Clique aqui para baixar o artigo
Transcrição
Clique aqui para baixar o artigo
O DIVÓRCIO APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66 DE 2010: ANOTAÇÕES PARA UMA PRIMEIRA ABORDAGEM Roberto Paulino de Albuquerque Júnior Doutor e mestre em direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor adjunto de direito civil da Faculdade de Direito do Recife Universidade Federal de Pernambuco. Professor de direito civil da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade Marista do Recife. Advogado. SUMÁRIO. Introdução. 1. O instituto da separação judicial: origem e função. 2. O alcance da Emenda 66. 2.1. O problema da aplicabilidade imediata da emenda. 2.2. Sobre a separação judicial após a EC 66/10. 2.3. A separação de fato. 2.4. Causas e procedimentos do divórcio após a EC 66/10 3. Conseqüências da Emenda 66 sobre a situação das pessoas já separadas judicialmente e os processos de separação judicial pendentes. Considerações finais. Referências bibliográficas. “O período atual, porém, não é de conservação, é de reforma, tão extensa, tão larga e tão profunda que se possa chamar Revolução.” (Joaquim Nabuco, Campanha Abolicionista no Recife, Brasília, Senado Federal, 2005, p. 57) Introdução Recentemente promulgada, a Emenda Constitucional nº 66 de 2010 efetuou substancialíssima modificação no direito de família brasileiro, ao permitir o divórcio direto sem requisito de separação judicial prévia. Sua entrada em vigor tem gerado certa polêmica entre os profissionais da área, dadas as divergências doutrinárias que começam a ser debatidas nos primeiros textos publicados. Após a EC 66/10, a principal destas divergências consiste na manutenção do instituto da separação judicial mesmo após a inequívoca autorização constitucional para o divórcio direto. 1 Neste sentido, antes mesmo de cuidar das demais questões técnicas envolvidas, precisa o intérprete responder se a separação permanece como uma faculdade deferida às partes ou se está definitivamente extinta. E a resposta dada a esta primeira indagação condicionará, como é evidente, as soluções que serão oferecidas à maioria dos problemas subseqüentes. A possibilidade de subsistência da separação de direito, no entanto, não é algo que se possa decidir tão facilmente, como a uma primeira vista possa parecer. A regra constitucional demanda daquele que sobre ela se debruça uma abordagem mais cuidadosa, pois seu texto, interpretado literalmente, não diz expressamente se a separação se mantém ou se extingue.1 O reformador constituinte perdeu a oportunidade, como se vê, de deixar livre de dúvidas a nova regulamentação do divórcio. Essa imprecisão só pode ser sanada, entretanto, pelo intérprete, e a este cabe fazê-lo de forma fundamentada e coerente com as regras do sistema. Reitere-se: a interpretação a ser adotada precisa estar apoiada em uma argumentação jurídica devidamente fundamentada e controlável, não podendo ser o resultado de uma escolha arbitrária ditada por preferências pessoais. Para tanto, torna-se necessário “fazer uma análise histórica da figura do divórcio no Brasil, buscar as razões políticas e sociológicas que inspiraram a mudança recentemente ocorrida.”2 Essa análise histórica reclama um estudo, mesmo que breve, do instituto da separação judicial. É preciso investigar sua origem e sua função no direito de família, de modo a compreender o papel que desempenha no processo de construção jurídica da figura do divórcio. Delimitado o papel e a função da separação judicial, passará o texto a discutir a eficácia da emenda, a manutenção ou extinção da separação e os principais aspectos do tratamento jurídico do divórcio após a EC 66/10. 1. O instituto da separação judicial: origem e função 1 Eis o texto novo: “Art. 226. (...) §6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.” VELOSO, Zeno. O novo divórcio e o que restou do passado. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=661. Acesso em: 30/08/10. No mesmo sentido: LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10. 2 2 A indissolubilidade do vínculo e conseqüente proibição do divórcio têm origem canônica,3 sendo no entanto importante observar que a matéria não foi sempre pacífica entre os doutores da Igreja.4 No direito brasileiro pré-codificado não se utilizava as expressões desquite ou separação judicial, apenas o termo divórcio, oriundo do direito romano. Como o casamento era regido pelo direito canônico até a proclamação da República,5 o divórcio não atingia o vínculo conjugal, mesmo que se tratasse de matrimônio entre não-católicos, pois a influência canônica permanecia inscrita no direito civil.6 Contrariamente, no direito antigo, apesar do fundamento religioso do casamento, o divórcio era permitido e possibilitava o fim de todos os efeitos matrimoniais, desde que fossem seguidos os procedimentos rituais para tanto.7 Ao longo do desenvolvimento do direito romano, a possibilidade de ruptura conjugal plena se manteve. 8 Mesmo depois de Constantino, registram 3 “Em verdade, porém, o princípio da indissolubilidade ficou ligado à legislação e à jurisdição da Igreja Católica sobre o casamento, embora contra a tradição passada.” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsói, 1971, tomo VIII, p. 38). Confira-se, a respeito, o Código Canônico de 1983: “Can. 1056 — Essentiales matrimonii proprietates sunt unitas et indissolubilitas, quae in matrimonio christiano ratione sacramenti peculiarem obtinent firmitatem.” 4 Pontes de Miranda mostra que, apesar da proibição do divórcio ter sido um dos primeiros pontos de separação entre a nova religião e o judaísmo, a doutrina anti-divorcista só se fixou no século XII, bem como que o tema voltou a ser discutido no Concílio de Trento, ou seja, no século XVI (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsói, 1971, tomo VIII, pp. 39-41). 5 Vide LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 22. 6 Neste sentido, PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família. Campinas: Russell, 2003, pp. 97-101. Vale referir que o artigo 158 da Consolidação das Leis Civis expressamente remetia as questões de divórcio à jurisdição eclesiástica, não podendo a justiça secular delas conhecer (FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 3 ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876, p. 150). No Esboço, Teixeira de Freitas manteve o divórcio sem dissolução do vínculo, no art. 1379 (FREITAS, Augusto Teixeira de. Código Civil: esbôço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 1952, vol. II, p. 503). 7 “The Roman law did indeed permit the dissolution of the marriage by coemptio, or by usus. The dissolution of the religious marriage was very difficult. For that, a new sacred ceremony was necessary. as religion alone could separate what religion had united. The effect of the confarreatio could be destroyed only by the diffarreatio. The husband and wife who wished to separate appeared for the last time before the common hearth; a priest and witnesses were present. As on the day of marriage, a cake of wheaten flour was presented to the husband and wife. But, instead of sharing it between them, they rejected it. Then, instead of prayers, they pronounced formulas of a strange, severe, spiteful, frightful character, a sort of malediction, by which the wife renounced the worship and gods of the husband. From that moment the religious bond was broken. The community of worship having ceased, every other common interest ceased to exist, and the marriage was dissolved.” (COULANGES, Numa Denis Fustel de. The ancient city. Kitchener: Batoche Books, trad. Willard Small, p. 36-37). Sobre o casamento no direito antigo confira-se ainda MAINE, Henry Sumner. Diritto antico. Milano: Giuffrè, 1998, trad, Alessandra Ferrari, pp.118-123. 3 os romanistas que os imperadores cristãos se limitaram a tentar combater o divórcio, sem terem obtido em momento algum a sua proibição.9 No direito germânico o princípio era o mesmo, admitindo-se o divórcio unilateral por repúdio e, posteriormente, por influência romana, o decorrente de mútuo consentimento.10 A herança romano-germânica de dissolubilidade do vínculo conjugal foi obstruída, como dito, pelo legado do direito canônico e sua restrição aos efeitos do divortium romano, tradição que no direito brasileiro nem mesmo a laicidade do casamento civil republicano conseguiu afastar.11 Desta forma, o Código Civil de 1916 ofereceu uma única solução jurídico-formal para a crise entre os cônjuges, o desquite. Seus efeitos se limitavam à dissolução da sociedade conjugal, suspendendo os deveres do casamento e mantendo intacto o vínculo matrimonial, com a conseqüente impossibilidade de contrair segundas núpcias. Tinha-se, enfim, a manutenção da regra vigente sob o sistema pré-codificado, adotando-se apenas uma terminologia mais precisa. Essa construção jurídica cedo se mostrou anacrônica e incapaz de responder adequadamente ao fato social inquestionável de que nem todas as uniões conjugais são bem-sucedidas. Discrepando da experiência de outros sistemas jurídicos contemporâneos, que na esteira da tradição romano-germânica preservavam ou ao menos resgatavam a figura do divórcio a vínculo, 12 o direito brasileiro estagnou-se em matéria matrimonial por não conseguir expulsar da lei civil a 8 “En cette matière, les romains partaient du principe, que le mariage, d´aprés sa nature morale, consideré comme une libre union des époux pendant toute la vie, devait également cesser par leur volonté, lorsque les deux époux ou l´un d´eux ne se sentait plus destiné a une pareille communauté. (…) Justinien confirma ces principes et les précisa en plusieurs points.” (MACKELDEY, F. Manuel de droit romain. 3 ed. Bruxelles: Société Typographique Belge, 1846, p. 266). 9 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 670. 10 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsói, 1971, tomo VIII, pp. 37-38. 11 José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz observam que a proibição do divórcio a vínculo depois da República teria ainda uma forte influência do positivismo comtiano, que o repudiava (OLIVEIRA, José Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de direito de família. 4 ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 419). 12 Eduardo Espínola enumerava, já a seu tempo, a multiplicidade de legislações que reconheciam o divórcio, direto ou precedido de separação judicial (ESPÍNOLA, Eduardo. A família no direito civil brasileiro. Campinas: Bookseller, 2001, 462-467). 4 forte influência religiosa, em tema no qual ela deveria ser rigorosamente abstraída por força da separação entre Estado e Igreja.13 A crítica da doutrina à indissolubilidade do vínculo matrimonial foi sintetizada de forma tão dura quanto justa por Pontes de Miranda, em passagem da qual o leitor não merece ser privado: A palavra “desquite” designa a dissolução da sociedade conjugal, conservando-se o vínculo (foedus matrimonii), corresponde ao divórcio canônico, que se superpusera, no tempo, ao divórcio romano. A indissolubilidade do vínculo, onde se mantém nas formas jurídicas, perdeu quase toda a significação, sob a complacente atitude de tolerância com que os crentes aceitam a hipocrisia das anulações de casamentos. A sua conservação é um dos índices de que a personalidade humana está em decadência nesses países; o favorecimento das anulações, a recepção desses casamentos nos meios ditos católicos, é índice de quanto a hipocrisia constitui a base da sociedade política.14 Era natural, portanto, que a sociedade civil se organizasse para postular a alteração legislativa (no Brasil dificultada pela previsão constitucional da indissolubilidade matrimonial) e obter a regulamentação do divórcio. O momento histórico que se seguiu é bem conhecido, e culminou com a aprovação da Emenda Constitucional nº 9/77, seguida da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77). Os debates no parlamento foram, no entanto, extremamente acirrados. Como solução de compromisso entre as bancadas divorcista e antidivorcista, o divórcio a vínculo foi admitido mediante uma série de restrições voltadas a dificultar a sua obtenção. Entre elas, a manutenção de um período prévio de 13 “A questão da dissolubilidade ou indissolubilidade do vínculo – e, portanto, a questão do divórcio – não pode ser discutida, em uma sociedade secularizada e pluralista, nem a partir de uma doutrina transcendente do vínculo matrimonial, nem a partir de premissas de natureza confessional. Isso quer dizer, em um primeiro plano de aproximação, não ser possível impor a não-católicos a visão sacramental do matrimônio nem ser possível transpor para o ordenamento jurídico estatal as concepções próprias da visão católica da vida, como não é possível transpor, a rigor, as concepções de nenhuma confissão religiosa, sem com isso cometer uma violência para com os cidadãos que não concordem com as concepções em questão.” (OLIVEIRA, José Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de direito de família. 4 ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 420) 14 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais, tomo IV, 1973, p. 403. 5 desquite, sob o novo nome de separação judicial, os prazos e as causas subjetivas culposas.15 Por essa razão, a separação judicial foi corretamente descrita como uma “etapa prévia” para a obtenção da ruptura do vínculo, a “antecâmara do divórcio.”16 Não se trata de um instituto autônomo que atenda a alguma finalidade específica só por ele alcançável, mas sim de um requisito imposto pela lei para que se possa chegar ao divórcio, do qual a separação constitui mera etapa preparatória e acessória. Vale ressaltar que este requisito de uma separação preliminar ao divórcio nem sempre está presente nas legislações da civil law, como uma ligeira incursão no direito comparado pode demonstrar. Alguns sistemas jurídicos mantém um divórcio obrigatoriamente dual, precedido de uma separação de corpos. Entre eles deve-se apontar o modelo italiano, no qual a regra geral é a da separação prévia ao divórcio por três anos,17 sendo desnecessário explicitar a forte influência católica que para isso contribui. Outros permitem a opção entre o divórcio direto e a separação judicial, como na França.18 Por fim, há modelos que simplesmente ignoram a fase de separação de direito, como na Alemanha.19 15 Neste sentido, VELOSO, Zeno. O novo divórcio e o que restou do passado. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=661. Acesso em: 30/08/10. 16 OLIVEIRA, José Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de direito de família. 4 ed. Curitiba: Juruá, 2004, p. 427. 17 Confira-se a Lei 798 de 1970 (alterada em 1982 e 1987), que inseriu o divórcio no direito italiano. Na doutrina pode-se consultar, entre tantos outros, ROPPO, Vincenzo. Istituzioni di diritto privato. 5 ed. Bologna: Monduzzi, 2005, pp. 811-817. O rigor da lei italiana, no entanto, não tem impedido o aumento do número de divórcios, como demonstram com farto material estatístico VIGNOLI, Daniele; FERRO, Irene. Rising marital disruption in Italy and its correlates. Demographic research. Rostock: Max Planck, vol. 20, jan. 2009, pp. 11-36. 18 Vide os artigos 296 a 298 do Código Civil francês, que tratam da separação de corpos, e os arts. 299 a 238, explicitando as hipóteses de divórcio. No art. 230 lê-se: “Le divorce peut être demandé conjointement par les époux lorsqu'ils s'entendent sur la rupture du mariage et ses effets en soumettant à l'approbation du juge une convention réglant les conséquences du divorce.” 19 Confira-se o § 1565 do BGB, na tradução inglesa: “Breakdown of marriage. (1) A marriage may be dissolved by divorce if it has broken down. The marriage has broken down if the conjugal community of the spouses no longer exists and it cannot be expected that the spouses restore it. (2) Where the spouses have not yet lived apart for one year, the marriage may be dissolved by divorce only if the continuation of the marriage would be an unreasonable hardship 6 A dispensabilidade da separação judicial se pode inferir, assim: (a) da tradição jurídica romano-germânica do divórcio direto; (b) dos mencionados motivos de política legislativa caracterizadores de uma etapa de transição e que conduziram à dicotomia separação-divórcio no direito brasileiro; (c) da relativização operada pela Constituição de 1988, que permitiu o divórcio direto após dois anos de separação de fato; (d) da constatação, no direito comparado, de que uma etapa de separação não é essencial ao divórcio. Extraem-se, desta forma, duas importantes conclusões. A primeira é que a separação, no direito brasileiro, constitui apenas uma exigência legal preparatória para o divórcio, e a segunda que a separação pode perfeitamente ser suprimida do sistema sem que com isso se viole o instituto do divórcio ou lhe retire um elemento essencial. Com base nessas premissas pode-se partir para a etapa seguinte, que é a de investigar se, a partir da admissão do divórcio direto no Brasil, a separação judicial foi ou não expulsa do ordenamento, para daí partir às demais questões. 2. O alcance da Emenda 66 2.1. O problema da aplicabilidade imediata da emenda Demonstrar que a separação judicial poderia ser extinta por emenda constitucional, evidentemente, não resolve o problema posto. A dificuldade se encontra em saber se, podendo fazê-lo, de fato o fez. Para isso é preciso examinar, preliminarmente, a eficácia da Emenda 66/10. Há os que defendem sua auto-aplicabilidade e há os que demandam uma regulamentação infra-constitucional para que possa produzir efeitos. for the petitioner for reasons that lie in the person of the other spouse.” (Disponível em: http://www.gesetze-im-internet.de/englisch_bgb/englisch_bgb.html#BGBengl_000G145). Sobre os fundamentos da regra, deve-se observar: “Segundo o direito vigente, para o divórcio não depende mais por quem a ruptura foi ocssionada ou de quem é a culpa. Agora a única causa do divórcio é o fracasso da união conjugal. Se uma união conjugal – por motivo que seja – estiver fracassada, ela pode ser dissolvida por divórcio a pedido de qualquer cônjuge (§ 1565 al. 1 frase 1 BGB).” (SCHLÜTER, Wilfried. Código Civil alemão: direito de família. Porto Alegre: Fabris, 2002, trad. Elisete Antoniuk, p. 241) 7 Os que têm sustentado a eficácia mediata da nova regra constitucional vêem na modificação apenas a desconstitucionalização do divórcio. A reforma teria retirado a matéria da Constituição para que o legislador pudesse dela dispor sem as restrições anteriormente existentes.20 Embora se trate de uma interpretação dotada de argumentos tecnicamente defensáveis, não parece que seja a mais adequada. Como corretamente apontou o Prof. Paulo Lôbo, a norma posta pela EC 66/10 foi estruturada sob a forma de regra jurídica e está dotada de um suporte fático suficientemente preciso.21 Disse o constituinte reformador: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.” Não há impedimentos a que a regra incida imediatamente a partir do momento em que posta em vigor, pois nela nada falta que tenha de ser acrescentado pela lei ordinária. Não há uma expressão que requeira definição legal. Não se reclama um procedimento que tenha de ser definido infra-constitucionalmente. Não há nada, enfim, que a regra nova e o direito vigente não possam suprir pela sua aplicação conjunta. Por isso se tem norma de aplicação imediata, como tem observado a maior parte dos autores que se manifestaram a respeito da EC 66/10. É preciso, porém, dizer mais. Dado o teor do mandamento constitucional, se é possível obter o divórcio sem a estipulação de requisitos, revogada (se anterior) ou inconstitucional (se posterior) seria a regra inferior que impusesse restrições ao intuito dos cônjuges de pôr fim ao vínculo conjugal, pois teria a pretensão de restringir a irradiação de efeitos de uma norma constitucional de eficácia plena. Como ilustração, é útil recordar um exemplo da história recente, tanto mais válido porque se refere à mesma matéria aqui discutida. 20 Neste sentido SCHÄFER, Gilberto. A Emenda Constitucional n. 66 e o divórcio no Brasil. Boletim Eletrônico do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Disponível em: http://infoirib.wordpress.com/2010/08/05/a-emenda-constitucional-n-66-e-o-divorcio-no-brasil. Acesso em: 30/08/10. 21 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10. 8 Em 1988 foi previsto na Carta Magna o divórcio direto, a pedido de qualquer dos cônjuges, desde que antecedido de uma comprovada separação de fato por dois anos.22 O dispositivo não reclamou intermediação infra-constitucional para sua aplicação. Embora a alteração na Lei do Divórcio até tenha sido realizada em 1989,23 a regra do divórcio foi considerada de eficácia plena e aplicada imediatamente, inclusive por julgados proferidos dias após a promulgação da Constituição.24 Assim, não parece haver razão para que a atual emenda não tenha eficácia imediata. Desde que entrou em vigor, todo e qualquer indivíduo casado pode exercitar o direito formativo extintivo de divórcio direto, sem prazo mínimo de separação prévia. 2.2. Sobre a separação judicial após a EC 66/10 Se a emenda já produz seus efeitos, passa-se ao segundo problema, que é a sobrevivência da separação judicial após o advento do divórcio direto sem prazo. Como não houve expressa revogação das regras que tratam sobre o instituto, já há quem afirme que a permissão do divórcio direto não seria suficiente para extinguir a separação, e, a depender do posicionamento, nem mesmo as causas autorizadoras.25 22 “Art. 226. (...) §6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.” 23 Pela Lei 7.841/89, a mesma que revogou a impossibilidade de um segundo divórcio, prevista no artigo 38 da Lei 6.515/77, em sua redação original. 24 Por exemplo: “DIVORCIO DIRETO. PROVA DO TEMPO DA SEPARACAO DE FATO. SE OS ELEMENTOS CONSTANTES NOS AUTOS VIABILIZAM CONCLUIR UMA SEPARACAO DE FATO OU A RUPTURA DOS LACOS AFETIVOS, ANTERIORMENTE A 28.6.1977, E DE SE CONCEDER O DIVORCIO, MORMENTE EM VISTA DO ART-226 PAR-6 DA VIGENTE CONSTITUICAO FEDERAL, CUJA APLICABILIDADE NAO RECLAMA LEI ESPECIAL.” (TJRS, 2ª CC, AC 588055541, Rel. Des. Arnaldo Rizzardo, julg. 26/10/88). No mesmo sentido: “Acao direta. Constituicao atual. Sendo a norma do art. 226 par. 6. da atual Constituicao norma autoaplicavel e' de ser levada em consideracao no julgamento. Comprovada a separacao de fato dos conjuges ha' mais de dois anos cabe o divorcio.” (TJRJ, 4ª CC, AC 1988.001.03062, rel. Des. Caetano Costa, julg. 08/11/1988) 25 “Por aí se vê que a eliminação da referência constitucional aos requisitos para a obtenção do divórcio não significa que aquelas condicionantes tenham sido automaticamente abolidas, mas apenas que, deixando de constar no texto da Constituição, e subsistindo exclusivamente na lei 9 Essa, sem dúvida, é uma interpretação literal do texto da emenda. A questão que se põe é se a exegese estrita é aqui o melhor caminho a ser seguido e se conduz o intérprete aos resultados mais adequados. Assim como a emenda constitucional que permitiu o divórcio em 1977, a que obteve o divórcio direto tem uma história de tramitação legislativa conhecida. Ela é o resultado de uma discussão veiculada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, que neste ponto representava os anseios dos profissionais da área jurídica e de uma parcela significativa da sociedade que não via sentido na manutenção da dicotomia separação-divórcio. Separação e divórcio são apenas os instrumentos jurídicos para formalizar a ruptura conjugal. Quando a máquina estatal é acionada, a ruptura de fato da entidade familiar já ocorreu e o que os cônjuges pretendem é uma resposta do direito para pôr fim aos vínculos jurídicos, pois os vínculos fáticos, sociais, já estão inviabilizados. E essa resposta era vista, há muito, como ineficiente e custosa. A proposta então apresentada foi a de instituir a dissolução imediata do vínculo, acabando com o requisito prévio da separação judicial e permitindo o divórcio direto sem exigência de prazo mínimo de separação de fato. Isso está registrado nos debates legislativos, na justificativa da emenda,26 na repercussão jornalística dos debates e nos textos que noticiaram a promulgação da emenda. É matéria de domínio público. Não se trata aqui de buscar uma utópica vontade do legislador, mas o conteúdo da proposta e sua repercussão na sociedade não podem ser ordinária (Código Civil) — como permaneceram durante 40 anos, entre 1937 e 1977 —,está agora aberta a porta para que esta seja modificada. Tal modificação é imprescindível e, enquanto não ocorrer, o instituto da separação judicial continua existente, bem como os requisitos para a obtenção do divórcio. Tudo porque estão previstos em lei ordinária, que não deixou de ser constitucional. E isso basta!” (SANTOS, Luis Felipe Brasil. Lei do divórcio precisa acabar com entraves legais. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-jul-25/lei-divorcio-acabar-entraves-legais-exercicio-liberdade. Acesso em: 30/08/10. 26 Vide o texto da justificativa do Projeto de Emenda Constitucional que se converteu na EC 66/10: “Não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite. Criou-se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade artificial entre dissolução da sociedade conjugal e dissolução do casamento, como solução de compromisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que não mais se sustenta.Impõese a unificação no divórcio de todas as hipóteses de separação dos cônjuges, sejam litigiosos ou consensuais. A Submissão a dois processos judiciais (separação judicial e divórcio por conversão) resulta em acréscimos de despesas para o casal, além de prolongar sofrimentos evitáveis.” 10 artificialmente abstraídos, tendo em vista o processo legislativo em uma democracia.27 Diante do quadro traçado, o que compete ao intérprete é analisar a norma posta de forma técnica e só denegar os efeitos jurídicos pretendidos no processo de sua criação se de fato a legislação foi positivada de forma defeituosa, a ponto de ter um sentido oposto. E este não é o caso, por certo. Embora a emenda não tenha extinguido expressamente a separação judicial, o instituto perdeu totalmente o sentido diante da permissão do divórcio direto. Poderia-se argumentar no sentido de que, se não houve proibição expressa da separação, sua utilização pode ser desejada pelos cônjuges que não pretendem se divorciar imediatamente. Para isso, seria preciso entender que a separação é um instituto autônomo, com finalidades práticas específicas. E em nosso direito, desde que o desquite saiu de cena com a previsão do divórcio, a separação constitui apenas um requisito para que aquele possa ser concedido. Com a possibilidade de divórcio direto, então, deixa de existir qualquer função para a separação judicial. Sua manutenção significa apenas mais desgaste psicológico para os cônjuges, despesas desnecessárias e dispêndio inútil de atividade jurisdicional. Neste sentido: No plano da interpretação teleológica, indaga-se quais os fins sociais da nova norma constitucional. Responde-se: permitir sem empeços e sem intervenção estatal na intimidade dos cônjuges, que estes possam exercer com liberdade seu direito de desconstituir a sociedade conjugal, a qualquer tempo e sem precisar declinar os motivos. Conseqüentemente, quais os fins sociais da suposta sobrevivência da separação judicial, considerando que não mais poderia ser convertida em divórcio? Ou ainda, que interesse juridicamente relevante subsistiria em buscar-se um caminho que não pode levar à dissolução do casamento, pois o divórcio é o único modo que passa a ser previsto na Constituição?28 27 A respeito LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10. 28 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10. 11 O divórcio deve ser encarado como um ato de auto-regramento privado em que, respeitadas as normas de proteção dos cônjuges e dos filhos, o Estado não pode interferir. O espaço de decisão que é deferido aos particulares nas relações existenciais é reflexo do princípio da liberdade, pautado pelo respeito à dignidade humana, já que não se trata de atos com conteúdo econômico. 29 O princípio constitucional da liberdade protege, portanto, a autonomia dos indivíduos para constituir, manter ou extinguir a entidade familiar.30 A manutenção da separação judicial no sistema representaria, portanto, um resquício da época em que o Estado se permitia interferir nas questões próprias da privacidade do casal, impedindo-o de exercitar livremente essa autonomia e de regularizar plenamente, do ponto de vista jurídico, a decisão de pôr fim ao matrimônio. Deve-se deixar claro que não há dano algum decorrente da supressão da separação, razão pela qual não se justifica a interpretação de mantê-la como uma opção alternativa para as partes. Sua persistência não serve como um período de reflexão, como se poderia imaginar. Afinal de contas, a separação sempre foi uma medida grave, cara e formalista em demasia para ser tomada em meio à incerteza ou indefinição quanto à dissolução conjugal. Separação judicial não é período de reflexão, é uma decisão em regra definitiva de encaminhar a obtenção do divórcio, que só era adiado por exigência legal. Por outro lado, se os cônjuges não querem se divorciar e nem viver juntos, a separação judicial não oferece solução alguma que não possa ser obtida em meio à separação de fato, como mais adiante se verá. Além disso, a impossibilidade de restabelecer a sociedade conjugal após o divórcio não deve constituir uma dificuldade relevante. A experiência demonstra que, após as sentenças de separação, reconciliações não eram comuns. 31 A medida era por demais desgastante para permitir que o regresso fosse algo reiterado. A separação era, afinal, em tudo 29 VENCELAU, Rose Melo. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 103-105. 30 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 47. 31 No mesmo sentido, GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 56. 12 um divórcio, menos nos efeitos jurídicos, que eram negados às partes depois de se submeterem a todos os trâmites processuais e ao devassamento de sua privacidade. De qualquer forma, é evidente que os divorciados, se se reconciliam, poderão a qualquer tempo retornar à vida em comum por meio de união estável, ou mesmo do novo casamento, que “é rápido, é fácil e, até, barato.”32 Aquele que interpreta a EC 66/10 tem de levar em conta, enfim, que a sua interpretação literal favorece a manutenção, por apego a uma hermenêutica literal, de um modelo sem sentido ou finalidade. Acima de tudo, trata-se da defesa de um instituto que não traria qualquer vantagem aos que por ele optassem em detrimento da regulamentação plena da dissolução mediante divórcio. 2.3. A separação de fato A extinção da separação de direito não significa, no entanto, que se possa tomar por igualmente extinta a separação de fato. Este constitui um ponto muito importante da disciplina da matéria. Embora a invocação de dois anos de separação de fato como requisito para o divórcio direto tenha desaparecido com o advento da emenda, como abaixo veremos, seus efeitos próprios ainda subsistem. Perece a sua função de requisito para o divórcio, mas se mantêm a sua utilidade e os seus efeitos próprios.33 O tratamento que a doutrina empresta à separação de fato decorre da previsão do art. 1.72334 do Código Civil, que admite a união estável mesmo diante do impedimento de casamento prévio não dissolvido, desde que o convivente não viva maritalmente com o cônjuge. 32 VELOSO, Zeno. O novo divórcio e o que restou do passado. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=661. Acesso em: 30/08/10. 33 Vide a respeito as considerações de LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 131-133. 34 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável. 13 Se é possível estabelecer uma nova união, tem-se entendido que a separação de fato atinge a sociedade conjugal, notadamente sustando a eficácia do regime de bens e permitindo, inclusive, a antecipação do pedido de alimentos. Seria no mínimo incoerente admitir que o cônjuge separado de fato pudesse constituir uma nova entidade familiar por união estável e ainda assim manter todos os efeitos decorrentes do casamento. Na prática, isso significaria uma confusão patrimonial difícil de ser solucionada e passível de gerar enriquecimento sem causa, e a jurisprudência tem mostrado sensível o suficiente para se adaptar a essa nova realidade: DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. SUCESSÃO. COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. INCLUSÃO DA ESPOSA DE HERDEIRO, NOS AUTOS DE INVENTÁRIO, NA DEFESA DE SUA MEAÇÃO. SUCESSÃO ABERTA QUANDO HAVIA SEPARAÇÃO DE FATO. IMPOSSIBILIDADE DE COMUNICAÇÃO DOS BENS ADQUIRIDOS APÓS A RUPTURA DA VIDA CONJUGAL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Em regra, o recurso especial originário de decisão interlocutória proferida em inventário não pode ficar retido nos autos, uma vez que o procedimento se encerra sem que haja, propriamente, decisão final de mérito, o que impossibilitaria a reiteração futura das razões recursais. 2. Não faz jus à meação dos bens havidos pelo marido na qualidade de herdeiro do irmão, o cônjuge que encontrava-se separado de fato quando transmitida a herança. 3. Tal fato ocasionaria enriquecimento sem causa, porquanto o patrimônio foi adquirido individualmente, sem qualquer colaboração do cônjuge. 4. A preservação do condomínio patrimonial entre cônjuges após a separação de fato é incompatível com orientação do novo Código Civil, que reconhece a união estável estabelecida nesse período, regulada pelo regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725) 5. Assim, em regime de comunhão universal, a comunicação de bens e dívidas deve cessar com a ruptura da vida comum, respeitado o direito de meação do patrimônio adquirido na constância da vida conjugal. 6. Recurso especial provido.35 Mesmo que os deveres conjugais não sejam mais enxergados com o rigor de outrora, por serem em regra desprovidos de sanção específica,36 pode- 35 STJ, 4ª Turma, RESP 555.771-SP, rel. Min. Luiz Felipe Salomão, pub. DJ 18/05/09. 14 se ainda dizer que diante da separação de fato cessa o dever de vida em comum no domicílio conjugal. Deve ser salientado que a separação de fato aqui referida não é, necessariamente, a formalizada mediante medida cautelar de separação de corpos. Fática como é, está claro que pode existir independentemente de formalidades e ser verificada com apoio nos meios de prova permitidos no processo. A ação de separação de corpos37 teve outrora importante papel no sentido de evitar a caracterização do abandono do lar conjugal; posteriormente, na atribuição de segurança jurídica ao cômputo dos prazos de separação. Hoje, tende ao esvaziamento e a um desuso que só deverá aumentar com a nova regulamentação do divórcio, ainda mais porque em casos de violência doméstica é natural que seja substituída pelas medidas de afastamento previstas na Lei Maria da Penha.38 Pois bem, mantida nestes termos a separação de fato no sistema brasileiro, é de se ver que ela coexistirá com o divórcio direto. Os cônjuges que decidam por se separar informalmente, estarão sob os efeitos da separação de 36 A respeito confira-se LÔBO, Paulo Luiz Netto. As vicissitudes da igualdade e dos deveres conjugais no direito brasileiro. In DELGADO, Mario Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Novo Código Civil: questões controvertidas. São Paulo: Método, vol. III, 2005, pp. 51-62. 37 Que não é cautelar,é medida provisional de natureza satisfativa – SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 403. Por isso é fácil compreender a dispensa do prazo de trinta dias para propor a ação principal sob pena de perda de eficácia da liminar: “AÇÃO CAUTELAR DE SEPARAÇÃO DE CORPOS AFASTAMENTO DA CONVIVENTE DO LAR - IMÓVEL DE PROPRIEDADE EXCLUSIVA DO APELADO - AQUISIÇÃO ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL - O acolhimento do pedido inicial, com a concessão da liminar, exaure a pretensão de afastamento da convivente do lar conjugal. Destarte, a falta de ajuizamento da ação principal no prazo de trinta dias, conforme determina o artigo 806 do CPC, não implica a perda da eficácia da liminar, conforme entendimento jurisprudencial, sendo descabida a alegação recursal. Decreto de separação de corpos para salvaguardar a integridade física e emocional das partes. Manutenção da sentença. Negado seguimento ao recurso.” (TJRJ, 17ª CC, AC 003618375.2008.8.19.0004. rel. Des. Edson Vasconcelos, julg. 20/07/10) 38 Lei 11.340/06: “Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.” 15 fato, poderão iniciar uniões estáveis e não terão mais o regime de bens incidindo sobre seus patrimônios; quando decidirem formalizar sua situação, poderão recorrer ao divórcio direto. Observe-se que, se os cônjuges ainda estão a decidir quanto à dissolução do vínculo conjugal, todos os efeitos que poderiam ser obtidos por meio da separação judicial serão determinados pela separação de fato, sem qualquer prejuízo. Esse argumento é relevante porque afasta a idéia de que os cônjuges, seja por motivo religioso ou por qualquer outra razão que julgarem relevante, poderiam querer apenas a separação judicial e a sua retirada do sistema tolheria esse direito. Ora, em regime de separação de fato cessam a vida em comum e os efeitos patrimoniais. Nada impede que, enquanto a situação perdurar, se se fizer necessário, sejam propostas demandas judiciais para solucionar os alimentos (por oferta ou ação condenatória), a guarda dos filhos ou a situação dos bens.39 Tudo que se poderia decidir na separação de direito pode ser sem prejuízo decidido no estado de separação de fato, sem que se precise recorrer ao divórcio, que pode ser postergado ou mesmo nunca utilizado, sem impor quaisquer gravames aos que dele não quiserem lançar mão. Poderia-se no entanto afirmar que, dada a natureza fática da separação, haveria insegurança e risco de dano para os separados de fato. A experiência com o modelo da união estável, tão fático quanto, tende a desmentir esse temor. Mas se desejada, a solução para resguardar esse interesse por segurança jurídica é, porém, bastante simples. Se a separação de fato é consensual, podem os separandos firmar um instrumento, público ou particular, em que reconhecem a separação de fato e apontam a data de seu início. Se não há consenso, uma simples medida 39 Preferencialmente compartilhada, nos termos do art. 1584, §2º, do Código Civil. Sobre o tema, confira-se: QUINTAS, Maria Manoela Rocha de Albuquerque. Guarda compartilhada. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, especialmente pp. 115-136 e 147-150; ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. As perspectivas e o exercício da guarda compartilhada consensual e litigiosa. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, v. 7, n. 31, ago./set. 2005. 16 cautelar notificação40 resolve de o problema, embora permaneça a possibilidade de se utilizar para tal fim a ação de separação de corpos, que não foi revogada.41 Havendo a necessidade, poderiam ser então requeridos judicialmente os pedidos de regulamentação de guarda, alimentos e partilha de bens, como já observado. 2.4. Causas e procedimentos do divórcio após a EC 66/10 Um questionamento dos mais relevantes diz respeito à manutenção das causas e requisitos da separação no sistema anterior. O divórcio direto os teria extinguido todos, ou algo do modelo antigo deve-se ainda invocar? Dos primeiros textos escritos sobre a emenda, há autores que consideram sobreviventes os requisitos42 e outros que os julgam removidos do ordenamento.43 Toca-se com isso um dos pontos mais delicados da disciplina do direito de família, que consiste no problema da identificação de culpa em situações de crise familiar. Embora o Código Civil de 2002 tenha mantido as regras sobre culpa na separação judicial, a doutrina e a jurisprudência foram-na afastando como critério legitimador da ruptura conjugal.44 40 Código de Processo Civil, art. 867 e seguintes. Vide GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 101. 42 “(...) o instituto da separação judicial continua existente, bem como os requisitos para a obtenção do divórcio” – SANTOS, Luis Felipe Brasil. Lei do divórcio precisa acabar com entraves legais. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-jul-25/leidivorcio-acabar-entraves-legais-exercicio-liberdade. Acesso em: 30/08/10. 43 “Não há mais qualquer causa, justificativa ou prazo para o divórcio.” – LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10. No mesmo sentido: GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 90. 44 Vide a respeito, com rigorosa pesquisa de campo acerca do desuso da culpa no processo de família, o estudo de OLIVEIRA, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodium, 2010, pp. 183-230. Confira-se ainda ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O fim da culpa na separação judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 41 17 Mesmo antes da EC 66/10, o papel das causas culposas da separação já havia sido fortemente esvaziado na prática. E no divórcio direto após dois anos de separação de fato não se perquiria a culpa para autorizar a dissolução do vínculo, pois o requisito era puramente temporal. 45 Parece, portanto, não haver qualquer justificativa para a permanência das causas culposas. A verificação da culpa representa intervenção indevida do Estado no domínio privado e constitui medida altamente ineficiente, pela dificuldade concreta de se identificar um culpado exclusivo pela ruptura do projeto conjugal. Seu descrédito mesmo antes da emenda deixa tais características claramente evidenciadas, e da permissão do divórcio direto sem menção a qualquer aferição de causa subjetiva deve-se depreender sua revogação, pura e simples. Da mesma forma, não mais subsistem quaisquer prazos a serem observados. A emenda irradia os seus efeitos automaticamente, independentemente dos lapsos temporais anteriores, que não foram reiterados na nova regulamentação da matéria e nem sequer preservados por regra de transição de direito intertemporal. Assim, qualquer indivíduo casado, a partir de sua promulgação, poderá de logo propor a medida de dissolução do vínculo conjugal, pois já dispõe do direito formativo extintivo de divórcio. Quanto aos procedimentos, mantêm-se os mesmos vigentes para o divórcio no modelo anterior.46 Havendo consenso, o divórcio direto poderá ser pleiteado por via judicial consensual ou por via extrajudicial, mediante escritura pública, desde que não haja filhos menores ou incapazes, conforme a Lei 11.441/07 e a Resolução 35/07 do CNJ. 45 “DIREITO CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIVÓRCIO LITIGIOSO E ALIMENTOS. JULGAMENTO EM CONJUNTO. PRELIMINARES DE NULIDADE DA SENTENÇA REJEITADAS. A nulidade relativa deve ser argüida na primeira oportunidade em que couber à parte, sob pena de preclusão. A falta da renovação da proposta de conciliação não enseja a nulidade da sentença, em que pese sua obrigatoriedade. Evidenciada a «separação» de fato do casal por mais de dois anos, judiciosa é a decisão que decreta o divórcio do mesmo, sendo desnecessária a apuração de «culpa» por parte de qualquer um dos cônjuges. Não faz jus a alimentos a ex-mulher que trabalha e que opta por se relacionar com outro companheiro. Recurso improvido. Decisão unânime.” (TJPE, 4ª CC, AC 42.148-5, rel. Des. Eloy D´Almeida, julg. 11/06/2003) 46 Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10. 18 Sem acordo, parte-se para o divórcio litigioso. Talvez seja mais adequado falar-se, no entanto, em divórcio unilateral do que em divórcio litigioso. O desacordo só poderá existir quanto à partilha de bens (que pode ser postergada), aos alimentos ou à guarda, pois o divórcio em si é incontroverso, bastando que um dos cônjuges o deseje. Verifica-se, assim, que a matéria do divórcio em si se tornou de jurisdição voluntária. Tratando-se de matéria incontroversa, é importante observar que o juiz pode de logo antecipar os efeitos da tutela, com base no art. 273, §6º, do Código de Processo Civil.47 Concedido liminarmente o divórcio, prosseguirá o processo com relação às demais questões controvertidas. Não há sentido em remetê-las para decisão em outro processo, o que violaria o princípio da economia processual, e por isso a invocação do art. 273 se apresenta como a melhor solução. 3. Conseqüências da Emenda 66 sobre a situação das pessoas já separadas judicialmente e os processos de separação judicial pendentes Duas questões precisam ser enfrentadas, por fim: a situação dos casais que já estão separados legalmente e a dos que estejam na pendência de um processo de separação judicial. A primeira é mais simples. Os separados judicialmente (ou mesmo extrajudicialmente) permanecerão no mesmo status. A impossibilidade de novas separações não os afeta, pois sua situação foi constituída sob a vigência da lei antiga. Além disso, não é possível automaticamente converter a separação em divórcio, o que retiraria aos cônjuges a escolha acerca do exercício ou não do direito a desconstituir o vínculo conjugal mediante divórcio. 47 “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (...) § 6o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso.” 19 A qualquer tempo, entretanto, poderão os separados ingressar com o pedido de divórcio direto. Ñão se trata sequer de conversão da separação em divórcio, pois toda conversão pressupunha, à luz do direito anterior, o atendimento aos requisitos legais – e hoje não há mais requisitos para a obtenção do divórcio, tratando-se portanto de simples ação de divórcio direto, ou de divórcio direto extrajudicial.48 O segundo problema exige uma digressão um pouco mais extensa acerca dos aspectos técnico-processuais que o envolvem. Isso porque, com a emenda constitucional, os processos de separação pendentes sofrerão uma alteração substancial, na medida em que o pedido originário não poderá mais ser deferido, por modificação do direito aplicável. Diante das circunstâncias, ou se extingue o processo, ou se prossegue com o novo objeto, e nesta hipótese há que se determinar o fundamento jurídico que possa justificar tal providência. Para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona49 o caminho a ser adotado é a intimação do autor ou dos interessados, conforme se trate de procedimento litigioso ou consensual, para manifestar a intenção de adaptar o pedido, postulando o divórcio. Segundo os autores citados, a solução estaria apoiada no princípio do devido processo civil constitucional.50 A tese é correta, mas parece possível identificar na legislação e na teoria processual argumentos um tanto mais sólidos para fundamentá-la, baseados em regra jurídica expressa. O caminho estaria no artigo 46251 do Código de Processo Civil, que flexibiliza as regras de estabilização da demanda e permite que se tomem em consideração fatos supervenientes que influenciem o julgamento.52 48 No mesmo sentido LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10; STOLZE, Pablo; PAMPLONA, Rodolfo. O novo divórcio, cit.,139-140. 49 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 140-141. 50 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141. 51 “Art. 462. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.” 20 Sobre o dispositivo em questão, vale ressaltar: A regra jurídica que se pôs no art. 462, em vez de se referir à proponibilidade de ação de modificação, de extinção ou de criação, de que se cogita em geral, permite após inserção no pedido, que teve seus limites iniciais, de alegação de haver ocorrido algo, depois da proposição da ação, com efeito gerador (constitutivo, modificativo ou extintivo). (...) A qualquer momento pode comunicar ao juízo o que veio a conhecer, quer lhe seja favorável ou desfavorável a comunicação, sobre a qual se há de manifestar a outra parte. Tudo isso passa a ser dado para a apreciação das provas e o julgamento da ação.53 A vantagem do comando normativo é evidente, por evitar os custos e o desperdício de atividade jurisdicional decorrente da propositura de uma nova ação.54 Ocorre que, para alguns processualistas, o fato novo a ser levado em consideração é “tão-só aquele que vem corroborar a pretensão ou a defesa; que não constitui, portanto, nova causa de pedir, tampouco importa em sua alteração; nem constitui nova causa de defesa.”55 Essa leitura restritiva, no entanto, tem sido combatida pelos autores mais atuais que trataram do tema. 56 De acordo com a doutrina especializada, 57 então, será possível considerar o elemento superveniente que implique alteração da causa de pedir ou do pedido, mas sempre considerando que: (a) trata-se de solução excepcional, preservando-se como regra geral os dispositivos de estabilização da demanda; (b) deve-se respeitar o contraditório, a ampla defesa e, de modo 52 Neste sentido é a jurisprudência: "O fato constitutivo, modificativo ou extintivo de direito, superveniente à propositura da ação deve ser levado em consideração, de ofício ou a requerimento das partes, pelo julgador, uma vez que a lide deve ser composta como ela se apresenta no momento da entrega da prestação jurisdicional" (STJ, REsp 540.839/PR, Rel. Min. LAURITA VAZ, Quinta Turma, DJ 14/5/07). 53 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, tomo V, 1974, p. 101. 54 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, tomo V, 1974, p. 101; DIDIER JÚNIOR, Fredie, et alii. Curso de direito processual civil. Salvador: Juspodium, vol. II, 2007, p. 282. 55 ARAGÃO, E. D. Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 131. 56 DIDIER JÚNIOR, Fredie, et alii. Curso de direito processual civil. Salvador: Juspodium, vol. II, 2007, p. 282; LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 248. 57 LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 249. 21 geral, o devido processo legal; (c) a inserção do dado superveniente não decorra de má-fé; (d) na aplicação deve se considerar o proveito efetivo ou a economia para a solução da lide, além da (e) ausência de prejuízo indevido às partes. O art. 462 é, deste modo, a base normativa da adaptação dos processos de separação judicial pendentes, permitindo a adoção da proposta defendida com pioneirismo pelos professores Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. A emenda constitucional produz a eficácia superveniente à formação da relação processual de extinguir o direito à separação que então constituía o objeto do processo, e constitui o direito ao divórcio, consentindo a regra que o juiz aja de ofício para consultar as partes e regularizar a situação. A faculdade de agir de ofício não o permite, no entanto, efetuar a conversão automaticamente. Os interessados preservarão a faculdade de exercer ou não o direito formativo extintivo de divórcio, faculdade que o juiz não poderá desconsiderar, substituindo-se aos legitimados ao exercício do direito material. Caso a manifestação seja positiva, o processo prosseguirá como ação de divórcio direto. Se o prazo transcorre in albis ou se os interessados se negam a prosseguir com o divórcio, a solução será a extinção do processo, sem resolução de mérito. Neste caso a ação de divórcio poderá ser proposta posteriormente. Caso os interessados deixem de concordar (expressa ou tacitamente) com o prosseguimento na forma da ação de divórcio e haja outros pedidos cumulados, como os de regulamentação de guarda e visitação, condenação à prestação de alimentos ou pedido de partilha de bens, o processo continuará em relação a eles. Considerações finais Passados em revista a EC 66/10 e os principais pontos da regulamentação do divórcio, resta claro que a nova redação da Constituição 22 Federal está apta a atender às finalidades que conduziram o constituinte reformador à sua adoção. Não há impedimentos técnicos à interpretação de que a emenda se aplique imediatamente, o divórcio possa ser concedido sem prazos ou causas culposas e a separação de direito se tenha por definitivamente retirada do ordenamento brasileiro. Não há, enfim, impedimentos técnicos a que as pretensões da sociedade civil que impulsionaram o processo legislativo e conduziram à alteração constitucional se tenham por inteiramente atendidas. Isso deve ser recebido como uma notícia positiva, caracterizadora de uma atualização significativa e digna de elogio do direito de família brasileiro, que passa a estar dotado de um instrumento eficiente para responder com mais agilidade aos cônjuges que desejam dissolver o matrimônio frustrado, sem aumento desnecessário de despesas, sem dispêndio de tempo e de atividade jurisdicional, e, principalmente, sem indevida interferência estatal no espaço de autonomia que indivíduos adultos devem ter em uma sociedade democrática para decidir o rumo que querem dar a suas vidas privadas. À toda evidência, os posicionamentos defendidos neste trabalho não têm e nem podem ter a intenção de apresentar uma exposição fechada e definitiva sobre o tema tratado. Trata-se de um apanhado de primeiras reflexões sobre a questão do divórcio, ainda à luz das impressões imediatas da doutrina e dos primeiros questionamentos levantados. Acima de tudo, deve ter-se a consciência de que o tema é polêmico e, à parte os debates que enseja no plano político, certamente se consolidarão posicionamentos propriamente jurídicos opostos aos aqui definidos, igualmente legítimos. As leituras mais conservadoras da EC 66/10, portanto, não podem ser discriminadas ou desconsideradas a priori, merecendo integral respeito no plano do debate acadêmico e político, embora este trabalho delas expressamente discorde. Acredita-se, assim, que os pontos de vista aqui defendidos são inteiramente coerentes com o texto e o contexto da emenda constitucional, 23 interpretada à luz da metodologia contemporânea do direito privado e da teoria do direito de família brasileiro após a Constituição de 1988. Em um quadro social de exercício mais intenso da liberdade, a tendência é que a afetividade se faça mais presente.58 Em síntese, é isso que se espera da nova regulamentação do divórcio no país. Espera-se que aqueles que decidam pôr fim a um relacionamento familiar obtenham do Estado um provimento jurisdicional eficiente e que não sejam forçados a prolongar contra a sua vontade uma relação jurídica dissociada da relação fática que deveria espelhar. Espera-se, enfim, que aqueles que permaneçam ligados por vínculos de direito de família o façam voluntariamente, enquanto e apenas se subsistir a affectio legitimadora do matrimônio, para que quando de seu desaparecimento possam, livremente, reconstruir seus projetos de vida. Se assim for, a Emenda Constitucional nº 66 de 2010 será merecidamente lembrada como um importante capítulo da evolução do direito civil brasileiro, assim como foram, a seu tempo, a Emenda Constitucional nº 9 de 1977 e a Lei do Divórcio. Referências ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. As perspectivas e o exercício da guarda compartilhada consensual e litigiosa. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, v. 7, n. 31, ago./set. 2005. ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O fim da culpa na separação judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. ARAGÃO, E. D. Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Aide, 1992. 58 OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o afeto nas relações de família. Pode o direito impor amor? In ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodium, 2010, p. 49. 24 COULANGES, Numa Denis Fustel de. The ancient city. Kitchener: Batoche Books, 2001, trad. Willard Small. DIDIER JÚNIOR, Fredie, et alii. Curso de direito processual civil. Salvador: Juspodium, vol. II, 2007. ESPÍNOLA, Eduardo. A família no direito civil brasileiro. Campinas: Bookseller, 2001. FREITAS, Augusto Teixeira de. Código Civil: esbôço. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, vol. II, 1952. ______. Consolidação das leis civis. 3 ed. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1876. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010. LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006. LÔBO, Paulo Luiz Netto. As vicissitudes da igualdade e dos deveres conjugais no direito brasileiro. In DELGADO, Mario Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Novo Código Civil: questões controvertidas. São Paulo: Método, vol. III, 2005. ______. Divórcio: alteração constitucional e suas conseqüências. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=629. Acesso em: 30/08/10. ______. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. MACKELDEY, F. Manuel de droit romain. 3 ed. Bruxelles: Société Typographique Belge, 1846. MAINE, Henry Sumner. Diritto antico. Milano: Giuffrè, 1998, trad. Alessandra Ferrari. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, tomo V, 1974. ______. Tratado das ações. São Paulo: Revista dos Tribunais, tomo IV, 1973. ______. Tratado de direito privado. 3 ed. Rio de Janeiro: Borsói, tomo VIII, 1971. OLIVEIRA, Catarina Almeida de. Refletindo o afeto nas relações de família. Pode o direito impor amor? In ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodium, 2010. 25 OLIVEIRA, José Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de direito de família. 4 ed. Curitiba: Juruá, 2004. OLIVEIRA, Maria Rita de Holanda Silva. As causas legais da separação e a realidade social: estudo sócio-jurídico. In ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodium, 2010. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família. Campinas: Russell, 2003. QUINTAS, Maria Manoela Rocha de Albuquerque. Guarda compartilhada. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. ROPPO, Vincenzo. Istituzioni di diritto privato. 5 ed. Bologna: Monduzzi, 2005 SANTOS, Luis Felipe Brasil. Lei do divórcio precisa acabar com entraves legais. Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-jul25/lei-divorcio-acabar-entraves-legais-exercicio-liberdade. Acesso em: 30/08/10. SCHÄFER, Gilberto. A Emenda Constitucional n. 66 e o divórcio no Brasil. Boletim Eletrônico do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Disponível em: http://infoirib.wordpress.com/2010/08/05/a-emendaconstitucional-n-66-e-o-divorcio-no-brasil. Acesso em: 30/08/10. SCHLÜTER, Wilfried. Código Civil alemão: direito de família. Porto Alegre: Fabris, 2002, trad. Elisete Antoniuk. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. VELOSO, Zeno. O novo divórcio e o que restou do passado. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=661. Acesso em: 30/08/10. VENCELAU, Rose Melo. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. VIGNOLI, Daniele; FERRO, Irene. Rising marital disruption in Italy and its correlates. Demographic research. Rostock: Max Planck, vol. 20, jan. 2009. 26
Documentos relacionados
01 - Cristian Fetter Mold.pmd
da indústria do divórcio, com flagrantes de adultério adredemente preparados, escritórios especializados em fornecer locais, fotografias e parceiros para a prova da infidelidade, testemunhas depond...
Leia mais