15. Último tango em Paris: o sexo e as formas de silêncio
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15. Último tango em Paris: o sexo e as formas de silêncio
15. Último tango em Paris: o sexo e as formas de silêncio Letícia Faria Conde Mônica Baltazar Diniz Signori Resumo: O trabalho propõe descrever e interpretar certos discursos do e/ou sobre sexo presentes no filme Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci (1972), focalizando, sobretudo, a contraposição entre a ideologia do “fazer amor num relacionamento estável”, cuja emergência relativa parece situar-se nos valores românticos burgueses, e a do “transar pelo prazer de transar”, que, por seu turno, se não surge exatamente na década de 1960, ao menos é consideravelmente intensificada naquele contexto. Com vistas a empreender a análise, o subsídio teórico e metodológico advém da Análise do Discurso, derivada dos trabalhos de Michel Pêcheux e seu grupo, campo de saber para o qual os sentidos não estão contidos nas formas abstratas da linguagem, mas são, antes, produzidos na articulação entre os domínios simbólico e histórico. A partir desse pressuposto, serão analisados os enunciados sincréticos do texto fílmico (a conjunção entre linguagem verbal e imagética), buscando depreender não apenas o que dizem do/sobre o sexo, mas também seus modos de dizer. Para tanto, em conjunto com as relações parafrásticas entre os enunciados n interior dos discursos do/sobre o sexo, serão consideradas as diferentes formas do silêncio (Orlandi, 1992) que ali são produzidas. Palavras-chave: Discurso. Sincretismo. Sexo. Formas de silêncio. 1. Introdução Na estrutura do filme Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, podese observar a censura de forma explícita, sendo trabalhada a relação sexual por meio da mesma. A personagem central, Paul, faz uso da censura para estabelecer uma relação de sexo casual, sem aparente (com a negação da possibilidade de) envolvimento emocional. O silêncio produzido pela imposição, por meio de uma relação de forças, e pelo apagamento consequente de outros sentidos pode ser melhor compreendido por meio da política do silêncio. Ao fazer/lançar o filme, Bertolucci se envolve com questões delicadas acerca de uma sociedade burguesa cristã onde os valores são criticados pelo mesmo, criando enunciados diversos que são sustentados por sua maneira característica de compreender e criticar a sociedade da época, uma sociedade francesa em plena articulação de novos pensamentos nos anos 60-70 que faz emergir temas como o feminismo e independência de colônias francesas, havendo a afirmação do homem genérico, procurando, Bertolucci, romper com paradigmas e desmitificar temas polêmicos como o do sexo por puro prazer e a mulher como ser livre, dentre outros. Para trabalhar esse silenciamento do qual Bertolucci faz uso para significar em seu filme, iremos nos basear nos estudos das diversas formas do silêncio, especificamente de Eni Orlandi (1992). Dela delimitamos os conceitos de “silêncio fundador” e “política do silêncio”, dando uma maior atenção ao “política do silêncio” para a análise do texto fílmico em questão. O objetivo deste artigo, portanto, é o de compreender como o silêncio é matéria significante e como sua política ganha espaço no filme Último Tango em Paris de Bernardo Bertolucci (1972), recorrendo a aspectos de teorias advindas da Análise do Discurso de linha francesa para tal. 2. Orlandi e as formas do silêncio – política do silêncio Eni Orlandi, em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos (1992), procura trabalhar os diversos sentidos do silêncio, com isso, contesta o pressuposto de que estar no silêncio seria não estar no sentido, não haver sentido, e contesta ainda o estudo que se faz do silêncio por meio do “implícito”. Esse “implícito” é tido na significação implícita que, “segundo O.Ducrot(1972) “aparece e algumas vezes se dá – como sobreposta a uma outra significação” (…), para nós (…) o sentido do silêncio não é algo juntado, sobreposto pela intenção do locutor: há um sentido no silêncio.” (ORLANDI, 1992, p.12). E ainda, “[...] distinguimos silêncio e implícito, sendo que o silêncio não tem uma relação de dependência com o dizer para significar: o sentido do silêncio não deriva do sentido das palavras.” (Idem, p.68). A autora (1992) procura então ver o silêncio de outra forma, como iminência do sentido, afirmando que o fora da linguagem é ainda o sentido, ao contrário do que se postulava como sendo o nada. Eni dirá então que silêncio é aquele [...] que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda que aquilo que é o mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é “fundante”. Desse modo, nessa nossa reflexão, procuramos indicar as várias pistas pelas quais alcançamos esse princípio da significação: o silêncio como fundador. Paralelamente, aprofundamos a análise dos modos de se apagar sentidos, de se silenciar e de se produzir o não-sentido onde ele mostra algo que é ameaça. Assim,quando dizemos que há silêncio nas palavras, estamos dizendo que: elas são atravessadas de silêncio; elas produzem silêncio; o silêncio fala por elas; elas silenciam. As palavras são cheias de sentidos a não se dizer e, além disso, colocamos no silêncio muitas delas. (ORLANDI, 1992, p.14). Para a perspectiva discursiva, a materialidade é a forma de concepção da língua: “[...] essa materialidade linguística é o lugar da manifestação das relações de forças e de sentidos que refletem os confrontos ideológicos.” (Idem, p.21). Mas não se deve pensar que o silêncio seja a redução da ausência de palavras, já que as mesmas são carregadas de silêncio, e não se pode recuperar o sentido do silêncio somente pela verbalização, deve-se considerar, no entanto, a tradução do silêncio em palavras como uma relação parafrástica. (ORLANDI,1992, grifo do autor). Assim sendo, é necessário compreender a ligação implicada entre linguagem e silêncio por meio do não-dito, de acordo com Orlandi: É assim que podemos compreender o silêncio fundador como o não-dito que é história, e que, dada a necessária relação do sentido com o imaginário, é também função da relação (necessária) de língua e ideologia. O silêncio trabalha então essa necessidade. Se linguagem implica silêncio, este, por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o vazio sem história. É silêncio significante. (1992, p.22-3) Dizer que o silêncio é fundador “significa que o silêncio é garantia do movimento de sentidos. Sempre se diz a partir do silêncio.” (ORLANDI, 1992, p.23). No entanto Eni aponta a importância em distinguir [...]entre a)o silêncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar e b)a política do silêncio que se subdivide em b1)silêncio constitutivo, o que nos indica que para dizer é preciso não-dizer (uma palavra apaga necessariamente as “outras” palavras) e b2)o silêncio local, que refere à censura propriamente (aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura). (ORLANDI , 1992, p.23-4) No presente artigo o foco está na politica do silêncio, mais especificamente no silêncio local. “Os sentidos são dispersos, eles se desenvolvem em todas as direções e se fazem por diferentes matérias, entre as quais se encontra o silêncio.” (Idem, p.48). A autora (1992), ao fazer a afirmação de que o silêncio não fala, visa uma concepção não-negativa do mesmo, sendo essa a de que o silêncio significa e sua matéria significante é de uma natureza diversa que não opera pela “discreção” ou pela “gregaridade”, mas sim ao deslocar a noção de completude e dialogia. Entra-se, assim, no campo da não-completude própria a todo processo discursivo, que ao ser observada por meio da questão do silêncio fica assim: [...]a) o silêncio, na constituição do sujeito, rompe com a absolutização narcísica do eu que, esta, seria a asfixia do sujeito já que o apagamento é necessário para sua constituição: o silenciamento é parte da experiência da identidade, pois é parte constitutiva do processo de identificação, é o que lhe dá espaço diferencial, condição de movimento; b) o silêncio, na constituição do sentido, é que impede o non sense pelo muito cheio, produzindo o espaço em que se move a materialidade significante (o não-dito necessário para o dito). (ORLANDI , 1992, p.51, grifo do autor) Na dimensão política do silêncio, a autora diz que “há pois uma declinação política da significação que resulta no silenciamento como forma não de calar mas de fazer dizer “uma” coisa, para não deixar dizer “outras”. Ou seja, o silêncio recorta o dizer. Esta é sua dimensão política.” (Idem, p.55, grifo nosso). Eni (1992) define essa política como sendo o silenciamento de outros sentidos possíveis mas indesejáveis, que se dá ao se dizer algo específico em uma dada conjuntura, fazendo com que esse apagamento seja necessário. Para melhor compreender a importância desse silêncio político como parte da metodologia de análise do texto fílmico, deve-se atentar para sua característica apresentada pela autora (1992): é ele que produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, permitindo que nós possamos focar nele ao invés do silêncio fundador, já que este não estabelece nenhuma divisão, significando em/por si mesmo. É, ao produzir esse recorte entre o que se diz e o que não se diz (não se deixa dizer), que Eni afirma que essa política é a de se descartar certos sentidos para não serem trabalhados, sentidos esses que se quer evitar, pois seriam carregados de significações de “outra” formação discursiva. Com isso há a conclusão de que trabalhar com esse silêncio é colocar-se nos limites das formações discursivas, delimitando os limites do dizer. Ainda acerca dessa política, há a distinção feita pela autora de dois silêncios presentes aí: o constitutivo e o local. O constitutivo é tido como aquele em que se estabelece na medida em que todo dizer apaga necessariamente outros sentidos possíveis, provando que silêncio e dizer são inseparáveis. (ORLANDI, 1992, p.76). Quanto ao silêncio local, esse é o mais visível da política ao ser a manifestação da interdição do dizer. Eni toma como exemplo a censura, no entanto faz-se necessário compreender a censura como “fato”1 de linguagem, e não “dado”2, ou seja, analisá-la considerando sua materialidade linguística e histórica. (Idem, p.76-7). [...] a censura pode ser compreendida como a interdição da inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas. Conseqüentemente, a identidade do sujeito é imediatamente afetada enquanto sujeito-do-discurso (…). Ao mudar de formação discursiva, as palavras mudam de sentido. (…) A censura estabelece um jogo de relações de força pela qual ela configura, de forma localizada, o que, do dizível, não deve (não pode) ser dito quando o sujeito fala. (ORLANDI, 1992,p.77-8). Por fim, o silêncio é aquilo que é apagado, posto de lado, excluído, indo na direção contrária do não-dito, que se define em relação ao dizer. (ORLANDI, 1992, p.106) As noções apresentadas acima serão necessárias neste trabalho, sendo o mesmo concebido como um exercício prático dessas postulações teóricas. O recorte feito ao se escolher trabalhar com tais termos dentro da política do silêncio – silêncio local e censura – tem por objetivo propor um breve encontro entre AD e o cinema. 3. A censura e o sexo no bailar do tango Com base nos conceitos apresentados, e melhor desenvolvimento de algumas questões, vamos à análise do texto fílmico Último Tango em Paris (1972), de Bertolucci. Orlandi (1992) atenta que a censura é um processo de identificação, e diz respeito ao sujeito e sua relação com o dizível, nesse quadro não há, a priore, espaço possível para a autocensura, sendo que a censura em si sempre visa um “outro”, a um discurso outro impondo sua função que é a de limitar. É o poder dizer de “um” em relação a ao dizer do “outro”, sendo um sujeito autorizado ou não a sustentar determinado discurso. Para dar início efetivo à análise, deve-se salientar que trabalharemos a seguinte situação: Bertolucci, o diretor do texto fílmico aqui tratado, faz uso dos silêncios durante todo o filme, manifestando claramente o fenômeno da censura por meio, 1 “O dado tem sua organização, o fato se produz como um objeto da ordem do discurso (lingüísticohistórico). (…) os “dados” não têm memória, são os “fatos” que nos conduzem à memória lingüística. Nos fatos temos a historicidade. Observar os fatos de linguagem vem a ser considerá-los em sua historicidade, enquanto eles representam um lugar de entrada na memória da linguagem, sua sistematicidade, seu modo de funcionamento. Em suma, olharmos o texto como fato, e não como um dado, é observarmos como ele, enquanto objeto simbólico, funciona.” (ORLANDI, 1998, p.58). 2 (Idem) principalmente, do sexo, da relação sexual que é estabelecida entre as duas personagens principais, Paul (Marlon Brando) e Jeanne (Maria Schneider). Em Último Tango em Paris a censura, como manifestação linguística, traz à tona a relação de força exercida por Paul ao obrigar Jeanne a falar só o estabelecido (o que pode ser dito) por meio do calar, do censurar certos assuntos, assuntos esses que pudessem ter qualquer relação com o pessoal, com a vida privada de cada um deles. Jeanne tem um namorado que é aspirante a diretor de cinema. As partes referentes a ambos não são de nosso interesse, sendo deixadas à margem. A crítica presente por meio da personagem do namorado dela será rapidamente abordada na conclusão. Para uma melhor e mais pontual análise, será feita uma divisão subjetiva do filme, chamando a atenção para partes específicas, que por sua vez têm pontos cruciais relacionados à censura, ao silenciamento (não detalhando exaustivamente os detalhes que possam divergir muito da proposta). Primeira parte – O encontro silencioso, a vida e a morte: no início do filme, Paul está parado com as mãos nos ouvidos quando passa um trem; no momento em que o trem está passando e fazendo todo o seu ‘barulho’, Paul grita: ele quer silêncio. Pode-se dizer que aí já se tem uma premissa para o que será trabalhado durante todo o filme: o silêncio em sua primazia sobre as palavras e a linguagem tomada como um movimento periférico, como ruído. Jeanne vem caminhando logo atrás e passa por Paul, olha-o por uns segundos. Logo depois ambos se encontram novamente em uma espécie de bar, dentro da cabine telefônica, que também é um banheiro onde uma senhora escova sua dentadura (algo necessário para uma boa dicção, para uma fala ‘correta’, compreensível), havendo a segunda premissa para o silêncio que irá se instalar: o não poder dizer por se ter ‘posto de fora’, censurado, certa possibilidade de sentido que pode ser dito (é sociohistoricamente determinado), mas que acaba por sofrer intervenções de relações de força nas circunstâncias de enunciação (ORLANDI, 1992). Jeanne vai ver um apartamento que está para alugar no prédio ao lado e encontra Paul já na sala, sentado, quieto/introspectivo. Os dois não trocam muitas palavras, só algumas opiniões gerais. Quando ela volta do banheiro o telefone toca, os dois atendem, ela fica muda de um lado da linha ouvindo o que Paul diz. Ele, após terminar de falar, também permanece em silêncio, colocando o telefone em uma cadeira sem que Jeanne perceba e vai em sua direção, surpreendendo-a. Logo pergunta se gostou do apartamento, mas fica sem resposta, então pergunta novamente de forma rigorosa e ela diz que vai pensar, ele fala para pensar rápido, em seguida vai até a porta, fecha-a e volta em sua direção. Sem falar mais nada, os dois transam próximos à janela da sala, ao término do sexo cada um vai para um lado (afastam-se ainda deitados no chão), não deixando margens para uma ligação, e depois vão embora em silêncio. Quando Paul chega em seu próprio apartamento, sua empregada lava a banheira onde a sua mulher se suicidou; ela fala e ele não responde, conta sobre como foi interrogada e como explicou o ocorrido para uma instituição de controle do status quo, a polícia, sendo que essa a reprimi e se diverte às suas custas: Eu quis limpar tudo... mas a polícia não deixou. Não acreditaram que foi suicídio. Havia muito sangue por tudo. Divertiram-se comigo encenando. “Ela não estava lá. Ela não estava aqui. Ela abriu a cortina.” Fiz tudo como ela (...) Todos espiões. Se ela estava triste, se estava feliz... Se brigavam, se se pegavam. E sendo casada... por que não teve filhos? Nojentos. Eles me trataram como lixo. Eles disseram: “Seu chefe é nervosinho. Sabia que ele luta boxe?” E daí? “Mas não se saiu bem.” Depois ele foi ator. E depois tocou tambor. Revolucionário na América do Sul. Jornalista no Japão. (...) Aí ele chega em Paris. E aqui... encontra uma mulher rica. Casa-se com ela... “O que seu chefe fará agora?” Ele é reservado. “Posso limpar agora?” “Não toque em nada. Você realmente acha que... ela se matou?” E então ele me empurrou em um canto, tentando... Em seguida Paul a interrompe mandando que feche a água. Depois de mais algumas palavras, ele a agarra, mostrando no corpo dela os locais que sua mulher cortou para morrer (pulsos e garganta). Toda essa parte mostra como ele é reservado, está à procura do silêncio todo o tempo, e como exerce sua força em relação às mulheres. Esse silêncio dele é fundador, é o lugar em que se inscreve toda a sua significação. A partir da morte da mulher, ele irá viver por meio desse silêncio, indo aos extremos para silenciar a si mesmo, seu nome, a família, a civilização, os ‘ruídos’ externos que já não mais são o local de sua significação. Todo o tempo ele confronta a ideologia burguesa romântica em que o casamento é para necessariamente ter filhos, em que se tem um nome como propriedade privada, responsável por sua identidade, em que ter vários empregos é não ser bemsucedido e ainda ter os empregos mencionados pela empregada significaria ser ‘vagabundo’ (ele ficava vagando) e ter como objetivo casar-se com alguém que o sustenta-se. Para a ideologia burguesa, ir contra seus ideais poderia, nesse caso, levar alguém a ser um assassino (a polícia não acredita na morte como suicídio). Segunda parte – censura, força e ideologias em mundos particulares: aqui Jeanne entra pela segunda vez no apartamento; homens carregando móveis começam a entrar – são os responsáveis pela mudança de Paul para o local. Um deles, o que carrega a cama de casal, refere-se aos dois como casados, fazendo menção ao “Seu marido[...]” - fica outra vez clara a ideologia burguesa cristã romântica dos bons costumes e boa moral, supondo que se uma mulher está no apartamento de um homem só pode ser sua esposa, não sendo possível (sendo silenciado) um discurso de uma relação casual. Ao final da mudança, Paul adentra a sala e arrasta a cadeira em que Jeanne se encontra sentada até à janela de maneira a exercer sua força de forma física, inclusive; ela diz que está ali para entregar as chaves que havia pegado em seguida ele diz que não se importa. Jeanne: “Devolvê-la a você.”, Paul: “Não estou nem aí. Tire o casaco. Vamos. Ajude aqui. Pegue estas cadeiras e coloque-as aqui. [...]”. Este ponto é crucial, é quando ele começa efetivamente a mandar nela, dizendo o que fazer, como fazer, ponto de partida para a censura que virá em seguida. Jeanne: “Eu não sei do que chamar você.”. Paul: “Eu não tenho um nome.”, Jeanne: “Você quer saber o meu nome?” e Paul grita euforicamente: “Não, não quero! Não quero saber o seu nome.” e tampa a boca dela com a mão, em um gesto claro de censura, de repressão. Com a mão em sua boca, ele prossegue: “Você não tem nome e eu também não. Não há nomes aqui. Nenhum nome.”. A primeira reação da moça é de repúdio: “Você é doido.” e ele responde: “Talvez eu seja, mas não quero saber nada sobre você. Não quero saber de onde mora nem de onde vem. Não quero saber nada! Entendeu?”, ela: “Você me assusta.” e ele torna a enfatizar: “Nada. Você e eu vamos nos encontrar aqui sem saber nada do que se passa lá fora.”. Feita a censura explícita, ela questiona o porquê disso e ele somente diz que é porque ali eles não precisam de nomes, pergunta se ela não consegue ver. “Vamos nos esquecer de tudo o que sabíamos. Tudo... Todas as pessoas... tudo o que fizemos, tudo o que... Onde quer que vivamos. Vamos nos esquecer de tudo.”. Jeanne tenta não se deixar censurar: “Mas eu não posso. Você pode?”, Paul: “Eu não sei. Você está com medo?”, a resposta vem como um sinal afirmativo feito com a cabeça. É importante ressaltar que é nesse diálogo que eles passam a falar em inglês, língua nativa de Paul, conotando uma entrada no mundo particular dele, com a língua dele, as regras dele, os comandos dele. Por fim, a moça parece ceder, terminando por dizer: “Venha.”, ela aceita o convite, apesar do medo que essa censura feita traz. A imagem seguinte é a do encontro dele com a mãe de sua falecida esposa, há na porta do quarto (que tem lugar bem no meio de ambos, sendo, por um tempo, o único foco da câmera) uma placa escrita “Privado” (privé) e é somente aí que, durante o filme, seu nome é revelado, em uma situação familiar íntima onde o nome é necessário para a identidade, principalmente dentro da família. Não é Jeanne que revela seu nome, não é sua empregada, mas sim sua sogra, aquela com quem tem laços (ainda que não consanguíneos) de parentesco. Após conversarem, Paul a leva para um cômodo no hotel (do qual é proprietário). Passado um tempo, a senhora diz que avisou muitas pessoas, que ela pensa em tudo e que fará um lindo velório, com muitas flores. Paul afirma que ela trouxe tudo para a ocasião (cartões, a roupa do enterro, as flores) dentro de uma mala, mas que ele não quer nenhum padre por lá. Sogra: “Você precisa dele. O enterro tem de ser religioso.”, Paul grita autoritariamente que não, afirma que Rose, sua esposa, não acreditava nisso e que ninguém ali acredita em Deus e, em um acesso de raiva, pega a mala de sua sogra e a joga contra a parede, censurando a possibilidade de um discurso religioso e dando, mais uma vez, uma demonstração de poder, estabelecendo uma relação de força em que ele é quem domina e deve ser obedecido, é seu discurso que deve prevalecer. Para corroborar ainda mais o fato de não se precisar de um padre, ele lembra que a igreja não aceita/quer suicidas e ameaça batê-la ao levantar a mão, a senhora tenta argumentar com a possibilidade de absolverem sua filha e pede somente isso: absolvição e uma bela missa. O diálogo termina pouco depois e ele sai do quarto, sendo que a hóspede do quarto em frente (uma outra senhora) está observando tudo, ele fecha sua porta e passa na frente de outro cômodo em que ainda outra mulher também se encontra em um papel observador, a atitude é a mesma, ele fecha sua porta, mas desta vez com violência. Paul está sempre rodeado de mulheres e todo o tempo exerce sua força em relação a elas, faz com que seu discurso seja o dominante. Ele é opressor. Ele também é o sujeito interpelado por uma ideologia de esquerda, contra instituições (igreja, família), contra um relacionamento sexual com supostos laços emotivos necessários para o sexo em si, ele é o que vai de encontro (confronta) com a ideologia que interpela sua sogra, sendo ela a que vê necessidade do nome, do padre, do velório, da organização burguesa de como a vida e o homem privado devem ser. Deve-se atentar ao fato de que ele não impede sua sogra de dizer o que ela diz, mas a impede de sustentar o ‘outro’ discurso. O silêncio sustentando por Orlandi (1992) não é o da ausência de palavras, mas sim do falar para não se “[...]dizer (ou não permitir que se diga) coisas que podem causar rupturas significativas na relação de sentidos. As palavras vêm carregadas de silêncio(s).” (ORLANDI, 1992, p.105). Assim sendo, Paul não cala a sogra, mas silencia ao falar que ali ninguém acredita em Deus, por exemplo. Terceira parte – a retórica da resistência do oprimido: é retomado o cenário no apartamento alugado. Jeanne entra, o colchão se encontra no meio da sala, em silêncio os dois (ela e Paul) se despem e transam. Apesar de haver uma censura que procura evitar um envolvimento emocional, há uma ligação demonstrada na posição em que se encontram: um de frente para o outro, sentados, abraçados (posição essa considerada muito romântica por se ter total acesso ao corpo do parceiro, gerando uma suposta maior conexão emocional). Pode-se dizer que é uma forma de significar o emocional silenciado. “A censura joga com o poder-dizer impondo um certo silêncio. Entretanto, como o silêncio significa em si, à “retórica da opressão” - que se exerce pelo silenciamento de certos sentidos – responde a “retórica da resistência” fazendo esse silêncio significar de outros modos.” (ORLANDI, 1992, p.87). Paul: “Vamos nos olhar.”, Jeanne: “É lindo não saber de nada. Talvez... Talvez nós possamos gozar sem nos tocar.”, há, aqui, uma abertura para um sexo que transcende, que não precisa de toques, como numa espécie de sexo tântrico, porém, sem sucesso, os dois acabam fazendo graça da situação. Vê-se a possibilidade de um discurso que levaria para o emocional, mas ele é logo descartado, sendo zombado como algo ridículo. Jeanne: “Terei de inventar um nome para você.”, ele: “Um nome? Ah, Jesus Cristo! Meu Deus! A vida inteira me chamaram de um milhão de nomes. Não quero um nome. Prefiro um gemido ou grunhido como nome. Quer ouvir o meu nome?” e então faz barulhos com a boca. Jeanne: “Tão masculino. Escute o meu.” e faz grunhidos. Retomase, outra vez, a palavra como ruído, como excesso e o silêncio como um trabalho das “[...]diferenças inscritas nos processos de identificação do sujeito[...].”, sendo que “[...]o sujeito também é movente: o que o mantém em sua identidade não são os elementos diversos de seus conteúdos, nem sua configuração específica (ele tem muitas), mas seu estar(ser)-em-silêncio.” (ORLANDI, 1992, p.92). É ao estar (ser) em silêncio que Paul procura encontrar sua identidade, fora dos “[...]limites contraditórios das formações discursivas diferentes.” em “[...]processos de identificação do sujeito que não estão fechados na sua “inscrição em uma formação discursiva determinada” mas justamente nos deslocamentos possíveis – trabalhados no e pelo silêncio – na relação conjuntural das formações.” (Idem). Jeanne: “O coronel tinha olhos verdes e botas engraxadas. Ele era um deus para mim. Ele ficava tão lindo vestido de uniforme.”, Paul: “Mas que monte de baboseira.”, ela: “O que está dizendo? Eu o proíbo.”, ele: Todo uniforme é bobagem. Tudo fora daqui é bobagem. Além disso, não quero ouvir as histórias do seu passado.”, ela: “Ele morreu em 58, na Agiria.”, Paul: “Ou em 68, ou 28 ou 98.”, Jeanne: “Em 58, e não ria disso.”, ele: “Por que não pára de falar de coisas que não interessam aqui? Qual a diferença?”, ela concorda. Jeanne: “O que eu preciso dizer? O que eu preciso fazer?”, ele a chama para a cama. Começa a tocar gaita e ela pergunta o porquê dele não voltar para a América, a resposta é “As más lembranças, eu acho.”, ela questiona quais e ele: Meu pai era um bebum. Durão, vivia com prostitutas, brigava em bares... super masculino... e ele era firme. Minha mãe era muito... muito poética. E também bebia muito. Todas as minhas lembranças de quando criança... eram dela sendo presa nua. Vivíamos em uma cidade pequena. Comunidade agrícola. Morávamos em uma fazenda. Eu chegava em casa da escola... e ela não estava. Estava na cadeia ou algo. (…) E... não sei, eu simplesmente... eu não me lembro de muitas coisas boas. Jeanne: “Nenhuma?”, ele: “Sim, algumas. [..]” e conta uma história sobre um fazendeiro bom e pobre para quem trabalhava, apesar de odiar o trabalho por fazer calor, se sujar e ficar com as costas doloridas. Depois ainda fala novamente da mãe e de uma cachorra que teve. Jeanne: “Você foi enganado.”, Paul: “É mesmo?”, ela em tom de ironia imitando a voz dele: “Não quero saber nada do seu passado, amor.”, ele: “Pensa que o que eu disse é verdade? Talvez seja.”. Os dois estabelecem um novo diálogo após esse episódio, que culmina na afirmação da moça de que se sente novamente uma criança lá no apartamento, Paul pergunta se a infância dela foi linda a ponto poder ser recontada ou forçada a admirar uma autoridade e vender-se por um pirulito. Quando Jeanne fala do coronel ela realmente fala do pai, mesmo sem explicitar quem o tal coronel era, a identidade é silenciada para que se possa dizer, Paul não quer saber de histórias, mas, como o silêncio e a censura não se dão pela ausência de palavras e sim pela outra fala que evita a ruptura dos sentidos, ele acaba por contar uma longa história que por fim não se sabe a autenticidade da mesma – pode ser real como pode ter sido o outro discurso que cala, que censura. Em seguida, Jeanne revela sentir que volta a ser criança, o apartamento se torna de fato um lugar onde ambos voltam ao primitivo, à falta de identidade forçada pelo social burguês, sendo que para confirmar isso Paul pergunta sobre a infância dela ter sido linda (podendo ser entendida como livre num ideário esquerdista) ou de imposições de instituições (presa num ideário direitista de quem se vende por pouco). Jeanne: “Meu primeiro amor foi meu primo Paul.”, assim que termina essa sentença Paul grita, negando a possibilidade daquela afirmação tão íntima e com nome (nome esse igual ao seu, criando uma possível relação indireta entre ambos ao se dizer do que sente por ele (sem nome) por meio de outro (com nome)). Novamente ele avisa que os nomes são proibidos naquele ambiente, permite inclusive que se diga a verdade, mas de forma oculta, sem citar nomes, sem criar uma identificação. A moça continua contando sua história de forma a ocultar certos detalhes indesejados e, com o passar da conversa e a maior intimidade dentro dela, ainda que minimamente, passa a falar em francês, trazendo à tona o seu mundo, a sua procura por uma identidade. Apesar dela ter tido permissão para falar a verdade, Paul parece não ouvir, se mostra desinteressado fazendo com que ela mude sua fala. Ele a censura com o desprezo, ignorando-a para que seu discurso seja outro. Em um momento seguinte, Jeanne questiona Paul: “O que estou fazendo neste apartamento com você? Amor?” Ela procura compreender a censura imposta por ele. Sua resposta é clara: “Bem... digamos que estamos só dando uma ligeira trepada em um buraco passageiro.”, ela: “Você me acha uma “diretriz”.”, ele: “Acho o quê? Uma quê? “Diretriz”?” ela tenta pronunciar novamente a palavra em inglês e ele a corrige: “Quer dizer “meretriz”?”. Ela: “Sim. Uma puta.”, ele: “Não, você é uma querida mocinha comportada. Por que anda fuçando nos meus bolsos?” - Jeanne, pouco antes do início da conversa, enfia a mão no bolso do casaco dele e tira uma lâmina. “Para descobrir quem você é.” - ele a imita com leve tom irônico. Ela: “Sim.”, ele: “Se olhar bem... você me verá escondido atrás do zíper.”. Jeanne começa a tentar traçar um perfil dele baseado no tipo de roupa que usa, crendo não ser muita informação, mas um começo de algo, Paul nega, dizendo que é o fim (possibilidade de ruptura) e a moça aparenta ceder, afirmando que é para se esquecer o assunto, mas em seguida pergunta sua idade, ele, claro, mente. Adiantado o diálogo, Jeanne afirma que Paul não quer saber nada porque odeia mulheres e questiona o que elas fizeram a ele. Ainda que a censura seja imposta e os motivos explícitos – não envolvimento emocional, só trepar -, ela parece não aceitar, não conseguir compreender o que se passa, não consegue interpretar o que está sendo dito. A resposta dele para o questionamento feito é a de que as mulheres sempre estão fingindo saber quem ele é ou fingem que ele não sabe quem elas são, sendo esse “jogo” emocional uma chatice. Jeanne diz que não tem medo de dizer quem ela é e começa a dar suas características quando ele a censura com o grito de “Não!” e ao final reconhece que é difícil, mas que ela terá de suportar (a censura/silenciamento). Jeanne fica emburrada/brava, Paul brinca com ela e lhe dá uma espécie de consolo: diz que está feliz com ela ali e sai do banheiro, deixando-a sozinha. Há um pedido gritado de “bis” para que a brincadeira continue, mas ele a ignora completamente. Outra vez é com a censura explícita pelo silenciar e pelo dizer “um” para não deixar que se diga “outro”, ao dizer que está feliz com ela, silencia sua (de Jeanne) necessidade de falar do pessoal para criar laços/vínculos. Ao terminarem de se arrumar para sair do apartamento, Paul pára na porta, Jeanne diz que já está indo e pergunta se irão embora juntos... Ele simplesmente bate a porta na cara dela de modo impositivo. Ela é fortemente censurada, com raiva grita: canalha! – o ‘mundo lá de fora’ não existe dentro do apartamento, assim como os dois não existem no ‘mundo lá de fora’. Quarta parte – a ruptura: Jeanne entra no apartamento, Paul manda que pegue a manteiga. Um diálogo se segue até chegar no ponto em que abre as calças dela fazendo menção à sua vagina como sendo uma caixa onde possa haver joias, vira-a de bruços bruscamente no chão e retira sua calça, expondo sua bunda, ela o confronta falando que não é pra abrir que podem ser segredos de família e ele fala que irá contar algo sobre a família: “Uma instituição sagrada suposta a instituir a virtude em selvagens. Quero que repita comigo.”. Enquanto sodomiza Jeanne, Paul a obriga a recitar uma litania rejeitando o amor, a família, a igreja e outros valores, procura censurar em Jeanne todas as suas referências afetivas: Uma família sagrada... Vamos, diga. Vamos. Família sagrada. Igreja de bons cidadãos. Diga. Diga. As crianças são torturadas até contarem a primeira mentira. Onde o mundo é violado pela repressão. Onde a liberdade... é assassinada... Onde a liberdade é assassinada pelo egotismo. Família. Sua... 3 Sua... foda... Sua foda... de família. Sua família fodida.[...] Em outro momento, fora do apartamento, o namorado de Jeanne a pede em casamento, sendo aceito o pedido. Após experimentar o vestido de noiva, uma forte chuva começa e ela sai correndo ao encontro de Paul. No apartamento, fica horrorizada com um rato e diz que vai embora para nunca mais voltar, ele a impede de ir, força um banho quente de banheira. Jeanne então começa a afirmar várias vezes que está apaixonada, conta que ‘eles’ fazem amor e Paul questiona se ‘ele’ fode bem (silencia o discurso do amor romântico com o do sexo por prazer), sendo dito que é magnífico. Ele a considera uma besta e diz que a sua melhor foda está ali naquele apartamento. Ela diz que ‘ele’ é cheio de mistérios, sendo outra vez refutada com o fato de os maiores mistérios que terá na vida estarem ali; Paul começa um monólogo sobre como é impossível encontrar um homem que dará a ela todas as coisas que almeja, como proteção, carinho, segurança e que mais tarde esse homem faria dele mesmo um altar, tendo ela que adorar o seu pênis, por fim afirma que tudo parece besteira, chama tudo de baboseira romântica e fala sobre a morte, sobre encontrar/enfrentar de fato seus medos e que daí talvez ela encontre “o homem certo”. Jeanne então revela: “[...]Ele é você. Você é esse homem.”. 3 Não são reproduzidas aqui as falas de Jeanne, mas o diálogo se dá com ela repetindo as frases que ele vai falando pausadamente, de maneira repetitiva. Minutos depois, após ter mandado a moça cortar suas próprias unhas da mão direita, ele faz um pedido: “Enfie os dedos no meu cu.”, ela: “O quê?”, ele: “Enfie os dedos no meu cu. Você é surda?[...]”, ela obedece. Agora é ela quem o sodomiza, permitindo-se penetrar, abrindo mão da sua própria virilidade. Depois, quando Jeanne volta ao local, os móveis não se encontram mais ali, ele a deixou. O fato de ela ter trazido à tona o discurso do amor, do emocional, num envolvimento com ele (Paul) por estar apaixonada, apesar de toda a censura a respeito disso, faz com que a ruptura aconteça. Ela liga para o noivo e diz que encontrou um apartamento para os dois, pode estar aí refletida a censura que ela tentaria se impor, apesar de não ser possível uma autocensura: a de silenciar o discurso relacionado a Paul com outro relacionado ao noivo. Ambos se encontram e ela fala sobre ter bastante espaço, inclusive para criar filhos, quem sabe chamado Fidel, como Castro. Os dois começam a brincar dentro do apartamento, e subitamente seu noivo é invadido por uma sensação de ‘bolsa de ar’ e se pergunta o que está acontecendo consigo, afirma que é uma zona de turbulência e que deve acabar: eles não podem mais brincar feito crianças. Ele: “Somos adultos.”, ela: Adultos? Que horror.”, ele: É um horror sim.”, Jeanne: “Então como devemos agir?”, ele: “Eu não sei. Invente gestos, palavras.[...]” e, numa ruptura final com a infância, com o livre, com o primitivo, o noivo diz: “[...]Este apartamento não é para nós. De jeito nenhum.” e sai para procurar um outro. Quando Jeanne deixa o local, Paul começa a segui-la. Quando ele chama sua atenção, ela diz que acabou, ouvindo como resposta a afirmação que de fato acabou, mas que então começa novamente, ela diz não entender nada, nem o que começa de novo nem o que ele quer dizer com isso, então ele explica que eles saíram do apartamento e que agora podem começar de novo “[...] com amor e todo o resto.”. Jeanne ainda não compreende, Paul começa a fazer uma descrição de si (idade, situação amorosa (viúvo), emprego etc). Eles entram numa casa de tango, a descrição continua até que diz que é de uma época em que um cara como ele entraria num lugar daqueles e ‘pegaria’ uma moça como ela e a chamaria de piranha. Paul fala sobre o tango, como aquela dança é um ritual – no local em que se encontram há vários casais dançando; apesar do tango ser conhecido como uma dança extremamente sensual, todos estão comportados, alinhados, vestidos de maneira pudica aludindo a uma sociedade de boa moral, bons costumes, em que todos dançam conforme a música de maneira recatada e regrada, não se percebe nenhuma sensualidade por parte dos dançarinos, os casais nem mesmo aparentam ter qualquer afinidade tamanha a seriedade de todos. Paul força Jeanne a beber, diz que se ela o ama beberia tudo, ela o faz alegando amá-lo. A moça pede para ele falar sobre sua esposa, sendo silenciada com um discurso sobre dois (“nós”), a moça olha em volta e fala que o lugar é deprimente e Paul concorda, expondo o lado positivo: ele estar ali. Quando os dois vão para o “mundo de fora” passam a pertencer àquela sociedade decadente, é como se agora, apesar de terem que seguir as regras, pudessem fazer parte da mesma por terem “amor”. Paul se declara: diz que a ama e que deseja viver com ela. Jeanne é sarcástica ao falar que irão viver em sua ‘espelunca’, ele alega não fazer diferença se tem uma espelunca ou um castelo, afinal, ama-a. Passado um tempo de conversa, Paul a manda esquecer o hotel e celebrarem uma vida no campo, ela diz não saber que ele gostava da natureza e afirma odiar o campo, preferindo ir para o hotel. Paul a tira para dançar, os dois, bêbados, giram pelo salão – ele a carrega nas costas, em seguida arrasta-a pelo chão e então bailam livremente, sem qualquer imposição de estilo ou ritmo musical, são o único casal que se olha nos olhos e ri, se beijam e são finalmente expulsos do local por atrapalharem a competição de tango. A senhora que os retira do lugar fala que se querem ver amor que fossem ao cinema – é a confirmação de que na sociedade burguesa o amor em si nem mesmo importa, mas sim as instituições (família) e o padrão imposto para que a ‘dança possa continuar’ e os casais possam sempre parecer perfeitos. É uma sociedade falha. Paul sai a contragosto, mostrando as nádegas em uma demonstração de que simplesmente não se importa com nada daquilo que está sendo imposto. Já fora do salão, Jeanne repete várias vezes que tudo acabou e o masturba numa certificação de que era só sexo, nada mais, e simplesmente vai embora. Ele a segue até seu apartamento, onde mora com sua mãe. Ele fala que é a chance deles no ‘campeonato’ (na sociedade com uma vida regrada e “normal”/burguesa), que agora irão até o final, e afirma amá-la dizendo querer saber o nome dela. Jeanne, sentindo-se invadida com a presença daquele ‘estranho’ em sua intimidade, dá-lhe um tiro na barriga. Paul morre na sacada em posição fetal. Jeanne fica repetindo para si mesma que não o conhece, que é um louco, que ele tentou violentá-la, que ela nem mesmo sabe seu nome – por fim, a censura, o silenciamento tantas vezes imposto ganha lugar dentro dela, abrindo espaço para o ‘outro’ discurso: do desconhecido, do não-envolvimento, do não-saber, do sem-identidade. 4. Conclusão Os anos 60 e 70 foram fortemente marcados por revoltas e revoluções. A geração conhecida como baby-boomers foi basicamente a que compôs toda a contracultura que emergiu durante esse período. Em praticamente todo o mundo, jovens protestavam contra ideologias hegemônicas, vistas como castradoras, censoras. Na Europa, o auge foi o maio de 1968, em que houve grande revolta estudantil indo de encontro com a cultura consumista, capitalista, burguesa e individualista que predominava. O desenvolvimento do sistema de comunicação formavam fluxos constituindo o espaço cultural global e agora o mundo inteiro podia assistir o que acontecia (RAMOS; BUENO, 2001); era a retomada de ideários esquerdistas e até mesmo orientais, a Europa não tinha mais espaço ao centro, os jovens eram qualquer coisa, menos “eurocentristas”. ( COGGIOLA, 1991). Grandes bandeiras eram erguidas – em prol dos jovens; da libertação feminina; dos negros; gays etc -, sendo que um dos maiores, se não o maior, fatores para as revoltas na França, especificamente, foi o grande fluxo de universitários sem a possibilidade de um real estudo – fica vigente o “Plano Fouchet”, propondo ciclos de curta duração, com diplomas desvalorizados. A crisa universitária era apenas um dos aspectos de um crise geral de superprodução capitalista. (COGGIOLA, 1991). Último Tango em Paris pertence a um contexto histórico de revolução, de questionamento humano, até mesmo psicológico. Bertolucci critica fortemente a sociedade burguesa da época, critica seus costumes e valores românticos e os põe à prova. Por meio da censura, no texto fílmico em questão, ele procura provar ser possível um relacionamento em que o emocional não se faz necessário, e vai além, mostrando que, em uma relação só de sexo por puro prazer sem conhecer absolutamente nada sobre o parceiro, é muito mais realizável o amor do que em um grupo social onde há regras e e bons modos, e praticamente nenhum contato físico de carinho ou afeição (um tango sem qualquer troca de olhares, sem a sensualidade própria do mesmo, do ritual de conquista). Durante todo o filme fica clara sua posição, não só quanto ao sexo em si, mas quanto às instituições reguladoras e dominadoras - até mesmo opressivas e abusivas -, quanto à libertação da mulher (no filme, as duas mulheres da vida de Paul são quem traem – a esposa traindo ele com outro hóspede do hotel e Jeanne traindo o namorado/noivo, todo o tempo a mulher é a possuidora da liberdade sexual) etc. Em meio a tanta conturbação, a tanto ruído, Paul procura encontrar sua identidade no silêncio, indo ao encontro de seu silêncio fundador e impondo uma política de silêncio a outros. É o opressor que, ao oprimir/censurar, acaba por oferecer novas possibilidades de discursos e novos limites nas formações discursivas de outros sujeitos. É por meio do silêncio que Bertolucci faz suas críticas à sociedade burguesa, ele critica até mesmo as “revoluções infantis”, como os cinemas que surgem com o intuito de revolucionar, de ir contra a hegemonia norte-americana cinematográfica, por exemplo a Nouvelle Vague que surge como um cinema de contracultura (MANEVY, 2006). As consequências foram inúmeras, desde proibições do filme a até Bertolucci ser condenado a quatro meses de prisão (tendo sido suspensa a sentença) e ter seus direitos civis e políticos cassados por cinco anos. Na área cinematográfica, foram filmes como esse que ajudaram a queda de grandes clássicos, como os filmes de Western, que se viram “obrigados” a mudar as características de seus heróis e vilões (VUGMAN, 2006). Último Tango em Paris tem repercussão até nos dias de hoje, é um filme forte, mas de questões delicadas e que não deixa espaço para o meio-termo, é a afirmação categórica dos valores ideários de Bertolucci numa época de revolta e de revoluções, revoluções que não conseguiram implantar as mudanças a que realmente se propunham, mas que fomentaram uma significativa evolução em muitos aspectos. Referências: AGUIAR, Marco A. de. A retomada e o cinema político italiano dos anos 60 e 70. São Carlos. 2009. Disponível em: < http://www.ufscar.br/rua/site/?p=1667 >. Data do acesso: 31.10.201. CANIZAL, Eduardo P. Surrealismo. In: A história do cinema mundial. Campinas. Papirus Editora. 2006. p. 143-155. CARVALHO, Maria do S. Cinema novo brasileiro. In: A história do cinema mundial. Campinas. Papirus Editora. 2006. p. 289-309. COGGIOLA, Oswaldo L. A. Questões de História Contemporânea. Belo Horizonte. Oficina de Livros. 1991. v. 1. 148 p. DI CARMARGO JR, Ivo. Os sonhadores de Bernardo Bertolucci analisado. Um olhar Bakhtiniano em cinema. In: CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários. 3. 2007. Maringá. Anais... Maringá. 2009, p. 1425-1434. DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1995. 299 p. MANEVY, Alfredo. Nouvelle Vague. In: A história do cinema mundial. Campinas. Papirus Editora. 2006. p. 221-252. MASCARELLO, Fernando. Cinema hollywoodiano contemporâneo. In: A história do cinema mundial. Campinas. Papirus Editora. 2006. p. 333-360 ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas. Ed. da UNICAMP. 1992. 189 p. ______ Texto e discurso. In: Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis. Vozes. 1998. p. 52-62. RAMOS, José M. O.; BUENO, Maria L. Cultura audiovisual e arte contemporânea. São Paulo Perspec., São Paulo, vol.15, no.3, p.10-17, Julho, 2001. TONY, Judt. Postwar. A hystory of Europe since 1945. New York. The Penguin Press. 2005. 878 p. Último tango em Paris. [Filme]. Bernardo Bertolucci. França/Itália. Título original: “Ultimo tango a Parigi / Lê Dernier Tango à Paris”. Cor (Technicolor). Legendado. Duração: 130 min. Alberto Grimaldi, 1972. VUGMAN, Fernando S. Western. In: A história do cinema mundial. Campinas. Papirus Editora. 2006. p. 159-175. Letícia Faria Conde Bacharel em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar E-mail: [email protected] Mônica Baltazar Diniz Signori Professora Doutora na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar E-mail: [email protected]