Uma história das histórias focaultianas sobre a loucura.
Transcrição
Uma história das histórias focaultianas sobre a loucura.
. : Dl Hlu oos Loucos A0 GRANDE ExcLAUsURAMEI{To: Umn ntsróRln ons HIsTÓRIAs FOCAULTIAiIAS sOBRE A tOucURA a ; From Stultifera Navis lo ¿he great externment: an history of Foucault's h¡stor¡es of madness Arthur Arruda Leal Ferreiral I Rris t u Mo A mcta dcstc artigo é, inicialmcntc, fazer um lcva¡¡tamct¡to dos t¡abalhos dc Michcl Foucault sobre a história da loucura, do Rcnascimcnto (século XU ató os nossos dias. Lcvantamcnto que inclui náo apcnas o clássico A H¡stór¡a da Inurura (1961), mas igualmcnte outros trabalhos quc sc manifcstaram cm fascs mais tardias do scu pcnsamcnto. Estc mapeamcnto do t¡abalho de Foucault náo üsa apenas um rcccnscamcnto cxtcnsivo do tcma, mas pincipalmcntc um diagnóstico dos perigos atuais cxistcntcs no tmto com a loucur¿. No pr.esente, um destes riscos sc manifesta na conjungáo do p¡lccsso da Rcforma Psiquiátrica com a Rcfo¡ma do Estado brasilciro, r : cm quc a dcsarticulagáo do modclo asilar podc scr assimilada ao próprio dcsmontc dc ccrtos scrvigos públicos, langando toda uma populagáo enclausurada c tutclada no cspago público cada vcz mais cxíguo dc nossas cidadcs. Moümento quc faz com quc csta populagáo rccncont¡c alguns parceiros clássicos da grandc internagáo produzida cm mcados do sóculo XVII: mcndigos, prostitutas, blasfcmadorcs, ctc. Como cstc processo agora sc produz fora das gmdes e muros das casas, pragirs c prédios das cidadcs, scni elc denominado: o grandc cxclausuramcnto. PALAvRAs-cHAVI t Histó¡ia da psiquiatria, políticas de saúde mental, filosofia contemporánea A I BS t RAC',I Thc aim ofthis aniclc is, initially, to makc an inventory ofthc worls ofMichel Foucault's on tl¡e l¡istory ofmadness from thc si¡,tcenth-ccntury Renaissance until thc prescnt day. Tlris invcntory addrcsscs not only his classic Tlv Hstor¡ oJMalness (1961), but also other works pr.oduccd in later pcriods of lús i¡tcllcctual dcvclopment. This cxamination of Foucault's publications is not simply an cxtcnsivc ¡cvicw of his writiugs; it is a critical diagDosis of thc daogcrs which exist in today's treatmcnt of insanity, or radrcr, in today's politics of mcntal hcalü. In present-day Bmzil, one of thesc ¡isl¡s is manifestcd in drc conjoining of Psychiatric Rcform and Statc Rcform, in which the undoing of theasylum modcl can be asúmilated into its own destruction ofpublic services, Iaunclúng into drc strccts, cach timc morc fastidiously from our citics, thc cntircty ofdrc population ofthe intemed and the necd, a movcmcnt that forccs tlis populatio¡r into rcconnaissancc with bcggars, prostitutcs, blasphcmcrs a¡d crazics: thc classic cha¡actcn of thc grcat incarccration ofthe mid-scvcntccnth ccntury. How this proccss ofcxclusion takcs placc Pr1fessat ad)unto d0 Departanenlo de Ps¡col1gia Geral e Exper¡nenlal d0 lnstitulo de Ps¡colagia da en Psjc1lag¡a Clinica pela PUC SP Pesquisad1r f¡nanciado pela FAPERJ e pe¡a FUJB. UFBJ e D7utu CaDcn¡os Sarior CoLE¡rvÁ, Rro 0E J^Íflño, 9 (1):69 -81,2001 - 69 I I Anrnun A¡nuo¡ L¡¡r F¡nnrn¡ today, bryond thc barrerl lr'indows and protcctivc walls of thc houscs, squarcs ano buildings ofthc citics, will bc known as thc great ,.extcr.ning,,. Klt'-rvottt¡s History of psychiatry, politics of mcntal hcalth, contcmporary philosophy lun,l O Rio de Janeiro é uma cidade singular, que neqocia o scu cspago An¡;n urbano com os acidentes geográficos que a cercam, fazendo com que ela sempre se abra para o exterior, para os seus limites. Alguns acidentes sáo domesticados, outros provocados. O Aterro do Flamengo é um acidente premeditado na conquista do mar para que a cidade se nutra de espaqo externo; um espaqo público de circulagáo, em um processo inverso ao da privatizagáo e interiorizagáo das grandes cidades modernas. Nesta longa extensáo de quadras, üas ejardins (uma pálida cópia do projeto original de Burle Marx), circula uma populaqáo heterogénea: moradores da cercania, desportistas, meninos de rua, mendigos, pregadores, mich€s, farofeiros de linal de semana e... alguns loucos. Curiosa populagáo congregada mr prazer, no lazer e na desconfianga e na auséncia de alternativa. Reúne-se um agrupamento táo heterogéneo como o que p6de ser congregado trés séculos atrás na Europa no espago interno dos Hospitais Gerais, como mostra Michel Foucault em A Histórin da Loucura (196l). O que teria se passado o recolhimento e o ostracismo de populagóes táo nestes t[és séculos entre diversas? Seria a simples revisáo de uma liberdade injustamente confiscada e enfim restituida? E, mais exatamente) o que pode se suceder.com os loucos e seus companheitos de nomadismo? Devemos ter a esperanga de revéJos navegar em sua Shtbifera,Nbair (a Nau dos [,oucos) nos rios de janeiro a janeiro, como p6de ocorrer no Renascimento? A Hls l óRrA D^s Hrs l.óRr^s D LoucuR/1. Um grande parceiro na abordagem destas questóes será o pensador Michel Foucault. Pensador de dificil classificagáo dentro dos ramos tradicionais do saber. Historiador-, se náo propusesse uma genealogia de inspiragáo nietzscheana em substituiEáo á história tradicional das idéias, marcada pelo intele ctualismo, continuísmo e primazia do sujeito. Epistemólogo, se náo recuasse a abordagem epistemológica em prol de uma arqueologia, devotada á descriqáo dos solos epistémicos de onde os N,ÍcHrx, FoucAUI;t : 70 - C¡oentos SaúDE CorÉr|va, Rro or Jrrrrro, g {t):69 -01,2001 0a tau 00s touc0s Áo cRAIDE EtcLAUsuRAxEt{Tol Ux¡ Hts¡0nra D¡s tttslónt^s FocauLTlÁtlas s08nf a toucuna I saberes surgem, sem se indagar sobre a sua cientificidade. Filósofo, se náo prol de um pensamento estratégico, problematizador das questóes atuais, modificando a partir destas os seus recusasse a primazia dos sistemas em conceitos e métodos. E é nesta atitude estratégica de seu pensamento que a sua parceria será tomada: náo para extrair dele o sumo do qual possa ser decantada uma verdade maior, mas utilizá-lo como uma ferramenta a operar criticamente sobre a nossa contemporaneidader . E algo deve Éer dito claramente sobre esta caixa de ferramentas foucaultiana: sua fungáo náo é nos fornecer um apoio ou um fundamento, mas desmontar nossas verdades mais caras, destronar as nossas evidéncias reificadas e calcular os riscos do nosso presente. Pensar com um autor nesta perspectiva náo é o juramento de fidelidade aos seus princípios, mas é estrategicamente pensar com ele e, ás vezes, contra ele, se abrindo a outras parcerias, Quando pensamos nesta ferramenta foucaultiana, neste martelo destruidor das evidéncias tomado de empréstimo a Nietzsche, com o qual se é necessário filosofar, pensamos em uma espécie de utensílio ou arma única, com o mesmo porte para destruir qualquer certeza. Contudo, nós enconraremos nos ditos e escritos de Foucault um farto arsenal de máquinas de guerra, cada qual forjada para a sua evidéncia sólida. O tema da saúde é um dos mais reconentes nos trabalhos foucaultianos por se tratar de um aglutinador de dispositivos que produzem um alto capital de verdades ao mesmo tempo que um vasto arsenal de formas de governo de si e dos outros. Contudo, a abordagem deste tema varia em torno de uma série de termos específicos, conceitos-chave e alvos estratégicos. Cartografar o tema da saúde seria um árduo trabalho de cruzar e combinar temas, conceitos e alvos estratégicos. Mais interessante seria a tomada de um tema nos escritos foucaultianos e observá-lo variar em torno de conceitos e problematizagóes. Insiste-se: náo para extrair dele um sistema, mas uma montagem de seus dispositivos históricos, que sirvam para problematizar as evidéncias presentes. ' l,ago aqui minhas as palavras dc Cillcs Dcltuzc (1972, p.7l)r "Una tcoria ó u'na (aixa dc Ierramenlas... il prcci.o qu,: sirva, é prcciso quc luncionc. U neo Para si mcsnra. Sc náo bá pessoas para util¡zá-la, a colrcaar pclo própr¡o teórico quc dcixa cntáo dc scr teórico, é que cla ¡áo valc nada ou quc o |no cnto ainda náo chegou. N¡o sc rcláz uma teor;a, I)zcrn-!,e outras; há outras para sercnr Ieitas-" CaDEir¡os SaúoE CoLEÍva, Rr0 0E JÁxEr¡o, I (1): 69 -81, 200'| - 71 I A¡r¡un A¡nuo¡ L¡¡L Fenn¡rn¡ No caso da saúde, dentre uma arqueologia e genea.logia da clinica, da formagáo médica, do hospital e da saúde pública, destacarei uma genealogia da saírde mental. Com uma ressalva inicial do próprio Í-oucault feita em A História da ltucura: tanto a saúde mental como a doenga mental sáo invenqóes historicamente datadas, próprias de uma forma de dominaqáo da loucura singular á modernidade. Neste aspector portanto, melhor seria falar de uma história da loucura, ou de histórias da loucura, sabendo da variagáo no conjunto dos enunciados fout-aultianos dos conceitos e a.lvos estratégicos. Passemos ao desfile dessas histórias da loucura, registrando náo apenas o trabalho foucaultiano, mas igualmente o de outros pensadores que ajrrdem a sinalizar os llossos riscos atuais. Apesar de ter alguns textos publicados nos anos cinqüenta (por exemplo: Doenga Mental e Psicolngia), Foucault terá apenas o seu reconhecimento no início dos anos sessenta com a publicagáo de sua tese de doutorado: I Hisüria da Lou¿ara. Neste texto clássico, este filósofo mostra-los que o percurso do Renascimento até os nossos dias tem o sentido da progressiva separagáo e exclusáo da loucura no seio das nossas experiéncias sociais. Para tal análise, sáo destacadas do século XV até o século XIX as diferentes manilestagóes sobre o conhecimento teórico da loucura de um lado e a percepgáo social dos loucos, de outro. Deste modo é que no Renascimento (século XVI) r'ecai contra a loucura no máximo uma condenacáo de cunho moral (enquanto presungáo, desregramento, irregularidade da conduta, defeito, lalta e fraqueza) sendo a sua experiéncia náo muito distanciada daquela da própria razáo. No periodo Clássico (séculos XVII e XVIII) a loucura é excluída da ordem da razáo com Descartes e os loucos, enclausurados junto a uma populagáo heterogé,nea, excedente moral e económico da sociedade: sodomitas, prostitutas, libertinos, blaslemadores, suicidas, magos, feiticeiros, alquimistas, etc. Outm marca deste período é a dissociagáo entre a percepgáo social dos loucos, governada pela experiéncia do internamento, e o conhecimento médico da loucura, regido por um paradigma classificatório-tarinómico, em que as diversas formas de loucur.a constituíam famílias em continuidade com as demais doengas. Daí a auséncia de qualquer especificidade que conferisse ás doengas mentais um domínio á parte; no período Clássico elas náo existem. 72 - C¡o¡nr¡os S¡úoE ColÉ¡rva, Rto DE JailoÍo,9 (1):69 -8.|,2001 I Da x^0 oos t0ucos GnaNDE Erc!^usuR^r¡ENIoi lJx¡ Írsrónra DÁs ¡rsló¡ras tocaul¡at¡s so!¡E ^o LoucuBA I ^ A linha separatória entre razáo e desrazáo que surge no período cava Clássico sulcos mais profundos na Modernidade (século XIX em diante), quando os loucos se véem libertos das correntes por Pinel e Tuke, mas ainda circunscritos ao espago asilar no estigma da doenqa mental, verdade considerada agora a mais profunda do homem. Assim a loucura é liberta no confinamento ao saber médico e na solidáo dos asilos, sem mais as suas parcerias do período Clássico. Nas palavras de Foucault, liberta-se o louco das correntes, mas ele é atrelado á esséncia humana. Que alternativas sáo vistas aqui para as vozes da loucura caladas na Modernidade pelo sono dogmático-antropológico? Náo certamente o espago clinico da psicanálise, que mesmo se abrindo ao discurso da loucura em sua integridade, recodifica todos os poderes médicos na figura do analista (crítica que será repetida mais adiante). O extravasamento das vozes loucas só terá uni lugar: o da literatura, entendida náo como espago clássico da obra erudita, mas justamente como problematizagáo e limite deste. O próprio da literatura será promover um "desobramento" regulado da linguagem comun, aproximando-se da linguagem louca enquanto total "auséncia de obra". E é deste modo, através da literahrra, que vozes loucas puderam ainda vociferar: as de Sade, Hólderlin, Nerval, Nietzsche e Artaud. Contudo, deve ficar claro que Foucault, ao afirnar a expressáo destas vozes da loucura através destes autores, náo tinha a menor intengáo de atrelálos a uma esséncia louca ou a um diagnóstico psicopatógico, como procede a medicina moderna. O esforqo arqueológico próprio dos anos sessenta do trabalho de Foucault, de dar conta das condigóes de possibilidade histórica dos saberes, encontrará nos anos setenta o poder como o seu termo-chave. Inicia-se aqui o projeto genealógico, na tentativa de conjugar a génese dos saberes na reformulagáo dos poderes. E nesta fase do pensamento foucaultiano, a g€nese do saber psiquiátrico náo assumirá tanta importancia como a das prisóes, dedicando Foucault ao tema no máimo alguns cursosz e artigos. Um dos mais emblemáticos destes trabalhos é A Casa dos Inucos (1974), em que este pensador mostra-nos que a articulagáo entre poder e verdade ! Dos cursos prol¿fidos sobrc o 1c,Da no Coll¿gc de ltrancc: O loda l\¡Ctiáttito (1973/ t974), ot ,4 atñaii (t974/ 1975) e t, pr¿riú d¿I¿nd¿t ¿ to.ied¿d¿ (t97:r/ 197 6), o primuiro ú consonantc ao artigo quc será apresentado:,1 C¿ du\ Loucot (197 +). Os dcnrais al:ordarn a questáo psiquiátrica vinculando-a á produfáo dos anormais at¡avós dc uma lbr¡na dc podrr regulado pclos valores da vida, o biopoder, que encontrará a sua maior manil¡st¿(áo no racis¡ro do Flstado. C¡oEfii0s S^r¡0E CoLcÍva, Rro Dr Ja¡Erno, I (l)r 69 -81, 2001 - 73 I Arrnu, Arrroo LEAr FGnñErna (entendida aqui como prova e náo revelaqáo) atinge um de seus pontos máximos no confinamento asilar, onde o louco é conduzido a confessar sua natureza louca. Nesta confissáo produz-se, através do poder asilar, a verdade de sua loucura. Náo se trata pois de um modo de produgáo de verdades tal como ocotre na ciéncia natural, em que o objeto náo é constrangido a revelar a sua verdade, mas a testemunhála. como em um inquérito. Contudo, segundo Foucault, algumas estratégias de despsiquiatrizagáo, de rompimento desta relagáo entre o poder asilar e a verdade da loucura, sáo produzidas na virada para o século XX: a psicocirurgia e psicofarmacologia de um lado, e a psicanálise de outro (podemos ver aqui uma certa continuagáo de A História da Loucura). Sáo estratégias de despsiquiatrizagáor uma vez que a produgáo de verdade sobre a loucura náo se equaciona mais com o confinamento asilar. Na psicofarmacologia e na psicocirurgia isto ocorre ao se lazer o poder de confinamento recuar perante uma verdade sobre a loucura revelada nos laboratórios. Na psicanálise esta quebra do dispositivo asilar se produz ao perrnitir que o louco produza a sua própria verdade, mesmo que no sz zlzg analitico recodifique-se integralmente o poder médico na figura do analista3. Contudo, a derradeira estratégia de despsiquiatrizagáo será produzida pelo moümento antipsiquiátrico, capitaneado por Daüd Cooper, Ronald Laing, Thomas Szaz e Franco Basaglia, ao derradeiramente libertar o louco de qualquer confinamento e de qualquer verdade; a ele caberia a produqáo de seu próprio saber. Esta produgáo do próprio discur.so e da própria verdade é o contrapoder ou alternativa mais palpável ao poder asilar e suas formas de despsiquiatrizagáo relativas. A literatura náo terá mais o poder subversivo que teve investida nos anos sessenta, sendo pois substituída por este elogio da antipsiquiatria. tlin ¡mb¡s as forrrlas dc dcspsiqüiarrizaqio rcsidiria a lórrnuta: .,Sabc¡nos sot¡rc a sua doenqa e a sua singularidadc coisas sulicienres sobrc as quais vocC scqucr dcsconfia, pa.a rcconhcccr que se trata de urna dornqa; rnas dcsta docnga conhccemos o basLarrLe para sabcr quc vocC n¡o podc excrccr sobrc cla c cm rcta9¡o a eta ncnhr¡nr rlircito. Sua loucura, nossa ci6ncia pcrrnirc quc chanrcmos docnfa c dai em dianre, nós, rnédicos cs(a¡nos qualilicados para intcrvir c diagnosticar uma toucura que lhe inpcdc dc scr unr doente cor¡o or outros: voc¿ será enráo um docntc me¡tal.', (¡oulcault, l97i p.127) 74 - C¡o¡¡¡os Sarl0r C0LEr|va, Bt0 DE JarErs0, 9 (l): 69 -81, 2001 Da ¡u oos roucos a0 cna¡08 Excrau$untxE¡To: t r¡ Un pr:ntco coN t EMpoRANEo: o r¡tsTó¡t^ DAs HtsTónt¡s r0c¡uL¡¡ as cRAND¡t rxctAUSURArrr.tN'l LouGU¡^ soB¡E I ^ o Nossa história foucaultiana terminaria aqui com a possibilidade do triunfo libertador da antipsiquiatria, na tomada de assalto do aparato psiquiátrico a partir dos anos setenta? E bem verdade que este caminho aberto por Foucault náo foi mais trilhado por ele nos anos setenta e oitenta, tendo se dedicado a outras lutas, como a dos presos, no GIP (Grupo de Inlormagóes sobre as Prisóes). Contudo as problematizagóes foucaultianas sobre a loucura contagiam outros rabalhos, como os de Gilles Deleuze (1990) e Robert Castel (1985), contágio que me implica igualmente. Mais decisivo na transmissáo de um vírus náo é o seu simples contágio, mas as suas sucessivas mutagóes. Deleuze irá propor a existéncia de uma sociedade de controle, para além das sociedades disciplinares, baseadas na transmissáo da ordem pelo confinamento, como no asilo psiquiátrico. O apoderamento dos corpos aqui passa a ser exercido ao ar livre e de modo contínuo, como no modelo de Hospital Aberto, por exemplo. Castel em seu A C*stdo dos Riscos irá p6r em questáo a própria estratégia antipsiquiátrica, como um exemplo dessa nova forma de geréncia da doenga, enquanto responsabilidade do portador. Foucault (1982: p. 256) assim se posiciona quanto este trabalho: "Eu conco¡do inteiramente com a posigáo de Castel, mas isto nio quer dizer, como alguns supóem, que os hospitais psiquiátricos sáo melhores do que a antipsiquiatria; isto náo significa que náo possamos criticar estes hospitais. Penso que seria bom fazéJo, pois eles eram o perigo. E agora está bastante claro que o perigo mudou. Por exemplo, na Itália, fecharam todos os hospitais para doentes mentais, e há mais clínicas particulares etc. novos problemas surgiram." A minha contribuigáo ürótica é perguntar quais sáo os riscos desta despsiquiarizagáo que desponta numa nova sociedade de controle, especialmente no caso brasileiro. O que melhor representa aqui este processo atual é a chamada Luta Antimanicomial, surgida nos anos oitenta como um rebatimento em uma lrente de largo espectro doutrinário dos moümentos antipsiquiátricos oriundos dos Estados Unidos e Europa desde os anos sessenta. Movimento que implica na mudanga de uma série de dispositivos institucionais, como a criagáo de hospitais abertos como Naps e Caps, sem qualquer mecanismo asilar. Movimento que se desdobra inclusive em direqáo ao Congresso, onde tramitou durante a década de C^otn¡0s SaúDt ColrÍvr, ffro or J^ilErno, 9 (1): 69 -81,2001 - 75 I ABIHus ABRODA L¡¡L F¡¡¡¡¡¡¡ ; 1990 um Projeto de reforma do sistema psiquiátrico, a Lei 10.216. Esta lei, aprovada em 06 de abril de 2001, teve como base o projeto do Deputado Paulo Delgado apresentado em 1990, com versáo final modificada a partir do substitutivo do Senador Sebastiáo Rocha+. Tal projeto claramente desmantela o aparato asilar baseado em internaqóes involuntárias, a maior parte delas custeada pelo governo através do financiamento de leitos em instituigóes privadas, e subordina-as ao apar.elho judiciário, impondo a sua notificaqáo junto ao Ministério Público (Artigo 8", par'ágrafo l). Projeto pertinente, uma vez que enfrenta o enclausuramento asilar e a inteffenqáo parasitária das clínicas particulares, especialmente com relaEáo ao custeio estatal, além de contrabalanqar o poder médico com o poder jurídico. A estranheza que envolveu a tramitagáo deste projeto de lei, além de seu prolongado debate, é o jogo político que se teceu em seu entorno. Pois se ele ganhou a antipatia óbvia do sistema privado de saúde, que possuía boa parte de seus leitos de internagáo custeados pelo governo, por outro lado forneceu um apoio inusitado ao projeto de reforma manicomial. Processo que, nas palavras do atual ministro da Saírde José Serra (2001, p.5) se dá na confluéncia da via legislativa com as normativas do próprio ministério, qr-re, desde a DeclaraEáo de Caracas de 1990, estaria atuando no sentido de Gchar os hospitais psiquiátricos iregulares, sendo estes substituídos por servigos alternativos, como leitos psiquiátricos em hospitais gerais e servigos de atenqáo diária. Estaria aqui manifesto o lesíduo esquerdista perdido do governo Fernando Henrique, agora entrincheirado nos gabinetes do Ministério da Saúde? Por que se fomra aqui uma curiosa alianga entre o govemo e grupos ligados á Reforma Psiquiátrica, isolando-se os representantes do sistema de saúde privada em alguns poucos conchavos no congr.esso? Por que a mesma alianga náo se reproduz entre os sindicatos de f'rabalhadores na Educagáo e o Ministério da Educagáo ou ainda com o núcleo duro do governo representado pelo Ministério da Fazenda? De inicio náo se deseja aqui afirmar que esta conjugaqáo de forgas é táo simples como se pretende aqui esquadrinhar. Nfas houve e há uma forte simpatia pelo projeto por parte de setores do governo, o que náo ' Dc 1992 ató hoic Ioranr cri¡das oiro Icis csraduair inspiradas no projc(o do Drpuracto Paulo Dtleado, scndo os csrados dc Pernamb co c rlo Rio cr¡ndc do Sul 76 - C¡o¡nr¡os SaúDE CoL€Íva, Rto DE Ja ErB0,9 (1):69 -g1,200.i D¡ l|Au D0s Lotrcos a0 ciatiot trcL¡t su¡¡ffltTo: [Jr¡¡ sIóRta oas Htsrónt¡s focautTt^l¡¡s so8Br a Loucuna ¡ implica necessariamente comunháo de interesses com os grupos proponentes deste projeto, imbuídos em restituir a cidadania á loucura. Atás dos bons acordos nem sempre se encontram as melhores intenqóes. Deve-se ressaltar que náo se deseja aqui sugerir a restituigáo da estatizagáo psiquiátrica centralizada e o retorno do modelo asilar, mas apenas destacar os liscos deste projeto e de suas aliangas envolüdas. Certamente para fortalecéJo, pois a dominagáo sobre a loucura sedimentada durante cinco séculos náo haveria de se suprimir com a simples concessáo de cidadania á loucura. Uma boa indicaqáo sobre estes riscos pode ser buscada nos trabalhos de Foucault (1978) sobre a Govemamentalidade e o Liberalismo, em que este náo é visto como uma estratégia de governo, mas uma critica á interuengáo do governo em setores que sáo capazes de se auto-regularem, especialmente aqueles que partem de iniciativas da sociedade civil. Em alguns representantes do pensamento liberal como a Escola de Chicago, este mecanismo de auto-regulagáo é identificado ao mercado. Assim, se os grupos ligados á Reforma Psiquiátrica visam conceder cidadania ao louco, em oposigáo ao seqüestro e confinamento compulsório, o atual governo pode ver aí uma simples possibilidade de se desobrigar, de lavar as máos perante o mercado na regulagáo da vida daqueles quer em nome do perigo ou da fragilidade, ele até entáo tutelava. Eles agorz que gerenciem os riscos que eles mesmos portam. Náo apenas os loucos, mas os doentes, os idosos e outras classes de esquecíveis. Eis uma marca do liberalismo mesclado ás práticas de governo: delegar aos indivíduos a gestáo e a responsabilidade sobre seus próprios riscos, repassando a estes os encargos do próprio Estado. Insiste-se mais uma vez: a meta deste trabalho náo é por a Reforma Psiquiátrica em xeque, mas calcular os riscos que ela traz ao se atrelar ao processo de Reforma do Estado no Brasil, em que a desarticulaEáo do modelo asilar pode ser assimilada ao próprio desmonte de certos servigos públicos. Q¡ral pode ser a conseqüéncia mais perigosa deste acordo entre a quebra dos muros psiquiátricos e o desgoverno liberalizante? A Lei 10.216, através de seu artigo 5", mostra-se extremamente cuidadosa com os antigos internos que se encontram no caso de dependéncia institucional, garantindoos através de uma política especifica de leabilitagáo. Náo há, pois, o que supóe os críticos possíveis desta lei: o langamento puro e simples de uma C¡or¡ros Saúoc Colrrrvl, Rro or J¡{Erno, I (1): 69 -81, 2001 - 77 I I Anrnun Anruor IEAL FEsnETRA populaqáo, até entáo psiquiatrizada e tutelada, na rua. Contudo, os novos casos com a política de internagóes curtas podem ter. duas direqóes: as clínicas psiquiátricas particulares, no caso dos indivíduos pertencentes a famílias abastadas; e a rua nos demais casos, Nas duas alternativas o seio familiar é o alvo mais improvável para os loucos, afinal todos os cidadáos tem que se voltar para o trabalho e para a produgáo e ninguém pode se dedicar aos loucos, Os que se direcionam para as ruas certamente reencontraráo uma populagáo outrora irmanada no enclausuramento clássico, com a ressalva apenas de que ela está agora trancada por fora. Se o mercantilismo no periodo Clássico levou ao confinamento dos náoprodutivos e a economia de mercado moderna conduziu á reabsorgáo dos náoJoucos nos séculos XIX e XX, na atualidade o trabalho torna-se categoria precarizada na produqáo de riquezas, acarretando a produgáo de um resíduo populacional dispensável para o mercado. E cada vez man este gesto de exclusáo torna-se mais amplo: pragas sáo cercadas, edi{icios gradeados, calgadas bloqueadas com ferros e dormentess. Nas palavras de Carvalho (2001, p.34): "A lógica do confinamento inevitável do louco/ diferente tem a sua contrapartida no confinamento dos sáos/iguais." Uma populagáo-resto é entáo jogada cad^ \ez mais para fora: para o asfalto, viadutos, pontes, e estes cada vez mais e mais cercados. Neste aspecto, o Aterro do Flamengo é um resquício de um espaqo exterior náo interiorizado, por onde ainda circula livremente esta populagáo externada e consternada. Talvez o que esteja em questáo por ora seja a impossibilidade de gradeamento. Existe um conjunto de trabalhos que póe em discussáo este afluxo da loucura no seio da populagáo de rua em fungáo da quebra do modelo asilar. Talvez seja cedo para obselar a concretizagáo deste risco em fungáo da recentidade da reforma psiquiátrica e do seu caráter náo radical. Contudo, um trabalho merece ser destacado: o de Maria Tavares Cavalcanti e de sua equipe (2001-a, pp. 24-25), que, na abordagem de uma amostra da populaqáo de rua carioca abligada junto á Fundaqáo Leáo XIII, constatou o indice de apenas 9,9olo de doentes mentais graves. Para a equipe este seria um argumento satisfatório de que a desinstitucionalizagáo 5 Co¡sra o lblclor( car;oca que inclusivc houvc um prrt¡iLo quc havia ptancjacto cobrir as calqad¿s dr crcolina, cxpulrando csla poputaCáo dr scu útrirno rcduro. O rnars curroso é que esre prcl¡ito suposra "loucura" conro lraqo dr narkcring poti(¡co. 78 - C¡ornros SariDE ColErlva, Rro 0E JaNEtno, g (l): 69 -81,200'| D¡ r¡u oos rouco$ ¡0 6¡¡rDE Ercl^üs0ta¡E¡To: u a Hts¡ónta DAs titsTónt¡s ¡oc¡ut¡¡¡¡¡$ $0¡¡¡ ¡ roucua¡ I náo aumentou a freqüéncia de doentes mentais na rua. O diagnóstico destes autores está baseado na avaliagáo de uma amostra populacional abordada entre 0l/07 / 2000 e 18/04/2001 na Fundagáo Leáo XIII. Este seria o primeiro problema: tratando-se de um grrpo de moradores de rua assistidos pela Fundagáo, isto náo imporia um viés tendencioso na selegáo desta populagáo? Como considerar os moradores de rua resistentes á abordagem da Fundaqáo? Um outro problema é que este estudo é realizado numa faixa muito restrita de tempo, náo havendo dados sobre o período anterior á reforma. Ainda que houvesse este estudo, podeúamos nos perguntar se o viés do diagnóstico seria igual. Apesar das dificuldades de comparagáo com o passado, um estudo que, a partir do presente, acompanhe a evolugáo da populagáo de rua através de uma longa duragáo é desejável. Mas, também este possível estudo teria um problema: considerar apenas o percentual de doentes mentais numa populagáo de rua para avaliar o seu crescimento é insuficiente. Pois, estaríamos ignorando outras raz6es que levam á exclusáo desta populaqáo para a rua. É necessário que se avalie o aumento absoluto dos supostos doentes mentais e náo a sua freqüéncia relativa. Talvez neste aspecto igualmente importante seja avaliar o próprio aumento da populagáo de rua. Enquanto náo existem indices seguros, permanece o risco de que esta exclusáo esteja se ampliando, Contudo, alguns antídotos estáo sendo produzidos com relagáo a este possível processo, como os chamados Lares Abrigados, em estado de implementagáo aqui no Rio de Janeiro e com um sentido operacional ainda náo muito claro, apesar de sua expansáo. Outra possibiiidade é o trabalho de atendimento da populagáo de rua, e um exemplo disto é o projeto desenvolvido pela própria Maria Tavares Cavalcanti (2001-a; 2001b), buscando-se eütar o enquadramento no modelo asilar. Este processo de exclusáo, náo mais no interior dos asilos, mas no exterior das cidades é simétrico ao "Enclausurame nto clássico", destacado por Foucault. Por tal razáo, batizo-o de "O Grande Exclausuramento", que náo se trata certamente de uma exclusividade brasileira, mas de um desmonte em escala global e a toque de caixa dos aparelhos públicos de acolhimento, tutela e governo de populagóes. A gestáo das populagóes náo é mais alvo da governamentalidade, sendo substituída por aquilo que deve se tornar meta e medida de todo o valor de agora em diante: o mercado e suas flutuagóes. Se a produgáo, a mais racional, lucrativa e CaDE¡Nos SaúDE Cortrrra, Rr0 DE JÁ[sno, I (l)j 69 -81, 2001 - 79 I I Anrrun Annuo¡ [EAL FEFnErn^ eficaz comporta sempre um resto, um dejeto (seja pelo excedente, seja pelo náo-aproveitável), por que o mesmo náo deve se dar com as populagóes, agora táo precarizadas quanto o traba.lho que delas se esperava na geragáo de riquezas? Sempre um resto populacional do qual tentaremos nos defender vagará no coragáo das cidades, levando a uma separagáo cada vez mais radical entre o interior gradeado e o exterior nas cidades. Como se as fronteiras das cidades medievais que demarcavam o espaqo por onde os loucos deveriam navegar com as suas Naves fosse introjetado para o interior das cidades. Como lembra Paul Virilio (1997). as cidades seráo de agora em diante divididas entre os ndmades e os sedentáúos, diferenciados pela posse de novas tecnologias (os carros, celulares e tnptnps, por exemplo), que habilitaráo os segundos, onde quer que estejam, a estarem sernpre em casa, ao contrário dos despossuídos. E dentre os n6mades que vagam vagabundo neste vago mundo, divagam os loucos, cada vez mais distantes, enclausurados no fora do dentro de nossas cidades e sem mais qualquer direito á sua StulQfera Nauis. R¡rEREtcrns BtBLtocBÁFtcAS Cnstut., R. A gestdo dos rü¿o¡. Rio deJaneiro: Francisco Alves, lgB5. C,tnv,tt.Ho, J. J. Saúde mental e diferenga: a üoléncia da exclusio. Reuista da Satfule. Ano II, Número 2. Dezembro de 2001. C,tv.ll.c..tntt, M. T. et alli. A psiquiatria e o social: aproximagóes e especificidades. In: C¡v,u.t',nr,¡ n, M. T. & VEN^Ncro, A. T. (Orgs.) Salle trlental: Campo, Saberu e Dücursos Rio deJaneiro: Edigóes IpUB-UFRJ, 2001-a. A loucura na rua. In: C,rv,lr.c,,rrvrr, M. T. & Ftcutrnnno, A. C. (Orgs.) A refonna psiquiátrica e os daafns da desinstitucimali¿agd.o. No de Janeiro: Edigóes IPUB-UFRJ, 2001-b. Dt:r.r:uzr:, G.; Fouc,,rur.r', M. Os intelectuais e o poder. In: M,tcu,rno, R. (Org.). Microfuba dn Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982 (entrevista realizada em 1972). Drt.v,u't.t',, G. Conaasagda. Rio de Janeiro: Editora 34, 19g0. Fouc,tut.'t , M. A História da Ltua¿ra. Sáo Paulo: Perspectiva, l97B (tese de doutorado defendida em 196l). 80 - C¡o¡ntos S¡úoe Corrrrvr, Rro oe Jrrrrno, 9 (l)j 69 -g1,2001 D¡ x^u Dos !0üc08 . r0 e¡^rft ErcttuSünafttr0: Ur¡ Htsrú¡t¡ o^s itsT0nra8 Foc¡ütl|¡i¡s 8ot¡¡ ¡ Louou¡r A Casa dos Loucos. In: MacHaoo, R. (O.g). Minofisita dn Poda. Rio deJaneiro: Graal, 1982 (artigo publicado em 1974). Os Awrmnü. Sáo Paulo: Martins Fontes, 2001 (Curso de 1974-1975). . E preciso defmder a sodzdadz. Sáo Paulo: Martins Fontes, 2001 (Curso de 197,1-1975). Rio de . Do governo dos üvos. Janeiro: Zahar, 1997. ln: Fouce.urr, M. Resmn dos r¿rsos. . Sobre a genealogia da ética: uma revisáo do trabalho. In: DRgytruss, H. & Rerulow, P, (Orgs). Mbhel Foueault nn hqieürin filosófua. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 (enrevista publicada em 1983). Macueoo, R. Cihuin e Saber: a trajeüria mpnlógica de Janeiro: Graal, 1982. de Miñel Forcuk. No J. Apresentagáo. In: kgislagáo em Saúde Mental. Brasília: Mnistério da Saúde, 2001. Snnna, VttIt-to, P. A caástrofe u¡bana. In: Foka de setembro de 1997. de Sdn Pauh (Cadmn Mais). 28 C^oEii08 S¡r¡0r CoLErvr, f,ro or Jutrno, I {1}r 69 -81,2001 - I 81
Documentos relacionados
Saúde e doença em crianças indígenas Terena.
Com relagáo ao sistema tradicional de cuta de enfermidades, o xamá (Koix:omunell era consultado ao mrsmo tempo que recorriam aos cuidados médicos da unidade de saúde. Como em outros gmpos indigenas...
Leia mais