literatura e identidade nacional: desafios do romantismo e

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literatura e identidade nacional: desafios do romantismo e
Revista Eletrônica
Fundação Educacional São José
9ª Edição
ISSN:2178-3098
LITERATURA E IDENTIDADE NACIONAL: DESAFIOS DO ROMANTISMO E
MODERNISMO BRASILEIROS
Rita de Cássia Martins Oliveira (CES / JF) 1
Shirley Ferreira (CES / JF)2
RESUMO
Este artigo apresenta um breve estudo acerca da definição da identidade nacional brasileira e
de como esta se estabeleceu a partir do discurso literário, mais especificamente com os
movimentos literários Romantismo e Modernismo. Estes dois movimentos foram
fundamentais para o despertar da consciência nacional, rompendo com estereótipos de cultura
e de linguagem.
Palavras-chave: Romantismo. Modernismo. Identidade nacional
ABSTRACT
This article presents a brief review about what the Brazilian national identity and how it was
established from the literary discourse, more specifically with the literary movements
Romanticism and Modernism. These two movements were crucial for the awakening of
national consciousness, breaking stereotypes of culture and language.
Keyword: Romanticism. Modernism. National identity
Introdução
Durante os primeiros escritos literários brasileiros, a afirmação da identidade nacional
esteve relacionada ao elemento autóctone e ao português, principalmente no que concerne à
supremacia do segundo sobre o primeiro. A língua e a doutrina religiosa, impostas pelo
colonizador tornaram-se implacáveis, ocasionando a marginalização da linguagem e dos
1
Rita de Cássia Martins Oliveira – Mestranda em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de
Fora – CES JF.
2
Shirley Ferreira – Mestranda em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES
JF.
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elementos culturais dos nativos brasileiros. Com isto, surgia uma nova identidade, com
características tipicamente portuguesas e que não mais refletia as tradições dos povos aqui já
existentes.
Os escritos do período colonialista serviram para reforçar as ideias ou os ideais dos
colonizadores. Somente após a independência brasileira é que surgiram, com o movimento
estético romântico, as primeiras manifestações literárias de caráter nacional. O sentimento
nacionalista que surgiu com o Romantismo manifestou-se como uma tentativa de minimizar a
influência europeia e criar um processo de abrasileiramento. Autores, como José de Alencar,
voltaram seus discursos para a valorização dos símbolos nacionais, entre eles a natureza e o
índio, fazendo deste um mito, ainda que utópico. Anos mais tarde, com o surgimento do
movimento modernista, novamente veio à tona o desejo de estabelecer uma identidade
nacional. Mais uma vez, o índio tornou-se protagonista desta história. Porém, não se vê a
pureza do Romantismo, que agora dá lugar à miscigenação. O discurso literário que surgiu
com os modernistas inaugurou expressões já brasileiras provenientes da herança da mistura
étnica que aqui se instalou.
Romantismo e Modernismo: aproximações e distanciamentos
A definição do caráter da identidade nacional ocupou lugar de destaque nos estudos
literários brasileiros, sobretudo nos períodos compreendidos entre o século XIX e XX,
respectivamente com os movimentos estéticos Romantismo e Modernismo. Guardadas as
devidas especificidades, foi intensa a movimentação que se estabeleceu no seio de ambos na
busca da definição de um caráter que pudesse refletir a alma nacional. A literatura que,
segundo Antonio Candido (2009) representa um veículo para dar legitimidade ao
conhecimento da realidade local, foi ponto de partida para o projeto nacionalista que se
iniciou com o Romantismo e, de certa forma, teve seu auge no Modernismo. (CANDIDO,
2009, p. 328).
Situando historicamente este contexto, durante três séculos de colonização o curso de
vida dos indígenas brasileiros foi radicalmente alterado. A presença estrangeira “civilizada”
compeliu a estes sua cultura, seus costumes, sua religião, sua língua. A “imposição brutal”
destes elementos “contaminou o pensamento selvagem”, resultando na substituição de sua
língua e de seu sistema sagrado pelo modelo europeu, “apagando traços originais,
ocasionando esquecimento da origem.” A apropriação deste espaço sociocultural pelo
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colonizador transformou a jovem nação em duplicação do modelo europeu, única regra válida
de civilização. (SANTIAGO, 2000, p.14). Consequentemente foi inevitável a perda de sua
identidade e de seu status de pureza. Com isto, um novo caráter e uma nova identidade foram
se formando, amalgamando etnias e culturas. Pode-se perceber esta duplicação cultural,
especificamente, nas manifestações literárias do período colonial. Cópias fiéis do padrão
europeu serviram principalmente como instrumento de monitoramento e cerceamento
cultural, impedindo que outras vozes se erguessem.
Entretanto, com o movimento pela independência, esse levante de vozes foi inevitável
assim como foi inevitável a “crise de identidade” que se estabeleceu, através da negação da
influência europeia, mais especificamente a portuguesa, na literatura. (HALL, 2006, p. 7).
Esta negação gerou um processo de autoafirmação sobre o qual Haroldo de Campos faz
oportuna colocação: “Todo passado que nos é ‘outro’ merece ser negado” (CAMPOS, 2004,
p. 235). Esta afirmação de Campos resume o sentimento ante o domínio ou herança europeia
– impostos pelo colonizador – com a qual se queria romper. Uma desestabilização identitária
que pode ser percebida no círculo intelectual brasileiro, que teve com o movimento estético
literário romântico os primeiros indícios de uma literatura de caráter nacional. Segundo
Antonio Candido (2009), a literatura a partir deste período foi um processo de
abrasileiramento, “uma tomada de consciência que se estabelecia como posição préportuguesa ou antiportuguesa” (CANDIDO, 2006, p. 98) – e que serviria para dar às letras
brasileiras características próprias.
Descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentido nacional, era libertarse do jugo da literatura clássica, universal, comum a todos, preestabelecida, demasiado abstrata
– afirmando em contraposição o concreto espontâneo, característico, particular. (CANDIDO,
2009, p. 333).
Se do ponto de vista da estética literária o Romantismo brasileiro estabeleceu
avanços, rompendo com as normas gramaticais e literárias portuguesas e valorizando os
elementos da terra, no sentido ideológico houve uma revalorização desta influência. Seguindo
a herança das grandes nações ocidentais que, para se estabelecerem como tal, se valeram de
um “mito fundacional”, (Hobsbawm e Ranger, apud Hall, 2006, p. 54) tomaram o índio
brasileiro nos mesmos moldes, sacralizando-o, fazendo deste, lendário. Assim, fascínio,
dependência e negação são contradições que podemos perceber nos escritos do período
romântico, principalmente nos romances indianistas de José de Alencar, nos quais o índio
aparece miticamente ligado ao mais remoto passado brasileiro, tornando-se, deste modo,
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símbolo da origem do povo. Este, tendo recebido ascendência nobre e bela, pode então ser
apresentado à altura dos heróis europeus, modelo do qual se poderia orgulhar. No romance
indianista de Alencar, Iracema, lenda do Ceará, a união da bela e pura Iracema com o nobre
guerreiro Martim garantiu, à gênese do povo brasileiro, esta imagem. A valorização, através
da literatura, de sua linguagem e de suas tradições, além da exaltação de sua bravura e beleza,
serviu para fundar uma imagem positiva para a nação brasileira, tornando-a apta e digna de se
projetar internacionalmente.
O sentimento nacionalista que se iniciou com o Romantismo fez surgir através do
indianismo literário uma memória nacional, uma espécie de elo para a formação da
identidade. Um misto de realismo e ficção, que serviria para criar um conjunto de tradições
culturais locais, outro fator imprescindível para afirmação nacional. Em Bhabha (2007), este
processo aparece descrito da seguinte maneira:
O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o
passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da
tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma
tradição “recebida”. (BHABHA, 2007, p. 21).
Segundo esta colocação de Bhabha, esta “invenção da tradição”, traços culturais,
mitos, memória e história foram se constituindo, formando uma espécie de espírito nacional,
ainda que, ficcional. (BHABHA, 2007, p. 21).
Apesar da valorização das características locais, a influência europeia mantinha-se
presente, sobretudo, por ser esta a escola dos intelectuais do período romântico. Criar uma
literatura tão boa quanto à europeia legitimava esta influência. A padronização a que foi
submetido o índio acabou por mascarar a imagem nacional, reforçando ainda mais a soberania
do colonizador. A imagem indianista do período romântico refletia, assim, “a perspectiva
submissa e conciliadora do bom selvagem” (CAMPOS, 2004, p. 234). Assim, o índio
brasileiro, moldado ao estilo civilizado de seu colonizador, ao ser considerado lendário e
heróico, certamente foi por ter recebido um modelo que o permitiu.
Entretanto, a imagem ou a identidade, enquanto processo que se constrói
historicamente, encontra-se em constante transformação, ficando quase impossível se
estabelecer uma identidade fixa, estável. Para Stuart Hall, a identidade se dá como
“celebração do móvel” e, como também acontece com a história, é formada e transformada
continuamente (HALL, 2006, p. 13). Nesta perspectiva, novas identidades surgiram ao longo
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da história, que acabaram por alterar a imagem romântica, a qual desconsiderou o processo de
miscigenação e a contribuição de outras culturas na formação da identidade nacional.
O século XX trouxe a constatação deste processo histórico de transformações, bem
como o reconhecimento da realidade tropical brasileira e aceitação das influências culturais
estrangeiras. Estas deram origem a uma identidade bem diferente daquela pureza pregada no
Romantismo. Diferente dos cenários europeus, o clima tropical era sinônimo de inferioridade,
motivo da indolência do povo brasileiro. Junte-se a este a mestiçagem, marcada
principalmente pela presença do negro e do índio. A constatação desta realidade instituiu nova
crise na identidade nacional. O atraso cultural brasileiro o colocava em posição inferior às
grandes nações ocidentais. O otimismo do Romantismo deu lugar a um declarado pessimismo
nos anos que se seguiram e somente no Modernismo o mesmo sentimento de nacionalismo
voltou a se manifestar e também a preocupação em definir um caráter que refletisse a
identidade nacional. No entanto, os modernistas demonstraram um olhar diferente para este
sentimento de nacionalidade. O caráter de pureza e essencialidade que se viu no Romantismo,
associado à questão indianista, não mais existe. O que se vê no Modernismo é, na verdade, a
negação desta pureza e a valorização de uma cultura marcada pelas diversas contribuições
raciais. A miscigenação, inegável na formação do povo brasileiro, torna-se motivo de
inspiração dentro do movimento modernista. A dialética entre o local e o cosmopolita é
estabelecida em especial pelo movimento da antropofagia. Dentro da concepção da
antropofagia, ao devorar a cultura do outro, esta é incorporada pelo devorador que se torna,
reconhecidamente, melhor.
Os recalques presentes no Romantismo são aqui trabalhados como explica Antonio
Candido:
O nosso Modernismo importa essencialmente em sua fase heróica, na libertação de uma série
de recalques históricos, sociais, étnicos, que são trazidos triunfalmente à tona da consciência
literária. Este sentimento de triunfo, que assinala o fim da posição de inferioridade no diálogo
secular com Portugal e já nem o leva mais em conta, define a originalidade própria do
Modernismo na dialética do geral e do particular. (CANDIDO, 2006, p. 126).
O discurso literário, antes puro para os românticos, aparece agora carregado de
misturas étnicas e heranças culturais daqueles que entraram na formação do povo brasileiro.
Novamente, a dialética do “local e do cosmopolita”, que apareceu com o Romantismo, tem
destaque no Modernismo. Numa breve análise do que foi cada um desses movimentos,
Candido afirma que “enquanto o primeiro procura superar a influência portuguesa e afirmar
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contra ela a peculiaridade literária do Brasil, o segundo já desconhece Portugal, pura e
simplesmente” (CANDIDO, 2006, p. 119).
Neste processo dialético entre localismo e cosmopolitismo, o Modernismo, apesar da
aceitação e valorização das particularidades e essências locais, inspira-se nas correntes
literárias de vanguarda da França e da Itália para projetar-se internacionalmente. Por entender
que não poderia se valer de uma cultura secular, a exemplo da Idade Média, necessitava de
elementos oriundos de outras culturas como as estrangeiras para compor sua cultura literária e
artística e assim projetar-se internacionalmente.
Os nossos modernistas se informaram pois rapidamente da arte Européia de vanguarda,
aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão,
reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe brasileiro. (CANDIDO, 2006,
p. 128-129).
Enquanto os românticos foram buscar a origem nacional na pureza do índio, no
Modernismo as características antes descritas como inferiores, como latinidade, mestiçagem,
“as culturas primitivas de origem ameríndia e africana” e o fato do Brasil ser um país tropical,
não mais foram colocadas como motivo de constrangimento. Um sentimento de acolhimento
fez com que, no Modernismo, “as nossas deficiências, supostas ou reais, fossem interpretadas
como superioridade” (CANDIDO, 2006, p. 127).
Mais que um movimento literário, o Modernismo foi um movimento ideológico a
partir do qual outros se seguiram no campo das ciências sociais. A desigualdade social, as
diferenças culturais, étnicas, de gênero, dentre outras tantas, receberam importantes
contribuições do movimento (CANDIDO, 2006, p. 137).
Assim como no Romantismo, no Modernismo entra em cena novamente o mito do
índio como elemento de identificação nacional; entretanto, não mais o índio rousseauniano, da
caixa de biscoito, como definiu Oswald de Andrade, mas sob a pele deste o antropófago, o
“mau selvagem”. Num processo de “indianismo às avessas”, o índio antropófago, comedor de
brancos, apresentado por Montaigne, é um dos principais focos do movimento Modernista.
(CAMPOS, 1974, p. 49). O Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (1928) utiliza-se
da antropofagia para uma “reflexão filosófico-existencial” da realidade brasileira em todos os
aspectos, sobretudo no campo cultural (CAMPOS, 2004, p. 234). O manifesto oswaldiano
critica severamente o “bom selvagem”, complacente com o colonizador, aliado, submisso e
reprimido: “Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe
dos Gracos” (ANDRADE, 1978, p.13).
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Partindo dos estudos de Montaigne, Dos canibais, o canibalismo atua como um
processo de absorção das qualidades do devorado seja ele inimigo ou não. Devorar teria como
objetivo não a nutrição do corpo, mas a do espírito. Ao absorver o espírito do outro,
incorporavam-se suas qualidades. Partindo desse pressuposto, ao utilizar-se da antropofagia, o
Brasil, melhor dizendo, o brasileiro, canibaliza o estrangeiro na intenção de apropriar-se de
sua cultura, seus valores e assim tornar-se ainda melhor. Através desse exercício de
identidade, o colonizador passa de devorador a devorado, uma vez que seu legado se
incorpora aos colonizados. Em verdade, o que ocorre é, de fato, uma veneração do
estrangeiro, o qual por sua valoração merece ser devorado: “Só me interessa o que não é meu.
Lei do homem. Lei do antropófago” (ANDRADE, 1978, p. 13).
O Modernismo brasileiro teve Mário de Andrade como um de seus mais significativos
representantes, responsável por projetar o Brasil internacionalmente. Ao compor
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, desmistifica a imagem nacional tecida pelos
românticos, personificando, através desta, todas as reais características brasileiras – ainda que
não fossem muito aceitáveis. Avesso à imagem nacional que foi plantada no Romantismo, o
discurso de Mário de Andrade suplanta o heroísmo dos primeiros indígenas e inscreve um
“quase anti-herói” (CANDIDO, p. 5). Um discurso às avessas onde a mistura racial, de
cultura e até mesmo de linguagem é usada para dar o tom do verdadeiro caráter da identidade
nacional. Em Macunaíma, Mário mistura elementos das culturas indígenas, africanas e
europeias para indicar o caráter em formação do povo brasileiro. Caráter este que o autor,
durante toda a obra, e mais além, busca definir, como se vê neste trecho:
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de
trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros... Ora, depois de
pelejar muito verifiquei uma coisa que parece certa: o brasileiro não tem caráter... E com a
palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade
psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior no sentimento,
na língua na História, na andadura, tanto no bem como no mal (...) o brasileiro não tem caráter
porque não possui nem civilização nem consciência tradicional. (LOPEZ, 1997, p. 373).
Distante do contexto do indianismo romântico e dos romances que se inscrevem nos
anos seguintes, Macunaíma reúne em si caracteres de todas as raças que definem a imagem
nacional. Índio da tribo Tapanhumas, nasce preto retinto e se torna branco de olhos azuis.
Seus irmãos, também miscigenados, um preto e outro índio, representam a mistura étnica
brasileira, na qual aparece, incontestavelmente, a presença do europeu dando origem à
miscigenação, visto que o autor em momento algum se refere ao suposto pai do herói. O
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indianismo proposto no Romantismo, bem como a descrição paradisíaca das terras brasileiras,
foi desconstruído por Mário, dando lugar a um herói indolente, aproveitador e preguiçoso e a
uma terra cheia de males, com “pouca saúde e muita saúva”. (ANDRADE, 1997, p. 82).
Apesar da reunião desses elementos, que acabaram por gerar uma imagem negativa sobre o
Brasil, Mário conseguiu capturar a alma nacional e dar às letras brasileiras as tão sonhadas
características próprias. O irreverente discurso foi um real levante da bandeira modernista de
valorização das particularidades locais e da incorporação, pela antropofagia, das culturas
estrangeiras.
Apesar do foco na miscigenação, a presença do contexto indígena em Macunaíma é
consideravelmente muito forte. Sua origem e filiação, índio Tapanhumas, nascido às margens
do Uraricoera, bem como a linguagem, os mitos, as danças religiosas, os costumes
tipicamente indígenas que aparecem na mesma. Neste ponto, a obra de Mário de Andrade –
rapsódia, como foi, por ele próprio, denominada – encontra-se com o romance alencariano
Iracema, ainda que o próprio Mário tenha se recusado a aceitá-la como indianista. Nas duas
obras, a presença indígena parece dar o tom da identidade nacional.
Considerações finais
Se o Romantismo brasileiro deixou marcas de ruptura com o discurso dos intelectuais
e escritores de sua época, o Modernismo brasileiro rompeu definitivamente não somente com
as formas de descrever o Brasil, mas com a forma de ver e de ler todo seu contexto
sociopolítico e cultural. Dos escritores do período romântico aos modernistas, há que se
ressaltar a indiscutível valorização do índio enquanto elemento de identificação nacional.
Impulsionadora do discurso identitário brasileiro, a literatura teve importante parcela de
contribuição na formação do caráter nacional brasileiro. Via de mão dupla, ora se deixando
influenciar pelo contexto social, ora exercendo influência sobre este contexto, é a partir do
discurso literário que se reconhece e se constrói a identidade de uma nação.
Modernismo e Romantismo foram, no âmbito das letras brasileiras, movimentos
fundamentais no processo de formação do sistema literário brasileiro. Mesmo tendo ocorrido
em diferentes fases da história e em diferentes contextos sociais, contribuíram para a
concretização dos objetivos ao qual se propuseram: projetar a cultura e a literatura brasileira
internacionalmente e criar uma identidade nacional.
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