uma visão sociológica do espaço urbano sustentável

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uma visão sociológica do espaço urbano sustentável
ENECS - ENCONTRO NACIONAL SOBRE EDIFICAÇÕES E COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS
UMA VISÃO SOCIOLÓGICA DO ESPAÇO URBANO NAS TRANSFORMAÇÕES
DO PARADIGMA AMBIENTAL SUSTENTÁVEL
Luciana Rocha Leal da Paz ([email protected]) Doutoranda de Planejamento Ambiental do
Programa de Planejamento Energético/COPPE/UFRJ
Andréa Borges de Souza Cruz ([email protected]) Doutoranda de Planejamento
Ambiental do Programa de Planejamento Energético/COPPE/UFRJ
Luiz Pinguelli Rosa ([email protected]) Professor do Programa de Planejamento
Energético/COPPE/UFRJ
Alessandra Magrini ([email protected]) Professora do Programa de Planejamento
Energético/COPPE/UFRJ
RESUMO
As questões ambientais envolvendo a produção do espaço urbano decorrem não somente da relação entre homem
e natureza, mas também das relações dos homens entre si, referindo-se tanto ao meio físico propriamente dito
quanto às ações da sociedade. A apropriação e transformação do meio ambiente gera benefícios que fazem parte
das demandas do desenvolvimento, mas também produzem alguns desvios indesejáveis, se transformando em
problemas que devem ser combatidos. Neste sentido, a complexidade deste processo se reflete na reprodução das
relações sócio-espaciais e se realiza no cotidiano da população, gerando uma diferença de valores assumida pelas
áreas urbanas que se expressa na segregação social do espaço. A produção gerida pela lógica capitalista, baseada
na maximização do lucro, é evidenciada na segregação territorial e na qualidade de vida experimentada nos
diferentes bairros das cidades. Assim, a sustentabilidade pode ser colocada como um paradigma que dá suporte à
formulação da possibilidade de sustentabilidade urbana, permitindo considerar possível o desenvolvimento
urbano em bases sustentáveis. Este artigo analisa os fatores sociais que envolvem a formação do espaço urbano,
consolidando as intercessões sócio-culturais e ambientais inerentes às transformações paradigmáticas nos
critérios de sustentabilidade propostos na Agenda 21.
Palavras-chave: sustentabilidade urbana, meio ambiente, paradigma.
A SOCIOLOGICAL VISION OF THE URBAN SPACE IN THE
TRANSFORMATIONS OF THE SUSTAINABLE ENVIRONMENTAL PARADIGM
ABSTRACT
The environmental subjects involving the production of the urban space emerges not only from the relationship
between man and nature, but also from man’s relationships among themselves, referring either to the physical
environment itself or to the actions of the society. The appropriation and transformation of the environment
generates benefits that are part of the developmental demands, also producing some undesirable deviations,
which turned out as problems that should be managed. In this sense, the complexity of this process is reflected in
the reproduction of the social-spatial relationship and is accomplished in the daily lives of the population,
generating a difference of values assumed by the urban areas that is expressed in the social segregation of the
space. The production managed by the capitalist logic, based on the profit maximization is emphasized in the
territorial segregation and in the quality of life in different neighborhoods of cities. Thus, the sustainability can
be placed as a paradigm that gives support to the formulation of urban sustainability, which allows one to
consider possible the urban development on sustainable basis. This article analyzes the social factors that were
involved in the formation of the urban space, consolidating the social-cultural and environmental intersections of
the paradigm transformations that were included in the sustainable criteria proposed by the Agenda 21.
Keywords: urban sustainability, environment, paradigm
1. INTRODUÇÃO
A noção de progresso possui como idéia central o debate entre crescimento e
desenvolvimento, sendo melhor percebido quando analisado em contato com o mundo real.
Desta forma, é possível uma melhor identificação das alterações de paradigma concentradas
na sociedade e dos rebatimentos sociais que envolvem o progresso uma vez que a
consolidação do capitalismo moderno parece ser mais prioritário do que a análise dos fatores
sociais que envolvem sua compreensão, especialmente quando o progresso ou
desenvolvimento, como é chamado atualmente, é considerado de forma isolada.
Os conceitos de desenvolvimento e de sustentabilidade são considerados contraditórios para
muitos autores. Para alguns, sustentabilidade seria um conceito mais recente e que indica um
sério questionamento da sociedade industrial, e desenvolvimento seria a síntese desta mesma
sociedade através de um modelo que já mostra seu esgotamento. Para outros, sustentabilidade
é um conceito que se origina da ecologia e sua utilização nas comunidades humanas ainda
está sendo estudada. Para a ONU, a noção de sustentabilidade vem se constituindo no novo
paradigma do desenvolvimento humano.
O conceito de desenvolvimento sustentável, cunhado pela Comissão Brundtland no processo
preparatório da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Humano, a chamada Rio-92, começou a ser divulgado pelo relatório Nosso Futuro Comum, a
partir de 1987. O termo corrobora a tese de que é possível desenvolver sem destruir o meio
ambiente e propõe uma união dos países para evitar a catástrofe global: degradação crescente
não só das grandes cidades industriais, onde primeiro se fizeram sentir os efeitos da destruição
ambiental, mas do ambiente global (atmosfera, florestas, oceanos). Este relatório lançou a
idéia de que é necessário um esforço comum para se corrigir os rumos do modelo de
desenvolvimento econômico se firmou no cenário político, levando os vários países
signatários da Agenda 21 a iniciarem seus programas de sustentabilidade.
A Agenda 21, documento que reúne o conjunto mais amplo de premissas e recomendações de
como as nações devem agir para adotar modelos de desenvolvimento sustentáveis, critica o
atual modelo baseado na economia considerando-o socialmente injusto e ambientalmente
explorador. Como contraponto, é proposta a alternativa de uma nova sociedade, justa e
ecologicamente responsável, produtora e produto do desenvolvimento sustentável. Contudo,
os pressupostos que norteiam a Agenda 21 foram formulados tendo a sustentabilidade
econômica como base, colocando as demais dimensões como diretamente subordinados à
esta.
As dimensões de sustentabilidade consideradas na Agenda 21 são reconhecidas como:
dimensão ética, onde o equilíbrio ecológico traduz não só um padrão duradouro de
organização da sociedade, mas envolve a vida das gerações futuras; dimensão temporal, que
rompe com a lógica do curto prazo e estabelece o princípio da precaução, bem como a
necessidade do planejamento de longo prazo; dimensão social, que expressa o consenso de
que só uma sociedade sustentável - com pluralismo político e menos desigual - pode produzir
desenvolvimento sustentável; dimensão prática, que preconiza a necessidade da mudança de
hábitos de consumo e de comportamentos. Essas quatro dimensões tornam mais complexa e
complementam a dimensão econômica, que foi a mais destacada nas primeiras discussões
que derivaram das conclusões do mencionado Relatório Brundtland.
A dimensão econômica da sustentabilidade, diferentemente do que ocorre com as demais, é a
que conta hoje com o maior acúmulo de discussão teórica e de práticas inovadoras já em
curso. No mundo inteiro proliferam iniciativas entre os próprios empresários, que buscam
adaptar os padrões de produção e de consumo às exigências ambientais colocadas pelo
paradigma da sustentabilidade. No Brasil, a criação do Conselho Empresarial para o
Desenvolvimento Sustentável e das comissões de meio ambiente nas várias entidades de
classe acompanha essa tendência global. Incluem-se na dimensão econômica também os
aspectos financeiros relativos à equação entre recursos, tributos, taxas ou tarifas arrecadadas e
os investimentos e a prestação de serviços urbanos.
Para reverter este cenário de privilégio do discurso econômico com incorporação de aspectos
pseudo-ambientais, vem sendo debatido o conceito de sustentabilidade ampliada, que visa o
encontro político entre a Agenda estritamente ambiental e a Agenda social, enunciando a
conexão entre os fatores sociais e os ambientais e a necessidade de se enfrentar a degradação
do meio ambiente juntamente com o problema mundial da pobreza. Neste contexto, a
mudança nas relações sociais e sócio-ambientais caracteriza uma transformação
paradigmática da sustentabilidade, dando suporte à formulação da sustentabilidade social e de
um desenvolvimento humano em bases sustentáveis.
Enquanto aumenta a legitimidade do paradigma da sustentabilidade e sua pertinência para
lidar com a especificidade de cada sociedade, cresce a necessidade de selecionar critérios,
estratégias e indicadores para ancorar a formulação, monitorar a implementação e avaliar os
resultados das políticas sócio-ambientais em bases sustentáveis. Neste sentido é postulada a
indissociabilidade entre a problemática social e a problemática ambiental urbana. Esse
postulado, base do documento da Agenda 21, é fundamental para o entendimento das
estratégias que procuram combinar dinâmicas de promoção social com as dinâmicas de
redução dos impactos ambientais no espaço das cidades.
2. ESPAÇO E TERRITORIALIDADE NO AMBIENTE URBANO
A noção e o conceito de espaço é um tema multidisciplinar que inclui em sua discussão
aspectos geográficos, sociais, políticos, econômicos, técnicos e científicos. SANTOS e
SILVEIRA (2001) discutem a noção de território, sendo este, em primeira análise, uma
“extensão apropriada e usada”, (p.19), e em um sentido mais restrito, seria um “nome
político para o espaço de um país” (p. 19), o que permite inferir que pode existir
territorialidade sem Estado, mas é difícil considerar um Estado sem um território. O espaço
territorial pode ser então palco de um Estado e de muitas nações, e como tal está em constante
transformação, mantendo sempre os mesmos elementos. O território enquanto espaço
geográfico é construído periodicamente uma vez que é o espaço efetivamente usado, e as
formas de uso deste espaço ajudam a construir a história humana, sendo que entre suas
funções figuram não somente o ambiente construído, mas também a dinâmica populacional,
as atividades produtivas, a economia, a legislação, a cidadania e a sociedade como um todo.
Assim, os autores colocam que
“o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de
pertencer àquilo que nos pertence... esse sentimento de
exclusividade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde da
existência de Estado. Assim, essa idéia de territorialidade se
estende aos próprios animais, como sinônimo de área de vivência
e de reprodução. Mas a territorialidade humana pressupõe
também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o
que, entre os seres vivos, é privilégio do homem.” (SANTOS e
SILVEIRA, 2001, p. 19) [grifos dos autores]
A própria presença e ação do homem imprime um caráter social aos fatos e coisas. A
evolução da técnica e dos processos econômicos e sociais redefinem o território, associando a
este habilidades e capacidades específicas de produção que acabam por segmentá-lo,
revelando vocações regionais e pressionando as populações locais. O território inclui os
sistemas naturais de uma sociedade, aliados aos ‘objetos técnicos e culturais historicamente
estabelecidos’ (SANTOS e SILVEIRA, 2001, p. 248), ou seja, os chamados sistemas de
engenharia, sendo derivado das ações humanas. Neste sentido, “o espaço é sempre histórico”
(idem). Com isso, o território passa a manifestar as diferenças e as lacunas existentes entre as
regiões, grupos e etnias, sendo um indicador da desigualdade das condições de vida da
população.
A organização espacial da cidade, seu espaço urbano, compreende então um complexo
conjunto de formas de uso da terra, sendo fragmentada e ao mesmo tempo articulada uma vez
que suas partes mantém relações espaciais entre si e estas são de natureza social, manifestadas
pela sociedade de classe e seus processos. O espaço urbano da cidade capitalista, para
CORRÊA (1989), acaba então por se constituir em um reflexo desta mesma sociedade e de
sua dinâmica, tanto por suas ações presentes quanto pelas passadas, possuindo em seu bojo
um caráter profundamente desigual. Assim, a produção do espaço na cidade é condicionada
pela forma como as obras do homem reproduzem as relações de produção, tornando-se o
lugar que as diferentes classes sociais perpetuam seu sistema de crenças e valores, sua
dimensão simbólica.
O espaço urbano, considerado como um produto social, tem suas ações concretizadas pelos
agentes sociais, em um ininterrupto processo de reorganização espacial. CORRÊA (1989)
aponta entre os agentes sociais cinco categorias, incluindo os proprietários dos meios de
produção, os proprietários de terra, os promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais
excluídos. O autor afirma que
“a ação destes agentes se faz dentro de um marco jurídico que
regula a atuação deles. Este marco não é neutro, refletindo o
interesse dominante de um dos agentes, e constituindo-se, em
muitos casos, em uma retórica ambígua, que permite que haja
transgressões de acordo com os interesses do agente dominante.”
(CORRÊA, 1989, p. 12)
A supremacia dos interesses dominantes acabam por implicar a “continuidade do processo de
acumulação e a tentativa de minimizar os conflitos de classe, este aspecto cabendo
particularmente ao Estado” (CORRÊA, 1989, p. 12). Neste sentido, este trabalho enfatiza
mais duas das categorias estabelecidas por Corrêa, o Estado e os grupos sociais excluídos. O
Estado possui uma atuação direta e de caráter complexo na organização do espaço urbano, por
vezes assumindo para si os papéis dos grandes industriais consumidores de espaço, dos
proprietários fundiários em sua busca pelo aumento do valor de troca e não de uso da terra e
dos promotores imobiliários que geram e reforçam a segregação residencial. Além disso,
atuam como reguladores no uso do solo, através da implantação de serviços públicos e da
elaboração de leis, ficando latente a desigualdade espacial e a ausência de neutralidade de sua
ação. Por este mesmo motivo, passam então a ser o objeto dos movimentos sociais.
3. ASPECTOS DE PROMOÇÃO DA SUSTENTABILIDADE EM CONJUNTOS DE
MORADIAS POPULARES
Ao serem observados aspectos relativos à sustentabilidade dos assentamentos urbanos a
médio e longo prazo, temos que, em primeiro lugar, a área útil das casas é uma variável
bastante importante, considerando que normalmente a área útil da grande maioria dos
assentamentos oficiais é muito pequena. Além disso, o espaço entre as casas é um fator
essencial e que, em última análise, pode definir as configurações futuras do assentamento,
uma vez que esta variável pode permitir uma expansão horizontal ou vertical das moradias em
como outros indicadores de qualidade de vida.
Assim, a presença de vegetação natural nos assentamentos é fundamental pois pode suavizar o
impacto das intempéries climáticas, gerando barreiras naturais para a ação do vento ou do sol
e um ambiente externo com temperaturas mais amenas. A presença de vegetação também
contribui para diminuir a quantidade de poeira em suspensão, diminuindo assim a incidência
de doenças respiratórias na população local.
A ocupação de um lugar no espaço envolve a própria produção social deste lugar, sendo esta
uma ação cotidiana do homem e uma das causas principais dos problemas ambientais
normalmente verificados. Ao produzir o espaço urbano, a sociedade se apropria e transforma
a natureza, reproduzindo os padrões de segregação inerentes à sua dinâmica. Assim, as
interferências nas formas de apropriação do espaço urbano de uma área planejada pelo setor
público, na maioria dos casos, faz com que apareçam várias modificações espontâneas do seu
traçado original, incluindo a projeção vertical das casas e a construção de muros e cercas, que
subsistem mesmo contando com uma área mínima entre as casas. Desta forma, fica latente a
ineficiência do desenho urbano traçado quando este não considera as questões sociais e as
especificidades do público para o qual a área é destinada.
A relação natureza sociedade decorre não somente de questões puramente naturais, mas de
problemas decorrentes da ação social, que transforma e socializa esta natureza. A busca de
uma sustentabilidade urbana, apesar de ser indispensável, é um tema bastante complexo pois
as necessidades humanas dificilmente serão plenamente satisfeitas pela simples ocupação de
espaços urbanos. LIMA e RONCAGLIO (2001, p.61) afirmam que:
“As estratégias baseadas na noção de sustentabilidade, além de
serem meios para se alcançar uma pretensa combinação
sustentável de desenvolvimento e conservação ambiental,
ambicionam também uma forma participativa de planejamento e
execução de políticas públicas” (LIMA e RONCAGLIO, 2001,
p.61).
Contudo, esta participação mais ampla no planejamento de políticas públicas está cada vez
mais distante das camadas mais pobres da população, mesmo estas estando supostamente
incluídas pela oportunidade de acesso à moradia. O que se verifica em grande parte dos
assentamentos recém criados é a ampliação da poluição localizada pelo saneamento básico
inadequado e pela gestão precária dos recursos sólidos. Neste sentido, as conseqüências da
pobreza e da degradação ambiental urbana acabam se misturando.
Em relação ao uso social do espaço urbano e seu conseqüente processo de diferenciação,
VELHO (1996, p.10) coloca que:
“A própria noção de outro ressalta que a diferença constitui a
vida social, à medida que esta efetiva-se através da dinâmica das
relações sociais. Assim sendo, a diferença é, simultaneamente, a
base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito”
Sendo assim, o autor explicita que o sistema de interações sociais não é um processo
homogêneo, mas carrega consigo uma necessidade de negociação da realidade a partir das
diferenças. A noção de diferença carrega consigo uma imprecisão estrutural pois a vida social
se dá em muitos domínios, grupos e indivíduos, que podem ser concordantes ou competidores
entre si. A dinâmica dessas relações sociais inclui relações de poder e diferentes formas de
dominação, sendo diretamente relacionadas à possibilidade de violência física que visa a
legitimação dos padrões dominantes. VELHO (1996, p. 13) ressalta que:
“A complexidade é, ao mesmo tempo, conseqüência e produtora
das diferenças. Ou seja, a partir de um determinado momento,
como na divisão social do trabalho, as diferenças geram
diferenças, num processo de especialização contínua”.
Como espaços criados pelo poder público, cuja função primordial é implementar o bem-estar
dos indivíduos e da sociedade, os assentamentos oficiais não fogem à regra. Verifica-se,
então, que este processo complexo de individualização e distinção social começa a ocorrer tão
logo o assentamento seja criado, o que contribui para o agravamento das diferenças e da
violência, que vão se tornando rotina e ficando banalizadas na vida cotidiana. Sobre a questão
da violência no Rio de Janeiro, VELHO (1996, p. 21) escreveu:
“O Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que aparece como locus do
cosmopolitismo, tem sido apontado como caso limite da
violência, à medida em que a explicitação da desigualdade se dá
de modo intenso e dramático dentro do próprio quadro de
organização sócio-espacial da cidade”.
A ação do poder público nos assentamentos do Rio de Janeiro vem tentando, mais
recentemente, resolver e diminuir estas desigualdades através do aumento do acesso à
moradia. Contudo, a falta de preocupação com a sustentabilidade destes assentamentos pode
vir a contribuir justamente com um agravamento desta violência.
4. A QUESTÃO DA MORADIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: ANÁLISE
ESPAÇO-TEMPORAL
A cidade do Rio de Janeiro, para o período entre 1906 e 1930, é caracterizada por uma forte
expansão do seu tecido urbano, tendo sido criados dois vetores de crescimento da cidade. De
um lado, figura a ocupação das zonas sul e norte pelas classes média e alta da população,
auxiliadas pelas companhias concessionárias de serviços públicos. Por outro lado, estão
presentes a ocupação dos subúrbios, que se solidificam como local de moradia das classes
proletárias sem o auxílio do Estado e carentes de benefícios urbanísticos. Em paralelo a estes
processos, há a ocupação das favelas pela população excluída.
A partir da década de 30, a cidade passa por uma grande transformação, com o
desenvolvimento do processo de urbanização aliado à industrialização e ao uso de novos
materiais de construção, principalmente o concreto armado. A mudança do poder político
fortaleceu a burguesia industrial, sem contudo sacrificar a burguesia rural, favorecendo as
classes proletárias com a criação das leis trabalhistas e, segundo alguns autores, levando a um
governo controlador e paternalista que culmina no regime ditatorial. Tais contradições
refletem as condições sociais, políticas e econômicas da época, importantes para se entender a
evolução da configuração espacial da cidade.
A estratificação social da Rio de Janeiro é refletida no ambiente urbano: as classes altas
habitando em sua maioria a “nova” Zona Sul (Copacabana, Ipanema e Leblon), as classes
médias na antiga Zona Sul e na Zona Norte e classes pobres nos subúrbios. A demanda
habitacional, neste momento, é agravada pelo inchamento urbano provocado pela migração
interna em direção à então Capital da República. Incentivados pelo crescimento industrial, os
trabalhadores rurais buscam melhores condições de trabalho nas cidades, sendo os subúrbios e
os municípios da Baixada Fluminense os locais de maior procura. A indústria e as ocupações
dela decorrentes empregam o maior número de pessoas, contribuindo para a multiplicação das
favelas.
As favelas são, assim, a maneira que os trabalhadores encontraram para manter-se próximo ao
mercado de trabalho, ocupando informalmente a cidade formal. A própria geografia da cidade
propiciava a ocupação informal de terrenos situados nas encostas ou de áreas inundáveis e
mangues. Tais terrenos eram em sua maioria públicos ou pouco valorizados e a mão de obra
barata era necessária para o ciclo de produção industrializado. Desse modo, embora o
acúmulo populacional em áreas informais na cidade fosse considerado um problema sob o
ponto de vista urbanístico, era muitas vezes a única alternativa de moradia do trabalhador.
Durante a ditadura Vargas (1930-45), a habitação popular assume o caráter de uma das
principais bases da política desenvolvimentista. Neste momento, o poder público passa a
intervir diretamente sobre a produção de moradia popular, modificando as antigas iniciativas,
que tinham como maior preocupação o saneamento, passando a encarar o problema
habitacional como condição básica de reprodução da força de trabalho e instrumento
indispensável para criar uma nova ideologia baseada na família, na moral e no trabalho. A
criação de inúmeras instituições públicas e privadas tinha a missão de iniciar a discussão
sobre os rumos da habitação popular no país, cuja prioridade seria viabilizar a construção de
casas próprias às camadas populares, evitando assim, a promiscuidade e a dificuldade de
controle que as habitações coletivas do centro da cidade ofereciam. O problema habitacional
passa a ser encarado como necessidade social e atinge não só o operariado, mas também a
classe média, formadora de opinião e principal consumidora de imóveis de aluguel. Nabil
Bonduki revela este quadro quando comenta:
“Era amplo, portanto, o leque dos setores sociais que apoiavam
com ênfase a intervenção pública no processo de produção
habitacional. No plano do aparato estatal, das entidades
empresariais, das forças políticas com influência junto aos
trabalhadores, dos técnicos e da opinião pública consolidou-se
assim a noção de que cabia ao Estado garantir condições dignas
de moradia e que, para tanto, era preciso investir recursos
públicos e fundos sociais” (BONDUKI, 1997, P. 80).
O contexto político-social vivido nesta época deu respaldo à criação e fortalecimento das
instituições governamentais encarregadas de financiar e/ou produzir habitações populares,
como as Carteiras Prediais dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, e a Fundação da Casa
Popular. Tais iniciativas contavam com a influencia internacional, que incentivada pela
ideologia socialista, considerava a moradia uma das condições básicas de sobrevivência dos
trabalhadores e, consequentemente, sua produção era um atributo do Estado.
Apesar de todas as discussões e iniciativas do poder público no sentido de viabilizar a
moradia para a população de baixa renda, a maioria dos imóveis ainda era oferecido em forma
de aluguel. Em contrapartida, o discurso em defesa da casa própria como instrumento para a
melhoria da qualidade de vida do trabalhador e recompensa pela dedicação ao trabalho se
fazia de forma cada vez mais veemente.
A polêmica Lei do Inquilinato, de 1942, congelava todos os aluguéis, sendo motivo de
conflitos de interesses entre proprietários e inquilinos durante todo o seu tempo de vigência,
ou seja, até 1964. Ela foi dos principais agentes transformadores do panorama habitacional no
Rio de Janeiro, pois ao desestimular a produção privada de moradias (produção rentista),
transfere para o Estado e para os próprios trabalhadores esta tarefa. A década de 40, então,
representa o marco de uma das mais graves crises de moradia no Brasil, provocando a
propagação de formas de ocupação não convencionais para moradias, como favelas e
loteamentos irregulares periféricos. A carência habitacional foi agravada ainda pela demolição
de edificações nos bairros centrais para a abertura de novas vias, para a especulação
imobiliária e as transformações do mercado imobiliário com a produção dos edifícios de
apartamentos nos bairros da zona Sul.
O Estado passa então a intervir diretamente na produção de conjuntos habitacionais e no
financiamento da casa própria através dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) e da
Fundação da Casa Popular, que embora promovessem a construção de cerca de 140 mil
moradias no período de 27 anos (1937 - 64) (MARICATO, 1997), estavam longe de
solucionar a demanda crescente por habitação popular, além de terem contribuído para
modificar a aparência dos subúrbios cariocas (ABREU, 1988). Os IAPs foram criados na
década de 30 com a finalidade de proporcionar benefícios previdenciários (aposentadorias e
pensões) e assistência médica., não tendo como objetivo principal a construção e/ou
financiamento de moradias. Contudo, a aplicação do fundo em investimentos que garantissem
benefícios futuros justificava sua ação junto à produção de habitação. Assim, os institutos
foram essenciais para a viabilização das incorporações imobiliárias, sobretudo no Rio de
Janeiro (BONDUKI, 1997). A elaboração de três planos básicos de construção e
financiamento de habitação, proporcionou à estas instituições a crescente aglutinação de
capital, terras e imóveis, transformando-os em financiadores de todo o tipo de
empreendimentos imobiliários, beneficiando não só os associados de renda mais baixa, mas
também, e principalmente, aqueles de renda média ou alta.
A estratificação social e física torna-se cada vez mais evidente, tanto na atitude do Estado em
estimular a ocupação da periferia palas camadas mais pobres da população, quanto pelas
instituições corporativistas que excluíam de seus benefícios os setores populares não
assalariados, que tampouco eram considerados cidadãos e como conseqüência, não
merecedores da proteção do Estado. A proliferação das favelas se acentuava e seus habitantes
considerados sub-cidadãos encarados como marginais, conforme podemos verificar pelo
discurso proferido por SALGADO FILHO, no Congresso Nacional em 1937:
“E não se confundam os operários, os trabalhadores, com esses
indivíduos que habitam as “favelas” dos nossos morros. E sobre
esse ponto quero chamar a atenção da Câmara porque é uma
necessidade ser o assunto cuidadosamente estudado, de vez que
vi, no parecer da Comissão de Justiça, referências àqueles
habitantes das “favelas” do Distrito Federal e verifico o
pronunciamento daquele órgão técnico da Casa no sentido da
concessão de terrenos para atender a essa população pobre. Mas
será obra social atender-se a esses habitantes das “favelas” do
Distrito Federal, que não são, a rigor, operários? Talvez nelas
habitam, excepcionalmente, operários da nossa capital. Todos os
indivíduos que ocupam essas “favelas”, essas casas. Já
denominadas casas de cachorro, não são trabalhadores que
vivem de um salário honesto(...) Pergunto à Câmara: será obra
social fazer-se uma edificação para esses vadios?” (SALGADO
FILHO, 1937 a:229-30)
A veemência como é tratada a discriminação social e econômica nesta fase estabelece como o
Estado contribui de forma direta para a estratificação espacial da cidade do Rio de Janeiro, em
um primeiro momento tentando negar a urgência de providências neste setor, e depois através
do remanejamento dos moradores das favelas existentes na zona sul para Parques Proletários
nas periferias.
A Fundação da Casa Popular (FCP), por sua vez, foi criada em fevereiro de 1946, sendo o
primeiro órgão federal com a finalidade de solucionar o problema habitacional. Em seus
dezoito anos de existência não conseguiu obter resultados relevantes, contabilizando 16.964
unidades habitacionais neste período. Sua intenção seria implementar uma política
habitacional que atingisse de forma abrangente a sociedade, evitando a segregação difundida
pelo corporativismo e ampliando a previdência social a todos os habitantes.
A ocupação intermediária entre a favela e a cidade formal é um processo que ocorria em
paralelo às tentativas do Estado de resolver os problemas habitacionais, se constituindo em
loteamentos nas periferias, muitos deles irregulares e parcelados sem a fiscalização do poder
público, não sendo beneficiados com urbanização e infra estrutura de serviços. Este
movimento espontâneo ressalta a busca da população proletária por formas alternativas de
sanar a carência habitacional através da autoconstrução de suas residências, solução esta que
apresentava-se como a melhor opção aos recém chegados à procura de trabalho na capital ou
aos que se viam obrigados a retirar-se dos bairros centrais pela força das cirurgias urbanas.
O período Jucelino Kubitschek, conhecido como o paraíso do desenvolvimento industrial,
consegue atingir um crescimento notável no país, sendo São Paulo o principal pólo para onde
os capitais industriais se dirigiram. O Rio de Janeiro, entretanto, manteve seu poder de atração
de força de trabalho dando continuidade ao processo migratório e verificando um crescimento
populacional maior do que na década anterior.
A rápida construção da nova capital da República, Brasília, não contribuiu para aliviar a crise
de moradia do Rio de Janeiro. A prosperidade dos anos 50 contribuiu para o desenvolvimento
da zona sul, criando paraísos urbanos providos de infra-estrutura, comércio diversificado e
edifícios de apartamentos para classe média e alta. Contudo, tal ação incentivou o aumento do
valor do solo e a valorização das áreas urbanizadas próximas ao centro, aumentando a
distância entre emprego e moradia, agravando a crise habitacional e contribuindo ainda mais
para a proliferação das favelas.
Desta forma, foi inevitável a difusão do auto empreendimento da habitação, transformando
“a moradia e a cidade como um direito dos proprietários... a
transformação do trabalhador num proprietário. E, enquanto
proprietário, ele acabou por ganhar direito à cidade, entendido
como acesso à terra e a infra-estrutura, mesmo que os benefícios
urbanos levassem anos para serem implantados.” (Bonduki,
1997, p. 317).
Esta filosofia foi primordial para a ampliação da ocupação da periferia, pois o trabalhador
tornava-se passível de receber os benefícios do Estado quando recebia o título de
proprietário. A crise habitacional já apresentava neste período contornos alarmantes, que
foram agravados com a criação do Instituto Brasileiro de Habitação e do Conselho Federal de
Habitação pelo Governo Jânio Quadros em 1961. Todavia, a ação do poder público persistia
na remoção da população de baixa renda das áreas centrais e na erradicação das favelas,
incrementando a construção de conjuntos habitacionais na periferia, tais como o Vila
Kennedy no bairro de Senador Camará, o Vila Aliança no bairro de Bangú e o Vila Esperança
no bairro de Vigário Geral. Santos (1994) afirma que
“a dispersão dos núcleos comunitários originais, a distância do
centro e, a falta de infra-estrutra urbana e transporte adequados
determinaram a desagregação das relações sociais dos
removidos, tanto no que diz respeito ao aspecto moradiatrabalho, quanto à estrutura familiar.” (Santos, 1994, p 06).
Assim, a produção imobiliária tanto nos subúrbios quanto nos bairros da zona sul, cresceu
aceleradamente nos anos de 1950 e 1960, não tendo sido suficiente para atender a demanda
por moradia. É neste cenário que em 1964, um golpe de Estado muda o conceito de
intervenção estatal na produção da habitação com a criação do Sistema Financeiro da
Habitação - SFH - e do seu agente financeiro o Banco Nacional da Habitação – BNH, que
apesar de ser o principal agente financiador de moradias de 1964 a 1986, não fomentou a
produção de habitação social, privilegiando os interesses do capital imobiliário em detrimento
da implementação de uma política de incremento à produção de moradias populares.
A crise de 1974 e a conseqüente insatisfação popular, forçou o governo militar a modificar
sua estratégia de ação dando um novo formato à política habitacional desenvolvida até aquele
momento. A partir de 1979, com a criação do PROMORAR pelo BNH, o poder público passa
a aceitar a urbanização de favelas como solução alternativa para o problema habitacional,
adotando uma nova visão conceitual onde o reconhecimento da situação e o enfoque na
melhoria da qualidade de vida destes locais passa a ser considerado. Contudo, esta ação não
contribuiu para solucionar a crise habitacional ou os problemas decorrentes da segregação
espacial e da valorização da casa própria como elemento de discriminação social. A crise do
Sistema Financeiro de Habitação em 1986 faz com que o BNH seja extinto, ficando a cargo
da Caixa Econômica Federal - CEF a gerência do FGTS.
A partir de 1988, a produção habitacional deixa seu caráter centralizador característico do
BNH e assume uma nova fase, agora descentralizada através de iniciativas municipais e em
alguns caso estaduais. Na cidade do Rio de Janeiro, as quatro últimas gestões do Governo
Municipal vêm tentando, de forma ainda muito incipiente, contribuir para a melhoria da
qualidade de vida nas favelas. Para tanto, foram criadas as Secretarias Municipais de
Habitação e as coordenadorias de Assuntos Fundiários, que além de promover programas
habitacionais ainda tratam da regularização fundiária de assentamentos irregulares e da
urbanização e infra estrutura das comunidades faveladas já consolidadas.
Desta forma, apesar da última década do século passado ter trazido novas investidas no
âmbito da habitação na cidade do Rio de Janeiro, os esforços empreendidos ainda parecem
insuficientes frente às necessidades habitacionais da população. As iniciativas atuais são
válidas quando prenunciam a mudança de uma filosofia equivocada que privilegia pequena
parcela da população em detrimento da grande massa social. O grave quadro atual da cidade
foi construído em decorrência de uma política habitacional segregadora, tendo como
agravante a urbanização acelerada a partir dos anos 60 e a concentração de investimentos
urbanos nas áreas privilegiadas, somados a uma especulação abusiva do valor da terra. Além
disso, a iniciativa de criar novas unidades habitacionais em locais distantes e carentes de
infra-estrutura urbana, realizada durante praticamente todo o século XX, encontra-se
notoriamente ultrapassada e economicamente inviável no momento em que se discute a
cidade sustentável.
5. A APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO CONSTRUÍDO
A produção e apropriação social do espaço construído passa por diversas vertentes, indo da
área ambiental à econômica. Em relação a esta última, RIBEIRO (1991) discorre sobre a
“imobilização da força de trabalho”, uma das formas típicas da exploração do capitalismo,
sendo relacionada aos movimentos populacionais e suas conseqüências e mais
especificamente à proletarização e subordinação da força de trabalho ligada à indústria.
Segundo o autor, esta
“é uma noção que remete aos interesses de um sistema políticoeconômico que se expande e que, para tanto, necessita recrutar,
administrar e controlar, temporária ou permanentemente,
populações humanas que lhe produzam consistentemente
excedentes e riquezas” (Ribeiro, 1991, p. 26)
Na verdade, a concentração obtida pelo capitalismo resulta na criação de um proletariado
industrial, sempre vinculado aos grandes projetos e subordinados ao desempenho de
atividades que acabam por impedir a reprodução de seu modo de vida anterior.
A necessidade de criação e manutenção de uma força de trabalho vinculada às necessidades
capitalistas promove um tipo de subordinação que permeia não somente a esfera produtiva,
mas acaba por incluir outras áreas da vida do trabalhador, sendo que o vínculo para esta
subordinação se dá através da moradia.
A questão da moradia é central nesta análise, pois é através dela que o trabalhador
proletarizado passa a ser totalmente controlado pelo capital. Neste sentido, o capital passa a
controlar a própria reprodução da vida do trabalhador e de seu grupo doméstico. Desta forma,
a relação de dependência do capital através da moradia é flagrante nas iniciativas estatais de
criação de habitações populares no meio urbano.
A inexistência de políticas sociais específicas e acima de tudo efetivas que visem a
apropriação do espaço urbano de uma forma mais democrática, fez com que o planejamento
urbano estivesse mais relacionado a práticas tecnocráticas de concepções autoritárias,
passando então “a ser o bode expiatório de uma conjuntura política” (QUINTO JUNIOR &
IWAKAMI, 1991, p. 64). Assim, a questão da moradia está inserida em um contexto maior
cujo objeto é a cidade, incluindo a “discussão das técnicas do planejamento e os mecanismos
que o mercado capitalista encontra para responder às ações concretas destes instrumentos”
(QUINTO JUNIOR & IWAKAMI, 1991, p. 65).
A apropriação social do espaço construído se dá através da interação de vários fatores,
incluindo o desenvolvimento capitalista das forças produtivas, a divisão social do trabalho e
as relações sociais. Seguindo este raciocínio, IANNI (1978) coloca que “são as relações
sociais de produção que conferem à terra as muitas formas sociais que ela ganha”. Para o
autor, a terra vai ganhando formas sociais distintas ao longo da história, e as suas
metamorfoses se dão no desenvolvimento das relações econômicas e políticas dos homens.
O conceito de liberdade aqui utilizado é o adotado por Marx, sendo que esta liberdade dos
trabalhadores é dupla, pois eles são livres tanto das velhas relações de dependência, servidão
ou prestação de serviços, quanto de todos os bens e propriedades pessoais, de toda a forma
real e objetiva de existência. O que gera uma massa que pode optar somente entre vender sua
força de trabalho, ou mendigar e assaltar. Marx coloca que: "para transformar dinheiro em
capital tem o possuidor do dinheiro de encontrar o trabalhador livre no mercado de
mercadorias, livre nos dois sentidos, o de dispor como sua mercadoria, e o de estar livre,
inteiramente despojado de todas as coisas necessárias à materialização de sua força de
trabalho, não tendo além desta outra mercadoria para vender" (MARX, 1982). Os
trabalhadores livres, portanto, só se tornam vendedores de si mesmos depois que lhes roubam
os seus meios de produção e os privau de toda a proteção fornecida pelo Estado.
Para Marx, o trabalho é a categoria principal da análise sociológica, pois é ele mesmo o
produtor da história e o motivo do progresso. Hobsbawn afirma que o humanismo de Marx
possui como base "a análise do homem como animal social" (MARX, 1977), que realiza
trabalho através da interação homem-natureza, produzindo com isso a evolução social. O
progresso é algo observável justamente nesta relação, em que o homem tenta cada vez mais
dominar a natureza, e quanto mais afastado ele estiver das relações primitivas desenvolvidas
espontaneamente, mais ocorrerá a separação do trabalhador com os meios de produção.
As relações sociais, portanto, resultam da forma como a sociedade produz a sua riqueza. Tal
produção pressupõe relações entre trabalhadores e as condições objetivas de produção, as
formas de propriedade. Hobsbawn evidencia essa preocupação de Marx na introdução das
Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Por um lado, a especialização do trabalho leva a
uma maior sofisticação das relações que os homens estabelecem entre si, levando por fim a
procedimentos não cogitados anteriormente, como a acumulação primitiva de capital. Por
outro lado, na medida que o homem se afasta de sua relação primitiva com a natureza, a
relação trabalho-propriedade é rompida, evidenciando a separação entre meios de trabalho e
objeto de trabalho, entre trabalhador e a terra. A separação é completa quando o trabalhador
se transforma em simples força de trabalho, e quando a propriedade passa apenas a ser o
controle dos meios de produção. O relacionamento do trabalhador com seu trabalho é de
propriedade, sendo ele o senhor das condições de sua realidade. Sua finalidade não é a criação
de valor, mas a manutenção de sua família e da comunidade como um todo.
A partir destas considerações, temos que a produção e apropriação social do espaço
construído permite a interação do urbano dentro do conceito de mercadoria, onde o valor de
uso de cada espaço específico cria um novo valor de uso mais complexo, criando o que
QUINTO JUNIOR & IWAKAMI (1991) chamam de fator de aglomeração. Segundo os
autores, “há uma socialização das forças produtivas no capitalismo, o que, em nível espacial,
gera os efeitos úteis de aglomeração devidos à incorporação dos objetos materiais agregados
ao solo, o que gera um valor de uso complexo, já que esta é a condição necessária ao
capitalismo” (p. 66). A cidade é, portanto, uma força produtiva que representa mais do que
um cenário para a luta de classes, é um arranjo espacial que fornece as condições para a
reprodução do capital (GOUVÊA, 1991).
6. CONCLUSÃO
O estudo da forma de ocupação do espaço nas cidades remete a uma reflexão sócio-ambiental
introduzida pelo pensamento ecológico iniciado a partir dos anos 50 do século XX, que
vincula pobreza à degradação ambiental, e sustentabilidade à capacidade de suporte. A análise
da capacidade de suporte apresenta duas variações distintas: a pressão da população sobre os
recursos naturais e a pressão da produção sobre esses mesmos recursos, entretanto população
e produção ganham um mesmo contorno quando a produção econômica é considerada como a
corrente de transferências e transformações que se dão entre o momento em que a matéria
prima é disponibilizada até o momento em que está ofertada no mercado.
A concepção de mercado e consumo generalizado, onde população e produção coexistem no
mesmo contorno compromete a possibilidade de individualidade, criando um grande
amálgama que, baseado em um pseudodesenvolvimento, promove a destruição de várias
formas de vida social impedindo uma organização equilibrada dos relacionamentos urbanos.
Sob esse aspecto as transformações do paradigma ambiental permanece centrada numa visão
de mundo baseada na concepção mercadológica, sem o questionamento da vida industrial que
compromete sobremaneira a base do sistema, suscitando a discussão de até onde é possível
reconsiderar o desenvolvimento repensando o conflito gerado pelo produtivismo competitivo.
A produção do ambiente urbano e a forma de apropriação do espaço das cidades indica, sob a
ótica de um novo paradigma ambiental, para a revisão dos conceitos de desenvolvimento e
produção sendo indispensável a busca de uma forma mais igualitária de distribuição de
benefícios sociais, estendidos à oferta de infra-estrutura e produção do ambiente urbano. Fazse imprescindível uma transformação da sistema atual, voltado para atender às demandas das
classes mais favorecidas, que gera um desvio dos incentivos governamentais e compromete as
políticas públicas estagnando as possibilidades de um planejamento em bases ambientais
sustentáveis.
Neste contexto, a mudança nas relações sociais e sócio-ambientais caracteriza uma
transformação paradigmática da sustentabilidade, dando suporte à formulação da
sustentabilidade social e de um desenvolvimento humano em bases solidamente sustentáveis.
Enquanto aumenta a legitimidade do paradigma da sustentabilidade e sua pertinência para
lidar com a especificidade de cada sociedade, cresce a necessidade de selecionar critérios,
estratégias e indicadores para ancorar a formulação, monitorar a implementação e avaliar os
resultados das políticas sócio-ambientais em bases sustentáveis. Neste sentido é postulada a
indissociabilidade entre a problemática social e a problemática ambiental urbana. Esse
postulado, base do documento da Agenda 21, é fundamental para o entendimento das
estratégias que procuram combinar dinâmicas de promoção social com as dinâmicas de
redução dos impactos ambientais no espaço das cidades.
Assim, a produção do espaço na cidade é condicionada pela forma como as obras do homem
reproduzem as relações de produção, tornando-se o lugar que as diferentes classes sociais
perpetuam seu sistema de crenças e valores, sua dimensão simbólica.
O grave quadro atual da cidade foi construído em decorrência de uma política habitacional
segregadora, que desconsiderava os critérios socioabientais, tendo como agravante a
urbanização acelerada a partir dos anos 60 e a concentração de investimentos urbanos nas
áreas privilegiadas, somados a uma especulação abusiva do valor da terra. Além disso, a
iniciativa de criar novas unidades habitacionais em locais distantes e carentes de infraestrutura urbana, realizada durante praticamente todo o século XX, encontra-se notoriamente
ultrapassada e economicamente inviável no momento em que se discute a cidade sustentável.
O momento atual deve conduzir o debate para o cenário da consolidação de atitudes próativas, tanto no âmbito ambiental quanto social, possibilitando assim a produção urbana
sustentável de fato e direito.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Início do Século XXI. Editora Record, Rio de Janeiro.
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antropológica in “Cidadania e Violência”, Gilberto Velho e Marcos Alvito
(organizadores) Editora UFRJ: Editora FGV, Rio de Janeiro, pp.10-24.
FONTES IMPRESSAS CITADAS
SALGADO FILHO, (1937) Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
SANTOS, Mauro (notas de aula) Evolução da Habitação Social na História do Brasil.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao CNPq pelo apoio financeiro recebido.