A guerra biológica através dos séculos.

Transcrição

A guerra biológica através dos séculos.
BIOTECNOLOGIA
Ao longo da história,
os povos sempre usaram
estratégias de ataque
biológico para provocar
o colapso econômico
ou viabilizar a invasão
de determinada região.
Se antigamente tais artifícios
limitavam-se a aplicar
veneno de plantas ou
secreções purulentas nas
pontas de lanças, nas últimas
décadas a manipulação
genética ampliou
esses recursos,
gerando armas com imenso
poder de destruição.
Alguns acordos internacionais
já foram firmados, a fim
de reprimir a produção
e o crescimento dos arsenais
biológicos. A facilidade
de criar essas armas,
porém, é o maior obstáculo
no caminho para a paz.
A guerra
através
Patricia Machado Bueno Fernandes
Departamento de Ciências Fisiológicas,
Centro Biomédico,
Universidade Federal do Espírito Santo
* A autora realizou parte desta revisão bibliográfica
no Instituto Militar de Engenharia, RJ, com bolsa de
recém-doutorado do CNPq.
22 00 •• C I Ê N C I A H O JJEE •• vo
voll.. 3311 •• nnºº 1188 6
BIOTECNOLOGIA
Os recentes atentados com a bactéria causadora do antraz, nos Estados
Unidos, geraram na opinião pública grande interesse a respeito da guerra biológica. Preocupado com
possíveis novos ataques com outros agentes patogênicos, o governo daquele país vem aumentando
seus estoques da vacina contra a varíola, doença erradicada em todo o mundo em 1980. Por acreditar
que grupos terroristas já teriam o vírus causador da
doença, chegou a ser planejada a vacinação antecipada de funcionários de equipes de emergência. A
facilidade de produção de armas biológicas e as
crescentes suspeitas de que podem ser utilizadas
em breve reforçam a importância de se estabelecer
acordos internacionais que proíbam o desenvolvimento e o uso dessas armas, assim como urge criar
mecanismos para tornar efetiva essa proibição.
O nome ‘guerra biológica’ ou ‘guerra química e
biológica’ refere-se à utilização de substâncias e
agentes químicos e biológicos com finalidades béli- !
biológica
ILUSTRAÇÃO LUIZ BALTAR
dos séculos
s e t e m b r o d e 2 0 0 2 • C I Ê N C I A H O J E •• 22 11
BIOTECNOLOGIA
A ciência
como arma
Os agentes patogênicos usados como armas biológicas são bactérias, vírus, fungos e protozoários. O conhecimento que hoje permite esse uso, porém, exigiu centenas
de anos de prática médica e árduas pesquisas científicas.
Acreditava-se, até o século 14, que os parasitas surgiam
espontaneamente dentro do corpo. A primeira teoria de
que a doença era provocada por organismos microscópicos (os germes) foi proposta pelo químico e biólogo
francês Louis Pasteur (1822-1895). Ele demonstrou que
agentes patogênicos capazes de se desenvolver também
fora do corpo infectado causam inúmeros males.
A experiência resultante das guerras e da prática médica nos campos de batalha foi, sem dúvida, valiosa para
ampliar o conhecimento sobre as doenças infecto-contagiosas. O primeiro médico-pesquisador a observar a presença de parasitas no sangue de pessoas com malária,
por exemplo, foi um oficial do exército francês, Charles
Louis Alphonse Laveran (1845-1922), ao examinar o sangue de soldados na Argélia. O médico militar britânico
cas (ver ‘A ciência como arma’). Tais agentes podem
simplesmente ser recolhidos da natureza e liberados em outro lugar ou passar por manipulação
genética, tornando-se ainda mais letais. Uma questão importante para os planejadores de uma guerra
desse tipo é como atacar seres humanos, já que os
próprios atacantes podem ser afetados. Existem,
portanto, várias estratégias. Por exemplo, quanto
mais distante for o país a ser atacado, menor será o
risco para o país atacante. Por outro lado, pode-se
escolher um agente biológico para o qual exista
imunização. Com isso, a tropa atacante poderia se
imunizar contra tal agente e circular livremente.
É importante frisar que o propósito de um ataque biológico é obter baixas e, principalmente, incapacitações (ver ‘Os números da destruição’). Desse modo, pode ser usado para viabilizar a invasão
de uma determinada região ou para provocar um
colapso econômico. Nesse último caso, a toxina ou
o agente biológico são lançados contra criações de
animais ou plantações, levando a população à fome e reduzindo sua capacidade de se organizar.
Um dos fatores importantes na seleção de agentes para ataques biológicos é a facilidade de produção. As armas biológicas que vêm sendo discutidas
atualmente são facílimas de produzir. Por exemplo,
com caldo de carne comercial pode-se produzir litros e litros de meio de cultura para cultivar bactérias como a bactéria do carbúnculo, ou antraz
(Bacillus anthracis). Esse microrganismo cresce facilmente e, se armazenado por período prolongado,
passa a produzir esporos como um mecanismo natural de defesa. Tais esporos são altamente virulentos quando inalados: 100% dos indivíduos atacados
adquirem a doença e 90% dos casos são fatais. O
carbúnculo pode ser controlado por vacinação, mas
são necessários cerca de oito meses para que a
vacina seja preparada. Esse fator faz com que a tropa
atacante leve vantagem, pois pode se imunizar com
antecedência.
Sir Ronald Ross (1857-1932), por sua vez, foi o primeiro
a demonstrar o ciclo do plasmódio no mosquito, sendo
por isso premiado com o Nobel de Medicina em 1902.
Em 1876, Robert Koch (1843-1910), considerado o pai da
microbiologia, estudando o bacilo do antraz, demonstrou
definitivamente que uma infecção é causada por um agente microbiano. Ao mesmo tempo apresentou meios de
cultura, ou seja, meios próprios para cultivar e armazenar esses microrganismos. A partir daí, evidentemente, a
inteligência militar, essencialmente estratégica, começou a considerar a possibilidade do uso bélico desses
novos materiais.
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Uma história antiga
Ao longo da história da humanidade, encontramos
diversas referências ao uso de gases asfixiantes,
cortinas de fumaça, produtos incendiários, produtos nauseantes e até mesmo de corpos de animais ou
seres humanos doentes como armas de guerra. Também há registros de estratégias variadas, como a
infestação de áreas e de águas, ou a contaminação de
pontas de lanças com fezes diarréicas, secreções e
toxinas de plantas. Os próprios índios brasileiros
costumavam empregar uma tecnologia neolítica de
guerra química ou biológica, passando curare (veneno de planta) nas pontas de suas flechas.
BIOTECNOLOGIA
Os números da destruição
Nos anos 70, a Organização Mundial de Saúde fez um estudo sobre as mortes que ocorreriam no caso de
um ataque biológico aéreo. Se um avião lançasse 50 litros de um agente, em partículas de aerossóis, ao
longo de uma linha de 2 km, sobre uma cidade de 500 mil habitantes, os resultados seriam os seguintes:
Agente
Vírus da encefalite eqüina
Bacilo de antraz
Altura
Mortes
Incapacitações
1 km
9.500
35.000
20 km
95.000
125.000
Outro exemplo ocorreu no século 18, no Novo
Mundo, durante a guerra entre franceses e ingleses pelas novas terras. Quando os índios norteamericanos se uniram aos franceses, os ingleses
distribuíram nas tribos lençóis de pessoas contaminadas por varíola. Com isso, provocaram uma
epidemia violentíssima que minou a resistência
da população indígena e, em conseqüência, seu
apoio aos franceses.
Durante o século 20, foram registradas algumas
das mais dramáticas situações decorrentes do emprego de armas biológicas. A partir de 1932, o Japão !
TENTAÇÃO DE SANTO ANTÃO (DETALHE)/BOSCH
A primeira notícia do que pode ter sido uma
guerra biológica é a chamada ‘quinta praga’ do Egito, ocorrida no século 15 a.C., que teve índice de
mortalidade altíssimo. O próprio faraó, segundo a
Bíblia (livro do Êxodo, capítulo 9, versículos 4 e 6)
foi contaminado, sugerindo que houve a introdução
estratégica do agente, provavelmente o B. anthracis.
Esse bacilo provoca um tipo de doença animal
muito comum (conhecida como carbúnculo), e a
manipulação direta do animal infectado, sem higiene apropriada, favorece a contaminação. Existem, ainda nos tempos bíblicos, descrições de vários ataques biológicos através da
contaminação de poços e reservatórios de água, onde eram jogados animais doentes e pedaços de
cadáveres de pessoas que haviam
morrido de algum tipo de infecção. Com isso, toda a população
da região que utilizava a água ficava exposta.
Em 1395, os tártaros que invadiram Kaffa (atual Feodósia), na
península da Criméia, às margens do mar Negro ( na atual Ucrânia), utilizaram uma terrível arma biológica. Cadáveres de soldados infectados pela bactéria da
peste (Yersinia pestis) eram catapultados para dentro da cidade
sitiada. A doença era transmitida à população por ratos e pulgas,
que na época infestavam as cidades. Essa doença foi a grande aliada dos tártaros na investida àquela região.
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liberaram no ar esporos de antraz. Foi um desastre
tão grande que a ilha permaneceu contaminada até
1986, quando uma campanha internacional pressionou as autoridades responsáveis para que o solo
fosse lavado várias vezes, com água do mar misturada a formol, permitindo finalmente sua liberação.
Em 1946, os Estados Unidos iniciaram um amplo
programa de guerra biológica, montando uma grande estrutura para isso em Camp David, Maryland,
com áreas de testes no deserto. Cientistas japoneses da unidade 731, aprisionados no final da Segunda Guerra Mundial, foram anistiados pelo governo norte-americano com a condição de transferirem para o país vencedor toda a tecnologia que
tinham desenvolvido. Paralelamente, os Estados
Unidos criaram técnicas de fermentação – cultivo
de microrganismos em grandes tanques –, assim
como de compactação, armazenagem e manipulação para a produção de armas biológicas.
Em 1960, todo o arsenal biológico dos Estados
Unidos, um dos maiores do mundo, estava comple-
O TRIUNFO DA MORTE/BRUEGEL
desenvolveu uma tecnologia avançadíssima de
guerra biológica. Após a invasão da China, em 1937,
o exército japonês instalou, perto da cidade de
Nanquim, na Manchúria (no sul da China), a chamada unidade 731, onde eram criados e produzidos diversos tipos de armas biológicas, usando as
bactérias que provocam antraz ( B. anthracis), meningite ( Neisseria meningitidis ), disenteria
(Shigella dysenteriae), cólera (Vibrio cholerae) e
peste (Y. pestis ). Os numerosos campos de concentração para chineses existentes na região foram utilizados como áreas de teste dessas armas. Cerca de
três mil mortes foram documentadas.
Na Segunda Guerra Mundial, sabendo da existência da unidade 731 japonesa, os países aliados
imediatamente iniciaram suas próprias pesquisas
com armas biológicas. Realizou-se, então, uma experiência catastrófica, que se tornou célebre: os
aliados usaram a ilha Gruinard – uma pequena porção de terra perto do litoral da Escócia – como campo de provas. Soltaram bombas que, ao explodir,
BIOTECNOLOGIA
A destruição
do arsenal biológico
to e pronto para qualquer emergência. A partir daí,
começaram os conflitos diplomáticos. Durante a
chamada ‘guerra fria’, além da questão dos mísseis
em Cuba e das ogivas nucleares, foram discutidas
também as armas biológicas. Nesse período aconteceu a séria acusação, feita pela União Soviética, de
que os Estados Unidos estariam usando armas biológicas defensivas na guerra do Vietnã e também no
sul da China. Mais tarde, os Estados Unidos acusaram os soviéticos de ataques com toxinas de fungos
(tricotecanos) – lançados por aviões, na conhecida
‘chuva amarela’ – contra o Laos e o Afeganistão,
entre 1969 e 1971. Nenhum desses incidentes foi
oficialmente confirmado.
É exatamente essa a grande ‘vantagem’ das armas biológicas: elas são silenciosas e é difícil distinguir seus efeitos daqueles decorrentes de eventos
naturais como epidemias, intoxicações alimentares (causadas por más condições de armazenagem
de gêneros), falta de programas de vacinação, problemas socioeconômicos etc.
Nos anos 60, a cidade de Nova York foi palco, sem
saber disso, de experiência com uma cromobactéria
(bactéria fluorescente) não patogênica, para avaliar
o alcance de um ataque com armas biológicas.
Grande quantidade da cromobactéria foi lançada,
com o auxílio de um sistema de aerossóis, em pontos
estratégicos da cidade, escolhidos com base em
mapas de correntes aéreas. Em seguida, investigou-se em vários locais a presença do microrganismo, verificando-se que estava disseminado por
toda a cidade.
Em 1969, durante a ‘guerra fria’, preocupado com
as proporções que um conflito bacteriológico poderia provocar, o presidente dos Estados Unidos, Richard
Nixon (1913-1994), fez um importante pronunciamento, no qual se propunha a eliminar todo o arsenal
biológico norte-americano. Ele teria sido destruído
no período de 1971 a 1972. Ainda em 1969, a Inglaterra submeteu à Organização das Nações Unidas
(ONU) a proposta de um protocolo que proibia o desenvolvimento, a produção e o armazenamento de
armas biológicas. O documento ordenava que qualquer país acusado de produzir armas biológicas fosse investigado por uma comissão internacional. Em
1972, o tratado foi assinado pelos países vinculados
à ONU e ao Pacto de Varsóvia. Depois disso, outros
tratados internacionais, de grande amplitude ou re gionais, foram assinados (ver ‘Acordos para a paz’).
Na verdade, o contexto mundial tornou-se propício a um acordo desse tipo por causa da divulgação
– bombástica – de algumas manobras das agências
de segurança dos então mais poderosos países do
mundo. A primeira foi a constatação de que o Comitê de Segurança do Estado Soviético (KGB) havia
desenvolvido uma toxina do rícino e a estava usando, com a ajuda do serviço secreto búlgaro, para
assassinar seus dissidentes em Londres.
O KGB fabricou pequenas esferas (de 1 a 2 mm
de diâmetro, com um furo central), que eram mergulhadas em solução de ricina (proteína tóxica produzida por uma planta da família Euphorbiaceae)
e depois cobertas com parafina, capaz de derreter
em contato com a temperatura corpórea. Um guarda-chuva especialmente adaptado disparava uma
chuva dessas esferas metálicas. Vários dissidentes
soviéticos foram assassinados dessa maneira. A
trama foi descoberta e o próprio guarda-chuva foi
mostrado à imprensa.
Por sua vez, a Agência Central de Inteligência dos
Estados Unidos (CIA) também foi acusada de assassinatos políticos usando a tetradotoxina, veneno
produzido pelo peixe baiacu. Essa toxina é capaz !
setembro de 2002 • CIÊNCIA HOJE • 25
BIOTECNOLOGIA
Acordos para
a paz
Organizações internacionais têm se mobilizado para deter a produção de armas biológicas. Alguns acordos internacionais têm sido firmados nesse sentido:
! Protocolo para a proibição do uso na guerra de gases
asfixiantes, venenosos e outros gases, e métodos bacteriológicos de guerrear (Protocolo de Genebra). Foi firmado em 17 de junho de 1925, e abrange hoje 141 países
(muitos apresentaram reservas no sentido de que só cumpririam os termos do protocolo se os outros Estados também não recorressem ao uso de armas químicas).
! Convenção sobre a proibição do desenvolvimento, produção e armazenamento de armas bacteriológicas (biológicas) e tóxicas e sobre sua destruição (BWC). Foi firmado
em 10 de abril de 1972 (entrou em vigor a 26 de março de
1975), e abrange hoje 124 países. Em 1992, um acordo entre
a Rússia, o Reino Unido e os Estados Unidos estabeleceu
um intercâmbio entre as pesquisas biológicas dos três
países, a fim de verificar o cumprimento da BWC. Com base
nesse acordo ocorreram visitas recíprocas em 1993 e 1994.
! Convenção sobre a proibição de desenvolver, produzir,
armazenar e usar armas químicas, e sobre sua destruição
(CWC). Firmada em 13 de janeiro de 1993, inclui hoje 159
países. Obriga a destruir as usinas de produção de armas
químicas, assim como retirar quaisquer armas que tenham
sido abandonadas no território de outro Estado-membro.
! Grupo do Rio. Firmado em dezembro de 1986, inclui 12
países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador,
México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela). Os
objetivos são a prevenção da introdução de armas de destruição em massa na América Latina e Caribe.
! Compromisso de Mendoza. Firmado em 5 de dezembro
de 1991, inclui três países (Argentina, Brasil e Chile). O
objetivo é manter seus territórios livres de armas químicas e biológicas.
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de causar infarto fulminante sem deixar qualquer
vestígio no corpo. A arma utilizada para veicular o
veneno era uma caneta. O indivíduo riscado com a
tinta morria de infarto em pouco tempo.
O Iraque, que na época da ‘guerra fria’ era um
poderoso aliado dos Estados Unidos no Oriente
Médio, também deu início a um programa de desenvolvimento de armas biológicas. De posse de um
projeto extremamente bem organizado, começou a
desenvolver, armazenar e fazer experimentos com
o bacilo antraz e com diversas toxinas, entre elas a
botulínica (produzida pela bactéria Clostridium
botulinum) e a aflatoxina (produzida por fungos, em
especial os do gênero Aspergillus, que crescem sobre alimentos, e chamada de toxina do amendoim).
Durante a guerra do Golfo, contra o Iraque, os
Estados Unidos sabiam perfeitamente que aquele
país estava equipado para atacar biologicamente
qualquer inimigo dentro ou fora de seu território.
Por essa razão, todos os soldados norte-americanos
foram vacinados contra o bacilo do antraz e a toxina botulínica. Além disso, cada soldado recebeu uma cartela com o antibiótico cicloprostatina,
com doses suficientes para cinco dias, para ser
tomado em caso de suspeita de ataque biológico.
Após a guerra, foi feita uma inspeção no Iraque
e comprovou-se que o presidente Saddam Hussein mantinha uma instalação com 100 bombas
com toxina botulínica, 50 com esporos de carbúnculo e 16 com aflatoxina; além de 13 ogivas de
mísseis com toxina botulínica, 50 com esporos de
carbún culo e duas com aflatoxina.
Recentemente, protestos de organizações nãogovernamentais vêm chamando a atenção para o
‘agente verde’, fungo desenvolvido para combater
os chamados cultivos ilícitos em países da Ásia e
das Américas do Sul e Central. Essa arma, aprovada
pelo governo norte-americano, será usada supostamente para destruir apenas plantações de narcóticos (coca, papoula e maconha). Entretanto, de acordo com informações de uma dessas ONGs (Projeto
Sunshine), as cepas dos fungos Fusarium oxysporum e Pleospora papaveraceae podem infectar e
matar variedades naturais aparentadas com as
plantas narcóticas. Isso seria trágico para outras espécies animais e vegetais que dependem dessas variedades, e afetaria o equilíbrio dos ecossistemas.
Após o ataque terrorista de 11 de setembro, os
Estados Unidos sofreram vários ataques usando o B.
anthracis como arma biológica. Os esporos do bacilo foram enviados por carta a vários locais do país.
Dados do Centro de Controle de Doenças, ligado ao
governo norte-americano, revelam que 18 pessoas
foram contaminadas pela bactéria entre outubro
e dezembro de 2001, em vários estados, e cinco
delas morreram em conseqüência da infecção.
BIOTECNOLOGIA
As novas armas
TENTAÇÃO DE SANTO ANTÃO (DETALHE)/BOSCH
Atualmente, o incrível avanço da biotecnologia trouxe muitas possibilidades para a criação de novas
armas biológicas. As técnicas de biologia molecular
e de manipulação dos genes permitem alterar células e organismos de maneira altamente específica,
favorecendo o desenvolvimento de novas armas
biológicas. Por outro lado, essas mesmas conquistas
da ciência fazem com que seja possível identificar
agentes patogênicos com muito mais rapidez do que
através dos métodos convencionais.
A capacidade de desenvolver armas biológicas
ganhou nova dimensão com a notícia – divulgada na
internet, em julho, pela revista Science – de que
pesquisadores da Universidade Estadual de Nova
York em Stony Brook recriaram em laboratório o
vírus da poliomielite (conhecida como paralisia
infantil), a partir de informações genéticas obtidas
na internet. Os cientistas montaram o genoma do
vírus (cerca de 7.500 nucleotídeos, as ‘letras’ do
código genético) em forma de DNA, depois o transcreveram para RNA (forma presente no vírus) e o
colocaram em meio de cultura, o que levou à síntese
do poliovírus, que teve sua virulência comprovada em testes com cobaias. Isso mostra que outros
agentes patogênicos podem ser ‘montados’ em laboratório, embora seja mais difícil no caso de muitos deles, que apresentam genoma mais extenso.
A ameaça da guerra biológica já está levando
muitos países a se preparar para essa eventualidade, seja ampliando estoques de vacinas e antídotos, seja implantando sistemas de identificação e
isolamento de agentes patogênicos desse tipo.
Para aten der especificamente
atentados de guerra biológica
foram criadas nos Estados Unidos (hoje, estão instaladas em
vários países) as unidades de
identificação: laboratórios itine ran tes ou situados em locais
estra tégicos, com qualificação e
material adequados para a identificação rápida dos agentes pa togênicos usados como armas.
Essas unidades são capazes de
detectar antígenos virais e bacterianos, ou toxinas, em duas ou
três horas. Usam técnicas modernas de biologia molecular, como o
teste imunológico Elisa, a rea ção
em cadeia da polimerase (PCR,
método que multiplica fragmentos de DNA) e espectroscopia de
massa. Muitas dessas técnicas são
relativamente simples ou pelo menos já bem conhecidas. Quase todas, porém, são muito caras.
A questão da ‘guerra biológi ca’ é crítica. Vemos que não bas ta estabelecer unidades de iden tificação de armas biológicas.
Os governos dos países e as or ganizações não-governamentais
(ONGs) devem criar e apoiar instrumentos de monitoramento e
controle – nacionais e internacionais – dessas armas. É importan te que as ONGs assumam o papel
de pressionar os governos para
que tomem posição clara nessa
questão, de alta relevância para a
humanidade.
■
Sugestões
para leitura
BECQUE, J.H. Manual
de guerra química,
Editora Missão
Militar (Estados
Unidos), 1937.
Informações sobre
a convenção
para a proibição
de armas químicas,
dirigida à indústria
química,
farmacêutica
e de defensivos
agrícolas, Brasília,
Secretaria
de Assuntos
Estratégicos
(Presidência da
República), 1996.
Revista de Medicina
Militar, Brasília,
Diretoria de Saúde
do Exército
(Ministério
do Exército), 1997.
TIMERBAEV, R.M.
e WATT, M.M.
Inventário
de organizações
e regimes
internacionais
de nãoproliferação
de armas químicas
e biológicas,
Brasília, Editora
Fundação
Alexandre Gusmão,
1995.
setembro de 2002 • CIÊNCIA HOJE • 2 7