A JUSTIÇA COMO FATOR DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS

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A JUSTIÇA COMO FATOR DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS
A JUSTIÇA COMO FATOR DE TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS:
PRINCÍPIOS E IMPLEMENTAÇÃO*
Pedro Scuro Neto, Ph.D Leeds, M.Soc.Sc Praga
Renato Tardelli Pereira, Ph.D São Paulo, MD Jundiaí
"Muitos projetos políticos e educacionais fracassaram porque seus autores os delinearam a partir de suas
próprias visões da realidade, sem ter levado jamais em consideração as pessoas na situação à qual os
projetos foram direcionados. ... Nosso papel não é expor ou impor projetos às pessoas, mas dialogar
sobre pontos de vista, os nossos e os delas." PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido
A
NTES QUE A CIVILIZAÇÃO, TAL COMO A CONHECEMOS, TIVESSE FINALMENTE
se afirmado, das
crianças maiores de sete anos se esperava conduta similar à dos adultos. Se cometiam
algum crime sofriam as mesmas sanções, eram colocadas nas mesmas prisões e executadas
nos mesmos cadafalsos. Na sociedade moderna, por sua vez, não se espera muito de jovens
e crianças, a quem eximimos de total responsabilidade e tutelamos, até que tenham atingido uma certa
idade regulamentar. Nossa sociedade é um mundo de adultos, onde jovens e crianças vivem em
situação de absoluta dependência, pois ainda mais que aqueles que as tutelam, podem ser alvo da
atenção da Justiça, não só quando infringem a lei, mas também se deixam de cumprir o papel de
“criança” ou “adolescente” (fogem de casa, faltam às aulas, desobedecem) ou até mesmo em virtude
do comportamento dos próprios adultos (abuso, abandono, negligência). Por conta dessa dependência
inclusive os jovens que cometem crimes graves não vão para a cadeia, mas respondem com medidas
severas - no Brasil, até 3 anos de internação, três de semiliberdade e outros tantos de liberdade
assistida; na Inglaterra podem ser submetidos a custódia por toda a vida.
A situação de dependência certamente oferece aos jovens e às crianças de hoje em dia
vantagens e garantias inimagináveis no passado. O problema é que, ao crescimento dessa
dependência corresponde o ressurgimento do elemento repressivo, que “à medida que os homens se vão
civilizando ... longe de regredir cada vez mais se desenvolve”. (Durkheim, 1984: 295) Nos Estados
Unidos, por exemplo, um dispositivo chamado waiver of jurisdiction confere aos juizados a
possibilidade de transferir para um tribunal comum a responsabilidade de julgar menores acusados
de crimes graves. Durante os anos quarenta muitos estados norte-americanos mudaram sua legislação
e deram aos juizados jurisdição exclusiva sobre esses menores. Em anos mais recentes, porém, a
tendência liberal foi revertida, inclusive através da redução da idade em que crianças e jovens podem
ser acusados, sentenciados e punidos como se fossem adultos. Nos estados de Mississipi e Illinois, por
exemplo, o waiver pode ser aplicado a infratores de 13 anos, em Indiana a acusados de homicídio com
10 anos de idade, em New Hampshire e Wyoming não há indicação precisa, o que permite que
crianças de qualquer idade sejam processadas criminalmente.
Em 1966 uma decisão da Suprema Corte dos EUA (Kent versus United States) autorizou o
waiver somente após devido processo penal. Provavelmente em decorrência disso, em 1989 outra
decisão (Stanford versus Kentucky) determinou que aos 16 anos jovens podem ser condenados a morte.
O relator que justificou o voto da maioria argumentou que, se o melhor indicador dos padrões éticos
da sociedade são as leis que os representantes eleitos pela população aprovam, não há como afirmar
que a pena de morte seja um castigo "cruel e desumano", mesmo para jovens criminosos. Com efeito,
somente 15 dos 37 estados onde há pena de morte não permitem a sua aplicação a jovens de 16 e 17
anos. Para confirmar o ponto de vista dos juízes, a revista Time e a rede CNN fizeram uma pesquisa:
Contribuição ao Simpósio Internacional da Iniciativa Privada para a Prevenção da Criminalidade. NEST/Câmara de
Comércio e Indústria Brasil-Alemanha, São Paulo, abril de 2000.
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em todo o país somente 17% dos adultos se disseram contrários à pena de morte e apenas 35% se
opuseram que fosse aplicada a menores de 16 ou 17 anos.
Internacionalmente a postura dos magistrados não difere muito, não importa o sistema
jurídico. No Brasil, um levantamento de 755 processos sobre as infrações de adolescentes internados
na Febem (São Paulo) mostrou que nos três primeiros anos desde a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (1990), 30% dos jovens acusados de 'infrações contra o patrimônio' foram
internados "provisoriamente" - no curso do procedimento, antes da decisão final do Judiciário - por
mais de 45 dias, prazo máximo e improrrogável previsto pelo artigo 183. Nas 'infrações contra a vida',
a proporção de internados provisórios foi ainda maior: 44%. (Passetti et al., 1995) A internação aplicada por várias razões: homicídio, latrocínio, roubo, furto, invasão de domicílio e dano - quase
sempre é respaldada "por um laudo técnico", deixando "o juiz em uma situação confortável diante da
predeterminação "científica" e "isenta" da sentença". Mesmo assim, quando o parecer técnico sugere "a
aplicação de medida sócio-educativa pelo lado pedagógico adotado pelo ECA, a tendência é
desconsiderá-lo".
O que acham os juízes (nos Estados Unidos) sobre aplicar pena de morte a jovens infratores
aprovam (47%), desaprovam (53%), não sabem (7%)
(National Law Journal, 8.8.1994)
O problema de comparar sociedades
Para analisar uma sociedade do ponto de vista científico, segundo Talcott Parsons - provavelmente o
mais importante dos sociólogos do século XX - é preciso elaborar uma abordagem, tão objetiva quanto
possível, de seu caráter e seus processos. Por isso, para o observador científico “os problemas se
apresentam diferentemente, pois devem ser encarados à luz de uma ampla perspectiva histórica e
comparativa, bem como de juízos fundados, tanto quanto possível, em dados de observação testados e
em análises logicamente precisas e teoricamente coerentes.”
Diante de tal imposição, como analisar um sociedade concreta à luz do caráter e dos processos das
demais? Como no caso do Brasil, que, de muitos pontos de vista em nada se assemelha às outras
sociedades do continente latino-americano, pois se consideramos as variáveis do desenvolvimento
humano (ver classificação do PNUD: www.undp.org/hydro) ele se parece mais a um país africano (em
particular com a África do Sul), que a seus vizinhos. Com os Estados Unidos, principalmente no que diz
respeito a criminalidade, acontece o mesmo: os níveis de violência nos EUA lembram mais a América
Latina do que seu vizinho, o Canadá. (Levine e Rosich, 1996)
Consequentemente, à luz de uma perspectiva histórica, comparativa e dos dados de pesquisa
disponíveis, neste termo de referência fazemos repetidas menções à situação dos Estados Unidos,
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embora sempre procurando estabelecer paralelos com a conjuntura brasileira1. Comparabilidade,
ademais, não é só um problema teórico. Por força de comparações ilegítimas muitos programas sociais
aparentemente bem sucedidos em determinadas lugares fracassaram em outras paragens. Daí a ênfase
em delineamento rigoroso e validação - que caracteriza a presente proposta de aplicação de câmaras
restaurativas - a partir de metodologias legítimas e padrões científicos consagrados, não apenas de boas
intenções.
Modernamente, a tendência favorável ao castigo violento se coaduna no plano das instituições
estatais e se confunde com impessoalidade. Nem sempre, porém, foi assim. Muitos povos primitivos
puniam jovens e crianças com extrema brandura e apenas em certas condições, à noite e por
intermédio de maus espíritos, que assustavam e maltratavam somente os adultos. Esses povos sabiam
também, na base de diferenças de sexo e idade, o que esperar dos jovens e das crianças: para os
tupinambá, povo nativo do Brasil, meninos eram crianças até os sete anos de idade porque não
conseguiam acompanhar o pai e jamais se separavam da mãe. Entre eles reinava respeito e amizade,
não se ofendiam nem faziam brincadeiras de mau gosto e, "nas relações com os adultos em geral e
com os próprios pais manifestavam profundo respeito, embora não recebessem castigos de nenhuma
espécie pelas faltas cometidas". Dos sete aos quinze não paravam em casa, seguiam o pai, que não lhes
ordenava que trabalhassem. Assim mesmo procuravam produzir de acordo com sua idade e
capacidade. A juventude durava dos 15 aos 25 anos, período em que os rapazes mais ajudavam os
pais, e quem entregavam todo o produto do seu trabalho. (Fernandes, 1963:268-308)
Ao comparar a aparente harmonia dessa formação social primitiva com a nossa sociedade
incapaz de produzir diretrizes claras e seguras para a ação individual, não se pretende fazer apenas
uma referência nostálgica a um mundo esquecido e por quase todos desprezado. O importante é
perceber a viabilidade de resgatar o equilíbrio institucional, harmonizando contextos sociais e
redefinindo a justiça como atividade que visa não apenas fazer o malfeito bem feito, mas acima de
tudo vindicar as vítimas, reconciliar as partes e restabelecer a paz. A Justiça é felicidade que não
conseguimos obter isoladamente e por isso procuramos em sociedade. (Kelsen, 1992:14-21) Na prática,
porém, como há diferentes noções de justiça, freqüentemente contraditórias, ela é avaliada apenas em
função de interesses, mais precisamente como resultado de conflitos de interesses. Devemos ao Direito
a proeza de oferecer soluções de compromisso entre interesses opostos, garantido justiça (paz social)
em bases estáveis e razoavelmente permanentes. Só que cada vez mais as premissas necessárias para
garantir a ‘paz’, a ‘normalidade’ ou tranqüilidade, se confundem com o ideal de ‘justiça’ e acabam
tomando o seu lugar.
A Paz que Eu Não Quero
A minha alma está armada
e apontada para a cara do sossego
Pois a paz sem voz
não é paz, é medo.
Às vezes eu falo com a vida
às vezes é ela quem diz:
Qual a paz que eu não quero conservar
pra tentar ser feliz.
O RAPPA
Determinante também é o efeito do “espelho” que a nação mais avançada mostra às que a acompanham e que
nele enxergam, devido a “tendências que se manifestam e se realizam com férrea necessidade”, a imagem de seu
próprio futuro. (Marx, 1976)
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A solução pode estar no resgate da tradição jurídica da humanidade. Na Bíblia, por exemplo,
o tema essencial é o 'direito' que se traduz pela palavra shalom (o direito que nas suas várias
dimensões denota a perspectiva divina para a humanidade). Restaurar o shalom é precisamente o
objetivo da justiça divina, através da busca de soluções que não façam somente bem feito mas que
também possam agregar, não exatamente na base de merecimento, mas das necessidades concretas,
focalizando o malfeito e criando um amplo contexto (de gente e de significados) para a ação
individual. (Zehr, 1990)
Nas sociedades primitivas, em lugar de isolar e punir o infrator, a meta da justiça era atingir
consenso, envolver família e comunidade na busca de harmonia e reconciliação, promover acordo
entre as partes. A preocupação principal não era a lei nem explorar o medo do castigo e mecanismos
de culpa, mas determinar as razões mais abrangentes do malfeito (partindo do pressuposto de que
freqüentemente todos os envolvidos têm a sua parcela de responsabilidade). Na tradição jurídica da
humanidade - tal como ainda se observa em muitos povos indígenas - a responsabilidade não recaía
exclusivamente sobre os infratores, mas nas famílias e comunidades. Os culpados não eram excluídos
do meio social; ficavam onde sempre estiveram, para retomar o controle de suas vidas e tentar
restaurar a harmonia desfeita. Nesse particular, mesmo na atualidade, em sociedades avançadas,
como o moderno Japão - onde a criminalidade diminui e a Justiça funciona a custos extremamente
baixos - prevalecem a harmonia, os valores familiares e comunitários, respeito interpessoal e, menos
castigo que arrependimento, pedir desculpas e buscar um jeito para reparar o malfeito. (McElrea,
1994:7-8)
Assim, ao comparar sociedades no presente e no passado, tendo a justiça como referência, o
que procuramos é acentuar a necessidade de intervenções éticas e ideológicas por um novo tipo de
emancipação, na qual autonomia, felicidade e solidariedade não são elementos diametralmente
opostos, mas que se reforçam mutuamente. Nesse contexto amplo e reconhecido tanto pelos
indivíduos quanto coletivamente, a Justiça torna-se um importante, senão o principal fator de
agregação. Uma utopia ativa que, embora incompleta, nos inspira, nos define e orienta as nossas ações
em sociedade. Uma utopia prática, que precisa:
•=
sempre de um esforço a mais para ser realizada;
•=
inspirar, ser desejável e percebida como algo que deve e precisa acontecer;
•=
ser a crítica do sistema existente, uma totalidade na sua essência diferente do estabelecido;
•=
pressupor incerteza, tarefa inacabada, que somente por força de deliberada intervenção
individual e coletiva pode ser concluída.
Justiça Restaurativa
No decorrer da década de 90 a discussão sobre a reforma do Judiciário restringiu-se a propostas de
tipo “estrutural” - simplificação processual, atualização de procedimentos administrativos,
intervenção na formação de bacharéis, promotores e juízes de Direito - que deveriam dar à Justiça
maior competência, celeridade e, quem sabe, uma imagem menos negativa. (Machado, 1994: 123) No
entanto, as evidências mostram que existem condições de eficiência mais importantes, pois, da mesma
forma que outros contextos sociais, a Justiça hoje carece de normas de conduta claras e bem definidas,
simples de comunicar, justas e consistentes na hora de implementar. Vista alternativamente como um
sistema de ação construído na perspectiva de intervenções configuradas a partir de uma 'matriz
organizacional' (Brancher, 1999), a Justiça deve estimular atuação institucional integrada, ajudando a
estabelecer comunidade de sentido, aclarar competências e redefinir normas de comportamento,
indicando com isso como agir e alcançar objetivos de modo mais adequado.
Mas que fazer na prática para tornar a Justiça, em particular a Justiça da infância e da
juventude, um sistema eficaz? Na opinião da Associação Internacional de Magistrados da Juventude e
da Família, é preciso capacitar o sistema a intervir rápida, certa e apropriadamente, livre de
contradições, por intermédio de:
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mecanismos para uma completa avaliação do menor desde o seu primeiro contato com
sistema e determinar o risco que ele representa para a comunidade, bem como as sanções
e intervenções mais adequadas em cada caso;
serviços de tratamento: conselhos familiares, assistência médica domiciliar, cuidados fora
da clínica (em casos de toxicomania, por exemplo) etc.
sanções cada vez mais severas e tratamentos cada vez mais sofisticados, quando o menor
não responde às primeiras intervenções ou a sua primeira infração foi particularmente
grave ou violenta. (McCarney, 1998:2)
No entanto, da mesma forma que as reformas puramente estruturais, essas diretivas são
dispendiosas e difíceis de implementar. Pior ainda, no seu bojo se abrigam profundas contradições.
Primeiro, o papel ambíguo outorgado às sanções "cada vez mais severas”. Em segundo lugar, a
reafirmação do papel do Estado e das entidades privadas como tutores in loco parentis , agentes com
poder de avaliar e classificar indivíduos desde a mais tenra idade. Por fim, a insistência em submeter
indivíduos problemáticos a tratamento “cada vez mais sofisticado”. Consequentemente, na falta de
um quadro coerente para, ao mesmo tempo, aplicar punição, incorporar e dar prioridade a objetivos
não-coercitivos, as diretivas acabam suscitando dúvidas quanto à viabilidade ou até mesmo a
desiderabilidade de uma Justiça em separado para crianças e adolescentes. (Bazemore e Umbreit,
1997:148)
Na verdade, a incapacidade de reabilitar não se deve às “deficiências” do sistema de justiça,
mas à unidimensionalidade do modelo repressivo que ele utiliza, o paradigma retributivo, a contradição
entre punir e reabilitar, que se expressa, de um lado, na intenção de atender necessidades coletivas excluir o "elemento perigoso" e mostrar ao criminoso de qualquer idade que sua conduta é abjeta e
passível de rigorosa punição - e, ao mesmo tempo, satisfazer carências individuais (em particular de
jovens infratores) por meio de tratamento, serviços especializados e programas de reabilitação.
Em uma outra obra já mostramos que as contradições do paradigma retributivo podem ser
resolvidas ampliando-se o quadro das opções atualmente oferecidas, tornando o uso e a finalidade
das sanções consistentes com as premissas da reabilitação e da segurança pública, por intermédio de
um outro paradigma. (Scuro, 1999) Desde os anos setenta e em particular durante a última década
internacionalmente cresceu o prestígio de uma corrente reformadora, o movimento restaurativo, cujas
propostas vieram alterar profundamente a natureza dos resultados que o sistema de justiça
atualmente produz. Do ponto de vista desse movimento, definir justiça envolve os seguintes
pressupostos:
•=
Infrações não são atos lesivos apenas à lei e ao Estado, mas acima de tudo aos indivíduos
e relacionamentos, pois resultam em danos às vítimas, às famílias, às comunidades e aos
próprios infratores;
•=
O objetivo essencial do processo legal é fazer justiça, através da reconciliação entre as
partes e da reparação dos danos causados;
•=
Conflitos são resolvidos melhor facilitando-se o envolvimento das vítimas, dos infratores,
das famílias e das comunidades.
MODELOS DE JUSTIÇA: PRESSUPOSTOS
Justiça Retributiva
Justiça Restaurativa
Crime: categoria jurídica, violação da lei, ato
lesivo ao Estado
Controle da criminalidade: função precípua do
sistema penal de justiça
Compromisso do infrator: pagar multa ou
cumprir pena
Crime: ato lesivo a pessoas e comunidades
Controle da criminalidade: primordialmente uma
obrigação da comunidade
Compromisso do infrator: assumir
responsabilidade e reparar o malfeito
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Crime: ato individual com responsabilidade
individualizada
A pena é eficiente quando:
. a ameaça de punir previne o crime
. a punição muda o comportamento
Vítima: elemento marginal no processo judicial
Infrator: definido por seus defeitos e carências
Foco: estabelecer culpa por eventos passados:
Cometeu o crime ou não?
Crime: ato com dimensões individuais e sociais de
responsabilidade
Punir só não adianta para mudar
comportamentos, além de desagregar
comunidades e relacionamentos
Vítima: elemento central no desenrolar do
processo e na solução dos problemas criados pelo
crime
Infrator: definido por sua capacidade de restaurar
o dano que causou
Foco: resolver problemas, determinar
responsabilidades e obrigações no presente e no
futuro: Que precisa ser feito?
Ênfase em diálogo e negociação
Reconciliar para compensar as partes e restaurar o
dano
Comunidade: facilitador do processo restaurativo
Ênfase em antagonismos
Impor perda e sofrimento para punir, coibir e
prevenir
Comunidade: marginalizada, representada em
abstrato pelo Estado
Zehr (1990), Scuro (2000:103)
O interesse no modo restaurativo de fazer justiça surgiu nos anos setenta, com programas de
reconciliação e mediação entre vítimas e infratores. Anos depois adquiriu status de engenharia social.
Nos países mais avançados agora proliferam projetos que vão além da simples mediação de conflitos,
simplesmente resolver diferenças usando meios diversórios para manter as partes longe dos tribunais,
limitar-se a avaliar o impacto das infrações sobre as vítimas e demonstrar simpatia por elas, ou então
administrar Justiça em comunidades etc. Os defensores da Justiça Restaurativa não mais se referem a
ela como uma mera adição ou reaproveitamento do que já existe. Falam de um “novo paradigma”,
veículo de princípios pelos quais tudo quanto hoje se pensa acerca de justiça deve ser definitivamente
reordenado.
A Justiça Restaurativa encara [por exemplo] crime como um mal causado, acima de tudo,
a pessoas e comunidades. O nosso sistema legal, que enfatiza apenas as normas e as leis,
freqüentemente perde de vista essa realidade. Em conseqüência, faz das vítimas uma
preocupação secundária, quando muito. Por seu turno, a ênfase no dano implica
considerar antes de mais nada as necessidades da vítima e a importância desta no
processo legal. Implica, ademais, em responsabilidade e compromisso concretos do
infrator, que o sistema convencional interpreta exclusivamente através da pena, imposta
ao condenado para compensar o dano, mas que, infelizmente, na maior parte das vezes, é
irrelevante e até mesmo contraproducente. (Howard Zehr, "Restorative Justice: The
Concept", Corrections Today, dez. 1997, p. 68)
Do ponto de vista retributivo dar ao infrator "o que ele merece", isto é, a própria punição, é
considerado como sendo uma forma de tratamento, que na prática resulta em custos e prejuízos cada
vez maiores, em períodos de internação cada vez mais longos e no surgimento de criminosos cada
mais jovens e perigosos. Na mente de juízes, promotores, legisladores e da opinião pública, o impacto
da retribuição se deve à relação direta entre pena, desaprovação do comportamento proscrito e
eventuais conseqüências adversas para o infrator. Por sua vez, por estar circunscrita a esse esquema, a
função tratamento não consegue estabelecer um vínculo claro com a infração. Concentra-se, da mesma
forma que a função punitiva, unicamente nos motivos e nas necessidades do infrator, do qual, todavia,
nada se exige, a não ser passiva submissão a um regime tutelado de benefícios custeados pelo
contribuinte.
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Tal relação - assim como os pressupostos e a idéia de castigo eficaz - há séculos é contestada.
Provavelmente desde quando Pietro Verri (1728-1797) e Cesare Beccaria (1738-1794) pela primeira vez
se rebelaram contra os abusos de poder e as torturas infligidas a acusados e condenados pela Justiça.
Beccaria em particular, acentuou as funções preventivas da punição: inibir o descumprimento da lei,
obrigando o indivíduo a calcular as conseqüências de seus atos. Para isso, "a certeza do castigo",
mesmo moderado, mais que a severidade da pena, causaria a impressão mais forte, por intermédio do
"receio de algo ainda mais terrível, porém combinado com a esperança de impunidade". Um século
depois, Émile Durkheim (1858-1917) mostrou que o papel do componente punitivo no aprendizado
moral do indivíduo não deve ser limitado a intimidar ou fazer sofrer o infrator. Como “punir é
repreender”, dizia ele, o melhor castigo deve impor culpa de forma "expressiva" e ao menor custo.
A questão, pois, não é judiar do infrator, nem ameaçá-lo ou aterrorizá-lo, mas reafirmar uma
obrigação no momento em que esta foi infringida, para fortalecer o sentido do dever, tanto do infrator
quanto daqueles que testemunham o ato infracional, as pessoas que a infração tende a desmoralizar.
Desse modo, a sanção expressiva promove solidariedade no seio da coletividade e solução pacífica das
diferenças, ao passo que a sanção retributiva semeia a estigmatização (o infrator fica “marcado”), a
humilhação e o isolamento, elementos que impedem o infrator de readquirir seu amor-próprio e o
respeito da comunidade, prejudicam sua capacidade de refrear seus instintos e exacerbam a influência
de fatores de risco ligados a futuros atos de delinqüência. Enfraquecem, impedem o amadurecimento
das relações comunitárias, de companheirismo e laços de família. Além disso, aplicado de forma
continuada, o castigo torna-se ineficaz, atenuando o sentimento de vergonha e o moralismo do
infrator. Castigo e o próprio processo penal acabam levando o infrator a concentrar-se em si mesmo,
não em suas vítimas e na coletividade. Aprende a suportar o castigo sem assumir qualquer
responsabilidade por seu comportamento abjeto. (Scuro, 2000:96)
Por outro lado, quando em vez de castigar a Justiça prefere “tratar”, a responsabilidade do
infrator pela falta que cometeu é minimizada ainda mais. Tanto quanto a opção pela punição, a
‘função terapêutica’ opera segundo uma lógica circular, focalizada apenas no infrator. Tal como a
função punitiva, para resolver os problemas gerados pelo crime, violência e desordem, o modo
terapêutico descarta todas as outras personagens fundamentais do processo. Em primeiro lugar, a
vítima, que, sem direito a informação, assistência ou restituição, não tem qualquer participação
significativa. Em segundo, a comunidade, elemento essencial na implementação de sanções, para
reabilitar e implementar medidas de segurança. Faces da mesma moeda, tratamento e castigo são
unilaterais, insuficientes para integrar infrator, vítima, família e população, pois simplificam o
problema reduzindo-o inteiramente à pessoa do infrator.
AS MENSAGENS DAS SANÇÕES
Pena
Infrator
O infrator é uma pessoa
ruim, um patife que
preferiu seguir o caminho
errado. Vai ser punido
com rigor e na exata
proporção do mal que
cometeu
Quando o infrator é
Vítima
punido, a vítima de certo
modo também se
beneficia.
Comunidade Quando o sistema de
justiça mostra aos
Tratamento
Compromisso
O infrator é um coitado,
uma pessoa problemática
que não tem exatamente
culpa pelo que fez. Para o
seu próprio bem, vamos
tratá-lo, cuidar dele.
O que o infrator faz tem
sempre conseqüências;
afeta pessoas, famílias e
comunidades. Ele não
pode fugir à
responsabilidade e tem de
corrigir o malfeito
A vítima é importante e
precisa fazer de tudo para
que o infrator repare o
dano que lhe causou.
O sistema de justiça
precisa da comunidade
A obrigação do sistema de
justiça é dar um jeito no
infrator, cuidar dele; não
da vítima.
O sistema de justiça não
precisa de ajudar, pois
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infratores que o crime não
compensa, beneficia
também a comunidade.
dispõe de meios e
profissionais qualificados
para cuidar do infrator.
para fazer o infrator
reparar o malfeito que
causou à vítima e à
sociedade.
Schneider (1985), Scuro (2000)
Historicamente o modelo retributivo acompanhou a evolução das comunidades, da escala
pequena para a grande, do meio rural para o urbano e daí ao Estado, que, cada vez mais centralizado
via no processo legal um valioso instrumento de dominação e afirmação de autoridade. Mas com isso
o sistema de controle paulatinamente perdeu suas raízes no seio da comunidade. A vítima desde o
primeiro momento também perdia o seu lugar no processo, que passou a ser ocupado exclusivamente
pelo infrator e pelo Estado. Em seguida, a jurisdição estatal transformou a restituição (à vítima) em
retribuição (recolhida pelo Estado), em fontes de recursos (multas) e de renda (custos do sistema de
justiça).
Justiça em contexto
Do ponto de vista jurídico não é novidade enfatizar os direitos das vítimas. O próprio modelo
retributivo admite a utilização de “métodos vitimológicos” que compreendem ressarcimento,
reparação, mediação e soluções fora do ambiente judicial. Recentemente, no Brasil foi sancionada uma
“lei de penas alternativas” que prometia confiscar bens e valores dos condenados pela Justiça e
indenizar a vítima e seus dependentes. O principal destinatário dos recursos, porém, seria o
combalido sistema carcerário do País através da criação de um “Fundo Penitenciário Nacional”. Desse
modo, os interesses dos infratores e do próprio sistema de justiça continuariam a ter precedência em
relação às necessidades das vítimas e das comunidades, a não ser quando estas podem servir de
instrumento para aumentar a probabilidade da condenação e o período de detenção do infrator.
A Justiça restaurativa, por sua vez, não é justiça do ponto de vista dos “direitos das vítimas”,
que muitos advogados, juristas e legisladores, motivados por valores retributivos, consideram em
contraposição às garantias legais dos infratores, justificando penas mais rigorosas e um
endurecimento do sistema. Ao contrário dessa perspectiva punitiva extremada, o paradigma
restaurativo coloca a vítima no centro do processo, sem impor uma “opção” pelos direitos da vítima
por exclusão dos direitos do infrator. Acentua as necessidades da vítima, ao mesmo tempo que exige
do infrator assumir responsabilidades e obrigações. Compensa a impotência imposta no contexto
retributivo à vítima e ao infrator e pressupõe o envolvimento de um novo ator, a comunidade,
garantia de que, após o ato condenável ter sido sancionado o infrator terá a oportunidade de expressar
concretamente seu arrependimento. (Bazemore e Umbreit, 1997: 152)
A efetividade da segurança pública, da reabilitação e da punição passa ser considerada como
dependente do envolvimento direto de infratores, vítimas e comunidades, com ganhos de natureza
comportamental, material, emocional e cognitiva para esses três atores e para o próprio sistema de
justiça. Para as vítimas as vantagens se manifestam através do grau de reparação dos danos, da
extensão do envolvimento no processo judicial e do grau de satisfação dos atores com o processo e
seus resultados2. Os infratores ganham do ponto de vista cognitivo: entendem as conseqüências de
seus atos, reconhecem a sanção e têm a chance de desenvolver um sentimento de empatia em relação
às vítimas. As comunidades percebem que o processo de justiça efetivamente se realizou, chegou a bom
termo, contribuiu para que os infratores fossem denunciados e responsabilizados por seus crimes,
ajudou manter a paz, o sentido de comunidade e bem-estar social.
O processo de justiça restaurativa tem impacto sobre mais pessoas e resultados ainda
melhores que a pena e o tratamento aplicados segundo o modelo retributivo convencional. Através de
No processo retributivo a percepção da vítima da ação da Justiça restringe-se a momentos muito específicos do
processo: por exemplo, se a polícia aparece ou não quando é notificada, ou se o réu é inocentado ou recebe pena
“muito leve”. (Scuro, 2000: 15)
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seu principal mecanismo, as câmaras restaurativas, o paradigma pode ser viabilizado em praticamente
todo tipo de contexto - primário (família, comunidade) e formal (escola, empresa, Justiça) consubstanciado nas estruturas e características desses grupos, nas estruturas e características das
suas normas, de seus valores e de seus relacionamentos.
Que é uma câmara restaurativa?
Uma reunião de pessoas atingidas pelo comportamento causador de dano grave. Foro onde infratores,
vítimas e as pessoas que lhes dão sustentação encontram meios de reparar prejuízos e evitar a repetição
da conduta negativa.
Quem vai?
O infrator, a vítima, seus respectivos apoios e as pessoas que investigaram o incidente, sob os auspícios
de um organizador adequadamente preparado para (1) decidir quando a câmara deve ser convocada, (2)
selecionar, contatar e informar os participantes, (4) preparar e dirigir os trabalhos, (5) redigir um acordo
entre as partes. (6) avaliar os resultados, acompanhar os participantes e reproduzir conhecimentos.
O que acontece?
Os presentes têm chance de relatar os acontecimentos a partir do seu próprio ponto de vista, bem como
dizer o que se passou desde então. Todos devem adquirir um claro entendimento das conseqüências do
comportamento em questão e resolver o que vai ser feito para que os danos físicos e emocionais de
algum modo sejam reparados, bem como para minimizar efeitos negativos futuros. Um termo deve ser
lavrado e assinado por cada um dos participantes, que recebem cópia do acordo.
Quais são os resultados?
Os termos do acordo podem incluir pedido formal de desculpas, garantias de que o comportamento
prejudicial não voltará a ocorrer, ressarcimento dos danos (em dinheiro, quando apropriado), reparação
de danos materiais, serviço comunitário, compromisso de assumir doravante comportamento mais
adequado. Os resultados dependem da capacidade do grupo impor o cumprimento dos termos do
acordo.
Quanto dura?
Depende da complexidade e das circunstâncias do incidente, do número de pessoas envolvidas e
interessadas em tomar parte. A duração média esperada é de 90 minutos.
Quais são as vantagens?
As vítimas têm oportunidade e um foro seguro para dizer como foram afetadas. Desempenham papel
importante na decisão sobre a melhor maneira de reparar o dano sofrido e minimizar conseqüências
futuras. As famílias e as pessoas que dão sustentação também comentam o incidente e os seus
resultados. Os infratores, em vez de esquivar-se e distanciar-se das pessoas que prejudicaram,
confrontam os efeitos de seu próprio comportamento e assumem total responsabilidade. A câmara
restaurativa lhes oferece a oportunidade de retornar ao convívio da comunidade. Todos, por sua vez,
aprendem muito durante todo o decorrer do processo. (Scuro Neto, 1999.50)
O Estato da Criança e do Adolescente (lei 8069, 1990) reconhece que certos grupos primários,
no caso a família, têm obrigação de assegurar “com absoluta prioridade” a efetivação de uma
pluralidade de direitos. Como a tarefa é grandiosa e para habilitar a família a cumprir esses deveres,
protegendo integralmente os menores de idade no mais amplo sentido, o ECA prevê a garantia de um
amplo conjunto de prioridades (art. 4º, parágrafo único). Só que o faz no âmbito de uma
responsabilidade coletiva extremamente diluída, onde estão incluídas entidades abstratas - “sociedade
em geral” e “Poder Público” - à família é outorgado um papel impreciso. Mesmo assim,
indeterminada, a ênfase no grupo familiar se justifica. Em primeiro lugar porque ela é uma
comunidade natural, fonte de relações de dependência e interdependência, base do controle social.
Dessa perspectiva, não importa se há famílias para todos os gostos, de todo tipo ou tamanho; o
importante é a mutualidade de direitos e deveres que no seio da família - “natural” ou “substituta”
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(definido nos artigos 25 e 28 do ECA), “nuclear” ou “ampliada” - são vivenciados e constituem
fundamentos para relações sociais mais amplas.
A família é o sítio onde as crianças tomam conhecimento da ordem que reina no mundo que
as cerca e aprendem a suporta-la, usando um combinação de sentimentos e atitudes de conformidade,
rebeldia, evasão e conflito. Nesse processo de socialização o indivíduo aprende a conviver, mas
também a não deixar que a sua conduta seja inteiramente determinada pela ‘ordem social’. A família é
o lugar privilegiado da socialização “primária”, ao passo que fora dela, em contextos sociais
específicos, posteriormente tem lugar uma socialização de tipo ‘secundária’, sobre a qual falaremos
logo em seguida. A influência da família jamais cessa ou, pelo menos, não termina em uma
determinada idade. Quando saímos de casa e começamos a trabalhar, em vários aspectos ficamos
emancipados, nos tornamos independentes. Porém, de diversas maneiras, emocionais e sociais, nunca
deixamos de depender da família (e de outros grupos sociais determinantes na nossa ‘socialização
primária’). Por outro lado, há famílias que perdem o sentido e até mesmo desaparecem quando seus
membros se distanciam, morrem ou se divorciam. Ou, de forma menos dramática, se casam, têm
filhos, cunhados, sogros etc. Por conta dessas mudanças e, à medida que amadurecemos, os laços
familiares mudam, principalmente no que diz respeito ao significado de certos fatores sociais muito
importantes, como disciplina, amizade e respeito.
A base desse desenvolvimento são valores, normas e relacionamentos que consubstanciam o
processo interativo3 pelo qual são formados grupos e configuradas necessidades de aceitação, autoafirmação, envolvimento, amizade, alegria e sustentação espiritual. Grupos dependem da interação de
seus integrantes durante um tempo razoável e que estes reconheçam a si mesmos como parte de uma
unidade social distinta. Dependem de interação freqüente, do interesse em continuar interagindo, de
compartilhar normas e valores, de auto-conceituação congruente, de concepções semelhantes acerca
dos outros, de afeição mútua, de identificação com os outros membros e com o próprio grupo, de
consciência acerca dos limites do grupo e das implicações da ação que se realiza internamente.
Dito com outras palavras, os membros do grupo compartilham normas e valores. Graças a
contínua interação essas pessoas reconhecem de modo cada vez mais profundo o caráter comum das
normas e dos valores do grupo, identificam-se cada vez mais e percebem que as noções que possuem,
acerca dos outros e de si mesmos, são cada vez mais congruentes e ficam parecidas com as normas e
os valores dos demais membros do grupo. Com isso os relacionamentos ficam cada vez mais estáveis
e inevitáveis, geram reciprocidade entre os membros, uma ‘consciência de tipo’, um mútuo
reconhecimento de ‘fazer parte’ e tudo o que isso acarreta. Esse processo é tão determinante que ‘ser’ e
‘relacionar-se’ fica sendo para todos os efeitos a mesma coisa.
O mesmo processo se reproduz em todos os grupos, mas não da mesma maneira, pois os
grupos diferem em vários aspectos, inclusive na importância que têm para seus membros e para a
sociedade. Alguns os grupos ‘primários’, porém, são importantes tanto para os indivíduos quanto
para a sociedade.
Grupos primários se caracterizam por relações de associação e cooperação íntimas, face a
face. São primários em diversos sentidos, fundamentais em particular na formatação
social da natureza e dos ideais do indivíduo. Psicologicamente falando, o resultado da
associação íntima é uma certa fusão de individualidades em um conjunto comum, de
modo que muitos dos objetivos constituídos no próprio eu se confundem com a vida em
comum e as finalidades do grupo. ... As esferas mais importantes dessa associação íntima
... são a família, o grupo de crianças que brincam junto, a vizinhança ou o grupo das
pessoas mais velhas. Esses grupos são praticamente universais, estão presentes em todas
Interação social é um processo complexo, mesmo do ponto de vista aritmético. Por mais superficial que seja, o
relacionamento entre somente duas pessoas constitui um sistema social completo. Com mais um ator a situação
se complica substancialmente. Surgem relacionamentos entre A e B, B e C, A e C e entre todos os três. Com quatro
pessoas, considerando todas as combinações possíveis, o grupo oferece 26 relacionamentos diferentes. Em um
grupo de cinco há 57 relacionamentos. A cada nova pessoa que entra aumenta bastante a complexidade do grupo.
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as eras e em todos os estágios do desenvolvimento humano; são a base do que é mais
comum na natureza e nos anseios do ser humano ... São primários porque propiciam ao
indivíduo a sua experiência mais precoce e completa da unidade social, porque apesar e
em virtude de não se alterarem tanto quanto as relações de vivência mais elaboradas,
constituem a fonte mais duradoura de onde brotam experiências. Não são independentes,
refletem o espírito da sociedade no seu conjunto; são molas que impulsionam a vida não
apenas do indivíduo, mas também das instituições sociais. (Cooley, 1956:23-29)
Neste século a vida ficou tão organizada, urbana, noturna, impessoal e complexa, que a
influência dos grupos primários parece ter diminuído, ficado menos importante que a determinação
imposta por relações “secundárias”, frias, anônimas e instrumentais, que geram sentimentos cada vez
mais generalizados de isolamento, solidão, falta de compromisso e de sentido de fazer parte, de
associar-se e cooperar com algo que nos transcende. Mesmo assim, uma parcela cada vez maior de
pessoas parece sofrer com as contradições que resultam dessa conjuntura. Como demonstram, por
exemplo, certos itens do “código de ética” dos adolescentes infratores:
(Os internados não admitem) estupro, espancamento do pai ou da mãe, roubo de velhos,
delação e furto de colegas. Quem faz isso tem de ficar em uma ala separada, que
chamamos de seguro. Também é caso de morte ofender a mãe de alguém ou chamar o
colega de pilantra, que significa bandido safado, sem caráter. É essa cultura que os
teóricos que ficam dando palpite na Febem desconhecem. Eles acham, por exemplo, que é
autoritarismo nosso ordenar que os meninos fiquem com as mãos para trás quando estão
em fila. Só que eles não sabem o que significa para um menino de lá alguém encostar a
mão nas nádegas dele, ainda que sem querer. É a humilhação máxima, caso para briga
séria. Visita da família é proibido até olhar. A irmã do colega passa, pode estar toda à
vontade: o menino tem de baixar o olho. Vem a mãe, o irmão – os outros nem chegam
perto. Não incomodam, porque a hora da visita é sagrada. Agora, tem os que dividem a
sua com quem não recebe ninguém, e isso é uma das maiores demonstrações de amizade
que se pode ter lá. Você chama o companheiro, deixa ele ouvir as conversas do mundo lá
fora. Ele senta do lado da família, fica contente. Mas tem de ser muito amigo para dividir
a visita. O "jumbo" (cigarro), o sabonete que a família traz, dividem sempre. Juntam o que
ganham e distribuem entre os amigos que não têm visita porque a família mora longe.
Agora, o menino que tem família na cidade e nunca recebe ninguém é malvisto. A leitura
é que o cara que não merece a consideração da própria família nem da malandragem do
seu bairro é porque é muito safado. Fica isolado. (Antonio Gilberto da Silva, presidente
do sindicato dos monitores da Febem (SP). (Veja, 6.10.1999)
Grupos primários são contextos de relacionamentos entre indivíduos que investem
emocionalmente uns nos outros e no contexto como um todo, que se conhecem intimamente e
interagem referindo-se à ‘pessoa total’ do indivíduo, não ao seu papel ou status. Somente
relacionamentos com tais características têm efeito nesses grupos, impacto social e psicológico
bastante para afetar a estrutura e a dinâmica do grupo. Por essa razão o modelo restaurativo de Justiça
significa uma nova forma de entender os componentes emocionais dos conflitos humanos, bem como
da violência e da criminalidade, encarando esses fenômenos como oportunidade para introduzir
mudanças positivas em benefício de todos. Mudanças que requerem mecanismos para reparar danos e
reconstruir relacionamentos. Mecanismos que além das regras formais, impessoais, do sistema legal,
possam lidar com os sentimentos elementares que afloram na interação e nos quais se baseiam as
percepções de justiça dos grupos primários.
Partindo dessas premissas a forma mais acabada do paradigma são as câmaras restaurativas,
inicialmente introduzido pela polícia de Canberra (capital da Austrália) em um programa para cuidar
de infrações de trânsito sob influência de álcool ou violência e de crimes contra o patrimônio
perpetrados por adolescentes. Em 1997, uma ampla e escrupulosa avaliação (Projeto RISE) mostrou
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que as câmaras apresentavam nítida vantagem em relação aos procedimentos convencionais: quase o
dobro de resultados positivos no que diz respeito à prevenção de reincidência, mais satisfação das
vítimas (que, em 82% dos casos receberam desculpas ou restituição material, comparado com apenas
9% nos tribunais), melhor percepção de justiça acerca dos métodos empregados e dos resultados,
assim como em termos de custos. (Barnes, Sherman e H. Strang)
O impacto dessa experiência gerou enorme interesse na maioria dos países avançados e hoje
estão sendo implantados programas similares por diversas polícias. Na Inglaterra, por exemplo, desde
1998 onze distritos policiais da região do vale do Tâmisa aplicam três modos básicos de procedimento
restaurativo a infratores primários (apesar de casos de segunda reincidência ou mesmo terceira não
serem incomuns):
•=
câmaras restaurativas 'comunitárias', às quais, além do infrator, da vítima, amigos e
familiares, também comparece um representante da comunidade;
•=
câmaras restaurativas sem o representante da comunidade;
•=
medidas restaurativas supervisionadas por um moderador treinado, com a presença do
infrator e de seus amigos e familiares (mas não da vítima ou de representante da
comunidade).4
Num outro país - a Nova Zelândia, único exemplo de sistema integrado de justiça restaurativa
aplicada em todas as varas de adolescência - a abordagem é diferente, pois os magistrados acham que
a polícia não deve não influenciar os resultados das câmaras, de vez que “representa o interesse
público e, para ter alguma credibilidade, unicamente em defesa dele deve falar e agir"5. Em
conseqüência, nas câmaras neozelandesas os policiais não despontam como agentes condutores;
limitam-se a comparecer na qualidade de parte, como as demais. Os resultados alcançados pelos
neozelandeses não são desprezíveis, pois enquanto em outros países nos últimos anos a criminalidade
de adolescentes aumentou 10 a 15 vezes mais que entre os adultos, já no primeiro ano de implantação
das reformas na Nova Zelândia esse crescimento foi interrompido (75% menos adolescentes
compareceram diante dos juízes, em comparação como o ano anterior).
Contudo, os bons resultados não devem ser avaliados apenas quantitativamente, a ponto de
ofuscar os reais motivos do sucesso do procedimento restaurativo. A saber:
•=
respeito pelas pessoas e capacidade de agir como força agregadora;
•=
não ser monopolizado por operadores do Direito e outros agentes do Poder Público;
•=
satisfazer as vítimas;
•=
ajustar-se à maneira de ser da maioria dos grupos familiares e comunitários, e ser por eles
rapidamente assimilado;
•=
considerar as pessoas na sua integridade;
•=
descartar o paternalismo característico dos demais modelos de Justiça, principalmente da
Justiça voltada à infância e à adolescência;
•=
não pressupor a ação de um Estado monolítico, todo-poderoso;
•=
ser construtivo e acentuar esperança. (McElrea, 1998)
Não é só. As câmaras restaurativas apresentam ainda outra característica que as distingue e
diferencia dos procedimentos convencionais de Justiça. Por exemplo, no processo baseado em
oposição e contraditório, o conflito entre as partes é amplificado, desnecessário do ponto de vista
restaurativo pois nele não há dúvidas acerca dos fatos. Já os procedimentos de mediação e conciliação
enveredam pelo caminho oposto: ignoram ou evitam o conflito a todo preço, deixando de reparar
danos importantes e produzindo seqüelas emocionais graves. Esse não é caso das câmaras, que
Charles Pollard, chefe de polícia do Vale do Tâmisa, informou que em função das câmaras restaurativas já no
primeiro ano os problemas de violência e indisciplina nas escolas diminuíram em 50%, com reflexos positivos,
inclusive diminuição da criminalidade (comunicação pessoal, agosto de 1999).
5 Juiz Fred McElrea, comunicação pessoal ao Autor (abril de 1999).
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"permitem a expressão estruturada das emoções, incentivando uma paulatina redução de sentimentos
negativos e uma gradual maximização de emoções positivas". (Thorsborne, 1998: 8)
Justiça nas Escolas
Diversos países estão tentando lidar com o problema da violência nas escolas, só que nem sempre de
modo consistente. Na França, por exemplo, há dois anos o governo aplica um extenso plano (Plan
Gouvernamentale, 1997), cuja fase mais recente envolve centenas de estabelecimentos de primeiro e
segundo graus, reunidos em 10 sítios experimentais. Na fase anterior - ano letivo 1998-1999 - foram
registradas por trimestre 40 mil ocorrências de toda natureza, das quais 2,6% correspondentes a fatos
graves. Os dados sobre autoria e vitimização confirmam o que já foi observado em outros países: a
imensa maioria dos autores (86%) e das vítimas (77%) são alunos dos próprios estabelecimentos. Em
apenas 10-12% dos casos estiveram envolvidas pessoas estranhas e, como também se verificou em
outros países, a violência escolar varia muito de um lugar para o outro. Para endireitar as coisas o
governo francês propõe uma estratégia fundada em parcerias, educação moral e cívica no cursos
primário, reformulação dos procedimentos disciplinares e de sanções nas escolas secundárias, diálogo
entre adultos e adolescentes em “clubes anti-violência” e, para enfrentar casos graves dentro e nas
imediações das escolas, mais autoridade aos diretores para agir com rigor e maior margem de
manobra às autoridades (polícia e Ministério Público) para reprimir atos de violência no exato
momento em que acontecem.
Quando perguntaram ao ministro da Educação sobre a lógica do plano ele disse apenas: “nem
repressiva nem preventiva”, que a iniciativa é mais um esforço de “mobilização” da escola, tendo em
vista a convocação, dentro em breve, de “toda a sociedade”, das comunidades e associações locais,
empresas e meios de comunicação de massa. As primeiras reações ao plano não foram muito
positivas: as entidades de policiais lamentaram dizendo que “quando o jogo não tem jeito a polícia é
sempre o coringa”; os sindicatos de professores se declararam decepcionados não há proposta para
enfrentar as causas profundas da violência (condições de trabalho dos mestres, conteúdo e práticas
pedagógicas, desigualdade e discriminação) além de se responder a violência com meios igualmente
violentos (repressão, exclusão, moralização). A oposição achou o plano “incoerente”, as medidas
“parciais”, “fúteis” e que enfoque preventivo propriamente não existe. A federação dos pais de alunos
se disse “na expectativa”, mas receia que “as realizações do plano não estejam à altura dos princípios
anunciados pelo governo”. (Le Monde, 28.1.2000)
Enquanto isso, livre de tanto indecisão mais ainda sem financiamento, um projeto conduzido
por uma equipe multinacional de pesquisadores e sob a supervisão da Diretoria de Ensino da região
de Jundiaí, prevê não apenas reduzir índices de crime, violência e insegurança nas escolas, mas aplicar
justiça de forma adequada e eficiente, e promover confiança no ordenamento jurídico. Um dos
componentes desse projeto são as câmaras restaurativas, implementadas de acordo com condições
locais, articulando problemas no plano de relações intrapessoais e interpessoais específicas, em seus
múltiplos aspectos, gerando mudanças e contribuindo para transformar o sistema de justiça.
O relatório do primeiro ano do projeto - ano de planejamento - foi apresentado, em outubro de
1999, no plenário do Simpósio Internacional de Prevenção de Criminalidade (Pequim, China). A
proposta de delineamento do projeto foi considerada como sendo a melhor contribuição àquele
evento, atraindo a atenção da comunidade internacional: o CENTRO TALCOTT passou a fazer parte de
um grupo de assessores internacionais - ‘Grupo de Pequim’ - para ajudar o governo chinês na área de
prevenção de criminalidade. O delineamento do projeto foi aprovado por várias personalidades, entre
outras pelo Diretor do Scarman Centre (Universidade de Leicester, Inglaterra) e ex-diretor de pesquisa
da Scotland Yard.
Rendo homenagem à sua abordagem e a apoio integralmente. Longa experiência prática
e acadêmica me ensinou que não há abordagem melhor, capaz de nos ajudar a saber o
que realmente está ocorrendo e, ao mesmo tempo, identificar estratégias e táticas que
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efetivamente mudam comportamentos no sentido positivo. Gostei particularmente da
forma como o projeto foi delineado e da maneira como vocês ampliaram os resultados e
as experiências do estudo de Charleston [uma das referências teóricas do experimento de
Jundiaí]. Em especial, a utilização de câmaras restaurativas, pode representar uma forma
interessante de articular escolas, famílias e comunidade.6
Iniciativa de múltiplas vertentes, o experimento de Jundiaí conjuga teoria e prática, ação
afirmativa e pesquisa científica concebida e implementada por entidades comunitárias, mestres e
administradores de escolas públicas, sob a coordenação de uma equipe multinacional de
pesquisadores, consultores e educadores. Introduz um modelo e formas de tecnologia social para
induzir inovação e promover mudança de práticas e políticas inefetivas de educação e segurança
pública. Fundado em evidências (comprovação científica rigorosa) e implementado sob “pressão de
avaliação”, qualitativa e quantificada, o projeto assume a lógica e os contornos de um experimento
social controlado, envolvendo 26 escolas – quase 40 mil alunos – de ensino médio, para testar um
programa para melhorar condutas, prevenir desordem, violência e criminalidade, a partir de
indicadores relativos ao ambiente escolar.
As referências metodológicas do experimento são:
☛✝ Estudo de Charleston. Durante três anos na década de 80 um grupo de pesquisadores conduziu um
experimento controlado não equivalente em oito escolas de ensino médio no Condado de
Charleston (EUA). (Gottfredson, Gottfredson e Hybl, 1993) O objetivo foi testar um programa
visando melhorar a conduta de adolescentes, através de aumento da transparência e consistência
das regras disciplinares, melhoria da organização e administração das salas de aula, freqüência
maior de comunicação entre escola e as famílias dos estudantes, e reforço de comportamentos
adequados. Constatou-se que nas escolas onde o programa foi bem comunicado a mestres e
estudantes e devidamente implementado a conduta dos estudantes melhorou significativamente.
☛✝ Estudo de Queensland. De abril de 1995 a abril de 1996 a diretoria geral de ensino de Queensland
(Austrália) desenvolveu um estudo envolvendo 75 escolas de ensino fundamental, médio e
especial, para testar a efetividade da aplicação de “câmaras restaurativas” (school conferencing)
nesses estabelecimentos para resolver casos graves de violência e indisciplina. As câmaras foram
convocadas 56 vezes e o estudos avaliou o impacto dos incidentes sobre as comunidades, o grau
de influência da intervenção sobre o comportamento do infratores, o grau de percepção do
processo de reintegração por parte de vítimas e infratores como resultantes da intervenção, o
efeito da intervenção nas relações entre famílias, comunidades e escolas, impacto da intervenção
sobre o modo de proceder das próprias escolas, e efeitos sobre os índices de exclusão que
vigoravam anteriormente nas escolas.
Os objetivos práticos do projeto incluem, de um lado, ajudar as escolas a estabelecer
capacidade de auto-regulação da conduta de seus alunos, por meio de normas inteligíveis, claras
expectativas e condições físicas de segurança adequadas. De outro, encorajar as famílias a estabelecer
disciplina e vínculos emocionais nítidos e consistentes. Os resultados esperados: (1) aumentar a
transparência das normas e a consistência da sua aplicação; (2) melhorar de forma sensível a
organização e a administração das salas de aula; (3) incrementar a capacidade da escola de promover
comportamentos adequados e elevar a freqüência de sua comunicação com as famílias e a
comunidade.
No âmbito do projeto, as evidências são extraídas tanto dos métodos de investigação quanto
da prática diária. Pesquisadores e atores (escolas, famílias, comunidades) compartilham a
responsabilidade de implementar o programa, os componentes são apoiados pelas estruturas e
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Anthony Burns-Howell, comunicação pessoal ao Autor (3.1.2000)
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atividades organizativas das escolas e, as fontes de conduta problemática são abordadas em múltiplos
níveis. A meta é capacitar, desenvolver o contexto escolar através de comunicação, colaboração e
planejamento, dando ênfase à implementação consistente do projeto tendo em vista seus objetivos
iniciais. Para resolver casos difíceis, reparar danos e minimizar futuras conseqüências negativas,
visando reconstruir as relações entre escola e sociedade, o projeto inclui um componente adicional:
supervisionar a conduta dos alunos não ser função exclusiva da escola, mas de todos os adultos da
comunidade cujo centro é a escola. Todos participam de um processo ('câmaras restaurativas') de
formação de um novo sentido de comunidade e cidadania, baseado na restauração de
relacionamentos corrompidos por comportamento desregrado, violência e, eventualmente,
criminalidade.
Premissas de implementação
Pesquisa e políticas dirigidas à área social geralmente não rendem o desejado porque as
intervenções não são implementadas da forma delineada e seu quadro teórico é obscuro,
desarticulado. A solução é - ao lado da consistência teórica e da forma pela qual os parâmetros
do projeto são monitorados - fortalecer o modo de implementação das intervenções, ou seja,
•= aproximando pesquisa e implementação
•= identificando e medindo as variáveis mais adequadas
•= incorporando os papéis e as atividades de quem concebe, implementa e avalia
•= concentrando-se em mudanças de caráter normativo
•= privilegiando transparência
•= enfatizando comunicação, colaboração e planejamento
PREVENÇÃO DE DESORDEM, VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE (EXPERIMENTO JUNDIAÍ)
Características selecionadas das escolas (pré-teste, 1999)
Número
da escola
Número
de alunos
% de alunos
defasados
% de alunos
no noturno
Localização*
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
2029
1888
1893
1198
1352
1494
1335
1291
1371
683
2023
1371
863
1869
1140
1373
1719
1814
1033
1285
793
881
72.4
73
66.9
66.8
64
35.6
35.1
36.9
76.6
76.2
90.3
79.8
52.7
64.1
29.6
66.7
31
41.4
36.5
58.6
59.6
28.4
29.9
36.3
30.7
27
21.3
29.9
22.4
35.4
44.6
35.2
50.9
31.9
40.3
33.6
36.4
32
35.2
45.9
51.3
40.1
45.6
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23
24
25
26
Total
Média
1194
1940
877
1570
36966
1369
49.3
67.6
73
55
46.2
43.9
34
37
P
P
C
C
* C = centro P = periferia
Na perspectiva do projeto as câmaras restaurativas deverão funcionar segundo princípios
avançados de justiça e democracia, como um instrumento transformador de conflitos7, diferente do
processo hierárquico, lento e cerimonioso que vige nas cortes de Justiça, pois
•=
as preferências de todos os participantes (não importa a idade ou o status de
culpabilidade) serão consideradas em pé de igualdade;
•=
os pontos de vista conflitantes serão debatidos sistematicamente, frente a frente em um
contexto deliberativo reunindo um grupo pequeno de pessoas;
•=
parte significativa das pessoas afetadas estará envolvida no processo deliberativo;
•=
a ninguém será negado o pleno exercício de seus direitos essenciais.
Sempre que um incidente der ensejo a conflito particularmente grave, as câmaras oferecerão a
possibilidade de transformá-lo, permitindo às pessoas atingidas expor sua versão dos fatos e entender
as repercussão total dos acontecimentos. Os participantes podem expressar, compartilhar emoções e,
gradualmente, a proporção a favor de sentimentos negativos, desagregadores é invertida.
Eventualmente, os participantes tomam consciência de que formam uma comunidade preocupada
com o mesmo problema. A partir daí, dispõem de meios para trabalhar em conjunto, reparar danos e
minimizar futuras ocorrências negativas. Os conflitos são encarados de frente, as conseqüências
danosas são rejeitadas; não se procura desculpá-las ou ignorá-las, como usualmente acontece.
Transformando conflitos no plano individual e em microcomunidades as câmaras restaurativas
constituem um instrumento restrito, parcial; não mais que uma promessa de mudança em um nível
inferior de abstração, fundado em conceitos operacionais bem definidos para uma gama limitada de
fenômenos envolvendo fatores de ordem intelectual, emocional, física e espiritual. São resultado de
colaboração que pode ser descrito por componentes ou modos de tratamento, destinados a modificar
comportamentos, atitudes, status de indivíduos ou organizações
Em Jundiaí a fase de planejamento transcorreu durante o ano de 1999, incluindo montagem da
equipe de pesquisa (comitê gestor e equipe de implementação), delineamento do experimento, seleção
de escolas e pré-teste, da forma com ficou exposto no termo de referência. No mês de março de 2000, o
Comitê Gestor resolveu dar início à segunda fase do projeto, que deverá ser implementado em tempo
menor (um ano e meio) e com menos “vacinas” (em lugar dos cinco componentes modificadores, de
caráter ético e social, a princípio previstos). A opção pelo formato “simplificado” (experimento em
menor escala), que deve manter o caráter representativo e probabilístico previsto no delineamento
completo, de forma a produzir resultados reprodutíveis, foi motivada pela necessidade de criar um
efeito demonstração a favor do projeto e não desperdiçar o investimento já aplicado.
Dessa forma, o Comitê Gestor viu-se obrigado a usar “mecanismo de superação”: pedir que
pesquisadores e com o membros da Equipe de Implementação (diretores e professores das 26 escolas
incluídas no experimento), sem remuneração, conduzam o projeto de forma reduzida, com apenas
dois componentes: revisão de política disciplinar e câmaras restaurativas. A proposta do CG é, primeiro,
Transformação de conflitos requer estratégias de longo prazo, voltadas às causas dos problemas, à recuperação
dos relacionamentos e à restauração do tecido social e comunitário, em todos os níveis e situações complexas,
persistentes de conflito potencial ou violento.
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validar interna (modo pelo qual um determinado estudo testa causa e efeito) e externamente8 um
questionário sobre o clima nas escolas, para ser aplicado imediatamente a alunos e professores. Em
seguida, elaborar uma estratégia e um cronograma para rever a política disciplinar nas escolas.
Finalmente, trazer a professora Margaret Thorsborne, que coordenou o projeto pioneiro de
implantação de câmaras restaurativas em escolas da Austrália, para treinar os membros da equipe de
implementação.
Ambiente escolar
A qualidade da educação não é função apenas de resultados acadêmicos. A efetividade do ensino e
do aprendizado depende também dos recursos que a escola dispõe e da segurança que oferece, do
compromisso das famílias com a educação de seus filhos e, de diversidade, i. é., características que
influenciam o ambiente.
CLIMA
Consumo de álcool e drogas
Interfere no raciocínio, reduz o desempenho dos alunos e está relacionado com crimes
violentos.
Vitimação
Violência nas escolas reduz a efetividade do ambiente escolar e expõe alunos,
funcionários e mestres a riscos físicos e emocionais.
Medidas disciplinares
Modo prático de lidar com indivíduos problemáticos (de desempenho medíocre não
apenas na escola, mas também no trabalho e na família), que revela todavia a existência
de um clima generalizado de desordem.
Envolvimento das famílias
Satisfação dos mestres
As atitudes e percepções dos mestres determinam a qualidade do ensino e do
aprendizado e o ambiente na escola (em particular nas salas de aula).
Percepções acerca dos problemas dos alunos e de suas famílias
DIVERSIDADE
Características das famílias
Composição étnica, racial e de classe
Deficiências dos alunos
Alunos que trabalham
Validade externa: avaliar até que ponto os resultados de um estudo podem ser generalizados, por meio de
repetição ou “replicação” dos experimentos, para evitar incerteza acerca da validade de políticas e projetos de
caráter preventivo.
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Das 26 escolas que faziam parte do delineamento original, foram escolhidas onze, segundo a o
grau de motivação demonstrado por seus diretores e coordenadores. Nessas escolas o experimento
deve evoluir segundo os seguintes passos:
1. Validar (verificar se os instrumentos realmente medem o que dizem medir) um
questionário sobre o clima nas escolas, para ser aplicado ainda no primeiro semestre de
2000 a alunos e professores;
2. Definir um cronograma para coletiva revisão (alunos, docentes, diretores e responsáveis
pelos alunos, entre outros interessados) da política disciplinar nas escolas;
3. Capacitar (através de um programa de treinamento) os membros da equipe de
implementação na condução das câmaras restaurativas (pretende-se contar com a
professora Margaret Thorsborne, que coordenou o projeto pioneiro de implantação de
câmaras restaurativas em escolas da Austrália);
4. Após seis e dezoito meses, de plena implementação das novas políticas disciplinares e das
câmaras restaurativas, reavaliar o clima nas escolas;
5. Quantificação dos resultados e qualificação dos sucessos e insucessos;
6. Divulgação dos resultados do experimento.
EXPERIMENTO JUNDIAÍ
Componentes (“vacinas”)
Revisão da
política
disciplinar*
Regras mais
transparentes
Infrações
especificadas
Regras aplicadas de
modo mais
consistente
Conduta adequada
premiada e
comportamento
indesejável
sancionado
Sistema de
rastreamento de
condutas
Organização e
administração de
sala de aula
Treinamento
Comunicação mais
freqüente entre
escola e famílias
Orientação das
famílias sobre os
padrões de conduta
que a escola
privilegia
Sistema de
rastreamento de
conduta
(SIRACON):
registra informações,
lista punições
(alunos e mestres),
produz relatórios
Reforço de
comportamento
positivo
Reestruturação
do contexto:
Câmaras
restaurativas*
Treinamento
Alunos e
mestres
entendem o que
se requer em
termos de
comportamento
Alunos
compreendem
má conduta e
suas
conseqüências
Má conduta
contestada de
forma
consistente e a
partir de regras
explícitas, e
aclaradas suas
conseqüências
Alunos
problemáticos:
tratamento especial
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* componentes do formato ‘simplificado’
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