Um espetáculo Uma plateia Um único espaço Por Jean –Guy Lecat

Transcrição

Um espetáculo Uma plateia Um único espaço Por Jean –Guy Lecat
Um espetáculo
Uma plateia
Um único espaço
Por Jean –Guy Lecat
Tradução para o português: Fausto Viana
2010
1
“O edifício em si é inútil
E necessário ao mesmo tempo.
Inútil , já que é com freqüência arranjado de um
modo que não dá ao espetáculo
justiça. Necessário, já que um bem construído
espaço permite que o público se
junte e fique unido e permite
ao ator meditar”
Peter Brook
2
Introdução
04
Construindo um teatro
05
O espaço, o teatro, o local
07
Participação
09
Para abrir os olhos de alguém
11
O Teatro Bouffes du Nord em Paris
12
Arco do proscênio
14
Restaurando
15
O imaginário
18
Excursionando
21
Visitando e reconhecendo um espaço
22
Caracas, Nova York, Roma, Zurique, etc...
24
Figurinos, Luz, Cenários, Espaço
28
Tinta
31
Em que escala?
32
Acústica
33
Um novo teatro em Lisboa
35
Ecologia
36
Já no século 18
37
3
INTRODUÇÃO
A ideia desse livro nasceu em Seul em uma manhã de novembro durante o café
da manhã, quando nós reconhecemos que muitos poucos livros sobre cenografia são
facilmente acessíveis com o orçamento de um estudante. Os que estão disponíveis são
quase sempre livros grandes de alta qualidade recheado de imagens, como o que eu fiz
com o arquiteto Andrew Todd1 sobre meu trabalho com Peter Brook, mas eles são
muito caros. Eu espero que este livro corresponda à nossa preocupação original e que
ele seja o primeiro de uma longa série.
É forçoso admitir que um local ideal de apresentação (edifício teatral) não
existe e seria fútil conceber um, já que este sem dúvida conduziria a uma nova
ditadura e à uma nova estagnação indesejável. A surpreendente diversidade de locais
de apresentação ao redor do mundo ilustra a extraordinária saúde das diferentes
formas inspiradas pelo teatro. No entanto, há um paradoxo, de que em um lado do
todas as formas artísticas, a arquitetura é ao mesmo tempo a mais materialista e
também a mais idealista, ainda que por outro lado os espaços teatrais de hoje sejam
monumentais, pesados e distópicos.
Há duas correntes que alimentam a evolução do teatro. Por um lado,
encontramos o chamado teatro de entretenimento, (O Teatro de Boulevard de Paris, a
Broadway em Nova York, etc.) que está bastante satisfeito com o formato do palco
existente, frequentemente chamado de palco italiano (proscênio). Por outro lado, há
um teatro mais “participativo”, que é mais “comunicativo”, procurando unir o palco ao
espaço como um todo. Já no início do século 20, Edward Gordon Craig notou que cada
peça precisava atingir o seu próprio layout de palco e auditório, e Merce Cunningham
chamaria cada espaço de um espaço performático, e cada ponto no espaço um ponto
significativo.
Eu poucas vezes trabalhei em um teatro em estilo italiano, com sua forma
rígida e tradicional. Eu na maioria das vezes cruzei meus caminhos com criadores que
acreditavam que era o drama e não a arquitetura o responsável pela criação do design
do palco e do espaço, de maneira a intensificar a relação entre a plateia e os atores.
Um desses diretores foi Peter Brook, (ver Foto I) que eu acompanhei por quase vinte e
cinco anos, e com quem eu transformei teatros e espaços encontrados – alguns dos
quais infelizmente perderam seu caráter efêmero para se tornarem teatros
permanentes. Juntos, nós transformamos aproximadamente 200 espaços em mais de
150 cidades diferentes, sendo que metade desses eram teatros e a outra metade
espaços encontrados. Muitas destas transformações ou adaptações, às vezes eram
espaços destinados a serem demolidos, foram preservados e têm sido usados de
forma permanente, por muitos tipos diferentes de performances. Nós sem dúvida
rompemos fronteiras, e abrimos caminhos para uma nova forma que é mais simples,
mais eficiente e, talvez, mais universal.
1
TODD, Andrew e LECAT, Jean-Guy. O círculo aberto. Londres: Faber and Faber, 2003.
4
CONSTRUINDO UM TEATRO
O edifico teatral foi padronizado pelo teatro italiano da Renascença, com seus
códigos, suas tradições e suas plateias; nós ainda estamos enjaulados por este método
hoje. Louis Jouvet conta duas anedotas maravilhosas sobre este tema. O cenógrafo
Paulic Tchehlchew disse para ele que ficou chocado uma vez quando viu a mãe de
Hamlet vestida de azul numa determinada performance: “O designer que fez isso não
pode ter sido um homem de teatro; no teatro, nós podemos morrer usando cinza,
preto ou vermelho, mas não azul. O azul é uma cor que sobe, que atinge o céu”. Este
mesmo designer tinha vestido uma vez bailarinas como anjos com suas asas
penduradas na frente dos figurinos. A alguém que comentou que anjos com asas
brotando dos seus peitos não eram “reais”, ele respondeu: “Porque você deve ter
encontrado alguns anjos de verdade!”
Hoje, asas são mais uma vez penduradas nas costas dos anjos, o azul é uma cor
reservada para o céu e os arquitetos constroem seus teatros baseados em modelos
daqueles construídos há três séculos.
Construir um teatro é inegavelmente uma tarefa difícil. O teatro não é uma
ciência. A geometria e a matemática não podem sozinhas dar uma forma justa ao
teatro. Hoje, todas as facetas do teatro devem ser fluidas, rápidas e as regras devem
ser flexíveis. Com muita frequência, quando o projeto de construção de um teatro se
inicia, nenhuma mudança adicional pode ser acrescentada quando, na verdade, o
teatro em si nunca para de mudar. Há quase sempre um intervalo de uma década
entre o plano original de edificação de um novo teatro e a sua construção; a abertura
do teatro normalmente acontece com uma equipe diferente daquela que
originalmente o desejou. A construção do novo Picollo Teatro levou dezoito anos e foi
inaugurado sem o seu diretor, que morreu alguns meses antes. Por outro lado, os
teatros não têm mais que ser monumentos (a média de duração de um teatro tem sido
calculada por volta de 150 anos, pouco atrás de igrejas e antes das prisões, hospitais e
prefeituras), mas muito pelo contrário, devem ser espaços que possam ser renovados,
questionados e depois desaparecerem.
Em uma conferência sobre teatro acontecida depois da guerra, Le Corbusier
falou de “proporções áureas” e “proporções humanas” considerando a construção de
novos espaços cênicos. Ele também mencionou, referindo-se aos teatros construídos
no passado e sobre suas proporções corretas, que a arquitetura, mesmo então, era na
escala humana.
A diferença entre um espaço verdadeiro e o que não é reside em critérios que
favorecem ou desfavorecem a vida. A única diferença entre teatro e vida é que o
teatro é vida de uma forma mais concentrada. Aquilo que favorece esta concentração
é, portanto, legítimo enquanto que aquilo que tenta se esquivar dela não é. Para que
se tenha esta concentração, nós devemos ter uma relação verdadeira com os atores na
forma teatral, tendo a visibilidade como um elemento chave. (ver Foto 2). O que nós
chamamos de presença (a sensação de estar muito próximo a alguém que está na
verdade muito longe de nós) é em grande parte um fenômeno de acústica.
5
Finalmente, um espaço teatral não pode ter uma definição pré-concebida. Se o
espaço for definido, a performance como um todo já incorpora uma ideologia
particular. O que é indispensável é que o local escolhido não narre simplesmente uma
anedota, mas sim que ele favoreça a concentração e tenha acústica apropriada
enquanto permanece neutro- não estéril, mas neutro. Além disso, se nós colocarmos
atores em frente a um cenário rebuscado ou complicado, o mundo criado terá
distrações demais e a concentração do público não vai ficar onde deveria estar.
As proporções teatrais devem vir de uma apreciação viva do ser humano- da
relação entre os seres humanos que atuam e os seres humanos que assistem. Peter
Brook uma vez notou que se começa na sujeira da vida cotidiana e, se tiver sorte,
pode-se ficar acima dela por um momento. Do mesmo modo a casa que deve lembrálo do que está além da vida humana normal começa com proporções. No teatro, no
entanto- e os teatros elisabetanos sempre me lembram disso- está-se lidando não
apenas com os céus, mas também com o mercado vivo onde tudo pode acontecer.
A luta com a “encenação italiana” e especialmente com o arco do proscênio
não é nova. Trazer a arte para mais perto do espectador, juntar o público e a ação
dramática é feito através da supressão do arco do proscênio, e através da busca por
outros espaços e outros formatos. Para muitos criadores, a encenação italiana é uma
arte que está morrendo e que não corresponde mais às nossas necessidades atuais.
Nos teatros da era Shakespeariana, os populares ficavam no fosso, bem perto dos
atores; a burguesia ficava atrás, nas bancadas. Os intelectuais, estudantes, os filósofos
e as mentes mais críticas sentariam diretamente em cada lado do palco. Uma nação
inteira assistiria e se juntaria. O arquiteto Hugh Hardy, com quem eu fiz dois projetos
no Brooklyn, pensava nos anos 70 que os teatros deveriam ser construídos para definir
e intensificar a ligação entre o público e os atores. O espaço pertence ao público e
deve ter uma ambientação agradável e encantadora; o palco é o local de trabalho.
Para ele, colocar o palco no espaço exige que ele abrigue a grande quantidade de
instrumentos de iluminação e todo o equipamento de palco. Muitos arquitetos
frequentemente decidem por uma camuflagem como solução, investindo grande
quantidade de massa cinzenta e dinheiro. Teria sido muito melhor aceitar o conflito
entre as necessidades da plateia e as dos atores e transformá-lo em material bruto
para uma solução arquitetônica.
6
O ESPAÇO, O TEATRO, O LOCAL
“Nós removemos o palco e o auditório e os substituímos com um lugar novo, único,
que não tem partições ou barreiras de nenhum tipo, que se torna o espaço onde a
ação acontece- o teatro” (Antonin Artaud)
Teatro: a palavra em si indistintamente significa um espaço, suas paredes e a
apresentação (em grego, theatron, derivado de théa é a ação de olhar). Hoje, nós com
frequência ligamos a palavra espaço à ela (spatium: arena, espaço livre), para sugerir
que o espaço e o teatro poderiam ser duas coisas diferentes.
Meu encontro com o teatro começou nos anos 60, precisamente quando os
espaços–teatrais estavam sendo separados do dramático da produção. Estes novos
teatros, as “novas catedrais”, de acordo com o escritor francês André Malraux, tinham
uma função dupla: ser uma imagem emblemática para a cidade, e um “abrigo” para os
artistas. Como a arquitetura não tinha encontrado uma direção dramatúrgica precisa,
a questão de se a forma arquitetônica deveria preceder a forma dramática surgiu.
Bastaria então simplesmente construir novas ferramentas para que a forma dramática
mudasse. Nós consequentemente testemunhamos muitos diferentes teatros que eram
mais ou menos transformáveis, mais ou menos flexíveis, e onde os aspectos técnicos
tinham que acomodar tudo; eram conchas monumentais pesadas às quais faltava
espírito. Muitos diretores estavam permitindo que seu projeto arquitetônico viesse
antes do projeto dramático. O dramaturgo Donal O’Kelly disse: “Os teatros agora são
pequenos e arriscados ou grandes e precavidos. Isso não é bom para a arte.”
Uma nova dramaturgia não nasceu destas catedrais do futuro. Alguns teatros,
no entanto, de fato apareceram, fora do que era conhecido, criados em locais
distintos. Os mais famosos destes são a Cartoucherie de Vincennes em Paris, a
Performing Garage e o La Mama de Nova York (foto 3), a Round House de Londres, o
Micker e alguns outros... Não significava a condenação definitiva da arquitetura teatral
ou da tecnologia avançada, mas sim que, naquela época, os trabalhadores de teatro
não conseguiam dominar os aspectos técnicos enquanto ainda buscavam seus
requisitos artísticos.
Mas desde aquela época, quantos destes porões, hangares, depósitos, fábricas,
estações e outros locais que investiram em jovens companhias na busca pela liberdade
e de espaços com vida, se transformaram em caixas pretas permanentemente fixas
pelos seus aspectos técnicos? Em uma conferência em maio de 2005, o diretor do
“Performance Space 122” de Nova York, Vallejo Gantner, disse que “A infra-estrutura
em torno da performance cria uma papel crítico; no PS122 nós acabamos de fazer a
opção de desmontar nosso teatro de caixa preta. O espaço é uma antiga sala de aula,
usada como um local de extraordinário desenvolvimento artístico durante os anos 80 e
90. Em termos típicos está longe do ideal com tetos de três ou quatro metros, duas
pilastras que não são móveis de aço no meio do palco, alcovas e janelas, e é um
espaço largo mas sem profundidade. É uma sala de aula onde coisas incríveis
aconteceram, apesar de, ou talvez por isso, das limitações físicas. Alguns anos atrás,
ela foi pintada de preto e uma arquibancada permanente foi instalada. De um
7
extraordinário- mas absolutamente determinista- espaço que exigia criatividade tanto
dos artistas como da plateia, ela se transformou em uma sala opressiva e previsívelnem particularmente um bom teatro e nem mais um em que qualquer coisa e tudo
poderia acontecer, nossa relação com o palco pré-definido... Vir ao PS 122 se tornou
uma medida conhecida- a questão acima com o espaço sintomático de um mal-estar
artístico mais amplo de pregar para os convertidos, mostrando-nos o que nós já
sabemos. Mesmo os convertidos pararam de vir depois de algum tempo. Jean-Guy
Lecat, o designer de Peter Brook, e eu acreditamos que a arquitetura da renovação do
Bouffes du Nord em Paris e do Harvey Theater na BAM no Brooklyn 2 falam da ilusão da
neutralidade de qualquer caixa preta, e ainda assim da liberdade permitida por um
determinado espaço. Então nós vamos arrancar a masonita preta, remover a
arquibancada fixa, descascar a tinta preta. Vamos torcer para que isto force nossos
artistas a tomarem decisões sobre como lidar com a sala, e ao fazer isso, abrir de novo
este campo de possibilidades...”3
Agora sim, esta é uma decisão inteligente!
Eu recentemente vi uma foto em um dos meus jornais diários que me leva de
volta há trinta anos. Esta foto mostrava um prédio bombardeado no Afeganistão, suas
paredes e o teto sumiram, ficaram apenas seus pilares e uma estrutura enegrecida que
sobraram. Dentro da estrutura, meninas jovens que esperavam pelo mestre escolar
estavam sentadas no chão com seus cadernos no colo, agrupadas o máximo possível
ao que parecia ser a parede que apoiava o quadro negro, o que curiosamente não
deixava espaço para o professor delas. Elas podiam muito bem estar sentadas no meio
de qualquer lugar, mas não, para elas, o conhecimento estava entre as peças de ferro
distorcido, em mais nenhum lugar.
De volta àquele tempo, como um jovem stage manager, eu estava envolvido na
transformação de velhos hangares onde todos “participavam” da construção. Apesar
do fato de que nos comíamos apenas cachorros-quentes no almoço e no jantar e
dormíamos no próprio local, nós éramos motivados por um energia e um entusiasmo
notáveis. Finalmente, depois de meses nos dedicando a conseguir gesso, madeira e
tinta para o lugar, o local estava terminado e a questão essencial finalmente surgiu: o
que nós íamos fazer lá? Como as jovens meninas do Afeganistão, nós tínhamos o
espaço, mas o essencial estava faltando: um projeto!
Hoje é relativamente mais fácil encontrar o dinheiro para construir um teatro
do que encontrar dinheiro para fazê-lo funcionar adequadamente e ser criativo. A
construção de um teatro é carregada de política, mas suas operações não. Aqui, de
novo, nós temos o espaço, mas não o projeto.
Mas não é sempre este o caso. Eu estive recentemente em Pittsburgh na
Carnegie Mellon University onde visitei o Allegheny Theater, um teatro com uma
história significativa. Em 1974, dois arquitetos forma contratados para reestruturar
uma pequena sala de concertos e reuniões em um prédio, a Biblioteca Carnegie
2
3
Com o arquiteto Hugh Hardy, NDLA.
Palestra de Vallejo Gantner: Inspirando a imaginação do público (07 de maio de 2005)
8
Mellon, que data do ano 1889. No entanto, o projeto deles para um teatro de 300
lugares não deixou espaço para um palco e para os atores e assim nunca veio a ser
usufruído. O Pittsburg Public Theater foi criado em 1975 por Joan Apt, Margaret Rieck
e Bem Shaktman que convidaram Peter Wexler para dirigir três espetáculos. Apesar de
o espaço ser ainda bastante pequeno e vazio, e a companhia ser pobre, ele encontrou
o local, fez tudo inteiramente de tijolos e com grandes arcos, para ser fascinante. Sua
ideia era que tudo iria ser temporário e removível. Ele decidiu não alterar as paredes,
colocar o palco no centro e rodeá-lo com uma plataforma de três níveis (a mais alta
delas seria reservada para trabalhos técnicos) bem como quatro filas em formato de U
na plateia. Foi construído em três semanas com a ajuda da juventude local e abriu em
setembro de 1975.
O arquiteto Claude Perset e eu construímos um teatro para Jean-Louis Barrault
na Estação Orsay em cinco meses, o palco planejado incluído. Quando nós não
tínhamos tempo de fazer as plantas, nós desenhávamos as paredes diretamente no
chão. No outono de 1974, Peter Brook conseguiu abrir seu teatro depois de apenas
três meses de trabalho.
PARTICIPAÇÃO
A palavra “participação”, que esteve muito na moda nos anos 60, muito
frequentemente significava “expressar com o próprio corpo”. Naquele tempo,
seguindo a ideia de John Cage, nós pensávamos que era mais importante fazer as
pessoas perceberem que elas fazem suas próprias experiências e que elas não as
recebem feitas para elas. Foi principalmente durante o tempo em que eu fui stage
manager do Living Theater no Festival de Avignon que eu fui iniciado na abordagem
bastante na moda da “participação”. A companhia era conhecida por ser uma das
primeiras a se apresentar em locais não-convencionais, incluindo prisões e subúrbios,
eliminando os cenários totalmente. Foi, para mim, uma chance de abordar esta trupe
mítica. No Festival onde o protesto parisiense de maio de 1968 aconteceu, só duas
montagens haviam sobrevivido ao levante: o Centro do Living Theater e o de Maurice
Béjart. O Living, que já vinha se apresentando na Europa há alguns anos, estava
apresentando Mistérios, Antígona e Paradise Now, sua última criação. Em Antígona, o
palco simbolizava Tebas, o auditório Argos e a platéia (que estava regularmente
envolvida na performance) representava os argivos. Durante as performances de
Paradise Now, o público que não tinha conseguido entrada protestava em alto volume
do lado de fora da já lotada Cloître des Carmes. A companhia, ouvindo os protestos,
interrompia o espetáculo algumas vezes e aparecia nas janelas. Em pé com seus
figurinos (quase despidos), eles se atiravam na multidão até que eles descobriram que
não seriam pagos se não terminassem a performance4. Julian Beck e sua companhia
voltariam então ao palco e este jogo continuaria todas as noites até tarde da noite.
4
De acordo com Julian Beck, a necessidade de produtos de consumo é uma máscara social que nos
separa da realidade verdadeira, um refúgio contra o medo que surge das nossas frustrações físicassexuais. Se, através de todos os meios físicos usados em exercício, nós conseguirmos nos expressar na
totalidade, nós nos desmascaramos e estamos libertos.
9
Por volta deste mesmo tempo, em um “happening”, Ben, um artista francês,
imaginou se livrar dos atores completamente, ficando em um palco vazio com apenas
alguns alto-falantes nele. Assim que os espectadores começavam a entrar no espaço,
os alto-falantes anunciavam o que estava acontecendo: “um espectador entrou no
palco”, “cinco assentos estão ocupados”, “o espectador da direita está olhando na
direção dos alto-falantes”, “um homem de terno está saindo da sala”, “o público está
vaiando”, etc. até que todos tinham ido embora. Fim do show!
O público eventualmente cansou destas performances participativas, como
declarou o crítico H.Flender no jornal Variety em 1970: “Se o teatro não me deixar em
paz, sou eu que vou abandonar o teatro. Já tive o suficiente de ter que levantar, subir
no palco e dançar com um ator que quer sentar nos meus joelhos e me dar carinho, ou
que quer gritar comigo. Houve um tempo em que íamos ao teatro para relaxar, felizes
por ver o que ia acontecer ao ator e não com nós mesmos.”
No entanto, estas experiências de participação do público (ou falta de), estas
tentativas de renovar o teatro deram, àqueles que souberam olhar para elas, pontos
importantes de referência para que se imaginassem novas formas possíveis. Um destes
indivíduos foi Jean-Marie Serreau. Até então, na minha cabeça, estas novas formas
pareciam algo teóricas, para serem estudadas em livros, como o famoso Teatro Total
de Piscator, que nunca foi construído.
Em 1971, o diretor do Festival de Avignon me apresentou ao diretor e arquiteto
Jean-Marie Serreau, que tinha que encenar uma peça de Aimé Césaire em um dos
espaços ao ar livre do Festival e que tinha que converter seu espaço novo, o Thêátre
de la Tempête, na Cartoucherie de Vincennes em frente ao Théâtre du Soleil, sob a
direção de Ariane Mnouchkine.
Junto a este cenógrafo e construtor de arquibancadas, nós imaginamos um
material que pudesse nos servir em Avignon nos verões e em Paris nos invernos. O
projeto era um teatro sem paredes onde cada elemento seria transportável por uma
pessoa. Este material teria que se transformar para todos os tipos de performance,
não importando qual tipo de performance estivesse sendo apresentada, com o público
sentado em cadeiras giratórias, precisando estar sempre o mais próximo possível da
“performance”. Havia instrumentos de luz motorizados do tipo cinematográfico
montados perto do palco sobre esteiras, cujas configurações poderiam ser modificadas
durante a performance – mesmo o som poderia ser rotacionado- e as imagens
poderiam também serem projetadas. Era uma inovação verdadeira que contradizia a
arquitetura “oficial”.
As arquibancadas e o palco serviriam por uma década até que os gerentes das
duas companhias romperam relações. Mas a ideia da transformação dos espaços com
material leve tinha nascido.
10
PARA ABRIR OS OLHOS DE ALGUÉM
Eu comecei minha carreira no Teatro Vieux-Colombier em Paris. É um lugar com
uma história forte: uma sala pequena para trezentas pessoas, um teatro de espaçoúnico originalmente aberto por Jacques Copeau, que também tinha aberto um Teatro
Vieux-Colombier em Nova York durante a Primeira Guerra Mundial, no começo do
século passado. Como eu era o único técnico lá, eu acabei conhecendo todos os
aspectos do espaço, a qualidade das relações que criava e como todas as disciplinas
teatrais interagiam para formar o todo.
O La Mama em Nova York estava apresentando quatro espetáculos, incluindo
Renard de Stravinsky e a ópera Carmilla, baseada em uma história irlandesa que criou
uma agitação considerável. A diretora da companhia, Ellen Stewart, propôs que eu
fosse trabalhar no teatro dela em Nova York.
No ano seguinte, eu fui contratado pelo Festival de Avignon. Durante o Festival,
eu consegui me enfiar dentro do hangar da mostra paralela do Festival fazendo de
conta que eu era um dos atores, para que eu pudesse ver um dos maiores sucessos do
festival, Medéia, dirigido por Andreï Serban, que estava sendo encenado pela
Companhia La Mama. Um ano depois, a pedido de Jean-Louis Barrault, o diretor do
Théâtre des Nations, eu fui stage manager do La Mama de Nova York em Bordeaux.
Andreï Serban ia dirigir Electra em galpões abandonados, o Entrepôts Lainé, e eu tinha
que convertê-los.
Um dia, eu li uma entrevista de Peter Brook: “Raramente o mundo teatral
conheceu crise tão grave. Nós podemos dividi-la em duas categorias: aqueles que
permanecem fiéis às tradições nas quais perderam a confiança e aqueles que desejam
criar um teatro novo e revolucionário, mas não possuem os meios necessários.” Até
então, eu tinha me permitido ser guiado por eventos e contratos, não me perguntando
nenhuma questão. Assim eu decidi ir para Nova York para ver o que estava
acontecendo lá, e estava fascinado pelas experimentações e dinamismo deles. Ellen
Stewart me abrigou em um loft, e deu a mim e ao seu técnico japonês a
responsabilidade de converter o espaço novo dela, o La Mama Annex, onde Andreï
Serban iria criar, três meses depois, o fim da sua trilogia, As Mulheres Troianas (foto
05). Eu não era muito rico em Nova York, mas tinha tempo e pernas, que eu usava para
visitar os teatros da cidade e para conhecer a maioria das companhias.
Nós excursionamos com a trilogia de Andreï Serban por um ano. Durante um
longo tour, nós fizemos As Mulheres Troianas no Bouffes du Nord e Electra e Medéia
nos dois espaços da Saint-Chapelle como parte do Festival d’Automne em Paris. Peter
Brook estava procurando alguém para organizar o tour de The Ik, de Colin Turnbull nos
Estados Unidos e encontrar os espaços para a performance: a companhia estava sendo
enviada como um presente do governo francês pelo bicentenário americano. Eu fui
encontrar com ele e Micheline Rozan, falei da minha experiência como stage manager
e diretor técnico de diretores como Jean-Louis Barrault (que foi o responsável em
primeiro lugar por trazer Peter à Paris). Naquele tempo, como ainda não estava super
familiarizado com seu trabalho, pedi alguns conselhos e regras a Peter que pudessem
11
me guiar na minha pesquisa. Ele simplesmente me disse: “Eu não posso dizer nada que
fosse ajudá-lo. Você vai ver por si mesmo, você vai reconhecer os espaços. O que é
mais importante é que estes espaços sejam cheios de vida”; tudo que eu tinha a fazer
era abrir meus olhos; fui contratado por seis meses e nós estamos trabalhando juntos
por quase vinte e cinco anos.
O TEATRO BOUFFES DU NORD EM PARIS
O que é verdadeiro para os cenários também é
verdadeiro para o espaço em que uma performance vai
acontecer; não podemos pensar que o espaço em que o
espetáculo é montado não tem significado, mas muito pelo
contrário, especialmente em um teatro como o que Peter
Brook escolheu em Paris, já que ele se tornou um espaço
neutro permanente muito eficiente. O teatro Bouffes du
Nord foi construído na metade do século 19 (1876) baseado
em modelos de outros teatros da era. Foi concebido por
Louis-Marie Leménil, um arquiteto pouco conhecido que
também construiu toda a vizinhança. Em certos aspectos, o
Bouffes vem de um precedente muito bem estabelecido: a
decoração, os boxes em camarotes e balcões no primeiro
nível e o gesso moldado que foi usado para preencher o
espaço entre os arcos superiores que unem as colunas
fundidas em ferro ao domo são todos semelhantes em
parisienses.
Planta do “Teatro The
Rose” de 1587 e a do
Bouffes du Nord de 1876
por cima
estilo a outros teatros
Mas há algo não usual no Bouffes du Nord, que é o formato real de onde a
platéia senta. A ferradura/ elipse dos palcos de estilo italiano tem o seu eixo longo no
mesmo eixo que o palco por razões visuais e acústicas (ele prolonga o palco). No
Bouffes du Nord , o eixo da elipse foi girado em noventa graus.
O Bouffes du Nord esteve a ponto de ver o encerramento da sua história de
cem anos quando Peter Brook se deparou com ele. Seu proprietário estava
preparando para demoli-lo parte a parte para ser usado como estacionamento de
carros (três balcões=três níveis de carros).Por sorte, uma petição da vizinhança deteve
o processo e o teatro foi fechado por tempo indeterminado pelos quartéis generais da
polícia de Paris. O fogo tinha danificado as frisas e também tinha destruído os
assentos dos camarotes; um teto com goteiras tinha ampliado o processo de
degeneração a partir de cima. No entanto, ele permaneceu carregado de sua vida do
passado, mas sua pele cultural, que fez com que ele parecesse como qualquer outro
teatro burguês em Paris, foi arrancada, mostrando suas paredes nuas.
Peter Brook disse que quando visitou o Bouffes pela primeira vez com
Micheline Rozan, viu de imediato que era um bom espaço.
12
Até meu primeiro encontro com Peter Brook, eu não tinha me perguntado “o
que é um bom espaço?” Um bom espaço deve ser quente, como o Bouffes é por conta
das suas paredes, que sustentam as cicatrizes e rugas de tudo por que ele passou em
mais de cem anos de altos e baixos. Um bom espaço não pode ser neutro, porque uma
esterilidade impessoal não dá alimento para a imaginação. O Bouffes tem a magia e a
poesia da ruína. Um bom espaço é íntimo: é uma sala em que a plateia senta com os
atores e os vê em close-up, mostrando o que é verdadeiro na interpretação e
revelando sem piedade o que é falso. O Bouffes du Nord tem as proporções corretas
(baseadas no formato quadrado), está em harmonia com os seres humanos e ele é ao
mesmo tempo íntimo e épico. (fotos 6, 7,8)
O teatro dá a possibilidade de a plateia estar mais perto
dos atores em determinados momentos da peça, similar
a uma câmera dando o zoom em cinema. Sua relação
com o círculo de espectadores envolvendo os atores é
próxima e agradável. Nós podemos fazer a cena de
maneira íntima no interior do prédio e imediatamente
estar do lado de fora. Quando concebi o design para a
peça Don Juan, de Molière, eu tinha coberto o piso do
Bouffes com 17.000 tijolos para ter uma espécie de piso
neutro. Em um determinado momento, com um
chandelier vindo do alto do teto, uma cadeira do século
18 e murais desenhados nas paredes com giz, nós nos
encontramos no palácio de Don Juan. Na cena seguinte,
O teatro em 1876
com algumas folhas no chão, um pequeno laguinho e luz apropriada, nos encontramos
na floresta.
Mesmo antes de Peter Brook decidir usá-lo, este
teatro já tinha sido visitado por outros diretores
conhecidos e desconhecidos. Todos ficaram assustados
com o estado de decadência (a caixa do palco e o palco
tinham desaparecido e chovia dentro do teatro) e para
eles, estava fora de questão utilizá-lo antes de ser
restaurado. Todos os diretores potenciais quiseram
primeiro recuperar o molde cultural estabelecido do
espaço, mesmo que o trabalho deles mostrasse que em
algum momento eles queriam se desviar dele. Mas
restaurações são custosas e ninguém naquele período
tinha levantado os fundos necessários. Peter Brook, no
entanto, escolheu não construir um palco, de forma que
pudesse encontrar uma intimidade real com o público
O teatro em 1974
realizando a performance no mesmo espaço. Ele estava voltando ao teatro circular
elisabetano. Ao retornar ao círculo, ele radicalmente transformou duas coisas neste
teatro: o contato com a plateia e com a acústica. Uma das coisas que seduziu Peter
Brook durante sua primeira visita foi a qualidade da acústica, porque para ele, a
presença acústica do ator no palco é o aspecto mais importante. Ao dividir o mesmo
13
espaço com o público, a totalidade das vozes dos atores chega ao público com todas as
suas nuances.
Ao fazer a performance na frente do arco do proscênio, Peter Brook libertou-se
de uma vez do que tinha se tornado uma obsessão para um grande número de
diretores desde o início do século, que era sair do arco do proscênio.
ARCO DO PROSCÊNIO
Neste tópico do arco do proscênio, eu gostaria de contar uma história. Em
1926, na cidade de Cambridge, na Inglaterra, Terence Grey reinaugurou um velho
teatro que ele chamaria de “The Festival Theater”. Uma das primeiras coisas a serem
feitas foi remover o proscênio, seguindo o movimento que estava sendo visto aqui e ali
na Europa, mas pela primeira vez na Inglaterra. Ele comprou equipamento de luz- o
primeiro equipamento alemão de luz da Siemens - e o instalou sobre o palco para
iluminar um ciclorama que ele tinha instalado. Ele então construiu uma parede
suspensa de tijolos entre o auditório e o palco para esconder todo o equipamento de
luz. Na sequencia, ele percebeu que precisaria esconder os atores que esperavam nos
dois lados do palco antes de entrarem em cena; decidiu então que seria inteligente
colocar duas telas sob a parede de tijolos, no mesmo local exato do velho proscênio.
Foi a primeira tentativa de eliminar o arco do proscênio na Inglaterra.
Nós precisamos do proscênio ou nós simplesmente precisamos esconder o
equipamento técnico e os atores? Nesta situação, o arco do proscênio é a melhor
solução? Porque o equipamento técnico ainda é colocado no palco hoje em dia,
concentrado junto, confinando os atores atrás do proscênio?
No Teatro Bouffes du Nord, eu tinha percebido que a presença dos atores era
menos considerável assim que eles atingiam o ponto de cerca de dois metros e meio
atrás do arco. Um dia, enquanto estávamos instalando uma cerca para montar a peça
africana L’Os, eu confirmei essa sensação.
Peter Brook pediu que nós movêssemos o cenário ao longo do palco para
encontrar o lugar ideal dele. Nós naturalmente começamos pelo lugar que os atores
tinham usado para ensaiar. No entanto, assim que os atores estavam atrás da cerca,
eles pareciam estar mais longe do que os ensaios. Peter Brook então pediu-nos que
retirássemos o cenário e imediatamente os atores pareciam estar mais perto. Depois
de uma hora de tentativas, nós finalmente decidimos trazer os atores e a cerca para a
frente do palco. No dia seguinte, eu tentei compreender o que tinha acontecido: ao
olhar na nossa frente, o olho, ou melhor, o cérebro, é incapaz de medir uma distância
sem um ponto de referência (as nuvens no céu, por exemplo). Assim que olhamos para
um ator, nossa percepção da presença dele pode mudar se um objeto intervém com o
nosso campo de visão dando-nos um novo ponto de referência. O arco do proscênio é
um destes pontos, e desde então, eu tenho regularmente checado isto em todos os
teatros que tenho visitado. Este fenômeno é enfatizado se outro objeto- mesa,
14
cadeira, suporte para casacos- intervém. Então não se surpreenda se os diretores
estiverem olhando para trazer os atores mais perto do público ou se livrarem do arco
do proscênio.
Só uma vez, na remontagem de Dias Felizes, de Beckett, nós trouxemos uma
escada para frente, para o centro do espaço e dirigimos a ação à aproximadamente
quatro ou cinco metros atrás do arco do proscênio. Ficou muito bonito, mas a
performance não transmitia nenhuma energia; o ator estava em um mundo e a platéia
em outro. (Foto 9)
Nos anos 70, Peter Brook mencionou em entrevista depois de ter aberto o
Bouffes du Nord que o teatro elisabetano é como mergulhar no mar, uma experiência,
uma descoberta e que quando nós mergulhamos, nós nos misturamos com correntes
que opõem a vida e, de maneira similar, quando montamos uma peça elisabetana, o
critério artístico já não é mais suficiente já que o objetivo agora e servir os eventos e
as ações que permitem que a vida exploda em suas múltiplas formas. O palco
elisabetano é o formato verdadeiro para o teatro perfeitamente livre, aquele que
ignora todas as limitações. Esta liberdade, o poder de evocar pessoas, como
Shakespeare faz em Júlio César ou o exército em Henrique V, é a habilidade de passar
de uma cena de coro para a mais íntima introspecção.
É por isso que nós conseguimos conectar a tradicional “caixa do palco”
(tradição italiana) e a forma elisabetana de palco com avanço no Teatro Bouffes du
Nord. A conexão resulta em algo muito especial e único, que é aquela na estrutura
natural do espaço, a profundidade é articulada (foto 10).
Há um novo princípio que pode ser usado, que é aquele da dupla profundidade
do espaço teatral, como desenvolvido com Peter Brook em Paris, Nova York e outras
cidades. Hoje, muitas cidades usam nossas transformações, que originalmente eram
para serem temporárias, de forma permanente.
RESTAURANDO
“Uma era magnífica onde as artes floresceram sem os artistas se encontrarem na
presença de teorias artísticas completas” (Nietzche)
Deveríamos estar restaurando teatros dilapidados, abandonados ou
inteiramente destruídos pelo fogo? O teatro Bouffes du Nord em Paris e o New York
Harveys/Majestic vão ser restaurados um dia? Em longo prazo, a distância entre o
mundo contemporâneo e a estéticas destes teatros de eras passadas ficam cada vez
mais longe; um dia, eles não vão ser nada além de museus.
Deveríamos colocar a estética antes da funcionalidade e da praticidade? Em
2002 em Paris, em um escritório do quartel da Polícia, dois policiais interrogavam um
homem que havia matado oito representantes eleitos e ferido dezenove em poucos
segundos em um subúrbio de Paris. Ele estava calmamente narrando seu depoimento
quando correu até a janela, abriu-a e se jogou para fora, a cabeça primeiro, no espaço
15
vazio. Os dois oficiais se jogaram contra ele, e um deles agarrou o sapato do homem,
mas os cadarços tinham sido retirados como medida preventiva e ele ficou nas mãos
do oficial. O outro quase tombou no vazio. O assassino bateu no pavimento do pátio e
o tão aguardado julgamento não aconteceu. Para aqueles que ficaram confusos com o
fato de as janelas não terem grades, o diretor da divisão criminal afirmou que o
arquiteto do prédio francês tinha dito a ele que as grades teriam desfigurado o local.
Recentemente, o diretor de um teatro, assombrado com o atraso do trabalho
de restauração no seu teatro, ouviu do arquiteto responsável pelo monumento”que
antes de mais nada, era um monumento histórico que ele estava restaurando e que se
ele tivesse que encenar um pouco no monumento, não haveria problema!”
Em um subúrbio de Moscou, um pequeno teatro do século 18 foi restaurado e
as bordas do palco corroídas foram guardadas sob o pretexto de que eram peças
originais. Anedotas como essa são muitas e estão aí para lembrarmos que os tempos
mudaram. No passado, quando um teatro queimava (aproximadamente dois ou mais
por século), ele era reconstruído de acordo com as tendências da era, enquanto hoje,
ele é restaurado para manter seções da história do edifício, mesmo que a restauração
prévia tivesse sido considerada terrível. Hoje, nosso repertório cresceu
consideravelmente, das tragédias gregas ao teatro contemporâneo. Alguns dos teatros
em que estes espetáculos são encenados têm 2.500 anos, mas a maioria deles tem
mais de 150 anos.
Quando eu procurava um espaço para montar Ubu aux Bouffes em San José, na
Costa Rica, nós passávamos pelo teatro/ópera da cidade várias vezes ao longo do dia.
Nós não podíamos vista-lo, já que ele tinha sido destruído pelo fogo que se seguiu a
um terremoto se me lembro corretamente. Eu finalmente encontrei uma tenda de
circo que seria muito interessante para o nosso projeto. (Foto 11) Naquele mesmo dia,
eu fui convidado a visitar o Teatro Nacional. O teatro era intimista e tinha uma pátina
que todos os monumentos destruídos pelo fogo compartilham.Era um irmão do
Bouffes du Nord em Paris, era muito bonito e teria sido perfeito para Ubu. A pessoa
que me acompanhava perguntou:
“Você gosta desse teatro? –simSe pudesse, teria escolhido este teatro?- simE a performance teria sido perfeita neste espaço?- simE teria sido muito bonito, como foi no seu teatro em Paris? – simEntão, se você pudesse encenar aqui, como nós poderíamos então ser capazes de explicar para
o público que era necessário restaurar o teatro?”
Eu finalmente entendi porque eu não tinha podido visitar o teatro antes!
Nós sabemos que ao contrário do que acontecia no passado, a maioria dos teatros
existentes, especialmente teatros “históricos”, não vão ser demolidos ou
transformados tão rapidamente hoje. Ainda, alguns exemplos recentes, como o
trabalho de Jean Nuvel em Lyon ou Minneapolis mostram que é possível modernizar
um local antigo com inteligência e gosto. Um teatro como o National Theater em
Londres é um bloco de concreto indestrutível e não transformável por um longo tempo
ainda por vir e então devemos trabalhar com ele. A primeira questão para nós é
16
determinar se a estética desses teatros é útil “como está” para um projeto particular,
ou se nós precisaríamos transformá-los temporariamente. Nós desenvolvemos, desde
1976, tipos diferentes de adaptação que são hoje usadas aqui e ali como sistemas que
são mais ou menos recorrentes:





Desça até a área da platéia na altura das primeiras fileiras de cadeiras e cubra
as paredes laterais do teatro (madeira, cortinas, tules, etc.).
Cubra o espaço completamente, sem remover os assentos, feche o palco e
encene no centro do espaço.
Reduza o tamanho total do espaço elevando o nível do palco ao mesmo nível
do primeiro balcão, que é mais econômico e, tecnicamente falando, mais fácil
de executar do que baixar o teto. Esta solução é chamada de “O sistema do
Majestic Theater” por alguns arquitetos e está sendo usada atualmente em um
ou dois teatros em Londres.
Junte o palco e o balcão com uma arquibancada. Esta solução tem sido
adotada de forma quase permanente no Théâtre National de Strasbourg e no
Abbey Theater em Dublin, ou por um período temporário no Teatro Espanol em
Madri, entre outros.
Em eventos em que o palco é largo o suficiente e tem personalidade, coloque
tanto o público como a performance no palco, fechando ou não o arco do
proscênio e permitindo que o público entre pela via do auditório. Foi isso que
eu recomendei para o novo Teatro Almada em Lisboa.
Este tipo de transformação pode parecer radical, difícil e onerosa para uma
adaptação temporária, mas na verdade ela tem se mostrado mais simples e econômica
do que o transporte e a montagem de cenários. Em Roma, no Teatro Argentina, cobrir
o espaço com um piso e areia só exigiu três dias de trabalho; em Hamburgo, o mesmo
cenário sem a areia e com duas bacias cheias de água foi feito em vinte e quatro horas.
No seu famoso livro5, o escultor Auguste Rodin relembra suas visitas a algumas das
catedrais mais famosas da França. Quando ele chegou a Reims, onde os reis da França
eram consagrados, ele ficou chocado com a restauração pela qual ela tinha passado.
“Eu estou chocado com as restaurações. Elas são do século XIX, mas não enganam.
Estas ineptidões gostariam de se instalar sobre todas as obras de arte! Todas as
restaurações são cópias e é por isso que elas estão condenadas previamente, já que
só se pode copiar a natureza; as cópias de obras de arte são proibidas pelo próprio
princípio da arte. As restaurações são sempre suaves e rígidas ao mesmo tempo, você
vai reconhecê-las por este sinal. Reparar estas figuras e ornamentos que foram
brutalizados por séculos como se isso fosse possível! Tal ideia só poderia ter nascido
nas mentes daqueles que são estranhos à natureza, à arte e à todas as verdades. Como
mais se pode explicar o declínio da inteligência destes que se clamam artistas –
arquitetos, escultores, vitralistas – que fazem estas restaurações com as maravilhas
que preenchem estas catedrais bem abaixo dos seus olhos?”
5
RODIN, Auguste. As catedrais da França. Paris: ___________, 1914.
17
O IMAGINÁRIO
Peter Brook nos diz que “o teatro é vida de forma mais concentrada”.
Esta frase ilustra perfeitamente nosso trabalho de pesquisa no Teatro Bouffes
du Nord desde 1974. Quando nós criamos um espetáculo, há um ser humano no
centro do palco. Como membros da plateia, nós assistimos este ator no palco e vemos
um ser humano. Tudo em volta a este ator deve estar em harmonia, em proporção e
em escala humana, e o contato entre cada ser requer uma intimidade real. No seu
processo criativo, Peter Brook opta por não ter um cenário, ou melhor, apenas
cenários sugeridos. Ele deixa, portanto, liberdade aos atores para encontrarem
elementos que vão ser seu ponto de início e a fundação das imagens que os membros
da plateia vão ter que construírem eles mesmos com sua imaginação. O vazio no
teatro estimula a imaginação.
Este imaginário está tão presente na mente da plateia que os adereços usados
pelos atores podem ser desviados de sua função original. Um exemplo disso foi o uso
de tijolos em uma encenação de Ubu Rei em 1980. Boggerlas, com sua mãe nos braços,
escapa do castelo usando uma escadaria secreta e túneis subterrâneos enquanto é
seguido pelo Pai Ubu.
Ele continua andando, se equilibrando sobre tijolos que ele vai jogando na
frente dele mesmo. Em um instante, a natureza precária da situação é marcada pela
encenação; a plateia revive a vivacidade de suas experiências no Guignol. Neste
momento preciso, a necessidade de cenários desaparece. A plateia só fica preocupada
se ele vai ser pego por seus perseguidores. Em outra cena desta produção específica
de Ubu, um ator, desejando escapar de seus seguidores, sobe em outro tijolo. Esta
única ação indica para o público que ele está alto o suficiente para escapar de seus
inimigos. A necessidade de cenários desaparece de novo neste segundo exemplo.
Nesta encenação, nós havíamos usado grandes carretéis de cabos elétricos.
Além do seu uso como parte do cenário, eles também se transformavam em uma
mesa ou no trono do Pai Ubu. Colocados um em cima do outro, eles se tornavam a
masmorra do castelo na qual os capangas do Pai Ubu corriam perseguindo o pobre
Boggerlas. Em uma farsa, como Ubu Rei, as cenas onde a ação acontece mudam muito
rapidamente. Cenários elaborados e mudanças de cenário são excluídos, já que
carregariam consideravelmente o espetáculo e aumentariam o tempo. (foto 12)
Em 1983, em O Mahabharata, um ator perdido na vastidão das montanhas do
Himalaia instantaneamente se encontra no fundo de um lago. Ao lado do rio, seus
inimigos o observam, olhando por cima de um simples pedaço de plástico colocado por
outros dois atores, representando a superfície da água; nenhum adereço complexo
poderia competir com esta liberdade e leveza. Só a ópera, tão firmemente agarrada às
tradições e ao peso pelo qual é conhecida, ousou mostrar o Himalaia, o lago, a água, a
neve, os bancos de areia e os inimigos nestes bancos de areia. Mas que tal mostrar-nos
o cantor no fundo do lago?
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Shakespeare, que raramente usava cenários, fazia todas as peças com trajes
contemporâneos- com a exceção de alguns trajes históricos ou fantasias – e
freqüentemente voltava à questão do imaginário no teatro: “faça o poder imaginário”.
Tome por exemplo, o coro do início de A Vida de Henrique V:
Oh, por uma musa do fogo, que ascenderia
Ao mais alto céu da invenção
Um reino por um palco, príncipes para atuar
E monarcas para assistirem à cena que cresce...
Mas perdoem, gentis espectadores,
Os espíritos rasos que ousaram
Neste cadafalso sem valor trazer à tona
Um tão grande objeto: pode este pequeno espaço abrigar
Os vastos campos da França? Ou podemos nós amontoar
Sobre este madeiramento todos os próprios cascos
Que efetivamente assombraram o ar em Agincourt?
Oh, perdoai! Já que uma figura torta pode
Representar em pouco espaço um milhão!
E deixai que nós, cifras neste grande montante,
Sobre suas forças imaginárias trabalhemos...
Ampliai nossas imperfeições com vossos pensamentos;
Em mil partes dividi um homem,
E fazei poder imaginário;
Pensai que quando falarmos de cavalos, que vós os vedes
Gravando os seus cascos orgulhosos na terra receptora;
Porque são agora os seus pensamentos que agora devem ancorar nossos reis,
carregá-los aqui e acolá; saltando sobre os tempos,
Fazendo a conquista de muitos anos
Surgir no tempo de uma hora: para isso complemente...
Em O Sonho de uma noite de verão, os operários que estavam escolhendo os
personagens para as suas participações disseram:
Quince: “... Depois, há outra coisa: nós devemos ter um muro na grande câmara, para
Píramo e Tisbe, pois, conta a história, conversavam pela abertura de um muro”
Snug: “Você nunca vai poder trazer um muro.- O que diz você, Novelo?”
Bottom: “Um homem ou outro deverá representar o Muro; e deixem que ele tenha
sobre ele gesso, ou argamassa, ou argila, para significar uma parede; e deixem que ele
segure seus dedos assim, e através da fenda devem Píramo e Tisbe sussurrar.”
Imagine! Imagine!Que cada ator representa mil soldados e que você tem um
exército no palco. Imagine que quando você fala em cavalos, você pode ver um
aparecer. O poder da imaginação e a eficiência da simplicidade reunidos. Através de
Quince, Shakespeare faz uma pergunta simples: nós precisamos construir uma parede
quando só o que nós precisamos é um buraco para que dois atores, que não devem se
ver ou se juntarem, possam falar um com o outro? Independentemente, eu
regularmente vejo paredes inteiras inúteis no palco. Somos um pouco como Quince ou
Sganarello e agimos rapidamente sobre a primeira ideia que vem à cabeça.
Shakespeare, no entanto, vagueia pelo espaço e tempo com a liberdade do poeta.
Na vida cotidiana, nós nunca vemos apenas uma parte do todo (o universo, o
globo, montanhas, o horizonte, casas, cidades, etc.) e nós temos o hábito de reestabelecer coisas baseados em um elemento da imagem na sua totalidade. Quando
19
trabalhando e pensando neste contexto, onde o imaginário tem um papel tão
importante, a mera intervenção do material, de uma cor, um adereço ou um traje tem
significância e deve ser escolhido com cuidado. Não é suficiente simplesmente
encontrar “um bom objeto” para a performance, mas o objeto que vai ter o maior
poder de sugestão naquele momento particular.
O espaço em que um espetáculo é realizado pode ser significativo e também
estimular a imaginação. A partir do momento em que o palco está vazio, uma
convenção com o público rapidamente se estabelece. Se um ator atua sobre um
carpete, como em A conferência dos pássaros, de Udin Attar, nós entendemos que os
limites do espaço, o céu naquele momento específico, são aqueles do carpete, e
naturalmente, as paredes do teatro desaparecem da visão da platéia. (Foto 13)
Mas se um ator, por um curto momento, sair do tapete, ficar mais perto das
paredes do palco e atuar, por exemplo, com uma porta, todo o espaço da ação se
torna o cenário. Se neste teatro não houver diferenças estéticas entre o palco e o
espaço do público, então o teatro todo se torna o cenário e o público é imediatamente
incluído no espaço de encenação.
Na ópera A Tragédia de Carmen, de George Bizet, a ação no café de Lilas Pastia
começa com Carmen sobre um pequeno tapete; então, quando Don José entra mais
tarde seguido por seu oficial, a atuação se espalha por todo o palco. Em um momento ,
Lilas Pastia escolhe uma mulher na platéia para dá-la a Don José, que vai sair com ela
quando o toureador parecer. Em um segundo, o espaço teatral todo se torna o café e
quando o toureador entra, o público está incluído na ação.
Mas isso só é possível, como em A conferência dos pássaros, se o teatro tiver a
mesma estética em geral. É mais difícil, mesmo impossível se, como vemos mais e mais
constantemente hoje, o palco estiver pintado de preto e o auditório decorado.
Esta é a razão exata para termos escolhido construir os assentos e o cenário (só
um carpete e uma cama) para The Costume no palco do Teatro Schiller; com isso, nós
tínhamos um ambiente completamente unido. Eu não encontrei nenhum outro espaço
ou teatro similar em Berlim naquele tempo.
Nós encontramos as mesmas qualidades de liberdade no Bouffes du Nord como
no teatro elisabetano. O espaço é simples, íntimo e sem limites; possui o sentido de
verticalidade elisabetano com a altura dramática das colunas, que infelizmente faz
falta em muitos teatros modernos. Nós também criamos uma grande fenda no palco,
abrindo buracos nas paredes laterais para Timão e Atenas; usando suportes de ferro
nas paredes de The Ik, para que os atores pudessem subir de uma montanha à outra; e
no O Mahabharata, outros suportes faziam movimentos para cima o mais próximo
possível de todos os ganchos horizontais. Esta liberdade de se mover no espaço e
tempo à vontade, evocar vastos exércitos e introspecção íntima, torna-se possível com
a plataforma aberta simples em que a ação acontece. Não há barreiras, nem partições:
estes mundos estão abertos um ao outro. O público brinca com estas convenções com
prazer.
20
Para Titus Andronicus em Dublin, eu instalei a platéia frente a frente e construí
entradas para os atores em cada extremidade do palco; de um lado estava uma porta
metálica e do outro, propileus de madeira. Este cenário não estava conectado a nada e
os espectadores “construíam” um espaço imaginário ao redor deles mesmos que os
incluía naturalmente no espaço teatral. (Foto 14)
A Imaginação é a moeda corrente do teatro vivo. Se ela se perde, o teatro vivo
perde seu sangue vital.
EXCURSIONANDO
A maioria dos espetáculos de Peter Brook teve longas temporadas em Paris e
no mundo todo, em francês e depois em inglês: aproximadamente oitocentas
apresentações de A tragédia de Carmen, das quais quinhentas foram fora de Paris,
seiscentas apresentações de L’homme Qui, e quase dois anos de temporada de O
Mahabharata.
No Bouffes du Nord as paredes são realistas e abstratas ao mesmo tempo. Em
turnê, o meu trabalho não foi somente adaptar diferentes espaços da forma que a
palavra sugere, mas sim modificá-los de dentro através do processo criativo e de
trabalho. O que importa com um espaço é que ele sirva às necessidades da história
sendo contada. Além disso, ele tem que se tornar um espaço vital e brilhante na
performance. Quando nós saímos em turnê com Carmen, por exemplo, eu construí
paredes no fundo do palco, usualmente feitas com pranchas de madeira que tinham
um caráter não figurativo, e tentei ficar o mais próximo possível ao mundo rústico das
palavras tomando forma no palco.
Mas quando fizemos O Mahabharata, o que era importante era a relação
íntima que tinha sido construída por mais de dez anos com a proposta real de todo o
trabalho que nós estávamos fazendo com Peter Brook, levando ao entendimento
interior dele do que O Mahabharata necessitava.
Eu trabalhei para Jean-Louis Barrault no Théâtre dês Nations e participei do
design e construção de um teatro na Gare d’Orsay que levou cinco meses, um espaço
alugado da companhia francesa de ferrovias. Tivemos que confrontar alguns dos mais
absurdos problemas que continuamente surgem quando se trabalho em espaços
“encontrados”: tivemos que convencer a Companhia de Trens Francesa a mudar as
plataformas de certos trens, para que não houvesse nenhum barulho quando
Madeleine Renaud estava falando. Nós tivemos que ler a peça alto nas plataformas
com um cronômetro para determinar quando precisávamos mover um trem sob a rua.
Isto mais tarde me fez pensar que Peter Brook e eu podíamos convencer pessoas a
mudarem suas atividades para que uma peça pudesse vir à vida em um dado espaço –
mesmo que isso envolvesse parar carros, aviões, trens ou o que mais fosse necessário.
21
A turnê de Ubu foi uma lição crucial sobre como improvisar com espaços. Por
causa do tempo, nós simplesmente não podíamos bancar nenhum erro: se algo não
funcionasse, outra solução tinha que ser encontrada em poucas horas. A turnê incluía
uma cidade a cada um ou dois dias, por dois meses. Eu viajava um dia antes dos atores,
encontrando e transformando espaços que seriam habitados pelos atores. As tardes
eram usadas para ensaios no espaço, com a apresentação à noite. Em Istre, no sul da
França, nosso contato tinha proposto uma garagem de trens, que eu rejeitei porque
era perto dos trilhos e não seria silencioso o suficiente. Eles me asseguraram que isso
não aconteceria, quando um trem enorme passou levando quase meia hora. O prédio
vizinho era um depósito refrigerado de vegetais, que era muito bem protegido do
barulho externo por conta do seu isolamento térmico, mas infelizmente era muito
branco e puro. Fora do depósito, eu encontrei centenas de caixotes de maçã. Nós
jogamos todos para dentro e construímos uma parede sólida. Isso criou uma área de
coxias; os atores poderiam olhar por entre as maçãs para a plateia. As caixas pesadas
mudaram a acústica e a atmosfera do espaço, e também deram um cheiro adorável. Eu
não acho que poderíamos ter feito uma turnê assim com The Ik. The Ik e Ubu eram
encenadas em estilo semelhante com o mínimo décor construído pelos próprios
atores, mas Ubu tinha a grande vantagem de que os atores podiam manipular o
público, improvisando suas posições durante o espetáculo se alguma coisa não
estivesse certa. The Ik era muito menos físico e exigia equilíbrio estável que o espaço
tinha que estabelecer sozinho.
VISITANDO E RECONHECENDO UM ESPAÇO
Quando eu visito um novo espaço, eu vou com um projeto. É este projeto que
vai estar como base da minha visita inteira, para que eu não me torne rapidamente
prisioneiro de uma forma ou seja muito conduzido pela arquitetura real. “Reconhecer”
(como estamos usando espaços que já existem) e “estar vivo” (ou seja, que tem uma
história) são os dois predicados que Peter Brook me deu no dia do nosso primeiro
encontro e que permanecem comigo aonde quer que eu vá. Quando eu comecei a
trabalhar com stage management, me disseram eu um espetáculo em turnê tinha que
ser adaptado a novos espaços. Ainda hoje, eu vejo stage managers jovens (e nem tão
jovens) irem a uma locação e adaptarem seu espetáculo ao espaço quando em turnê.
O espaço do ator é ditado pelo posicionamento do equipamento de luz, não
importando se a plateia está longe ou não, se a acústica do espaço exige que a ação
esteja mais próxima ou se as relações do espetáculo estão desalinhadas. Com Peter
Brook, eu aprendi a fazer exatamente o contrário.
Descobrir um espaço significa, em primeiro lugar e acima de tudo, encontrar
um local e o ser humano que o concebeu e o construiu. A primeira coisa a fazer é
tentar reconhecer qual era o objetivo, já que ele foi feito por outra pessoa, em outro
período e em outro contexto. Quando eu visito um espaço, eu sento em silêncio e
espero, eu gasto o tempo que for necessário até que entenda o espaço e tenha a
intuição de como transformá-lo.
É sempre desejável compreender.
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Eu me lembro de uma conferência extraordinária do grande arquiteto Louis
Khan para estudantes em uma universidade na Filadélfia. Ele disse que se devia
questionar os próprios materiais, já que cada material, pedra, concreto, tijolos, etc.,
tem sua forma própria associada a ele. Se me lembro bem, ele de forma geral declarou
o seguinte:
“Expressar-se é funcionar. Quando nós queremos presença, nós temos que consultar a natureza
que intervém no design. Se você está pensando em tijolos, por exemplo, você deve perguntar ao
tijolo:
“O que é que você quer, tijolo? “
E o tijolo responde: “Eu quero um arco.”
Você replica: “Arcos são caros e eu vou colocar uma viga de concreto acima de você. Que você
acha disso, tijolo?”
Ele responde, “Eu quero um arco!”
É importante entender que o material que está sendo usado tem que ser honrado. Nós não o
desperdiçamos, como se a dizer: há muitos materiais! Nós podemos fazer como bem
entendermos. Isso não é verdade; nós só podemos prosseguir se o tijolo for respeitado.
Glorifique o tijolo ao invés de lográ-lo”.
The Ik foi a primeira produção com a qual fizemos uma turnê internacional
séria, viajando a Londres, Berlim, Viena, Veneza, Belgrado e os Estados Unidos; eu
entrei na companhia para esta turnê em 1976. Quando entrei para a companhia, não
conhecia adequadamente o espaço do teatro Bouffes du Nord para ser influenciado
por sua arquitetura na minha pesquisa. Durante as minhas visitas, eu na maioria das
vezes confiava no próprio espetáculo: sua forma, suas cores, suas proporções, o
número de atores e das pessoas na plateia, seu som particular, sua atmosfera
particular e os detalhes técnicos necessários ou importantes. Eu determinava o centro
da peça, o que me dava exatamente o local do público e deste ponto, a qualidade da
acústica como um todo, para o público e para os atores. Era apenas no final desse
processo que eu me interessava pelo piso, pelo teto, a localização das paredes e a sua
qualidade, bem como nas proporções de tudo que era colocado junto. Eu muito
rapidamente percebi como seria difícil encontrar em outro lugar a qualidade e
eficiência das paredes do nosso teatro em Paris- a dureza delas, sua vida e sua
natureza indeterminada ao mesmo tempo. Muito rapidamente, eu tive que aprender a
mudar de ideia, de maneira de pensar e o fato de que nós estávamos em um mundo
de imaginação onde um carretel de fio podia ser um tanque; eu tive que aprender um
outro ponto de vista. No passado, como cenógrafo, eu senti a necessidade de fazer um
cenário em completa unidade; se uma coisa é realista, então tudo tem que ser realista.
O aspecto mais difícil desta empreitada foi não me deixar ficar preso a um
único sistema. Eu por sorte aprendi com Peter Brook a não acreditar em princípios que
criaram relações artificiais, já que eles são com frequência precursores de espaços
mortos. Para não cometer erros na minha seleção de novos espaços, eu tinha que
prestar muita atenção a muitos aspectos diferentes durante as minhas visitas, mas
mais particularmente, à harmonia, à acústica e à vida passada do espaço, já que um
espaço sempre tem em sua história uma pessoa que desejou que ele fosse ali, um
arquiteto que o construiu e pessoas que o usaram.
23
Eu também tenho duas outras palavras-chave: “simplicidade” e “leveza”, já que
a coisa mais difícil da vida teatral é manter as coisas simples. Alguns anos atrás, o
arquiteto Renzo Piano (que eu conheci quando ele construiu em Beauburg o centro G.
Pompidou) disse, sobre este tema leveza, que quando ele tinha por volta de trinta e
cinco anos, trabalhando com Ítalo Calvino, ele percebeu que a leveza também era uma
qualidade da inteligência. Ele sempre trabalhou intuitivamente com esta inteligência
leve, que sabe como estar consciente de suas experiências e dos outros, ao contrário
da inteligência pesada, que fica feliz em atingir apenas um objetivo pessoal.
Mas mais uma vez, não há um bom espaço sem um bom projeto ou uma boa
ideia por trás dele que subentenda a ação. Caso contrário nós criamos um espaço lindo
sem razão nenhuma, sem ideia, sem sentido e no final das contas, temos um espaço
que não é bom para ninguém. Criar o espaço não é um objetivo em si. Um novo espaço
deve em primeiro lugar ter sido desejado por alguém, e é isso que endossa com
significância.
Eu tenho passado bastante tempo viajando para conhecer espaços (talvez mais
de dois mil ao longo dos anos) e então alguém pode achar que eu tenho muita
experiência, já tendo me acostumado a fazer isso. Mas cada visita tem características
únicas.
CARACAS, NOVA YORK, ROMA, ZURIQUE, ETC...
Durante as turnês dos espetáculos de Peter Brook, nós transformamos cerca de
duzentos espaços, alguns de forma bastante simples e outros de maneira mais
complexa e radical.

Ubu aux Bouffes em Caracas (Foto 15): Para as produções da turnê de Ubu, eu
estava procurando um espaço em Caracas. Depois de quatro dias de vistas
intensas, nós descobrimos um velho teatro que estava sendo usado como
garagem. Eu tinha um dia para ir ao México e a San José na Costa Rica e durante
este tempo, o Ministério da Cultura negociou para fechar a garagem. O Ministério
da Cultura comprou o prédio, e o Festival de Caracas tirou os carros e reconstruiu
a parede de entrada. Uma parede de blocos de concreto fechou os buracos que
tinham sido abertos para os carros, com aberturas para a saída durante Ubu. A
produção arrastou um público entusiasmado de trabalhadores da vizinhança
próxima e mais além. Com frequência, havia mais gente do lado de fora da porta
do que a arquibancada simples podia acomodar; foi permitido que os
espectadores extras se acomodassem em até cinco fileiras sentadas no chão do
palco.

A tragédia de Carmen em Roma (fotos 16 e 17): Depois da longa turnê do
Mahabaratha em francês e inglês, nós excursionamos com A tragédia de Carmen
mais uma vez. Em Roma, o Teatro di Roma convidou a companhia para se
apresentar no Teatro Argentina, que tem sido um dos locais mais importantes de
24
Roma há bastante tempo. Desenhado por G.Teodoli em 1730, era um
descendente direto do Teatro Olímpico de Palladio e do Teatro di Sabbionetta,
concebido por Scamozzi, assistente de Palladio.
Este era uma dos teatros tradicionais que
escolhemos para a turnê de Carmen e a dificuldade foi
manter o que tínhamos em Paris – um espaço que liberta a
imaginação, onde você preenche um cenário que é só areia
no chão com todos os tipos de imagens.
A ideia de transformar este espaço resultou de dois
fatores. Por um lado, o espaço tinha uma presença muito
forte e a relação palco/espaço era horrível, enquanto que
por outro lado a configuração do espaço nos permitia
colocar Carmen no centro da sala como se ela fosse
prisioneira da sociedade local e do mundo de um homem.
Nós queríamos ter apenas um espaço, não dois (palco e
plateia).
Teatro Argentina
A plateia dele não era muito mais larga do que a do Bouffes du Nord, apesar de
rotacionada noventa graus. Um dos fatores determinantes da sua transformação foi a
necessidade de fazê-la rápido: apenas cinco dias foram reservados para fazer a
instalação da nova estrutura, dos elementos cênicos, da iluminação e os ensaios. Além
disso, as fileiras de cadeiras não podiam ser removidas para uma temporada tão curta:
o novo palco teve que ser cuidadosamente posicionado sobre suportes entre as filas, e
tinha que corresponder ao nível dos assentos embaixo.
Este último problema foi superado ao fazermos a nova fileira de bancos
integralmente na superfície de atuação, subindo pouco antes que ela tocasse nãos
assentos. A nova arquibancada foi formada por degraus de trinta centímetros com
uma almofada de dez centímetros de espessura colocada ao longo da fileira. O declive
foi planejado para chegar ao nível do primeiro balcão, as cabeças dos espectadores
nestes assentos formando uma linha contínua com aquela dos novos bancos. Este
último nível na verdade correspondia ao do foyer, dando a plateia que caminhava
sobre a areia para chegar aos seus assentos uma sensação forte de que era uma
continuidade sem interrupção com o mundo “real” da rua.
O sucesso da transformação dependia da sua simplicidade e da sua validação
do espaço existente: havia uma emoção do teatro, como se ele estivesse sendo
experimentado de uma forma inteiramente nova, mas foi a ancoragem desta emoção
às demandas do drama e à integridade do espaço que deu a ele sua força real. Alguns
críticos notaram isso. Paolo Cervone escreveu que “Nesta platéia dos reis, com tantos
nomes ilustres amontoados praticamente uns em cima dos outros como se em um
orgia, felizes por estarem empoleirados sobre colchões improvisados, tem-se a
sensação quase religiosa de assistir não só a uma simples performnace, mas um evento
que não vai ter repetição.”
25

O Mahabharata em Nova York (fotos 18,
19, 20): O Mahabharata foi testemunha
da conclusão da minha busca de treze
anos por uma base adequada em Nova
York. Assim como com Carmen e A
conferência dos pássaros, houve uma
busca frenética por toda a acidade para
olhar possíveis espaços. Isso elevou o
número de espaços que eu tinha visitado
lá ao longo dos anos para mais de
duzentos. O Majestic Theater, encontrado
por Harvey Lichstentein, diretor da
Brooklyn Academy of Music, estava
abandonado desde 1968. Tinha dois
O teatro em 1870
balcões, recebendo uma plateia de até
O teatro em 1987
1.800 pessoas, muitas das quais só viam
um pequeno pedaço do palco. A BAM não conseguiu encontrar as chaves do
teatro, então nós entramos por uma janela do segundo andar. Quando eu e
Peter Brook estávamos dentro, tivemos uma estranha sensação de déjà vu. O
teatro parecia o Bouffes du Nord antes de ser reaberto por Peter Brook. Havia
cadeiras quebradas por toda parte, pedaços de gesso caídos, o cheiro da
madeira estragada e do carpete mas nós ficamos completamente encantados.
A cortina de segurança de amianto não podia ser levantada, o que significava
que nós só vimos metade do espaço por vez: nós tínhamos que estar em um
lado do espaço para ver alternadamente o que estava acontecendo no palco e
no auditório para poder ter uma ideia completa. Nós tivemos que pegar o voo
da tarde para voltar à Paris; tínhamos que tomar uma decisão. Eu trabalhei por
uma hora no horário do almoço e desenhei um esquema para que nós
pudéssemos decidir se conseguiríamos encenar O Mahabharata e Jardim das
Cerejeiras em Nova York na nossa reunião da tarde.
A vedação à prova d’água que ficava ao redor do telhado tinha caído, e sempre
havia rios de água escorrendo pelas paredes internas sempre que chovia. Isso tinha
danificado e desalojado a decoração de gesso, e começado a destruir a madeira dos
boxes e dos assentos da plateia.
O projeto rapidamente ficou mais elaborado e
consistia em elevar o palco um metro e meio,
colocando o proscênio acima da plateia e conectando
o palco e balcão com uma arquibancada. O segundo
balcão foi reduzido pela metade para liberar a vista do
público do primeiro balcão, reduzindo o espaço geral
para novecentos espectadores.
Os arquitetos Hardy Holzman Pfeiffer &
Associados receberam a tarefa de executar estas
modificações básicas na configuração do auditório. A
O Harvey Theater, Teatro da
Brooklyn Academy of Music
26
cidade desejava usar o teatro de forma permanente, então o palco original e a plateia
foram restaurados antes da construção do palco temporário de O Mahabharata. As
paredes do palco foram pintadas com base nas cores já presentes no teatro para assim
unificar o espaço.
Nós finalmente abrimos o teatro em outubro de 1987 com o O Mahabharata
seguido pela criação de Jardim das cerejeiras. Desde então, o palco temporário tem
sido conservado e o teatro tem sido usado de forma permanente na mesma
configuração.

A tragédia de Carmen em Copenhague (fotos 21
e22): O Ostre Gasvaerk, um tanque de acúmulo
de gás abandonado está situado na periferia da
cidade. O arquiteto escondeu o contêiner de
metal para gás dentro de um cilindro de tijolos
que suporta um domo de metal e madeira,
baseado livremente no Panteão de Roma. Não
mais em uso, tinha se tornado um depósito ilegal
de lixo. O problema principal era a acústica: as
Gasvaerk
curvas das paredes e do domo ecoavam o som,
dando espaço para um eco de dez segundos. O design do espaço para Carmen,
que pegou um pouco mais da metade do espaço disponível, foi orientado em
direção a uma secção na parede. A cidade ofereceu alguns reparos no teto e
providenciou duas toneladas de terra para terminar o piso. Uma empresa de
marcenaria e seus funcionários se voluntariaram para construir a estrutura todos
os dias depois do seu horário de trabalho. De forma a simplificar o projeto, os
camarins foram colocados diretamente dentro das arquibancadas de madeira. A
área de atuação, cercada por paredes laterais de madeira, foi posicionada longe
do centro geométrico do espaço, para evitar o problema de sons retornando
imediatamente às suas fontes em um eco fortemente potencializado pelo domo.
Uma lona pesada foi presa em uma moldura sobre o palco e forrada com fibra de
vidro; o som foi refletido para a plateia e morria atrás dela antes de conseguir
reverberar em volta do domo. Qualquer barulho “perdido” era capturado por
cortinas pretas pesadas penduradas ao longo da parte de trás dos assentos. O
tempo de reverberação foi reduzido a três segundos- acima do limite máximo de
aceitação para óperas. Este espaço, que foi transformado para um período de um
mês, tem sido um espaço permanente desde 1983.

O Mahabharata em Avignon (foto 23): Para a criação de O Mahabharata em
Avignon, nós tínhamos visitado espaços existentes e trinta pedreiras, e finalmente
escolhemos a Pedreira de Boulbon, que era a mais próxima de Avignon (doze
quilômetros) e a mais protegida do vento. Tinha boas proporções gerais: 135
metros de comprimento e uma média de 50 metros de largura, em um ambiente
em um volume fechada incrivelmente intimista. A entrada estava orientada para o
sul – por sorte afastada dos ventos mistrais de 100 quilômetros por hora que
tinham seu pico nos meses de verão. Esta questão do vento foi completamente
nova para nós. De volta à Paris, eu fiz uma maquete para ver como funcionava. Eu
27
descobri que se nós estivéssemos protegidos por uma parede muito alta no lado
norte (de onde o vento vinha), uma depressão seria criada dentro do espaço e
outro vento soprando no sentido oposto seria criado. Uma elevação foi construída
para parar o vento e também serviu para manter o som dentro, para manter sons
do vale do lado de fora, para esconder a arquibancada e para dirigir o sentido da
plateia para um lado só. Havia muitos toques de acabamento. O nível do piso de
pedras quebradas foi elevado com uma camada de cascalho, que permitiu que o
espaço secasse em algumas horas depois das chuvas frequentes no fim da tarde.
Esta camada era coberta com uma camada de calcário em pedaços, que endurecia
formando uma crosta quando molhado. Aí terra foi espalhada por cima disso tudo
para dar uma boa combinação de cores com a faceta da pedreira e para uma
superfície de interpretação mais suave. A Força Aérea Francesa de cinco
aeroportos mudou o horário e a locação dos seus exercícios para preservar o
silêncio da pedreira. A plateia ou foi de carro à pedreira adjacente ou pegou um
serviço de barco especialmente organizado de Avignon pelo Rio Ródano, que
parava a um quilômetro do teatro, o que permitia uma caminhada de um
quilômetro por uma colina suave sob a luz dourada antes do pôr do sol. Nós
começávamos a apresentação em hora precisa para poder terminar a peça onze
horas depois no nascer do sol e então a escuridão não tinha chegado
completamente, permitindo que a luz elétrica lentamente substituísse o sol.
É interessante reconhecer que quando nós fazemos uma apresentação ao ar
livre, os espaços só são naturais até o momento em que se seleciona uma parte da
natureza. Seja em Avignon, Atenas, Calgary ou em Perth (foto 24), nós apresentamos
em pedreiras e reconhecemos que assim que nós escolhemos o centro da
apresentação, escolhendo um panorama específico ( que seria o cenário com o plano
de fundo), a natureza no espaço não parecia tão natural quanto antes. Um parte dos
arbustos, das pedras, da terra, das suas texturas e cores não estavam em seus lugares
naturais. Não tinha nada a ver com a performance em si, mas uma nova harmonia que
iria integrar a presença humana tinha que ser encontrada dentro daquele recorte
selecionado. Selecionar uma parte da natureza foi como trapacear uma moldura em
que elementos “naturais” tinham que ser recolocados (como fazem certos pintores)
dado o fato que os seres humanos tinham sido introduzidos nesta moldura e estava
mudando os pontos de referência. Isto posto, quando nosso trabalho de adaptação
terminou e nós já tínhamos feito o espetáculo, nós não podíamos mais imaginar fazer
o espetáculo em mais nenhum outro lugar.
FIGURINOS, LUZ, CENÁRIOS, ESPAÇO
Para que o teatro exista, nós devemos começar com a “ideia”, ou, como
sugerido pelo poeta francês Paul Claudel, “o comando”. Imediatamente na sequencia
vem o texto. Aí vêm, todos juntos, os atores e o público, os figurinos, a luz, o cenário e
o espaço. O teatro, como todas as artes, primeiramente e acima de tudo existe por
causa daqueles que o fazem, mas o público é indispensável para ele: sem público, sem
teatro. Peter Brook diz sem eu livro O espaço vazio: “Eu posso pegar qualquer espaço
28
vazio e chamá-lo de palco. Porque andar através deste espaço enquanto outro assiste
é suficiente para um ato teatral começar”.
FIGURINOS
A entrada, o surgimento de qualquer ser humano em um espaço, nunca é
insignificante. No momento em que o ator entra em cena, há uma fricção intensificada
no ar. O palco é um espaço com papel duplo: por um lado, como vimos, ele pode
aumentar o corpo, mas também pode, em função da sua escala, absorvê-lo e roubar
uma boa parte de seu brilho. Os figurinos deveriam ser elemento fundamental da
reflexão estética do teatro, já que nós sempre vamos ter um ator no palco mesmo se
tirássemos todo o resto. O figurino deveria ajudar a tornar o corpo do ator mais visível
(o que não significa mais perceptível) e mais denso. Por esta razão, um figurino de
teatro não poder ser simplesmente um traje, e a busca por trajes neutros contém
muitas armadilhas já que tudo chama a atenção; tudo ganha sentido e nada é sem
sentido. Um ator nu não passa sem significado e, portanto, não dá para passar sem os
figurinos.
Um figurino pode (ou poderia) expressar coisas não ditas por uma personagem,
como o “onde”, “quando” (em que época) e “quem” (a disposição e a qualidade da
personagem). É por isso que com frequência eu vejo universidades ensinando a arte do
figurino através de figurinos do passado. É obviamente muito mais fácil, apesar de o
corpo humano e sua mobilidade serem restritivas, vestir um rei ou um camponês em
uma época em que cada classe social de cada país tinha um traje específico.
O figurino pode igualmente manter sua distância de dados que são únicos para
a personagem, como a psicologia, posição social, função, etc., e conseguir sua
inspiração da natureza poética do texto, seus ritmos, suas cores, sua vitalidade, suas
trocas, portanto se tornando uma ponte visual para alguns de seus bem guardados
segredos. Mas acima de tudo, o figurino veste o ator, e nesta pele, que é ligação entre
o ator e a personagem, nós devemos encontrar propriedade e até mesmo graça.
Sempre que possível, um figurino não deveria ser criado sem ter sido concebido pelo
ator que vai vesti-lo; esta poderia constituir uma das únicas regras aceitáveis do teatro.
LUZ
A luz que é indispensável para que se possa ver os atores também pode sugerir
um ambiente, um espaço e pode até mesmo ser o cenário. Eu recentemente li que no
seu teatro novinho no começo do século 20, Adolphe Appia teria usado
aproximadamente 7.000 lâmpadas por trás de painéis brancos que cobriam as
paredes. Ele queria criar a luz do dia. No mesmo período, Craig usaria a luz para
substituir um cenário.
Hoje, com a interrupção planejada do uso de lâmpadas incandescentes na
Europa, entre outros lugares, ao redor de 2010, nós vamos testemunhar o nascimento
de uma revolução cultural na iluminação. Nos anos 60, os LEDs (diodo emissor de luz,
composto de semicondutores, como arsenieto de gálio ou o índio) estavam
29
começando a aparecer e nos últimos dez anos, LEDs orgânicos acabaram com todas as
nossas concepções de luz (especialmente quando a luz branca se tornou uma
possibilidade). Já adotada para uso na iluminação pública, iluminação de monumentos,
na agricultura e nos automóveis, estes diodos não necessariamente atingem grande
performance; no entanto, com um período de vida entre cinquenta mil e cem mil
horas e com sua dimensão (menos de 1mm para o OLED, que usa átomos de carbono
colocados sobre vidro ou um polímero), eles vão ser usados de diversas formas.
Quando o cenário vai ter diodos integrados na pintura ou no papel de parede?
Quando o ciclorama vai ser auto-iluminado pelos OLEDs? Quando os diodos vão estar
nos figurinos dos atores?
CENÁRIOS
A indústria do cinema, televisão, vídeo e fotografia já encontraram seu lugar
perfeitamente hoje. Não faz muito tempo que havia confusão entre teatro, vídeo e
filme. Mas as coisas estão mais claras hoje, apesar de o teatro, roubado em parte de
sua herança (a ilusão que possuía no século 19), emprestar material de outras
disciplinas, como o cinema. O teatro pode, mas não é obrigado, receber qualquer coisa
no palco – todas as formas de arte, incluindo cinema, podem ser apresentadas no
palco em qualquer momento, sendo a única condição que não ameace a presença dos
atores. Paradoxalmente, o que é visto hoje como menos natural no palco é “stage
design”.
Eu mesmo tento no meu trabalho sugerir mais do que mostrar e mostrar
apenas o absolutamente necessário, seguindo o que Michael Ange diria, “os únicos
trabalhos bons são aqueles que podiam ter sido jogados do alto de uma montanha e
nada ter se quebrado”. Tudo que poderia ser quebrado em uma descida assim era
supérfluo – que evidentemente não é uma regra mas é algo que me conduz. Assim que
o efeito desejado é atingido, acrescentar detalhes para agradar aos outros ou a si
próprio é inútil. O cenário está lá para trazer ritmo e fluidez; a cenografia não está lá
para trazer respostas para as fraquezas da dramaturgia. A criação de um cenário não é
interessante nela mesmo ou sobre ela; ela deve ser entrecruzada por uma ação. (Fotos
25 e 26)
No começo do século 20, Jacques Copeau já estava questionando a importância
dos cenários tradicionais. “Nós não queremos dar importância em encenar o que é
concebido para cenários e adereços. Hoje, os executores de teatro na Europa
concordam plenamente em um ponto: condenar cenários realistas que tendam a dar a
ilusão de coisas reais enquanto valorizam desenhos sintéticos e esquemáticos que
objetivam apenas sugerir.
“Nós temos que admitir que as ideias dos mestres podem às vezes
surpreender-nos com sua academicidade pesada. Nós encontramos nestas idéias uma
simplicidade exagerada que nem sempre corresponde a uma simplicidade autêntica, e
uma ampliação das intenções do escritor através de materiais de leitura inocentes. O
espectador acostumado ao teatro gosta de descobrir isso, de distingui-las de uma
30
abordagem mais sutil. Pode-se ficar preocupado que abordagens desta natureza, esta
constante – e sempre deficiente - busca por efeito, vai progressivamente aumentar
uma performance teatral quase bárbara, falsa e rudimentar quando adicionada ao
contexto dramático... Ser apaixonado por invenções elétricas ou de engenharia é
sempre atribuir muita importância aos telões, aos cenários pintados, a natureza das
luzes; é sempre se render a estes truques, de alguma maneira, forma ou formato.
“Nossa intenção é negar a importância do maquinário, sejam eles bons ou
ruins. Isto porque temos uma crença profunda que é desastrosa para as artes
dramáticas abrigar tamanho número de complexidades externas. Nós não acreditamos
que para “representar um homem por toda sua vida” nós precisemos de um teatro
onde “cenários aparecem por debaixo sem mudanças instantâneas”, nem queremos
acreditar que o futuro do formato artístico está conectado ao maquinário. Nós não
devemos confundir convenções usadas para o cenário com as dramáticas. Destruir um
tipo não significa liberar todas as outras. Muito ao contrário! O servilismo do palco e
seus artifícios não refinados forçam-nos a ficar concentrados na verdade das emoções
bem como nas ações das nossas personagens. Possa esse prestígio se dissolver e
possamos nós encontrar um novo cavalete para uma nova obra de arte”6
O ESPAÇO
O espaço também é importante, mas não necessariamente para expressar
alguma coisa. Seu primeiro propósito é como um endereço postal, similar à estrutura
da escola das jovens garotas do Afeganistão, onde o público sabe que eles podem se
juntar para ver uma apresentação. Então, ele deve conter e “ambientar” os artistas e
seu público, enquanto também vai protegendo e providenciando abrigo (barulho,
chuva, perigo). As paredes e o teto de um teatro não são indispensáveis para a
apresentação. O teatro de rua, por exemplo, se dá muito bem sem eles, e favorece a
concentração e o relacionamento do público com a performance.
TINTA
Pintar ou não o cenário é uma questão extremamente importante. O que
promove vida na arquitetura é a qualidade dos materiais empregados e suas texturas.
Se nós fossemos cobri-los com tinta, nós estaríamos fazendo a opção de perder sua
qualidade. Materiais como madeira, tijolo, pedra, concreto e couro naturalmente
adquirem um bom brilho com o tempo, enquanto a tinta envelhece mal, fica suja e
deteriora. Quando eu tenho que pintar um teatro ou um cenário, eu tenho em mente
a técnica do afresco, para que a transparência preserve a qualidade da parede. Eu uso
cores que são muito vivas em pigmentos ou matizes, e aí as misturo com colas ou
secantes que eu diluo (água, gasolina, álcool, dependendo da situação)
suficientemente para que a cor entre no material. Quando eu crio um cenário, eu
gosto de pintá-lo eu mesmo, para ter a liberdade de mudar de ideia. Isso me dá a
6
Trecho do ensaio Um essai de renovation dramatique, de Jacques Copeau.
31
oportunidade de responder às perguntas dos pintores e se alguém me diz: “o que você
pede não é possível”, eu posso responder: “Me dê um pincel!” (Foto 27)
EM QUE ESCALA?
Nós com alguma frequência vemos um cenário ser entregue ao palco muito
cedo no processo, o que significa que ele foi desenhado e construído muito antes do
trabalho com os atores, e funciona como outra personagem no palco. Sempre que
possível, é desejável que o cenário seja desenvolvido no meio dos ensaios com os
atores. Ao mesmo tempo, a vantagem do cenário que já existe antes dos ensaios,
desde que ele tenha uma “mente aberta”, é que ele se torna um objeto tão familiar na
performance que todos o habitam com intimidade, não mais um simples cenário mas
sim um parque de diversões.
Quando o cenógrafo tem que antecipar seu trabalho, ele faz maquetes para
ficar bem certo de estar alinhado com o que nós estamos procurando. A chegada da
maquete é sempre um exercício interessante de ser observado, pois vemos o diretor
fazer todos os tipos de movimentos contorcionistas, tentando no final se imaginar no
cenário. Esse exercício pode provar ser bem difícil até mesmo para os melhores
visionários.
A conferência dos pássaros foi criada no Cloître des Dames em Avignon. No
começo dos ensaios, nós tínhamos um cenógrafo que apresentou uma pequena
maquete. Peter Brook mostrou que ele não “via” o espaço ou as transformações
sugeridas. De onde ele estava em pé olhando para a maquete, ele já estava muito fora
dos limites do teatro, ele já estava na rua; eu o avisei disso e eu trouxe a maquete para
mais perto dele de forma que ela ficou a alguns centímetros dos seus olhos.
Evidentemente, ele nos disse que naquela distância ele não podia ver nada e que
queria outra maquete maior. Ele solicitou uma maquete de 1:33, a escala usualmente
empregada para cenários, mas eu pensei que seria melhor ter uma escala mais
adaptada aos olhos de Peter Brook. Nós estabelecemos que o melhor ponto de vista
para ver o cenário seria na quinta fileira da plateia, portanto a sete ou oito metros da
ação. Nós então dividimos esta distância pela distância que Peter Brook tinha
escolhido naturalmente para visualizar a maquete, que era de aproximadamente
quarenta centímetros. Eu construí uma maquete maior na escala de cinco centímetros
para um metro, ou 1:20. Uma maquete não serve para tirar medidas mas para mostrar
o futuro cenário na teoria, e eu acho que é um ganho manter em mente o olho de
cada diretor para descobrir qual escala corresponde a ele.
32
ACÚSTICA
Há exatos quarenta e um anos, eu larguei meu emprego como desenhista
industrial para me tornar assistente administrativo do Festival du Marais em Paris. Eu
colocava cadeiras em igrejas para concertos, pegava artistas em estações, recolhia os
ingressos que seriam vendidos e protegia músicos com os guarda sóis trazidos para
emergência. Na verdade, meu trabalho era cobrir a falta de pessoal, já que a maioria
deles eram voluntários que não apareciam na maior parte do tempo. Eu achava isso
tudo excitante.
Um dia, como eu sabia desenhar, me pediram para trabalhar por uns dias com
o arquiteto teatral Claude Perset já que ele estava muito atrasado em certos
desenvolvimentos finais (a partir daí eu trabalhei com ele regularmente por dez anos).
Um dia, ele me pediu para numerar os assentos em um dos espaços – 2.500 etiquetas
para grudar embaixo de sol! No final da tarde, uma orquestra de cordas chegou para
ensaiar no palco. Nas primeiras notas do violino, eu parei meu trabalho, fascinado pela
beleza do momento; eu estava sozinho no centro de 2.500 assentos vazios,
circundado por paredes cobertas de rádica, no meio de um palacete do século 17. A
acústica era extraordinária e a harmonia visual tão balanceada – as cores da madeira,
as árvores, a pedra, os músicos vestidos de preto. Aí a cantora começou a cantar as
primeiras notas das Bachianas Brasileiras de Villa Lobos; eu tremi porque nunca tinha
experimentado nada como aquilo. Foi um momento mágico que eu nunca esqueci.
Alguns dias depois, eu tinha que entrar no fosso da orquestra para ver os pés
dos músicos porque eles tinham dito que se o balé terminasse quinze minutos mais
tarde ou depois da meia-noite, que eles teriam que receber hora-extra. Também, na
primeira noite, eles tinham começado a desligar as luzes dos stands de partitura com
os pés, ganhando alguns minutos extras com o processo. Foi isso que aconteceu para
que no dia seguinte eu estivesse lá olhando para os pés deles antes do início da
performance. Como não havia jeito de sair, eu fiquei preso ao lado do regente durante
a performance toda. Era um lugar extraordinário onde eu não conseguia para de
pensar no que tinha ouvido alguns dias antes no meio do espaço vazio. Para o regente
da orquestra, que me perguntou o que eu achei da experiência, eu respondi que ele
tinha muita sorte. Ele e então acrescentou que “Sim, o poço da orquestra é metade de
um violino e o auditório com o público é a outra metade, e eu estou bem no meio”.
Desde então, eu tenho visto e ouvido que a maioria dos espaços
lamentavelmente não compartilha a outra metade do violino a que o regente se
referia.
Quando um ator reclama para um diretor sobre a acústica, a resposta é quase
sempre “Sim, lamentavelmente nós sabemos”, e nada é feito para mudar isso. Quando
em turnê, eu com frequência tenho que adicionar painéis acima dos atores, chapas de
05 milímetros de compensado com fibra de vidro do lado interno, ou colar painéis
feitos de madeira ou outros materiais ou o local do cenário. Eu vi de novo
recentemente, um cenário da Opera de Madri que enchia o palco com blocos de
poliestireno até uma grande altura! Coitados dos cantores!
33
Quando nós encenamos O Mahabharata em Glascow em uma garagem de
bondes em processo de destruição, eu tinha adicionado tiras finas de madeira que
ficavam mais pesadas com tiras de fibra de vidro em metade das janelas da garagem
para refletir as vozes dos atores e absorver a má reflexão das janelas. Este espaço foi
finalmente salvo e a cada vez que voltamos com um novo espetáculo, eu reinstalo
estas tiras de madeira que são retiradas para facilitar a manutenção das luzes. Na
minha última volta a este espaço, o diretor técnico me disse, “Você vai ficar contente
que nós reinstalamos a madeira antes da sua chegada”. Eu salientei que tudo bem,
mas que era ruim para as outras companhias, especificamente as que tinham menos
experiência, que não teriam a chance de ter uma acústica apropriada. Me entristece
pensar que alguns profissionais não deixam os atores aprenderem com seu
conhecimento, e isso em oposição a ajudar os que não sabem, fazem coisas apressadas
e corridas, como a resposta que um diretor em um teatro do norte da França me deu
uma vez: “Seus atores simplesmente têm que falar mais alto!”
Um espetáculo precisa de espaço com boa acústica associada com boa
visibilidade, já que quem consegue ver melhor também ouve melhor. Isso traz a
performance para mais próximo do público e a ação ganha refinamento e riqueza
quando nós ouvimos e vemos com mais clareza. A má acústica pode prejudicar
severamente uma performance ao empurrar o público embora e dar a impressão de
que o espetáculo foi mal produzido.
Quando assistimos à um show, nós não gostamos que um dos nossos sentidos
nos seja roubado, ao menos que não haja outra alternativa, e neste caso outros
sentidos se desenvolvem de maneira notável para compensar o que falta. O teatro nos
dá algo para ouvir e ver e nós queremos ouvir e ver. Nós solicitamos que todos os
nossos sentidos estejam em sinergia para ter uma boa percepção de cada um.
Eu acabei de ler o resultado de um estudo interessante: jovens crianças que
passavam mais de uma hora em frente à televisão tinham mais dificuldade de
desenhar personagens com braços e pernas no lugar correto. Isso se deve
simplesmente ao fato de que para desenvolver seus sentidos, a criança precisa de
todas as dimensões juntas e não apenas de imagens achatadas.
34
UM NOVO TEATRO EM LISBOA
Se nós olharmos no passado no que muitos ainda chamam de tradição teatral
de desenho de palco, nós vemos que os arquitetos eram também com frequência os
cenógrafos. Eles eram capazes de transformar tanto o palco como eram de construir
um teatro. A separação gradual da arquitetura e cenografia começou recentemente,
mas hoje não só é raro encontrar um arquiteto/cenógrafo, mas consultores que devem
agora atuar como mediadores entre os trabalhadores do teatro e os arquitetos
durante a construção de um teatro.
Quando eu trabalho como consultor, eu tento desenvolver alguns novos
caminhos com os arquitetos com quem estou colaborando:






Fazer um local de apresentação como uma ilha no meio do edifício,
isolado acusticamente dos outros espaços através de um corredor ou
um pátio ao redor do espaço.
Desenvolver uma estrutura que seja leve, para permitir ampliação ou
diminuição do espaço de atuação sem que seja necessário destruir o
prédio inteiro, nas próximas décadas.
Quando possível, criar um espaço de ensaios que seja idêntico ao de
atuação para que ambos possam acomodar público. Cada espaço pode
alternadamente se tornar de ensaio ou de atuação.
Fazer um palco que seja grande o suficiente para permitir espetáculos
que exijam um formato de trabalho especial sobre ele, bem como ter
acesso direto do público ao palco, completando este arranjo.
Um espaço experimental com uma arquibancada retrátil para permitir
que o espaço se transforme de espaço de atuação para espaço de
ensaio em apenas alguns minutos. Jose Luiz Gomes recentemente me
lembrou que quando ele me fez visitar seu futuro teatro em Madri, ele
me mostrou um espaço dizendo: “Esta vai ser a sala de ensaios!”, ao
que eu repliquei: “Um espaço só de ensaios, não! Outro espaço de
atuação que você também vai poder usar para ensaiar.” Isso foi o que
ele finalmente fez e está funcionando muito bem.
Uma atitude ecológica para com o projeto para economizar energia.
Eu acabo de participar da construção de um novo teatro em Lisboa com
arquitetos que tinham concordado em modificar seu projeto. Em 1999, no escritório
de Joaquin Benite, diretor do Teatro Almada em Lisboa, eu tinha visto as plantas do
futuro teatro. Eu achei que o projeto apresentava erros graves que comprometiam o
funcionamento apropriado do espaço. Joaquim me propôs discuti-los com os
arquitetos. Juntos, nós visitamos os espaços, um por vez, explorando os problemas
ligados à acústica, mais precisamente sobre o isolamento das salas uma em relação á
outra; a visibilidade; o conforto do público, artistas e técnicos, etc., que eram questões
prioritárias para mim. Para mim, o que tinha conduzido as escolhas dos arquitetos
tinha sido focado exclusivamente na estética. Portanto, nós tivemos que mudar a
proposta de praticamente todos os espaços.
35
Este teatro tinha que poder acomodar espetáculos tradicionais, ópera e
companhias experimentais, todas que requerem tipos particulares de espaços. Nós
decidimos construir um auditório fixo e um palco com boa visibilidade e acústica que
poderiam acomodar em boas condições, espetáculos que aconteciam em relação
frontal, em mais de 90% dos casos. Para espetáculos que precisavam de um formato
diferente, o espaço do auditório poderia ser transformado em espaço de encenação- o
público tendo acesso direto a ela- concebido dentro da mesma estética do auditório.
Isso veio de uma ideia recorrente de Peter Brook, que nós já provamos várias vezes ter
um potencial benéfico; o palco e o auditório formam um só espaço, uma só estética,
uma só acústica. Para dar uma maior sensação de intimidade, a sala quadrada fica mais
larga no meio e as filas laterais são empurradas para trás das paredes da sala. Estas
paredes são painéis largos feitos de madeira vermelha até o teto, e com espaçamento
de um metro.
Nós separamos completamente a sala principal, as salas de ensaio e a sala
experimental em dois prédios distintos conectados pelos camarins e um jardim que
isolava acusticamente o espaço entre eles. Na verdade, eu acho que a barreira acústica
mais barata e melhor é a construção de dois prédios separados, sempre que possível; o
espaço experimental está localizado sobre o espaço de ensaio no nível da entrada do
público, e o espaço de ensaio conecta-se com o grande palco. Este esquema ajuda a
não ter que enfrentar o que Peter Brook encontrou durante as apresentações de Le
Phénomène no Schaumburg de Berlim. O horário do espetáculo foi determinado em
função da poluição sonora que vinha dos outros espaços!
ECOLOGIA
Eu acho que os teatros, especialmente os novos teatros, devem absolutamente
conservar energia. Algumas soluções já existem e novas estarão disponíveis logo:
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Economize energia através do uso de tipos diferentes de lâmpada que
consumam menos energia onde for possível. O que quer que aconteça,
o desaparecimento da lâmpada incandescente está planejado: na
Europa – em 2008 para ruas e escritórios e em 2009 para casas
particulares; 2012 na Califórnia e 2010 na Austrália, etc. Quando vai ser
com a luz de teatro?
Inventadas em 1878 por J.W.Swan, as lâmpadas incandescentes transformam apenas
5% da energia que consomem e tem um período de vida muito curto de
aproximadamente 1.200 horas (em comparação, a lâmpada fluorescente tem
desempenho duas ou três vezes maior- 60/80lm/W com um período de vida de 6.000 a
15.00 horas ). Os outros 95% da energia consumida são perdidos em calor, portanto,
100 aparelhos de iluminação de 1.000W equivalem a 100.000 watts, liberando 95% da
sua energia, que é um aquecedor significativo, e quando isto é acrescentado ao calor
emitido pelo público, que libera 100W por pessoa, também exige refrigeração
considerável.
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Deixe entrar a luz natural, sempre que possível, incluindo os espaços de
encenação.
Recicle água (um exemplo disso é o National Theater de Londres).
Use energia solar (fotovoltaica ou térmica) dos telhados e janelas.
Manufature eletricidade a partir dos telhados ou das janelas.
Use amplas alturas o máximo possível para criar circulação natural de
ar.
Isole os espaços o máximo possível para ficar protegido do frio e do
calor e evitar aquecimento excessivo.
Estes pequenos procedimentos são apenas lembretes de soluções que já estão em uso
aqui e acolá, mas novas técnicas estão sendo desenvolvidas muito rapidamente.
JÁ NO SÉCULO 18
Aqui estão algumas considerações e conselhos de arquitetos em uma época
onde a aventura arquitetônica estava se desenvolvendo sob as suas primeiras formas
mais importantes, e onde vemos que alguns dos conselhos deles ainda são relevantes.
De M. de le Chevalier de Chaumont, que aparece em um pequeno caderno
depois do primeiro incêndio no Ópera de Paris em 1763: “Nós podemos
verdadeiramente atribuir a falta de sucesso dos espaços de encenação
contemporâneos à ignorância da acústica e de princípios óticos por parte daqueles que
estão encarregados de desenhá-los”.
Le Chevalier de Jancourt em 1776: “Como as apresentações em tempos antigos
eram feitas em ocasiões celebrativas e triunfais, elas exigiam teatros enormes e
círculos abertos, mas similarmente aos teatros modernos, suas plateias são medíocres,
seus teatros pequenos e os edifícios são mesquinhos, com portas que parecem portas
de uma prisão, na frente das quais nós colocamos guardas. Colocado de maneira
simplista, nossos teatros são tão mal construídos, tão mal localizados, tão
negligenciados que fica meio evidente que o governo os protege menos do que os
tolera”.
Por volta de 1767 por M. le Comte Algarotti: “Apesar de estarmos conscientes
das faltas dos nossos espaços teatrais há bastante tempo, foi apenas há cerca de vinte
e cinco anos que nós nos comprometemos a fazer algo sobre eles”. M. le Comte
Algarotti foi um dos primeiros a falar sobre isso- ele queria que os arquitetos que
estavam envolvidos na construção soubessem que eles estavam enganados quanto ao
uso destes edifícios e seus propósitos.
Um trecho da Essai sur l’Architecture Théâtrale escrito pelo arquiteto Patte em
1782: “A proposta do proscênio é preparar para a abertura da apresentação. Em
muitos espaços teatrais, como o de Parme e Manheim, o teatro está separado
simplesmente por uma parede para que quando o ator falar, ele se encontre frente a
frente com a primeira fila, e isso, para quem não tema intenção de ficar o tempo todo
na beira do palco, corre o risco de que sua voz se perca na moldura do cenário. Nós
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remediamos esta falta, em teatros de Nápoles, Milão e Roma, trazendo a borda do
palco mais para a frente na sala, mas isso faz com que o ator párea estar muito isolado
no meio dos espectadores e falta ilusão teatral.
“Foi para evitar estes dois inconvenientes que nós criamos o arco do proscênio
e o palco avançado na plateia que é um espaço que combina espaço e palco”.
“Apesar de o teatro e os atores terem uma relação com a organização do
espaço de apresentação apenas com relação à sua abertura, nós, no entanto,
acreditamos que devemos expor o que pensamos com relação à sua distribuição. A
área do palco depende mais ou menos do tipo de apresentação que se deseja fazer
nele. Um espaço de ópera deve obviamente ser maior do que o da comédia. Sua
distribuição está mais nas mãos do contrarregra ou do pintor/cenógrafo do que nas do
arquiteto”.
“A arte em geral está em coordenar todas as entradas e saídas do palco para
que os atores nunca parem de ter uma relação com o prédio e a arquitetura que os
rodeiam”.
“Nós acreditamos que seremos bem sucedidos graças à iluminação de rua à gás
em nos livramos da fila de lanternas colocadas na frente do palco para iluminá-lo. Nós
sabemos o quanto elas são inconvenientes; como incomodam o olho do espectador;
como cegam os atores, dependendo da posição deles; que elas enchem a sala de
fumaça infinitamente... e que elas provocam uma espécie de neblina entre palco e a
plateia”.
“Seria sair da nossa área de especialização lidar apenas com a distribuição geral
do espaço, porque não é o que os arquitetos entendam o mínimo. Nós sabemos que
precisamos de um grande corredor de entrada antes do espaço que conduza às
escadas dos camarins, um foyer público, algumas entradas e muitas saídas notando
que chegamos para o espetáculo um atrás do outro, mas que todos querem sair ao
mesmo tempo; que os camarins para os atores se vestirem são necessários, junto com
largos estúdios, uma sala para guardar e pintar os cenários, um café, uma sala de
guarda, uma sala para concierge, escritórios, uma sala de montagem para os diretores;
e que não se deve esquecer de distribuir caixas de água em abundância para que se
possa parar o avanço de um incêndio em tal caso”.
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FOTOS
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1-Peter Brook e Jean-Guy Lecat
2- Improvisações da Companhia de Peter Brook em Veneza
3- Cartoucherie de Vincennes em Paris
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4- O Teatro Oficina em São Paulo
5- O La Mama em Nova York
6- O Bouffes du Nord – as paredes em 1976
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7- O Teatro Bouffes du Nord. O cenário de Don Juan, de Molière, em 1983.
8- A plateia do Bouffes du Nord
9- O Teatro Bouffes du Nord- transformação para Dias Felizes, de Beckett
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10- O Teatro Bouffes du Nord- O Mahabarata
11-Ubu aux Bouffes em um circo
12- Ubu aux Bouffes no Teatro Bouffes du Nord
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13-A conferência dos pássaros, em Lisboa
14- Titus Andronicus, de Shakespeare, em Dublin
15-Ubu aux Bouffes em Caracas
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16-A tragédia de Carmen, no Teatro Argentina, construído em 1730 em Roma.
17- A tragédia de Carmen, em Roma, depois das transformações no Teatro Argentina
18- O Teatro Majestic – a primeira visita
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19- O Teatro Majestic / Harvey, da Brooklyn Academy of Music, depois das transformações para O
Mahabharata
20- O Teatro Majestic / Harvey, da BAM, depois das transformações para O Mahabharata
21- A Ostre Gasvaerk em Copenhague
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22- A tragédia de Carmen em Copenhague, depois das transformações na Ostre Gasvaerk Pode-se ver
o teto acústico.
23-O Mahabharata em Avignon
24- O Mahabharata em Perth
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25- Cenário de Jean-Guy Lecat para A Tempestade, de Shakespeare
26- Cenário de Jean-Guy Lecat para o balé Himalaya. O cenário é de papel.
27- O Mahabharata em Barcelona- novas paredes vermelhas
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28-O Teatro de Almada, em Lisboa
29- O Teatro de Almada, em Lisboa
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