus pais e queria... queria sair fora. Então, me disse que podia vir pra Espanha, que ia me ajudar a vir pra cá, que a gente viria como namorados, é claro, e me disse que ia trabalhar num night club e assim ganhar muito dinheiro. Daí, ele me dava sempre dinheiro pra ir ao cabeleireiro, pra comprar roupas. Bom, ele me tratava muito bem. E.. só que eu não tinha me ligado.. o que eles eram realmente. Assim, no fim eu aceitei, porque, é claro, éramos namorados e pensei que ia vir pra cá (na Espanha) pra ganhar dinheiro pelos dois e estar bem (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia). São aliciadas com propostas de trabalho falsas ou através dos “namorados”. Na verdade, o tema das romenas me lembra muito as estorias dos típicos cafetões espanhóis que exploravam suas mulheres. É muito parecida com a situação que se instalou depois da guerra espanhola, que nos contaram as mulheres idosas que entraram na prostituição (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.). Os “namorados”, uma vez que chegam ao destino, param de ser gentis e começam a explorá-las, colocando em pratica também formas de troca e de compra e venda. De fato, em muitos casos, elas mesmas chamam de namorado a pessoa que as levou para os night clubs e que a explora diretamente. Estes namorados normalmente duram 3 ou 4 meses. E depois trocam de garotas entre eles. Às vezes, até vendem (Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF). Não importa se é “namorado”, parente, amigo ou conhecido, o aliciador romeno estabelece uma relação de confiança com a garota escolhida, de modo que é ela quem decide aderir ao projeto migratório por espontânea vontade. A violência não é prevista nesta fase, pois a estrategia é aquela da construção de consensos. Tinha uns problemas no meu país. Por isso conheci X e, aos poucos comecei a ajudá-lo com seu trabalho, porque eu o conhecia, e às vezes, trabalhava perto de onde ele trabalhava. Assim, comecei a confiar nele, conheci sua família. Ele sabia que eu tinha problemas econômicos e me disse que poderia me ajudar porque ele tinha contato com algumas pessoas na Espanha, e que poderia começar a trabalhar como faxineira num hotel. Eu acreditei nele porque ele tinha vivido muitos anos no exterior e dizia que, naqueles anos, ele já tinha ajudado muita gente. E ainda mais, conhecia sua família e nem imaginava que poderia me acontecer algo de ruim (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia). 92 Falar de categorias é terrível Mas a minha percepção é que as brasileiras sabem o que vão encontrar, mesmo não conhecendo as condições, mas as romenas geralmente dizem que foram enganadas por algum parente e que só quando chegaram é que entenderam a realidade dos fatos. No que diz respeito às propostas de trabalho, são propostas informais, verbais, baseadas na relação de confiança entre a vitima e a pessoa que oferece o trabalho, tipo “na casa onde trabalho podem te contratar”, coisas desse tipo. Normalmente (quando não se trata de parentes, os aliciadores) se aproximam delas através de parentes ou alguém conhecido, como por exemplo, uma velha amiga da escola. Já tivemos casos deste tipo (Depoimento, P2, Assessora, Accem). Ainda com relação ao caso da Romênia, a impressão é de que não podemos falar em grandes organizações, e sim de micro redes com base familiar. Depois descobri que não era verdade e que a família toda dele sabia que ele era sustentado pelo trabalho das mulheres. Até o filho dele sabia o que estava acontecendo porque, de fato, ele dizia pro filho dele para seduzir garotas romenas pra trazer junto com ele. Isto eu ouvi-lo dizer pessoalmente. Ele disse à sua esposa pelo telefone, ele disse com o que ele trabalhava, mas não tenho certeza se ela já sabia disso antes. O primo dele também, junto com a namorada, trabalhavam com isso, e de fato, faziam se prostituir a própria sobrinha de 18 anos e outras garotas, com a ajuda do filho. A garota continua sendo explorada aqui na Espanha (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia). Notamos que os menores de idade também, irmãos de verdadeiros exploradores, entram neste mundo de exploração, controlando as namoradas do irmão, do primo (Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF). No caso das romenas, falamos de famílias que fizeram da prostituição um modus vivendi. Personalizam os aliciamentos e, entre eles, existe uma ligação Se conhecem, se apoiam, se ajudam. As garotas sabem que, mesmo se tentarem fugir, elas vão ser encontradas pelos amigos do explorador. Cada um tem nas mãos a garota que se está explorando, porém, entre eles (os exploradores) existem conexões As romenas não falam de outros tipos de exploração, falam só do tipo romeno (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.). Pela nossa experiencia com as garotas, podemos dizer que parece que, com relação às redes, não estamos falando de grandes organizações, mas de micro redes e, e todo caso, de pessoas mais conhecidas, principalmente na fase do aliciamento, encarregados de ter uma relação com elas e explorá-las (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM). Na minha experiencia, eu associo as romenas com a família (Depoimento, P6, Advogada Estrangeiros). As romenas falam sempre de uma ou duas pessoas que tiram beneficio disto, cada uma tem 3 ou 4 garotas trabalhando pra elas. No caso das brasileiras, dava a impressão de uma 93 organização mais sofisticada, porque tinha aquele da agencia, aquele que aliciava, aquele que transportava, aquele que vinha buscar, etc. (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Em comparação com as nigerianas, a ideia da existência de uma forma di hierarquia de estrutura piramidal, cuja organização oferece, para as mulheres, a possibilidade de fazer carreira de acordo com regras muito claras. A progressão está relacionada ao pagamento da divida: as garotas que estão quase acabando de pagar – e portanto, mostraram-se fieis ao racket – podem se tornar controladoras, e ajudar a maman a vigiar as outras garotas. Quitada a divida, elas estão, formalmente, livres para mudar de vida – opção que, no entanto, é dificultada por vários fatores, entre eles, a irregularidade jurídica – ou então, podem continuar se prostituindo autonomamente, para economizar uma grana necessária para comprar garotas exploradas, tornando-se assim, por sua vez, a maman delas. No caso das nigerianas, a minha impressão é que fossem organizadas hierarquicamente em estrutura piramidal, onde muitas vezes a pessoa traficada se torna exploradora, como o golpe da piramide, onde a pessoa explorada entra a fazer parte de um circuito que se alimenta com o transporte (acompanhamento durante a viagem) e o aliciamento de outras mulheres onde a pessoa que controla, está pagando sua divida desta maneira, sem causar o menor dano aos que, comodamente, vivem no luxo e possuem contatos na Nigéria e financiam novas garotas que chegam (Depoimento, P5, Advogado de Defesa). As cafetinas são mulheres, mas os homens também possuem um papel na exploração das compatriotas nigerianas. Durante um de nossos turnos, uma vez saiu um rapaz com uma faca dizendo pra ir embora. Inclusive, quando as garotas vem pedir a carteira de saúde, vinha junto também um rapaz que falava por elas e que comandava. A situação é essa (Depoimento, P4, Medico, MdM). Para as romenas, vice-versa, não são previstas formas de emancipação da exploração, e a possibilidade de “fazer carreira” é bem relativa e, de qualquer modo, são sempre ligadas à logica de submissão à dominação masculina do “namorado-cafetao”. A mulher, de fato, nunca terá o poder de decidir por si mesma e pelos outros; no máximo vai ganhar alguns privilégios, assumindo o papel de “namorada de confiança” com a qual poder contar para a supervisão e o controle das “outras”. 94 E foi assim que começamos, me levou com ele na viagem, me comprou roupas, me levou em um night club. E ali me apresentou pra sua verdadeira namorada, que trabalhava com ele e dividia o quarto comigo e com outras meninas, ficava com os nossos passaportes e todo o dinheiro que a gente ganhava a cada noite. Era pra ela que a gente tinha que dar o dinheiro (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia). A viagem, que pode ser de carro ou de avião, é meio longa, dependendo do país de destino e das estrategias das redes criminosas, pode se tornar até uma ocasião para “arredondar” os ganhos vindos do trafico de pessoas para fins de exploração sexual, através do transporte de migrante clandestinos “pegos” ao longo do caminho. As romenas normalmente demoram uns dois dias pra chegar, e elas vem de carro. Durante a viagem, não existe prostituição e, em alguns casos, pegam mais pessoas ao longo do caminho. Recebem um empréstimo para a viagem e, já vi casos de pessoas que moram nas fronteiras com a Romênia, que não pertencem à União Europeia, onde a rede (criminosa) se oferece transporte para países europeus como a Espanha, oferecendo a eles um passaporte falso e transporte em troca de dinheiro. Quer dizer, a rede pode cuidar de varias formas criminosas. Tivemos o caso de um casal da Moldávia que viajou assim, e nos contou que durante a viagem, a rede ia pegar garotas na Romênia (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM). Os ingredientes da exploração são sempre os mesmos – divida, violência, submissão psicológica, controle embora em doses bem diferente, dependendo da estrategia adotada pelos diferentes grupos nacionais. As brasileira que não trabalham autonomamente são ligadas às redes de exploração por causa da divida (menos pesada que a das nigerianas) e as ameaças à família. Porém, parece que elas tem maior liberdade de movimento e, a impressão sentida nos depoimentos é de que elas sofram menos violência No caso das brasileiras, vimos que, pior do que as ameaças, é que diziam que iam maltratar os filhos, e em nenhum dos casos vimos que a família se interessasse de verdade pela situação da vitima. As ameaçavam até por causa da divida do dinheiro gasto para a viagem (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Dividas e ameaças à família caracterizam também o racket nigeriano, cuja característica marcante é dada pelo vodu, já anteriormente mencionado, como forma de violência muito potente. Enquanto que, sobre a divida das nigerianas e sobre os rituais mágicos, muita coisa já foi dita (para saber mais, veja a analise do caso italiano presente nesta relação), pouco se sabe do uso dos bebes nascidos no pais de destino como forma de chantagem e como moeda de troca. 95 Para as nigerianas, existe a ameaça através do vodu, e ameaças à família, mas, principalmente, usam os filhos como moeda de troca de maneira desumana. Acredito que eles as fazem engravidar de proposito. Primeiro, para ter direito ao refúgio (em caso de fuga), e para ter um maior controle sobre elas (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.). No caso da exploração das romenas, a violência é muito mais evidente, embora se manifeste, como já foi dito, só quando se chega no país de destino. A violência é muitas vezes do tipo físico Eu tinha que dar todo o dinheiro a ele, pra mim não deixavam nem um euro. Compravam pra mim o que achavam que era necessário Quando não trazia muito dinheiro do club, me batiam […] Eu apanhava sempre. Dizia que não podia viver sem uma mulher. O primo e a namorada não me ajudavam, mesmo ouvindo os gritos. Pelo contrario, quando ele me batia, o primo dele ia embora e não falava nada. Quando tinham problemas com as garotas, um não contava pro outro. São todos assim, não te ajudam […] Eu tinha que ir todo dia pro club. Em quatro meses eu pude descansar só dois dias porque não estava me sentindo bem. Mas pra ele não importava, me batia de manha, e depois de tarde me mandava pro club, mesmo eu estando toda roxa. As pessoas viam os braços roxos, os olhos roxos, tudo roxo, as pernas debaixo da saia curta. Aí, comprou pra mim uma calça e uma camisa de manga comprida pra esconder as marcas, pelo menos um pouco […] Antes de ir pro club me obrigavam a limpar a casa e preparar a comida. E eu não conseguia comer nada. Não conseguia. Me batiam até pelo fato de não comer (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia). As vitimas romenas contam, principalmente, episódios de violência, verdadeiras surras, quando tentam fugir ou quando não ganham dinheiro suficiente, incluindo casos de cliente que se “apaixonam” por elas e as querem ajudar de qualquer maneira (Depoimento, P3, Diretora, ACF). As formas de exploração no caso das romenas são ligadas à violência, muito mais pesada que em outros casos (Depoimento, P5, Advogado de Defesa). Existe muita violência física, principalmente no país de destino (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM). Houve um aumento de garotas romenas. As romenas são mais fechadas. Falam pouco. Até as nigerianas dizem que tem pena das romenas, pois estão sempre muito abatidas e sofrem muito mais violência por parte do explorador, dizem que elas tem muita dificuldade de se abrir e contar qualquer coisa (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.). Além da violência física, é muito comum também a violência psicológica, exercitada através do constante controle, em cada momento do dia, e da chantagem emocional. Muitos são os depoimentos que falam 96 sobre isso. Encontramos, basicamente, dois tipos de controle: controlar a vitima em cada momento do dia, sabe onde está, com quem está, e o controle financeiro, exigindo uma quantia semanal ou diária Se não conseguem a quantia exigida, apanham. Por isso que as garotas nos contam que quando não conseguem ganhar dinheiro, são obrigadas a pedir emprestado pra algum cliente de confiança ou então, vão roubar ou achar uma maneira de conseguir o dinheiro, porque senão, vão apanhar. São também controladas através do celular, mas a presença do explorador é mais eficiente, assim são vigiadas diretamente (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM). Podia falar com a minha família só quando ele estava junto, mas não com meu marido. Não podia dizer pra ele onde eu estava. Ninguém sabia o que tava acontecendo la comigo. Ele tinha ciumes do meu marido e também dos clientes. Me levava lá e vinha me buscar (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia). Com relação ao controle, vimos que é mais intenso no caso das romenas, pois estão sempre recebendo ligações em seus telefones, e são constantemente controladas pelos controladores que rodam de carro. Em alguns casos vimos marcas de violência nas meninas, apesar delas negarem (Depoimento, P4, Medico, MdM). Não, não podia falar com ninguém porque você era sempre... simplesmente não deixava, dizia que você estava sendo sempre vigiada, controlada (Estorias de vida, V6, Cristina, Romênia). Mas se eu quisesse ligar pra eles, podia, mas sempre com alguém por perto, tipo uma das namoradas deles e, por causa disso, tinha que mentir sempre (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia). O controle telefônico é brutal. Cada vez que a gente levava uma garota no carro com a gente, ou quando a gente tirava uma da rua pra levar com a gente para a delegacia, ou pra uma ONG, ou coisas do tipo, durante toda a viagem, elas recebiam telefonemas, porque, com certeza, se não responde, mesmo se está trabalhando, é porque alguma coisa está acontecendo, não? (Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF). No que diz respeito às romenas, os caras passam de carro 20.000 vezes por dia, quando trabalham nas ruas, além de controlá-las telefonicamente, batem nelas e ameaçam seja elas, seja a família delas, de morte. Tentam agradar gregos e troianos. Tipo, não te ameaçam diretamente se você pára de pagar, mas te chantageiam emotivamente, falando de tudo o que fizeram por você, etc, e ainda as meninas pensam que devem ser gratas (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.). 97 Existem claras ameaças contra elas, violência física, e um componente importante da violência de gêneros pois existe uma relação sentimental no meio, e isto gera dependência (Depoimento, P10, Advogado). Existe o controle psicológico A manipulação de fazê-las acreditar que elas são realmente obrigadas a fazer isso, e não podem dizer a ninguém, não pode falar nada, porque se não tem castigo físico As garotas acreditam ter merecido apanhar por algo que elas fizeram. Elas justificam plenamente (Depoimento, P9, Psicologa). Não obstante as diferenças entre as estrategias de submissão colocadas em evidencia pelas diferentes redes nacionais do tipo criminosas, o controle e outras formas de violência psicológica, como as ameaças e a indução ao medo são, na verdade, transversais: No club tinha sempre o garçom, o responsável e a gente, a gente tinha horário pra dormir, horário pra acordar, comer, ficar no celular, trabalhar, e assim eram as coisas, era tudo muito controlado e, se você tivesse que sair, te acompanhavam sempre (Estorias de vida, V5, Alma, Brasil). Ameaçam as garotas romenas, dizendo a elas que a família delas vai sofrer as consequências, ameaçam cortar o dedo da mãe ou coisas do tipo, de fato tivemos um caso onde, para ameaçar a vitima, mandaram o dedo à sua mãe dizendo que era da filha (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Não, não não, digamos que nunca usaram violência física, mas me ameaçaram muitas vezes e sempre usando a família, eles usavam mais era isso, porque digamos que pra eles não convinha deixar a gente cheia de marcas roxas no corpo, ou coisas do tipo, então eles ameaçavam nossas famílias (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia). No caso das garotas do club em Huelva, elas nos contaram que, no começo, eles até levam alguns clientes, vestidos de policiais, mas não sabemos dizer se são policiais de verdade ou se é só um disfarce pra assustar as vitimas. Muitas contam isso (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Sim, me controlavam. Chegaram num ponto de controlar as conversas com minha mãe Por exemplo, quando eu cheguei aqui, liguei pra minha mãe pra falar pra ela não denunciar o meu desaparecimento ou coisa do tipo, porque minha mãe não sabia de nada, não sabia onde eu estava, não sabia nada, nada de mim. Não dizia nada porque me ameaçavam e tinham fotos da minha família, da minha mãe, dos meus irmãos, e eu não queria piorar a situação Tinha medo, e falei pra minha mãe não denunciar (Estorias de vida, V5, Alma, Brasil). 98 Enfim, começou a me ameaçar dizendo que a minha família tava na mira, que estavam de olho neles, e que se não quisesse trabalhar, matariam minha família. Claro que naquele momento eu pensei na minha família porque não queria que sofressem por culpa de um erro que eu cometi (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia). Tudo é baseado no medo. Aquele medo interior, como você disse, as represálias no país de origem, esta é uma questão fundamental, de outra forma, não teria explicação (Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF). A capacidade de agir dos migrantes, sujeitos a exploração e tráfico de pessoas, sofre limitações significativas, pois o medo é uma verdadeira corrente. A privação delas à liberdade de movimento vai muito além da detenção ilegal, existem prisões invisíveis, porque às vezes, o controle te impede de tomar decisões pessoalmente, se estou sendo ameaçada constantemente, não precisa nem ficar acorrentada (Depoimento, P10, Advogado). Os ritmos e as condições de trabalho, amplamente ilustrado nos parágrafos anteriores, são exaustivos e difíceis Se trabalha sempre, até quando chove, faz frio (quando se trabalha nas ruas) ou não se está bem, e o contato com o externo é quase que inexistente, mesmo quando se trabalha no club. Não confiam na policia – entre as quais existem pessoas que abusam do poder que tem, conseguindo o programa de graça – e os clientes são, muitas vezes, indiferentes, quando não são violentos. Até quando a gente tava menstruada tinha que trabalhar também, não tinha dia de folga, a gente não podia parar, não deixavam, mas, graças a Deus, não tive nenhum problema de saúde (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia). Nos dias mais quentes em Sevilha, ou quando chovia muito, tinha que trabalhar até 12 horas. Este tipo de coisa ninguém gosta, a gente suporta só porque existe um medo muito muito grande, e com razão, pelas consequências (Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF). Normalmente elas tem poucas relações sociais, embora, frequentemente são as colegas do club ou do trabalho na rua que as ajudam quando decidem sair do circuito. Mas como bem sabemos, não é sempre assim, muitas das mulheres são muito sozinhas e se sentem muito sós, talvez um dos requisitos iniciais é se cercar de pessoas com quem se sentir segura e protegida, porque, num outro contexto, não confiam muito nas pessoas próximas (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA). 99 As romenas desconfiam mais ainda é da policia, pois acham que estejam envolvidos com as redes de exploração, e as nigerianas desconfiam pela experiencia que tiveram com a policia no país de origem e durante a viagem para a Europa. Mesmo que pareça estranho, é claro que elas mesmas nos dizem bem claramente que os policiais são consumadores da prostituição, e ainda com benefícios, sem ter que pagar o “programa”, de graça (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM). Pedi ajuda a muitos clientes mas ninguém me ajudou. Não sei se tinham medo porque eu contava a eles a minha situação e o fato que eu não pudia tentar fugir porque o cara conhecia muita gente. Uma dessas pessoas mentiu pra mim, era um médico. Me pediu dinheiro e disse que ia voltar pra me ajudar, mas não fez nada. Mas levou embora meu dinheiro. Outros clientes me disseram que pra me ajudar, teria que ir sair com eles (de graça). Eu achava melhor não, porque, sair dali pra ficar com outro, melhor não. Me diziam que me alugariam um apartamento e que quando quisessem, eu tinha que ficar com eles. Ou seja, escrava de novo (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia). Com os clientes, eu também vivi diversas situações de desentendimento, porque se dizia uma coisa lá embaixo, e depois, quando subiam, falavam uma coisa completamente diferente, quando chegavam, queriam forçar a gente, bater e estuprar (Estorias de vida, V5, Alma, Brasil). São uns idiotas, filhos da puta. Nojentos, querem fazer tudo aquilo que não se pode, e ainda por cima, querem que seja bem feito (Estorias de vida, V5, Alma, Brasil). No geral, falta um contexto relacional de apoio, e isto vale, particularmente, para as romenas, as quais não podem confiar nem nas outras mulheres com quem trabalham. Não podia falar com as meninas do club porque ele me ameaçava, e mesmo se eles me fizessem perguntas, pois queriam me ver triste e toda machucada. Além disso (falar com eles) era um problema, pois em um certo momento que pedi ajuda à outras garotas romenas, estas foram contar pro dono do club, isto quem me contou foi uma espanhola, amiga de um outro romeno, que conhecia meu cafetão Cercaram o club e não consegui escapar, e o dono do club me disse que queria me ajudar mas o seu patrão não queria problemas e falou pra ele me mandar embora. Assim, no fim foi de mal a pior, e o meu cafetão me colocou em um outro club. Ali, era uma garota espanhola ficava de olho em mim e passava todas as informações ao meu cafetão No ultimo club, quem me controlava era uma romena (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia). Deste ponto de vista, as nigerianas parecem menos solitárias Existe uma comunidade de referencia, embora não sem ambivalências, e mesmo em situação de trafico de pessoas, podem nascer momentos de solidariedade, amizade e apoio pratico, além do emocional. 100 1.6.3. Exploração e fatores de riscos à saúde A própria condição do trafico de pessoas a fins de exploração sexual apresenta fatores de riscos à saúde (tema melhor detalhado no paragrafo dedicado à pesquisa na Itália): os riscos ligados às condições e aos ritmos de trabalho; aqueles ligados à má alimentação – carência ou alimentação inadequada e insalubre - ; aqueles ligados às praticas sexuais sem proteção, com os clientes e com os cafetões; e enfim, os riscos ligados ao consumo de álcool, maconha e cocaína Se prostituem em condições miseráveis, passando muitas horas na rua. Não tem roupas adequadas para o inverno, em nenhum momento do dia, não só nos momentos em que são exploradas, visto que não ficam com nenhum dinheiro para satisfazer as necessidades básicas; até a alimentação. não podem nem comprar um lanche. Muitas delas, acredito, que não podem nem se proteger das doenças sexualmente transmissíveis, pois encontramos muitos casos de doenças venéreas menores. Mesmo nos apartamentos, a prostituição se dá em condições muito precárias, sem aquecimento de inverno, pouca comida.. ou tomam café da manha ou almoçam, ou jantam, comem só uma vez ao dia, ou então quando conseguimos oferecê-las um almoço. Às vezes até podem perder a credibilidade, mas isso se deve, principalmente à situação complicada em que se encontram. Dizem geralmente de terem tido que enfrentar abortos contra a própria vontade ou em condições de risco, e esconder a gravidez até o fim, e visto que são malnutridas, elas até conseguem fazer isso, porque (a barriga) dá pra notar só quando estão pra parir (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM). Com o cafeta, elas tem relações sem proteção, pois pensam que não é necessário usar este tipo de proteção com as pessoas que elas consideram seus companheiros. Isto é um risco, pois os cafetões normalmente têm mais de uma namorada. Com relação aos clientes, normalmente elas usam proteção e até colocam o preservativo no cliente sem que ele perceba, nas penetrações orais ou vaginais (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.). Do ponto de vista da alimentação, identificamos vários problemas, nos clubs comem sempre as mesmas coisas e se trata de comida muito gordurosa, tivemos até muitos casos de anorexia porque as garotas comem pouco e consomem muita cocaína, álcool e maconha. Mesmo se a gente disser pra elas que fazendo isso elas se tornam ainda mais vulneráveis Identificamos um consumo de cocaína em 40% dos casos. E em casos de programas indoor, muito consumo de bebidas alcoólicas, pois elas acabam de beber o que sobrou do drinque em muitos casos. Em outros casos, são os homens que querem que elas consumam cocaína antes de sair com eles (Depoimento, P4, Medico, MdM). Depois, existe uma dimensão mais fugaz, menos visível e talvez, mais difícil de curar, que é o bem estar psíquico Sofrer violência e viver no medo, provocam feridas invisíveis que marcam as pessoas, à vezes, pra sempre. 101 A saúde emocional e psicológica é desastrosa, dizem ter vivido o medo e o terror. Olhando pra elas, são tímidas, quase não falam, tem medo de tudo, são contraditórias e, às vezes, isto nos confunde (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM). 1.6.4. E depois? Mesmo no trafico de pessoas, as garotas conseguem manter a sua capacidade de agir, e algumas conseguem encontrar um meio para sair das amarras da exploração A sociedade, porém, parece ter pouco a oferecer a mulheres migrantes ex-prostitutas. O trabalho é uma raridade, especialmente em tempos de crise, e de qualquer maneira, é instável e precário Quem investiu tanto de si para ir atras de um sonho não pode se dar ao luxo de esperar muito tempo, assim nasce a frustração, e a prostituição parece ser o único caminho. Neste momento econômico que estamos atravessando, menos ainda. Muitas das mulheres conseguem tem um emprego precário, quase sempre um trabalho domestico, e por nada estável É difícil que elas consigam se inserir do ponto de vista social, e que sejam garantidas as condições adequadas (para o inserimento) (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA). O problema maior é o do emprego. As que não denunciam, acabam ficando sem seus documentos, e mesmo pra aquelas que denunciam, o processo é demorado. Não ter um emprego com salario fixo gera preocupação, sabia? Elas tem que ter rapidamente aquela sensação de ganhar o dinheiro delas, de ter a casa delas, de serem independentes. A questão da autonomia. E isto traz consigo a questão da educação, de se preparar, de fazer as coisas como se deve, existem muitas preocupações e o medo de não estar preparada adequadamente. A nível psicológico, existe muita frustração, sabe? Cada vez que procuram uma estrada e encontram dificuldades, se afundam. O que acontece é que acabam projetando a raiva contra tudo o que está em volta delas (Depoimento, P9, Psicologa). Algumas nos diziam que tinham que voltar a se prostituir porque não encontravam outra solução, e de fato, voltaram para o circuito (Depoimento, P3, Diretora, ACF). Além disso, tem o problema do estigma. Uma vez que você vende sexo em troca de dinheiro, você é e sempre será uma prostituta, uma cidadã pela metade, uma mulher de serie B, e nunca poderá se dar ao luxo de sonhar o que é considerado normal e desejável para as mulheres de bem: uma família. 102 Agora a minha família já sabe. Eu gostaria muito de formar uma família, mas acho que não vai ser possível (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia). Os cenários ilustrados até o momento nos falam de uma difícil e dolorosa realidade, mas gostaríamos de encerrar com um depoimento positivo, até mesmo para ressaltar o fato de que as chamadas “vitimas do trafico de pessoas” não são somente vitimas, mas continuam sendo pessoas capazes de resistir, e disto, muitas vezes, nasce a oportunidade de voltar a se enxergar plenamente como dona do próprio destino. Bom, o que mais posso falar? Que pra mim, tudo o que me aconteceu, foi uma experiencia, me fez entender que realmente podem existir momentos ruins na vida de uma pessoa, mas se você sabe lutar, ir em frente, isso pode ser uma saída e pode ser até em grande estilo. Podemos conseguir muitas coisas. É só querer (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia). 103 2. TRAVESTIS E TRANSEXUAIS BRASILEIROS: MIGRANTES OU TRAFICANTES? (Cristina Pidello) Como parte do projeto ETTS, foi feita uma pesquisa sobre o fenômeno da migração interna no Brasil e para a Europa, protagonizando a população transexual, e então, além de identificar quais são as principais rotas - também foram levadas em consideração as motivações que levam essas pessoas a migrar, e quais são as "redes sociais" que trabalham para garantir que isso aconteça. As informações sobre o fenômeno em questão foram recolhidos através de uma pesquisa bibliográfica e aplicação de entrevistas de testemunhas privilegiadas, inseridas no mercado de trabalho, relacionado com a questão do tráfico ou à tutela dos direitos da população LGBTQ. As profissões dos entrevistados variavam desde advogados, psicólogos, assistentes sociais, funcionários de centros de saúde, funcionários da Prefeitura de São Paulo e Guarulhos. Além disso, foram realizadas três entrevistas a representantes de movimentos e de associações italianas pelos direitos dos travestis e transexuais. O trabalho de pesquisa foi realizado por Cristina Epiteloide, recém-formada pela Universidade de Turim, e Rejane Alexander da Costa, coordenadora do “Posto Avançado de Atendimento aos Migrantes” do Aeroporto de Guarulhos, serviço de acolhença do migrante, gerenciados pelo Serviço de Assistência Social da cidade de Guarulhos. A analise das entrevistas foi realizada utilizando um método qualitativo: identificação de palavras-chave quando comparamos as respostas obtidas das diversas testemunhas privilegiadas, levando em consideração o contexto de trabalho no qual eram inseridas. Os resultados das entrevistas tiveram o apoio da contribuição da pesquisa bibliográfica 2.1 Introdução. A migração interna do Brasil. No Brasil, assim como na Itália, as pessoas TT se afastam principalmente das zonas rurais e dos pequenos centros urbanos, onde a cultura essencialmente machista e a tradição de uma sistema familiar patriarcal estão enraizados na população. Há uma maior influência do papel masculino na sociedade, que desencadeia mecanismos de rejeição, muitas vezes violentas, para com as pessoas que adotam comportamentos que desviam da figura masculina da raça humana. Não é aceito pela sociedade o rapaz ou o homem que, ao invés de expressar sua própria virilidade ou masculinidade, se veste de mulher e se comporta como uma mulher. Em sociedades mais tradicionais, os papéis são claramente definidos e expectativas são criadas em relação àquelas pessoas que, se espera, cumpram seus papéis, visto o papel que possuem. Discriminação e violência são dois fatores que têm um papel importante na decisão de migrar de uma pessoa TT. Você decide emigrar nos grandes centros urbanos, onde o individualismo prevalece e não si é mais vinculado a uma comunidade de referência, com uma certa moral ou atribuição de funções específicas. Nos últimos anos, foi registrado no Brasil, um grande afluxo de pessoas que se transferem de áreas mais rurais do interior do país - onde não há uma infraestrutura adequada de serviços públicos – aos centros urbanos, este fenômeno foi denominado como “despovoamento interno”. Em particular, esta migração está ocorrendo no Estado do Amazonas, a maior região do Brasil, cuja capital é a cidade de Manaus. Este fenômeno de abandono das áreas internas do Brasil para se deslocar para centros mais populosos também foi encontrado em uma pesquisa de 2013, realizada pelo Ministério da Justiça em colaboração com o UNODC (United Office on Drugs and Crime) e ICMPD (International Centre For Migration Policy Development). Foram detectados migração de grupos específicos da população, incluindo a migração da população de travestis e transexuais. Os principais afluxos de pessoas de TT que foram detectados, são: 104 • No Estado do Acre, a maioria eram pessoas com identidade de mulher, que se deslocam de pequenas cidades como Tarauacá, Brasileia e Cruzeiro do Sul em direção à capital Rio Branco. Quando chegam na cidade grande, muitas começam a se prostituir pra poder ganhar a grana necessária para poder se deslocar para outros estados do Brasil, em especial para as cidades de Belo Horizonte, Cuiabá, Curitiba e Foz de Iguaçu (Secretaria Nacional de Justiça Governo do Brasil, 2009); • Um outro estado onde existe essa mesma tendencia de se deslocar de áreas menos povoadas em direção à capital, é o Mato Grosso do Sul, onde o fluxo migratório acontece na cidade de Campo Grande, em seguida, saem do estado em direção a outras grandes cidades brasileiras, como São Paulo, Curitiba, Campinas, São Carlos e Cuiabá. A maioria das vitimas de trafico de TT são brasileiras, principalmente de áreas mais pobres, ao norte do país: Amazônia, Pará, Ceará, Amapá O filosofo francês Henri Lafebvre identifica o espaço urbano como um lugar do encontro com a diversidade: um território onde pode existir situações de opressão por parte de grupos minoritários que estão à procura de reconhecimento pela sociedade de referencia (U. Rossi, A. Vanolo, 2010). A experiencia urbana reforça a identidade de quem você é e de onde você vem e, ao mesmo tempo, questiona você ter que “pertencer à grupos que se revindicam essenciais, como os religiosos, étnicos, de gênero ou preferência sexual” (U. Rossi, A. Vanolo, 2010). A cidade se torna o espaço urbano onde conhecer pessoas que lutam pelos mesmos direitos, frequentam mesmos espaços comuns, portanto a cidade representa um lugar mais seguro e protegido, no entanto, muitas vezes isso não se reflete na figura do Estado e da comunidade internacional, que em muitos casos, são protagonistas em cometer injustiças, discriminações e o não reconhecimento das minorias de gênero As características demográficas da população migratória mudam conforme o lugar de origem. A distribuição de homens e mulheres, neste fluxo migratório, é uma das primeiras analises feita em estudos sobre as migrações. Muitas vezes existem claras discrepâncias entre homens e mulheres que compõe a onda migratória que chega em um determinado lugar. Pode ser identificada como uma migração de gênero na qual, no entanto, é unicamente considerado o componente feminino e masculino, talvez pela menor dimensão do fluxo migratório de travestis e transexuais que, como mencionado anteriormente, é muitas vezes difícil de detectar. A questão do gênero é um ponto-chave na analise do fenômeno do trafico de pessoas e da exploração sexual. A maioria das pessoas traficadas são do sexo feminino e são exploradas sexualmente no mercado nacional ou internacional, discrepância de gênero também em parte devido aos vários significados e diferentes papéis que se criam em torno às figuras femininas e masculinas, e a sua influência nas relações econômicas e sociais da sociedade de diversos países (Secretaria National de Justiça, 2013). Ocorre uma “desumanização” do sexo feminino, que vem privado da sua dignidade e considerado como um mero objeto do desejo sexual do homem, e que pode ser transportada de um lugar ao outro. A vulnerabilidade deste grupo especifico é causada pelo fato que, ainda hoje no Brasil, as maiores taxas de analfabetismo são encontradas na população feminina (mulheres, travestis e transexuais). As redes criminais envolvidas no fenômeno do trafico de pessoas aproveitam-se das condições de vulnerabilidade das pessoas e de sua capacidade de sonhar, esperar de poder obter mais e mais, esperar de mudar a própria vida: mas acontece o contrario, uma vez que você se torna uma vitima do trafico, você se encontra em uma situação onde todos os sonhos são negados (Secretaria National de Justiça, 2013). Fenômenos criminosos como, exploração da prostituição e trafico de pessoas, se aproveitam de contextos de desconforto social, e se aproveitam não só da vulnerabilidade econômica das pessoas, mas também do fato que se encontrem em uma condição onde são excluídas do próprio contexto social de referencia, um fator que pesa sobre a consequente dificuldade de ser capaz de competir por empregos de vários tipos. Muitas vezes, empresa 105 fecham as portas do mundo do trabalho para a população TT, assim, se torna uma das poucas alternativas para poder ganhar dinheiro. 2.1.1. Migrar para se prostituir Falando de transexualidade, ainda é muito difuso o esteriótipo que, travestis e transexuais são quase todos prostitutos, e fazem este trabalho por escolha própria, quase que, como se não quisessem fazer outra coisa na vida, e como se fosse normal vê-las por aí, à noite, a prostituir-se. Acredita-se que os transexuais escolham este trabalho porque a exibição do corpo, e a oferta de serviços sexuais aos clientes, seja parte daquilo que é o fenômeno transexual. Um ativista à proteção dos direitos das pessoas LGBTQ no Brasil, durante a entrevista 3C, declarou o seguinte: No que diz respeito à população LGBTQ, em especial, os TT, todos acreditam que se prostituem porque querem, que todos os homossexuais e os travestis são prostitutas, só que ninguém vai procurar saber a historia de cada um, ou porque elas fazem tudo o que fazem, ninguém nunca ofereceu um trabalho diferente a essa pessoa [Entrevista 3C – ativista pelos direitos da população LGBTQ no Brasil] De acordo com uma pesquisadora da Universidade de Campinas, Adriana Piscitelli, é necessàrio distinguir prostituição voluntaria e prostituição forçada (A.A. Piscitelli, 2011). No caso dos travestis e transexuais, a decisão de se prostituir autonomamente, faz parte de um percurso de formação da própria identidade, onde podem sentir-se desejados, apreciados, e não unicamente ligado à questão de ter que ganhar seu próprio dinheiro. Muitos dos travestis e transexuais que abandonam seu núcleo familiar, uma vez fora de casa, mesmo assim, mandam remessas com dinheiro que, muitas vezes, com o dinheiro que conseguem economizar, compram casa ou carro novo para os pais. O sustentamento da família se torna um modo para conseguir “ser aceito” e conseguir uma posição hierárquica dentro do próprio mundo das trans (Ministério da Justiça, 2011). Sair de casa se torna uma possibilidade de poder crescer, se conhecer, mudar a própria condição econômica e social. É relevante no Brasil, o fenômeno migratório de travestis e transexuais, que decidem ir trabalhar em grandes centros urbanos e também no exterior, para poder ganhar mais e, assim, ter dinheiro suficiente para fazer outras cirurgias plasticas para transformar o corpo. 106 2.2. Código Penal brasileiro: não se refere somente à mulheres, mas à “pessoas” Quanto à definição de trafico de pessoas no Brasil, a referencia legislativa é o Código Penal brasileiro, nos art. 206, 207, 231 e 231, apresentados abaixo: Art. 206 –Art. 206 - Recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro. (Redação dada pela Lei nº 8.683, de 1993). Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.683, de 1993) Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional Art. 207 – Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena - detenção, de dois meses a um ano, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis. Pena - detenção de um a três anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) § 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição: (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005) Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005) Parágrafo único. Aplica-se ao crime de que trata este artigo o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 231 deste Decreto-Lei. (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005) Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Também é considerado trafico de pessoas, segundo o Código Penal brasileiro, o simples fato de acolher uma pessoa em casa que depois possa prostituir-se. Além disso, ajudar ou facilitar o deslocamento de pessoas que estão indo de um lado para o outro, dentro do território nacional para depois poder exercitar a profissão de prostituta ou para ser explorada sexualmente, é considerado crime de trafico de pessoas. Em 2008, foi publicada uma pesquisa conduzida por Flávia do Bonsucesso Teixeira, na época era doutoranda em Ciências Sociais e hoje é uma docente da Universidade Federal de Uberlândia (Minas Gerais), tal pesquisa foi apresentada em um seminário sobre as questões de gênero em relação ao trafico de pessoas, realizada pelo Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp e do projeto de Combate ao Trafico de Pessoas do Escritório da Organização Internacional do Trabalho no Brasil. 107 No texto, são afrontadas questões sobre o trafico de pessoas transexuais em relação à condição social em que vivem e ao sonho de viajar pra Europa, a fim de encontrar uma melhor situação de vida, do ponto de vista econômico e social. Este sonho, sempre presente, está relacionado com as mudanças que foram feitas no Código Penal brasileiro em 2005, onde eram acusados e considerados como forma de trafico de pessoas também os comportamentos de facilitação ou ajuda em viagens de uma pessoa em direção ao exterior. O risco é aquele de não conseguir distinguir entre as trans que decidem se prostituir e possuem os documentos em ordem, e aquelas que são traficadas e estão sem documentos. Uma nova mudança feita no Código Penal foi a substituição da palavra “mulheres” com “pessoas” dentro do discurso sobre trafico de pessoas, podendo assim abranger também a população de transexuais e travestis como vitimas deste fenômeno. O Código Penal brasileiro não considera a possibilidade de que uma pessoa possa decidir, por vontade própria, emigrar para poder se prostituir no exterior, ou em outro lugar do Brasil. No que diz respeito à população TT, é criminalizado toda e qualquer forma de ajuda com finalidade de facilitar o exercício da prostituição, o problema é que não é reconhecido nenhuma forma de ajuda por parte das redes sociais que se criam informalmente. Nesta pesquisa da FlaviaTexeira, é dada atenção a como o Protocolo de Palermo e o Código Penal dão uma definição ao trafico de pessoas, que não se enquadra às circunstancias particulares de cada caso e à compreensão das diversas razoes que uma pessoa TT pode ter. Durante uma entrevista a um advogado inglês, que mora já há muitos anos no Brasil, e presidente da ONG “SOSdignity”, é discutida a importância de analisar os casos de migração/ trafico de travestis e transexuais, considerando também o contexto social do lugar de onde vieram, e o que viveram, analisando caso por caso: Aqui no brasil, como funciona o trafico interno de pessoas transexuais? É necessário ter uma visão do fenômeno também sob o ponto de vista delas, que não se consideram vitimas. Especialmente na região de Belém do Pará, muitos adolescentes provém dali, onde as pessoas tem origens indígenas, e a fisionomia é mais arredondada e é muito mais fácil para um homem virar uma mulher. No nordeste do Brasil, os homens fazem sexo com cabras, galinhas e frangos, muitas crianças trans, por volta dos oito anos de idade, já tiveram relações sexuais com os primos, ou o pai, tios, não têm nenhum problema emocional, só que quando a pessoa começa a se sentir uma e a querer virar mulher, a família mandar embora de casa, porque existe uma cultura muito machista, mandam pra fora de casa, daí se prostituem e vivem nas ruas sozinhos, com 13-14 anos, na sua cabeça não existe o desejo de se estudar e ter uma educação, mas pensa somente em conseguir chegar em São Paulo, por peitos e ir pra Europa pra ganhar mais dinheiro, é o único sonho que eles tem. Assim, buscam oportunidades que são oferecidas por outras pessoas. Claro que são vitimas, são crianças adolescentes, mas também é preciso entender o ponto de vista deles antes de julgá-los É importante primeiro conhecer o ponto de vista da pessoa e, em seguida, colocá-las em categorias, não acreditar muito nas coisas que algumas pessoas te dizem, sim, são vitimas, mas não pensam como tais, não se consideram vitimas. Para elas, é uma oportunidade de ter a passagem do ônibus paga, pra chegar até São Paulo [Intervista 5C – presidente de uma ONG de São Paulo que oferece assistência legal à população TT] Aquilo que para a legislação nacional e internacional é frequentemente considerado como o exploração ou tráfico de pessoas, para vários travestis e transexuais é considerada como uma oportunidade de mudar de vida, uma possibilidade que é oferecida a eles. Como criar um sistema adequado de acolhimento para as vítimas, quando elas próprias não se identificam como tais? 108 O problema da migração/ trafico interno no Brasil, no que diz respeito à população TT, foi também evidenciado durante a entrevista conduzida por Rejane Alexander da Costa à coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo: J: Na verdade, na maioria dos casos, as pessoas não querem ir ao exterior, querem ficar aqui. Todas as garotas que conseguimos recuperar, jovens, adultas, algumas delas gostariam de viajar pra fora do país, mas o interessante é que diziam assim: "se fico aqui, sei que não irei precisar de nenhum empréstimo, não terei nenhuma divida pra pagar, vou só ter que trabalhar duro, ganhar meu dinheirinho aqui e depois ir pro exterior”, a maioria das mulheres, adultas, nos diziam isso, enquanto as adolescentes não haviam mesmo nenhuma intenção de viajar pra fora do país, exceto no caso de uma adolescente, um caso, que não significa que não existam adolescentes que venham ao Brasil com a intenção de, mais tarde, viajar pra outros países, mas acredito que seja equivocado pensar sobre o problema da imigração dos travestis adolescentes, ou dos travestis do Norte e Nordeste que vem pra São Paulo, imaginando que o desejo deles seja aquele de ir pra Europa, devemos, na verdade, nos preocupar com os problemas internos do Brasil, porque estão migrando dentro do Brasil, porque não vão diretamente para a Europa, é esta a pergunta que deveriam fazer, mas é que as pessoas gostam de americanizar o fenômeno, eu brinco, dizendo que quero glamorizar o fenômeno, ao invés de simplificar, se somente as vitimas tivessem ideia do que acontece aqui no Brasil antes de ir pro exterior, não ousariam vir a São Paulo, Cumbica, mas iriam diretamente pra Itália Porém, não é assim que acontece, elas vem direto pra São Paulo, por uma serie de motivos, primeiro, elas precisam de dinheiro, precisam se organizar para depois viajar pra Europa, precisam fazer contatos, e em São Paulo existe esta oportunidade, elas vêm pra cá porque, de onde elas vem, elas são discriminadas, não encontram trabalho, não tem estudo, vivem em uma cultura onde os preconceitos são muito fortes, existe uma dificuldade em lidar com situações de conflito familiar, e essas coisas todas, então quando você ouve as estorias destes adolescentes, você percebe que eles sofrem como qualquer adolescente de uma família pobre, e esta pobreza não é relacionada à fome, não!, é pobre porque o pai bate na mãe, ou porque o pai é sempre ausente, ou é o irmão que agride a mãe, ou a mãe que tem muitos filhos e o pai trabalha muito, então, ainda não tiveram uma situação melhor e mais estruturada para ser capaz de dizer aos filhos de seguir o exemplo deles. Existe também um fator cultural, isto é, não tenho nenhum apoio em casa, então, me viro por aí para encontrar figuras de referencia, e é assim que entro no mundo dos transexuais, o mundo deles é formado por pessoas que passaram por situações de violência, por isso a tendencia é um mundo violento, intolerante, onde explorar é normal, é sério, é normal que na minha casa vivam 10 trans, e lhes faço pagar a diária, coloco um valor, se eles vão se prostituir, não me interessa, mas vão ter que se drogar ou então, vão ter que vender droga pra mim, e se não o fizerem, serão castigadas. Portanto, a violência deste universo é resultado da violência vivida individualmente, faço aos outros o que fizeram comigo.. este é o meu ponto de vista. [Entrevista 1R – coordenadora do núcleo de combate ao trafico de pessoas da região de São Paulo (Brasil)]. 109 2.3. O abandono do próprio contexto social de referência Em seguida, será mostrado um trecho da entrevista feita a um travesti que se prostitui pelos redores da cidade de São Paulo (BRA), [entrevista 2C]: Eu tinha treze pra catorze anos quando comecei a descobrir minha identidade, porém meus pais não me aceitaram e me mandaram pra fora de casa, assim comecei a me rebelar e a cair em depressão, o psicologo dizia que eu era louca, aí decidi ir embora […] Quando digo, nós travestis, me refiro àqueles que caíram no mundo da prostituição e que são obrigadas – eu sou um travesti que fui obrigada a cair na noite, a minha vida me obrigou, porque minha mãe me pôs pra fora de casa quando eu tinha 15 anos, venho do nordeste do Brasil, e vim pra cá porque não tinha mais jeito de ganhar a vida, pra comer ou pra ter um lugar pra dormir, as pessoas de onde eu venho, não me aceitaram e, aí, cheguei em Sã Paolo que eu era um “bicho do mato”. […] Vou te explicar como eu cheguei até São Paulo. Eu tinha 15 anos e consegui tirar, escondida da minha mãe – se não ela não iria deixar – o meu documento de identidade, mesmo eu sendo menor de idade, minha mãe me pôs pra fora de casa sem sequer me dar uma orientação do tipo: “vai viver com fulano ou faz isso assim”, nada. A partir daquele momento, eu sabia que na cidade onde morava, não teria nenhuma oportunidade, nasci ali, a cidade era pequena e pobre, então não conseguiria fazer nada. E então o que eu fiz? Saí à procura de alguma coisa Você se prostituiu na tua cidade? Não, não cheguei a me prostituir na minha cidade. Pegava carona de cidade em cidade […], sabe que os homens, diante de um rapaz gay, se aproveitam, e me pediam o meu “buraquinho” em troca da carona, e olha que da minha cidade até aqui, eu tive que pedir muitas caronas, até me escondi dentro de um caminhão de presuntos. [Entrevista 2C – travesti que se prostitui na cidade de Guarulhos e de São Paulo (Brasil)] Na Constituição da Republica Federal do Brasil, ao interno do art.5, afirma-se a liberdade de se mover livremente dentro do território nacional: Art. 5º: XV. É livre a circulação por todo território nacional em tempos de paz; é permitido a todos, segundo previsto pela lei, entrar, permanecer, ou sair com seus pertences. A presidenta de uma ONG de Guarulhos (Brasil), durante a entrevista 6C, afirma que, o pensamento a respeito do direito de se locomover livremente pelo Brasil, também se estendeu para pessoas de 12 a 18 anos: Os adolescentes de 12 a 18 anos podem viajar sozinhos dentro do Brasil, mas o Protocolo de Palermo considera como “crianças” pessoas de 0 a 18 anos de idade, […] sair do Brasil é muito fácil, no trafico interno são os adolescentes a serem mais vitimizados, sejam eles transexuais ou não, porque no Brasil os adolescentes podem viajar sozinhos. Não por acaso, Dilma, há alguns meses atrás, deu uma entrevista onde falou da necessidade de se 110 conseguir criar um mecanismo capaz de tutelar os adolescentes que viajam sozinhos, sem ter que limitar o seu direito de “ir e vir” livremente no país No aeroporto de Guarulhos, deveriam ser registrados os adolescentes que viajam sozinhos, juntamente às informações sobre sua origem e destino, e sobre a família. Mas essas informações não existem, portanto, no caso de adolescentes desaparecidos, não tem nada que possa ser feito porque não se sabe qual foi a rota tomada. [Entrevista 6C – presidenta da ONG de Guarulhos, responsável pelo acolhimento de vitimas de violência e do trafico de pessoas] A entrevistada que, há mais de 10 anos é responsável pela assistência às vitimas do trafico, mostra como a falta de tutela e controle dos deslocamentos de menores pelo território brasileiro, facilitando a ação das redes criminais para aliciar e translocar suas vitimas. A grande dimensão do território brasileiro dificulta um controle mais rígido dos vários deslocamentos que ocorrem ao interno do país e nas áreas de fronteira, particularmente nos confins das Fronteiras Secas: Quanto aos outros países, estamos agora em um período em que as cidades são o centro de imigração brasileira para pessoas de Haiti, Bolívia, mas não há condições para acomodar essas pessoas. Por exemplo, no Mato Grosso a fronteira seca é de 700 quilômetros, entrar e sair é muito fácil, basta confiar em uma pessoa para ajudá-lo, ou tenha já saído e entrado no Brasil e que conheça os pontos menos controlados, tem muitos travestis e transexuais que atravessam a fronteira com o Suriname ou a Guiana Francesa. Estamos tentando ir trabalhar no Amapá Estamos tentando criar uma parceria com a universidade para ser capaz de investigar o fenômeno. [Entrevista 6C - presidente da ONG Guarulhos ASBRAD] Quando decidem deixar a própria casa, é necessário decidir também pra onde ir, deste modo se ativam as redes sociais. Se procura entrar em contato com algum trans ou travesti nativo para pedir ajuda e conselhos. Os trans que conseguem concluir todo o processo de transformação do próprio corpo, que talvez tenham vivido na Europa, e tenham conseguido comprar um carro ou uma casa nova, representam um ponto de referencia para outros trans no inicio de seu percurso de descoberta da própria identidade de gênero, quase um modelo a seguir e se inspirar. Através dos contatos, conseguem organizar a viagem ou decidem de emigrar. No caso de Paula, ela tinha contato em São Paulo, e para a viagem, teve que se virar sozinha, oferecendo serviços sexuais em troca de carona. Em outros casos, há um apoio logístico e econômico o deslocamento do lugar de onde a pessoa mora ao lugar onde quer se transferir. 2.3.1 A figura e o papel da “Cafetina” Quanto ao transporte, em alguns casos, encontramos a presença da “cafetina”. O termo “cafetina” se refere à uma mulher ou trans que administra e organiza a prostituição de uma garota ou de um trans, e exige uma porcentagem de seus ganhos. O mundo da prostituição de travestis e transexuais é estruturado e organizado de forma diversa da prostituição de mulheres. É, de fato, menos controlado por parte das organizações criminais estruturadas, porém é indispensável a figura da cafetina que, muitas vezes, é um 111 trans ou travesti, e que, por sua vez, também já foi prostituta. Um dos principais problemas que facilitam a discriminação e a exclusão social de pessoas TT é próprio a falta de informações e de conhecimentos sobre a transexualidade e sobre a existência ou não de serviços sócio-humanitários específicos para estas pessoas. No momento em que uma pessoa TT descobre quem é, sua identidade de gênero, e não consegue apoio dentro do contexto social onde vive, torna-se vulnerável Neste caso, a primeira pessoa encontram e que, diferentemente de todas as outras, demonstra compreender e saber escutar, se torna facilmente uma referencia. Se vai em busca de um lugar onde ser aceito e, por vezes, acabam nas grande cidades. Acabam indo trabalhar para uma cafetina, graças ao boca-a-boca e aos contatos que se tem, “... sabe, tenho uma amiga que pode te ajudar a fazer as cirurgias que precisa e achar um trabalho...”. Na entrevista 5C, o entrevistado conta como as cafetinas muitas vezes financiam e facilitam a viagem de travestis e transexuais: Quem são essas pessoas que bancam as viagens? Elas fazem parte da comunidade?Quem são? São as cafetinas de lá [Europa] que tem acordo com as cafetinas daqui [Brasil], às vezes são os próprios trans de lá que procuram pessoas pra poder mandar pra São Paulo sozinhas e com documentos falsos de identidade, chegam em São Paulo, procuram uma casa, e dizem que tem 18 anos, porque cafetina boa, que não explora, não aceita pessoas com menos de dezoito anos, por isso, já chegam com os documentos falsos. Algumas são levadas, outras chegam sozinhas e vão viver na casa de uma cafetina, mas vão pra rua se prostituir. De acordo com o Protocolo de Palermo, só o fato de acolher e explorar e - no caso de menores de idade, basta só acolher – para que seja considerado como crime de trafico de pessoas. Então estes adolescentes vem até aqui e começam a trabalhar com idade entre 15 e 17 anos, às vezes, a policia os pega, quando a policia te pára, eles querem ajudar a vitima voltar para sua família, porém os trans não se sentem vitima, está bem, embora seja claro que não está bem, porque é pobre, explorada e, por vezes, espancadas, mas na sua cabeça, tá tudo bem, não quer voltar pra família, que já a expulsou uma vez. [Entrevista 5C – presidente de uma ONG de São Paulo que oferece assistência legal à população TT] Quando chegam na cidade grande, a primeira coisa pra se achar, é um lugar pra ficar. Depois que a viagem foi financiada, a mesma rede de contatos oferece uma habitação, uma cama pra dormir. Obviamente, nada é de graça, assim, começam a acumular uma serie de dividas. Os aluguéis são altos, lucram com o fato que, poucas pessoas oferecem uma casa a travestis ou transexuais: ou aceitam ou acabam na rua. Além do aluguel, é preciso acrescentar as despesas para as roupas, comida, injeções de silicone industrial, hormônios, e a divida aumenta, e então não há nada a fazer, a não ser, trabalhar. Normalmente vivem na casa da própria cafetina, outras vezes, moram em outra casa. Se cria uma relação estranha, uma relação de poder, confiança, respeito e de afeto em relação à cafetina. É uma referencia, que usa o bastão quando as regras ou pagamentos não vêm respeitados, mas que também sabe ajudar nas diversas fases da construção da verdadeira identidade das trans. Numa entrevista a um assistente social que trabalha próximo a um centro de cura e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis de Guarulhos (SP), são descritas as condições de moradia de alguns trans que se beneficiam do serviço de assistência sanitária: Temos dois casos: Fabíola, que vive com outra oito pessoas, e Sara, que vive com dez. Dividem casa porque suas famílias não lhes aceitam mais, lhes mandam pra fora de casa, 112 daí pra onde eles vão? Vão bater na porta da casa da amiga, chega uma, chega outra, mas não sei quais são as condições de vida no apartamento, porque elas não abrem a porta, são muito reservadas, e não falam destas coisas, imagina, com a gente elas já são mais abertas e nos contam muitas coisas. Deve ser uma forma de defesa, se protegem entre elas.. a amiga que a ajudou, deu comida, como faz a denunciá-la?[Entrevista 11C – assistente social do DIET, Centro de Assistência para a Cura de Doenças Sexualmente Transmissíveis da cidade de Guarulhos] Não existem muitas alternativas, ou você paga, respeita as condições da cafetina, acha uma tua função no sistema de exploração, ou acaba na rua. Muito explicativo foi o depoimento de um trans que trabalha na cidade de Brasília e que, no passado, durante as primeiras fases de transformação do seu corpo, foi afastada de onde trabalhava antes e teve que se prostituir porque não conseguia achar nenhum tipo de trabalho (entrevista 12C): Existem casas de cafetinas onde até as calcinhas são vendidas dentro daquelas paredes, remédios que, na farmácia, custariam 1 real, lá são vendidos a 10; a vulnerabilidade para extorquir e praticar crimes é baseada na vulnerabilidade em si, e não precisa de muitos meios de proteção, porque ameaça de uma cafetina é botar você na rua, e então, o que você vai fazer? Pra onde vai? Ou paga ou rua. [Entrevista 12C – Transexual que trabalha na prefeitura de Brasília] Em uma entrevista a um trans que se prostitui na cidade de Guarulhos (SP), disse que existem mesmo pessoas que acompanham o processo de transformação das trans, convencendo-as a realizar todas as operações necessárias para mudar o próprio corpo: Depois, quando eu cheguei em Guarulhos, encontrei minha amiga trans, que já tinha se “embutido” toda e já tinha morado na rua, e ela me disse “eu vou te ajudar, mas você vai ter que trabalhar pra mim”, então eu lavava, limpava e fazia os afazeres de casa pra ela, em troca de casa e comida. Quando comecei a me transformar, e ela percebeu que eu era bem formada, tinha um peito bonito pra poder trabalhar na rua, e então me trouxe pro seu mundo, me abriu a porta, eu não a culpo por isso. Não me cobrava juros porque morávamos juntas. Só que, depois de um tempo, alguns pontos da prostituição decaem, por exemplo, onde trabalhava fizeram uma nova rodovia, e tive que mudar, procurar outro lugar, e tive que pagar... foi assim que comecei a ser uma “explorada por cafetinas”, fui explorada por cafetão, por cafetina. Hoje não sou mais explorada, tem um lugar fixo pra eu trabalhar, e nos protegemos entre nós, amigas, e não deixamos mais que isto aconteça porque nós já sofremos muito com isso no passado. Falando de “cafetina”, aquelas que “convidam” pra vir a São Paulo são as mesmas que te “ajudam” a viajar ao exterior? 113 Não, a cafetina é como um dos jogadores de futebol, cada time tem um. Cada cidade tem uma cafetina, cada bairro tem uma cafetina. O que é uma cafetina? É uma prostituta que já trabalhou muito na rua e por aí, e não precisa mais ir pra rua e vender seu corpo. Então o que faz? O aluno se torna professor: torna-se professor na escola onde aprendeu tudo, ensinando outros alunos, é a mesma coisa. A cafetina já sofreu, muito, vendeu seu corpo e depois, conseguiu se levantar, se ergueu e hoje pode seguir o seu caminho. Assim chega uma bela jovem, começa a fazer o tratamento hormonal e começa a admirar a casa e o carro da cafetina, e lhe pergunta “como conseguiu obter tudo isso?” e la senhora lhe explica que conseguiu tudo isso se prostituindo, mas que foi muito difícil, sem brincadeira. Assim, de frente a todas as dificuldades, a garota entende que precisa daquela pessoa, e assim a cafetina a acompanha ao local onde deverá se prostituir, e a garota, sendo jovem e bonita, começa a ganhar bem, mas tudo tem um preço. Disse a ela que a ajudariam, e que a ela seria dada a essência do perfume, mas que vai ter que pagar porque nada é de graça. E assim começa, e aquela garota bonitinha se transforma em outra garota bonitinha com uma linda peruca [Entrevista 2C – transexual que se prostitui na cidade de Guarulhos e de São Paulo (Brasil) E' um ciclo continuo: se descobre a própria identidade e procura uma pessoa para te ajudar – e em alguns casos, até explorar – no processo de “construção” do seu próprio corpo e depois, uma vez pronto, quando você se torna finalmente o que você queria ser, começa a ter o mesmo comportamento de exploração contra alguém. 2.3.2 A via das dívidas Para se prostituir na rua, tem que pagar, se paga a proteção, a segurança de saber que tem alguém que cuida para que ninguém te agrida, mas se você não paga, começam a fazer ameças, violência, de modo que você é obrigada a pagar pra poder trabalhar tranquila. Na cidade de São Paulo, parece que, nos últimos dez anos, graças ao intenso trabalho da policia, o domínio das ruas por parte das redes criminais da prostituição, diminuiu, especialmente no que diz respeito à prostituição de transexuais. Uma noite, graças ao me amigo que trabalha em defesa dos direitos dos travestis e transexuais, pude adentrar nas ruas da prostituição do centro de São Paulo, passei por um lugar que fica na rua Frei Bento, um barzinho que fica aberto a noite toda, e é um lugar de encontros e de passagem de muitas prostitutas trans. Entrando no bar, Barry me leva pros fundos e me faz sentar na ultima mesa da sala que fica aos pés de uma escada, que leva ao andar de cima, ao lado, uma janela que dá pra rua. Barry me conta que até 2007, aquele bairro era controlado por uma “cafetina” muito famosa, dizem que foi a cafetina mais importante do centro de São Paulo e que substituiu uma outra cafetina, muito importante, que nos anos 80 controlava a prostituição de travestis e transexuais na cidade de São Paulo (Brasil). Esta cafetina que controlava a prostituição do centro de São Paulo até 2007, ela frequentava aquele bar, era o seu quartel general. De alguns anos pra cá, devido à contínuos controles e blitz da policia, o trabalho na rua para a maioria das prostitutas (trans) não é mais dependente e controlado pelas cafetinas, as quais no entanto continuam a financiar, com juros altíssimos, as cirurgias de transformação das trans, além de organizar e administrar a viagem até São Paulo, caso elas não sejam da cidade, e o aluguel do lugar onde vão ficar. À estes empréstimos, são aplicados juros muito altos, isso é toda a divida que as trans tem com as cafetinas. Na cidade de São Paulo é menos pronunciada a exploração direta da prostituição, mas tem toda a questão do aliciamento e reembolso de dividas com aplicação de juros que 114 são bem acima dos legalmente reconhecidos. Durante a entrevista 3C, foi contada uma coisa que aconteceu nos anos 80: Nos anos 80, o controle da prostituição de travestis e transexuais estava nas mãos de uma transexual, Keila [nome fictício], período em que o uso do silicone industrial começou a ter uma grande repercussão. Keila era uma grande cafetina de São Paulo, dava muitas entrevistas, tinha muitas boates, controlava as ruas: pra poder se tornar um travesti ou transexual e poder trabalhar na esquina ali da rua em São Paulo, precisava pedir permissão à Keila, ela te dava permissão, mas tinha que pagar uma porcentagem dos seus ganhos pra ela. Ela se responsabilizava por todo o processo de transformação do corpo, desde as cirurgias para colocar as próteses de silicone, às injeções de silicone industrial e cirurgia de transformação dos genitais, ela te orientava e te mandava para as pessoas certas, de modo a começar o processo de transformação, obviamente, tudo tem um custo. Era uma mafia, e ela oferecia até proteção às prostitutas, dando-lhes permissão pra trabalhar na rua, tinha também o apoio da policia, eu vi tudo isso, na época eu tinha uns 17 anos quando conheci Keila, a policia passava pelas boates da Andréa e pegava uma grana pra poder deixar em paz as trans da rua, nos tempos da Keila tinha isso, mas depois que ela foi assassinada, não houve mais um controle assim forte. Durante a seguinte entrevista, quando se fala sobre as politicas para a “diversidade sexual” de São Paulo, foi expresso como, de fato, no que diz respeito à população TT, não se trate, na maioria dos casos, do fenômeno do “trafico de pessoas”, mas de “exploração da prostituição” [entrevista 8C]: Aqui na Secretaria da Justiça, onde se encontra a Coordenação da Diversidade Sexual existe um Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas e eles são responsáveis especificamente pelo trafico de pessoas. Apoiamos e ajudamos no trabalho do NETP, quando se trata de vitimas da população LGBTQ, quando se fala de travestis e transexuais, geralmente, não é trafico de pessoas, mas exploração da prostituição Tivemos muitos casos de menores que chegavam principalmente do Pará e vinham pra cá porque eram discriminados pela própria família, pelo ambiente social onde vivem e querem começar a tomar hormônios, a colocar próteses de silicone, e injetar silicone industrial para poder transformar o corpo, e acabam chegando aqui. Muitas chegam iludidas e enganadas pela internet, com promessas de que poderão ir à São Paulo, onde encontrarão trabalho e poderão realizar todas as cirurgias de transformação do corpo. Chegam aqui e acabam na casa das cafetinas, muitas delas também travestis, e são exploradas sexualmente em troca de casa e comida, e muitas delas que fazem aplicação de silicone são chamadas de bombardeiras, elas mesmas se injetam silicone industrial. Acabam se endividando com as cafetinas e não podem fazer outra coisa que não seja se prostituir. Pra te dar uma ideia, na semana passada, uma noite, estava aqui na coordenadoria às 19.00 e chegaram duas garotas menores de idade, uma de 15 e outra 16, que tinham fugido da casa de uma cafetina travesti, estavam em São Paulo há cinco meses e fugiram porque não queriam mais ficar lá, tinham passado uma semana na rua antes de chegar até nós em busca de ajuda. Eu contatei a coordenadora do “Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas”, a qual, por sua vez, contatou o Conselho Tutelar visto que se tratava de menores de idade, assim, conseguimos encontrar um abrigo pra elas. Agora as duas garotas estão pensando se voltar ou não para o lugar de onde vieram, uma era do Pará e a outra de Minas Gerais. Descobrimos que onde estavam estas duas garotas, existe um processo em andamento contra as pessoas que as exploravam sexualmente. Elas tinham liberdade pra sair da casa 115 onde ficavam, mas rolava uma exploração da prostituição, elas tinham que se prostituir pra poder conseguir pagar a divida, e uma delas se injetava silicone, acho que já estava aplicando na parte inferior do corpo, e era a cafetina travesti que fazia essas aplicações de silicone industrial. No que diz respeito ao trafico de pessoas interno de travestis e transexuais, acontece mais ou menos isso, muitas garotas menores de idade vem pra cá com essa intenção, viaja, sem problemas porque qualquer pessoas tem a liberdade de ir de um lugar a outro, mesmo que seja menor de idade [Entrevista 8C – responsável pelas politicas sobre a “diversidade sexual” na cidade de São Paulo (Brasil)] A entrevista 8C se refere também ao papel das “bombardeiras”2 no processo de construção do corpo de um travesti ou transexual. 2.3.3. As bombardeiras: a transformação do corpo por vias informais e ilegais A experiencia pessoal da entrevistada 2C a levou a fazer uso de silicone industrial para arredondar as linhas do seu corpo e torná-lo mais feminino. [entrevista 2C]: Você usou silicone industrial, tomou hormônios? Cheguei a tomar hormônios no período dos dezessete aos dezenove anos, e comecei também a me injetar silicone industrial nas coxas, porque não existem próteses de anca, não existe este tipo de cirurgia, então, se recorre ao uso de silicone industrial que, porém, é ilegal. Tem que dar sorte de encontrar uma boa “bombadeira” que consiga te deixar com uma boa anca, como a minha. Alguns não conhecem bem estas substancias e misturam coisas diferentes, é muito perigoso. [Entrevista 2C – transexual que se prostitui na cidade de Guarulhos e de São Paulo (Brasil)] O utilizo do silicone industrial e da sua aplicação por pessoas não qualificadas e adequadamente formadas para realizar tal operação, é um problema muito grave dentro da população trans, que se instalou devido à falta de serviços específicos públicos, mas também privados, que oferecem a possibilidade de poder realizar as cirurgias de transformação do corpo, que uma pessoa trans necessita. A presidenta de uma ONG de Fortaleza, que lida com proteção e promoção dos direitos da população trans, durante a entrevista 9C, menciona o fenômeno das Bombadeiras: 2 Trans (travesti ou transexual) que aplicam injeçoes de silicone industrial e se responsabilizam pela transformaçao do corpo da pessoa trans, mesmo não tendo nenhuma licença medica, nem autorizaçao para aplicar tais substancias que, na maioria dos casos, resultam ilegais. 116 No Brasil, existe também o fenômeno das Bombadeiras, é considerado crime usar silicone não através de cirurgia, e que é muitas vezes realizada por outras pessoas. Até que ponto as bombardeiras são monstros, ou seriam fadas? Porque conseguem transformar em corpos belíssimos, mas existem casos onde a travesti teve que amputar a perna por culpa do silicone industrial. Hoje no Ceará, colocar prótese de silicone custa uns 6000 reais, imagina quantos clientes ela tem que atender para poder ter grana suficiente pra colocar peito, fazer uma rinoplastia, quanto silicone elas tem que injetar pra ter umas pernas lindas e delineadas. Esta busca da feminilidade é permanente na vida de um trans, não muda porque a transformação do corpo representa aquela afirmação que, a elas é negada cotidianamente.. elas fazem cirurgias, colocam silicone no corpo, mas pela sociedade, elas são chamadas com o nome de batismo, ou seja, nome de homem. Por isso fazemos este trabalho pela garantia dos direitos, mas sabemos que será necessário ainda muito tempo para conseguir gozar desses direitos. [Entrevista 9C – presidenta de uma ONG de Fortaleza, responsável pela tutela dos direitos da população trans] “Até que ponto as bombardeiras são fadas, e até que ponto são monstros”? As aplicações de silicone industrial são feitas dentro da própria casa e pelas próprias trans. Obviamente custam menos respeito às operações da medicina tradicional, oferecida como serviço privado, dando a possibilidade de reduzir o tempo de espera, para finalmente ver o aspecto físico que deseja. Infelizmente, o custo não é somente monetário, os efeitos colaterais – desta substancia química injetada no corpo – são vários: em alguns casos, ter até que amputar um membro, enquanto em outros casos, a falta de informação sobre o estado de saúde da pessoa, pode levar até à morte. Outro efeito colateral devido ao uso de silicone industrial é que, depois de um certo período, ou após um forte trauma, esta substancia pode descer para as zonas inferiores do corpo, desfigurando a pessoa: aparece como um forte inchaço nos tornozelos. Durante a entrevista 5C, foram mostradas fotos de trans que tiveram “o silicone industrial que desceu” e explicado porque às vezes isso acontece? O silicone das pernas descem para os pés? Sim, e às vezes, os policiais batem nas prostitutas trans, bem nas pernas de proposito pra fazer descer o silicone. Quando o silicone desce, normalmente, as prostitutas procuram serviços de saúde publica ou privada em busca de tratamento? Não há muito o que fazer porque se trata de silicone industrial, injetado diretamente no músculo: já é caro conseguir injetá-lo, imagina para tirá-lo então. [Entrevista 5C – presidente de uma ONG de São Paulo que fornece assistência legal à população trans] Para um trans, a transformação do corpo é fundamental porque lhe permite de não ter que se espelhar todo dia em uma figura que reconhece: o corpo é algo que esta com a gente a todo momento, e a todo momento nos faz lembrar quem somos e o que não gostaria de ser. A decisão em relação à qual aparência física assumir, é também ditada pelos modelos de feminilidade perpetrados pela sociedade. Durante a entrevista 9C, se explica como estes modelos estão ligeiramente mudados em relação ao passado: 117 Você pode me falar sobre o fenômeno das Bombadeiras? O fenômeno das bombardeiras hoje não é muito forte, esta cultura e ideia do corpo ideal para as trans, não é mais assim tao forte, acho que as travestis de hoje são bem diferentes daquelas dos anos 90, hoje estão sempre em busca do estilo e da estética europeia, mais ossudas e mais magras, se aproximando mais à feminilidade da mulher, ao contrario dos anos 90, onde a moda era mulher formosa, grande, com um grande traseiro e grandes tetas. As bombardeiras se aposentaram. Hoje, o que acontece é que outras trans ou mulheres mesmo, mas especialmente travestis, fazem uso destas injeções de silicone industrial, que custam por volta de 500 a 700 reais ao litro, com risco de gangrena e amputação Tem uma garota que conheço que se injetava silicone, perdeu um braço e uma perna. Hoje as garotas usam muito as próteses, é um mercado que aumentou muito, por exemplo, eu já coloquei duas vezes. Não tem nenhuma assistência oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde)? Não, não. Tenho amigas cabeleireiras e que tiveram que economizar dinheiro por três anos para fazer esta operação, iam trabalhar de ônibus ao invés de pegar o carro pra economizar, você viu como é difícil se mover de ônibus nesta cidade! Para fazer a cirurgia dos genitais, tem que separar por volta de 20000- 27000 euros ou arriscar ir pra Tailândia ou pra Itália, por conta, muitas vão pra Itália por conta, muitas garotas vivem o resto da vida delas na fila, esperando pra fazer a cirurgia no SUS, é um processo que demora muito devido à fila de espera e de todo percurso de tratamento físico e psicológico para preparação a operação As garotas que viviam ou vivem em função da prostituição tem medo de fazer a operação por causa das complicações que podem surgir, e por problemas com o HIV, e porque sabem que só esta operação não é suficiente, mas é também necessária toda uma preparação seja antes que depois, como uma rinoplastia, você não pode fazer tudo de uma vez, é preciso um minimo de duas intervenções. [Entrevista 9C – presidenta de uma ONG de Fortaleza que se ocupa da proteção dos direitos da população trans] A saúde é uma questão muito delicada dentro da população trans brasileira: se por um lado encontramos a falta de serviços específicos adequados de assistência sanitária, por outro lado, no Brasil, o sistema de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis é muito desenvolvido e facilmente acessível. A entrevista 8C descreve qual é o nível das ofertas de assistência para as trans, e de como esta falha é devido à não disponibilidade de pessoal médico devidamente especificados, a fim de oferecer a devida assistência aos problemas de saúde de travestis e transexuais E quanto às condições de saúde? A questão da saúde é muito complexa, ainda temos um alto numero de doentes, portadores do HIV, na população trans. Aqui em São Paulo tem o ambulatório de saúde integral para TT, gerido pelo Estado. Este ambulatório oferece uma assistência especifica à esta população, mas ainda hoje, a demanda é grande e só este ambulatório não basta. O ambulatório se localiza perto da estação Santa Cruz do Metrô, é o primeiro da América Latina e é um centro que oferece assistência medica a 360 graus, desde neurologista, ginecologista, endocrinologista, e quando começam o processo de hormonizaçao, o 118 psicologo. Trata-se de um ambulatório que procura atender às exigências de saúde das pessoas TT. Existe, porém, uma carência enorme de médicos especializados para atender as necessidades das trans, este é um problema que estamos enfrentando aqui no estado de São Paulo. Por exemplo, a cirurgia para mudança do sexo é feita no Hospital das Clinicas, mas todo o processo dura pelo menos uns dois anos, são feitas, no total, dez cirurgias por ano, nem mesmo uma por mês, isto acontece devido à falta de médicos especializados em fazer tais cirurgias. Muito preocupante é a questão do HIV, pois ainda é muito elevado o numero de pessoas infectadas por não se protegerem adequadamente. O serviço de assistência à cura do HIV é bem organizado aqui? Nós temos um programa de prevenção do HIV, usando de alta tecnologia, moderno, a politica de prevenção, aqui no interior do Estado de São Paulo, é muito boa. Foi realizada uma pesquisa pela Santa Casa, na região central de São Paulo, com jovens de 15 a 24 anos, e a percentual de HIV era altíssima, principalmente entre os homens que fazem sexo com outros homens, esta pesquisa trouxe à tona um dado muito preocupante de pessoas infectadas pelo HIV entre os jovens trans, um dado alarmante. [Entrevista 8C – responsável pela politica sobre a “diversidade sexual” da cidade de São Paulo (Brasil)] Em alguns casos, bebem muito, dentro e fora de casa, muitas prostitutas trans se embebedam para suportar as duras condições em que trabalha. Em relação à droga, a mais usada é a cocaína, com ou sem cliente. As ruas da cidade se enchem, geralmente a prostituição transexual se concentra em determinadas zonas, desde centro até periferia. Ser uma prostituta e trabalhar na rua implica muitos perigos, principalmente porque si entra em contato com o mundo da criminalidade e das drogas. Não são todas as prostitutas que se drogam, algumas decidem não usar, enquanto outras recorrem à utilização destas substancias para suportar a vida que levam. Outras vezes é o próprio cliente que deseja se drogar antes/depois da performance sexual e em alguns casos, ele também convida a prostituta a drogar-se. Os traficantes de droga usam as prostitutas para ampliar o mercado de trabalho deles, muitas vezes aproveitando que os travestis se prostituem em zonas isoladas e escuras. Na entrevista 10C a um agente da policia de transito, emerge o seguinte: Já tiveram vários casos de travestis que foram presas por porte de drogas, traficavam ao próprio cliente, além de fazer serviços sexuais, consumiam e vendiam drogas aos clientes, tocando pra frente dois mercados ao mesmo tempo. Nem todas estão envolvidas com o trafico de drogas, não podemos generalizar, algumas se drogam essencialmente, outras acabam virando traficantes, também porque trabalham em lugares que facilitam o crescimento destes tráficos ilegais, em lugares escondidos, pouco iluminados e pouco frequentados. [Entrevista 10C – agente da policia de transito de São Paulo (Brasil)] A droga consome o corpo e torna as pessoas ainda mais vulneráveis, para as prostitutas toxicodependente, consequentemente, a relação com o cliente assume um caráter mais violento e se faz menos atenção às medidas de proteção contra as doenças sexualmente transmissíveis (DST). É desta maneira que se 119 propagam as doenças entre as prostitutas trans, como HIV, sífilis e muitas outras. O corpo fica debilitado e a vulnerabilidade aumenta. Para responder a esses fenômenos, durante os últimos dez anos, houve uma considerável ativação no que diz respeito aos serviços de prevenção e cura de DST. Se uma prostituta precisa fazer o teste para saber se é ou não soropositiva, pode ter acesso a diversas estruturas, o importante é saber onde achá-las Considere que a transexualidade se tornou parte do debate publico graças à questões relacionadas à cura do HIV. 2.4. Migrar para fora do país: a Europa vista como o paraíso das travestis A Europa é o continente com o mais alto fluxo imigratório; em 2010, o balanço entre imigrante e emigrante foi positivo, com mais de 900 mil unidades. Em media, nos vários países europeus, os estrangeiros constituem 6% da população nacional, e os principais países europeus metas dos estrangeiros são: França, Alemanha, Reino Unido, Itália e Espanha (Santis, 2010). Durante os últimos anos, as pessoas começaram a migrar não somente buscando a prospectiva de uma vida melhor, sob o ponto de vista econômico, mas se encontram sempre mais migrantes que chegam na Europa por varias razoes, por exemplo, houve um aumento de refugiados políticos, que decidiram deixar o pais onde viviam devido à situação de conflito que envolve o seu Estado, pessoas que são expulsas dos seus próprios países por motivos políticos, refugiados ambientais, forçados a abandonar um território, já todo devastado por desastres naturais; ou migrantes que pertencem ao fenômeno chamado “brain drain”, ou seja, pessoas que emigram para lugares onde possam crescer e valorizar seus conhecimentos e habilidades. Com o crescimento do fenômeno migratório, os países mais industrializados começaram a fazer algumas mudanças nas leis migratórias, para tentar controlar o forte aumento dos imigrantes no país deles. Um problema que ainda é muito importante, é a falta de uma politica e uma regulamentação sobre a questão da imigração, e que seja comum em toda a União Europeia. A população migratória que se estabelece em um novo país, pode constituir uma força de trabalho, portanto, fazer parte da população ativa, tornando-se um recurso econômico para o país. Mas o desejo e a vontade de ir viver em um outro território não são suficientes para poder depois se estabilizar regularmente no país hospedeiro. Na Itália, por exemplo, precisa ter todos os documentos de identidade em ordem, e possuir visto de ingresso – o visto turístico tem validade de 3 meses – se tiver que prolongar o período, é necessário pedir outro “permesso di soggiorno” (autorização de permanência) dentro de 8 dias uteis da chegada no território italiano. O permesso di soggiorno deve ser pedido na delegacia da cidade onde se tem intenção de permanecer. A validade do permesso di soggiorno corresponde àquela indicada no visto de entrada, e pode variar: de 6 a 9 meses, no caso de trabalhador sazonal; 1 ano, no caso de motivo de estudo; até chegar a 2 anos, no caso de trabalho autônomo ou de reagrupamento familiar. Quando vencer esta autorização, é possível pedir pra ser renovada. A emissão desta autorização por parte da delegacia da cidade onde se mora, é ligada a uma avaliação previa da identidade pessoal, e onde estão indicados, não só dados pessoais mas também tem uma imagem facial e as digitais da titular, para garantir uma mair segurança no reconhecimento do titular do documento, evitando formas de falsificação do documento em questão. Os primeiros fluxos migratórios de trans brasileiros foram identificados nos anos 70, pelo estudioso Don Kulick, a França foi o principal destino até os anos 80, durante o qual a Itália começou a crescer como meta preferencial pelas pessoas TT migrantes; os motivos principais desta mudança de rota migratória pode ser devido a semelhança da língua italiana com a língua brasileira, e os vestidos de marca da moda italiana como simbolo de feminilidade, de glamour entre as trans (Teixeira, 2008). A La presidenta de uma associação italiana que é responsável pela tutela dos direitos da população trans brasileira, confirma que os 120 primeiros fluxos migratórios das trans brasileiras tinham como objetivo, como meta, a capital francesa, e nos fornece interessantes detalhes que conhece bem, graças ao seu envolvimento direto com o mundo trans nos anos 70 [Entrevista 14C]: Os fluxos que partiam do Brasil para a Europa existiram desde quando se começou a falar de experiencia trans, porque estamos falando disso, e não de outra coisa, mas não eram só do Brasil, pessoas de todos os lugares do mundo queriam ir à Paris, porque Paris era meio que uma meta, era uma cidade que abrigava todos, onde o teu espaço era garantido, então, o fluxo sempre teve, talvez não era bem claro a sua finalidade: se falava de espetáculo, mas também de prostituição, mas era tudo muito aleatório porque ainda estava começando. Em seguida, lentamente, começa a ganhar forma a prostituição trans nas ruas, com seus pontos definidos, suas modalidades e suas características, e Paris é, sem duvidas, um destino, e também uma cidade- simbolo, sob este ponto de vista, Bois de Boulogne é apenas uma indicação, os pontos de chegada eram Paris e, também Marsília, eram essas duas cidades, depois foram inseridas outras como Lyon. O fluxo então era de São Paulo para o Rio de Janeiro, Espanha (Madrid ou Barcelona) e de lá se passava na França. Os fluxos não eram muito controlados, não havia um controle nas estações de trem, estava ainda em fase de instalação na Europa, e entrar na Espanha, que era um país muito geminado com a América do Sul, era mais tranquilo. Isso mais ou menos até o começo dos anos 80 quando, com a explosão da AIDS, que pegou um pouco todos despreparados, incluindo os Governos, que deu o alarme, mesmo no Bois du Boulogne, houve ataques o tempo todo, instalações foram fechadas. E como a “fome aguça o engenho”, a trans começou a explorar outros lugares, então, você sabe, os boatos correm, ficaram sabendo que na Itália se trabalha muito na rua, e a Itália correspondia também à modalidade de pratica da prostituição, acredito que existam diversas modalidades, por exemplo, tem a modalidade Mediterrânea de ficar na rua, mas é porque o clima assim permite, claro que ao norte, em países como a Alemanha e Holanda, na rua ninguém fica. Então, será por este motivo ou porque na Itália, naquela época, se trabalhava bem, por uma serie de coisas, elas começaram – e digo no sentido figurado - a espremer “além dos Alpes”. As italianas começaram a saber que os “bárbaros” pressionavam nas fronteiras, no sentido figurado, eram mesmo os bárbaros que, do outro lado, pressionavam. Naquele período eu tava na rua, trabalhando, e as outras todas passavam, e faziam uma verdadeira ronda, “ah, as brasileiras estão chegando!” Era como se tivesse um exercito de hunos do outro lado dos Alpes, forçando para entrar, eu, particularmente, nunca tinha visto uma brasileira antes. A coisa mais absurda é que, quem dava o alarme era brasileira também, a única, que morava em Roma há anos, e sempre dizia: “ah, olha que elas tão chegando”, sabia até alguns nomes, dizia que “ aquelas, quando chegam, quebram tudo”, por isso tinham essas patrulhas que, toda noite, saiam pra controlar a praça, porque parecia que estavam chegando os Lanzichenecchi (Soldados mercenários alemães, contratados para marchar sobre Roma por Carlos V em 1527. Com o tempo, a referência para o Landsknecht assumiu o significado geral de "invasores”). Então apareceu a primeira, depois a segunda e aí, porrada, porque elas eram as duronas do pedaço, mas o fato é que, continuavam a aumentar e aumentar, porque então, as brasileiras agiram com inteligencia e adotaram uma estrategia: ao invés de ficar ali fazendo guerra e dando porrada, elas fizeram um pouco como “Cavalo de Troia”, entraram em silencio, contataram aqueles boss (chefões), que então, são fáceis de identificar. Na Itália havia apenas dois clãs: os napolitanos e os sicilianos. As napolitanas, falavam alto e eram muito alegres e as sicilianas, quietinhas quietinhas, controlavam varias regiões Então, o que fizeram, contataram as “boss” italianas, contataram aquelas que estavam piorzinhas, com AIDS talvez – muito comum naquele período – e pagando, se enfurnaram em algum pedaço de território, e começaram a chegar as outras também, e se tornou uma presença concreta e evidente, no começo, em grandes cidades como Milão, Turim, para depois se transferir lá onde o esta pratica é mais rentável [Entrevista 14C – presidenta de uma associação italiana, sede em Bolonha, que se ocupa da tutela dos direitos da população TT] 121 A pesquisadora Larissa Pelucio observou novas metas de destino de migração da população TT para a Europa, a partir do ano 2000, particularmente nações como a Espanha, Suíça, Holanda e Portugal começaram a se tornar metas migratórias escolhidas com maior frequência pelas pessoas TT brasileiras (Larissa Pelucio, 2007). A pesquisadora da Universidade de Campinas (SP- Brasil), Adriana Piscitelli, levanta a questão da relação entre o trafico de pessoas e a migração voluntaria das trabalhadoras do mercado do sexo (Piscitelli, 2011). As pessoas que migram para trabalhar na industria internacional do sexo muitas vezes comparecem nas estatísticas migratórias, classificadas como vitimas, e não como migrantes que vão ao exterior em busca de um trabalho num setor especifico (mercado da industria do sexo), por culpa daqueles valores enraizados pela sociedade moderna, e que alimentam os movimentos de abolição da prostituição, seja esta forçada ou voluntaria. No Brasil, os “setores” da industria do sexo mais desenvolvidos e conhecidos são o turismo sexual e a migração internacional, e ambos são sujeitos ao fenômeno do trafico de pessoas. Muitas associações feministas dizem que tanto a industria do sexo ou a própria mulher que oferece serviços sexuais a pagamento, são reduzidas a meros objetos, mercadorias, por isso, qualquer tipo de prostituição é considerada degradante para o ser humano. Existem também outras correntes de pensamento, onde a prostituição é considerada como qualquer outro emprego, e como tal, deve ser realizado em condições de segurança, respeitando os direitos comuns a todos os trabalhadores. Esta questão da relação entre prostituição e trafico de pessoas é também abordada durante a entrevista à presidenta de uma ONG de Guarulhos: Então, é um grande equivoco pensar que o trafico de pessoas para exploração sexual esteja intimamente ligado à prostituição? D: Sim, um grande equivoco, na realidade são dois países abolicionistas que pensam deste modo, isto é, que a prostituição é a porta de entrada para o trafico de pessoas, a prostituta é destinada a ser vitima do trafico de pessoas, portanto, acabar com a prostituição significaria atingir o objetivo maior, acabar com o trafico de pessoas. Na realidade, devemos respeitar a liberdade da mulher, sei que não é um assunto pacifico, no Brasil é difícil conduzir um debate sobre a prostituição, vista como trabalho, com reconhecimento como trabalhadoras do sexo, porque existe um grande preconceito, nem nos movimentos feministas é um assunto tranquilo, existe um grande segmento que considera a prostituição como uma grave violação dos direitos humanos, existe um outro segmento que considera que a mulher tem autonomia sobre o próprio corpo, então, eu vi, não só no Brasil, mas em alguns países, prostitutas autônomas que eram tratadas como traficantes, como vitimas do trafico, e que, corajosamente se defenderam, porque elas eram prostitutas autônomas, porque não teriam o direito de estar ali? Estavam só ganhando a grana delas e não praticando nenhum crime, mas acabaram ali. INT: Neste sentido, se nós observarmos a dinâmica da rede que trabalha com trans, é meio confuso, não? Porque se trata de um grupo mais vulnerável do que os outros. D: Não, existe uma grande discriminação em relação à população trans, primeiro, a sociedade é muito cruel. Em todos estes anos trabalhando no aeroporto, vimos que, quando fazíamos o acolhimento das travestis, que chegavam principalmente da Itália, eram pessoas mais abertas para contar a estoria delas em comparação com as mulheres. Por que? Porque vendo esses seres humanos, por pior que sejam as condições onde vivem, seja em Paris, Milão ou Roma, são menos discriminadas que aqui no Brasil, não só pela sociedade, mas existe uma grande pressão por parte das instituições publicas, então tem também esta questão, das instições publicas que descriminam e, às vezes até 122 perseguem as travestis, enquanto que, em países da Europa, apesar da dificuldade de sobrevivência, elas têm muito mais condições de ter uma vida de menos preconceito e de maiores possibilidades, e não é por acaso que o sonho dos travestis é morar na Europa. Ora, ninguém pode impedir ninguém de sonhar, mas é nosso dever trazer informação à essas pessoas, pois a informação pode ajudá-las a não cair na armadilha. [Entrevista 2R – presidenta de uma ONG de Guarulhos que se ocupam do acolhimento da vitima de violência e de trafico de pessoas]. No entanto, a prostituição não é o único trabalho procurado por trans que, muitas vezes optam por emigrar em busca de uma novo emprego tipo cabeleireira, esteticista ou na área do espetáculo Infelizmente, são pouquíssimos os casos de trans que conseguem um emprego normal no exterior, por culpa do preconceito da sociedade em relação a eles e à delicada questão dos documentos, não somente pelo fato de ser estrangeiro, mas pelo fato de ter um documento de identidade onde as informações reportadas são sobre o sexo biológico da pessoa. Na Itália, a cirurgia para mudar de sexo é regida pela Lei 164 de 14 de abril de 1982, denominada “normativas de retificação referente ao sexo”. Durante a entrevista com o vice presidente de uma associação LGBTQ de Turim (Itália), emerge como esta seja, praticamente, a única lei relacionada aos direitos da população LGBTQ na Itália Conforme previsto na lei, a pessoa que quiser fazer todo o processo de transformação do corpo, primeiro de tudo, deve pedir autorização ao tribunal, apresentando uma instancia na zona onde mora, no caso em que a pessoa transexual fosse casada, deve ser notificado aos filhos e ao cônjuge sobre o ato de autorização à intervenção, e a apresentação desta solicitação resulta na dissolução do casamento: LEI 164/82- Art. 4 A sentença de retificação referente ao sexo não tem efeitos retroativos. Provoca a dissolução do cas amento ou a cess ação dos efeitos civis res ultantes da trans crição do casamento celebrado no religioso. S ão aplicadas as normas do código civil e da lei de 1 de dezembro de 1970, n.898, e sucessivas alterações . Uma vez emitida, pelo tribunal, a sentença de autorização para a operação cirúrgica, a pessoa interessada poderá se dirigir à um hospital especializado, para assim, submeter-se à intervenção cirúrgica. O procedimento para alterar os dados pessoais, em relação ao sexo da pessoa, poderá ser iniciado somente após a operação de mudança de sexo, depois disso, poderá ser enviado um pedido ao tribunal para a retificação dos dados pessoais. As pessoas trans decidem vir para a Itália para fazer as cirurgias necessárias para ter aquele corpo tão desejado, com o qual se identificam, mas as condições de clandestinidade as impede de ter acesso aos processos sanitários para a transformação do físico, reconhecendo apenas o direito à assistência em caso de emergência. Durante a entrevista a uma trans, presidenta de uma associação italiana que se ocupa da tutela dos direitos das pessoas TT, se fala de, como na realidade, as trans brasileiras que decidem ir para o exterior para se prostituir, transformam seus corpos para tornaremse objeto de desejo sexual dos clientes: ir trabalhar no continente europeu por um período limitado representa a possibilidade de ganhar mais dinheiro de quanto ganhariam no Brasil, fazendo o mesmo trabalho. Uma outra motivação que estimula a pessoa trans a migrar para a Europa, é o desejo de submeter-se a cirurgias, particularmente, aquela para mudança de sexo. No artigo LGBTQ Neighbourhoods and ‘New Mobilities’: Towards Understanding Transformations in Sexual and Gendered Urban Landscapes, escrito pelos autores C. J. Nash e A. Gorman-Murray (2014), se fala sobre o tema das “mobilities” da população LGBTQ, se questionam qual seja o valor atribuído ao deslocamento dos corpos. O artigo faz 123 distinção entre a mobilidade que acontece devido ao deslocamento físico de um território a outro, e a mobilidade quotidiana, representada por fluxos de caixa, pela tecnologia da comunicação, pela divulgação das informações sobre as formas de viagem e das conexões entre um lugar e outro, que alteram a distancia espaço-tempo nas diversas áreas geográficas Os dois autores consideram a mobilidade como uma componente intrínseca do cidadão moderno, de fato, se usa a expressão: “modern citizen is a mobile citizen”. Graças à mobilidade dos indivíduos é possível fortalecer algumas relações de poder, já notaram que, quando as trans migrante retornam ao seu lugar de origem, em muitos casos, têm o respeito das pessoas da própria comunidade, e são reconhecidas e respeitadas pela sociedade, mesmo quando, antes de abandonar a própria casa, eram vitimas de inúmeras discriminações e atos de violência O estudioso Cresswell foi também citado, ele acredita que foi próprio essa mobilidade da população gay, que começou a partir do final da segunda guerra, que permitiu um emponderamento em relação aos aspectos econômicos e políticos da comunidade homossexual, graças também à criação dos gay village, ou seja, bairros inteiros habitados quase que exclusivamente por homossexuais (C J. Nash, A. Gorman-Murray, 2014). A migração internacional é intimamente ligada à migração interna, pois na maioria dos casos, o deslocamento da pessoa trans de regiões mais rurais para as regiões metropolitanas brasileiras, a finalidade é conseguir ganhar o dinheiro necessário para, em seguida, se mudar para o exterior. Uma das rotas identificadas durante a pesquisa sobre o trafico de pessoas, foi aquela da região do Pará, norte do Brasil: as pessoas TT sairiam de Belém em direção a São Paulo, para depois ir trabalhar na Europa. (Ministério da Justiça 2013). 2.4.1. Fluxos migratórios fantasmas Mesmo no caso da migração internacional, forçada ou voluntaria, permanece o problema de conseguir a quantificar o fluxo migratório das pessoas TT, que emigram do Brasil. Esta falta de dados e devida ao fato que, no momento em que se deixa o Brasil, são pouquíssimas as trans que já conseguiram obter o reconhecimento do nome social em nome civil, motivo pelo qual o controle dos documentos feitos na fronteira, serão registrados com o nome de batismo, ou seja, com a identidade do gênero de sexo biológico Ainda na entrevista 5C foi descrito como este problema afeta a transição para os controles fronteiriços: Na viagem para a Europa, as trans tem que viajar vestidas de homem, devido a fiscalização e ao controle dos documentos quando chegam na Europa? No documento normalmente o que aparece é o nome civil, e não o social, ou seja, o nome de trans. O que pensa a respeito? Elas tem sempre o documento onde comparece o nome de homem, são pouquíssimas as que conseguiram obter reconhecimento civil do nome social, esta ONG onde trabalho, fazemos este tipo de trabalho, agora estão começando a oficializar o nome social. Quando viajam, devem viajar vestidas de homem, porque se quando chega no aeroporto, não sabe falar a língua e está vestido de mulher, não vai conseguir entrar no pais, te mandam de volta pra casa porque é obvio que você esta indo lá só pra se prostituir, então, normalmente na primeira vez que viajam, vão “desmascaradas”. 124 Este tema foi igualmente citado, durante a entrevista a um ativista brasileiro pelos direitos da população LGBQT, que chama a atenção sobre como este procedimento de controle, que obriga uma pessoa, que há a identidade de gênero diferente do biológico, a negar sua identidade de gênero, isso é uma mera formalidade que afeta a dignidade da pessoa [entrevista 3C]: Após as vitimas serem individuadas e aliciadas, como fazer para obter os documentos de viagem, e como é organizada a viagem? É como uma viagem de turismo normal, só que a mafia paga tudo: passagem, impostos, roupas, tudo. E as vitimas viajam normalmente. As trans, principalmente as travestis, muitas delas quando viajam ao exterior, para passar pelo controle dos documentos, onde é feito o reconhecimento físico da pessoa, devem viajar não travestidos, alguns usam perucas e roupas de homem, para não despertar suspeitas se ser um travesti ou trans, porque o problema está no documento onde a pessoa ainda comparece com uma identidade do sexo masculino, então, a pessoa tem que viajar como um homem para poder chegar no país desejado, e depois trabalhar como mulher. Existe este problema de identificação no aeroporto da Itália, da Espanha, mas os agentes reconhecem, de qualquer forma, estas pessoas, toda a Europa conhece bem este fenômeno, porque quando as trans vão à estes países, em 80% dos casos é para se prostituir, este processo é somente uma forma de tentar inibir, não que seja contra, mesmo porque, existe mesmo um preconceito em relação a essas pessoas, algumas delas vão realmente para trabalhar, eu tenho uma amiga que trabalha lá como modelo, conseguiu achar um trabalho normal como modelo, e outras que são comerciantes. Na Europa existe um prejuízo em relação a essas pessoas, porem de maneira mais amena que no Brasil. A falta de dados também afeta o retorno ao Brasil das pessoas que voltam do exterior, e também de pessoas que morreram na Europa. As trans que morrem no exterior e ainda não tinham obtido o reconhecimento legal do nome social são enterradas com a identidade do sexo biológico e, em alguns casos, é até difícil recuperar a identidade real desta pessoa. Isto faz sim que se tenha mais noticias sobre o desaparecimento de pessoas trans que vivem no exterior, principalmente se clandestinamente e sem uma autorização de permanência em dia. (Teixeira, 2008). 2.4.2. Traficantes ou redes sociais? Segundo uma pesquisa conduzida em 2013 pelo Ministério de Justiça brasileiro sobre o tráfico de pessoas, mais especificamente, no que diz respeito à população trans, a viagem se daria por meio de canais formais e legais. Normalmente a passagem aérea é paga pela pessoa que financia o custo total da viagem, para depois serem adicionados os juros ao total, que deverá ser devolvido quando a pessoa chega na Europa. As trans chegariam na Europa pedindo o visto turístico, permitindo-lhes permanecer regularmente por um período máximo de 90 dias. A intermediação de uma pessoa externa não serve só para oferecer suporte na organização da viagem, serve também para criar um contato com as pessoas que já trabalham no local onde a trans quer ir, indicando onde e com quem ir morar e em que zona trabalhar. A socióloga presidenta da associação italiana pela proteção dos direitos da população trans, durante a entrevista 14C, menciona uma semelhança entre a estrutura social na qual se baseia a comunidade trans 125 napolitana e aquela brasileira, particularmente no que diz respeito às redes que se criam com a finalidade de organizar a viagem do Brasil até a Itália: Sempre notei semelhanças entre as trans brasileiras e as napolitanas, digo o que eu penso. Por que digo isso? Porque vivi muito no meio das napolitanas, foram meio que a minha escola, eu me prostitui por muitos anos junto com elas. No mundo trans dos anos setenta, oitenta e metade dos anos noventa, quando então o fenômeno muda completamente, e aí o nível de exploração ou exploração consciente não eram claros, os limites não eram bem delineados, não se sabe se era exploração ou tradição, sei la, um 'jeito-de-fazer', etc, sabíamos claramente que eram de Nápoles, mas se transferiam para praças que rendiam; as praças do norte, i.e., Turim, Milão, Bolonha, Florença e em outras cidadezinhas onde circulava dinheiro, mas para se prostituir naquela época, e ainda hoje também, para viver você tem que ser residente, se não, você recebe uma advertência, e consequente expulsão. O que acontecia: as trans da época eram muito visíveis, uma trans, à luz do dia, não passava desapercebida, e nem de noite, mas à noite estavam nos seus locais de trabalho e então tudo, digamos, tinha um contexto diferente. Mas se a policia te pegava de dia, enquanto você passeava por Bolonha, mas você não era residente, te levavam pra delegacia e faziam a “carta de expulsão”, que seria um aviso, e você tinha dois dias para retornar ao teu lugar de residencia e para assinar este aviso. Se não o fizesse, já era considerado crime porque você não validou o tal aviso. Se você voltasse e te pegassem novamente na mesma cidade, era considerada uma violação à carta de expulsão e você era presa, ficava uma mês, quarenta dias na prisão, e eu poderia até te fazer uma lista comprida de amigas minhas que tiveram este tipo de problema. Um pouco como acontece hoje com as trans brasileiras que vem pra Itália, bem assim mesmo! Você precisava da residencia, mas quem te dava a residencia? Só a tua amiga que já era residente aqui podia te ajudar. Mas uma amiga, por uma leitura distorcida da Lei Merlin, era passível à exploração da prostituição, ao favorecimento da mesma, e por que? Porque a pessoa te hospedava em casa, então, “você fica em casa e pega a residencia”, porém é um risco. Este risco, este favor, esta gentileza, deve ser recompensada com uma outra gentileza. Então, esta gentileza era entendida como parte do percurso. Ninguém enxergava uma exploração nisso: “eu estou arriscando te oferecendo um lugar pra você ficar pra pegar residencia, coisa que ninguém faria”. Para as brasileiras é mais ou menos a mesma coisa. Quando é então que a pessoa percebe que a estão explorando? Quando isto não é mais um fato isolado que envolve só uma ou duas pessoas, mas torna-se sistemático, o que aconteceu com as brasileiras. As brasileiras contribuíram para que se tornasse sistemática esta modalidade de hospedagem e recompensa à hospitalidade. Começou assim e depois foi se estruturando como um verdadeiro sistema que atuava um pouco no Brasil, um pouco na Itália, 50-50, que arruma a tua passagem, a viagem, o voo, a recepção na Europa, mais especificamente na Itália, onde garantiam a casa e o lugar para exercer uma serie de coisas, com uma especie de usura onde, no começo era combinado um preço, e quando chegavam, era outro e, como nas verdadeiras leis da usura, era sempre mais alto. [Entrevista 14C – presidenta de uma associação italiana com sede em Bolonha e que é responsável pela tutela dos direitos das pessoas TT] Ao contrario do que acontece com a maioria das mulheres biológicas envolvidas no trafico de pessoas, no caso das trans é mais difundida a ideia de ir pra Europa se prostituir, uma vez chegadas ao destino da migração, mesmo porque, a maioria destas pessoas já se prostituíam em território brasileiro. Não é aplicado nenhum método repressivo para forçar a pessoa trans a trabalhar no exterior, em alguns casos, sugere-se, mas raramente são enganados ou forçados à ir trabalhar fora do país. Na entrevista 9C foi apresentado um exemplo do raciocínio que é feito para convencer uma pessoa a vir para a Europa: 126 […] Na verdade funciona que, quem está lá, indica umas amigas que estão aqui: “sabe, você podia ganhar muito dinheiro na Europa, por que a gente não se manda deste mundo onde não conseguimos ganhar dinheiro?” “ok, eu topo, mas como é a viagem?” - “não se preocupe, nós pagamos a tua passagem de ida e depois você nos paga” Abandonar um mundo de discriminação pra ir viver em um país que te respeita por aquilo que você é, e o respeito é uma das principais expectativas das pessoas TT que emigram do Brasil. Durante a entrevista com um agente da policia de transito de São Paulo, foi confirmado que a viagem se daria por via aérea com um passaporte valido, porém uma vez chegada ao destino, cairia em um sistema de “cativeiro”, começando pelo sequestro do passaporte. E como viajam? Viajam normalmente, com passaporte e de avião, com toda a documentação, porque do contrario, não conseguiriam entrar no país, estas organizações pagam tudo, desde documentos até passagem, para depois cobrar o dinheiro com juros muito altos, quando chegam, já lhe sequestram o passaporte e acabam vivendo em regime carcerário e trabalhando como escravas do sexo, e em alguns casos, não conseguem mais voltar pro Brasil, outras chegam até a suicidar-se porque não conseguem suportar psicologicamente esta situação, e se drogam muito também […] [entrevista 10C – agente da policia de transito de São Paulo (Brasil)] O passaporte é retirado como garantia do pagamento da divida, sem o documento de viagem, a pessoa imigrada não poderá retornar ao Brasil facilmente, e corre o risco de ser parada pela policia, no caso de ser pega sem documento de identidade, portanto, o sequestro dos documentos de viagem representa uma tática para se certificar que as trans não procurem as autoridades competentes. A vulnerabilidade das pessoas TT que emigram ao exterior não é, portanto, causada apenas pelo fato de que elas têm uma divida monetária com altas taxas de juros. A condição de clandestinidade faz sim que as pessoas TT sejam facilmente sujeitas a extorsões ou ameaças, que se somam à discriminação, sendo por muitas vezes, vitimas, devido à transfobia e preconceitos da sociedade. Além disso, o fato de ir ao exterior pra se prostituir, expõe estas pessoas à outros tipo de dificuldades, aumentando lhes a condição de vulnerabilidade ( “cfr” Teixeira, 2008). Em alguns casos, no que diz respeito ao fluxo migratório para a Itália, a viagem não é direta, são previstas algumas etapas intermediarias, para tentar confundir os controles mais severos e passar as fronteiras via terrestre, e não aérea: algumas vezes, o voo é direto até a Romênia ou Suíça, onde as pessoas migrantes encontram as pessoas que as estão esperando e que as “transportarão” até a Itália, destino final. Durante a pesquisa ETTS em Guarulhos, sobre o fenômeno do trafico de pessoas trans, em uma entrevista à presidenta de uma ONG de Fortaleza, que trabalha para garantir os direitos civis e políticos das pessoas trans, foi mencionado como existem alguns casos em que a pessoa trans não pede nenhuma ajuda para conseguir chegar à Europa: 127 Tenho uma amiga que foi pra Espanha e pra França, e ficou em varias cidadezinhas, ela foi autonomamente, sem depender de ninguém para viajar, mas obtendo ajuda das amigas para viver na Europa. Ela me contou que conseguiu encontrar um esquema para trabalhar 21 dias em cada cidade, no começo você é novidade, ganha muito. Na Europa, as pessoas alugam quartos de maneira diferente do que no Brasil, aqui não temos essa cultura de alugar espaços da nossa casa. Ela criou uma pagina na internet, e em cada cidade, alugava um canto onde recebia os clientes e, após 21 dias, ia pra outro lugar. Ficou mais ou menos um ano e meio na Europa, e ali gastava tudo, até mandava uma parte pra família, porque o dinheiro pra família é mandado sempre.[Entrevista 9C – trans presidenta de uma ONG de Fortaleza que se ocupa da tutela dos direitos da população trans] Conseguir organizar sozinha uma viagem pra fora do país precisa ter um bom grau de instrução e conhecimento de quais são os documentos necessários para viajar e para entrar legalmente no país europeu que se deseja emigrar. 2.4.3. L’arrivo nel “Bel Paese”: l’Italia “Uma Itália forte em termos de contraste, e se ajudasse, seria uma Itália mais solidaria mas também mais legal, seria uma Itália onde seria condenado até mesmo o trabalho clandestino e também o trafico criminoso relacionado à exploração sexual, onde tem muita reciclagem de dinheiro sujo... seria a Itália dos primeiros anos da entrada em vigor do art.18, que havia se tornado um país não muito atraente para os traficantes, pois era muito solidaria com as vitimas e muito determinada contra os traficante. Aquela Itália porém, hoje é uma vaga lembrança.. as organizações criminosas agradecem”. (Mirta da Pra Pocchiesa, 2007, p. 18) Durante a entrevista 5C, foi mencionado como as pessoas TT ficam, inicialmente, assustadas e desorientadas quando chegam na Itália, mas a entrevista mostra também como, depois de entender alguns aspectos básicos (códigos de conduta esperados, pessoas ponto de referimento, etc), conseguem conduzir uma vida melhor e mais digna em relação ao que elas faziam no Brasil: […] Quando chegam lá, alguém do grupo vai no aeroporto buscar e depois leva pra onde será a futura moradia. No começo tinha muito medo, muito, porque não estou acostumada com o frio europeu, a cafetina aqui também faz papel de mãe, além de explorar, de alguma forma, toma conta também das meninas. A mafia italiana e siciliana são caracterizadas por questões relacionadas à honra e ao respeito, mas ao mesmo tempo, existe uma forma de aterrorizar, meter medo, e a cafetina é a mesma coisa: assume o papel de “mãe” mas não deixa de ser exploradora. Elas têm muito medo no começo, até se acostumar, a entender qual é a situação e como funciona, se são inteligentes, começam a fazer amizades e começam a entender que é vida é muito melhor que aqui no Brasil, aqui vivem em quartos com beliches, dividindo com mais pessoas, lá 128 vivem em apartamentos limpos e lindos, é diferente e começam a se acostumar a uma melhor qualidade de vida. E lá ganham mais que aqui? Ganham bem lá na Europa, conseguem mandar dinheiro para a família e conseguem pagar a divida depois de mais ou menos um ano. O principal motivo de ir para o exterior, é o fato de poder ganhar mais. Elas sabem onde se está bem e onde não é legal, as cafetinas tem preços variados, 7000, 12000, 20000 euros, e a rede de informações é muito rápida, em qualquer bairro, as informações passam muito rapidamente, na semana passada, terça-feira, recebi uma mensagem no Facebook de uma amiga da França, que me escrevia dizendo que uma outra amiga minha, trans, tinha morrido em Londres. Estas informações rodam rapidinho, antes era o Orkut, agora Facebook. A rede de inteligencia é muito rápida A circulação das informações é importante, e as estorias que chegam ao Brasil, constroem uma imagem do mundo europeu e das possibilidades que este mundo pode oferecer para melhorar as condições de vida e a “posição” social das pessoas migrantes. Nos salões de cabeleireiros, nos salões de beleza e nos espaços de socialização de pessoas trans no Brasil, as estorias e os depoimentos das trans que viveram uma experiencia na Itália, e conseguiram voltar ao Brasil, além de ter conseguido economizar algum dinheiro, que lhes permitiu de comprar casa ou ajudar economicamente a própria família, tudo isso alimenta o sonho de morar no exterior. Ir pra Europa e voltar pro Brasil, mostrando que foi capaz, que conseguiu melhorar as próprias condições de vita, representa quase uma forma de emancipação para as pessoas TT. Durante uma entrevista feita a uma trans, funcionaria do Posto Avançado de Atendimento aos Migrantes de Guarulhos, com finalidade de obter dados para a pesquisa do projeto ETTS, surgem informações interessantes sobre o que acontece uma vez que se chega na Itália: ENT: Vamos falar com Cristina (nome fictício), uma trans que chegou da Itália há pouco tempo, e é assistida pelo Posto Avançado de Assistência Humanizada. Cristina, porque você decidiu ir pra Itália? C: Porque tinha uma amiga minha brasileira que morava na Itália há mais de 5 anos, e ela me convidou pra ir pra lá ENT: Você já se prostituía no Brasil? C: Nunca, nunca tinha feito um programa sexual sequer no Brasil, debutei na Itália ENT: Quantos anos você tinha quando deixou o Brasil? 129 C: Eu tinha 20 ENT: E esta amiga tua que te convidou, ela já fazia programas sexuais no Brasil e depois, na Itália? C: Sim, ela sim ENT: E como rolou este convite, o que ela te garantiu em relação à viagem, o que ela te prometeu? C: Garantiu tudo, desde a viagem até o local onde iria trabalhar, a casa, o “ponto”, ou seja, tudo isso me foi garantido, e mantido. Quando cheguei na Itália, ela já estava me esperando, e manteve tudo o que prometeu, mas, depois de alguns dias, quer dizer, depois de algum tempo, ela mudou comigo, virou outra pessoa. ENT: Me diz uma coisa, quanto tempo você trabalhou pra ela? C: Um ano e meio ENT: E neste ano e meio, tudo o que você ganhou tinha que dar a ela? C: Sim, tudo. ENT: Você não tinha nenhum dinheiro com você? C: O suficiente pra comprar cigarro e só. ENT: Me diz uma coisa, quais eram os dias da semana que você trabalhava, e quais eram os horários? C: De domingo a domingo, das quatro da tarde até às seis da manhã ENT: Nada de descanso? C: Nada, não existe dia de descanso neste tipo de trabalho 130 ENT: Em media, quantos programas sexuais você fazia em uma noite? C: Digamos, cinco, seis, oito ENT: E quanto você levava pra casa em media, em euros? C: Quatrocentos, quinhentos euros. [Entrevista 3R – Trans vitima do trafico de pessoas, assistida pelo serviço de acolhimento de migrantes do Aeroporto de Cumbica (GuarullhosSP-Brasil)] Em uma entrevista realizada em um centro de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, na cidade de Guarulhos, foi ilustrada a um assistente social do serviço de saúde, a importância para uma trans, que vai morar fora do país, mandar dinheiro para a própria família: Ouço falar muito da Itália, algumas foram também pra Espanha, mas ouvimos mesmo é falar da Itália Elas vão pra lá e a primeira coisa que fazem quando voltam pra casa é comprar uma casa. Foi a primeira coisa que a Valeria e a Soule fizeram, restruturaram a casa da mãe, Cheril conseguiu comprar um pequeno apartamento e abrir um salão de beleza e começou a trabalhar, um pouco também porque a idade não permite mais de trabalhar na rua. No nosso trabalho, sabemos que a coisa mais importante é conseguir achar um trabalho para aquelas que querem parar de se prostituir, então o que fazer? Além do mais, a maioria delas não há uma qualificação porque abandonaram os estudos cedo demais. Outro dia, consegui inserir uma trans na “bolsa desemprego” , um programa onde você recebe 200 reais por mês, e ainda te oferecem um curso profissionalizante de um ano, para depois ser inserido no mundo do trabalho, esta é uma ótima oportunidade, mas na hora da entrevista de trabalho, como vai ser? Como será o inserimento no ambiente de trabalho? [Entrevista 11C – assistente social brasileira que trabalha em um centro de prevenção e cura de doenças sexualmente transmissíveis da cidade de Guarulhos (Brasil)] A pesquisadora Adriana Piscitelli ressalta a importância do dinheiro que ganham na Europa e mandam pro Brasil, dinheiro que será gasto em território brasileiro e que representa uma fonte de riqueza para a economia do país ( A. Piscitelli, 2011). As remessas das trans que trabalham na Itália, representam também uma boa desculpa para reforçar e dar poder à imagem da trans brasileira em relação à sua família, que, talvez, alguns anos antes, a mandou pra fora de casa porque não aceitava a sua identidade de gênero. Se trata de dinheiro que é facilmente enviado pra casa graças ao sistema econômico globalizado ou através do suporte de redes sociais que se criam entre trans. O dinheiro ganho na Europa assume, portanto, um significado simbólico, reforçando as relações sociais no país de origem. A estudiosa Beth Fernandez relata um episodio onde uma trans lhe contou que, antes de ir pra Europa, o pai dela batia muito nela, enquanto, depois, graças a todo dinheiro que ela manda pra família, o pai começou a “beijar-lhe os pés” (Ministério da Justiça, Brasil, 2011). A imagem e o status social que elas assumem, graças ao dinheiro que ganham na 131 Europa, faz sim que as trans que vão trabalhar no exterior dificilmente se considerem como vitimas do trafico de pessoas: As trans que vão pra Europa para se prostituir, não se sentem traficadas pois é um status conseguir ir pra Europa e trabalhar lá A minha comunidade de trans considera ainda como um status, porque vão para um mundo civilizado, e estas pessoas que conseguem voltar da Europa, vendem a imagem de que a Europa é tudo, vendem esta imagem às mais jovens, dizendo que a Europa é um lugar onde elas são respeitadas como garotas, mulheres e, aquele corpo masculino, que foi transformado em feminino na Europa, é muito valorizado. Existe este mito da Europa para muitas jovens travestis, considerando que o nordeste do Brasil é machista e sexista, e quando você nasce em um corpo que não é teu, e consegue ter a oportunidade de transformar o teu corpo naquilo que você é, é muito importante pra nós, é fundamental na transformação do nosso corpo. Se você tem a possibilidade de morar em um lugar civilizado, onde pode também transformar o teu corpo, muitas de nós não considera isto como trafico de pessoas. As trans veem deste modo a Europa, mas não conseguem ver todos os outros fatores relacionados a esta oportunidade de ir pra Europa. Chegam lá já com uma divida de três anos de trabalho, por causa do custo da viagem que, na verdade, é antecipado e deve ser devolvido, mas com um valor que é duas a três vezes mais alto que o original, devem pagar taxas diárias muito altas, e devem pagar também o “ponto”, porque os “ponto” tem donos, e são eles próprios a criar este cenário idílico da Europa. [Entrevista 9C] A presidenta da ONG de Fortaleza, que se ocupa da tutela dos direitos da população TT, coloca a questão do fato que, muitas vezes as pessoas TT brasileiras não se sentem traficadas, mesmo quando inseridas dentro de um giro de exploração, que aplica altos juros ilegais a financiamentos antecipados. De acordo com protocolos e acordos internacionais, estão presentes todos os elementos que caracterizam situações de trafico de pessoas mas, como dito anteriormente, no caso da população TT, não há presença de uma rede criminosa organizada, seria mais como uma ativação de redes informais que, por um lado ajudam, oferecendo a possibilidade de emigrar, mas por outro, podem também adotar comportamento de exploração e controle. Durante a entrevista 9C, se chama a atenção para como a imposição de certos modelos de feminilidade esperados pelas sociedades capitalistas e a própria exigência de mercado, sejam os responsáveis por acionar este ciclo vicioso da “exploração” de pessoas trans: As trans que moram na Europa sabiam que iam pra lá pra se prostituir, o problema da falta de denuncias é que elas não se consideram exploradas sexualmente, e não se sentem vitima do trafico. Eu faço parte dessas que pensam que este mercado se aproveita da fragilidade destas pessoas, usam a ideia de transformar o corpo e a exclusão social como um meio fácil para poder criar um mercado. A pessoa é tao vulnerável que não tem escolha, é estigmatizado e induzido a viver exclusivamente em função de seu corpo. A ideia do capitalismo que sustenta o nosso corpo é a de que elas estão à venda, pra quem quiser comprar. Isto é muito interessante porque, até que ponto elas estão à venda? A partir de um conceito de transformação do corpo feminino sobre aquele masculino, e a partir da transformação da pessoa e da sua identidade, estão à venda, elas estão à venda até um certo momento. Assim, entram em jogo todos os elementos da vulnerabilidade deste processo, porque se sabe que na Europa, quando é inverno, as garotas tem que trabalhar, não podem ficar fechadas em casa, tem que trabalhar pra pagar a diária, a comida, e então, vão trabalhar na rua também durante o inverno, e se sabe que as trans 132 tem que mostrar o corpo, porque elas se vendem só de se mostrar, claro que não vão trabalhar toda vestida, o nosso corpo é a nossa vitrine e por isso vão vestidas em modo que se promovam mais facilmente. Entram em jogo questões sobre drogas, o fato que estejam dispostas a fazer sexo com um cliente sem uso de preservativo, só porque pagam mais. Considerando todos esses elementos, é possível compreender melhor todas as dificuldades destas pessoas e do ciclo vicioso que se cria. Se você for pra Europa e passar dois anos ganhando 50 euros para cada programa sexual, aí chega aqui no Brasil e vai cobrar 30 reais? Fazer um serviço completo por 30 reais e voltar a morar no Ceará, dentro deste sistema de exploração? É tudo uma serie de coisas que giram em torno a esta condição, se tem consciência da existência do trafico de pessoas, se sabe que existe o trabalho-escravo, e estes argumentos são muito discutidos hoje em dia. [Entrevista 9C – trans presidenta de uma ONG de Fortaleza que se ocupa da tutela dos direitos da população TT]. A presidenta da ONG de Fortaleza (Ceará) identifica o fenômeno migratório das pessoas TT como trafico de pessoas, mas afirma que a situação de exploração que podem viver as trans, quando decidem emigrar, representa uma alternativa quase obrigatória, porque é preferível ir pro exterior do que ficar nesta condição em que vivem aqui no Brasil, e depois, ganha-se muito melhor: o dinheiro volta a justificar uma condição de exploração. 2.4.4. As condições de moradia das pessoas TT brasileiras na Itália Durante a entrevista 5C foi confirmado que o dinheiro é um dos principais motivos que levam as pessoas TT a emigrar para a Europa: […] mas quando elas querem ir pra Europa, e sabem que o único modo pra ganhar mais dinheiro é indo pra Europa, porque aqui no Brasil ganham muito pouco, sabem muito bem que não podem simplesmente comprar uma passagem de avião e chegar na Europa pois pode ter problemas com quem já trabalha lá, e você nem sabe onde ir trabalhar, então, precisa de alguém que te ajude, que fale com uma cafetina que tá envolvida no trafico, essa diz que pode ajudar a tentar trabalhar na Europa, mas vai custar 10.000 ou 20.000 euros. Cada um tem um preço. Às vezes, a cafetina pressiona as pessoas que vivem com ela em casa, para ir trabalhar na Europa, a diferença entre a exploração de homens e mulheres, em relação aos trans, é que quando estas ultimas, quando conseguir quitar a divida, estão livres. Esta divida é composta pelo dinheiro gasto para comprar a passagem aérea, para trabalhar e para viver, porém vão se juntando sempre outras despesas que se acumulam, como aquela referente à proteção e segurança na rua. Às vezes, a cafetina que manda um grupo de trans pra Europa, se por acaso encontra dificuldade para entrar na Itália, manda elas para a Romênia, e alguém vai pega-las no aeroporto da Romania, e depois as levam até Milão ou até a França, Suíça Uma vez que a divida é quitada, elas ficam livres. 133 O pagamento da divida se dá em tempo muito mais breve em relação ao trafico de mulheres (biológicas), as quais, em alguns casos, a divida não acaba nunca, e as pessoas ficam presas nas mãos dos exploradores. No caso das pessoas trans, a divida é quitada no prazo de um ano, na maioria dos casos. Uma vez que a divida é quitada, as pessoas TT podem continuar a se apoiar a uma cafetina no que diz respeito ao aluguel ou o “ponto” onde trabalham ou, ao contrario, podem decidir tornarem-se completamente autônomas, porém esta é uma condição que implica em algumas dificuldades a causa da irregularidade dos documentos de permanência e da condição de clandestinidade de onde saíram Os juros que são aplicados aos empréstimos que são feitos para pagar a viagem e todos os outros gastos, são aceitos e justificados pelas trans que moram no exterior (Piscitelli, 2006). Se a pessoa é clandestina, até pra alugar um apartamento ou um quarto precisa de uma pessoa intermediaria que tenha a cidadania e os documentos em ordem. As condições em que moram as pessoas TT migrantes, em alguns casos, parecem melhores do que as que moram no Brasil, a tendencia é de não dividir o apartamento com muitas pessoas. Normalmente, os apartamentos onde estas pessoas vivem são vizinhos uns dos outros, muitas vezes, inteiros condomínios são alugados só por pessoas TT estrangeiras (especialmente se clandestinas) e se organizam através de um intermediário que empresta o nome para fazer o contrato de aluguel clandestino. Na entrevista 3C foi descrito como vivem as TT na Itália: Como são as condições de vida no exterior? Onde moram? Quais são as condições higiênicas? Moram juntas, em quartos do mesmo edifício, moram no máximo quatro trans num mesmo apartamento, algumas vivem em “villaregios”(tipo casa de campo), as que moram sozinhas é porque são independentes, também não dependem de nenhuma organização criminosa, conseguem ter uma vida normal, vivendo em prédios onde vivem famílias, ao contrario do que acontece com a “mafia”, eles tem que ter o controle da situação, tem que saber onde moram e com quem, existe um grupo pra controlar isto também. Além disso, no que diz respeito as travestis, rola muito ciumes, e surgem problemas entre elas, brigam muito, por isso não podem morar em muitas juntas porque se não daria muitos problemas de brigas continuas. Eu estive em dois “cativeiros”, e no máximo viviam quatro pessoas, estes apartamentos não pareciam “cativeiros”, eram apartamentos normais, ninguém poderia imaginar a que servia. [Entrevista 3C – ativista pelos direitos da população LGBTQ no Brasil] Em uma pesquisa antropológica conduzida por Flávia Teixeira e publicada em 2008, foram realizadas entrevistas a trans brasileiras que tinham passado um período na Itália a se prostituir, e é se descreve como as condições de vida tendem a ser percebidas como melhores em relação ao Brasil, e mesmo se fossem iguais, as pessoas não se sentiriam tanto exploradas ou em condições pobreza ou precariedade (Teixeira, 2008). De acordo com Flávia Teixeira, é preciso definir o limite da pobreza dependendo do país em que se encontra, porque isto mudaria a percepção e a identificação das pessoas que vivem em situações degradantes. Existem também situações onde trans brasileiras dividem apartamento com a dona da casa, que cobra delas uma diária, correspondente à moradia e comida, uma cifra, na maioria dos casos, muito mais alta que os preços de mercado. O uso dos espaços públicos para as trans brasileiras está relacionado ao fato de estar ou não ilegal. Uma trans que anda na rua, normalmente, não passa desapercebida, então é perigoso sair publicamente de dia, principalmente na época do verão, onde as cidades se esvaziam, é maior o risco que ser preso pela policia. A tendencia então é ficar em casas e longe do controle da policia. Durante a 134 entrevista 14C, emerge hoje como a prostituição da população trans tende cada vez mais a deslocar-se para lugares fechados: […] o exercício da prostituição trans está se deslocando de maneira clara e evidente para lugares fechados, i.e., casas, apartamentos, portando, não é mais um fenômeno que se vê nas ruas, que nos salta aos olhos. Hoje, tudo se deslocou aos apartamentos e aos lugares fechados, tornando-se invisível Os sinais disso não são só os anúncios nos jornais ou nos sites, se der uma olhada nas paginas do jornal ou naqueles sites, você vai ter uma noção da consistência do fenômeno: claro que por trás de um numero não existe uma pessoa só, mas existem muitas outras, três, quatro. Então é difícil e complicado observar e mapear o fenômeno, e traçar as fronteiras e as características Fazem praticamente tudo em casa, ou seja, o exercício da prostituição, e todo o resto. Repito: existem áreas onde moram só trans, muitas destas são daquelas que funcionam no verão, e fecham no inverno. [Entrevista 14C – presidenta de uma associação italiana com sede em Bolonha e se ocupa da tutela dos direitos das pessoas TT] A maior parte da comunidade trans permanece oculta e torna-se mais difícil de detectar e observar, para ser capaz de desenvolver estratégias para a implementação de serviços que atendam às suas necessidades 2.4.5. Ordem de expulsão Como foi referido anteriormente, a tendência mais difundida entre as pessoas migrantes TT, é viajar com documentos regulares, exigindo um visto de turista assim que chega na Itália, para poder ficar até 90 dias no território italiano. Quando termina o período de visto de turista, a pessoa se torna clandestina, e para obter um permesso di soggiorno (autorização de permanência) é muito difícil, em alguns casos, pode ser concedido se se provar que foram perseguidos em seu país de origem, no caso das trans brasileiras que trabalham no mercado do sexo, não é de fato possível obter um permesso di soggiorno per lavoro, ou seja, para fins de trabalho, sendo que a prostituição não é reconhecida como um trabalho normal, que te permite fazer contribuições para o Estado italiano. Na pesquisa conduzida por Flávia Teixeira (Teixeira, 2008) emerge como na ultima década tem sido percebida pela população TT, uma maior repressão em relação aos fluxos migratórios pra Itália, se referem muito à “folha de via” ou seja, à ordem de expulsão, dada às pessoas que não possuem o permesso di soggiorno. Na maioria dos casos de imigrantes clandestinos, a ordem de expulsão acontece por três razoes diferentes: por ter entrado irregularmente no país; por ter permanecido em condições irregulares; por terem violado uma ordem do Questor previamente imposta ao estrangeiro que não havia sido aceito ou havia sido expulso do território nacional por motivos administrativos, regido pelo art.13 da Lei Consolidada sobre a Imigração 135 De acordo com as disposições da Diretiva 2008/115/CE sobre a repatriação de cidadãos estrangeiros em situação ilegal nos Estados Unidos, como resultado de uma ordem de expulsão deve dar preferência ao regresso voluntário de imigrantes no prazo de 30 dias, a contar da comunicação da decisão de expulsão. No entanto, o Estado italiano continua a favorecer a escolta forçada ao país do estrangeiro (Savio, Bonetti, 2012). A situação se complica para as pessoas que são deportadas para o Brasil antes de terem acabado de pagar a divida do contrato para migrar e achar casa e trabalho no país hospedante. Se forem capturadas pela policia, a divida é anulada? Não, por exemplo, na Itália ou na Espanha, mesmo se forem presas pela policia por pouco tempo - porque não passa muito para que sejam deportadas ao país de origem - no momento em que são deportadas, a mafia tenta manter o contato com elas para lembrálas que a divida tem que ser paga. Quando chegam no Brasil, os olheiros as procuram e lhes dizem: “você tá nos devendo, nós não esquecemos” e ela volta novamente ao país que a expulsou. Elas tem que voltar novamente? Tem que voltar, porque o que acontece? Muitas delas economizam um dinheirinho, quando conseguem pegar um pouco pra elas, escondem na casa, elas tem vários truques, por exemplo, descosturar o forro da jaqueta, escondem o dinheiro e costuram novamente, de modo que, qualquer coisa que aconteça, se a policia pegar e mandar elas de volta pro Brasil, pelo menos elas tem certeza de estar com todo o dinheiro que conseguiram economizar. [Entrevista 3C – ativista pelos direitos da população LGBTQ no Brasil] Portando, a divida não acaba quando elas voltam pro Brasil depois de serem expulsas do país hospedante. A cafetina que financiou a viagem sabe bem onde mora a família da trans que ela financiou a viagem pra ir pra Europa que, em alguns casos, é igualmente responsável por controlar o exercício da prostituição e de alugar um lugar pra morar. Neste caso são feitas até ameaças à pessoa TT ou à sua família, aí fazem de tudo para conseguir pagar a divida. Voltar para a Itália se torna ainda mais complicado porque, agora, os dados pessoais da pessoa que foi expulsa pela autoridade competente, já estão registrados depois te ter recebido a ordem de expulsão, e não se pode retornar ao país por um período que pode variar desde três a cinco anos. Uma das questões levantadas ao longo das entrevistas, é o modo como as trans brasileiras são deportadas, como recebem a ordem de expulsão, a ativista pelos direitos LGBTQ, durante a entrevista 3C, fala sobre as modalidades de deportação: Não concordo com o modo como são deportadas, como são tratadas, viajam algemadas e o próprio tratamento da companhia aérea não é respeitoso: é um tratamento humilhante, uma humilhação muito grande. É difícil entender se ela é realmente uma vitima do trafico de pessoas ou se ela foi por livre e espontânea vontade. De qualquer maneira, é 136 necessário fazer essa distinção no tratamento, porque se trata de vitimas, depois de tudo que passaram, corre-se o risco que este tratamento feito dessa maneira possa danificar psicologicamente ainda mais essas pessoas. [Entrevista 3C – ativista pelos direitos da população LGBTQ no Brasil] Mas não é sempre que são expulsas do país, no caso da Itália, um advogado inglês, durante a entrevista 5C, explica o que pode acontecer a trans que é presa pela policia: Quando a policia te pega, podem acontecer duas coisas: expulsão ou deportação ao país de origem ou, se a pessoa denuncia a organização criminosa, pode ficar na Itália, mas o que acontece? O traficante ameaça estas pessoas, que se elas abrirem o bico pra policia, elas morrem, ou ameaçam de matar alguém da família. A policia permite a permanência na Europa somente se é feita a denuncia. A trans se encontra novamente em uma situação terrível, porque se denunciar mas não tem certeza de poder confiar na policia porque, às vezes, mais no Brasil do que na Itália, a policia não é honesta, existem muitos casos onde a policia é corrompida pelos traficantes. [Entrevista 5C – presidente de uma ONG de São Paulo que fornece assistência jurídica à população trans] Na Itália, graças ao art.18 da Lei Consolidada sobre a Imigração, uma pessoa, vitima do trafico de pessoas, que decide denunciar, terá o direito de gozar dos direitos de um sistema de proteção à vitima, no caso de estar em situação de perigo de vida, consequente às ameaças das redes criminosas, além do direito de permanecer regularmente no país. Infelizmente, são poucas as vitimas trans que denunciam à policia as suas condições de exploração Não denunciam por dois motivos principais: nem todas as vitimas de trafico conhecem os direitos e os serviços de assistência social que podem usufruir, não conhecem nem quais são os processos burocráticos para regularizar os documentos, também pela dificuldade com a língua, a maioria das TT imigradas só sabe da condição de clandestinidade delas, por isso mesmo tem medo de ser denunciada por pessoas conhecidas, pessoas que convive, ou até um vizinho de casa; um segundo motivo pelo qual não se denuncia a situação de exploração é o fato que poucas pessoas trans se reconhecem como vitima, muitas acham que ir trabalhar no exterior seja uma oportunidade, e que o preço pedido é equilibrado com o que lhes é oferecido e as possibilidades de ganho que se abrem no novo país. Nos meses de março e abril de 2005, no aeroporto internacional de Guarulhos, foi realizada uma pesquisa sobre as pessoas brasileiras deportadas ou repelidas dos países europeus e emerge que, no que diz respeito as pessoas que foram inseridas na industria do sexo, só uma pequena parte delas declarou ter sido enganada, privada de sua liberdade ou vitima de atos coercitivos, praticamente, a maioria das pessoas que não se reconhecia como vitima da violência ou do trafico de pessoas, era trans. 137 2.4.6. Assistência às trans vitimas do trafico No caso em que a pessoa trans fosse vitima do trafico de pessoas, e se reconhecesse como tal, na Itália, graças ao art.18 da Lei da Imigração, a vitima teria direito de se beneficiar de uma sistema de acolhimento e apoio para vitimas do trafico, quando esta decide denunciar às autoridades competentes, a situação de exploração que está sofrendo. Anteriormente, afirmou-se que, na Itália, de acordo com o artigo 18 da Lei da Imigração, um estrangeiro que denuncia as redes criminosas envolvidas nas ações de exploração ou tráfico de pessoas, tem o direito a um permesso di soggiorno regular por um período de tempo estabelecido. Quando a pessoa faz a denuncia, automaticamente, se está autodeclarando vitima do trafico, mas nem sempre é oferecido um apoio adequado para pessoas que, por causa desta violação dos direitos humanos que sofreram, estão em um estado de grande vulnerabilidade física, psicológica, social e econômica . A vitima se envolve em situações onde é discriminada ou “revitimizada” devido à falta de serviços adequados de acolhimento das vitimas do trafico de pessoas, ou de pessoal adequadamente capacitado para receber grupos especiais de pessoas. A Itália é um dos países europeus com um dos sistemas legislativos mais avançados em matéria de combate ao trafico de pessoas, mas infelizmente este instrumento não é aproveitado em seu pleno potencial. Em particular, o inovativo artigo 18 da Lei da Imigração foi usado como exemplo para a formulação de diretrizes europeias, e é objeto de estudo nos Estados Unidos, apesar disso, de 1998 até hoje, houve cortes nos financiamentos que apoiavam ações de assistência à vitimas do trafico, e este artigo é aplicado em poucos casos, e o tempo de emissão do permesso di soggiorno é longo, em parte pela demora do poder judiciário, que muitas vezes é lento devido à falta de verba e de pessoal capacitado continuar com as investigações Todos estes fatores contribuem para que as pessoas tenham pouca confiança nos serviços de assistência à vitimas do trafico e sejam céticas a respeito do fato que as autoridades competentes possam combater as organizações criminosas envolvidas no trafico de pessoas. A jornalista Mirta da Pra Pocchiesa, responsável pelo Projeto Prostituição e Trafico de Pessoas do Grupo Abele de Turim, se queixa do crescente desinteresse da politica italiana em relação a este tema, e ressalta que o serviço de assistência às vitimas do trafico é oferecido por instituições religiosas e não religiosas que, porém, tendo que lidar com as necessidades básicas destas pessoas em condição de vulnerabilidade, não possuem meios para desenvolver serviços que garantam uma assistência mais completa à vitima, capaz de organizar também um serviço de reinserimento na sociedade para as pessoas que denunciam, e buscando de qualquer maneira, combater o crime organizado. Entre 2010 e 2011, até o “serviço telefônico gratuito nacional anti-trafico – 800 290 290” foi suspenso, e a ausência de um serviço fundamental para facilitar o contato entre a vitima e os serviços de assistência, repercutiu negativamente em todo o sistema de acolhimento das vitimas do trafico pessoas. A falta de um projeto de ação bem estruturado e eficaz contra o trafico de pessoas, abre as portas às organizações criminosas que agem bem onde o sistema de controle e de “punição” é mais fraco. Caso a vitima seja deportada ao Brasil, a questão é igualmente complexa. A presidenta da ONG de Guarulhos, durante a entrevista 6C, ressalta a falta de uma rede de acolhimento adequado para receber as vitimas do trafico de pessoas: Como é feito o acolhimento às pessoas trans? Raramente são acolhidas, pois não há lugares adequados para acomodá-las, geralmente são mandadas de volta para a casa, infelizmente, porque não é o que elas querem ou 138 precisam, estas vitimas dois dias depois que chegaram na cidade delas, elas já se organizam pra ir embora de novo. Quando se reconhece como vitima, quais são as suas necessidades? Todas as vitimas são levadas ao Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas para que possam ser registrados os casos de trafico, mas o problema é que o núcleo não há espaço e capacidade de acomodar e encaminhar estas vitimas aos centros de acolhimento. [Entrevista 6C – presidenta ONG de Guarulhos responsável pelo acolhimento de vitimas da violência e do trafico de pessoas] Um sistema de registro de casos de vitimas e de informações de casos isolados de trafico de pessoas, que não é adequado nem eficiente, é uma das razoes pelas quais o Brasil não desenvolveu um sistema adequado de acolhimento para as vitimas do trafico de pessoas, transgêneros e transexuais, e as instituições também se encontram tendo que enfrentar a falta de espaços onde poder acomodar uma vitima do trafico, ainda não é possível fazer uma estimativa precisa de quantas são as pessoas TT que precisam dos serviços de acolhimento para vitimas do trafico: Qual é a dimensão do fenômeno do trafico de pessoas transexuais aqui no Brasil? Ninguém sabe, não temos dados por varias razoes: estas pessoas são discriminadas dos próprios agentes públicos; eu trabalhei em Santos, e a baixada santista é composta por nove municípios, naquela região chegavam muitas pessoas traficadas e exploradas, mas falta uma rede de apoio e acolhimento, então é impossível fazer um levantamento real das vitimas, mesmo porque não é feita uma distinção entre prostituta explorada e prostituta autônoma No caso de adolescentes e crianças de 0 a 18 anos, qualquer ação é relacionada diretamente ao trafico de pessoas, e é uma outra confusão que é feita. Quando é pronunciada uma sentença, que é raro, se buscam as referencias na legislação especial, por exemplo, no que diz respeito ao trafico de pessoas adolescente, refere-se à 244 A do Estatuto da Criança e Adolescente, porque o trafico é uma forma de exploração sexual, portanto é necessário especificar o 244 A e o 231, se for trafico interno, mas este ultimo principalmente, não vem comunicado, 231 A é trafico interno segundo o Código Penal, e 244 A é a lei especial do Estatuto de Crianças e Adolescentes, na documentação como toda a estoria das vitimas, se encontra “trafico de pessoas”, mas na parte onde está especificado o crime, onde é vitima a pessoa, não aparece mais como trafico de persona, mas se tiver constatado estupro, exploração sexual, privação da liberdade, não aparece o trafico de pessoas, e isto cria problemas na identificação da vitima do trafico de pessoas, dificultando a compreensão da dimensão do fenômeno. [Entrevista 6C – presidenta da ONG de Guarulhos responsável pelo acolhimento das vitimas da violência e do trafico de pessoas] Com o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), aprovado no Brasil pelo decreto 7.037 del 21/12/2009, é inserido como objetivo estratégico, a luta contra o trafico de pessoas, e é sugerida a criação de um sistema nacional de acolhimento de pessoas vitimas do trafico, particularmente se forem crianças, 139 mulheres, travestis ou transexuais. Apesar disso, hoje no Brasil, ainda tem muito trabalho a ser feito por parte das instituições para ter recursos adequados que permitam a realização e a manutenção de serviços específicos para as vitimas do trafico, que possam atender as exigências de cada caso, ou pelo menos, dos vários grupos específicos Por exemplo, no caso da população TT, durante a entrevista 5C, são elencadas as dificuldades de garantir o direito à assistência a pessoas trans, vitimas do trafico: […] quando a policia pára a pessoa, esta só querendo ajudar a vitima e mandá-la para a sua família, mas a trans não se sente vitima, está bem, mesmo que é evidente que não está bem porque é pobre, explorada e, às vezes, maltratada, mas na sua cabeça, está tudo bem, não quer voltar para a sua família porque já foi expulsa uma vez. Então, o que acontece? Não podem ir aos centros de acolhimento para meninos porque seria estuprado, não pode ir para um abrigo de meninas porque não é reconhecida como menina, pode somente ir para centros da igreja evangélica, onde é considerado doente e tentam curar o seu mal, porque pensam que seja uma doença espiritual. É preciso uma solução, um serviço adequado de acolhimento para estas pessoas. O Posto Avançado de Atendimento aos Migrantes do aeroporto de Guarulhos elaborou um esquema do procedimento a ser adotado em casos de assistência a pessoas migrantes travestis ou transexuais, mostrado na figura 1: Figura 1 Esquema de acolhimento e assistência à vitimas do trafico de pessoas, travestis ou transexuais, que chega ao Posto Humanizado de Atendimento aos Migrantes do aeroporto internacional Cumbica de Guarulhos (BRA). 140 No caso em que uma migrante TT em dificuldade procure o serviço de assistência dirigido pelos serviços sociais da Prefeitura de Guarulhos, é importante primeiro ouvir o que a pessoa TT tem a dizer e, ao mesmo tempo, conseguir verificar se se trata ou não de uma violação dos direitos humanos, e se existe qualquer indicio de trafico de pessoas. A decisão da pessoa de expor denuncia, no caso em que se encontrasse em situação de exploração, influencia as medidas a serem tomadas sucessivamente, e sobre a escolha de quais serviços acionar. No caso do trafico de pessoas, pode ser acionado o Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas, para posteriormente buscar uma acomodação para a vitima, que seja segura, e onde os direitos humanos não sejam violados, em muitos casos, se os recursos permitem, pode-se acompanhá-la à estruturas hoteleiras conveniadas, para superar o problema da falta de espaços adequados para o acolhimento das pessoas TT. Além disso, é necessário garantira o estado de saúde da pessoa assistida, e verificar se possui ou não os seus documentos em dia. O fato de ter elaborado um sistema de procedimento direcionado para pessoas migrantes travestis e transexuais, é já um passo avante na tentativa de garantir uma assistência adequada a estas pessoas, infelizmente, porém, a teoria tem que encarar a realidade, ou seja, falta de recursos financeiros, estruturas, vontade politica e pessoas qualificadas. O que emerge das entrevistas que foram realizadas é que, por trás do fenômeno migratório trans, não se vê uma rede criminosa real, mas sim uma ambiguidade entre exploração e oportunidade que se desenvolve dentro do próprio mundo trans. É um ciclo vicioso onde a trans que, quando jovem era explorada e teve que contar com redes informais, para conseguir sobreviver e ganhar a vida; uma vez estabelecida na society, graças ao dinheiro que ganha para colocar em pratica os mesmos comportamentos característicos de uma cafetina. É surpreendente que, se por um lado a população trans brasileira conseguiu se organizar para tentar reivindicar seus direitos com a capacidade de acessar uma gama de serviços (embora em muitos casos, ilegais) necessários para a transformação do corpo e da identidade de trans, por outro, esta mesma comunidade se auto-construiu, internamente, um sistema de “exploração” pelos membros da própria comunidade, onde parece predominar o “instinto de sobrevivência” do indivíduo. Outro aspecto que dificulta a solução dos casos mais graves de exploração, é o fato que não basta somente conseguir reconhecer se existe ou não uma situação de trafico ou de exploração, mas é necessário assegurar que essas vitimas tenham a possibilidade de usufruir de um sistema adequado de acompanhamento psicológico, social e econômico, se decidirem denunciar os próprios “traficantes”. 141 3. MASCULINIDADE EM CENA. CLIENTES E REPRESENTAÇÕES NO MERCADO DO SEXO NA ITÁLIA (Sebastiano Benasso) 3.1. Premissa Esta parte do relatório faz reflexões construídas a partir do material através de diferentes instrumentos de pesquisa e focalizado, principalmente nos pontos de vista dos clientes do sexo pago. A finalidade deste aprofundamento é portanto uma perspectiva complementar àquela que, tradicionalmente, a literatura científica de referência propõe, portanto a análise das pontos de vista das pessoas que vendem sexo em troca de dinheiro. Em particular modo as informações recolhidas miraram reconstruir quais eram o imaginários, independentemente do fato de serem ou não clientes, são veiculados no sentido comum reforçando (ou cirando) algumas crenças em matéria de gênero e relações de poder entre os gêneros. No imaginário comum, de fato, prostituição é “o trabalho mais antigo do mundo” e o cliente é cenograficamente escondido atrás da janela do carro. Um cliente que é todos e ninguém. Um cliente que é protagonista e motor primeiro da existência do comércio do sexo, mas que permanece constantemente como pano de fundo nos discursos da opinião pública assim como na produção científica. O cliente permanece o grande ausente (Abbatecola, 2006). De resto, em um domínio simbólico caracterizado por um masculino dominante [Bourdieu 1998], se tende a não refletir sobre o masculino. Tudo o que é dominante não necessita de explicação [Jacose 1996], portanto se tende a supervalorizar o nexo estreitíssimo entre narrações sobre prostituição e representação da sexualidade masculina [Bellassai 2006; Ciccone 2009]. A prostituição tende a ser contada como um mal necessário [Danna 2004], em virtude de uma sexualidade masculina por natureza disruptiva, instintiva, incontrolável, ativa. Diante de um homem cujas exigências fugiriam ao controle racional, a sexualidade responderia a impulsos que poderiam degenerarem-se diante de uma vazão não adequada. Na história se pode considerar extraordinariamente frequente uma auto-representação da identidade masculina como realidade estratificada entre a luz e a sombra, moralmente dupla: composta, por um lado de um corpo intrusivo, de qualquer forma baixo, sujo, brutal, cujo potencial violento é mais ou menos latente e do qual o desejo sexual constituiria a voz imediata; por outro de uma racionalidade e ou espiritualidade superior e capaz de domesticar a “fera” que se esconde nos obscuros recônditos do homem (como não lembrar do drama vitoriano do monstro e o médico?) A percepção do próprio corpo, e então também do próprio desejo, como dimensão ignóbil da identidade é um trecho de longo período na história do imaginário do gênero dos homens [Bellassai 2006]. Neste sentido, a prostituição representaria a garantia de proteção das mulheres de bem da decência da inteira sociedade. Este tipo de pensamento, aparentemente rigoroso no plano lógico, “freia” a sua própria problematização, e assim raramente se reflete sobre o fato que (Abbatecola, 2012): - o enfrentamento da prostituição nos pede para fazer as contas com uma imagem da sexualidade masculina muito pobre e limitada de uma “descarga” fisiológica na esfera emocional e relacional, proposta seja pelos jovens estupradores nas suas desculpas, que pelos que a apoiam a inevitabilidade da prostituição e quase da sua função social de “contentora” das expressões da sexualidade masculina [Ciccone: 2009: 40]; - conhece-se pouco sobre os clientes, se não o fato que estes podem ser qualquer um [Chetwynd, Plumridge 1994; Benson, Matthews 1995; Mckeganey, Barnard 1996; Leonini 1999; O’ Connell Davidson 2001), mas no fundo isto nos basta. É a prostituta que nos interessa [Abbatecola 2011]; é ela a catalizadora dos incômodos, dos protestos e das estratégias repressivas. É ela o mau, principalmente de migrantes e clandestinos. 142 3.2. Breve nota metodológica. Para conduzir esta parte do projeto ETTS foram utilizados diversos instrumentos de pesquisa com a finalidade de recolher informações úteis para as análises: - 10 entrevistas em profundidade com clientes do sexo pago; todas as pessoas entrevistadas eram homens biológicos numa faixa etária entre 34 e 65 anos e um único entrevistado declarou uma tendência homossexual; - 15 entrevistas semi-estruturadas por rapazes (8) e moças (7) dos últimos anos da escola média; - una experiência radiofônica das representações dos clientes; - 6 entrevistas com sex worker; uma única pessoa entrevistada era uma mulher, enquanto as restantes eram transexuais; - a releitura crítica das conversas online do fórum para clientes do sexo pago denominado “Gnocca3 fórum”. No que se refere à experiência radiofônica, se escolheu de referência um análoga pesquisa italiana conduzida em Milão já no final dos anos 90 (Leonini, 1999). A Universidade de Gênova escolheu portanto contatar um rádio local (Radio Babboleo), propondo-lhes de dedicarem um espaço de reflexão pública sobre o tema do mercado do sexo e da compra do sexo. A direção da rádio demonstrou-se imediatamente muito disponível e nasceu assim uma transmissão rádio do título evocativo “Alô, quem compra?” A transmissão foi ao ar, com frequência semanal, durante todo o mês de novembro de 2012, todas às quintas-feiras, das 9 às 10. Na rádio havia uma locutora profissional, que introduzia uma representante do “Comitê das Graciosas” (Comitê para os Direitos das Prostitutas), colaboradoras da Universidade no projeto ETTS (veja anexo 1). Durante os 4 programas decidiu-se de nunca mencionar a pesquisa, para não condicionar os ouvintes. O objetivo era lançar temas de reflexão para depois ouvir o ponto de vista das pessoas. A este propósito, a universidade tinha preparado diversos instrumentos. Mais especificamente, os ouvintes podiam contatar o Comitê das Graciosas em muitos modos: 3 - mandando mensagens no celular da rádio; - telefonando em direta; - utilizando uma página específica do Facebook intitulada “Alô, quem compra? Vozes sobre o sexo pago”; - escrevendo um e-mail ([email protected]); - telefonando depois do programa a um número específico, que inicialmente ficou ligado das 10 às 11, e depois o dia todo, até dia 30 de novembro. Termo que em gíria significa “gostosona”. 143 Para cada telefonema tinha sido preparada uma ficha para fornecimentos de informações, cujo esquema era o seguinte: - Sexo/idade - Nível cultural/ profissão - Estado civil - Cliente/não cliente/habitual/esporádico - (se cliente) preferências: mulheres, T, homens - Relações protegidas não protegidas - Argumentos telefonema - Observações O programa de rádio foi promovido através de vários canais, como a internet, Facebook e jornais locais. O conjunto das informações recolhidas foi “condensado” nas análises apresentadas nas páginas a seguir mas, com relação às citações laterais, se escolheu referir-se somente às entrevistas em profundidade e às conversas do “Gnocca Fórum” para garantir e manter a centralidade do olhar do cliente. 3.3. O espelho mágico. Reflexões das palavras dos clientes e análises dos seus imaginários Quando os homens entrevistados contaram as suas experiências em termos de compra e fruição das relações sexuais, emergiu um quadro muito centrado nos protagonistas – clientes. Em sentido metafórico, os clientes aparecem ao mesmo tempo como diretores, roteiristas e protagonistas de “quase monólogos” nos quais o papel de “ator secundário” é reduzido ao mínimo e, maior parte dos casos narrados, resulta de qualquer forma colocado em uma posição subalterna no que se refere ao poder de definição dos roteiros e das cenas. Nas narrações relativas aos encontros com a sex worker4, a dimensão racional é muitas vezes removida e a presença da outra pessoa é assimilável àquela de um “espelho mágico”, necessário para o bom êxito da encenação desejada pelo cliente. 5 …porém não sei como lhe explicar... é como…. lhe digo uma belinata … com jogar nas máquina… você para e joga! [Manuel; 44 anos; heterossexual] E’ como uma bebida amarga, não sei.. e como quem participa conscientemente de uma farsa onde ele é o ator de uma farsa, não? E então aceita este teatro como verdadeiro, com a consciência que não é verdade, não é? Isto é um pouco mais sutil como pensamento…. mas eu acho que isto também acontece. [Adriano; 42 anos; heterossexual] Talvez você faz isto para não ter problemas, para aliviar a pressão, para se descarregar sem criar compromissos de todo… e qualquer tipo. Faz porque ao menos não tem problemas de nenhum tipo… se por acaso você é casado, ou está com uma mulher que você não quer deixar… para fazer alguma coisa diferente, procura uma pessoa que não lhe cria problemas, para mim sempre foi uma forma de masturbação, para mim é igual a 4 Considerando que um único cliente entervistato declarou ter relações homosexuais pagas, no texto o termo sex worker e sinônimos serão declinados no feminino. 5 Expressão dialetal genovesa que significa “coisa de pouco valor”. 144 importância que se dá é a mesma, isto para mim …. quanto aos outros não sei […] Eu acho que muitas pessoas procuram porque ao menos não devem dar muitas explicações, não se devem colocar em jogo com elas, acho … não se deve colocar à mesa e falar e talvez não concordam, entram em paranoia com uma mulher se estão sozinhos certos homens, eu conheço alguns … talvez sejam inseguros. Ao invés com elas não estão nem ai, mesmo: se você tem dinheiro decide, vai, volta depois de meia hora e você já resolveu o seu problema. [Luigi; 39 anos; heterossexual] Em conclusão, se trata, banalmente, de uma descarga hormonal … na verdade se trata de ter relações [pagas]... geralmente prefiro bater uma punheta em casa… com as mulheres dos meus amigos, as faço falar com a voz delas mesmas, como dizia Gaber ... [ri]… acho que tem …. retorna aquele elemento solipsístico, retorna aquele elemento de necessidade que, na verdade, é uma necessidade que todos temos nas nossas relações. [Leonardo; 38 anos; heterossexual] Não por acaso em diversas passagens das entrevistas a relação sexual com uma sex worker foi assimilada a uma forma não solitária de masturbação, explicitando o quanto a presença da outra pessoa é meramente funcional para a própria excitação. Neste quadro não existe espaço para negociação nem em termos de qualidade das práticas sexuais nem, tanto menos, na possibilidade por parte da sex worker de afirmar os próprios desejos. Existem obviamente alguns pactos “a priori” em relação aos quais as profissionais do sexo podem definir um perímetro de práticas consentidas, excluindo divagações e transgressões da regra – criando, ao mesmo tempo, um contexto de potencial negociação que parece particularmente atraente para os clientes, um exemplo, neste sentido, é a questão do uso dos preservativos – mas a natureza econômica da troca e constante reafirmação da desigualdade dos poderes entre as partes estabelece a “superioridade” do cliente. A única coisa que eu pedia era para tocar os seios, e tinham vezes que elas queriam cobrar 6 mais, que divertido! Eu também pedi para me fazer um boquete sem gondone … uma me fez, eu gostei e me intrigou muitíssimo, e por isto eu voltei algumas vezes …. era uma da rua, simpática, eu gostava muito, isto é eu gostava muito do boquete assim, feito por uma que não era a minha namorada, mas parecia, não sei …. Demais, excitante. [Marco; 44 anos; heterossexual] […] depois acontece também que elas fogem, talvez, porque quando são 10 anos, doze que você procura uma pessoa, lhe pede: “Olha, agora eu quero que você mije na minha boca”….ok, e ela não quer fazer, foge, vai embora e não volta mais, isto é …. então provavelmente você não deve pedir, porém eu sei que ele sabe o que é a este ponto, porque é vinte anos, é dez anos que eu levo você para cama ... [no tempo] eu empurrei você além do limite, porque aprendi, nestes anos, então aprendi determinadas coisas que eu achava que, também para mim, me enojavam, experimentei, gostei, algumas, outras eu experimentei, mas não gostei, continuo a achar que não são pra mim. Então, reproponho … procuro fazer com que eles evolvam também neste pseudo-casal, entre eu e este … eu evolvo, eles não evolvem se eu não evolver com eles. [Enrico; 43 anos; homossexual] Em particular modo para os clientes heterossexuais, relacionar-se com uma profissional do sexo equivale e medir-se em um exercício de representação (por isto o espelho é necessário) da própria masculinidade, mas se trata de um jogo desejável somente no caso em que a vitória seja garantida a priori. De consequência, na maior parte dos casos este exercício de auto-representação é vivido como gratificante somente se a mulher envolvida participa à farsa e aceita o roteiro preestabelecido utilizando a própria 6 Expressão dialetal genovesa que significa “preservativo”. 145 função de “espelho” para restituir uma imagem retalhada sobre os desejos do cliente (por isto o espelho deve ser mágico, portanto pronto para mentir quando necessário). Onde eu me divertia mais era nos casos onde tinha também um mínimo de relação humana, porque afinal elas também têm um outro modo de serem envolvidas. Sobretudo, eu estou falando das etnias da América do Sul… porque também é preciso fazer distinção. Porque na vida eu procurei principalmente prostitutas da América do Sul. Então a dimensão lúdica é absoluta, obviamente não se pode comparar com uma relação completa com uma pessoa com a qual você tem uma história. De qualquer forma, algumas coisas você não faz. Elas fazem em você. Seria também uma coisa burra da parte de um homem pensar que exista um envolvimento. No final o aspecto mecânico existe. Elas fazem constantemente com outras pessoas. Onde se cria um pouco de relação depois para mim era mais divertido, eu sentia que elas se envolviam. Com uma em particular [ri]… [Giovanni; 40 anos; heterossexual] A propósito do “pacto de cena” implícito que se cria no momento em que se negocia uma relação sexual, um entrevistado acrescenta uma interessante leitura, afastando-se das visões expressas pelos outros homens envolvidos na pesquisa. Nestas narrações recolhidas, existe uma das passagens nas quais se restitui uma narração onde é considerado também o ponto de vista do “ator secundário” Muitos dizem... “Ou é ninfomaníaca, ou ela não liga muito, ou não sente nada”…. Mas na categoria “não sentir nada” é engraçado porque …. primeiro porque não é verdade que a categoria do sentir … isto é alude ao orgasmo com certeza [ri]... mas a categoria do sentir não acaba ali … a categoria do sentir tem também o seu contrário entende? Isto é sentir dor … porque ter uma dor no corpo, não é uma coisa boa e por mais que você se habitue …. isto então … eu não faço aquele trabalho lá e não sei, mas eu imagino que por mais que você se acostume … isto é, até que você é uma mulher … consciente … isto é, não você não é ..se te tiraram metade do cérebro tá? Mas se você usa a cabeça não é que …. você está sempre ali… é um tipo de resposta como quando aqueles que dizem “o pugilista não sente os golpes” … não, não! O pugilista sente os golpes exatamente como você, mas está habituado a receber … então falta a experiência sensorial, isto é a experiência do mundo … é igual: murro na cara igual a murro na cara, só que ele já tomou assim tantos que é capaz de enfrentar, tá? Mas não de anular a informação, mas sei estou sendo claro … do mesmo modo acho que as prostitutas fazem assim …tipo, ficar com um cara que fede .. entende? Que tira a roupa e fede … e acho que são coisas que acontecem com elas todos os dias … não é uma coisa agradável … e ela sente o mau cheiro tanto quanto eu sinto, você sente, só que, ao invés de dizer algo … sei lá, algumas dizem... “Vai embora, vai”.. muitas respiram fundo e vão em frente, não é? Porém isto não anula a informação e, então os caras dizem “Não sente nada” … é um julgamento grosseiro, decididamente é como dizer auto-referido, no sentido que …. “Problema seu” … isto é, no sentido que não é uma pessoa … não é bem pensado como julgamento, isto, como julgamento, porque não corresponde à realidade, eu acho. [Adriano; 42 anos; heterossexual] Neste âmbito o repertório das representações roda ao redor das diferentes faces do que, em sentido em geral, poderia ser definida como uma masculinidade “tradicional”: o homem caçador, o homem sexualmente exuberante e capaz de satisfazer a companheira, o homem hiperativo sexualmente, o homem potente em termos econômicos e consciente de poder comprar os serviços desejados. Uma noite éramos 5 e por aposta queríamos ver a duração de cada um … então consumimos a relação, mas fizemos sexo oral, né? E … foi quase … uma brincadeira: quem durava mais, né? Quem tivesse perdido teria pago para todos […] Acho que é como…estou 146 pagando uma coisa, isto é estou escolhendo sei lá… uma malha de lã… é uma comparação horrorosa… porém o meu discurso é: se vou comprar uma blusa de lã, escolho aquela blusa aliás não aquela, enquanto se você me dá de presente a blusa de lã que se eu gosto ou não gosto não posso dizer nada … repito não estou dizendo que o meu raciocínio está certo … porém… eu estou comprando uma coisa, então naquele momento tenho vontade de ter uma coisa e sei que posso pagar, entendeu? E não tenho tempo de dá em cima de uma menina ou fazer estas coisas … [Gennaro; 38 anos; heterossexual] [Em um bordel na Alemanha] numa tarde eu fiz 5 vezes … eu achava que não ia dar conta, falando a verdade, mas foram elas que me disseram “Imagina, você vai conseguir muito fácil” porque já depois da primeira … sinceramente eu não achava que chegar a 5 numa tarde pelo simples fato que não … eu disse é “humanamente impossível” …” [ri]… porém todas as vezes que eu voltava e dizia “Estou cansado” talvez uma menina se aproximava de novo e eu dizia: “Tudo bem me dá 5 minutos que estou um pouco cansado agora e vou beber uma coisa”… Não, não você consegue, fica tranquilo, que você consegue …” [ri]... alguma coisa deste tipo porque… com certeza elas sabem que mudando de menina se consegue …. Isto é a mesma não consegue, não consegue manter o mesmo interesse por 5 vezes em seguida numa tarde. [Giuliano; 34 anos; heterossexual] A função do “ator secundário” interpretado pelas sex workers é limitada por uma série de papéis determinados pela busca de complementariedade em relação ao protagonista masculino, então dependendo dos relatos falou-se de caça a ser conquistada, de profissionais que – em razões das capacidades particulares dos entrevistados – vêm, às vezes, do prazer sincero “esquecendo” de aplicar o destaque funcional do papel de sex workers, de ninfomaníacas e, nos casos frequentes nos quais as mulheres não fossem de origem italiana, de particulares expressões do caráter étnico. Algumas seriam putas, mesmo que não fossem pagadas, então tem já aquela vocação pra fazer aquele trabalho, ficam à vontade e sofrem menos do que as outras, talvez.... você percebe pelo modo como elas se comportam, você vê que elas também gostam. Porque algumas gostam um pouco menos de fazer, você vê ... é como quando uma pessoa faz um trabalho qualquer, você vê se a pessoa faz com paixão ao fazer a coisa ou ela faz porque tem que fazer, entendeu? […] Claro… de todo modo eu sempre penso que ela finge... não digo no fato de fingir o orgasmo ou coisas do tipo, você percebe no comportamento dela, não? Se a pessoa que se esforça que coloca mais paixão ... depois pode ser muito boa no que faz com mais profissionalismo ... porém eu acho que ela tem que ser assim, se não não consegue, assim, tanto ... em algumas coisas não dá pra fingir ... assim tanto ... [Luigi, 39 anos; heterossexual] [No bordel alemão] existem duas categorias, têm aquelas que ... eu e o meu amigo assim que entramos na recepção praticamente logo ficaram na nossa frente duas meninas, lindíssimas, loiríssimas [ri], completamente nuas, que nós já tínhamos visto que tinha todo este giro de mulheres ... eu insisti como o meu amigo para dizer “Não, espera um minuto, vamos no andar de baixo onde tem a sauna e ... tomamos banho, fazemos a sauna com calma nos relaxamos um pouco, coisas assim […] então duas se ofereceram para um de nós dois [ri]… mais do que qualquer outra coisa se colocaram em mostra neste sentido ... isto é estavam procurando atrair o cliente, outras invés se colocam tipo como se fossem numa vitrine, existem outras dos sofás comuns, dos sofás esféricos um pouco mais rosados, um pouco mais ... um pouco mais estilo bordel, vamos dizer [ri] como a gente imagina no velho oeste, isto.... onde elas se deitam, se colocam em posição lânguida e esperam que o cliente chegue ... é um pouco o jogo vítima – caçador ... você é um pouco cortejado... na verdade não é um verdadeiro cortejo ... ou se é você que escolhe, então para na menina , começa a conversar e depois lhe diz “Está bem, vamos para o quarto” ... eu prefiro o aspecto “escolho eu” talvez porque na realidade ... ao menos eu não estou convencido que na realidade depois na verdade são elas que escolhem [ri] ... isto é nós homens somos meros fantoches [ri] Isto é, um pouco é porque, praticamente ... ela te faz sentir-se como deve sentir Brad Pitt que quando entra em um 147 bar e diz [estala os dedos]: “Você, você e você venham comigo [ri] imediatamente patrão... [Giuliano; 34 anos; heterossexual] A estereotipagem na base étnica é de fato uma característica decididamente frequente nas narrações dos clientes entrevistados e, no sentido mais amplo, representa uma aspecto determinante na necessária objetivação das sex worker nas visões dos clientes, objetivação que aparece essencial exatamente como proteção do bom êxito das representações encenadas durante o encontro enquanto mecanismo de remoção das interrogações em mérito das motivações para as quais as sex worker estão no mercado. A categorização é bastante rígida: as mulheres da América do Sul seriam mais alegres e orientadas a uma abordagem lúdica ao sexo, as mulheres e os homens provenientes da África subsaariana manteriam uma ligação com a terra que corresponderia a comportamentos sexuais animalescos, as mulheres chinesas e as do leste da Europa seriam bastante destacadas e frias durante o ato sexual. Neste sentido, as sex workers italianas (cuja oferta é no parecer dos entrevistados drasticamente diminuída nas últimas décadas) seriam mais propensas a não esconderem os aspectos de dificuldade ligados à própria profissão, acabando por serem muitas vezes julgadas como menos atrativas ou de qualquer forma menos “governáveis” pelo cliente. A sensação é que a italiana seja sempre muito mais irritada em fazer aquilo que está fazendo. A chinesa é um pouco autônoma ... é também por isto que não procurei muitas vezes, se não como uma pessoa que era totalmente divertida pela situação me fazia divertir muito também. Notei que a mulher sul-americana é mesmo uma pessoa positiva. Isto é, positiva mesmo, na abordagem, quando fala com você, quando pergunta se você quer um chá depois, ao invés as italianas eu sempre achei muito muito irritadas. [Giovanni; 40 anos; heterossexual] O negro é mais tímido o africano negro é mais tímido, é menos sexuado, também se é muito ... uso um termo brutal, é um pouco mais rude, isto é vem de um território ... são mais ... são mais selvagens, quer dizer, poderiam ser mais selvagens ... mas, por exemplo, o negro afro latino não, aquele que vive na África, isto é Moçambique, Cabo Verde está mais próximo do Brasil, mais próximo de Cuba, mais próximo de Santo Domingos, está mais próximo daquele modo de fazer sexo, então nosso, latino, então mais saliente, então menos controlado, mais prazeroso e sem nenhum limite. Se não quero fazer o passivo, porque não gosto, finjo que é um cachimbo e faço o que você quiser, e brincamos, é divertido passar a noite, fazemos quatro .... O africano você deve conduzi-lo um pouco, é bom ... é bom para fazer de cachimbo, é bom na cama, os melhores trepadores no mundo são os árabes. [Enrico; 43 anos; homossexual] [Referindo-se à primeira sex worker com a qual esteve] Eu acho que era dos países do Leste ... acho que ... sim quase com certeza ... isto é mais do que outra coisa não sei, porque praticamente além da barreira linguística que já ... não tinha nem mesmo não sei como dizer ... uma vontade de comunicar ... não sei ... era fria, com um par de olhos de criança, da boneca barbie um pouco ... um pouco da serie “Vamos lá …” [Giuliano; 34 anos; heterossexual] Mas agora ... vamos dizer ultimamente são todas sul-americanas então ... mas eu geralmente gosto mais das sul-americanas mesmo .... antigamente eram mais italianas, as estrangeiras não existiam [ri] eu que já tenho uma certa idade que ... tenho quase cinquenta anos, quando eu tinha vinte as estrangeiras você não achava ... nem romenas nem ... eram só italianas nas ruas ou nos apartamento [...] Talvez as sul-americanas tenham um modo de ser que... não sei, mais jovial, não sei como explicar ... não estou falando sexualmente. Mas a primeira abordagem ... são mais cordiais, não sei explicar, talvez mais ingênuas ... não sei se também ingênuas é o adjetivo correto, são ... parece quase que os problemas delas ... que o problemas delas elas passem por cima em relação às outras [...] em média acho que as italianas são mais problemáticas, ou de qualquer 148 forma tem em si mais problemas do que as sul-americanas ... isto independentemente de ser prostituta ou não, falo mesmo da mulher em geral. [[Manuel; 44 anos; heterossexual] Também as narrações em mérito a experiências julgadas negativas pelos entrevistados parecem confirmar as expectativas por parte dos clientes em relação à “naturalidade” dos papéis feitos pelas sex workers; na quase totalidade dos episódios contados como insatisfatórios ou mesmo frustrantes como de fato é a não coincidência das profissionais em relação ao cenário esperado a determinar um êxito indesejado. Também inoportuno são as julgadas ocasiões – voluntárias ou acidentais – de emersão dos aspectos ligados aos bastidores da vida das sex workers. Num certo sentido, é como se, saindo dos perfis impostos pelo roteiro, a subjetividade das profissionais do sexo nestas ocasiões roubassem parte da cena denominada pelos protagonistas – clientes, criando curto-circuitos mal tolerados por quem compra – também porque o próprio fato de comprar deveria corresponder ao direito de diretor na cena -. Exemplares neste sentido são as passagens das entrevistas nas quais o comportamento das sex workers é narrado como excessivamente distante e pouco envolvido, para sublinhar a “traição” que estas mulheres fizeram às expectativas do cliente Você já consegue ver pelo comportamento ... algumas não são mesmo capazes ... algumas se vê que não tem vontade ... fiquei com algumas que me pareciam drogadas ... eu não faço uso de drogas e nem de álcool, porém algumas vezes eu vi algumas que ou tinham bebido ou estavam cheias de cocaína ... aconteceu de eu ver ... pelos comportamentos, claro ... é de se pensar.. eu às vezes paguei e fui embora sem fazer nada .. devo lhe dizer a verdade ... não como lhe explicar ... se a coisa já começa mal dai eu vou me embora sem fazer nada, mas vou embora logo, não é que você tem que pagar ... porém às vezes aconteceu que ... no meio da relação você vê certas coisas que não .... que não gosta e então ... a coisa feita sem vontade ... isto é ... uma ameba ... um mínimo de participação, não? De qualquer forma quando um homem procura uma prostituta, compra, não? Entre aspas compra sexo ... se você fica com uma que parece uma tábua ou de qualquer maneira vê uma drogada que tem o hálito com cheiro de uísque … [Manuel; 44 anos; heterossexual] Muitos anos atrás eu estava em férias na Suíça sozinho e .... eu tinha uns vinte e cinco anos ...na época eu estava ainda na casa dos meus pais então o meu salário era praticamente todo meu, então eu escolhia um hotel a caso ... era um belo hotel de 5 estrelas... quando subo no quarto olhando ao redor encontrei não o cardápio [ri], mas uma série de cartõezinhos de publicidade […] e dai... chamando diretamente a recepção que falavam italiano fiz mandar esta menina […] depois de pouco tempo ela chegou, eu paguei diretamente a menina e foi uma experiência extremamente decepcionante ... parecia uma consulta médica ... uma mulher muito, muito, muito bonita, digamos como uma modelo de revista ... mas como dizer ... muito fria como experiência e ... tanto é verdade que não repeti, isto é a relação sexual aconteceu, mas foi vivida com bastante ... frustração ... porque de qualquer modo você não conhece a pessoa ... de qualquer modo sem ter tido uma conversa inicial durante a noite, ter encontrado numa discoteca e termos bebido todos os dois, uma coisa deste gênero, isto é não com a dinâmica comum da relação que não é paga, onde existe digamos ... se não, se não se cria uma verdadeira intimidade, de qualquer forma se cria uma certa proximidade ... isto ... e além do que .. existe uma contínua ... troca de preservativo a cada posição ... parecia uma coisa um pouco obrigada ... mecanicamente como se costuma dizer ... uma consulta ... o modo melhor para definir me parece uma consulta médica [ri] quase... isto para dar uma ideia ... praticamente me vestiu... isto é me desvestiu e me vestiu de novo ... uma coisa um pouco como se ... isto é, como se eu fosse uma espécie de boneca. [Giuliano; 34 anos; heterossexual] Chegando a este ponto das reflexões talvez fosse oportuno fazer uma digressão e considerar o ponto de vista de algumas sex workers envolvidas na pesquisa. Por quanto também neste âmbito não se possam 149 considerar representativas da complexidade dos diferentes pontos de vista das profissionais do sexo, as narrações recolhidas fornecem algumas perspectivas úteis de “inversão” das crenças veiculadas pelos clientes. Antes de tudo, como na verdade nos parece óbvio, a pretensão de um comportamento neutro e sobretudo não judicante por parte das sex workers é desmentida pelas próprias que, aliás, contam que compartilham as histórias, apelidos e opiniões em mérito aos clientes, se dando o direito de recusar quem não entra em determinados padrões comportamentais, estéticos e/ou higiênicos. A propósito da função de espelho pretendida pelas sex workers, também, algumas profissionais transexuais narraram diversos episódios nos quais uma vez terminado a relação sexual com papel passivo, o cliente exprimia raiva e desprezo pelas sex workers. Como se, terminada a relação sexual, o espelho perdesse a sua magia e fosse necessário “convencê-lo” a restituir a imagem desejada, que, provavelmente, não é aquela “real” do momento. Muitos clientes teriam portanto a exigência de afirmarem, em modo agressivo, “Olha que eu não sou gay” às pessoas das quais acabaram de receber uma penetração, procurando deste modo afastar as evidências que, naquele contexto, poderia minar a própria percepção do homem exclusivamente atraído por relações e pelas práticas heterossexuais tradicionais. Voltando ao “roteiro” dos encontros pagos, resulta muito claro como as referências à própria vida privada devam ser administradas pelas sex workers no modo mais discreto possível, quase como se tratasse de contos genéricos que se referem a outras pessoas (possivelmente) outros lugares. Então... existem algumas que eu frequentei um pouco... bem, digamos, bastante ... procurando várias vezes mas sempre no nível de conversa ... isto é sempre limitadas a saber onde moravam, quantos filhos têm ... isto é, não mais de ... nunca tive relações fora do sexo, sair junto estas coisas ai não ... conversas só no nível .... das famílias delas, de onde vêm, a vida delas em geral ...mas só conversa, tempo de tomar um café entre aspas como dizer ... sabe, enquanto se você se veste... [Manuel; 44 anos; heterossexual] Aconteceu de falar com as meninas que lhe contam algumas histórias também ... mas como você todo dia tem problemas ... de qualquer forma seja ... falando do trabalho, não? Existe o problema que não se consegue pagar o financiamento da casa, depois não se fica medindo qual problema é mais grave, porem para mim o problema que não consigo pagar o financiamento da casa é igual para ela ser espancada por vários meses. Isto é aquilo que eu quero dizer ... isto é a um certo ponto não sei como pagar o financiamento da casa você fica chateado, porém uma vez que você sai daqui não é que diz “Ah, espera ai que dou duzentos euros assim você para a prestação do financiamento “ entendeu, eu vejo a coisa assim… [Gennaro; 38 anos; heterossexual] Objeto de particular censura são também todos os possíveis adiamentos da questão da exploração: a tendência é a de (re)construir os perfis das pessoas das quais se esta comprando uma relação sexual procurando “provas” que confirmem as suas escolhas auto-empresariais; quase todas as sex workers citadas pelos entrevistados estariam – segundo a opinião dos clientes – no mercado por uma questão de escolha individual feita em plena liberdade e consciência. O nivelamento da relação em roteiro rigorosos descritos nas páginas anteriores, assim como a remoção, mas narrações compartilhadas no momento do encontro dos detalhes aprofundados em mérito ao vivido pelas sex workers, não permite todavia poder estabelecer se as pessoas das quais se está comprando sexo sejam na verdade livres de constrições e qual eventualmente seja a intensidade destas (da coerção física e chantagens econômica e sentimental). Tirando as chinesas, porque se você pensa como é estruturada a cultura chinesa é evidente que estão na mão do crime organizado – eu como de fato procurei bem pouco as chinesas – a sul-americana, isto eu lhe digo com certeza, porque eu me tornei amigo de algumas, é sempre independente. A cultura católica representa outra abordagem a toda a dinâmica da prostituição. Porém se não por outra coisa você ali vai com uma pessoa que ganha a vida assim, assertivo, que escolheu viver assim. E também diante – ao menos daquilo que elas me disseram – diante da possibilidade de fazer outros trabalhos estas 150 mulheres, estas pessoas muitas vezes respondem “Não, eu me ajeitei assim. Sou independente, ganho um x por mês, e nunca voltaria atrás” [Giovanni; 40 anos; heterossexual] Partindo desta limitada possibilidade – e provavelmente também o desejo – de aprofundar quais são os motivos pelos quais a sex worker se vende, as pessoas entrevistadas parecem ter a tendência a restituir uma representação estetizada das condições de vida as pessoas das quais compram relações sexuais, acentuando algumas características do comportamento das sex workers: em diversas passagens foram descritas como mulheres particularmente alegres e divertidas (com ulterior referência às suas características do caráter “originárias” determinadas pela base étnica) ou se fez referência a contextos e lugares para os quais a construção de uma moldura imputável às dimensões do luxo e da atmosfera relaxada funcionaria, por si só, como garantia de um alto nível de qualidade da vida para as pessoas que trabalham no seu interior. As indicações mais evidentes, neste sentido, são os bordeis suíços ou alemães, contextos nos quais as atividades das sex workers que trabalham são descritas através de lentes suavizadas, com frequentes a menções à retórica livre escolha (seja em termos de escolha de vida que em termos de seleção dos clientes) e as praxes do controle sanitário (que neste discurso são percebidas como garantia de pleno respeito dos direitos das trabalhadoras). Por quanto, de fato, nos contextos de rua e do bordel de luxo aconteçam contradições e dinâmicas substancialmente similares entre os clientes e a sex worker, a moldura diferente na qual está enquadrada a situação como um “spa” parece legitimar também um compartilhamento mais livre das experiências que acontecem no seu interior, como bem destacado no trecho da entrevista a seguir. Eu estava indo de férias a Berlim entre as tantas coisas na pesquisa que eu fiz ... por motivos turísticos ... me encontrei lendo muitos comentários sobre um local que seria praticamente um spa, sauna, massagem, hidromassagem, banho turco assim ...que se chama Ártemis ... em Berlim muito famoso e acabei por ter muitas informações sobre este lugar, também porque quando eu dizia que estava indo a Berlim para muitos dos meus colegas de trabalho, também às pessoas assim, que conheço também gente de certa idade, uns cinquenta anos ... todos diziam e “Vai ao Ártemis” dizem que é uma coisa maravilhosa.... é como dizer quando você está em paris e vai à Disneyland ... isto é a maior parte das pessoas nunca foi ... você não é uma criança então noventa por cento não é que: me estou divertindo ... porém todos sabem mais ou menos que existe. Digamos que talvez teve uma visibilidade maior durante o campeonato mundial na Alemanha, porém a prostituição lá acho que é legal faz ao menos vinte anos ... eu entre outras coisas antes de ir viajar li muitas coisas na internet ... vi como funcionava: fazem uma consulta médica toda segunda-feira em todas as meninas, como de fato na segunda está fechado ... para as diferentes doenças sexualmente transmissíveis, todas as semanas para que possam ter a renovação da licença para trabalhar ... depois tive também outras informações no momento em que falava com as próprias meninas sobre o funcionamento da estrutura. Para a menina funciona assim: paga cem euros, tem o direito a todas as bebidas e estas coisas assim ... e mais o direito de pegar o quarto, porque ela é que administra todas estas coisas aqui ... […] Digamos que a primeira experiência [com uma prostituta] eu contei somente para os amigos mais próximos, enquanto a partir da segunda não provo ... isto é nenhum embaraço ... então para mim não é uma vergonha falar abertamente a respeito, eu falei para as minhas amigas, para os meus amigos para pessoas que conheço mas com quem não tenho intimidade ... porém é uma coisa não sei como dizer ... é um pouco como se eu tivesse ido na Disneyworld ... porque na verdade é uma coisa assim fora da realidade ... é como ter vivido dentro de um filme, não sei como explicar ... isto é muitas meninas para quem eu contei, uma em particular modo, disseram quase que segundo elas não seria trair se a mesma coisa tivesse acontecido com um homem casado, porque na verdade é uma coisa fora talvez.... isto é além do sexo, porém além do sexo o que pode ser... não sei ...por exemplo quem é casado, com três filhos e de noite procura uma trans. [Giuliano; 34 anos; heterossexual] 151 Tenho alguns amigos que foram à Suíça não sei se você escutou falar.... são locais onde você entra, paga um quantia ...acho que agora tá cem euros ... e tem todas estas meninas deste tipo, as hidromassagens ... você circula de roupão, eu nunca fui ... já ouvi falar, porém eu gostaria ... gostaria de ir não é que ... falo por outras pessoas se eu tivesse ido eu lhe diria, porque de qualquer forma agora tem quase quatro anos que [ri] estou fazendo férias coletivas e não posso me dar este luxo. [Manuel; 44 anos; heterossexual] Partindo da palavras dos entrevistados é possível reconstruir dois perfis de sex worker: de um lado são todas colocadas como obrigadas a se prostituir sobretudo na rua, enquanto do lado oposto são descritas como profissionais liberais que administram o próprio trabalho em autonomia e se apoiam (comprando) os serviços oferecidos pelo bordel. Independentemente do “status” dado às sex workers, a tendência geral parece ser a de despersonalizar as mulheres das quais se comprou sexo, nivelando a descrição sobre elas a aspectos meramente estéticos ou comportamentos contextuais ao encontro. Também os entrevistados que declararam-se mais abertos e “laicos” em relação ao desejo de não julgar moralmente as prostitutas parecem de qualquer modo temer o julgamento que “o resto da sociedade” teria feito em relação a eles caso a relação com a trabalhadora fosse aprofundada. Neste sentido, então, também nos casos em que as mulheres foram representadas como “livres” e quase “divertidas” no cumprimento do próprio trabalho, a presença delas na cena pública parece poder ser verificada somente na condição em que não violem os limites dos seus papéis de profissionais do sexo. Com uma em particular nos tornamos um pouco amigos, como cliente, isto é eu chegava com a pizza e com a cerveja, ficava ali e falávamos uma horinha e lei me mostrava as fotos de Cuba [...] depois obviamente além da questão humana, se a menina tem uma bela bunda e dois seios lindos! Óbvio! Vamos deixar desta hipocrisia de fazer caridade... Obviamente tinha um aspecto lúdico. [Giovanni; 40 anos; heterossexual] …de qualquer forma são atividades que eu acho você pode fazer por um certo período de tempo e finalizadas a poupar um pouco de dinheiro ... para depois ter uma vida real ... porque eu acho que de qualquer forma você não pode ter uma vida normal ... isto é , onde você pode, tranquilamente, ser médico, ferroviário, carteiro e ao mesmo tempo ter uma família .. se você é um prostituto ou uma prostituta, você não pode ter uma família, segundo o meu parecer .. mas nem mesmo uma atriz pornô … se você ouve os artistas pornô nestes que fazem estes casamentos, são casados têm filhos .. para mim é uma coisa louca ... isto é se você é um ator pornô ou uma atriz pornô sinto muito mas não pode ter uma família .. isto é tudo bem interromper um pouco aquilo .. que de qualquer modo não sei .. talvez eu seja preconceituoso neste sentido ... posso compreender ... isto é posso muito ver uma pessoa que de manhã vai operar, guiar um trem ou vai entregar cartas e de noite volta para casa ... mas uma mulher que de manhã faz uma orgia com 4-5 pessoas e depois volta para casa à noite, isto é beija seus filhos não sei... também porque depois quando se deve dizer à criança que você é um carteiro. é bastante simples ... quando à criança se tem que dizer que você trepa de manhã até à noite, é uma bagunça ... isto é se pode explicar a um adulto uma coisa deste tipo … [Giuliano; 34 anos; heterossexual] 3.4. As primeiras experiências e a caracterização dos “outros” clientes As primeiras experiências de compra de relações sexuais, na maior parte dos casos, são contadas como de qualquer modo inevitáveis e estreitamente ligadas a condições contextuais. Os relatos das primeiras abordagens ao mundo da prostituição são um dos aspectos de maior homogeneidade entre as narrações 152 recolhidas: para quase todos os entrevistados se trata de uma experiência vivida ao redor dos dezoito anos e elaboradas, a distância de anos, como momentos conotados de um intento lúdico – exploração nos quais a dimensão divertida do compartilhamento com um grupo de amigos é muito indicada como um dos impulsos principais para medir-se com a dimensão das relações sexuais – que para a maior parte dos entrevistados resulta quase totalmente desconhecida no momento da primeira relação com uma sex worker – através do canal “facilitado” das relações pagas. 7 Como dizer ... sabe ... o período dos puta tour … você dá uma volta, vai li um pouco para digamos... no início realmente por pura diversão, pode ser que faça, contrata, mas não ... pode ser que não vai, de noite onde se está em 4 no carro. À noite que sai ao invés ... pode ser que se fica em dois, à noite então se diz talvez ... você bebeu alguma coisinha a mais que fez um pouco de efeito a mais ... pode ser ... vai e digamos que conclui a coisa: Com certeza quando jovem talvez ... repito você faz mesmo por brincadeira, era uma questão de brincadeira de ... chateação talvez às vezes também, não? Então fazia alguma coisa de diferente,... aliás que você bebia ... talvez ao invés de ir nos locais para beber.. ia ali… às vezes porque talvez faltava aquela ... a namoradinha ... de qualquer modo que seja .. você então naquele ponto ali pode ser que tirava a pressão, de vez em quando ia [Gennaro; 38 anos; heterossexual] A primeira vez eu era um adolescente ... porém não é que eu fui demais... não é uma coisa que eu gostei, porém depois nós fizemos com os outros ... entendeu? A primeira vez sabe ... 2 ou 3 fomos juntos .. por volta dos dezoito anos até mais para frente ... mas foram mesmo esporádicas ... que íamos juntos fazer o puta tour, e outras trepadas daquele tipo ali ... depois .. mas aconteceu poucas vezes assim, depois aconteceu mais para frente quando eu era um pouco mais velho talvez. [Luigi; 39 anos; heterossexual] Eu era um meninote na época era um pouco um modo de .... como dizer ... era uma coisa 8 de iniciação, entende? Isto é ... procurar uma bagascia era um pouco ... “Oh vamos lá” ... ao redor dos dezoito anos, eu era enrolado, então tinha iniciado no sentido que ... depois tanto se revelou uma coisa bastante ... assim ... fria ...não interessante, depois um adolescente compreende que tinha poucas ou nenhuma experiência sexual, era uma coisa que colocava você em estado de embaraço confusão de ... assim é... depois sobretudo o que acontecia ... sai de casa com o amigo, você tinha juntado umas liras, na época, para fazer a coisa, então ia, se ia para o centro histórico e tinha toda esta ... também este desafio então, o mais tímido, não? Para a série... “Você é o azarado, eu sou o maior” ou seja esta busca de uma masculinidade que encontrava também o seu carimbo, o seu segredo no primeiro ato ... eram os primeiros anos 80 e elas eram mulheres italianas meridionais. No meu caso era uma senhora de uma certa idade ... sabe-se la a idade dela .. mas o contexto era: a “prostituta” estava na porta, já tinha ido o amigo do amigo, então levava você talvez ... em dois um esperava fora o outro entrava ... e.. “Como foi? Sim, pode ir tranquilo” isto é era uma senhora que depois se dava conta que estava lidando com meninotes portanto fazia as coisas mais rápido ... realmente um mínimo de atenção ... provavelmente tinha medo ou ficava embaraçada com os dois meninotes que iam lá. [Adriano; 42 anos; heterossexual] O fio condutor destas passagens nos relatos é talvez identificável na reverberação que a tradição da “visita ao bordel” tem nas suas representações dos entrevistados. Para estas pessoas o significado da primeira experiência com uma prostituta parece coincidir, ao menos em parte, com o valor do rito de passagem de iniciação para a idade adulta, por quanto seja provavelmente sempre menos radicada a ideia segundo a qual este rito seja uma necessária confirmação de uma “saudável” masculinidade. Considerando como 7 O “puta tour” é uma prática mais difundida sobretudo no final da adolescência entre os rapazes que, geralmente em grupo, passam com o carro nas ruas onde as sex workers trabalham esboçando as primeiras tentativas de negociação que, geralmente, não se concluem com a compra efetiva de uma relação. 8 Termo dialetal genovês que significa “prostituta”. 153 idade média das pessoas entrevistadas aquela ao redor dos trinta e cinco anos, se pode hipnotizar que esta geração de homens tenha vivido em primeira pessoa a fase de mudança dos significados culturalmente dados pela experiência de fruição do sexo mercenário: para as gerações imediatamente anteriores as dicotomias opositivas entre mulheres e amantes, mães e prostitutas, amor sagrado e profano eram um pressuposto cultural tão difundidos ao ponto de tornar o bordel um local considerado necessário para as primeiras experiências da própria sexualidade, enquanto para as gerações posteriores a progressiva legitimação do desejo sexual feminino – por quanto, como veremos depois, diversas resistências culturais freiem a sua aceitação plena seja no discurso público que no privado – comportou uma disponibilidade mais ampla de ocasiões e encontros paritários entre os dois gêneros, então não regulados pelas lógicas econômicas de troca tarifa –prostituição. A minha primeira vez paga ... ah no meu caso vamos dizer que antes de tudo tinha uma solidão de fundo ... porque de qualquer forma também naquela época eu não tinha namorada ... eu sempre tive dificuldade para ter namorada ... e tive muitas relações, porém não muitíssimos em relação a muitos outros das minha geração, que de qualquer forma é uma geração sexualmente muito livre ... porém não tive ... eu sempre tive muita dificuldade para criar relações constantes ... na verdade nunca senti muita necessidade na minha vida, dei umas derrapadas, porém digamos que limitadas, que consigo contar nos dedos de uma mão ... só de uma mão ... e é só ..., se fala de sexo ... e no final precisou de pouco, eu estava sozinho … [Giuliano; 34 anos; heterossexual] Nunca tive muita sorte com as meninas, sobretudo quando eu era jovem. Não era bonito, era tímido, enrolado... naquela época então no bairro se falava das prostitutas, sei lá onde eu já tinha ouvido falar, também em casa de brincadeira, ou entre os amigos, como fazer para trepar a primeira vez ... caminhando pelos ruelas você as via ... me lembro que as primeiras vezes, ou talvez exatamente a primeira, antes de ir eu pensei a respeito, e dava voltas e mais voltas nas ruelas para vê-las. Um dia, eu tinha cerca de dezessete anos, arranjei dinheiro e fui. Era um fim de semana, me lembro, uma tarde, e enquanto eu caminhava me lembro que eu estava ... emocionado, não sentia as pernas, não queria ser visto por ninguém, e estas ruelas na sombra, com pouca gente ... em uma ruela lateral vi uma moça jovem, ela também me parecia tímida, e fui com ela. [Marco; 44 anos; heterossexual] Neste sentido são particularmente sugestivas as palavras com as quais o entrevistado conta como, para uma geração de adolescentes norte africanas que chegaram em Gênova nos primeiros anos 90, o fato de não serem aceitas como clientes pelas prostitutas do centro histórico (não obstante a oferta de meninas seja tradicionalmente muito consistente na área), temiam diferentes transtornos, como se estes meninos quisessem reivindicar o seu direito a medirem-se com o ritual de passagem assim importante na sua concepção de “tornarem-se adultos” e, em um certo sentido “tornarem-se adultos e inclusos” na sociedade recebedora. Na sua narração o entrevistado descreve em modo muito eficaz como sobre um tema assim denso como o da descoberta da sexualidade na idade da adolescência, intervenham fatores de caráter fisiológico mas também, e sobretudo, de caráter cultural, ilustrando como à algumas práticas é designado o valor simbólico do rito de passagem. Portanto nos primeiros anos 90 chegaram os primeiros fluxos de migrantes do Marrocos, o centro histórico encheu de marroquinos ... somente homens ... me lembro que estava na M. [área do centro histórico genovês na qual tradicionalmente a oferta de prostituição diurna é particularmente ampla] na época e sobretudo aqueles que digamos dos adolescentes para cima, não estou falando das crianças por motivos óbvios, mas dos adolescentes para cima, tinham um grande problema porque não, não ... tanto viviam em uma condição de isolamento total aqui, no sentido que as suas possibilidades de encontro social, isto é de vida, eram muito pequenas, eram obrigados a vender flores, viviam nestes apartamentos, estas casas caindo aos pedaços que dividiam até mesmo a cama com outra 154 pessoa, se alternavam ... estas coisas, depois os mais jovens eram obrigados também a cumprir o papel de dono de casa, preparar a comida, etc... ou seja uma vida difícil e zero possibilidade de ter historias com italianas, nada ... naquela época ainda ... depois mudou um pouco, mas nos primeiros anos ... porque chegavam pessoas decididamente azaradas entende... depois era uma ondada que chegava do interior, eram camponeses então .. culturalmente ... entende com poucos instrumentos, depois ficavam deslumbrados com o mundo da vitrine do ocidente, tinham as calças bonitas, os sapatos eh... higienicamente devastador, isto eu com certeza pelas condições em que viviam aqui, mas tenho motivo para acreditar que mesmo nos seus países de origem ... um pouco como aqui, meu pai era camponês e se lavava uma vez cada morte de papa, cultura camponesa […] bem, nem as prostitutas queriam saber deles, este era o ponto ... se gerava um clima de ódio ... eles isto é realmente quando falavam das prostitutas ... porque se sentiam excluídos .. pelas excluídas, entende? Que não talvez quando conseguiam vender um pouco de meias, um pouco de tranqueiras, isqueiros coisas que davam quarenta mil liras ... esperavam poder ... e estas aqui davam pra trás: “Eu com você, com os marroquinos não vou” esta era a coisa que os fazia ficar nervosos ... se tornavam pejorativos, agressivos e não se podia tocar neste argumento, ficavam uma fera ... eu entendo que […] e este raciocínio faço com você acaso... porque existe esta leitura ... como se fosse materialista ... funcional ... como se o corpo do homem tivesse que ejacular, não? o que em abstrato é verdadeiro, mas tanto quanto aquele da mulher, no sentido do ponto de vista do prazer ... mas é tudo aquilo que gira entorno que faz ... isto é estes aqui ficavam com raiva não porque como dizer não conseguiam ter um orgasmo com uma mulher ... talvez também mas ... por tudo que girava ao redor por ... isto é pela porta batida na cara, pelo azar, do azar, do azar que sentiam na pele, entende? [Adriano; 42 anos; heterossexual] Depois das primeiras experiências o contato com o mercado do sexo alguns entrevistados dizem ter mantido uma certa regularidade de compra, enquanto outros tendem a sublinhar o próprio perfil de cliente “ocasional”. Independentemente da frequência com a qual os entrevistados declaram de usufruir do sexo pago, uma tendência comum foi aquela de relatar as próprias experiências de compra de relações sexuais como se tratasse de episódios “distantes” de si, ao menos em termos de familiaridade em relação à prática. Para os clientes esporádicos há sempre um “antes” no qual colocar as próprias experiências distanciandoas do presente e um “não mais”para delinear a escolha de não usufruir ulteriormente do sexo pago. Bem então ... agora são anos que não pago mais porque trabalho tanto sozinho ... as saídas são muito raras. [Gennaro; 38 anos; heterossexual] De qualquer forma não comprei sexo muitas vezes, não é uma coisa que eu goste, que eu tenha gostado muito.. gosto porque, o que eu gosto de fazer com as mulheres .. antes de tudo, gosto de dar prazer à mulher, de consequência ali sei já que ... e depois tantas coisas que gosto de fazer como uma mulher geralmente ali com elas [as sex workers] não pode fazer ... sou um enjoado então na casa de uma já fico com nojo ... me meter na cama dela... visto que já estiveram outros homens … [Luigi; 39 anos; heterossexual] A um certo ponto “parei”, como se diz com as drogas, por outro lado podemos ver que existem alguns aspectos de dependência. Não era pesado para mim, naquele caso, porque de qualquer forma eu tinha uma namorada bonita, eu fazia tanto amor, então não me passava absolutamente pela cabeça. [Giovanni; 40 anos; heterossexual] Eu disse somente para os amigos mais íntimos, poucos mesmo, só para aqueles com quem compartilhava algumas coisas, mas posso dizer que procurei as prostitutas por muitos anos, porém com pouca frequência! ... quero dizer, não tanto, não sempre... só de vez em quando. [Marco; 44 anos; heterossexual] 155 A tomada de distância não é porém unicamente de caráter temporal, se considerarmos como os entrevistados diferenciam as suas auto-representações enquanto clientes do estereótipo (para a maior parte dos casos, negativo) que estes compartilham em relação aos “outros” clientes. A construção de um “outro” é estratégica como um modo de se diferenciar do próprio perfil, e existem, particularmente, alguns detalhes que servem como critério distintivo. Os “outros” clientes são, por tanto, estigmatizados devido à frequência do uso deste tipo de “serviço”, em uma certa maneira, acostumar a procurar pessoas que trabalham nas ruas ao invés de usar somente o mercado do “no apartamento” (isto é, o que representa em uma hierarquia de valores compartilhados pelos entrevistados, se apresenta em nível superior em comparação ao mercado das ruas), a tendencia em negociar com as sex workers, vitima de exploração ou então a ingenuidade delas, que as fazem confundir serviço a pagamento com relação amorosa Existem pessoas que são extremamente fanáticas, existem pessoas que, na minha opinião, não conseguem nem ter uma ereção.. bebem o dia todo por aí, talvez vão todos os fins de semana atras das putas... não consigo imaginar como podem conseguir fazer alguma coisa naquelas condições, caindo de bêbados, o que você espera que façam à noite? Talvez vão ao night club e gastam um monte de dinheiro mas não conseguem concluir nada. Talvez eles levam a garota para a casa deles, vai saber, ou não. Situações nojentas, é uma coisa que nunca fiz e nunca vou fazer, tipo levar a garota em casa, tem gente que leva, que faz a garota vir na casa, eu não.... eu hein! Que coisa horrível! Mas tem gente que vai sempre à procura.. fora aquelas pessoas que não conseguem mesmo ter um relacionamento e daí estas saídas podem se tornar uma dependência.. é uma coisa que vem juntamente com a bebida, eles bebem e, quando estão meio alegrinhos, eles tem vontade ... daquilo! [Luigi; 39 anos; heterossexual] Como acontece com as garotas que se vendem nas ruas, eu nunca tive vontade de sair com elas porque, muitas vezes, você as via tristes. Então você pensa imediatamente no fato que trepar seja um trabalho errado, e vem na tua cabeça um filme com o mixe, a garota obrigada a se prostituir, é uma situação vulnerável, como nos filmes, sabe.. às vezes eu ia dar um role e encontrava garotas que pareciam tranquilas, então eu também me tranquilizava, embora o pensamento não me deixava em paz... As afro descendentes eram as mais tristes, pobrezinhas. Se soube, depois, que eram todas exploradíssimas, sabe, o trafico das negras... não me lembro, acho que li no jornal. Às vezes escrevem que elas foram praticamente raptadas, ou ameaçadas. Depois disseram que as albanesas estavam na mesma situação, por causa da mafia albanesa e tal, e são aquelas que estão nas ruas, né? E aí eu entendi a tristeza dessa gente e parei. [Marco; 44 anos; heterossexual] Lembro-me que, às vezes, alguns piemonteses que vinham ao centro histórico de Gênova atras das prostitutas, e elas faziam o maior teatrinho, fingindo ciúmes por causa deles, sabe? Eles tinham aquele jeitão meio tímido, caipira.. e elas diziam: “mas você não apareceu mais.. arrumou outra, foi?”... aí eles desconversavam né? Eles pensavam que elas estavam falando serio. Eles acreditavam. [Adriano; 42 anos; heterossexual] Em suma, a nível de escolhas individuais, a habitude de procurar o sexo a pagamento é uma habitude de muitos dos entrevistados, como uma coisa meio proibida, e um aspecto considerado determinante, pode ser aceito somente por ser uma alternativa ocasional às relações da vida “real”, onde é mais tolerada uma ampla margem de discussão da virilidade dos homens envolvidos. Este aspecto provavelmente marca uma mudança de caráter geracional na a população de clientes: o fato de recorrer sempre ao sexo a pagamento passa desde uma condição quase inevitável e necessária para a pratica “em si", da qual se sente vergonha, ainda mais nos casos onde essa praxe resulta em ocasiões de busca de parceiros sexuais. É como se a masculinidade se tornasse cada vez menos uma categoria considerada forte, independentemente de qualquer coisa, e a constatação disso fosse a conquista sexual, contrariamente ao que ocorreu à geração imediatamente antes desta, tal conquista deve ser obtida através da relação e da negociação que seja mais ou menos em pé de igualdade com o parceiro. 156 Sabe… eu era baixinho e gordinho. Tímido Não praticava esportes, estudava numa escola profissionalizante e, às vezes fazia uns bicos, ajudando um amigo do meu pai. Eu tinha alguns amigos, mas não muitos, éramos aqueles tipos chatos que vão pro pub tomar uma. Aos meus amigos eu não falava que às vezes eu saia com as putas, tinha vergonha, era o tipo de coisa de gente azarada, concorda? Eu já não tinha namorada, era como se estivesse escrito na minha cara que se eu não pagasse, não podia trepar ou, como costumavam dizer “ninguém vai dar pra você”... Isso nos primeiros anos […] Enquanto que hoje, com os colegas, casados, às vezes se conversa aqui e ali, com os mais velhos, os casados, aí rola aquele assunto e naquele momento, o azarado não existe. Não é um assunto do qual eu falo diariamente, pelo contrario, falo muito pouco, mas o assunto pode sempre rolar. [Marco; 44 anos; heterossexual] Mas na minha opinião, digamos que se uma pessoa não é casada, ou há qualquer problema em ser vista, acho que não tem sentido procurar uma puta.... falo por mim, porque eu nunca tive problema com as mulheres.. digamos, se eu tivesse problema de achar mulher com certeza eu sairia mais com as putas. [Luigi; 39 anos; heterossexual] …se o meu filho saísse com uma prostituta, eu lhe diria, com essas palavras aqui.... se você saí com uma puta que pegou na rua, com uma coitada que foi raptada de sua família... você é um nojento... no sentido que, se ele sai com aquela suíça, com a australiana, com a alemã, etc, essas garotas que ganham montes de dinheiro, tem garota que escolheu mesmo essa vida, mesmo porque, objetivamente, que elas ganham, elas ganham.. então eu digo, “Beleza.. mas você não tem que considerar este ambiente a tua única esfera sexual”, quer dizer, a única coisa que eu lhe diria esse tipo de atitude não deve ser substitutiva, mas sim algo diferente. [Giuliano; 34 anos; heterossexual] Quando porem as opiniões foram expressas, considerando um nível mais abstrato e geral, os entrevistados concordaram em declarar-se à favor da legalização da prostituição, muitas vezes repetindo o discurso nostálgico que... “quando as casas eram fechadas (bordéis), havia também um maior controle, limpeza e respeito – então, tais opiniões são expressas para tentar construir uma representação estilizada – e, consequentemente, moralmente aceitável – da prostituição Eu sou favorável à reabertura dos bordéis. Seria a coisa mais justa, na minha opinião. Tanto, não é que você vai acabar com o problema. Você pode tirá-las das ruas, mas existem os apartamentos... Portanto, vou repetir, este é o trabalho mais antigo do mundo, não é? Nunca vai acabar. A única coisa que se poderia fazer, ao meu ver, é como fizeram com os jogos de azar... antes eram ilegais, por debaixo do pano, né, aí colocaram as 9 maquinas de jogos no tabacchino . Jogo do bicho, por exemplo, sempre existiu, mas não é explicito.. então eu vejo por esse lado. Acho que, a este ponto, deveriam aproveitar a ocasião: você tem o controle das garotas, estão todas legais, com documentos etc, garotas limpas, sem rabo preso com ninguém, como podem ter essas garotas que trabalham nas ruas. [Gennaro; 38 anos; heterossexual] Posso te dizer brincando que é o trabalho mais antigo do mundo. É razoável fazer uma distinção Aos 20 anos você não se questiona sobre o que tem por traz de uma prostituta. Porque você só tem 20 anos. Sabe nada da vida ainda. Você é só um idiota, ainda não tem maturidade suficiente para se perguntar este tipo de coisa, e ir além. Aí você vai, paga um serviço que você acha que te dará muito prazer, mas na verdade, o prazer é bem poco e você nem se questiona. Aí, nos tornamos adultos, e começamos a nos questionar, pelo menos eu me questionava. Se por traz de uma prostituta existe um mundo de exploração, é um dever ético para a mim não alimentar este mundo, entendeu? Se devo sair com uma 9 Loja onde você pode comprar monopólios estatais como cigarros e bilhetes de loteria loteria e muito mais; cujo nome oficial é a revenda de tabaco e sal 157 prostituta que sei que é explorada – e esse é meu modo de pensar agora, com quarenta anos – neste caso, se torna muito imoral se eu o fizer. Esta é a prova de que a pessoa está tao concentrada nela mesma e não se questiona sobre o que rola por traz disso tudo. Porem, onde o fato de se prostituir é um gesto independente, eu não vejo nada de errado. É uma troca, onde na verdade você contratou um serviço, onde um homem – limpo, educado, honesto – há necessidade de ter uma relação sexual e procura uma pessoa que não esteja envolvida com ninguém, e de maneira limpa, educada e honesta, presta um serviço. entendeu? Então eu não acho que haja algo de errado em sair com as prostitutas. [Giovanni; 40 anos; heterossexual] Os pontos de vista dos entrevistados são até que bem parecidos em termos de tendência em estigmatizar as pessoas que praticam o turismo sexual. Na construção do arquétipo do turista sexual estão presentes todas aquelas características que os próprios clientes usam para criticar o comportamento dos “outros” clientes. Em particular, o fato de saber que existem lugares apropriados e discretos para os encontros com as sex workers de ambiente familiar, e outros lugares com o clássico rótulo genérico, “terceiro mundo”, acaba revelando o segredo (da ineficácia) de alguns dispositivos simbólicos que os clientes usam para justificar suas próprias ações Bem então, o turismo sexual eu já vi... já vi até ao vivo e a cores... me lembro quando estive em Cuba, há uns anos atrás, de férias... fui com minha mãe e minha irmã. era um período em que eu tava meio.. em dificuldade mesmo... e então eu fui viajar […] e me lembro da primeira noite quando cheguei no hotel, ainda meio confuso por causa do vão, da viagem, essas coisas todas.. aí eu disse “vou sair tomar uma” .. e eu gosto de beber, sou quase um alcoólatra (risos) e então eu disse “to indo.. vou ali, tomo um rum.... assim me relaxo um pouquinho”...aí cheguei neste lugar, ali tudo eles chamam de Centro Cultural, mas são baladas, basicamente, porque são todos do Estado, então não são Centros Culturais... bom, pra resumir.. to ali tranquilo, nos primeiros 5 minutos, nada, aí depois chega uma menina.. naquela época eu tinha uns vinte e sete anos... e chega esta menininha, devia ter uns dezesseis, dezessete anos.. nos dias de hoje é impossível saber se uma garota tem dezoito ou tem quinze anos... não é? .. todas parecem ser super jovens... e te vem aquela duvida […] fazia uns cinco minutos que eu estava ali, e ela se oferece pra mim por 5 dólares.. me afasto... aí um carinha me pára e me oferece a sua amiga por outros 5 dólares... me afasto novamente... começo a falar com uma garota.. esta era um pouco mais velha que as outras, devia ter seus vinte... depois de 10 palavras que trocamos, ela me vem com uma frase do tipo “você é mais importante que meu pai e minha mãe” … aí eu disse “ boa noite à todos” e fui embora para o hotel... passei a noite toda chorando, e a trocar mensagens com uma minha amiga dizendo “Mas que raio de lugar me trouxeram (risos) onde é que eu vim parar? No país dos horrores?”... porque eu imaginava as piores coisas... claramente, depois de 8 dias que passei lá, e ainda por cima conversando com esses italianos de sessenta anos, aposentados, que vivem ali 8 meses por ano, foi aí que eu entendi que não se trata de um problema cultural do ponto de vista que são atrasados, e então as mulheres praticamente não valem nada, e se você é homem então você tem que pegar na enxada, se você é mulher então você.. quer dizer, você não serve para ajudar a família, então, digamos que, já de cara existe pouquíssima consideração pela mulher porque elas não são entidades produtivas, na opinião da família.. então.. Uma outra coisa, eles não morrem de fome de jeito nenhum.. na verdade o que falta ali é tudo aquilo que faz parte da nossa sociedade ocidental, e isto é, maquiagens, essas bobeirinhas, este tipo de coisa... é triste... precisam é de uma politica correta.. sei lá.. tipo, elas não são exploradas [diretamente] por ninguém... isto é, uma coisa é uma mulher que diz “prefiro trabalhar 8 horas por dia e ganhar mil e quatrocentos euros, numa estrutura onde, em qualquer modo, tenho cobertura sanitária” [como acontece nos locais de encontros com as suíças ou as alemãs ]… e ganhar mil euros em um dia, e trabalhar nisso por uns quinze anos... porque eu acho que mais do que isso elas não podem trabalhar... mas elas ganham quantias tais que até justificaria a coisa... que na verdade é sã sexo... a maior parte das pessoas há relações sexuais com pessoas que elas 158 nem dão a minima, principalmente se tem esse envolvimento sexual... muitas de minhas amigas me contam que saem até com homens que elas não gostam.. acontece.. de repente porque naquele dia estava meio tristes, aí... [Giuliano; 34 anos, heterossexual] Bom.. vamos falar de mundos paralelos: um cidadão de Gênova, burguês, de boa família, casado, com filhos, e que vai praticar o turismo sexual. Pratica o turismo sexual, então ele se fecha em um mundo onde ele pode tudo e mais um pouco, e volta pra casa. Será possível esta atitude não tenha consequências ou repercussões? Quero dizer, é um processo de dissociação.. de repente, este mesmo cidadão é daqueles que coloca videocâmaras por toda a casa, com medo que alguém violente a sua filha de catorze anos...[Leonardo; 38 anos; heterossexual] O fato de se encontrar em países onde as desigualdades de oportunidades entre lideres e subalternos são tão pronunciadas que se tornam auto-evidentes, e segundo a opinião dos entrevistados, o comportamento do turista sexual, excessivamente imprudente é uma coisa substancialmente inaceitável, a ponto de ser considerado – ao menos potencialmente – pior do que o comportamento do turista sexual infantil. Pra mim é um absurdo... é coisa de gente doente ir à esses lugares com um único objetivo.. não sei, talvez porque eu nunca tive problemas com isso.. na minha opinião, nem precisa sair daqui.. um lugar é igual ao outro, não importa onde vai... a menos que você tenha aquela tara especifica de praticar turismo sexual com menininhas que vão pra Tailândia, estes então são doentes mesmo, inseguros, loucos... que talvez tenham problemas em se relacionar com uma mulher aqui, então o único jeito é sair com outras desesperadas lá, jovens, mais desesperadas ainda porque vieram justamente por desespero.. é uma coisa que eu não faria nunca! Não conseguiria jamais... mas não pelo fato de serem jovens, mas pelo fato da questão de se aproveitar de uma pessoa desesperada.. entendeu? É uma coisa que me dá nojo! [Luigi; 39 anos; heterossexual] Nós italianos temos um grande registro no que diz respeito ao turismo sexual. E é visível... é interessante como funciona a percepção de um povo... Conheci uma garota de Camboja uns anos atrás, estávamos conversando e eu lhe disse que um tio meu tinha estado ali nos anos cinquenta, e ela, a primeira coisa que me diz é: “e ele gostava de menininhas”? [Leonardo; 38 anos; heterossexual] Neste discurso, mesmo a adesão aos estereótipos construídos com base na etnia das sex workers, parece ser menos rigorosas, como se o "jogo" de dar determinadas características de jovialidade, de caráter erótico ou de apaziguamento, funcionasse plenamente, se apenas fossem reformuladas as áreas onde o / a profissional do sexo é representado principalmente como um migrante. Por um lado, essa coisa do turismo sexual me deixa curioso.. como eu gosto muito de viajar... gostaria muito de conhecer o Brasil e outros lugares da América do Sul... gostaria de conhecer os lugares mesmo... porém, podemos sempre unir o útil ao agradável, sei lá... pra experimentar coisas novas […] ali, com certeza, existem coisas diferentes... pelo que eu ouvi falar... primeira coisa é o custo... a gentileza... a gentileza que quero dizer é.. o jeito que essas garotas tem de chegar em você... eles dizem (os amigos que praticam o turismo sexual) que ali é como se você tivesse uma “namorada”.. então, mas você sabe, né... o motivo é fácil de entender: elas tem fome.. e então.. estão com você porque você paga a comida pra elas [Manuel; 44 anos; heterossexual] Que eu saiba, eles agora estão indo... bem, agora vão pra Ucraína, em lugares assim.. ou então vão pra Tailândia.. tenho amigos que iam até duas vezes no ano... iam só pra isso... eram dois solteirões... dois agentes alfandegários que viajavam sempre […] depois, tem lugares tipo Cuba... países assim pobres, onde tem gente que arranja namorada à distancia e continua namorando... dementes que pagam as contas daqui (risos), recarga 159 telefônica, mandam dinheiro... caramba... e aí, cada um saía com uma e depois trocavam entre eles... estes são os desesperados, pessoas que se comportam assim nunca vão achar uma mulher, entende? E se você os vir, são pessoas que parecem não ter problemas, no entanto, se vê que, psicologicamente eles têm sim […] Além disso, eu conheço um cara... um homem normal fisicamente, mas que sofreu o pão que o diabo amassou com essa mulher.. ela o deixava louco, pedia dinheiro para o passaporte, pra poder vir pra cá, aí gastava todo o dinheiro e não vinha... no fim das contas, ele deu a ela rios de dinheiro e ela nem veio... e quando ele fez ela vir, era uma chata de galocha (risos)... era cubana, mais jovem, mas era feia pra caramba […] Um homem que sai com uma prostituta é algo mais normal... porque, imagina, você.. você vai lá pra fazer o papel do namoradinho enquanto está lá... não vão ali, pagam e basta, eles meio que alugam uma garota... essas garotas grudam em você logo quando você chega lá, e vêm que você tem grana.. alguns nem pagam as garotas, no sentido que, levam elas pra jantar, elas dormem no hotel com eles, mas elas vão porque estão desesperadas... é uma coisa muito mesquinha, a mim não daria nenhuma satisfação [Luigi; 39 anos; heterossexual] 3.5. A remoção do desejo feminino e da "deslegitimação" da masculinidade hegemônica As ideias apresentadas nas paginas anteriores têm a ver, diretamente, com as experiências e os pontos de vista que se têm em relação ao mercado do sexo. Porém, quando pensamos em termos de continuidade (do imaginário, do status, das práticas, etc.) entre clientes e não-clientes, é igualmente importante explorar o que os entrevistados tem a dizer sobre o mundo feminino, pois é também com relação a estas representações que a compra do sexo é dotada de significado por seus protagonistas. De boa parte das estorias contadas, vem à tona, já de cara, a crença de que a distancia entre a sexualidade feminina e masculina levaria a expectativas diferentes em relação ao sexo, tanto em termos de desejo quanto em termos da escolha do parceiro. Segundo estes pontos de vista, a sexualidade masculina haveria uma conotação puramente hormonal e, consequentemente, levariam a uma atitude orientada à procura de uma certa quantidade de parceiros e encontros, enquanto que a sexualidade feminina teria, antes de mais nada, “menos” urgência, do ponto de vista fisiológico e, no que diz respeito à escolha do parceiro, existem outras coisas envolvidas, que vão além da questão da atracão física. Eu consigo compreender essas duas sexualidades diferentes... mentalmente... ou seja, o homem é mais apto a provar múltiplas experiencias das próprias necessidades instintivas, porém, de algum modo, ele foi feito pra conseguir se defender também destas relações... no sentido psicológico, é mais sob esse ponto de vista aí... menos passional talvez... enquanto que a mulher, objetivamente, se distingue, porque elas precisam do parceiro, do companheiro.... essencialmente porque querem ter filhos... ou seja, um laço... não é como um homem que pode lá dar a sua trepadinha e depois cair fora […] Eu sou um verdadeiro machista [risos] …bem, vamos pegar eu de exemplo... antes, devo dizer que eu nunca entendi as mulheres... sei lá, porque falam uma coisa e depois fazem totalmente o contrário daquilo que falam, ou seja, você nunca consegue entender... às vezes passam por situações com uma calma que, sinceramente, te surpreende, e você diz, “ eu já estaria todo perdido”.. outras vezes elas vivem mal situações que, na verdade, são super normais, ou seja, depende muito do dia […] e depois, uma é totalmente diferente da outra, então... enquanto nós, bem ou mal, somos guiados por 4 ou 5 estímulos que, em qualquer modo, nos simplificam, mesmo porque, temos a tendencia maior de viver em grupos, enquanto que, com as mulheres, o grupo em questão é o núcleo familiar, então.. a companhia de amigos, normalmente, são os homens que tem, porque temos esse instinto da dependência... provavelmente vem do fato que tínhamos que caçar antigamente, e então, para ter êxito na caça, era necessário andar em grupo, porque éramos mais fracos e sem os instrumentos necessários à sobrevivência... nós homens somos mais simples, é isso, e as mulheres, eu as vejo mais complicadas... [Giuliano; 34 anos; heterossexual] 160 E’ como quando vejo uma mulher bêbada. Se você pensar, é normal: como pode acontecer comigo, pode acontecer também com uma mulher. Mas se você pensar nas baladas que, por acaso rolou de estar em companhia de mulheres bêbadas, talvez até passando mal mesmo, elas fazem uma zona... me incomoda, é como se elas perdessem a feminilidade, quando exageram, me incomoda muito. Mas também se pensar em um homem, um amigo, quando já bebeu todas, me incomoda do mesmo jeito, então, talvez depende da pessoa que está bêbada e do quanto ela bebeu... caramba, se eu penso ao quanto me incomodava quando um de nós bebia todas e aprontava!! As vezes tinha que dirigir, nem te falo, mesmo que fosse amigo, homem, me incomodava muito.. então talvez não tenha muito a ver se si trata de homem ou mulher neste caso, mas acho que em relação ao sexo, fica mais difícil, não é?!? [Marco; 44 anos; heterossexual] Talvez fosse uma necessidade, fisiológica (sair com prostitutas), uma fraqueza. Talvez eu tenha citado a fraqueza porque meio que faz parte do pacote todo.. hoje eu falo “fraqueza”, mas na época eu não enxergava dessa maneira. O que me estimulava era a necessidade, namorada, ora tinha, ora não, mas aquela ideia de já ter feito e de saber o quanto é bom, o quanto é engraçado ter ejaculações, daí, você sente mais essa necessidade. Quando você começa a sua vida sexual, ou seja, a fazer sexo, dependendo da pessoa, torna-se uma necessidade. [Giovanni; 40 anos; heterossexual] Muito interessante também, neste sentido, é a estória que um dos entrevistados conta, de um encontro ocasional entre ele e uma mulher desconhecida: o fato de que esta mulher, “Particularmente significativo neste sentido, é a estória que um entrevistado conta sobre o seu encontro casual com uma mulher desconhecida: o fato de que esta mulher, "apropriando-se" do papel do "predador masculino" – portanto, aproveitando a ocasião para satisfazer seu desejo sexual, minimizando os componentes relacionais – foi explicitamente desaprovado por parte do entrevistado. Por mais que o entrevistado tenha contado esta estória com um certo grau de ironia no que diz respeito à experiencia que teve, é bastante evidente essa vontade de enfatizar a sua distância desta mulher que conheceu e que, nesta estória, transgride diferentes expectativas de papéis, dando vida a uma reflexão sobre essa categoria, sob o ponto de vista do entrevistado. Veja, quando decidi trocar duas palavrinhas com o psicologo e enfrentar alguns aspectos de uma vida que, naquele momento, não ia bem, por culpa de uma coisa que me deixou muito impressionado, que aconteceu em Roma.. entrei num barzinho, com meu olho clinico, já saquei quem era a ninfomaníaca de plantão. meu modo brincalhão de chamálas, talvez com um quê de machismo... dá pra reconhecer porque dá pra ver as rendinhas da calcinha, de tão curta que é a saia, e fica sempre do lado esquerdo do balcão. é aquela que te diz, “oi” mas fica só com cinquenta por cento do trabalho. Fui pra cama uma vez, sexo incrivelmente violento, que me fez mudar o meu ponto de vista em relação às mulheres. Não é que eu tenha uma visão das mulheres, como Dante tem de sua Beatriz, mas tenho uma visão incrível a respeito delas: o mundo das mulheres é um mundo que me agrada muito... porém já sofri uma violência e uma vingança.. que me assustaram muito. Bom, o problema não é entender o que ela sentiu, mas o que eu senti. Desculpe, mas tento me defender um pouco (risos). E na manhã seguinte, acordei naquela casa, e me perguntei “poxa, como pude chegar a isso?”. Non teve nem aquela coisa gostosa do encontro.. sempre gostei de encontros casuais, é isso. E esta situação me assustou de um jeito que quando voltei pra minha cidade, fui diretamente à um psicologo (risos). [Leonardo; 38 anos; heterossexual] 161 Após essas premissas, a ideia de imaginar uma mulher no papel de cliente que procura sexo a pagamento, passou pela cabeça da maioria dos entrevistados como uma provocação divertida, porém totalmente fora da realidade. Nas viagens que fiz pela internet, vi que tem um lugar em Las Vegas, tipo um puteiro enorme (para clientes mulheres) e praticamente diziam que, no ano passado ou neste ano mesmo, queriam refazer esse tipo de oferta, obviamente respeitando os tempos femininos... então.. tipo, umas duas horas de conversa.. pelo que dizia o jornalista, […] mas é uma coisa que nunca funcionou.... isto é, a mulher não vive esta coisa do sexo como nós homens a vivemos. [Giuliano; 34 anos; heterossexual] Pra mim a ideia é muito estranha (de uma mulher comprar sexo), porque, de maneira geral, pra uma mulher é mais fácil fazer sexo com um homem, independentemente se é bonita ou feia.. ela acha um homem... talvez não um modelo de homem, mas... já para um homem é mais difícil achar uma mulher. A menos que seja um homem bonito, ou então famoso... e aí, se for famoso, tem dinheiro... e então não é um mero mortal.. [Manuel; 44 anos; heterossexual] Eu já me convenci do fato que as mulheres são um pouco diferentes de nós sob este ponto de vista... talvez porque elas.. não todas, porque tem mulher que é pior que muito homem... mas, no geral.. por exemplo, se fosse a minha ex-mulher a fazer uma coisa do tipo, eu já iria imaginar que ela está psicologicamente envolvida com o rapaz. [Luigi; 39 anos; heterossexual] Neste contexto, então, o sistema de pensamento que se baseia em uma visão hegemônica da masculinidade exerce o seu poder criando uma contradição que permite identificar e, possivelmente, censurar as expressões indesejadas. Por um lado, a dicotomia contraditória do desejo feminino “romântico” x desejo masculino “fisiológico”, determina a condição através da qual é possível justificar a exigência masculina em buscar diferentes parceiras para satisfazer as próprias necessidades fisiológicas, por outro lado as expressões do erotismo feminino “descontrolado” abrem campo às atribuições sobre as “reputações sexuais” negativas. Se por acaso, mesmo cruzando as fronteiras desse assunto meramente erótico, e fazendo referência à dimensão do senso comum, a questão da “cidadania” da feminilidade aparece constantemente na bíblia; vários trechos das entrevistas acenam algo como a discussão sobre argumento e a deslegitimação daquele tradicional papel do homem de família, quando se fala de casal “oficial”. De acordo com essa linha de pensamento, de fato, o âmbito das relações de casais estáveis deveria consistir, na maioria dos casos, em uma série de obrigações e encargos para o componente masculino, em um sistema de expectativa, que não deixaria espaço para momentos de “desligamento” e compartilhamento lúdico e erótico Este último, no entanto, parece ainda mais significativo quando se considera o fato de que a maioria dos entrevistados relataram não ter procurado, na relação mercantilizada, oportunidade de conhecer as práticas sexuais diferentes, porque tais práticas foram já praticadas com a parceira. Portanto, não se trata de uma comparação entre costumes sexuais repressivos e desinibidos, normalmente transmitido pela dicotomia “amor sagrado x amor profano”, mas sim daqueles momentos de buscar uma fuga da vida de casal, onde o conflito ainda está à espreita. Normalmente, a qualidade destas saidinhas aumentam com a diminuição da parcela de comprometimento e envolvimento que o encontro pode ter, razão pela qual se opta por esse tipo de relação, ao invés de uma aventura extraconjugal que não seja a pagamento. Se uma pessoa tem a necessidade de dar vazão aos hormônios, com uma outra pessoa que não é sua mulher, na minha opinião, faz muito bem, porque se não, se não existissem 162 as putas, ia procurar uma mulher normal por aí que.. de repente se envolve, eles sabem do risco, sabem que podem se comprometer, e depois, os homens não são todos iguais. Tem aqueles que pensam que, se sair com uma prostituta, vai estar traindo a sua mulher, e tem aqueles que não pensam assim, entendeu? Não é traição, porém, sob o ponto de vista da mulher, é. [Luigi; 39 anos; heterossexual] Voltando aos casados.. talvez seja porque quem é casado não tem que provar nada a ninguém... Quer dizer, não tem mais que mostrar que ele pode catar uma mina, pelo contrario, se diz que “quem sai com puta é porque..”, é porque gosta da fruta, não é porque o cara é casado, que vai deixar de gostar da fruta, porém, se é casado, não pode aprontar, arrumar amante, etc.. tem que ter tempo, dinheiro, compromisso, sair contando mentiras... Em vez, se você sair com uma puta de vez em quando, você elimina tudo isso, e satisfaz o teu desejo. [Giovanni; 40 anos; heterossexual] Alguns entrevistados falam, particularmente, de um mundo feminino “perigoso” e povoado por “sereias” prontas para atrair o mais ingenuo dos homens, para satisfazer seus próprios desejos (como vimos, quase sempre tem mais a ver com questões econômicas, e não eróticas). Juntamente a este assunto, existe mais uma inversão na construção de esteriótipos sobre as prostitutas: nesta lógica, o trabalho da sex worker é estetizado como uma figura ideal de pureza, honestidade e transparência, para contrastar com as “outras”, portanto, mulheres que encondem suas próprias intenções, com as quais é necessário negociar a sua própria autoridade masculina. Depois da experiencia que tive com minha mulher (que o traiu) e nos separamos... eu acho mais... mais honesta uma que trabalha com isso (trabalha como sex worker). Muitas porque precisam, outras porque estão em casa e fazem porque estão a fim, entende? De qualquer forma, é uma fonte significativa de renda, e depois, falando sério, se já tem o aspecto econômico, e a pessoa faz independentemente disso, só dá e não pede nada, e consequentemente não tem nenhum respeito.. eu acho que pessoas assim, tipo uma esposa que volta pra casa e finge que nada aconteceu - e olha que existe gente assim! - do mesmo jeito que a gente faz, elas fazem também; então, eu respeito mais uma pessoa que faz isso como trabalho mesmo, porque, de qualquer maneira, é um trabalho; passei por situações na minha vida que também tive que me virar de algum modo... mas, vou te dizer, melhor isso do que ter uma esposa em casa que, chegou da rua, te preparou a janta e tal, enquanto que, de tarde, saiu com outros, então... [Gennaro; 38 anos; heterossexual] Neste contexto, a oferta do sexo a pagamento assume características de um “serviço social subsidiário”, funcionando como uma válvula de escape, considerada necessária para a manutenção das relações “oficiais” Se puder citar um exemplo, tenho um primo que mandou a família pelos ares porque começou a trair a mulher, de maneira tao baixa, que uma puta é mais digna. Isto é, a prostituta é uma trabalhadora, trabalha pra cara***. Uma volta uma me disse, “se encontro um homem como você, limpo, decente, com quem posso bater um papo, o meu trabalho se torna menos infame”. Quando o meu primo era em super crise com a esposa, e tudo girava em torno da falta de sexo, ele dizia “eu sei que se eu a trair, vou mandar pelos ares a nossa família” e eu, meio rindo, meio sério, lhe disse “A este proposito, as prostitutas oferecem um excelente serviço, porque me diz que, fisicamente, você tem uma grande carga sexual inibida, que te deixa agressivo, e pra essa finalidade, elas são uma ótima alternativa social... mas ele, em vez disso, mandou pelos ares a família, com uma pessoa que sempre traiu seus homens, aprontava todas, então.. [Giovanni; 40 anos; heterossexual] 163 3.6. As conversas do “Fórum da Gostosona” como palco da masculinidade hegemônica Esta parte da pesquisa usa como material de analise, as conversas registradas no “fórum da gostosona” (FG), um fórum online que tem como tema a prostituição e é utilizado a nível nacional. Este fórum é dividido em diversas categorias temáticas e geográficas e, no geral, funciona como um agregador de opiniões em relação ao desempenho e aos serviços oferecidos pela sex worker. Do ponto de vista metodológico, o material proveniente do fórum pode ser somado ao quadro de informações secundárias, aquelas que não foram obtidas no âmbito da pesquisa em curso; este aspecto implica no fato de não ter nenhuma possibilidade de controlar e verificar os processos de construção de tais informações que, no entanto, podem ser consideradas significativas para as ideias propostas neste trabalho. Vários fatores se combinam para tornar essas conversas online, de uma certa maneira, “representativas”, em comparação à alguns sentimentos que, em modo menos explicito, circulam pelo senso comum. Especificamente, o fato de poder se expressar usando o próprio avatar (imagem escolhida para simbolizar o próprio perfil de usuário em comunidades online) – portando, possivelmente omitindo alguns aspectos de sua identidade offline – e um forte senso comunitário e de compartilhamento que (como veremos adiante) une os membros do fórum, criando condições para que os usuários possam construir, neste site, o próprio perfil de consumidor do sexo a pagamento, exagerando propositadamente nas características de alguns aspectos, e censurando, quando retém necessário, as informações que poderiam “comprometer” a maneira que escolheu de se apresentar. Se o objetivo principal desta pesquisa é o de pensar sobre a representação da masculinidade e de como se apresenta nos “palcos” das relações sexuais a pagamento, então o material obtido do “fórum da gostosona” é significativo, como uma narração espontanea e coerente, quando comparado a alguns condicionamentos culturais específicos Na verdade, lendo os posts do fórum, nota-se uma certa analogia ao temas recorrentes, nas palavras das pessoas entrevistadas nesta pesquisa, mas o arquivo onde estes temas foram apresentados é, definitivamente, muito mais rico de referencias explicitas, espetaculização. O fórum possui uma atividade constante e desafiadora, a cada dia, novos posts, em março de 2014, o numero de usuários registrados era superior a oitenta e três mil, e um numero de posts que chega quase a novecentos mil. O enorme volume das conversas dá uma ideia imediata, independentemente do fato que os usuários poderiam inventar boa parte das estorias compartilhadas. De fato, sob alguns aspectos, as narrações onde o componente imaginário é utilizado por varias vezes, podem ser consideradas ainda mais relevantes, porque representam as tentativas de adesão “perfeita” ao esteriótipo que os usuários do fórum consideram relevantes. Neste sentido, portanto, o fórum representa um “amplificador” que, mesmo distorcendo, consegue reproduzir um “barulhinho de fundo” que circula nos discursos públicos e privados, permitindo novas reflexões sobre o quadro cultural que evidencia o perfil dos vários clientes, assíduos, esporádicos, ocasionais e potenciais. Um dos aspectos imediatamente evidentes quando você se entra no fórum, é a ocorrência constante de posts que tratam de aspectos regulamentares, tanto em termos de etiqueta “dentro” da comunidade do fórum, por questões comportamentais e relativas aos momentos de encontro com a sex worker. Os dois exemplos a seguir 164 mostram dois tipos de post: um aviso em relação aos códigos internos de conduta e um manual de boas praticas, recomendado aos clientes (chamados de “punter” na linguagem do fórum). Apesar dos repetidos avisos da administração e dos supervisores, parte dos punter são falsos, agressivos, com aqueles discursos de sempre, para dizer o minimo, rudes, ofensivos que, em alguns casos podem implicar em difamação de outros usuários do FG, e também difamação e violência domestica contra garotas de programa. Por violência domestica, art. 610 do código penal, se refere a pessoas que ameaçam escrever coisas ofensivas sobre o fórum (não só o FG), ou sobre algumas garotas, se elas fazem / facilitam / pagam os mesmos e, no caso de “obtenção de favores”, criticam, positivamente, o desempenho delas. Pois então, a partir de agora, as coisas vão mudar um pouco... Aqueles que usarem adjetivos, epítetos, estigmatizações ofensivas, ameaçadoras, violentas, contra as garotas de programa e outros membros do FG, serão suspensos por 20 dias e seus posts serão imediatamente cancelados (e se tiver algum tópico sugerido por esta pessoa, todo o tópico será cancelado). No caso de recidiva, a suspensão será de 40 dias e, obviamente, terá todos os seus posts cancelados, como dito anteriormente. Uma terceira vez, implicará na exclusão definitiva do fórum. Ninguém tem o direito de zombar e escrever mensagens que ofendam os supervisores, a pena é de um mês de suspensão, e se repetir, implicará na remoção imediata do fórum O fórum vive graças ao trabalho absolutamente gratuito dessas pessoas, que exercem o trabalho delas de maneira exemplar, aproveito a ocasião para agradecer todos elas pelo ótimo trabalho e grande dedicação Disponibilizam a própria energia, as próprias qualidades, o próprio tempo livre, por amor ao fórum OBRIGADO OBRIGADO OBRIGADO. Nos posts, a partir de hoje, não terá mais espaço para as considerações pessoais e os convites para sair ou não com uma garota de programa, e aquelas clássicas frases encorajantes de sempre “eu voltaria/ não voltaria”, etc. Os punters vão ter que se contentar em contar as experiencias que tiveram, sem excessos de detalhes, sejam bons ou ruins, no que diz respeito ao desempenho da garota de programa que é, e continuará sendo, uma pessoa, um ser humano, que tem seus sentimentos, seus sonhos, suas desilusões, exatamente como todos vocês, punters. Se você então escrever coisas ofensivas e maldosas, será imediatamente cancelado e os supervisores serão avisados (receberá uma advertência), serão verificados e controlados todos os membros e, serão imediatamente exclusos aqueles que possuem mais de um nickname, e aqueles suspeitos de escrever em nome do próprio anunciante publicitário do site onde trabalha. Em relação às garotas de programa, confirmo que é absolutamente proibido escrever, nos tópicos dedicados a elas, qualquer coisa em relação a modalidade, tempo e qualidade do desempenho delas, a pena é a exclusão imediata do fórum [post do “fórum da gostosona”] As 20 regras de ouro do putanheiro – inédito no “fórum da gostosona”: 1) Se você não tem experiencia, peça conselhos a seus amigos e conhecidos ou procura informação na internet sobre os tipos de garota que você pode chegar chegando, e as outras que você deveria manter a distancia. 2) Fique longe da estação e das prostitutas que trabalham por ali, vai encontrar só lixo, e em algumas cidades (Prato é uma delas) existe o risco concreto de ter que pagar 400 euros de multa só porque você parou pra conversar (mesmo a pé, por exemplo, para perguntar o preço ou fazer um elogio), e também de voltar pra casa de táxi, porque levaram seu carro (no caso de você estar de carro e parar). 3) Fique longe dos travestis, estão sempre bêbados e drogados. Muitas vezes praticam extorsão, furtos e roubos. 4) Seja sempre limpo, gentil e educado. 5) Combine o valor ANTES pelo tempo e os serviços desejados, se algo não está claro pra você, pergunte para não haver surpresas. 6) Se você é um cliente novo, no primeiro encontro, contente-se com o tratamento padrão, quando você for um cliente mais conhecido, o tratamento vai melhorar, e você vai continuar pagando como antes, ou terá até um desconto. 7) Quando estiver em companhia de uma senhorita, não discuta com ninguém, muito menos com ela. Discutir, nestas situações, pode colocar em risco a tua segurança e a tua privacidade. 8) Leve contigo somente notas de 10 e 20 euros, elas nunca tem troco. Prepare o dinheiro antes, e 165 esconde a carteira no painel. Esconda também os óculos de sol, celular, chaves, e outros objetos que são visados e podem ser roubados pelo valor que eles tem ou simplesmente pra te fazer um despeito. 9) Não diga em momento algum que você é rico, non mostre dinheiro ou objetos de valor, inclusive o celular. Se você tem um carro caro, diga sempre que é emprestado ou que é do chefe da empresa onde você trabalha. 10) Prefira as noites chuvosas que as noites de tempo bom. Geralmente, em noites assim, a visibilidade é reduzida e a policia não desce do carro pra controlar um putanheiro. A noite ideal para ter o campo livre de todo mundo, é durante as grandes partidas de futebol, como as nacionais. 11) Prefira sempre uma puta que você sempre vê subir e descer de carros, ou então aquelas onde os clientes estacionam os carros para esperá-las 12) Não sair com prostitutas que você vê que estão sempre livres e sem clientes. Se ninguém quer, deve ter um motivo, e eu te aconselho a não descobrir. 13) Não fique bêbado e não use drogas antes de sair com uma p.. Tem certas situações que requerem tua atenção, então você tem que estar lucido pra que não te passem a perna, ou mesmo para reagir de fronte a uma situação de perigo. 14) Se você está mesmo a fim de sair com uma p.. nova, tenha em mente que você pode estar jogando dinheiro fora, ou que você vai se divertir, em todos os casos, é um mistério e uma surpresa. No caso de uma situação não satisfatória, tenha um pouco de dinheiro de reserva para sair com uma puta de tua confiança, para remediar a noitada. 15) Não se torne motorista particular de uma puta, não vá buscá-la para levar ao trabalho, ou levá-la a casa. Podem te denunciar por favorecimento à prostituição Ninguém te proíbe de sair com ela, mas fora do trabalho dela. 16) Se estiver de carro, estacione de modo tal que você possa sair em caso de problemas, tenha cuidado com lama e as valas na beira da estrada. Se não conhece o lugar onde ela está te levando, vá com cuidado para não danificar os pneus e não ficar atolado, assegure-se de que não tem ninguém a te esperar. 17) Não deixe a garota usar o teu celular, ela pode ligar para criminosos, traficantes, cafetões e companhia com o teu numero. E mesmo se você esconder o identificador de chamadas, os telefonemas permanecem nos registros telefônicos 18) Apague o registro de chamadas, se você ligou pra ela, controla a tua carteira e o seu conteúdo, celular, enfim, o carro todo. Controle também debaixo dos tapetes, dos assentos, e nos consoles laterais da porta. Limpe o tapete dos resquícios de lama. A garota pode ter deixado no teu carro elementos inequivocáveis, tipo a embalagem da camisinha, a própria camisinha, lencinhos de papel e/ou outras coisas. Controle também o banco do carro e o encosto de cabeça, pode ter ficado algum cabelo. Limpe o painel de eventuais vestígios oleosos da camisinha. 19) Se fizer amizade com a prostituta, separe sempre a sua vida privada do seu trabalho. Trate-a como uma tua boa amiga, que faz um trabalho qualquer. Mas não se meta na sua vida, mesmo que tenha as melhores intenções. Você pode acabar entrando no jogo dela, e se dar mal. 20) Lembre-se que sair com uma puta é como ir ao parque de diversões, quando o dinheiro acaba, acaba também a diversão. Então, divirta-se e non gaste tudo o que tem, porque ninguém vai te dar credito, se souberem onde é que está sendo investido. [post Fórum da Gostosona] A intenção de colocar tais regras, parece responder a varias exigências e, enquanto alguma destas têm caráter pragmático de gestão de um grande numero de posts e usuários que participam do fórum, os códigos de conduta contribuem para a construção do perfil do cliente ideal. A enfase do uso de “boas maneiras” nas relações com as sex workers, assim como o respeito e a consideração das necessidades das profissionais, funciona como uma forma de proteção com relação às restrições morais que filtram, até nas malhas de uma comunidade tão coesa. Neste fórum, é realmente muito forte intenção de manter uma identidade comunitária especifica e diferente do "resto do mundo". A primeira demonstração importante disto é o uso extensivo de um código lingüístico que, na verdade, substitui todos os referimentos às praticas e aos componentes sexuais, e também traduz os aspectos relativos à dimensão econômica do dinheiro no comércio do sexo. O uso desta linguagem há, obviamente, uma função pratica de evasão de possíveis filtros e da indexação pela web, de referencias sexuais 166 explicitas, mas, acima de tudo, é um componente fundamental de uma comunidade que, através de uma linguagem comum e esotérica, reforça os próprios laços internos, e compartilha o objetivo “narrativo”, adoçando e embelezando as relações entre clientes e sex workers. Agency = Agencia = A acompanhante se apoia a uma agencia Anal = Sexo Anal= A acompanhante doa seu magnifico traseiro BJ = Blowjob = Boquete BBJ = Bareback Blowjob = Boquete descoberto (sem luva) Bondage = Jogos sadomasoquistas CID = Cum In Deep = Gozar dentro (raro) CIF = Cum In Face = vide COF CIM = Cum In Mouth = Gozada na boca COB = Cum On Body = Gozada no corpo COF = Cum On Face = Gozada na cara Couples = Casais Covered = Covered blowjob = Boquete protegido (com luva) DATY = Dinner At The Y = chupar buceta Deep throat = Garganta profunda (coloca o passarinho todo na boca, até o fim) Doggie (style) = Sex from behind = De quatro DP= Double Penetration= Penetração dupla, a garota é penetrada pela frente e por trás, contemporaneamente Extra = Taxa suplementar por desempenho opcional Facial = vide COF Fetiche = Salto alto e tudo mais Fisting = Enfiar a mão inteira no primeiro canal (comumente conhecido como buceta) French kiss (FK) = Kissing with tongue = Beijo de lingua Full-Service = A acompanhante faz de tudo, e o faz muito bem. GFE = Girl Friend Experience = Transa intima, como se fosse com a própria namorada. HJ = Handjob = trabalho de mão = punheta, masturbação Incall = A garota atende no seu apartamento Independent = Independente = A acompanhante trabalha por conta, sem ajuda de agencias Lesbo show = Joguinhos lésbicos entre as garotas Missionary (style) = Missionário (posição canônica) O-Level = Oral sex = Sexo oral Outcall = Escort visits you = A acompanhante vem até você Overnight = Dormir com a acompanhante OWO = Oral Without = vide BBJ Petting = Preliminares Pissing = Chuva de ouro (FAZER XIXI NA PESSOA) PSE = Porn Star Experience = Experiencia como/com uma porno star Punter = Escort amateur = Acompanhante amadora Rai1 =Lado A= buceta Rai2= Lado B= cu Rate = Preço/Presentinho (€ £ $) Rose = Preço Rimming = Anilingus = Brincar com a língua do anus Sado-Maso= Jogos de dominação: amarrar, pisar, dar e receber dores “prazerosas” SBB = Sex Between Breasts = pau no meio das tetas (espanhola) Services = Os serviços oferecidos pela acompanhante Sex toys = Vibradores, pinto de borracha, bolinhas, etc. S/M = vide Bondage Squirting = Jorro/Jato = Ejaculação feminina (de seus líquidos) 69 = A acompanhante faz um boquete enquanto se deixa chupar a buceta Straight sex =Intercourse = Fazer sexo (transar) 167 Strip-tease = A acompanhante tira a roupa pra você Swallows = Engole o esperma Touching = Tocar-se, acariciar-se Tour = A acompanhante vai a uma cidade diferente, gira um pouco. Vibro show = Jogos com Sex toys (Vibradores e tudo mais) VU= velocidade urbana = 50 km/h = 50 Euros [post Fórum da Gostosona] Uma vez definidas, ainda que de forma muito breve, as regras da comunidade do fórum, o grupo de clientes que decidir compartilhar comentários e opiniões de seus encontros com as garotas, se analisarmos as conversas, nos faz pensar sobre alguns aspectos de particular interesse para este trabalho. Em primeiro lugar, de forma muito acentuada – mesmo comparando com as entrevistas coletadas – existe essa tendencia de enfeitar as condições de vida e de trabalho das prostitutas. As sex workers são também chamadas de “garotas de programa” ou “acompanhantes”, com claro referimento às dimensões do auto empreendedorismo e da liberdade de escolha. No geral, a questão da exploração é tratada de forma ambígua, considerando que, no fórum tem sempre apelos à denuncia de toda e qualquer situação de exploração (mesmo potencial) observada pelos clientes que, porém, concordam com a subestimação do fenômeno, e então, a leitura sobre este tema se torna decididamente parcial. Na Itália, a prostituição não é crime, e em 97% dos casos, é uma liberdade de escolha da mulher. Somente 20% (de acordo com outros dados, até 10%) das pessoas que se prostituem, são vitimas (normalmente estrangeiras, se trata de mulheres que são trazidas pra Itália com a ilusão de um emprego digno).[post Fórum da Gostosona] Fico contente que somente uma minima parte seja obrigada a se prostituir... Espero que algum dia, todas as mulheres tenham liberdade de escolha... Uma flor à todas as Nossas Amigas [post Fórum da Gostosona] Vender o próprio corpo tem suas vantagens em comparação ao trabalho dependente: - Ninguém pode te mandar embora - Mesmo que você tenha que pagar o ponto na rua, ou o apartamento, o resto dos ganhos são teus e você administra como quer - Não precisa pagar impostos - Aceita dinheiro e não precisa fazer fiado aos clientes - Você pode declarar às autoridades fiscais que não tem dinheiro (mas corre o risco de ser descoberta) - Tem o poder de "manter sob controle", a nível psicológico, os clientes - Você pode fazer extorsão e chantagem com alto risco de sucesso e imunidade - Este setor é forte!!! (No sentido que está sempre em aumento, não é?..) [post Fórum da Gostosona] Depois a gente reclama da taxa de desemprego, quando faltam enfermeiras, por exemplo. Porque não tente oferecer uma OTR/Acompanhante como enfermeira pro teu avô.. imagina o que eles responderiam!! [post Fórum da Gostosona] Mesmo os aspectos relacionados às transações econômicas são retirados, a sigla VU (“Velocidade Urbana”) corresponde ao valor de 50 euros, e as metáforas que se referem aos presentinhos (“flores”, “rosas”, etc), são utilizadas para disfarçar simbolicamente a aquisição do serviço. Neste contexto, as razões pelas quais trabalham as sex workers, são muitas vezes carregadas de significados 168 complementares àquele puramente econômico: em particular modo, as descrições de uma sexualidade insaciável como método de avaliação das garotas em questão Alguns trechos dos comentários do fórum mostram essa tendência: […] Ligo pra ela, marco o encontro e chego no lugar combinado. Me faz esperar alguns minutos porque tem outro cliente saindo, a esse ponto, é a minha vez. Me abre a porta, entro... bum... NAO E' ELA, não é a garota da foto.. mas já tinha me preparado pro pior, então passo ao plano B, isto é, visto que não é a garota, saio com essa mesmo, ou não? Olho bem pra ela, de cima em baixo.. acho que rola, então, fiquei. Ela é loira, cabelos compridos, gostosa, curvas redondinhas, e alta 1,65 m. Ela estava sem salto, e com um vestido bem recatado, quase toda coberta. Aí vocês me perguntam, o que foi que me convenceu a ficar com ela? Foi aquela cara de biscate endemoniada, ninfomaníaca, com uma bocona e dois olhos grandes, que me deixavam de pau duro a 10 metros de distancia. Nem tive tempo de tirar a roupa e tomar um banho, que ela já começou um BBJ profundo e salivoso, como se deve. Durante o serviço, a pedido meu, ela começa a cuspir na cabeça do meu pau, e a chupar muito, com aquela boquinha perfeita (ela também tem piercing na língua, e uma pinta muito charmosa, um mix perfeito). Depois de ter me colocado o preservativo, começamos a RAI1 de quatro, poi a missionary (desempenho normal), depois, lhe digo que quero entrar em RAI2, mas ela me diz que naquele momento não vai rolar porque vai doer (disse que eu tenho o pau grande... bahhhhhhh) e poderia até rasgar a camisinha... eu quase comecei a rir, nunca ouvi isso... então tentamos, e depois de ter entrado metade do pau, ela me diz “PÀRA”, nada de RAI2. Então voltamos pra posição “doggie” mais um pouco, daí ela tira a minha camisinha, e continua trabalhando bem com a mão/ boca, deixando bem molhadinho, com cuspe em boca, e o pau que escorrega até o fim daquela boca gostosa, mas sem engolir. [post Fórum da Gostosona] […] posso garantir que a garota é endemoniada, se ela for com a tua cara… [post Fórum da Gostosona] […] a verdadeira M. não existe mais (era endemoniada de verdade... acho que é até um pouco ninfomaníaca). [post Fórum da Gostosona] A possibilidade de objetivação das sex workers é essencialmente ilimitada, no contexto do fórum, e isto permite, entre outros aspectos, uma tendencia ao rotulamento “étnico” das prostitutas Olá a todos os amigos do fabuloso mundo made in China. Hoje tenho como companhia a seguinte gueixa: […] Atitude: infelizmente, não é a especialidade da casa, é bem friinha No entanto, emite alguns gemidos de prazer entre um golpe e outro […] Deixa muito a desejar. Piadinha: quando cheguei ali, senti um fedor de peixe frito, tanto é que estava sem coragem de abrir a porta de entrada. Mas, no geral, o preço, a vontade que eu tava de pegar uma chinesinha, estava disposto a fazer este sacrifício [post Fórum da Gostosona] Olá a todos. Refaço o convite, alguém pode me ajudar a achar uma sul-americana saliente que não seja aquelas putas profissionais de sempre, mas alguma que faz de vez em quando, pra ajudar a pagar as contas no fim do mês. [post Fórum da Gostosona] Alta, magra, corpaço de uma gazela africana, pernas bonitas, seios delicados, traseiro que poderia satisfazer até os gostos mais difíceis, rostinho bonito com lábios que parecem ter sido feitos para fazer feliz os nossos pintinhos. Se deixa tocar, mas me diz para não chupar seus mamilos, mas nem me passava pela cabeça, mesmo porque, a higiene das garotas africanas não é uma coisa que vem em primeiro lugar, BJ bem feito, com camisinha bem fininha, e não aqueles pedaços de borracha chines, buceta quase selvagem, “doggie” e 169 “missionary”. […] Já era hora que as black girls começassem a trabalhar melhor... com o corpo que elas tem, trabalhar mal é até pecado.. Talvez seja uma questão de nacionalidade: as nigerianas são menos educadas que as de Gana... sei lá.. não sou um esperto de cultura africana.. Ou talvez, mais provavelmente, se ligaram que não poderiam continuar desse jeito.. Normalmente, quando uma afrodescendente me pára e insiste, no final eu digo “ não, não saio com africanas”; as que entendem o que eu disse, me perguntam o porquê, e eu respondo “porque vocês trabalham mal”.. sei lá. se elas escutassem isso duas, três, quatro.. 20 vezes, quem sabe começam a entender algumas coisas..[post Fórum da Gostosona] Aproveitando-se de uma forma adicional de espelho útil na encenação dos aspectos desejados da própria masculinidade, essa revisão e elaboração de relatórios de encontros com profissionais do sexo se torna uma oportunidade para sublinhar o seu próprio poder viril, dando origem a narrativas onde o ponto de vista parece prevalecer sobre o desempenho sexual do homem, e não das sex workers. Deste modo, estorias começam a tomar formas que, por causa de sua forte conotação performativa, parecem responder aos questionamentos da masculinidade hegemônica. Em outras palavras, diante de um mundo em constante mudança, e onde o papel do macho é que está em crise, a comunidade do fórum se torna um lugar que “protege” e mantém as representações tradicionais de uma masculinidade que, provavelmente na vida offline, não encontra o reconhecimento desejado. Vou contar pra vocês uma das minhas experiencias com L., depois de ter saído com ela uma dezena de vezes. Trata-se de uma potrancona violenta, algo que inspira putaria. E assim foi. Entro no apartamento, e ela me recebe com um FK que faz levantar qualquer defunto. Me lavo rapidamente, dai eu faço ela ajoelhar pra eu poder apreciar a sua carinha enquanto me chupa. O meu instrumento é grosso, e ela tinha quase dificuldade de mantê-lo em sua boca, mas o buraco é mais em baixo.. Continuo assim por uns dez minutos, daí decido que é chegada a hora de vestir a camisinha e começar a transar com ela. E então, beijando-a, fazemos a mission (missionary), daí eu a viro e, com força, meto minha broca na rai1. Aí chega o momento top: ponto rai2, particularmente estreito, naquele momento ela me olha, como se pedisse pra não fazê-lo, dado o tamanho. Vocês podem imaginar o quanto eu estava excitado: devagarinho vai entrando, e então começo a dar um ritmo. Ela sofre um pouco, mas depois vai se soltando, e agora posso meter sempre mais forte, e mais violentamente. Ela também está excitada e, a este ponto, pra completar a ópera, decido de ir até o fim desta brincadeira de ator pornô: me levanto, tiro a camisinha e a faço ajoelhar e começo a foder na boca dela. Estou quase gozando e, sinto que ela esta pensando que eu vou me descarregar com um CIM mas, no auge, eu seguro a cabeça do meu pinto com a mão esquerda, tiro e encho a sua linda carinha com uma incrível quantidade de “leite”. Aprecio a sua carinha toda branquinha, e com o instrumento ainda em tensão, o esfrego na sua boca, tentando abri-la para ver..se ela vai querer me limpar com a boca. Não, ela decide de não, já fez demais por míseros .. VU. Fomos nos lavar: ela vai pro banho, e na porta, me pergunta: “Quando você vai voltar?” “Caramba”, digo a ela, “ você ainda não está satisfeita?”. Ela faz sinal de “não“, segura nas minhas calças e si passa a língua nos lábios No dia seguinte, voltei pra encontrá-la.. Cara***, que trepada!!!! [post Fórum da Gostosona] Deste modo, os homens hiper- performantes usam estrategias de resistência simbólica para se proteger dos “ataques” que eles acreditam sofrer do mundo exterior; particularmente, os inimigos comuns – aos quais o antagonismo é tradicionalmente usado para fortificar os laços da comunidade – são encontrados no mundo dos 170 “politicamente corretos”, em outros homens que não são clientes (chamados de “ não punter”) e, sobretudo, no mundo feminino, aquele não disponível ao mercado do sexo. Acho que cada um de nós já ouviu esta frase sair varias vezes da boca destes non punter anônimos, que acreditam ser os fodões, dizendo que estão cercado de mulheres (mas ninguém lembra de tê-los visto com uma sequer), e cada vez que o assunto é “encontros mercenários”, fazem questão de deixar claro, segundo o ponto de vista deles, que quem sai com prostituta, é um perdedor. Sabemos que as coisas não são bem assim, que muitos punter (quase todos) são casados, ou tem namorada e tal, que vão à encontros a pagamento também muitos homens que poderiam ter a mulher que quisessem (e sem precisar pagar), tipo jogador de futebol, atores, apresentadores de TV, etc, mas se nos basarmos somente nas declarações da maior parte dos homens, teremos que concluir que, “oficialmente”, quando é a pagamento, ninguém vai. Ou melhor, ninguém fala que vai, mas depois você dá um role pela cidade, e nota que a garota sai do carro de um punter e já entra em outro. Até aqui, nada de excepcional, claro que ninguém coloca cartazes pra dizer que pratica tal hobby. Porém, ao invés de defender um certo ponto de vista, dizendo frases digna de um pseudo homem (que quando são ditas por certas pessoas, é até engraçado), não seria mais inteligente dizer: “não saio com garotas a pagamento porque: não gosto/ não tá a fim/ não me interessa, mas respeito quem pensa diferente de mim”, concorda? Nem.. utopia. [post Fórum da Gostosona] Eu sempre digo.. 90% das gostosas acabam virando putas, 90% das feiosas acabam virando esposas... 90% dos maridos procuram as putas, porque os outros 10% procuram os travecos... é sério isso... é porque vivemos num país de pessoas politicamente corretas, e então “pagar pra sair com mulher” parece uma coisa marginalizada e que menospreza a virilidade. [post Fórum da Gostosona] A construção do próprio perfil, em termos de hiper virilização, representa um fator quase que geral, por como os usuários do fórum da Gostosona participam à comunidade; principalmente se, como vimos, existirem aqueles aspectos relativos à própria performance (com particular referencia ao tamanho do pênis) e à própria potencia sexual a serem narradas, e mesmo a escolha do nickname de inscrição ao site e seu avatar, parecem ter a mesma lógica A escolha, neste contexto, é decididamente ampla – tentam se “vender”: “TeoGato”, “Durão69”, “AmassaBatata”, “Goldman_Sex”, “Garanhão”, “Paulofode” - mas o aspecto mais interessante é a utilização conjunta, ou seja, nick e avatar, com diferentes referimentos explícitos e representações irônicas e quase ingênuas, como se quisessem representar o que são, em um contexto simbólico entre auto-ironia e autopromoção Deste modo, se mantém aberta a possibilidade de exprimir posições e pontos de vista até bem violentos, e utilizando, quando necessário, a justificação para a incompreensão da própria brincadeira de mal gosto. Alguns exemplos de avatar mostram como, no momento da escolha, eles passam de uma imagem de cavalheiros (da távola redonda) e brigantes, a uma situação do tipo com harém e animais que se acasalam, até chegar em imagens onde o domínio masculino é simbolizado através de referimentos explícitos sobre a violência contra as mulheres. 171 Alguns exemplos de avatar do Fórum da Gostosona Dentre todos os aspectos, talvez aquele mais legível “nas entrelinhas” das entrevistas, e que no fórum encontra a sua máxima expressão, é o aspecto relativo ao compartilhamento de esteriótipos relacionados ao mundo feminino. O Fórum da Gostosona é uma fonte muito rica neste sentido, há inúmeros referimentos às segundas intenções, que algumas das “não a pagamento” visam com ganância e cinismo, em um contexto onde a mulher, antagonista, age em diversos níveis de disputa de papeis dominantes homens. A dimensão do cortejo e da sedução, na logica deste contexto, é reinterpretado como a primeira oportunidade para extorquir dinheiro, atenção e favores de homens mais ingênuos, em uma escala que representa o casal estável – principalmente as casadas – como grau máximo de “castração” e desvalorização do super macho. Te digo uma coisa: é mais barato sair com uma garota de programa do que com a namorada. [post Fórum da Gostosona] A mulher que custa menos é aquela que você paga na hora. [post Fórum da Gostosona] A mulher que você não paga, você não sabe o quanto ela te custa! [post Fórum da Gostosona] Eu comecei, ainda casado, em idade relativamente avançada, porque a minha ex mulher não me dava mais! Estava sempre muito ocupada a gastar (o meu dinheiro!) e a fritar o cérebro fazendo meditação e outras besteiras. Daí, depois da separação, eu tava conversando com um amigo, e chegamos a conclusão que ter uma namorada estável é pura utopia, a menos que você decida se transformar num caixa eletrônico, ainda por cima, sem senha!!! [post Fórum da Gostosona] Saio com garotas a pagamento porque, no momento, não encontro uma que não seja, e também porque as que me aparecem, não são assim tão atraentes e então, ou eu fico com uma só pra desafogar, e este lance de “só de vez em quando” acho que elas não aceitariam, ou então vou ter que me contentar de nunca ser fiel a elas. [post Fórum da Gostosona] A razão essencial pela qual eu saio com as garotas de programa, diria que é por causa do meu grande tesão.. sou muito fogoso, e isso me leva a buscar sexo com frequência Se unirmos a tudo isso o meu grande defeito, como já descrito em um outro 3d, ou seja, a preguiça, agora é só resolver a questão. Esta preguiça somada ao fato que, muitas vezes as amantes/ namoradas te dão trabalho e problemas de vários tipos, me levou em todos estes anos, a discar sempre, com mais frequência, o numero de telefone de uma garota de programa do que de uma garota “normal”... mas na verdade, o mais importante é que seja uma boa foda, independentemente se foi obtida com dinheiro ou por outros meios... [post Fórum da Gostosona] As mulheres, todas as mulheres, custam! Custam dinheiro, custam tempo, custam o sentimento.... custam! Existe somente um valor a ser considerado, a dignidade... esta deve ser bem mantida, o dinheiro gira.. vai e vem, não especulo sobre números que, no fim das contas, não fazem mudar a vida .. mas com dinheiro você garante um minimo de distanciamento... O tempo não volta, mas em certos jogos, se você quiser jogar, tem que se empenhar. Os sentimentos são o lado perigoso, devem ser sentidos para haver 172 satisfação, porém controlados para proteger a dignidade. É um jogo perigoso, mas o que é a vida se não um jogo? [post Fórum da Gostosona] 3.7. Conclusões Este relatório foi construído, procurando manter uma orientação principal: abandonou propositadamente a “busca da verdade”, no que diz respeito às praticas e habitudes dos clientes, para concentrar-se em suas “performances”. Conhecer a gramatica através da qual, os clientes contam suas aventuras – seja diretamente, nas entrevistas, seja de maneira “anonima” e “amplificada”, nos posts do fórum – nos permite pensar sobre quais são os aspectos que, mais do que outros, são considerados cruciais em representar um certo tipo de masculinidade, que em várias fases deste trabalho foi definida como masculinidade “hegemônica” (Connell e Messerschmidt, 2005). Alguns condicionamentos culturais parecem de fato envolver, de forma transversal, tipos de pessoas até muito diferentes do ponto de vista de sua classe ou status social. O grupo de homens entrevistados, por exemplo, se caracterizou pela sua heterogeneidade em termos de status: foram entrevistadas pessoas de diferentes idades, com nível de escolaridade muito variado (desde o primário até os de pós graduação), profissões divergentes (desde barista até professor) e diversas situações sentimentais. Mas, acima de tudo, os homens envolvidos na pesquisa, mostraram diferentes perfis de si mesmo, como clientes, delineando uma frequência que vai desde clientes assíduos aos esporádicos, chegando a casos que a experiência do sexo a pagamento aconteceu poucas vezes. Apesar desta heterogeneidade, no entanto, foi possível encontrar pontos em comum entre as visões reconstruídas através das entrevistas e, provavelmente, teriam compartilhado os mesmos estereótipos se entrevistássemos alguns representantes da população dos “ não clientes”. Em particular, quando se trata de falar sobre a questão da “cidadania” feminina – e aos seus relativos desejos – é que os condicionamentos culturais intervém de modo a uniformizar as visões do senso comum, porque o imaginário erótico é vivido por todos, homens e mulheres, clientes e não clientes, e constitui aquela ideia na qual os indivíduos se formam como homens e como mulheres, e é neste contexto que se reforçam ideias como aquela da sexualidade masculina como uma válvula de escape e da sexualidade feminina como uma sexualidade servil. Se, portanto, o mercado do sexo aparece incorporado na sociedade e em seus modelos culturais, em seus processos de construção social do masculino e do feminino, e no imaginário erótico pré-confeccionado, então, para combater o trafico e o turismo sexual, seria apropriado desconstruir tais modelos e refletir sobre como a gramatica do prazer – que aceita o desejo masculino como um impulso – desresponsabilize a “masculinidade hegemônica” e legitime algumas de suas praticas. 173 Anexação 1 174 Bibliografia Abbatecola E. (2012), Globalizzazione e prostituzioni migranti, in Cipolla C., Ruspini E. (a cura di), Prostituzioni visibili e invisibili, Franco Angeli, Milano. Abbatecola E. (2010), Gli scenari delle prostituzioni straniere (a cura di), Mondi Migranti, n. 1/2010, FrancoAngeli, Milano. Abbatecola E. (2006), L’Altra donna. Prostituzioni straniere in contesti metropolitani, FrancoAngeli, Milano. Abbatecola E. (2005), Identità tradite. 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