o exame nacional do ensino médio como gênero do discurso
Transcrição
o exame nacional do ensino médio como gênero do discurso
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO LUDMILA KEMIAC O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO GÊNERO DO DISCURSO Campina Grande – PB Novembro de 2011 2 LUDMILA KEMIAC O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO GÊNERO DO DISCURSO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Linguagem e ensino Orientadora: Profa Dra Denise Lino de Araújo Campina Grande – PB Novembro de 2011 3 4 Folha de Aprovação ___________________________________________________________________ Profa Dra Denise Lino de Araújo – UFCG (Orientadora) ___________________________________________________________________ Profa Dra Andréia Ferreira da Silva – UFCG (Membro Interno) ___________________________________________________________________ Profa Dra Lívia Suassuna – UFPE (Membro Externo) 5 RESUMO Nesta pesquisa procuramos compreender o Exame Nacional do Ensino Médio como um gênero do discurso em um contexto de reformas educacionais. Especificamente, traçamos como objetivos: 1. Analisar a dimensão social na qual se constituem exames como o Enem. 2. Analisar a dimensão verbal desse exame, atentando para seus aspectos estilístico-composicionais. Nosso referencial teórico pautou-se principalmente nos conceitos bakhtinianos (BAKHTIN, 1992, 2003, 2009) de gênero, esfera, estilo; no conceito de Estado ampliado de Gramsci (2002); nos estudos sobre avaliação enquanto política educacional (FREITAS, 2007; SOUSA, 2009; ZANARDINI, 2008). Ao nos debruçarmos sobre essas duas dimensões correlacionadas – a dimensão social e verbal – , pudemos compreender como o Enem se estrutura em um contexto de redefinição do papel do Estado, como reaçãoresposta às propostas de reformas educacionais para o ensino médio. Defendemos, nesta dissertação, que exames como o Enem constituem gêneros do discurso complexos, vinculados à ação normativa Estatal. O Enem, de forma específica, reveste-se de estratégias de consenso, as quais revelam o papel indutor do Estado. Sobre os aspectos estilístico-composicionais do Enem, percebemos que estes se constituem em um movimento de distanciamento e assimilação do tradicional e do inovador, negando o que poderia ser considerado mais „tradicional‟, e investindo continuamente em um discurso da inovação. Palavras-chave: Gênero. Enem. Avaliação em larga escala. 6 ABSTRACT In this research we seek to understand the “Exame Nacional do Ensino Médio” as a genre of discourse within a context of educational reforms. Specifically, we draw the following objectives: 1. Analyze the social dimension in which exams like the Enem are consolidated. 2. Analyze the verbal dimension of this evaluation, noting stylisticcompositional aspects. Our theoretical framework was based mainly on the bakhtinian concepts (BAKHTIN, 1992, 2003, 2009) of gender, sphere, style; the concept of State of Gramsci (2002); studies on educational assessment as a policy (FREITAS, 2007; SOUSA, 2009; ZANARDINI, 2008). Correlating these two dimensions - the social and verbal - we could understand how Enem is structured in a context of redefining the role of the State as a reaction-response to the proposed education reforms for high schools. We argue, in this research, that tests how Enem are complex genres, linked to the State regulatory actions. The Enem, specifically, is covered of consensus strategies, which show the inductive role of the state. On the compositional-stylistic aspects of the Enem, we realize that these are constituted in a movement of assimilation and alienation of traditional and innovative practices, denying what could be considered 'traditional', and continually investing in a speech innovation. Keywords: Gender. Enem. Large-scale evaluation. 7 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 - Questão 63, Enem 2002 .................................................................................................. 57 Ilustração 2 - Nota emitida pelo Comitê de Governança sobre a matriz de referência do Enem 2009 ........................................................................................................................................ 136 Ilustração 3 - Questão 58, Enem 1998 ......................................................................................... 161 Ilustração 4 - Questão 46, Enem 2000 ......................................................................................... 164 Ilustração 5 - Questão 97, Enem 2010 ......................................................................................... 168 Ilustração 6 - Questão 98, Enem 2010 ......................................................................................... 170 Ilustração 7 - Questão 136, Enem 2010 ....................................................................................... 172 Ilustração 8 - Questão 39, Enem 2010 ......................................................................................... 177 Ilustração 9 - Questão 25, Enem 2010 ......................................................................................... 179 Ilustração 10 - Questão 44, Enem 2010 ....................................................................................... 180 Ilustração 11 - Questão 24, Enem 2010 ....................................................................................... 182 Ilustração 12 - Questão 83, Enem 2010 ....................................................................................... 183 Ilustração 13 - Questão 133, Enem 2010 ..................................................................................... 187 Ilustração 14 - Questão 104, Enem 2009 ..................................................................................... 187 Ilustração 15 - Questão 54, Enem 2010 ....................................................................................... 190 Ilustração 16 - Questão 75, Enem 2010 ....................................................................................... 191 8 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Relação de Questões analisadas ............................................................ 24 Tabela 2 – Temas das propostas de redação do Enem (1998-2010) ..................... 194 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................. 11 1.1 A natureza discursiva da avaliação: introduzindo o problema .............................................................. 11 1.2 O percurso da pesquisa: o texto como forma de conhecimento........................................................... 13 1.3 A construção do objeto ................................................................................................................................ 20 1.3.1 Descrição do corpus e categorias de análise ....................................................................................... 22 2 GÊNERO, AVALIAÇÃO: DISCUTINDO ALGUNS CONCEITOS ........................................................... 26 2.1 Gênero, esfera, estilo .................................................................................................................................. 26 2.1.1 Os gêneros do discurso: reação-resposta a dois problemas fundamentais .................................... 28 2.2 Avaliação: enquadrando o tema sob a ótica bakhtiniana ..................................................................... 42 2.2.1 Das origens às (in) definições ............................................................................................................... 43 2.2.2 Provas/testes/exames sob a ótica bakhtiniana .................................................................................... 50 2.2.2.1 Provas/testes/exames: um gênero do discurso ................................................................................ 53 2.3 O estado como avaliador: entre o consenso e a coerção ..................................................................... 63 2.4 Avaliação por competências ...................................................................................................................... 69 2.5 Primeira síntese intermediária ................................................................................................................... 72 3 EXAMES PADRONIZADOS, EM LARGA ESCALA: UM OLHAR SOBRE A DIMENSÃO SOCIAL DESSE GÊNERO DO DISCURSO EM UM CONTEXTO DE REFORMAS .............................................. 76 3.1 A avaliação em larga escala em um contexto de reformas ................................................................... 77 3.1.1 Redefinição do papel do estado e ideologia neoliberal: considerações sobre a esfera de emergência da avaliação em larga escala...................................................................................................... 81 3.1.1.1 Dos precursores .................................................................................................................................... 81 3.1.1.2 Das reformas do papel do estado e da ideologia neoliberal ........................................................... 84 3.1.1.2.1 Reforma educacional: a emergência de exames em larga escala ............................................. 92 3.2 Gêneros em interação ............................................................................................................................... 103 3.3 Requisitos para a eficiência do exame ................................................................................................... 109 3.3.1 Objetividade, credibilidade, isonomia do processo avaliativo .......................................................... 109 3.4 O enem como gênero do discurso: consenso e coerção ..................................................................... 121 3.4.1 A difusão de ideias sobre a „educação necessária‟: estratégia para o consenso......................... 125 3.4.1.1 Distinção do exame ............................................................................................................................. 127 3.4.1.2 Relevância dos conteúdos ou habilidades/competências e pressupostos teóricometodológicos ................................................................................................................................................... 134 3.4.1.3 Capacidade de reestruturar e intervir no ensino ............................................................................. 139 10 3.5 Função social .............................................................................................................................................. 144 3.6 Segunda síntese intermediária ................................................................................................................ 151 4 O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO EXAME EM LARGA ESCALA: UM OLHAR SOBRE A DIMENSÃO VERBAL DA PROVA .............................................................................................. 155 4.1 O exame nacional do ensino médio e as reformas nos conteúdos e currículos de ensino: uma questão de estilo ............................................................................................................................................... 156 4.2 Forma composicional: tipos de questões e contextualização ............................................................. 175 4.3 Um olhar sobre as propostas de redação: formação para o consenso ............................................. 192 4.4 Terceira síntese intermediária .................................................................................................................. 198 5 CONCLUSÕES .............................................................................................................................................. 200 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................................. 203 ANEXOS ............................................................................................................................................................ 208 ANEXO A - PROPOSTA À ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR ............................................................................................................ 209 ANEXO B – ENEM: UM EXAME DIFERENTE ............................................................................................ 216 11 1 INTRODUÇÃO 1.1 A natureza discursiva da avaliação: introduzindo o problema A partir da década de 90 do século XX, assistimos à construção de ideias hegemônicas sobre a educação brasileira, as quais apregoam a necessidade da descentralização da oferta do ensino, da gestão democrática e participativa, da flexibilidade e desregulamentação dos serviços públicos. Todavia, em contrapartida a essa flexibilização e descentralização estão cada vez mais em pauta as políticas de avaliação educacional, enquanto mecanismos centralizados de controle. Nesse contexto, são instituídas e legitimadas avaliações em larga escala da educação nacional, como o Enem, que, dentre outros objetivos, visaria aferir a qualidade da educação básica. Oliveira (2007) ressalta que a descentralização da oferta do ensino no Brasil teve como contrapartida processos de padronização de procedimentos administrativos e pedagógicos, de forma a se rebaixar os custos do atendimento sem abrir mão do controle central das políticas. Dentre esses processos de padronização, a avaliação em larga escala é, certamente, o maior expoente. Não obstante, para serem aceitas e, mais que isso, legitimadas, as iniciativas de avaliação são difundidas por diversos documentos – Notas técnicas, propagandas, documentos parametrizadores – que evidenciam o papel do Estado como indutor e difusor de valores, signos e ideologias. Logo, consideramos que a avaliação em larga escala possui uma natureza discursiva, fundamentando-se como produto dos sistemas ideológicos constituídos, 12 para utilizarmos a expressão bakhtiniana (2009), sendo, ademais, resultado de ações normativas estatais. Essas considerações levam-nos a questionar: como produto de sistemas ideológicos oficiais, apresentando uma composição relativamente estável e um estilo singular, constituiriam exames em larga escala, e mais especificamente o Enem, gêneros do discurso em um contexto de reformas educacionais? Tal questionamento leva-nos a propor como objetivo geral compreender o Enem como um exemplar de um gênero do discurso em um contexto de redefinição do papel do Estado e reformas educacionais. Especificamente, a fim de atingir esse objetivo geral, procuramos: 1. Analisar a dimensão social na qual se constituem exames como o Enem. 2. Analisar a dimensão verbal desse exame, atentando para seus aspectos estilístico-composicionais. A relevância e mesmo a pertinência da pesquisa ora proposta advém da seguinte constatação: desde o final da década de 1980 e início da década de 1990 temos, no Brasil, a aplicação de avaliações em larga escala que visam, segundo o discurso oficial, aferir a qualidade da educação básica, direcionar ações governamentais e, assim, melhorar o ensino público brasileiro. O Enem é um exemplo emblemático de ação normativa federal, pois, a um só tempo, condensa os papeis do Estado como indutor, difusor de crenças e criador de uma ambiência propícia à disseminação de determinadas práticas educacionais. Embora há mais de vinte anos avaliações em larga escala estejam sendo aplicadas no Brasil, não se pode afirmar convictamente que esses exames tenham cumprido aquele que seria seu papel precípuo de melhorar a qualidade do ensino público brasileiro. Os dados de indicadores como o IDEB e a participação do Brasil em pesquisas avaliativas internacionais nem sempre são animadores. 13 Versieux (2004, p.1) afirma que, perante o fracasso de algumas políticas educacionais, a pesquisa acadêmica se impõe como ferramenta de desvelamento. Para o autor: “O fracasso de boa parte delas traz à tona a necessidade do pesquisador trabalhar estes temas e trazer à crítica da ciência educacional estas políticas educacionais, o que elas representam e em que resultaram”. Nesse quadro mais amplo, nossa pesquisa propõe-se a fornecer uma visão complexa, ao tentar compreender o Enem enquanto gênero do discurso. Essa pesquisa, portanto, atravessando as áreas disciplinares da Linguística, da Educação e da Política, poderá contribuir com os estudos sobre avaliação da educação básica. 1.2 O percurso da pesquisa: o texto como forma de conhecimento Nesta pesquisa, conforme descrevemos de forma mais detalhada adiante 1, analisamos documentos escritos oficiais que versam sobre o Enem (Notas técnicas, a Fundamentação teórico-metodológica etc), bem como algumas questões do exame. Nesse sentido, a priori, definimos o texto como nosso objeto amplo de estudo, considerando que nos situamos no âmbito da pesquisa em Ciências Humanas. Em O problema do texto na Linguística, na filologia e em outras ciências humanas, Bakhtin (2003), logo nas primeiras linhas afirma: Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos, a ciência das artes (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) opera com textos (obras de arte). São pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos. Nisto reside a diferença 1 Descrevemos os documentos analisados nesta dissertação no tópico “1.3.1 Descrição do corpus e categorias de análise”. 14 essencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza), embora aqui não haja fronteiras absolutas, impenetráveis. (p. 307). Sem ser radical, o teórico propõe uma diferenciação entre as ciências “naturais” , rótulo que englobaria a física, a biologia, a medicina etc, e as ciências humanas ou sociais. A diferença fundamental reside no objeto de investigação: essas últimas ciências inevitavelmente têm como objeto de estudo o texto, objeto semiótico, constituído, imerso em posições axiológicas. Assim, as ciências humanas nascem como pensamento sobre pensamento dos outros, ideias sobre ideias. Considerando nosso objeto, podemos afirmar que ele se constitui a partir desse jogo dialógico de pensamentos e ideias: aos discursos oficiais sobre o Enem e à prova em si lançaremos ideias outras, pensamentos que procuram enquadrar o objeto em seu tempo, em seu contexto sócio-histórico, e, ao mesmo tempo, procuram, à luz das teorias selecionadas, construir outro discurso sobre esse objeto, a fim de que possamos compreendê-lo como um gênero em uma esfera discursiva (nosso objetivo geral de pesquisa). O texto – objeto amplo das pesquisas em ciências humanas e, por conseguinte, nosso objeto amplo – se constitui sobre dois pólos: de um lado, temos os elementos da língua, tudo o que é passível de reprodução; por outro lado, temos o texto como um elemento único e singular, que se revela numa cadeia de textos, na ampla comunicação discursiva de uma esfera. Esse segundo pólo, segundo Bakhtin (op. cit.), “é indissoluvelmente ligado ao elemento da autoria e não tem nada em comum com a singularidade natural e casual” (p. 310). Se o texto, tomado sob esse segundo pólo, é individual, único, irrepetível, como tomá-lo enquanto objeto científico, considerando que a ciência está constantemente em busca de regularidades, de generalizações? Eis como Bakhtin 15 (op. cit.) apresenta essa problemática: “Surge a questão de saber se a ciência opera com tais individualidades absolutamente singulares como os enunciados, se eles não iriam além dos limites do conhecimento científico generalizador” (p. 313). A busca de generalizações, de regularidades, por muito tempo dominou as ciências sociais, influenciando e limitando, particularmente, a pesquisa em educação, conforme assinala Ghedin (2008). Todavia, considerando o paradigma atual em ciências humanas, é preciso considerar as multirreferencialidades que organizam o fenômeno humano (GHEDIN, op. cit.), o que torna problemático a busca de generalizações. Bakhtin, já na década de 1960, época provável de produção do Problema do texto, atenta para essas questões. Sobre o questionamento acerca da validade de se estudar as singularidades, responde o autor: Em primeiro lugar, o ponto de partida de toda ciência são as unidades ímpares, e em todas as etapas da sua trajetória ela permanece ligada a estas. Em segundo, a ciência, e acima de tudo, a filosofia, pode e deve estudar a forma específica e a função dessa individualidade. (BAKHTIN, 2003, p. 31). Unidade ímpar, elemento singular, o texto é, para Bakhtin (2003, p. 318), “o reflexo subjetivo do mundo objetivo”, “expressão da consciência que reflete algo”. No texto, o mundo objetivo não se apresenta tal qual é, pois passa a outra ordem – a ordem dos sistemas semióticos. Como ressalta o autor em Marxismo e filosofia da linguagem (2009), nenhum sistema semiótico é neutro, mas profundamente constituído pela ideologia. O texto torna-se, pois, o reflexo subjetivo do mundo, pois não só o reflete, mas o refrata. Nesse sentido, não tomamos nosso objeto de estudo como simples reflexo de um tempo, de uma tendência de uma esfera (a avaliação em larga escala como projeto de um Estado-avaliador), mas também como refração 16 desse tempo, dessa esfera: contradições constituem o objeto, tornando-o multirreferencial. A compreensão do texto, por sua vez, envolve um novo reflexo sobre aquilo que já se apresenta como reflexo do mundo. Segundo Bakhtin, “Quando o texto se torna do nosso conhecimento podemos falar de reflexo do reflexo. A compreensão de um texto sempre é um correto reflexo do reflexo. Um reflexo através do outro através do objeto refletido”. (BAKHTIN, 2003, p. 318-319). Amorim (2008, p. 98) ressalta que Bakhtin, ao propor as ciências humanas como ciências do texto, considera que “Pesquisador e sujeito pesquisado são ambos produtores de texto, o que confere às ciências humanas um caráter dialógico”. O texto reflete subjetivamente o mundo; ao me debruçar sobre esse texto, produzo novos textos, que se apresentam também como reflexos subjetivos no sentido do objeto. Pesquisador e sujeito pesquisado se encontram em diálogo à medida que o pesquisador busca captar o olhar do sujeito investigado, inserindo-se no contexto desse sujeito, mas, ao mesmo tempo, o olha de fora, imerso em seu próprio tempo, segundo seus objetivos, suas expectativas. O pesquisador, exotopicamente, enquadra o objeto em determinado ângulo, confere-lhe um acabamento específico. A visão do pesquisador e a do pesquisado não se fundem, já que o diálogo, conforme assinala Amorim (op. cit. p. 100), não é simétrico. Para a autora: “O pesquisador deve fazer intervir sua posição exterior: sua problemática, suas teorias, seus valores, seu contexto sócio-histórico, para revelar do sujeito algo que ele mesmo não pode ver”. O sujeito/objeto investigado, que se apresenta como texto, encontra-se em um constante devir, sua condição é a de algo inacabado. A pesquisa em ciências humanas constitui um modo singular de compreender a realidade, de entendê-la – 17 um modo que propõe um acabamento construído a partir de um discurso próprio e socialmente legitimado. De fato, o discurso científico confere o acabamento necessário ao objeto, enquadra-o em um ângulo, tal qual o artista, perante uma paisagem infinita, seleciona um ângulo, uma visão, e a retrata, confere-lhe um acabamento específico. Não há como negar a subjetividade: o enquadramento em um ângulo pressupõe subjetividade, seleção, escolha. Todavia, não se deve entender a subjetividade do enquadramento (do acabamento exotópico) como uma profunda anarquia. O objeto não diz como quer ser investigado, mas impõe limites à investigação (BORGES NETO, 2004). Ressaltamos, ademais, que, na pesquisa, ao captarmos o objeto – inacabado – e lhe impormos determinado acabamento, conferimos-lhe, de certa forma, um „acabamento inacabado‟, já que não somos os primeiros nem seremos os últimos a falar sobre esse objeto. Com efeito, o objeto construído, fruto da teorização, suscita leituras, interpretações, entendimentos, já que esse objeto é necessariamente um texto, que se relaciona com outros textos, pressupõe-nos, retoma-os, com eles dialoga. Considerando esse diálogo inevitável, propomos a análise não apenas do Enem em si (a prova), mas também de documentos que com ele se relacionam: pronunciamentos expostos no site do MEC, a proposta de adesão aos dirigentes das IFES ao Enem e ao sistema de vestibular unificado. O texto, realidade primeira, é o ponto de partida de qualquer disciplina nas ciências humanas. Para Bakhtin: Um conglomerado de conhecimentos e métodos heterogêneos chamado filologia, linguística, estudos literários, metaciência, etc. Partindo do texto eles perambulam em diferentes direções, agarram pedaços heterogêneos da natureza, da vida social, do psiquismo, da história, e os unificam por vínculos ora causais, ora de sentido, 18 misturam constatações com juízos de valor. (BAKHTIN, 2003, p. 319). Afirmar que as disciplinas agrupadas sob o rótulo de ciências humanas partem necessariamente do texto enquanto expressão semiótica para construir seu objeto, significa compreender que a ação física do homem “deve ser interpretada como atitude mas não se pode interpretar a atitude fora de sua eventual (criada por nós) expressão semiótica” (BAKHTIN, op. cit., p. 319). O fato de as disciplinas das ciências humanas tomarem o texto como ponto de partida não significa, porém, que o objeto construído seja necessariamente o mesmo. Como afirma Bakhtin na citação acima transcrita, as disciplinas, partindo do texto, perambulam em diferentes direções, agarram pedaços heterogêneos, encontram relações (causais ou não) entre esses pedaços „agarrados‟, formulam conceitos, agregam juízos de valores, constroem um objeto com base no ponto de vista que se quer (ou se pode) privilegiar. Borges Neto (2004) compara a construção do objeto científico a um loteamento da realidade: cada disciplina, ao selecionar determinadas porções da realidade, loteia, faz uma redução parcial da enorme diversidade que se apresenta a toda observação. Podemos afirmar que as diversas disciplinas das ciências humanas „loteiam‟ diferentes porções do texto a ser estudado, considerando que o texto, em sentido amplo, conforme afirma Bakhtin (2003, p. 307) envolve “qualquer conjunto coerente de signos”. Nesse sentido, “a ciência das artes (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) opera com textos (obras de arte)”. Ao selecionar, lotear porções do texto como objeto de estudo, de que forma se procede a investigação? Eis o que afirma Bakhtin: É como se obrigássemos o homem a falar (nós construímos os seus importantes depoimentos, explicações, confissões, desenvolvemos 19 integralmente o seu discurso interior eventual ou efetivo, etc). Por toda parte há o texto real ou eventual e a sua compreensão. A investigação se torna interrogação e conversa, isto é, diálogo. Nós não perguntamos à natureza e ela não nos responde. Colocamos as perguntas para nós mesmos e de certo modo organizamos a observação ou a experiência para obtermos a resposta. Quando estudamos o homem, procuramos e encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu significado. (BAKHTIN, op. cit., p. 319). A citação transcrita evidencia que a metodologia nas ciências humanas possui uma natureza essencialmente dialógica, já que ao investigarmos o homem, encontramos signos em toda parte. Ademais, as perguntas postas não são direcionadas à natureza, mas a nós mesmos: organizamos nossa observação com base nessas perguntas. A pesquisa se funda, pois, a partir de uma interrogação constante. É importante observar que é com base no ponto de vista daquele que interroga que as perguntas são feitas e desenvolvidas. O pesquisador debruça-se sobre o objeto, procura captá-lo em seu contexto sócio-histórico, mas não pode desvincular-se totalmente do contexto no qual está imerso o próprio pesquisador. Em outras palavras, interrogamos exotopicamente o objeto – interrogamo-nos de nossa posição valorativa, para lhe impor determinado acabamento. A investigação pressupõe, por conseguinte, um jogo incessante de vozes sociais: as vozes que entrecortam o objeto em seu tempo, em seu contexto; as vozes que o interrogam hoje, que compõem o horizonte social daquele que paira seu olhar sobre determinado fenômeno semiótico. Para Bakhtin, A compreensão dos enunciados integrais e das relações dialógicas entre eles é de índole inevitavelmente dialógica (inclusive a compreensão do pesquisador de ciências humanas); o entendedor (inclusive o pesquisador) se torna participante do diálogo ainda que seja em um nível especial (em função da tendência da interpretação e da pesquisa). (op. cit., p. 332, grifo nosso). 20 Segundo ressalta Amorim (2008, p. 101), o conceito de exotopia, que tão bem se aplica à pesquisa e, sobretudo, à pesquisa em ciências humanas, “designa uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro”. Na pesquisa, ao tomarmos o texto como objeto de investigação, tentamos desvendar e compreender o que „o outro olha‟, isto é, o que ele significa, como significa. O outro não consegue captar uma imagem completa de si: não nos vemos de forma integral, a imagem de nosso próprio corpo é, necessariamente, fragmentada. Apenas sob o olhar do outro constituímos nossa própria imagem. A constituição do eu passa, então, pela visão do outro. Assim é o texto, objeto das ciências humanas: um objeto que só se constroi integralmente pelo olhar do outro que interroga. 1.3 A construção do objeto Considerando que o objeto de estudo no âmbito das ciências humanas constrói-se pelo olhar do pesquisador, que interroga, seleciona e delimita porções da realidade, podemos afirmar que assim se dá a construção de nosso objeto: a uma realidade complexa, em devir constante, propomos um enquadramento específico – estudaremos o Exame Nacional do Ensino Médio como objeto discursivo em uma esfera da atividade verbal. Para tanto, determinada abordagem investigativa e interpretativa se faz necessária. Poderíamos afirmar, ao modo tradicional, que este estudo constitui uma pesquisa de natureza qualitativa, seguindo uma abordagem descritivo-interpretativista. Considerando, porém, as observações até o momento realizadas, julgamos tal afirmativa redundante. Ao nos debruçarmos sobre diferentes 21 textos – objetos semióticos – nossa abordagem e a natureza da pesquisa não poderiam ser outras. As questões que se colocam devem ser mais específicas: que porção do texto pretendemos delimitar? Qual porção da realidade loteamos? De que forma construímos reflexos subjetivos sobre o mundo objetivo? A essas questões, respondemos o seguinte: no plano „objetivo‟, da realidade palpável, empiricamente documentada e atestada, nosso objeto é o Enem (amostras representativas de questões presentes em sua versão inicial, em 1998, à versão 2010), bem como documentos que surgem atrelados a este, conforme afirmamos anteriormente: pronunciamentos do ministro da educação expostos no site do MEC, a Fundamentação teórico-metodológica do Enem (2005), A Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, veiculada pela Assessoria de Comunicação Social (ASC) do Ministério da Educação. Trata-se, pois, de documentos que apresentam a visão (e a versão) oficial desse exame e que estão disponibilizados no site do MEC. Considerando o segundo pólo do texto de que nos fala Bakhtin (2003) – o texto como enunciado, posição axiológica, em relação ininterrupta com outros textos – , nosso objeto refere-se à natureza sócio-histórica e, por conseguinte, ideológica e dialógica desse Exame. Em outros termos, o Enem como gênero em uma esfera discursiva. Nossa pesquisa, portanto, ao selecionar textos de natureza verbal escrita2 para serem analisados, pode ser denominada como pesquisa de análise documental, segundo a classificação estabelecida por Moreira e Caleffe (2008). Sá- 2 Destacamos que a pesquisa documental não trabalha necessariamente com textos escritos, já que o conceito de documento é complexo, envolvendo materiais de natureza verbal (oral e escrita) e não verbal. Nesta pesquisa, porém, analisamos apenas documentos verbais escritos. 22 Silva et al. (2009, p. 6) afirmam que a pesquisa documental é caracterizada pela busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, a exemplo de relatórios, reportagens, cartas, filmes etc. Os documentos nesta dissertação analisados apresentam uma visão sobre o Enem – a visão oficial – , e a partir dessa visão, interrogamos nosso objeto (o Enem como exemplar do gênero exame em larga escala), construindo questionamentos a partir do ângulo aqui selecionado, a partir da realidade aqui „loteada‟. 1.3.1 Descrição do corpus e categorias de análise Devemos ressaltar que nossa escolha por analisar não apenas o Enem em si (a prova), mas também alguns documentos produzidos de forma atrelada a este, resulta de nossas questões de pesquisa, que buscam compreender o Enem como exemplar de um gênero em um contexto de reformas político-sociais, que demandam uma forma específica de regulação educacional. Considerando nossos dois objetivos específicos de pesquisa, que versam sobre a dimensão social e a dimensão verbal do Enem, nosso corpus foi agrupado em duas partes. No capítulo 3, analisamos os seguintes documentos: 1. “Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior” (BRASIL, 2009a), veiculado pela Assessoria de Comunicação Social (ASC) do Ministério da Educação, sobre a proposta do que viria a se tornar o „novo Enem‟. 2. O documento intitulado “Enem: um exame diferente” (BRASIL, 2009b), no qual o MEC apresenta o exame para a sociedade. 23 3. O pronunciamento do ministro da educação, Fernando Haddad, publicado no site do MEC em 20093 (BRASIL, 2009c), no qual o ministro expõe esclarecimentos sobre um fato que abalaria a credibilidade do Enem naquele ano: o furto da prova. 4. Nota do Conselho Nacional de Secretários da Educação – CONSED - sobre a Matriz de Referência do Enem 2009 (BRASIL, 2009d). 5. A Fundamentação teórico-metodológica do Enem (BRASIL, 2005), notadamente: Apresentação e Eixos teóricos que estruturam o Enem. Esses documentos foram organizados conforme as seguintes categorias: 1. Requisitos para a eficiência do exame. 2. O Enem como gênero do discurso: consenso/coerção A difusão de ideias sobre a „educação necessária‟: a) distinção do exame; b) relevância dos conteúdos ou habilidades/competências e pressupostos teórico-metodológicos; c) capacidade de reestruturar e intervir no ensino. 3. Função social. O terceiro capítulo foi elaborado tendo em vista o primeiro objetivo de pesquisa (Analisar a dimensão social na qual se constituem exames como o Enem.). Nele, defendemos que exames em larga escala constituem gêneros do discurso em um contexto de reformas e redefinição do papel do estado frente à educação. O Enem é sempre utilizado para ilustrar e corroborar nossas afirmativas. As observações e análises estabelecidas no capítulo 3, inicialmente, assumem traços mais gerais. Assim, em um primeiro momento, utilizamos a expressão exames em 3 Esse pronunciamento foi proferido em rede nacional. No entanto, tivemos acesso a ele no referido site, sob a forma escrita. 24 larga escala de forma genérica, já que nosso objetivo, no referido capítulo, é analisar a dimensão social na qual se constituem exames como o Enem. Debruçamo-nos, portanto, sobre os precursores desses exames, o contexto de redefinição do papel do Estado e de reformas educacionais, a ideologia neoliberal. No capítulo 4, nosso olhar se refina e passamos a focalizar o Enem de forma mais específica, como reação-resposta às propostas de reformas curriculares – um gênero que assimila um discurso inovador, mas que, ao mesmo tempo, convive com práticas tradicionais. Analisamos amostras representativas de questões constantes desde a primeira edição do Enem até a edição 2010. Todavia, nosso foco foi realmente essa última versão (2010), por ser, à época de elaboração desta dissertação, a mais recente e por materializar as transformações às quais foi o exame submetido a partir de 2009. A tabela a seguir sintetiza as questões analisadas: Edição do Enem 1998 2000 2009 2010 2010 2010 2010 2010 2010 2010 2010 2010 2010 2010 Tabela 1 – Relação de Questões analisadas Questão 58 46 104 24 25 39 44 54 75 83 97 98 133 136 25 Categorizamos esse segundo grupo de documentos da seguinte forma: 1. O Exame nacional do Ensino Médio e as reformas nos currículos de ensino: uma questão de estilo. 2. Estruturação do exame: tipos de questões e contextualização. 3. Um olhar sobre as propostas de redação. Enquanto o capítulo 3 focaliza a dimensão social na qual emerge e é instituído o Enem, o capítulo 4 focaliza a dimensão verbal do exame, com ênfase em seus aspectos estilístico-composicionais. Dessa forma, procuramos atingir, no capítulo 4, o segundo objetivo que norteia esta pesquisa (Analisar a dimensão verbal desse exame, atentando para seus aspectos estilístico-composicionais). Por fim, destacamos que não esgotamos o objeto, mas o interrogamos, o enquadramos em uma realidade, em um ângulo que nos pareceu o mais apropriado e obtivemos algumas respostas, algumas surpresas, algumas inquietações. 26 2 GÊNERO, AVALIAÇÃO: DISCUTINDO ALGUNS CONCEITOS O objeto de estudo proposto nesta pesquisa é, em essência, complexo, pois propomos a análise do Enem em correlação aos condicionantes sócio-políticos em que essa avaliação foi instituída e legitimada. Dessa forma, estudaremos o Enem enquanto um gênero, o qual não pode ser desvinculado de sua esfera discursiva para que possa ser compreendido. Estudar essa articulação pressupõe, inevitavelmente, uma análise da ação normativa do Estado que constrói um consenso sobre a „educação necessária‟. Antes de estabelecer essa relação, em um primeiro momento, no tópico 2.1, analisamos os conceitos de gênero, esfera e estilo segundo a ótica bakhtiniana – conceitos importantes para a investigação de nosso objeto de pesquisa. Em seguida, em 2.2, discutimos a avaliação a partir dos conceitos bakhtinianos analisados. No tópico 2.3, nos debruçamos sobre a atuação do Estado como avaliador. No tópico subsequente, 2.4, discutimos a avaliação por competências, que fundamenta o Enem. Por fim, propomos uma primeira síntese intermediária no tópico 2.5. Destacamos que a forma como este capítulo foi organizado pressupõe um percurso que vai de ideias e conceitos mais gerais até algumas ideias mais específicas. 2.1 Gênero, esfera, estilo Neste tópico, procuramos analisar o modo através do qual os conceitos de gênero, esfera e estilo são desenvolvidos e expostos por Bakhtin. 27 De antemão, esclarecemos que nossa leitura tentará demonstrar que os conceitos e ideias bakhtinianas partem de um princípio fundamental, que possibilita e mesmo sustenta a constituição de sua arquitetura teórica. Poderíamos pensar na interação verbal social como uma noção primeira, um princípio fundamental e não como o resultado de uma demonstração. Em consequência, alguns conceitos desenvolvidos por Bakhtin – estilo, esfera, enunciado, gênero etc – precisam ser correlacionados a essa ideia primeira. Faraco (2008, p. 43) afirma que o grande pressuposto bakhtiniano parte do “primado da alteridade, no sentido de que tenho de passar pela consciência do outro para me constituir”. A alteridade enquanto princípio constitutivo já conduz, de antemão, à ideia de interação social. Ressaltamos que a própria constituição da consciência subjetiva, conforme assinala Bakhtin (2009), pressupõe os signos – signos estes que “só podem aparecer em um terreno interindividual” (p. 35). Se a comunicação e mesmo o pensamento só são possíveis pela mediação do signo, e se este só pode aparecer num terreno interindividual, a interação representa um primado fundamental. Não se trata, porém, de qualquer tipo de interação, mas de uma interação social, isto é, socialmente organizada: “não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se” (BAKHTIN, 2009, p. 35). Feitas essas considerações iniciais, passemos, primeiramente, à análise de algumas considerações tecidas em Os gêneros do discurso (1992). 28 2.1.1 Os gêneros do discurso: reação-resposta a dois problemas fundamentais A necessidade de se teorizar sobre os gêneros do discurso decorre, segundo Bakhtin (1992), de dois problemas fundamentais, a saber: o problema do estilo – do estilo do autor e do estilo geral – não resolvido pela estilística, que trata da questão de forma insatisfatória; a natureza do enunciado, ainda não compreendido como unidade real da comunicação verbal. Comecemos pela primeira problemática. Para introduzi-la, Bakhtin inicia seu discurso mencionando a relação esfera/utilização da língua, uma vez que entender o primeiro problema pressupõe o entendimento de como as diferentes esferas condicionam diversos modos de utilização da língua, caracterizados por estilos igualmente diversos. Segundo o autor, Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua (BAKHTIN, 1992, p. 179). A noção de esfera, segundo Grillo (2008, p. 143), constitui um conceito-chave na arquitetura bakhtiniana. Para o autor, através desse conceito, “Bakhtin busca superar a visão determinista e mecanicista da ortodoxia marxista, da influência dos fatos da base socioeconômica comum sobre os produtos ideológicos”. O marxismo apregoava uma influência direta e mecânica entre a infraestrutura e a superestrutura. Bakhtin, por sua vez, afirma que o contexto influencia a produção verbal, mas não o determina estritamente de forma mecânica, já que a palavra, no interior de uma esfera social, não só reflete como também refrata a realidade. Para Grillo (op. cit., p. 147): “O campo/esfera é um espaço de refração que condiciona a 29 relação enunciado/objeto de sentido, enunciado/enunciado, enunciado/co- enunciadores”. Há, portanto, uma relação imbricada entre esfera e estilo. Vejamos: Cada esfera compreende seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico (BAKHTIN, 1992, p. 284). Depreende-se, da citação acima transcrita, que existe uma relação inextricável entre gênero, estilo e esfera. Determinada esfera, conforme as especificidades da função comunicativa, produz gêneros caracterizados por estilos próprios. Essa relação se torna mais complexa se considerarmos que, conforme assinala Bakhtin (2009), as esferas não se apresentam como contextos fechados ou simplesmente justapostos, como se fossem uns aos outros indiferentes. Essa consideração reforça a tese do princípio interativo (interação verbal social) enquanto ideia primeira, ao mesmo tempo em que fundamenta a relação gênero/estilo/esfera em uma dinâmica dialógica. Parece-nos que os conceitos de enunciado – unidade real da comunicação verbal – e gênero – tipos relativamente estáveis de enunciados – são constituídos para estabelecer essa relação complexa (gênero/estilo/esfera em uma dinâmica dialógica). Observemos: A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – , mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado 30 isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1992, p. 279). A utilização da língua não se dá de forma aleatória, mas através de enunciados que refletem as condições nas quais estes são produzidos (as condições e finalidades de cada esfera). O reflexo dessas condições específicas ocorre sob a forma de um conteúdo, de recursos da língua selecionados conforme um propósito comunicativo (estilo) e de uma construção composicional relativamente estável. Na citação transcrita, há, claramente, uma oposição entre individual/social. Considerado isoladamente, o enunciado é individual, pertence ao indivíduo que o produz. Não obstante, à luz de uma dada esfera, o enunciado mostra-se como manifestação de algo relativamente cristalizado, fruto da atividade verbal (interativa) humana: os gêneros do discurso. O teórico russo, ao citar as incoerências nos estudos sobre os estilos da língua, afirma que “Tal estado de coisas resulta de uma incompreensão da natureza dos gêneros dos estilos da língua e de uma ausência de classificação dos gêneros do discurso por esferas de atividade humana” (BAKHTIN, 1992, p. 284-285). Tal afirmativa leva-nos a supor que, em decorrência da relação fundamental estabelecida entre gênero/estilo/esfera, mencionada acima, um princípio básico classificatório dos gêneros do discurso basear-se-ia, a priori, nas esferas sociais em que eles são criados. A própria distinção gêneros primários (“simples”, fruto da atividade cotidiana) e gêneros secundários (“complexos”, produtos dos sistemas ideológicos constituídos) parece fundamentar-se no primado da esfera da comunicação para se propor enquanto tal. 31 De fato, se retomarmos “Marxismo e filosofia da linguagem” (BAKHTIN, 2009), veremos que esse princípio classificatório meramente mencionado em “Os gêneros do discurso” permanece coerente com a ordem metodológica para o estudo da língua, que, segundo Bakhtin (op. cit.), deve ser o seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual. (p. 124) Embora Bakhtin, no texto supracitado, praticamente não utilize a expressão “gêneros do discurso”, os termos “formas” e “tipos de interação verbal” lembram ou prenunciam o conceito desenvolvido anos depois. Destacamos que essas formas e tipos de interação, para serem compreendidas, devem ser estudadas em correlação a seu contexto (a sua esfera). O estudo da língua percorreria um caminho do mais geral ao mais específico – e isso faz Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem, ao tratar, na primeira parte, de questões referentes ao signo, às ideologias, às relações entre infraestrtuturas e superestruturas; passando, na segunda parte da obra, a uma análise filosófico-marxista da linguagem; e, por fim, na terceira parte, abordando aspectos relativos a problemas sintáticos a partir de uma aplicação do método sociológico. Para Bakhtin formular a teoria dos gêneros do discurso, ele o faz, conforme afirmamos anteriormente, em reação-resposta a dois problemas fundamentais. O primeiro concerne ao estilo. Segundo o autor (1992, p. 282-283), “O estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas típicas de enunciados, isto é, aos gêneros do discurso”. Há 32 alguns gêneros mais aptos para refletir a individualidade na língua (geralmente os gêneros literários), ao passo que outros gêneros praticamente nada refletem da individualidade, do estilo individual do locutor (gêneros padronizados, como as ordens militares). Existe, por conseguinte, um “vínculo indissolúvel, orgânico, entre o estilo e o gênero” (BAKHTIN, op. cit., p. 283). Bakhtin, ao estabelecer esse vínculo orgânico entre gênero e estilo, afirma que um estudo sobre esse último elemento, para ser produtivo, “deve partir do fato de que os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se a estudo prévio dos gêneros em sua diversidade” (p. 284). A estilística, no entanto, desconsiderou essa relação, estudando e classificando os estilos da língua de forma abstrata. Trata-se, segundo Bakhtin, de um erro grosseiro – “A separação entre o estilo e o gênero repercute de um modo muitíssimo nefasto sobre a elaboração de toda uma série de problemas históricos” (BAKHTIN, op. cit., p. 285) –, um equívoco que desvincula a língua de sua constituição histórica, já que “As mudanças históricas dos estilos da língua são indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso” (p. 285). Com efeito, o estilo, inextricavelmente atrelado ao gênero, resulta de uma relação estabelecida entre o locutor e seu grupo social. Voloshinov (1926, p. 16) enfatiza que o estilo corresponde a “uma pessoa mais seu grupo social na forma de seu representante autorizado, o ouvinte”. O estilo do gênero desenvolve-se, pois, nas relações dialógicas, como resultado da constituição de uma posição axiológica perante o mundo e a vida. Ora, se o estilo de um gênero constitui-se a partir das relações estabelecidas entre o locutor e as vozes sociais que compõem o enunciado, diríamos que o princípio da interação social torna-se um conceito primeiro para fundamentar a 33 noção de estilo. Ratificamos, então, o pressuposto defendido no início deste texto. Ao mesmo tempo, acrescentamos que, em “Os gêneros do discurso”, o estilo de um enunciado depende fundamentalmente da imagem que se faz do interlocutor, uma vez que a ele se dirige a palavra, pressupondo, de antemão, uma atitude responsivo-ativa. Brait (2008, p. 95) enfatiza que a questão do estilo na acepção bakhtiniana assume um matiz essencialmente dialógico. Para a autora, “O texto bakhtiniano sobre os gêneros do discurso representa, no que diz respeito à concepção dialógica do estilo, uma abordagem discursiva que, de fato, é a parte menos considerada pela maioria dos consumidores de teorias sobre gêneros”. Adiante, Brait acrescenta que essa concepção dialógica do estilo “implica sujeitos que instauram discursos a partir de seus enunciados concretos, de suas formas de enunciação, que fazem história e são a ela submetidos” (p. 98). O estilo é, portanto, fundamentado numa relação interativa entre sujeitos. A língua nos fornece recursos que possibilitam a construção de um estilo singular, mas esses recursos, arquitetados num estilo, compõem o todo de um enunciado ou de seus tipos relativamente estáveis; em outras palavras, só adquirem sentido na medida em que constituem o enunciado, participam de seu propósito comunicativo voltado para uma problemática em dada esfera da atividade verbal: eis a relação indissolúvel entre estilo/gênero/esfera. Em relação ao segundo problema abordado em “Os gêneros do discurso”, sem abandonar a problemática do estilo Bakhtin debruça-se sobre o estudo do enunciado em sua qualidade de unidade real da comunicação. Para o autor, a análise do enunciado como unidade comunicativa permitiria “compreender melhor a 34 natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações” (BAKHTIN, 1992, p. 287). Bakhtin introduz essa segunda problemática criticando a Linguística do século XIX, que relegara a função comunicativa da linguagem a segundo plano, bem como critica a escola de Vossler, ao passar a função expressiva ao primeiro plano, tratando o locutor “como se este estivesse sozinho, sem uma forçosa relação com os outros parceiros da comunicação verbal” (BAKHTIN, op. cit., p. 289). Contrapondo-se a essas concepções da linguagem, Bakhtin insiste na interação verbal como realidade primeira da língua: o locutor não está sozinho, pois fala, escreve, dirige-se sempre a outrem. Da mesma forma, o destinatário não permanece passivo; adota uma atitude responsiva ativa, concorda ou discorda, completa, adapta etc (“Toda compreensão é prenhe de resposta e, de certa forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor”, BAKHTIN, op. cit., p. 290). Destacamos que o enunciado se constrói numa relação de sentidos, de valores, de posições axiológicas, já que “cada signo constituído possui um tema” e “O tema ideológico possui sempre um índice de valor social” (BAKHTIN, 2009, p. 46). Acrescenta o autor, em Marxismo e filosofia da linguagem, que “O índice de valor é por natureza interindividual” (p. 46). Essas considerações levam-nos a afirmar o primado da interação enquanto ideia primeira, que sustenta e possibilita todas as demais. Tal ideia vincula-se organicamente ao princípio do dialogismo como pressuposição para a existência da linguagem. Para defender esse princípio, o próprio discurso bakhtiniano nos revela a constituição da linguagem enquanto fluxo dialógico. Vejamos: 35 Esses termos deliberadamente vagos costumam designar aquilo que está submetido a uma segmentação em enunciados de língua concebidas como frações da língua: fônicas (o fonema, a sílaba, o grupo acentuado) e significantes (a oração e a palavra). “O fluxo verbal se subdivide...”, “Nosso discurso se subdivide em...”, eis como costumam, nos cursos de Linguística geral e de gramática, e também nos estudos especializados de fonética, de lexicologia, introduzir as seções de gramática consagradas à análise das unidades lingüísticas correspondentes. (BAKHTIN, 1992, p. 292). Na citação transcrita acima, Bakhtin critica os estudos linguísticos contemporâneos à sua época, que desconsideravam a natureza viva da linguagem, o caráter interativo do enunciado, utilizando-se, de forma incerta e ambígua, de termos e expressões como “a fala”, “o fluxo verbal”, “o nosso discurso”. Tais estudos, segundo Bakhtin, menosprezavam “o papel ativo do outro no processo de comunicação verbal” (p. 292). Para contrapor-se a essa perspectiva, o teórico introduz a fala alheia em seu discurso (“O fluxo verbal se subdivide...”, “Nosso discurso se subdivide em...”, eis como costumam...), negando-a em um movimento de distanciamento, de desqualificação da voz do outro (“Todos esses problemas estão imersos numa completa indeterminação e num conhecimento fragmentário”, p. 292). Com efeito, os dois problemas fundamentais – o problema do estilo, a natureza do enunciado – a partir dos quais Bakhtin fundamenta sua teoria sobre os gêneros do discurso constituem dialogicamente o próprio discurso bakhtiniano, que surge como reação-resposta (numa atitude responsivo-ativa) a questões e ideias correntes em sua época: o estudo do estilo da língua pela estilística; o estudo da língua pelos gramáticos e pelos filólogos. Em Marxismo e filosofia da linguagem, é perceptível um movimento dialógico similar, à medida que o teórico, para construir sua argumentação, traz para seu discurso, dentre outros, o discurso marxista, as correntes filosóficas objetivistas e 36 subjetivistas. Não obstante, ao compor os alicerces de sua teoria, Bakhtin critica a ortodoxia e o mecanicismo marxista, a abstração objetivista, o idealismo exacerbado e incoerente dos subjetivistas. Ressaltamos que o teórico, ao realizar tais críticas e ao compor sua arquitetura teórica, não apenas se distancia dos pensamentos e teorias citadas: ele as complementa, discute, debate, polemiza com elas. Existem, pois, movimentos dialógicos múltiplos em seus discursos, os quais não serão aqui objeto de análise. Por ora, devemos analisar a natureza do enunciado, segundo problema em relação ao qual o ensaio “Os gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1992) surge e se constitui como reação-resposta. Já mencionamos que o enunciado é definido, inicialmente, como “unidade real” da comunicação, e, em seguida, é apresentado como um elo em uma cadeia ininterrupta de outros enunciados. Por fim, Bakhtin enumera e discute as principais características daquela que seria a “unidade real da comunicação”, as quais podem assim ser resumidas: Características do enunciado: 1. É delimitado em suas duas extremidades pela alternância dos sujeitos falantes; 2. Está em contato imediato com a realidade (com a situação transverbal); 3. Encontra-se em relação imediata com os enunciados do outro (constitui um elo numa cadeia muito complexa de enunciados). 4. Possui uma significação plena e uma capacidade de suscitar uma atitude responsivo-ativa. Bakhtin formula tais características contrapondo o enunciado – unidade real da comunicação – à oração – unidade gramatical, pertencente ao sistema abstrato da língua. Para acentuar essa distinção, o autor afirma que “As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente linguística), ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos com a 37 ajuda de unidades da língua” (1992, p. 297). Essa afirmação reforça a natureza interativa do enunciado. Adiante, Bakhtin evidencia que a diferença entre a oração e o enunciado é de natureza qualitativa e não quantitativa: “nada impede que o enunciado seja constituído de uma única oração, ou de uma única palavra, por assim dizer, de uma única unidade da fala” (BAKHTIN, op. cit., p. 297). A expressão “Fogo!”, se enunciada em um contexto real, suscitando uma atitude responsivo-ativa, constituirá um enunciado composto por uma só palavra. Por esses critérios, considera-se enunciado tanto uma ordem militar quanto um romance em vários tomos – daí decorre a extrema complexidade e heterogeneidade do enunciado, o que talvez tenha sido uma barreira para seu estudo sistemático, segundo assinala Bakhtin. Além das características enumeradas acima, o autor ainda discute e analisa algumas particularidades do enunciado, quais sejam: 1. As fronteiras delimitadas pela alternância dos sujeitos falantes; 2. O acabamento específico; 3. A relação do enunciado com o próprio locutor e com os outros parceiros da comunicação verbal. Sobre a primeira particularidade, Bakhtin afirma: “Todo enunciado – desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o tratado científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto” (BAKHTIN, op. cit., p. 294). Este começo e este fim absolutos são delimitados pela alternância dos sujeitos falantes, em consonância com as particularidades das situações comunicativas. As réplicas do diálogo são as formas mais simples e mais visíveis de alternância dos sujeitos e de delimitação das fronteiras do enunciado. Não se deve, porém, reduzir o fenômeno às formas do diálogo: todo enunciado é delimitado por essa alternância. O autor ressalta que a relação que liga as réplicas do diálogo “é 38 apenas uma variante da relação específica que liga enunciados completos durante o processo da comunicação verbal” (BAKHTIN, op. cit., p. 294-295), e que “esta relação só é possível entre enunciados provenientes de diferentes sujeitos falantes. Pressupõe o outro” (p. 295). Conclui-se, pois, que as fronteiras do enunciado pressupõem a interação verbal, que não se limita à interação face a face. O objeto de sentido é, teoricamente, conforme assinala Bakhtin, inesgotável. Não obstante, ao se tornar tema de um enunciado, ele recebe um acabamento em função do intuito, do querer-dizer do locutor, dos objetivos por atingir, estruturandose segundo as formas típicas do gênero. Uma questão, porém, Bakhtin não responde em “Os gêneros do discurso”: de que forma um objeto torna-se tema de um enunciado? Essa questão é discutida alguns anos antes, em Marxismo e filosofia da linguagem. Ao tratar das relações entre infraestruturas e superestruturas, o autor ressalta o seguinte: Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semióticoideológica, é indispensável que ele esteja ligado às condições socioeconômicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material. Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui papel algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social. (BAKHTIN, 2009, p. 46). Aqueles objetos vinculados às condições socioeconômicas de um grupo social organizado entram no domínio da ideologia, ao se constituírem como tema de um enunciado. São as condições socioeconômicas “que associam um novo elemento da realidade ao horizonte social, que o tornam socialmente pertinente” (BAKHTIN, op. cit., p. 47). Sendo assim, o tema de um enunciado representa sempre um valor social. 39 Essas observações levam-nos a afirmar o quão complexa é a constituição de um tema, muitas vezes reduzido ou erroneamente entendido como sinônimo de “conteúdo”, “assunto tratado”. O gênero possui um estilo, um tema e uma construção composicional – tal frase é frequentemente repetida por “consumidores de teorias de gêneros”, para nos apropriarmos da expressão de Brait (2008). Muitos daqueles que se debruçam sobre essas teorias não percebem a verdadeira natureza do tema, do estilo, da composição – natureza vinculada a posições valorativas numa dada esfera, já que, conforme afirma Faraco (2008, p. 38), “para Bakhtin, a grande força que move o universo das práticas culturais são precisamente as posições socioavaliativas postas numa dinâmica de múltiplas interrelações responsivas”. Diríamos, por conseguinte, que, para Bakhtin, não são as respostas, nem as perguntas que movem o mundo, mas as posições valorativas das esferas ideológicas. Até o presente momento, apresentamos e discutimos as particularidades do enunciado enquanto unidade da comunicação verbal, bem como discutimos outros conceitos apresentados por Bakhtin (esfera, estilo, dialogismo etc). Falta, no entanto, esclarecer as distinções entre gênero e enunciado. De antemão, é preciso considerar que Bakhtin não se utiliza de uma terminologia fixa, sem oscilações. Ao lado das expressões “enunciado” e “gêneros do discurso” encontramos também: “tipos particulares de enunciados”, “tipos relativamente estáveis de enunciados”, “gêneros de enunciados”, “formas de enunciados”, “enunciados primários”, “enunciados secundários” etc. Frequentemente, “gênero” e “enunciado” são utilizados indistintamente: “O romance em seu todo é um enunciado, da mesma forma que a réplica do diálogo cotidiano ou a carta pessoal (são fenômenos da mesma natureza); o que diferencia o romance é 40 ser um enunciado secundário (complexo)” (1992, p. 281). Com efeito, ao longo de quase todo o texto, os termos parecem intercambiáveis: as mesmas características atribuídas ao enunciado são atribuídas ao gênero. Destacamos, porém, que a distinção posta logo nas primeiras páginas de “Os gêneros do discurso”, assim como as sutilezas de linguagem presentes no ensaio evidenciam tratar-se de fenômenos distintos, a depender do nível de abstração a que se proceda. O enunciado é a unidade concreta, imediata da comunicação, que se cristaliza, segundo os usos, segundo as especificidades de sua esfera, em gêneros. Podemos dizer que determinado objeto enquanto tal, enquanto unidade comunicativa é um enunciado, à medida que tem um autor, dirige-se a outrem (a um interlocutor), respondendo a determinada problemática de uma esfera. Considerado em seu conjunto, isto é, no conjunto de outros enunciados que possuem características bastante semelhantes, estamos no domínio dos gêneros 4. “Gênero”, “enunciado”, “estilo” e “esfera” são alguns conceitos-chave na arquitetura bakhtiniana bastante discutidos. Correlacionando tais conceitos a nosso objeto de estudo, podemos afirmar que o Enem, tomado isoladamente, é um enunciado, caracterizado pela alternância de avaliadores e sujeitos avaliados, estando em contato imediato com a situação transverbal que define esses papéis sociais. Considerando, porém, o exame em uma dimensão social mais ampla, é possível perceber que ele representa um exemplar de um gênero em um momento de redefinição do papel do Estado e de reformas educacionais – gênero que está 4 “Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1992 [1953], p. 279). 41 sendo socialmente reconhecido sob a denominação avaliação ou exame em larga escala. Esse gênero atende às especificidades de uma esfera condicionada pela ofensiva neoliberal, a qual justifica problemas/fracassos ou sucessos econômicos através de fracassos ou êxitos educacionais. Nesse sentido, sendo a educação tomada como condição necessária para o desenvolvimento econômico, apregoa-se a necessidade de auditá-la, por meio de instrumentos pretensamente racionais, objetivos, imparciais: os exames. Ao mesmo tempo, nesse contexto social de mudanças, propõem-se reformas educacionais capazes de atender à reestruturação produtiva, à flexibilização das relações de trabalho, apregoa-se a necessidade de transformação no ensino em decorrência de novas demandas e desafios gerados por uma sociedade imersa na informação. Defende-se o conhecimento como algo que não pode mais ser fragmentado e totalmente compartimentado em disciplinas, bem como o desenvolvimento de competências e habilidades para que se possa enfrentar a nova realidade imposta. Dessa situação histórica, retira o Enem seu estilo, em um olhar responsivo dos avaliadores aos ditames dos „signos da modernidade‟. Essas questões serão mais bem discutidas nos capítulo 3 e 4. Por ora, devemos entender que nenhum gênero emerge sem quaisquer relações com gêneros já existentes. Os exames em larga escala (dentre os quais, tomamos o Enem como objeto de análise), por conseguinte, encontram precedentes nos exames escolares, oriundos da consolidação da sociedade burguesa e da escola moderna. 42 A seguir, entenderemos melhor esse percurso – dos exames restritos ao âmbito escolar aos exames sob a tutela estatal – utilizando os conceitos até o momento discutidos. 2.2 Avaliação: enquadrando o tema sob a ótica bakhtiniana Embora não exclusiva da instituição escolar, a avaliação permeia o imaginário como algo intrínseco à escola. Provas, testes, notas são vocábulos que certamente emergem quando se fala, pensa ou se escreve sobre avaliação. Existem inúmeros estudos, livros, teses e pesquisas das mais diversas que debatem o tema, a maioria situada no âmbito dos estudos em Educação ou Didática. A pesquisa bibliográfica por nós desenvolvida permitiu-nos constatar a presença de um discurso pré-estabelecido sobre o que seria a avaliação „necessária‟ e „desejável‟; o que não deve ou não deveria ser feito; o que as escolas, de fato, têm feito cotidianamente. Ao mesmo tempo, lacunas, indefinições ou definições confusas permeiam o campo dos estudos sobre avaliação da aprendizagem, o que nos permite dizer que nos movemos sobre um chão movediço, ainda repleto de incertezas. Não constitui nosso objetivo propor modelos, construir um discurso sobre o que seria a avaliação da aprendizagem ideal. Ao invés disso, propomo-nos a enquadrar o tema a partir dos postulados bakhtinianos discutidos no sub-tópico precedente, bem como a partir dos estudos em Educação. Considerando que o ponto de vista determina o objeto, conforme formulou Saussure em seu Cours de Linguistique Genérale, a teoria escolhida para focalizar a avaliação nos levará a construir interdisciplinarmente um objeto que já vem sendo 43 amplamente discutido, segundo mencionamos acima. De forma geral, as ideias aqui apresentadas servirão de fundamento para o tópico que a este sucede, no qual discutiremos como o Estado se tornou, nos últimos anos, um Estado-avaliador, assumindo uma função que, em origem, pertencia exclusivamente à escola. Tomando em consideração, primeiramente, a esfera escolar em específico, comecemos, pois, pelas origens, para que, em seguida, possamos discutir algumas (in) definições, e, por fim, possamos formular nossa visão sobre o objeto, servindonos de alguns conceitos e ideias de Bakhtin, os quais foram apresentados anteriormente. 2.2.1 Das origens às (in) definições Luckesi (1999) situa a origem da avaliação escolar nos séculos XVI e XVII, a partir da consolidação da escola moderna oriunda da cristalização da sociedade burguesa. Para servir a essa sociedade, a avaliação caracterizar-se-ia, desde a origem, por atos antagônicos, autoritários e seletivos. É preciso ressaltar, todavia, que a terminologia então utilizada não era propriamente avaliação, mas provas, exames e testes. A utilização do termo avaliação foi proposto por Tyler, segundo assinala Luckesi (op. cit.), atrelando-se o processo avaliativo à verificação de mudanças comportamentais, conforme os objetivos traçados pelo professor. A nomenclatura avaliação impera na bibliografia recente. No entanto, mais que uma mudança terminológica, uma nova carga semântica parece separar, nas pesquisas acadêmicas em educação, o vocábulo avaliação dos outrora correlatos testes, provas e exames, segundo discutimos adiante. 44 Por ora, assinalamos a relação imbricada entre avaliação e sociedade, e, mais especificamente, entre avaliação e sociedade burguesa, considerando que aquela emergiu com a consolidação desta. Luckesi (1999) enfatiza que, segundo o modelo de sociedade e de educação em pauta, a avaliação assumirá matizes diferenciados. Assim, se temos um modelo de sociedade e de escola liberais, teremos uma avaliação autoritária, como instrumento disciplinador; se o modelo de escola/sociedade é o „libertador‟, „democrático‟, teremos uma avaliação que visa superar o autoritarismo, e que propõe o estabelecimento da autonomia. O autor, ao que nos parece, propõe uma correlação mecânica e simplista, ao desconsiderar a dialética e as contradições inerentes a qualquer modelo que se imponha, seja de educação, seja de sociedade. Não se pode tão somente afirmar que ao modelo “x” de escola, teremos a avaliação “y”, afinal, os atos humanos, o agir humano não reproduzem tal e qual a estrutura social, conforme assinala Bakhtin (1920-1924). Se considerarmos que a avaliação é, em sentido amplo, um ato humano (o ato de avaliar x, y ou z, a partir de uma posição axiológica), deveremos considerar, igualmente, as singularidades e contradições desse ato. O primeiro “sintoma” (se assim podemos denominar) dessas contradições que permeiam a avaliação escolar reside, certamente, nas indefinições sobre seus significados. Indefinições presentes tanto na fala de professores da educação básica, quanto no discurso de pesquisadores que se debruçam sobre o tema. Em relação aos professores, esclarecedora é a pesquisa de Sarmento (1997), ao demonstrar “o quadro contraditório em que a escola se encontra, reproduzindo um discurso democrático e crítico, mas na realidade desenvolvendo uma prática autoritária e tradicional” (p. 12). A autora, após investigar as práticas de avaliação em três escolas de Minas Gerais (duas públicas e uma particular), constata falta de 45 clareza nas falas dos professores, no que concerne às definições e às concepções de avaliação por eles empreendida. Para Sarmento: “As entrevistas mostram uma dificuldade por parte de professores e especialistas em conceituar e realizar a avaliação” (p. 93). Adiante, acrescenta: “Parece que os avaliadores na escola não têm clareza quanto ao objeto de avaliação” (p. 107). Quando interrogadas, as professoras entrevistadas por Sarmento enfatizavam o fato de “avaliar o aluno como um todo”. Na prática, esse „todo‟ reduzia-se a provas que tendiam a meramente reproduzir exercícios desenvolvidos em sala. Hoffmann (2010) constata, por sua vez, imprecisões nas terminologias e nos significados “do testar” e “do medir”. Em discussões e encontros com professores, a autora observou que “Os termos teste e medida são definidos de forma vaga e as respostas não revelam consenso entre os professores” (p. 39). Ferreira (2009) menciona a falta de conscientização dos professores em relação à avaliação, considerando que esta é “parte integrante do processo ensinoaprendizagem” (p. 30), sendo, também, um dos meios para tornar esse processo mais efetivo. Segundo a autora (op. cit., p. 50), “muitos professores não apresentam um entendimento claro sobre o verdadeiro significado e funções da avaliação, ao expressarem sua concepção de avaliação”. A obrigação burocrática e formal estaria, conforme Ferreira, sobreposta aos verdadeiros sentidos e funções da avaliação enquanto processo que potencializa a aprendizagem, tornando-a mais eficaz. Constatação semelhante apresenta Melchior (1999, p. 14), ao afirmar que “a maioria dos professores não tem uma percepção clara com relação a questões básicas como: o que é avaliar? E por que avaliar?”. A autora procura responder a essas questões, evidenciando a importância da avaliação, e estabelecendo parâmetros para aquela que seria, em sua ótica, a „avaliação necessária‟. 46 Gama (1999, p. 138), em um estudo de caso realizado em uma escola pública (“Escola Minas Gerais” – EMG5) da rede de escolas oficiais do estado do Rio de Janeiro, chega à conclusão de que “Entre os professores da EMG há ainda confusões acerca do que é avaliação, medida e verificação da aprendizagem. Quase sempre tomam uma coisa pela outra”. Embora não tenhamos vivenciado os contextos descritos pelos pesquisadores supracitados, ao que nos parece, as ambiguidades e imprecisões nas falas dos professores decorrem da própria situação de pesquisa, nem sempre cômoda, nem sempre natural. Professores, quando interpelados a responder “o que é avaliação” ou “como avaliam”, podem não saber propor definições claras e objetivas. Todavia, não haveria tantas dubiedades na prática: cada professor sabe como avalia, por que avalia, o que avalia, ainda que sua prática avaliativa não siga exatamente os modelos esperados por pesquisadores, muitas vezes alheios ou „estranhos‟ aos contextos estudados. De fato, Sarmento (1997) constata uma prática avaliativa consolidada nas escolas por ela estudadas, mesmo que a fala das professoras estivesse embebido em imprecisões. Se, por um lado, pesquisadores criticam docentes por estes não demonstrarem ter em mente conceitos e concepções claras, precisas sobre “avaliação” e sobre o objeto a ser avaliado, é possível afirmar, por outro lado, que nem sempre o discurso desses mesmos pesquisadores, situados num paradigma qualitativo de avaliação, apresenta a tão almejada clareza e precisão. A revisão bibliográfica por nós empreendida evidenciou que, no paradigma qualitativo emergente, no qual se enfatiza o aspecto formativo da avaliação, as terminologias adotadas muitas vezes se mostram confusas e/ou contraditórias. Foi 5 Denominação fictícia atribuída pelo autor. 47 possível perceber, ademais, lacunas metodológicas no que concerne a propostas „alternativas‟, „democráticas‟ e „inclusivas‟ de avaliação. Discorramos sobre esses dois aspectos. Primeiramente, acerca das terminologias adotadas, constatamos que o termo avaliação aparece como alternativa, mais ampla, mais democrática aos outrora correlatos provas, testes e exames. Mais que uma nova terminologia, segundo afirmamos acima, avaliação parece propor uma nova carga semântica, sendo apresentada como algo mais amplo, algo que envolveria um processo que não se esgotaria em momentos terminais, como se esgotam provas/testes/exames – a ênfase se desloca do produto para o processo. Os vários autores citados ao longo deste tópico (Luckesi, 1999; Hoffmann, 2010; Ferreira, 2009; Gama, 1997; Melchior, 1999; Sarmento, 1997 etc) propõem distinções entre “avaliação” e “verificação da aprendizagem” (LUCKESI, 1999, por exemplo), “avaliar” x “testar/medir” (HOFFMANN, 2010). Não obstante, a despeito das diferenciações muitas vezes com tanto ardor defendidas, o discurso revela o emprego indistinto justamente dos termos que são diferenciados. Luckesi (1999), em um dos artigos reunidos na obra Avaliação da aprendizagem escolar6, diferencia “verificação” de “avaliação da aprendizagem”, atribuindo carga semântica negativa àquela (à verificação), à medida que a simples verificação estaria revestida de autoritarismo, seletividade e exclusão. Em outro artigo7 da mesma obra, a avaliação é definida como um “ato amoroso”, que acolhe, inclui o aluno, ao invés de segregar e excluir. Todavia, em um terceiro artigo 8 da 6 O artigo intitula-se “Verificação ou avaliação: o que pratica a escola”. 7 A saber: “Avaliação da aprendizagem escolar: um ato amoroso”. 8 “Avaliação educacional escolar: para além do autoritarismo”. 48 obra supracitada, o autor toma o vocábulo “avaliação” por aquilo que seria meramente “verificação”, ao afirmar que “A avaliação está muito mais articulada com a reprovação do que com a aprovação e daí vem a sua contribuição para a seletividade social, que já existe independente dela” (p. 26). Ora, se a avaliação é “um ato de amor” não é ela que estaria “articulada com a reprovação”, mas a “verificação da aprendizagem”, cristalizada em testes, provas e exames. Ademais, assinalamos que a própria definição de avaliação como „ato amoroso‟ não nos parece clara, se nos debruçarmos sobre o sentido dos vocábulos empregados. O que o autor entenderia por “ato”? O ato, ou os atos humanos são objeto de reflexões profundas e filosóficas, tendo Bakhtin discorrido sobre o assunto no ensaio Para uma filosofia do ato (1993). Anteriormente, afirmamos que a avaliação, em sentido amplo, pode ser considerada um “ato”, no sentido em que este se apresenta como o movimento do pensamento – ato de pensar, de criar, de produzir, a partir de uma posição singular. As discussões que neste tópico confluem, no entanto, não se debruçam sobre o sentido amplo da avaliação, mas sobre seu sentido estrito, em um contexto específico: o contexto escolar. Falando sobre avaliação da aprendizagem, é possível constatar, no paradigma qualitativo emergente, conforme mencionamos, uma rejeição aos termos provas, testes e exames, uma vez estes seriam „autoritários‟ e „excludentes‟. Há, também, uma recusa à visão tecnicista, em prol de uma visão que privilegia o processo, a construção. Não obstante, a avaliação, ainda que entendida como processo, é, frequentemente, definida como “instrumento” ou “técnica”. Melchior (1999), por exemplo, diferencia “avaliação” de “técnica”, ao afirmar que “aplicar um teste ou fazer uma observação são técnicas que podem ser usadas pelo professor (...). Atribuir uma nota é, apenas, expressar os resultados e não 49 avaliar” (p. 17, grifos nossos). Não obstante, a autora apresenta, páginas adiante, “técnicas utilizadas na avaliação escolar”, denominando, pois, avaliação como “técnica”. Procedimento, processo, instrumento, prática... tais são os vocábulos recorrentes quando se procura definir e conceituar “avaliação da aprendizagem” no âmbito escolar. Esses vocábulos são utilizados indistintamente, evidenciando que, malgrado tenhamos talvez imagens, símbolos, sentidos pré-construídos sobre o tema, este se apresenta, ainda, de forma indefinida. O que significa, de fato, avaliar a aprendizagem, ou o ensino-aprendizagem? Essa é uma questão ainda sem resposta. Mesmo que não se tenha uma resposta, dadas as imprecisões e indefinições nas pesquisas sobre avaliação, é possível perceber, no paradigma qualitativo emergente, um discurso pré-construído sobre a „avaliação necessária‟, conforme afirmamos anteriormente. A avaliação, nesse paradigma, é entendida como processo/instrumento/prática que visa superar as dificuldades de aprendizagem do educando, de forma a incluí-lo socialmente, em prol de uma prática pedagógica democrática, não-autoritária. Barretto (2001, p. 49), ao analisar a avaliação da educação básica entre dois modelos, afirma que o paradigma qualitativo emergente reforça “uma abordagem historicamente situada, que, em relação ao aluno, leve em conta não apenas a dimensão cognitiva, mas a social, a afetiva, seus valores, motivações e até mesmo a sua própria história de vida”. Embora exista certo consenso acerca dessa “abordagem historicamente situada”, a autora argumenta que “O paradigma emergente de avaliação qualitativa não tem uma dimensão teórica própria. Ele 50 empresta elementos de várias vertentes de pensamento, constituindo-se numa formulação multidisciplinar”. Adiante, Barretto menciona as lacunas que permeiam esse paradigma de avaliação: Embora gozando de grande consenso na área, o que vem à tona em relação ao paradigma de avaliação qualitativa é sobretudo a afirmação de certos pressupostos que o fundamentam, tendo sido constatada grande lacuna em termos de sugestões metodológicas e de procedimentos a serem adotados para viabilizá-lo na prática. São muito escassos os textos que se ocupam desses aspectos (BARRETTO, op. cit. p. 52). A autora supracitada nos chama a atenção para um aspecto relativo à relação teoria/prática: em que medida os princípios defendidos como constitutivos de uma avaliação „democrática‟ são aplicáveis à realidade escolar? Esses princípios são, de fato, considerados cotidianamente nas escolas? As respostas a tais questionamentos conduzem a uma focalização em aspectos metodológicos e operacionais, os quais não constituem nosso objeto de estudo. Propomo-nos, antes, a entender o sentido da avaliação. O que é a avaliação no âmbito escolar? Processo, procedimento, instrumento, prática? Não nos conformamos com a utilização indistinta desses termos. Pensemos, pois, sobre a avaliação focalizando sua esfera social. Pensemos sobre a avaliação com vistas a propor algumas definições, que não se impõem, evidentemente, como definitivas, mas como propostas, alternativas, caminhos a serem percorridos. 2.2.2 Provas/testes/exames sob a ótica bakhtiniana No tópico 2.1, discorremos sobre a relação orgânica entre estilo/gênero/esfera, sob a ótica bakhtiniana. Essa relação será fundamental para que possamos entender a avaliação no âmbito da esfera escolar. Antes, porém, com 51 base nas questões levantadas anteriormente, pensemos: o que é a avaliação da aprendizagem no âmbito escolar – processo, procedimento, instrumento, prática? É consenso entre pesquisadores contemporâneos a ideia segundo a qual a avaliação não se reduz a provas/testes/exames (orais ou escritos). A avaliação envolveria múltiplas e complexas ações do professor, as quais, quase sempre, se traduzem em notas ou conceitos com vistas a cumprir finalidades burocráticas (a exigência de notas pela instituição escolar) e/ou pedagógicas (verificar a aprendizagem dos alunos, (re) direcionar o ensino, fazer um diagnóstico etc). Acordos tácitos subjazem à avaliação: a determinado sujeito é atribuído o papel de avaliador; a outros, o papel social de avaliados, sem que isso precise ser explicitamente concordado – os sujeitos assumem (naturalmente?) seus papéis. Essa característica da avaliação – acordo tácito sobre papéis sociais assumidos – envolve, ou não, a constituição de um ritual (a aplicação de provas/testes/exames como evento ritualístico). Por outro lado, a fim de se instituir uma situação mais democrática, poderíamos ter a simulação da inversão de papéis: o aluno se autoavaliando, ou avaliando o professor. Todavia, mesmo que o aluno temporariamente assuma o papel de avaliador, ainda assim temos uma relação instituída entre avaliador – avaliando – objeto a ser avaliado – instrumento, meios de avaliação. Outra característica da avaliação no âmbito escolar reside na relação interativa entre sujeitos, mediada pela escrita. Com efeito, a leitura e a escrita estão, necessariamente, presentes na avaliação, ainda que não sejam objetos estritos a serem avaliados. Sempre que se tem a avaliação, tem-se, consequentemente, a remissão a textos escritos. Ademais, a própria avaliação pode ser realizada/materializada por materiais escritos: provas, anotações na caderneta do 52 professor, registros, diários constituem meios materiais diversos que servem para fins pedagógicos e/ou burocráticos. É possível afirmar, também, que a avaliação envolve atividades regulares, constituídas sócio-historicamente. Trata-se, pois, de atividades muitas vezes repetidas e repetíveis, apre(e)ndidas nas interações sociais, envolvendo regras, modos específicos de comportamento. Exemplifiquemos: na avaliação materializada em uma prova escrita, temos um ritual que deve ser obedecido (alguém distribui as provas, outros a respondem, preferencialmente em silêncio, em um tempo prédeterminado). Se temos, por outro lado, uma avaliação desenvolvida em um conselho de classe, não se tem a presença física dos sujeitos avaliados, mas apenas a dos avaliadores, os quais debatem, discutem se estes sujeitos avaliados deverão ser aprovados ou reprovados, conforme alguns critérios estabelecidos. Em uma avaliação constituída por testes orais, praticamente os mesmos rituais da “prova escrita” são seguidos, com a diferença de que o avaliado deverá verbalizar oralmente conhecimentos aferidos que são questionados. As regras, os rituais, as práticas descritas acima são, certamente, suscitadas pelas especificidades da esfera discursiva em questão – esfera que constitui a palavra, o signo ideológico, refletor e refrator de condições de produção as quais quase sempre exigem a disciplina, a ordem, a obediência à hierarquia, de tal forma que tais aspectos (ordem, disciplina etc) acabam por se tornar componentes e mesmo objeto de avaliação (pensemos nos tão famosos „pontos de comportamento‟ atribuídos aos alunos como parte da avaliação bimestral, semestral...). As características até o momento apresentadas nos permitem concluir que a avaliação ocorre em diferentes eventos – múltiplos, muitas vezes multiformes – nos quais temos a presença de determinadas práticas geralmente ritualísticas. Tais 53 eventos envolvem a instituição de uma relação, entre sujeitos sociais, mediada pela escrita, mesmo que textos escritos não estejam fisicamente presentes, ou sejam oralizados. Tais eventos, uma vez mediados por textos escritos, suscitam, ademais, gêneros discursivos, que assumem funções específicas naquele evento e naquela esfera aos quais estão intimamente vinculados. Em outras palavras, em eventos de avaliação temos, muitas vezes, a utilização de provas/testes/exames enquanto materiais escritos ou orais que possuem uma composição relativamente estável, um tema vinculado a sua esfera discursiva e um estilo singular. 2.2.2.1 Provas/testes/exames: um gênero do discurso O último parágrafo que antecede este tópico (“Provas/testes/exames: um gênero do discurso”) já nos deixa em condições de entender a natureza discursiva da avaliação, ao mesmo tempo em que nos impõe uma segunda problemática: o que caracteriza este gênero que emerge em eventos de avaliação escolar, considerando a relação estabelecida anteriormente entre gênero/estilo/esfera? Pensemos primeiramente sobre a esfera sem que nos detenhamos profundamente em sua análise. A escola moderna, segundo ressaltamos acima com base em Luckesi (1999), consolidou-se nos séculos XVI e XVII, em decorrência da constituição da sociedade burguesa. Os testes e exames eram utilizados para verificar a aprendizagem, bem como para punir os alunos por eventuais falhas em sala de aula. Temos, portanto, na origem, uma relação prova/instrumento de controle que evidencia também uma das funções daquela instituição em fase de consolidação: a escola não se propunha 54 apenas a ensinar conteúdos, mas também a moldar comportamentos, ensinar atitudes, modos de conduta a uma classe seleta. No século XX, a „pedagogia para o exame‟, ou a pedagogia em função exclusiva do exame, passa a ser questionada, sobretudo com o movimento da Escola Nova. Apoiando-se em autores como Rogers (1985), que apregoa a não diretividade do ensino, e Piaget (1970, 1977, 1984, 1987), muitos estudiosos do campo educacional passam a defender a não utilização de provas e testes, mecanismos autoritários e discriminatórios, a serviço da seletividade social. O termo “avaliação” passa a substituir “provas”, “testes” e “exames”, segundo mencionamos acima. Todavia, as provas, os testes e os exames nunca deixaram de existir, nunca deixaram de ser aplicados em sala de aula, o que nos leva a correlacionar imediatamente a instituição escolar a esse gênero. Não há como dissociar a escola das provas e testes utilizados em eventos de avaliação. Podemos afirmar, por conseguinte, uma relação imbricada entre a esfera escolar e esse gênero do discurso, ao qual múltiplas funções são atribuídas. Em uma breve revisão da literatura sobre avaliação da aprendizagem, pudemos levantar as seguintes funções sociais atribuídas a esse gênero: 1. Diagnosticar (dificuldades, o estágio atual de desenvolvimento do aluno etc); 2. (re) direcionar o ensino e as práticas pedagógicas; 3. coletar dados e informações (sobre os alunos, sobre o professor, sobre as práticas pedagógicas e a efetividade das mesmas etc); 4. investigar (o aprendizado, as dificuldades do aluno etc); 5. mediar a reorganização do saber; 55 6. verificar (o aprendizado, as dificuldades do aluno etc); 7. aperfeiçoar o ensino e retroalimentar o processo de ensino-aprendizagem; 8. “domesticar” alunos (adequá-los ao sistema, às normas); 9. qualificar e classificar alunos (segundo suas competências, seu nível de desenvolvimento, estágio de aprendizagem); 10. selecionar (alunos/candidatos), estabelecendo e certificando se o aluno/candidato encontra-se apto a ser promovido a uma próxima etapa; 11. manter a disciplina ou manter o poder disciplinar; 12. punir maus comportamentos, corrigindo “desvios”, “distorções”; 13. controlar e adaptar as condutas sociais dos alunos; 14. comparar alunos, segundo grau/nível de desenvolvimento/aprendizagem; 15. reproduzir modelos/reproduzir a sociedade; 16. prestar contas/ dar satisfações aos pais/à sociedade; 17. validar o trabalho pedagógico de professores/da direção da escola/da administração pública ou privada: não apenas os alunos são avaliados; 18. fornecer informações sobre rendimentos (do aluno), eficácia (do professor, do método, da prática pedagógica, do sistema etc). Algumas das dezoito funções acima elencadas podem parecer – e, de fato, são – contraditórias. Como pode esse gênero do discurso “mediar a reorganização do saber” e, ao mesmo tempo, “domesticar alunos”? Ressaltamos que essas diferentes funções são atribuídas explicita e implicitamente ao gênero “prova” ou “avaliação”. Os autores contemporâneos anteriormente citados criticam a seletividade social promovida por esse gênero, propondo-lhes novas funções. No entanto, propor novas funções e finalidades para a avaliação escolar não significa a 56 supressão das „antigas‟ funções. Em outros termos, temos, atualmente, um discurso que evidencia contradições, ou mesmo luta de classes. A escola moderna constituise como esfera discursiva ideal para que se travem tais lutas e se estabeleçam tais contradições: instituída com a consolidação da sociedade burguesa, em sua origem seleta e reservada a uma classe específica, a escola estende-se, com o passar dos anos, às classes populares. Classes sociais distintas, como ressalta Bakhtin (2009, p. 47), “servem-se de uma só e mesma língua”, pois, não se confundem “Classe social” e “comunidade semiótica”. O signo, utilizado por diferentes classes, concentrará índices de valor contraditórios, afinal, “O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, op. cit., p. 47). Assim vemos a constituição do discurso atual sobre avaliação da aprendizagem – um discurso que tende a criticar a seletividade social, mas que se mostra lacunoso, confuso e, muitas vezes, contraditório, segundo evidenciamos acima. Considerando provas e exames como gêneros do discurso que emergem em eventos de avaliação escolar nesse cenário contraditório, é preciso destacar, porém, as características que nos fazem reconhecer esse gênero, identificá-lo enquanto tal, ainda que em breves contatos, sem uma análise mais aprofundada. A primeira característica concerne, certamente, à composição relativamente estável, identificada de antemão. De forma mais simples, temos a estrutura de perguntas e respostas (orais ou escritas). Cabendo às perguntas ao professor, e as respostas ao aluno. Mais que uma forma composicional, temos um índice de valor social atribuído a essa composição: apenas a alguns sujeitos é reservado o direito de fazer as perguntas. As respostas são submetidas a uma validação segundo parâmetros estabelecidos por aquele que formula as perguntas ou a pergunta, o 57 tema sobre o qual se deve discorrer etc. A própria esfera discursiva impõe essa forma composicional ao gênero: em um espaço onde alguns atribuem notas a outros, a estrutura não poderia ser outra. Eis a relação imbricada entre forma composicional de um gênero e esfera discursiva. Em provas e exames mais complexos temos a intercalação de gêneros, os quais, uma vez intercalados, “mantêm sua estrutura, sua autonomia e suas idiossincrasias linguísticas e estilísticas” (SOBRAL, 2009, p. 124). Não obstante, perdem o vínculo direto “com a realidade concreta e os enunciados reais alheios” (BAKHTIN, 1992, p. 263). A fim de exemplificarmos essas afirmativas, observemos, abaixo, uma questão retirada do Enem 2002, a qual foi analisada por Borba (2007): Ilustração 1 - Questão 63, Enem 2002 58 Borba (2007), ao se debruçar sobre a questão acima, analisa aspectos referentes a habilidades de compreensão requeridas. A autora chega à conclusão de que não se pode definir com exatidão a área de conhecimento testada – se Língua Portuguesa, se Literatura ou mesmo História. A questão “privilegia o domínio do conhecimento prévio do aluno, que pode estar associado aos conhecimentos formais, adquiridos ao longo de sua trajetória escolar, mas também pode estar relacionado à visão de mundo do aluno, sua carga cultural” (BORBA, op. cit., p. 31). A questão 63 retirada de um exemplar do Enem 2002 constitui-se a partir da intercalação de um gênero específico – a tirinha – que circula em uma esfera social própria – a esfera jornalística. A tirinha, não obstante, uma vez transposta para o interior de um exame, perde seu vínculo direto com essa esfera, ao mesmo tempo em que outros objetivos são postos a sua leitura, a sua recepção. Em um exame, não se lê mais a tirinha para se divertir (embora não se possa negar essa função), mas para se avaliar competências de leitura. O domínio prévio de conhecimento do aluno, sua capacidade de realizar inferências, de correlacionar diferentes áreas do saber passam a primeiro plano. Nesse sentido, a avaliação torna-se um gênero complexo, à medida que assimila outros gêneros, intercalados conforme propósitos específicos de avaliação, de medição de conhecimentos, competências e habilidades. A escolha por determinados gêneros a serem intercalados, ou por determinada estrutura (por exemplo: questões dissertativas, questões objetivas de múltipla escolha etc) faz parte de um propósito didático atrelado ao que se pretende avaliar e por que se avaliar tais ou quais aspectos em detrimento de outros. Esse propósito vincula-se intimamente à imagem de aluno/candidato avaliado: espera-se que o sujeito X detenha as habilidades/competências Y. Uma imagem de aluno 59 “ideal” é, assim, projetada em provas e exames, com base no que o professor espera, no que é estabelecido no projeto pedagógico da escola, no que é normatizado em documentos oficiais (parâmetros e diretrizes curriculares, Leis e Decretos que dispõem sobre a educação etc). Essa imagem é, evidentemente, constituída socialmente, segundo índices valorativos pertencentes ao horizonte social da esfera ideológica em questão. Se, em determinado período sócio-histórico, valorizavam-se as habilidades de memorização, em outro, competências como a capacidade de se fazer inferências e correlacionar interdisciplinarmente áreas do saber são postas em destaque. Espera-se um sujeito que detenha tais competências, e que em função delas seja avaliado. Essas constatações levam-nos a uma segunda característica do gênero, qual seja o estilo. No tópico 2.2. e em seus sub-tópicos, afirmamos que, segundo Voloshinov (1926, p. 16), o estilo corresponde a “uma pessoa mais seu grupo social na forma de seu representante autorizado, o ouvinte”. O estilo de uma prova/exame dependerá, por conseguinte, da imagem de aluno que dele se projeta. Em um exame cujo foco reside na avaliação de competências e habilidades mais voltadas para a cognição, teríamos, provavelmente, um estilo constituído com base na imagem de um sujeito cognitivo, detentor de conhecimentos prévios armazenados na mente. Um exame constituído por questões que exigem tão somente a memorização de fórmulas ou de regras pressupõe, por outro lado, um sujeito/aluno que tenha desenvolvido tais habilidades, mas que, talvez, não saiba se posicionar perante o que tenha sido memorizado. Em qualquer caso, temos a projeção de um ideal, um padrão normatizado, já que a padronização desse gênero praticamente não permite a consideração das diversas individualidades daqueles a quem se destina (alunos/candidatos). 60 Analisando a questão do Enem acima apresentada, poderíamos afirmar que essa questão apresenta um estilo didático que valoriza a compreensão textual, a partir da correlação com determinados conhecimentos de mundo. O formato em múltiplas escolhas é representativo de um estilo escolarizado, mais „prático‟ e mais objetivo: questões assim são mais fáceis de serem corrigidas, posto que apenas uma alternativa é aceitável; evitam, por conseguinte, a subjetividade de quem a responde, considerando que a resposta aceitável é formulada de antemão pelo próprio avaliador. Grillo (2008, p. 197), ao discutir a noção de esfera e estilo na obra bakhtiniana, afirma que “cada gênero do discurso, em cada campo da comunicação discursiva, tem a sua concepção típica do destinatário que o determina como o gênero”. Transpondo essas palavras para analisar a questão acima, podemos afirmar que o Enem é formulado a partir de determinadas concepções de destinatário, determinada concepção de aluno, a qual repercute em seu estilo. Como se vê, não há como o estilo ser dissociado da forma composicional: o estilo não se manifesta no „vácuo‟, mas na seleção de recursos linguísticos organizados conforme as especificidades da esfera, do horizonte social ao qual se prende o enunciado – o grupo social representado sob a forma do ouvinte/destinatário. A estrutura sob a forma de perguntas/respostas que compõe testes e exames dos mais diversos parece simular a própria estrutura da interação em sala de aula, caracterizada, geralmente, pela interação do tipo IRA (MEHAN, 1979): perguntas/iniciações do professor – respostas dos alunos – avaliação do professor. Em exames, podemos não ter a presença física do professor/avaliador, mas sua imagem lá está projetada, sob a forma de questões. As questões iniciam o aluno/candidato, „guiam‟ ou direcionam a leitura dos textos apresentados. Os alunos, 61 em seguida, respondem, assinalando um “X”, dissertando sua opinião etc. Por fim, quase sempre sem a presença do aluno, o professor/avaliador avalia, atribuindo uma nota ou um conceito ao que foi respondido, conforme critérios aos quais o aluno pode ou não ter acesso. Em provas e exames, por conseguinte, as interações ocorrem na maioria das vezes entre sujeitos que não estão no mesmo espaçotempo. Em decorrência desse aspecto, temos a necessidade e mesmo a exigência de clareza e objetividade na formulação de questões. Em sala de aula, as provas/exames constituem uma reação-resposta aos conteúdos, às explicações, às discussões suscitadas. Esses aspectos culminam em uma prova que reelabora os conteúdos – não se trata mais de conteúdos a serem ensinados, mas avaliados. Deve existir uma relação dialógica singular entre a prova e as ações do professor, os conteúdos ministrados. Essa relação se manifesta naquilo que denominamos estilo didático. Considerando que o texto, em sentido amplo, é uma refração da realidade, reflexo subjetivo do mundo objetivo (BAKHTIN, 2003), podemos afirmar que o estilo didático é uma refração do mundo com propósitos pedagógicos. Expliquemo-nos melhor: uma ciência qualquer, digamos a biologia, é uma refração da realidade moldada por um sistema ideológico (o discurso da ciência). Uma vez transposta para objeto de ensino, essa refração da realidade, fundamentada na ciência, passa a ser refratada pelo discurso pedagógico, adquire um acento valorativo outro que não apaga por completo o acento avaliativo da ciência, mas o transforma, o recondiciona. Não se estuda uma célula da mesma forma em um laboratório conduzido por cientistas e em uma sala de aula da educação básica: os propósitos são outros. Não se nega, todavia, o discurso da ciência na realidade da sala de aula – o que se tem é uma ressignificação do objeto. Nesse sentido, podemos afirmar 62 que um exame voltado para a educação básica, seja o Ensino Fundamental, seja o Médio, apresenta um estilo didático fundamentado na ressignificação do objeto que se pretende avaliar e na imagem de aluno que se projeta na prova. Essa imagem corresponde, em parte, à entoação avaliativa do locutor perante seu objeto de discurso. Juntas, a entoação avaliativa e a imagem de aluno projetada, constituem o tema do gênero, ao apontarem para a situação enunciativa concreta. Bakhtin (2009) distingue a significação do tema na linguagem, caracterizando aquela como algo relativamente estável, repetível, pertencente ao sistema da língua. O tema, por sua vez, representa o signo ideológico, irrepetível, expressão de uma situação histórica concreta, indissociável da enunciação. Em um gênero, o tema concatena o objeto de discurso, acentuado por uma posição valorativa, à imagem do interlocutor projetada no enunciado. Na questão do Enem anteriormente exposta, o locutor propõe ao aluno/avaliado (seu interlocutor) uma avaliação da postura de um personagem de uma tirinha. Todas as alternativas apresentadas, dentre as quais se encontra a correta, são iniciadas pelas formas verbais “valoriza” ou “desvaloriza”. O aluno deve, basicamente, decidir se o personagem valoriza ou desvaloriza as diversidades culturais, com base na leitura das falas desse mesmo personagem. Na verdade, porém, o próprio locutor já avalia, de antemão, essa postura, ao apresentar as possíveis respostas à questão. Ao mesmo tempo, direciona a leitura do aluno, uma vez que outras questões sobre outros aspectos poderiam ter sido feitas, mas não foram. A tirinha, transposta ao exame, é ressignificada com base no que se acredita que um aluno ideal será capaz de compreender a partir da leitura. Dessa forma, a tirinha vincula-se a uma nova situação enunciativa, na qual o que se está em foco é a avaliação de determinadas habilidades e competências. 63 Em síntese, podemos afirmar, de todas essas discussões, que, conforme nossa posição, a avaliação constitui-se em eventos que suscitam gêneros caracterizados: 1. por uma forma composicional (perguntas/respostas, alternativas a serem avaliadas, enunciados de questões etc) relativamente cristalizada; 2. por materializar um tema vinculado à situação enunciativa; 3. por constituir-se estilisticamente a partir da imagem de aluno ideal avaliado. Esses gêneros suscitados recebem nomes diversos: provas, testes, exames etc. Fruto da consolidação da sociedade burguesa, esse gênero, anteriormente exclusivo da instituição escolar, passou, nas últimas décadas do século XX, a ser controlado pelo Estado, como expressão máxima dos valores hegemônicos de uma cultura conservadora e neoliberal. Em outras palavras, o Estado tornou-se o „grande avaliador‟, conforme discutiremos adiante. 2.3 O Estado como avaliador: entre o consenso e a coerção Falar em avaliação e estado-avaliador implica, a priori, entender que essa última expressão traduz uma nova forma de regulação educacional que combina a descentralização e desregulamentação dos serviços públicos com a centralização de medidas de controle, dentre as quais se destaca a avaliação, em larga escala, da educação. Trata-se, em suma, de uma estratégia típica do sistema neoliberal. Consolidado na década de 70 do século XX, a partir da crise econômica ocorrida nesse período, o neoliberalismo apresentou-se como uma saída para os desafios vivenciados na época. No Brasil, o projeto neoliberal começou a ser implementado no governo Collor, sendo, no entanto, efetivado durante o governo 64 Fernando Henrique Cardoso, que propôs uma série de medidas visando à modernização da economia brasileira. No campo educacional, em 1998 o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem – foi instituído, como uma avaliação voluntária que visava, segundo a Portaria Ministerial n° 438, de 28 de Maio de 1998: I – conferir ao cidadão parâmetro para auto-avaliação, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho; II – criar referência nacional para os egressos de qualquer das modalidades do ensino médio; III – fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à educação superior; IV – constituir-se em modalidade de acesso a cursos profissionalizantes pós-médio. Em 2009, o governo federal propôs a utilização do Enem como vestibular unificado, cuja adesão ficaria a critério de cada Instituição de Ensino Superior. Não obstante, iniciou-se um processo de indução para essas instituições aderirem ao exame, conforme discutiremos no próximo capítulo. Em 2010, foi publicada a Portaria 807, de 18 de junho de 2010, estabelecendo, em seu artigo 2º, que os resultados do Enem possibilitam: I – a constituição de parâmetros para auto-avaliação do participante, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho; II – a certificação no nível de conclusão do ensino médio, pelo sistema estadual e federal de ensino, de acordo com a legislação vigente; III – a criação de referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio; IV – o estabelecimento de critérios de participação e acesso do examinando a programas governamentais; V – a sua utilização como mecanismo único, alternativo ou complementar aos exames de acesso à Educação Superior ou processos de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho; VI – o desenvolvimento de estudos sobre a educação brasileira. 65 Observa-se que apenas o primeiro objetivo permanece praticamente o mesmo nas duas Portarias. Em 2010, os objetivos dos resultados do Enem tornamse mais explícitos, afirma-se claramente que o exame deve servir como referência para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio (III); o exame é estabelecido como critério para participação e acesso a programas governamentais (IV) e como indicador sobre a qualidade da educação brasileira (VI). Enquanto em 1998 o Enem parecia ter uma função mais autoavaliativa, em 2010 afirma-se sua função de monitoramento da qualidade educacional, sua pretensão a aperfeiçoar os currículos do ensino médio, embora a autoavaliação ainda esteja presente. Acreditamos que não há como analisar o Enem sem investigar a atuação do Estado brasileiro como Estado-avaliador, uma vez que os sentidos, os conceitos, as competências que subjazem à prova, considerada aqui um gênero do discurso, são resultado da construção de uma hegemonia, baseada na regulação educacional e na difusão de valores, de conhecimentos e de visões de mundo. O conceito de “Estado-avaliador”, segundo Freitas (2007), foi proposto por Neave (1988), ao estudar a ampliação da avaliação do ensino superior pelo Estado, em países de capitalismo avançado. Tal conceito, conforme assinala a autora (FREITAS, op. cit.), apóia-se na concepção gramsciana de que o Estado é educador à medida que tende a manter certo tipo de civilização e cidadania, valendo-se de instituições como a escola. Segundo Gramsci (2002, p. 23), o Estado possui uma tarefa educativa e formativa, cujo fim é sempre o de criar novos e mais elevados tipos de civilização, de adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de produção e, portanto, de elaborar fisicamente novos tipos de humanidade. 66 Adiante, acrescenta o autor que “na realidade, o Estado deve ser concebido como „educador‟ na medida em que tende precisamente a criar um novo tipo ou nível de civilização” (p. 28). Para compor suas teses sobre o Estado, Gramsci reelabora as concepções marxistas sobre Estado/Sociedade civil, contribuindo para que, atualmente, possamos compreender os Estados modernos e a forma como estes, através de recursos como exames em larga escala, criam e estabelecem, pelo consenso/coerção, certas ideias e práticas hegemônicas. Marx e Engels, conforme observa Figueiredo (2011, p. 5), concebiam a sociedade civil “como estrutura e base da superestrutura político ideológica do Estado e este como um comitê da burguesia para a garantia de seus interesses, sendo o resultado do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção em um determinado período histórico e impulsionada pelo advento da sociedade burguesa”. Gramsci amplia o conceito de Estado tal como concebido por Marx e Engels e pensa a sociedade civil como componente da superestrutura e não da base estrutural. O Estado, segundo Gramsci, constitui-se pela organicidade entre a sociedade civil e a sociedade política na configuração do bloco histórico. À sociedade política corresponde a função de dominação das classes subordinadas, mediante os aparelhos de coerção do Estado (forças militares, poder judiciário, sistema carcerário etc). Já à sociedade civil corresponde a função de hegemonia exercida pelo grupo dominante. Magrone (2006, p. 357) observa que, para Gramsci, “A sociedade civil é o lócus no qual as classes sociais lutam para exercer a hegemonia cultural e política sobre o conjunto da sociedade”. Assim constitui-se, pois, o Estado: por uma correlação de forças que envolvem o estabelecimento do consenso e o uso da coerção. Exames em larga 67 escala, como o Enem, segundo defendemos nesta dissertação, constituem gêneros do discurso que materializam essa correlação de forças, atuando de forma coercitiva sobre instituições de ensino superior – que se veem impulsionadas a aderir ao exame – disseminando também ideias, aos poucos hegemônicas, sobre o que deve ser objeto de ensino e de avaliação (a avaliação por competências). Temos, portanto, conforme discutiremos no próximo capítulo, a disseminação de pelo menos duas ideias que se tornam consenso. A primeira concernente à própria necessidade e viabilidade dos exames como instrumentos seletivos, preditivos de desempenhos futuros, mas, também, segundo o discurso oficial, „democráticos‟, por atuarem na melhoria do ensino, através de uma espécie de „monitoramento à distância‟. A segunda ideia, igualmente presente no discurso oficial sobre o Enem, tende a criar um consenso sobre a necessidade e sobre a „inovação‟ de se avaliar por competências e não por conteúdos, estabelecendo, assim, uma „pedagogia das competências‟ (RAMOS, 2001). O Estado atua pela força e pelo consenso, pela autoridade e pela hegemonia, pela violência e pela civilidade (GRAMSCI, 2002, p. 33), mas, na análise dessa correlação de forças, deve-se considerar a complexidade assumida pela sociedade civil nas sociedades modernas, que se tornou, nas palavras de Gramsci, “uma estrutura muito complexa e resistente à „irrupções‟ catastróficas do elemento econômico imediato” (op. cit., p. 73). Ademais, segundo observa Magrone (2006, p. 359), “a existência de uma separação orgânica entre a sociedade civil e a sociedade política é inconcebível”, pois, na realidade prática, não é possível perceber uma “divisão funcional entre as duas esferas da superestrutura, tanto o consenso quanto a coerção são empregados alternativamente pela classe dominante” (MAGRONE, op. cit., p. 359). 68 Acrescentamos que, se não é possível estabelecer uma distinção rígida entre a sociedade política e a sociedade civil, a coerção e o consenso, também não se deve conceber o poder como uma força unilateral ao qual não se tem resposta. Se um dos objetivos do Enem é atuar na reforma do ensino, é possível também perceber que esse exame não agiu unilateralmente sobre as instituições de educação básica. A reformulação do exame, em 2009, que passou a ser agrupado em quatro áreas do conhecimento, deve ter também sido influenciada pela instituição escolar brasileira, ainda não muito bem adaptada a uma prática tão interdisciplinar quanto a proposta pelo antigo modelo do Enem. Conforme discutimos no próximo capítulo, exames em larga escala como o Enem são gêneros que atuam no estabelecimento de ideias hegemônicas pelo consenso e pela coerção. A emergência desses exames atrela-se a um movimento mais amplo, relacionado à proposta de Reforma do Estado, dirigida por mudanças em seu modelo de gestão – do modelo burocrático para o modelo de administração pública gerencial, essa última pautada, dentre outros, no controle ou cobrança a posteriori dos resultados, na competição administrada no interior do próprio Estado, no deslocamento dos procedimentos (meios) para os resultados (fins) (BRASIL, 1995). Esse modelo de gestão constitui o Estado-avaliador, que passa a ser gerido por alguns princípios típicos do mercado: eficiência, eficácia, concorrência, avaliação do produto/controle de qualidade. As avaliações em larga escala, nesse contexto, proporcionam a definição de metas claras a serem atingidas (por exemplo: deve-se ensinar o que os exames exigem, seguir as matrizes de referência etc) e o controle do produto (o desempenho dos alunos em exames unificados). Busca-se, também, a instituição da competição entre escolas por melhores resultados (portanto, a competição no interior do próprio Estado). Tem-se, assim, os seguintes princípios 69 sob os quais se apóia o Estado-avaliador, conforme destaca Freitas (2007): regulação baseada na noção de „quase-mercado‟ na educação; competição administrada no interior da própria estrutura administrativa estatal; modernização da gestão; orientação para resultados objetivos e mensuráveis; flexibilidade administrativa; autonomia e controle hierárquico gerencial. A seguir, considerando que a avaliação por competências tem se tornado uma das „metas claras a serem atingidas‟ pelas instituições de ensino, sobretudo pelo ensino médio, com a crescente adesão das Instituições de Ensino Superior ao Enem como exame de ingresso nos cursos superiores, discutiremos o que significa essa proposta de avaliação. 2.4 Avaliação por competências Acompanhado por uma retórica que enfatiza as transformações da modernidade e põe em relação dicotômica o „tradicional‟ e o „inovador‟, o Enem tem como fundamento a avaliação por competências. Ao que nos parece, essa retórica da inovação aos poucos valida o ensino e a avaliação por competências, transformando-a em uma questão hegemônica, em uma prática a ser, de forma impositiva, assimilada pelas escolas e pelos professores, sem que, contudo, tenha se estabelecido um diálogo mais amplo sobre o tema, sobre os sentidos dessa pedagogia. A noção de competência originou-se no mundo do trabalho, sendo transposta para a educação devido “à sua dimensão socializadora e de formação de consciências, por um lado, e a sua dimensão econômica fundamental ao projeto de progresso e modernidade, por outro” (RAMOS, 2001, p. 236). Ramos (op. cit.), ao 70 analisar a origem, os sentidos e a dimensão social e econômica da pedagogia por competências, confronta esse último conceito – competência – ao de qualificação, defendendo a existência de um deslocamento conceitual da qualificação para a competência. Segundo Ramos, o conceito de qualificação reporta-se ao Estado de bem estar-social, “retomando, no processo de consolidação da sociedade industrial, o papel regulador jogado outrora pelas corporações” (op. cit., p. 41). Assim, a qualificação seria uma resposta à ausência de regulações sociais “ocorridas com a liberalização das relações de trabalho, a partir do século XVII” (p. 41). Com o advento da tecnologia e com os impactos no mundo do trabalho, a qualificação dos trabalhadores é tomada como pressuposto da eficiência produtiva. A qualificação repousaria sobre repertórios relativamente estáveis e coletivos, por meio de certificações, apoiando-se ainda numa visão produtiva assentada no taylorimofordismo. No entanto, a crise do capital nos anos 1970, as mudanças no setor produtivo e a crise do modelo de bem-estar social fazem convergir um deslocamento conceitual da noção de qualificação para a de competência – esta última emergente em um contexto caracterizado pela: flexibilização das ocupações; integração de setores de produção; multifuncionalidade e polivalência dos trabalhadores; valorização dos saberes dos trabalhadores não ligados ao trabalho prescrito ou ao conhecimento formalizado (RAMOS, 2001, p. 38). Segundo Ramos (op. cit., p. 47), na qualificação, a educação certificada por diplomas, as regulamentações profissionais ganham destaque central, já quando o foco se desloca para as competências, “o diploma deixa de ser o único ou o principal 71 pressuposto para o emprego e passa a concorrer com as formações ditas qualificantes que visam a adaptação ao emprego”. Em um mundo assolado pela crise do emprego, pela instabilidade e pela precarização das relações de trabalho, a escola, “especialmente a média, é convocada a contribuir para a aprendizagem de competências gerais, visando à constituição de pessoas mais aptas a assimilar mudanças, mais autônomas em suas escolhas e que respeitem as diferenças” (RAMOS, op. cit., p. 135). A noção de competência, cuja base teórica se apóia na Psicologia cognitiva, enfatiza os processos individuais de construção do conhecimento, a capacidade dos indivíduos de se adaptarem às incertezas de um mundo em transformação, conferindo primazia “ao desenvolvimento de estruturas cognitivas e afetivas, sem dar relevância às dimensões sociológicas do aprendizado e do processo de construção do conhecimento” (op. cit., p. 263). Tendo em vista as transformações processadas no setor produtivo, a escola, enquanto instituição privilegiada para a socialização e formação de cidadãos e futuros trabalhadores, é interpelada a se adaptar a uma nova realidade. Reformas curriculares são propostas buscando-se a formação de um educando apto a assimilar as características da sociedade pós-industrial. Ramos, no entanto, questiona a ênfase acrítica conferida ao pós-industrialismo nas propostas de reformas dos currículos e do ensino. Para a autora, o que se convencionou denominar “pós-industrialismo” abrange uma realidade complexa, caracterizada pela precarização das relações de trabalho, reestruturação produtiva e pela heterogeneidade, já que o processo não ocorre da mesma forma em todos os países. A autora (op. cit., p. 130) observa “certo determinismo tecnológico que sustenta a maioria das argumentações em defesa de um novo ensino médio”. 72 Nesse nível de ensino, segundo Ramos, as propostas curriculares criticam a compartimentação disciplinar do conhecimento e propõem a aprendizagem com destaque para a experiência concreta dos sujeitos. Essa crítica e essa proposta são assimiladas pelo Enem, que, conforme discutiremos no capítulo 4, constitui-se a partir de um olhar responsivo às propostas de reformas curriculares, que, por sua vez, remontam a um contexto mais amplo de transformações produtivas as quais a escola tem sido induzida a assimilar. Todavia, dada as peculiaridades do exame, da escola e da nossa própria realidade, a avaliação por competências assume traços próprios no Enem, caracterizando o estilo desse exame, segundo será discutido no próximo capítulo. 2.5 Primeira síntese intermediária Nesta dissertação defendemos que exames padronizados, em larga escala constituem gêneros em um contexto de reformas educacionais decorrentes da redefinição do papel do Estado. Como não poderíamos analisar a emergência e constituição de todos os exames, tomamos o Enem como exemplar desse gênero que, na atualidade, monitora padrões de qualidade na educação. No capítulo que ora se encerra, apresentamos e discutimos, inicialmente, alguns conceitos básicos, importantes para a compreensão de nosso objeto, quais sejam: gênero, esfera, estilo. Vimos que todo gênero emerge no seio de uma esfera ideológica, refletindo as finalidades dessa esfera. Considerando que o signo reflete índices ideológicos contraditórios, dada sua pureza semiótica, é possível perceber que exames como o Enem coadunam tais valores díspares. 73 De um lado, temos um exame que atua na classificação de sujeitos, voltado para o desempenho individual segundo uma ótica seletiva e, muitas vezes, excludente. Por outro lado, esse exame é investido em um discurso que enfatiza os valores democráticos, a inclusão, sendo apresentado, pelo governo federal, como uma alternativa „mais justa‟ aos já consolidados „exames vestibulares‟. Como nenhum gênero ou mesmo nenhuma produção de linguagem emerge do nada, sem precedentes, os atuais exames em larga escala, sob a tutela estatal, na representação de órgãos federais principalmente, remetem aos exames escolares, sob responsabilidade dessa instituição específica. A origem dos exames escolares, por sua vez, remonta aos séculos XVI e XVII, com a consolidação da sociedade burguesa e da escola moderna. Tidos como antagônicos, autoritários e seletivos, os exames escolares passam, no século XX, a serem criticados. Propõe-se a substituição dos vocábulos provas, testes, exames por avaliação. Defende-se a necessidade de uma avaliação democrática, mediadora do processo ensino-aprendizagem. Percebemos, no paradigma qualitativo emergente, que defende uma avaliação democrática nas escolas, indefinições e uma terminologia flutuante. É possível também perceber certo consenso, entre muitos pesquisadores atuais, que procuram conceber a avaliação escolar como prática mediadora, necessária e democrática, a depender da forma como conduzida pelos professores. Todavia, não deixam clara sua concepção de avaliação. Para fins de sistematização, afirmamos que, no âmbito escolar, a avaliação se constitui em eventos sempre mediados pela escrita (ainda que textos escritos não estejam fisicamente presentes nos eventos). Nesses eventos, temos a utilização de gêneros, os quais materializam atividades regulares, constituídas sócio- 74 historicamente, apresentando ainda uma composição relativamente estável, um tema vinculado a sua esfera discursiva e um estilo que traduz as especificidades dessa esfera e que se projeta em função do sujeito que será avaliado. Dois momentos são perceptíveis no que se refere à avaliação no âmbito escolar. Até o século XIX, a avaliação era tomada como um dos recursos para o „bom adestramento‟. No século XX, critica-se o autoritarismo, a seletividade, propondo-se uma avaliação democrática, conforme afirmamos anteriormente. Em fins do século XX e início do século XXI, temos a emergência e consolidação de exames não mais administrados pela escola, mas propostos como ação do Estado. Temos, pois, os exames em larga escala. Certas peculiaridades levam-nos a afirmar que estamos diante de um gênero intrinsecamente relacionado a um novo contexto. Primeiro, temos uma situação sócio-histórica peculiar, que propiciou o surgimento de vários exames administrados sob a tutela estatal. Na segunda metade do século XX, a crise do capital faz emergir uma retórica que propõe mudanças concernentes ao papel do Estado frente aos serviços prestados à população. A educação é tomada como condição estrutural para o desenvolvimento econômico, precisando, portanto, ser auditada, monitorada, controlada. Exames padronizados, em larga escala são frutos dessa situação, não poderiam ter se consolidado, como nos dias atuais se consolidaram, em outra época. Segundo, conforme é discutido nos capítulos que a este sucedem, esses exames, dentre os quais tomamos o Enem como objeto específico de análise, tendem a se caracterizar por um estilo próprio, singular, em decorrência de um olhar responsivo dos avaliadores aos „signos da modernidade‟, que propõem o conhecimento como algo flexível, interdisciplinar, baseado no „saber fazer‟ e não na 75 memorização. A leitura passa a primeiro plano. A LDB e os PCN são referências para a elaboração desses exames, sempre apresentados como „modernos‟, „eficientes‟ e „necessários‟. Terceiro, temos uma distinção, embora difusa, socialmente reconhecida. É possível ver muitos alunos, quando interrogados se fizeram vestibular, responderem que não, pois fizeram o Enem (como se o Enem fosse algo „diferente‟), embora esse exame esteja sendo utilizado com os mesmos propósitos de um exame vestibular. No próximo capítulo, aprofundaremos alguns questionamentos levantados, a partir de um olhar sobre a dimensão social do Enem. aqui 76 3 EXAMES PADRONIZADOS, EM LARGA ESCALA: UM OLHAR SOBRE A DIMENSÃO SOCIAL DESSE GÊNERO DO DISCURSO EM UM CONTEXTO DE REFORMAS Neste capítulo defendemos que exames padronizados, em larga escala, gerenciados pelo Estado, constituem gêneros do discurso em um contexto de reformas. Tomamos o Enem como exemplar e objeto específico de análise. Identificamos os precursores do que viriam a se tornar, atualmente, exames que aferem a qualidade do ensino, argumentando que o Enem materializa uma tendência delineada nas últimas décadas que propõe reformas nos sistemas de ensino, as quais visam, dentre outros, à introdução de uma aprendizagem por competências, à formação para a cidadania e para o mundo do trabalho. Nesse sentido, exames como o Enem parecem cumprir a função precípua de induzir a mudanças, apostando em um potencial efeito retroativo nas escolas. Ao longo deste capítulo, é possível perceber a construção de um percurso que vai de uma visão geral até um olhar mais específico. Assim, em um primeiro momento, nos debruçamos, de forma ampla, sobre a natureza dos exames em larga escala, analisando a esfera na qual estes emergem e se consolidam. Paulatinamente, nosso olhar se refina, nosso foco torna-se mais específico, e nossas observações tendem a se concentrar no Enem. Esse movimento analítico conclui-se no capítulo 4, no qual analisamos a dimensão verbal do Enem, considerando seu estilo sob uma perspectiva bakhtiniana. Nesse sentido, no capítulo que ora se apresenta, nosso olhar recai substancialmente sobre a dimensão social do Enem. 77 Organizamos este capítulo em seis partes principais. A primeira, introduzida pelo tópico “3.1 A avaliação em larga escala em um contexto de reformas”, discute a esfera de emergência dos exames em larga escala, com destaque para o movimento de redefinição do papel do Estado frente aos serviços públicos e para a ideologia neoliberal. Em seguida, no tópico “3.2 Gêneros em interação”, apresentamos a interação entre gêneros de diferentes esferas como uma peculiaridade de exames como o Enem. O tópico “3.3 Requisitos para a eficiência do exame” discute as exigências de objetividade, credibilidade, isonomia do processo avaliativo como requisitos para que o gênero “avaliação em larga escala” cumpra suas funções. Em seguida, no tópico “3.4 O Enem como gênero do discurso: consenso/coerção”, demonstramos como o Enem pode ser considerado um instrumento coercitivo revestido de consenso. A função social de exames como o Enem é discutida e analisada no tópico 3.5 e, por fim, na sexta parte, tópico 3.6, propomos uma síntese intermediária de todas as discussões, análises e reflexões levantadas neste capítulo. 3.1 A avaliação em larga escala em um contexto de reformas Segundo mencionamos brevemente no capítulo 2, Barretto (2001) identifica, basicamente, dois modelos ou duas tendências que povoam os estudos sobre avaliação. O primeiro, constituído “a partir de várias vertentes teóricas, nem sempre claramente explicitadas e nunca aprofundadas, acabam por esboçar características de um novo modelo de avaliação apresentado como desejável” (BARRETTO, op. cit. p. 48); o segundo reporta-se às raízes da função reguladora do Estado, sendo, pois, a avaliação apresentada como resultado da ação de um „Estado-avaliador‟. 78 Ao discutirmos, no capítulo que a este antecede, o primeiro modelo de avaliação (mais assentada no âmbito escolar restrito), observamos indefinições e algumas inconsistências. Para os fins deste trabalho, assim sistematizamos as reflexões expostas: entendemos que, no âmbito escolar, o termo avaliação refere-se a eventos os quais suscitam gêneros que, na maioria das vezes, são representados por exames, provas ou testes (orais ou escritos). A origem desse gênero remonta à consolidação da sociedade burguesa e à instituição da escola moderna. Provas e exames surgem, portanto, como gêneros tipicamente escolares, cuja responsabilidade pela aplicação, correção e divulgação das notas era praticamente exclusiva da escola. O que dizer então quando exames, a exemplo do Enem, passam a ser aplicados em larga escala sob a responsabilidade do Estado? Como interpretar a emergência da avaliação em larga escala? Quais as funções/características desses exames? A esses (dentre outros) questionamentos procuraremos responder neste capítulo. Para tanto, começamos por enquadrar uma realidade, sempre em constante devir, em um ângulo constituído com base em nossas escolhas teóricas. Os estudos sobre avaliação centram-se quase sempre nas pesquisas em Didática ou Política educacional, conforme afirmamos no capítulo 2. A tais pesquisas acrescentamos alguns conceitos bakhtinianos apresentados no capítulo precedente, de forma a construir interdisciplinarmente nosso objeto de pesquisa. De fato, talvez o verbo acrescentar não seja o mais adequado, já que não simplesmente somamos algumas teorias a outras, mas procuramos conceitos que convergem, ideias que pudessem nos ajudar a enquadrar a realidade – que não diz como quer ser teorizada, mas impõe limites às reflexões – em um ângulo selecionado. 79 Os conceitos de gênero, esfera, estilo, ideologia, dentre outros, tais como formulados por Bakhtin, nos parecem importantes para que possamos entender a emergência da avaliação em larga escala em um contexto de reformas do papel do Estado, momento em que se constrói e se veicula a ideia de que „avaliar é preciso‟; momento histórico no qual se responsabilizam professores por baixos rendimentos dos alunos em exames nacionais e internacionais. Antes de nos debruçarmos sobre a temática da avaliação, não nos conformávamos com a ideia simplista de que os baixos rendimentos dos alunos (notadamente dos alunos oriundos de escolas públicas) em exames em larga escala seriam resultado tão somente do „despreparo dos professores‟, do mau gerenciamento dos recursos distribuídos às escolas, da falta de interesse dos pais e da comunidade para com a educação, ou mesmo da falta de interesse dos próprios estudantes. Com base nessas inquietações e após a leitura de teses, artigos, livros e estudos diversos sobre avaliação, ação normativa federal, ideologia neoliberal e redefinição do papel do Estado, compreendemos que exames em larga escala constituem gêneros do discurso em um contexto sócio-histórico peculiar, estando a serviço da ideologia neoliberal, de um modelo de gestão gerencial pautado no controle a posteriori, na aferição de resultados objetivos e na responsabilização dos sujeitos (professores, estudantes) pelos desempenhos dos alunos. Exames nacionais, como o Enem, são os mais representativos e emblemáticos exemplares de avaliações em larga escala, cuja função não seria tão somente „melhorar o ensino‟9, conforme apregoa o discurso oficial, mas atuar como coadjuvante, ou 9 Não negamos a existência desse objetivo, apenas consideramos que ele não ocorre da forma como é apresentada no discurso oficial, segundo discutiremos adiante. 80 mesmo auxiliar na reforma do papel do Estado e na reforma da Educação. Ademais, antes de induzir a melhorias no ensino, esse gênero teria a função precípua de se „autoaperfeiçoar‟, a partir de experimentações prévias, estudos e pesquisas educacionais. Os estudos bakhtinianos, ao centrarem-se na relação entre linguagem/sociedade, linguagem/ideologia, nos parecem ideais para compreender e formular as ideias acima expostas. Para o teórico russo, todas as esferas da atividade humana estão relacionadas com a utilização da língua, considerando que o conceito de esfera aduz, sobretudo, a um espaço de refração ideológica. A ideologia refrata a realidade, impõe determinados modos de concebê-la. Conforme mencionamos no capítulo precedente, Bakhtin (2009) concebe o signo como uma arena de luta entre classes sociais, na qual a classe dominante procura impor uma visão única da realidade. Para o teórico, o signo é essencialmente ideológico, uma vez que, na visão do autor, não há propriamente diferenciação entre ideológico e não-ideológico, mas variação no tipo e na forma da ideologia (RODRIGUES, 2001). Nesse sentido, os gêneros do discurso são, sobretudo, gêneros ideológicos, já que constituídos fundamentalmente pela linguagem, ou seja, pelo signo linguístico, o qual, devido a sua “pureza semiótica”, serve às mais variadas ideologias. Reiteramos, porém, que Bakhtin reformula algumas ideias marxistas, uma vez que o autor não concebe uma relação direta e mecânica entre a infraestrutura e a superestrutura, pois, mediando essa relação, encontra-se a esfera ideológica, que refrata a realidade. Exames em larga escala, como o Enem, são gêneros do discurso que surgem no seio da esfera estatal, veiculando sua ideologia. 81 Feitas essas observações, e considerando a ordem metodológica para o estudo da língua defendida por Bakhtin (2009), na próxima seção nos debruçaremos sobre a esfera ideológica na qual emerge a avaliação em larga escala. 3.1.1 Redefinição do papel do Estado e ideologia neoliberal: considerações sobre a esfera de emergência da avaliação em larga escala 3.1.1.1 Dos precursores Para entendermos o modelo atual que se impôs de avaliação – em larga escala e centralizada sobretudo na esfera federal – é fundamental entendermos, a priori, a esfera social de emergência desse gênero. Zanardini (2008) afirma que a avaliação resulta de uma série de reformas do papel do Estado. A reforma educacional é apresentada como uma dessas reformas, já que a educação é frequentemente definida por organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial, como condição estrutural para o desenvolvimento das nações e para o progresso econômico (ZANARDINI, op. cit.). Antes, porém, das reformas instauradas em meados da década de 70 do século XX, como resultado da crise do capital, Zanardini (op. cit.) identifica os testes psicométricos bem como os testes de mensuração de aptidões cognitivas enquanto uma espécie de „precursores‟ do modelo atual de avaliação em larga escala. Para o autor, tratar-se-ia de instrumentos diferenciados, mas com uma ontologia comum. Tal ontologia vincula-se essencialmente à manutenção do status quo da sociedade burguesa. 82 Com vistas a manter a sociedade desigual, a burguesia se vê forçada “a encontrar argumentos „válidos‟ que justificassem tal ordem social. Nesse momento de afirmação hegemônica os testes de aptidão e de capacidade se mostram como ferramentas imprescindíveis ao projeto hegemônico burguês” (ZANARDINI, op. cit., p. 64). Esta seria, portanto, a „origem ontológica‟ dos atuais exames em larga escala, gênero que justifica as desigualdades apontando os „fracassos individuais‟ ou os fracassos das escolas e sistemas de ensino (responsabilização). Pela lógica burguesa, todos teriam as mesmas oportunidades, mas apenas os mais aptos, os mais esforçados triunfariam. Zanardini (2008) destaca que os testes psicométricos, surgidos no século XIX e intensificados no pós-guerra (II Guerra mundial), foram usados principalmente na escola, na indústria e nas forças armadas. Essa constatação leva-nos a reconhecer tais instituições como aparelhos disciplinadores, essenciais para a manutenção da ordem. Como características centrais desses testes que antecederam o atual modelo de avaliação em larga escala, podemos destacar a racionalidade, a objetividade e a economia de tempo, afinal os testes tinham que racionalmente mensurar capacidades cognitivas, com o máximo de precisão e economia, considerando os problemas econômicos advindos do pós-guerra, os quais demandaram controle da eficiência e da produtividade. A objetividade e a racionalidade vão paulatinamente sendo incorporados ao modelo atual de avaliação em larga escala, conforme discutiremos adiante, de forma a aperfeiçoar cada vez mais os exames, tornando-os instrumentos „seguros‟, „confiáveis‟, de alto „poder preditivo‟. 83 Sobre essa última característica (instrumento de poder preditivo), vejamos o que afirma Zanardini (2008, p. 65) sobre os testes de inteligência implantados no século XIX e intensificados no século XX: A preocupação expressa nos testes de inteligência é encontrar um instrumento de predição, ou seja, quanto mais os prognósticos contidos nos testes são confirmados mais comprovam a realidade substancial que „medem‟, pois somente aptidões desiguais permitem explicar a diferenciação e hierarquização dos indivíduos e das classes sociais. Segundo discutiremos adiante, essa preocupação expressa em encontrar „instrumentos preditivos‟ sobre desempenhos dos avaliados perdura no modelo atual de avaliação, sobretudo no Enem, sendo, ademais uma preocupação explicitamente enunciada. Outra característica dos exames de inteligência que permanece nos atuais exames em larga escala reporta-se à necessidade de legitimação, sobretudo legitimação científica. Considerando que tanto os exames de inteligência quanto os nossos modernos exames em larga escala sofreram forte influência do modelo americano, Zanardini (op. cit., p. 80) afirma que constantemente “requereu-se o apoio da ciência como forma de referendar a prática avaliativa, tendo em vista atribuir-lhe qualidade inquestionável”. Essas observações levam-nos a afirmar que não basta apenas avaliar, é preciso demonstrar que a avaliação é válida, legítima, inquestionável e, sobretudo, necessária. Como embebida em um poder invisível, a avaliação se apresenta como alternativa primeira para se controlar a qualidade, predizer aptidões, justificar fracassos. No século XIX, os testes psicométricos determinavam quem eram os mais „aptos‟, justificavam o status quo da sociedade. Em fins do século XX e início do 84 século XXI, como interpretar a emergência de exames em larga escala? Quais as funções atribuídas a esses exames pelo discurso oficial e quais as funções „nãodeclaradas‟ considerando a relação gênero/esfera/ideologia? Essas indagações movem-nos nas linhas a seguir. 3.1.1.2 Das reformas do papel do Estado e da ideologia neoliberal Segundo Peroni (2003, p. 22), as mudanças ocorridas na política educacional dos anos 1990 devem “ser entendidas como parte da materialidade da redefinição do papel do Estado”. Essa redefinição, por sua vez, deve ser concebida como um movimento mais amplo e complexo de crise do capitalismo. A autora destaca que, no período pós-Segunda Guerra, havia uma tendência – embora não homogênea em todos os países – de direcionamento das políticas para setores vinculados ao crescimento da produção e do consumo, de forma a se garantir o pleno emprego – tratava-se do well faire state, ou Estado de bem-estar social. Hayek e Keynes polemizavam nesse período histórico, triunfando este último naquele momento específico. Para Zanardini (2008, p. 87), “Como o capitalismo na época vivia seu „período de ouro‟, as recomendações de Hayek não encontravam campo fértil para se proliferarem”. Não obstante, nos anos 1970, acirrou-se uma crise do capital que acabaria por trazer à tona os ideais apregoados por Hayek como alternativa para superação da crise. Culpavam-se o Estado, seu engessamento, seus gastos irresponsáveis. Argumentava-se sobre a ineficiência do Estado, e, sobre esse argumento, construiuse a ideia segundo a qual o Estado não deveria promover diretamente o crescimento econômico, mas facilitá-lo, atuando como „catalisador‟, „indutor‟, „regulamentador‟. 85 A crise econômica é, portanto, concebida, pelos neoliberais, como resultado de uma crise do Estado. A esse respeito, vejamos o que diz um documento oficial elaborado pelo então “Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado”, num momento em que se procurava implementar a reforma do Estado brasileiro: A crise brasileira da última década foi também uma crise do Estado. Em razão do modelo de desenvolvimento que Governos anteriores adotaram, o Estado desviou-se de suas funções básicas para ampliar sua presença no setor produtivo, o que acarretou, além da gradual deterioração dos serviços públicos, a que recorre, em particular, a parcela menos favorecida da população, o agravamento da crise fiscal e, por conseqüência, da inflação. Nesse sentido, a reforma do Estado passou a ser instrumento indispensável para consolidar a estabilização e assegurar o crescimento sustentado da economia. Somente assim será possível promover a correção das desigualdades sociais e regionais. (BRASIL, 1995, p. 6, grifos nossos). Segundo o discurso acima transcrito, o Estado, ao se desviar de suas funções básicas de „incentivador‟, „regulador‟, para atuar diretamente na produção, seria responsável pela crise que deterioraria os serviços públicos. Nesse sentido, faz-se necessário repensar os papeis assumidos pelo Estado, de forma a se promover o crescimento econômico. No campo educacional – entendido como estratégico para o crescimento econômico – desponta o Estado avaliador, atuando de forma regulatória e agindo sobretudo através da avaliação materializada em testes padronizados em larga escala. O Estado avaliador, segundo Zanardini (2008, p. 96), desponta “como alternativa de mudança dos papeis do Estado, rompendo com seu aspecto de fomentador e promotor direto, acentuando-se seu caráter de incentivador e regulamentador do desenvolvimento”. 86 Vê-se, portanto, que a reforma e redefinição do papel do Estado surge num momento de crise estrutural do capitalismo. Zanardini (2008, p. 89) afirma que a ontologia que embasa a relação Estado e sociedade “tem em vista a reprodução e manutenção das relações capitalistas de produção”. Logo, considerando a “necessidade e a essencialidade do Estado, particularmente do burguês, para o sistema do capital, reformá-lo, sempre que as condições objetivas o exijam, significa rever entraves e fatores de ineficiência para a reprodução desse modelo social” (ZANARDINI, op. cit., p. 89). No período de crise do capital, aprofundada em 1973, tem-se, conforme ressalta Peroni (2003), a implantação de um modelo de acumulação flexível, contrastante com a rigidez fordista. Em consequência, cresce o desemprego estrutural, havendo, em contrapartida, uma banalização das desigualdades sociais. A reforma do papel do Estado brasileiro, segundo observa Peroni (op. cit.), foi fundamentada na teoria da “falha do Estado”, denominada Renting seeking, que fora desenvolvida pela Public Choice, ou Escola de Virgínia. Caracterizariam, dentre outras, ideias defendidas pela Public Choice: A diferenciação entre ações do Estado (assentado em „regras gerais‟, responsável por garantir a liberdade, o direito à propriedade) e do governo (transitório, irresponsável); a distinção entre níveis decisórios Constitucional e Pós-constitucional; a tentativa de restringir ações dos legisladores comuns; a tensão entre liberdade individual e democracia. 87 A autora ressalta que, no período atual, as contradições econômicas e sociais estão mais acirradas. A ofensiva neoliberal aparece nesse contexto “justamente como uma estratégia para superação dessa crise” e “utiliza-se, em larga escala, de sua ideologia para construir a ambiência cultural necessária a esse período particular do capitalismo” (PERONI, 2003, p. 26). A respeito da ideologia neoliberal como projeto hegemônico que acompanha a reforma do Estado, afirma Zanardini (2008, p. 89): O projeto hegemônico materializado pelo neoliberalismo pode, então, ser caracterizado como um processo de duplo caráter, que permite: por um lado impor uma intensa dinâmica de mudança material composta por estratégias políticas, econômicas e jurídicas que visam encontrar uma saída para o processo de crises cíclicas do capitalismo a partir do fim dos anos 1960, e por outro representar e aglutinar um projeto com força ideológica na sociedade, atuando principalmente na construção de outro senso comum que fornecesse coerência rumo à legitimação de suas propostas reformistas. A citação acima transcrita trata a ideologia neoliberal como um projeto que visa à construção de um consenso, de uma hegemonia, de forma a justificar as propostas de reformas. Tendo como obra fundamental O caminho da servidão (1944), de Friedrich Hayek, a ideologia neoliberal, assentada sobre a meta fundamental de estabilizar e manter estável a economia, tende, segundo Zanardini (2008), a justificar os problemas econômicos pelos problemas educacionais. Não se trata, porém, conforme destaca o autor, de um discurso absolutamente novo (e o que seria absolutamente novo se olharmos o mundo sob a visão bakhtiniana?), mas que remonta suas origens ao liberalismo clássico. Segundo Zanardini (2008, p. 83), Quando nos reportamos à tentativa de justificar os problemas econômicos pelos problemas educacionais e à consideração de que 88 por meio da educação se promoveria mobilidade social numa sociedade de classes antagônicas, devemos ressaltar que essa tentativa não é nova. Tal perspectiva nasce por volta do século XVIII quando princípios educativos, como o da universalização da educação, compõem os princípios da doutrina liberal, lado a lado com a igualdade de direitos e oportunidades, o fim dos privilégios hereditários e o respeito às iniciativas e capacidades individuais. Outras características da ideologia neoliberal, pensando mais especificamente sobre as políticas sociais, e, dentre elas, a educação, conforme Peroni (2003): 1. A tese do „repasse de responsabilidades‟ com vistas à melhoria dos serviços – o Estado repassa responsabilidades para a iniciativa privada, para os indivíduos e para as organizações sociais; surgem parcerias entre setores públicos e privados; redefine-se o próprio conceito de „serviço público‟. 2. A defesa da necessidade de se privatizar setores considerados estratégicos para o desenvolvimento da nação, bem como a crescente privatização de serviços (saúde, educação, previdência social), ocasionando a „mercadorização‟ desses serviços; a privatização „seletiva‟ (privatização de serviços considerados lucrativos, como, por exemplo, o ensino superior); a implementação de „quasemercados‟ em educação. 3. A descentralização – responsabilidades outrora do governo federal são repassadas a estados e municípios, sob o argumento de que os serviços seriam mais bem gerenciados. No Brasil, essa descentralização efetivou-se, na educação, através, sobretudo, da municipalização do ensino fundamental. 4. A monitoração da qualidade dos serviços prestados, principalmente dos serviços educacionais, por meio de avaliações. 5. A defesa da focalização das políticas sociais, que deveriam atender aos „mais pobres‟, em detrimento de políticas universais, de amplo alcance. 89 Sobre as relações Estado/sociedade, temos: 1. A tensão ente um modelo de Estado “que seja ao mesmo tempo forte e fraco” (ZANARDINI, 2008, p. 87). Peroni (2003) afirma que, no modelo neoliberal, temos um Estado máximo para o capital e mínimo para gastos sociais. Afonso (1999), por sua vez, enfatiza que nas reformas implantadas ao longo dos anos 1980/90 nos países centrais predominou uma „bipolaridade‟, através da defesa da livre economia (tradição liberal – “Estado fraco”) com a defesa da autoridade do Estado (tradição conservadora – “Estado forte”). 2. A tensão entre liberdade individual e democracia. Peroni (2003, p. 27) destaca que, para Hayek, “a maximização da liberdade está em proteger-se o sistema de mercado, necessário e suficiente para a existência da liberdade individual. Assim, o mercado deve ser protegido contra o Estado e, também, da tirania das maiorias”. 3. A crença em „regras gerais‟ que salvaguardariam os direitos de propriedade privada e de competição. Com base nessas premissas, três principais motivos são apresentados como responsáveis pelo sucesso econômico de um país. Primeiro, o compromisso com a estabilidade econômica. Para manter estáveis os índices econômicos, geralmente cortam-se gastos, sobretudo gastos sociais, uma vez que o neoliberalismo representa o Estado máximo para o capital e mínimo para as políticas sociais. O discurso neoliberal, inevitavelmente, menciona a tão almejada estabilidade, os baixos índices de inflação como indicadores de que determinado país “vai muito bem, obrigado”. O Banco mundial, por exemplo, ao avaliar o primeiro mandato do governo Lula, afirma: 90 Partindo dos sucessos da administração anterior – mudança na gestão fiscal e monetária e substanciais melhorias sociais – as duas vertentes do enfoque do novo governo são: manter a estabilidade macroeconômica e, ao mesmo tempo, promover um crescimento mais eqüitativo e acelerar o progresso social. A nova administração federal se comprometeu com a austeridade fiscal, com o estabelecimento de metas de inflação e com o cumprimento dos contratos da dívida. (BANCO MUNDIAL, 2004, p. 17, destaques nossos). A estabilidade macroeconômica, o comprometimento com a austeridade fiscal, os baixos índices inflacionários e o cumprimento do pagamento da dívida externa são apresentados como metas que teriam sido responsáveis pelo crescimento econômico do Brasil, permitindo-se, assim, o aceleramento do progresso social. Logo, manter estável a economia deve, segundo a ideologia neoliberal, ser o objetivo dos países comprometidos com o crescimento e com a melhoria da vida da população. O segundo motivo apresentado como responsável pelo sucesso econômico de uma nação seria o dinamismo da iniciativa privada. O discurso neoliberal tende a apresentar o Estado, seu „agigantamento‟, como responsável pelas crises que de tempos em tempos assolam os países. Culpa-se principalmente a ineficiência do setor público, apresentado como atrasado, burocrático, vicioso. Nesse sentido, a solução estaria no setor privado, quase sempre visto como dinâmico, eficiente, moderno. O Banco mundial (1997, p. 6) afirma que, “com freqüência, empresas estatais ineficientes representam uma sangria para as finanças do Estado”. Nesse sentido, a privatização parece oferecer uma solução óbvia, gerando benefícios econômicos e fiscais positivos. Por fim, o terceiro motivo responsável pelo crescimento econômico seria a racionalidade e regulação avançada do eficiente sistema bancário. Peroni (2003, p. 34) apresenta como característica marcante do período iniciado com as reformas do 91 papel do Estado “a autonomia do sistema bancário e financeiro, acentuando o que Harvey chama de dinheiro sem Estado”. A expansão do mercado financeiro internacional caracterizar-se-ia pela acumulação flexível e pela autonomia do sistema bancário. Nesse sentido, a eficiência desse sistema seria também responsável pelo desenvolvimento econômico. Em suma, a estabilidade, a iniciativa privada e o sistema bancário estariam na origem do progresso econômico. A escola, nesse cenário, desponta como instituição privilegiada para a socialização e formação de sujeitos aptos a atuarem num mundo competitivo. Afirmamos anteriormente que a educação, sob a égide da reforma do papel do Estado, ao longo dos anos 80 e 90 do século XX, foi apresentada e concebida como área estratégica para o desenvolvimento econômico. Por meio da educação, conforme observa Zanardini (2008), ao analisar documentos veiculados pelo Banco Mundial, ter-se-ia o empoderamento das classes mais vulneráveis, que poderiam vir a se tornar „empregáveis‟. É comum ler e ouvir em debates e discussões sobre educação que o crescimento econômico de um país ocorreu devido a amplos investimentos educacionais. Nesse sentido, o exemplo do Japão já se tornou praticamente um clichê apresentado na mídia, na política e largamente disseminado como uma “verdade incontestável”. Ora, se a educação é setor estratégico para o desenvolvimento econômico, conforme enfaticamente apregoa o discurso neoliberal, como aferir sua qualidade, como monitorar os desenvolvimentos em educação? A avaliação, padronizada e em larga escala, aparece como resposta a tais questionamentos, sendo, ainda, resultado de mudanças no modelo administrativo – 92 do modelo burocrático para o modelo público gerencial, pautado em metas e na aferição de resultados objetivos, conforme citamos no capítulo a este precedente. 3.1.1.2.1 Reforma educacional: a emergência de exames em larga escala O crescente interesse pela temática da avaliação educacional na atualidade levou muitos pesquisadores, segundo observa Freitas (2007), a acreditarem erroneamente que o envolvimento do Estado brasileiro com a avaliação é um fenômeno recente. A autora, ao tentar entender por quais vias o Estado brasileiro “chegou a empreender as iniciativas sistemáticas de avaliação em larga escala na regulação da educação básica” (p. 8), observa medidas avaliativas ainda na década de 30 do século XX. Não obstante, o modelo atual de avaliação foi, segundo Freitas (2007), delineado recentemente, entre os anos 1980 e 1990. Versieux (2004, p. 13), por sua vez, observa que, na década de 50 do século XX, começavam a emergir avaliações envolvendo sistemas escolares. No entanto, “não havia um quadro geral da posição individual do aluno em relação aos seus pares e da escola em relação às outras, num quadro de referências comparativas” – tendência amplamente observada nos dias atuais. No sub-tópico precedente, vimos que a educação, sob a égide da reforma do papel do Estado, é concebida como setor estratégico para o desenvolvimento econômico e para o empoderamento das classes consideradas mais vulneráveis. Põe-se em foco, com a reforma do aparelho estatal, a necessidade de se controlar os serviços públicos prestados à população. Considerando que se dissemina amplamente a ideia de uma „ineficiência‟ do setor público, cada vez mais se dissemina também a crença no „fracasso generalizado‟ da escola pública – fracasso 93 atribuído ao modelo administrativo vigente, pouco afeito à competição e à meritrocracia. A avaliação da educação básica, que assumiria sobretudo a forma de exames padronizados em larga escala, emerge a partir de um imperativo de qualidade do ensino. Freitas (2007, p. 53) afirma que “O interesse pela avaliação em larga escala como expediente do governo da educação básica fortaleceu-se com a intensificação do questionamento da qualidade tanto da expansão como dos resultados do ensino, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980”. Um importante marco na definição de padrões mínimos de qualidade é a promulgação da Constituição de 1988, que, embora não tenha citado explicitamente a avaliação como medida de controle, pressupõe a qualidade dos serviços educacionais prestados “como uma tarefa pública que supõe a atuação do Estado segundo a concepção de federalismo e a natureza da relação Estado-sociedade inscritas na Lei maior” (FREITAS, 2007, p. 65). A avaliação do ensino básico atuou como importante ferramenta na redefinição do papel do Estado, mais precisamente na redefinição do papel do Estado em relação à educação. Institui-se, com a avaliação, uma via de controle „à distância‟, concentrada na esfera Federal, que promoverá a conjugação entre descentralização (da oferta do ensino) e centralização (da qualidade do ensino ofertado, por meio da avaliação). Trata-se de uma “via de regulação percebida como alternativa a um comando burocrático” (FREITAS, 2007, p. 151), isto é, uma forma „moderna‟, „prática‟ e „eficiente‟ de gerir e induzir a melhorias no ensino. Segundo Freitas (op. cit., p. 102), Para além da edição de normas, o governo central promoveu ações de medida, avaliação e informação. Tornou-se prática sistemática do 94 governo central, desde o ingresso dos anos de 1990, avaliar a educação básica. Isso lhe propiciou atuar, de forma inédita, na gestão desse nível de educação escolar no país, ainda que, por força de dispositivos constitucionais e de práticas históricas vigentes, os estados e municípios fossem as instâncias incumbidas tanto da oferta como da gestão desse nível de educação e ensino. A reforma educacional veio acompanhada de um discurso sobre a modernização da gestão pública. A partir desse discurso, a avaliação atuaria no monitoramento tanto da qualidade, quanto da descentralização da oferta do ensino. Ao mesmo tempo, difundir-se-ia valores da cultura hegemônica, como a supervalorização do mérito individual de alunos e de escolas. Sobre essa questão, é importante destacar que o modelo de avaliação imposto tem recorrido, muitas vezes, ao desempenho de alunos, de forma individual, para aferir a qualidade de sistemas de ensino e escolas – assim ocorre com o Enem. Sousa (2009, p. 34) observa que a avaliação tem servido para viabilizar uma lógica de gerenciamento da educação, reconfigurando, por um lado, o papel do Estado e, por outro, a própria noção de educação pública, ao difundir uma ideia de qualidade que supõe diferenciações no interior dos sistemas públicos de ensino, como condição mesma de produção de qualidade. Partindo de seu potencial para induzir reformas na educação, a avaliação orientou-se por um viés pragmático, por uma “lógica objetiva, direta, que buscou sobretudo produzir efeitos práticos, que considerou o valor prático como critério de verdade, que esperou comportamentos em conformidade com recomendações e normas centralmente definidas” (FREITAS, 2007, p. 120). Considerando que a educação, sob a ótica neoliberal, é vista como condição estrutural para o desenvolvimento econômico, e que se tornou, portanto, imperativo monitorar a qualidade do serviço educacional prestado, podemos inferir que uma 95 condição sócio-discursiva singular emergiu. Precisava-se de um instrumento, de um artefato simbólico capaz de aferir a qualidade almejada e que se mostrasse ou aparentasse uma neutralidade e uma eficiência reconhecidas socialmente. Exames padronizados, em larga escala, pedagogicamente reconhecidos parecem o ideal para cumprir tais metas de monitorar a educação, impor uma lógica racional pragmática e investir numa cultura meritocrática. Em outros termos, exames em larga escala, a exemplo do Enem, surgem e se consolidam como gênero do discurso em um contexto de reformas educacionais e redefinição do papel do Estado. Emergem a serviço da ideologia neoliberal. Ora, segundo a ótica bakhtiniana, todo signo é ideológico. O gênero, como forma tipificada de enunciados numa dada esfera, é, por extensão, gênero ideológico. Todo gênero estará a serviço de valores, de visões de mundo. Ademais, considerando também que todo enunciado e, por conseguinte, todos os gêneros surgem como reação-resposta a algo, em uma esfera discursiva, devemos, para os propósitos desta pesquisa, entender não apenas por que a avaliação em larga escala assumiu tal forma, mas também entender a que esse gênero responde, a que ele se constitui como reação resposta. Analisar tão somente a materialidade textual de exames em larga escala pouco nos diria sobre essa questão. Ao invés, devemos olhar as especificidades da conjuntura na qual os exames emergiram e foram legitimados como eficiente instrumento capaz de aferir a qualidade do ensino. Com efeito, a exigência de qualidade e de controle, a necessidade de monitoração dos serviços prestados à população constitui-se como primeiro imperativo ao qual os exames em larga escala surgem como reação-resposta. 96 A Constituição de 1988 em seu art. 206, inciso VII, apresenta a “garantia de padrão de qualidade” como princípio que fundamenta a educação. Em seu art. 209, afirma-se que a educação “é livre à iniciativa privada”, não obstante, condiciona-se tal liberdade ao atendimento de duas condições, dentre elas, “a autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”. O art. 214, por sua vez, ao estabelecer dispositivos legais para o plano nacional de educação, afirma que esse plano visará “à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis” e “à integração das ações do poder público que conduzam” à cinco metas, dentre as quais, destacamos, in verbis, “III - melhoria da qualidade do ensino”. O texto constitucional, segundo mencionamos acima, não apresenta explicitamente a avaliação como mecanismo de controle da qualidade do ensino, mas, ao propor a melhoria dessa qualidade como meta e como atribuição do Poder Público, lança as bases do que viria a se tornar um sistema de avaliação padronizado e amplamente difundido socialmente. A qualidade, percebe-se, era um imperativo. A LDB/1996, como principal dispositivo legal que rege a educação, estabeleceu, em seu art. 3º, inciso IX, a “garantia de padrão de qualidade” enquanto um dentre os onze princípios que fundamentam o ensino. A avaliação torna-se explícita no art. 9º, no qual se estabelecem as atribuições da União sobre a oferta e manutenção do ensino. O inciso VI assegura o “processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino”. Uma vez que a questão da qualidade do ensino foi imposta como imperativo, a avaliação, padronizada e em larga escala, devendo atender a um grande número 97 de alunos, emerge como reação resposta a tal demanda. Temos, pois, a constituição de um gênero que, a priori, deveria mensurar a qualidade de um serviço prestado à população, qualificar tal serviço como adequado ou não, e classificar os estabelecimentos que prestam tal serviço. A avaliação, como observa Freitas (2007), recaiu sobre o rendimento individual do aluno, daí decorre que os exames padronizados em larga escala sejam o exemplo mais emblemático de instrumento avaliativo, aqui compreendido como gênero do discurso consolidado em um contexto específico de redefinição do papel do Estado. É importante observar que dois eixos fundamentavam o discurso sobre o ensino, no período constituinte, quais sejam: a equalização de oportunidades educacionais e o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade do ensino. Segundo Freitas (2007, p. 69), Equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino seriam garantidos mediante a função redistributiva e supletiva da União, incumbida de realizar assistência técnica e financeira aos entes da federação. Essas tarefas justificaram a utilização da avaliação em larga escala, pelo governo central, para regular a educação básica. (destaque nosso). Os exames em larga escala emergem como reação-resposta às reformas educacionais estabelecidas sob a égide da redefinição do papel do Estado. Tais reformas definem a necessidade do controle de qualidade e da descentralização do ensino ofertado. Nesse sentido, competiria à avaliação monitorar a descentralização da oferta do ensino. Freitas (2007, p. 77), ao analisar a tramitação do anteprojeto da LDB, observou que “No conjunto, a avaliação apareceu nessa proposta do MEC como estratégia de descentralização, de gestão democrática e de controle sistêmico”. Adiante, ao discutir a implementação do SAEB, a autora destaca que esse sistema de avaliação “orientou-se (...) para o monitoramento da 98 „descentralização‟ de políticas, num contexto de redefinição de competências dos três níveis de governo propiciados por esses instrumentos legais” (p. 110). Apostava-se na avaliação como mecanismo para garantir padrões mínimos de qualidade, para monitorar a descentralização da oferta do ensino e, também, para induzir reformas educacionais. Segundo Freitas (op. cit., p. 120), “A força normativa da avaliação em larga escala foi condicionada pelo desafio de reformar a gestão dos sistemas de ensino nos marcos de uma nova regulação estatal, sendo esta conformada por um federalismo regido por uma lógica pragmática” (grifo nosso). Destacamos que, como reação-reposta a uma necessidade de induzir reformas no ensino, a avaliação em larga escala, sob a forma de exames padronizados, a exemplo do Enem, assumirá uma importante característica prevalecente hoje em dia, qual seja a aposta no efeito retroativo da avaliação. De fato, quando se fala que um exame como o Enem atuará ou deverá atuar na reforma do Ensino Médio, tornando o currículo desse nível de ensino „menos enciclopédico‟, ou que, por meio desse exame, o aluno preparar-se-á para „os desafios do mundo do trabalho‟, aposta-se no efeito retroativo do exame sobre sistemas de ensino. Conforme discutimos anteriormente, a avaliação, porém, não é um fenômeno absolutamente novo, sem precursores. Se Zanardini (2008) identifica nos exames psicométricos e nos testes cognitivos antecessores do que viria a se tornar os atuais exames em larga escala, podemos afirmar, pois, que os exames atuais surgem também como reação-resposta a tais experimentações prévias, se considerarmos que, sob a ótica bakhtiniana, os gêneros encontram-se numa relação dialógica ininterrupta. Não existe nada absolutamente novo. Bawarshi e Reiff (2010, p. 83) assinalam duas relações estabelecidas entre os gêneros, conforme Bakhtin. Primeiro, temos a assimilação de gêneros (o romance assimilando o gênero “carta”, 99 por exemplo), ou a assimilação dos gêneros primários pelos secundários. Segundo, Bakhtin also describes a more horizontal set of relationships between genres, in which genres engage in dialogic interaction with one another as one genre becomes a response to another within a sphere of communication. For example, a call for papers leads to proposals, which lead to letters of acceptance or rejection, and so on. (BAWARSHI e REIFF, 2010, p. 83)10. Nesse sentido, os gêneros não existem de forma isolada, mas em contínua interação uns com os outros. Trata-se de uma conclusão óbvia se pensarmos que só nos comunicamos e só interagimos por meio de gêneros. Ora, se os gêneros existem numa relação horizontal, na qual cada gênero se torna uma resposta a outro dentro de uma esfera, podemos afirmar que os exames em larga escala, coordenados sob a tutela do Estado, encontram-se em relação dialógica com os exames escolares, restritos ao domínio mais limitado da escola. Considerando a antecedência destes, os exames em larga escala constituir-se-iam como reaçãoresposta aos exames escolares, com eles guardando muitas semelhanças, sobretudo no que tange à composição (estruturada em perguntas e respostas, contendo ou não alternativas etc) e ao tema (didatização de conteúdos a serem avaliados). Pesquisas educacionais e experimentações prévias antecederam a consolidação de exames nacionais amplamente aceitos e divulgados hoje em dia, a exemplo do Enem. Freitas (2007, p. 8) constata que, ainda no período 1937-1945, 10 “também descreve um conjunto de relações mais horizontais entre os gêneros, no qual os gêneros se envolvem em interação dialógica com outro enquanto um gênero torna-se uma resposta a outro dentro de uma esfera da comunicação. Por exemplo, uma chamada para publicação leva à apresentação de propostas, que levam às cartas de aceitação ou rejeição, e assim por diante.” Tradução nossa. 100 o Estado Novo deu expressivo impulso à “ciência” e “a técnica” de quantificar a educação, tendo em vista a intenção de planificar ações governamentais voltadas para a instauração de “uma ordem social integral”. Os estudos em educação tornaram-se cada vez mais institucionais, científicos e acadêmicos, tendo obtido impulso a valorização da mensuração para o bom governo educacional. A autora supracitada, em sua pesquisa sobre a avaliação da educação básica no Brasil, parte da hipótese de que a avaliação “emergiu via percurso de configuração e articulação da pesquisa e do planejamento educacional” (p. 2), e evidencia um longo percurso de pesquisa educacional (iniciado ainda na década de 30 do século XX) e de experimentações prévias. Podemos afirmar, pois, que os exames em larga escala, máximo expoente da avaliação educacional, emergem também como reação-resposta a tais pesquisas e experimentações anteriores. Para se chegar ao modelo atual de exames padronizados, importante também foram as experiências e exemplos de outros países. Zanardini (2008), por exemplo, ressalta a influência norte-americana no modelo de exames brasileiros. Segundo o autor, o modelo de avaliação educacional que acompanha o desenvolvimento da teoria do currículo de viés positivista, que Saul (2006) denomina de quantitativista, irá perpassar toda a década de 1970 avançando até os anos 1980. A partir de meados de 1980 começam a ganhar força no Brasil, novamente por influência norte-americana (Schwartzman, 2005) as discussões em torno dos testes avaliativos em larga escala, que perduram até os dias atuais materializados no SAEB, ENEM e ENC. (p. 79, grifos nossos). Os nossos exames em larga escala que avaliam a qualidade da educação básica constituem-se, por conseguinte, como reação-resposta a experiências e exemplos de outros países. Ademais, devemos destacar que a tendência em avaliar e monitorar a educação, com vistas a assegurar padrões de qualidade, é uma 101 tendência mundial, exemplo emblemático do que Dale (2001) denomina agenda globalmente estruturada para a educação. Por fim, lembramos que tais exemplos internacionais são também condicionados por pressões e imposições de organismos internacionais, como o Banco Mundial, que defende a monitoração dos serviços prestados à população, a exemplo da educação, como demonstrou Zanardini (2008). Em síntese, exames em larga escala, como o Enem, nosso objeto estrito nesta dissertação, surgem como gêneros do discurso emergentes em um contexto de redefinição do papel do Estado e reformas educacionais. Consideramos que esse gênero constitui-se, por um lado, como reação-resposta a vários e complexos fatores, como: Exigência de qualidade (“imperativo de qualidade”) da educação, evidenciada em normas jurídico-legais, como a Constituição de 1988 e a LDB/1996. Trata-se de uma exigência também condicionada à necessidade de se controlar e monitorar a descentralização e privatização da oferta do ensino, distribuído entre os estados (responsável pelo Ensino fundamental, mas, sobretudo, pelo Ensino Médio) e municípios (responsável por ofertar principalmente o Ensino Fundamental). Pesquisas educacionais e experimentações prévias. Experiências e exemplos de outros países e demandas internacionais (Banco Mundial) condicionadas por uma “agenda globalmente estruturada para a educação”. Por outro lado, podemos afirmar que os exames em larga escala, padronizados, organizados sob a tutela do Estado central, constituem-se também como reação-resposta aos exames escolares e com a instituição escolar mantêm relações dialógicas. 102 Falar, porém, em dialogismo, sob a perspectiva bakhtiniana, implica considerar que todo enunciado surge não apenas como reação respostas a enunciados, a discursos a sentidos prévios, mas também como motivador de respostas, de atitudes responsivas. Existe um fluxo dialógico ininterrupto, que remete a um princípio imensurável, a um “princípio sem princípio”, e se estende a um futuro sem limites. Nas palavras de Bakhtin, Não existe a primeira nem a última palavra e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subseqüente, futuro do diálogo. (BAKHTIN, 2003, p. 410). O fluxo dialógico dos exames em larga escala estende-se para sua influência na escola (efeito retroativo), nos materiais didáticos, na disseminação de crenças e valores, nas repercussões na mídia, dentre outros. Trata-se de uma relação complexa, na qual gêneros dos mais diversos encontram-se em relação intrincada. Em um pólo, temos gêneros que antecedem e viabilizam a realização e a existência desses exames. Gêneros pertencentes às mais variadas esferas. Por exemplo: para um novo exame nacional entrar em vigor, ele precisa ser normatizado por uma Portaria, que dispõe, de forma geral, sobre a estrutura; os objetivos; a vigência do exame; o (s) responsável (eis) pelo planejamento, pela operacionalização, pela normatização e supervisão das provas; dispõe sobre a forma de participação dos avaliados (se voluntária ou obrigatória) etc. No caso do Enem, temos, a priori, a Portaria Ministerial 438, de 28 de maio de 1998. Ademais, pronunciamentos oficiais devem ser proferidos, a fim de divulgar o exame à sociedade, de forma geral, e à comunidade escolar/acadêmica, de forma específica. Exames prévios, testes 103 „modelo‟ podem ser aplicados, de forma a se estudar e analisar a viabilidade, a eficiência do novo exame. Convênios, licitações e contratos devem ser feitos para garantir a elaboração, reprodução, redistribuição e aplicação do exame. Em suma, uma série de outros gêneros, impossíveis de serem todos aqui citados, antecedem a promulgação de um exame em larga escala, assinado sob a tutela estatal. Em um segundo pólo, temos as repercussões, os materiais didáticos elaborados, as notícias e reportagens divulgadas na mídia, a apreciação, o levantamento dos resultados, as pesquisas acadêmicas, o estabelecimento de rankings entre instituições – outra infinidade de gêneros que respondem aos exames. Trata-se de uma relação tão complexa que os estudos sobre dialogismo centrados no círculo de Bakhtin não poderiam responder por esse intrincado complexo de gêneros interagindo. Dessa forma, recorremos a alguns conceitos dos estudos retóricos para esboçar uma relação dessa interação complexa. Esclarecemos que mantemos nossos estudos com base principalmente nas asserções bakhtinianas. Não obstante, frente à problemática que a nossos olhos se impôs, procuramos alguns outros conceitos que pudessem nos fazer compreender a complexa forma pela qual os exames em larga escala interagem como vários outros gêneros. Discutiremos essa questão a seguir. 3.2 Gêneros em interação Carolyn Miller (1994) define gênero como formas retóricas tipificadas, socialmente derivadas, intersubjetivas, de ações sociais recorrentes. Para Bawarshi e Reiff (2010), 104 Our ability to recognize, make sense of, and respond to exigencies is part of our social knowledge, and part of how we come to shared agreements on what situations call for, what they mean, and how to act within them. (...) By associating social purposes with recurrent situations, genre enable their users both to define and to perform meaningful actions within recurrent situations11 (p. 71-72). Pela citação acima, percebe-se que os gêneros, segundo essa visão, permitem o desempenho de ações significativas ao se constituírem como resposta a situações recorrentes, ao tempo em que ajudam a definir e a construir tais situações em uma interação dinâmica. Um conceito-chave dos estudos de gênero na tradição retórica é o conceito de tipificação. Trata-se de um conceito oriundo dos estudos fenomenológicos de Alfred Schutz, para quem as tipificações constituem a maior parte do nosso estoque de conhecimento. Tais estoques derivam de situações percebidas como similares, e que são constituídas em referência a experiências prévias (BAWARSHI e REIFF, 2010). Os gêneros são concebidos como formas tipificadas de ação social. Formas que respondem dinamicamente a situações recorrentes. Tal concepção nos parece dialogar, em parte, com o conceito de gênero desenvolvido por Bakhtin. Lembremo-nos que, para o teórico russo, os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados. Ora, as situações sociais recorrentes em uma esfera discursiva estabilizam formas de comunicação que se apresentam como relativamente estáveis. O que seria o enunciado senão a estabilização (relativamente estável) de situações típicas? A ordem militar, os cumprimentos na 11 “Nossa capacidade de reconhecer, dar sentido e responder às exigências faz parte do nosso conhecimento social, e parte de como chegamos a acordos compartilhados que a situação requer, o que eles significam e como agir dentro deles. (...) Ao associar fins sociais, com situações recorrentes, o gênero permite àqueles que os utilizam tanto definir quanto desenpenhar ações significativas dentro de situações recorrentes.” Tradução nossa. 105 conversa do cotidiano respondem, evidentemente, a situações típicas. Nesse sentido, podemos aproximar tal conceito dos estudos retóricos aos postulados bakhtinianos. Outros conceitos importantes dos estudos de gênero na tradição retórica são conjuntos de gêneros, sistemas de gêneros e meta-gêneros. Conjuntos de gêneros são, segundo Amy Devitt (apud. Bawarshi e Reiff, 2010, p. 87), “the more loosely defined sets of genres, associated through the activities and functions of a collective but defining only a limited range of actions12”. Sistemas de gêneros, por sua vez, constituem “the set of genres interacting to achieve an overarching function with an activity system13”. Por fim, meta-gêneros são concebidos como gêneros cuja função é “to provide shared background knowledge and guidance in how to produce and negotiate genres within systems and sets of genres14” (BAWARSHI e REIFF, op. cit., p. 94). De forma geral, pode-se dizer que o conceito de sistema de gêneros mostrase mais amplo que o conceito de conjuntos de gêneros, uma vez que esses últimos definem um número limitado de ações. Um conjunto de gêneros organiza-se em um sistema mais amplo de gêneros, concernentes a um sistema de atividade, considerando esse último conceito (sistema de atividade) como “any ongoing, object- 12 “os conjuntos de gêneros mais vagamente definidos, associados com as atividades e funções de uma coletividade, mas que apenas definem uma gama limitada de ações.” 13 “o conjunto de gêneros que interagem para atingir uma função primordial de um sistema de atividade.” 14 “fornecer conhecimento compartilhado e orientação sobre como produzir e negociar os gêneros dentro de sistemas e conjuntos de gêneros.” 106 directed, historically conditioned, dialectically structured, tool-mediated human interaction15” (BAWARSHI e REIFF, op. cit., p. 95-96). Um sistema de atividade, digamos a logística de elaboração de um exame, envolve um objetivo (elaborar o exame), sujeitos (elaboradores, colaboradores, revisores etc) e meios mediativos, dentre os quais, os gêneros que medeiam as atividades. Esses gêneros entram em relação dinâmica, organizam-se segundo objetivos, ações a serem realizadas. Um conjunto de gêneros interrelacionados formará um sistema de gêneros naquele sistema de atividades específico. Cada sistema, porém, relaciona-se a outros sistemas. Nesse sentido, o sistema de atividades que envolve a elaboração de um exame relacionar-se-á ao sistema de atividades dispostas sobre a execução propriamente dita desses mesmos exames (o ato de respondê-los, a avaliação sendo respondida pelos avaliados). Sistemas de atividades estarão mais ou menos próximos, mais ou menos relacionados uns aos outros. Por exemplo, a apreciação valorativa da mídia sobre um exame poderá, em certo sentido, estar mais distante dos trâmites burocráticos que antecederam os processos de licitação, de seleção de elaboradores etc. Outros, por sua vez, estarão mais próximos: as repercussões pedagógicas nas escolas, as aulas preparatórias estão mais próximas e relacionadas ao sistema de atividade que envolve responder o exame na data pré-determinada. Em todo caso, trata-se de um complexo sistema de interação, no qual importantes funções terão os meta-gêneros. Esses, conforme citamos, concernem a gêneros que guiam a produção de outros gêneros nos sistemas de atividades. 15 “qualquer curso, dirigido a objetos, historicamente condicionado, dialeticamente estruturado, ferramenta de interação mediada por humanos.” Todas as traduções são nossas. 107 Importantes meta-gêneros são os materiais didáticos ou instrucionais que surgem como reação-resposta aos exames, e que são amplamente divulgados e comercializados quando um exame adquire grande importância e relevância social. Quando o Enem passou por uma reformulação em 2009, com vistas a se tornar um sistema de „vestibular unificado‟, assistimos a uma verdadeira proliferação de materiais didáticos dos mais diversos, desde aqueles ditos „oficiais‟ (livros didáticos), até aqueles considerados „alternativos‟ (manuais sob o formato de „apostilas‟ ou „revistas‟, como as que foram organizados pela Editora Abril). Esses materiais podem ser concebidos como meta-gêneros, à medida que, surgidos como reação resposta a outros gêneros, guiam, ensinam, e, em certo sentido, estabilizam visões sobre esses gêneros aos quais estão relacionados. Uma particularidade envolve a emergência de um exame em larga escala: esse gênero específico tem sempre um meta-gênero a ele associado. Meta-gênero que assume a função de matrizes de referência, fundamentações teóricometodológicas. Tais meta-gênero apresentam para os principais interlocutores dos exames (alunos, professores) as características daquele exame específico, o quê, como e por que tais e quais objetos, competências e habilidades serão avaliadas. Ao mesmo tempo, os meta-gêneros ajudam a estabilizar certas visões e concepções sobre o exame em foco. Ao que parece, dificilmente um exame em larga escala é proposto sem que a ele esteja associado um meta-gênero. No Enem, temos tanto meta-gêneros oficiais, como sua Matriz de referência e sua Fundamentação Teóricometodológica, como meta-gêneros não oficiais (materiais didáticos preparatórios dos mais diversos, apostilas elaboradas por cursinhos etc). Em síntese, todo gênero relaciona-se a outro (s) gênero (s), formando-se conjuntos de gêneros e sistemas de gêneros que interagem num ou noutros 108 sistemas de atividades. Os exames em larga escala, não obstante, singularizam essa interação entre gêneros, ao envolverem múltiplas esferas, múltiplos sistemas de atividades. Para exemplificar, pensemos, primeiramente, as relações, os gêneros relacionados ao Enem numa análise das suas repercussões sobre as esferas escolar e acadêmica. Teríamos, a priori, a Matriz de Referência e a fundamentação teórico-metodológica como meta-gêneros que, em certo sentido, antecedem o próprio gênero. Em seguida, temos as repercussões, os debates, as pesquisas em torno do exame. Por outro lado, poder-se-ia analisar a relação entre gêneros sob o ponto de vista da esfera administrativa/burocrática, focalizando-se os trâmites envolvidos na implementação, legitimação, execução da prova. Assim, considerar-se-iam as Portarias Ministeriais que regulamentam e tornam público o exame; os pronunciamentos oficiais; a avaliação do processo como um todo, feito pela administração. Várias outras relações poderiam ser estabelecidas, a partir de um foco específico a ser considerado. De fato, exames em larga escala, que se estabeleceram sob a tutela do Estado, podem envolver diversas esferas discursivas, o que torna complexa a própria noção de esfera e de interação entre gêneros. Ao mesmo tempo, esses exames, para serem amplamente aceitos, precisam atender a requisitos que garantam sua própria eficiência. Em outros termos, não basta apenas avaliar, é preciso demonstrar que a avaliação é isonômica, idônea, relevante. Ao que parece, o quanto mais um exame é socialmente difundido, mais pressões recaem sobre sua eficiência, conforme discutiremos adiante. 109 3.3 Requisitos para a eficiência do exame Para ser aceito e mesmo para „funcionar‟ na sociedade, o Enem, ao que nos parece, precisa atender a alguns requisitos que atestam sua eficiência. A publicidade, a exigência de objetividade; a busca da credibilidade e isonomia do processo avaliativo; a busca por ampla adesão de alunos, professores e instituições; a eficiência didático-pedagógica; a legalidade do processo são alguns desses requisitos ou mesmo „pressões‟ aos quais estão submetidos exames em larga escala, de forma geral, e o Enem, de forma específica. Atender a tais pressões é um pré-requisito para que o gênero funcione adequadamente na sociedade, cumpra suas funções – declaradas, ocultas ou, ainda, subentendidas. A seguir discutiremos esses requisitos para a eficiência, a partir, principalmente, da análise de documentos oficiais veiculados no site do Ministério da Educação. 3.3.1 Objetividade, credibilidade, isonomia do processo avaliativo O artigo 37 da Constituição Federal estabelece a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, publicidade e eficiência como princípios básicos que devem reger a Administração pública. Segundo Rosa (2004, p. 9-10), Os princípios básicos da Administração, à luz do art. 37 da Constituição Federal, são: legalidade, segundo o qual ao administrador somente é dado realizar o quanto previsto na lei; impessoalidade, porquanto a atuação deve voltar-se ao atendimento impessoal, geral, ainda que venha a interessar a pessoas determinadas, não sendo a atuação atribuída ao agente público, mas à entidade estatal; moralidade, que encerra a necessidade de toda a atividade administrativa, bem assim de os atos administrativos atenderem a um só tempo à lei, à moral, à eqüidade, 110 aos deveres de boa administração, visto que pode haver imoralidade em ato tido como legal (nem tudo que é legal é honesto); publicidade, que torna cogente e obrigatória a divulgação e o fornecimento de informações de todos os atos da Administração, seja de forma interna ou externa; e, por fim, eficiência, que impõe a necessidade de adoção, pelo administrador, de critérios técnicos, ou profissionais, que assegurem o melhor resultado possível, abolindose qualquer forma de atuação amadorística, obrigando também a entidade a organizar-se de modo eficiente. (grifos do autor). Tais princípios podem exercer influência sobre exames em larga escala administrados sob a tutela estatal, a exemplo do Enem, afinal, esse exame deve atender aos princípios legais vigentes (legalidade), os quais facultaram ao poder público o direito de gerir avaliações dos sistemas de ensino (Constituição 1988, LDB/1996); a impessoalidade deve reger todo o processo avaliativo, desde os trâmites licitatórios que definem quais empresas serão responsáveis pela execução em si do exame, ao julgamento dos resultados, que não deve priorizar ou beneficiar nenhum aluno ou nenhuma instituição/empresa específica; os atos administrativos envolvidos no processo devem obedecer à lei, à moral, à equidade (moralidade); esses atos, por sua vez, precisam ser divulgados, precisam vir a público – o próprio exame deve ser normatizado por meio de uma portaria publicada no Diário Oficial da União (publicidade); por fim, o processo deve atender a normas objetivas, eficientes, assegurando-se resultados tidos como idôneos (eficiência). Diretamente atrelados à eficiência estão a objetividade, a credibilidade e a isonomia do processo. Um exame produzido e aplicado em larga escala deve, necessariamente, ser objetivo, prático, apresentar critérios objetivos de mensuração de resultados. Observemos o que afirma o documento intitulado “Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior” 111 (BRASIL, 2009a)16, veiculado pela Assessoria de Comunicação Social (ASC) do Ministério da Educação, sobre a proposta do que viria a se tornar o “novo Enem”: O cuidado especial com a elaboração de itens e a composição dos testes remete a um planejamento estruturado: (i) itens pautados pela matriz de habilidades e conjunto de conteúdos a elas associados; (ii) itens elaborados e revisados a partir de critérios técnicos e pedagógicos estabelecidos com base empírica e na literatura; e (iii) itens pré-testados, identificando parâmetros estatísticos de discriminação, de dificuldade e de probabilidade de acerto ao acaso. Quanto à escala, será utilizada a Teoria de Resposta ao Item, sob o modelo logístico de três parâmetros, que permite a comparação de resultados entre diversos ciclos de avaliação. Propõe-se a construção de quatro escalas distintas, uma para cada área do conhecimento. Cada escala será capaz de ordenar os estudantes conforme seu nível de proficiência, sendo possível às IFES estabelecer distintas ponderações ou pontos de corte para seleção de seus candidatos. Espera-se, assim, que a reestruturação do Enem atenda plenamente à demanda das IFES por um instrumento de alto poder preditivo de desempenho futuro, capaz de diferenciar estudantes em diferentes níveis de proficiência. O INEP domina a tecnologia de desenvolvimento de testes pela metodologia da TRI, que se caracteriza por medir habilidades de cada indivíduo e pela utilização de itens de prova com diferentes níveis de dificuldade, que permitem identificar o nível de habilidade dos alunos a partir do conjunto de itens que ele acerta. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB/Prova Brasil, conduzido pelo INEP, já é desenvolvido a partir da metodologia da Teoria de Resposta ao Item – TRI há mais de dez anos. Na aplicação da prova para o ensino médio, ainda que hoje o Saeb foque as disciplinas de língua portuguesa e matemática, em 1997 a prova já avaliou conteúdos de física, química, biologia, história e geografia. Portanto, a tecnologia em avaliação permite que se construa exame que atenda à demanda das IFES, e o Inep possui absoluto know how para conduzir com sucesso esse processo. Aliar a capacidade técnica do Inep, no que diz respeito à tecnologia educacional para desenvolvimento de exames, à excelência acadêmico-científica das IFES, é de suma importância nesse momento. Trata-se não apenas de agregar funcionalidade a um exame que já se consolidou no País, mas da oportunidade 16 Cf. ANEXO A - Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior 112 histórica para exercer um protagonismo na busca pela resignificação do ensino médio. (grifos nossos). Nos trechos acima destacados, o MEC discorre sobre a metodologia utilizada na elaboração dos itens que compõem o Enem e na aferição dos resultados. A todo momento constrói-se uma imagem de objetividade, cientificidade e eficiência a reger a avaliação. Afirma-se que “um cuidado especial deverá ser tomado quanto à complexidade dos itens que comporão os testes”, ou seja, não se trata de um exame “elaborado de qualquer jeito”, mas elaborado com “cuidados especiais”, técnicos e científicos, seguindo uma diferenciação na complexidade dos itens, com base em uma teoria altamente objetiva, precisa – a Teoria de Resposta ao Item. O planejamento é, segundo o discurso oficial, estruturado e “revisado a partir de critérios técnicos e pedagógicos”. Minhoto (2008, p. 72), ao estudar a institucionalização do Enem com foco na disseminação de uma cultura avaliativa, nota a consolidação de um discurso moderno, “fundamentado em um código cuja racionalidade é a da medida científica, da objetividade nos julgamentos e no estabelecimento de padrões, produto na crença e no poder dessa racionalidade como caminho para alcançar melhor desenvolvimento social e econômico”. Adiante, afirma a autora que “a avaliação, conduzida profissionalmente, reconhecida por sua metodologia científica, cumpre a função de legitimar as ações do estado ante a sociedade”. (p. 77). Observa-se essa função da avaliação, sempre respaldada pelo método científico, nos trechos destacados da Proposta à Associação... (BRASIL, 2009) acima, o que nos leva a afirmar que os exames em larga escala devem ser vistos como gêneros que precisam ser cientificamente legitimados, dado o poder assumido pela ciência na atual sociedade. 113 Nota-se que o documento supracitado faz menção não apenas ao Enem, embora seja esse exame o foco de atenção, mas também ao Saeb, enfatizando que ambos fazem utilização da TRI. Destacamos que o referido documento menciona a elaboração e revisão dos itens constitutivos do Enem com base em “critérios técnicos” e “com base empírica”. Trata-se, pois, de um exame que segue um método científico, que segue procedimentos empíricos e que, por conseguinte, merece credibilidade dos dirigentes das IFES. Os itens são, ademais, “pré-testados”, para se identificar “parâmetros estatísticos de discriminação”. Tais procedimentos – elaboração, pré-teste, teste, avaliação com base empírica – em muito lembram um procedimento científico altamente controlado. Nada mais conveniente e convincente para que se possam construir imagens de credibilidade e, sobretudo, de eficiência – princípio que deve reger a administração pública. O discurso científico é incorporado nesse documento elaborado pelo MEC com vistas a convencer dirigentes de IFES a aderir ao Enem, reformulado em 2009, evidenciando que diferentes vozes sociais perpassam esse texto. A presença desse discurso científico leva-nos a ratificar nossa posição segundo a qual exames padronizados, em larga escala constituem gêneros que precisam e devem ser legitimados pela cientificidade, de forma muito mais visível que os exames restritos ao âmbito escolar. Lembremo-nos também que os exames em larga escala atuais, concebidos sob a tutela estatal, tem como precursores os exames cognitivos desenvolvidos no início do século XX, segundo observou Zanardini (2008), os quais, por seu turno, remeteriam às pesquisas científicas realizadas em fins do século XIX e início do século XX. De fato, tal pretensão à cientificidade visa, principalmente, demonstrar a eficiência da administração, a qual “impõe a necessidade de adoção, pelo 114 administrador, de critérios técnicos, ou profissionais, que assegurem o melhor resultado possível” (ROSA, 2004, p. 9). Observemos que o MEC constrói a imagem de um Inep „eficiente‟ e experiente, ao afirmar que essa autarquia federal “domina a tecnologia de desenvolvimento de testes pela metodologia da TRI” (BRASIL, 2009a) e que “Aliar a capacidade técnica do Inep, (...) à excelência acadêmico-científica das IFES, é de suma importância nesse momento”. Ademais, o Inep possuiria “absoluto know how para conduzir com sucesso esse processo” (op. cit., 2009a). Por meio dessa capacidade técnica seria possível realizar alguns dos objetivos não declarados, mas que regem exames em larga escala como o Enem, quais sejam, discriminar alunos com base em níveis de proficiência; e ordenar estudantes a partir desses níveis. O documento supracitado afirma esperar “que a reestruturação do Enem atenda plenamente à demanda das IFES por um instrumento de alto poder preditivo de desempenho futuro, capaz de diferenciar estudantes em diferentes níveis de proficiência”. O desenvolvimento cognitivo dos alunos, aferido por meio da mensuração de habilidades e competências, seria, então, o objeto a ser estudado, pré-testado, testado, classificado e qualificado, a fim de se fornecer um instrumento confiável, objetivo, de “alto poder preditivo de desempenho futuro” (BRASIL, 2009a). Sobre a credibilidade e a isonomia do processo, destacamos que tal princípio apóia-se no estabelecimento de uma cultura meritocrática, na qual os mais preparados triunfam. Zanardini (2008), ao analisar a ontologia dos exames em larga escala, a partir da discussão de seus precedentes, verifica que tal cultura meritocrática reporta-se ao princípio da liberdade individual na sociedade burguesa. Na Europa pós-revolução burguesa, sobretudo na França, já se falava em universalização das séries iniciais do ensino, com vistas a garantir a todos as 115 mesmas oportunidades em potencial – aqueles que „falhassem‟ o fariam por pura falta de capacidade, já que a todos teriam sido dadas as mesmas oportunidades para triunfar socialmente. Segundo Zanardini (op. cit., p. 64), a burguesia, com o objetivo de manter a sociedade desigual procura “encontrar argumentos „válidos‟ que justificassem tal ordem social. Nesse momento de afirmação hegemônica, “os testes de aptidão e de capacidade se mostram como ferramentas imprescindíveis ao projeto hegemônico burguês”. Adiante, faz o autor uma inferência que nos parece bastante elucidativa: Inferimos que a ontologia dos testes, em que a diferenciação escolar por eles proporcionada e pelos mecanismos de avaliação, se constitui numa necessidade do capitalismo. Logo, podemos afirmar que há nos testes, sistemas de avaliação, de orientação vocacional e educacional e todo o caudal de certificações uma intencionalidade para esses mecanismos de seleção e de controle social com vistas à manutenção da sociedade capitalista (p. 67). Para garantir tais propósitos, os exames em larga escala devem manter-se isentos de vícios, devem parecer „justos‟, cumprindo, ademais, os princípios da moralidade e da legalidade que devem reger a administração pública. Só assim se justifica que a todos são dadas as mesmas oportunidades – todos são avaliados por um único instrumento que não diferencia aleatoriamente aqueles que se submetem a processos avaliativos. Considerando o Enem, que não apenas visa aferir a qualidade do ensino, mas também constituir-se como instrumento seletivo para ingresso no ensino superior brasileiro, a credibilidade, a isonomia do processo sofre um imperativo ainda maior, de forma a se estabelecer a seguinte verdade: todos concorreram justamente. Não se pode dizer que uns tenham sido privilegiados em detrimento de outros. As mesmas oportunidades de ingresso ao ensino superior foram dadas aos concorrentes, já que todos respondem às mesmas questões, no 116 mesmo tempo delimitado, em um espaço controlado, em uma vigilância constante. Ainda sobre a Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (BRASIL, 2009a), observemos os dois parágrafos iniciais do documento: Os exames de seleção para ingresso no ensino superior no Brasil (os vestibulares) são um instrumento de estabelecimento de mérito, para definição daqueles que terão direito a um recurso não disponível para todos (uma vaga específica em determinado curso superior). O reconhecimento, por parte da sociedade, de que os vestibulares são necessários, honestos, justos, imparciais e que diferenciam estudantes que apresentam conhecimentos, saberes, competências e habilidades consideradas importantes é a fonte de sua legitimidade. Parte-se aqui, portanto, do reconhecimento da necessidade, importância e legitimidade do vestibular. O que se quer discutir são potenciais ganhos de um processo unificado de seleção, e a possibilidade concreta de que essa nova prova única acene para a reestruturação de currículos no ensino médio. O documento supramencionado visa convencer dirigentes de IFES a aderir à proposta do Enem como vestibular unificado. Para tanto, nas primeiras linhas, apresentam-se os exames seletivos como instrumentos “necessários, honestos, justos, imparciais”. As vagas nos cursos superiores, em especial nas universidades federais, não estariam a todos disponíveis, logo, tais instrumentos justos e idôneos garantiriam a seleção dos melhores, dos mais bem preparados. O documento não questiona a necessidade de exames vestibulares. Pelo contrário: afirma sua imprescindibilidade. A “necessidade, importância e legitimidade do vestibular” são apresentadas como pressuposto. Não se questionam pressupostos, como bem se sabe: parte-se deles para que outras questões sejam apresentadas. O que está em foco, conforme se enuncia, “são os potenciais ganhos de um processo unificado de seleção”, até então inédito no Brasil. Não obstante, a afirmação da legitimidade, da necessidade do vestibular como primeiro assunto em foco não deixa de ser curioso. 117 Por meio desse pressuposto, institui-se um discurso conservador, pautado no mérito, na crença de que todos têm, em potencial, as mesmas oportunidades ao ensino superior – as vagas do vestibular não são destinadas a „A‟ ou a „B‟, são destinadas àqueles que, por seu esforço, conseguiram conquistá-las, conseguiram por meio de um instrumento absolutamente imparcial. A honestidade, a imparcialidade do Enem certamente seria abalada em 2009, ano de implantação da proposta de vestibular unificado, quando se descobriu o furto da prova antes de sua aplicação17. Tal fato levou o Ministro da Educação a proferir o seguinte pronunciamento em rede nacional (pronunciamento também publicado no site do MEC): Boa noite! Nas primeiras horas da manhã de hoje fomos informados por um jornal de grande circulação que uma prova impressa do ENEM havia sido furtada e oferecida para publicação naquele jornal. Da descrição da jornalista que teve acesso ao material, pudemos identificar fortes indícios de que o material era autêntico. Com base nisso, em nome da credibilidade e segurança que o ENEM possui, decidimos inutilizar os itens da prova e adiar a sua realização, até que uma nova versão possa ser impressa com condições reforçadas de segurança. Felizmente, a descoberta do furto se deu antes da utilização da prova, o que nos permitiu adiá-la, sem os transtornos que a sua anulação, após a realização do exame acarretaria. Os estudantes inscritos no ENEM 2009 serão comunicados oportunamente pelos meios habituais da nova data e do local das provas. Enquanto isso, convido os estudantes a aproveitar o tempo e aprimorar seus estudos. O Ministério da Educação e o INEP colocaram em seus portais eletrônicos a prova descartada para uso em simulados. Estamos trabalhando para minimizar os efeitos do atraso. O Ministério da Educação já tomou providências no sentido de apurar eventuais responsabilidades criminais relativas ao vazamento, requerendo a abertura de inquérito pela Polícia Federal para punição dos responsáveis. Muito obrigado! (BRASIL, 2009c, grifos nossos). 17 Em 2009, um caderno de perguntas do Enem foi furtado dentro da gráfica Plural, responsável pela impressão das provas, posteriormente substituída, em 2010, pela gráfica RR Donelley. As provas foram adiadas e o fato ganhou grande repercussão na mídia. 118 Embora a prova do Enem 2009 tenha sido furtada, o que revela a falibilidade do exame, o Ministro apresenta a credibilidade e a segurança do Enem como algo posto e inquestionável. Ademais, aproveita o fato para, tentando contornar a situação, pôr à disposição, no site do Inep, para estudos, o exame roubado. Assim, convida “os estudantes a aproveitar o tempo e aprimorar seus estudos”. O descarte do exame furtado evidencia a importância da lisura do processo avaliativo como requisito para a eficiência do exame. Refletindo sobre os antecedentes dos atuais exames que visam aferir a qualidade da educação básica, lembrando suas funções relacionadas a manter o status quo da sociedade burguesa, por meio da justificativa do „fracasso‟ daqueles que não se esforçariam o suficiente, pode-se entender a importância assumida por esse requisito. Não se pode questionar a credibilidade de um instrumento imparcial, „cego e surdo‟ às diferenças. Não se pode questionar a credibilidade de um instrumento que deve ser visto como eficiente mecanismo técnico-pedagógico, exercendo seus poderes no efeito retroativo suscitado em escolas e sistemas. Para além de induzir a elaboração e utilização de um novo currículo, um exame que tende a substituir o vestibular reforça a cultura avaliativa baseada no mérito. Justifica o fracasso, aponta erros. Chega-se a uma situação em que se detecta que „o ensino vai mal‟ com base em indicadores de exames em larga escala. Questionam-se os professores. Questiona-se o sistema de ensino público (e mesmo o privado). Questionam-se alunos e pais, pouco interessados na educação de seus filhos. Pouco se questiona o próprio exame. É evidente que, em situações como as ocorridas em 2009 (furto de uma prova do Enem antes de sua aplicação) e em 2010 (problemas e erros gráficos no gabarito 119 de algumas provas)18, o exame passa a ser criticado socialmente. Essas críticas evidenciam os requisitos para a eficiência aos quais está submetido esse gênero – objetividade, credibilidade, isonomia e lisura do processo avaliativo. Todavia, destacamos que, quando determinadas escolas ou regiões obtêm baixo desempenho em exames em larga escala, geralmente são responsabilizados o sistema de ensino (aponta-se a „falha‟ da escola); os professores, tidos como „despreparados‟; ou mesmo os alunos, pais e comunidade. Não se questiona o exame em si. Este, dada a sua natureza, deve ser visto como instrumento „neutro‟, „objetivo‟, „eficiente‟ cumprindo seu papel. Assim se constitui esse gênero como algo que não pode (ou não deve, a priori) ser questionado. Parte-se do princípio de sua lisura, de sua eficiência, de sua validade técnico-pedagógica. Pesquisas acadêmicas analisam concepções teóricas subjacentes aos itens, discutem a recepção, o efeito retroativo desses exames nas escolas. Pouco se pensa sobre a ontologia do exame em si. Como uma verdade inquestionável, induzem os exames em larga escala a promover e fortalecer/consolidar essa cultura avaliativa. A continuidade e a estabilidade do processo devem também reger esse gênero, afinal, como conceder credibilidade a algo inconstante? A título de análise e exemplificação, vejamos trechos de outro documento também disponível no site do 18 No ano de 2010 foram amplamente divulgados pela imprensa problemas envolvendo o processo de confecção do Enem. Um dos erros foi na folha de resposta, que trazia cabeçalhos invertidos. No caderno de perguntas, as questões de 1 a 45 eram de ciências humanas e, de 46 a 90, de ciências da natureza. Na folha de respostas, o cabeçalho de ciências da natureza aparecia primeiro (na numeração de 1 a 45). O de ciências humanas vinha depois (na numeração de 46 a 90). Na ocasião, o Ministério da educação informou que o aluno que se sentisse prejudicado poderia enviar um requerimento, para que os casos fossem analisados. 120 Ministério da Educação, e que, convenientemente intitula-se “Enem: Um exame diferente”19 (BRASIL, 2009b): A trajetória de uma década do Exame já merece um destaque na história da educação brasileira, tão marcada por instabilidades administrativas e descontinuidades das políticas públicas. É um caso de sucesso que deve suscitar reflexões e debates. Uma explicação plausível para o êxito dessa iniciativa pode ser encontrada na diferenciação, em voga no discurso atual, entre „política de Estado‟ e „política de governo‟. À primeira categoria pertenceriam iniciativas que, em razão do amplo consenso quanto à sua relevância e interesse público, teriam continuidade assegurada independentemente de alternâncias de governo. Já a segunda categoria refere-se a programas que, identificados com a plataforma político-ideológica de determinado partido e/ou administração, estariam fadados à descontinuidade em face de mudanças de governo. Nesta perspectiva, o Enem pode ser visto como um bom exemplo de política de Estado. Afinal, já atravessou duas administrações sem sofrer qualquer solução de continuidade (...). (grifos nossos). O trecho acima visa apresentar o Enem à sociedade. Nele, o MEC regozija a continuidade, a estabilidade do Enem, capaz de atravessar “duas administrações sem sofrer qualquer solução de continuidade”. Para explicar o sucesso dessa iniciativa do governo federal, menciona-se um “discurso em voga”, no qual se distinguem as políticas de Estado das políticas de governo. Lembremo-nos que, no início deste capítulo, afirmamos, com base em Peroni (2003), ter a reforma do Estado brasileiro se baseado na teoria da Public Choice. Segundo Peroni (2003, p. 31), A Public Choice aponta a diferença entre governo e Estado: o governo é transitório e, por isso, irresponsável ao provocar inflação 19 Cf. ANEXO B – Enem: Um exame diferente 121 e déficit público a fim de atender à demanda dos eleitores e manter o estadista no cenário político; já o Estado permanece com as regras gerais, que dão garantias à liberdade e à propriedade. O momento constitucional equivale ao Estado, enquanto o pósconstitucional, ao governo. O discurso da Public choice atravessa o documento emitido pelo MEC. Com fundamento nesse discurso, aquele Ministério justifica o sucesso do Enem: este exame seria uma “política de Estado” e não meramente uma “política de governo”. Nesse sentido, consegue o Enem atravessar duas administrações, sobressaindo-se, pairando além da “descontinuidade das políticas públicas”. Assim, o Enem é apresentado como “um caso de sucesso que deve suscitar reflexões e debates”. De fato, a continuidade, a estabilidade e a permanência emergem não apenas como resultado de uma política de Estado exitosa, mas como um consenso estabelecido em torno de exames em larga escala como o Enem. Seu sucesso depende da ampla adesão da sociedade. Como conseguir ampla adesão se o exame se mostrar descontínuo? Tal questão se torna mais crítica com a proposta do vestibular unificado. Como fazer universidades, constitucionalmente autônomas, aderir a um exame se ele não se mostra contínuo, estável? Para garantir tal estabilidade, difunde-se a ideia do interesse público – não se mantém algo que não for do interesse da nação. Difunde-se, sobretudo, pela coerção/consenso, a crença em sua relevância social, conforme discutiremos a seguir. 3.4 O Enem como gênero do discurso: consenso e coerção Se adotarmos a concepção gramsciana segundo a qual o Estado, conforme mencionamos no capítulo precedente, atua pela coerção e pelo consenso, é possível perceber que o Enem, enquanto gênero do discurso, consiste em um 122 instrumento de coerção revestido de estratégias de consenso. Trata-se de um mecanismo centralizado nacionalmente com o objetivo principal, dentre outros, de unificar o currículo, entendido em um sentido amplo, do ensino médio e os processos seletivos para o ingresso ao ensino superior no país. Segundo Freitas (2007), a regulação educacional emergente no Brasil revelou esses três papéis assumidos pelo Estado: • A) difusor: generaliza-se um discurso sobre a educação necessária. • B) Indutor e mobilizador: tanto de agentes como de processos pedagógicos (parcerias, mobilização de entes federados, acordos, negociações). • C) Criador de „ambiência‟ propícia à disseminação de práticas educativas por dentro de diversas práticas sociais – criação de um ambiente propício à flexibilização e de mecanismos de incentivo às iniciativas privadas. Freitas (op. cit.) ressalta também que “A força do Estado central resultou menos do seu poder de coerção do que da sua capacidade indutiva, com a qual mobilizou forças sociais e construiu a hegemonia do seu projeto de governo da educação básica na federação” (op. cit., p. 149). De fato, ao analisar documentos oficiais que versam sobre o Enem, percebemos sobretudo a função indutiva do Estado. A indução, não obstante, consiste em uma forma de coerção revestida de consenso, por meio da qual dirigentes de Instituições de Ensino Superior (IES), alunos e sistemas de ensino são levados a aderir ao Enem. Nesse sentido, a Proposta à associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (BRASIL, 2009a), citada anteriormente, é um exemplar desse papel indutivo, necessário para a legitimação desse gênero em um contexto de reformas e 123 redefinição do papel estatal. A título de exemplificação, observemos o seguinte trecho do mesmo documento: A alternativa à descentralização dos processos seria, então, a unificação da seleção às vagas das IFES por meio de uma única prova. A racionalização da disputa por essas vagas, de forma a democratizar a participação nos processos de seleção para vagas em diferentes regiões do país, é uma responsabilidade social tanto do Ministério da educação quanto das instituições de ensino superior, em especial as IFES. Da mesma forma, a influência dos vestibulares tradicionais nos conteúdos ministrados no ensino médio também deve ser objeto de reflexão. (grifos nossos). O discurso materializado em documentos e pronunciamentos, sejam orais ou escritos, revela o papel indutor do Estado. Se se parte do pressuposto de que os vestibulares são necessários, eficientes, imparciais, honestos e justos, embora exista a exclusão de grande número de candidatos, adota-se, ao mesmo tempo, um discurso em prol da democratização de oportunidades. A proposta de vestibular unificado, por meio do Enem, aparece como essa alternativa necessária à democratização – estudantes de diferentes regiões deste país continental concorreriam às vagas em diferentes regiões. A democratização ao acesso é apresentada como „compromisso social‟, uma responsabilidade do Ministério da Educação, mas não dele somente, como também das Instituições de ensino superior e, em especial, uma responsabilidade das IFES (“em especial as IFES”). Por meio da estrutura comparativa “tanto... quanto”, o MEC (re)distribui responsabilidades. Ao mesmo tempo, propõe um destaque às Instituições Federais de Ensino Superior, induzindo-as a aderir ao Enem. Para conseguir a adesão de alunos, professores e setores sociais, o Estado não só induz, mas também apresenta a adesão em si como algo certo, algo 124 inquestionável. Observemos trechos do documento intitulado “Enem: um exame diferente” (BRASIL, 2009b): Histórico Na sua 1ª edição, em 1998, o Enem contou com um número modesto de 157,2 mil inscritos e de 115,6 participantes. Na 4ª edição, em 2001, já alcançava a marca expressiva de 1,6 milhão de inscritos e de 1,2 milhão de participantes. (...) A popularização definitiva do Enem veio em 2004, quando o Ministério da Educação instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni20) e vinculou a concessão de bolsas em IES privadas à nota obtida no Exame. No ano seguinte, o Enem alcançava a marca histórica de três milhões de inscritos e 2,2 milhões de participantes. Em 2006, o Enem estabeleceu novo recorde, com 3,7 milhões de inscritos e 2,8 milhões de participantes (grifos nossos). Notória é a gradação estabelecida por meio das expressões “um número modesto”, “marca expressiva”, “marca histórica e “novo recorde”. Por meio dessa gradação, atribui-se importância ao número de estudantes que aderiram ao Enem, apresentando tal fato como resultado de uma política que logra êxitos. Mostrar a crescente adesão de alunos e instituições de ensino superior a um exame evidencia a eficiência administrativa – estabelece-se um discurso que atribui, indiretamente, eficiência à administração pública. 20 “O Prouni - Programa Universidade para Todos tem como finalidade a concessão de bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior. Criado pelo Governo Federal em 2004 e institucionalizado pela Lei nº 11.096, em 13 de janeiro de 2005, oferece, em contrapartida, isenção de alguns tributos àquelas instituições de ensino que aderem ao Programa.” Informação disponível em: <http://prouniportal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=124&Itemid=140> Acesso: Ago. 2011. 125 Outro importante papel assumido pelo Estado é, certamente, o de difusor, por meio do qual se difunde um discurso sobre a „educação necessária‟ – discurso que tenderá a ser aceito como verdadeiro e orientará a elaboração de currículos e materiais didáticos, conforme discutiremos adiante. 3.4.1 A difusão de ideias sobre a „educação necessária‟: estratégia para o consenso Se, por um lado, os exames em larga escala como o Enem devem ser apresentados como instrumentos eficientes no que concerne ao processo avaliativo em si (execução, divulgação de resultados, idoneidade do processo etc), por outro lado, devem, ademais, representar um importante e eficiente instrumento didáticopedagógico, capaz de não apenas aferir a qualidade do ensino, mas também de reestruturar currículos, disseminar novos objetos a serem ensinados, de intervir retroativamente na educação básica. Não basta apenas propor um exame que avalie habilidades e competências. É preciso disseminar a ideia de que é importante avaliar tais habilidades e competências. Não é suficiente afirmar que tais objetos e tais conteúdos ou competências serão avaliados. Deve-se fazer crer na importância de avaliá-los, deve-se difundir a ideia de que é importante que os estudantes detenham certos conhecimentos vistos como imprescindíveis para o mundo globalizado. Nesse sentido, observemos o que afirma a fundamentação teóricometodológica do Enem (BRASIL, 2005, p. 7): O modelo de avaliação do Enem foi desenvolvido com ênfase na aferição das estruturas mentais com as quais construímos continuamente o conhecimento e não apenas na memória, que, importantíssima na constituição dessas estruturas, sozinha não consegue fazer-nos capazes de compreender o mundo em que vivemos. Há uma dinâmica social que nos desafia, apresentando 126 novos problemas, questiona a adequação de nossas antigas soluções e exige um posicionamento rápido e adequado ao cenário de transformações imposto pelas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas com as quais nos deparamos nas últimas décadas. Este cenário permeia todas as esferas de nossa vida pessoal, mobilizando continuamente nossa reflexão acerca dos valores, atitudes e conhecimentos que pautam a vida em sociedade. Subjaz ao trecho destacado a ideia de um mundo em transformação, uma sociedade flexível, em mudança, na qual não se constrói mais o conhecimento apenas com base na memória. Novas formas de compreender o mundo são impostas, exigindo “posicionamento rápido” aos desafios apresentados. O documento difunde a crença de que não mais adianta, portanto, ensinar os alunos com base na memorização. É preciso desenvolver habilidades e competências; é preciso aferir “estruturas mentais com as quais construímos continuamente o conhecimento”. Tal concepção de aprendizagem/avaliação não foi elaborada pelo Enem. Este exame reflete uma tendência desenvolvida ao longo dos anos 80 e 90 do século XX, baseada no discurso da sociedade do conhecimento, que exigiria um novo tipo de homem, apto a enfrentar as incertezas e instabilidades decorrentes da reestruturação produtiva. Freitas (2007) observa que, no SAEB (sistema de avaliação que antecede o Enem), “o desempenho dos alunos é medido em termos de aprendizagem de conteúdos e de aquisição de habilidades e competências” (p. 107), considerando que habilidades e competências são operações mentais. Tratase, segundo a autora (op. cit., p. 108), “de uma avaliação cognitiva”. Peroni (2003, p. 104) assinala que, de forma geral, os exames em larga escala desenvolvidos no Brasil tendem a seguir as orientações contidas nos PCN. Os parâmetros curriculares, por sua vez, sofreram forte influência, em sua elaboração, de organismos internacionais, como a CEPAL, que propôs, no 127 documento Educação e conhecimento: eixo de transformação produtiva com equidade (1992), um novo paradigma de conhecimento, baseado na ação (saber fazer), na utilização (saber usar) e na interação (saber comunicar). A ação e a utilização, sobretudo, parecem subjacentes ao Enem, mais especificamente na proposta de resolução de situações-problema. De forma geral, podemos perceber uma tendência delineada nas duas ou três últimas décadas, que tem enfatizado o conhecimento voltado para a ação, utilização e interação; a flexibilidade do conhecimento; a interdisciplinaridade, isto é, tem enfatizado a formação por competências. Trata-se da construção de uma hegemonia não apenas sobre a ideia de que „avaliar é preciso‟, mas também em torno do que se deve avaliar. O Enem tem seguido essa tendência, o que nos leva a afirmar que tal tendência torna-se, de fato, uma questão de estilo, nos termos bakhtinianos. Ora, se se pode falar, conforme o teórico russo, em estilo do gênero e estilo do autor, diríamos que estamos diante de um estilo do gênero. Essa tendência, aqui compreendida como uma questão de estilo, advém de estudos científicos (construtivismo, psicologia cognitiva, dentre outros). O Enem assume um olhar responsivo às propostas de reformas dos currículos e do ensino, de forma geral, para ser visto como eficiente instrumento técnico-pedagógico. Essa eficiência é estruturada em três principais sentidos: a distinção, isto é, o exame é apresentado como „diferente‟, „inovador‟; a relevância dos pressupostos teóricometodológicos; a capacidade de reestruturar e intervir no ensino. Analisemos cada um desses aspectos. 3.4.1.1 Distinção do exame 128 Ser um eficiente instrumento pedagógico, capaz de reestruturar currículos, intervindo no ensino, pressupõe a difusão de uma crença pautada na distinção desse exame, isto é, investe-se no discurso que separa, antagoniza o „velho‟, „tradicional‟, „retrógrado‟ e „repetitivo‟, baseado em memorização e acúmulo de informação versus o „novo‟, „diferente‟ e „flexível‟. Assim, se a escola busca instrumentos capazes de melhorar o ensino, capazes de propor uma avaliação menos „punitiva‟, e se a avaliação é vista como excludente e autoritária, procura-se, sobretudo, uma „nova avaliação‟ que se apresente como „mais democrática‟. Segundo Freitas (2007, p. 113), a introdução de descritores de natureza cognitiva, em exames em larga escala, leva a crer que se está substituindo a cobrança de produtos, decorrentes de memorizações excessivas, por cobranças de conteúdos na perspectiva de competências e habilidades. Institui-se, dessa forma, o discurso do „novo‟, da avaliação democrática, que, aparentemente, não exclui tanto e que „prepara para a vida‟. O Enem, por conseguinte, acaba sendo, frequentemente, apresentado pelo governo federal como um „exame diferente‟. Observemos de que forma isso acontece no documento Enem: Um exame diferente (BRASIL, 2009b): Diferentemente dos modelos e processos avaliativos tradicionais, a prova do Enem é interdisciplinar e contextualizada. Enquanto os vestibulares promovem uma excessiva valorização da memória e dos conteúdos em si, o Enem coloca o estudante diante de situações-problema e pede que mais do que saber conceitos, ele saiba aplicá-los. O Enem não mede a capacidade do estudante de assimilar e acumular informações, e sim o incentiva a aprender a pensar, a refletir e a “saber como fazer”. Valoriza, portanto, a autonomia do jovem na hora de fazer escolhas e tomar decisões. (destaques, em negrito, nossos). 129 Existe uma oposição no trecho acima destacado entre “processos avaliativos tradicionais”, que promoveriam “excessiva valorização da memória e dos conteúdos em si”, medindo, portanto, “a capacidade do estudante de assimilar e acumular informações”, e o Enem, interdisciplinar, contextualizado, com ênfase não na memorização, mas na aplicação do conhecimento, incentivando o estudante a aprender a pensar, a refletir, a “saber como fazer”. Essa oposição aparece de forma clara e recorrente na fundamentação Teórico-Metodológica do Enem (BRASIL, 2005): Até pouco tempo, a grande questão escolar era a aprendizagem – exclusiva ou preferencial – de conceitos. Estávamos dominados pela visão de que conhecer é acumular conceitos; ser inteligente implicava articular logicamente grandes ideias, estar informado sobre grandes conhecimentos, enfim, adquirir como discurso questões presentes principalmente em textos eruditos e importantes. Nesses termos, dar aula podia ser para muitos professores um exercício intelectual muito interessante. O problema é que muitos alunos não conseguem aprender nesse contexto, nem se sentem estimulados a pensar, pois sua participação nesse tipo de aula não é tão ativa quanto poderia ser. Hoje, essa forma de competência continua sendo valorizada, principalmente, no meio universitário. Mas, com todas as transformações tecnológicas, sociais e culturais, uma questão prática, relacional, começa impor-se com grande evidência. Temos muitos problemas a resolver, muitas decisões a tomar, muitos procedimentos a aprender. Isso não significa, obviamente, que dominar conceitos deixou de ser importante. Esse tipo de aula, insisto, continua tendo um lugar, mas cada vez mais torna-se necessário também o domínio de um conteúdo chamado de “procedimental”, ou seja, da ordem do “saber como fazer”. Vivemos em uma sociedade cada vez mais tecnológica, em que o problema nem sempre está na falta de informações, pois o computador tem, cada vez mais, o poder de processá-las, guardá-las ou atualizá-las. A questão está em encontrar, interpretar essas informações, na busca da solução de nossos problemas ou daquilo que temos vontade de saber. (INEP, 2005, p. 17, destaques, em negrito, nossos). No trecho citado, a argumentação sobre a necessidade de uma reforma no ensino, que deveria acompanhar o fluxo de transformações da sociedade, constrói- 130 se com base em uma oposição entre o tempo passado – quando a aprendizagem de conceitos era suficiente – e os dias atuais, permeados por “transformações tecnológicas, sociais e culturais”. Assim, embora exista uma série de ressalvas através das quais se afirma que a forma de ensinar de outrora ainda é valida (“Hoje, essa forma de competência continua sendo valorizada, principalmente, no meio universitário”; “Esse tipo de aula, insisto, continua tendo um lugar”), prevalece a afirmativa de que o mundo em transformação requer novas formas de aprendizagem, que devem ir muito além da simples acumulação de conceitos. Conforme o trecho acima destacado, muitos alunos não conseguiriam aprender nesse contexto e nem se sentiriam estimulados a pensar. Adiante, seguindo a mesma linha argumentativa, fundamentada em uma oposição temporal – outrora: aprendizagem baseada em conceitos e memorização; dias atuais: aprendizagem dinâmica, em transformação constante – há uma associação entre essa forma “retrógrada” de ensinar e a própria indisciplina em sala de aula: No tempo em que a escola – mesmo as públicas – não era para todos, manter a disciplina, como problema de gestão de sala de aula, talvez não tivesse a dimensão que tem hoje. Rigor, expulsão (ou sua ameaça), castigos físicos, cumplicidade da família com as estratégias usadas pelo professor garantiam, talvez de forma mais imediata e eficaz, que os alunos se mantivessem quietos enquanto o professor dava as lições. Hoje, que a escola fundamental é obrigatória para todas as crianças, manter a classe interessada nas propostas do professor concorre com e, muitas vezes, perde para tudo o que em contraposição os alunos insistem em fazer. Não por acaso, sabe-se que frequentemente os professores gastam mais da metade do tempo da aula tentando manter um nível de disciplina favorável à aprendizagem. Ou seja, ensinar conceitos ou cálculos concorre com conversas paralelas, risadas e brincadeiras. O professor, além do compromisso de ensinar fatos e conceitos, deve saber manter a disciplina na sala de aula, envolver os alunos e conseguir que sejam cooperativos e façam as tarefas. (BRASIL, op. cit., p. 17, grifos nossos). 131 O documento acima citado associa indiretamente a forma tradicional como o ensino está organizado – baseado na transmissão de conceitos – a muitos dos problemas de indisciplina na escola, já que, se a sociedade era diferente, se a escola não era para todos, essa sociedade estruturada de outra maneira requeria formas tradicionais de ensino. Hoje, com todas as transformações em curso, seria necessário repensar o ensino, por uma questão de manutenção do próprio sistema escolar, assolado por recorrentes problemas indisciplinares. Concordamos que uma sociedade em transformação requer novas abordagens relativas ao ensino-aprendizagem. Todavia, acreditamos que não se devem traçar fronteiras tão delimitadas entre o „tradicional‟, sempre constituído por uma visão negativa, e o „novo‟, positivo e desejável. Afinal, como bem destacou Signorini (2007, p. 8), “onde se costumam traçar fronteiras nítidas e firmes entre a inovação e o conservadorismo, ou entre o inovador e o tradicional, tem-se de fato bordas fluidas e dinâmicas, ou seja, zonas de contínuo embaralhamento do que se apresenta como separado e excludente”. Parece-nos que associar sempre o „novo‟ ao que é „bom‟ e „desejável‟, ao que deve ser urgentemente aprendido, assimilado por professores e alunos contribui para a exclusão e estigmatização de docentes, discentes e sistemas de ensino. Exames em larga escola, como o Enem, parecem ser constituídos com base nessa oposição entre „velhas práticas educativas e retrógradas‟ e as „novas formas de ensino-aprendizagem‟, que devem urgentemente ser assimiladas. Aqueles que não as assimilam com a máxima brevidade são classificados como „atrasados‟ e mesmo „incompetentes‟. Pensando em uma escala mundial, essa parece ter sido a tônica que fundamentou a emergência e consolidação de exames em larga escala, os quais, fundamentando o estabelecimento de rankings de classificação, 132 estigmatizam aqueles que estariam nas últimas classificações, isto é, os „atrasados‟, os que não se adéquam às novas tendências globais, amplamente divulgadas ao longo da década de 90 do século XX. Em escala nacional, chama-nos a atenção a constante referência, feita sobretudo pela mídia, aos resultados das notas obtidas por estudantes no Enem, sempre com destaque para as regiões mais pobres do Brasil, como o Nordeste, classificada como a „mais atrasada‟, a região onde os alunos obtêm os piores desempenhos. Mais que promover a melhoria da qualidade do ensino, mais que reformular retroativamente o ensino médio, como tanto enfatizam os documentos oficiais, exames em larga escala, às vezes, tão somente apontam falhas, classificando e qualificando negativamente estados, regiões, sistemas de ensino e estudantes. De fato, conforme argumenta Zanardini (2008), esta seria a ontologia dos exames em larga escala: avaliar para apontar erros e avaliar para aperfeiçoar não o sistema educacional, mas a própria avaliação. Chama-nos, ademais, a atenção o fato de, a partir de 2009, ter sido o Enem proposto como alternativa aos vestibulares21, de forma unificada. Esse exame foi, a partir de então, apresentado como instrumento avaliativo „distinto‟, „diferente‟ e mais democrático. Ora, se pensarmos que, para ingressar no ensino superior, os alunos continuam tendo que responder a um exame, em um tempo pré-determinado, tendo que preencher um gabarito, produzir uma redação, obedecendo a certas regras de conduta em um verdadeiro ritual, não assistimos, de fato, a uma mudança. Todavia, é interessante observar como, de forma geral, tanto o governo federal como a 21 Destacamos, porém, que desde 1998, ano de instituição do exame, o Enem tem pretensões seletivas, uma vez que, segundo a Portaria MEC N° 438, de 28 de maio de 1998 (BRASIL, 1998b), um dos objetivos do Enem seria “fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à educação superior”. 133 população e os meios midiáticos não se referem ao Enem como vestibular, mas como „Enem‟. Em outras palavras, não noticiam os jornais, não diz o Ministro da Educação, não dizem os jovens que farão um vestibular, afirmam todos que será realizado o „Enem‟. É possível encontrar algum candidato que, interrogado se fez vestibular em 2010, responda, “Não. Fiz o Enem”. Este exame, portanto, parece estar sendo socialmente representado como „diferenciado‟ – daí decorre nosso interesse em estudá-lo como um gênero em um contexto de reformas. Para que o Enem seja apresentado como eficiente instrumento pedagógico, investe-se, ademais, em um discurso que reflete o poder disciplinar, observemos outro trecho do mesmo documento supracitado (“Enem: Um exame diferente”): Além disso, desde a sua primeira aplicação tem havido um esforço permanente para aprimorar a estrutura conceitual e a metodologia de avaliação utilizada. Graças a esse tratamento como política de estado, a legitimidade e credibilidade do Exame também foram fortalecidas ao longo do tempo. Hoje, o Enem é um patrimônio da sociedade brasileira e tem o seu valor reconhecido pela comunidade educacional. Como órgão responsável pelo desenvolvimento e coordenação do Exame, o Inep se empenhou desde o início em conquistar o apoio dos sistemas de ensino, das instituições de ensino superior e da comunidade de especialistas e educadores. Os pressupostos teórico-metodológicos do Enem, fundamentados na LDB e nas diretrizes e parâmetros curriculares nacionais, foram explicitados e divulgados junto à comunidade educacional. A proposta recebeu contribuições de especialistas em avaliação e currículo, pedagogos e profissionais do ensino com larga experiência em sala de aula. (BRASIL, 2009b, grifos nossos). Segundo a citação, o Enem estaria sendo continuamente aprimorado, tanto no que concerne à estrutura conceitual quanto à metodologia utilizada. Esse aprimoramento ocorre com o apoio de poderes disciplinares, representados por “especialistas em avaliação e currículo, pedagogos e profissionais do ensino com larga experiência em sala de aula”. Nesse sentido, para que o Enem seja legitimado 134 como eficiente instrumento pedagógico, há a necessidade de fazer referência à participação daqueles que, de acordo com o Inep, são os guardiões do conhecimento sobre ensino-aprendizagem: especialistas, pedagogos, profissionais do ensino “com larga experiência em sala de aula”. Essa observação leva-nos a afirmar que exames como o Enem precisam ser legitimados por especialistas e pedagogos – esta é uma peculiaridade do gênero: os conteúdos tematizados, objeto de avaliação, precisam receber o aval de especialistas. Em outros termos, para se constituir como eficiente instrumento pedagógico, exames em larga escala precisam atestar a relevância dos conteúdos ou habilidades/competências e dos pressupostos teórico-metodológicos, conforme discutiremos a seguir. 3.4.1.2 Relevância dos conteúdos ou habilidades/competências e pressupostos teórico-metodológicos Segundo Sousa (2009), o SAEB e os PCN tendem a ser referência não somente para a elaboração de exames nacionais, como o Enem, mas também de exames estaduais e municipais, o que evidencia a construção de uma ideia hegemônica, tanto sobre a necessidade de avaliar para monitorar a qualidade quanto sobre o quê avaliar. A autora (op. cit.) observa grande similaridade nas propostas avaliativas no nível dos Estados, “os quais tendem a assumir na elaboração dos itens das provas os Parâmetros Curriculares Nacionais e a matriz de referência do SAEB” (p. 36). Ao que parece, nenhum exame em larga escala legitima-se sem que seus conteúdos ou habilidades/competências e pressupostos teórico-metodológicos 135 sejam concebidos como relevantes – daí decorre a referência, observada no tópico precedente, à atuação de pedagogos e especialistas, que precisam legitimar esses conteúdos e pressupostos. Ao mesmo tempo, tais conteúdos são, constantemente, associados à „inovação‟, estabelecendo-se uma distinção entre o „novo‟ e o „retrógrado‟, que precisaria ser urgentemente reformulado, conforme demonstramos acima. Assim, a interdisciplinaridade, a ênfase no „saber como fazer‟ por meio da resolução de situações-problema, a necessidade de desenvolver competências e habilidades e não apenas decorar e assimilar conceitos são apresentados como pressupostos teórico-metodológicos relevantes, que precisam ser aprendidos, adotados por escolas, para que essas se adéquem aos desafios impostos pela sociedade altamente informatizada. Para atestar a relevância desses conteúdos afirma-se, no documento Enem: um exame diferente (BRASIL, 2009b), que “O desenvolvimento do Enem, nos últimos dez anos, acompanhou as profundas mudanças legais, organizacionais e curriculares que atingiram todas as etapas e modalidades de educação, da préescola à educação superior”. Ou seja: o exame é, constantemente, apresentado como instrumento pedagógico eficiente e atual, que acompanha as mudanças da sociedade, e, portanto, precisa ser assimilado pela escola, pelos sistemas de ensino, pelos professores e pelos alunos. Observemos, a título de exemplificação, a nota emitida pelo Comitê de Governança, a propósito da matriz de referência do Enem 2009: 136 Ilustração 2 - Nota emitida pelo Comitê de Governança sobre a matriz de referência do Enem 2009 137 No segundo parágrafo do documento reproduzido, afirma-se consubstanciar a matriz de referência do Enem “evolução importante na forma de avaliação dos estudantes”. Ademais, afirma-se que essa matriz “se pauta por habilidades consideradas essenciais aos estudantes” que concluem o ensino médio. De forma reiterada, em documentos oficiais e em pronunciamentos de autoridades envolvidas com o Enem, tem-se a afirmativa da relevância, da importância dos pressupostos que embasam esse exame nacional. É possível que essa insistência na qualidade, na essencialidade desses pressupostos não seja percebida diretamente por aqueles que são cotidianamente interpelados por pronunciamentos e documentos dos mais diversos. Todavia, acreditamos que, aos poucos, constrói-se uma ideia hegemônica segundo a qual o Enem precisa ser assimilado, segundo a qual as escolas precisam adequar-se a uma nova realidade. Essa nova realidade pressupõe a melhoria do sistema educacional. Tal melhoria, por sua vez, é diretamente associada ao próprio aperfeiçoamento dos instrumentos que aferem os indicativos de qualidade de escolas e sistemas de ensino. No terceiro parágrafo do documento acima reproduzido integralmente, afirma-se que, “Estabelecida a Matriz de Referência, os objetos de conhecimento associados poderão ser aprimorados, nas edições seguintes do ENEM, de modo a consagrar o papel do Exame de orientar a melhoria do Ensino Médio em harmonia com os processos de seleção para o acesso à Educação Superior”. Essa citação ratifica a assertiva apresentada por Zanardini (2008), segundo a qual um dos objetivos de exames em larga escala, como o Enem, é o autoaperfeiçoamento, isto é: avalia-se para que se possam aperfeiçoar os próprios instrumentos avaliativos. Aperfeiçoando-se, garante-se (ou se espera garantir) a lisura do processo, a 138 racionalidade exigida para a segura qualificação e classificação de sujeitos e escolas. Assim, até o conhecimento, algo naturalmente subjetivo, difícil de ser mensurado, precisa ser objetivamente aferido, como se constituísse uma grandeza, como peso ou altura. Observemos, por exemplo, a seguinte informação, constante na seção “perguntas frequentes”, no site do Ministério da Educação, a respeito do Enem22: 7. Em linhas gerais, como funciona a TRI? A TRI possibilita a comparabilidade entre provas diferentes. Existem instrumentos para medir peso, altura, distância. Mas não há um instrumento que meça, de forma direta, o conhecimento. Então, para medir o conhecimento de uma pessoa, há que fazê-lo de forma indireta – e essa forma é a avaliação. Com a TRI, o que se pretende é criar uma unidade de medida para o conhecimento. Se você medir a altura de uma pessoa com uma trena ou com uma fita métrica, ela terá a mesma altura. Assim deve ser com o conhecimento: qualquer que seja a prova, uma vez que o participante carrega o mesmo conhecimento, ele deve obter a mesma nota. E a TRI busca fazer isso. É por isso que as questões são calibradas em pré-teste, para que a prova seja tecnicamente sólida. Tal como na balança: se ela mostra peso menor que o seu peso real, é porque está desajustada. O peso independe da balança da mesma forma que o conhecimento independe da prova. O trecho destacado permite-nos compreender que o Enem constitui um exemplar de um gênero cuja eficiência recai substancialmente na objetividade e relevância dos pressupostos teórico-metodológicos, racionalidade e precisão. Cumprir tais requisitos constitui uma exigência para a assimilação desses exames pelas escolas, ao mesmo tempo, constitui um indicador de êxito dessa política de avaliação. Afinal, não basta ter um eficiente instrumento de aferição do 22 Disponível em <http://www.enem.inep.gov.br/faq.php>. Acesso: Dez. 2010. 139 conhecimento, de aferição da qualidade de sistemas de ensino se não houver adesão de alunos e instituições a esse exame. Essa assimilação é um dos grandes objetivos que constitui exames como o Enem, fundamentado não na atuação direta da União na oferta do ensino médio, mas na indução de mudanças, difusão de crenças, no „controle à distância‟ e a posteriori, conforme discutiremos adiante. 3.4.1.3 Capacidade de reestruturar e intervir no ensino O objetivo de reformar ou reestruturar o ensino médio é explicitamente enunciado em diversos documentos oficiais que versam sobre o Enem. Vejamos23: (I) O Enem tem, ainda, papel fundamental na implementação da Reforma do Ensino Médio, ao apresentar, nos itens da prova, os conceitos de situação-problema, interdisciplinaridade e contextualização, que são, ainda, mal compreendidos e pouco habituais na comunidade escolar. A prova do Enem, ao entrar na escola, possibilita a discussão entre professores e alunos dessa nova concepção de ensino preconizada pela LDB, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais e pela Reforma do Ensino Médio, norteadores da cocepção do exame. (BRASIL, 2005, p. 8). (II) Ao completar dez anos, o Enem ocupa lugar de destaque na agenda educacional brasileira pela sua contribuição para reorganização e reforma do currículo do ensino médio, democratização do acesso ao ensino superior e, em última instância, melhoria da qualidade da educação básica. (BRASIL, 2009b). (III) Parte-se aqui, portanto, do reconhecimento da necessidade, importância e legitimidade do vestibular. O que se quer dizcutir são os potenciais ganhos de um processo unificado de seleção, e a possibilidade concreta dee que essa nova prova única acene para a reestruturação de currículos no ensino médio. (BRASIL, 2009a). 23 Todos os destaques, nessas quatro citações, são nossos. 140 (IV) O Comitê de Governança do novo ENEM, pelas representações do CONSED e do MEC reunidas em 14 de maio de 2009, aprovou os seguintes princípios: 1. Que o novo ENEM, no formato proposto pelo MEC/INEP, é importante instrumento de reestruturação do Ensino Médio; (...) (BRASIL, 2009d). Ao que parece, reestruturar ou reformar os currículos da educação escolar no país é um objetivo subjacente à própria natureza de exames em larga escala, desenvolvidos, sobretudo, ao longo dos anos 1990 – quer se trate de exames geridos na esfera federal quer nos estados nacionais, afinal, a toda proposta de avaliação enuncia-se o objetivo de monitorar a qualidade do ensino e, ao mesmo tempo, definir o que é a qualidade almejada. A ontologia desses exames, por conseguinte, vincular-se-ia a esse objetivo. Essa é uma das características que nos levam a defender que o Enem constitui um exemplar de um gênero em um contexto de reformas e redefinição do papel do Estado frente aos serviços públicos prestados à população. Uma nova situação sócio-histórica requer gêneros que traduzam os objetivos, as necessidades de uma esfera. Exames, padronizados, em larga escala parecem ter assumido a função de monitorar, definir o que é a qualidade do ensino, promover reformas na educação, nessa situação sócio-histórica peculiar que se impôs com a reforma do aparelho estatal. Esses exames assumiriam tal função de forma retroativa, pautando-se no pressuposto da atuação reguladora do Estado. Destacamos, porém, que a maioria dos exames parece ter um efeito retroativo fraco sobre o ensino, sobre a reestruturação de currículos. De fato, os usos dos indicadores de avaliações são esparsos nas comunidades escolares, conforme observam Ribeiro et al. (2005). Ao se debruçarem sobre os usos sociais desses indicadores, os autores (op. cit., p. 3) constataram pouco efeito nas escolas, no que se refere mais 141 especificamente à escola pública. Interrogando sobre as possíveis causas desse efeito esparso, as autoras concluem o seguinte: É provável que esses indicadores não interessem às comunidades escolares porque respondem a perguntas que não foram formuladas por essas mesmas comunidades. Pesquisadores e tecnocratas não observam e não interrogam a realidade escolar da mesma perspectiva que as pessoas que a vivem no cotidiano. Os exames de seleção ao ensino superior, por outro lado, parecem ter um efeito retorativo mais acentuado, considerando o ensino médio em específico. Para Araújo (2010, p. 111), os vestibulares são as grandes influências do ensino médio, tendo um grau acentuado de efeito retroativo nesse nível de ensino. A autora, para corroborar sua afirmativa, cita o parecer do Conselho Nacional de Educação sobre a Reforma do Ensino Médio (Parecer 15/98), segundo o qual “o exame de ingresso no ensino superior tem sido a referência da organização curricular do ensino médio”. Araújo destaca, ademais, que “os sucessivos documentos norteadores e parametrizadores do ensino médio não tiveram junto aos professores desse nível de ensino a repercussão que os PCN tiveram junto aos professores do ensino fundamental” (p. 111-112), uma vez que, no ensino médio, o que parece ser determinante são os processos seletivos de ingresso no ensino superior. Nesse sentido, a proposta de vestibular unificado, por meio da nota obtida no Enem, seria estratégica para a implementação e consolidação de uma reforma no ensino. É interessante observar que a Fundamentação teórica do Enem reconhece indiretamente essa pouca influência que documentos oficiais parametrizadores da educação tiveram sobre o ensino médio. Na Fundamentação (BRASIL, 2005, p. 8), afirma-se que “A prova do Enem, ao entrar na escola, possibilita a discussão entre professores e alunos dessa nova concepção de ensino preconizada pela LDB, pelos 142 Parâmetros Curriculares Nacionais e pela Reforma do Ensino Médio, norteadores da cocepção do exame”. Logo, a discussão em torno do ensino preconizado pela LDB, PCN e reforma do Ensino Médio seria mediada pelo Enem, mediada por um exame que pretende servir como instrumento seletivo para o ingresso no ensino superior. O Enem, por conseguinte, pode potencializar o efeito retroativo que parece fundamentar exames em larga escala, se considerarmos o objetivo destes de reestruturar, melhorar a qualidade do ensino, segundo enunciado em documentos oficiais. Essa indução é uma ação típica dos papeis assumidos pelo Estadoavaliador, conforme discutimos anteriormente, e parece pautar-se, sobretudo em se tratando do Enem, em uma retórica pautada no que seria „moderno‟ e „inovador‟ para o ensino, segundo discutimos anteriormente. Induz-se, pois, a uma reforma no ensino com base na associação de práticas escolares consolidadas ao que é „velho‟, „retrógrado‟ e „ultrapassado‟. Aprender conteúdo/conceitos seria, segundo essa lógica, algo que precisaria ser superado, frente aos desafios do mundo contemporâneo. O Enem, trazendo situações-problema, questões interdisciplinares, aferindo habilidades e competências, estaria, segundo o discurso oficial, mais concatenado aos novos desafios de um mundo em transformação. Lembramos que, para Freitas (2007), o Estado avaliador atua principalmente pela difusão e indução. Na promoção do Enem, o Estado induz a reformas no ensino utilizando-se de um instrumento (exame) e difunde (papel difusor) crenças sobre o que seria a „educação necessária‟, o que seria importante ensinar, aprender, avaliar e como avaliar. Temos, paulatinamente, a construção de ideias hegemônicas sobre educação, de signos da cultura hegemônica, os quais ocultam outras vozes e outros valores. Bakhtin (2009) assinala que a refração do signo ideológico é determinada 143 pelo “confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes” (p. 47, destaque do autor). Classes sociais distintas servem-se de uma mesma língua. “Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios” (p. 47, destaque do autor), tornando-se o signo a arena onde se desenvolve a luta de classes. Nesse sentido, o signo é vivo, dinâmico. Não obstante, aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser. A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente. (BAKHTIN, op. cit., p. 48). Empregando as ideias de Bakhtin, acreditamos que a classe dominante busca construir ideias hegemônicas sobre a educação e sobre o que deve ser objeto de ensino-aprendizagem no ensino-médio. A voz de muitos que vivem a escola no cotidiano tende, em contrapartida, a ser silenciada e qualificada, frequentemente, como „desatualizada‟. O signo ideológico, portanto, oculta possíveis concepções divergentes sobre o ensino, passando a veicular que o correto é investir na interdisciplinaridade e na resolução de situações-problema. Essa ideia sobre o que é correto, o que é desejável para o ensino fundamenta-se, ademais, em uma crença no poder preditivo de resultados aferidos em exames sobre desempenhos futuros. Chama-nos a atenção o fato de, já em fins do século XIX e início do século XX, exames de mensuração de habilidades cognitivas terem assumido essa função de predizer desempenhos futuros com vistas a diferenciar e hierarquizar indivíduos com base nessas supostas habilidades aferidas. Para Zanardini (2008, p. 65): 144 A preocupação expressa nos testes de inteligência é encontrar um instrumento de predição, ou seja, quanto mais os prognósticos contidos nos testes são confirmados mais comprovam a realidade substancial que „medem‟, pois somente aptidões desiguais permitem explicar a diferenciação e hierarquização dos indivíduos e das classes sociais. A diferenciação de sujeitos e de escolas, por meio da criação de rankings de classificação, tem sido cada vez mais comum, sobretudo com a proposta de utilização do Enem como exame seletivo para ingresso em IES. Acreditamos que a classificação e distinção de sujeitos estão subjacentes a todo exame, afinal, desde cedo, em nossa trajetória escolar, somos muitas vezes classificados a partir das notas obtidas em exames escolares. Todavia, exames em larga escala como o Enem, que assumiu a função de exame seletivo para acesso a diferentes IES, acirram essa classificação, estendendo-a para escolas e sistemas de ensino, justificando, muitas vezes, o fracasso ou o triunfo de instituições. A seguir, discutiremos melhor essa questão, ao nos debruçarmos sobre a função social dos exames em larga escala. 3.5 Função social Os gêneros do discurso são extremamente heterogêneos e apresentam uma heterogeneidade funcional que dificulta seu estudo. Segundo Bakhtin (2003, p. 262), “A heterogeneidade funcional, como se pode pensar, torna os traços gerais dos gêneros discursivos demasiadamente abstratos e vazios”. Ao que parece, a questão da função social dos gêneros do discurso parece ter sido reduzida a um conjunto estruturado e definido de funções. „Informar‟, „entreter‟, 145 „persuadir‟, „instruir‟, „vender‟, „alertar‟ são algumas dessas funções automaticamente associadas a algum gênero em estudos e pesquisas das mais diversas. Ao propormos o estudo do Enem enquanto representante de um gênero que se poderia denominar exame em larga escala, uma difícil e complexa questão se impôs: qual seria a função social desse gênero em um contexto de redefinição do papel do Estado, cujas origens remontam a exames escolares e a exames psicométricos de inteligência? Logo percebemos que associar algumas funções a exames em larga escala ou mesmo simplesmente afirmar que suas funções são aqueles objetivos explicitamente enunciados em documentos oficiais seria reduzir a complexidade que envolve esses instrumentos discursivos, constantemente referidos na mídia, que tende a destacar os resultados obtidos por escolas – notadamente escolas públicas – de forma a justificar o „fracasso‟ dessa rede de ensino. Para entender as funções assumidas por esse gênero, tomando o Enem como exemplar e objeto específico de estudo, reunimos uma série de pesquisas sobre avaliação, reforma do papel do Estado, atuação do Estado-avaliador. Procuramos observar recorrências nos estudos e tentamos comprovar essas recorrências por meio de uma análise crítica da realidade. Em um trabalho de observação, análise e síntese, pudemos elencar funções atreladas ao contexto sócio-histórico que vem sendo constituído a partir da década de 70 do século XX – contexto de ofensiva neoliberal, em que a educação é vista como um serviço e como condição estrutural não apenas para o desenvolvimento econômico, mas para justificar o „fracasso‟ de alguns países e as desigualdades entre nações. 146 Uma primeira função desempenhada por exames em larga escala, como o Enem, seria a função de induzir/controlar/monitorar a qualidade do ensino. Conforme destacamos anteriormente nesta dissertação, a definição de padrões mínimos de qualidade foi estabelecida na Constituição de 1988, sendo explicitada na LDB. Para Freitas (2007, p. 53), “o interesse pela avaliação em larga escala como expediente de governo da educação básica fortaleceu-se com a intensificação do questionamento da qualidade tanto da expansão como dos resultados do ensino, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980”. Adiante, acrescenta a autora: Equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino seriam garantidos mediante a função redistributiva e supletiva da União, incumbida de realizar assistência técnica e financeira aos entes da federação. Essas tarefas justificaram a utilização da avaliação em larga escala, pelo governo central, para regular a educação básica. (p. 69). Para desempenhar essa função, exames em larga escala estariam a serviço do diagnóstico e controle da eficiência de políticas. Nesse sentido, destaca Peroni (2003, p. 110) o fato de quase todos os acordos assinados entre o Brasil e o Banco Mundial terem “um componente de avaliação educacional, visando a verificar a efetividade das ações geradas nos projetos”. O que nos parece peculiar em exames padronizados em larga escala é que antes de induzir a melhorias no ensino, esse gênero parece ter a função precípua de se „autoaperfeiçoar‟, a partir de experimentações prévias, estudos e pesquisas educacionais, de forma a garantir a máxima objetividade e eficiência do instrumento de avaliação. Zanardini (2008) defende que exames em larga escala teriam como objetivo não apenas a melhoria do ensino, mas o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade com vistas ao controle social. Nas palavras do autor: 147 A avaliação educacional, realizada por meio de testes padronizados em larga escala, consubstanciada na lógica da racionalidade econômica, se mostra como importante mecanismo de controle social, por determinar os padrões mínimos de eficiência educacional „capazes‟ de incrementar a produtividade dos pobres, cultivando o seu empoderamento (p. 22). O autor associa a ampla utilização de exames padronizados em larga escala, disseminados principalmente ao longo dos anos 90 do século XX, à ideologia da globalização, que traz consigo a retórica do alívio da pobreza, do empoderamento (“empowerment”) das classes vulneráveis em países pobres ou em desenvolvimento. Nesse contexto, a educação é vista como condição estrutural para o desenvolvimento econômico. Definir padrões mínimos de qualidade (aferidos por exames em larga escala) seria uma das formas de propiciar o tão almejado desenvolvimento. Segundo Zanardini (2008, p. 30), “via ampliação do aparato avaliativo e no foco centrado nos resultados escolares, a educação realizaria melhor o papel que lhe é requerido na redução da pobreza e na galgada da escala do crescimento econômico”. Para Zanardini (2008), os resultados aferidos em exames em larga escala justificariam a existência de desigualdades, apontando a pobreza, o subdesenvolvimento não como condições estruturais de um sistema capitalista, baseado na exploração do trabalho, mas como um „desvio‟, uma „anomalia‟. Nesse sentido, o subdesenvolvimento é associado a fracassos na educação – „fracassos‟ atestados em exames em larga escala. Segundo o autor, A pobreza é apontada pelos organismos internacionais (...) não como o que realmente é, uma condição inextirpável do modo de produção da vida sob a lógica do capital, mas sim como uma anomalia, como um defeito na aplicação dos ditames dos organismos internacionais na trajetória dos países na escala do 148 desenvolvimento. Assim, ganha força, principalmente a partir dos anos de 1990, a relação entre pobreza e educação, ou melhor, da pobreza com a falta ou ineficácia da educação. Logo, a educação eficiente desponta como solução para aliviar a pobreza. Cabe à avaliação verificar, medir e expressar o grau de eficiência da educação (p. 37-38). Verificar, medir e expressar o grau de eficiência da educação, objetivando, de uma forma mais profunda, justificar a existência da pobreza seria outra função social de exames padronizados em larga escala, segundo defende Zanardini (2008). Se o sistema capitalista não pode eliminar a pobreza, deve mantê-la em níveis suportáveis. Exames em larga escala constituiriam, pois, „artifícios ideológicos‟ que obliterariam tal situação, conforme destaca o autor. Exames em larga escala são também constantemente associados à modernização da administração estatal, tendo como função induzir reformas na gestão escolar. Segundo Freitas (2007, p. 120), “A força normativa da avaliação em larga escala foi condicionada pelo desafio de reformar a gestão dos sistemas de ensino nos marcos de uma nova regulação estatal, sendo esta conformada por um federalismo regido por uma lógica pragmática”. A autora chega à conclusão de que “a avaliação e a informação eram vistas como instrumentos estratégicos de modernização institucional e administrativa, sendo a informação condição de qualificação da capacidade de regulação educacional” (p. 21). A avaliação educacional estaria a serviço tanto da modernização institucionaladministrativa, quanto do controle da efetivação de programas, projetos e ações do governo central. Assim, uma terceira função fundamental dos exames em larga escala seria fornecer informações para subsidiar políticas e decisões. Modernizar a administração e fornecer informações são, de fato, funções intimamente relacionadas, considerando que se apostou no potencial informativo dos exames para a orientação de políticas. Sousa (2009, p. 32) considera a 149 avaliação, materializada em exames padronizados em larga escala, uma ferramenta de gestão, constituída “em um contexto de reformas do Estado e de mudanças na sua forma de atuação no campo das políticas públicas”. Acreditamos que outra importante função social assumida pelos exames em larga escala, ainda pouco discutida, é a disseminação de crenças e valores. Ao longo desta dissertação, reiteramos que parece estar sendo construído um discurso hegemônico tanto em torno da ideia de que „avaliar é preciso‟ quanto do que é importante ensinar, aprender e avaliar. Sobre essa primeira ideia (necessidade e urgência de avaliar a educação), Freitas (2007, p. 165), ao citar a constituição do SAEB, afirma que houve, declaradamente, a “intencionalidade de desenvolver e consolidar uma cultura avaliativa nos sistemas e escolas, tendo como foco padrões de qualidade e equidade e controle social”. Para Sousa (2009, p. 36), a organização de sistemas estaduais de avaliação, ao lado da avaliação centrada na esfera federal, evidencia “uma adesão à ideia da necessidade da avaliação para qualificar a gestão da educação”. Em torno da ideia da necessidade de avaliar a educação para qualificar sua gestão disseminaram-se certos valores, como o princípio da competição (princípio do modelo de administração público gerencial), o qual, segundo assinala Freitas (2007, p. 177), “põe em destaque a comparação. Estimula-se a comparação de desempenho e rendimento – em lugar dos progressos (...) alcançados pelos alunos”. Nesse sentido, exames padronizados em larga escala tendem a enfatizar os resultados, focalizar os produtos aferidos. Zanardini (2008, p. 30) destaca a ênfase nos resultados como uma característica dos exames padronizados em larga escala que estaria a serviço de 150 um deliberado controle social. Nas palavras do autor, “via ampliação do aparato avaliativo e no foco centrado nos resultados escolares, a educação realizaria melhor o papel que lhe é requerido na redução da pobreza e na galgada da escala do crescimento econômico”. Organismos internacionais, como o Banco Mundial e a OCDE, atuariam efetivamente incentivando práticas avaliativas, contribuindo para a construção de uma cultura da avaliação (contribuindo, portanto, para a construção da ideia de que „avaliar é preciso‟). Sobre a construção de ideias hegemônicas em torno do que avaliar, conforme discutimos anteriormente, parece haver uma tendência, principalmente no Enem, em associar „velhas práticas de sala de aula‟, como o ensino de conteúdos e conceitos, ao que é retrógrado, ao que deve ser superado. A aquisição de competências e habilidades, por outro lado, é investida em um discurso da „inovação‟ associado aos desafios do mundo contemporâneo e da sociedade da informação. Por fim, considerando a grande repercussão que os resultados (notadamente os maus resultados) de exames em larga escala têm na sociedade, sobretudo por serem alardeados pela mídia, esse gênero parece ter também como função prestar contas à sociedade das políticas públicas. Sousa (2009, p. 34) afirma que uma das características dos exames é “a ampla divulgação dos resultados das avaliações na mídia, usualmente na forma de classificação das instâncias avaliadas, induzindo à comparação, em nome da necessidade de prestação de contas à sociedade”. Adiante, acrescenta a autora uma crítica que nos parece bastante relevante. Segundo Sousa (op. cit., p. 34), a avaliação orientada pela classificação, por dados predominantemente quantitativos, pela ênfase nos produtos ou resultados, atribuição de mérito a alunos, instituições ou redes de ensino pauta-se no princípio de que a avaliação gera competição, e a competição gera qualidade. 151 Nesta perspectiva o Estado assume a função de estimular a produção dessa qualidade. Políticas educacionais formuladas e implementadas sob os auspícios da classificação e seleção incorporam, consequentemente, a exclusão, como inerente aos seus resultados, o que é incompatível com o direito de todos à educação. (SOUSA, 2009, p. 34). Como se vê, entender a função social de exames em larga escala tomados como gêneros do discurso é uma questão complexa que pressupõe o entendimento da repercussão desses exames na sociedade, o contexto em que emergiram – caracterizado pela ampliação das desigualdades sociais – e no qual a avaliação foi intensificada. A seguir, propomos uma breve síntese. 3.6 Segunda síntese intermediária Na introdução desta dissertação, questionamos se exames em larga escala, a exemplo do Enem, não constituiriam gêneros em um contexto de reformas e redefinição do papel estatal. Ao longo deste capítulo, até o presente momento, argumentamos e demonstramos que esses exames devem ser vistos como produtos de uma situação sócio-histórica peculiar, caracterizada pela ofensiva neoliberal, que apregoa a educação como condição estrutural para o desenvolvimento econômico dos países, para o empoderamento das classes vulneráveis, que devem vir a se tornar „empregáveis‟. Exames padronizados, em larga escala justificariam o fracasso de muitos países, inaptos a investir e gerenciar efetivamente a educação. Nesse sentido, atravessados pela ideologia neoliberal, esse gênero, através de seus resultados, justificaria desigualdades. 152 Segundo mencionamos no início deste capítulo, existem duas tendências que povoam os estudos sobre avaliação. A primeira centrada na avaliação escolar, que tende a tentar encontrar soluções para uma avaliação menos punitiva, mais democrática e pedagogicamente mais eficiente. A segunda voltada para questões relativas a política educacional e ação normativa estatal, tendo sido cunhado o termo avaliação em larga escala. Acrescentamos, ademais, que a sociedade parece reconhecer exames como o Enem de forma diferenciada, muitas vezes não denominando esse exame de „vestibular‟, mas tão somente de „Enem‟, não obstante ele esteja servindo como instrumento de seleção para ingresso em instituições de ensino superior. Os exames escolares, conforme discutimos principalmente no capítulo 2, surgem em um contexto de consolidação da sociedade burguesa e de seus ideais. Os exames em larga escala emergem em um contexto de crise do capitalismo, momento em que são propostas reformas do papel do Estado e, dentre elas, reformas educacionais. Considerando, porém, que, sob a ótica bakhtiniana, não existe nada absolutamente novo, nada pode ser criado do nada, observamos que exames em larga escala constituem-se com base tanto nos exames escolares quanto nos testes psicométricos de inteligência (ZANARDINI, 2008), amplamente difundidos entre fins do século XIX e início do século XX. Considerando também que todo enunciado e suas formas tipificadas, isto é, os gêneros do discurso, constituem reação-resposta a algo, a uma questão, a um problema em dada esfera, destacamos que exames em larga escala são reaçãoresposta a: 153 1. Uma situação sócio-histórica que trouxe como imperativo a garantia da qualidade do ensino e o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade. 2. Reformas educacionais estabelecidas sob a égide da redefinição do papel do Estado, tendo como objetivo a monitoração da descentralização da oferta do ensino e a indução de reformas na educação. 3. Implantação do modelo administrativo público-gerencial. 4. Experimentações prévias e experiências de outros países. 5. Recomendação de organismos internacionais, como o Banco Mundial, que propuseram a monitoração da qualidade do ensino e do controle dos investimentos em educação. Como características centrais desse podemos citar: a racionalidade, objetividade, economia de tempo (questões quase sempre objetivas), a tentativa de predição de desempenhos futuros, a avaliação com base, geralmente, no desempenho individual de alunos, a interação com outros gêneros, notadamente „meta-gêneros‟. Outra peculiaridade desse gênero concerne à exigência de objetividade, credibilidade, isonomia e lisura do processo, bem como a eficiência didáticopedagógica, baseada na distinção, relevância dos pressupostos teórico- metodológicos e capacidade de reestruturar e intervir retroativamente no ensino. Quanto às funções sociais, citamos: 1. Induzir/monitorar/controlar a qualidade do ensino, instituindo um currículo mínimo a ser ensinado. 2. Se „autoaperfeiçoar‟, por de experimentações prévias, estudos e pesquisas educacionais, de forma a garantir a máxima objetividade e eficiência do instrumento de avaliação. 154 3. Promover o controle social, justificando fracassos e sucessos. 4. Fornecer informações para subsidiar políticas e decisões. 5. Disseminar crenças e valores baseados na meritocracia. 7. Prestar contas à sociedade. Por fim, ressaltamos que o Enem parece seguir uma tendência delineada nas duas ou três últimas década, que tem enfatizado o conhecimento voltado para a ação, utilização e interação, a ênfase em habilidades e competências, a flexibilidade do conhecimento, a interdisciplinaridade. Trata-se, em suma, de uma questão de estilo, discutida no próximo capítulo. 155 4 O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO COMO EXAME EM LARGA ESCALA: UM OLHAR SOBRE A DIMENSÃO VERBAL DA PROVA No capítulo 3, demonstramos que exames padronizados, em larga escala devem ser entendidos como gêneros em um contexto de reformas e redefinição do papel do estado, frutos de uma sociedade complexa. Em nossas explanações, tomamos o Enem como exemplar desse gênero e analisamos documentos oficiais diversos (Notas técnicas, pronunciamentos do ministro da educação, Fundamentação teórico-metodológica etc). Neste capítulo, propomos um olhar sobre a dimensão verbal do Enem, considerando que esse exame materializa uma tendência delineada nas últimas décadas, que propõe uma reformulação dos currículos e conteúdos do ensino médio, o conhecimento voltado para o „aprender a aprender‟, a ação e interação. Nosso objetivo, no capítulo que ora se apresenta, é demonstrar que o Enem visa materializar um „discurso moderno‟, pautado nas reformas curriculares propostas. Segundo Ramos (2001, p. 126), “As reformas curriculares, por sua vez, visam re-orientar a prática pedagógica organizada em torno da transmissão de conteúdos disciplinares para uma prática voltada para a construção de competências”. Assim, o Enem constituir-se-ia a partir de um olhar responsivo às propostas de reformas curriculares. Ao mesmo tempo, como não pode existir nada absolutamente novo ou inovador, o exame expõe uma tensão entre a tentativa de inovar e a convivência com velhas práticas, estilos de questões mais tradicionais. Este capítulo está dividido em quatro partes além desta introdução. No tópico 4.1., defendemos que a tentativa de inovação por meio de situações-problema, 156 interdisciplinaridade, avaliação centrada em competências e habilidades e não em conteúdos constitui o estilo do exame, no sentido bakhtiniano atribuído ao termo. Em seguida, no tópico 4.2., analisamos a forma composicional do exame, focalizando a estruturação das questões. No tópico 4.3., lançamos um olhar sobre as propostas de redação, defendendo a posição de que essas propostas muito além de avaliar competências e habilidades, visam transmitir valores, atitudes necessárias à inserção no mercado de trabalho e à participação cidadã. No tópico 4.4., apresentamos uma síntese intermediária, a partir das reflexões aqui abordadas. Por fim, esclarecemos que cada edição do exame deve ser concebida como realização particular, que expõe a tensão entre a tentativa de inovar e a filiação da prova a uma tradição da qual seus fundamentos teórico-metodológicos procuram se desvincular. Se, por um lado, cada edição é um acontecimento único, por outro lado, esse acontecimento vincula-se aos demais, à história do exame. Embora consideremos cada realização como um evento único, priorizamos, neste capítulo, a análise da edição de 2010, por ser a edição que consolida as reestruturações pelas quais passou o Enem a partir de 2009. Questões de outras edições, no entanto, também foram analisadas. 4.1 O Exame nacional do ensino médio e as reformas nos conteúdos e currículos de ensino: uma questão de estilo Nas últimas décadas, temos presenciado a emergência de políticas em torno da reforma nos currículos da educação básica. Documentos que subsidiam o ensino são editados, formações continuadas de professores são propostas, programas de 157 capacitação que visam qualificar os profissionais do ensino para uma nova realidade são realizados. O Enem insere-se nesse quadro complexo, no qual críticas são feitas às formas „tradicionais‟ de ensinar e avaliar. Nesse sentido, a formação e a avaliação por competências é investida em um „discurso da modernidade‟. Segundo assinala Zanardini (2008, p. 134), No quadro da reforma da Educação básica, principalmente a partir dos anos de 1990, ao lado dos aspectos referentes à gestão da escola, os conteúdos do ensino também compuseram o foco dos reformadores e das mudanças curriculares que se materializaram nos Parâmetros Curriculares Nacionais e nas Diretrizes Curriculares Nacionais respaldadas na LDB 9394/96. (grifo nosso). Em uma situação sócio-histórica na qual se preconizam mudanças, órgãos internacionais destacam a necessidade de adequar sistemas educacionais às necessidades requeridas pelo sistema de produção capitalista. Zanardini (op. cit., p. 135) menciona o documento da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe da ONU, Transformação produtiva com equidade (CEPAL, 1990), o qual, segundo o autor (ZANARDINI, op. cit., p. 135), “alertava para a necessidade de implementação de mudanças, recomendando que os países investissem em reformas educacionais para adequá-los a oferecer as habilidades e competências requeridas pelo sistema produtivo” (destaque nosso). Um ensino e, por conseguinte, uma avaliação centrada em conceitos e conteúdos parece não mais corresponder às necessidades e aspirações de um novo sistema de produção. Da mesma forma, o saber fragmentado, dividido em disciplinas, estaria em desacordo com as demandas decorrentes de uma reestruturação produtiva. A avaliação por competências e habilidades, com foco na 158 interdisciplinaridade, desponta como tema do Enem, com vistas à implementação de uma reforma no currículo do ensino médio. Competências e habilidades, interdisciplinaridade e situação-problema são conceitos caros para o Enem, os quais traduzem essa aspiração ao que seria “moderno” e adequado às demandas de um mundo em transformação. Sobre os dois primeiro conceitos – competências e habilidades –, a Fundamentação teórico-metodológica do Enem (BRASIL, 2005) propõe uma distinção (a escola da excelência e a escola para todos) que visa esclarecer a necessidade de se ensinar por competências e habilidades. Esses dois conceitos são definidos com base nas Matrizes Curriculares de Referências do Saeb (BRASIL, 1998), segundo as quais se deve entender por competências cognitivas as modalidades estruturais da inteligência – ações e operações que o sujeito utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos, situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer. As habilidades instrumentais referem-se, especificamente, ao plano do „saber fazer‟ e decorrem, diretamente do nível estrutural das competências já adquiridas e que se transformam em habilidades. (BRASIL, 1998a, p. 9). A Fundamentação teórico-metodológica do Enem apresenta três modos de entender o conceito competência: competência como condição prévia do sujeito, herdada ou adquirida; competência como condição do objeto, independente do sujeito que a utiliza; competência relacional, como um jogo de interações entre as demais competências, caracterizada pela mobilização de habilidades para atuar com o novo, o inesperado, o elemento surpresa. Até 2008 o exame fundamentava-se em cinco competências associadas a vinte e uma habilidades. Vejamos as competências descritas: I - Dominar linguagens – Dominar a norma culta da língua portuguesa e fazer uso da linguagem matemática, artística e científica. 159 II - Compreender fenômenos – Construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos históricogeográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas. III - Enfrentar situações-problema – Selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema. IV. Construir argumentação – relacionar informações, representadas de diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em situações concretas, para construir argumentação consistente. V. Elaborar proposta – Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. A partir de 2009, com a reestruturação do Enem, mantiveram-se as cinco competências descritas acima com algumas alterações24 enquanto “eixos cognitivos” comuns a todas as áreas do conhecimento, e foram acrescentadas e discriminadas diferentes competências segundo as quatro áreas do conhecimento definidas no exame. Segundo Beth Marcuschi (2006, p. 75), as cinco competências básicas que estruturam o Enem são bastante diversificadas e não guardam uma unidade entre si. Nas palavras da autora: A análise das cinco competências propostas pelo ENEM revela sua natureza bastante diversificada. A primeira, principalmente, ao 24 Por exemplo, a competência “I” passou a ser descrita com a seguinte redação: “Dominar linguagens (DL): dominar a norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática, artística e científica e das línguas espanhola e inglesa”. Vê-se, portanto, que as línguas estrangeiras espanhola e inglesa passaram a compor o exame, o que demonstra a proximidade que o Enem foi adquirindo com os já consolidados “exames vestibulares”. 160 destacar o domínio da “norma culta da língua portuguesa” e o “uso das linguagens matemática, artística e científica”, e a segunda, quando remete à “compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas”, remete a áreas de conhecimento específicas. Não estão, portanto, no mesmo nível de abrangência das competências III e IV, bem mais amplas e não situadas em áreas de conhecimento pontuais. As capacidades de “selecionar, organizar, relacionar, interpretar dados e informações” (...), inclusive, podem e devem ser utilizadas no estudo que leva ao domínio da língua portuguesa e no uso de outras linguagens. Além disso, às competências III, IV e V é acrescida uma finalidade pragmática, ou seja, deve-se operar com dados “para tomar decisões e enfrentar situações-problema” (III); relacionar informações “para construir argumentação consistente” (IV); recorrer a conhecimentos “para a elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade” (V). O foco desse quinto item, aliás, não está propriamente numa competência, mas num comportamento social e ético desejável. Ao que nos parece, essa diversidade é resultado de uma tentativa de adequar a proposta de avaliação aos novos „códigos da modernidade‟ amplamente difundidos ao longo dos anos 90 do século XX. Nesse novo paradigma, a escola torna-se responsável pelo ajustamento social – daí a necessidade de transmissão não só de conteúdos básicos, mas também de valores e atitudes considerados fundamentais para o „pleno exercício da cidadania‟. Conforme discutiremos adiante, o Enem expressa essa tendência de ajuste e regulação social do sujeito nas suas propostas de redação, sempre relacionadas a temas como ética, cidadania, meio ambiente etc. No que concerne à interdisciplinaridade, a Fundamentação teórico- metodológica do Enem (BRASIL, 2005) reconhece que esse conceito procura estabelecer uma visão sintética, reconstruir a unidade perdida que envolve as diferentes disciplinas. Segundo mencionamos acima, até 2008, o Enem era composto por 63 questões interdisciplinares, que não tinham, segundo exposto no site do MEC, relação direta com os conteúdos do Ensino Médio. Nesse modelo antigo do exame, encontrávamos questões como a ilustrada abaixo: 161 Ilustração 3 - Questão 58, Enem 1998 162 A questão acima exposta, retirada da primeira edição do Enem, apresenta dois textos que precisam ser correlacionados e associados ao seu contexto de produção. O texto I, produzido no século XIX, evidencia a segregação social existente no Brasil. O texto II, produzido mais de cem anos depois, demonstra a continuidade dessa realidade – uma realidade em que sucessivos governos não são capazes de garantir a cidadania a milhões de brasileiros, recaindo a responsabilidade pela socialização dos excluídos a projetos voluntários. Para responder à questão, deve o candidato fazer inferências complexas, observando que a segregação existente no século XIX perpetua-se nos dias atuais, já que a cidadania é ainda incompleta para milhões de brasileiros. O texto II, embora tenha o objetivo de divulgar o projeto axé, o faz, inicialmente, em um tom de denúncia, ao afirmar que “Em Salvador, Bahia, o Projeto Axé conseguiu fazer, em apenas três anos, o que sucessivos governos não foram capazes: a um custo dez vezes inferior ao de projetos governamentais, ajuda meninos e meninas de rua a construírem projetos de vida, transformando-os de pivetes em cidadãos”. O candidato pode recorrer a seus conhecimentos de história do Brasil para responder à questão; ao mesmo tempo, deve fazer inferências sobre os textos apresentados, configurando a questão como de leitura e interpretação. Os conhecimentos sobre Geografia Humana, sobre a realidade nos grandes centros urbanos em países periféricos também podem ser acionados para a análise e interpretação, sobretudo, do texto II. Em suma, a questão levanta reflexões em diferentes disciplinas das Ciências Humanas, evidenciando sua natureza interdisciplinar. No modelo antigo do Enem, não havia agrupamento das questões segundo a área do conhecimento abordada. Era possível reconhecer algumas questões como 163 típicas de uma determinada área disciplinar; outras, no entanto, tornavam-se dúbias, difíceis de serem classificadas em uma só área do conhecimento. Observemos, por exemplo, a questão 46, retirada do Enem 2000: 164 Ilustração 4 - Questão 46, Enem 2000 165 Borba (2007, p. 49), ao analisar a questão acima, afirma que conhecimentos relativos a, pelo menos, quatro disciplinas são considerados na elaboração da questão. Segundo a autora, Da Língua Portuguesa, aproveitam-se as informações acerca das características do gênero charge; da Geografia, os conceitos de Reforma Agrária, Êxodo rural, demarcação de terras; da História, a memória dos conflitos pela posse de terras, a relação de exploração à qual os portugueses submetiam os índios, que resultou na desapropriação do território indígena; e da Literatura, o conhecimento dos autores e das características dos movimentos dos quais eles fazem parte, além da leitura crítica e social e historicamente constituída dos textos selecionados. A partir de 2009, as questões do Enem passaram a ser agrupadas em quatro áreas do conhecimento (Ciências humanas e suas tecnologias; Ciências da natureza e suas tecnologias; Linguagens, códigos e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias), além da redação, presente desde a primeira edição do exame. Ainda em 2009, foi lançada a proposta de vestibular unificado, tendo sido as universidades federais induzidas ou mesmo pressionadas a aderirem ao SISU, ou, pelo menos, utilizarem a nota do Enem como forma de ingresso aos cursos superiores. É consenso a influência que os exames de seleção para o ensino superior exercem sobre o ensino médio, a ponto de várias escolas terem, durante muito tempo, separado os alunos concluintes conforme a área pretendida para o vestibular (por exemplo: turmas de humanas, de saúde ou exatas). Ao se constituir como mecanismo de seleção para o ensino superior e, sobretudo, como proposta de vestibular unificado, o Enem seria certamente uma influência muito maior para o currículo do Ensino médio. O sistema escolar brasileiro, porém, caracterizado pela fragmentação do currículo e mesmo pela falta de interlocução entre as diversas áreas do saber, a começar pela própria forma como se organiza o trabalho docente, 166 possivelmente não estaria preparado para uma proposta como a do “antigo” Enem, estruturado em 63 questões sem quaisquer agrupamentos. Nesse sentido, a reestruturação do exame coincidindo com a proposta de vestibular unificado não parece ser fortuita. Por fim, no que concerne à situação problema, conceito caro ao Enem, a Fundamentação teórico-metodológica do referido exame define esse conceito como uma espécie de representação de situações inesperadas, que “implicam resolver ou decidir sobre variáveis não-previstas” (BRASIL, 2005, p. 15). Para resolver um problema, o sujeito teria de tomar decisões sobre variáveis, seguindo as seguintes etapas: 1. Interpretação da situação; 2. planejamento da solução; 3. execução; 4. avaliação. O conceito de situação-problema é proposto com base na distinção entre exercícios e problemas. Os exercícios seriam repetitivos, não desafiadores, centrados, muitas vezes, na cópia. Os problemas, por outro lado, seriam desafiadores, exigiriam reflexão, articulação de competências e habilidades. A justificativa da relevância de se avaliar por situações-problema e não por questões mais próximas dos exercícios escolares fundamenta-se em um discurso que tende a enfatizar as transformações vividas em uma sociedade da informação, sociedade que exigiria não a memorização apenas, mas o desenvolvimento da capacidade de aprender a aprender. Conforme a Fundamentação teóricometodológica do Enem (BRASIL, op. cit., p. 17), “com todas as transformações tecnológicas, sociais e culturais, uma questão prática, relacional começa a impor-se com grande evidência. Temos muitos problemas a resolver, muitas decisões a tomar, muitos procedimentos a aprender”. Adiante, afirma-se: “cada vez mais torna- 167 se necessário também o domínio de um conteúdo chamado de „procedimental‟, ou seja, da ordem do „saber como fazer‟”. (p. 17). A defesa de um exame estruturado em situações problemas parece, portanto, materializar a tendência acima referida de incorporar ao ensino os „signos da modernidade‟. Nesse sentido, investe-se em um discurso da sociedade em transformação e do conhecimento como algo que deve ser continuamente construído, algo que deve ser flexível, capaz de se adaptar ao inesperado. Todavia, lembramos que, segundo Signorini (2007), onde são traçadas fronteiras entre o retrógrado e o „inovador‟ tem-se, de fato, bordas fluidas e zonas de constante entrelaçamento. Assim, embora o Enem, em diversos documentos oficiais, a exemplo da Fundamentação Teórico-metodológica, seja apresentado como „exame inovador‟, embora essa ideia da „inovação‟ esteja sendo constantemente veiculada na promoção do exame, temos, com efeito, bordas fluidas, difíceis de serem delimitadas. Observemos, por exemplo, a questão 97 da edição 2010: 168 Ilustração 5 - Questão 97, Enem 2010 A questão acima versa sobre a função da linguagem predominante no trecho destacado. Esse tipo de questão é frequente em livros didáticos de língua portuguesa, fruto da divulgação dos estudos funcionalistas do Círculo Linguístico de Praga. Na década de 70 do século XX, grande influencia tiveram esses estudos sobre o ensino de língua portuguesa, estendendo-se tal influência até a legislação oficial, sob o rótulo “comunicação e expressão”. Segundo Oliveira e Wilson (2010, p. 236-237), embora para o Círculo a língua fosse concebida como um sistema funcional por conta do caráter de finalidade, de propósito comunicativo com que era tratada a atividade linguística, parece ter havido, em termos de ensino, certa incompreensão dessa proposta, com sua redução a um conjunto estruturado de seis „funções da linguagem. 169 A linguagem, na questão 97 supracitada, é reduzida a “um conjunto estruturado” de funções. Ademais, difícil torna-se a identificação da situaçãoproblema que supostamente fundamentaria a questão, afinal, seguindo as etapas constitutivas da realização de uma situação-problema (Interpretação da situação, planejamento da solução, execução, avaliação), percebemos que o candidato deve interpretar a situação – interpretar o texto, entender o objetivo da enunciação –, mas o planejamento da solução e a execução nos parecem bastante difusos. Não vemos, também, no momento em que está respondendo a questão, como poderia o candidato avaliar as decisões tomadas. Em síntese, trata-se de uma questão notavelmente tradicional (não muito diferente de exercícios há muito tempo encontrados em livros didáticos de língua portuguesa), na qual não se identifica propriamente um „problema‟, nos termos definidos na Fundamentação Teóricometodológica do Enem (BRASIL, 2005). Não obstante, na edição 2010 do Enem, ao lado de questões mais tradicionais, como a questão 97 acima exposta, encontram-se questões que trazem noções e conceitos difundidos, no Brasil, mais recentemente, quais como os conceitos de gênero e mesmo o conceito de “função social”, que amplia e problematiza o conceito de “funções da linguagem”, tratado, muitas vezes, de forma simplificada em livros didáticos. Observemos, a título de exemplificação, a questão 98, também da edição 2010 do Enem: 170 Ilustração 6 - Questão 98, Enem 2010 A questão acima problematiza a função de um gênero textual, revelando a influência de teorias divulgadas mais recentemente no Brasil. Nessa questão, não se concebe a linguagem como um conjunto estruturado de seis ou mais funções independentes do contexto, mas como artefato sociocultural. Para responder à questão, deve o candidato correlacionar o texto apresentado às informações expressas no enunciado, lançando mão, ainda, de seu conhecimento de mundo sobre o gênero horóscopo. 171 Chama-nos a atenção, porém, a identificação dessa e de outras questões como “situação- problema”, nos moldes como essa expressão é definida na Fundamentação teórico-metodológica. Senão, vejamos: No Relatório Pedagógico do Enem (2002, p. 38), as situações-problemas são definidas como uma espécie de forma simbólica de representação do mundo, representação à qual deve o candidato atribuir sentido e “agir, ainda que em pensamento (atribui valores, julga, escolhe, decide, entre outras operações mentais”. Percebe-se, portanto, que a ênfase recai na interpretação e ação de situações simbólicas, apresentadas como desafiadoras. Questões como a 98 acima reproduzida exigem evidentemente interpretação, mas os conceitos de planejamento da solução, execução e avaliação – etapas que compõem a resolução de situações-problema – tornam-se difusos. Devemos entender a identificação da função social do gênero como desafio, como situação inesperada? Se sim, como intervir nessa „situação inesperada‟? O desafio seria encontrar a alternativa correta? Considerando as etapas que compõem a resolução de situações-problema, talvez pudéssemos classificar a questão de redação como uma situação que leva o aluno a interpretar a problemática apresentada em diferentes textos que precisam ser correlacionados; planejar uma „solução‟, isto é, planejar uma forma de ação e intervenção, por meio da argumentação, do jogo de linguagem; executar sua ação; e, por fim, avaliá-la. Não obstante, muitas questões de múltipla escolha não nos parecem muito diferentes dos já conhecidos „exercícios escolares‟, os quais são criticados pela Fundamentação teórico- metodológica do Enem. Vejamos, por exemplo, a questão 136 também da edição 2010 do exame: 172 Ilustração 7 - Questão 136, Enem 2010 A questão 136 acima reproduzida, constante na área “Matemática e suas tecnologias”, não nos parece muito diferente de exercícios presentes em livros didáticos de conhecimentos nível fundamental. básicos da área Primeiro, a supracitada – e porcentagens. fração questão exige Segundo, a 173 contextualização – conceito fundamental no Enem – parece ser meramente figurativo. Ora, suprimindo-se a história do professor que dividiu a lousa da sala de aula em quatro partes iguais, poderíamos ter um enunciado simples, do tipo: “Considerando que a figura 1 tem 75% de sua área preenchida, qual das figuras abaixo tem sua área preenchida em 40%?”. Nesse sentido, suprimindo a contextualização, mantém-se a essência da questão, que não apresenta propriamente um desafio, uma situação „inesperada‟, conforme é preconizado na Fundamentação teórico-metodológica do Enem. Nesse documento oficial, o conceito de “situação-problema” é apresentado, conforme mencionamos acima, a partir de uma distinção entre os exercícios escolares e os „problemas desafiadores‟. Vejamos: Penso que vale a pena insistir na distinção entre exercício e problema porque, algumas vezes, nas escolas e nos livros didáticos, problemas e exercícios são tratados como se fossem equivalentes. Voltemos ao jogo de percurso. Uma coisa é seu uso como recurso para exercitar cálculos que a criança já aprendeu e que pode “fortalecer” por intermédio desse jogo. Outra, são os problemas propostos no contexto do jogo ou mesmo de certos tipos de cálculos que implicam tomadas de decisão, correr riscos, etc. É importante termos em conta que o cálculo pode não ser o problema, ainda que faça parte de sua solução ou corrobore para ela. Em outras palavras, o exercício é fazer contas; o problema é realizar uma conta para a qual não se estava suficientemente preparado, porque é de um outro tipo, tem uma estrutura mais complexa, coloca uma dificuldade a mais, etc. Em síntese, exercício é o repetir, como meio para uma outra finalidade: por exemplo, caminhar para promover um trabalho cardiovascular. Problema é o que surpreende nesse exercício, é o novo, o que supõe invenção, criatividade, astúcia. (BRASIL, 2005,p. 15, grifos nossos). Seguindo a definição acima, deveríamos conceber a representação de 40% de uma figura como uma situação inesperada, que exige astúcia, que “coloca uma dificuldade a mais”, o que não ocorre na questão 136 anteriormente reproduzida. O 174 foco, nessa questão, reside em conhecimentos elementares, os quais não são propriamente problematizados pela contextualização apresentada. Não se exige do candidato astúcia ou destreza para resolver uma situação que surpreende. Com efeito, muitas questões do Enem não são muito distintas dos já conhecidos „exames vestibulares‟ ou dos exercícios constantes em livros didáticos. Não obstante, documentos oficiais que versam sobre o exame investem em uma retórica da „inovação‟, do „diferente‟, daquilo que surpreende e vai além do que a escola usualmente tem feito. Trata-se, de fato, da necessidade de apresentar o exame como algo „diferente‟, conforme discutimos no capítulo a este precedente – necessidade que representa uma atitude responsivo-ativa às reformas nos conteúdos e currículos de ensino que têm sido propagadas nas últimas décadas. Podemos, pois, afirmar que a estruturação ou pretensão à estruturação do Enem em situações-problema, com ênfase na interdisciplinaridade, na contextualização e na aferição de competências e habilidades, constitui o que se poderia denominar estilo do exame. Lembramos que, conforme Voloshinov (1926), o estilo corresponde a uma pessoa mais seu grupo social. Nesse sentido, o estilo do Enem tende a refletir as mudanças, as transformações que se impõem aos currículos e conteúdos de ensino nas últimas décadas. Ao longo dos anos 90 do século XX, a educação básica tem sido alvo de propostas de reformas, com vistas à adequação da escola ao mundo do trabalho, à sociedade da informação, que não mais exigiria um conhecimento estanque, fragmentado e enciclopédico. Segundo Barbosa (2000, p. 56, apud ZANARDINI, 2008, p. 137), O currículo já não correspondia às necessidades da realidade que teria emergido com a chamada globalização econômica e cultural. A antiga formação para a produção padronizada em larga escala, que teria determinado um tipo de currículo que consagrou o saber de forma fragmentada, estaria incapacitada para responder às 175 demandas geradas pela reestruturação produtiva, agravando o problema do desemprego. No entanto, conforme demonstramos, não se podem aventar inovações sem a percepção de que toda transformação constroi-se em um movimento de idas e vindas com aquilo que é qualificado como „tradicional‟ ou mesmo „retrógrado‟. O Enem procura inovar, seguindo uma tendência; diversos documentos oficiais que versam sobre o exame investem em um discurso da inovação. O inovador e o tradicional, porém, parecem conviver lado a lado, e, com frequência, o que é, de fato, tradicional às vezes é apresentado como inovador. Feitas essas considerações, na próxima seção observaremos como se estruturam as questões do exame, atentando para outro conceito caro ao Enem: a contextualização. 4.2 Forma composicional: tipos de questões e contextualização Conforme afirmamos anteriormente, a partir de 2009 o Enem foi reestruturado, passando de 63 questões, não agrupadas de acordo com uma área específica do conhecimento, para 180 questões objetivas agrupadas em quatro áreas do saber. A redação, presente desde a primeira edição, foi mantida. Além disso, o exame passou a ser aplicado em dois dias consecutivos. Ao analisarmos a edição de 2010 do Enem, observamos que, de forma geral, os enunciados das questões não apresentam grande variedade e tendem a seguir um único padrão. 176 Conforme Reinaldo e Viana (2008, apud COSTA, 2009, p. 50-51), as questões de múltipla escolha estruturam-se segundo cinco subtipos: a) Afirmação incompleta: o enunciado é uma afirmação que se completa com uma das alternativas. b) Resposta múltipla: o enunciado consta de várias proposições, admitindo mais de uma correta. Após as proposições, é necessária a construção de alternativas que contemplem essas proposições. c) Questão lacunada: uma ou várias partes relevantes do enunciado são suprimidas e apresentadas nas alternativas. Algumas normas devem ser observadas na sua formulação para não dificultar sua compreensão: o número de lacunas não deve ser excessivo, deve-se evitar a lacuna no início do enunciado. d) Verdadeiro – Falso: são apresentados dois grupos distintos de informações que se associam ou se completam. e) Associação: o enunciado envolve a correspondência, o emparelhamento ou a combinação de grupos de informações. Das 180 questões que compõem o Enem 2010, 146 são do tipo “afirmação incompleta” e apenas 34 podem ser classificadas como “associação”, o que evidencia a pouca variabilidade na elaboração dos enunciados. Observemos, por exemplo, a questão 39, constante na área “Ciências humanas e suas tecnologias”. 177 Ilustração 8 - Questão 39, Enem 2010 Como a maior parte das questões que compõe a prova, o enunciado da questão 39 reproduzida acima completa-se com uma das cinco alternativas que devem ser selecionadas pelo candidato. Destacamos, ademais, que o comando das questões do Enem tende a se diferenciar dos comandos típicos dos exercícios escolares, os quais, quase sempre no modo imperativo, exigem explicitamente a realização de atividades ou operações mentais (responda, analise, julgue etc). As questões do Enem, como pode ser visualizado no exemplo destacado, ao invés de proporem operações por meio de verbos no imperativo, quase sempre apresentam contextualizações ou interpretações do texto/fragmento de texto que é 178 tomado como referência para análise das alternativas. Quase todas as questões são contextualizadas por meio de textos de referência. Esses textos, porém, são, em boa parte, fragmentos ou fragmentos adaptados, o que evidencia uma concepção escolarizada de leitura subjacente ao exame. Considerando que boa parte das questões são contextualizadas por fragmentos de textos diversos, pudemos observar as seguintes relações entre o texto de referência, o enunciado e as alternativas: a) O texto ou fragmento fornece „pistas‟ para o candidato encontrar a alternativa correta. Todavia, o conhecimento formal escolar deve ser acionado. b) O texto fornece pouca ou nenhuma indicação para a resposta, assumindo, muitas vezes, uma função meramente ilustrativa, já que o foco recai sobre o conhecimento formal escolar. c) Ênfase na interpretação: o texto, por si só, responde à questão. Trata-se de uma questão de leitura (independentemente da área do conhecimento), quase sempre inferencial ou global. Não se focaliza tanto o conhecimento formal escolarizado, como conceitos e fórmulas, mas a interpretação textual. Vejamos alguns exemplos, a título de ilustração das relações observadas: 179 Ilustração 9 - Questão 25, Enem 2010 180 Na questão acima reproduzida, presente na edição 2010 do Enem, embora o texto de referência forneça algumas pistas para a resposta, o conhecimento escolar sobre o período histórico em questão deve ser acionado. Nessa questão, o aluno deve interpretar o texto e recorrer a seus conhecimentos referentes às consequências da mudança da família real portuguesa para o Brasil. O texto (fragmento adaptado) por si só não responde à questão. Por outro lado, na questão 44 da mesma edição da prova, também presente na área “Ciências humanas e suas tecnologias”, o texto (fragmento adaptado) por si só responde à questão. Observemos: Ilustração 10 - Questão 44, Enem 2010 181 Na questão acima, o que está em foco é a interpretação do texto. O candidato deve demonstrar ter compreendido o sentido global do fragmento em destaque, segundo o qual as ações humanas individuais adquirem um sentido coletivo e político, considerando a dimensão histórico-social da ética na contemporaneidade. Não são exigidos, aqui, conhecimentos históricos, como o faz a questão 25 anteriormente citada, mas habilidades de leitura e interpretação textual. Muitas questões do Enem estruturam-se dessa forma, com ênfase na interpretação do texto, que por si é capaz de responder à questão. Com efeito, a leitura é descrita, na Fundamentação teórico-metodológica (BRASIL, 2005), como uma arquicompetência, responsável por articular as demais competências e habilidades. Segundo esse documento, a área “Linguagens, códigos e suas tecnologias” está presente na descrição de todas as competências, pois O grupo autor da matriz resolveu elegê-la como uma arquicompetência. Esse grupo, formado de professores de várias disciplinas, indicou que, sem o desenvolvimento pleno da atividade leitora, todas as competências e habilidades avaliáveis teriam suas possibilidades reduzidas ou interrompidas. Pela primeira vez, em situação de avaliação institucional, assume-se o papel essencial da leitura como pré-requisito básico. (BRASIL, op. cit., p. 59). Subjaz à citação, uma visão instrumental da leitura, considerada condição para o desenvolvimento de outras competências e habilidades. O desenvolvimento da leitura não parece ser propriamente um fim em si, mas um meio para outros fins, um “pré-requisito básico”. Destacamos, também, o discurso da inovação presente no fragmento acima, segundo o qual “Pela primeira vez, em situação de avaliação institucional” assumiu-se o papel essencial da leitura, ou seja, o exame é apresentado como inovador, como instrumento que, antes dos demais, focalizou a leitura. Nesse trecho, enfatizado pela expressão “pela primeira vez”, afirma-se a distinção do exame. Trata-se de uma ideia, difundida pelo discurso oficial, que aos 182 poucos vem se tornando hegemônica, induzindo (por meio do papel indutor do Estado), dirigentes de IES, sistemas de ensino e alunos a aderirem ao Enem. Por fim, encontramos no Enem questões centradas quase exclusivamente no conhecimento formal escolar (fórmulas, conceitos, definições, conhecimentos históricos etc), assumindo o texto que contextualiza a questão uma função ilustrativa. Observemos dois exemplos: Ilustração 11 - Questão 24, Enem 2010 A questão 24 acima, retirada do Enem 2010, apresenta um fragmento adaptado do Alvará de liberdade para as indústrias, no qual o Príncipe Regente 183 apresenta seu projeto industrializante para o Brasil. O foco da questão, porém, não reside propriamente no que é apresentado no texto, mas nas características do período histórico responsáveis pela não concretização do projeto. O texto, por conseguinte, não fornece quaisquer indicações para a resposta, assumindo uma função ilustrativa. Vejamos agora a questão 83 do Enem 2010 (área: “Ciências da natureza e suas tecnologias”): Ilustração 12 - Questão 83, Enem 2010 184 O texto de referência da questão 83 acima reproduzida, retirado de um site, fornece informações elementares sobre a definição de “soluto”, “solvente” e “solução” – definições geralmente aprendidas ainda no ensino fundamental. O foco da questão, no entanto, não reside nessas definições, mas em conhecimentos mais aprofundados, referentes à concentração em mol/l da sacarose no café. O texto poderia até mesmo ser desconsiderado, já que não acrescenta informações significativas para a resolução do problema apresentado. Muitas questões do Enem, após sua reestruturação em 2009, apresentam um formato muito próximo ao da questão 83, o que evidencia maior ênfase dada aos conhecimentos formais escolarizados, como fórmulas, definições, eventos históricos. Nesse sentido, esse exame em larga escala aproximou-se bastante dos tradicionais „vestibulares‟, conforme afirmamos acima, ficando, por extensão, mais próximo do que já era ensinado nas escolas. Com base nessas observações, consideramos o Enem exemplar de um gênero complexo, ainda não muito bem compreendido, fruto de transformações ocorridas nas últimas décadas do século XX. No Enem, os avaliadores adotam um olhar responsivo a uma tendência instituída por uma agenda globalmente estruturada para a educação, e adotam também um olhar responsivo para a realidade da escola interdisciplinaridade, brasileira, para uma ainda forma não de totalmente avaliação preparada que para a desconsidera o conhecimento enciclopédico, as fórmulas, os conceitos. Nessa disputa, insere-se o Enem, advogando a favor do novo, do „inovador‟, mas mantendo muitas práticas tradicionais. Como exemplo dessa hibridização que perpassa o exame, podemos citar a própria seleção de textos tematizados. A priori, é preciso considerar que a forma de 185 apresentação dos textos (fragmentados ou adaptados), além de evidenciar uma concepção escolarizada de leitura, é um movimento de constituição de um estilo didático. Bunzen (2007, p. 87) define “estilo didático” como uma maneira específica de apreciação valorativa sobre os objetos de ensino, considerando as discussões de Bakhtin (1992) sobre estilo do gênero e estilo do autor. Nesta dissertação, definimos estilo didático como uma ressignificação do objeto que se pretende avaliar condicionada pela imagem de aluno que se projeta no exame. Ora, a adaptação ou fragmentação de textos é um movimento de didatização por meio do qual suprimem-se, por exemplo, partes que se possam considerar difíceis de compreender. A leitura do texto é, portanto, facilitada. Essa fragmentação e/ou adaptação de textos, sendo condicionada pela imagem de aluno projetada na prova, evidencia uma concepção de sujeito-avaliado pouco afeito a textos mais longos, isto é, um leitor de fragmentos, de trechos, usualmente utilizados para contextualizar ou ilustrar uma questão. A seleção dos textos que compõem o Enem, por outro lado, revela a complexidade que permeia o exame. Beth Marcuschi (2006, p. 81), ao observar os textos que compõem o Enem, afirma que esses textos ainda estão centrados naqueles mais utilizados na escola e nos livros didáticos, como os da esfera jornalística, literária e do lazer, deixando de se fazerem presentes textos multimodais (que unem linguagem verbal e não verbal) e de uso na prática cotidiana, como formulários, panfletos, tabelas, instruções, propagandas, gráficos, diagramas, entre outros, que requerem uma leitura não linear. Concordamos em parte com a afirmação da autora. Primeiramente, destacamos que a pesquisadora analisa o Enem em suas edições anteriores à reformulação de 2009 e que, atualmente, algumas mudanças já são observadas. 186 O exame, segundo observou Beth Marcuschi em edições anteriores à edição de 2009, na edição de 2010 continuou pouco utilizando textos de uso na prática cotidiana. Todavia, acreditamos que a seleção de textos não esteja mais centrada apenas naqueles mais utilizados na escola e nos livros didáticos. A forma de apresentação dos textos talvez esteja próxima à forma como os livros didáticos e as instituições de ensino trabalham os textos: fragmentados e adaptados, isto é, facilitados para a leitura. Todavia, a seleção desses textos parece evidenciar uma lenta mudança em curso. Observemos, a título de exemplificação, as questões 133 da edição 2010 do Enem e 104 da edição 2009 (área: Linguagens, códigos e suas tecnologias): 187 Ilustração 13 - Questão 133, Enem 2010 Ilustração 14 - Questão 104, Enem 2009 188 Primeiramente, chama-nos a atenção a fonte de onde foram retirados os fragmentos de texto sobre os quais incidem as questões: na questão 133 temos um trecho de Cibercultura, do filósofo Pierre Lévy, enquanto na questão 104 temos um fragmento da obra Cognição, linguagem e práticas interacionais, de autoria do linguista Luis Antonio Marcuschi. Trata-se de textos acadêmicos, em geral distantes daqueles usualmente abordados na esfera escolar com propósitos de ensinoaprendizagem. Nesse sentido, podemos discordar, em parte, da observação feita por Beth Marcuschi, segundo a qual o Enem aborda textos tipicamente escolares, como os que estão geralmente presentes em livros didáticos. Em segundo lugar, a própria temática escolhida para ser objeto das questões supracitadas não deixa de ser peculiar: o hipertexto e as novas formas de comunicação/interação advindas do ciberespaço. Se a escola, conforme destacam muitos pesquisadores, a exemplo de Beth Marcuschi (2006), pouco tem trabalhado com textos multimodais, o que dizer do trabalho com gêneros hipertextuais ou mesmo hipermodais? Nesse sentido, as reflexões suscitadas nas questões 133 (Enem 2010) e 104 (Enem 2009) parecem inovadoras, refletindo um olhar responsivo dos avaliadores às discussões atuais sobre as novas formas de linguagem e interação mediadas por gêneros digitais. Ao trazer fragmentos de textos acadêmicos, estabelece-se, ademais, um perfil de sujeito-avaliado capaz de ler, compreender e construir reflexões em torno de tais textos. Por outro lado, não se supõe propriamente um sujeito com plena proficiência em textos acadêmicos, considerando que esses textos se apresentam fragmentados e facilitados para a leitura – um movimento que caracteriza o estilo didático do exame. A respeito da seleção de textos multimodais – um ponto „fraco‟ no Enem, segundo a visão de Beth Marcuschi (2006) – , observamos que o exame parece não 189 guardar uma unidade quanto à utilização destes textos nas questões, distribuindo-os conforme a área do saber avaliada. Assim, a área de Ciências humanas e suas tecnologias apresenta, na edição 2010, a menor quantidade de questões que utilizam textos multimodais (apenas quatro), sendo um gráfico, dois esquemas e uma tirinha. A área “Matemática e suas tecnologias”, por outro lado, é a que mais utiliza textos multimodais. Estes, porém, limitam-se a gráficos e figuras cuja função é ilustrar ou esclarecer alguma informação difícil de ser expressa apenas por palavras (por exemplo: a representação do volume em uma figura geométrica). Seguindo a mesma tendência, a área “Ciências da natureza e suas tecnologias” apresenta grande quantidade de figuras com funções similares às figuras presentes em “Matemática e suas tecnologias”. É possível perceber, porém, maior variedade de textos multimodais, como mapas e imagens, por exemplo. Por fim, a área “Linguagens, códigos e suas tecnologias” possui maior diversidade no que concerne à utilização de textos multimodais, sendo possível encontrar, nessa área, imagens de obras de arte, charges, propagandas e infográficos. Ao analisar o Enem 2010, pudemos perceber dois modos de abordagem desses textos multimodais: 1. Os textos são meramente figurativos ou visam a, didaticamente, facilitar a compreensão de um problema, assumindo, assim, uma função secundária ou auxiliar; 2. os textos devem ser analisados, interpretados, pois são o foco da questão. Observemos um exemplo de cada uma dessas abordagens: 190 Ilustração 15 - Questão 54, Enem 2010 Na questão 54 acima reproduzida, retirada do Enem 2010 (área: Ciências da natureza e suas tecnologias), a imagem destacada tem uma função meramente figurativa, ilustrando o desaparecimento de uma das faixas de Júpiter. O foco dessa questão não reside propriamente na interpretação dessa imagem, que, em último caso, poderia até mesmo ser suprimida, já que a informação central necessária para a interpretação da questão encontra-se no texto verbal abaixo da imagem. Diferente função assume o texto multimodal presente na questão 75 da mesma edição do exame, na mesma área avaliada. Vejamos: 191 Ilustração 16 - Questão 75, Enem 2010 192 Na questão acima, o mapa precisa ser interpretado, correlacionado ao texto verbal para que o candidato encontre a resposta correta. Este deve basicamente identificar no mapa (que não apresenta legendas) qual a região representada pelas setas e qual o tipo de vegetação característico dessa determinada região. Nesse sentido, o mapa não apresenta uma função meramente ilustrativa: está, de forma intricada, relacionado ao texto verbal. De fato, conforme observou Beth Marcuschi (2006), o Enem não apresenta muita variedade no que concerne à utilização de textos multimodais, assumindo esses textos, muitas vezes, uma função ilustrativa ou auxiliar. A seleção desses textos dá-se em função de uma determinada imagem de destinatário, nesse caso, um leitor de textos em sua maioria verbais, que utiliza eventualmente imagens, gráficos, tabelas e figuras com o objetivo de esclarecer alguma informação não muito bem compreendida ou não muito bem expressa apenas por palavras. Outra característica estilístico-composicional que singulariza o exame é intenção de transmitir valores relacionados à formação cidadã, conforme discutiremos a seguir. 4.3 Um olhar sobre as propostas de redação: formação para o consenso Segundo Zanardini (2008), nas últimas décadas, de forma explícita, delineiase na escola uma tendência de transmissão de valores, de ajustamento social à nova ordem produtiva. Os temas transversais nos PCN, abrangendo a ética, a pluralidade cultural, o meio ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo, são exemplos dessa tendência. O autor destaca que os parâmetros conferem relevante importância às atitudes “com relação aos conteúdos preponderantemente 193 de caráter moral e ideológico” (p. 141). A importância dada a essas atitudes se firmaria “como pressuposto político necessário e sustentador da ordem social estabelecida” (idem). De fato, os PCN afirmam que “As atitudes têm a mesma importância que os conceitos e procedimentos, pois, de certa forma, funcionam como condições para que eles se desenvolvam” (BRASIL, 1998, p. 50). É no mínimo curiosa essa afirmativa segundo a qual conceitos teriam a mesma importância que as atitudes, pois o desenvolvimento de atitudes positivas, de valores éticos passa a ser explicitamente enunciado como função da escola. É claro que a essa instituição foi, desde a origem, delegado esse papel. Todavia, nos últimos anos passa-se a defendê-lo de forma explícita, sob o auspício do discurso da „modernidade‟. Para Zanardini (2008, p. 141-142), a transmissão de valores com vistas ao ajustamento social, tendência expressa nos PCN e seguida pelo Enem, é decorrente, a exemplo de outros momentos históricos, da „atenção especial dedicada‟ à educação em razão do seu papel estratégico. A educação fortaleceria o consenso em torno dos ideais neoliberais e da globalização com sua retórica de alívio da pobreza. Nessa conjuntura a educação tem reiterada a sua perspectiva „redentora‟, capaz de equacionar e amenizar as desigualdades sociais. Ramos (2001, p. 30), por sua vez, destaca que, desde o século XVIII, “a educação se insere no plano de luta hegemônica, devido à sua dimensão socializadora e de formação de consciência que prevalece inicialmente, já que a consolidação da cidadania é o seu mote principal”. Com efeito, o Enem tem como referência o conceito de cidadania e como um dos propósitos a formação cidadã. Na Fundamentação teórico-metodológica, lê-se a seguinte afirmativa (BRASIL, 2005, p. 14): 194 O direito de todas as crianças percorrerem os ciclos que compõem a escola fundamental é uma conquista recente e importante. Está expresso, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos (1948), no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), em nossa atual Constituição Brasileira (1988) e, mais recentemente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). Com isso, pretende-se que a escola seja para todos e que nela as crianças possam formar valores, normas e atitudes favoráveis à sua cidadania e dominarem competências e habilidades para o mundo do trabalho e da vida social, nos termos em que hoje se expressam. (grifos nossos). A articulação formação cidadão/competências e habilidades para o mundo do trabalho estaria a serviço da regulação e ajustamento social necessários à reestruturação produtiva. Se à escola cumpre a função de promover tal articulação, os exames em larga escala, enquanto gêneros que auditam essa instituição, tendem a trazer textos ou promover situações que abordem diretamente questões relacionadas à formação cidadã e à formação para o trabalho. No Enem, é perceptível essa tendência nas propostas de redação. Um levantamento dessas propostas, desde a primeira edição do exame, em 1998, até a edição de 2010, nos permitiu verificar uma confluência nos temas. Vejamos a tabela a seguir. 195 ANO 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 TEMA DA REDAÇÃO “Viver e aprender” “Cidadania e participação social” “Direitos da criança e do adolescente: como enfrentar esse desafio nacional?” “Desenvolvimento e preservação ambiental: como conciliar os interesses em conflito?” “O direito de votar: como fazer dessa conquista um meio para promover as transformações sociais de que o Brasil necessita?” “A violência na sociedade brasileira: como mudar as regras desse jogo?” “Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação?” “O trabalho infantil na realidade brasileira” “O poder de transformação da leitura” “O desafio de se conviver com a diferença” “Preservação da floresta amazônica” “O indivíduo frente à ética nacional” “O trabalho na construção da dignidade humana” Tabela 2 – Temas das propostas de redação do Enem (1998-2010) É possível perceber uma tendência nas propostas de redação em abordar temáticas relacionadas a cidadania, ética, meio ambiente, trabalho. De 2000 a 2004, propõe-se explicitamente um problema, introduzido pelo advérbio interrogativo “como”, que deve ser resolvido por meio da argumentação. O candidato deve, então, selecionar, organizar e relacionar argumentos, fatos e opiniões para defender seu ponto de vista, elaborando propostas para a solução do problema discutido. A ênfase, nas propostas de redação, parece recair sobre as competências 4 e 5, quais sejam: Construir argumentação e Elaborar proposta de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sociocultural. Nessas propostas, quase sempre o candidato é advertido sobre a 196 necessidade de respeitar, em sua argumentação, os direitos humanos, evidenciando o quão ideologicamente marcadas são as propostas. Nesse sentido, o exame forma para o consenso, procurando instituir valores relativos a uma “cidadania possível”. Segundo Ramos (2001, p. 140), nas reformas curriculares propostas para o ensino médio, a cidadania não é resgatada como valor universal, mas como a cidadania possível, conquistada de acordo com o alcance dos próprios projetos individuais e segundo os valores que permitam uma sociabilidade pacífica e adequada aos padrões produtivos e culturais contemporâneos. Afirmamos que o Enem constroi valores relativos a essa “cidadania possível”, uma vez que se pode perceber, nas propostas de redação, o direcionamento para uma posição pré-estabelecida, pautada na intervenção solidária e no respeito aos direitos humanos. Ademais, temas mais polêmicos, que possam gerar certas divergências, parecem ser evitados. A proposta de 2010, por exemplo, embora apresente um texto motivador sobre o trabalho escravo nos dias atuais, direciona o candidato avaliado a assumir que o trabalho „dignifica o homem‟. Assim, institui-se uma „socialização pacífica‟ do aluno/candidato avaliado, imerso em uma realidade na qual “as desigualdades são sublimadas em nome do direito à diferença” (RAMOS, 2001, p. 135). A primeira edição do exame, por outro lado, apresentou uma proposta de redação bastante simples e centrada em um tema abstrato (“Viver e aprender”). Nessa primeira edição foi fornecido apenas um texto motivador para leitura e elaboração da redação (trecho da música “O que é o que é”, de Gonzaguinha), diferentemente das propostas dos anos subsequentes, as quais, disponibilizando mais textos, possibilitaram melhor uma análise, seleção e organização de argumentos. Em 1998, a proposta de redação solicitava ao candidato: Redija um 197 texto dissertativo, sobre o tema “Viver e Aprender”, no qual você exponha suas idéias de forma clara, coerente e em conformidade com a norma culta da língua, sem se remeter a nenhuma expressão do texto motivador “O Que É O Que É”. Parece-nos problemática essa proposta por vários motivos. Primeiro, porque disponibilizava apenas trechos de um único texto, não apresentando maior diversidade de ideias para reflexão; segundo, porque o tema era bastante vago, abstrato; terceiro, porque solicitava que a redação não remetesse a nenhuma expressão do texto motivador, sem deixar claro o porquê dessa exigência, destituindo, ademais, o caráter de „motivador‟ ao texto (se se trata de um texto motivador, qual o problema em se travar um diálogo intertextual entre a redação produzida e esse texto?). Poderíamos também acrescentar o fato de o Enem solicitar apenas dissertações ou dissertações-argumentativas em suas propostas, algo criticado por pesquisadores da linguagem. Todavia, é preciso destacar que esse exame avalia competências e habilidades desenvolvidas pela escola, centrando-se, por conseguinte, em uma concepção escolarizada de leitura/escrita, estabelecendo, ademais, um padrão médio de aluno egresso do ensino médio em um país de dimensões continentais. Por fim, a precariedade da proposta de redação de 1998 deve ser decorrente da fase experimental do exame. Segundo afirmamos no capítulo 3 desta dissertação, exames em larga escala parecem ter como um de seus objetivos precípuos o autoaperfeiçoamento, por meio de experimentações prévias, pesquisas e estudos sobre sua própria qualidade. Assim, se a proposta de 1998 apresentavase relativamente rudimentar, os anos subsequentes evidenciam uma evolução, expondo mais textos para reflexão, propondo temas menos abstratos, mais voltados para a ação e intervenção solidária e cidadã. 198 A predileção por temáticas ideologicamente acentuadas, voltadas para a ação cidadã, não nos parece arbitrária, mas motivada por um projeto que concebe a educação como área estratégica para o desenvolvimento econômico e, por extensão, para formação daqueles que deverão ser futuramente inseridos no setor produtivo – indivíduos que, em seus locais de trabalho e na sociedade, deverão conviver com a diversidade, que deverão pensar sobre o desenvolvimento sustentável, que deverão propor ações para a intervenção em seu meio. 4.4 Terceira síntese intermediária Neste capítulo defendemos que o estilo do Enem constitui-se a partir de uma situação sócio-histórica peculiar. De um lado, o exame materializa um olhar responsivo dos avaliadores aos „signos da modernidade‟, às propostas de reformas dos currículos da educação básica, que tendem a enfatizar a interdisciplinaridade, a educação voltada para a formação cidadã, o conhecimento procedimental, voltado ao aprender como fazer. Nesse sentido, o Enem estrutura-se ou evidencia uma pretensão a se estruturar por competências e habilidades, situações problemas contextualizadas e interdisciplinares. Documentos oficiais que versam sobre o exame, como sua Fundamentação teórico-metodológica, investem em uma retórica da inovação. Por outro lado, o exame também materializa um olhar responsivo à realidade da educação brasileira, que ainda não incorporou totalmente as „inovações‟ pretendidas e aclamadas nas últimas décadas. Assim, o Enem sofre reestruturações, como o agrupamento de questões segundo quatro áreas do conhecimento, passando também a abordar mais conhecimentos escolarizados, 199 como conceitos, definições e fórmulas. Ao lado de questões relativamente inovadoras é possível encontrar questões bem tradicionais, muito próximas das que são usualmente abordadas em livros didáticos. No que concerne à forma composicional do exame, além da reestruturação ocorrida em 2009, destacamos a pouca variedade na apresentação das questões, quase sempre do tipo “afirmação incompleta”, e a predominância de fragmentos de textos adaptados, revelando uma concepção escolarizada de leitura. Por fim, é possível perceber que além de tematizar competências e habilidades, o Enem visa à transmissão de valores e formação de condutas, conforme evidencia a predileção, nas propostas de redação, por temáticas ideologicamente acentuadas, voltadas para a ação cidadã. 200 5 CONCLUSÕES No início desta dissertação, questionamos se exames em larga escala como o Enem não constituiriam gêneros do discurso em um contexto de redefinição do papel do Estado e reformas educacionais. Ao propor essa questão, tentávamos compreender como esse exame em específico materializava uma ação normativa, baseada no controle, no mérito, na qualificação e classificação de indivíduos e sistemas de ensino. Dois objetivos específicos nortearam esta pesquisa, quais sejam 1. Analisar a dimensão social na qual se constituem exames como o Enem. 2. Analisar a dimensão verbal desse exame, atentando para seus aspectos estilísticocomposicionais. Conforme discutimos principalmente no capítulo 2, os atuais exames em larga escala remontam aos exames escolares, os quais surgem em um contexto de consolidação da sociedade burguesa e de seus ideais. Os exames em larga escala, por sua vez, emergem em um contexto de crise do capitalismo, momento em que são propostas reformas do papel do Estado e reformas educacionais. Como exemplar desse gênero, o Enem procura atuar explicitamente na reforma do ensino médio, sendo, para tanto, revestido de estratégias de consenso – a difusão de ideias sobre a importância de se ensinar e avaliar por competências, a distinção do exame como algo „inovador‟ – e de coerção: considerando o conceito de Estado educador, inserido no conceito de Estado ampliado de Gramsci (2002), percebemos que, para a implantação da avaliação externa da educação, há os mecanismos de coerção aos que não aderirem ao exame, como a participação em programas de financiamento, a exemplo do ProUni. 201 Ao longo do capítulo 3, sobretudo, pudemos demonstrar, por meio da análise de documentos diversos – Fundamentação teórico-metodológica do Enem (BRASIL, 2005), pronunciamento do Ministro da Educação, Notas técnicas etc – que o Enem, enquanto exame em larga escala, é fruto de uma situação sócio-histórico peculiar, caracterizada pela ofensiva neoliberal, que apregoa a educação como condição para o desenvolvimento econômico dos países. Os exames em larga escala, de forma geral, partindo de experimentações prévias e experiências de outros países, atuariam na implantação do modelo público-gerencial, fundamentado, dentre outros, na aferição de metas claras e objetivas (por exemplo: ensinar o que os exames avaliam; aferir os resultados do ensino-aprendizagem). Ao analisar a dimensão social do Enem (primeiro objetivo de pesquisa), pudemos compreender como esse exame se estrutura em um contexto de redefinição do papel do Estado, como reação-resposta às propostas de reformas educacionais para o ensino médio. Defendemos, nesta dissertação, que exames como o Enem constituem gêneros do discurso complexos, vinculados à ação normativa Estatal. Sobre a dimensão verbal do Enem (segundo objetivo de pesquisa), defendemos, principalmente no capítulo 4, que esse exame, ao se constituir como reação-resposta às propostas de reformas curriculares para o ensino médio, assimila o conceito de competências, tentando ultrapassar uma avaliação centrada em conteúdos. Todavia, como não pode existir nada absolutamente inovador, é possível encontrar questões bastante tradicionais no Enem, ainda centradas em fórmulas, definições ou acontecimentos históricos – algo próximo, portanto, das questões encontradas em livros didáticos ou em exames escolares tradicionais que o Enem 202 procura superar. Nesse sentido, os aspectos estilístico-composicionais do Enem constituem-se em um movimento de distanciamento e assimilação do tradicional e do inovador. Ademais, no que concerne às propostas de redação, é possível perceber uma postura conservadora, pautada não na formação de uma cidadania emancipatória, mas de uma „cidadania possível‟, que visa à inserção pacífica no mundo do trabalho. Assim, o Exame tende a sublimar as desigualdades em nome do direito à diferença. Por fim, devemos destacar que, com a crescente adesão de instituições de ensino superior, sobretudo instituições federais de ensino, à utilização do exame como seleção para o ingresso de alunos em seus cursos superiores, o Enem tornase cada vez mais visível em nossa sociedade. Ao que nos parece, contribui de forma decisiva para essa crescente visibilidade as estratégias de consenso/coerção citadas anteriormente. Nesse sentido, o Enem, aos poucos, torna-se uma questão hegemônica. A pesquisa acadêmica tem, então, a finalidade de refletir criticamente sobre aquilo que se naturaliza, que se apresenta como a verdade. Foi a partir do desejo de refletir sobre uma questão cada vez mais hegemônica que esta dissertação tomou forma. Não procuramos, certamente, esgotar essa questão, apenas tecer alguns apontamentos que poderão mover discussões futuras. 203 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO, A. J. Estado, mercado, comunidade e avaliação: esboço para uma rearticulação crítica. Educação e sociedade, Campinas, CEDES, n. 69, p. 139-164, dez./1999. AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org.). BAKHTIN: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 95-114. ARAÚJO, D. L. Efeito retroativo na redação da UFCG. In:________; SILVA, Elizabeth Maria da (orgs.). Redação de vestibular em questão: práticas, conceitos, discursos e efeito retroativo. Campina Grande: Bagagem, 2010, p. 107-150. BAKHTIN, M. Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993 [1920-1924]. ________. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2009 [1929]. ________. Os gêneros do discurso. In:________. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [1953]. p. 279-326. ________. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In:________. Estética da criação verbal. 4. ed.Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1959-1961], p. 307-335. ________. Metodologia das ciências humanas. In:________. Estética da criação verbal. 4. ed.Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [19591961], p. 393-410. BANCO MUNDIAL. O Estado num mundo em transformação: Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1997. Indicadores Selecionados do Desenvolvimento Mundial. Banco Mundial. Estados Unidos da América, 1997. ________. Um Brasil mais justo, sustentável e competitivo: Estratégia de Assistência ao País 2004-2007. Banco Mundial. Estados Unidos da América, 2004. BARRETTO, E. S. de S. A avaliação na educação básica entre dois modelos. Educação e Sociedade, Campinas, CEDES, n. 75, p. 48-66, ago./2001. BAWARSHI, A. S.; REIFF, M. J. Genre: an introduction to history, theory, research and pedagogy. Indiana: The WAC Clearinghouse, 2010. BORBA, P. P. Leitura e interdisciplinaridade no contexto escolar: o exemplo do Enem. 2007. 125 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, 2007. 204 BORGES NETO, J. Ensaios de filosofia da linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. BRAIT, B. Introdução: alguns pilares da arquitetura bakhtiniana. In:________. (org.). BAKHTIN: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 7-10. ________. Estilo. In:________. (org.). BAKHTIN: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 79-102. BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. A Reforma do Estado dos anos 90: Lógica e Mecanismos de Controle. Brasília, DF, 1997 (Cadernos MARE da reforma do estado; v. 1). ________. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília, 1995. ________. Ministério da Educação. Matriz De Referencia do Saeb 1998.Brasília, 1998a. Disponível em: < www.mec.gov.br> Acesso em: 06 Ago. 2011. ________. Portaria MEC N° 438, de 28 de maio de 1998. Institui o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM. Brasília, 1998b. Disponível em: < www.mec.gov.br> Acesso em: 06 Ago. 2011. ________.Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): fundamentação teóricometodológica. Brasília: 2005. ________. Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Brasília, 2009a. ________. Enem: um exame diferente. Brasília, 2009b. ________. Pronunciamento do Ministro da Educação sobre o furto do Enem 2009. Brasília, 2009c. ________. Nota do Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED – sobre a Matriz de Referência do Enem 2009. Brasília, 2009d. ________. Portaria N° 807, de 18 de junho de 2010. Brasília, 2010. Disponível em: < www.mec.gov.br> Acesso em: 06 Ago. 2011. BUNZEN, C. Reapresentação de objetos de ensino em livros didáticos de língua portuguesa: um estudo exploratório. In: SIGNORINI, Inês (org.) Significados da inovação no ensino de língua portuguesa e na formação de professores. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007, p. 79-108. CEPAL-UNESCO. Educación e conocimiento: eje de La transformación con equidad. Santiago do Chile, 1992. ________. Transformación Productiva con Equidad. Santiago, Chile, 1990. 205 COSTA, C. A. Saberes docentes no planejamento e na atuação em sala de aula de um curso preparatório para exames de avaliação nacional. 2009. 162 f. Dissertação (Mestrado em Linguagem e Ensino) – Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, PB, 2009. DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “cultura educacional comum” ou localizando uma “agenda globalmente estruturada para a educação”?. Educação, Sociedade e Culturas, n. 16, p. 133-169, 2001. FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth (org.). BAKHTIN: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 37-60. FERREIRA, L. M. S. Retratos da avaliação: Conflitos, desvirtuamentos e caminhos para a superação. 3. ed. Porto Alegre: Mediação, 2009. FIGUEIREDO, B. de O. Educação e hegemonia: a pedagogia político renovada no atual contexto do capitalismo monopolista. In: Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo, 5., 2011, Florianópolis. Anais... Santa Catarina: UFSC, 2011. p. 1-17. FREITAS, D. N. T. de. A avaliação da educação básica no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. GAMA, Z. J. Avaliação na escola de segundo grau. 2. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997 (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). GHEDIN, E.; FRANCO, M. A. S. Questões de método na construção da pesquisa em educação. São Paulo: Cortez, 2008. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, vol. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Edição e tradução, Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. GRILLO, S. V. de C. Esfera e campo. In: BRAIT, Beth (org.). BAKHTIN: outros conceitos-chave. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 133-160. HAYEK, F. O caminho da servidão. Rio de janeiro: O Globo, 1984 [1944]. HOFFMANN, J. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. Porto Alegre: Educação e realidade, 1993. ________. Avaliação: mito e desafio: uma perspectiva construtivista. Porto Alegre: Mediação, 2010. LUCKESI, C. C. Avaliação da aprendizagem escolar. 9. ed. São Paulo: Cortez, 1999. MAGRONE, E. Gramsci e a educação: a renovação de uma agenda esquecida. Cad. CEDES, Campinas, vol. 26, n. 70, p. 353-372, set./dez. 2006. 206 MARCUSCHI, B. O que nos dizem o SAEB e o ENEM sobre o currículo de língua portuguesa para o ensino médio. In: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia (orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola editorial, 2006, p. 57-82. MELCHIOR, M. C. Avaliação pedagógica: função e necessidade. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. MEHAN, H. Learning lessons: the social organization of the classrom. Cambridge: Harvard University Press, 1979. MILLER, C. R. Genre as Social Action. Genre and the New Rhetoric. Ed. Aviva Freedman and Peter Medway. Bristol: Taylor and Francis, 1994. 23-42. MINHOTO, M. A. P. Da disseminação da cultura de avaliação educacional: estudo sobre a institucionalização do Enem. Poiésis, Tubarão, n. 1, v. 1, p. 67-85, jan./abr. 2008. MOREIRA, H.; CALEFFE, L. G. Classificação da pesquisa. In:________. Metodologia para o professor pesquisador. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008, p. 69-94. NEAVE, G.R. On the cultivation of quality, efficiency and enterprise: an overview of recent trends in higher education in Western Europe, 1986-1988. European Journal of Education, v. 23, n.1/2, 1988. OLIVEIRA, D. A. Política educacional e a re-estruturação do trabalho docente: reflexões sobre o contexto Latino-americano. Educação e Sociedade, v.28, n.99, Campinas maio/ago. 2007. OLIVEIRA, M. R. de; WILSON, V. Linguística e ensino. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2010, p. 235-242. PIAGET, J. A construção do real na criança. Rio de janeiro: Zahar, 1970. ________. O julgamento moral na criança. São Paulo: Mestre Jou, 1977. ________. Para onde vai a educação? Rio de Janeiro: José Olímpio, 1984. ________. O nascimento da inteligência. Rio de janeiro: Ed. Guanabara, 1987. PERONI, V. Política educacional e papel do Estado: no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003. RAMOS, M. N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação?. São Paulo: Cortez, 2001. RIBEIRO, V. M.; MENDES RIBEIRO, V.; GUSMÃO, J. B. Indicadores de qualidade para a mobilização da escola. Cadernos de Pesquisa. V. 35, n. 124, São Paulo. Jan./abr. 2005. 207 ROSA, M. F. E. Direito administrativo. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. RODRIGUES, R. H. A constituição e o funcionamento do gênero jornalístico artigo: cronotopo e dialogismo. 2001. 356 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, 2001. ROGERS, C. Liberdade de aprender em nossa década. Tradução de José Otávio de A. Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDA, C. D. de; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Ano I, n 1, jul./2009, p. 1-15. SARMENTO, D. C. O discurso e a prática da avaliação na escola. Campinas: Pontes; Juiz de Fora, EDUFJF, 1997. SIGNORINI, I. Apresentação. In:________. (org.). Significados da inovação no ensino de língua materna e na formação de professores. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007, p. 7-16. SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009. SOUSA, S. Z. L. Avaliação e gestão da educação básica no Brasil: da competição aos incentivos. In: DOURADO, Luiz Fernandes (org.). Políticas e gestão da educação no Brasil: novos marcos regulatórios. São Paulo: Xamã, 2009, p. 31-45. VERSIEUX, R. E. Avaliação do ensino superior brasileiro: PAIUB, o ENC e o SINAES. 2004. 230 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2004. VOLOSHINOV, V. N. (1926). O discurso na vida e o discurso na arte. Tradução para fins didáticos feita por C. Tezza e Carlos A. Faraco. ZANARDINI, J. B. Ontologia e Avaliação da Educação Básica no Brasil (19902007). 2008. 208 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2008. 208 ANEXOS 209 ANEXO A - Proposta à Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior 210 211 212 213 214 215 216 ANEXO B – Enem: um exame diferente 217 Enem: Um exame diferente25 O Enem é um exame individual, de caráter voluntário, oferecido anualmente aos estudantes que estão concluindo ou que já concluíram o ensino médio em anos anteriores. Seu objetivo principal é possibilitar uma referência para autoavaliação, a partir das competências e habilidades que estruturam o Exame. O modelo de avaliação adotado pelo Enem foi desenvolvido com ênfase na aferição das estruturas mentais com as quais construímos continuamente o conhecimento e não apenas na memória, que, mesmo tendo importância fundamental, não pode ser o único elemento de compreensão do mundo. Diferentemente dos modelos e processos avaliativos tradicionais, a prova do Enem é interdisciplinar e contextualizada. Enquanto os vestibulares promovem uma excessiva valorização da memória e dos conteúdos em si, o Enem coloca o estudante diante de situações-problemas e pede que mais do que saber conceitos, ele saiba aplicá-los. O Enem não mede a capacidade do estudante de assimilar e acumular informações, e sim o incentiva a aprender a pensar, a refletir e a “saber como fazer”. Valoriza, portanto, a autonomia do jovem na hora de fazer escolhas e tomar decisões. Histórico Na sua 1ª edição, em 1998, o Enem contou com um número modesto de 157,2 mil inscritos e de 115,6 mil participantes. Na 4ª edição, em 2001, já alcançava a marca expressiva de 1,6 milhão de inscritos e de 1,2 milhão de participantes. Uma medida importante para democratizar o Enem foi a isenção do pagamento da taxa de inscrição para os alunos da escola pública. O apoio das Secretarias Estaduais de Educação, das escolas de ensino médio e das instituições de ensino superior (IES) foi outro fator decisivo para o sucesso do Exame. A popularização definitiva do Enem veio em 2004, quando o Ministério da Educação instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni) e vinculou a concessão de bolsas em IES privadas à nota obtida no Exame. No ano seguinte, o Enem alcançava a marca histórica de 3 milhões de inscritos e 2,2 milhões de participantes. Em 2006, o Enem estabeleceu novo recorde, com 3,7 milhões de inscritos e 2,8 milhões de participantes. O principal incentivo para que os concluintes e egressos do ensino médio façam o Exame é a possibilidade concreta de carimbar o passaporte de ingresso ao ensino superior. Afinal, a nota obtida no Enem pode significar tanto uma bolsa integral ou parcial do ProUni quanto a conquista de uma vaga em algumas das mais prestigiadas instituições de ensino superior do País, entre elas as universidades públicas mais concorridas. Já são mais de 600 IES cadastradas no Inep para utilizar os resultados do Enem 25 Esse documento encontrava-se disponível no site do MEC/INEP (www.enem.inep.gov.br) até 2009. 218 em seus processos seletivos, seja de forma complementar ou substitutiva. As universidades têm autonomia para organizar seus processos seletivos. Muitas delas já substituíram ou estudam substituir o vestibular pelo Enem. A trajetória de uma década do Exame já merece um destaque na história da educação brasileira, tão marcada por instabilidades administrativas e descontinuidades das políticas públicas. É um caso de sucesso que deve suscitar reflexões e debates. Uma explicação plausível para o êxito dessa iniciativa pode ser encontrada na diferenciação, em voga no discurso público atual, entre „política de Estado‟ e „política de governo‟. À primeira categoria pertenceriam iniciativas que, em razão do amplo consenso quanto à sua relevância e interesse público, teriam continuidade assegurada independentemente de alternâncias de governo. Já a segundo categoria referese a programas que, identificados com a plataforma político-ideológica de determinado partido e/ou administração, estariam fadados à descontinuidade em face de mudanças de governo. Nesta perspectiva, o Enem pode ser visto como um bom exemplo de política de Estado. Afinal, já atravessou duas administrações sem sofrer qualquer solução de continuidade. Além disso, desde a sua primeira aplicação tem havido um esforço permanente para aprimorar a estrutura conceitual e a metodologia de avaliação utilizada. Graças a esse tratamento como política de estado, a legitimidade e credibilidade do Exame também foram fortalecidas ao longo do tempo. Hoje, o Enem é um patrimônio da sociedade brasileira e tem o seu valor reconhecido pela comunidade educacional. Como órgão responsável pelo desenvolvimento e coordenação do Exame, o Inep se empenhou desde o início em conquistar o apoio dos sistemas de ensino, das instituições de ensino superior e da comunidade de especialistas e educadores. Os pressupostos teórico-metodológicos do Enem, fundamentados na LDB e nas diretrizes e parâmetros curriculares nacionais, foram explicitados e divulgados junto à comunidade educacional. A proposta recebeu contribuições de especialistas em avaliação e currículo, pedagogos e profissionais do ensino com larga experiência em sala de aula. O desenvolvimento do Enem, nos últimos dez anos, acompanhou as profundas mudanças legais, organizacionais e curriculares que atingiram todas as etapas e modalidades de educação, da pré-escola à educação superior. Como instrumento educativo, o Enem precisa ser flexível para acompanhar as mudanças. Afinal, a educação é, por natureza, dinâmica e deve ser continuamente interrogada criticamente e reinventada como projeto coletivo e prática social. Ao completar dez anos, o Enem ocupa lugar de destaque na agenda educacional brasileira pela sua contribuição para a reorganização e reforma do currículo do ensino médio, democratização do acesso ao ensino superior e, em última 219 instância, melhoria da qualidade da educação básica. Objetivos do Enem O principal objetivo do Enem é avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para aferir desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania. Desde a sua concepção, porém, o Exame foi pensado também como modalidade alternativa ou complementar aos exames de acesso aos cursos profissionalizantes pós-médio e ao ensino superior. Este objetivo vem sendo atingido um pouco mais a cada ano, graças ao esforço do Ministério da Educação na sensibilização e convencimento das instituições de ensino superior (IES) para o uso dos resultados do Enem como componente dos seus processos seletivos. Muitas IFES já aderiram. Além disso, o Enem tem como meta possibilitar a participação em programas governamentais de acesso ao ensino superior, como o ProUni, por exemplo, que utiliza os resultados do Exame como pré-requisito para a distribuição de bolsas de ensino em instituições privadas de ensino superior. O Enem busca, ainda, oferecer uma referência para auto-avaliação com vistas a auxiliar nas escolhas futuras dos cidadãos, tanto com relação à continuidade dos estudos quanto à sua inclusão no mundo do trabalho. A avaliação pode servir como complemento do currículo para a seleção de emprego.