UMA LISTA DE COMPRAS PODE SER POESIA? Os cisnes

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UMA LISTA DE COMPRAS PODE SER POESIA? Os cisnes
UMA LISTA DE COMPRAS PODE SER POESIA?
Os cisnes selvagens de Coole
As árvores estão em beleza de outono,
No bosque os trilhos estão secos,
Sob o crepúsculo de Outubro as águas
Reflectem céus quietos;
No lago que por pouco suas margens transcorre
Estão cisnes, cinquenta e nove.
Já o décimo nono outono sobre mim caiu
Desde essa primeira contagem;
Vi-os, antes de ter chegado ao fim,
De súbito elevarem-se
'spalhando rotação em argolas quebradas
Nas suas clamorosas asas.
Tais brilhantes criaturas contemplei,
E agora o coração tem mágoa.
Tudo mudou desde que, após eu ter ouvido,
No ocaso antigo desta margem,
Sobre a cabeça o toque-de-sino do voar,
Optei por um mais leve caminhar.
Não cansados ainda, amante junto a amante,
Eles remam nas frias
(tradução de Pedro Ludgero)
E gregárias correntes ou escalam o ar;
São corações sem velharia;
Paixão, conquista, errância a bel-prazer,
Ao seu serviço ainda hão-de ter.
Mas agora el's flutuam nas águas paradas,
Tão belos e enigmáticos;
Entre que juncos construirão,
Junto a que orla de lago ou charco
Mostrarão seu encanto, quando eu despertar um dia
E perceber que eles partiram?
William Butler Yeats
“Vamos para Moscovo em Junho, mas até lá ainda faltam Fevereiro, Março, Abril,
Maio…”
(Irina em “Três irmãs” de Anton
P. Tchekhov)
Qualquer fala de uma peça de Tchékov obriga a que a personagem que a
exprime se fale sempre por inteiro. Daí a especial densidade que encenadores, actores, e
público reconhecem nos diálogos aparentemente simples do escritor russo. Neste
exemplo acima transcrito, Irina, a mais nova das três irmãs (que tudo o que deseja é sair
da pequena cidade de província na qual não tem expectativas de uma vida satisfatória,
para assim poder regressar a Moscovo, onde passou uma infância feliz, e que por isso
mesmo confunde com um lugar de esperança), diz algo de terrível, apesar de não ter
consciência disso. Pois as três irmãs nunca chegarão a ir para Moscovo. E assim,
Fevereiro, Março, Abril e Maio, sofrerão um processo de adensamento e passarão a
representar muito mais tempo do que aquele que na verdade representam. Serão o
símbolo do interminável tempo da infelicidade, a multiplicação dos dias correntes da
vida por todo o tédio do mundo. Mas convém sublinhar que Tchékov não escreveu:
Vamos para Moscovo em Junho, mas até lá ainda falta tanto tempo… Não. O
dramaturgo deu-se ao trabalho de enumerar os meses que faltariam até à esperada
libertação. Porquê? Será Irina um pouco masoquista, e assim especifique o nome de
cada mês para sentir a dor da espera de forma mais detalhada? Ou, pelo contrário, dirá
cada um daqueles nomes como se já saboreasse de antemão o ponto de chegada? Como
se cada palavra fosse uma guloseima que permitisse antecipar, por um processo
especificamente literário, o festim final?
Isto coloca-nos perante o problema da enumeração enquanto recurso criativo.
No seu poema “The wild swans at Coole”, o poeta irlandês William Butler
Yeats encena uma tensão entre dois números que confere todo o mistério a uma
temática razoavelmente tchekhoviana: a perda de alegria, de esperança, de vitalidade.
Num cenário outonal, o poeta contempla os cisnes selvagens que se banham nas águas
da região de Coole. São cinquenta e nove. Não sabemos se esse número, que nada tem
de mítico, se refere a algum dado oculto, mas concreto, que altere o sentido do poema.
Seja como for, a imposição de um número concreto a uma realidade que se pretende
lírica, é desde logo causadora de estranheza onírica.
Logo a seguir, o poeta lembra-se de ter contado esses cisnes, no mesmo local,
dezanove anos antes. Os dois noves postos em cena estabelecem, de imediato, uma
relação entre os dois números. São números prestes a descambarem na dezena, na
iminência de serem arredondados por adição. Todavia, a diferença entre eles é abissal.
Pois enquanto os dezanove anos se referem a uma passagem do tempo (é um número
dinâmico, ainda que lentamente dinâmico), havendo aqui um progresso, os cinquenta e
nove cisnes são a matemática do instante em que o poeta os contou, compõem uma
evidência vertical.
Os cinquenta e nove cisnes do passado são a imagem que determinou a
emotividade do sujeito lírico, imagem essa que se cristalizou e manteve alguns dos seus
elementos imutáveis, apesar de ter perdido força com a decadência de vitalidade desse
sujeito. A imagem envelheceu adquirindo tons sépia (tornou-se outonal, como uma
fotografia), mas o que não envelheceu foi o número: cinquenta e nove. O poeta afirma
mesmo que os cisnes continuam a ser movidos pela paixão e pela conquista, ao
contrário dele mesmo. Quer tomemos os cisnes por representantes da Natureza (a vida
permanece espiritualmente inalterada em tudo aquilo que não é humano), quer sejamos
exegetas mais modestos e apenas os consideremos uma imagem casual (um acaso
poético que juntou a visão de um grupo de cisnes selvagens a uma génese de esperança),
estamos sempre perante a tensão entre um número cristalizado (o cinquenta nove) e um
número dinâmico (o dezanove); ou seja, entre uma numeração (a atribuição estável de
um número) e uma enumeração (uma sucessão de números).
O que daqui queremos aproveitar não é a temática filosófica do estável contra o
mutável, mas a ideia de que, quando um criador se aproxima do artifício da enumeração
(neste poema, é ainda uma aproximação), o faz geralmente para aproveitar o conflito
dramático entre um número específico, estático, e protagonista, e um conjunto de
números secundários em evolução, conflito esse que cria o verdadeiro resultado
semântico potenciado pelo recurso estilístico. O número que aqui está em destaque não
é propriamente o 59. Pois, na medida em que é um número invariável, em que é uma
recordação congelada, torna-se claro que ele funciona como metáfora para o número
UM – o número absoluto, acabado, imóvel, eterno, que só pode ser desfeito pelo
despertar de um longo sono (a passagem para 60 – entrada em cena do zero, do qual
falaremos mais à frente).
Se agora analisarmos um poema que recorre especificamente à enumeração,
podemos entender toda a força que o procedimento pode obter. Falo do magnífico “The
goblin’s market”, texto em que Christina Rossetti, poeta pré-rafaelita, parece ter
conseguido superar-se a si mesma.
O texto é suficientemente complexo para acolher os mais diversos exercícios de
curiosidade. Imbuído do ar de um tempo vitoriano, o poema interessará tanto aos
puritanos que nele verão uma moral exemplar (uma adolescente condenada por ter
sucumbido a um prazer proibido, redimida apenas pela coragem astuta da irmã), como
àqueles religiosos que assumem o seu fascínio pelas diversas dimensões do prazer, e
que, por isso mesmo, são especialmente sensíveis à criatividade da tentação (os frutos
que os gnomos vendem à jovem constituem um desregulado espectáculo para os
sentidos, espectáculo ao qual a poeta dá o necessário provimento estilístico). Para além
disso, Christina Rossetti construiu o seu poema narrativo como se fosse um conto de
fadas, cheio de subtis achados feéricos acompanhados de segundos, terceiros (e etc.)
sentidos, opção que tanto agradará às crianças cujo gosto literário ainda não esteja
demasiado formatado, como aos mais sofisticados leitores.
Passando ao lado de um assunto (a força do elo fraterno) que, no texto, nos
parece deveras importante, mas que não releva para o que aqui se pretende discutir,
centremos a nossa análise na questão da enumeração.
Quer-nos parecer que a principal fonte de prazer que o texto confere ao seu leitor
é o seu uso obsessivo (o abuso) da enumeração. É como se esta poeta, aparentemente a
mais casta do polémico grupo pré-rafaelita, fosse tão impressionável como a sua
protagonista, e não fosse capaz de se distanciar das múltiplas formas de prazer
prometidas não tanto pelos frutos proibidos (isso pertence à ontologia da personagem),
mas pela evocação desses frutos. A partir do quinto verso, os gnomos enumeram a sua
mercadoria (com tanta excitação que encavalitam mais de um fruto por verso), e logo ao
quinto elemento lhe acrescentam o afecto da adjectivação (plump unpecked cherries),
processo que será repetido várias vezes, com liberdade cada vez maior (como exemplo:
bright-fire-like barberries). Neste enorme pregão, tudo o que aprendemos sobre os
frutos ou é lírico (o sabermos que as limas vêm do Sul não é um dado mercantil, mas
um desvio mítico) ou musical (a repetição que a língua inglesa permite da partícula
berry), ou seja, tudo se relaciona com o propósito de fantasiar em torno do sabor dos
frutos. Mas o mais importante é que esta estratégia será aplicada à totalidade do poema
– a autora usa a enumeração para a descrição dos caracteres (One had a cat’s face,/ One
whisked a tail,/ One tramped at a rat’s pace, etc.), das acções (One hauls a basket,/ One
bears a plate,/ One lugs a golden dish, etc.), dos estados de espírito (One content, one
sick in part;/ One warbling for the mere bright day’s delight,/ One longing for the night,
etc.), para o exercício da comparação (Like a rush-imbedded swan,/ Like a lily from the
beck,/ Like a moonlit poplar branch, etc.), ou da personificação (Moon and stars gazed
in at them,/ Wind sang tothem lullaby, etc.). Ou seja, Christina Rossetti prolonga a
volúpia apregoadora dos seus gnomos (caracterizada pela diversidade de oferta, e pelo
embelezamento pseudo-publicitário dos produtos) na elaboração do próprio texto.
Não pretendemos salientar nem a riqueza (tanto em quantidade como em
qualidade) das imagens assim conseguidas, nem o desconforto irreverente deste abuso
da repetição (um trabalho notável a partir dos pressupostos formais da ladainha), nem a
presumível nostalgia da escritora por uma realidade que apenas pode viver no seu texto
(diferimento que é uma das características fundamentais da enumeração). Nem mesmo
pretendemos chamar a atenção para o adensar afectivo que o texto provoca à medida
que vai sendo lido. Queremos, isso sim, sublinhar a relação que existe entre esta
estratégia retórica e a própria narrativa do poema, relação essa a partir da qual se pode
estabelecer uma proposta de interpretação.
O conto de fadas em análise retira a sua comoção do facto de que a incrível
variedade de frutos deliciosos só pode ser saboreada uma vez. Uma vez única. Ou seja,
e recapitulando o que dissemos sobre o poema de Yeats, o que aqui está em causa é um
conflito francamente dramático entre uma enumeração com tendência para a infinitude e
um número cristalizado que, neste caso, é assumidamente o número UM. Fica assim
encenado o dilema do prazer, nomeadamente o prazer sexual, enquanto actividade ao
mesmo tempo dada à profusão (só em Itália podemos ter 1003 relacionamentos
eróticos), e à singularidade (o parceiro não deve ser repetido, para que o prazer do sexo
não se torne prazer da rotina).
Como se resolve o dilema? A irmã que não está enfeitiçada vai comprar fruta
aos malévolos gnomos. Mas em vez de a ingerir, deixa que o alimento seja
(sensualmente) espalhado na sua pele. Assim, chegada a casa, faz com que a irmã
moribunda prove, de novo, o sabor dos mágicos frutos. Féerie à parte, torna-se evidente
o que aqui se passou: o número protagonista deixou de ser o UM, e foi superado pelo
DOIS (a jovem comeu duas vezes os frutos que só podiam ser comidos uma vez). Ou
seja, passamos do domínio do indivíduo, para a formação do par – no fim do poema, as
duas irmãs estão casadas.
Não nos parece que o texto se limite à apologia de uma moral convencional. O
que aqui está encenado de forma exímia, e para ser contado às crianças com aparente
inocência, é esse problema estranho que é a constituição de uma relação amorosa, que
implica que um indivíduo queira repetir (uma, duas, três vezes, até ao incontável) a
partilha do prazer sexual com outro indivíduo. O número DOIS traz uma inversão à
equação do prazer: em vez do UM se referir à singularidade de cada acto de prazer,
passa a referir-se ao indivíduo único que se torna destinatário de todos esses actos. O
DOIS traz uma humanização qualitativa (o amor) àquilo que, de outra forma, seria mero
gozo quantitativo.
Haveria muitos outros aspectos a referir a propósito de um acto tão simples
como a enumeração. Desde o mito da multiplicação (esse milagre de abundância
sucessiva a partir da escassez de uma ideia) até à aparentemente contraditória
preciosidade de cada indivíduo citado (se Irina explicita o nome de cada mês que falta
até à partida para Moscovo, é porque sabe que cada mês tem as suas características,
entre prazeres, tédios, e aflições, e que isso representa melhor todo teatro da espera do
que a genérica constatação da passagem do tempo), estão nela latentes o espírito de
pequeno coleccionador (nem todos podemos pagar um museu imaginário…), a vontade
infantil de desmontagem (o desejo de conhecer as peças concretas que compõem cada
abstracção), a viagem mental (os meses de Irina são carruagens no comboio da
expectativa; num certo sentido, ela pode mesmo estar em Moscovo quando quiser), e até
um certo espírito de aplanação apaziguadora. Em relação a este último aspecto, basta
notar que quando Stéphane Mallarmé escreve o verso “Solitude, récif, étoile” (verso
que, no fim das Poésies é ecoado em “Nuit, désespoir, pierrerie”), para além de mostrar
toda a sofisticação da sua oficina, faz com que as diversas dimensões que ele encontra
na actividade poética (não são apenas três; o facto de haver um verso paralelo muito
semelhante, mas não exactamente igual, sugere que talvez a enumeração pudesse ter
continuado) sejam niveladas num mesmo tom emocional e numa grandeza de olhar que
tende a confundir a obra com a vida.
No entanto, centramo-nos na ideia de jogo conflitual entre sucessão de números
e um número tutelar, para poder distinguir a enumeração do simples catálogo. Não
existe grande variedade ao nível deste número tutelar. Ele pode ser o UM (enquanto
representante do indivíduo, do eu, da unidade da vida, mas também do Ser, do absoluto,
de Deus), o DOIS (a consciência do outro, o par amoroso), eventualmente o TRÊS (a
tensão no afecto que permite a passagem ou para o colectivo, ou para o inúmero), o
INFINITO (especialmente se for o infinito finito de Alberto Caeiro, pois de outro modo
ele tende a confundir-se com o UM, que é a maldição do texto de Rossetti), e esse
terrível, o mais terrível entre os números, o ZERO (o não-ser, a morte, e, porque não, o
orgasmo). Afinal, há algo de tântrico no afastamento verbal que Irina efectua entre si
mesma e a sua ida para Moscovo… Lembramo-nos de um exemplo tremendo deste
recurso à tutela do zero, que pudemos ver uma vez num museu portuense: Ignasi Aballi,
artista acima de tudo catalogador, decidiu expor uma estante onde, supostamente,
deveriam ter estado arrumados alguns livros, mas em vez de mostrar esses livros (de
especificar a enumeração), apenas tornou sensível a deformação na madeira causada
pelo seu peso na estante, conseguindo assim representar, ao mesmo tempo, uma
presença (uma enumeração que só deixou o seu peso) e uma ausência (os livros já não
estão lá, a estante está vazia).
Ao contrário de Cesário Verde, que depois de enumerar Madrid, Paris, S.
Petersburgo, não sabe se o mundo é um monismo unificador ou um infinito de
probabilidades (e nessa hesitação reside a sua sugestão poética), Irina pensa que
Moscovo/Junho é um termo certo, um número concreto que terminará a sua
enumeração. Se assim fosse, o conflito matemático da sua fala ter-se-ia estabelecido
entre a citação concreta dos meses e o número UM (a espera monomaníaca, ou
Moscovo como obsessão única de felicidade). No entanto, Tchékov impõe um destino
terrível à personagem: Irina não irá para Moscovo. Nem no momento previsto na fala
em questão, nem mais tarde. O fim desesperado da peça leva-nos a crer que nunca a
personagem atingirá o seu Moscovo (cidade que acaba por tomar carga mais simbólica
que espacial). O termo certo, o número concreto a que Irina se agarrava como se isso
fosse uma espécie de hybris, esse número transformou-se numa hesitação desesperada
que ainda mais a opõe ao verso de Cesário. Pois Moscovo torna-se, por um lado,
INFINITO (pode acontecer em qualquer momento do futuro, talvez até após a morte de
Irina, nesse futuro longínquo que os indivíduos tchekovianos tanto gostam de evocar), e,
por outro, ZERO (Moscovo pode não chegar a existir; até ao fim da peça, pelo menos,
não aconteceu; a própria utopia colectiva das conversas filosóficas talvez não passe de
ilusão). Numa simples fala, uma tragédia de sentido.
O catálogo é uma enumeração à qual o seu executor deseja retirar toda a tensão.
É um rol de números que não tem de combater contra nenhum mito, é a plataforma do
cientista ensimesmado na seriação da sua busca. É claro que há Catálogos que se
tornaram exemplares Enumerações: é o caso de “O Cravo Bem Temperado” de Johann
Sebastian Bach. Mas isso não afecta a integridade da definição.
Não interessa saber se uma lista de compras pode ser, ou não, poesia (até porque
não sei se o comprador se dirige a um hipermercado ou ao mercado mágico dos
gnomos…). O que importa é que tomemos a decisão de a tratar enquanto catálogo, ou
enquanto enumeração.