Sombra de Moscou atormenta a Estônia

Transcrição

Sombra de Moscou atormenta a Estônia
_>>>
Jornal Valor Econômico - CAD A - BRASIL - 16/3/2015 (20:28) - Página 14- Cor: BLACKCYANMAGENTAYELLOW
Enxerto
A14
|
Valor
|
Sábado, domingo e segunda-feira, 14, 15 e 16 de março de 2015
Especial
Nova Guerra Fria País teme estar na mira das intenções expansionistas do presidente russo, Vladimir Putin
Sombra de Moscou atormenta a Estônia
Vitor Paolozzi
De Tallinn
Seria um exagero dizer que a
Estônia hoje é um país à beira de
um ataque de nervos, mas desde a
invasão da Geórgia, em 2008, por
tropas russas e a guerra civil na
Ucrânia iniciada no ano passado
por grupos separatistas pró-Moscou há uma crescente tensão que
já foi definida como “paranoica”
por diplomatas americanos.
Nesse país no Mar Báltico, não
são poucos os que acreditam que
serão os próximos a entrar na mira
expansionista de Vladimir Putin.
Dos protestos de Moscou contra o
tratamento dado aos russos que vivem na Estônia às constantes invasões do espaço aéreo do país por
aviões militares russos, se acumulam os sinais de que uma repetição
do roteiro ucraniano pode estar
mesmo nos planos do Kremlin.
A agência de inteligência e segurança interna da Estônia, Kaitsepolitseiamet, ou Kapo, afirmou
em um relatório do ano passado
que “os nacionalistas russos mais
ativos obtêm apoio de fundos e
agências russos e ganham a vida
espalhando as (...) mensagens das
operações de influência da Rússia
e lutando contra a integração entre os vários grupos étnicos e linguísticos que vivem na Estônia”.
Desde 2008, a Estônia prendeu
e condenou quatro espiões que
trabalhavam para a Rússia. Um
deles havia sido o principal funcionário de segurança do Ministério da Defesa. O último a ser pego, em 2013, era um ex-agente da
Kapo que passou documentos
para os serviços secretos russos.
Assim como a Ucrânia, a Estônia
tem um grande número de russos
vivendo em seu território — são
aproximadamente 25% da população. E, assim como no caso da
Ucrânia, o Kremlin se diz insatisfeito com o tratamento dado a esse
grupo. No ano passado, a Rússia
manifestou no Conselho de Direitos Humanos da ONU “preocupação” com “a segregação e o isolamento” dos russos na Estônia. Com
o argumento de que é preciso defender essa comunidade, e também promover a cultura russa no
exterior, Moscou todo ano envia
ajuda financeira para algumas organizações na Estônia.
De sua parte, a Estônia acusa
Moscou de dar dinheiro para políticos e partidos do país. O caso
mais conhecido é o de Edgar Savisaar, do Partido do Centro, um exprimeiro-ministro e atual prefeito
de Tallinn, a capital estoniana. Segundo a Kapo, Savisaar recebeu
cerca de US$ 2 milhões de uma instituição russa. O prefeito não negou ter recebido o dinheiro, mas
disse que se tratava de uma ajuda
para a construção de uma igreja.
O desenvolvimento da Igreja
Ortodoxa Russa no exterior é uma
das metas estabelecidas pelo
Kremlin em sua política de “miagkaia sila” (“soft power” em russo,
em referência ao termo cunhado
por Joseph Nye para definir a capacidade de um país exercer seu poder sobre outros sem recorrer à
coerção ou à força militar, e sim
atraindo-os por meio da influência
de suas ideias e cultura). Dois dos
principais instrumentos para essa
política criados após a ascensão de
Vladimir Putin ao poder são a Fundação Russkiy Mir (“mundo russo”), que tem o objetivo declarado
de “promover a língua e a literatura russas ao redor do mundo”, e a
Agência Federal para a Comunidade dos Estados Independentes,
Compatriotas Vivendo no Exterior
e Cooperação Humanitária Internacional (Rossotrudnichestvo).
“A Rússia está claramente presente na política, nas empresas privadas e na mídia da Estônia. Isso é
uma ameaça enorme”, afirma Tiius
Pohl, professora do Instituto de
Ciências Políticas e Governança da
Universidade de Tallinn.
Segundo ela, o problema é agravado porque o governo estoniano
nem mesmo tem uma ideia precisa
de qual é a parcela da população
que tem vínculos fortes com a Rússia — além dos russos que vivem na
Estônia, muitos estonianos também têm cidadania russa, mas
Moscou não revela a identidade de
quem se encaixa nessa categoria.
Em 2009, ainda sob o impacto
da invasão russa na Geórgia, no
ano anterior, um telegrama da embaixada americana para Washington, revelado pelo Wikileaks afirmava que “a Rússia continua como
a maior ameaça à Estônia” e que o
governo em Tallinn tinha uma
grande preocupação com a capacidade de defesa interna, “baseada
numa percepção quase paranoica
de um iminente ataque russo”.
Em outro documento americano vazado pelo Wikileaks em
2009, o diplomata estoniano Harri
Tiido afirma que “Putin tem uma
bronca pessoal com a Estônia”, que
seria motivada pelo fato de o pai
do presidente russo ter sido delatado por estonianos aos alemães
durante a Segunda Guerra.
Na apresentação do relatório
anual da Kapo de 2014, o diretor
da agência, Arnold Sinisalu, escreveu que “os acontecimentos na
Ucrânia abriram os olhos de muitos para os verdadeiros objetivo e
natureza da política da Rússia para
os compatriotas. A Rússia quer expandir o império russo usando os
residentes de língua russa como
um de seus instrumentos”.
O sociólogo Juhan Kivirähk, que
há 15 anos realiza pesquisas de
opinião pública sobre como a população se sente em termos de segurança, nota um aumento da
preocupação em relação à Rússia.
“33% pensam que é possível um
ataque estrangeiro. Há cinco anos
eram aproximadamente 10%”, diz.
O consultor de mídia Raul Rebane acha que a Estônia só agora está
começando a despertar para o
“soft power” russo. “Alguns anos
atrás ninguém sabia o que estava
se passando. Na guerra de informação, com muita frequência você
não sabe que está sob ataque. E, se
você não compreende isso, é porque já perdeu a guerra”, diz.
Para Rebane, é fundamental que
o país desenvolva atividades de
contrapropaganda. Por isso, ele
apoia a decisão do governo estoniano de abrir até o início de 2016
um canal de TV falado em russo
para se dirigir a essa comunidade,
que costuma acompanhar por TV a
cabo dezenas de canais russos.
Porém, Indrek Treufeldt, apresentador de TV e professor de jornalismo da Universidade de Tallinn, vê limitações nessa iniciativa.
“A Emissora Pública Estoniana é
uma instituição relativamente pequena, comparada às emissoras
russas. Eles têm dinheiro para produções caras de teledramaturgia,
entretenimento e notícias. Além
LIIS TREIMANN/AP - 24/2/2015
Tropas estonianas em Tallinn: país talvez seja o único membro da Otan a cumprir o acordo de investir 2% do PIB em defesa
VITOR PAOLOZZI/VALOR
Matrioscas de Lênin, Stálin e Vladimir Putin em loja de suvenires em Tallinn: a Rússia tem forte presença na Estônia
disso, muitos [estonianos] de língua russa se identificam como parte da esfera pública russa e têm
suas próprias preferências políticas e de celebridades e entretenimento. É difícil competir”, diz.
A divisão interna desse país pequeno — com um território de 45
mil km2, área um pouco maior que
a do Estado do Rio de Janeiro, e
uma população de apenas 1,3 milhão — foi ampliada graças a uma
política desenvolvida nos anos
1980 pela União Soviética, que, para sedimentar a sua ocupação. exportou para a Estônia fábricas e até
os operários encarregados de colocá-las em funcionamento.
As três décadas que se passaram
não foram suficientes para que a
Estônia realizasse uma completa
absorção desse contingente. No
leste do país, algumas regiões têm
uma população com cerca de 90%
de russos ou estonianos-russos.
Até hoje há escolas em que as matérias são dadas em russo — o governo vem desde 2007 aumentando progressivamente as aulas em
estoniano. Em Tallinn, a comunidade russa se concentra em bairros
da periferia, como Lasnamäe, e é
grande a ponto de eleger como
prefeito um político de um partido
que faz campanha em russo.
Embora a convivência entre estonianos e russos seja amistosa,
são duas comunidades essencialmente distintas, com poucos pontos de contato. Uma pesquisa divulgada em 2011 pelo Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, dos EUA, apontou que
81% dos russos declararam que
Raio X da Estônia
Principais indicadores socioeconômicos
FINLÂNDIA
São
Petersburgo
Tallinn
ESTÔNIA
Noruega
SUÉCIA
LETÔNIA
DINAMARCA
RÚSSIA
LITUÂNIA
ALEMANHA
POLÔNIA
BELARUS
Área:
45.228 km2
População:
1,3 milhão
Divisão étnica:
Estonianos - 68,7%, Russos - 24,8%
Outros - 6,5%
Analfabetismo:
0,2%
IDH*:
33º lugar (Brasil está no 79º)
PIB**
US$ 35,4 bilhões
PIB per capita**
US$ 26.555
Desemprego
6,3%
Inflação
-0,8%
Dívida pública
10,1% do PIB
Déficit orçamentário
0,5% do PIB
Fontes: FMI, Statistics Estonia, UNDP, CIA World Factbook *
Índice de Desenvolvimento Humano. ** Paridade de poder de
compra.
em seu círculo de relações têm somente russos como amigos e conhecidos. Outra pesquisa divulgada em 2011, da Universidade de
Tartu, indicou que 50% dos russos
têm pouca ou nenhuma integração à sociedade estoniana.
Um incidente ocorrido em 2007
mostra que as relações entre as
duas comunidades podem ficar
tensas. A decisão do governo de
transferir de um ponto central de
Tallin para um cemitério militar
uma estátua em homenagem aos
soldados do Exército Vermelho
que lutaram na Estônia durante a
Segunda Guerra provocou uma
onda de distúrbios envolvendo a
comunidade russa, que durou dois
dias. Embora tenha sido curto, o
confronto deixou marcas. “O nível
de confiança da comunidade russa
em relação ao governo e aos políticos estonianos caiu desde então”,
diz Juhan Kivirähk. Segundo o sociólogo, há uma resistência aos esforços de integração, vistos pela
comunidade russa como uma tentativa de assimilação e eliminação
de sua identidade étnica.
A ministra das Relações Exteriores da Estônia, Keit Pentus-Rosimannus, no entanto, não acredita que possa ocorrer no seu país
um movimento separatista semelhante ao que surgiu na Ucrânia.
“Eu provavelmente não vou estar
exagerando se disser que nenhuma das comunidades de língua
russa quer ver ou experimentar a
dominação da Rússia nos países
em que elas atualmente vivem. No
fim do ano passado, houve uma
pesquisa na Estônia, e a maioria
dos entrevistados de língua russa
respondeu ‘não’ à pergunta ‘a
Rússia tem o direito de proteger
seus interesses e ter influência em
Para a deputada Yana Toom, representante da Estônia no Parlamento Europeu, a Rússia não representa uma ameaça. O que existe
é “alarmismo” e “ideias paranoicas” difundidos pelo governo. Toom pertence ao Partido do Centro,
que desde 2004 tem um acordo de
cooperação com o Rússia Unida,
partido de Vladimir Putin.
Valor: Os russos que vivem na Estônia são segregados e recebem tratamento injusto dos estonianos?
Toom: Órgãos do Conselho da
Europa, da OSCE [Organização para a Segurança e Cooperação na
Europa] e da ONU se referem a vários problemas de grupos minoritários na Estônia. Russos e outros
falantes de russo são vítimas de
discriminação estrutural no mercado de trabalho estoniano. Suas
taxas de desemprego muito maiores não podem ser explicadas apenas pelo seu fraco domínio da língua estoniana. A reforma das escolas das minorias foi mal preparada
e dificilmente melhorará a situação geral dos jovens que falam russo. De acordo com o censo de 2011,
os falantes de russo têm melhor
educação que os estonianos, mas
sofrem mais com a pobreza.
Valor: Qual sua opinião sobre as
políticas do governo estoniano para
a comunidade russa?
Toom: As políticas oficiais sempre deram muita atenção ao ensino de estoniano e a maioria delas
ignorou inúmeras questões relacionadas a aspectos políticos e so-
ciais da integração. Como poderíamos promover a integração numa
sociedade em que um em cada sete
adultos não pode votar em eleições nacionais pelo fato de não ser
um cidadão da Estônia? Os estonianos devem se tornar uma nação
cívica que consiste de povos que
falam línguas diferentes e têm diferentes tradições culturais e religiosas. A assimilação involuntária
velada das minorias não deve ser
tolerada. Infelizmente, outras forças políticas dominantes são obcecadas com nacionalismo étnico.
Valor: Você acha que a Rússia pode invadir a Estônia?
Toom: Não vejo motivos para a
Federação Russa invadir a Estônia. Neste momento, não vejo semelhanças entre o leste da Ucrânia e qualquer região da Estônia.
Valor: Muitos estonianos dizem
que a Rússia interfere na Estônia,
com espiões e mandando dinheiro
para políticos e organizações.
Toom: Não compartilho as
ideias paranoicas da coalizão governamental. Não vejo nada de positivo nesse alarmismo. Na maioria
dos casos, esses chamados fundos
nacionais russos apoiam a língua e
a cultura russas no exterior. Num
Estado democrático, isso não deveria ser considerado uma ameaça
à Constituição. Povos que querem
preservar sua língua materna e
cultura estão exercendo seus direitos humanos e de minoria.
Valor: A Rússia financia o Partido do Centro?
Toom: Não. Na última campanha, rivais se esforçaram para rotular o Partido do Centro como pró-
O jornalista viajou a convite do governo
da Estônia
SVEN TUPITS/WIKIMEDIA COMMONS
Ameaça russa é “paranoia”, afirma oposicionista
De Tallin
todo o território da ex-União Soviética’ ”, diz Pentus-Rosimannus.
A transferência do Soldado de
Bronze também causou uma crise
diplomática com a Rússia. Dias depois, a Estônia foi vítima de um ciberataque de grandes proporções,
que durante três semanas derrubou sites do governo, bancos, mídia e outras organizações, praticamente deixando o país isolado do
resto da internet. O governo estoniano culpou a Rússia pelo ataque.
No ano passado, outro incidente voltou a colocar os dois países
em confronto. A Estônia diz que
um agente do seu serviço de segurança interna foi sequestrado perto da fronteira por homens da
russa FSB, sucessora da KGB, que
teriam invadido o território do
país. Já Moscou diz que o agente
cruzou a fronteira sem autorização e foi preso dentro da Rússia.
Em 2010, a Rússia fez exercícios
militares simulando uma invasão
dos países bálticos. As invasões do
espaço aéreo estoniano por aviões
militares russos são frequentes.
Com tudo isso, não surpreende
o fato de a Estônia ser talvez o único país, ou um dos poucos, a estar
cumprindo o acordo entre os
membros da Otan (Organização
do Tratado do Atlântico Norte, a
aliança militar ocidental) de investir 2% do PIB em defesa. Outros países próximos também estão preocupados com os russos: após ter
seu espaço aéreo invadido, a Suécia vai voltar a pôr tropas em uma
ilha estratégica, Gotland, e a Polônia pretende comprar mísseis e
submarinos para a sua Marinha.
A filiação da Estônia à Otan é
apontada pela chanceler PentusRosimannus como um grande fator dissuasor. “A Otan é a mais forte aliança militar no mundo de
hoje e não deveríamos menosprezar isso. Já aumentamos a presença da Otan na região. Há forças
terrestres dos EUA e da Holanda, e
a Espanha mantém uma missão
de vigilância aérea na Estônia.”
A ministra também destaca que
o país tem uma menor dependência econômica em relação à Rússia
que a Ucrânia. “Os maiores parceiros comerciais da Estônia são outros países da União Europeia, 72%
das nossas exportações vão para a
UE e 83% das importações vêm da
UE. As exportações do país para a
Rússia caíram 15% em 2014”, diz.
Ainda assim, há a questão energética. Embora conte com grandes
reservas de xisto, 18% do consumo
energético da Estônia é coberto
com petróleo e gás importados da
Rússia, segundo dados de 2013.
E, quanto à Otan, há dúvidas se a
organização pode responder com
a necessária rapidez a uma ação
russa. Em entrevista à agência de
notícias Bloomberg em fevereiro,
John Deni, professor do Instituto
de Estudos Estratégicos da Academia de Guerra do Exército dos EUA
(USAWC), lembrou que a maioria
das tropas da Otan na Europa estão no sul e no oeste do continente
e que, no caso de não haver uma
invasão direta, e sim uma operação disfarçada — como o apoio militar dado aos rebeldes na Ucrânia,
sempre negado por Moscou —, a
organização “não tem controle
operacional em tempos de paz e
precisaria esperar por uma decisão
dos governos aliados”.
Yana Toom, uma dos seis representantes da Estônia no Parlamento Europeu
Rússia. A intenção de normalizar
relações com a Rússia não pode ser
interpretada como atividade próRússia. Quaisquer afirmações de
que a Rússia financiou o Partido do
Centro são difamação, não podem
ser provadas na Justiça e nossos adversários sabem isso muito bem.