Montaigne - cético ou fideísta - Seminário dos Alunos do PPGLM

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Montaigne - cético ou fideísta - Seminário dos Alunos do PPGLM
Revista do Seminário dos Alunos do PPGLM/UFRJ: n.1, 2010
MONTAIGNE: CÉTICO OU FIDEÍSTA?
Edgard Zanette (Mestrando Unioeste, CAPES/ CNPq)
RESUMO:
RESUMO: No presente trabalho apresentaremos um modo de ler a Apologia de Raymond Sebond de
Michel de Montaigne. Iremos apontar cinco momentos principais desta obra que possibilitam
estabelecer uma certa estrutura argumentativa que visa problematizar a controversa questão:
Montaigne era um cético que usou o fideísmo para auxiliá-lo em sua crítica à razão, ou o fideísmo de
Montaigne se valeu do ceticismo para que sua resposta aos ateus e para os que defendiam a primazia
da razão fosse mais contundente? Visando superar essas duas possibilidades que se apresentam como
excludentes entre si, iremos propor uma outra leitura dessa questão, pautada nos cinco momentos
cruciais ao texto, que são os seguintes: 1) Contraposição entre fé e razão e desenvolvimento de uma
defesa do fideísmo; 2) Incursão filosófica e preparação para a radicalização cética; 3) Radicalização da
filosofia: ceticismo pirrônico ou neo-pirrônico; 4) Que sei eu? Desenvolvimento da originalidade do
pensamento de Montaigne e inserção da noção de subjetividade; 5) Problematização da finitude
humana (desenvolvimento da noção de subjetividade), retomada do fideísmo, discussão sobre a
experiência do tempo. Após a discussão destes elementos fundamentais ao texto, propomos
considerar que fideísmo, ceticismo e o desenvolvimento da noção de subjetividade, em Montaigne,
compõe um mesmo projeto, e não precisam necessariamente serem contraditórios.
O percurso da Apologia de Raymond
Raymond Sebond de Michel de Montaigne
A tradicional pergunta: Montaigne é Cético ou Fideísta? Aparece como a
grande questão filosófica a ser problematizada, e, talvez, respondida pelo texto dos
Ensaios mais controverso, debatido e admirado pelos intérpretes, a Apologia de
Raymond Sebond. Em nossa rápida abordagem, na qual apontamos cinco momentos,
ou melhor, movimentos que
caracterizariam essa pergunta determinante ao
pensamento montaigniano, iremos propor um modo de discuti-la a partir da
hipótese de que não haveria uma primazia do ceticismo ou do fideísmo na Apologia
de Raymond Sebond, mas um mesmo projeto pautado na radicalização do legado
socrático conhece-te a ti mesmo e só sei que nada sei, pela pergunta Que sei eu?
Os três livros que compõem os Ensaios de Montaine compõem uma obra
complexa e difícil de interpretar sistematicamente, até porque esse modo de proceder
é mesmo contrário ao que propõe Montaigne. Diante dessa enorme abrangência,
limitaremos o presente trabalho a investigar o texto Apologia de Raymond Sebond,
que está inserido no livro II, capítulo XII dos Ensaios. Como afirmamos na
introdução precedente, iremos propor como chave de leitura cinco momentos que
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expõem
vários
aspectos
fundamentais
do
pensamento
montaigniano.
Resumidamente eles são os seguintes:
1º) Introdução à contraposição entre razão x fé e desenvolvimento de sua defesa do
fideísmo: Ao iniciar o texto Montaigne afirma defender a obra Teologia Natural-Ou
Livro das Criaturas, de Raymond Sebond, mas efetivamente procura refutá-la. Para
Sebond é possível provar a existência de Deus e a superioridade humana em relação
aos outros animais tão somente pela razão. Ao se contrapor a essa perspectiva
Montaigne desenvolve um fideísmo, em que a fé é cega, e é pela revelação que os
nossos julgamentos devem se ancorar. Ademais, a fé é anterior a razão, pois “todos
os argumentos humanos são inertes e estéreis; só a graça divina lhes determina
valor” (Montaigne, 1979, p. 212).
2º) Incursão filosófica e preparação para a radicalização cética: Após o
desenvolvimento do aspecto fideísta de seu pensamento, Montaigne de forma
supreendente faz uma incursão pelos filósofos e seus principais argumentos visando
mostrar que Sebond não econtrou pela razão uma verdade filosófica, mas tampouco
algum outro homem conseguiu encontrar um argumento melhor que o de Sebond.
Neste momento da investigação ocorre a inserção do ceticismo, visando reduzir o
homem a partir da fragilidade da razão. Esta redução é apresentada após uma dupla
acusação contra Sebond. 1ª) Seus argumentos são fracos e insuficientes para provar o
que desejam, por isso são facilmente refutáveis. 2ª) Eles favorecem aos ateus e
permitem que combatam nossa religião cristã.(Montaigne, 1979, p. 213). Rebatendo
essa dupla objeção contra Sebond, Montaigne explica como irá prosseguir:
O meio que emprego para rebater essa objeção é humilhar e espezinhar o
orgulho e a arrogância do homem; o de lhe fazer sentir sua inanidade, sua
vaidade, seu vazio; de lhe arrancar das mãos as armas mesquinhas que lhe
fornece a razão; de o forçar a inclinar-se e beijar o chão ante a autoridade e
imponência da divina majestade. (Montaigne, 1979, p. 213).
O ataque direcionado à razão e a conseguinte redução do homem propõem, na
verdade, um efeito terapêutico, minando a soberba humana: “será possível imaginar
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algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de si
mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo?”
(Montaigne, 1979, p. 213). O ataque à razão, a redução do homem, a destruição da
soberba, são componentes de um expediente retórico composto de várias outras
estratégias agindo em conjunto para tornar possível uma radicalização da filosofia,
por intervenção e desenvolvimento de um ceticismo neo-pirrônico, como
apresentaremos no próximo momento.
3º) Radicalização da filosofia: ceticismo pirrônico ou neo-pirrônico: Há um impasse
implícito neste momento. Se a fé e a revelação divina são o porto seguro da existência
humana, porque Montaigne entra no conflito entre as várias filosofias, defendendo
um ceticismo, que de algum modo deve estar em consonância com a sua já declarada
posição fideísta? Essa conciliação é muito discutida entre os comentadores de
Montaigne, e não está no escopo do presente trabalho aprofundar tais posições
interpretativas. Sobre essa questão fundamental ao pensamento montaigniano,
podemos buscar compreender sua complexidade pensando a seguinte passagem.
Que nos prega a verdade quando nos convida a fugir à filosofia deste
mundo? E quando nos adverte de que nossa sabedoria é simples loucura
diante de Deus? Quando nos diz que de todas as vaidades o homem é a mais
vã; e que quem se vangloria de seu saber não sabe o que é o saber; e que o
homem não é nada quando pensa ser alguma coisa; e que se exalta e se
engana a si próprio? (Montaigne, 1979, p. 213)
O conflito entre fé e razão surge continuamente parecendo ser irresolúvel. Mas
se não é possível conciliar fé e razão, o que resta a razão? Sabemos que logo se
descarta a possibilidade da fé servir a razão, pois, segundo Montaigne, a razão é
como uma grande névoa, que ora oculta toda a nossa visão, ora se dissipa nos
enganando com suas atraentes miragens. Se o homem pode firmar-se em sua fé,
libertando-se de sua vaidade, o abandono da razão, neste aspecto, é resultante da
bondade divina. Se jogados ao mundo tão somente com a nossa inteligência somos
incapazes de alcançar qualquer verdade, ainda assim, a nossa razão pode ser um
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instrumento de nossa vida, bem como fortalecer a nossa fé: “Nossa razão deve
amparar a nossa fé, sempre com a reserva de não imaginar que por si só, pela força
que pode alcançar, lhe seja dado adquirir essa ciência sobrenatural que provém de
Deus”. (Montaigne, 1979, p. 209-210)
Para Montaigne as maiores construções da humanidade não procedem da
razão ou pela confiança em pretensas verdades absolutas, mas nascem da beleza do
mundo, da boa disposição de nossos próprios corpos, corpos estes que possuem
paixões e emoções. Por conseguinte, o que realmente toca nossas vidas, dando
sentido para esse estar no mundo, são as coisas não racionais, que referem-se ao
nosso corpo, a beleza do mundo e a nossa fé. Apesar deste aspecto do pensamento de
Montaigne parecer estar bem assentado, ainda não há uma justificativa que legitime
a inserção de um ceticismo tão radical como o que se seguirá. Buscando uma resposta
satisfatória a essa questão podemos lembrar de uma outra luta travada por
Montaigne, que é a sua crítica aos ateus.
O ateísmo é uma concepção monstruosa e anti-natural e difícil de ser aceita
pelo espírito humano […] Mas se esses ateus são bastante loucos para se
dizerem ateus, não são suficientemente fortes para implantar tal convicção
em sua consciência. […] Uma boa estocada no peito e eis-los de mãos postas
a implorar os céus. (Montaigne, 1979, p. 212)
Aqui Montaigne aproxima dois inimigos por meio de uma forte crítica a
ambos. Como o ateísmo seria uma doença execrável e os que defendem a soberba da
razão também não estariam muito longe dessa situação, tanto os soberbos quanto os
execráveis ateus exigem, visto que ambos não são tocados pela graça divina, pois não
reconhecem o valor da fé, que àquele que defende a fé combata a razão senão com a
própria razão. (Montaigne, 1979, p. 213). Combater a razão pela razão será o mesmo
que açoitar aqueles que se obstinam em pagar com o açoite (Montaigne, 1979, p. 213).
Aqui a estratégia argumentativa de Montaigne muda completamente. Há um
mergulho na discussão filosófica, principalmente pelo fato de que o homem não é a
medida de todas as coisas. Segundo Montaigne a concepção de Protágoras de que o
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homem é a medida de todas as coisas seria nada mais que uma imagem da miséria
humana. Se o homem está lançado em um mundo caótico, sem o amparo de deus,
sem a segurança da fé, sem um alicerce que eleve a sua natureza a ter um sentido, o
homem viveria na mais terrível e insuportável situação. Neste terceiro momento
Montaigne apresenta uma vasta discussão retomando argumentos platônicos,
aristotélicos, estóicos, epicuristas, etc., mas sempre privilegiando os argumentos
céticos pirrônicos. Um argumento importante que vale a pena assinalar é o da
igualdade entre os homens e os demais animais:
De todas as criaturas, a mais frágil e miserável é o homem, mas ao mesmo
tempo, como diz Plínio, a mais orgulhosa. […] Pela vaidade mesma dessa
imaginação, iguala-se a Deus, atribuindo-se a si próprio qualidades divinas
que ele mesmo escolhe. Separa-se das outras criaturas; distribui as
faculdades físicas e intelectuais que bem entende aos animais, seus
companheiros. […] Quando brinco com minha gata, sei lá se ela não se
diverte mais do que eu. Distraímo-nos com macaquices recíprocas, e se
tenho o meu momento de iniciar ou terminar o folguedo, ela também o tem.
(Montaigne, 1979, p. 214-215).
Como o homem foi reduzido, arrancando de si mesmo, pela razão, a soberba
da própria razão, o que lhe restaria? Teria Montaigne realizado uma destruição de
todo e qualquer discurso significativo ao atacar de forma veemente a razão? Temos
que contextualizar seu discurso sobre a miséria humana para não cairmos em
equívocos. De fato o seu discurso acerca da miséria humana pretende minar a razão e
o ateísmo. Contudo, essa crítica ao homem e à razão não é fechada em si mesma, mas
abre uma outra instância investigativa, terapêutica, em que será possível superar esse
momento negativo e anti-racional.
Não são pois a razão, a reflexão ou a alma que nos tornam superiores aos
animais; são nossa beleza, nossa linda tez, a harmônica disposição de nossos
membros, ao lado do que nossa inteligência, nossa prudência e o resto são de
pouca valia. […] Pagamos pois bem caro a tão decantada razão de que nos
jactamos, e a faculdade de julgar e conhecer, se a alcançamos, é a custa do
número infinito de paixões que nos assaltam sem cessar. (Montaigne, 1979,
p. 229).
Muito próximo de pensadores contemporâneos como Nietzsche e Foucault,
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Montaigne apresenta uma defesa do corpo e da sensação, mostrando que há um
número infinito de paixões que nos afetam sem cessar. Por esta fluidez, a razão nos
causa um preço muito caro a ser pago, retendo elementos que naturalmente se
apresentam em contínua mudança. Sobre essa questão, o efeito terapêutico da
argumentação de Montaigne apela para a experiência estética e acaba por ser
colocado no cerne de uma grande contradição. Os homens são o corpo, a beleza, as
paixões que são infinitas, e também são alma. O problema é que a tradição
geralmente contempla a alma como sumo bem da natureza humana, menosprezando
toda uma outra dimensão essencial que compõe essa coisa que nós mesmo somos.
Assim, a intenção de Montaigne seria mais restaurar uma unidade originária que
compõe o sumo bem humano, em toda a sua multiplicidade, mais que destruir a
razão tão somente pela destruição.
A 1ª lei que Deus impôs aos homens foi obedecer; uma ordem simples, sem
complicações, poupando o trabalho do conhecimento e do raciocínio […]
Obedecer e submeter-se são o princípio de todas as virtudes, como a
presunção é o princípio de todos os pecados. O mal no homem está em
pensar que sabe, por isso nossa religião recomenda-nos com tanta insistência
a ignorância como meio adequado a determinar em nós a fé e a obediência:
cuidai de que ninguém vos iluda com a filosofia, nem com as vãs seduções
das doutrinas do mundo. (Gênesis) […] Todos os filósofos de todas as seitas
concordam em que o soberano bem reside na serenidade da alma e do
corpo.(Montaigne, 1979, p. 230).
Em um primeiro momento desta citação, o fideísmo aparece com toda a sua
força, pois a soberba e o ateísmo são um grande mal, por outro lado, também há uma
outra doença que é o menosprezo completo do que somos. Assim, a redução do
homem é um momento terapêutico da estratégia argumentativa de Montaigne, mas
não o último. Neste caso, o homem, apesar de pequeno e reduzido, age no mundo,
goza a vida, sofre, sente prazeres, vive seu momento e morre. Mesmo finito e
reduzido a ser pó e cinzas, mesmo assim, o seu momento, a sua sua passagem nesta
sua condição existencial trás uma grande questão: Que sei eu?
4º) Que sei eu? Desenvolvimento da originalidade do pensamento de Montaigne e
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inserção da noção de subjetividade: No interior do conflito entre as várias filosofias, a
argumentação de Montaigne segue o percurso zetético pirrônico, em que a
investigação segue continuamente concluindo haver uma equipolência entre os
vários argumentos que aparecem e se contrapõem, cada qual mostrando-se coerente
segundo suas próprias razões.
Nossa linguagem tem seus defeitos e suas insuficiências, como todas as
coisas. Em sua maioria as desordens deste mundo têm sua origem nas
sutilezas dos gramáticos. […] Em uma e outra frase, a construção, a lógica, a
força conclusiva são idênticas e eis que estais em dificuldades, porquanto
apresentam ambas deduções contrárias. Isso põe os filósofos da escola de
Pirro na impossibilidade de empregar nossa maneira de falar para
exprimirem a dúvida que, em tudo, constitui sua regra. Assim, para evitar
semelhante objeção, tiveram de tomar de empréstimo à medicina uma
comparação sem a qual não explicariam seu pensamento. (Montaigne, 1979,
p. 248).
Neste caso a filosofia empresta da medicina algumas expressões que procuram
narrar acontecimentos, ao invés apresentar o discurso de forma enunciativa. Para os
céticos pirrônicos, e Montaigne segue essa perspectiva, todo discurso enunciativo
propõe anunciar o que as coisas são em si mesmas. Assim, sempre usariam os
conceitos, de um modo ou de outro, visando estabelecer dogmaticamente o que as
coisas são. A estratégia que Montaigne empresta dos pirrônicos seria a de narrar os
acontecimentos sem procurar estabelecer o que uma coisa é em detrimento de outra
coisa que ela não é. Neste caso o discurso que segue o modo de filosofar cético
acredita que é possível narrar os próprios pensamentos por intermédio de um
discurso que se anula, no ato mesmo de narrá-lo, fazendo desaparecer o seu pretenso
compromisso com uma objetividade ou mesmo com a verdade.
Ao dizerem “eu ignoro”, ou “eu duvido”, acrescentam que ambas as
proposições desaparecem com o resto da frase, assim como o ruibarbo
expele os humores e com estes a si mesmo. Tal estado de espírito enuncia-se
interrogativamente de maneira mais segura, dizendo-se “Que sei eu?” E é
minha divisa. E a acompanho de uma balança. (Montaigne, 1979, p. 248).
Com essa imagem da balança, nem pender para um lado e nem para o outro, a
anterior faceta negativa e antidogmática faz emergir uma outra característica do
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pensamento montaigniano, em que a filosofia retorna ao legado socrático de
conhecer-se a si mesmo e de cuidado de si, propondo uma radical questão sobre o
que nós mesmos somos, cada um em sua própria experiência individual. É
importante notar que a manutenção do caráter zetético da expressão de Montaigne
Que sei eu? Tende primeiramente para o indeterminado e para o relacional, pois o
que precederia o eu, que completaria o sentido do primeiro como um complemento
ao mesmo, e não como o eu tendo primazia por meio de um discurso em primeira
pessoa que visaria uma determinação de si a si, de uma verdade de si mesmo, ou da
transparência a si, como ocorre, por exemplo, na enunciação do cogito cartesiano. Por
conseguinte, nas expressões de Luiz Eva, o eu montaigniano antes que um sujeito do
conhecimento mostra-se um sujeito do desconhecimento.
Diante da difícil tarefa de interpretar a relação entre fideísmo, ceticismo, e
agora a noção de subjetividade, que emergiria das duas primeiras, nota-se que se o
ceticismo é o grande suporte da exposição filosófica de Montaigne, ele só o é como
expediente cético que possibilita uma outra problematização da natureza humana,
disposta em uma retomada das filosofias epicurista e estóica. Esta interessante
problematização resgata a pergunta que moveu grande parte do pensamento grego
helenista que era: como viver e como morrer? É no enfrentamento a essa questão
originária que a famosa formulação cética de Montaigne (Que sei eu?) radicaliza o
próprio ceticismo pirrônico, na medida em que o homem que coloca a questão sobre
o sentido e a limitação do seu próprio saber sequer pode afirmar que nada sabe,
como fazia Sócrates.
5º)
Problematização
da
finitude
humana
(desenvolvimento
da
noção
de
subjetividade), retomada do fideísmo, discussão sobre a experiência do tempo: Tudo
o que o homem tem é a sua vida e a sua morte. Essas duas instâncias formam um
ciclo em que a finitude humana é confrontada constantemente. Só há, sobre essa
instância, um caminho a seguir: saber viver e morrer. Estes dois polos de um mesmo
projeto, a existência humana, faz que o conhecer a si mesmo é um grande remédio
para todos os nossos males.
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Admite geralmente a filosofia, como último remédio para os nossos males,
que ponhamos fim à vida, desde que não a possamos suportar: “Agrada-te a
vida? Suporta-a. Estás cansado dela? Sai como quiseres.” (Sêneca) [...] Se
porventura ocorrer alguma desgraça para a qual não tenhamos remédio, o
porto está próximo; podemos salvar-nos a nado, abandonando o corpo,
como um barco que faz água. É o medo de morrer e não o desejo de viver
que retém o louco amarrado ao corpo. (Montaigne, 1979, p. 248).
O medo da morte e o desejo de viver nos retém, e ao invés de gozarmos a vida
vivemos em contínua lamentação. Não devemos temer a vida e a morte, mas não é
correto abandonarmos a nossa experiência da finitude, pois cabe a cada um
mergulhar em si mesmo, se atolando em suas próprias angústias. A nossa finitude
nos faz sermos seres miseráveis. Mas há uma outra solidão que nos torna melhores.
A verdadeira solidão é um aprofundamento do espírito humano, que pode acontecer
de muitos modos distintos e em qualquer lugar. O lugar em que estamos não
importa, mas seguindo o modo de pensar dos estóicos, Montaigne considera que a
boa orientação do espírito é capaz de nos isolar dos conflitos externos. Muitas coisas,
quem sabe as melhores, são gozadas em total isolamento, o que seria uma total
liberdade. Assim, um verdadeiro isolamento em um aprazível recanto pode sim nos
dar bons resultados, seja para os estudos, seja para o trabalho, ou mesmo para o
usufruir da ociosidade. Como há uma uma instabilidade natural em nossa natureza,
vivemos a mudança, a contínua passagem daquilo que somos se tornando uma outra
coisa. O tempo nos obriga a viver essa passagem, e nossa experiência subjetiva
sempre conduz às coisas a uma alteração. Para o homem, aquilo que em um
momento é grande fonte de prazer, logo em um outro momento é fonte de terror ou
de extrema fadiga. Nossos pensamentos são errantes, nosso julgar tateia, nossa vida
segue em zigue-zague. Ir e voltar são um e o mesmo, pois viver a passagem são
aspectos intrínsecos da nossa própria finitude. Como o nosso espírito vagueia, a
experiência da subjetividade, do pensar e escrever em primeira pessoa, tal como
Montaigne o faz, conduzem à constatação de que a arte de saber viver está em
relação direta com a de saber morrer. O homem não vive e está defronte a uma
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impossibilidade total, que seria a morte. Ao contrário, o homem vive a sua morte, ele
a sofre, ele a sente, muitas vezes tem terror em pensar na mesma, mas em outras até
mesmo goza certo sentimento de prazer ao considerar a possibilidade de deixar um
grande sofrimento. Contudo, essa instabilidade jamais significaria uma procura pela
morte. Pelo contrário, é preciso saber viver conforme as circunstâncias, tal como os
estóicos aconselhavam. É muito interessante a seguinte citação sobre a valorização da
vida em contraposição às falsas promessas de que na morte os homens seriam mais
felizes que durante suas próprias vidas: “Ao iniciarem Antístenes nos mistérios de
Orfeu disse-lhe o sacerdote que ao morrer, por praticar essa religião, receberia as
mais admiráveis recompensas, respondeu-lhe o filósofo: Por que não morres?”
(Montaigne, 1979, p. 211)
Para finalizarmos o nosso trabalho gostaríamos de tocar em um último
assunto, que é a relação entre ceticismo e fideísmo como componentes da reflexão
sobre e o tempo que fecha a Apologia de Raymond Sebond. Vejamos rapidamente
alguns aspectos do tratamento de Montaigne acerca da questão do tempo:
1) O que é tal como vemos? Somente o eterno. Mas há o problema de determinar
o que seja o eterno, pois é preciso, primeiramente, compreender o que é o
tempo e como o eterno é composto a partir do próprio tempo. Daí surge a
questão:
2) O que é o tempo? O antes e o depois mostram que o tempo não se trata de
uma coisa que é. O mesmo ocorre com a natureza; nada há nela que
permaneça; pois tudo nela ou está nascendo ou morrendo. Mas há algo que
permaneça, há algo que coabite o eterno?
3) Só Deus é, não segundo uma medida de tempo, mas segundo uma eternidade.
Para Deus ser e sendo são a mesma coisa. (Montaigne, 1979, p. 282)
É muito interessante que após todo o percurso filosófico traçado por
Montaigne, a discussão que fecha a Apologia de Raymond Sebond parece ser muito
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próxima, ou mesmo uma retomada, da famosa formulação de Santo Agostinho sobre
o tempo:
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o
quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a
declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não haveria
tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o presente. De que
modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro -, se o passado já
não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre
presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade
[…] Para que digamos, que o tempo existe, porque tende a não ser?
(Agostinho, 1999, Confissões, Livro XI, C. XIV, p. 243)
Tanto Santo Agostinho como Montaigne parecem alcançar a mesma
dificuldade: Se Deus coabita a eternidade, e, portanto, somente ele é, podemos
indagar mais uma vez? O que é o homem se ele, neste sentido, não é?
Não pode ocorrer que o homem se eleve acima
humanidade, porque só pode ver com seus olhos e
próprios meios. Elevar-se-á, se Deus lhe quiser dar a
cristã, e não a virtude estóica dos filósofos, que pode
milagrosa metamorfose. (Montaigne, 1979, p. 211)
de si mesmo e da
apreender com seus
mão. […] É nossa fé
operar essa divina e
O homem e sua existência participam de uma dupla condição: de um lado, o
homem não é, mas tão somente vivencia o sendo, ou seja, o processo do devir, da
geração e da corrupção contínua, do puro sendo. Mas há uma outra possibilidade,
pois pela fé e pelo milagre, o homem poderia sim alcançar uma outra experiência, a
da metamorfose. No primeiro caso, permanecendo no âmbito do “sendo”, da
passagem, da finitude, o homem faz parte da natureza, em que tudo flui e nada
permanece. Ao homem resta radicalizar essa sua experiência, em que o uso do
ceticismo pode dar um novo sentido ao legado socrático de conhecer-se a si mesmo,
podendo haver um processo íntimo de constituição de si mesmo, cada um levando-o
às últimas consequências. O só sei que nada sei é reformulado pelo que sei eu? Aqui
o homem se experimenta a si mesmo como finito, experiencia um mundo finito
defronte a si, e o mesmo tempo em que age no mundo, se faz mundo, em que esse
experimento cético, faz da passagem, um contínuo exercício de auto-retrato. Assim,
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os seres humanos são raciocinantes, manifestando continuamente pela retórica suas
experiências inquietas, suas angústias, suas indagações e contradições. Desse modo,
o homem está jogado no mundo, e por isso é miserável. Mas por outro lado, apesar
de reduzido e finito, o homem não é previamente circunscrito ou aprisionado, ele
vive sua finitude, tendo a liberdade de escolha sobre como viver e morrer, ou quem
saber, gozar dessa experiência da metamorfose.
Referências bibliográficas
AGOSTINHO DE HIPONA. Confissões. Tradução: J. Oliveira Santos e A. Ambrósio
de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 416 p. (Coleção Os pensadores).
BIRCHAL, Telma de Souza. O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: Editora
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DIÔGENES, Laêrtios. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução do grego,
introdução e notas: Mário da Gama Kury 2ª. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,
1977.
EVA, Luiz. A FIGURA DO FILÓSOFO: Ceticismo e subjetividade em Montaigne. São
Paulo: Edições Loyola, 2007.
FILHO, Roberto Bolzani. Acadêmicos versus Pirronianos: Ceticismo Antigo e
Filosofia Moderna. In. Discurso. Revista do Departamento de Filosofia da USP. São
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