Edenair Carvalho Rocha - PPGHIS
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Edenair Carvalho Rocha - PPGHIS
0 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - DCH - CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL MESTRADO EDENAIR CARVALHO ROCHA AS FONTES DOS VESTÍGIOS: MEMÓRIA E FOTOGRAFIA NAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS NA CIDADE DE CONQUISTA ENTRE 1920 A 1940 SANTO ANTÔNIO DE JESUS - BA ABRIL DE 2011 0 EDENAIR CARVALHO ROCHA AS FONTES DOS VESTÍGIOS: MEMÓRIA E FOTOGRAFIA NAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS NA CIDADE DE CONQUISTA ENTRE 1920 A 1940 Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia – UNEB - Campus V, Santo Antônio de Jesus, Bahia, sob a orientação do Professor Gilmário Moreira Brito, como requisito para obtenção do título de Mestre. SANTO ANTÔNIO DE JESUS 2011 1 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Rocha, Edenair Carvalho As fontes dos vestígios: memória e fotografia nas transformações urbanas na cidade de Conquista entre 1920 a 1940 / Edenair Carvalho Rocha . – Salvador, 2011. 163f. Orientador: Prof. Dr. Gilmário Moreira Brito. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus V. 2011. Contém referências. 1. Vitória da Conquista (BA) - Geografia histórica - Fotografias. 2. Planejamento urbano - Vitória da Conquista (BA). 3. Urbanização -Vitória da Conquista(BA). 4. Vitória da Conquista (BA) - História. 5. Memória. I. Brito, Gilmário Moreira. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 981.32 2 FOLHA DE APROVAÇÃO EDENAIR CARVALHO ROCHA AS FONTES DOS VESTÍGIOS: MEMÓRIA E FOTOGRAFIA NAS TRANSFORMAÇÕES URBANAS NA CIDADE DE CONQUISTA ENTRE 1920 A 1940 Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História Regional e Local, sob orientação do Prof. Dr. Gilmário Moreira Brito. Santo Antonio de Jesus, ______/______/2011 ___________________________________________ Prof. Dr. Gilmário Moreira Brito (orientador) __________________________________________ Profa. Dra. Lysie dos Reis Oliveira ____________________________________________ Prof. Dr. Carlos José Ferreira dos Santos 3 À minha Vó Elça – a mãe que me criou; ao meu avô Edésio – in memorian - Os grandes heróis da minha vida. Às minhas filhas Bárbara e Marina, que são músicas para os meus ouvidos. Ao meu Neto Guilherme – que me ensina a viver desde o dia em que nasceu. 4 AGRADECIMENTOS Primeiro interpretar, em seguida, tornar inteligível: é a dupla função do historiador. No transcorrer desse processo a intuição me uniu às pessoas certas, junto às quais trabalhei, compartilhei, discuti e evoluí o pensamento. Outras, já ligadas a mim, foram fontes de serenidade e leveza, me auxiliando a prosseguir. A elas, tenho todos os sentidos gratos. Agradeço ao meu querido orientador Gilmário Moreira Brito, que mais que isso, se transformou ao longo desta trajetória em “ensinador”, educador, e acima de tudo, um amigo bem humorado e sagaz. Ele soube, magistralmente, determinar as tarefas mais adequadas à construção da pesquisa, com os sutis e fundamentais “chutes na canela”. Aos Professores que encontrei no processo de qualificação: Carlos José Ferreira e Lysie Reis, pessoas incríveis, profissionais dedicados, que com suas críticas sensíveis e apuradas contribuíram imensamente para a continuidade do trabalho. Ao Professor Raimundo Nonato Pereira Moreira por acreditar nas releituras e interpretações que tornaram possível a minha entrada no Museu Regional pelo lugar de memória. Àqueles que se tornaram minha família em Santo Antônio de Jesus, Cláudia, Marcílio, Ícaro, Vitor e Lúcia, pelo aconchego; e a Marilva, Lielva, Priscila e Regina, colegas que tornaram menos solitária a minha estadia numa outra cidade. A todos os professores e colegas de mestrado, pelas trocas enriquecedoras nos encontros em sala de aula e nas saídas fortuitas de conversas e risadas. Agradeço especialmente à Anne, Consuelo e Wilma pela atenção e presteza no acompanhamento de todo esse percurso. Em Vitória da Conquista continuei o percurso, outros parceiros surgiram em instantes oportunos e a eles sou grata: Ruy Medeiros, pela generosidade, que mesmo com suas ocupações, esteve sempre acessível às entrevistas e indagações sobre o estudo e a disponibilidade de sua biblioteca pessoal para a pesquisa em jornais da época, a Roque Felipe, pelas leituras e sugestões valiosas; e a Elzir Vilas Boas pela força em acreditar ser possível começar essa história a partir das memórias produzidas no Museu; agradeço a Lucinéia, pelo apaixonado trabalho com a digitalização das imagens, feito com todo o carinho e maestria. Agradeço especialmente aos amigos do Museu Regional – Casa Henriqueta Prates: Irlândia, Celso, Fábio, Marinalva e Geórgia, companheiros solícitos e facilitadores nos aportes do ofício da pesquisa. E a Vitorinha, que transformou o trabalho na Biblioteca Heleuza 5 Câmara em encontros cheios de bom humor e um ótimo atendimento às necessidades da pesquisa, sou imensamente grata. Aos amigos do coração, Lígia, Marieta, Renatinho, Stelinha, Gutemberg, Marion, Claúdia Celiene, Joandina, Jamilly, e Marco Juca, agradeço. Cada um, em suas peculiaridades e de diferentes formas, mesmo que apenas compreendendo a ausência, me impulsionaram a ir em frente. Agradeço a Dr. Péricles Matos pelas conversas terapêuticas e pelas gotas de Helleborus Niger receitadas com a intuição afinada pelo profissionalismo, carinho e amizade. Aos colegas de trabalho, Isabel Padre, Zelma Borges, Marcos Viana e Márcia Vaz, pela força e por facilitarem os caminhos burocráticos que permitiram a realização deste estudo. Ao meu ‘novo’ pai Ezinho que com sua força aprende todos os dias a viver, aos meus irmãos Eserlane, Eser Júnior, Leinha e a Eserlene, àquela que mora na memória e na saudade; a Edezir Rocha, sempre uma irmã; a minha Tia Dininha, agradeço pelo carinho e atenção na vida. Em especial agradeço as minhas filhas Marina, que na altura dos seus doze anos empreendeu a grande aventura da mudança e a Bárbara, cuja força, desde criança, me proporcionou tranquilidade e liberdade para iniciar a jornada que, em parte, concluo com este trabalho. A todos, com muita emoção, sou grata. 6 Do Cimo do Morro da Tromba Não há no mundo, na terra. Igual a esta, outra vista! Na falda d’aquela serra... Está engastada a – Conquista. No solo em que há sec’lo e meio. Divagavam em recreio, O índio, a onça, o tapir, Onde ora a letra e a ventura. Vão galopando em procura Do sorridente – porvir!(sic) Maneca Grosso, escritor e poeta conquistense, compôs e publicou esse poema no jornal “A Palavra” da Cidade de Conquista em 25 de janeiro de 1918. 7 RESUMO Vitória da Conquista, cidade localizada no Sudoeste da Bahia, a exemplo do modelo de organização do espaço das cidades de origem colonial, cresceu a partir de um núcleo de construções e de sociabilidades construídas sobre a égide das vivências cotidianas e simbólicas, materializadas nas edificações da tríade: igreja, praça e feira. Pretende-se com essa pesquisa, investigar através das narrativas e refletir sobre as construções de memórias a partir da coleção fotográfica do Acervo do Museu Regional de Vitória da Conquista. Para tanto, vamos examinar as imagens fotográficas como fontes cruzando-as com o método orientado pela história oral, para surpreender, através de entrevistas, lembranças e esquecimentos de antigos moradores sobre as relações que estabeleceram com essa cidade a partir desse conjunto imagético. Busca-se, enfim, compreender a construção das relações de poder através da produção das imagens fotográficas entre as décadas de 1920 e 1940, que façam suscitar indagações sobre a história desta cidade, que se transformou diante dos ícones da modernização. Partindo desse pressuposto, o estudo em questão problematiza a cidade enquanto territórios construídos por relações e tensões materiais e simbólicas, constituídas de vivências, necessidades e anseios em relações produtoras de significados presentes na construção arquitetônica que a sustenta. Assim, ao investigarmos a cidade enquanto espaço construído é importante analisar os projetos e ações de ‘urbanização’ desta cidade, buscar perceber as relações e lutas políticas entre grupos e sujeitos envolvidos nesse ambiente de ‘transformação’, e as imagens ‘reveladas’ desse processo serão analisadas enquanto ‘lugares de memória’. Palavras Chaves: cidade, fotografia, história, lugares de memória. 8 ABSTRACT Vitória da Conquista, a city in southwestern, Bahia, is an example of the model of space organization of cities from colonial origin that grew from a nucleus of constructions and sociability constructed under the aegis of daily and symbolic experiences, embodied in the buildings of a triad: church, square and fair. We intend with this research, to investigate and think through the narratives about the construction of memories from the photographic collection of the Collections of the Regional Museum of Vitoria da Conquista. To do this, we will examine the images as sources crossing them with the method driven by oral history, to surprise, through interviews, memories and forgetting about former residents who have established relations with this city from this set of images. We try, so, to understand the construction of power relations through the production of photographic images between 1920 and 1940 that can make possible to raise questions about the history of this city, which has been modified before the icons of modernization. Based on this assumption, this study discusses the city as built areas on relationships and on material and symbolic tensions, consisting of experiences, needs and desires in relationships that produce meanings present in architectural construction that supports it. Thus, while we investigate the city as a constructed space is important to analyze the projects and actions of 'urbanization' of this city, seeking to understand the relations and political struggles among groups and individuals involved in this environment of 'transformation', and the 'revealed' images of this process will be considered as 'places of memory'. Key Words: city, photography, history, places of memory. 9 LISTA DE SIGLAS SMRVC SERVIÇO DE MUSEU REGIONAL DE VITÓRIA DA CONQUISTA MRVC MUSEU REGIONAL DE VITÓRIA DA CONQUISTA APMVC ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL DE VITÓRIA DA CONQUISTA CPD/PMVC CENTRO DE PROCESSAMENTO DE DADOS / PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA DA CONQUISTA 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Fachada do Museu Regional- Casa Henriqueta Prates (acervo do MRVC) .... 27 Figura 2 - Interiores do Museu Regional- Casa Henriqueta Prates (acervo MRVC) ....... 38 Figura 3 - Mapa - Acervo do CPD da PMVC ................................................................... 49 Figura 4- Mapa - Acervo do CPD da PMVC ................................................................... 61 Figura 5 - Rua Grande anos 20 (acervo MRVC) .............................................................. 63 Figura 6 - Rua Grande, anos 30 (acervo MRVC) ............................................................. 70 Figura 7- Mapa - Acervo CPD/PMVC............................................................................. 75 Figura 8 - Praça 15 de Novembro, anos 30 (acervo MRVC) ............................................ 77 Figura 9 - Feira da Praça 15 de Novembro, anos 30 (Acervo MRVC)............................. 83 Figura 10 - Feira Livre da cidade de Conquista, anos 30 (acervo MRVC) ........................ 84 Figura 11 - Mapa - Acervo CPD/PMVC............................................................................. 92 Figura 12 - Praça 15 de Novembro, anos 30 (acervo do MRVC)....................................... 94 Figura 13 - Praça da República anos 40 (acervo MRVC)................................................... 96 Figura 14 - Parte baixa da Rua Grande anos 30 (acervo MRVC)....................................... 97 Figura 15 - Catedral Nossa Senhora da Vitória com a Praça da República anos 40 (Acervo MRVC) ............................................................................................... 100 Figura 16 - Igreja Matriz Nossa Senhora da Vitória, anos 20 (acervo do MRVC) ............ 102 Figura 17 - Mapa - Acervo CPD /PMVC............................................................................ 145 Figura 18 - Fonte Pública Municipal Água de Nossa Senhora, anos 30 (acervo MRVC) ................................................................................................ 148 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12 CAPÍTULO I - UM LUGAR DE MEMÓRIA PARA VITÓRIA DA CONQUISTA: A CASA HENRIQUETA PRATES COMO MUSEU REGIONAL.......................................27 1.1 TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO LUGAR DE MEMÓRIA DO MUSEU REGIONAL..............................................................................................................................33 1.2 VÁRIAS DIMENSÕES DA MEMÓRIA DE VITÓRIA DA CONQUISTA NO MUSEU REGIONAL..............................................................................................................................45 CAPÍTULO II - “A FALA DOS PASSOS PERDIDOS”: MEMÓRIAS FOTOGRÁFICAS, ORAIS E ESCRITAS SOBRE A RUA GRANDE.............................56 2.1 A CIDADE COMO ESPAÇO CONSTRUÍDO..................................................................58 2.2 A RUA GRANDE, UM LUGAR DE MEMÓRIA.............................................................69 2.3 A FEIRA LIVRE DE CONQUISTA: ESPAÇO FUNDADO, DEMARCADO E ARTICULADO NAS PRÁTICAS E NAS NARRATIVAS....................................................76 2.4 DA RUA GRANDE AOS TEMPOS E ESPAÇOS REPUBLICANOS: PRAÇAS 15 DE NOVEMBRO, REPÚBLICA E BARÃO DO RIO BRANCO.................................................94 CAPÍTULO III - JORNALISTAS E MEMORIALISTAS: CONSTRUTORES DE UMA MIMESE DE PROGRESSO PARA A CIDADE DE CONQUISTA...............................105 3.1 ESTRATÉGIAS DA MEMÓRIA E A INTERSEÇÃO DOS CONFLITOS: OS JORNAIS NO ORDENAMENTO DOS ESPAÇOS DA CIDADE.........................................................121 3.2 UM OLHAR SOBRE A POBREZA: ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIAS NA CIDADE..................................................................................................................................131 3.3 AS ÁGUAS DE NOSSA SENHORA DA VITÓRIA: CONFLITOS E TENSÕES NAS REGULAÇÕES DO ESPAÇO URBANO.............................................................................137 3.4 A EMERGÊNCIA DOS SUJEITOS: AGUADEIRAS, LAVADEIRAS E CAROTEIROS - HOMENS E MULHERES A SERVIÇO DO BEM COMUM............................................141 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................151 ACERVOS, FONTES E BIBLIOGRAFIA .......................................................................154 12 INTRODUÇÃO O verdadeiro rosto da história afasta-se veloz. Só podemos reter o passado como uma imagem que num instante em que se deixa reconhecer lança um clarão que não voltará a ver-se. [...] Irrecuperável é, com efeito, toda a imagem do passado que corre o risco de desaparecer com cada instante presente que nela não se reconheceu. Walter Benjamin A história como conhecimento só acontece a partir de perguntas elaboradas no presente, e do lugar de onde são elaboradas essas perguntas estão justapostas as temporalidades e materialidades do fazer histórico. O historiador que está no exercício da pesquisa está necessariamente diante de subjetividades impostas tanto por um passado imutável e lacunar, quanto por um presente, de onde partem suas interpretações e que determinam suas próprias subjetividades, em seus enfrentamentos com novas abordagens e métodos. O passado está lá imutável, e as questões que apelam por análises e respostas estão aqui, no tempo de agora. O passado só existe quando o historiador o problematiza no presente. Histórias de um determinado tempo e lugar que apela por esse ‘devir’ são histórias que precisam de respostas e, ao serem contadas, vão dar conta de suscitar memórias. Ao virem à tona, estas memórias provocam outras histórias construídas sobre sujeitos em suas práticas sociais e culturais, como diz Walter Benjamim, a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras.1 Partindo desse pressuposto, buscamos subsídios para uma produção da história da Cidade de Vitória da Conquista a partir das memórias sobre os espaços de um território constituído pelo núcleo original de ocupação da cidade – A Rua Grande. Esse espaço, posteriormente, ganhou visibilidade com: a) As demolições e construções de novas casas e do templo religioso da Igreja Matriz, b) Nos deslocamentos de ‘aglomerados’ considerados indesejáveis’ para alguns, como a feira livre que foi transferida para um local distante da moradia e do convívio da elite proprietária e c) Nas construções de praças destinadas a abrigar eventos cívicos, religiosos e de lazer da população. 1 BENJAMIM, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1985. 13 Ao elencarmos esse conjunto de transformações como elemento problematizador da nossa pesquisa, trazemos para o debate a cidade enquanto conjunto de espaços construídos, forjados pelas experiências de sujeitos que se movimentam e se mobilizam nas suas práticas. Então, quem são esses sujeitos? Como se forjam nas práticas cotidianas desses logradouros? Como esses sujeitos interferem nessas transformações? Como se configuram as sociabilidades nesses novos espaços? E, para estabelecer outras possibilidades da utilização das fontes é importante indagar como as fotografias podem contribuir para revelar imagens da construção da história da cidade? A cidade de Vitória da Conquista, sede do município, localizada no Sudoeste da Bahia, fisiograficamente denominado de Planalto da Conquista. Durante o movimento de ocupação, entre o final do século XVIII e XIX, o município estava inserido na região que ficou conhecida como “Sertão da Ressaca.” 2 Este local, enquanto, espaço construído socialmente, será objeto do nosso estudo. Esta investigação parte do contexto histórico de 1920, década em que a cidade passou por ‘transformações’, noticiadas e observadas nas leituras dos jornais de publicação local: ‘A Semana’, ‘Avante’ e ‘A Palavra’. Diversas matérias e editoriais registram as reclamações e solicitações, que partem da população ‘privilegiada’ em conflito com o poder público “sobre a necessidade de mudanças urgentíssimas na pobre Conquista abandonada”. Por outro lado, as fotografias nos revelam uma cidade edificada em torno da rua principal – nelas encontramos imagens da Praça, da Feira e das Igrejas de várias temporalidades que orientaram nossa reflexão sobre a importância do uso dessa documentação. O estudo desdobra-se até a década de 1940, quando observamos mudanças significativas, tanto, no desenho urbano, quanto nas relações sociais, culturais e de trabalho. Os escritos dos memorialistas e cronistas da cidade remontam também, ao tempo das mudanças, estimadas em seu natural interesse, em preservar os fatos “notáveis”, registrando, o cotidiano, as transformações urbanas, os acontecimentos cívicos, culturais e sociais. Na cidade de Vitória da Conquista, a partir de meados do século XX, os registros e livros de memorialistas, se fazem de forma mais significativa e encontramse com frequência, relatos sobre a cidade. A reflexão sobre essas fontes aponta para vários movimentos das gentes da cidade, que indicam estratégias na forma de ação de determinados 2 A históriadora Maria Aparecida Silva de Sousa se refere ao texto de Ruy Medeiros, cuja pesquisa conclui que a origem do nome “Ressaca” é um termo de uso da geografia popular sinonimizado “funda baía de mato baixo circundada por serra” e que foi aplicado às terras existentes entre os rios pardo e das Contas. Assim, esclarece: “O viajante que palmilhar o Planalto da Conquista perceberá as fundas baías de campo, algo como um vago refluxo a desenhar o semicírculo da ressaca, só que não no mar. Uma ressaca de chão.” (MEDEIROS apud SOUSA, 2001, p. 19). 14 grupos sociais no ensejo de construírem para si uma memória emoldurada nas suas necessidades e crenças. Estas questões constituintes da problemática dessa dissertação e a trajetória dos seus objetivos resultam de uma experiência de trabalho junto a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, quando assumimos, como historiadora, a Coordenação de Acervo e Documentação do Museu Regional de Vitória da Conquista - Casa Henriqueta Prates -, órgão suplementar desta Universidade. Para tanto, é importante salientar o envolvimento profissional com os arquivos fotográficos já existentes no Museu, através dos quais foi possível visualizar as imagens da cidade entre o final do século XIX e século XX. Desde logo, as fotografias encontradas neste acervo suscitaram algumas indagações que se colocaram a frente do nosso trabalho. Por aquelas imagens foi possível perceber o recorte da cidade em seu núcleo de origem, retratando os limites da Rua Grande em suas construções, onde se situam os domínios da Praça, da Igreja, do Paço Municipal, do casario da elite, da feira. A fotografia, neste aspecto, vai cumprir a função de portadora dos vestígios visuais do que foi a cidade de Conquista nas primeiras décadas do século XX. Necessariamente precisávamos estudar a forma de organizar aquele material, diante de uma atuação urgente em buscar o conhecimento para a conservação das fotografias originais que passavam por um estado de deterioração. Tanto por essa necessidade de preservar, quanto pela necessidade de organizar a coleção em seus desdobramentos temáticos e temporais para atender as possibilidades de investigar a coleção imagética através de uma pesquisa que possibilitaria refletir sobre as imagens e analisar a construção de memórias para o estudo da história local, propomos a identificação deste material, a partir do tratamento que deveria ser dado e de como realizar a preservação, divulgação e a comunicação destas imagens. Na tentativa de abraçar essas atribuições foi encaminhado à Pro-Reitoria de Extensão da UESB, o projeto contínuo – “Preservar o Acervo Fotográfico do Museu Regional: uma contribuição para a construção da memória do Planalto da Conquista”3, que consistia basicamente em reorganizar e preservar um conjunto de fotografias já existentes no Museu, adquiridas por meio de doações de pessoas de diferentes setores da comunidade, conforme a justificativa do projeto que assinala a, 3 Projeto de Extensão continuada, apresentado à Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, aprovado no ano de 2005, sobre a orientação da Coordenação de Acervo e Documentação do Museu Regional. 15 Preservação de fotografias no Museu Regional de Vitória da Conquista, refletida na necessidade de uma ação museológica para a preservação do patrimônio cultural local, no momento em que consta no acervo do Museu cerca de setecentas fotografias doadas por diversos setores da sociedade, formando um conjunto imagético que já conta uma história, a história das possibilidades do uso da fotografia enquanto recurso de memória para a compreensão do passado representado e vivido, através do olhar do presente.4 Com o objetivo de proporcionar uma duração museológica e a comunicação dessas imagens, foi sistematizada no projeto uma metodologia que dividiu o trabalho em seis etapas: organização por temas, pesquisa através de fontes orais sobre as fotografias que se encontravam sem registro, catalogação, digitalização, confecção de álbuns e difusão. Essas etapas foram constituintes do processo do tratamento documental, dadas as suas especificidades, tanto do ponto de vista da informação visual, quanto do suporte no qual essa informação encontra-se registrada. A metodologia utilizada para a organização da coleção partiu da identificação e avaliação das fotografias já existentes no acervo do Museu Regional, partindo do material já organizado tematicamente onde foi elaborado um roteiro de pesquisa para a catalogação das imagens, como forma de acesso as informações. No sentido de conservar e preservar as imagens, foi adquirido através do projeto, a compra de papel neutro, material adequado para a confecção dos invólucros para arquivo na mapoteca, a serem manipulados em situações específicas. Posteriormente, foram digitalizadas trezentas imagens, das setecentas e oitenta existentes, organizadas em legendas, contendo todas as informações, descrevendo o tamanho da foto, ano, cidade, condição das imagens, fotógrafo e seu doador. Assim, graças às possibilidades desse processo de produção do tratamento dado ao conjunto imagético, podemos engendrar elementos constitutivos para as coleções que adquiriram um vocabulário de padrões próprios para a sistematização de uma leitura visual. A análise desses modelos, ou de seus elementos isolados, pode deflagrar o sentido ou vários sentidos da construção da imagem fotográfica sobre a reconstituição de memórias. A exemplo da coleção do Museu constatamos a ausência dos nomes relacionados a autoria das fotografias na maioria das imagens. Esta ausência de determinados elementos significam o não-dito, isto é, o que queremos falar de um determinado objeto e não encontramos a fonte. Então, as perguntas se estabelecem: Por que as fotografias são anônimas? Onde estão as memórias desses fotógrafos? Essas informações são importantes, 4 Ibid. 16 pois possibilitam compreender diversos aspectos das concepções e intenções dos fotógrafos quando da construção das imagens. 5 O tratamento dado ao conjunto imagético através da indexação temática e da catalogação analítica permitiu destacar diversos eixos capazes de fornecer informações quanto aos diversos aspectos da vida social e cotidiana da Cidade de Vitória da Conquista. Percebemos, neste conjunto imagético, uma consistência de massa documental, que poderia indicar possibilidades de diversas leituras sobre a fotografia enquanto documento históricosocial constituindo-se em suporte documental que faculta a compreensão do passado. No entanto, é importante interferir criticamente na relação entre o tratamento que permite organizar essa ‘massa documental’, o processo de sua veiculação que a partir do conhecimento formulado sobre o conjunto documental, e dos objetivos, formas de apresentálo aos freqüentadores, de provocar o público leitor das imagens a assumir posicionamentos, apresentar suas visões de mundo e interferir nesse processo para transformar uma visita em um produto cultural. Ulpiano T. Bezerra de Menezes, ao propor a consolidação de uma história visual aponta a necessidade de um tratamento das fontes visuais como um conjunto de recursos operacionais para ampliar a consistência da pesquisa histórica percorrendo no trabalho com as imagens o ciclo completo de sua produção – circulação, consumo e ação. Ele corrobora o pressuposto que, As imagens não tem sentido em si, imanentes. Elas contam apenas - já que não passam de artefatos, coisas materiais ou empíricas – com atributos físico-químicos intrínsecos. É a interação social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, no espaço, nos lugares e circunstâncias sociais, nos agentes que intervêm) determinados atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos e valores e fazê-los atuar. Daí não se poder limitar a tarefa à procura do sentido essencial de uma imagem ou de seus sentidos originais, subordinados às motivações subjetivas do autor, e assim por diante. É necessário tomar a imagem como um enunciado, que só se apreende na fala, em situação. Daí a importância de retraçar a biografia, a carreira, a trajetória das imagens.6 A partir dessa contribuição aos estudos da história e da aproximação desta proposta com a idéia a cerca da investigação da cidade construída socialmente e o ensejo de buscar através das imagens fotográficas os vestígios para contar essa história, procuramos 5 SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era Italiano: São Paulo e Pobreza: 1890 – 1915. 3ed. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008. 6 MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Fontes Visuais, Cultura Visual, História Visual. Balanço provisório, Propostas Cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.23, nº 45, pp. 11-36 – 2003. p. 28. 17 acompanhar a trajetória dos fotógrafos que foram os possíveis autores das imagens trabalhadas nesse estudo. Assim, não procuramos encontrar na fotografia uma referência de verdade e fidelidade para contar a história. Entendemos a fotografia como um artefato híbrido, construído por elementos físico-químicos que passa pela ação humana de sensibilidade, observação e escolha com um auxílio de uma câmara. Da mesma natureza que a memória, a fotografia é polissêmica, seletiva e lacunar, portanto para analisar uma imagem procuramos considerar, no circuito social da fotografia, as condições técnicas disponíveis; as visões de mundo do fotógrafo – política, cultural e estética do seu lugar social. Essas fontes serão analisadas a partir dos escritos dos memorialistas da cidade, das matérias de jornais e das entrevistas realizadas para a investigação desse estudo, que acabaram por fazer emergir a biografia e o trabalho desses primeiros fotógrafos da cidade de Conquista. Na produção do memorialista Aníbal Viana7, que publicou em 1982, a Revista Histórica de Conquista, ampliada, posteriormente, com um segundo volume, onde reuniu elementos diversos, desde artigos de jornais, transcrições de documentos, relatos e biografias de homens e mulheres “notáveis” da sociedade de Conquista, onde marcadamente construiu uma descrição das memórias da cidade. Os relatos desenvolvidos neste trabalho, tendo em vista a dinâmica das informações, apontam para uma perspectiva que possibilita articular essas informações na construção da pesquisa histórica. Trataremos mais profundamente sobre esse memorialista no terceiro capítulo dessa dissertação quando abordaremos esses sujeitos como construtores de uma mimese de progresso para a cidade. Segundo Viana, o primeiro fotógrafo de Conquista foi o filho do primeiro intendente, o Coronel Joaquim Correia de Melo (1892-1895). Manoel Eufrázio dos Santos Melo, nasceu nesta cidade no dia 12 de agosto de 1883, e aqui cresceu, onde era conhecido pela alcunha de Neca Correia. O memorialista segue relatando que, Neca Correia se distinguia pela inteligência e autodidatismo; foi pintor por vocação, músico, fotógrafo e pirotécnico, no entanto, a sua ocupação principal era a pintura e a fotografia. Ainda de acordo com Viana, as fotografias e os belos quadros que deixou atestam o seu grau de inteligência e cultura8. Manoel Eufrázio dos Santos Melo, entretanto não herdou o gosto pela política, herança do pai que passou ao seu irmão o Cel. Ascendino Melo que governou o município entre 1920 a 1922. Ao se casar com Virgínia Magalhães formaram a família Magalhães Melo, com nove filhos, 7 VIANA, Aníbal Lopes. Revista Histórica de Conquista (dois volumes). Gráfica do Jornal de Conquista, 1982, Vitória da Conquista – Bahia. 8 Viana, op. cit., p.367. 18 da qual o primeiro filho, Manoelito Magalhães Melo se tornará o seu sucessor como poeta, músico e fotógrafo. Neca Correia faleceu do dia 1º de agosto de 1949, com 66 anos. Manoelito Magalhães Melo foi o único herdeiro da vocação de fotógrafo do pai. Segundo, Viana: ‘Um dos valores intelectuais de nossa terra conquistense. Mavioso poeta, exímio fotógrafo. Inteligente por tradição. ’9 Manoelito Melo, nasceu em 1912 e cresceu na cidade de Conquista onde começou a fotografar no ano de 1929 aos 17 anos, trabalhou também no comércio, abrindo um estúdio de fotografia, chamado - Foto Melo, na Rua 7 de setembro, no centro da cidade. Manoelito Melo, faleceu em 1983 aos 71 anos de idade, dos quais 47 anos foram dedicados ao trabalho com a fotografia. Outro fotógrafo contemporâneo do período do nosso estudo foi Gaudêncio Alves dos Santos. Vindo de Itaquara - BA, no ano de 1933, quando foi convidado pelo então Prefeito da cidade de Conquista, O Cel. Deraldo Mendes Ferraz, proprietário de uma charqueada naquela cidade. Gaudêncio transferiu-se com a família para Conquista, ocupando na época o cargo de contador da Prefeitura Municipal. Aficionado por fotografia acompanhou e fotografou a cidade e as obras públicas da gestão de Régis Pacheco (1938-1945). Nessa bagagem do conhecimento sobre a existência desses fotógrafos podemos inferir para o nosso estudo elementos essenciais para a leitura das fotografias. No segundo capítulo, serão abordadas as questões que envolvem a construção das articulações das narrativas orais e fotográficas que demarcavam os espaços na cidade, por exemplo, as múltiplas territorialidades na Rua Grande, suas transformações espaciais e sociais e a nova arquitetura que surge a partir dos novos ditames do progresso e da modernidade. Ruas, logradouros, praças, edificações, monumentos, bairros e feiras, sem limitar os exemplos, devem ser observados não só como lócus das variadas formas de produção e ação social, mas, sobretudo como problema e um campo de reflexão. Devemos estender esse olhar para uma dimensão, onde a cidade seja problematizada em sua materialidade histórica, ou seja, compreender a cidade em seu imaginário, lidando com discursos e imagens, impressões da cidade construída a partir dos seus espaços, mas, sobretudo pelos seus atores e suas práticas sociais. Buscamos priorizar nessa pesquisa estudar as relações entre memória, fotografia e cidade, através do acervo produzido no Museu Regional: fotografias, livros de memorialistas, jornais da época; atas, projetos e leis municipais, suportes de depoimentos orais, etc. Assim, pretendemos investigar e refletir sobre as possibilidades de elaboração de narrativas e 9 Viana, op. cit., p.370. 19 construções de memórias examinando estas fontes e cruzando-as com o método orientado pela história oral, para surpreender, através de entrevistas, lembranças, silêncios e esquecimentos de antigos moradores, que ainda residem no espaço da antiga Rua Grande, familiares e pessoas que estabeleceram relação com esta cidade. Para tentar nos aproximar dessa problemática, nos indagamos a respeito de questões que envolvem as experiências dos sujeitos sociais que trafegam por essa cidade, então: Como investigar essas realidades distintas? E, que imagens esses sujeitos buscavam construir para si, que deveriam ser materializados como “lugares de memória”? Textualidades, visualidades e oralidades, então podem ser transformadas pela experiência ou interpretação de quem as emite e de quem as recepciona e reúne em uma narrativa. Percebemos que a ampliação desse processo de constituição de narrativas instiga desafios no tratamento com os diversos sentidos de escrever a história, que de certa forma, sempre nos escapam e que, desta forma podem vir a florescer. A escolha do corpus documental reflete a problemática suscitada pelo historiador, na prática do seu ofício, como sugere Regina Beatriz Guimarães Neto: A prática do historiador se redefine diante da conquista de novos territórios, da diversidade dos procedimentos metodológicos e das abordagens historiográficas contemporâneas. Porém, mais do que nunca a qualidade da produção histórica aparece diretamente relacionada às questões propostas ou ao questionário elaborado pelo historiador, o qual precede a escolha de um corpus documental, orientando-o na análise e crítica das fontes, garantindo, por assim dizer, a pertinência e as condições de uso da documentação.10 Esta relação apontada por Regina Beatriz produz uma oportuna discussão sobre a relação da pesquisa empírica e os conceitos e métodos utilizados para a construção da história. Ao estabelecer um diálogo com determinadas fontes, estamos expondo o nosso ponto de vista, quanto à proposta do fazer histórico. Da mesma forma, ao dialogar com autores produtores desses conceitos nos aproximamos, ou não, daqueles que trazem à tona os sujeitos que foram pouco visibilizados pela história. Por esta razão, estamos lançando neste debate a relação da história com a memória, estabelecendo um diálogo com autores que nos apontam para um 10 Em seu estudo Regina Beatriz contrapõe o que está posto na historiografia sobre o leste do Mato Grosso, e pensa as características que define a região através das práticas sociais e culturais dos indivíduos que construíram o espaço no fazer cotidiano, entendendo o lugar como um espaço praticado. Vê: GUIMARAES NETO, Regina Beatriz. Cidades da Mineração – memórias e práticas culturais – Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá: EdUFMT, 2006. 20 caminho que trata de colocar o cidadão comum na história, identificado em suas particularidades e especificidades. Em que medida, então, o investigador da história, pode estabelecer uma relação com as memórias? Entendendo que os lugares de memória estão expostos a um campo de força, que estão sempre criando significados, como dialogar, através destas abordagens? Marc Bloch, alerta para os cuidados, que segundo ele, podem evitar a destruição e a omissão da memória: [...] As sociedades consintam enfim a organizar racionalmente, com sua memória, o conhecimento de si mesmas. Só conseguirão isso lutando corpo a corpo com os dois principais responsáveis pelo esquecimento e pela ignorância: a negligência, que extravia os documentos; e, [mais perigosa ainda,] a paixão pelo sigilo – sigilo diplomático, sigilo dos negócios, sigilo das famílias que os esconde ou destrói. Nessa busca da história, Ginzburg, nos propõe o rigor com as fontes. Isto é, produzir uma crítica as fontes, que nos permita visualizar, o dito, as representações, as lacunas, e o não dito – que é a inexistência de fontes para responder sobre determinados “silêncios” da história. “Chamando atenção para o divórcio entre teoria e prática, Ginzburg alerta que, para dizer algo de significativo sobre o método histórico dever-se-iam analisar não só os resultados finais, mas também, o caminho que se percorreu para chegar a eles”; caso contrário “surgirá uma imagem distorcida do trabalho do historiador”11. Nesse sentido, ele apresenta que a relação de força estabelecia entre a história - com um rigor documental e a literatura (ficção), deve colocar o historiador num diálogo contínuo e constante com as fontes. Na tentativa de reconstituir as memórias dos moradores da cidade de Vitória da Conquista, buscaremos compreender as teias de significados das relações que os diversos grupos mantiveram entre si, para elucidar esses aspectos que alcançam os sujeitos em suas resistências na tessitura das suas memórias sobre o espaço urbano. Consideramos também, significativo a contribuição desse estudo para a compreensão sobre o conhecimento da história da região. Observamos uma vigorosa produção historiográfica na cidade de Vitória da Conquista a partir do desenvolvimento de pesquisas ligadas aos programas de Pós-Graduação em História e outros de caráter interdisciplinar fomentados pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. No entanto, a oferta do Mestrado em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia – UNEB abre 11 GINZBURG, Carlo. Ekphrasis e citação. In: Micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 215-232. 21 certamente, novas possibilidades aos estudos do interior baiano, ainda pouco contemplados por outros programas. Objetivamos ainda, através deste estudo, viabilizar subsídios para a produção da história local em suas potencialidades, como também, integrar uma produção participativa desse conhecimento para contribuir na percepção dos novos olhares sobre a cidade, ao procurar descortinar e desmistificar os modos de como grupos dominantes buscam imprimir uma memória nas representações citadinas a uma urbe emergente e muito arraigada às especificidades das suas práticas sociais e culturais do seu local de convivências. Pierre Goubert conceitua como história local aquela que diz respeito a uma ou a algumas aldeias, pequenas ou médias cidades, [...] ou uma área geográfica não maior que a unidade provincial comum12 e apesar das dificuldades de aceitação pelos historiadores franceses que escrevem sobre a história geral, percebe-se significativas contribuições da história local, quanto à oferta de elementos insubstituíveis para revelar os movimentos subreptícios de sujeitos que transitam pela cidade, através de novas estratégias de pesquisa. Neste sentido, consideramos que a coleção fotográfica do Museu Regional, faz suscitar diversos eixos de discussões temáticas, para além daqueles apresentados no recorte do nosso estudo. Portanto, propomos uma metodologia de pesquisa onde utilizaremos as fotografias como um texto, mediatizador e provocador de um contexto atualizado pela memória dos entrevistados, onde a figura do leitor visual, assumido pela pesquisadora vai procurar reconstituir o texto subjacente dessa coleção imagética, recolhendo elementos para a produção de uma narrativa histórica, para dar a perceber a maneira como indivíduos de diferentes grupos socioculturais reagem a esse passado. Quando lançamos o olhar sobre a imagem em seu recorte bidimensional, ele nos remete a dois tempos: um cronológico e outro histórico -, e nos transporta também ao tempo da memória, que é dado à fugas, pois é seletivo e lacunar. Neste percurso levamos também o tempo presente das subjetividades que vai construir novos significados, transformando a imagem em texto que, preenhe de lembranças e esquecimentos, faz-se revelar tudo aquilo que se quer preservar, e o que se pretende esquecer. No seu ensaio, a Pequena História da Fotografia, Walter Benjamim, afirma que, a câmara se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador. Ele sugere que aí deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as 12 GOUBERT, Pierre. História local. In: História & perspectivas. Nº 6. Uberlândia. Jan.jul. 1992. p.45 22 relações da vida e sem a qual, qualquer construção fotográfica corre o risco de parecer vaga e aproximativa. [...] É à luz dessas centelhas que as primeiras fotografias, tão belas e inabordáveis, se destacam da escuridão que envolve os dias em que viveram nossos avós. 13 Entendemos que esta documentação deverá ser lida a partir do lugar e do momento da sua construção, tanto quanto verificar a relação dos sujeitos que estavam envolvidos nesse projeto. O refazer dessa memória, pode ainda está na ênfase do acontecimento, do que pensa determinados grupos que orientam as pesquisas, e pensam essa matéria com a possível noção do resgate de algo perdido, como nos alerta Eduardo Yázigi: [...] a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, mas que todos tenham, também, esquecido muitas coisas... Dessa forma, a memória como sustentáculo da identidade, é ideologia, reconstrução permanente, e não um elenco de valores definitivamente classificados. Daí porque, como diz Ulpiano T. de Meneses (1990, p.31), “não existe o menor sentido em se buscar o resgate da memória: resgate é coisa de bombeiro, não de historiador [...]. Não se pode resgatar o que está sendo sempre refeito.14 O autor acrescentou ao conceito de memória, uma caracterização constituinte da relação da memória com a oralidade. Os sujeitos que ‘lembram’, ‘lembram’ porque esquecem. Essa é uma premissa definitiva para o entendimento da oralidade, como fonte histórica. A memória é sempre seletiva e lacunar, pois ela habita o passado, que possui estas mesmas reentrâncias. Acrescente-se a essa questão, ‘a relação da memória com a fotografia histórica, aquela que nos chega às mãos pronta, tendo sida produzida há algum tempo, com relação ao momento em que é analisada pelo observador’.15 Para refletirmos sobre as memórias desta cidade, pretendemos buscar a história nos sujeitos, que se interessa por esta história. Lidar com fontes orais através de histórias de vida é lidar com fontes orais que só existem a partir do momento que chamamos sua existência. Essa fonte é construída no diálogo entre entrevistador e entrevistado, e ao historiador cabe explorar as especificidades e as singularidades destas narrativas heterogêneas, pois cada narrador reelabora o passado a sua maneira, interesse e emoção e essas subjetividades, são relevantes. Essa memória mediatizada entre o produto fotográfico e os depoentes, enquanto memória da experiência deixa de ser uma simples lembrança ou recordação do passado, ou até 13 BENJAMIM, Walter. Pequena História da Fotografia. In: Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 91-108. 14 YÁZIGI, Eduardo. A alma do lugar: turismo, planejamento e cotidiano em litorais e montanhas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2001, p. 47. 15 LEITE, Miriam Moreira Leite. Retratos de família: leitura da fotografia histórica. São Paulo. Editora USP, 2001, p. 15. 23 mesmo um arquivo de situações não vividas. Percebemos neste recurso um despertar para os tempos em que se contava os casos em torno das sociabilidades e das experiências. O declínio da narrativa acabou por criar outras formas de comunicação, dentre elas, a fotografia, que se apresenta como possibilidade de leitura de mundo viabilizada pelo veículo de informação. Nesse sentido, a imagem fotográfica passou a ser considerada, na modernidade, como um suporte por excelência da informação confiável que ao ser transmitida para o receptor, o transforma de ouvinte/interlocutor em leitor visual. No caso, apresentamos uma proposta de mostrar aos nossos narradores as reproduções fotográficas das vistas urbanas da cidade de Vitória da Conquista, construídas no acervo do Museu Regional e no momento das nossas entrevistas, essas fotografias eram postas às vistas, para juntos observarmos a imagem, que presumivelmente, faz saltar as memórias, impelindo para um movimento de entrar na cidade e explorar os seus lugares com essas lembranças, para entender como é construída essa cidade através das memórias dos que vivem nela. Essas pessoas que falam e silenciam nos dão a certeza que não estamos construindo, sozinhos essa história, sobre as transformações e mudanças que ocorreram nessa cidade, e, nesse tempo. Este caminho foi percorrido por Ecléa Bosi, no seu livro, Memória e Sociedade – lembranças de velhos, cujo tema envolve a história de vidas dos velhos da cidade de São Paulo. Ela distingue dois tipos de memória, a memória-hábito, que é a memória dos mecanismos motores e de outro lado, a memória espontânea, onde ocorrem lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituíram autênticas ressurreições do passado. A partir daí a autora sugere que, a conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte. Saber ouví-la é não alienar o contraste da riqueza e da potencialidade do homem criador de cultura com a mísera figura do consumido atual.16 Assim, através da proposta de método, percebemos que texto, imagem, oralidade, são linguagens, constitutivas dos sujeitos que as produziram e configuradas como fontes. Pensar criticamente essas fontes, como leituras múltiplas, constitutivas dos sujeitos, dimensiona um quadro de análises que provoca outra multiplicidade de impressões, quando percebemos que essas linguagens não são compartimentalizadas, nem entrecortadas, e essa produção é constituída por um momento dado, pelos sujeitos. 16 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 82 – 83. 24 As linguagens, enquanto elementos constitutivos dos sujeitos apresentam leituras que provocam múltiplas sensações, no entanto o historiador amplia sua visão criticando as fontes no exercício da escrita e interpretação da história. A produção historiográfica que propomos nesse texto compreende a formação do espaço urbano que deu origem a Vitória da Conquista como um território construído a partir do qual diversos grupos sociais estabelecem relações e enfrentamentos através das linguagens visuais, orais e textuais constitutivas dos representantes e presentes em memórias escritas, iconográficas que, problematizada a partir de questões da historia social, contextualizadas como um campo de força possibilita a construção de aspectos da historia dessa cidade. Portanto, no primeiro capítulo da dissertação, sugerimos discutir o Museu Regional de Vitória da Conquista, enquanto lugar de memória. Uma discussão fomentada na contemporaneidade de um trabalho a partir do qual formulamos o nosso objeto de estudo. Propomos dialogar com o lugar que organizou a maioria das fontes, buscando entender quais as memórias que os grupos sociais produzem sobre sua cidade. Perguntamos e tentamos responder qual o papel que o museu representa na comunidade de Vitória da Conquista, tomando como referência a trajetória dos pontos de vista dos fundadores e das diretorias, que deixam ver diferentes projetos de uma política cultural para o museu: cada gestão impôs sua marca, apresentando diversas concepções sobre a produção da memória para a cidade de Vitória da Conquista. Desta forma, buscamos refletir sobre a cidade de Vitória da Conquista, do contexto de histórico de 1920 a 1940, surpreendendo essa cidade em suas imagens construídas, tanto pelos seus moradores que transitam e trabalham em seu cotidiano, quanto pelas entrevistas daqueles que estão contemplados nos lugares de memória construídos pelas instituições. Essas memórias, por vezes se entrelaçam, e revelam vestígios, que através de uma lente de aumento, podemos flagrar, para operacionalizar essa história. No segundo capítulo tratamos a cidade enquanto espaço construído por moradores, sujeitos de suas experiências e práticas de viver a cidade. O estudo em questão problematiza a cidade enquanto espaço de múltiplos territórios e as relações dos que vivem as disputas e os embates pelos domínios desses territórios criando tensões que envolvem trocas materiais e simbólicas constituídas de relações humanas produtora de significados e considerando que a construção arquitetônica que a sustenta não apresenta neutralidade. Nessa perspectiva, trataremos a cidade no recorte da Rua Grande, com as operações de demarcação, impetradas nas modificações da Igreja, da Praça e da Feira, elementos que conforme visualizados em nossa pesquisa são definidores das transformações fundadas em nova transmissão visual da 25 cidade engendradas pelo poder público confrontada com as interferências sobre a vida da população dos pobres que viviam e circulavam na cidade. Ainda neste capítulo, trataremos especificamente da proposta metodológica, usando a fotografia como estímulo para a recordação do depoente, vamos entrevistá-los buscando registrar as memórias que constroem a partir das imagens fotografias. Entendendo a fotografia, como uma linguagem fundamental na explicação da nossa problemática de estudo, e por compreender que a sua leitura não é anexo, nem tão pouco meras ilustrações, optamos por inserir as imagens na mesma configuração do texto escrito. Nesta perspectiva, vamos discutir no terceiro capítulo, a relação da cidade com alguns dos seus construtores trabalhando com a produção dos memorialistas e jornais da época para lermos as memórias construídas sobre essa cidade. Nesta parte, dialogamos fundamentalmente com alguns dos jornais fundados em Conquista: A semana (1920-1930), A Vanguarda (1926), Avante (1931-1933), A Conquista (1944) e o Combate (1929-1964). A abordagem sobre a escolha desses jornais, entre outros existentes, deu-se fundamentalmente pela veiculação de matérias, crônicas e notícias produzidas e veiculadas nestes jornais cujo elemento referencial era a cidade. A análise das fontes sobre a imprensa escrita foram tratadas a partir da compreensão do lugar de onde escreveu esse jornalista ao produzir a notícia. Numa abordagem que contempla o ‘falseamento’ das notícias, as questões político-partidárias, o lugar sócio-cultural desses escritores procuramos apontar as evidências dos enunciados que denunciavam uma construção de memórias organizadas em conformidade com o controle solicitado pelo novo ordenamento que deveria moldar a sociedade para o atendimento do progresso, que marchava a passos lentos para uns e a passos largos para outros, dependendo de que lado pendia a opinião no campo de força produzido no interior da imprensa escrita na cidade de Conquista. Procuramos escrutinar nos vestígios silenciosos dos jornais, o não-dito sobre os pobres da cidade, especificamente sobre os trabalhadores de serviço de ganho, como dos buscadores d’água (caroteiros), que transportavam a água para abastecer a cidades em barris de madeira, denominados de carotes, das aguadeiras que levavam à água em vasilhames apoiados na cabeça e as lavadeiras que subiam e desciam a Rua Grande com as trouxas na cabeça e serviam aos moradores as roupas lavadas e engomadas. Esses trabalhadores vão aparecer nos jornais e nos documentos oficiais das intendências e prefeitura, como constituintes de significados depreciativos, como causadores de problemas ou mais significativamente surgiam na escrita, quando eram utilizados como bucha de canhão nos embates políticos entre os jornais ou nos embates dos jornais com os chefes locais. 26 Buscaremos nas fontes documentais escritas do Arquivo Municipal de Vitória da Conquista, do Arquivo Público do Estado da Bahia e nos jornais da cidade de Conquista, os códigos de postura, que legislavam sobre as transformações espaciais, de serviços e sobre a condução moral dos cidadãos. Os códigos de postura serão analisados com a finalidade de investigar como essas leis, inscritas na municipalidade buscavam regulamentar a vida social no âmbito das práticas e usos do solo. Portanto, as posturas municipais serão analisadas para avaliar as estratégias de intervenção espacial, a exemplo da regulamentação do comércio e da saúde pública, o ordenamento urbano, as sanções sobre a desobediência às normas vigentes e a normatização da conduta social. Tais ações fazem parte de um processo de dominação que se legitima através da ação do poder público, mas que enfrenta resistências diversas para a operacionalização efetiva. 27 CAPÍTULO I - UM LUGAR DE MEMÓRIA DE VITÓRIA DA CONQUISTA: A CASA HENRIQUETA PRATES COMO MUSEU REGIONAL Figura 1 - Fachada do Museu Regional- Casa Henriqueta Prates (acervo do MRVC) “Se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares”. Pierre Nora Propomos neste capítulo refletir sobre as memórias de Vitoria da Conquista organizadas no Museu Regional - Casa Henriqueta Prates, a partir de algumas experiências pessoais apresentadas no trabalho desenvolvido junto a Coordenação de Acervo e Documentação desta instituição. Através de entrevistas com os diretores e funcionários sobre o inventário cultural e abordagens das concepções de preservação e guarda da documentação existente na casa, trabalhamos o Museu, enquanto lugar que organizou uma memória da cidade, estabelecendo questionamentos sobre a relação deste ‘lugar’ com a cidade, a partir das memórias que conseguiu organizar e qual sua atuação para a construção das várias dimensões da memória. Recorrendo a Pierre Nora, estudioso da relação “entre memória e história”, que reflete sobre “a problemática dos lugares”, ele considera que “três dimensões contribuem simultaneamente e em diferentes graus, para caracterizar um lugar de memória”: a) “A dimensão material que se refere ao espaço topográfico, monumental, arquitetural, ou à sua 28 condição de objeto concreto (um quadro, uma fotografia, um livro, etc.); b) A dimensão funcional, à tarefa que ele cumpre de preservar um fato e c) A dimensão simbólica, aos significados que são construídos em torno dele de acordo com os valores, crenças e representações das pessoas”. Em tal lugar, investido de intenções e lembranças que remetem a outras épocas, há uma construção de continuidade e absorção dos acontecimentos passados que buscavam para si e que deveriam ser materializados como “lugares de memória.” 17 Lugares de memória é uma expressão forjada pelo historiador Pierre Nora para designar a oposição entre memória e história numa contemporaneidade marcada pela mediatização entre o local/rural e a metrópole/universal, apontando nesta relação à constante perda da memória, já que vivemos em um entrecruzamento: respeito ao passado – às tradições e o sentimento de pertencimento a um dado grupo. Nesse processo, dialogando com Leibniz, Nora sugere que a memória, que não é mais espontânea, é cooptada pela história conhecimento e transformada numa “memória de papel”. 18 Consideremos, este postulado como uma advertência, pois ao historiador da cultura que procura nos lugares de memória a sua problemática de estudo deve estabelecer uma atenção criteriosa que permita construir, através destes vestígios guardados, leituras possíveis do processo histórico. Ao remontar esse passado guardado no museu, estaremos reinventando este passado, que está revestido dos significados dos códigos que os monumentalizam e que para historicizá-lo deveremos ler nas entrelinhas. Nesse sentido Michel de Certeau, em seus estudos sobre a sociedade francesa, nos revela que a apropriação da cultura popular pelas elites só ocorre quando ela é neutralizada, censurada, e, portanto não oferece mais perigo. Atentando para uma leitura mais apurada, a utilização dessa cultura esconde uma rejeição: Os estudos desde então consagrados a essa literatura tornaram-se possíveis pelo gesto que a retira do povo e a reserva aos letrados ou aos amadores. Do mesmo modo, não surpreende que a julguem ‘em vias de extinção’, que se dediquem agora a preservar as ruínas, ou que vejam a tranquilidade de um aquém da história, o horizonte de uma natureza ou de um paraíso perdido. Ao buscar uma literatura ou uma cultura popular, a curiosidade científica não sabe mais que repete suas origens e que procura, assim, não reencontrar o povo.19 17 NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, 1993. 18 NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, 1993. 19 CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. São Paulo: Papirus, 1995, p. 253. 29 As primeiras referências de preservação organizadas pelo Museu Regional correspondem ao processo de sua formação sobre o que se deseja projetar como memória para a cidade: os resíduos dessas memórias são inesgotavelmente explorados através do cotejamento das experiências dos seus organizadores, em funções exercidas baseadas em relações de poder, impostas por um saber especializado e dominante. A esse respeito são interessantes as observações de Humberto Fonseca20, para quem a revalorização da cultura popular, por exemplo, tinha uma função de trazer para o debate, a recuperação da memória da região. A tematização da cultura funcionava como uma “porta entreaberta”, pela qual, entraria uma produção sobre a memória coletiva, cuja apropriação oficializa saberes populares, transformando-a, numa espécie de espetáculo. Vai adiante assinalando que, A perspectiva era que existia uma historiografia na Bahia, que se chamava História da Bahia, mas que se limitava a salvador e seu entorno, ali a região do recôncavo, a proposta de Waldenor21 era recuperar essa memória aqui no Sertão da Ressaca, Vitória da Conquista e a sua região, o Planalto da Conquista. [...] E não era somente para tratar de história, era para tratar da cultura de um modo geral. Nós fizemos um processo de retomada de Ternos de Reis, então se fazia o São João, retomou-se as Rezas de Santo Antônio, as novenas de Santo Antônio, fazia as quadrilhas.22 Observamos que Fonseca propõe que o museu discuta sobre a importância da cultura popular como um caminho legítimo para se chegar nessa recuperação da memória da região. Na construção da memória do ‘Sertão da Ressaca, Vitória da Conquista e sua região’, os saberes populares surgem como elemento unificador dessa região, resultando na Vitória da Conquista orgulhosa da essência de sua terra e de sua gente. O que regula esse postulado é a preocupação em não deixar eclipsar conflitos e tensões próprias das condições de convivências dessas manifestações em outros espaços e tempos de deslocamentos desses saberes espontâneos. Enfocando outra temática das relações entre uma memória utilizada e recriada pelos estudiosos e os confrontos com uma memória espontânea, Luiz Norberto Guarinello trata das questões da memória e sua relação com a história, sugerindo que: 20 Humberto José Fonseca é atualmente professor titular do Departamento de História da UESB, e durante o ano de 1998, assumiu a direção do Museu Regional. 21 Waldenor Alves Pereira Filho foi Reitor da UESB no período mencionado. 22 Entrevista do Professor Humberto Fonseca a autora em, 17 de maio de 2010. 30 Os vínculos entre memória coletiva e história científica podem na verdade, ser pensados em termos opostos. Podem ser vistos, em primeiro lugar, como uma relação positiva, pois a história produzida por historiadores, por especialistas da história, enriquece as representações possíveis da memória coletiva, fornece símbolos, conceitos, instrumentos rigorosos para que a sociedade pense a si mesma em sua relação com o passado. Mas podem também ser vistos sob um ângulo negativo, porque a história científica se volta regularmente contra as representações produzidas pela memória “espontânea da sociedade, destruindo seus suportes, atacando seus princípios, seus pressupostos, seus símbolos.23 Guarinello traz para esse debate uma contradição polarizada nos efeitos do uso da memória, referendando, desta forma, o Museu Regional como lugar de memória para a cidade de Vitória da Conquista, tendo em vista discutir as possíveis “exclusões” imprimidas pela recusa de representantes de grupos sociais dominantes em perceber que as artes, as manifestações e referências dos sujeitos produtores dessa memória espontânea, podem ser absorvidos por uma estética do espetáculo. Essa compreensão pode conceber nas práticas do lugar a verdadeira razão da sua existência, isto é, como as pessoas que comungam dos espaços da cidade percebe o Museu e de como se reconhecem nessa miríade de objetos e eventos realizados pelas diversas concepções que regeram suas ações. Em meio a essas discussões, oportunamente buscamos refletir sobre outro conceito que amplia a noção de patrimônio colocando entre outras questões a relevância sobre a heterogeneidade dos bens que integram o universo dos patrimônios históricos e artísticos, considerando suas funções em inserir leituras sobre aspectos “esquecidos” pela história oficial e factual. Sobre essa questão, Maria Cecília Londres Fonseca aponta que, O universo dos patrimônios históricos e artísticos nacionais se caracteriza pela heterogeneidade dos bens que o integram, maior ou menor conforme a concepção de patrimônio e de cultura que se adote: igrejas, palácios, fortes, chafarizes, pontes, esculturas, pinturas, vestígios arqueológicos, paisagens, produções do chamado artesanato, coleções etnográficas, equipamentos industriais, para não falar do que a UNESCO denomina patrimônio não-físico – lendas, cantos, festas populares, e, mais recentemente, fazeres e saberes os mais diversos.24 23 GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e memória científica. In: Revista Brasileira de História. ANPUH. N. 28. São Paulo. Marco Zero, 1995.p.181. 24 Para obtenção de um conhecimento mais amplo sobre as questões do Patrimônio Cultural e sua problemática, Maria Cecília Londres Fonseca, constrõe um levantamento sobre a questão da preservação cultural no Brasil através de um estudo histórico da trajetória do IPHAN, organismo oficial responsável pelo patrimônio histórico e artístico nacional, sua forma de atuação, ressaltando conflitos e tensões, no campo da preservação de acervos (1997). In: FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ: IPHAN, 1997. 31 Observando essas questões conforme as últimas definições e as ampliações do conceito de bens culturais, que trata de superar como sinônimo a guarda de bens excepcionais, para serem objetos de contemplação e fonte de conhecimento, consideramos para além desse recorte anacrônico, ‘a idéia de que o Estado não deve ser o único ator social a se envolver com a preservação do patrimônio cultural de uma sociedade’, dando lugar às garantias ao direito dos cidadãos em buscar suas visibilidades também nesses espaços.25 A ampliação dos valores sobre os bens patrimoniais vem a comungar com as idéias propostas pelos estudos referentes à história cultural que, de acordo com a afirmação de Ângela de Castro Gomes, se distingue porque recusa fundamentalmente a “expulsão” do indivíduo da história, abandonando quaisquer modelos de corte estruturalista que não valorizem as vivências dos próprios atores históricos, postulados como sujeitos de suas ações.26 Procuramos, por outro lado, balizar essa discussão sobre as atribuições e ampliação do valor histórico do documento nas novas abordagens sobre o conceito de bem cultural e a preocupação de uma democratização de sua veiculação através dos esforços das chamadas instituições-memória. Nesse entendimento, procuramos saber se os critérios que promovem a seleção de bens culturais e de documentos têm levado em consideração particularidades locais, a dinâmica social e a valorização da pesquisa voltada para a história local? A esse respeito Elzir Vilas Boas relata que as pessoas se reconheciam ao rever a sua cidade do passado, remontando um sentimento de nostalgia ao cruzarem o olhar, observando as imagens, marcas e símbolos que permanecem nas fotografias e que foram extintos na cidade e volta a existir no momento que esse olhar se volta para a imagem, em seu registro estático, monumentalizado por aquele passado imutável, desdobrado das reentrâncias do tempo e revelado na apreensão de um recorte intencional. Conseguimos umas fotos doadas pela parte da Esposa de Seu Aníbal Viana, aí fotos da cidade, de famílias antigas e formadoras do núcleo populacional de Conquista. Começou com D. Camila Viana, e em seguida algumas pessoas também doaram fotos antigas que tinham em casa, doaram não, emprestaram para ser reproduzidas e devolvidas o original. Então as pessoas chegavam lá viam as fotos de festas antigas: ‘Ah! Essa é tal Rua!’ Então na minha rua era assim... A minha também era assim. Então você via uma relação entre uma rua e outra, as semelhanças, como se cruzavam.27 25 Ibid. GOMES, Ângela de Castro. Nas Malhas do Feitiço: o Historiador e os encantos dos arquivos públicos. Rio de Janeiro/São Paulo: CPDOC-FGV/IEB-USP, 1997. 27 Entrevista com Elzir Vilas Boas em 18 de maio de 2010. 26 32 Segundo Elzir, no momento inicial de funcionamento do Museu, as fotografias não foram catalogadas e as exposições acima referidas aconteciam de forma bem simples. As fotografias eram fixadas em cartões de papel e as legendas datilografadas em ofício branco e coladas na parede com fita colante. No começo da trajetória do Museu o que agregou sentido, foi menos o formato da exposição, e mais o que se pretendia era veicular essa memória. Nesse caso, a memória das famílias antigas e fundadoras da cidade. Então, serão essas as memória que vão ser guardadas e veiculadas pelo Museu Regional? Através desse relato percebemos que a trajetória das fotografias ao chegar à instituição percorrem caminhos particularizados, tanto por parte dos doadores, aqueles que possuem a fotografia e não querem se desfazer de algo tão pessoal e rico em suas relações interpessoais, quanto pelos leitores visuais que ao visitarem o Museu se reconheceram nessas fotografias. Esse entrecruzamento de significados em ambas as dimensões refletiram a importância desse suporte de memória para trazer a tona relatos de historias pessoais que ficam escondidas, e não se revelaram em outro tipo de texto. Desta forma, podemos indagar: se a maioria das fotografias recepcionadas pelo Museu foram originadas das famílias tradicionais da cidade, como poderíamos reconhecer os “esquecidos” neste texto visual? Como escrutinar esse resultado da exclusão? E, sobre as imagens da cidade, como ler nesse conjunto, as trilhas, acessos e contornos produzidos pelas picadas da gente que trafegaram pelos seus espaços e que a transformaram no seu cotidiano? Refletindo sobre imagens, Ana Maria Mauad considera que a fotografia é um produto cultural fruto de trabalho social de produção sígnica, sugerindo que do ponto de vista da memória ela não é apenas documento, mas também, monumento. Nessa perspectiva, a fotografia pode tanto contribuir para veicular novos comportamentos e representações da classe que possui o controle de tais meios, quanto atuar como eficiente meio de controle social, através da educação do olhar. A respeito dos detalhes de traços do passado que chegaram a nós sem explicação, Olgária Matos, refletindo sobre a relação entre historia e memória a partir de Benjamin, aponta que esse autor sugere que há duas formas de memória: O monumento faz parte da memória oficial celebrativa; o monumento é feito para durar e significar; quanto ao documento, é aquilo que ficou malgrado ele mesmo, o que fica aos pedaços, sem sintaxe absolutamente clara para nós. Somos nós que ao 33 construirmos o passado atribuímos um sentido ou vários sentidos para esses documentos, o que significa escrever a história. 28 (grifo nosso) Reconhecemos que as atribuições vinculadas a essa função são carregadas de ações eminentemente políticas, tanto do ponto de vista da recepção, no momento da chegada do doador de peças e documentos, quanto na função de emissário, isto é, de cumprir a missão da organização e veiculação desse lastro documental a partir dos padrões temático-visuais recortados por uma determinada escolha, visão e identificação do projeto elaborado pela instituição. Esta discussão sobre as diversas concepções do Museu e a sua relação para com a cidade será tratada no próximo subitem do capítulo. Um dos propósitos fundamentais do nosso trabalho refere-se às análises do acervo fotográfico do Museu Regional para o estudo das transformações urbanas sobre a Rua Grande, na cidade de Vitória da Conquista. Para além da análise da sua espacialidade, propomos caminhar junto dos sujeitos que a habitavam e mais ainda junto daqueles que a utilizavam nas suas práticas cotidianas de convivência, trabalho, lazer, ou simples passagem para o cumprimento de seus ofícios em outras paragens. Desta forma, procurando entender quais os meandros políticos correspondem ao pensamento buscamos questionar as diversas concepções das diretorias que geriram o Museu Regional, dessa organização: a que sujeitos serviam este Museu? E como esses sujeitos foram envolvidos por este ambiente? 1.1 TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO LUGAR DE MEMÓRIA DO MUSEU REGIONAL Em setembro de 1991 foram desenvolvidas as primeiras ações para fundamentar a implantação do Serviço de Museu Regional de Vitória da Conquista. Ao assumir a Subgerência de Assuntos Sócio-Culturais, em 1º de junho de 1991 (portaria n. 434/91), a professora Elzir da Costa Vilas Boas, em uma parceria com o advogado e historiador Ruy Hermann Araújo Medeiros, apresentaram uma proposta de projeto cultural para a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, refletindo a preocupação e a necessidade de 28 MATTOS, Olgária. Memória e História em Walter Benjamim. In: São Paulo. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O direito à cidade memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. 34 preservação e estudo da cultura local. Surgiu então, de idéia embrionária da criação de um Museu Escola: Então eu imaginei um tipo de museu em que a própria comunidade ajudasse o poder público a construir. Seria o museu com o espaço da cultura popular, da fotografia, do som e do objeto. E que gradativamente pudesse ser construído com a comunidade, por exemplo, na parte que se refere ao artesanato, então, iria se convidar artesãos, esses artesãos apresentariam seu trabalho e alguns daqueles trabalhos mais significativos seriam adquiridos para o Museu. Então, gradativamente, em visitas as feiras, em visita a região, aos povoados e também na realização de feiras em que o próprio artesão produzisse ali seu objeto iria se fazer o documentário da produção do objeto, iria se fotografar, gravar entrevistas e comprar o objeto, adquirir o objeto. Isso seria, na época, umas das dimensões, essa dimensão de a própria comunidade contribuir doando, contribuir participando, atuando.29 Essa época, da qual fala Rui, é ainda de quando se pensava a criação de um museu para a cidade vinculado ao poder municipal e sua construção se daria efetivamente com a participação da comunidade. Essa idéia de um Museu Escola, aonde gradativamente iria se absorvendo esses saberes das camadas populares, como por exemplo: os artesãos. Esses sujeitos estariam sendo servidos por este museu, e o seu produto encontraria um local de escoamento, tanto para a salvaguarda, quanto para a sua transformação em mercadoria. Esta relação aparentemente salvacionista incorpora uma forte relação de poder, a relação objeto/símbolo, designada para significar, fica totalmente comprometida, com a noção de valor mercadológico, que acaba por criar mais um lugar de disputa, pela qualificação dos objetos. Ao lado do artesanato, as manifestações culturais e do folclore, como as retomadas da queima de Judas, dos ternos de Reis, das festas de São João, são outras áreas que recebem muitas atenções por parte desses sujeitos sociais que pensam na realização de um museu. Aqui fica claro, então, o modo como a cultura popular é apropriada pelos projetos vinculados aos órgãos governamentais e a uma cultura oficial: numa visão idealista, como geradora de rendas para as classes pobres, através do artesanato e em outra dinâmica dessa apropriação: a espetacularização dos seus saberes. É passível de discussão os meios como a elite detentora do saber pensa a construção de espaço de veiculação e disseminação das memórias, quando vimos que a preocupação do que se deve preservar , é sobre o que está se perdendo, sendo assim, constatamos que os eventos diretamente relacionados com as manifestações do que se chama de ‘popular’, 29 Entrevista com o Professor Ruy Medeiros em 12 de maio de 2010. 35 guardadas as suas devidas especificidades, estão se diluindo nestes tempos da contemporaneidade. O que está em jogo, são as relações entre grupos que estão sendo dominados por essa mediatização e uma elite que, imbuída de seus instrumentais vai trazer a tona esse conhecimento que não é mais vivo e sim cooptado nos seus saberes por uma sistematização assistida. Para Marilena Chauí, existe na concepção de resgatar a memória do ‘popular’ formulada pelas elites letradas uma pretensão de construir o seu lugar na relação que os distinguem dos primeiros, nesse sentido, o popular é uma construção das referidas elites. A autora vai adiante avaliando que a relação de conformismo e resistência, deve ser pensada em suas especificidades, questionando se esses sujeitos e grupos querem realmente ganhar visibilidade como popular compondo essa polaridade. Segundo a autora essa concepção é, evidentemente, problemática, já que, A expressão Cultura Popular, [...] é de difícil definição. Seria a cultura do povo ou para o povo? A dificuldade, porém, é maior se nos lembrarmos de que os produtores dessa cultura – as chamadas classes “populares” – não a designam com o adjetivo “popular”, designação empregada por membros de outras classes sociais para definir as manifestações culturais das classes ditas “subalternas”. Assim, trata-se de saber quem, na sociedade, designa uma parte da população como “povo” e de que critérios lançam mão para determinar o que é e o que não é “popular”.30 Partindo da reflexão de Chauí sobre a problemática do popular é importante trazer para o debate o relato de Rui Medeiros no qual propõe formulações, explicitando desejo e aspirações voltadas para a produção, veiculação e recepção de bens culturais no Museu para Vitória da Conquista, conforme podemos acompanhar, Quando Elzir assumiu mais tarde a coordenação do Departamento de Ciências Humanas – O DFCH, quando ela assumiu, ela falou assim: - Rui, eu estou pretendendo fazer um projeto, um pouco no espírito da cultura popular, da memória, porque as coisas vão se perdendo, ou vão deixando de existir, porque ninguém dá importância a isso e eu sou assim muito sedenta de documentar essas coisas, de realizar atividades nessa área, popular, etc.31 30 CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência – Aspectos da Cultura Popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 9-10. 31 Depoimento de Rui Medeyros em 12 de maio de 2010. 36 A Professora Elzir ressalta que, o Serviço de Museu, constitui espaço privilegiado de extensão comunitária, articulando a cultura disponível na sociedade com a sistematização, das iniciativas e o tratamento teórico, próprio do comportamento acadêmico, conforme apresentado na justificativa do Projeto de implantação, Pretende-se, em efeito, a criação de um MUSEU REGIONAL que, ao lado de preservar a memória regional, sirva como ambiente de produção cultural e de estudo e difusão do saber, além de proporcionar satisfação estética. O MUSEU REGIONAL desejado deve ser espaço de guardar objetos, mas deve igualmente proporcionar a realização de atividades básicas de estudo da cultura, do passado e da atualidade da região.32 Assim, a produção e divulgação desse saber, nessa primeira fase, eram consideradas, primordialmente, como assentamento de uma prática voltada para a elaboração de um museu como espaço de produção de memória, sobretudo da memória popular e da sociedade. 33 Essa questão está presente na entrevista de Ruy Medeiros, quando continua a acender em suas memórias uma concepção de museu para a cidade de Vitória da Conquista alimentada pela temática da cultura popular: Esse Museu seria um Museu em permanente expansão. Então ele necessitaria de ter uma casa e um terreno muito grande, para abrigar uma casa de farinha rústica lá dentro, abrigar uma engenhoca de cana, abrigar o forno, o forno de fazer biscoito, abrigar um pequeno alambique; aquilo que é da região. Tipos, modelos de cerca: uma cerca viva de quiabento, uma cerca viva de avelós, uma cerca entrelaçada, estivada; um casebre, um pequeno casebre de barro batido, inclusive os modelos das casas aqui de Conquista, que era predominante a meágua34 – foi a construção dominante de Conquista, nas décadas de 20 até início de 1950. Então teria essa meágua. Na parte do artesanato popular ia colocar o fifó, o fifó de uma casa simples, 35 de uma casa modesta. Então, esse relato sobre as diversas formas de reificar o que aparentemente está morto, retoma uma preocupação de guardar e cristalizar a memória, uma preocupação com algo que está possivelmente perdido. Diante dessa questão, voltamos a questionar: O que é que move 32 Projeto de Implantação do Museu Regional de Vitória da Conquista de dezembro de 1991. Depoimento do Professor Rui Medeiros de 12 de maio de 2010. 34 Mégua ou meia água, designação popular para um telhado mais simples e barato, cuja caída parte da parede de fundo para a inclinação da frente da casa. Segundo o dicionário Aurélio, meia água significa o telhado de um só plano. 35 Idem 33 37 os grupos sociais de Vitória da Conquista para fundar o Museu? Qual o projeto e expectativas? O Projeto que foi desenvolvido na Casa Henriqueta Prates já abrigava a Galeria de Arte Vila Imperial, do setor privado da cidade. Em junho de 1991, foram estabelecidos importantes contatos com Vivaldo Costa Lima, na época, diretor do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural e com a Drª Ivone Jucá, procuradora da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Entre outubro e dezembro do mesmo ano, foi elaborado o projeto por uma equipe interdisciplinar da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, com a assessoria do museólogo Luiz Alberto Freire, culminando na realização de cursos, oficinas de arte, mostra e outros eventos de “interesse comunitário”. Para Freire, a existência do Museu, já significava o seu testemunho da história da Cidade, referendado na formação discursiva, de acordo com seu relato, Agora, esta casa que é o testemunho da história de Henriqueta Prates, da história da cidade, abriga o Serviço de Museu Regional de Vitória da Conquista – UESB, com os elevados propósitos de manter viva a memória do Planalto da Conquista, de resgatar suas tradições, os seus traços culturais, a fisionomia da gente. Nesta casa, o passado e o presente se encontram para a gênesis do futuro.36 Essa pressa, em referendar esse lugar de memória para a cidade, nos coloca frente à questões eminentemente contraditórias. Entre a criação do museu e a elaboração do texto do projeto conta menos de um ano, tempo insuficiente para fazer um diagnóstico dessa relação do Museu para com a cidade, compreendendo que a simples existência do espaço físico da instituição não significa estabelecer relação com os moradores como ‘testemunho da história da cidade. Desta forma, destacamos ainda, que o acervo sob a guarda deste museu, está organizado diante das várias concepções em que ele foi construído. Sem informar qualquer traço de neutralidade, devemos observar e compreender esse acervo, enquanto um processo de organização de registros de memórias, fontes que podem ser destinadas à pesquisa histórica a partir do lugar da sua construção. Fotografias, jornais, entrevistas gravadas, livros de memorialistas, etc., são fundamentais para a elaboração desse estudo sobre a cidade e as transformações ocorridas nas décadas de 1920 e 1940. 36 Texto do museólogo Luiz Alberto Ribeiro Freire, que trabalhou na assessoria do Projeto de Implantação do Museu Regional, de 11 de julho de 1992, registrado no 1º Caderno do SMRVC – UESB. 38 Nesta casa viveram pessoas de um tempo no qual a memória permanecia viva, nas conversas em torno do fogão, no forno do quintal, na busca de água para o abastecimento doméstico na cisterna, nas comemorações em torno da mesa, nas conversas na porta da rua, constituídas das relações sociais e dinâmicas da cidade que pulsava através de suas memórias. Memórias que na trajetória do Museu Regional de Vitória da Conquista foram organizadas a partir do projeto elaborado pela sensibilidade do olhar de Elzir Vilas Boas sobre a cidade e da persistência do pesquisador Ruy Medeiros, estudioso da história da região, que entre outros objetivos, enfatizavam a “necessidade de preservação da memória sócio-cultural e da valorização da arte respaldada na finalidade de oferecer subsídios para pesquisas de estudiosos dos vários aspectos da cultura regional.”37 Figura 2 - Interiores do Museu Regional - Casa Henriqueta Prates (acervo MRVC) D. Henriqueta Prates dos Santos Silva, representante de uma das famílias fundadoras da Cidade de Vitória da Conquista, nasceu em 30 de abril de 1863. Casou-se, aos vinte anos de idade, no ano de 1883. Ficou viúva aos trinta e cinco anos. A partir de então, a Matriarca dedicou-se integralmente à família de sete filhos e desempenhou uma liderança na comunidade de Vitória da Conquista, a partir das dependências dessa casa, que dentre as casas 37 Depoimento da Professora Elzir Vilas Boas para o Jornal Impacto, Vitória da Conquista, 29/09 a 06/10/1991. 39 que perfilavam uma das laterais da Rua Grande, era considerada ‘simples’, uma casa de meágua, que teimou em resistir à renovação do ecletismo. Para esboçarmos o perfil de D. Henriqueta Prates, convém apontar algumas marcas mais relevantes de sua biografia: em sua casa ela abrigou enfermos em tempos da epidemia de varíola, ajudou famintos em tempos de seca, recebeu em torno da sua mesa políticos em busca de conselhos; enquanto católica fervorosa guardou as imagens dos principais santos do altar da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Vitória, no período entre a demolição do edifício e a Construção da atual Catedral38. A trajetória de D. Henriqueta está intrinsecamente relacionada com a história da cidade, contemplada na produção historiográfica e literária, a exemplo de dissertação de mestrado, e de livro publicado.39 O interesse em destacar a trajetória da vida de D. Henriqueta Prates relacionada à casa em que viveu, aponta para a necessidade de compreender a importância da cultura material nesse estudo que tem como pressuposto as relações que se entrecruzam nos espaços construídos dentro da casa, praticados por seus moradores e agregados e a interação com a rua, cujas vivências se multiplicam em temporalidades carregadas de significados. A aquisição e a modificação da casa Henriqueta Prates para comunicar ao público visitante e as suas similitudes e contribuições históricas para a cidade foi efetivada durante a direção de Heleusa Câmara entre os anos de 1995 e 1997. Ela se reporta a esse momento demonstrado compreender a importância de adquirir uma casa como um meio para a manutenção de um patrimônio que estava se perdendo, nessa circunscrição da cidade, O que é importa é a casa. Luiz Freire deixou a brecha, se não fosse a brecha de Luiz Freire agente não poderia trabalhar a casa. A brecha é que poderia uma das linhas de trabalho ser a preservação da casa, a casa como um museu. (...) Ali no corredor fizemos um recorte na parede para mostrar que era feito de pau-a-pique40. O pessoal era muito acadêmico, pensava-se em muitas pesquisas, na região, e não tinham pensado em trabalhar a casa para ser uma mostra de residência aqui em pleno coração da cidade, então o pessoal achou ali muito pequeno e não quis investir, quando eu cheguei, logo, eu fiquei doida, eu fui ver todos os cantinhos, todos os buracos. 41 38 CASSIMIRO, Ana Palmira B. A Casa Henriqueta Prates. Museu Regional de Vitória da Conquista. In: Memória conquistense, n.3. História e Cotidiano no Planalto da Conquista. Vitória da Conquista: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, 1998. 39 A exemplo: IGURROLA, Ana Claúdia R.T.. Henriqueta Prates dos Santos Silva: mito, memória e cotidiano. Dissertação de Mestrado em Memória e documentação social, UNIRIO, Rio de Janeiro, 2001. e publicação do livro: ORRICO, Israel Araújo de. Mulheres que fizeram história em Conquista, Vitória da Conquista, Brasil Artes Gráficas, 1992. 40 Construção típica do Sertão e da Caatinga brasileira onde o barro é colocado entre feixes de madeiras, varas ou taquaras (o mesmo que sopapo ou taipa). 41 Entrevista com Heleusa Câmara, de 21 de maio de 2010. 40 Entendemos que a importância da salvaguarda da casa, enquanto patrimônio histórico e arquitetônico deva promover um lugar de significados. A casa por si só, não vivifica a memória, não resignifica a cultura, não contribui para a produção historiográfica. As perspectivas do Museu são extremamente positivas e promissoras quando amplia suas possibilidades como entidade que, por meio do apoio informativo e de pesquisas, possam vir a contribuir para o desenvolvimento do conhecimento no diversos campos de atuação a que se propunham. Por outro lado, a decisão da universidade em viabilizar a compra da casa significou o salvo conduto para a preservação do seu edifício, que se localiza no centro nervoso de Vitória da Conquista, local de intensa especulação imobiliária, como também significou no processo de consolidação do Projeto de Museu na casa Henriqueta Prates, que finalmente encontrou a sua sede permanente, longe de ações de despejo ou similares. O texto do ofício 173/99, assinado pelo então, Reitor, Waldenor Alves Pereira Filho ao Secretário de Educação, Sr. Eraldo Tinoco Melo, nos conduz a essa memória, Com o objetivo de preservar a memória social e cultural da região do sudoeste baiano, a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia criou, desde 1992, o Museu Regional de Vitória da Conquista. Através de contrato de locação, a UESB tem utilizado a Casa Henriqueta Prates, por tratar-se de uma construção antiga que demonstra ao público visitante aspectos arquitetônicos e culturais das famílias tradicionais da região. Reconhecendo a importância de solidificar o Projeto do Museu Regional, a UESB foi autorizada pelo Excelentíssimo Governador do Estado da Bahia, a adquirir o imóvel acima mencionado. [...] Nessa decisão estava embutida intrinsecamente a tendência da Instituição promotora em se apropriar dos projetos, para daí lançar outras possibilidades que não fossem as elaboradas pelos criadores do Projeto Inicial. Esse percurso, entre a criação do Museu e a compra da casa, provocou questionamentos, quanto à intenção e importância desse ato para o processo de qualificação e vivificação do museu para a cidade. Foi uma aquisição negociada com a participação da sociedade? Professores, alunos, tanto da comunidade acadêmica, quanto os professores das outras redes de ensino, profissionais das áreas afins e outras pessoas da comunidade foram consultadas? Qual, então, a importância desse ato para a comunidade de Vitória da Conquista? 41 O projeto de criação de um Museu Regional para a cidade de Vitória da Conquista encontrou respaldo junto a algumas pessoas da comunidade universitária42, que imbuídas desse anseio de criar um espaço de cultura e arte para a cidade aproximaram-se da proposta de criação deste Museu Regional. A Professora Elzir Vilas Boas reflete sobre essa condição, Quando nos convidaram na gestão de Pedro Gusmão, como Reitor, para assumir uma Sub Gerência de Assuntos Sócio Culturais na UESB, eu disse: só fico se vocês me derem condições de criarmos o Museu Regional, que a gente comece a realmente a ter um espaço pra botar essa memória daqui, o plano inicial era até maior do que Conquista, ia um pouco além, na região (...) Foram assim, dois anos muito intensos, depois como a Universidade não dava sustentação, quer dizer, tava na cabeça de alguns, na cabeça de uns, mas, bem pouco na cabeça da instituição. Algumas pessoas foram pescadas assim, e trouxe de lá pra cá para ajudar agente em alguns momentos, mas, não tinha um empenho, acho que a instituição não se sentiu mãe de um projeto de salvaguardar a cultura e arte na comunidade.43 Este período de pensar o Museu Regional de Vitória da Conquista e de buscar a concretização desse projeto foi uma etapa de enfrentamentos de problemas decorrentes dos trâmites burocráticos, e da vontade política dos dirigentes da Universidade em promover a sua efetiva realização. Heleusa Câmara evidencia, ainda, o percurso que levou a concretização do funcionamento do Museu Regional na casa Henriqueta Prates, ressaltando mais uma vez a importância do papel da matriarca para a história da cidade de Vitória da Conquista. Além de preservar a estrutura original das primeiras casas do núcleo urbano, a casa Henriqueta Prates em grande significado por conta da importância social que essa matriarca teve em Vitória da Conquista. A casa, construída em taipa e adobão (característica das construções do século XIX), está localizada no sítio original de ocupação urbana da Cidade de Vitória da Conquista, no final do século XVIII, na antiga Rua Grande (hoje, Praça Tancredo Neves, n. 114) Neste sentido, destacaria uma afirmação de Michel de Certeau, quando diz que os relatos são carregados de práticas e a descrição desses relatos é um ato culturalmente criador, que tem uma função, inicialmente de autorização ou, mais exatamente, de fundação, 42 O projeto do Museu teve a participação de alguns professores dos Departamentos de Filosofia e Ciências Humanas, de História e do departamento de letras, como também recebeu a contribuição de funcionários ligados à Gerência de Extensão e Assuntos Comunitários da UESB. 43 Entrevista com a Professora Elzir Vilas Boas em 18 de maio de 2010. 42 As “operações de demarcação”, contratos narrativos e compilações de relatos, são compostos com fragmentos tirados de histórias anteriores e “bricolados” num todo único. Neste sentido, esclarecem a formação dos mitos, como têm também a função de fundar e articular espaços. Constituem, conservada nos fundos dos cartórios, uma imensa literatura de viagens, isto é, de ações organizadoras de áreas sociais e culturais mais ou menos extensas. Mas essa literatura representa apenas uma parte ínfima (aquela que se escreve em pontos litigiosos) da narração oral que não cessa, trabalho interminável, de compor espaços, verificar, confrontar e deslocar fronteiras.44 A composição do Museu Regional – Casa Henriqueta Prates, construído para abrigar a memória da cidade de Vitória da Conquista, é um lugar de memória organizado por sujeitos detentores de um conhecimento acadêmico, que vem apresentar propostas de encaminhamentos, às vistas das suas trajetórias pessoais. Em um contexto caracterizado por relações conflitantes entre a necessidade de se estabelecer uma política de preservação para o Museu e o seu vínculo junto a uma instituição acadêmica com os seus meandros burocráticos e práticas efetivas, marcaram e configuraram tensões; desde sua criação, mesmo no âmbito interno, as relações profissionais no trabalho estavam contaminadas pelas alternâncias das políticas culturais pensadas pelas várias diretorias que assumiram os trabalhos do Museu. Durante esses anos, de 1992 até o início de 2010, escreveram essa história com a marca indelével das suas aspirações, concepções e ações do que seria o Museu para a Cidade, a exemplo do relato do Professor Humberto Fonseca: [...] A gente não falava só de história, da formação do historiador, mas também se tratava da literatura conquistense, das artes plásticas, exposições de fotografias, inclusive exposições comparativas, as fotografias da cidade antiga, as fotografias da cidade moderna, exatamente a partir dessas comparações das fotografias antigas, da vida provinciana de vitória da Conquista antigamente e a vida moderna de Conquista, com seu frenesi natural dos tempos modernos, uma cidade que já poderia ser considerada uma cidade grande e aí a perspectiva de fazer esse trabalho foi discutir formas de desenvolvimento urbano de Vitória da Conquista, que aproveitasse esse crescimento acelerado, mas que esse desenvolvimento não trouxesse só esses aspectos ruins das cidades grandes, que trouxesse também os equipamentos urbanos responsáveis que melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.45 Ele chama a atenção para a cidade que está inserida nas intertextualidades produzidas pelo Museu. A cidade aparece em seu ‘frenesi natural’ dos tempos modernos, sendo relativizada por esse lugar de memória, quanto à percepção da aceleração do tempo e a 44 45 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de fazer. 8 ed., Petrópolis: Editora Vozes, 2002. Entrevista com o Professor Humberto Fonseca, em 17 de maio de 2010, por Ednair Carvalho Rocha. 43 necessidade de fixar as memórias. Estas memórias revivificadas deveriam atuar numa política de engendramento de planos para, segundo ele, promover a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Esta perspectiva apresentada na entrevista do professor Humberto Fonseca aponta a atuação desses vários atores que desenharam a configuração do Museu e construíram seu espaço carregado de práticas, tanto pessoais, quanto institucionais, e deixaram suas peculiaridades que vão dar o tom a esse lugar, do que seja o lugar praticado por tramas e enredos e, que estará agora na sua existência, constantemente aberto a avaliações e interpretações dando voz e visibilidade aos sujeitos sociais que habitam neste lugar e a organização desse acervo não apresenta neutralidade. Rui Medeiros faz uma ressalva quanto à importância do olhar sobre a concepção de Museu e suas fundamentações frente às questões da produção do conhecimento através da organização do seu acervo: A gente não pode ter essa concepção do museu apenas como guardião do passado. Ele tem que produzir muito, ele tem que ser produtor do conhecimento, ele tem que envergar pessoas, ele tem pesquisa. Eu lembro que Elzir chegou a ir até batalha aquela região ali no Riacho dos Gameleiros, fotografar e adquirir panelas e fotografar o pessoal fazendo panelas. E a tendência dela era realmente isso, essa visão mais popular, isso burocratizou, ficou como uma coisa. Mas, foi importante, muito importante Marisa46 promover o curso de artes, criar a Biblioteca, reordenar a apresentação das exposições permanentes, foi muito correto Marisa ter ido a comunidade solicitar a doação das fotografais, conseguiu que outras pessoas levassem fotos pra lá, as publicações da coleção Memória Conquistense47, e tantas outras ações. Então isso foi uma coisa de grande importância, mas, mesmo fazendo isso a burocratização foi dominando, foi sendo a lógica dominante. E aí precisa reverter esse processo.48 Acreditamos fundamentalmente na importância de analisarmos as escolhas e o tipo de tratamento dado ao conjunto documental do acervo: imagens, entrevistas gravadas, documentos escritos, livros, está ‘guardada’ essas memórias dos diferentes grupos sociais que 46 Marisa Fernandes Correia foi diretora do Museu Regional entre os anos de 1997 a maio de 2010. Formada em artes plásticas pela Universidade Federal da Bahia, representante da academia de letras de Vitória da Conquista, e representante de uma das famílias tradicionais da cidade foi convidada pela Universidade para assumir a direção do Museu Regional. 47 A Coleção Memória Conquistense é uma das ações da Coordenação de Pesquisa do Museu Regional, com o objetivo de publicar artigos produzidos por pesquisadores locais, com a temática da Região do Planalto da Conquista. As publicações passam pelos critérios selecionados por uma comissão composta por professores dos diversos departamentos da UESB, são editadas em volumes anuais, iniciadas no ano de 1995, com o livro “RÉGIS PACHECO (1895-1987) Esboços biográficos. As publicações apresentam uma relativa freqüência, sendo que o último volume foi publicado em 2009. 48 Entrevista com Rui Medeiros, em 17 de maio de 2010, por Ednair Carvalho Rocha. 44 procuram constituir lugares, sentidos e visibilidades em suas lembranças e registros sobre a cidade. Por outro lado, ressaltamos a relação dos pesquisadores locais e a procura pelo material do acervo do Museu para a elaboração dos seus estudos. Percebemos a existência de uma prática de utilização dessa documentação tantos dos estudantes e profissionais da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB, instituição a qual o museu é vinculado, como também, a procura de outras universidades existentes na cidade, percebido nas referências bibliográficas das monografias e dissertações pertencentes ao banco de dados da Biblioteca Heleusa Figueira Câmara, do Museu Regional. A trajetória do Museu Regional em quase duas décadas de sua existência confirma a separação do projeto inicial apresentado por Rui e Elzir, que praticamente se reduz à preservação arquitetônica, e a exposição de um acervo permanente. Ao analisarmos os eventos e as realizações surpreendemos que a opção seguida pelo órgão é de uma visão muito específica de caráter acadêmico: os monumentos vinculados a uma cultura hegemônica produzida pela população que detém o saber instituído. E devido as especificidades da produção local, percebemos ainda, que diante das nossas indagações o espaço construído no Museu Regional faz suscitar muitas leituras sobre a produção do fazer histórico, como sugere Rui Medeiros, Ele ficou mais acadêmico. A concepção de Museu expansivo, popular, etc., não foi totalmente aplicado, foi, aplicado em parte e depois passou a ser acadêmico. Absorvido pela própria burocracia e pelos interesses da reitoria. Apesar disso, fez muitas coisas. Só o acervo que conseguiu: jornais, fotos, as coisas de cultura popular, aquele acervo com artistas conquistenses, a publicação de alguns livros, livretos, aquilo é importante, mas não é só aquilo.49 A história do Museu, a história da fotografia no Museu se desenrola na trajetória da história da cidade. O Museu Regional entendido como lugar de memória, tem a pretensão de contar uma história sobre a cidade em suas transformações: Quais sujeitos foram privilegiados? Quais os seus lugares e que relações estabeleceram nesta cidade? Quais suas atuações nas modificações desses espaços revelados nas fotografias que estão expostas nas paredes do museu e organizadas na sua coleção? Interessa-nos trabalhar a cidade, que resulta das interações sociais, percebidas no tecido das relações cotidianas. Assim, o elenco dos marcos simbólicos representativos do processo histórico local deve passar por rigoroso critério de análise, pois, na seleção desses 49 Entrevista com Rui Medeyros em, 12 de maio de 2010, por Ednair Carvalho Rocha. 45 monumentos investigaremos não só as interferências na paisagem, mas, acima de tudo, a simbologia dessas imagens que servem tanto a opressão, quanto à liberdade. O Museu com os seus equipamentos, que está inserido na cidade, e a cidade com todas as suas confluências que pulsa de histórias, devem ser contadas para não serem esquecidas e estas histórias estão inscritas, na memória, na fotografia, nos sujeitos, no museu e na própria cidade, que o historiador em seu ofício e com seu instrumental vai interpretar. 1.2 VÁRIAS DIMENSÕES DA MEMÓRIA DE VITÓRIA DA CONQUISTA NO MUSEU REGIONAL Todas as coisas Precisam de um certo e determinado cuidado, de um lugar especial, mesmo quando elas se perdem em algum lugar, é neste instante talvez que elas estejam demasiadamente perto, pois precisamos mesmo fazer jus as gavetas, às garrafas, às caixas e outros objetos se não, pra que isso, pra que a história, a memória e o verbo?50 Maxim Malhado Com o propósito sugerido pelo poema com o qual, apresentamos o relato da Professora Janilde Mota, moradora da cidade, que convidada a participar de uma mesa redonda, do Projeto Sábado no Museu51, em 2001, trouxe à tona memórias de um tempo, ‘saturado de agoras’, presentes em sua preocupação com a memória da cidade; tanto 50 Poema de Maxim Malhado, poeta natural da cidade de Catú – Bahia. In: MALHADO, Maxim. Apenas uma lata. Salvador: edições, 2009. p. 55. 51 O projeto foi implantado no ano de 2001. De acordo com o texto do release de divulgação: O Museu Regional da UESB, implantou o projeto “Sábado no Museu”, objetivando aproximar a comunidade ao MRVC através da abordagem de temas relacionados à história/memória regional, proporcionando conhecimento e entretenimento. No dia 14/04/01, às 15:00 h, estaremos “Relembrando os Carnavais Antigos”. Para isso, realizaremos uma mesa redonda, quando os participantes contarão como era o carnaval em Conquista e a apresentação musical com Edmundo Seca Gás e a banda de sopro “sonho de verão”, tocando marchinhas carnavalescas. Ao final, teremos ainda, o testamento e a queima de Judas, no intuito de reviver uma antiga tradição. 46 relacionada ao desaparecimento nas estruturas do patrimônio cultural, mudanças no processo de visibilidade de determinados espaços urbanos que está promovendo, em sua opinião, o fim da memória histórica, quanto a sua premente declaração, alertando que, “Conquista é por excelência uma cidade que está sem memória”, como podemos perceber em seu depoimento, Olhe, da primeira vez que eu vim aqui, e eu já tenho vindo muito aqui nesses sábados! Eu tenho sempre agradecido ao Museu, essa busca de resgatar essa memória. Por quê? Porque, eu sou filha de Conquista, eu sou apaixonada por Conquista, mas eu sinto que o povo de conquista, nesse aspecto, é de uma frieza incrível. – Gente! As coisas aqui acabam, mudam, e mudam sem ninguém tomar conhecimento. Olha até hoje eu sinto uma tristeza enorme... Não que eu ache feio. Acho maravilhoso esse jardim! Esse jardim é lindíssimo, mas, porque esse jardim não ter sido feito em outro local e o antigo jardim que era muito bonito, o jardim da minha infância, que era muito bonito ser restaurado? Em Conquista não se faz consulta popular. Muda. Simplesmente acaba. A Biblioteca infantil, que tinha na Praça. [...] Agora tira a Biblioteca e coloca lá embaixo [...] e, porque não conservar o que a gente tem de memória? - Então, eu acho que o Museu está assim de parabéns mais uma vez por essa iniciativa, de trazer pessoas... Então, são coisas assim que eu falo de mim, são coisas inclusive que eu tenho o cuidado de ir passando para os meus filhos, por que a gente não vê nem nos livros! Você pega aqueles catálogos telefônicos antigos, hoje eles nem existem mais, tinham a história de Conquista! A fundação! Hoje não tem mais. As famílias antigas! Hoje não tem mais... Então você fica assim sem memória. Conquista é por excelência uma cidade que está sem memória... Está perdendo... e parece que o povo gosta que perca mesmo a memória. Através desse relato, podemos inferir um sentimento de retorno ao passado, de uma infância particularizada, no seu jardim, entre as suas memórias. Portanto, um recorte seletivo daquelas pessoas de sua convivência, de um lugar de pertencimento de um grupo social herdeiro dessa tradição. Observamos no seu discurso, duas premissas evocativas e provocadoras: ‘Por que eu sou filha de Conquista’ e, ‘mas, porque esse jardim não ter sido feito em outro local e o antigo jardim que era muito bonito, o jardim da minha infância, que era muito bonito ser restaurado?’, essa crítica contundente, reflete uma disputa desta memória com o poder público que, apagando as suas referências, afronta esses sujeitos no seu lugar de pertencimento. Do lugar de onde fala D. Janilde, professora graduada em sociologia, surpreendemos diversas pistas, que nos leva a percorrer, através do seu discurso, a relação do Museu para com a cidade de Vitória da Conquista. Ela trás em si um pensamento recorrente das paisagens idílicas que foram destruídas. Mas, não só isso, ela fala da biblioteca infantil, do jardim da 47 infância, dos catálogos telefônicos, então, ela fala do lugar do conhecimento, do saber de uma memória histórica e nos acena com a presença do Museu Regional, como esse lugar, que vai trazer de volta através do acesso a essa memória, as lembranças desse passado. Esse relato sobrepuja uma memória vinculada a um segmento social dominante estimulado pelo lugar competente em elaborar a construção de uma memória social. Deste lugar de memória projeta-se a construção de uma memória social instituída pelo Museu Regional articulada na elaboração dos seus projetos que forjam um recorte de memória ao pretender divulgar e estabelecer os monumentos privilegiados para a composição da imagem da cidade. Nesta perspectiva, procuraremos refletir neste capítulo sobre o Museu Regional de Vitória da Conquista, enquanto lugar de memória, numa abordagem sobre o tratamento de seleção das fontes que deveriam aproximar e catalisar as dimensões da memória indicando os mecanismos de enquadramento das memórias dos moradores da cidade, quanto as suas experiências e as formas de resistência vividas cotidianamente, analisando as estratégias de manipulação da memória coletiva salvaguardando os ditos e silêncios que pontuam o tecido da história. O Museu Regional, situado em frente ao Jardim relembrado no relato D. Janilde, é uma casa centenária onde viveu D. Henriqueta Prates, está localizado próximo a Catedral Nossa Senhora da Vitória e circunscrito ao espaço da antiga Rua Grande, identificada por um conjunto de bens patrimoniais52, carregados de significados e de atribuições de valor, identificados tanto nas lembranças de alguns moradores do lugar, quanto nas referências dos gestores públicos, a exemplo do texto da Professora Heleusa Câmara, diretora do Museu no período correspondente de 1995 a 1997, 52 A Rua Grande, espaço do núcleo de ocupação da cidade é atualmente circunscrito pelas edificações da Catedral Nossa Senhora da Vitória, Memorial – Casa Régis Pacheco, Casario do final do século XIX e inicio do século XX que abriga Projetos sociais vinculados à Prefeitura Municipal, Casa de D. Zaza e Prédio da Rádio Clube. 48 Na Praça da Matriz da Vila Imperial de Nossa Senhora da Vitória foi construído o casarão onde Henriqueta Prates morou por muitos e muitos anos, até que a vila se tornasse cidade. Suas paredes de adobão, muito altas, abrigaram o amor e apararam homens e mulheres que, por quatro gerações, contribuíram para o desenvolvimento desta terra. Seus ladrilhos de barro sentiram a leveza constante dos passos cuidadosos de Henriqueta provendo de azeite as candeias, indo de canto a canto a tecer, com suas mãos construtoras, lavores para os seus e para os que em sua porta batiam. Seus telhados cobriam costumes, mas deixavam que os raios de sol descessem iluminando o id de cada um, nos sonhos que se construíam no dia-a-dia. Casa grande, de tantos quartos e salas, de janelas ora azuis, ora vermelhas, ora verdes, agora vermelhas novamente, teve preservada a sua forma graças a força de Henriqueta, mulher viga-mestra a sustentar os princípios do amor e da fraternidade. [...] Em setembro de 1991, esta casa que sempre esteve viva abriu suas portas para o Serviço de Museu Regional da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, visando o desenvolvimento de ações para a implantação do Museu Regional de Vitória da Conquista.53 53 A Professora Heleuza Câmara, foi diretora do Museu entre os anos de 1995 e 1997. Elaborou esse texto quando a casa Henriqueta Prates ainda habitava a Galeria de Arte Vila Imperial e no ano de 1992 esse texto foi reescrito para o folder de divulgação da inauguração do Museu. 49 Mapa da Rua Grande com a Igreja Matriz. 50 Acompanhando o texto percebemos o interesse da gestora por manter preservado este edifício. Através de um corpo de imagens sobre a casa nas ‘suas paredes de adobão muito altas’ e a ‘mulher viga-mestra a sustentar princípios’ ela faz suscitar uma carga simbólica de termos a referendar um projeto do lugar que deve construir uma memória, dando visibilidade a esses sujeitos, que na esteira das tradições e costumes referentes às famílias, viriam a dar sentido na construção das visibilidades, nos registros e lembranças sobre a cidade. A poética traz uma casa que ‘sempre esteve viva’ pela força da Matriarca Henriqueta e agora abre suas portas para o Museu Regional, que terá a missão de continuar a manter viva essa memória atávica, atrelada a suportes de outras memórias que supostamente emergirão dos mesmos pressupostos determinados pela hereditariedade das famílias tradicionais que ganharam na história oficial da cidade as atribuições de fundadores e precursores dos planos e projetos de sustentação dos costumes e valores da sociedade conquistense. Neste aspecto, refletindo sobre os depoimentos e destacando algumas palavras que se repetem demarcando os sentidos atribuídos por D. Janilde e Heleusa, quanto a relevância da memória para o fortalecimento dos saberes sobre: as mudanças, o tempo que passou, as interferências implantadas nos espaços públicos sem consultar os indivíduos e grupos que os construíram no cotidiano, e, principalmente, pela consciência de perceber as memórias enquanto campos de força,54 fundamentais para serem tomados como objeto de análise da história, nos perguntamos: Qual a cidade desejada por esses depoentes? De que sujeitos sociais e grupos elas estão falando? A partir desse viés, de entender a construção da memória enquanto campos de força, torna-se evidente que, ao tentar condicionar a memória da casa à memória da mulher que a habitou, procura-se restituir nesta mulher uma carga simbólica de representação da força dos que fizeram ‘o desenvolvimento desta terra’, dando-lhe o vigor das reminiscências das lembranças e transformando-a em patrimônio imaterial para esta cidade. Este elemento é contemplado pela necessidade de trazer as lembranças para reconfigurar um passado, tornando mais um mecanismo de sustentação deste projeto de manutenção do suporte de uma hierarquia social. 54 Esse conceito serve a nossa reflexão, no sentido de ajudar a desconstruir a idéia de uma memória hegemônica, numa crítica contundente a uma visão determinista, que visualiza a idéia dos dois extremos, onde a cultura dominante é o preceptor (emissor) e a cultura do povo, o receptor passivo. Williams, não vê uma linha divisória que inclui ou exclui uma cultura ante a outra, nem sobrepõe a idéia marxista de superestrutura e infra-estrutura em relação à cultura, pois ele percebe que no encontro de culturas existem campos de força, onde as culturas se interagem, se absorvem, se transformam e se conformam ao meio, sendo esse conceito considerado sobre um processo positivo e natural que ele chama de mediação. WILLIAMS, Raymond. Conceitos básicos. In: Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1979, p. 111. 51 Os relatos nos surpreendem pela riqueza de detalhes e por amplas possibilidades de suscitar questões importantes para enfrentar aspectos relacionados tanto ao registro de memórias de diferentes segmentos sociais sobre a cidade quando para tratá-las em seus contextos, lendo-as em busca de significados que esses sujeitos e grupos sociais buscam construir como partícipes dos lugares da história da Cidade de Vitória da Conquista. Os discursos apontam que a circunscrição desse espaço da cidade – A Rua Grande, guardou na memória desses depoentes as relações com a sua própria história. No jardim, aquele banco que era reservado para a família e os amigos, era o lugar de pertencimento. Os seus olhares poderiam se cruzar com a diversidade, mas para esses moradores, a definição desse quadro foi decodificado nas cores, nas janelas que iluminaram os passos para fora das casas, nas portas da rua que se abriam para o trânsito das famílias proprietárias, que dependiam dos serviços de ganho, dos agregados e trabalhadores, que também trafegaram por esse espaço e no entanto, não comungaram, nem participaram dessa mesma devoção de tombamento das suas casas, e de seus saberes, nos quais para os detentores das decisões de tombamento, aí não morou nenhuma tradição. Do lugar de onde partem esses relatos podemos nos indagar sobre as possíveis leituras inferidas pelo Museu Regional no trato com a relação que estabelece com a cidade. A cidade como um espaço construído socialmente, e é sobre esse aspecto que envolve as nossas indagações: a cidade em sua materialidade, em seu cotidiano, com os seus transeuntes, seus serviços, suas sociabilidades. Então, a Praça onde as pessoas habitam e trafegam é marcada por esses movimentos, é o uso que as pessoas fazem dessa rua, mesmo que seja no sentido de dormir, de namorar, de trabalhar, ou de buscar ver pessoas, enfim essa sedução que inspira no espaço público, o desejo de ver e conseqüentemente ser visto. A preocupação da perda dessa memória de um determinado grupo, e do lugar de onde se fala está o registro de políticas empreendidas para atender a demandas veiculadas por esse lugar, ou seja, existia uma política no Museu Regional que promovia um diálogo com a sociedade e é neste lugar de memória que se encontra o registro desses relatos, cuja relevância é permeada pela dimensão social de suas práticas. O Museu, em suas características deveria estar aberto ao movimento da sociedade como um todo, no caso, estimulando e fomentando mecanismos que façam prosperar a consciência de historicidade do presente e, por isso mesmo, a necessidade de se preservar e recuperar os múltiplos acervos. 52 Nessa perspectiva, são valiosas as reflexões de Ulpiano Bezerra, 55 sobre a crise da memória e o problema da documentação histórica, quando sugere que, [...] a fim de evitar dúvidas, conviria deixar claro o entendimento básico de que a memória deve ser o objeto da História e não o seu objetivo – ainda que, por vezes, a militância do historiador possa gerar superposições e paralelismos, sobretudo depois que a História-problema abriu espaço para a História-narrativa, reabilitada e rejuvenescida. Tomando a problemática da reconstituição da memória, como um processo eminentemente político, no sentido do que preservar, nos perguntamos: efetivamente que sujeitos e grupos são estes que estão sendo lembrados? E, por conseguinte, quais são os esquecidos neste panorama de especificidades e multiplicidades que compõe os significados e as materialidades da cidade? Quais as representações guardadas no Museu em seus códigos, tipos de documentos e política de distribuição do conhecimento coletado? O que significa então, o Museu Regional para a cidade de Vitória da Conquista? Para responder a essas questões investigamos os documentos do acervo do Museu Regional e suas interfaces na trajetória das vivências e experiências da cidade, procurando estabelecer um diálogo através dos relatos dos partícipes da história do Museu Regional, a exemplo dos depoimentos dos elaboradores do Projeto inicial do Museu, como também dos seus diretores e coordenadores, que em suas palavras constroem uma leitura do Museu constituinte de um espaço onde as suas vozes e outras vozes encontram ecos na reconstituição dos sons das memórias desta cidade. À medida que investigamos a memória produzida no Museu Regional – Casa Henriqueta Prates de Vitória da Conquista percebemos, para além da coleção fotográfica, um corpo documental que relevamos como objeto para a possibilidade de uma construção histórica. Neste aspecto, o Museu Regional mantém em seus setores e através de Projetos de extensão vinculados à Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, uma documentação produzida na Biblioteca Heleuza Câmara que consta de livros antigos, coleção de jornais, hemeroteca, transcrições de entrevistas orais, banco de monografias e dissertações produzidas nas instituições de ensino da cidade; na mapoteca encontra-se poucos documentos escritos; O corpo documental conta ainda com os documentos da fundação do Museu: Projeto 55 SILVA, Zélia Lopes da. (Org). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas, São Paulo, Ed. UNESP, 1999. IN: MENESES, Ulpiano T. Bezzera de. A crise da memória, história e documento: reflexões para um tempo de transformações. P. 11-29. 53 de Implantação, atas de reuniões e livros de assinatura; através da coordenação de pesquisa do museu existe a edição da coleção Memória Conquistense com nove volumes, o último de 2009. Intrínseca às diversas formas de narrativa histórica está a condição histórica de cada museu.56 Podemos afirmar, através das leituras embasadas sobre a construção de memórias dos espaços do museu, que de um modo geral, tanto os museus regionais, como os grandes museus nacionais, constituem lugares de memória, são por sua vez instituições dotadas de poder. Os Museus, a exemplo, de instituições que tem por missão preservar o patrimônio cultural, competem-se de estratégias como justificativa para sua viabilização que, passando pelo efetivo processo dos usos pelos agentes institucionais responsáveis, inscrevem uma regra do que se deve preservar, estabelecendo uma relação de poder, entre vozes e silêncios; lembranças e esquecimentos, aspectos que devem ser compreendidos, não apenas como uma enunciação textual, mas na percepção fundamental de buscar o olhar sobre o lugar de onde fala, de quem fala e da problemática que faz falar, na mensurada observação de Mário de Souza Chagas, quando afirma que, Museus são há um só tempo herdeiros de memória e poder.57 Para avaliar essa relação entre memória e poder no âmbito do Museu Regional, destacamos na entrevista com Rui Medeiros, um alerta para fazermos uma leitura acurada sobre as estratégias das quais se competem às instituições nas suas propostas de criação de espaços que vão lidar com as políticas culturais, Então o Museu expressa essa questão de classe, mesmo quando não quer expressar, ele expressa. Depende da forma de prioridade que ele dá. Ora se tem prioridade de memória de família, e quando você chega à memória de família, aquela que puderam preservar são as famílias ricas, as famílias tradicionais, porque o pobre não tem condições de guardar, nem de fazer o registro, isso vai se perdendo. Então se você bota uma dimensão: O Museu da casa, como tem lá em São Luis, aí você vai lá e tudo bem!! E aí você pergunta: que casa é aquela? É a casa da aristocracia, da aristocracia nordestina.58 56 ABREU, Regina e CHAGAS, Mário de Souza. (orgs), SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museu Imperial: a Construção do Império pela República. In: Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.p.111 57 CHAGAS, Mário de Souza. Memória e poder: focalizando as instituições museais. Interseções – Revista de Estudos Interdisciplinares. UERJ. RJ. ano 3, n.2, Jul./dez. 2001, p. 5-23. 58 Entrevista com Rui Medeyros, em 12 de maio de 2010. 54 Percebemos através deste relato, que existe no projeto de Museu uma faceta de poder imbuída nas práticas museológicas. Compreender o processo de atribuição de valores simbólicos sobre a aquisição da casa, a escolha dos acervos e sua visualização, constituído pelos discursos que conferem as ações no interior do processo educativo que rege o Museu, revela-o para o presente. Desta forma, acrescentamos à fala de Rui Medeiros, uma observação sobre a constituição do Museu Regional de Vitória da Conquista – Casa Henriqueta Prates, como revela o nome, representa uma das casas das famílias tradicionais da cidade, bem como, traz no seu interior, retratos de personalidades da cidade e objetos dos mais variados que não definem muito bem a temática de suas salas de exposição. No caso desse estudo, deveremos estar atentos para uma percepção do não dito, por entender que no tratamento dado a memória, enquanto o recurso de se fazer falar e existir, ouviremos as vozes dos dominadores, daqueles que detém o poder. No entanto, o que procuramos nessa história está entre os vestígios e ‘restos’ guardados nesse campo de força, cujo embate reflete as relações de poder e os sujeitos sociais que trafegam e configuram nesses espaços com a marca das relações cotidianas de suas práticas e lutas. Entendemos que a importância da salvaguarda de um acervo múltiplo que no lugar do Museu veste essa condição de instituição-memória relevante do ponto de vista sócio-cultural, podendo vir a ser um valioso instrumento de aglutinação de diversos segmentos da comunidade, estimulando a convivência, o debate e a reflexão em torno de atividades voltadas para a preservação da memória regional e da produção historiográfica. Nessa direção, Guarinello, recomenda que, Não se pode rememorar o que desapareceu por completo, sem deixar traços de si, mas apenas aquilo que sobrevive, concretamente, no presente. Nosso passado tem uma existência material, concreta, inscrita nas estruturas do presente. É apenas através desse passado-presente que podemos refletir sobre a história59 Portanto, diante da afirmação trazida pelo depoimento de Medeiros, e os planos de projeto de uma política cultural para o museu confere um recorte, que para a cidade de Vitória da Conquista deixa lacunas expostas na ‘existência material concreta’, dada a convergir nesse modelo os segmentos sociais que participam de uma hierarquia e esse projeto acaba por 59 GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e memória e memória científica. In: Revista Brasileira de História. ANPUH, nº 28, São Paulo. Marco Zero, 1995. 55 deixar à deriva, uma camada da população que, despossuídos de posições hierárquicas não habitam a memória do museu. ‘Os pobres’, que são trazidos no relato, deixa ver a lacuna, transparecendo os vestígios da invisibilidade, produzidos pela memória social. E essa existência silenciada e esquecida é reveladora, e instigante para a produção da história na compreensão dos mecanismos de manipulação da memória. Por outro lado, vamos ver a existência da atuação desses sujeitos, que apesar de desapossados dos serviços destes espaços, não deixam de aparecer e reconhecer os valores dominantes e a impor a sua cultura e, portanto não respondendo, à sua maneira, a essa exclusão. Ainda segundo Guarinello, a memória coletiva é deste modo, um meio fundamental da vida social, uma das dimensões da ação coletiva e um veículo de poder, ele afirma que, o ato da memória é um ato de poder e o campo da memória, o espaço onde atuam seus lugares, é um campo de conflitos.60 Entre a criação do Museu e os relatos apresentados contam-se aproximadamente duas décadas historicamente fundadas nas experiências marcadas, tanto pela preocupação em retomar e defender as tradições, quanto pela constituição de um lugar de memória – quer seja comprometido com o trato da problemática da memória em suas várias dimensões. 60 Guarinello, op. cit., 1995, p.19 56 CAPÍTULO II – ‘A FALA DOS PASSOS PERDIDOS’: MEMÓRIAS FOTOGRÁFICAS, ORAIS E ESCRITAS SOBRE A RUA GRANDE Essa história começa aos rés do chão, com passos. São eles o número, mas um número que não constitui uma série. Não se pode contá-lo, porque cada uma de suas unidades é algo qualitativo: um estilo de apreensão táctil de apropriação cinésica. Sua agitação é um inumerável de singularidades. Os jogos dos passos moldam os espaços. Tecem os lugares. Michel de Certeau “CONQUISTA ERA ASSIM...,” Esse título foi dado a um dos projetos do Museu Regional, cuja ação consistia em entrevistar pessoas que residiam na cidade e que faziam parte de um tempo em que suas memórias podiam contar a história de um passado. Através dessas lembranças, vieram à tona diversos aspectos do conhecimento sobre a vida na cidade, e essas memórias registradas em cassetes organizaram uma parte do acervo referente a essas memórias. Essa fonte será de fundamental importância para o nosso trabalho que busca nos relatos dos moradores substratos para repensar o espaço da cidade de Conquista entre os períodos de 1920 a 1940. O registro desses depoimentos realizados em sua maioria em 1993 resguarda um suporte material da memória. Ao considerarmos a ação inexorável do tempo que interfere no refazer dessas memórias ou infelizmente, na perda total dessas memórias que foram contadas por pessoas que atuaram sobre esse espaço e temporalidades, salvaguardando assim, uma importante fonte para a escrita da história. As memórias sugerem que caminhar pela Rua Grande na cidade de Conquista suscitavam memórias que significavam, nas décadas de 1920 a 1940, participar de múltiplas trajetórias de sociabiliades. Por esta Rua Grande se movimentavam as gentes da cidade: Senhores fatiotados, Senhorinhas trajadas em seus ‘vestidos engomados’, mendigos, feirantes, beatas, as lavadeiras, aguadeiras e caroteiros, crianças pobres e abastadas, por entre essa gente circulavam os animais soltos na rua (porcos, cabras, cachorros, galinhas, cavalos); os carros de boi, carroças e poucos automóveis, enfim, os que trafegavam neste espaço de práticas cotidianas divergentes e conflitantes. Descontentes com essa dinâmica urbana que experimentava conviver em um mesmo espaço com o deslocamento de pessoas, animais, viaturas e, principalmente, buscando construir para os pares, lugares de destaque que assegurasse grande visibilidade observa-se 57 forte apelo para inscrever a cidade em novo ordenamento. Os segmentos dominantes organizaram um conjunto de Intervenções buscando designar circulações e interdições de espaços para um programa de urbanização que atendesse as expectativas de progresso. Ao perscrutar os silêncios e vestígios através dos documentos e aguçando o olhar sobre as fotografias podemos perceber que as práticas, estratégias e táticas de segmentos pobres da sociedade foram apagadas pelos pretensiosos idealizadores de uma cidade que se desejava homogeneizada, definindo assim, mundos, tempos e regras, sobre o que se pretendia construir. A proposta de estudar o espaço urbano da Rua Grande através da oralidade, da imagem fotográfica, de jornais e memorialistas, suscita importantes indagações. Uma questão compreende a maneira como se deu a interdição dos costumes, e as várias formas de proibição e afastamento daqueles que atrapalhavam os sentidos de civilidade que as elites procuravam dar a esta nova dinâmica de progresso. Quais as afirmações para a construção de uma memória que estabelecia novos atributos que não cabiam nos procedimentos trazidos pelos pobres da cidade? Outra questão fundamental se aplicava em avaliar os múltiplos tempos e espaços da construção da memória dos grupos dominantes. Desse viés, importamos a coexistência de múltiplas territorialidades ambientadas em um só espaço. Essa questão é relevante para a análise dos significados que cada um percebe do espaço em que convive. Essa memória será abordada através das ‘falas’ que sobrepujam um universo de valores que foram transmitidos e agora se atualizam no presente, recondicionando o olhar, e, por conseguinte, oferecendo possibilidades de emergência de sujeitos e acontecimentos, de forma consciente ou improvisada, como meio de apreensão dos significados dos lugares de pertencimento. O espaço da Rua Grande entre 1920 e 1940 era formado por múltiplos territórios que produziam e intensificavam conflitos e tensões em diferentes momentos – lugar substituído neste período para a morada da elite, por essa rua transitavam os feirantes, que chegavam na cidade com seu aparato de trabalho – trazendo costumes, hábitos e comportamentos, próprios de um lugar e de uma vivência rural – que os segmentos dominantes ocupavam-se em suprimir; percorriam também os trabalhadores de serviço de ganho – as lavadeiras e as aguadeiras com as saias molhadas mostrando a transparência e o despojo das vestes; os mendigos, os ambulantes, enfim, uma gama de indivíduos que através de suas práticas e comportamentos incomodavam os segmentos dominantes que agiam de forma a suprimir essas condutas que desabonavam o sentido de civilidade. Este capítulo vai apresentar e refletir sobre, a trajetória desses sujeitos em suas práticas. Como se configuraram no espaço da Rua Grande os elementos de transformações 58 urbanas materiais e simbólicas e quais usos desse solo se transformaram em ações e práticas impetradas pelos diversos segmentos sociais que caminhavam por essa grande rua, deixando marcas de simples andarilhos, ou de forma indelével imprimindo interferências e estratégias neste constructo urbano. Perceber essa diversidade de práticas sociais nos usos do espaço urbano possibilitou o olhar sobre as peculiaridades das experiências dos habitantes da cidade de Conquista e à interpretação das memórias lacunares para a construção da história. 2.1 A CIDADE COMO ESPAÇO CONSTRUÍDO A cidade de Vitória da Conquista está situada no sudoeste baiano, na região denominada pelo colonizador, de Sertão da Ressaca. Em sua história também contada para a metrópole o governador da capitania da Bahia, Manuel da Cunha Menezes, informa que no ano de 1780, João Gonçalves da Costa61 vivia com a sua família, juntamente com índios e escravos em um rancho que possuía mais de 60 pessoas rodeadas por fazendas de gado. Esta é a primeira referência que temos sobre a povoação que deu origem a cidade de Vitória da Conquista. Em 1840, o arraial atingiu o status de vila e passou a ser denominada de Imperial Vila da Vitória. Após sua emancipação, a Vila foi ampliando as suas atividades econômicas e, aos poucos, se consolidou como importante cidade do interior Bahia. Em 1891 seu nome é modificado para cidade de Conquista e, em 1943, passa a se chamar definitivamente Vitória da Conquista, nome que duplamente lembra o sucesso das investidas dos colonizadores brancos sobre os verdadeiros e antigos habitantes desta terra. De acordo com a historiadora Maria Aparecida Silva de Sousa: 61 Mestre de campo, João Gonçalves da Costa, um dos desbravadores da região, que embalado pela frustração da corrida em busca de ouro, resolve se fixar, fundando o arraial. 59 João Gonçalves da Costa não agiu sozinho quando realizou as inúmeras atividades como um fiel súdito do governo metropolitano. Não foi sem o auxílio dos seus subordinados que conseguiu desintegrar as sociedades indígenas, desequilibrando a sua superioridade numérica em benefício da dominação portuguesa. Também não lograria êxito na abertura das vias de comunicação, fundamentais na integração das regiões sertanejas, se não fosse o trabalho de escravos negros, índios e indivíduos livres pobres convocados para esses empreendimentos ou ainda não presenciaria o crescimento do lugar sem a atividade daqueles que labutavam diariamente nas fazendas. Enfim, todas essas pessoas estiveram presentes na dinâmica de formação do povoado.62 Aspectos das peculiaridades das relações de trabalho da região do sertão da ressaca e da formação social de Conquista podem ser percebidos nesta reflexão sobre os grupos e sujeitos que construíram com o seu trabalho a pujança vivida naquele período, através do crescimento econômico do lugar. A autora trata de grupos e indivíduos que se viram obrigados a atuarem com sua mão de obra na construção dessa sociedade devido à impossibilidade de manter uma sobrevivência mínima nesse espaço que sempre foi referência de cultura, trabalho e identidade para eles. No intuito de apresentar a cidade voltamos para a formação do Arraial da Conquista, cujo núcleo de origem passou a denominar Rua Grande. Encontramos nos relatos do livro Viagem ao Brasil, do Príncipe Viajante, Maximiliano de Wied Newied,63 uma passagem sobre o arraial da Conquista, onde ele descreve alguns aspectos físicos do local, como também, discorre sobre costumes e comportamentos da gente do arraial. O Príncipe visitou o Brasil em 1815 e dois anos depois passou pelo Arraial. No capítulo, Das fronteiras de Minas à Conquista, ele trata do Arraial como se descreve, a seguir: Arraial da Conquista, principal localidade do distrito, é quasi tão importante como qualquer vila do litoral. Contam-se aí umas quarenta casas baixas e uma igreja em construção. Os moradores são pobres; daí a razão por que os ricos proprietários das redondezas, as famílias do “coronel” João Gonsalves da Costa”, do capitão mor Miranda e algumas outras empreenderam a construção da igreja às suas expensas. [...] Grande parte dos moradores de Arraial compõe-se de trabalhadores e de rapazes desocupados, que ocasionam muitos distúrbios, pois não há polícia nesta localidade. A malandrice e uma inclinação imoderada para as bebidas fortes são traços distintivos do caráter desses homens; daí resultam disputas e excessos freqüentes, que tornam detestável êsse lugar, de má fama para as pessoas mais sêrias e 62 SOUSA, Maria Aparecida Silva de. A Conquista do Sertão da Ressaca: Povoamento e posse da terra no interior da Bahia. Vitória da Conquista: UESB, 2001. 63 WIED-NEWIED, Maximiliano (príncipe de). Viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940. p. 409. Este livro faz parte do acervo de obras raras, da Biblioteca Heleusa Câmara, do Museu Regional – Casa Henriqueta Prates, de Vitória da Conquista. Optamos por manter a grafia original do livro, para manter as características da escrita da época. Os trechos que se referem ao Arraial da Conquista estão citados nos livros dos memorialistas, Aníbal Viana e Mozart Tanajura, que serão estudados no capítulo seguinte a este. 60 consideradas, que vivem em suas fazendas espalhadas em torno. [...] trazendo cada um, como é perigoso costume da terra, um estilete ou um punhal na cintura, êsses homens grosseiros e imorais, que nenhuma espécie de vigilância contém, cometem freqüentes assassínios e outras violências. [...] Eis por que nunca será demais recomendar aos viajantes que procedam com a máxima cautela em Arraial da Conquista, para evitarem, para si e para seu pessoal, aborrecimentos muito sérios.64(sic) Recolhemos essas impressões do naturalista alemão, que chegou até essas paragens, e acreditamos que esse registro elucida um ponto de vista, passível de leitura e análise, para a construção da história do lugar. Esse tipo de relato acaba por fundar memórias. Essa passagem do Príncipe Maximiliano, está registrada nas publicações dos memorialistas da cidade e, apesar, de suscitar uma leitura crítica, sobre a visão de um sujeito que construiu o seu relato, baseado na ausência de alteridade, no elitismo e no preconceito pujante sobre a gente do lugar, vimos atualmente numa Avenida, recentemente inaugurada, a construção do monumento ao Príncipe. Apesar dos grandes vácuos temporais, entendemos que apresentar essas referências sobre essas memórias, nos conduz na reconstituição da memória fundada no período que compreende o nosso estudo. A cidade de Vitória da Conquista começou a crescer na encosta da Serra do Periperi, onde hoje se situam as Praças Tancredo Neves e Barão do Rio Branco, a Rua Maximiliano Fernandes e Zeferino Correia que, na década de 1920, formavam um grande largo, a ‘Rua Grande’, em sítio elevado e próximo de um curso d’água – o Rio Verruga. A primeira construção importante, empreendida pela elite local foi a igreja matriz, citada pelo Príncipe Maximiliano, e que no ano de 1820, ainda estava sendo construída. 64 Wied-Newied, op. cit., p. 409. 61 Mapa da Rua Grande com a Rua Lisboa, antiga Rua do Sissi. 62 Os relatos que circulam em torno da construção da igreja, são orientados pela criação de um mito fundador, sobre a Vitória do colonizador Português sobre os índios que habitavam a região e que em promessa, seria erigida a Igreja Nossa Senhora da Vitória. Essa Igreja, construída no topo da Rua Grande, confirma uma relação de força, entre os detentores das ‘expensas’, e a maioria pobre que habitava esse lugar. Nesse sentido, confirmamos que, a história da cidade apresenta elementos definidores para a compreensão de seu espaço. A sua configuração territorial é resultado da ação de vários sujeitos produtores do espaço urbano, em constante movimento pela conquista de seus interesses e necessidades, assim como, reflete Michel de Certeau: Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstancial, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Em suma, o espaço é um lugar praticado. Assim, a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos – um escrito.65 O estudo em questão problematiza a cidade enquanto território de trocas simbólicas, constituída de relações humanas produtora de significados e, procuramos considerar que, a construção arquitetônica que a sustenta não apresenta neutralidade. Estudos de historiadores e geógrafos locais confirmam que o principal móvel do crescimento urbano foi o acesso e a proximidade à água do córrego, uma das nascentes do Rio Verruga: A necessidade de deixar livre o acesso à água foi preocupação constante e mesmo os caminhos para a água foram transformados em ruas. No entanto, segundo Rui Medeiros, o direcionamento do crescimento não é ditado apenas pelo curso do córrego. As estradas também ajudam no direcionamento da expansão urbana.66 Outro importante estudo sobre a história da urbanização da cidade de Vitória da Conquista é originado das análises, da geógrafa Ana Emília de Quadros Ferraz, no livro: O urbano em construção – Vitória da Conquista: um retrato de duas décadas. Ela produz um estudo consolidado na análise das relações dos vários sujeitos produtores do espaço urbano, olhando a cidade em sua diversidade. Ela afirma que, nas relações citadinas, os embates, 65 Certau, op.cit., p. 202 MEDEIROS, Rui Herman de Araújo. Documentação e registro audiovisual da arquitetura e evolução urbana de Vitória da Conquista: UESB, 1992. (projeto de pesquisa). 66 63 conflitos e lutas (cotidianas), constroem a configuração territorial, sobre a conquista de interesses e necessidades, assim, o urbano se edifica e produz Vitória da Conquista. Figura 5 - Rua Grande anos 20 (acervo MRVC) Ana Emília afirma em seus estudos, sobre as transformações na Praça 15 de novembro, da década de 1930 que, A praça feia, esburacada, enorme e irregular sofreu a pressa renovadora da modernidade. Foi revolvida para ter aspecto geométrico. Nela transformada, apareceram habitações nobres, elegantes, modernas. [...] A modernização da cidade não ficou aí, circunscrita a essa praça. Estendeu-se pela cidade toda, dominou-a, envolveu-a e a cidade se espalha, cresce e surpreende.67 Ao analisar a cidade em sua multiplicidade buscaremos evitar a polarização dos extremos que relacionam um poder administrativo, que a tudo ver que a tudo impõe e o resto da população passiva e receptiva às mudanças impostas pelas ações modeladoras desse vetor de dominação, para sustentar essa afirmação, propomos dialogar com dois autores que buscam essas referências em seus estudos. 67 MEDEIROS apud FERRAZ, 2001, p.31. 64 De acordo com Michel de Certeau, A “cidade” instaurada pelo discurso utópico e urbanístico é definida pela possibilidade de uma tríplice operação: 1.a produção de um espaço próprio [...], 2. Estabelecer um sistema sincrônico, para substituir as resistências inapreensíveis e teimosas das tradições e por fim, 3.a criação de um sujeito universal e anônimo que é a própria cidade. [...] Nesse lugar organizado por operações “especulativas” e classificatórias, combinam-se gestão e eliminação.68 Além dessa reflexão de Certeau estendemos nosso diálogo também para a elaboração de Robert Pechman sobre a cidade que a vislumbra lançando outro olhar e outra perspectiva. Esse autor afirma que a cidade é o ponto de convergência de uma multiplicidade de olhares que irão fundamentar a constituição de uma nova forma de dominação apoiada no conhecimento científico, na intervenção espacial e disciplinarização de mentes e corpos, ou de acordo com suas palavras, [...] A territorialização da ordem a partir da inscrição na paisagem urbana de uma geometria, de uma abstração, irá subverter por completo a lógica que estruturava a vida urbana, comprometendo seriamente o destino daqueles nômades urbanos que sempre sobreviveram nas dobras do espaço público.69 Destacamos nessa discussão, um dos objetivos principais da nossa reflexão: o grande nó a ser desatado é saber se essa cidade, então, que se apresenta em suas multiplicidades e particularidades, remontada em seus significados, que estão inscritos na memória, vai se delatar e deixar trazer a tona esses sujeitos que provocam uma diversidade de práticas urbanas que se entrechocam e apresentam movimentos sub-reptícios, muito diferentes e distantes do ordenamento pretendido pelos grupos dominantes. A esse respeito vale prestar atenção nas sugestões de Certeau e deixar trazer a tona esses sujeitos que, não deixam de proceder em práticas sociais – multiformes, resistentes, astuciosas e teimosas – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do campo onde se exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade. 68 Certau, op.cit. PECHMAN, Robert Moses. Os excluídos da rua: ordem urbana e cultura popular. In: Imagens da cidade – séculos XIX e XX, São Paulo: ANPUH, 1994, p.32-33. 69 65 No enfrentamento, diante desse campo de força, ou como sugere Certeau, de levar a uma teoria das práticas cotidianas, encontramos nas fontes orais a possibilidade de dar visibilidades a esses sujeitos, de tentar perceber as suas singularidades, trazendo à tona, os seus valores, a cultura e os significados inscritos nas peculiaridades das experiências de vida. Neste ponto, trazemos para a discussão o relato de duas senhoras, onde as falas se entrelaçam e deixam revelar, ‘costumes comuns’, que penetram e reconstituem a história da cidade. Contam-se no relato que, [...] Chamava Rua do Espinheiro, é... dos pinheiros, aí o pessoal chamava rua do espinheiro, não sei também porque isso... (aqui uma interferência de D. Maria Angélica: “Minha Mãe dizia, porque tinha muito Juá, muito espinho, é por isso que chamava Rua do Espinheiro), agente descia ali, atravessava onde hoje tem aquele semáforo e alí tinha uma pessoa muito interessante, tinha uma casinha bem velha e morava uma preta velha chamada Sabina, chamava Sabina do Ouro, (Interferência de D. Maria Angélica: ‘ Ela foi escrava...’) , ela foi escrava e agente atravessava por uma ponte, pra chegar lá na Rua Góes Calmon. E eu e meus irmãos, agente morava por ali e descia com a colega aí deles e outras meninas por aqui , descia aquele grupo, porque agente tinha medo dessa Sabina, porque dizia que ela pegava menino, era aquela lenda, (interferência de Maria Angélica: Ela era já velha, sabe?!!! Os meninos chamavam ela de Sabina do Ouro e ela não gostava, e levantava com sua meias brancas, já caduca) , agente passava assim em grupo com medo de Sabina, agente passava em grupo, tanto na ida como na volta, era em grupo, nunca se ia pra escola sozinha, nè?!70 Nas falas e nos interditos, encontramos os vestígios que revelam os silêncios das memórias. Precisamos nesse relato uma delação às avessas sobre a relação das crianças da cidade com formas de convivência de brancos ou não negros com ex-escravos em Vitória da Conquista e suas interferências no cotidiano. Essas lembranças sobre a passagem diária para a escola nos levam de volta aos anos de 1930. Esse trajeto diário e constante foi marcado por um encontro de corpos que se movimentavam em construções de saberes, que fundavam significados. Para essa juventude citadina e burguesa, a existência de Sabina do Ouro, se tornava o corpo diferente e estranho ao que estavam acostumados, diante da disciplina e controle dos comportamentos tradicionais. A casa de Sabina do Ouro, segundo relato dos moradores locais, ficava numa esquina a caminho da Escola Primária São José da professora D. Helena Cristália Ferreira. Para chegar à escola atravessava-se uma ponte que passava sobre um córrego do Rio Verruga e saia da circuncisão da Rua Grande, para outra rua paralela. Assim, observamos um mapa 70 Entrevista de D. Janilde Mota e D. Maria Angélica, por Elzir Vilas Boas para O Projeto: Conquista era assim... Do Museu Regional - Casa Henriqueta Prates de Vitória da Conquista em, 19 de outubro de 1993. 66 inscrito nas memórias sobre as relações cotidianas na Rua Grande e adjacências, elas indicam a existência de uma ex-escrava, que residia na cidade de Vitória da Conquista, na década de 1930, que entre os resquícios das lembranças de suas experiências deixam ver o preconceito de cor e de lugar social construídos desde a infância como figura temerária e que provocava medo por que ameaçava os padrões almejados por determinados grupos sociais possivelmente em ascensão. Nas memórias de Aníbal Viana, encontramos um pequeno relato sobre esta mulher, que residia na extensão da Rua Grande, interferindo e marcando com sua presença as singularidades dos percursos, dos nomes e convívios impetrados nesta Rua: Sabina Preta. Tinha sua residência na Travessa que liga à Rua 2 de Julho à Rua Góis Calmon e que ficou com o nome de “Beco de Sabina”. Casa de sua propriedade. Maníaca. Era boa engomadeira profissional, ocupação que lhe dava rendimento para a sua manutenção. Trajava-se constantemente de branco, usava bracelete e pescoceira de aljôfar dourado. Era solteirona e morava sozinha. De compleição alta e magra. Dizia ser descendente da Rainha de Sabá. E ficava contente que lhe tratasse de “Rainha”. Aos domingos saia de sua residência rigorosamente trajada em direção à Igreja onde tinha uma cadeirinha para ajoelhar-se. Tornava-se pornográfica quando algum malandro “grande ou pequeno” lh’a aborecesse. Aí saiam os palavrões. Era também conhecida por Sabina Princesa, Princesa Real.71 (sic) Nessa memória produzida por Viana evidenciam-se significados atribuídos aos valores aceitos coletivamente. A Negra Sabina rompia com os valores morais prescritos pelos grupos dominantes. Tratada como a Maníaca, a louca, a negra coberta de ouro transgredia a ordem e impunha os seus trajes, seus acessórios e seus palavrões, pois apesar de contrariar a relação de conformidade com os outros membros do grupo, essa mulher solitária ‘de compleição alta e magra e rigorosamente trajada’ percorria todos os domingos o mesmo trajeto das senhorinhas e com sua cadeira de ajoelhar-se cumpria o ritual do catolicismo cristão. Mas o processo de enfrentamento étnico guarda jogadas silenciadas e não ditas, sobre os estranhamentos inter étnico, na condição de ex-escrava a postura que assumia em sua velhice para se apresentar à sociedade era enfeitado de ouro, é muito provável que esse gesto esteja relacionado a tentativa de mostrar a forma com a qual conseguiu a liberdade; e desse lugar não aceitava um lugar menor na inclusão da cidade e resistia às “atentações dos meninos”, que jogavam pedra na sua porta e saia gritando: “Sabina do Ouro”. Situamos esse confronto e outras tensões sociais dessas considerações em um contexto da história da cidade em que determinados códigos de comportamento, eram permitidos, e até 71 Viana, op. cit., p. 422 67 reforçados, como ‘divertimento’ - o fato de se apedrejar a porta e fazer referências à pessoa através do que ela possui de ‘diferente’. A falta de alteridade fere uma suposta ordem – que também era tida como código, isto é – o respeito aos mais velhos. Desta forma, observamos um deslocamento da condição dessa mulher, velha e solitária, para uma condição de exescrava, enfeitada de ouro, que corria atrás dos moleques, com suas meias brancas levantadas. E aqui, o seu lugar de pertencimento, poderia ser alterado, pelas ‘brincadeiras’, numa clara situação de arrogância e violência. Em outra circunstância referendemos uma aproximação das pessoas da cidade com a casa de Sabina. Ela sobrepujava essas admoestações e permitia a entrada em seu quintal para colher frutas, segundo o relato de D. Maria Oliveira, A gente entrava na casa dela. Ela dava fruta. No quintal dela tinha muita fruta. Agora ela morava sozinha. Era uma Negra já velha, chamava Sabina do Ouro. Os meninos jogavam pedra na casa dela e ela saia xingando, agora ela não era louca, não. Ela só não gostava que atentasse ela. Quem é que gosta?72 Consideramos que os depoimentos apresentados, são construídos em momentos e projetos diferenciados. O depoimento de D. Janilde e de D. Maria Angélica, é dado no contexto de recolhimento das memórias, para atender ao projeto do Museu Regional que compreendia naquela época ser responsabilidade da instituição “reconstituir” a história da Cidade de Vitória da Conquista através das memórias de antigos moradores - memória, como já discutimos no 1º capítulo dessa dissertação. Na entrevista que realizamos com D. Maria Oliveira, encontramos uma Narrativa diferenciada, no sentido de que, quando se trata de uma fonte oral teremos que fazer a crítica do documento para referendá-lo como fonte da história. Reelaborar as experiências de vida de sujeitos significa considerar o processo que se afirma entre os entrevistados e o pesquisador e nessa relação encontram-se as subjetividades e leituras, que darão nos contornos das narrativas a interpretação de cada um. José D’Assunção Barros, citando Kevin Lynch, referindo-se às pessoas que circulam dentro da cidade sugere que, estas constituem a sua parte humana, não são meros observadores do espetáculo urbano, mas parte dele.73 Segundo Barros, 72 73 Entrevista de D. Maria Oliveira, em 12 de junho de 2010, por Ednair Carvalho Rocha. BARROS, José D’Assunção. Cidade e história, Rio de Janeiro: Petrópolis: Vozes, 2007, p. 43. 68 Os pedestres podem ler o texto urbano, mas eles também o reescrevem, e de algum modo podem ser mesmo considerados como alguns dos personagens ou dos caracteres móveis que fazem parte da construção deste texto urbano – como leitor, como escritor, como personagem de sua narrativa ou, o que vem a dar no mesmo, letra móvel do seu alfabeto infinito – merece ser discutida em pormenor.74 Esta reflexão de Barros sugere que analisamos as narrativas espontâneas preponderantes naquilo que é permitido contar. O que está exposto nos relatos de Dona Maria Angélica, D. Janilde e D. Maria Oliveira são as diferenças, os conflitos, as tensões. E este é o tecido da história. Não existem relatividades, quando chegamos a considerar finalmente, que na história da cidade de Conquista, os processos de assoreamento de determinados espaços, são dados não só por efeitos das relações infra-estruturais e do nível da superestrutura, mas que se nutrem no bojo das relações cotidianas. Através das linguagens, que remetem ao passado toda a força da memória que está viva no presente nos traz a resistência de Sabina do Ouro, a “Nêga Velha”, que metia medo, que era uma construção, uma lenda... Porém, sua leitura a “contrapelo” pode nos mostrar segmentos dessa cidade que produziu uma memória sobre a “negra velha”, a “ex-escrava” que guarda e pretende perpetuar, revelando a mentalidade de uma elite excludente, cujo preconceito racial acaba por colocar em confronto a força dessa resistência, que segundo Walter Benjamim: Na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. 75 A cidade de Vitória da Conquista apresenta-se então, como um campo de força, no qual as lutas entre classes assumiram resistências sub-reptícias que afirmavam e fortaleciam determinados grupos. Entendemos que, a função social do historiador é certamente democratizar a história e o ofício de escrever essa história passa pelas formas de dar visibilidades a esses sujeitos que estão todos os dias na porta, ou janela da sua casa, a oferecer frutas, lendas e alteridades a essa cidade. Hoje, procuramos descendentes de Sabina, mas 74 75 Ibid. Benjamin, op. cit. p.224 69 como, suas memórias, sua gente, seu lugar, foi esquecido, foi solapado das relações com a cidade, não encontramos nada. 2.2 A RUA GRANDE, UM LUGAR DE MEMÓRIA A organização do Museu Henriqueta Prates para ser lugar de memória reuniu evidência da cultura material encontrada no seus acervos de fotografias, jornais, documentos e livros que ampliam e facilitam as possibilidades do fazer histórico. As fotografias que em sua maioria compõe o acervo fotográfico aporta visibilidades de muitos aspectos da Conquista antiga; as ruas da cidade, as ruas tradicionais. Este acervo fotográfico possibilita perceber a cidade através das fotografias, que podem vir a revelar elementos surpreendentes. Por exemplo, vimos uma grande Praça. De início não havia, portanto duas praças, nem duas ruas. Nas primeiras décadas do século XX, foi a espontânea Rua Grande no decorrer da década de 1920; foi a Praça 15 de novembro, nos anos de 1930 e as projetadas Praça da República e Praça Barão do Rio Branco em 1940. A partir dessa cronologia, apresentamos a primeira narrativa, e a primeira fotografia: Dona Maria Angélica, que nasceu na cidade de Conquista, foi morar em Salvador, retornando com dez anos de idade. Quando ‘moça’ fez o curso pedagógico em Salvador, voltou formada em 1939 e foi nomeada como professora para a ‘escolinha’ na Rua do Sissi, onde ensinou por trinta anos. A Rua do Sissi, atual Lisboa é uma Rua perpendicular à Rua Grande, local de morada de alguns dos nossos entrevistados, e, portanto, suscetível de histórias. D. Maria Angélica afirma, que tem um conhecimento da Conquista [...] bem antiga, foi em 1929 que nós chegamos aqui. Fui, estudei, voltei e me casei aqui, e aqui é minha terra. Meus antepassados são daqui. E Conquista era assim, uma cidade boa, hospitaleira, sempre foi. E ela descreve essa cidade com as suas lembranças. 70 A cidade. A Praça era uma só. Era da Catedral até lá embaixo no Banco do Brasil, era uma praça só. só. A Rua Grande sem calçar. A feira era lá embaixo. Na porta lá de casa. Agora fazia muita festa. Terno de reis. Quando foi demolida a igreja antiga para construir essa catedral nova, se fazia muita festa, [...] (como se diz: Ternos, entendeu?), comédias, assim, ssim, teatro amador em benefício da Igreja. Festas dançantes.76 Figura 6 - Rua Grande, anos 30 (acervo MRVC) 76 D. Maria Angélica, entrevistada por Elzir Vilas Boas, através do Projeto do Museu Regional – Conquista era assim... em, 19 de outubro de 1993. 71 Para enxergarmos melhor os signos impregnados nesta imagem emblemática, deveremos olhar com uma lupa sobre a imagem, como também sobre a fala, elas relatam, uma rua, que era uma rua só. E antes, a cidade. A cidade era essa rua? A reza, o comércio, as artes, as festas, o ensino, os serviços, o convívio. Tudo acontecia ali na Rua Grande! Quando fomos procurar D. Maria Angélica, no dia 03 de agosto de 2010, em sua casa para a entrevista relacionada ao nosso estudo, a encontramos disposta a falar de suas memórias sobre a vida na cidade. Ela ainda reside na mesma casa que foi construída por seu Avô, em 1889 – ‘A casa da sua infância’, que foi herdada por sua Mãe, D. Zaza. Essa casa é atualmente conhecida na cidade como: “A casa de D. Zaza”. O imóvel foi tombado pelo Governo do Estado da Bahia, em 2005. Ela aguarda o processo de aquisição, para o devido restauro e uso cultural. A casa de D. Zaza, junto ao prédio da Rádio Clube de Conquista, alinhados na mesma Praça, se configura como um importante patrimônio arquitetônico para a cidade de Vitória da Conquista. O interior da casa de D. Zaza permanece com as mesmas características originais da construção. Os móveis antigos são disponibilizados no espaço da sala, e junto com os objetos descrevem memórias, percebidas ao olhar sobre o aparador repleto de porta-retratos da família, pela cristaleira, pelo cabideiro e pelos posters fixados na parede e o olhar se depara com o pôster da Rua Grande, ampliado e colocado na altura do sofá. D. Maria Angélica tira o quadro da parede, o coloca à nossa frente e começa a falar da fotografia, a mesma apresentada acima que compõe o nosso texto. A fotografia aérea da Rua Grande, da década de 1930. (Figura 5). D. Maria Angélica preenche a fotografia com as suas lembranças: Foi meu marido quem mandou fazer essa ampliação. Eu também já cedi uma cópia pro museu. Foi o primeiro avião quando veio aqui. Que fotografou a cidade. Essa vista. É uma vista aérea. Aqui oh! Aqui é a Rua do Cruzeiro. Aqui já é lá em cima. Aqui é a mata do córrego. Passava por fora e por dentro do quintal daqui de casa. Essa mata é fundo de quintais. Aqui. Eram três pinheiros, ‘altão’ que eu lhe mostrei, que ficava quase em frente a igreja. Esse em frente ao Bradesco e esse em frente a rádio clube. No meu tempo já tinha o prédio da rádio clube. Tinha o pinheiro. O daqui morreu, o dali morreu e quando eles dividiram a praça e fizeram esse quarteirão, cortaram o pinheiro pra fazer ali a Rua Maximiliano Fernandes.77 A antiga Rua Grande da década de 30 é revelada nesta fotografia de uma Vitória da Conquista desértica, por onde se vê o mapa do passado. Essa fotografia na sua amplitude vislumbra o poder da rua de morada da elite proprietária e pode ser percorrida com um olhar 77 Entrevista de D. Maria Angélica em, 03 de agosto de 2010, por Ednair Carvalho Rocha. 72 panóptico – que a tudo ver, a tudo esquadrinha. Ela foi feita para isso. A cidade está lá, receptiva, estática, e recortada em sua totalidade. Esse olhar panóptico abarca uma cidade que parece acordar em sua narrativa que pretende revelar aproveitando a luz natural para capturar através do obturador a imagem. Talvez um ou outro nas portas e janelas, de uma cidade ainda deserta, despertando em seu tempo para mais um dia. A Rua vai ganhando visibilidade à medida que o olhar percorre a imagem de baixo para cima, e aqui, podemos perceber a definição de algumas casas com suas portas e janelas, telhados, quintais, a quantidade escassa de árvores ao centro; e do lado esquerdo o correr da mata ciliar do córrego do Rio Verruga, que passa por dentro e fora dos quintais; e a cidade vai-se adensando. Assim, percebemos a cidade, sobre a Rua Grande, em sua extensão. A Rua Grande que na fala de D. Maria Angélica: Era uma praça só. Uma praça polivalente, múltipla de significados, era onde tudo acontecia: a reza, a feira, os namoros, o enterro, os serviços, as brigas, os confrontos, os festejos, as comemorações. Esses elementos eram constitutivos do uso do espaço físico que a partir das apropriações se transformavam em territórios de demandas específicas, utilizadas por sujeitos que burlavam, astuciosamente, um projeto urbanístico totalizador que os poderes públicos buscavam construir. Zita Possamai, ao refletir sobre as fotografias de vista aérea, constata que, se algumas imagens isolam o objeto fotografado, subtraindo-o do contexto urbano, em oposição a elas a vista aérea pretende abraçar considerável contigüidade espacial em uma única tomada.78 Essa fotografia é emblemática no sentido de ser única. A imagem estática, desacordada, configura signos constitutivos da história da cidade de Vitória da Conquista que deixaram de existir ao tempo das transformações que sugerem outras configurações no traçado da urbanização da cidade que se expande. A fotografia avista o alto da Serra do Periperi, desce pela Rua do Cruzeiro e serpenteia pela mata ciliar ao córrego, do Rio Verruga, ao fundo vê-se a Catedral em fase de construção, e se despeja pelas casas que de um lado e de outro desenha essa rua, até o sobrado Paulino Santos, na primeira Igreja Batista, o Beco de Sabina do Ouro e chega por fim a Rua da Várzea, atual Rua Dois de Julho, onde continuava a correr, até chegar ao açude. Essas descrições são símbolos do passado da cidade, monumentalizados na imagem fotográfica, que agora os relata e denuncia. No final da entrevista ela me conduziu até o quintal, passando pela cozinha, pelo quarto dos biscoitos, pelo forno, pela mangueira e pitangueira de mais de setenta anos – 78 POSSAMAI. Zita Rosane. Fotografia e cidade. Art. Cultura. Uberlândia, v. 10, n.16, p. 65 – 75, jan. – jun. 2008. 73 ‘plantadas pelo Avô, até chegar ao fundo do quintal que ‘antigamente’, tinha o portão que dava pro córrego que descia do Poço Escuro, mais um espaço construído pelas experiências de sujeitos, que surgem no contar dessas narrativas. A porta da casa de D. Zaza, abria-se para o movimento da parte baixa da praça. Numa dialética dos opostos, vimos na fotografia uma cidade árida e desértica, como se fosse acordar para tudo isso que experimentou D. Maria Angélica, porém, como numa síntese, revela a cidade em sua confluência. Essa Rua Grande pode ser vista como um ‘lugar de memória? Vejamos. Mas voltando a outra entrevista concedida por D. Janilde Mota a Elzir para acompanhar as memórias de D. Maria Angélica, ela conta sobre essa que era a “Rua da sua infância”, e a relembra com os detalhes das experiências da sua história de vida: Aqui na Praça mesmo tinham três escolas. Eu mesma estudei na escola da Professora primária, Maria Leal. Não tinha Ginásio. Eu fui fazer o curso pedagógico em Salvador. Eu fui em 1939 e voltei depois de formada. Fui nomeada. Minha escolinha era ali na Rua do Sissi. Escola isolada.79 Eu gostaria de tomar como Angélica falou, a Rua do Sissi, porque foi a Rua que eu nasci, foi a rua que eu me criei, foi a rua que eu me casei. Então essa rua... Havia poucas casas, mas era assim de uma alegria muito grande, eram realmente assim famílias, assim irmãs. E meu Avô foi pioneiro na fundação dessa rua. [...] Era o caminho do cemitério. Quando aparecia um enterro, embora nós morássemos na rua que passava todos os enterros, minha Vó, não deixava ver os enterros. Porque tocava o sino da catedral, que hoje é catedral, tocava o sino. Passava na igreja, todo o enterro passava primeiro pela Igreja e depois descia aqui essa ladeira e ia pela Rua do Sissi. Criança não ficava na porta pra ver os enterros. Então a gente ficava no quintal.80 Essa rua perpendicular no mapa das sociabilidades é uma extensão da Rua Grande, onde as práticas sociais se entrecruzam e formam um percurso onde trafegam costumes, códigos e comportamentos que vicejam a vida cotidiana de Vitória da Conquista. Neste relato do cotidiano, podemos visualizar “feituras de espaço” tecidas pelas memórias de D. Janilde, que ao narrar desenha um roteiro, prescrevendo ações. No entanto, não podemos homogeneizar as memórias. Diante dos relatos, dialogamos também, com o não dito. E neste aspecto, podemos estabelecer que essa memória, é uma memória de um determinado grupo, 79 Entrevista com D. Maria Angélica, para o projeto – Conquista era assim..., em 19 de outubro de 1993, por Elzir Vilas Boas. 80 Entrevista com D. Janilde Mota, para o projeto - Conquista era assim...em, 19 de outubro de 1993, por Elzir Vilas Boas. 74 pois dentre todas as casas que ficava no percurso do enterro, nem todas tinham quintais e nem todas tinham crianças impedidas de acompanharem os mortos. Por outro lado, essa recordação remonta a um tempo “das alegrias” fundadas nas lembranças de uma harmonia quase palpável pelo deleite das relações endogâmicas. Ao descrever essa rua, nossa narradora amplia os significados amparados na criação de seu imaginário. Refletindo sobre aspectos da organização do espaço urbano Michel de Certeau aponta que os mapas são construtores de itinerários, sugerindo que um mapa não é estático e que em sua leitura ele prescreve ações e distingue uma tipologia: “Mapa”(map) e o outro como “percurso”(tour). O primeiro segue o modelo: “Ao lado da cozinha fica o quarto das meninas”. O Segundo: “Você dobra a direita e entra na sala de estar”. [...] Noutras palavras, a descrição oscila entre os termos de uma alternativa: ou ver (é um conhecimento da ordem dos lugares), ou ir (são ações espacializantes). Entre essas duas hipóteses, as escolhas feitas pelos narradores nova-iorquinos privilegiam maciçamente a segunda.81 Ver então, nos conduz à narrativa. Ainda apoiada em Certeau, concordamos que os relatos cotidianos, são mesmo essa “feitura de espaço”, são construtores de saberes individualizados, que os historiadores ao interpretar vão transformar em memória coletiva – “Os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabricar e fazer. São feituras de espaço.”82 81 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 204. Idem. Michel de Certeau diz que: entre os séculos XV e XVII, o mapa ganha autonomia. Sem dúvida, a proliferação das figuras “narrativas” que o povoam durante muito tempo (navios, animais e personagens de todo o tipo) tem ainda por função indicar as operações – de viagem, guerreiras, construtoras, políticas ou comerciais – que possibilitam a fabricação de um plano geográfico. Bem longe de serem “ilustrações”, glosas icônicas do texto, essas figurações, como fragmentos de relatos, assinalam no mapa as operações históricas de que resulta. P. 206. 82 75 Mapa da Rua Grande com a casa de Dona Zaza. 76 2.3 A FEIRA LIVRE DE CONQUISTA: ESPAÇO FUNDADO, DEMARCADO E ARTICULADO NAS PRÁTICAS E NAS NARRATIVAS Assim, feitas ao ar livre as feiras semanais, sem o menor abrigo, ficando o povo impiedosamente exposto aos encômodos do sol ou das chuvas, não pode continuar por muito tempo, por que isso, além de trazer a todos grandes aborrecimentos, é prejudicialíssimo à saúde pública.(sic) Jornal “A Notícia” de 12 de novembro de 1921. No percurso desenhado neste mapa, encontramos vários relatos sobre a feira e ‘o dia de feira’. A cidade se movimentava com as pessoas que chegavam das roças e de outros lugares. As barraquinhas cheias de sedutoras mercadorias; as crianças que se perdiam entre os adultos, o aglomerado, as misturas. O sábado trazia a feira com todo o burburinho, os cheiros, a lama, a festa dos encontros entre os que vinham de fora com suas mercadorias e suas diferentes formas de conviver e ver a cidade. Sobre esse tempo fala também D. Ornélia, residente na Rua do Sissi desde a infância e neta do Coronel Guilhermino Novaes, um dos fundadores dessa Rua. Ela diz sobre a relatividade do tempo e espaço, quando a ida para a feira era ‘uma viagem’. Da Rua do Sissi, até a parte baixa da Rua Grande, onde se realizava a feira, percorria lembranças da infância, de uma viagem repleta de emoções, que traziam a baila imagens que se materializam em elementos da cultura material, que colaboram no contar da história sobre a cidade. Ela faz um relato poético dessa viagem: 77 Figura 8 – Praça 15 de Novembro, anos 30 (acervo MRVC) A feira. Ele me levava. Tinha um jumento que fazia a feira. Aí ele me botava dentro dos Caçuá pra mim ir. Era longe. Longe daqui dessa casa. Então ele me levava dentro do caçuá pra mim ver a feira. Chegava lá – Oh! Minha Rosa, ele me chamava de minha Rosa, que eu fiquei sem meu Pai com nove dias de nascida. Eu não conheci meu pai. Meu Avô quem me criou. Ele chegava lá, comprava doce, comprava uma coisa e outra. Comprava as bonecas katita. As bonecas katita eram as bonecas de pano, mas preta, então chamava katita. katita. Vixe! A gente adorava as bonequinhas katita. Aí ele fazia a feira toda, botava dentro dos caçuá e me trazia aqui assim, no cangote. E esse caminho era longe. Isso tudo aí era mato. 83 O testemunho feito por D. Ornélia sobre a feira localizada na Rua Ru Grande se reforça ao levar em consideração os inúmeros elementos constitutivos da cultura material e da passagem para se chegar à feira. São exemplos dos retalhos de memória dessa Senhora, que quando criança era levada à feira, dentro do caçuá, no lombo do burro amparada pelo avô. A neta do Coronel se misturava com esse lugar outrora de diversas sociabilidades, das misturas e afetividades que propiciavam desdobramentos das práticas costumeiras e o comportamento dos usos do espaço da feira. No entanto fica evidente o lugar social onde se situa D. Ornélia. 83 Entrevista com D. Ornélia Júlia em, 05 de julho de 2010, por Ednair Carvalho Rocha. 78 Os presentes dado pelo avô, que ela suscita em sua memória deixa ver as diferenciações em relação à outras crianças que estão transitando e pousando nas fotografias. A percepção dessas diferenciações no uso desse espaço urbano, ou mesmo pelas condições favoráveis em adquirir doces e brinquedos, possibilitam dar visibilidade às peculiaridades das vivências dos habitantes da cidade de Conquista e à constituição de memórias seletivas. As fotografias tiradas da feira davam visibilidades aos habitantes da cidade de Conquista no período de 1920 a 1940. Essas imagens produzidas provavelmente por Manoelito Melo, filho de Manoel Eufrázio, no entanto, perenizaram recortes. As referências que buscamos imprimir para a utilização da imagem como testemunho da história desse espaço da cidade estão relacionadas à intencionalidade de fotógrafo. Mesmo oferecendo um manancial de informações deveremos arbitrar sobre os desdobramentos dessa memória focada numa zona liminar de incompletude e provisoriedade. Nesta perspectiva, consideramos perscrutar o olhar do fotógrafo e as possibilidades de escolhas sobre o ângulo recortado para fixar a imagem. Por esse desdobramento, as vistas urbanas se tornam fragmentos do qual são excluídos diversos aspectos que fizeram parte da realidade e remontaram uma invenção desse real. Para Walter Benjamim, Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloqüência que podemos descobri-lo, olhando para trás. A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente.84 O suporte dado pela clivagem cultural dos fotógrafos tornam-se quase sempre, uma referência para a delimitação do viés que vem do passado. Manoel Eufrázio Melo e Manoelito Melo considerados os primeiros fotógrafos de Conquista, foram químicos e retocadores de imagens. Os fotógrafos utilizaram a fotografia enquanto invenção científica que nasceu com a modernidade e construiram essa modernidade no ato de fotografar. Certamente os três fotógrafos que registraram a cidade de Conquista neste período acompanharam e trabalharam para capturar a realidade da sociedade a qual viviam a partir das potencialidades da ciência. E a fotografia, concebida como forma de capturar o real vinha atender a esse anseio de 84 Benjamim, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 4 ed. São Paulo. Brasiliense, 1985. 79 objetividade que imprimiam em suas imagens sobre a cidade. Em entrevista concedida por Elízio Melo, percebemos a relação desses fotógrafos com as experiências surgidas no compasso das invenções modernas: Eu lembro que a câmara era portátil, mas, os filmes eram grandes. Eram colocados numa espécie de chapa, de um clichê que colocavam, tinham que tirar uma e colocar outra, foto por foto. No tamanho 9x12. Tinha uma câmara do meu pai, com uma lente alemã muito boa. Foi nessa época que se experimentou o progresso em conquista. Meu pai, como meu avô eram retocadores fora do comum. A especialidade do meu pai era retocar chapas. Com um lápis bem fininho, com um grafite, com um vernizinho bem fininho que ele passava. Ele preparava o verniz. 85 Acompanhando o relato do Sr. Elizio sobre as referências do trabalho de retocar as imagens percebemos mais uma interferência da clivagem cultural desses profissionais a partir dos procedimentos técnicos fotográficos operando na construção de memória da modernidade. Outro avanço da reprodução das imagens, diz respeito à aquisição das máquinas portáteis e das lentes de boa qualidade que substituíram o tempo de longa exposição e a limitação das paisagens arquitetônicas da cidade, para a obtenção de imagens de pessoas em movimento, facilitando ainda mais o trabalho desses fotógrafos. Na fotografia 7, percebemos o emaranhado de corpos circunscrito no ângulo traçado pelas casas, barracas, e as cargas de produtos que ao mesmo tempo limitam e expandem a visibilidade dos sujeitos que freqüentavam a feira. Vimos o ‘aleijado’, as crianças pobres, os homens em maioria. Dentre os elementos icônicos presentes na imagem as vestimentas – que mesmo, entre os menos abastados, estão compostos de paletó e chapéu chamam a atenção entre os fatiotados de branco que circulavam numa atitude de compradores e, ainda tateando por entre a imagem podemos falar do clima, provavelmente frio pela casaca dos homens e a criança com a cabeça coberta; o chão de terra batida que provocada o lodaçal quando chovia que era usado pelos feirantes que não possuíam recursos para pagar as taxas sobre a aquisição de barracas. Esse passado que nos assalta através da imagem recompõe uma memória seletiva que opera na trama do lembrar e do esquecer. Sendo fotografias, estas imagens fazem um enquadramento sobre o recorte do real e supostamente constroem um registro fiel dos acontecimentos. A articulação das imagens elaboradas no passado encontra nas narrativas 85 Entrevista com Elízio Melo em 02 de junho de 2010. Por Ednair Carvalho Rocha. 80 orais referências interpretativas fundadas no presente que perscrutamos na demarcação dos espaço: Arrumava as barraquinhas, tá vendo? O dia de feira, agora essa feira era aqui na porta de Casa. E aqui é lá em cima. A gente não vê o genipapeiro. O povo vinha da roça. Agora no sábado. A feira era sábado. A prefeitura armava as barracas, quem tinha barraca. Vender doce, carne, como hoje ainda tem. A Rua Zeferino Correia surgiu depois que dividiram a Praça. A praça era uma só, né? Essa rua é do lado de lá e a feira vinha até do lado de cá. A feira era grande. Aqui na porta mesmo, botava as cargas. Aquelas cargas de umbú. Ficava, o povo quando vinha da roça trazia as cargas de umbú, melancia. É esse é o lado de lá. 86 No fragmento recortado da entrevista transcrita de D. Maria Angélica, suas lembranças vão traçado o mapa da localização da feira de Vitória da Conquista, entre o período de 1920 a 1940. Em 1938, a feira foi removida para a Rua da Avenida, distanciandose da Praça 15 de Novembro, que até então não havia sofrido ‘a pressa renovadora do progresso’. D. Maria Angélica afirma que esse espaço a que nos referimos, era denominado de Rua Grande, nos anos vinte e em 1930 já se endereçava - Praça 15 de Novembro, e só no início dos anos 40, que começa as determinações para dividir essa Praça. Aí começaram a arborizar lá, aí dividiram, deram o nome daqui: Praça Barão do Rio Branco, por que no passado era Praça 15 de Novembro. Quando se chamava Rua Grande era como se chamava mais antigamente, não foi do meu tempo. A 15 de novembro foi pelos anos 30, por que eu me lembro, em 30 a gente morava aqui e o endereço era Praça 15 de Novembro, número 10, aqui em casa, aqui nesse telhado.87 A memória oral trouxe para o espaço da feira, a questão da divisão da Rua Grande. A Rua que na década de 1920 era chamada de Rua Grande, e durante as décadas de 1930 e 1940 recebeu outras identificações. Esses nomes oficiais partem geralmente das decisões do poder instituído através da Câmara Municipal. Na cidade de Conquista estas denominações acompanharam as transformações impetradas na cidade para cumprir a função de identificar elementos da nova ordem implantadas pelo projeto republicano. Os nomes de ruas e praças tiveram nesse processo de rememoração um dos sentidos para legitimar um projeto de modernidade em andamento. Os grandes vultos e acontecimentos históricos eram fundadores de nomes das ruas selecionados pela atuação vigorosa de forma a romper com um passado 86 87 Entrevista com D. Maria Angélica em, 03 de agosto de 2010, por Ednair Carvalho Rocha. Entrevista com D. Maria Angélica, 03 de agosto de 2010. 81 que se queria esquecer. Na cidade de Conquista, em 1930 a Rua Grande passou a chamar Praça 15 de Novembro e em 1938, no projeto de ordenamento mais radical da cidade, a partir dos desdobramentos implementados pela política do estado novo – A Praça 15 de Novembro foi loteada em duas Praças – da República e Barão do Rio Branco. Tornando relevante a análise sobre a função das novas denominações das Praças percebemos também, o movimento das mudanças de localização da feira na cidade, no tempo percorrido pelas lembranças que trafegam por esses anos em que as elites dominantes estão buscando para a cidade um projeto de urbanização e compreende que esse projeto está vinculado, à necessidade de transportar essa aglomeração, que já se torna indesejável, pela ‘sujeira’ que produz. A feira era grande, e muitos percebiam em suas impressões a dimensão deste percurso, que ia de um lado a outro e cobria a parte de cima e ia até embaixo da Praça. Para esse período de final de trinta, transcrevemos o relato do Sr. Mário Brito, que ao observar as fotos 7 e 8, se transporta e se instala nesse ambiente que atinge as suas lembranças e, nos afirma essa amplitude Essa feira: é bem capaz deu estar aqui nela. Essa feira começava na porta da igreja e ia até lá embaixo. Pegava a rua todinha, era uma lamaçeiro danado. Depois a feira mudou para a Praça da Bandeira, depois foi para a Lauro de Freitas, depois voltou novamente para a Praça da Bandeira.88 O Sr. Luis Prates Rocha, morador da cidade, que viveu esse período, lembra que, houve essas mudanças da feira e fala por que mudou: A feira mudou, porque foi melhorando a cidade, então mudaram primeiro para o Mercadão, pra Praça da Bandeira, ali chama Praça da Bandeira. Depois foi mudando pra Lauro de Freitas. Porque ia ‘consertano’ as ruas, ia ‘melhorano’, ia ‘mudano’ a feira. Como melhorou aqui o centro, mudou pra lá. 89 Nos relatos percebemos que esses vários elementos da cultura material, que foi revelado, nos aponta para uma memória onde os sujeitos estão relacionados, no mesmo percurso do mapa da cidade. As fotografias, tanto quanto os relatos, são condizentes com a 88 Entrevista com o Sr. Mário Brito, em 16 de agosto de 2010 Entrevista com o Sr. Luiz Prates Rocha, entrevistado para o projeto: Conquista era assim... do Museu Regional – Casa Henriqueta Prates, em 06 de junho de 2002, entrevistado por Ednalva Pereira Padre. 89 82 homogeneização da sociedade, que surge da vontade de um grupo que suscetível ao controle e assepsia do ambiente, vislumbram a sua cidade, em suas expressões culturais, mais presentes. A feira representava neste momento da história, o encontro de diversos saberes e experiências, que eram trocadas no espaço dessa rua. A saber: as negociações, as trocas naturais, o remédio para as enfermidades, o alimento, as vestimentas – a economia transitava por ali, estreitamente, em comunhão com as relações sociais. E percebemos elementos dialógicos alimentados e potencializados nessas narrativas: As leituras das fotografias da cidade realizadas por D. Ornélia e D. Maria Angélica instigam lembranças e, em suas recordações demarcam os espaços, refazem os caminhos de uma Conquista, dos anos 1930, que longe de ser uma cidade esquadrinhada, era uma cidade adensada. Através dos relatos e das fotografias, uma cidade se configura, se mostra. E serão sobre esses vestígios, que buscaremos investigar como se deram as práticas sociais, nesse espaço. Quais sujeitos circularam nesse percurso? E como se estabeleceram suas relações com o espaço? A importância de contar esta história a partir das perspectivas dos sujeitos envolvidos pode propiciar meios de visibilidades na percepção da cidade como espaço construído socialmente, nas experiências desses sujeitos, nas suas práticas cotidianas de convívio e enfrentamentos, entendendo que, do olhar sobre as relações desse cotidiano podem ser encontradas revelações permeadas das práticas urbanas diferenciadas dos costumes e valores apontados por outros segmentos burgueses na forma de comercialização de produtos. A feira livre de sábado na cidade de Conquista era assentada sobre o chão da terra, onde todas as madrugadas e todas as manhãs eram erguidas ‘as barraquinhas’ com as diversos mercadorias produzidas em sua maioria nas roças e povoados circunvizinhos. Muitos dos produtos agrícolas eram específicos do ‘tempo de dá o fruto’ – maxixe, abóbora, milho, quiabo, entre outros, são frutos da época, e a feira se diversifica por essas temporadas. A diversificação dos produtos desenha o cenário proporcionando um espetáculo de cores e movimento. Entre as barracas de carnes, toucinho, queijo, biscoito, manteiga de garrafa, doces, brinquedos e roupas, dentre outros elementos, que abastecia a população local e de povoados adjacentes. Nesse dia o ritmo da cidade se transforma, movimentando fluxos e atividades sócio-econômicas e culturais. Desse modo, situada na Rua Grande, a feira ocupava a maior parte da Rua. Para a cidade de Conquista, no dia de sábado, essa Praça tinha a função de abrigar a feira livre, formando uma circunferência comercial, por onde circulavam “feireiros”, vendedores, compradores, visitantes, transportadores, enfim uma gama de sujeitos que 83 transitando nas transversais, esquinas, corredores e calçadas, estabeleciam suas sociabilidades e territorialidades, descortinando nos espaços da praça, seus lugares de parada e pertencimento. Feirantes, comerciantes, fregueses se apropriavam do espaço da Rua Grande, erguendo-se um cenário de compra, venda e trocas simbólicas desse emaranhado de gente e produtos. Figura 9 – Feira da Praça 15 de Novembro, anos 30 (Acervo MRVC) Era no dia de feira que pessoas vindas de outras regiões, das roças, da cidade se encontravam, estabelecendo vias de territorialidades, de trocas econômicas e, em comum teciam múltiplas sociabilidades. Sobre essas territorialidades construídas na feira livre da cidade de Conquista, percebe-se que estas são vivências simbolizadas por múltiplos movimentos, dizeres, saberes ordenados pelos sujeitos que freqüentavam e transitavam pelos corredores da feira. Concomitantemente, as teias de sociabilidades imbricadas nessas territorialidades são visualizadas como um acervo de apropriações sobre esses pequenos 84 espaços que se formam como territórios pelo uso atribuído por diversos grupos sociais. Desta forma, ao olhar as fotografias da feira e vicejar seus labirintos, vê-se revelada uma realidade social que percorre um caminho entre o rural e o urbano – fragmentando ainda mais as fronteiras entre o campo e a cidade. Desse mesmo espaço construído socialmente pelas práticas dos seus partícipes: homens, mulheres e crianças, provenientes da zona rural também, se mobilizavam para viver mais esse dia de feira. As crianças eram levadas para visitar os padrinhos e madrinhas que se avizinhavam na cidade. As famílias da roça aproveitavam a feira para visitar filhos e parentes que viviam na cidade - essas experiências se estabeleciam pela cultura de agregação nas famílias abastadas. Muitos possuíam agregados que eram filhos de roceiros que residiam nas casas, geralmente instalados nos quartinhos construídos no quintal, cumpriam a função de atender aos serviços da casa. Figura 10 - Feira Livre da cidade de Conquista, anos 30 (acervo MRVC) Os partícipes da feira pousaram para a realização desta fotografia onde a cena foi descrita através do jogo de sentidos possibilitados pela chegada da máquina fotográfica. Ficou evidente na expressão dos olhares a aparição de uma coisa única, uma pose para o novo, para o desconhecido. A fotografia que recolheu da feira homens e crianças revelou uma forma de ação, uma ação representativa de um grupo que estava distanciado das inovações tecnológicas 85 e demonstravam isso nas suas impressões, registradas nesta imagem, através do posicionamento dos corpos, da fixidez dos olhares e da jocosidade das crianças. A imagem remontou uma memória da coletividade que freqüentava a feira e vai até a casa ao fundo, onde duas meninas estão na porta, talvez sem a permissão de sair para se misturar ao aglomerado. Esse grupo que participou desta fotografia talvez não tenha visto o produto revelado, no entanto, o fotógrafo buscou a participação de todos para fixar a imagem desse grupo que transitava pela feira e viabilizar sua intenção de registrar essas pessoas que não participavam de uma vida na cidade. Os feirantes vindos das roças vizinhas trafegavam por caminhos e veredas, em lombo de jegue, em carroças, ou carros de boi, atravessando fronteiras que se movimentavam diante das necessidades impostas - astuciosamente construídas por picadas, atalhos e mata-burros; as cercas eram atravessadas para chegar ainda ao amanhecer na cidade e encontrar o seu pedaço de chão para depositar seus víveres. Outros que chegavam de lugares mais longínquos dormiam na cidade e para tanto, faziam-se hóspedes do barracão instalado na Praça. No registro do projeto orçamentário do município de Conquista para o exercício de 1924 consta que a receita do município é orçada em reis 93:460$ 000, e se constitui com o produto que for arrecadado pelas rendas, impostos e taxas especificadas em uma tabela, que no caso dos feireiros incidiam sobre o item: impostos sobre indústria e profissão, artes e ofícios, arrecadados de acordo com os valores cobrados na Tabela 03 – Comércio e Indústria ambulante: § 8º 1$000, por barraca armada nas feiras do município, sendo cobertas de pannos e movediças, § 9º 5$000, por barraca armada nas feiras do município, sendo fincada no solo. § 11, 1$000, para expor á venda fumo de corda ou folha nas feiras do município. § 12, 400 reis, por meio de sola ou vaqueta vendidos nas feiras do município. A incidência das taxas e impostos pesavam sobre as condições de trabalho dos feireiros deixando ver uma condição hierárquica dentro desse espaço. Nem todos os roceiros tinham condições de assumir o pagamento das taxas impostas sobre a aquisição de barracas e acabavam deitando seus víveres em lonas no chão. Desta forma, surgia a necessidade de chegar cedo ao local para enfrentar a disputa pelo melhor lugar de passagem dos fregueses. Muitos desses roceiros dormiam na cidade para montar seu lugar de venda e para tanto utilizavam o barracão administrado pela Intendência. 86 A existência deste barracão remonta um período anterior do abordado para este estudo. No entanto, este edifício antevê importantes referências para os feirantes do período de 1920 a 1940 na cidade de Conquista. Nos registros de memória de Aníbal Viana (1982) esse barracão foi demolido na gestão do Intendente Coronel José Fernandes de Oliveira Gugé (1912 – 1915), entretanto, acompanhando relatos de memória para a nossa investigação – encontramos várias referências à existência de um barracão – abrigo de tropeiros e roceiros, situado na Praça. Ainda segundo Viana, a demolição do barracão suscitou o enfrentamento do Coronel Gugé com alguns conselheiros que possuíam lojas comerciais próximo ao edifício. Viana relata que: O velho barracão foi por terra e para não contrariar o sincero correligionário, o Cel. Gugé adquiriu uma grande casa, com amplo quintal, ao lado da ‘Loja Estrela’ do Cel. Costa, que ficou por muitos anos servindo de arrancharia de tropeiros e feirantes, permanecendo ali até a mudança da feira-livre para a Avenida Municipal, (atual Lauro de Freitas), no governo municipal do Dr. Régis Pacheco.90 Para esses segmentos sociais envolvidos no projeto de urbanização da cidade, era muito estreita as relações de compadrio e de proteção aos correligionários. Mesmo atuando administrativamente na demolição do barracão, o Coronel Gugé tratou de providenciar outra instalação próxima ao comércio dos conselheiros / comerciantes. Estas estratégias do poder em manter o apoio de seus correligionários, através de favoritismos desdobravam-se nas necessidades impostas pelas atividades dos comerciantes, como também reforçava, os mecanismos de poder que legitimavam os significados dos usos do solo urbano. Assim, caberia aos sertanejos pobres desses rincões continuar a fazer hospedaria no local agenciado pelos poderosos locais. Acompanhando os jornais que noticiavam sobre a feira percorremos denúncias feitas a respeito das condições de trabalho estabelecidas na feira de Conquista onde não se descartou a jocosidade. As referências a um passado idílico, o incômodo dos feirantes ocupando as lojas em dia de chuva e, de forma a concretizar o elemento da denúncia, o jornal militava em defesa dos feirantes sugerindo a necessidade de um abrigo. O Major Deoclides Novais é o jornalista que escreve a matéria e que também é negociante da Praça e mantém uma posição diferenciada sendo a favor da construção de um mercado municipal. Nas entrelinhas, ele 90 Viana, op cit., p. 656 87 aborda uma urgente necessidade da construção do mercado para a cidade de Conquista. Ele escreve para o jornal A Semana: Pobre povo! O lamaçal da Praça “15 de novembro” nos dias de feira – é uma triste nota para a Conquista. As feiras semanais da mui futurosa ex-imperial Villa da Victoria e que hoje acode pelo nome mais resumido e menos pomposo de – cidade de Conquista – é um espetáculo que desafia a penna humorística de um jornalista que tinha o fígado desopilado! Antigamente existia ali um velho barracão construído nos bons tempos que se foram para não mais voltarem, que um illustre intendente mandara demolir, com a intenção de dotar a cidade de coisa melhor. O resultado, porém é o que se vê – nem o velho barracão, nem cousa nenhuma e nos sábados chuvosos é uma lástima se ir á feira. Se chove a cântaros verifica-se uma confusão medonha pois os feireiros, a fim de se livrar do aguaceiro deixam os gêneros expostos a chuva para procurarem abrigo nas casas commerciais e se apenas neblina o lamaçal que se forma é tal que impossibilita inteiramente o trânsito. Nos bons tempos da Villa da Victoria, a coisa era melhor – ao menos os feireiros tinham um grande barracão em que se abrigavam das chuvas e hoje?91 Para destacar a função do barracão e seu significado para os feirantes, o jornalista remontou um passado idealizado da ‘mui futurosa ex-imperial Villa da Victoria’ e contrapõe o que se realizava no governo ‘de hoje’. Mas o fato de um jornalista ter recorrido aos valores de outros tempos para que se registrasse na memória social, indica uma mudança do significado que os setores dominantes passaram a atribuir neste espaço uma necessidade urgente e inadiável, de construir-se um mercado, que promovesse o projeto de modernidade, higiene e civilidade. As fontes apontam para um embate existente entre os intendentes e alguns conselheiros municipais resultado das relações que ambos mantinham neste espaço mediante as condições materiais impostas pela necessidade dos seus interesses comerciais e de trabalho. Durante as décadas de vinte, trinta e quarenta, esse embate impediu a construção do mercado público que já vinha sendo reivindicado desde período anterior à demarcação temporal desse estudo. No entanto, o Conselho Municipal de 11 de junho de 1924 reservou uma sessão ordinária para tratar do projeto de construção do mercado, cujo resultado foi a designação de uma comissão formada por cidadãos conquistenses para definir o lugar do assentamento do mercado. Tomou parte desta comissão: Doutor Nicanor José Ferreira, Doutor Sinfredo Pedral 91 POBRE POVO!: Jornal A Semana de 14 de abril de 1927. 88 Sampaio, Cel. Francisco Soares de Andrade, Cel. José Maximiliano Fernandes de Oliveira e Major Leôncio Satyro dos Santos Silva, “a fim de escolherem dois logares appontados para o mercado, o lugar que oferece melhores vantagens em higiene e terreno” (sic) 92. Essa comissão dispunha de homens diretamente vinculados aos interesses dos grupos dominantes, identificados numa condição privilegiada, como aceitos pelos outros segmentos sociais, que também primavam pela permanência de situações que lhes dessem prioridades ajustadas aos interesses comuns. Dessa forma, mais um passo à frente para o progresso da cidade de Conquista foi interrompido reafirmando os ditames impostos pelas práticas da elite da cidade que estabelecesse o seu domínio e poder. Quatro anos depois, o jornal A Semana ainda se dirigia ao poder público denunciando a permanência do estado precário da ‘armação’ da feira na cidade de Conquista e a situação dos feirantes aparecia como pano de fundo, apontando mais um problema para a cidade com a sua presença, escrito em editorial, também assinado por Deoclides Novais. (...) Trata-se da necessidade urgentíssima innadiável, de construir-se um mercado nesta cidade. Alem de triste, alem de vergonhoso, além de deponente, é clamoroso attentado contra a saúde publica, o modo por que fazem as feiras em Conquista. (...) Outro mal, não menos triste que perigoso, é consentir o poder público que se amarrem os animais dos fereiros na mesma praça da feira. “Urge a construção do curral em que se prendam esses animais.” (...)93 No compasso de espera do projeto modernizador da cidade de Conquista, os governos municipais buscaram efetivar uma série de novos ordenamentos urbanos, tendo em vista antecipar medidas que pudessem antever proposta de uma cidade civilizada, ordenada e livre dos miasmas que julgavam disseminados pelos pobres da cidade, mas que não apontavam ainda para a construção de um mercado público. Os governantes operavam para conservar privilégios recomendavam intervenções de caráter paliativo e tomavam medidas para ajustar os novos hábitos dos pobres da cidade que “enfeiavam a rua, mas era provisório”, A cancela que foi colocada no muro do ‘barracão’, foi causa de murmúrios e críticas dos que supunham, que ela fosse ficar ali eternamente. Mas (...) ali fora colocada, por cinco ou seis dias, apenas para coibir o abuso dos que se valiam d’aquelle muro para práticas pouco limpas e pouco próprias de cidade civilizada. 94 92 Livro de atas do Conselho Municipal de 11 de junho de 1924. Acervo do Arquivo Municipal de Vitória da Conquista. Livro 12.2.22 93 Jornal A Semana de 19 de agosto de 1928. 94 Jornal O Combate de 4 de junho de 1939. Ano X, Número 9. 89 A Cidade insurge aqui aberta ao progresso, neste sentido pressupunha um novo ordenamento de condutas e para esta finalidade são interditados os espaços de uso pelos trabalhadores da feira e pelos pobres da cidade. O controle do poder público sobre a ordenação de uma civilidade que suprimisse os usos do espaço evidencia-se nos decretos municipais. O decreto apresentado a seguir tratava das proibições que o município impunha para manter o ordenamento e assepsia da Praça 15 de Novembro: Fica expressamente proibido, a partir do dia 20 do corrente mês, aos senhores barraqueiros e feireiros armarem suas barracas ou depositarem cargas para dentro das bordas do calçamento à Praça 15 de Novembro. Fica também expressamente proibido a partir da data acima estipulada, o facto de deixarem que os animaes trazidos para as feiras semanais pisarem os passeios ou passarem das bordas do calçamento para dentro. Os infratores serão punidos com a multa de 20$000 (vinte mil reis)95 O decreto imposto aos barraqueiros e feirantes direcionado para disciplinarizar a cidade buscando atender aos reclames de um progresso tão desejado, promovia o cerceamento das práticas dos moradores das roças e fazendas circunvizinhas que para aquela concepção criava obstáculo ao avanço da modernidade. Durante a realização das feiras aos sábados, os animais eram amarrados nas argolas presas nas árvores da Praça e ali passavam o dia a depositar ‘a esterqueira’, outros eram soltos em ‘mangueiros’ próximos da Praça para a pastagem. Para impedir que os animais destruíssem o calçamento e o ajardinamento, causassem prejuízos para a administração, o poder local resolveu proibir a circulação desses animais e proibiu a “armação” de barracas e depósito de cargas “nas bordas do calçamento”, afirmando mais a importância física e urbanizada da Praça do que as condições de trabalho dos feirantes. Percebe-se um campo de força a necessidade de vender mercadorias indispensáveis para a subsistência e ao consumo de moradores da cidade, isto é, dos conquistenses que ofereciam para isso o espaço da feira e atender e seguir aos desígnios dos poderes municipais que ao impedir a construção do mercado, joga sobre os feirantes a responsabilidade e o ônus de estabelecer uma ordem que seguia na contramão dos seus costumes e estratégias de condução do trabalho. Alguns anos depois, em 1944 o jornal ‘A Conquista em sua coluna: “Comentários da Semana” denunciava a ausência de um prédio para o funcionamento do mercado municipal 95 Livro de registro de decretos e leis..., 13 de junho de 1942. Arquivo Municipal de Vitória da Conquista. Cód. 18.2.40-1 90 (...) Esperávamos com razão, ter este ano o prédio do nosso mercado. (...) Mas estamos no segundo semestre e não foi batida sequer a sua primeira pedra. A localização é o cavalo de batalha, cada qual tem sua opinião quanto a ela. Opinião de convergência e divergência da prefeitura.96 Os termos desta denúncia colocaram em evidencia o problema da construção do Mercado, que era justificado pela prefeitura como dificuldade na aquisição do terreno. Além disso, aquela comissão indicada na reunião do Conselho Municipal de 1924, exatamente vinte anos antes, recorrente a esta denúncia, prenunciava a importância da construção do mercado e afiançava a escolha do lugar para atender o melhoramento que prescindia na cidade. A comissão relata que: Em obediência á vossa determinação para que examinássemos os dous logares seguintes a estrada de S. Bernardo nas proximidades da casa da Srnª Maria Victoria e o alto das ‘sete casas’, para num deles, ser edificado o mercado publico, isto o fizemos hontem a tarde, como determinastes. Sem que a comuna possua uma planta cadastral difficel se nos afigura dizer para onde futuramente se estenderá esta cidade, mais attendendo as ultimas construções que se tem feito vê-se claramente que ellas procuram a região de malta e com especialidade o planalto em que se acha à estrada de S. Bernardo. (...)97 O Relatório da comissão correspondia, assim, às mudanças requisitadas por um conceito que interpretava um crescimento desordenado e espontâneo da cidade e dos espaços construídos por segmentos da sociedade conquistense, em sua maioria coronéis, comerciantes, profissionais liberais que construíam sem uma planta cadastral ordenada pelo município. O Relatório admite que, já que não possue esta planta, somos levados a que, com maior imparcialidade e attendendo aos interesses collectivos da população darmos o nosso parecer sobr5e este grande melhoramento que é o mercado municipal, melhoramento que tanto se resente esta cidade, e aproveitando as boas intenções do digno intendente deste municipio, somos de opinião que o referido mercado seja construído no primeiro local, isto é, na estrada do S. Bernardo. (sic.) Então o relatório de 1924 definiu o terreno e se encarregou de apontar uma relação de motivos que levaram a tal escolha: 96 COLUNA COMENTÁRIOS DA SEMANA: Jornal A Conquista, 16 de julho de 1944. Livro de Ata do Conselho Municipal do dia 18 de junho de 1924. Acervo do Arquivo Municipal de Vitória da Conquista. Livro nº 12.2.22. 97 91 a)Por estar mais no centro do atual perímetro urbano; b) ser mais fácil accquisição de terrenos para a construção; c) os terrenos se prestarem melhor para construção attendendo a sua natureza argilosa; d) desenvolvimento mais rápido de construção neste trecho; e) fácil acesso da população ao mercado, pois varias ruas não ter ao referido local; f) dar-se – há com pouco dispêndio por parte do municipio, o aformoseamneto de uma praça e duas ruas; g) ficar mais perto da casa de detenção para o caso de algum distúrbio poder a força publica agir mais rapidamente; i) ser o local mais alto e o ar mais puro; j) mais hygienico, se bem que isto depende sempre do critério de quem desempenha os serviços de hygiene.(sic) Muito embora os motivos listados pela comissão de 1924 fossem considerados relevantes do ponto de vista propiciado pelas necessidades de ordenamento, civilidade e modernidade que se queria dar ao desenho urbano viu-se que a construção do mercado público não se concretizou. Esse empreendimento transformou-se em mais uma ferramenta de poder no âmbito de desacordos entre o poder legislativo e executivo com o impedimento dessa obra que dificultava a vida dos feireiros. A falta de um mercado municipal causava ‘lástima’ e ‘vergonha’ na realização das feiras dos sábados, e entre nós mormente nos dias invernosos, o local da feira transforma-se então num repugnante e perigoso lamaçal, notando-se asquerosa mistura de detritos vegetais como diversos gêneros alimentícios; enfim ali se contempla uma verdadeira imundície, que depõe muitíssimo contra o nosso nome de povo civilizado. (...) Vem a pelo dirigirmo-nos mais uma vez aos distintos membros do Concelho Municipal, o qual está funcionando, no sentido de solicitar dos ilustres edis uma emenda no projeto de lei, referente à edificação do mercado, indicando outro lugar (contanto que não seja na “Praça 15 de Novembro”) que se preste bem à construção do aludido edifício.98 (grifo meu) Portanto, como se pode perceber em ambas as matérias, o controle sobre os espaços urbanos foi regido pelos desígnios políticos influenciando diretamente a vida dos habitantes que passavam a se tornar intolerantes porque colocavam em risco a saúde e o bem estar dos moradores da Praça. Segundo o memorialista Mozart Tanajura que publicou o livro História de Conquista – Crônica de uma Cidade, foi no governo do Prefeito Régis Pacheco, em 1938, que a feira foi transferida para a Rua da Avenida atual Lauro de Freitas.99 98 99 Matéria do Jornal A Notícia de 12 de novembro de 1921 apud Aníbal Viana. TANAJURA, Mozart. História de Conquista – Crônica de uma Cidade. Vitória da Conquista, 1992. 92 Mapa dos locais de mudança do espaço da feira livre. (...) Embora sem edifício para o Mercado Público, permaneceu aí por muito tempo. (...) Na gestão do Prefeito Antonino Pedreira (1946-1950), a feira foi transferida para a Praça da Bandeira, onde se construiu o Mercado. 100 A transferência da feira livre em 1938 para outra rua não foi aleatória. O Médico Régis Pacheco que veio para Conquista com a missão de debelar uma epidemia de varíola que 100 Tanajura, op. cit, 1992. 93 grassava a cidade nos anos de 1919 e 1920, e aqui se envolveu com a vida política, desenhou na sua trajetória um novo tabuleiro nas correlações de forças políticas no município. Quando assumiu o governo municipal Régis (1938 – 1945), empreendeu diversas interferências na reconfiguração da planificação urbana da cidade. Ele podia, de fato, concretizar essas mudanças, mas também, havia motivos políticos relevantes neste processo. No município de Conquista esse novo xadrez nas correlações de forças políticas definidas no âmbito da conjuntura nacional definidas pelas articulações que sustentaram o golpe e a implantação do Estado Novo em 1937, que vai desestabilizar definitivamente o poder das velhas oligarquias locais. Ao investigar a história política do município referente a este período, Ruy Medeiros afirma que: O “tenente” (Juraci Magalhães) caiu e sua queda foi também a queda do Coronel Deraldo Mendes em Conquista. Em 20 de novembro de 1937, o Interventor Federal na Bahia, General Antônio Dantas, nomeou Joaquim Fróis de Caíres Castro, pessoa vinculada à Igreja Católica e líder integralista, prefeito do município, cargo que esse ocuparia por pouco tempo, pois em maio do ano seguinte, o novo interventor – Landulfo Alves de Almeida resolveu nomear Régis Pacheco Pereira para o cargo de Prefeito Municipal. Surpreendentemente, um expoente do autonomismo torna-se prefeito do Estado Novo. A política muito polarizada não permitiu outra solução. Landulfo Alves não podia manter as forças locais que apoiaram o deposto tenente Juracy Magalhães. Não havia liderança local expressiva que pudesse assumir a difícil tarefa de consensualmente administrar o município e, além disso, havia laços de amizade entre parentes do novo interventor e Régis. Este ficaria no governo até a década seguinte. Ampliou as bases de seu grupo com adesão de descontentes com o grupo de Deraldo Mendes e de outros conquistados por sua sagacidade política. 101 Acerca do acompanhamento político sobre as medidas de urbanização da cidade de Conquista revelavam as astúcias do poder, na medida em que concebiam as determinações sobre o controle dos usos urbanos e sobre as suas transformações não se apresentavam neutralidades. A recorrência às necessidades do remodelamento da urbes vem inscritas nos comportamentos citadinos que tornavam os atributos dos equipamentos da população pobre ou aqueles vindos da zona rural incompatíveis ao progresso da cidade. Surgia então, uma memória que proferia determinados comportamentos logrados hegemonicamente e impugnava as ações dos segmentos marginais a essa classe dominante. O capítulo subseqüente vai tratar dessa extensão das transformações urbanas compreendida nas práticas sobre a Rua Grande em seus elementos referencias de Praça e Igreja. 101 MEDEIROS, Rui. Realistas e Idealistas. Texto publicado no site <http://www.blogdopaulonunes.com> Pesquisado em 23/11/2010. 94 2.4 DA RUA GRANDE AOS TEMPOS E ESPAÇOS REPUBLICANOS: PRAÇAS 15 DE NOVEMBRO, DA REPÚBLICA E BARÃO DO RIO BRANCO. Vim para essa cidade com um objetivo único em mira: ensinar. Era março de 1939.(...) Naquela noite, logo após o jantar, antes de qualquer acomodação, eu quis ver de perto a praça enorme, que então, se estendia do Hotel à Igreja, limite da sua outra distante extremidade.(...) Achei esquisita a praça daquele tamanho, sem calçamento, sem árvore, sem jardim, como esquisitos considerei, ainda, as casas de frente grande, com muitas janelas e uma porta no centro da construção. O contraste teria que aparecer. É que eu era de Caetité, uma cidade arrumadinha, com sua Rua Barão, calçada de pedra e iluminada a luz elétrica.102 Everardo Públio de Castro (...) Eu estava na expectativa. Na manhã friorenta; todas as formas foram tomando um sentido real, preciso, exato. As casas incrustadas, na encosta meio íngreme, as árvores que dão um aspecto especial às ruas. Eu via a Praça 15 de Novembro, até os seus limites – meio tortuosa, porém ampla. Ninguém. O ar da madrugada, fino, vivificador e fresco. Lembrei-me dos campos do Rio Grande do Sul, das savanas da Argentina, do charco desolado. Mas essas coisas se repetem. O mundo já se torna bastante vulgar pelas suas semelhanças e relações 103 Autor desconhecido Figura 12 - Praça 15 de Novembro, anos 30 (acervo do MRVC) 102 Esse fragmento compõe uma crônica escrita pelo professor Everardo Públio de Castro e foi publicado no Jornal O Fifó, Vitória da Conquista, 9 de novembro de 1977. 103 Esse fragmento compõe um texto escrito por um visitante (não foi registrado o nome do autor) e foi publicado na primeira página do Jornal O Combate de 31 de março de 1941, Ano XII, número 26. 95 Os contrastes e evidências apresentados nos textos das epígrafes são memórias, experiências vividas expressas em prosa, verso e imagem sobre o universo da Rua Grande. Rua que se transforma em texto e imagem sob o “olhar estrangeiro” que compartilha visões, imagens e percepções sobre os espaços da cidade nas quais seus habitantes regulares não conseguem capturar aquele imaginário. Esse distanciamento forma imagens sem uma interpretação cuidadosa sobre o cunho social e político, o espaço se configura como idealizado e arrevesado por definições comparativas como as realizadas pelo Professor Everardo que expõe seu estranhamento; sobre outra narrativa quase poética, emerge como “vulgar em suas semelhanças” sugerida pelo autor desconhecido e, sobre a linguagem fotográfica, um olhar que se materializa no jogo de luz e sombra fazendo surgir a praça bordada pela arquitetura das casas e a promessa de crescimento da cidade. A fotografia acima, provavelmente enquadrada a partir da torre da Catedral Nossa Senhora da Vitória por Manoelito Melo (1912-1983), de aproximadamente 25 anos de idade. A datação desta fotografia foi rastreada a partir de confluências e referenciais das construções da cidade. Por exemplo, ao examinar o ângulo que pressupõe uma imagem focada de cima para baixo e examinando o conjunto de casas e o formato arquitetônico é possível deduzir que muito provavelmente esta imagem foi enquadrada na torre da catedral, única construção com altura suficiente para possibilitar essa moldura; o acontecimento corresponde ao final da construção do templo em 1937 quando a torre já estava erigida e, portanto, é maior a possibilidade de Manoelito ter subido para registrar essa memória imagética da rua do que seu pai Manoel Eufrázio, Neca Correia, que já contava 54 anos, e portanto, com uma idade avançada para subir por uma torre em construção. No entanto, o pai ainda poderia estar atuando, e empreendido junto com o filho a produção da fotografia, pois se sabe que a maioria das fotos datadas dos anos de 1920 são de autoria de Manoel Eufrázio. As relações dos fotógrafos com a cidade diz muito sobre os ângulos que foram construídos as imagens e neste caso, como apontamos na apresentação dessa dissertação, os fotógrafos da família Melo descendiam do primeiro Intendente da Cidade de Conquista – Cel. Joaquim Correia de Melo é muito provável que seus olhares para a cidade pudessem estar contaminados de forma significava pela perspectiva de manter a hierarquia, respeito e obediência a valores impressos na tradição conservadora da família. Por conseguinte, esses fotógrafos atuavam nessas referências, em que a cidade se mostrava através da imagem desdobrada nos seus significados mais nobres, como o embelezamento, a assepsia e as possibilidades de crescimento e progresso vistos do ponto mais alto construído na cidade. 96 Em todo o caso, interpretar o ‘olhar estrangeiro’ potencializa as surpresas e o assombro do que lhes é diferente e nos remete a indagações que por vezes podem parecer corriqueiras e sem historicidade. Partindo dessa premissa, ousaremos neste capítulo percorrer a Praça 15 de Novembro em seus vestígios, tendo como principal caminho, além da documentação da administração municipal, os jornais, as entrevistas orais e as fotografias tomadas da cidade em seu circuito de produção, circulação e consumo. Consideramos a problematização do espaço construído por sujeitos envolvidos que remetem desdobramentos nas suas relações de sociabilidades, trabalho, convivências e os significados que propiciam uma visão da cidade sobre a arquitetura que a sustenta é referência obrigatória para essa interpretação. Figura 13 - Praça da República anos 40 (acervo MRVC) Encontramos no arquivo municipal de Vitória da Conquista um registro do projeto de lei nº 146, de 27 de fevereiro de 1926, aprovado em última redação pelo Conselho Municipal que decretava uma proibição sobre as construções ou reconstruções de prédios nas principais ruas e praças da cidade pelo sistema ‘archaico e rotineiro’ usado desde a fundação da urbs até hoje’, estabelecendo regras de remodelação no desenho das habitações. O primeiro artigo deste projeto incidiu em determinações específicas sobre a Praça 15 de Novembro: 97 Nenhum prédio nas referidas ruas e praças, poderá ter a frente inferior a quatro metros e 44 centímetros de altura; é indispensável que o mesmo seja com platibanda na Praça 15 de Novembro e tenha cornija com ou sem platibanda nas demais ruas e praças, de acordo com o estilo moderno.104 Vimos nesta imagem o desenho das reformulações exigidas pela legislação. Na década de 1940 a arquitetura da praça já se delineava conforme o projeto de remodelamento para a cidade. A despeito das reformulações impostas pelas leis municipais, não era extraordinário que para a Praça 15 de Novembro integrassem elementos à arquitetura das casas diferenciadas das outras ruas, dando-lhes aspecto moderno mediante a intervenção do estilo eclético que viria a substituir o modelo colonial rústico, considerado arcaico diante dos valores importados. Esta Rua que era a rua de morada da elite conquistense surgia aprimorada pelo neoclassicismo que vigorava no Brasil a partir do início do século 20, firmando um estilo que suprimisse a idéia do colonialismo. Essas fachadas mantinham uma característica peculiar, ou seja, a inclusão da cornija e da platibanda, que construídas nas bordas do telhado cria um estilo e surge também como um incremento tecnológico que vai funcionar para não deixar a água que escoe dos telhados inundarem e elamaçarem as ruas. Essas soluções carregadas de diversos elementos arquitetônicos desdobra-se em um ecletismo próprio dessa condição de importação de valores para a afirmação de uma modernidade e progresso. Figura 14 - Parte baixa da Rua Grande anos 30 (acervo MRVC) 104 Livro de projetos de leis do Conselho Municipal. Acervo do Arquivo Municipal de Vitória da Conquista. Livro nº 18.2.23 de 27 de fevereiro de 1926. 98 Essa diferenciação denuncia as referências sócio-culturais que o poder legislativo propugnava para a efetiva remodelação da Rua Grande de forma a justificar o projeto de modernização. Outro fator preponderante de ordenamento dessa rua passou pelo alinhamento da altura das casas, cujo ‘pé direito’105 não poderia ser ‘inferior a 4 metros e 44 centímetros de altura’, formando um traçado que consequetemente daria alinhamento à Praça. Tais elementos são detratores das condições de uma vida social livre do desmazelo e ordenada conforme uma construção harmônica e feliz, conforme os desejos de moradia da elite conquistense. Vimos esse processo de remodelação da Praça 15 de Novembro se intensificar no governo municipal de Régis Pacheco (1938-1945) através de diversas ações que conduziam para a afirmação de uma cidade construída estrategicamente para obedecer às normas vigentes instituídas pelos segmentos dominantes, visto que, as forças do poder municipal se aliavam a essa elite moradora da praça. Constituindo as iniciativas de remodelação do espaço urbano para a cidade de Conquista, Régis Pacheco acionou a aprovação de um novo código de posturas (1938), promoveu a realização da planta cadastral da cidade, transferiu a feira livre para uma rua distante da Praça 15 de Novembro, e por fim, divide e desmembra a Praça 15 de Novembro, logrando na parte superior em Praça da República e na parte inferior em Praça Barão do Rio Branco, permitindo intervenções no centro e meio da praça suprimindo definitivamente aquela Rua Grande, sem ‘aformoseamento’; estranha, desértica e vulgar como concebe os visitantes. Uma atuação mais efetiva do poder público no processo de homogeneizar e no conseqüente projeto de modernização dos espaços urbanos pode ser percebida no decreto-lei nº 75 de 29 de agosto de 1938 que criou o código de posturas do município baseado em considerações pertinentes às práticas autoritárias do governo municipal, que excluía os setores populares do processo de decisão política. O código de 1938 deveria legislar a organização da cidade dentro de ‘um novo surto de progresso’, “considerando que a municipalidade, dentro do Estado Novo, está sujeita a novos direitos e deveres, bem como os munícipes.”106 As mudanças impostas pelo código de posturas foram fundamentais na atuação da administração pública sobre a necessidade de promover um novo ordenamento e desenho na cidade conforme os ditames da modernidade. O parágrafo 71 que trata do ‘Ponto e do Estilo do Prédio, que se referia às construções e reconstruções do perímetro urbano diz que: 105 Pé direito significa a medida do piso ao teto de um edifício. Decreto-lei n. 75 de 29 de agosto de 1938 que cria o Código de Posturas do Município de Conquista. Acervo da Biblioteca do Arquivo Público do Estado da Bahia. 106 99 São banidas do perímetro urbano as meias águas e as construções em forma de chalet ou casa de campo; todo o edifício a se construir, em qualquer estilo arctetonico comum, deve o constructor apresentar o projeto, com planos e detalhes.107 (sic.) Essa homogeneização dos espaços urbanos era determinante não somente como uma tentativa de regular o uso das edificações, mas servia fundamentalmente como instrumento para impor os valores modernizantes sobre as construções na cidade. Os artigos 53 e 56 do código de postura que trata do alinhamento e nivelamento das construções do espaço urbano foi mais enfático ao inferir proibições e multas sobre qualquer construção de fachadas e muros fora do alinhamento concedido na medição da prefeitura. As posturas citadas demonstram a intenção dos poderes públicos com o novo desenho que se pretendia para a nova urbanização, Art. 53 Ninguém poderá construir, reconstruir, modificar ou consertar prédios e muros, fazer abertura de covas para alicerces de qualquer construção, sem alvará de alinhamento dada pela prefeitura. Art. 56 Não será permitida a construção e reconstrução de prédios para dentro do alinhamento sem que fique uma faixa de 4 metros, pelo menos, entre a fachada e o alinhamento cuja área só poderá ser utilisada por ajardinamento.108(sic) As penalidades sobre as infrações eram cobradas equatitativamente sobre os moradores. O valor dessa multa sobre o alinhamento e nivelamento de qualquer dos artigos a punição incidia com a multa de 30$000 (trinta mil reis) e o dobro nas reincidências. Para estimular o ordenamento das construções a prefeitura gerava uma bonificação de dez por cento (10%) sobre o total do imposto a pagar. O projeto de remodelamento da cidade fazia-se sentir intensificada pela legislação vigente. Entre as penalidades e as bonificações o espaço da Praça 15 de Novembro na cidade de Conquista foi-se transformando ao imprimir novos espaços nessa Praça, que era uma só. A transformação na arquitetura da Praça 15 de Novembro seria definitivamente modificada a partir das intervenções, com a construção da Praça da República na parte superior e a Barão do Rio Branco na parte inferior da Praça. O Decreto-lei nº 17 de 7 de 107 108 Código de postura, op. cit, p.15 Idem, p.13 100 dezembro de 1943 ‘dá o nome de Praça “Barão do Rio Branco” á parte desmembrada da “Praça 15 de Novembro” pelo Plano Cadastral da Cidade. Esses desdobramentos das modificações dos espaços que se realizaram através das novas reconfigurações ocasionaram mudanças de sentidos que os sujeitos imprimiram em suas ações cotidianas. A Praça que era uma só e atendia aos movimentos do comércio da feira, da subida para a igreja, dos passeios, do transito dos trabalhadores, agora deveria ser atravessada por recortes e obstáculos marcando um passo diferente daqueles passavam em cumprimento de suas múltiplas tarefas. Figura 15 - Catedral Nossa Senhora da Vitória com a Praça da República anos 40 (Acervo MRVC) Pelo olhar do fotógrafo pode-se vislumbrar as transformações do lugar, revelado na arquitetura da Catedral e no terreno sobre o qual crescia as primeiras árvores da Praça da República bordeada pelo casario de estilo eclético caracterizado pelas cornijas e platibandas, excetuando duas casas que ainda resistiam ao ordenamento da modernidade e ainda preservavam o estilo colonial rústico com seus telhados à mostra. Estas reentrâncias da memória se distinguiam através das múltiplas experiências que escondem seus habitantes da imagem. Por esta escolha do fotógrafo a Praça insurge solene e talvez até ‘vulgar em suas semelhanças’, como atentou o visitante desconhecido da nossa epígrafe. A imagem não 101 consegue recompor a recognoscibilidade das práticas atuantes do passado e como tal se apresenta incólume de contradições. Onde se situa a memória dos feirantes ou dos trabalhadores de ganho, para quem caminhou nos anos de 1940 pelas Praças da República e Barão do Rio Branco? A respeito desses desdobramentos essa memória tende a se perder nas arbitrariedades do poder municipal que conduziram novas seleções para a padronização do progresso atual. Para Marcel Roncayolo, tratando sobre a urbanização da cidade de Paris, analisa o modelo haussmanniano como inicialmente um espaço público. No espaço planejado pelo Prefeito Haussmann, ‘tudo se ordena em torno da rua, do boulevard, das praças, a partir do desenho desses. Em uma economia liberal em plena expansão, é inicialmente o lugar privilegiado da intervenção pública, do interesse público.’109 Essa experiência é exportável para outros projetos urbanos que objetiva a constituir cenários urbanos nas áreas centrais das cidades de forma a adequar um padrão urbanístico consagrado no ideário do espaço público disciplinador e homogeneizador das condutas sociais. As atuações referendadas pelo poder municipal nas intervenções do espaço público, no entanto, não se realizou sem conflitos. A Igreja como proprietária de grande parte das terras da cidade tinha o poder de “aforar” terrenos para construções, esta conduta sofreu uma intervenção legal, através da portaria nº 141 de 23 de setembro de 1941, tendo em vista “a perfeita execução do Plano de arruamento aprovado pelo Departamento das Municipalidades” que resolve anular, qualquer ato de aforamento feito pela Igreja Matriz desta cidade quando se verificar vir o mesmo de encontro ao estabelecido pelo plano de arruamento aprovado pelo Departamento das Municipalidades, podendo, neste caso, o Prefeito embargar ou proibir qualquer construção ou movimento nocivo ao plano cadastral da cidade, sem nenhum ônus para a Prefeitura ou direito de indenização por parte dos foreiros ou aforadores. Qualquer requerimento de aforamento no perímetro urbano, deverá ser enviado pela Igreja Matriz, proprietária dos terrenos, á Prefeitura, que o apreciará e mandará fazer da respectiva locação, dentro do plano estabelecido.110 A forma desordenada de ocupação territorial e de utilização dos edifícios públicos por favorecimentos a determinados grupos da elite local foram aos poucos dando lugar a um projeto maior – que era remodelar e civilizar a cidade, e esse projeto apesar de colocar em 109 RONCAYOLO, Marcel. Mutações do espaço urbano: a nova estrutura da Paris haussmanniana. In: Projeto História, nº 18. São Paulo: Educ, 1999. p. 91-96. 110 Livro de atos e decretos da Prefeitura de Conquista. 18.2.40.1. Arquivo Municipal de Vitória da Conquista. 102 xeque o poder da Igreja Católica mostrava por outro lado que, esta tinha todo interesse em atuar conforme as determinações deste projeto de progresso para a cidade. Figura 16 - Igreja Matriz Nossa Senhora da Vitória, anos 20 (acervo do MRVC) Retornando aos anos de 1930 vimos que a atuação da Igreja competia em decidir pela demolição do primeiro templo da Igreja Matriz construída pelo colonizador no início do século XIX. O edifício que guardava o templo dos católicos da cidade de Conquista circunscrito à Praça ‘estava velho’, em péssimo estado de conservação e em vias de desabar atestando um perigo para a população. Nenhum grupo locado no poder queria assumir a demolição do edifício, dado o significado do prédio diante da religiosidade, que ‘por mais de um século serviu a Nossa Senhora da Vitória’. A esse respeito o Jornal Avante publicou na coluna Factos e Notícias de 01 de agosto de 1931: Está em começo de demolição a igreja velha. Depois de meticulosas vistorias de competentes engenheiros, e diante do respectivo laudo attestando a ameaça do seu desmoronamento, em vista das suas paredes fora do nível, o velho templo foi condenado ao desaparecimento. E a obra começou ferindo profundamente o coração do povo acostumado a um velho templo, o símbolo glorioso do seu passado e da fé viva dos ousados donatários das terras da Victoria. Com o desaparecimento da velha 103 igreja, desaparecerá o marco grandioso das nossas mais bellas tradições. Mais, o perigo estava emminente, e o desmoronamento inesperado do velho templo, traria inevitavelmente, grandes perigos e maiores prejuízos. Quase todas as paredes estavam fora do nível, afirmava o laudo dos peritos nomeados, e, por isso urgia quanto antes providências para a demolição do templo, a fim de aproveitar alguma coisa, algum material...111 (sic.) O periódico assinalava os motivos para justificar a demolição do prédio, mas apontava uma preocupação em afirmar as ‘meticulosas’ vistorias feitas por profissionais competentes e, portanto, isentando qualquer dúvida a respeito da necessidade urgente em demolir o templo cristão. Então os engenheiros atestaram a demolição do templo numa decisão referendada conforme as propriedades de um conhecimento científico atribuindo significados que legitimasse tal decisão dos segmentos dominantes da cidade sobre a demolição de um ‘símbolo glorioso de fé viva’. Esse trabalho acabou ficando a cargo dos presos da cadeia pública que no mesmo ano, 1931, puseram abaixo todo o prédio. Em 1932 teve início a construção da Matriz, localizada na mesma praça, mas, num local mais acima, acompanhando o alinhamento das casas. Em 16 de maio de 1938 é colocada a cruz de cimento no alto da torre da Igreja e no dia 31, do mesmo mês, é inaugurada a nova Matriz. A imagem da Igreja Matriz agora registrada na fotografia traz nos meandros da memória, aquilo que existia e não deveria ser esquecido. Esta fotografia provavelmente feita por Manoel Eufrázio – o Neca Correia, mas uma vez consolidava a cidade. A Igreja Matriz foi o foco, o enquadramento sobre um pedaço do real (memória), que olhando agora, no presente, confunde-se com o próprio passado. O que está neste enquadramento ficou concebido como uma lembrança, sempre levada em conta. O fotógrafo na sua intencionalidade recompõe o templo católico para sempre nas lembranças dos habitantes da cidade. Ele fotografava para a posteridade? Não se sabe. No entanto, o templo não mais desaparecerá. Pois, como reflete Jean-Claude Lemagny, sobre os fotógrafos de temas urbanos: Ninguém saberia decidir, mas é forçoso constatar que quando o fotógrafo contemporâneo toma a cidade é, frequentemente, para se enternecer sobre o que tende a nela desaparecer, ou para denunciar seus aspectos mais desumanos.112 111 FACTO E NOTÍCIAS: Jornal Avante, 01 de agosto de 1931. LEMAGNY, Jean-Claude. Metamorfoses dos olhares fotográficos sobre a cidade. In: Projeto história. Nº18, São Paulo: Educ, 1999, p. 115-120. 112 104 Essa contemporaneidade das décadas de 1920 a 1940 na cidade de Conquista foi marcada por intensas transformações nesse espaço circunscrito a Rua Grande por sofrer ações mais efetivas do poder público. Percebemos também, que apesar, desse espaço ter sido o centro condensador das atividades administrativas, comercial, recreativo, entre outras, esses fotógrafos da cidade de Conquista oportunizaram construções visuais que, mesmo carregadas de uma tendência homogeneizadora, alheia as dimensões sociais, essa produção conduz a problematizações fundamentais para construção da história. 105 CAPÍTULO III – JORNALISTAS E MEMORIALISTAS: CONSTRUTORES DE UMA MIMESE DE PROGRESSO PARA A CIDADE DE CONQUISTA A publicação do jornal impresso foi um elemento integrante da cidade de Conquista no início do século XX. No alvorecer dos anos de 1920 a cidade já contava com a existência de três jornais: A Conquista (1910–1916), O Conquistense (1916–1920) e a Palavra (1917– 1920). Significativamente, foram veículos que, utilizados pelos detentores do poder local, fizeram circular notícias fomentadas nas práticas de disputas políticas travadas por indivíduos ou grupos interessados na manutenção do poder diante da municipalidade.113 Essa atuação da imprensa continua a prosperar e durante o período do recorte deste estudo, que compreende os anos de 1920 a 1945, a cidade de Conquista conta com a existência de cinco importantes jornais, que serão relevantes para a viabilização da leitura de imagens sobre a cidade. Desta forma, destacamos o jornal, A semana (1920-1930), A Vanguarda (1926), Avante (1931-1933), A Conquista (1944) e o Combate (1929-1964). Estes jornais surgidos na perspectiva da notícia, enquanto um produto de divulgação e mercado traziam matérias variadas, que iam desde editais públicos até propagandas comerciais, divulgação de eventos sociais, política local, regional, nacional e, por vezes internacional. A imprensa não ficava alheia à cidade: palco das transformações que girava em torno das atividades do comércio, da política, nas lides da administração pública, nos meandros da urbanização e, fundamentalmente nas disputas pela manutenção do poder local. Partindo do entendimento de que as fontes recolhidas nos jornais e pelos escritos de memorialistas possuíam mecanismos próprios de produção e de interpretação , buscamos para a construção deste capítulo esses sujeitos que escreviam sobre a cidade de Conquista. Desta forma, indagamos sobre qual a cidade que estava sendo construída por esses sujeitos no entrelaçamento entre os diretores-proprietários desses jornais e os intelectuais que se responsabilizavam por engendrar uma construção de memória. Como então, estabelecer diferenças, posições e contraposições entre essa narrativa memorialística e a narrativa histórica? E, fundamentalmente, como fazer emergir a história desse espaço produzido pelos 113 A Palavra defendia os interesses políticos do Cel. José Fernandes de Oliveira Gugé, integrante do Partido Republicano Democrata da Bahia, este jornal publicou artigos polêmicos do escritor e poeta Manoel Fernandes de Oliveira, O Maneca Grosso, sobrinho do Cel Gugé. O Conquistense, segundo historiadores e memorialistas locais era um jornal político, que sustentava fortes polêmicas com o jornal A Palavra. 106 novos ditames do progresso e da civilidade que se pretendia construir nessa nova cidade a partir de um discurso memorialista? No decorrer dos anos de 1920 a 1945, demarcação temporal para esse estudo, a cidade de Conquista, contou com uma forte inserção da imprensa escrita. Essa perspectiva da notícia foi incorporada por diversos grupos que estavam no poder e congratulavam-se nas metas de construir uma dinâmica de progresso, civilidade e modernidade para esta cidade.114 O arcabouço dessa dinâmica era constituído por uma intensa relação dos chefes locais com os intelectuais, que ordenavam as características do modelo de cidade, imprimindo um desenho, cujas linhas conduziam às novidades exigidas por uma nova modernidade. A cidade ‘sonolenta’ e ‘apática’, necessitava acordar para o progresso, que chegava a passos lentos, nas brenhas do interior da Bahia, conforme atualizamos na matéria do Jornal Avante: Conquista, pouco a pouco vae se urbanizando em moldes mais modernos. O anachronismo pouco a pouco também vae se finando, e o espírito do nosso povo também vae se elevando de dia para dia, e se apurando no cadinho do bom gosto e da esthética, dahi este sopro feliz de reconstruções e construções novas que se verifica constantemente na nossa terra. Os velhos prédios estão sendo desmoronados, e casinhas mimosas, modernisadas, estão sendo construídas em todas ás ruas da antiga Villa Imperial da Victória. É o povo mesmo, de vontade e gosto, que assim faz, que assim quer, mau grado, talvez, o desamor da fiscalisação pública que ainda consente certos defeitos existentes nas nossas antigas construções, por falta de uma medida rigorosa e possível. Num período curtíssimo, como exemplo, podemos citar nesta cidade várias reconstruções e construções novas que muito embellezaram as artérias onde foram construídas. Na Travessa Lima Guerra, vemos os prédios reformados pelos coronéis Paulino Fonseca e Manoel Caetano dos Santos; na Rua 24 de Outubro, vemos a construção do Sr. Geminiano Vianna, na Rua Dr. João Pessoa, dois lindos prédios estão sendo construídos pelos Srs. Coriolano Nunes e Demócrito Faria, e assim por diante, em quasi todas as ruas da nossa cidade. ( sic)115 A matéria, provavelmente escrita pelo Diretor do Jornal Avante, o jornalista Bruno Bacelar, dá a perceber que não existe ainda uma política de urbanização para a cidade. Como fica claro no texto, ele não esconde sua indignação quanto ao desserviço do poder público, que ‘consente certos defeitos nas nossas antigas construções’. No entanto, suas críticas não revelam a defesa de um projeto de urbanização para a cidade, ao contrário elas contemplam e distinguem as construções dos coronéis e dos senhores abastados que se empenharam em 114 Ver anexo: Relação de jornais surgidos na Cidade de Conquista no período estudado, produzida pelas fontes referentes ao registro de memorialistas e historiadores locais. 115 CIDADE NOVA. Jornal Avante! , coluna Fatos e Notícias, 2 de junho de 1931, p.2. 107 construir uma nova visibilidade própria na cidade que crescia investindo no potencial para ‘embelezar as artérias’, ou seja, ligar sua imagem a pulsação de um corpo belo e forte que deveria se afastar do ‘anacronismo’ de um núcleo urbano que abrigava eventualmente moradores das fazendas e roças. Além disso, as práticas de intervenção nas grandes edificações vão se intensificar em um processo de valorização material e simbólica destacando o lugar do proprietário no espaço físico. Assim, percebe-se o adensamento das ruas 24 de Outubro, Dr. João Pessoa e Travessa Lima Guerra, ‘artérias’ da Praça 15 de Novembro e que se constituíam a parte principal do núcleo urbano do qual participavam múltiplos universos socioculturais em convivência. Acompanhando as matérias dos jornais sobre a cidade, observamos que os autores falam das necessidades de transformação para atender a ordem do progresso e, independente da facção política que estavam inseridos, surpreendemos vozes que defendem o movimento de constituição de uma cidade, na qual o novo deve suprimir o velho, os ricos devem angariar os melhores terrenos e os pobres serem afastados para várzeas e periferias. Esse movimento que delimita uma nova geografia social, imposta pela idéia de progresso, chega devagar, mas já carrega os contornos da desigualdade, e esta cidade não consegue escapar do forte apelo do mandonismo e do protecionismo, que impera sobre as transformações, ditadas ao toque dos interesses privados, reforçando um movimento de redefinição do espaço urbano. À medida que esses jornais fazem críticas aos serviços públicos prestados no processo de urbanização e usos do solo urbano, observa-se o surgimento de uma memória cuja narrativa surpreende pela urgência com que remontam os antagonismos entre os diversos setores da sociedade. A cidade como um corpo deve estar saudável para receber essa nova dinâmica, essa nova disciplinarização que viria a atender aos ditames da modernidade. De um lado encontramos uma camada da população que falava através dos jornais, clamando por melhorias para a cidade e para outras camadas o silêncio daqueles grupos cujas vozes eram secundarizadas nesses veículos de comunicação impressa. Diante desta perspectiva, consideramos a importância de indagar: Para quem, então, chegaria esse progresso? Quais grupos sociais seriam atendidos por essa modernização? As críticas incidiam sobre o poder local em forma de colunas cujos textos acessivelmente curtos e carregados de ironias ganhavam força e acertavam o alvo do levantamento de necessidades que abarcavam os espaços da cidade em que se desenvolvia na narrativa, conforme veiculada na coluna do Jornal A Semana, intitulada: Fala-se por ahi... 108 “(...) que a estiva do hygienico corrego na travessa do commercio, continua ameaçando as pernas de qualquer transeunte (...) (...) que só nas estradas de rodagem é que existem os taes matta burros, entretanto o governo municipal consente taes ameaças em uma cidade como Conquista, infelismente abandonada... (...) que os buracos existentes são innumeros dentre os quaes os da Praça 15 de Novembro entre o Sobrado do Cel. Justino Gusmão e o Bazar 17... (...) que os fifós vão gozar de bom preço, devido a falta de luz nesta cidade tão digna de melhor sorte...” (sic)116 H. Pito Partindo da análise das fontes vimos que a publicação da coluna “Fala-se por ahi,” fez parte da composição do Jornal ‘A Semana’, no período de 1923 a 1929, com artigos assinados pelo seu fundador que usava o pseudônimo de H. Pito. O Fundador do Jornal vai-se esconder atrás de um pseudônimo para denunciar os descaminhos da administração do chefe local que neste período estava representado pelo Coronel Paulino Santos (1926-1927). Por outro lado, na matéria do jornal Avante de 1931, percorremos no vicejar do progresso, um projeto de remodelação que mesmo com o ‘desamor da fiscalização pública’ já é citada as várias ‘construções e reconstruções’ na cidade. O Jornal ‘A Semana’ de circulação semanal foi fundado por Deoclides Pereira Novais e teve em seu primeiro Diretor, o Coronel Deraldo Mendes Ferraz, uma representação de apoio político ao coronel Justino da Silva Gusmão. Essa liderança fazia oposição à política situacionista das famílias, Santos e Fernandes, remanescentes da política do coronel Gugé, que no momento da existência desse jornal estava representado pelo Dr. Régis Pacheco. As informações e noticias que circularam nas crônicas de jornalistas e memorialistas, possibilitam visualizar a teia das relações da Cidade de Conquista articuladas pelas elites letradas e políticas que gravitavam em torno da composição coronelista, acrescida de outros grupos advindos de famílias das Terras do Sertão da Ressaca que compuseram durante várias décadas um poder endogâmico chefiando o poder local. Em seu estudo “Arreios, Currais e Porteiras – Uma Leitura da Vida Política em Conquista na Primeira República”, sobre a história local, Belarmino de Jesus Souza considera que o poder político do município de Conquista nesse período, 116 COLUNA FALA-SE POR AHI....: Jornal A Semana, Ano IV, nº 9, 20 de janeiro de 1927, p.2 109 tinha um nítido caráter oligárquico. Ter o controle do Colegiado Municipal da Imperial Vila da Vitória, ou ser Intendente, ou Conselheiro Municipal em Conquista (após a implantação do regime republicano), era ter o poder de colocar o público a serviço dos interesses privados das parentelas. As disputas políticas entre facções, já no período republicano, representavam interesses e vaidades individuais, na busca pelo controle da municipalidade e das possibilidades oriundas de vínculos com os grupos hegemônicos na política estadual. 117 Tomando por base essa análise para a compreensão da leitura dos jornais e sua inserção na construção de imagens para a cidade de Conquista percebemos que a utilização dos jornais como porta vozes dos diversos interesses já vinham auto-intitulados e anunciavase como exemplares. Em seus cabeçalhos apresentavam-se como: ‘Orgão Defensor do Povo, e de Todos os Interesses Sertanejos’, cotejado pelo jornal Avante; ‘Direito e Justiça Sobre Tudo’ – órgão independente e de publicação bi mensal – Jornal A Vanguarda; Jornal Independente e Noticioso – O Combate; Órgão Político e Noticioso – A Semana; e, cabalmente, o Jornal A Conquista, de propriedade e direção do Padre Palmeira, denominavase ‘Tribuna Democrática e Púlpito Cristão – Eis a Conquista.’ Essa tentativa de classificação vai anunciando a necessidade de situar esses órgãos noticiosos na sociedade conquistense. Seja pelo título, seja pela auto-intitulação, e a produção de notícias, os jornais da cidade de Conquista possuíam um forte apelo político submetido a interesses particularizados nas práticas dominantes dos chefes locais, a maioria proprietários desses jornais que, no entanto, ao se oporem redimensionavam a notícia e polemizavam situações que retratavam configurações e deixavam aparecer embates e disputas sobre a vida dos habitantes da cidade. Apesar da problemática deste estudo, não tratar, de forma específica, sobre as relações de poder estabelecidas pelos coronéis, é importante compreender e descortinar os contextos nos quais foram organizados os espaços dessa cidade, procurando desvendar as relações constituídas pelos diferentes grupos políticos – chefes locais, em suas atuações e interesses em angariar forças para manutenção do poder diante de outros grupos que compõem a municipalidade de Vitória da Conquista. Esse enfoque ganha maior importância ao se identificar que neste período os referidos coronéis eram os proprietários da maioria dos jornais que circularam na cidade e os utilizavam para construir visibilidades políticas que os asseguravam na manutenção no poder. 117 SOUZA, Belarmino de Jesus. Arreios, Currais e Porteiras – Uma Leitura da Vida Política em Conquista na Primeira República. Dissertação. São Paulo: PUC-SP, 1990, p. 91-92. 110 Diretores, redatores, colaboradores e integrantes da composição desses jornais, são sujeitos sociais que situamos no âmbito de uma vivência urbana, cujo conhecimento vem refletido no contexto de uma cidade situada no interior da Bahia, onde a distância da capital configurava os elementos materiais da transformação urbana em um percurso limitado pela ausência de estradas, transportes e comunicação. Procuramos demonstrar, no entanto, que apesar das dificuldades impostas pela ausência de tecnologias que encurtasse as distâncias em relação aos grandes centros e aos vetores de desenvolvimento mais extensos é interessante relativizar essa condição de isolamento do Sertão da Bahia corroborada por uma historiografia que atribui a uma realidade nacional, interpretada como homogênea do Centro Sul e dos grandes centros urbanos como únicos produtores da história nacional. Voltando o olhar sobre as especificidades da organização dos espaços urbanos em Conquista consideramos os vetores de desenvolvimento direcionados por articulações que eram engendradas por esses proprietários, jornalistas e escritores, que encontravam nos aparatos disponíveis, a possibilidade de trazer para a cidade de Conquista os beneficiamentos e melhoramentos que eram transitados na esteira do progresso, relativo às invenções tecnológicas. Segundo notícias dos jornais, em 1926 foi inaugurado o telégrafo, numa iniciativa particular do Intendente - Coronel Paulino Santos. Esse acontecimento mereceu destaque especial do Jornal ‘A Vanguarda’, e, uma leitura atenta permitia visualizar de forma ampliada a necessidade de adquirir tecnologias para encurtar as distâncias e promover as trocas de conhecimento necessárias para recepcionar o progresso. Conforme podemos acompanhar na matéria intitulada, UMA GRANDE ASPIRAÇÃO DO POVO QUE SE REALIZA, como se apresenta a seguir: De duas dezenas de annos a esta parte vínhamos solicitando dos altos poderes públicos a installação de uma estação telegraphica nesta cidade, melhoramento este de que muito necessitávamos. Longe, como vivemos, dos centros adiantados, o telegrafo seria, para nós de grandes vantagens, de grandes proveitos, porem já estavamos quasi convictos que o governo debalde se lembraria de nós, quando uma nova alviçareira veio por freio em nosso pessimismo: o Ministerio da Viação mandara atacar o serviço de Fortaleza a esta cidade. De fato o serviço, sob a competente direção do illustre engenheiro Agenor Miranda, foi iniciado em meiado do anno atrazado e concluído, até esta cidade, no dia 5 deste, quando foi inaugurada a estação. (sic) 118 118 UMA GRANDE aspiração do povo que se realiza: Jornal A Vanguarda, 21 de dezembro de 1926, p.2 111 O título desta matéria contempla uma reivindicação feita por representantes do poder local há mais de duas décadas e que foi atendida no ano de 1926 ao capitanear junto ao governo federal e estadual a necessidade de um telégrafo para a cidade. Esse elemento de progresso viria atender a uma ‘aspiração do povo’ já quase esquecida, isto é, durante este período, esses sujeitos continuaram buscando diminuir essas distâncias através das suas atuações. Conferimos que, através dessa busca por elementos definidores dos anseios de progresso a sociedade aparecia com seus nomes e mostravam os grupos que faziam emergir o progresso para a cidade de Conquista. Esta matéria revela a mentalidade do seu diretor e deixa ver o ‘povo’ que se realizaria neste projeto de modernidade. Assim, ao inferir no texto do jornalista uma preocupação com a coletividade, buscamos ver a quem foi dado recepcionar esse projeto. Incluímos então, a matéria da festa de inauguração da estação telegráfica, publicada pelo mesmo jornal, para descortinarmos a presença do ‘povo’ que participou de tal evento. A festa da inauguração da estação telegraphica foi iniciada pela manha do dia 5 com missa celebrada na matriz pelo Revmo. Pe. João Ramos Marinho após a qual o povo desceu da matriz, acompanhado pela philarmônica “Santa Cecília” até o prédio em que está localizada a estação, à Rua “2 de Julho”. Ahi chegando o Pe. Marinho benzeu o apparelho fazendo após uma saudação dos engenheiros: Agenor Miranda e Luiz Weeis. Seguiram-se outros oradores: - o distinto viajante Snr. Joaquim Hortélio, em nome da classe caxeiral da Bahia; o Snr. João Lopes, em nome do commercio d’esta cidade; Snr. Newton Lima, em nome da Companhia Rodoviária Conquistense; o Dr. Pamphilo Luiz de Souza, integro Juiz de Direito da Comarca e Cel. Paulino Santos, Intendente Municipal, não tendo havido, porém, orador oficial. (grifo meu) Em agradecimento ás Saudações que lhes foram feitas e do seu companheiro Eng. Luiz Weeis, construtores da linha telegraphica, o Dr. Agenor Miranda pronunciou um bello discurso se externando sobre a história do telegrapho nacional e concluiu declarando inaugurada a nossa estação. Serviu-se champagne? e bebidas outras aos assistentes.119 (sic.) Nessa matéria, o Jornal a Vanguarda cumprimenta com os ‘efusivos votos’ e parabeniza a cidade de Conquista que hoje desperta de sua “profunda lethargia”, e parece ‘encetar uma nova mareba accelerada pelas conquistas incessantes dos verdes loiros do progresso’. 120 (sic) O Jornal A Vanguarda de propriedade do escritor e poeta Yolando Fonseca, que intitulava-se como órgão independente e de publicação bimensal promovia uma campanha aberta em nome do progresso e da modernidade para a cidade de Conquista. Este 119 120 Jornal A Vanguarda, de 21 de dezembro de 1926. Jornal A Vanguarda, de 30 de dezembro de 1926. 112 diretor-proprietário do jornal A Vanguarda possuía relações estreitas com os comerciantes e profissionais liberais da cidade e para eles eram cedidos os espaços do jornal. A matéria sobre a inauguração da estação telegráfica faz emergir as relações sociais da cidade de Conquista. No contraponto da notícia encontramos a presença da Igreja cumprindo a função de ‘benzer’ e ‘celebrar’, isto é, de referendar, mas também, participar desse equipamento que viria a atender aos seus interesses de mobilizadora e mantenedora do poder eclesiástico para com a comunidade de fiéis; descia também pela Rua Grande até à Rua 2 de julho, a Filarmônica Santa Cecília, fundada pelo Dr. Nicanor José Ferreira, e através da relação de nomes e suas representações grifadas na matéria, podemos verificar a presença daqueles que realmente seriam atendidos pelo novo serviço inaugurado por essa imagem trazida pela matéria que lembra uma procissão de escolhidos, aos quais foram oferecido o champagne e outras bebidas no prédio que agora atenderia às possibilidades de comunicação. Simultaneamente à necessidade de trafegar e transportar culminou na criação de uma sociedade de particulares. A ‘Empreza Rodoviária Conquistense’, que no ano de 1927 construiu a primeira estrada desta região, com o percurso de Conquista à cidade de Jequié121, completando mais um avanço, ‘numa perfeita comprehenção do futuro ridente de Conquista122’. Segundo Israel Orrico no livro, Mulheres que fizeram história em Conquista relata que: Conquista não tinha estradas carroçáveis. Era servida apenas por velhas estradas coloniais ou picadas indígenas por onde passavam as tropas ou as boiadas. Por isso, um grupo de homens de recursos financeiros se uniu e fundou a Companhia Rodoviária Conquistense, que possuía dez sócios: Maximiliano Fernandes, Zeferino Correia, Galdêncio, Marcelino Aguiar, Antônio Fernandes, Cassiano Santos e outros. E nesse mesmo ano a Companhia construiu a estrada de Conquista a Jequié. Os jornais que publicaram o fato são unânimes quanto à produção de matérias nas quais a ‘Empreza’ é construída em prol do progresso, independente dos desejos de lucros de seus proprietários. O Jornal ‘A Semana’, cobre uma matéria que aponta o futuro de Conquista a ‘alguns espíritos atilados, movidos mais pelo elogiável interesse pela prosperidade desta terra de que por esse natural desejo de lucros compensadores que faz os homens meterem-se em aventurosas emprezas’ (grifo meu) 123. Embora longe da possibilidade desses construtores da estrada abrirem mão dos lucros, vimos isso através da cobrança de pedágios, o Jornal A Semana, vinculado à facção política 121 Segundo Orrico, a estrada Conquista/Jequié tinha oito metros de largura, cento e sessenta e dois quilômetros de extensão aproximadamente e muitos pontilhões e mata-burros. Correntes assinalavam os postos de pedágio assim distribuídos: Conquista – Poções – Boa Nova – Curral Novo. 122 Jornal A Semana, 9 de fevereiro de 1927. 123 Jornal A Semana, 9 de fevereiro de 1927 113 do Coronel Justino da Silva Gusmão, através dos seus redatores escreve do lugar da imprensa que faz voz contrária ao atual governo do Coronel Paulino Santos (1927-1927). Percebemos aqui, um campo de forças, onde as tensões se posicionam entre aqueles que ‘por amor à cidade’ constrõem uma ‘empreza’ em detrimento das atuações do poder local, que atilado de uma inércia deixava de construir os ensejos do progresso para essa cidade. Da mesma forma, encontramos no Jornal A Vanguarda a publicação de um editorial intitulado: ABRAMOS CAMINHO PARA O PROGRESSO, onde reforça a relação de autorepresentação – de como essa cidade deve se ver, no entanto, submetida a uma visão que detém e articula um saber dominante, corroborando as relações de poder: Edital: (...) Abramos caminho! O brado unisono que repercute por todos os rincões do Brasil, e repetido de quebrada em quebrada, de montanha em montanha qual se fora um grito de guerra. (...) A “Empreza Rodoviária Conquistense” é, por todos os motivos, bem digna do apreço dos filhos do pedaço do sertão bahiano a que ella vae beneficiar. Sem nutrir pretensões a grandes lucros a “Empreza” quer apenas trazer-nos o progresso, abrindo-lhe caminho, franqueando-lhe passagem até nós. Em breve as legoas interminaveis que nos separam do ponto terminal da Estrada de Ferro Nazareth estarão reduzidas a algumas horas de viagem cômoda e barata, o que quer dizer que iremos, dentro de alguns mezes a mais, assistir em nossa terra, o fluxo e refluxo de elementos novos, capazes de produzir e de nos ensinar a produzir também. 124 (sic.) (grifos meus) Os respectivos jornais insistem em reforçar uma defesa envergonhada do lucro para justificar a empresa. Talvez diante da magnitude e da novidade do empreendimento os jornais despontam como veículos dispostos a preparar o espírito do leitor para a nova experiência. A estrada antes inexistente agora com a materialização da ‘Empresa Rodoviária Conquistense’ participaria da vida pública, com o “fluxo e refluxo de elementos novos”, proporcionando viabilidades de ir e vir no encontro com as expectativas de aproximação com a capital do estado, transformando definitivamente as experiências cotidianas. A partir dessa perspectiva apresentada pela notícia veiculada pelo jornal, ouvimos o eco do progresso chegar à cidade de Conquista. Ainda na abordagem da matéria percebemos uma recorrência atribuída à reprodução de uma realidade que almeja o encurtamento do isolamento, da letargia e se põe nos trilhos do desenvolvimento e do progresso. Não é difícil perceber nas categorias estabelecidas por “A Vanguarda” esse eco daquela mística desenvolvimentista da década de 20, com o recrudescimento do ideário republicano 124 EDITAL: Jornal A Vanguarda, de 15 de abril de 1927 114 caracterizado no forte federalismo onde as regiões procuravam se fortalecer para concorrer aos beneficiamentos do governo estadual e federal. Uma cidade deveria se preparar para o progresso, pois só assim estaria pronta para se diferenciar do restante, isto é, das outras cidades que não se desenvolviam nos passos desse progresso. O Jornal ‘A Semana’ no ano de 1927, publicou diversos artigos do intelectual e poeta conquistense, Laudionor de Andrade Brasil. Este escritor foi colaborador deste jornal, publicando uma série de artigos que segundo ele: ‘E’ isto, agora, o que, exclusivamente por amor á Conquista, tão digna de melhor sorte, eu pretendo fazer na série de artigos que tenciono ir publicando, com o título geral VERDADES AMARGAS e subtítulos diversos.”(sic) Nesses artigos ele faz críticas acirradas aos desmandos do governo municipal, trazendo várias questões de ordenamento da cidade, como a necessidade de uma planta cadastral, a construção de um mercado público, a idéia de remodelação da ‘urbs’, etc. No Jornal A Semana de 15 de março de 1927, ele escreve com o subtítulo: POR QUE NÃO FALAR? no qual, faz uma crítica ao governo do Intendente Paulino Santos, sobre a ausência de prosperidade para Conquista em relação à outras cidades da Bahia, que segundo ele, se desenvolvem a ‘olhos vistos’: (...) a Conquista é que perdeu muito, é apenas uma expectadora do progresso alheio. Enquanto as suas irmãs prosperam a olhos vistos, ella contempla Ilheos, Itabuna, Feira de Santana e uma porção de outras cidades bahianas se elevam, se engrandecem, progridem... e ella contempla. Contempla e espera. Espera o que? Espera porque? Espera por quem? A ultima pergunta achamos esta resposta: - Por alguém que, comprehendendo lhe a grandiosidade do futuro, a frente do seu governo, cumpra o seu dever e, assim, a arranque desta estagnação que a estiola e mata. (sic.) Estes artigos de Laudionor Brasil parece ser um meio de retratar esse período, cheio de angústias e desacertos. Ele o faz de uma formar a revelar as relações com outras cidades do mesmo porte que estavam em processo de crescimento e, no caso, utilizava a fórmula de alcançar o leitor através da provocação. Neste sentido, a cidade surge como um sujeito que está abandonado e, por outro lado, suas irmãs estão progredindo e avançando em direção ao progresso. A cidade de Conquista, portanto, é posta na direção do desenvolvimento comparada com outras cidades do estado, que segundo o jornalista cresciam e se desenvolviam ‘a olhos 115 vistos’. A cidade é desta forma, para Laudionor Brasil, um lugar da urbanidade e do progresso. Buscando referências para a contextualização da cidade de Conquista frente a outras cidades ‘irmãs’ do estado, encontramos no estudo do geógrafo Milton Santos para a compreensão da urbanização da sociedade brasileira tomando como referência as capitais do país, ele considera que: (...) O caso de Salvador, cuja população praticamente não cresce entre 1920 e 1940, deve-se à abertura de uma frente pioneira interna, com o desenvolvimento e a conquista da zona do cacau, que atrai grande número de pessoas deslocadas pelas secas e por uma estrutura agrária extremamente inigualitária, deixando, por conseguinte, de engrossar as correntes do êxodo rural para a capital baiana.125 Para este estudo ele apresenta uma tabela das ‘Capitais de Estados Escolhidas: Evolução Demográfica 1872 – 1940, na qual a cidade de Salvador conhecia um crescimento relativamente lento com uma população em 1920 de 283 422 mil habitantes e apenas 290 443 mil habitantes em 1940. Ele afirma ainda que, O Brasil foi, durante muitos séculos, um grande arquipélago, formado por subespaços que evoluíam segundo lógicas próprias, ditadas em grande parte por suas relações com o mundo exterior. Havia, sem dúvida, para cada um desses subespaços, pólos dinâmicos internos. Estes, porém, tinham entre si escassa relação, não sendo interdependentes. 126 As dificuldades ocasionadas pelas condições geográficas e seus equipamentos associativos conferem uma contraposição aos suportes que faziam transitar o conhecimento e as novidades produzidas nos aportes educacionais e informativos vindos, por exemplo, da capital do estado, contribuindo para a formação de uma cultura letrada e profissional de uma camada abastada da população da cidade de Conquista. A história da imprensa na cidade faz ver que, desde os primeiros anos do século XX, Conquista já contava com equipamentos, que mesmo de forma incipiente, já fomentava um mecanismo de circulação de idéias. Tal pressuposto é corroborado pelo memorialista Aníbal Lopes Viana que em sua produção literária relatou a participação da imprensa na cidade de Conquista. 125 126 SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira, Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Santos, op. cit., p.29 116 Aníbal Lopes Viana, natural de Condeúba-Bahia, cidade que faz parte da região do Planalto da Conquista, mudou-se com a família para a cidade de Conquista aos 12 anos, quando o seu pai aqui fundou uma escola. Viveu e trabalhou nesta cidade, quando em 1958 fundou e dirigiu o periódico denominado: “O Jornal”, semanário inaugurado no dia 15 de agosto, dia da Padroeira da Cidade, e publicou seu último número em 13 de maio de 1988, numa edição histórica sobre o centenário da emancipação dos escravos no Brasil. O Jornalista publicou no ano de 1982, a Revista Histórica de Conquista, ampliada, posteriormente, com um segundo volume. Nesta obra, o autor reuniu diversos relatos sobre o cotidiano, as transformações urbanas, os acontecimentos políticos, cívicos, culturais e sociais, e discorre sobre homens e mulheres “notáveis”, construindo um enredo da memória desta cidade Nos relatos de Viana127, sobre a Imprensa em Vitória da Conquista, e a fundação do primeiro jornal da cidade, encontramos as seguintes informações: A idéia da fundação de um jornal nesta cidade, impresso em máquina, cresceu e frutificou tornando-se realidade graças a clarividência dos audaciosos vultos que passaram para a nossa história: Drs. Bráulio de Assis Cordeiro Borges e José Desouza Dantas (assinava “DESOUZA”), ambos bacharéis em Direito e de comprovada cultura, que instalaram a “Tipografia Minerva” situada na Rua Município de São Vicente, e enfrentaram as maiores dificuldades da época, transpondo todas as barreiras encontradas na obstinada luta e imprimiram o primeiro jornal que circulou nesta querida Terra no memorável dia 14 de maio de 1910, que em homenagem à cidade, recebeu o nome de “A Conquista”. Desta forma, destacamos as relações procedentes de um veículo que de forma incipiente, correspondia aos anseios de progresso, que se davam nas trocas intelectuais. O primeiro jornal impresso da cidade de Conquista, fundado em 1910 para fazer frente a uma facção política, representada por uma dessas tantas parentelas que vociferavam em prol do domínio público.128 A maioria dos jornais impressos na cidade de Conquista ecoava as vozes de domínio das camadas da população que tinha os seus interesses atendidos pelas viabilidades fomentadas na tecnologia ao alcance de uma mentalidade que já antevia a importância da notícia para fundamentar suas crenças, valores e determinações frente a uma população. 127 VIANA, Aníbal Lopes. Revista Histórica de Conquista (dois volumes). Gráfica do Jornal de Conquista, Vitória da Conquista – Bahia, p. 727. 128 Segundo historiadores e memorialistas locais, o primeiro jornal impresso que circulou em Conquista, saiu das instalações da Tipografia Minerva no dia 14 de maio de 1910. Segundo esses estudiosos, O jornal “A Conquista”, da sua fundação até novembro de 1916 – último ano de circulação, foi um semanário independente, cujos redatores Euclides de Souza Dantas e Manoel Dantas Barbosa, filho de Ernesto Dantas Barbosa escreviam como porta-vozes do poder local, chefiado pelo então, Cel. José Fernandes de Oliveira Gugé. 117 Acompanhando esses jornais existentes nos arquivos da cidade de Vitória da Conquista, percebemos nitidamente a ausência da fala dos homens afastados dos ciclos de poder e da elite dominante, da gente da cidade, que em sua maioria, também participava da construção do ‘progresso’, através dos seus serviços, resistências e cooperações. Ainda nas memórias de Aníbal Viana, encontramos relatos sobre outros jornais produzidos na cidade: O jornal “A Semana” foi em Conquista, órgão de imprensa, política e noticioso e bastante independente e dava cobertura política, na época, ao Sr. Justino da Silva Gusmão129. [...] Este hebdomedário circulou pela primeira vez em Conquista no dia 22 de junho de 1923. [...] O primeiro redator [...] de “A Semana”, foi Adalberto da Silva Portelada, bravo jornalista trazido de Salvador por Demósthenes Alves da Rocha (Demósthenes foi fundador do jornal “A Palavra que circulou nesta cidade de 1917 a 1920). Deoclides Novais tinha o pseudônimo de H. Pito. Laudionor Brasil, Newton Lima, Bruno Bacelar, Euclides Dantas, foram luminares de “A Semana” como colaboradores. Este semanário sustentou fortes polêmicas com o outro Jornal de nome “A Notícia” que dava cobertura política a facção dominante. Circulou até novembro de 1930.130 (sic.) Esses “luminares” apresentados por Viana foram na história da Imprensa da Cidade de Conquista, responsáveis pela fundação de outros jornais que atuaram no período de 1920 a 1940, a exemplo do Jornal “O Combate”, fundado em 1929 pelo poeta e escritor Laudionor de Andrade Brasil, que postulava no cabeçalho de “O Combate” porta-voz do liberalismo, defendia a manutenção do poder local liderado pelo Cel. da Guarda Nacional Deraldo Mendes Ferraz. Entre os intelectuais que compunham o “corpo” editorial do jornal destacavam-se, além do seu fundador, Euclides Dantas, Camillo de Jesus Lima, Padre Nestor Passos e Erathóstenes Menezes 131. Este jornal encontrou a oposição do Avante! Que ainda segundo Viana, Foi um dos mais vibrantes jornais que circulou nesta cidade. Deixou de existir na sinistra noite de 3 de novembro de 1933, quando foi incendiado criminosamente. [...]. Naquele tempo de nossa história o seu fundador e diretor Bruno Bacelar, defendia a posição política (local) do Dr. Régis Pacheco, em oposição, ao interventor Juracy Magalhães. 132 129 O Cel. Justino da Silva Gusmão assumiu a Intendência da cidade de Conquista no período de 1924 e 1925. Este relato está registrado em folha datilografada e colada na contra capa em cartolina do caderno que integra a coleção de jornais reunidos pelo Jornalista Aníbal Viana com data de novembro de 1966. Recentemente essas encadernações foram doadas pela família do Jornalista ao acervo do Historiador Rui Medeyros. Fazem parte desta coleção os cadernos dos jornais: A Palavra, A Notícia, A Semana, Avante!, O Combate. 131 Escritores e intelectuais de Vitória da Conquista 132 Aníbal Viana, op. cit. p.473. 130 118 Bruno Bacelar nasceu na cidade de Conquista em 21 de dezembro de 1899. Cursou apenas a escola primária, no entanto, foi autodidata em diversas áreas, atuando como jornalista, historiador, escritor e poeta. Em 1929, juntamente com Laudionor Brasil editou o livro: De Lenço Vermelho, no qual fizeram uma homenagem ao ‘Cavalheiro da Esperança – Luis Carlos Prestes; ainda neste mesmo ano ingressaram no Partido Liberal Republicano Conquistense, onde Bacelar ocupa o cargo de 2º Secretário. A vida deste escritor estava entrelaçada às condições da vida política da cidade de Conquista. Com a deposição de Otávio Santos (1928 – 1930) do cargo de Intendente por designações locais advindas das decisões do golpe de 1930, Bruno Bacelar assumiu a intendência por alguns dias. Com o rumo tomado pelo golpe de 30 sobre o continuísmo com os grupos oligárquicos, Bacelar rompe com o partido e em maio de 1931 fundou o jornal Avante, em enfrentamento com a política intervencionista de Juracy Magalhães, que na cidade de Conquista integrou-se ao grupo político do Coronel Deraldo Mendes Ferraz. Em 1932, Bacelar é preso e levado para a capital do estado, onde permaneceu detido na Secretaria de Segurança Pública acusado de levantar forças na cidade de Conquista para lutar a favor da Revolução Constitucionalista. Livre das acusações volta a cidade de Conquista e logo depois exilou-se em Minas Gerais, retornando à cidade continuou a publicação do Avante, que não resistiu à ditadura e conforme o relato de Aníbal Viana, foi incendiado ‘na sinistra noite de 3 de novembro de 1933.’ Essa conjuntura repousava diante de uma população eminentemente rural, analfabeta e desvinculada das decisões políticas, a veiculação desses jornais eram recepcionadas pelas camadas privilegiadas da população, quanto ao acesso a uma educação formal e a saberes institucionalizados mas também, num movimento sub-reptício aqueles que liam a notícia poderiam vir a propagá-la. Afinal, mesmo diante das condições seculares de mando, o ideário e as práticas republicanas surgiam com necessidades de propaganda, quando se começava a perceber que a coerção não podia ser conduzida apenas pelo tacão dos chefes locais. Essas relações vão se dissipando e o veículo de propaganda cresce em detrimento da força. A forma de oitiva funcionou muito bem, nessas pequenas cidades, onde as esquinas, determinados pontos comerciais e calçadas serviam do ponto de encontro para a fofoca e o disse-me-disse. A partir do estudo de Julia O’Donnel sobre uma antropologia da urbanidade da cidade do Rio de Janeiro através do olhar etnográfico do cronista João do Rio, ela aponta essa condição da necessidade do homem em angariar cooperações através das conversas informais, contemplando o conceito de opinião pública: 119 Robert Park, com seu interesse sobre o ambiente urbano no início do século XX, não por acaso debruçou-se sobre o estudo da imprensa, num reconhecimento da relação simbiótica entre a cidade a as auto-representações que ela circula. (...) A esse espaço comunitário de circulação de idéias e registro auto-representativo, chamamos “opinião pública”, tão cara à abertura de portas às ruas, tal qual como queria o projeto republicano. Numa comparação com a vida nas vilas, nas quais esse espaço era dinamizado e produzido na fofoca, Park lembra o papel fundamental da “opinião pública” no estabelecimento de parâmetros que, em todos os tipos de comunidade, é essencial à manutenção da coesão grupal. Esses locais de produção da vida cotidiana numa análise de visão antropológica confirmam a necessidade de coesão de grupo, implantadas pelas novas referências dadas pela conjuntura de uma república que chegava trôpega, sem grandes rupturas a essas cidades, mas que conduziam uma nova visão que precisava ser exposta para o mundo “extra-elite”, que não poderia ser feito por meio de matérias inacessível a um público com baixo nível de educação formal. Ele teria de ser feito mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos e os mitos. 133 Visando atender as necessidades de divulgação da notícia entre os grupos analfabetos ou aqueles que não tinham acesso à leitura por outros motivos, os jornais produziam colunas que conduziam o fato de forma a atingir os leitores de oitiva no seu imaginário. Os títulos das colunas da maioria dos jornais pesquisados refletem essa necessidade de ‘chegar’ ao ouvido do povo, com os reclames: “Eis ahi...”, “Fatos e Notícias”, “Echos e Notícias”, “Comentários da Semana”, “Língua do Povo”. De alguma forma, a notícia que interessava ser veiculada, chegava aos ouvidos, inclusive como uma forma de propagar benfeitorias, posturas e leis concernentes à nova ordem. Como se percebe, na coluna “Língua do Povo”... do jornal “A Semana”: Dizia-se hontem, na esquina da pharmácia, que: (...) que foi um encanto a festa das creanças pobres, realizadas pelo Grêmio “Castro Alves” (...) que distinto negociante da nossa praça, em conversa com um membro do Grêmio, affirmara que na Festa das creanças pobres, no próximo anno, dará roupas precisas para cincoenta petizes... (...) que illustre fasendeiro do nosso município, commovido com o espetáculo visto na porta do Grêmio, garantiu uma dádiva de duzentos ou trezentos mil reis, para o referido fim do anno vindouro... 133 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas - O Imaginário da República no Brasil, Cia das Letras, São Paulo, 1990. 120 (...) que estas acções são dignas de ser imitadas pelo comércio e pelos capitalistas da nossa terra... 134 (sic) É inegável a importância da imprensa escrita nos primeiros anos da República na cidade de Conquista. No período conturbado dos anos 1920, havia uma emergência em atingir o público, como instrumento de articulação política, característica própria da república e das necessidades de regular as tensões e embates locais. Essa necessidade de construir um ideário já se fazia ecoar nas paragens do sertão, quanto à necessidade de incorporar novos mecanismos para a manutenção no poder. No plano concreto das realizações da primazia do público sobre o privado, ocorria neste espaço / tempo, disputas e tensões que fomentavam novos códigos na relação com o governo do estado, onde o forte federalismo impunha a necessidade de acordos para o fortalecimento político de ambos os lados. No processo que articula as lutas e tensões dos anos 1920 ao contexto dos anos 1930 o jornalista Bruno Bacelar ao fundar o jornal ‘Avante’ no ano de 1931, não deixa de reproduzir um modelo de jornal que se “faccionava” em um grupo de ‘ilustrados’, partícipes de uma elite letrada e possuidora do saber, que são elementos de poder. Porém, acompanhando outros jornais da época, vimos que este periódico contemporiza as relações sociais, e deixa aparecer alguns sujeitos invisibilizados por outros jornais citados. Este semanário ao delatar mesmo circunstancialmente, as mazelas, o abandono e o descaso, cria tensões e abre brechas, deixando aparecer os movimentos sub-reptícios da sociedade. A esse respeito, discutimos com este jornal, no sub-capítulo que trata dos sujeitos sociais que vivem dos serviços de ganho na cidade. Isto é, buscaremos ver as atuações desses sujeitos que se configuravam e se projetavam num ambiente de tensões e disputas representadas por uma camada da população que também traçava nos espaços, suas práticas cotidianas, nos seus movimentos, um desenho particular às aspirações de suas necessidades, trabalho e conviviabilidades. Desta forma, os grupos no poder ao fazerem suas solicitações que envolviam reformas urbanas, tributárias e sociais, entre outras, buscavam cada vez mais, angariar o apoio dos seus correligionários para suprimir e combater os opositores. Nesse sentido, o papel da imprensa foi fundamental, no momento que construiu a mimese, do que poderia ser o contorno dessa nova cidade que surgia, não em menor medida, mas aquela que vislumbrava um desenvolvimento. O que foi dado a crer pelas circulações das auto-imagens onde autores, 134 COLUNA LÍNGUA DO POVO: Jornal A Semana, 28 de dezembro de 1923. 121 texto e leitor participavam de uma produção de matérias alentadas no princípio da circulação, tanto direta ou de oitiva, sobrevivendo aos vazios da invisibilidade. 3.1 ESTRATÉGIAS DA MEMÓRIA E A INTERSEÇÃO DOS CONFLITOS: OS JORNAIS NO ORDENAMENTO DOS ESPAÇOS DA CIDADE Ao talento dos jovens luctadores Bruno Bacelar e Laudionor Brasil Não se compreende a vida sem a lucta, sem as campanhas, sem os revezes, sob todos os prismas e o jornalista, luctador impar, é o thermometro que mede, e até prevê, o calor das grandes campanhas, e das grandes crises por que passa o povo. (todo esse grifo é muito interessante para ser trabalhado, não pode deixar de dialogar com um suejeito que está lhe dando dicas preciosas¿ ) A sociedade culta, educada segundo o espírito de Zenon, sugeita, todavia a lei natural que domina todas as cousas, uma sociedade assim, porem sem o jornalista, è uma flor de papel de parafina, rica de perfeição, de collorido e sem perfume. Ao contrario d’aquelle que escreve para a imprensa, moralisando, ensinando, cauterisando as feridas virulentas do meio social, o jornalista tem o dever de combater com denodo, luctar com veemência, dizer com hombridade, sobre as pragas que campeiam, o vírus que corrompe, a grangrena que mata. 135(sic) Newton Lima Conquista, 25 de junho de 1926 Buscando uma inter-relação entre a escrita jornalística e a construção dos espaços construídos na cidade de Conquista, o registro do Jornal ‘A Semana’ citado na epígrafe anuncia uma discussão na qual o autor procura distingui-la de outras matérias ao referendar a figura do jornalista e a sua missão de esterilizar as feridas sociais. Para levar adiante a discussão deste capítulo sobre a necessidade de um ordenamento para a cidade perscrutamos essa voz que proporciona indicadores dos enfrentamentos e tensões de uma nova disciplinarização porque passa a cidade de Conquista no decorrer dos anos de 1920 a 1940. A cidade de Conquista, neste período, foi marcada por conflitos e tensões de problemas intrínsecos originados tanto por questões de ordem política, que gestava um confronto direto e constante pela posse do poder municipal, mediante as práticas convencionadas pelos chefes da oligarquia local, quanto por questões de ordem externa trazidas pelas epidemias, secas, aumento abusivo dos preços dos gêneros alimentícios e, deficiência de um mercado de trabalho. Somando a estes problemas a cidade ainda 135 AO TALENTO dos Jovens Luctadores Bruno Bacelar e Laudionor Brasil: Jornal A Semana, 22 de junho de 1926. Anno IIII, n.1 122 necessitava de verbas consideráveis para organizar sua defesa contra os ‘revoltosos’; sanar epidemias, viabilizar construções e reconstruções da infra-estrutura social como: matadouro, mercado municipal, reconstrução da igreja matriz, praças e feira. Acompanhando as atas do Conselho Municipal no período compreendido entre os anos de 1922 a 1927, encontramos o registro de projetos de lei abrindo créditos para desapropriação da igreja matriz; para auxílio à Biblioteca do Grêmio Castro Alves; Em 13 de junho de 1924, o Conselho Municipal na presidência do Dr. Agrippino Borges, abre o crédito de 20:000$000 (vinte contos de reis) ‘para o aludido matadouro’. Dentre as designações da receita orçamentária liberada pelo conselho, deixa aparecer às condições arbitrárias do descaso dos mandatários locais frente aos problemas vivenciados pelos pobres da cidade, como se segue: O Concelho Municipal de Conquista, usando das atribuições que lhes são conferidas por lei, decreta: Art. 1º Fica criada uma verba de vinte contos de reis (20:000$000) subsidiaria á verba de “Despesas eventuais” Parágrafo único – Desta verba, dezoito contos (18:000$00) se destinam a satisfazer ás despesas ordenadas pelo Senhor Intendente Municipal em prol da defesa da cidade, quando ameaçada pela aproximação dos revoltózos, dois contos de reis (2:000$000) para o custeio das necessidades eventuais, no corrente exercício orçamentário e quinhentos mil reis (500$ 000) para aquisição do retrato do Coronel Paulino Fonseca, ex-intendente deste município, a fim de figurar na galeria dos Intendentes, no Paço Municipal.136 (sic) Através da leitura do documento percebemos que a distribuição do orçamento do município se dava em torno de referências provenientes das condições impostas hierarquicamente. Invocando necessidades abstratas pela conferência de poderes que iam desde a captura de verbas para sanar problemas que estavam em um universo imaginário de situações proeminentemente desvinculadas dos problemas reais por que passava a sociedade. Defesa pela ameaça dos revoltosos, despesas eventuais, aquisição de retrato de Coronel, são decisões impostas por uma necessidade de afirmação de poder político, que deixavam expostas as debilidades do governo frente a um contingente de pobres que existia na cidade. No entrecruzamento das fontes consubstancia-se a configuração dos espaços atribuídos pelas necessidades básicas de organização e de modelamento impresso sobre a cidade. Não podemos especificar ao certo sobre a campanha da qual fala o jornalista Newton Lima, nem tão pouco, sobre ‘o custeios das necessidades eventuais’ ditadas pelo Conselho, no 136 Ata da sessão ordinária do Conselho Municipal do dia 27 de maio de 1926. Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista – BA, livro: 12.2.22. 123 entanto, sua colocação como observador reelabora um sentido de sociedade onde a cura dos males serão sanadas pelo jornalista que é o ‘lutador impar’ e o‘termômetro que mede’, trazendo à tona as tensões ocasionadas sobre as condições de vida e de trabalho impostas na legislação que deixa ver como estava sendo organizada a distribuição de renda para fundar essa cidade. Diante de uma conjuntura, na qual as armadilhas estavam expostas e o jogo político estava aberto nas matérias, artigos e notícias dadas pelos jornais que interferiam e provocavam esses embates, o jornalista surgia nesse campo para deflagrar a luta contra a ‘lei natural que domina todas as coisas’ e esse jornalista que é o ‘lutador impar’ vai atuar contra a ignorância e o obscurantismo dos administradores públicos. Conforme já foi anunciado no capítulo anterior sobre as memórias de Aníbal Viana, O jornalista Newton Álvares de Lima, juntamente com Laudionor Brasil, Professor Euclides Dantas e Bruno Bacelar foram colaboradores do jornal ‘A Semana’. Este jornal marcou fortemente reivindicações pelo progresso e modernização de Conquista, vinculado ao combate político137 especialmente no que diz respeito à educação, instalação de vias de comunicação e especialmente, utilizava-se da denúncia e aproveitava-se das condições de vida impostas aos pobres da cidade para estabelecer neste campo as relações de forças necessárias ao ganho partidário. Na edição de 23 de agosto de 1924 este jornal publica o edital “A carestia da vida’, que denuncia os preços abusivos: um “kilo de assucar por 3$00, um kilo de café por igual custo, ninguém acreditaria, si ouvisse contar! De tudo porem, o que mais horrorisa é o preço da carne, em Conquista. Dois mil reis por um kilo de carne parece mentira”. 138 (sic) Este edital é um apelo ao ‘dígno’, ‘prestigioso’ e ‘honrado’ Intendente Justino Gusmão, propondo que este faça gerir vantagens legais aos que propuserem vender carne, pelo menor preço possível, “sendo até dispensados os impostos aos concorrentes, aliviando-se assim um pouquinho a situação ‘afflictiva’ do povo”. Ora, ao que tudo indica, quem realmente consumia carne era uma camada da população abastada e apesar do apelo estar direcionado ao “pobre horrorisado cheio da mais angustiosa afllicção”, esse enfrentamento se dá em meio a questões consensuais entre o jornalista, o jornal e o coronel, corroborando no impacto do texto, a contemplação de atenuar a crise que aumenta a cada dia que passa e que precisa ser 137 O Jornal A Semana surgiu para viabilizar a candidatura do Coronel Justino Gusmão no biênio de 1924-1925 para o cargo de intendente da facção do Partido Republicano Democrata Conquistense e defender seus interesses, com esta intenção passou a desqualificar Regis Pacheco, político em ascenção que chegou à cidade de Conquista contratado pelo governo estadual para debelar uma epidemia de varíola que grassava a cidade nos anos de 1919 – 1920. Este Jornal de caráter conservador trazia em seu escopo reivindicações por Conquista, no sentido de intensificar o desenvolvimento da cidade em relação aos serviços de telégrafo e iluminação, construção de estradas e educação. 138 Jornal A Semana 23 de agosto de 1924. Ano II, n. 5. 124 sanada, não para os pobres, mas para atender aos eleitores, isto é, conseguir aceitação e granjear apoio, contra os candidatos a governo advindos da família Santos. Acompanhando ainda as notícias referentes do Jornal “A Semana” encontramos na colaboração do Professor Euclides Dantas, o poema intitulado “O flagelo”, no qual relata as condições de saúde pública no governo do Intendente Otávio Santos (1928-1930) associado a uma crítica sobre a política nacional. O Flagelo. No dizer de pessoas entendidas/ Essa peste origina-se do rato;/Guerra, pois, quer em casa, quer no mato,/ Ao bichinho que roi às escondidas...// E logo por benéficas medidas,/ sem matinada, sem espalhafato,/Sejamos cada qual um forte gato,/ Salvando desse modo humanas vidas.// Mas, pergunto em segredo, meus senhores:/ Matando-se esses mínimos roedores, /Extingue-se o flagelo? – Acho que não!...// Só se armassem grandíssima ratoeira/ À porta da Fazenda Brasileira,/ Para pegar os ratos da nação...139 (sic.) Este poema carregado de forte crítica política trata da conjuntura de 1928 e está relacionada à ascensão política do Dr. Régis Pacheco. Este médico chegou à cidade de Conquista em 1920, nomeado para a função de debelar uma epidemia de varíola. No controle de tal empreendimento ganha notoriedade e acaba se casando em 1921 com D. Enerina Santos (Santinha), filha do pecuarista Coronel João Santos. O curioso é que o professor Euclides Dantas foi responsável por escrever a biografia de Régis Pacheco em tom memorialístico, publicado pela primeira vez em 1940, nas oficinas de ‘O Combate’ e, na qual se que reporta a Régis com um homem “de um espírito verdadeiramente devotado ao bem”. Esta biografia simples e incompleta vai ser um testemunho de que em Conquista, no longínquo e ainda ignorado pedaço de terra brasileira, também existe um homem que sabe fazer o bem, que sabe honrar não somente o seu diploma de médico, mas, também, a comissão espinhosa e sublime de guieiro do povo, de benfeitor do 140 povo . (sic.) Desta forma, Régis Pacheco traçou seu percurso político na cidade de Conquista, e no decorrer dos anos 1920 foi ganhando notoriedade política. Em 1927 em plena ascensão o 139 O FLAGELO: Jornal A Semana 19 de agosto de 1928. DANTAS, Euclides; FONSÊCA, Humberto; MEDEIROS, Ruy H. A. RÉGIS PACHECO, 1895-1987: Esboços Biográficos. Museu Regional da Universidade estadual do Sudoeste da Bahia, Série Memória Conquistense, Vitória da Conquista, 1995. 140 125 jornal A Semana empreende uma campanha contra Régis, atingindo até mesmo o seu trabalho como médico sanitarista, no qual foi publicado o irônico poema do Professor Euclides Dantas. O Jornal “A Semana” resistiu até o ano de 1930. Quando estourou o golpe em outubro de 1930, o Intendente Otávio Santos foi deposto por partidários locais da Aliança Liberal, que organizaram a “Guarda Branca”, para defender a denominada “revolução de 1930”. Esses partidários conseguiram levar Bruno Bacelar ao cargo de executivo municipal provisório, onde ocupou o cargo de intendente por poucos dias, sendo substituído pelo Cel. Deraldo Mendes Ferraz que empreendia um projeto pessoal de chegar ao poder municipal, utilizandose do jornal ‘A Semana’ para veicular tal projeto. Deraldo Mendes foi Prefeito da cidade de Conquista entre 1930 a 1932 e continuou elegendo os seus partidários até o ano de 1937, quando foi deposto pelo golpe do Estado Novo. Diante desta conjuntura política os jornais continuavam atuando no esforço de angariar correligionários e a cidade continuava a ser convocada para arbitrar os embates entre os detentores de poder. Destacamos uma matéria do jornal “A Semana” que divulga às realizações do governo municipal procurando aproximá-las da solicitação do povo, ao tempo em que veicula a imagem do Intendente através das atitudes e providências que tomou para debelar uma crise de saúde pública provocada por uma epidemia de peste bubônica em 1927. Segundo podemos observar nesta matéria intitulada: o Dia está apagado, hoje, porém, temos o prazer de registrar nas columnas do nosso órgão um elogio dos mais merecidos ao Sr. Dr. Intendente Municipal, pela atitude assumida em face da situação sanitária da cidade, assolada pela epidemia terrível que é a peste bubônica. (...) Resta agora ao povo em geral sem destinção de classe e de partidos, hypotecar ao illustre dirigente da communa, apoio franco e decidido em todas as suas attitudes em prol da saude publica, cercando-o do prestígio indissolúvel e indispensável em tal emergencia, para levar a fim empreitada tão grandiosa e tão difícil, qual a do saneamento da cidade. (sic)141 Os cidadãos eram convocados então, a olhar para os benefícios e a votar nas atuações dos intendentes. Então existia a expectativa de uma nova cidade que precisava de assepsia, de moralização, de civilidade. Aquela Conquista onde os animais soltos nas ruas, os velhos edifícios em decadência, as ruas sem calçamento e iluminação precária precisava ser destituída para surgir uma nova cidade que desse conta em atender a essa onda de novas contingências. 141 Jornal A Semana, outubro de 1927, Anno IV, nº 5 126 Os jornais publicados em Conquista, neste período, através dos seus jornalistas ao publicar matérias sobre a dinâmica político/administrativa, econômica e social, sobre o cotidiano da cidade construíam uma visibilidade para esta cidade que revelava uma conjuntura de disputas políticas trazidas pelo jornal em um meio intensificado por conflitos e enfrentamentos, no qual a parcela da sociedade que vivia as dificuldades impostas pela ausência dos serviços públicos tornava-se refém da oscilação partidária e de um conjunto de atuações, cuja obra de salvação seria destinada a esses ‘lutadores’ - homens de cultura e letramento que sanariam as ‘feridas virulentas da sociedade’. No entanto, nos ditames das novas concepções de progresso, os espaços dados aos jornais, equacionavam determinações que chegavam com impactos diferenciados sobre os pobres, mas o discurso era também direcionado a eles. Fazendo uma leitura da interlocução dos jornais, percebemos a divulgação da exclusão. Vimos esse dado na publicação de um edital de 12 de junho de 1924 sobre as determinações da legislação local sobre as transformações urbanas: Justino Gusmão, Intendente Municipal, faz saber aos que o presente virem, ou dele tiverem conhecimento que, fica assignado o prazo de noventa dias (90) aos proprietários desta cidade para substituírem as cercas de frente, lados e fundos, em muros ou gradiados, limparem as frentes das casas e fazerem calçadas, sob as penas dos códigos de posturas que diz: art. 51 – conservar tapumes ou cercas de qualquer natureza, no alinhamento da cidade - pena de 20$000 de multa, ou seis dias de prisão – Art. 75 – Todo o proprietário é obrigado na cidade e povoados, a fazerem uma calçada, ou passeio de dez palmos na frente de sua casa, muro ou gradiados. (sic)142 Organizar a cidade e torná-la condizente para receber os novos moradores era uma meta que se fazia a partir da saída cada vez mais intensa dos moradores das fazendas para habitar a cidade. Essas famílias abastadas começavam a mobilizar um contingente de necessidades advindas das novas condições de vida projetadas no meio urbano. Desta forma os serviços de educação, saúde, moradia, diversão e cultura, eram elementos da nova conviabilidade para os habitantes de Conquista nas primeiras décadas do século XX. Neste período começa a se reconfigurar os espaços da cidade para atender a essa nova demanda imposta por uma mobilização de habitantes, que nos anos de 1920 de forma mesmo que incipiente começava a se interpor aos movimentos da cidade. 142 EDITAL: Jornal A Semana, Ano 1, n. 31 . 19 de Junho de 1924. 127 Essas reflexões produzidas no discurso disciplinador e excludente, trazidas pelas necessidades de mudanças, colocavam no mesmo intermezo cidadãos dos diversos segmentos da sociedade que através de suas ações particulares e cotidianas pudessem contribuir nas transformações necessárias a um novo modelo de urbanidade. As obrigações fixadas no edital deixam ver a carga das taxas e penalidades incidirem sobre os pobres da cidade e povoados, ao fazerem referências as suas construções de ‘tapumes e cercas’, e penalizar com prisão os desobedientes de tal lei. Por outro lado, o prazo dado para as substituições são muito curtos para serem atendidos pelos habitantes que não são abastados financeiramente, desta forma consideramos esse o primeiro movimento de segregação da Rua Grande. A ocorrência do processo de exclusão dos velhos padrões e portanto, dos moradores da rua que não atendia a essas prerrogativas eram indenizados e convocados a habitar outras ruas da cidade, e essas modificações surgirão exatamente com as leis que determinam o novo desenho urbano da cidade e vão promover uma obrigatoriedade no afastamento dos indesejáveis. É necessário neste contexto dar uma nova ordem a esta cidade. Para tanto, os espaços de circulação da notícia eram utilizados pelos arautos do mandonismo, que antes faziam divulgar os decretos que correspondiam a uma nova urbanização em detrimento das condições de vida. Por trabalharem, sobre uma conjuntura associada ao desenvolvimento urbano, quanto às necessidades de civilizar, ordenar e projetar a cidade para o progresso feito da “força do povo” e da “boa vontade do poder público”, esses ‘luminares’ trazidos na memória de Aníbal Viana, baseavam seus escritos num painel no qual a cidade se apresentava como uma síntese por onde circulava a vida de um espaço praticado que se materializava, delimitando um esquadrinhamento apto a compartimentalizar os lugares, por onde iria avançar o progresso. O conhecimento estatístico do crescimento demográfico na cidade de Conquista, como na maioria das cidades dos sertões baianos, nos anos de 1920 e 1930 foram comprometidos pela generalização dos recenseamentos que não distinguiam a população urbana e rural. Tanto que, encontramos referências nos jornais de 1924 e 1926, imputando à cidade a existência de “quase cem mil habitantes que constituem a população de Conquista”; em outro periódico esse dado aparece como indagação, “porque não levam a sério a idéia de remodelação da nossa ‘urbs”? já que é “sede de um dos maiores e mais ricos municípios do estado, cidade bastante populosa”. Diante destas informações fica claro que a visão do contingente populacional da cidade era somado à população rural; tomando como prerrogativa os dados 128 do recenseamento de 1940 que organiza uma distinção entre as populações urbana e rural, e conta a população citadina em Conquista com 8.644 habitantes em 1940.143 Maria Stella Bresciani pesquisando sobre a modernidade no século XIX, percebe a cidade como um espaço de tensões empíricas e conceituais, concepção que perdura na formulação do paradigma que orienta o conhecimento e a vivência contemporâneas. São decisões conformadas nas questões problematizadas pela abertura da porta da ‘questão técnica’, que segundo ela, (...) impõe a necessidade de avaliar a materialidade da teia urbana, projetando soluções para uma cidade ideal no espaço utópico (não contaminado) do papel em branco. Trata-se de uma forma de apreender a cidade a partir de dados sensíveis: a descrição literária e científica e a representação iconográfica fixam o crescimento em extensão, o aumento demográfico, as atividades produtivas, a circulação das mercadorias e sua troca no mercado, as questões de salubridade e de controle do movimento.144 As reflexões de Bresciani nos oferecem pistas importantes para investigar o contexto da cidade de Conquista. Ainda nas décadas de 1920 e 1930, esta cidade estruturava-se com base em uma economia agrária, cujos núcleos familiares proprietários de terras, projetava-se política e socialmente sobre o município. Nessas condições a cidade em estreita relação com essas fazendas vivenciava a experiência do monopólio da terra, a disparidade entre homens disponíveis ao trabalho e a inexistência de um mercado de trabalho. O Historiador Rui Medeiros, no ano de 1970 escreveu diversos artigos, intitulados ‘Ensaios Conquistenses’, através do jornal ‘O Fifó’, nos quais publica estudos sobre diversos aspectos da história da Cidade de Vitória da Conquista. No artigo intitulado: O Processo histórico conquistense – Traços gerais, ele afirma que, a partir do final do século XIX, exatamente em 1891, quando a Imperial Vila da Vitória adquire status de cidade esse “núcleo urbano já está bem maior e os chefes das famílias importantes aí edificam suas moradas.”145 Ainda, segundo Medeiros, em seu estudo sobre a “Diversificação econômica, fator demográfico e participação política em vitória da conquista”, a população urbana era diminuta, os pobres viviam de serviços de ganho e o homem do campo disputava os trabalhos 143 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Recenseamento do Brasil em 1940. Disponível em http:/biblioteca.ibge.gov.br. Acesso em 6 dez. 2010. 144 BRESCIANI, Stela Maria. Permanência e Ruptura no Estudo das Cidades. In: FERNANDES, Ana e GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. (orgs.). Cidade & História: modernização das cidades brasileiras nos Séculos XIX e XX. Salvador. Ufbª – Faculdade de Arquitetura. Mestrado em Arquitetura e Urbanismo: Anpur, 1992. P. 11 -26. ( levar para bibliografia ) 145 Jornal O Fifó, 9 de novembro de 1977, p. 9. 129 da pecuária, estabelecendo uma relação de brutal dependência com fazendeiros e fazendas, já que a “pecuária”, atividade dominante absorve pouquíssima mão-de-obra.146 A partir das referências apontadas por Medeiros, podemos inferir que na correlação de forças existentes entre a cidade e o campo referente a leitura e recepção das propostas formuladas pelos “luminares” para modernização e o progresso de Conquista era apropriada diretamente por um grupo restrito. A maioria dos leitores dos jornais se restringia aos poucos alfabetizados que tiveram acesso a educação e se limitavam a alguns coronéis, seus familiares, profissionais liberais, poucos comerciantes e por pessoas que emergiam dessas condições de letramento através de uma realidade educacional incipiente. Em estudos realizados pelo grupo vinculado ao Museu Pedagógico Padre Palmeira147, foram considerados dados estatísticos que desenharam o perfil da educação no meio da população da cidade de Conquista. Pesquisando através de dados fornecidos pelo Relatório da Assembléia Legislativa do Estado da Bahia de 1933 (Arquivo Público do Estado da Bahia, 1936), este estudo apresenta a seguinte conjuntura, em termos de nível educacional na cidade. Na área da educação contava com o ensino pré-primário e primário público estadual. Possuía duas escolas masculinas, quatro femininas e duas mistas. Um total de oito professores lecionavam nessas instituições. Dos 384 alunos matriculados em 1933, 133 eram homens e 251 eram mulheres. Destes, respectivamente, 77 e 111 obtiveram frequência regular. Mesmo faltando dados de duas escolas de Conquista, segundo o Relatório concluíram o curso primário naquele ano apenas seis homens e quatro mulheres. 148 (Arquivo Público do Estado da Bahia, 1936, p. 122-128) Segundo o estudo de ALVES e SILVA (2008), referente ao ano de 1933 o município de Conquista possuía um total de 2.333 eleitores, significando 2,6% de um total de 90.383 eleitores baianos. Tomando como base os eleitores podemos inferir uma dimensão dos leitores, sendo que só os alfabetizados podiam votar. Embora, saber escrever fosse uma imposição para o voto, muitos eleitores não eram necessariamente leitores. Isso significa um universo ainda mais restrito de leitores neste período. Desta forma compreendemos que a elite letrada compunha um quadro restrito no município de Conquista. 146 MEDEIROS, Ruy. Diversificação econômica, fator demográfico e participação política em Vitória da Conquista. Jornal O Fifó, 25 de outubro de 1977. 147 Segundo texto de divulgação encontrado no site da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, o Museu Pedagógico vinculado a esta Universidade – agrega grupos de pesquisa e extensão interdepartamentais e interinstitucionais que discutem a investigação da educação, da cultura e das ciências à luz da história e das ciências sociais. 148 ALVES, Ana Elizabeth Santos e SILVA, Lígia Maria Portela da. Ensino Profissional em Conquista nas Décadas de 1930 e 1940: O Curso de Datilografia. Publ. UEPG Ci. Hum. , Ling. , Letras e Artes, Ponta Grossa, 16 (1) 21-26, jun. 2008. 130 Ainda perscrutando as pesquisas realizadas por estudiosos da história da educação na cidade de Vitória da Conquista, encontramos referências sobre dados importantes para contemporizar as relações dos letrados e a interlocução com as possibilidades de recepção de leitura dos jornais, quanto aos suportes de veiculação e disseminação atingidas pelas notícias e as suas repercussões. Neste sentido, citamos o estudo realizado por Casimiro e Magalhães (2006) que pesquisam sobre os primeiros sujeitos e as primeiras instituições escolares da cidade de Vitória da Conquista a partir da década de 1930 por meio dos depoentes que viveram no período como alunos, recorrendo a este estudo as professoras Maria Cristina Nunes Cabral e Lívia Diana Rocha Magalhães, no artigo: O Ideal Modernizador da Educação em Vitória da Conquista – Ba, entre as décadas de 1930 a 1950, demonstra um quadro dessa realidade educacional, no qual encontra-se, categorias como: escola particular e pública, professor leigo, escola isolada, primário, que denotam aspectos ligados às políticas públicas do estado. Bem como categorias como: escola mais humilde, mais afastada, uma sala com duas portinhas de venda, escola que funcionou no sótão, que denotam expansão do ensino para camadas mais pobres da população. Porém, (...) embora tenham aparecido escolas públicas, o destaque era dado às instituições privadas, algumas de vida efêmera, e outras, mais longevas. (...) O estudo demonstra que a escola em Vitória da Conquista, como na maioria dos municípios brasileiros, era incipiente e direcionada para uma determinada camada da população – os que possuíam melhores condições financeiras – uma vez que as poucas instituições existentes eram privadas.149 O fomento dado à educação formal é outro fator importante que vai influenciar e determinar essas condições impostas pelas relações de força, que nesta realidade, se contrapõe ao ingresso de grande parte da população na escola pública e a coloca em uma situação de imobilidade a respeito das suas condições de trabalho. Deste modo, os jornais surgiam no meio dessas disputas decorrentes das lutas pelo poder e controle da municipalidade. Muitos desses jornais surgiram vinculados a esses interesses, para chegar ao conhecimento de uma pequena parcela da população que já possuíam o letramento e determinados saberes, acabando por conjugar imagens que da cidade produzidas no interior de uma memória pretensamente hegemônica, a qual pode ser delatada a partir dessas leituras feitas na interseção dos conflitos. 149 CABRAL, M.C.N ; MAGALHÃES, L. D. R. . O IDEAL MODERNIZADOR DA EDUCAÇÃO EM VITÓRIA DA CONQUISTA-BA ENTRE AS DÉCADAS DE 1930 A 1950. In: VIII Seminário Nacional de estudos e Pesquisas Histedbr, 2009, Campinas. Anais do VIII Seminário Nacional de estudos e Pesquisas Histedbr. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009. 131 3.2 UM OLHAR SOBRE A POBREZA: ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIAS NA CIDADE Como investigar os pobres na cidade? A problematização referente à pobreza é geralmente dada historicamente no enfrentamento com os não pobres, produtores de reflexões históricas logicamente determinadas pela existência de uma documentação que os redime do exílio e do ostracismo. Os pobres na cidade são refletores das incongruentes mazelas da sociedade e eles insurgem para a história neste arcabouço de mediações no levantamento das diferenças. Isto é, os pobres da cidade, essa camada lúpem característica do resultado das relações de poder, são confrontadas pela complacência necessária para caber no mundo do trabalho, e também de incomodar a ponto de cairem num perverso esquecimento histórico. Percebemos a importância de investigar esta história a partir das perspectivas dos sujeitos envolvidos para propiciar meios de visibilidade na percepção da cidade como espaço construído socialmente, nas experiências desses sujeitos, nas suas práticas cotidianas de convívio e enfrentamento, entendendo que, do olhar sobre as relações desse cotidiano podem ser encontradas revelações importantes sobre essa gente que percorre producentemente a cidade. A pesquisadora Claúdia Maria Ribeiro Viscardi em seu estudo sobre o mutualismo na cidade do Rio de Janeiro republicano entende que, em geral, quando se aborda o tema da pobreza, as preocupações se voltam para os não pobres, que lutam por dirimi-la. Pouca atenção é conferida para as estratégias que os próprios pobres engendraram, em sua luta cotidiana pela sobrevivência. (...) Mesmo vitimados por mazelas comuns, encontravam meio de expandir laços de solidariedade entre si, responsáveis pelo fortalecimento de elos comunitários, sem os quais dificilmente de manteriam vivos.150 A esse entendimento ela acrescenta ainda que, os pobres possuem à sua disposição algumas estratégias de superação da pobreza. Mas elas podem ser agrupadas em duas modalidades de escolha, raramente excludentes: o apelo por proteção de alguém que dispõe de bens disponíveis a serem doados, e o recurso à ajuda mútua, na qual o próprio grupo se apóia, estabelecendo redes de colaboração entre seus membros.151 150 VISCARDI, Claúdia Maria Ribeiro. Estratégias populares de sobrevivência: o mutualismo no Rio de Janeiro republicano. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 58, p. 291-315 – 2009. 151 Viscardi, op cit., p. 293 132 Seguindo essa trajetória apontada por Viscardi e entrando nos espaços da Rua Grande, territórios dos pobres da cidade de Conquista, foi possível perceber que o levantamento extraído dos jornais no contexto das relações estabelecidas com a camada pobre da sociedade conquistense, foram mensuradas com o propósito de descortinar a atuação de grupos abastados da sociedade que privilegiada politicamente o tratamento dado aos pobres tendo em vista desencadear um projeto de organização, proteção e assepsia de um espaço urbano requerido e disputado pelas elites para configurá-lo como símbolo da cidade de Conquista. A disponibilidade em proteger e doar bens disponíveis partia dos aparatos da filantropia e da indulgência dos serviços socializados, entre outros, pela igreja católica. Esses dados estão contemplados nos jornais e confere a descrição de uma ordem burguesa fazendose titular de um projeto de legitimação de valores subtraídos das contradições dos recursos surgidos do advento dessas relações sociais que surgia com essa modernidade. No período compreendido entre 1920 e 1945 acompanhamos através dos jornais algumas notícias que faziam referências aos pobres de Conquista na intermediação da memória que incluía a pobreza nos parâmetros das notáveis ações “da boa vontade da família conquistense”. O Jornal “A Semana” se encarregava da campanha à Festa de Natal das Crianças Pobres, organizada pelo Grêmio Castro Alves,152 elaborando conjuntamente com a direção do clube numa concepção assistencialista para tratar com os pobres da cidade como desvalidos que a culpa cristã pretendia aliviar, conforme podemos observar a partir das notícias veiculadas na época, Excedeu a nossa expectativa, pelo brilhantismo com que foi adornada, a comemoração do natal de Jesus, nesta cidade. (...) Foi uma scena encantadora, nunca assistida pela população conquistense, e que deixou na memória de todos, uma suave recordação, uma doce impressão, que até agora, como que por uma nuvem doirada e transparente da nossa imaginação, vemos aquelle espetáculo commovente, na porta do “Castro Alves” em que sete formosas virgens, como imagens de Santa, cercadas por uma multidão de creançinhas pobres distribuíram, em nome de Jesus, as dádivas do Grêmio Dramático “Castro Alves.”153 (sic.) 152 O Grêmio Castro Alves foi fundado em setembro de 1919 por intelectuais, jornalistas e professores de Conquista. Entre os seus fundadores estão Newton Álvares de Lima, Bruno Bacelar, Laudionor Brasil, Demósthenes Alves da Rocha, José Lopes Viana, Abílio Rosa, Euclides Dantas e José do Carmo. Segundo os memorialistas Aníbal Viana e Mozart Tanajura, através do desempenho deste grupo a linguagem artística começou a fazer parte da vida intelectual da cidade. Em pouco tempo, o Grêmio Castro Alves já dispunha de uma biblioteca e a publicação de uma revista chamada Ribalta e recebia companhias teatrais em excursão. O Castro Alves durou até 1928. 153 Jornal A Semana, Anno I, num.20 de 28 de dezembro de 1923. 133 As ‘sete formosas virgens’ eram as filhas dos proeminentes senhores que aquinhoados em seus burrões, cumpriam o despreendimento de dar a esmola às “pobres criançinhas”, que vinham se juntar às ‘santas’ senhorinhas sob a “nuvem doirada e transparente da nossa imaginação”. No texto está nitidamente vinculado o significado da esmola, à idéia da riqueza e por conseqüência, ao sentimento da culpa cristã. Ou seja, ainda permanece a idéia medieva da indulgência, que impregna na alma a necessidade do perdão pelo acúmulo da riqueza. E não é só isto, a matéria escrita e veiculada dissemina a popularização da esmola reforçando o crédito aos atenuados cidadãos que “comovem” e produz uma ‘doce impressão’ ao ‘distribuir dádivas’ cuja efetivação se dá num processo de legitimar a pobreza a favor das permanências das relações paternalistas tradicionais, que se configuravam no painel cultural brasileiro desde o período colonial. E a matéria continua a relatar que: No dia 25 [...]houve a festa das creanças pobres, [...] comparecendo a esta solemnidade, [...] um número superior a 300 meninos pobres, sendo a todos distribuídos roupas, doces e brinquedos. Antes porem, de começar a distribuição dos mimos pelas senhorinhas Áurea Pereira da Silva, Dilcia Costa, Maria Victoria Bacelar de Oliveira, Leonor Governo, Arlinda Pereira da Silva e Alzira Augusta Costa, em nome do Grêmio “Castro Alves” em ligeiras palavras, falou o seu orador que externou modestamente o agradecimento do Grêmio à família conquistense, que, com a maior boa vontade, soube attender ao appello desta sociedade em benefício das creanças pobres desta terra. (sic.) Essa memória produzida pela matéria do jornal “A Semana” de 28 de dezembro de 1923 na verdade, coincide com a memória trazida pelo “Conquista” de 23 de julho de 1944, jornal dirigido pelo Padre Luiz Soares Palmeira cuja mensagem se dirige a um público católico. O jornal ‘A Conquista’ fundado pelo Padre Palmeira comprou uma tipografia para garantir sua impressão que iniciou a circulação em junho de 1944. Segundo Viana, ‘A Conquista’ foi um dos valorosos jornais de Vitória da Conquista, cujos redatores foram primeiro Dr. Orlando Spínola substituído pelo advogado Aderbal Tanajura, mas, infelizmente, teve pouco tempo de circulação. As memórias construídas pelas matérias destes jornais revelavam que a maior parte da população da cidade, vivia à margem das comemorações promovidas em datas festivas anuais nas quais a imprensa conquistense compartilhava do mesmo ideário assistencialista aos devotados. A Coluna ‘Comentários da Semana’ do jornal “Conquista” contém uma campanha que surpreende pela força de um poder secular de dominação de ‘almas’, aqui reproduzida em 134 seu particular periódico, que avisa sobre aqueles que ‘infestam a cidade’ e alerta aos ricos para fecharem suas portas, às ‘falsas mendicâncias’: Falsa Mendicância – Nada mais natural aos nossos sentimentos cristãos que dar esmola. Mas devemos acautelar-nos contra os falsos mendigos que infestam a cidade. São sempre pessoas válidas, que podem e devem trabalhar. E que, consequentemente, não precisam pedir. Isso não obstante, são os que mais pedem. Servem-se, para tanto, de troças de toda a sorte. Exercem a falsa mendicância preferentemente à noite, como meio mais seguro de iludir a boa fé pública. Acautelemo-nos contra essa fauna de exploradores. E vejamos que, se é crime negarmos a esmola a quem dela necessita, crime é também e maior darmo-la a quem não precisa. A falsa mendicância é um caso de polícia e mais nada. (sic.) 154 Dentre essas proeminentes ironias que nos proporcionam as fontes, oferecendo material suficiente para analisar sobre o viés da memória, uma problematização histórica, encontramos nas duas matérias expostas acima, um importante referencial de abordagem da conjuntura da cidade de Conquista. Do número de ‘300 meninos pobres matematicamente calculado’, em 1923 vimos saltar uma ‘falsa mendicância’ em 1944, interpretada e veiculada pela igreja católica sobre a condição de vida e trabalho na cidade de Conquista. Esse comportamento proveniente do Jornal ‘A Conquista’ que interpreta os mendigos como uma ‘fauna de exploradores’, aproximando-os da condição de animais, permite estabelecer uma relação de forças descoberta na apresentação do primeiro número deste jornal para a sociedade. O edital confirma que: ‘Informar e comentar – eis a missão do jornal que se preza. Informar e comentar, o que vale dizer esclarecer. O jornal forma a opinião pública, que condiciona tudo. De que tudo depende.’ 155 Partindo deste entendimento imputado pelo jornal, podemos fazer uma leitura, na qual o esforço em preservar ‘a boa fé pública’ converge para uma atuação associada uma gente que não se deixava amparar pelas doações e assistencialismos criando suas estratégias de sobrevivência inacessíveis a atuação dessa igreja e, portanto passíveis de estarem fora de qualquer convivência social sendo amputados dos sentimentos cristãos de dar esmolas. Interpelamos ao recrudescimento dos conturbados anos de 1920, que entre epidemias, secas, alta dos preços dos gêneros de primeira necessidade, incipientes serviços de saúde e educação, além do molestamento das próprias condições políticas, econômicas e sociais, 154 155 FALSA MENDICÂNCIA: Jornal A Conquista, 23 de julho de 1944. Jornal A Conquista , Ano I, Num. 1 de 2 de julho de 1944. 135 discutidas ao longo do capítulo anterior, Conquista comporta no decorrer desta década a permanência de problemas sociais que não se resolvem. Compreendendo as transformações políticas que se estabeleceram na cidade na passagem para o “estado novo”, que ficaram marcadas pelas agruras passadas pela força das intervenções estaduais e observando a postura política e executiva dos mandatários avaliamos que deixaram de fazer as reformas sociais necessárias para transformar esse quadro. Acrescenta-se a este cenário, as conseqüências trazidas pela Segunda Guerra Mundial, que cortava fronteiras e chegava às pequenas cidades do sertão, trazendo os rastros das dificuldades, obliterando a ausência de gêneros, que eram exportados para atender às necessidades dos grandes centros mais que, no entanto, esse desenvolvimento que vinha na esteira das exportações, atendia somente aos grandes produtores, arrefecendo as desigualdades e trazendo para a cidade, uma grande massa de indigentes, mendigos e trabalhadores de ganho. Rui Medeiros, reflete sobre as relações da cidade e da região diante dessa conjuntura: O Município de Vitória da Conquista e região integraram-se naquele quadro e beneficiaram-se da conjuntura patrocinada em nosso país pela Segunda Guerra Mundial. Este conflito colocara na ordem do dia uma demanda maior de produtos agrários para abastecimento dos grandes centros.” 156 Não propomos discutir aqui as conseqüências das relações econômicas trazidas por essa conjuntura, nos interessa, entretanto, saber em que medida essa economia baseada em valores humanos intercedeu no olhar desses observadores participantes e suas percepções sobre “as gentes pobres” da cidade, que transitavam nessa circunferência do espaço construído por essa sociedade, que vislumbrava sempre o progresso. Considerando o papel dos nossos “luminares”, e, entre eles agora, estabelece-se a figura do Padre Palmeira, a quem a cidade se apresentava como materialidade, mas também os surpreendiam numa teia de relações sociais. Os jornais e seus editores produziam um arcabouço de regras de conduta, normas e valores de uma moral cristã que pretendia ser tomada como referência pela sociedade conquistense. Esse grupo de construtores de memórias imbuídos do conhecimento, potencializado no poder de atender a grupos políticos que militavam na cidade, evidenciavam o caráter de uma mimese que era gestada por um ideário que alia à projeção no futuro como expectativa de construir um enredo, de uma 156 Artigo que compõe a série ‘ensaios conquistenses’ do Jornal O Fifó, do dia 3 janeiro de 1978. 136 memória social, para cuja efetivação se faziam necessárias promover marcos simbólico e material claramente determinadas. Diante dessa preocupação, nos ocuparemos ainda com um texto da coluna do Jornal ‘A Conquista’: Surto de Progresso É inegável o surto de progresso por que está passando a nossa cidade. Apesar de primitivamente sem plano, horrivelmente desarrumada, Conquista hoje obedece a uma planta que a vai corrigindo. Força é dizer que tal correção nunca poderá ser completa. É que se cuidou disso muito tarde e as rendas municipais não oferecem margem às desapropriações em massa. Temos, por isso, de tolerar muita coisa que está, como se diz, na casa do sem jeito.157 Nesta ordem estabelecida de ‘paz’ e ‘trabalho’, elaboradas no texto, traz elementos referenciais do progresso e sublinha uma dialética que se alimenta de condições contraditórias e anti-referenciais, indicando a existência de um grupo que, através da sua força de trabalho, ‘acentuar-se-á com a paz’, o vislumbre do progresso. A fonte conduz para uma diferenciação social existente entre o trabalhador e o povo, resultado das condições materiais do progresso. Pois o que está escondido aqui são as relações de trabalho extraídas dos impasses desse projeto de crescimento para a cidade, que coloca à frente do poder municipal a responsabilidade de equacionar: ‘o trabalho esclarecido em seus habitantes’ e o ‘não trair a confiança do povo’. Essas atribuições desapropriam os silêncios e deixam ecoar nos não-ditos da memória uma ressonância das vozes dos pobres que ainda conviviam e supriam com os seus serviços as necessidades básicas cotidianas da elite residente na Grande Praça. O que estava na ‘casa do sem jeito’ contrariava o ‘surto de progresso’ e a administração pública não possuía numerário suficiente para ‘oferecer as desapropriações em massa’. No que diz respeito ao espaço da Rua Grande, não tiveram como ‘tanger’ a tempo a massa e desapropriá-los da convivência da Rua. Essas atribuições desapropriam os silêncios e deixam ecoar nos não-ditos da memória uma ressonância das vozes dos pobres que supriam com os seus serviços as necessidades básicas cotidianas da elite residente na Grande Praça. O que estava na ‘casa do sem jeito’ contrariava o ‘surto de progresso’ e a administração pública não possuía numerário suficiente 157 Jornal A Conquista de 2 de julho de 1944. 137 para ‘oferecer as desapropriações em massa’. No que diz respeito ao espaço da Rua Grande, não tiveram como ‘tanger’ a tempo a massa e desapropriá-los da convivência da Rua. Essa transação correspondia ao tráfego de diversos serviços de ganho impostos pela manutenção da limpeza, e pelo abastecimento de água potável nas casas. Não existia uma regulação legal sobre os serviços de ganho, tanto que, sobre esses serviços não incidiam cobranças de taxas e impostos e não estavam registrados na relação de ofícios e profissões do recenseamento geral do Brasil de 1920. 3.3 AS ÁGUAS DE NOSSA SENHORA DA VITÓRIA: CONFLITOS E TENSÕES NAS REGULAÇÕES DO ESPAÇO URBANO Os problemas com o abastecimento de água na cidade de Conquista e, mais especificamente, no entorno da Rua Grande, tornaram-se agudos e de forma mais provocada a partir do crescimento demográfico, apontado no segundo capítulo dessa dissertação, entre as décadas de 1920 a 1940, quando a cidade se expande, cresce o número de moradores, e os fazendeiros que já residiam na Grande Praça cuidavam de manter suas casas da cidade e, essa atitude acarretava a necessidade de contratar novos serviços. Desde a primeira década do século XX, os poderes municipais (executivo e legislativo) passaram a realizar interferências para controle do abastecimento de água para a cidade. No governo municipal do Coronel Maximiliano Fernandes de Oliveira entre 1908 a 1911 foi construído um depósito d’água que ficou conhecido como ‘caixa d’água’. Durante todo o período dos anos de 1920, os jornais veiculavam diversas matérias solicitando ao poder publico municipal a construção de chafariz que atendesse ao abastecimento d’água de outros pontos da cidade. Tais solicitações vieram a ser atendidas com a construção de dois chafarizes nas ruas que constituíam naquele período o centro da cidade, ou seja, um em frente à prefeitura e outro na Praça de residência da elite. Porém, tal medida foi paliativa, na gestão do prefeito Arlindo Mendes Rodrigues entre 1933 a 1936, o problema do abastecimento de água na cidade ainda não estava solucionado. A nascente do Poço Escuro abasteceu de água potável a cidade de Vitória da Conquista da sua origem até o ínicio da década de 1970. Segundo uma matéria publicada no Jornal Hoje do dia 09 de Novembro de 2000, numa edição especial do aniversário de 160 anos da cidade, documenta que, 138 (...) A solução do problema só começou a surgir no ano de 1965, no Governo Municipal de Orlando Leite. Através da resolução nº 72/65 autorizou o prefeito “firmar convênio com o Departamento de Engenharia Sanitária do Estado da Bahia – DESEB, para executar a exploração do serviço de água e esgoto sanitário do município de Vitória da Conquista.”158 Acompanhando os jornais que compreende ao recorte temporal desse estudo, percebemos que a preocupação com abastecimento de água, instalação da iluminação pública, limpeza urbana, retirada de animais das ruas, construção de um matadouro e de um mercado público para a feira foram solicitações recorrentes em todos os jornais da época. Dentre as solicitações dos equipamentos que viriam a atender aos princípios de civilidade e progresso, às condições de assepsia e controle dos corpos, estavam justapostas aos elementos materiais de atendimento as necessidades vitais. Em momentos diversos da nossa investigação constituída por memórias trazidas da oralidade, imagens e leituras dos jornais, observamos que as relações com os equipamentos construídos na cidade revelavam sentidos simbólicos de apropriação da Caixa d’água. Para além de servir para abastecer a cidade com o seu ‘líquido puríssimo’, também possibilitava momentos de encontro de sociabilidades de alguns grupos que transitavam por esse espaço. As memórias elaboradas sobre a Caixa d’água retroagem aos tempos da Vila Imperial, quando este equipamento público é lembrado como uma ‘época de ouro’ porque gozava de cuidado e zelo da intendência, “O tempo, entretanto, consumidor inveterado de tudo e de todos, levou nas suas ondas o período de utilidade e benefício público da fonte”. Encontramos uma matéria da coluna ‘Factos e Notícias’ do Jornal “Avante”, que revela o descaso do poder municipal em relação ao espaço da Caixa d’água em sua importância sobre diversos aspectos para a cidade em 1931, cuja simplicidade do título reforça a importância do evento dado pelo jornal, “A CAIXA D’AGUA”: (...) Construída ha annos na administração do Snr. Coronel José Maximiliano Fernandes de Oliveira, a caixa d’agua veio naquella ocasião beneficiar ao povo, que ressentiase de uma fonte pública. (...) O abandono das administrações condemnou este próprio do município a quase desapparecer. E a caixa d’água foi se estragando, a ponto do povo quase interno da cidade, preferir as águas das cisternas ás águas de Nossa Senhora da Vitória, da 158 Jornal Hoje de 09 de novembro de 2000. Ano 10, nº 109. Acervo pessoal do Sr. Mário Brito. 139 fonte publica, isto devido a immundicie que se notava mormente no córrego que, do poço escuro conduz a água para ás torneiras da caixa. E assim continua. E porque não surge uma providência energica de quem de direito? E porque consentir na continuação de um mal tão grande para o povo e para a cidade? Não seria tempo de uma vez por todas acabar com taes abusos? Não seria útil também aos olhos dos senhores administradores voltarem-se para o abandono da caixa d’agua? 159 (sic.) A existência desse espaço compartilhado pelo uso da água compreendia uma complexidade de elementos provenientes dos interesses de diversos grupos sociais. Essa relação intrínseca da transformação da natureza em espaço de cultura promovia deslocamentos de sujeitos, valores e sensibilidades para uma arena constituída por relações de força equacionadas entre os sujeitos que necessitavam da água puríssima para o seu ganho e ‘o povo quase interno da cidade’ que já preferiam a água de salobro das cisternas cavadas nos quintais. Por entre este espaço vital, segundo o discurso do jornal, são destruídos os ícones sacros da ‘água de Nossa Senhora da Vitória’; são destituídos os momentos idílicos dos passeios e da visitação, e por fim o lamento pela morte de uma poética, que representava o desaparecimento desse espaço na cidade para a divagação. Quer dizer, desse espaço emerge problemas da cidade, tomada pelo descaso e abandono. Esta elaboração, no entanto, não se aprofunda quanto ao problema da utilidade da água e deixa de dizer que este local é também e, principalmente, o lugar primordial para as atividades dos trabalhadores de ganho da cidade, e que por meio desses serviços eram abastecidas as casas e estabelecimentos, e que, pelas mãos das lavadeiras as classes abastadas, recebiam roupas limpas, promovendo o conforto das elites proprietárias. Desta forma cabe interrogar, por que o único local de água potável que abastecia a cidade, foi abandonado pela administração do município? A maioria dos jornais delatava invariavelmente o mesmo problema, que constava do abandono da Caixa d’água e dos abusos da população pobre que habitavam o local e ali depositavam os seus dejetos. No percurso da nossa investigação, retornamos ao ano de 1922 onde encontramos na Ata da Sessão Ordinária do Conselho Municipal do dia 26 de maio deste, um expediente que tratava de uma solicitação do Conselheiro Agrippino Borges, que trazia à baila o problema com as condições insalubres da cidade, especificando os problemas com a nascente do Poço Escuro: 159 A CAIXA D’ÁGUA: Jornal Avante de 6 de junho de 1931, Anno I, nº 12. 140 Em tempo, o Conselheiro Doutor Agrippino Borges relembrou aos seus companheiros de comarca a necessidade de se officiar ao Intendente municipal a fim de que este dê cumprimento a lei nº 132 de 22 de novembro de 1913, com falta da qual a população deste município sobretudo a desta cidade, se acha exposta a toda sorte de moléstias provenientes de rezes abatidas para seu consumo, haja vista uma rez abatida no lugar, podre atacada de carbúnculo, cuja carne foi vendida nesta cidade, morrendo quatro pessoas e dessas tendo ficado doente do mesmo mal; providenciar uma fiscalização do poço escuro, maltas adjacentes, onde nasce o riacho que abastesse esta cidade, as quaes se acha no mais completo abandono; obrigão aos proprietários a reveçar as estradas que passam por seus terrenos; mandar apreender a grande quantidade de porcos e cães soltos pelas ruas da cidade, obrigando seus donos as multas impostas pelas posturas ou mandando a lista pública para o resultado das quantias apuradas serem recolhidas aos cofres como lei. Providenciar sobre o asseio da cidade que está verdadeiramente porca. Submetida a apreciação do concelho esta sua reclamação foi unanimemente approvada e deliberado que se oficiasse ao senhor Intendente semelhando uma cópia da presente reclamação.160 (sic) (grifo meu) Este documento do ano de 1922 revela-nos que, o olhar sobre o espaço construído pelo discurso jornalístico em 1932, encobre por uma década um problema que já vinha sendo fermentado por uma tradição de descompromisso do poder municipal, para com esse espaço da cidade. Da mesma forma, deixa ver a imagem construída pelas atitudes dos conselheiros, que ao reclamarem as melhorias dentro do conselho, convocam um compromisso ao Intendente, o que não foi atendido politicamente, ficando este espaço refém dos jogos de interesses dos mandatários locais, que não possuíam condições políticas de financiar a privatização da água e continuavam a conviver com as condições impostas pelo mercado de água dos caroteiros e aguadeiras, conforme os documentos dos anos de 1930, que frequentemente noticiavam sobre as condições do local. Estabelecer a relação com o abastecimento de água, transportados nos serviços de ganho das aguadeiras, lavadeiras e caroteiros é interessante, por que criava superposições que deixavam ver as diferenças e os embates, entre aqueles que buscavam e necessitavam desses serviços e por outro lado, àqueles que estavam alijados desse projeto de desenvolvimento e se apresentavam em uma relação tensa e conflituosa com o espaço, no qual às suas práticas eram delatadas e criticadas nos jornais, quando afirmavam que essas práticas interferiam e comprometiam a salubridade e o embelezamento dos espaços da cidade. 160 Livro de Atas do Conselho Municipal da Cidade de Conquista. Código ? , Arquivo Municipal de Vitória da Conquista. Ata da Sessão Ordinária do Conselho Municipal do dia 26 de maio de 1922 141 3.4 A EMERGÊNCIA DOS SUJEITOS: AGUADEIRAS, LAVADEIRAS CAROTEIROS – HOMENS E MULHERES A SERVIÇO DO BEM COMUM E As práticas dos grupos ligados aos serviços de ganho eram também reconhecidas na suas relações com o espaço da cidade onde se localizava uma das nascentes do Rio Verruga – conhecido como Poço Escuro.161 Esse espaço era construído por relações estreitas com a vida cotidiana dos moradores da Rua Grande e os sujeitos envolvidos veiculavam nas suas práticas, os embates, lutas e tensões vivenciados num processo contínuo de produção desse espaço urbano, que influenciava significativamente a vida da comunidade. A leitura atenta dos jornais produzidos na cidade de Conquista entre as décadas de 1920 e 1940 possibilitou visualizar em matérias que tratavam sobre os problemas urbanos, a presença de pobres na cidade, deixou ver nas ausências de notícias sobre os problemas relacionados às suas condições sociais e, fundamentalmente, as relações de trabalho escondidas também nos silêncios dos documentos escritos, orais e imagéticos. Identificamos algumas trajetórias, valores, costumes, sensibilidades de homens e mulheres que prestavam serviços de ganho, subtraindo das entrelinhas diretamente dos documentos encontrados, os embates de grupos que disputavam um espaço político para o legislativo e executivo e utilizavam os problemas vinculados aos espaços urbanos para denunciar algum deslize da gestão municipal. Dentre os periódicos selecionados que tratavam diretamente da problemática de nosso estudo encontramos na leitura do jornal “Avante” notícias relacionadas às lavadeiras e aguadeiras, profissões que engendravam uma concepção peculiar do espaço urbano de Conquista, cujas experiências cotidianas estavam relacionadas a tensões, embates e lutas pela sobrevivência. UMA LAVADEIRA COM FEBRE! A ÁGUA LODOSA DO AÇUDE ESTÁ ADOECENDO AS INFELIZES PERSEGUIDAS. Este título foi dado a matéria escrita pelo jornalista Bruno Bacelar que compôs a primeira página do Jornal Avante em 7 de fevereiro de 1932. Este período foi marcado pelo forte acirramento dos confrontos políticos entre esse jornalista e o Coronel Deraldo Mendes Ferraz, este último foi indicado pelo Interventor Juraci Magalhães para ocupar a prefeitura da cidade de Conquista. Esse jornalista, militante político, integrante do Partido Liberal Conquistense, criado para apoiar a campanha da Aliança Liberal e simultaneamente organizar-se para os embates políticos locais, criou uma dissidência com o 161 O crescimento urbano, nas primeiras décadas do século XX, acompanhou o leito do córrego do Rio Verruga no sentido norte/sul, cuja nascente localiza-se na Serra do Periperi, no atual Poço Escuro, que atualmente compõe uma Reserva Municipal. Esse córrego passava pelos quintais das casas que circundavam o leito do Rio. 142 grupo do Coronel Deraldo Mendes após os caminhos tomados pelo Golpe de 1930, com as permanências do controle oligárquico marcado por um forte clientelismo, agora amparado pela interventoria de Juracy Magalhães. Em 1932, Bacelar foi acusado de participar de um grupo que apoiava a revolução constitucionalista e foi levado à Salvador onde ficou detido e depois retornou à cidade, onde continuou a produzir matérias para o Jornal Avante, mantendo uma postura de enfrentamento que, como registramos anteriormente, culminou, em 1933, com o incêndio que interrompeu a circulação do referido jornal. Apesar de longa, apresentamos a matéria na íntegra por entender que qualquer corte no texto possa vir a comprometer a força da matéria escrita e divulgada em um jornal de circulação na cidade e que, finalmente trás esses sujeitos silenciados pela história, dando-lhes nome, mostrando as suas estratégias na superação dos seus problemas, nos seus enfrentamentos insurgindo um movimento do grupo para interferir nas questões urbanas; acrescenta-se ainda que, o caminho da Caixa d’água até o açude atravessa todo o percurso da Rua Grande, espaço construído na análise desse estudo. Diante de tantas evidências propomos a integridade para dimensionar a situação dos trabalhadores do serviço de ganho na cidade de Conquista. Portanto, recomendamos a leitura: Conquista é uma cidade que em higiene todos sabem, todos vêem. Terra de bom clima e água excelente, dois fatores importantes para a prosperidade local, Conquista no entanto, devido a falta de higiene sofre constantemente ameaças epidemicas. O paratifo então, tomou amor a nossa terra e quase é que, daqui não sai. [...] Um caso interessante é o do nosso relato de hoje. Todos sabem da imundície da caixa dagua, setina dos desclassificados. Sabem todos disto, e sabem todos ainda do desleixo clamoroso da Prefeitura com aquele próprio municipal. Tudo alli vive em decadência, em legitimo abandono, tudo, tudo! As nossas constantes locais tangeram a Prefeitura proibir as lavadeiras de lavarem roupas nas torneiras da fonte pública. Estas, sem recursos, recorreram a um meio mais rústico e mais prático, com risco da própria saúde e da vida. Na parte baixa da fonte existe um lamaçal imundo e pôdre, fonte legitima do paratifo. Pois bem: depois de um dia de penósos sacrificios e muitos trabalhos, as lavadeiras conseguiram fazer uma represa insuficiente de agua barrenta e imprestável. Alli estavam num esforço titânico uma obra inútil e perigosa para a saúde: - uma represa de água suja e barrenta. Convencidas da insuficiência e perigo da barragem improvisada, (O MONUMENTO MAIOR DO RIDICULO DA PREFEITURA), as lavadeiras tomaram a deliberação de fazerem um calçamento na parte do lamaçal e assim desfeita a tapagem a água imunda se esgotaria e alli naquele palco paratífico, uma calçada de pedras largas e bem feitas substituiria a podridão que ainda alli se ver. Podia então, as pobres lavadeiras fazer o seu trabalho mais higienicamente sobre as calçadas referidas, por onde a água correria límpida e clara. A idéa pois, não era de todo má, para as pobres infelizes mourejadoras, desde quando a prefeitura nada fazia e cruzava os braços... Sem recursos e dispostas, as lavadeiras levantaram uma subscrição popular para o referido fim. 143 Descobrimos o fato e o eco do AVANTE! Foi vibrante em auxílio das pobres e incansáveis mulheres... A prefeitura, sem dúvida envergonhada e ridicularisada com o caso, numa vingança minuscula com as pobres lavadeiras, proibiu terminantemente os serviços de lavagem de roupas na caixa d’agua, proibindo também, o calçamento sanitário que as pobres mulheres tencionavam fazer a custo do povo, no charco pôdre que alli se vê, ainda agora. A proibição e vingança do Prefeito tem trazido ás pobres lavadeiras mil sacrifícios. Muitas, a maioria, pobresinhas, buscam água em pequenos pòtes para lavarem roupa em casa; outras coitadas, rumam para o grande açude imundo, com grandes trouxas e dentre estas uma pobre Clemência de tal com seu filhinho, ambos doentes, agora de febre, vítimas infelizes da água perigósa do referido açude cheio de lôdo e plantas aquaticas pôdres. Morre esta pobre mulher ou esta criança inocente, qual o único responsável? O Prefeito, sò o prefeito, unicamente o prefeito, que vingativo e colerico tange para um açude de água inutil para o povo as pobres mãis de família lavadeiras de roupas. Pobres mulheres, pobres creaturas! A prefeitura alem de nada fazer condena agora ao sacrifício e á morte as pobres mãis de família. Onde está o povo conquistense? Onde está nossa gente que não protesta, um ato assim desnaturado e cruel? O povo confia, bem sabemos, no AVANTE! E AVANTE! Por isso mesmo lança às faces dos responsáveis o seu protesto altivo de representante do povo. Não, as pobres lavadeiras precisam de trabalhar e queira ou não queira, a prefeitura tem o dever de mandar calçar a parte baixa da fonte, o local imundo e podre, fonte legittima de miasmas perigósos. Tem o dever a prefeitura de higienizar o referido local que o esfôrço das lavadeiras e a caridade do povo conquistense queria melhorar de sorte e de estado. Em maior ridículo não cairia a prefeitura não fazendo e não consentindo que se fizesse um serviço de urgente e extrema necessidade. O calçamento do lamaçal pôdre, a que nos referimos, se faz mister como um dever de honra da prefeitura.162 (sic.) Nesta matéria de primeira página Bacelar tratou de enfrentar o governo do Coronel Deraldo Mendes, ao denunciar as condições de trabalho das lavadeiras do córrego do Rio Verruga. Na contra mão da notícia que trata de tensões entre uma elite letrada que utilizava do jornal para construir seu lugar nas relações de poder, é revelada a existência de conflitos e as agruras que desafiavam as trabalhadoras responsáveis por manter a higiene pessoal, aparência do vestuário, da fatiota e da visibilidade física da elite conquistense, e que acabam por participar da disputa de um espaço urbano constituído de contradições, confrontações, lutas e embates. O jornalista inicia o seu texto fazendo um elogio à cidade. Esta que é a terra onde a qualidade do clima e da água favorecem à prosperidade. No entanto, a crítica direcionada a administração pública sobre a falta de higiene desse espaço: ‘Setina dos desclassificados’, ‘fonte legítima de miasmas perigosos’ corrobora a necessidade de um programa de 162 UMA LAVADEIRA COM FEBRE! A ÁGUA LODOSA DO AÇUDE ESTÁ ADOECENDO AS INFELIZES PERSEGUIDAS: Jornal Avante de 7 de fevereiro de 1932. 144 higienismo sanitário já utilizado nos principais centros urbanos do país. A cidade de Conquista foi grassada por uma epidemia de tifo que atingiu dezenas de pessoas no ano de 1927, trazendo para esta cidade uma comissão de sanitaristas que adotaram medidas de prevenção contra o tifo. Em Conquista, ainda segundo O Avante, a autoridade municipal esperava que o mal se instalasse, através das epidemias, para tomar providências sobre o seu controle. A prefeitura deveria, assim, passar a adotar os métodos sanitaristas para debelar o paratifo que ‘tomou amor a nossa terra’, no entanto debita procedimentos excludentes ao retirar as lavadeiras da fonte pública atendendo ‘as nossas constantes locais’, proibindo as lavadeiras de trabalharem neste local. Segundo Paulo Henrique Duque Santos, em seu estudo sobre as dimensões da vida urbana para a cidade de Caetité na Bahia entre 1940 a 1960, considera que, a preocupação com o controle sanitário, justificado por um discurso que dizia proteger o “bem comum” (a coletividade), articulava-se essencialmente a uma estratégia de manutenção da ordem. Para as elites dominantes, o modo de vida dos segmentos pobres representava uma ameaça constante aos ideais de sanitarismo exigidos a uma sociedade que se pretendia civilizada. Um surto epidêmico de proporções incontroláveis pelo serviço de saúde pública podia tornar-se mais um ingrediente de acentuação das práticas que fugiam às prescrições de salubridade regidas pelos valores modernos, de desestabilização da ordem urbana. 163 Esta relação entre o controle sanitário e a manutenção da ordem na cidade de Conquista insurgia neste espaço da fonte pública, no qual transitava sujeitos que intensificavam através das suas práticas, as prescrições de salubridade regidas pelos valores modernos, de desestabilização da ordem urbana.164 Proibindo as lavadeiras de utilizar a fonte pública – sem lhes oferecer outras alternativas de trabalho –, a administração municipal tangeu esse grupo de trabalhadoras para o açude na Rua da Várzea, local de acúmulo de água empossada pela precipitação de chuvas periódicas e o açude se transformava em um canteiro de lama e lodo. A mensuração do espaço nas políticas públicas de urbanização impunha deslocamentos da população pobre para áreas de várzea, lugares destituídos dos equipamentos urbanos essenciais para a manutenção do trabalho. 163 SANTOS, Paulo Henrique Duque. Cidade e Memória: dimensões da vida urbana – Caetité – 1940-1960. Rio de Janeiro, UNIRIO, 201. 203 p. Dissertação de Mestrado para obtenção do grau de Mestre em Memória Social e Documento. P. 90-91. 164 Op.Cit. Duque, p.91 145 146 Esse deslocamento provocado pela interdição elimina ainda as atividades costumeiras dessas mulheres pobres, que residiam nas proximidades da Caixa d’água que lhes possibilitavam usufruir outros benefícios concernentes aos fatores de sociabilidades, ajuda mútua e subsistência. Dentre os problemas advindos do deslocamento das lavanderias executarem suas tarefas, talvez o mais agudo fosse a distância percorrida com trouxas de roupa, a necessidade de transportar água em grande quantidade, conduzindo vasilhas, quase sempre, nas cabeças. No início das matérias em 1931, na quais chamava atenção da população e das autoridades sobre as péssimas condições de trabalho das lavadeiras que receberam um tom de verdadeira campanha, Bacelar denuncia que, A água do açude é verdadeiramente imprestável, lodosa, toldada por animais que ali fazem bebedouro, além de distante da cidade, meia légua, para os moradores da parte alta. A distância seria o menos, se a podriqueira e imundície da água não obstassem o serviço. E sofrem as coitadinhas!... Uma na Rua dos Fonsecas, conduziu à Caixa d’água, 30 latas d’água para lavar roupa em casa, apurando sabem quanto? Dois mil e quinhentos reis.165 (sic.) No “palco paratífico” da rua da Várzea as lavadeiras buscaram uma resolução para os problemas enfrentados na subtração do espaço da Caixa d’água. No relato do jornal “Avante” de 1932, vimos um movimento de enfrentamento político desse grupo de mulheres, que alijadas do seu local de trabalho organizaram um documento de “subscrição popular” para a construção de uma calçada de pedras para impedir o acúmulo de dejetos e lama, que, segundo o jornal, levou ao acirramento das determinações do poder municipal que proibia terminantemente os serviços de lavagem de roupas na Caixa d’água, impedindo também o calçamento sanitário que as mulheres tencionavam fazer. O Jornal “Avante”, com a contribuição de Bacelar deflagrou uma campanha aberta contra o executivo municipal, na composição de um clamoroso embate denunciando a situação dos trabalhadores dos serviços de ganho frente à postura de um poder público incapaz e refratário às transformações em prol do bem comum. Considerando aqui, o sentido de bem comum referente a um grupo específico, que era atendido em suas necessidades, por esses trabalhadores. Continuando a campanha, um mês depois da denúncia feita na matéria sobre “uma lavadeira com febre”, em outra matéria tornava a fazer novos protestos sobre os ‘descasos’ 165 Jornal Avante de 20 de dezembro de 1931. 147 cometidos no “Poço Escuro” que abastecia a população de água doce, desta vez envolvendo também as aguadeiras: E agora? Vai-se na caixa d’agua, penetra-se mais alem um pouco, no Poço Escuro, e o que se vê é lastimável. Fezes humanas de um lado e de outro do pequeno rêgo de tijolos, agora sem duvida lavadas pelas chuvas torrenciais da semana e trazidas para ás torneiras da caixa d’agua e bebidas (que miséria!) pela população! É inacreditável tanto descaso publico, tanta imundície! Vimos o que registramos e conosco todos que ali foram antes das ultimas chuvas. Aliás o ser esse local uma setina pública dos desclassificados é cousa já sabida. Muito e inumerosas aguadeiras têm verificado nos seus vasilhames a existência de fezes humanas e de animais, e mais outras incontáveis imundícies. 166 (sic.) No confronto percebido nas duas matérias, vimos que os usos da água eram bastante variados. Lavadeiras, aguadeiras e os caroteiros comungavam do mesmo espaço pelo uso da água. Dentre essas atividades a que se tornou intolerante às vistas do poder público foi a lavagem de roupa, talvez por concentrar características próprias de enfrentamento, já que as lavadeiras utilizavam o espaço de forma diferenciada: Elas passavam mais tempo no local, entre a lavagem, coarar e as vezes secar as roupas; geralmente levavam os filhos – Como ‘Clemência de tal com seu filhinho, ambos doentes, agora de febre, vítimas infelizes da água perigosa do referido açude’; essas mulheres também faziam as refeições no local e consequentemente utilização o espaço também como sanitário para atender as suas necessidades fisiológicas. As interferências das lavadeiras potencializavam os problemas ocorridos no espaço da Caixa d’água, mais do que o uso do local feito pelas aguadeiras e caroteiros, que chegavam carregavam seus vasilhames e desciam para o abastecimento das casas, determinando talvez um enfrentamento também, no interior desses grupos. Já que ‘muito e inumerosas aguadeiras têm verificado nos seus vasilhames a existência de fezes humanas e de animais, e mais outras incontáveis imundícies’, essa categoria de trabalhadoras foram ouvidas pelo jornalista que não tratou de publicar um conflito interno entre elas, quando a sua campanha era contra a prefeitura. 166 Jornal Avante de 27 de março de 1932. 148 Figura 18 - Fonte Pública Municipal Água de Nossa Senhora, anos 30 (acervo MRVC) Detalhe da Figura 18- Caroteiro em serviço Detalhe da Figura 18 - Carote e mula Como lugar de uso coletivo, o espaço da fonte pública, fazia emergir esses sujeitos que, através da sua força de trabalho atendia a uma necessidade básica e intransferível, que é o saneamento e a distribuição da água para a população, como também os serviços das lavadeiras de roupas. No entanto, segundo o jornal, até as ‘lavadeiras que, gratuitamente se encarregavam do asseio das águas da fonte, foram expulsas como serviço higiênico’. Aqui cabe considerar que a intenção do jornalista privilegia as lavadeiras – utilizadas na sua campanha contra a administração municipal e não interessava, no momento, fazer eclodir um conflito entre esses grupos de trabalhadores: ‘ não nos cansamos de protestar o ato desnaturado do prefeito, proibindo as lavadeiras do ganha-pão.’167 Ainda se tratando do serviço de água e especificamente do abastecimento das casas, as aguadeiras e caroteiros, 167 Jornal Avante de 27 de março de 1932 149 talvez angariasse uma atenção diferenciada, por parte da prefeitura, devido a condição de preservar a limpeza da água para o consumo da população. No entanto, esses trabalhadores apareciam mediante a necessidade dos seus serviços para atender a população privilegiada na aquisição da água e, desta forma, eram considerados em seus papéis sociais, conforme os desígnios dos mandatários, que assim ofereciam atenção legal, nos seus trajetos: Pelo Conselheiro Alziro Prates, foi requerido ao Senhor Intendente informações a respeito de um muro que se construiu no caminho da Caixa d’água, junto ao quintal ou melhor Chacara da Senhora Dona Vicência de Tal, muro este que está prejudicando aos transeuntes e aguadeiros; requerimento que foi unanimemente approvado.168 (sic.) (grifo meu) Ao refletir sobre as condições determinantes para a confecção do espaço, Milton Santos, considera que, No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, formas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contigüidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através de ações comunicativa, pelas mais diversas manifestações de espontaneidade e da criatividade.169 Sendo assim, é importante destacar que a fonte pública, como um espaço construído por serviços e sociabilidades comporta uma diversidade de territórios. Ao estabelecer funções diferenciadas para o mesmo espaço, cada um desses grupos de trabalhadores vivenciavam e atuavam singularmente nesse espaço. A proximidade entre as estratégias de superação levou esses sujeitos a compor nesse mesmo espaço compartilhado de enfrentamentos e lutas a garantia da sua sobrevivência. Quando as lavadeiras, apresentadas no jornal “Avante”, através do texto e da postura política de Bacelar, elas não se contentaram em esperar a solução do poder publico, tomaram 168 Livro de Atas do Conselho Municipal. (1926). Ata da Sessão ordinária do Conselho Municipal, do dia 16 de fevereiro de 1926. Código: 12.2.22. Arquivo Municipal de Vitória da Conquista. 169 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço – Técnica e Tempo. Razão e Emoção. Editora Hucitec, São Paulo, 1996. 150 uma atitude, construíram uma represa e um calçamento que serviam para retirar ‘a podridão’ e as substituíam por uma “calçada de pedras largas e bem feitas”, e, desta forma, acabaram interferindo no espaço urbano. Esse grupo de trabalhadoras - lavadeiras de roupa da cidade de Conquista construíam, dessa forma, os seus próprios espaços e deles se apropriavam de forma inteiramente diversa, indo na direção contrária do poder público. São práticas urbanas, que se desenvolviam à revelia dos mecanismos de controle de compartimentar a urbe, que marcaram tantas reentrâncias nos lugares da cidade, ao tempo que também construíam e transformavam, revelando, portanto, a materialidade de diversos usos do espaço urbano e uma relatividade impressa na ordenação pretendida pelas elites locais. 151 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao buscar perceber e reconstituir as memórias dos sujeitos que habitaram o espaço da Rua Grande na cidade de Vitória da Conquista entre as décadas de 1920 e 1940, na perspectiva de encontrar a presença das práticas de todos os segmentos que circularam neste espaço, pensei em construir as dimensões dessas experiências e ações pelas quais esses sujeitos imprimiram suas marcas na trajetória das transformações deste núcleo de ocupação urbana. Na tentativa de incorporar mudanças no espaço urbano, as elites dominantes da cidade de Conquista imbuídas de valores predominantemente universais excluem do projeto de modernidade as particularidades e subjetividades das experiências sociais. Buscando construir um espaço ordenado, de formas harmônicas para homogeneizar e controlar as condutas sociais consideradas inadequadas a expectativa de construir um projeto de cidade racional, elaborada por uma legislação que estabelecia normas autoritárias e excludentes. Porém, para além dessa legislação vigente vimos que os usos dos solos urbanos foram apropriados por sujeitos que improvisaram suas práticas cotidianas e de trabalho, deixando aparecer conflitos e embates, imprimindo as marcas da sua trajetória em múltiplas territorialidades. Realizamos grande esforço para deixar evidente que as leis municipais, o código de posturas e os jornais de circulação local, elaboraram um projeto de ordenamento e regulação dos usos dos equipamentos e espaços urbanos, cujo propósito era buscar implementar regras e disciplinas que pudessem legitimar um ideário de civilidade e progresso, cuja intenção era demonstrar o lugar social assumido por esse grupo na cidade que o diferenciava dos outros e cujo patrimônio material e simbólico estimulasse as lembranças apenas sobre sua existência como elite dirigente. No entanto, esse projeto e as memórias que pretendiam trazer à baila encontraram resistências e enfrentamentos de segmentos pobres, roceiros e comerciantes que vendiam a produção agropecuária na feira-livre, trabalhadores que prestavam serviços básicos – abastecimento de água doce, lavagem de roupas -, que sobreviviam através dos ganhos dessas práticas, utilizando os equipamentos oferecidos neste espaço. Como esses sujeitos encontravam-se invisibilizados pela documentação, debitamos nossas indagações nas construções narrativas direcionando o olhar sobre as imagens fotográficas reveladas no período e os desdobramentos das narrativas orais dos moradores que ainda habitam e vivem nesse espaço na cidade. Para tanto, fez-se necessário buscar no Museu 152 Regional da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, da Cidade de Vitória da Conquista, a atualização dessas memórias, tendo em vista discutir as “exclusões” impressas nas atribuições dos valores simbólicos e materiais sobre o acervo e nos recortes inscritos no delineamento das escolhas dos sujeitos que estão representados neste lugar para a cidade, procuramos investigar a constituição das políticas culturais do Museu através dos seus projetos elaborados pelas diversas diretorias que circularam, neste espaço, que consideramos nessa pesquisa como ‘lugar de memória’. A construção de uma memória social instituída pelo Museu Regional articulada na elaboração dos seus acervos significa um recorte de uma classificação exercida por relações de poder no interior da instituição. O estudo em questão buscou problematizar o espaço da cidade enquanto território de trocas simbólicas e materiais, constituídas de relações humanas produtoras de valores, normas, sentidos e significados e procuramos considerar que, a construção arquitetônica que a sustenta não apresenta neutralidade. Vimos através das fotografias do acervo do Museu que as transformações promovidas na Rua Grande objetivavam criar uma visibilidade modernizadora sobre esse espaço, conferindo um ideário de ‘aformoseamento’ que viria atender a um projeto civilizador, harmonizado para o conforto e deleite de uma elite proprietária que almejava privatizar a Rua Grande. A produção fotográfica marcada por olhares, enquadramentos e posturas dos fotógrafos através dos tempos nos provoca indagar, avaliar com atenção e desafia interpretá-las como um esforço desse grupo para transformá-la em lugar de memória que através da coleção fotográfica, chegou até a nós como luz que nos acena interessada em abrir uma porta de acesso para o passado. Procuramos neste estudo investigar campos de força marcados por interesses, valores e normas de diferentes grupos que atuam e disputam de várias formas o mesmo espaço, fazendo emergir os confrontos de segmentos sociais, com suas vivências e práticas que imprimiram com suas intervenções marcas indeléveis sobre esse espaço da Rua Grande. Neste sentido, refletimos sobre as memórias produzidas na instituição do Museu Regional e indagamos sobre os enquadramentos que elaboram para conformá-las na contemporaneidade, percebendo uma contraposição que iluminando com lembranças alguns grupos de maior visibilidade, tratou de jogar no esquecimento e na escuridão do silêncio outros segmentos importantes que independente da avaliação se mantiveram presentes com suas atuações neste espaço da cidade. Na produção dessa história sobre “memórias e fotografias nas transformações urbanas de Conquista entre 1920 e 1940 buscamos refletir sobre os conflitos, embates e lutas dos 153 sujeitos que estavam excluídos das “fugas” de uma memória seletiva e lacunar que foi percebida em cuidadosas leituras “a contrapelo” sobre as linguagens visuais, orais e textuais. Considerando com Raymond Williams que “a linguagem é constitutiva do sujeito” ao contextualizar memórias orais e escritas, narrativas de jornalistas, poetas, fotógrafos, prestando atenção nos procedimentos e método para construção da operacionalização da prática histórica, percebemos a emergência desses sujeitos que mantiveram com trabalho e sociabilidades, as singularidades de uma cultura de pouca visibilidade à construção do espaço. Ao procurar compreender como os espaços da cidade foram construídos a partir das experiências dos sujeitos em suas diversas temporalidades e múltiplas sociabilidades, esperamos ter contribuído para ampliar o debate sobre aspectos das relações e tensões culturais construídas na história de Vitória da Conquista, como uma proposta de ampliação do conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o seu mundo. 154 ACERVOS, FONTES E BIBLIOGRAFIA ACERVOS Públicos Biblioteca Heleuza Câmara do Museu Regional – Casa Henriqueta Prates de Vitória da Conquista – Bahia. Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista. Arquivo Público do Estado da Bahia – Setor da biblioteca – Salvador - BA. Particulares Biblioteca particular do Professor Ruy Hermann de Araújo Medeiros. Acervo Particular do Sr. Mário Brito. FONTES Iconográficas Fotografias do Acervo do Museu Regional – Casa Henriqueta Prates de Vitória da Conquista Bahia. Manuscritas Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista – Bahia. Livro de registro de atas do Conselho Municipal da cidade de Conquista – 1922- 1927. 155 Livro de registro dos Projetos de leis do Conselho Municipal de Conquista – 1923-1930. Livro de registro de atos do Prefeito Municipal – 1939-1940. Livro de Decretos e Portarias da Prefeitura Municipal – 1943-1945. Impressas Biblioteca do Arquivo Público do Estado da Bahia – Salvador - BA. Decreto-lei n.75 de 29 de agosto de 1938 que cria o Código de Posturas do Município de Conquista. Biblioteca Particular do Prof. Ruy Hermann de Araújo Medeiros. JORNAIS A Semana. Vitória da Conquista – Bahia, 1923-1929. A Vanguarda. Vitória da Conquista - Bahia, 1926. Avante. Vitória da Conquista –Bahia, 1931 – 1933. A Conquista. Vitória da Conquista- Bahia, 1944. O Combate. Vitória da Conquista – Bahia, 1930 – 1940. BIBLIOTECA HELEUZA CÂMARA DO MUSEU REGIONAL – CASA HENRIQUETA PRATES DO MUSEU REGIONAL DE VITÓRIA DA CONQUISTA – BAHIA. Jornais O Fifó. Vitória da Conquista – Bahia, 1977 – 1978. 156 Diário do Sudoeste. Vitória da Conquista – Bahia, Edições especiais, 2000. Publicações Revista Memória Conquistense. Vitória da Conquista – Bahia. Publicação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Diversos artigos, vários números, 1995 – 2009. Revista Histórica de Conquista (dois volumes). Vitória da Conquista - Bahia. Publicação da Gráfica do Jornal de Conquista. Diversos artigos, 1982. ACERVO PARTICULAR DO SR. MÁRIO BRITO. Jornal Jornal Hoje. Vitória da Conquista – Bahia, diversos artigos, vários números, 2000. FONTES ORAIS Relação de Entrevistados BRITO, Mário, 84 anos, trabalhou por muito tempo no comércio de Conquista, em 1962 montou uma lavanderia, trabalhou como garçom no clube social durante 25 anos onde afirma que conheceu muita gente da cidade, atualmente possui uma lavanderia junto a sua residência em uma rua próxima a feira livre da cidade. Entrevista em 16/08/2010. 30min., 2010. CÂMARA, Heleuza Figueira, 67 anos, Diretora do Museu Regional de Vitória da Conquista em 1995 e 1996, Professora aposentada do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Entrevista em 21/05/2010, Vitória da Conquista – BA, 120 min., 2010. FONSECA, Humberto José, 55 anos, Diretor do Museu Regional de Vitória da Conquista em 1998, é atualmente professor titular do Departamento de História – DH da Universidade estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Entrevista em 17/05/2010, Vitória da Conquista – BA, 80 min., 2010. MEDEIROS, Ruy Hermann de Araújo, 64 anos, como historiador elaborou juntamente com a Profª Elzir o Projeto de Criação do Museu Regional de Vitória da Conquista, é atualmente 157 professor titular do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas – DCSA da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Entrevista em 17/05/2010, 145 min., 2010. MELO, Elízio, 66 anos, filho de Manoelito Melo, neto de Manoel Eufrázio dos Santos Melo e Gaudêncio Alves dos Santos, os primeiros fotógrafos da cidade de Conquista. Entrevista em 02/06/2010, 40 min., 2010. MOTA, Janilde, 67 anos, Professora do magistério e formada em sociologia, teve sua vida entrelaçada às práticas da Igreja Católica e atualmente aposentada do ensino estadual, mantém um interesse nos assuntos da cidade. Entrevista em 04/07/2010, 120 min., 2010. NOVAES, Ornélia Júlia, 81 anos, Reside atualmente na Rua Lisboa, antiga Rua do Sissi, perpendicular à Rua Grande, sua história de vida é contada no transitar dessas ruas que vive desde a infância. Entrevista em 05/07/2010, 70 min., 2010. OLIVEIRA, Maria, 73 anos, moradora da rua dois de julho freqüentava o espaço da rua para ir à igreja, a feira e passear na praça. Entrevista em 12/06/2010. 30min.,(2010). ROSA, Maria Angélica, 92 anos, Filha de D. Zaza e neta do Coronel Gugé, vive ainda hoje na casa tombada pelo governo do estado da Bahia, construída pelo Avô na Praça Barão do Rio Branco. Entrevista em 03/08/2010, 100 min., 2010. VILAS BÔAS, Elzir da Costa, 68 anos, Diretora do Museu regional de Vitória da Conquista no período de 1992 a 1994, é atualmente professora aposentada do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas – DFCH da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Entrevista em 18/052010, Vitória da Conquista – Bahia, 115 min., 2010. Relação dos Entrevistados do Projeto: Conquista Era assim... do Museu Regional – Casa Henriqueta Prates. MOTA, Janilde e ROSA, Maria Angélica. Entrevista em 19/10/1993. 120 min. Entrevistadas por Elzir da Costa Vilas Bôas. ROCHA, Luiz Prates. Entrevista em 06/06/2002. 100min. Entrevistado por Ednalva Pereira Padre. 158 BIBLIOGRAFIA ABREU, Regina; CHAGAS, Mário de Souza. 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