Historia e memória das professoras das escolas rurais em
Transcrição
Historia e memória das professoras das escolas rurais em
V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 1 HISTÓRIA E MEMÓRIA DAS PROFESSORAS DAS ESCOLAS RURAIS EM UBERLÂNDIA-MG (1936 - 1950) Sandra Cristina Fagundes de Lima - Profª.drª. Universidade Federal de Uberlândia - Brasil. E-mail: [email protected] Em uma época caracterizada pelo predomínio da população vivendo, trabalhando e se instruindo no campo, eram nas escolas rurais que as crianças aprendiam os rudimentos da leitura, do cálculo e da escrita. Realidade que não se circunscrevia apenas ao nosso município, mas que caracterizou a história da educação em todo o país (EDUCAÇÃO, 1982; LEITE, 1999). No entanto, a despeito do papel relevante que desempenharam na escolarização de boa parte da população brasileira, os estabelecimentos rurais de ensino ficaram durante muito tempo relegados ao esquecimento. 1 Não fosse a memória dos sujeitos que viveram no meio rural e freqüentaram as escolas ali instaladas, não fossem os documentos depositados no fundo das estantes de nossos arquivos públicos, as ruínas de casas-escolas existentes em algumas fazendas e, notadamente, não fosse a nossa insistência em explicar o presente e, para tanto, compreender o passado, as histórias dessas escolas permaneceriam aguardando o “toque mágico” do pesquisador para restituir-lhes o colorido, os sons, a vida, enfim, para “se tornarem presença”, como ressalta Kofes: "... aquilo ou aqueles tornados ausentes pelas interpretações incessantemente tecidas sobre o passado e presente, uma vez guardados, arriscam-se se tornarem presença" (KOFES, 2001, p. 188). Ao tentar compreender como se organizou a instrução escolar em nível primário aqui em nosso município durante o século XX, em particular durante a primeira metade deste, deparamos com um número expressivo de escolas rurais, cuja história ainda não tinha se constituído em objeto de pesquisa. Ao iniciar, então, o trabalho de coleta de dados, sistematização de fontes e análise constatamos haver uma profusão de temáticas a ser explorada e, a partir daí, temos tentado construir a história do ensino e das escolas rurais no município de Uberlândia. Até o momento já investigamos os aspectos gerais do funcionamento dessas instituições, tais como, características das edificações, mobiliário existente, relação das escolas com os fazendeiros e com o poder político (LIMA, 2007). Também já analisamos as representações produzidas pelas fotografias acerca desses estabelecimentos de ensino (LIMA, 2006). Em uma outra pesquisa tentamos construir a história da Escola Municipal Rural de Cruzeiro dos Peixotos (LIMA; ROCHA, 2007). 2 Então, depois de ter compreendido parte do movimento de abertura e extinção de escolas, o calendário adotado, assim como alguns dos conteúdos ministrados, fomos à busca das professoras que atuaram no ensino rural no município de Uberlândia, com os objetivos de conhecer a sua formação escolar, apreender os meios que empregaram para o ingresso na docência, perscrutar as condições de trabalho nas quais atuavam, bem como buscar as memórias que produziram do período em questão. Ao tentar construir as histórias e ao 1 Segundo Silveira (2008), o silêncio em torno desta modalidade de escola pode ser explicado pelo afã de modernização que se implantou entre nós no final dos anos de 1940, que identificou o moderno com o urbano e, consequentemente, associou o passado com o atraso e com o mundo rural. 2 Além dessas pesquisas temos nos envolvido com o ensino rural de maneira indireta, por intermédio das orientações de pesquisas de mestrado. Nesse aspecto, concluímos uma orientação em que a aluna investigou a história da Escola Rural da Fazenda Tereza (SILVEIRA, 2008) e, por fim, atualmente orientamos outra dissertação em que a aluna investiga a contribuição da escola rural para a campanha de alfabetização brasileira, ocorrida no período de 1931 a 1945 (RIBEIRO, 2009). V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 2 perquirir as memórias dessas professoras, tema do presente artigo, esperamos produzir mais um capítulo da história do ensino rural em nosso município em conformidade com os ensinamentos de Marc Bloch sobre o objeto da História. Segundo esse historiador francês: Por trás dos grandes vestígios das paisagens sensíveis da paisagem, [os artefatos ou as máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar (BLOCH, 2001, p. 54). Para encontrar, então, alguns dos sujeitos das escolas rurais e atingir os objetivos propostos, entrevistamos quatro professoras que atuaram naquelas instituições no período de 1920 a 1950; consultamos também as fontes impressas compostas pelos jornais, revistas e atas do serviço de inspeção municipal. No que diz respeito às entrevistas, optamos por conversar com as professoras mais idosas e que estivessem em condições de rememorar a sua experiência nas escolas rurais. Assim, as entrevistadas, à época em que foram consultadas, estavam na faixa dos 80 e 90 anos de idade. Para a realização das entrevistas formulamos um esquema básico, do tipo semi-estruturado, contendo questões genéricas. 3 A utilização do esquema semi-estruturado, assim como a proposta de se trabalhar com questões abrangentes, é norteada pela preocupação em possibilitar aos depoentes uma maior liberdade e também uma maior flexibilidade no ato de rememoração. É preciso que eles estejam em condições de resgatar aquilo que lhes foi significativo, que eles possam dialogar com o passado trilhando caminhos que, de alguma forma, marcaram as suas reminiscências. A opção de iniciar a pesquisa dos sujeitos das escolas rurais pelas professoras decorre da compreensão de que tão marginalizadas quanto as instituições de ensino rural permaneceu a história daquelas mulheres que nelas atuaram. Ainda não possuímos dados suficientes que nos autorizem a precisar o percentual de professoras daquelas escolas no período pesquisado, mas pelas fotografias que consultamos (LIMA, 2006), assim como por meio dos diversos documentos que registraram informações sobre o ensino primário, tais como, atas de reuniões escolares, jornais e revistas (LIMA, 2007) podemos assegurar que prevaleciam mulheres na docência do ensino rural e, no entanto, os seus rostos, assim como a sua história ficaram esquecidos. Por isso, reivindicar a importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra as definições de história e seus agentes já estabelecidos como ‘verdadeiros’, ou pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que aconteceu (ou teve importância) no passado (SCOTT, 1992, p. 77). O trabalho então teve início pela busca dessas professoras cujos rostos estamparam muitas fotografias de escolas rurais do município e cujos nomes ficaram registrados em alguns jornais e revistas da cidade e também nas atas de visitas dos inspetores de ensino aqueles estabelecimentos. Inicialmente procuramos compreender qual era a formação dessas professoras e como ingressavam na docência no ensino rural. No que concerne à formação das quatro professoras entrevistadas, Zélia e Orávia cursaram apenas o ensino primário, Guaraciaba concluiu o curso ginasial e a outra, Noêmia, concluiu o curso de magistério. Segundo informação de uma das entrevistadas, para se tornar professora na escola rural era necessário ter cursado o quinto ano do ensino primário, formação que ela mesma possuía quando começou a dar aulas (GUARACIABA). 3 As entrevistas foram realizadas por três ex-orientandas: Angélica P. M. Rocha concluiu a pesquisa de Iniciação Científica em 2006, Tânia C. Silveira defendeu a dissertação de mestrado em 2008 e Cristiane Angélica Ribeiro defendeu a dissertação de mestrado em 2009. Estes três trabalhos constam nas referências. V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 3 Em relação às formas de ingresso das professoras no ensino rural, apenas uma comentou tal fato e relatou ter sido o “acaso” o responsável por tê-la aproximado da profissão, pois ainda não havia planejado a carreira, uma vez que era muito jovem, e nem era qualificada formalmente para tal ofício, embora já possuísse uma relativa experiência em virtude de ter acompanhado o trabalho de sua mãe, que também fora mestra na escola rural. Segundo esta professora, o início de suas atividades no magistério rural se deu no ano de 1926 e teria ocorrido da seguinte maneira: Mamãe tinha uma escola municipal e estava de licença saúde (...) e uma pessoa tinha que substituir (...). [Ela] perguntou se eles aceitavam que eu a substituísse. (...) eu estava com 14 anos. (...) pela minha idade eles achavam pouco, mas eu tinha conhecimento suficiente, porque de vez em quando eu substituía mamãe. Então eu comecei depois do meio do ano em agosto. Lecionei dois anos lá, em Rio das Pedras (GUARACIABA). Era comum o ingresso no ensino rural ser possibilitado em decorrência de parentescos com os professores mais antigos, como é caso relatado pela professora Guaraciaba. Porém o motivo mais freqüente se verificava em função da proximidade com os fazendeiros e/ou os políticos locais. Essa mesma professora comentou que a fazenda na qual iniciou o seu ofício era de propriedade de um tio que insistia no funcionamento da escola para atender aos seus filhos em idade escolar. De acordo com o seu relato, esse tio, Enéas Vasconcelos, além de fazendeiro era também político “muito estimado, muito conceituado” (GUARACIABA). Esses atributos teriam sido suficientes para conseguir uma nomeação para a própria sobrinha. Sendo penoso o deslocamento até as fazendas e precárias as condições de trabalho nas escolas aí instaladas, conforme discutiremos a seguir, as professoras qualificadas, ou seja, aquelas que conseguiam cursar o magistério priorizavam as cidades como lócus de exercício profissional e tentavam primeiro encontrar espaço de trabalho no meio urbano. As demais que só concluíam o curso primário e/ou iniciavam o curso ginasial dirigiam-se para as fazendas. Em ambos os casos, segundo o relato daquela mesma professora citada anteriormente, a proximidade com os políticos locais definia os espaços que cada qual deveria ocupar nas escolas, pois: No município [nas escolas rurais] a maioria era professora leiga, só alguma normalista que não tinha proteção política para entrar no Estado que entrava no município como professora rural. (...) Nós éramos protegidas pela política do início até o fim. Só por indicação de um político que uma professora era nomeada. Eu, por exemplo, fui nomeada por indicação do Adolfo Fonseca que era farmacêutico e político; era compadre da mamãe (GUARACIABA). Essa proximidade dos fazendeiros com a política e com os políticos matizava o funcionamento das escolas rurais no que dizia respeito à seleção de seus docentes, pois, como não se exigia formação específica das professoras para o ingresso no magistério rural, as relações de clientelismo presidiam muitos contratos de trabalho. Por isso, eram freqüentes os casos envolvendo nomeação e demissão de professores no meio rural a despeito de quaisquer cursos de qualificação profissional. Em um artigo publicado em 1936, o jornalista Lycidio Paes ressaltou a precariedade existente nas relações de trabalho daquelas professoras: Pior do que isso [baixos salários] ainda é a dependência moral a chefes políticos, nem sempre orientados pelos princípios de justiça e de eqüidade. O governo nomeia e demite ao sabor das conveniências partidárias dos seus amigos, sem a menor consideração pela competência, pelo esforço, pela capacidade profissional do candidato (PAES, 1936, não paginado). V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 4 Tal situação já fazia parte, inclusive, do anedotário referente aos laços entre política e escola rural, conforme divulgado no jornal Correio de Uberlândia em 1959. Segundo a matéria publicada, a professora rural não poderia ser responsabilizada pela deficiência do ensino, pela dificuldade de aprendizagem dos alunos e tampouco pela precariedade da instituição onde atuava, mesmo que fosse leiga, pois o problema da maioria das escolas rurais partia dos jogos de interesses existentes entre os políticos e alguns fazendeiros. Para reforçar a sua tese, o autor transcreveu a seguinte anedota a respeito do tema: O inspetor chegou sem aviso prévio, entrou na sala de aula e começou a interrogar a meninada (...). ⎯ Você aí nesse canto... Sim, você mesmo. Me diga quem foi que incendiou Roma. (...). ⎯ Não fui eu, não senhor. Juro que não fui! Ai interveio a mestra, com pena do menino, que já estava soluçando. ⎯ O senhor pode acreditar no Pedrinho. É menino muito direito, muito bem comportado. Se está falando que não foi ele, é porque não foi mesmo não. O inspetor voltou para o arraial próximo e procurou o chefe político, dizendo-lhe que era preciso demitir logo a professora, mais do que muito ignorante. ⎯ O que?! Você está é doido. Ela é filha do Zeca Lopes, que sempre foi o meu melhor cabo eleitoral. Se for demitida, perco duzentos votos na certa (ALENCAR, 1959, p.7). Embora o texto tenha uma conotação irônica, ele é ilustrativo dos laços que uniam os políticos aos fazendeiros abastados — pautados pelo jogo de interesses — e dos reflexos desta situação para a escola rural. Reflexos que não resultavam em proveitos para toda a comunidade escolar, visto que retirava desta quaisquer possibilidades de decidir e também de organizar os trabalhos escolares em suas localidades de forma autônoma. Nesse sentido, o clientelismo político atuante no meio educacional, "... subtrai a escola à própria comunidade, nomeando/demitindo seus agentes e controlando a indicação de elementos do sistema educacional para os cargos de maior poder” (AZEVEDO; GOMES, 1984, p. 34). Por isso, o saldo dessa relação era sempre negativo para a maioria dos envolvidos no processo educacional, sendo que seus benefícios só atingiam uma diminuta parcela daqueles envolvidos com a educação no meio rural — e também com a urbana, onde os mesmos nexos se faziam presentes. Em uma época caracterizada pela falta de infra-estrutura nas cidades, visível nas ruas mal pavimentadas, na parca iluminação pública e residencial, nas praças empoeiradas, na ausência de rede de esgotos e inexistência de água tratada, as fazendas não ofereciam condições melhores às professoras que se aventuravam a buscar trabalho nas escolas rurais. Os problemas começavam a despontar mesmo antes do início das atividades, tão logo elas iniciavam a viagem já entravam em contato com a rusticidade do meio que as aguardava, pois o percurso da cidade até o campo era repleto de dificuldades, conforme relatou uma professora: Eu, por exemplo, nunca tinha andado a cavalo. Fui trabalhar a cavalo com o tio Enéas, puxando as rédeas, não sabia andar a cavalo. (...) Atravessei o rio Uberabinha, o rio Grande de canoa puxando meu cavalo pela corda (...) tive um medo terrível. Foi minha primeira aventura (GUARACIABA). As dificuldades vividas por todos os que percorriam esses trajetos já vinham sendo noticiadas. Em 1934, o jornal A Escola Rural publicou uma matéria em que uma professora ressaltava os percalços do trajeto até as fazendas existentes no município. Conforme denunciou a professora em questão: V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 5 Quem vem da cidade, (...) não pode ter boas impressões, sobre a escola rural, o ambiente que a cerca, e o pobre proletário que a dirige. Já antes de chegar, as estradas cheias de acidentes de toda natureza, arrasadas pelas chuvas, mal feitas ou mal conservadas, requerem de quem as percorre, um tanto de espírito heróico e aventureiro. Aqui uma tronqueira de pau, mais adiante uma cerca de arame. Além barrancos que se debruçam sobre abismos. Obstáculos sobre obstáculos (ROMEIRO, 1934, não paginado). Vencer estes obstáculos não significava o fim dos problemas, pois ao chegarem aos seus locais de trabalho, as professoras se deparavam com algumas adversidades características da zona rural. Estas se manifestavam primeiramente nos transtornos advindos da relativa inexistência de meios de transportes. Quando a professora habitava a casa-escola esse empecilho não era sentido, mas quando residia em uma fazenda e a escola situava-se em outra mais afastada, havendo, portanto, necessidade de deslocamentos diários, o trabalho tornava-se mais árduo. Segundo uma de nossas entrevistadas, “eram dois km de distância para chegar à escola, tinha que sair mais cedo” (GUARACIABA). Todo o percurso era feito a pé, trilhado sobre pastos ocupados por gados pouco amistosos e, às vezes, o trajeto percorrido caracterizava–se pelos terrenos acidentados, cuja irregularidade do traçado produzia a impressão de duplicar a distância. No tocante às condições de trabalho oferecidas às professoras rurais, estas não eram muito favoráveis. A instalação física dos estabelecimentos de ensino, por exemplo, caracterizavam-se pela precariedade arquitetônica dos “edifícios” escolares (LIMA, 2007). Na maioria das vezes, não havia uma escola propriamente dita, ou seja, uma edificação construída para tal fim; dessa forma, o que denominamos “escolas rurais”, em nosso município não passavam de salas improvisadas. Algumas vezes as aulas aconteciam em um cômodo contíguo à sede da fazenda, nesse caso, o proprietário rural reservava um dos espaços de sua própria casa e o destinava para as atividades escolares. Em outras fazendas as aulas aconteciam em ranchos construídos de barro e cobertos com palha de coqueiros. Havia também escolas instaladas no paiol, que uma vez desativado servia como sala de aula. A esse respeito, uma das professoras entrevistadas informou o seguinte: “ela [a escola] caiu, eu fui lecionar num paiol no fundo da fazenda de outros fazendeiros” (GUARACIABA). Deparamonos também com registro de escolas que funcionavam nas dependências de igrejas, como esta relatada por outra professora entrevistada: No começo a escola funcionava num cômodo da igreja, que tinha lá, era um dos poucos lugares que tinha uma luz boa, não era lamparina, mas às vezes ficava difícil de usar o banheiro, porque a outra parte da Igreja não estava aberta, ai os meninos tinham que ir para o mato fazer as necessidades. Mas também não podia ir sozinho, achava perigoso. Agente definia um horário de ir pro banheiro, de beber água. Beber água já era mais fácil, porque tinha um filtro que ficava na sala. As coisas era muito difícil sabe, eu fui a primeira professora que trabalhei lá, comecei em 1932 na escola (ORÁVIA). Além do edifício, o mobiliário era deficiente e muitas vezes o professor tinha que improvisar, pois faltavam mesas, armários e carteiras. Na Escola Pública Municipal Conceição de Cima, por exemplo, os alunos não compareciam às aulas, ano de 1956, em virtude da falta desse móvel, conforme o registro em ata: “Mais três carteiras duplas completarão o número para os alunos restantes que não freqüentam a escola por falta de lugar nas carteiras” (UBERLÂNDIA, 1956, p. 5). Em outras escolas do município, cujos nomes não foram divulgados pelo jornal, as carteiras também se constituíam artigo de luxo. O texto V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 6 denunciando o estado de miséria que assolava alguns dos estabelecimentos de ensino mantidos pelo município evidencia a carência desse mobiliário escolar: Outra escola que tem 40 alunos dispõe de 10 carteiras. Cada aluno se defende como pode, como em circo de cavalinho super lotado em dia de espetáculo. (...) Escolas existem onde os alunos escrevem no chão, assentam-se no chão. E felizes se dão quando encontram caixotes de querosene para bancos escolares (ASSIS, 1959, p. 4). Igualmente precários eram os recursos didáticos colocados à disposição das professoras. Uma das entrevistadas relatou essa situação vivida no tempo em que lecionava na Escola Rural de Cruzeiro dos Peixotos: “Eu escrevia todo o conteúdo no quadro, o quadro era preto mesmo sabe, eu passava um traço e dividia cada parte para uma série (...).” (ORÁVIA). Era necessária muita criatividade para lidar com a carência de materiais destinados pelo poder público municipal ao desenvolvimento das tarefas docentes, assim como era preciso encontrar soluções para a falta de objetos escolares dos próprios alunos, pois, conforme lembrou Orávia: “Hoje os alunos têm de tudo (...), eles tem muita coisa para poder ser estimulado para estudar. Na minha época era só o giz e o quadro, não tinha os recursos que hoje têm na escola.” Tendo a disposição apenas o giz e o quadro, era preciso sobretudo criatividade para motivar os alunos a permanecer estudando. Essa mesma professora narrou a estratégia que empregava para lograr êxito no trabalho com as crianças das fazendas: Eu fazia o jogo da cabeça e do rabo com eles, mas não era punitivo não. (...) Eu desenhava um cavalo e tomava a tabuada, ou perguntava o nome dos rios, presidentes, e o aluno tinha que saber, e eles estudavam muito para acertar tudo. Porque ninguém queria ser o rabo, se acertassem, seria a cabeça, se errassem, seria o rabo. Eles ficavam com vergonha de ser o rabo né? Ninguém gostava de perder. (...) Não tinha sempre jogo não, isso era só um estimulo para eles estudarem. E para a aula não ficar tão cansativa, eles andavam muito para ir na (sic) escola, os filhos dos lavradores, já chegavam cansados (ORÁVIA). A criatividade servia não apenas para motivar o aluno, mas se constituía em ingrediente fundamental para resolver os problemas advindos das salas multisseriadas e unidocentes regidas por professoras leigas. Realidade de quase todas as escolas rurais em funcionamento no período em questão e ressaltadas pelas professoras em suas entrevistas: Ah, era tudo misturado, tinha primário, que hoje é 1ª série, 2ª, até a 4ª série. Eu dividia todas as series, colocava o grupo da primeira serie sentado numa mesa, o da segunda numa outra, tudo numa mesma fila, antes a mesa era grandona, parecia aquela de refeitório que tem nas escolas de hoje, mas eram poucas, as vezes os meninos sentavam ate no chão, depois de algum tempo que teve mesa e cadeira na escola. E quando tinha muito aluno de uma série só, eu dividia 1ª “A”, 1ª ”B”, e assim por diante. Eu escrevia todo o conteúdo no quadro, o quadro era preto mesmo sabe, eu passava um traço e dividia, cada parte para uma série, e eu dava conta de passar os conteúdos que tinha que passar. Hoje em dia ta tudo mais fácil, né? (ORÁVIA) (...) tinham quatro anos diferentes, 1º ano, 2º ano, 3º ano e 4º ano. Todos na mesma sala, aí a gente dividia o tempo, assim dava dever para o 1º ano e mandava o 4º ano fazer outra coisa. Era tudo assim, muito difícil controlar os quatro períodos, os quatro anos em um período só, mas não tinha jeito de V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 7 separar porque, por exemplo, se vinha alunos do 1º ano e tinha o irmão do 4º ano, eles vinham a cavalo, então era difícil você separar (ZÉLIA). A despeito dos empecilhos que subjaziam ao trabalho docente no universo rural, visíveis na precariedade de transporte, na rusticidade das instalações das escolas, na carência de mobiliário e de recursos didáticos, assim como nos obstáculos a serem superados acerca das salas multisseriadas e da ausência de qualificação profissional, ao se recordarem dos anos em que passaram no magistério, as quatro professoras entrevistadas ressaltaram as boas lembranças que guardam do período em questão. Interessante observar que nestas boas recordações não estão presentes os salários, apenas uma o mencionou: Era muito bom, hoje eu sei que não ganhava bem, mas só pelo fato de ter uma casa para morar, e ter um marido que deixava trabalhar, meu marido era muito bom pra mim, sabe. (...). Tinha mais regalias do que hoje, hoje com tudo caro, o professor não consegue nem ter uma vida estável né? (ORÁVIA). Ao fazerem um balanço do período em que estiveram no ensino rural, algumas professoras enfatizaram, como fazendo parte das boas lembranças, a sensação de prazer ao concluir o trabalho de alfabetização, os passeios no campo ou, simplesmente, o fato de ter um trabalho. Além dessas, três entrevistadas apresentaram como pontos positivos dois aspectos, um deles relacionado aos alunos, mais precisamente ao bom comportamento deles. Nesse sentido, destacaram a cordialidade, a obediência e até mesmo a humildade das crianças como elementos que contribuíam ao desenvolvimento de suas atividades docentes. O outro aspecto destacado diz respeito ao prestígio de que gozavam nas fazendas onde trabalhavam. Ao se instalarem em um meio habitado por homens e mulheres que nunca, ou quase nunca, tinham freqüentado a escola, essas professoras eram admiradas e também muito respeitadas. Esses dois aspectos compuseram as suas memórias e lhes forneceram os instrumentos para a construção de interpretações edificantes sobre o passado. Eu acho que apesar de todas as dificuldades, era positivo, porque os alunos saíam alfabetizados, saíam com um conhecimento pequeno mas bem melhor do que eles tinham. A gente, de vez em quando, uma vez duas vezes no semestre, fazia um piquenique, ia para cachoeira. Tinha um relacionamento até bom... (ZÉLIA). (...) as crianças humildes são muito obedientes. (...) Muito dóceis. [O relacionamento] Muito cordial (...) amigos da gente (NOÊMIA). Na minha época tinha algumas regalias, a comunidade toda te via como uma autoridade no conhecimento, porque você era professora (ORÁVIA). [O comportamento dos alunos era] muito bom. (...) [Os alunos] eram muito obedientes. Tomavam benção da gente, eram muito humildes (GUARACIABA). Avaliamos que ao eleger do passado esses aspectos e construírem as suas memórias, as nossas entrevistadas partiram de uma realidade na qual se inserem no presente, não mais como professoras, mas, sim, como pessoas que ouvem relatos da escola “moderna” como a antítese daquela que conheceram. Os alunos já não obedecem e muitos não são cordiais; a aula transcorre sem que se seja possível dedicar-se às questões voltadas para o conteúdo, pois boa parte do tempo é consumida em tentativas, às vezes frustradas, de estabelecer um pouco de ordem no caos das salas lotadas. V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 8 O mesmo se verifica em relação ao destaque que algumas conferiram à notoriedade advinda com o exercício da docência. Sabemos que enquanto atuavam no ensino rural, elas gozaram do prestígio que a escola conferia aos seus professores (especialmente naquele meio), pois se vivia então o auge do “entusiasmo” pela educação (NAGLE, 2001). Nesse contexto, a escola despontava como panacéia para sanar diversos problemas, que iam desde a marginalidade na qual se encontrava mergulhada a população analfabeta, autora de condutas repreensíveis, até os percalços do débil desenvolvimento econômico do país, fruto também da carência de escolarização dos trabalhadores despreparados. No entanto, o que passou a representar esta escola em meio à decadência da educação escolar pública, desencadeada a partir do final da década de 1970 e 1980 e aprofundada nos anos subseqüentes, se não desprestígio, desqualificação e obsolescência? Em meio à desintegração daquele modelo de escola e às dúvidas em relação ao poder que supostamente a educação teria de reabilitar a sociedade esvaía-se o prestígio outrora desfrutado por aquelas professoras. Embora tenhamos analisado o resultado das entrevistas conferindo ênfase aos pontos em comuns presentes nas falas das professoras, não estamos, com isso, pretendendo sugerir a possibilidade de uma história única, que se faria a partir das memórias singulares ou de uma verdade universal. Ao contrário, embora as professoras com as quais tivemos oportunidade de conversar tenham vivenciado algumas situações similares e características da docência em escolas rurais, cada uma delas experimentou momentos particulares, respondeu aos desafios encontrados no cotidiano das fazendas e, hoje, ao se recordarem daqueles anos, elas compõem as suas memórias com os elementos que selecionaram do passado imbricado às muitas experiências do presente. Além desse aspecto, cada uma colore essas recordações com as “cores” e as “tintas” que lhes são disponíveis. Há também momentos em que parecem preferir o silêncio, e nessas ocasiões, conforme ressaltou Portelli, “Os silêncios (...) têm tanta importância quanto as palavras, em todas as formas de comunicação” (1997, p. 13). Assim, por exemplo, ao discutirem como ingressaram no ensino rural apenas uma das entrevistadas ressaltou a intervenção direta dos políticos na definição dos professores que atuariam nas escolas municipais, sem, contudo, criticar a questão, conforme discutimos anteriormente. Um outro exemplo situa-se na relação estabelecida entre o exercício do magistério e maternidade, também presente na fala de apenas uma professora: “A professora era a segunda mãe, era médica, farmacêutica, enfermeira, conselheira, madrinha de casamento, de batismo” (GUARACIABA). A quais fatores estas lembranças estariam relacionadas? E as demais que não comentaram esses fatos, será que silenciaram por não se recordarem ou, simplesmente, porque não conferiam importância a essas questões? Se aceitarmos o pressuposto de que a memória “(...) constrói o real, muito mais do que o resgata” (SEIXAS, 2001, p. 51), estas são perguntas relevantes para se compreender os deslocamentos existentes na história do ensino rural, notadamente na história das professoras que atuaram naquele ensino. Mas, no momento ainda não temos condições de respondê-las. Esperamos, no entanto, que o desenvolvimento de nossas pesquisas possibilite ampliar a análise e encontrar respostas a estas e outras questões advindas da temática acerca da história das professoras das escolas rurais. ENTREVISTAS GUARACIABA Oliveira: entrevista [set. 2008]. Entrevistador: Tânia Cristina da Silveira. Uberlândia, 2008. 1 fita cassete (47 min e 16 seg.), estéreo. NOÊMIA Ribeiro Marquez: entrevista [out. 2006]. Entrevistador: Tânia Cristina da Silveira. Uberlândia, 2006. 1 fita cassete (35 min), estéreo. ORÁVIA Gomes: entrevista [ago. 2006]. Entrevistador: Angélica Pinho Martins Rocha. Uberlândia, 2006. 1 fita cassete (37 min), estéreo. V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 9 ZÉLIA de Sá Ribeiro: entrevista [jul. 2007]. Entrevistador: Tânia Cristina da Silveira. Uberlândia, 2007. 1 fita cassete (30 min), estéreo. REFERÊNCIAS ASSIS, Ruth de (1959). Muito problema difícil. “Correio de Uberlândia”, Uberlândia, p. 4, 12 maio. AZEVEDO, Ederlinda Pimenta de; GOMES, Nilcéia Moraleida (1984). A instituição escolar na área rural em Minas Gerais: elementos para se pensar uma proposta de escola. “Cadernos CEDES”, São Paulo: Cortez, n. 11, p. 31-41. BLOCH. Marc (2001). “Apologia da história”: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar. EDUCAÇÃO Rural (1982). “Em Aberto”. INEP: Brasília, n. 9, v.1, set. KOFES, Suely (2001). “Uma trajetória, em narrativas”. Campinas: Mercado de Letras. LEITE, Sérgio Celani (1999). “Escola rural: urbanização e políticas educacionais”. São Paulo: Cortez. LIMA, Sandra Cristina Fagundes de (2007). Cultura escolar e história do ensino rural em Uberlândia (1933 – 1959). In: “VIII CONGRESO Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana”: contactos, cruces e luchas em la Historia de la Educación Latinoamericana. Buenos Aires, CDROON, p. 1-25. ______ (2006). As fotografias como fonte para a história das escolas rurais em Uberlândia (1933-1959). “Cadernos de História da Educação” (Uberlândia), v. 5, p. 55-69. LIMA, Sandra C. F. de; ROCHA, Angélica P. M. (2007). História da Escola Rural de Cruzeiro dos Peixotos (E.R.C.P) nas Fotografias de Jerônimo Arantes (1939-1959). “InterAÇÕES” - Cultura e Comunidade. Uberlândia: Faculdade Católica, v. 2, p. 155-172. NAGLE, Jorge (2001). “Educação e sociedade”: na primeira República. Rio de Janeiro: DP&A. PAES, L. (1936). Em torno de um libelo. “Diário de Uberlândia”, Uberlândia, não paginado, 29 maio. PORTELLI, Alessandro (1997). Tentando aprender um pouquinho – Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Recompondo a memória. “Projeto História” – Ética e História oral. São Paulo, n. 15, abr., p. 13. RIBEIRO, Cristiane Angélica (2009). “Escola rural e alfabetização em Uberlândia”, 1936 a 1946. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Uberlândia ROMEIRO, Orávia (1934). O professor rural. “A Escola Rural”, Uberlândia, não paginado, 15 jul. SEIXAS, Jacy (2001). Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. “Memória e (res) sentimento”: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp, p. 37-58. SILVEIRA, Tânia Cristina da (2008). “História da Escola Rural Santa Tereza” (Uberlândia: 1934 a 1953). 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Uberlândia. SILVEIRA, Tânia C.; INÁCIO Fº., Geraldo (2006). Atas do poder legislativo em Uberabinha 1892-1915: um olhar sobre o ensino rural. “Revista Horizonte Científico”, Uberlândia, ed. 6, v.1. SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.) “A Escrita da História”: novas perspectivas. 2 ed. São Paulo: UNESP, 1992, p. 63-95. UBERLÂNDIA (1956). Prefeitura Municipal. “Ata do termo de visita realizada no dia 25 maio 1956”. Uberlândia. Livro 95, p. 5. V CONGRESSO DE ENSINO E PESQUISA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS 10