As transições em Cuba e as Forças Armadas Revolucionárias (FAR
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As transições em Cuba e as Forças Armadas Revolucionárias (FAR
INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br As transições em Cuba e as Forças Armadas Revolucionárias (FAR): a emergência de um ator político e econômico Marcos Antonio da Silva1 Resumo O presente trabalho discute o papel das Forças Armadas Revolucionárias Cubanas (FAR), desde a emergência do processo revolucionário até os dias atuais. Para tanto, procura demonstrar que, apesar de seguir um padrão característico dos países latino-americanos de presença dos militares na política, é possível observar certa especificidade. Tal especificidade refere-se ao perfil popular de tal força e, principalmente, ao papel histórico recente que a relaciona aos anseios nacionais e revolucionários e, principalmente, a atuação recente em que se destaca uma atuação empresarial que contribuiu para a recuperação econômica do país e sua reinserção internacional. Desta forma, as FAR tornaram-se um ator fundamental nos desdobramentos políticos do país. Palavras-Chaves: Cuba, FAR, Recuperação Econômica. Abstract This paper discusses the role of the Cuban Revolutionary Armed Forces (FAR), since the emergence of the revolutionary process to the present day. To this end, it seeks to demonstrate that, despite following a characteristic pattern of Latin American military presence in politics, it is possible to observe certain specificity. Such specificity refers to the popular profile of such force, and especially the recent historical role that relates to national aspirations and revolutionary, and especially in the recent performance that highlights a business activity that contributed to the country's economic recovery and their international reintegration. Thus, the FAR have become a key player in the political developments of the country. Keywords: Cuba, FAR, Economic Recovery. Professor de Ciência Política do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Doutor em Integração da América Latina (PROLAM/USP) e membro do Laboratório Interdisciplinar de Estudos sobre América Latina (LIAL/UFGD). Recebido para publicação em 21/02/2016. Aceito para publicação em 30/03/2016. 1 132 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br Introdução2 N a história da América Latina, os militares tiveram uma presença constante, com maior ou menor intensidade, desde o processo de independência. No século XIX, tal presença determinou certa militarização da política, em determinados países, de acordo com o desenvolvimento das lutas e dos processos de independência, geralmente associadas a ascensão de caudilhos, embora estes nem sempre fossem militares (BETHELL, 2001). No século XX, a presença dos militares se manteve e, em muitos casos, foi impulsionada pelo contexto internacional (guerra fria) e a aplicação das doutrinas de segurança nacional, típicas da segunda metade do século mencionado (ROUQUIÉ, 1984, 1991; FICO, 2001). Em Cuba, a presença militar também se fez presente ao longo de sua história. A independência, embora tardia, manteve tal presença, acentuada pela tutela americana. Desde o início do século, mas de forma mais acentuada, nos anos 30 com a figura destacada de F. Batista que não demoraria a instaurar um governo autoritário. Tal governo enfrentou a oposição de inúmeros grupos, entre eles, um grupo liderado por Fidel Castro que, após o ataque fracassado ao quartel de Moncada, sofrerá a prisão e exílio para retomar a luta em 1956 e iniciar uma luta de guerrilhas que conduziria tais lideranças ao poder (SADER, 2001). Após a vitória da Revolução Cubana (1959), o exército do país passou por um processo de reestruturação, em grande medida comandado por figuras como Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Raul Castro que lhe confiaram um perfil popular e revolucionário. Desta forma, tal organização passou a atuar conforme os objetivos, internos e externos, da liderança revolucionária. Apesar de uma atuação condicionada pelo contexto da guerra-fria (e a necessária ajuda soviética) o exército cubano atuou treinando organizações revolucionárias ou agindo diretamente em importantes conflitos na América Latina (Nicarágua e Granada, entre outros) e na África (Angola e Moçambique, entre outros), tendo um papel importante nos processos revolucionários dos continentes mencionados, nos processos de descolonização e na derrota da expansão do regime do Apartheid sul-africano. Desta forma, como apontam inúmeros estudiosos, tornou-se uma das forças mais bem treinadas e profissionais da região. No entanto, desde a derrocada do bloco soviético, Cuba enfrentou uma grave crise econômica (o Período Especial em tempos de paz) e o papel das forças armadas cubanas modificou-se, adaptando ao processo de reestruturação econômica e militar do país, adquirindo um novo perfil, como este trabalho procura demonstrar. Sendo assim, as Forças Armadas Revolucionárias Cubanas (FAR) adquiriram um novo papel, como resultado da estratégia cubana aos novos (e desafiantes) tempos: internamente, as FAR tornaram-se fundamental para a produção de alimentos e outros recursos necessários para sua própria sobrevivência e, principalmente, na gestão de um amplo conglomerado de empresas ligadas ao turismo e outros setores dinâmicos que se tornou uma das principais fontes de recursos do país, contribuindo para a recuperação econômica da ilha; bem como pela ascensão de lideranças militares em cargos importantes da administração pública do país. Externamente, houve um repatriamento O presente texto é parte da apresentação denominada “As Forças Armadas Revolucionárias Cubanas (FAR) e o mundo pós guerra-fria: um caso excepcional?” no VI SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADOS AMERICANOS (SIEA) realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 2 133 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br das inúmeras tropas, o envolvimento direto nos conflitos foi substituído por uma postura de mediação e pela assessoria pontual a governos mais próximos. Desta forma, inicia-se um processo de transição econômica no país, que se estende até hoje, impulsionada inicialmente pela necessidade de recuperação econômica e posteriormente pela “atualização do modelo”, como proclama sua liderança, já sob Raul Castro que tem adotado uma série de medidas para impulsionar a economia do país. Além disto, ocorre, com a saída de Fidel Castro do poder, o início de uma transição política, sui generis, caracterizada pela transferência de poder as novas gerações e uma redefinição das instituições políticas e da relação entre Estado e sociedade civil (ALZUGARAY TRETO, 2007; GOTT, 2006; MESA-LAGO, 2012). Em ambas, as FAR vem desempenhando um papel fundamental. Sendo assim, o presente trabalho procura analisar a inserção das FAR em tais mudanças e discutir o papel contemporâneo das FAR, considerando as implicações políticas e econômicas de sua atuação. Para tanto está estruturado da seguinte forma. A primeira seção realiza um balanço da atuação das FAR, desde a vitória revolucionária até o início dos anos 90. Em seguida, discute os impactos e as mudanças contemporâneas, procurando analisar os aspectos mencionados acima. Finalmente, desenvolve algumas conclusões, que podem servir como base para novos trabalhos, demonstrando uma mudança de papel diante dos novos desafios que o país enfrenta. As Forças Armadas Revolucionárias Cubanas (FAR): defesa e promoção da Revolução Desde o início, o governo cubano procurou formular uma política interna e externa que pudesse defender os seus interesses. Em relação à primeira, tratava-se de implementar um conjunto de transformações, em direção ao socialismo, que exigia a criação de novas práticas e instituições consonantes aos objetivos almejados. Desta forma, desenvolveu-se um processo de reestruturação das Forças Armadas, tendo como referência o Exército Rebelde, que adquiriram um perfil popular e revolucionário. Sendo assim, as FAR passaram a ter como objetivo fundamental a defesa da Revolução (e suas conquistas) e, pouco a pouco, uma presença internacional intensa. Deve-se destacar que as FAR caberiam à defesa e a ação militar, enquanto que ao Ministério do Interior coube a atuação em inteligência. No que se refere à política externa, sua compreensão é resultado da análise de dois eixos fundamentais: de um lado, era fruto da dinâmica entre revolução e política formal; de outro, da dinâmica entre isolamento e integração. Neste sentido, deve-se destacar, principalmente nos anos 60 e 70, o compromisso da liderança cubana em apoiar ou fomentar revoluções para a emergência de regimes favoráveis à sua causa e para diminuir a pressão do governo norte-americano sobre a revolução cubana. Esta postura, mesmo que às vezes tenha se constituído numa política informal e de organismos não estatais (o serviço secreto, organizações de solidariedade, entre outros), foi executada pelas lideranças 134 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br que procuraram influenciar a onda revolucionária que atingiu a América Latina, destacadamente, mas também a África ao longo do período3. Tratava-se de projetar o exemplo e as possibilidades de mudanças profundas na estrutura socioeconômica que Cuba implementava e, no limite, construir uma rede que pudesse, na versão oficial, combater o imperialismo americano nestas regiões. Tal ação foi predominante nos primeiros anos da revolução e sua oficialização encontra-se nas declarações de Havana e na constituição da OSPAAL (Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina) e da OLAS (Organização de Latino-Americana de Solidariedade) (SADER, 2001). A principal prioridade desta política externa era o desenvolvimento de recursos econômicos, políticos e ideológicos, que pudessem garantir a sobrevivência da revolução e do regime. Para isto, o país desenvolveu uma política global e ativista. Isto significa dizer que formalmente o país procurou ampliar seus laços diplomáticos e se inserir em organismos multilaterais, procurando tornar-se um ator global, apesar dos limites impostos pela sua condição de uma ilha caribenha, pelas dificuldades econômicas e pelo conflito com uma superpotência e a relação dependente com a outra. Tal revolução possuía uma marca terceiro-mundista, que poderia angariar apoio pois, como afirma Gleijeses: Los lideres cubanos estaban convencidos de que su pais tenia una empatia especial con el Tercero Mundo- más allá de las fronteras de América Latina- y un papel especial que desempeñar en su nombre. Los soviéticos y sus aliados de Europa oriental eran blancos y, desde una perspectiva tercermundista, ricos; los chinos padecían del orgullo de gran potencia y no podian adaptarse a las culturas africanas y latinoamericanas. En cambio, Cuba era mestiza, pobre, estaba amenazada por un enemigo poderoso y culturalmente era latinoamericana y africana. Por tanto, era un híbrido especial: un país socialista con una sensibilidad tercermundista (GLEIJESES, 2003, p. 113). Os documentos básicos para compreensão de tal política são: a I e a II Declaração de Havana, que retrata em grande medida a atuação da política externa cubana nos anos 60; e os documentos referentes ao período da institucionalização em que se destaca a Constituição de 76 e as resoluções referentes à política internacional do I e II Congresso do PCC. Condizente com o contexto de radicalização do período, a I Declaração de Havana foi uma resposta à condenação da interferência de outras potências (leia-se URSS) nas questões americanas4, tendo como consequência o desenvolvimento de um clima favorável para que os Como observa Hobsbawn: “Nenhuma revolução poderia ter sido mais bem projetada para atrair a esquerda do hemisfério ocidental e dos países desenvolvidos, no fim de uma década de conservadorismo global; ou para dar à estratégia da guerrilha melhor publicidade. A revolução cubana era tudo: romance, heroísmo nas montanhas, exlíderes estudantis com a desprendida generosidade de sua juventude- os mais velhos mal tinham passado dos trinta-, um povo exultante, num paraíso turístico tropical pulsando com os ritmos da rumba. E o que era mais: podia ser saudada por toda a esquerda revolucionária” (HOBSBAWN, 1995, p. 427). 4 O único país que votou contra foi o México. A delegação cubana se retirou antes da votação e em sua despedida Roa afirmou: “La razón fundamental que nos mueve a ello es que, no obstante, todas las declaraciones y 3 135 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br EUA pudessem adotar medidas de embargo econômico e comercial contra o país na VII Reunião de Consulta dos ministros de Relações Exteriores, realizada na Costa Rica em 1960, agudizando o conflito no interior do sistema americano e contribuindo para a posterior expulsão de Cuba da entidade. A resposta do governo cubano foi a I Declaração de Havana em que Fidel Castro critica o documento e os seus signatários, rechaçando que o apoio soviético e chinês pudesse por em perigo a paz e a segurança no Hemisfério. Neste sentido, Fidel afirmava que “el único culpable de que esta revolución esté teniendo lugar en Cuba es el imperialismo yankee” (Citado por BANDEIRA, 1998, p. 243). Em seguida, adotando o tom plebiscitário de muitas decisões daquele período, o líder cubano assinala em oitos breves capítulos as críticas à decisão da OEA, propondo as novas posturas da política cubana, interna e externa, e solicita a aprovação dos presentes5. Sendo assim, a tal declaração procurava criticar e denunciar a interferência norte-americana no continente, apontando que tal ação, além de favorecer certos setores criava as condições para os problemas econômicos e sociais que os países viviam e, finalmente, procurava demonstrar a atitude firme, e radical, da atuação cubana em prol de mudanças nesta estrutura afirmando que “aqui está hoy Cuba para ratificar, ante América Latina y ante el mundo, como un compromisso histórico, su lema irrenunciable: Patria o Muerte!!” (GARCIA LUIZ, 2000, p.52). Desta forma, o documento assinala, como aponta Bandeira (1998, p. 244), o aumento do compromisso da URSS com os rumos da revolução, inserida no conflito Leste-Oeste, mas acima de tudo, a sua radicalização e a intensificação do apoio a movimentos revolucionários, apelando para os povos da América Latina contra os seus governantes e contrapondo ao “hipócrita pan-americanismo” o latinoamericanismo de José Martí e Benito Juárez. A II Declaração de Havana surgiu na esteira da expulsão de Cuba da OEA, em 1962, lançada num ato público que contou com a participação de milhares de cubanos e de várias personalidades de outros países6 (GARCIA LUIZ, 2000; BANDEIRA, 1998). Neste texto, delineiase de forma explícita o princípio básico que orientou a política externa do país nesta década. Trata-se de um apelo exaltado, vigoroso e radical à revolução, em que Fidel Castro afirma que “El deber de todo revolucionário és hacer la revolución. Se sabe que en América Latina y em el mundo la revolución vencerá, pero no es própio de revolucionários sentarse em la puerta de su casa para ver pasar el cadáver del imperialismo” (GARCIA LUIZ, 2000, p.91). O documento também fornecia os elementos que possibilitaram a estratégia vitoriosa adotada pela revolução cubana e incitava a revolução armada; em suma, tratava-se de declarar o apoio inequívoco, e para alguns, voluntarista, do governo cubano com os projetos de ruptura revolucionária no continente, fornecendo quando possível apoio material, distanciando-se da postura de uma postulaciones que aqui se han hecho, en el sentido de que Cuba podia tener em el seno de la OEA, a la cual pertenece, protección y apoyo contra las agresiones de otro Estado americano, las denuncias presentadas por mi delegación no han tenido aqui eco, resonancia ni acogida alguna. Conmigo se va mi pueblo, y con el todos los pueblos de América Latina!” (GARCIA LUIZ, 2000, p. 47). 5 Tal declaração foi promulgada na Praça da Revolução num ato com mais de um milhão de pessoas e finalizava da seguinte forma: “la asemblea general nacional del pueblo de Cuba resuelve: que esta Declaración sea conocida con el nombre de “Declaración de la Habana” (GARCIA, 2000, p. 52). 6 Entre eles, pela importância que tiveram na onda revolucionária posterior ou na condução de governos simpáticos a causa cubana, pode-se destacar a presença de Lázaro Cárdenas, Salvador Allende, Francisco Julião e Viviam Trias (BANDEIRA, 1998, p. 373). 136 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br parte da esquerda do continente, o que acabou contribuindo para o reforço da aura revolucionária do país, com seus atrativos e limites7. A Declaração de Política Internacional do I Congresso do PCC8 e a Constituição de Cuba de 1976 afirmaram os princípios que, retomando as raízes históricas do internacionalismo cubano, demonstraram a consolidação e a institucionalização do processo socialista. Dentre os aspectos que nos fornecem uma visão dos princípios da política externa cubana o artigo 12 da Constituição é fundamental, pois aponta: Artículo 12. La República de Cuba hace suyos los princípios del internacionalismo proletário y de la solidaridad combativa de los pueblos, y a- condena al imperialismo, promotor y sósten de todas las manifestaciones fascitas, colonialistas, neocolonialistas y racistas (...); b- condena la intervención imperialista, directa o indirecta, en los assuntos internos o externos de cualquier Estado (...); c- reconoce la legitimidad de las guerras de liberación nacional, así como la resistência armada a la agresión y a la conquista, y considera su derecho y su deber internacionalista ayudar al agredido y a los pueblos que luchan por liberación; (...) e- trabaja por la paz digna y duradera, asentada en el respecto a la independencia y soberania de los pueblos y al derecho de éstos a la autodeterminación; (...) g- aspira a integrasrse con los países de América Latina y del Caribe, liberados de dominaciones externas y opresiones internas, en una gran comunidad de pueblos hermanos por la tradición histórica y la lucha común contra el imperialismo (...) de progreso nacional y social; i- mantiene relaciones amistosas con los países que, teniendo su régimen político, social y econômico diferente, respetan su soberania, observan las normas de convivência entre los Estados y adoptan uma actitud recíproca con nuestro país; j- determina sua afiliación a organismos internacionales y su participación en conferencias y reuniones de este caráter, teniendo en cuenta los intereses de la paz y el socialismo, de la liberación de los pueblos, (...)”(CONSTITUICIÓN DE LA REPÚBLICA de CUBA, 1976; citado por PCUS, 1982, p 37-39). Neste documento, percebe-se claramente a condenação do imperialismo e das intervenções em diferentes partes do mundo ao reafirmar uma série de princípios que deveriam orientar a política externa do país: a afirmação dos princípios do internacionalismo proletário e socialista, No caso brasileiro tal apoio significou treinamento, armas, recursos materiais e projetos de instalação de guerrilhas. Apesar de pouco estudado este fenômeno, duas análises se destacam: a de Denise Rollemberg, baseado na história oral e documental, publicado com o nome: “O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro”, Ed. Mauad, 2001; e o clássico de Jacob Gorender sobre o período “Combate nas Trevas”, Ed. Ática, 1987. 8 Entre outras coisas, e reafirmando o que destacaremos a seguir, o documento aponta que: “El internacionalimo proletário constituye la esencia y el punto de partida de la política internacional del Partido Comunista de Cuba”; e destaca os princípios que orientam tal postura reproduzindo o que foi consolidado na Constituição do país: apoio as lutas de libertação nacional, unidade com os países socialistas, combate ao imperialismo, coexistência pacífica, relações com países independente do regime, respeito as normas do Direito internacional, entre outros. (PLATAFORMA PROGRAMÁTICA DEL PARTIDO COMUNISTA DE CUBA. POLÍTICA INTERNACIONAL. Citado por PCUS, 1982, p 33-35). 7 137 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br que orientaram o apoio do país aos movimentos guerrilheiros ou a governos de inspiração socialista; da coexistência pacífica, mesmo com regimes diferentes, afirmando que ao país interessava a manutenção da paz e a solução negociada dos conflitos; do direito à independência, ou seja, de autodeterminação dos povos, reconhecendo e reafirmando o apoio aos povos que promoviam lutas de Libertação Nacional; a solidariedade com os países socialistas e o aprofundamento da integração com eles. A execução de tal política só foi possível com o apoio soviético em múltiplas dimensões que, no entanto, apesar de garantir a sobrevivência e a consolidação do socialismo cubana acabará gerando uma grave dependência, que se revelou prejudicial em longo prazo. Os aspectos fundamentais da ajuda soviética referiam-se ao apoio econômico e militar. Além da proteção frente aos EUA, tal apoio converteu o país numa das principais potências militares da América Latina, considerando a qualidade do equipamento, o treinamento e a capacidade de intervenção em conflitos múltiplos e de diferentes naturezas (guerras convencionais, operações especiais, guerra de guerrilhas, etc). Como aponta Dominguez (1998), não havia na região forças armadas capazes de igualar a habilidade, a experiência e a complexidade técnica do exército revolucionário cubano e de suas forças aéreas. Isto só foi possível porque a proteção soviética se realizava através do fornecimento gratuito, ou a preços baixos, de armas soviéticas, o que possibilitou a modernização e o desenvolvimento de equipamentos disponíveis, atingindo seu auge no início dos anos 80. Tal cooperação foi aprimorada quando o governo cubano decidiu atender ao pedido de ajuda do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), na guerra civil que se instalou no país em 1975-1976, enviando cerca de 40 mil soldados e tornando vitoriosa a causa deste movimento9. Também em outros países africanos ocorreu a presença de forças cubanas. A consequência disto é que as vitórias cubanas não poderiam ser possíveis sem o apoio soviético, da mesma forma que as vitórias e a ampliação da influência soviética no continente não seriam possíveis sem as forças cubanas. Mesmo assim, o governo cubano forjou uma política externa com relativa autonomia que, algumas vezes, se confrontava relativamente com os interesses soviéticos. Cuba apoiou vigorosamente os movimentos revolucionários em muitos países latino-americanos e na África. Prestou ajuda material aos revolucionários na maioria dos países centro-americanos e andinos, aos que lutaram contra o império português na África e também a governos revolucionários amigos como o do Congo, da Argélia e do Vietnã do Norte (SADER, 2001). Em janeiro de 1966, Cuba foi anfitriã de uma Conferência Tricontinental, a partir da qual se fundaram a Organização para a Solidariedade com os Povos de África, Ásia e América Latina (OSPAAL) e a Organização de Solidariedade Latino-americana (OLAS). Com base em Havana e pessoal cubano, ambas prestaram apoio a movimentos revolucionários e se fundamentavam na crítica a grupos que não recorriam à luta armada para alcançar a vitória revolucionária, como os partidos comunistas, mesmo que estes seguissem a orientação de Moscou. Para uma análise da importância e das motivações da presença cubana em Angola sob a ótica da liderança cubana ver, entre outros, a declaração de Fidel Castro “Angola conto y contara con nuestra ayuda en su marcha hacia el socialismo” e “Nuestra política no puede ser jamas la de promover conflictos entre los pueblos de África” e de Juan Almeida Bosque “Cuba reitera su respaldo decidido al derecho de Namíbia de ser independiente” (citado por PCUS, 1982, p. 209-255). 9 138 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br O apoio cubano, ao longo do período, se desenvolveu em dois planos distintos: o militar e o civil. No primeiro, estavam as ações de colaboração e ajuda militar de apoio a movimentos nacionalistas ou socialistas. Segundo López-Segrera (1988), a presença militar cubana foi sempre posterior a esforços para a solução negociada dos conflitos, sua participação era fruto de um pedido formal e aprovação dos governos dos países em questão e o país jamais representou uma ameaça aos vizinhos dos países em que suas tropas atuavam. Neste sentido, também Bandeira (1998) destaca que o envolvimento em Angola ocorreu a pedido de Agostinho Neto, dirigente do MPLA e se iniciou com o treinamento de rebeldes, ainda nos anos 6010; assim como no caso da Etiópia e Moçambique. Da mesma forma, este autor ressalta que “de qualquer forma, Cuba desempenhou, na África, um papel construtivo, inclusive favorecendo soluções diplomáticas para algumas questões, entre as quais o conflito entre Angola e o Zaire11, e os casos da Rodésia (Zimbábue) e Namíbia” (BANDEIRA, 1998, p. 599). Além do campo militar, a ajuda cubana também esteve relacionada ao trabalho civil. Por um lado, o país acolheu inúmeros estudantes dos países africanos – segundo López-Segrera (1988), cerca de 15 mil africanos realizaram seus estudos no país nas mais diversas áreas; por outro lado, o país enviou para o trabalho civil em áreas como saúde, educação, construção civil, agricultura e transportes inúmeros técnicos para atuarem e incentivarem o desenvolvimento dos países africanos12. Dois outros aspectos chamam a atenção na presença cubana na África. A enorme quantidade de pessoas que participaram destas missões, civis ou militares, que, apesar da incerteza em relação a números, é apontada em cerca de 250 mil cubanos por López-Segrera (1988) e em cerca de 110 mil por Bandeira (1998). Independente do número exato, os dois ressaltam uma participação considerável13. O segundo aspecto refere-se aos benefícios gerados por tais ações. Mesmo sendo resultado dos princípios adotados pelo governo cubano e coerentes com os princípios ideológicos da revolução, segundo Bandeira (1998), em 1977, no auge do envolvimento cubano, geraram divisas no valor de U$ 100 milhões, representando cerca de 6% do valor das commodities exportadas para os países do Ocidente14. Existem diversas explicações para o envolvimento cubano na África. Como aponta Gleijeses, há interpretações que assinalam que tais ações foram motivadas pelo desejo pessoal de Fidel Castro de afirmação de seu papel de líder do terceiro mundo, mas este certamente não foi o fator determinante. Os dois fatores fundamentais foram a autodefesa e o idealismo. Depois de procurar um modus vivendi com os EUA, a liderança cubana chegou a uma conclusão muito A ligação com o MPLA e Agostinho Neto começou em 1965 quando Ernesto Guevara teve um encontro com o dirigente angolano e outros líderes do movimento. Porém se reduziu no início dos anos 70 devido às dificuldades de envio de material e homens e ao desenvolvimento próprio da luta pela independência do país. Com a instalação da Guerra Civil, em 1975, foi solicitado novamente o apoio cubano e o país se envolveu profundamente no conflito angolano (GLEIJESES, 2003, p. 106). 11 Para uma análise da participação cubana no processo de pacificação entre os dois países ver o livro La paz de Cuito Cuanavale – documentos de un processo, de Blanca Zabala, Havana, 1989. 12 Para um relato destas ações e as atividades desenvolvidas ver, além dos autores já citados, o livro “Cubanos na África”, de Neiva Moreira e Beatriz Bissio, Ed.Global, 1979. 13 Raul Castro, aponta para cerca de 400 mil cubanos que vivenciaram o trabalho solidário, militar ou civil, com outros países. Deve-se considerar que também incorpora os cubanos que atuaram na América Latina, em diferentes períodos. 14 Segundo Bandeira (1998), apenas um contrato com a Líbia era de cerca de U$ 25 milhões e havia outro similar com Angola no mesmo período. 10 139 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br clara: para se proteger dos EUA, a melhor defesa seria contra atacar, porém através dos espaços gerados no Terceiro Mundo. Neste sentido, podemos observar que: ...Castro consideraba que la supervivencia de la revolución dependia “del surgimiento de otras Cubas”, pues pensaba que EUA se veria obligado en ultima instancia a aceptar a Cuba cuando tuviera que hacer frente simultaneamente a vários otros gobiernos revolucionários. Y cuando Che Guevara fue a África en deciembre de 1964, los analistas de inteligência de EUA, recalcaron este elemento de autodefensa (GLEIJESES, 2003, p. 109). O segundo fator foi o idealismo que condicionou a política externa cubana neste período, ou seja, o sentido de missão revolucionária, personificado no internacionalismo proletário. Na África os riscos eram menores, não provocavam diretamente os EUA e o país não atuava contra governos legais, como na América Latina, pois o país contribuía para movimentos contra o regime colonial ou governos pré-estabelecidos. Desta forma, podia continuar desenvolvendo a estratégia de promoção da revolução, sem maiores danos. Tal postura, muitas vezes, entrou em confronto com a realpolitik, no sentido de que podia gerar tensões com os aliados soviéticos, aumentar a ruptura com os EUA e criar novos inimigos, além de significar um importante aporte de recursos de que o país tanto necessitava (GLEIJESES, 2003, p. 114-116)15. O reconhecimento explícito do papel desempenhado por Cuba, além do seu caráter construtivo, como já assinalamos, nos conflitos africanos pode ser percebido pela declaração de Nelson Mandela que, visitando o país como presidente da África do Sul, afirmou Venimos aqui con el sentimiento de la gran deuda que hemos contraído con el pueblo de Cuba; qué otro país tiene una história de mayor altruísmo que la que Cuba puso de manifiesto en sus relaciones com África? (citado por GLEIJESES, 2003, p. 119) A mais importante das ações de apoio em matéria de política exterior na América Latina ocorreu na colaboração dada, a partir de 1977, aos sandinistas na Nicarágua. Milhares de civis e militares foram enviados para dar apoio à consolidação da primeira revolução que se registrava na América Latina, depois da Revolução Cubana (DOMINGUEZ, 1998; SADER, 2001; Como aponta o autor, citando duas fontes bem distintas. Para os russos, “tal como lo dijo un alto funcionário soviético- Anatoly Dobrynin, ex-embaixador soviético - en sus memórias, los cubanos enviaron sus tropas por iniciativa própria y sin consultarnos”; afirmação esta que é reafirmada por Henry Kissinger, que em suas memórias declara que “no podiamos imaginar que actuara en forma tan provocadora tan lejos de su país a no ser que Moscú lo presionara a pagarle el apoyo militar y econômico. Las pruebas hoy disponibles indicam que fue lo opuesto” (GLEIJESES, 2003, p. 113-114). Do mesmo modo, Sulzc afirma que: “Contrariamente a crença generalizada, foi ideia de Fidel Castro- e não dos russos – o engajamento de tropas cubanas na guerra civil em Angola, de forma totalmente aberta” (SZULC, 1987, p. 752). 15 140 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br BANDEIRA, 1998)16. Também em Granada, vários cubanos trabalhavam para o governo quando as tropas americanas invadiram o país, em outubro de 1983, e apesar de em grande medida serem reservistas e estarem mal armados, enfrentaram-nas até serem derrotados. Tal política, porém, provocou conflitos, ainda que temporários, nas relações cubano-soviéticas. Além do conflito provocado pelo papel dos partidos comunistas próximos de Moscou no apoio (ou não) da luta armada; líderes cubanos, especialmente Guevara enquanto ministro criticaram a URSS por seu comportamento de superpotência e a precária ajuda que prestava à revolução cubana e outros movimentos. Mesmo assim, deve-se destacar que a relação com a URSS era o elemento central que tornava possível o desenvolvimento das prioridades do país, e consolidaria o papel das Forças Armadas cubanas que, no início dos anos 90, eram extremamente profissionais e com experiência internacional de combate que poucas forças na região possuíam. Cuba e as FAR diante do mundo novo: a reorientação de papéis e atuação política e econômica O fim do bloco soviético, e particularmente da URSS, atingiu profundamente Cuba, devido aos intensos laços que foram gestados entre o país e a comunidade socialista desde a Revolução Cubana em 1959. Tais laços profundos haviam determinados grande parte da organização econômica, política, militar e social do país (AYERBE, 2004; SADER, 2001; BANDEIRA, 1998; LE RIVEREND, 1990; COGGIOLA, 1998). O rompimento, involuntário e inesperado, trouxe um duplo impacto de grande magnitude. No plano interno, conduziu o país a sua mais grave crise econômica e social, desde o advento da Revolução e, talvez, de toda a sua história. Tal crise, no entanto, apenas revelava outro desafio. No plano internacional, o rompimento das relações comerciais e diplomáticas com antigos aliados conduziu o país a, certo, isolamento econômico e político no cenário internacional que, de imediato, obrigava sua liderança a reformular todo o sistema de relações internacionais (econômicas e políticas) seja para solucionar os efeitos da crise interna seja para a reinserção numa nova ordem que, em grande medida, mostrava-se adversa aos ideais revolucionários que a ilha caribenha procurava representar e estimular. Entre 1990 e 1993, Cuba perdeu de maneira abrupta e intensa 85% do mercado que havia acompanhado o país durante as três décadas anteriores, assim como suas principais fontes de crédito, de assessoria técnica e de intercâmbio tecnológico, o que provocou fortes desequilíbrios na balança de pagamentos, retrocesso econômico e aumento do desemprego e subemprego, entre outras consequências. Ainda a nação perdia o abrigo que significava, desde o ponto de vista político, a ordem bipolar e se encontrava mais exposta à situação de unipolaridade política-militar que se criava com a queda do socialismo (ALMENDRA, 1998; MESA-LAGO, 1998). Como aponta Szulc: “Os cubanos haviam treinados os sandinistas em campos militares de Pinar del Río e na Ilha da Juventude, e foi Fidel quem tomou para si, em 1978, a incumbência de unir facções rivais entre os rebeldes nicaragüenses. “Se não houver união entre vocês, Cuba não fornecerá armas para o ano de sua ofensiva final”, disse-lhes numa reunião em Havana” (SZULC, 1987, p. 763). 16 141 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br Para superar este duplo desafio, a liderança cubana teve que promover ações que visassem à sobrevivência econômica e a reconstrução dos laços internacionais. No primeiro caso, tratavase de reconstruir as bases econômicas do país, com a adoção de medidas que pudessem garantir o desenvolvimento das atividades econômicas e a retomada dos padrões anteriores, que foram artificialmente impulsionados pela ajuda soviética. Em relação ao segundo aspecto, tratava-se de reconstruir os laços políticos e econômicos, desenvolver uma política externa que atendesse aos interesses (e necessidades) nacionais. Nos dois casos, as FAR tiveram um papel fundamental, como apontaremos a seguir, contribuindo tanto para a recuperação econômica e a reinserção internacional do país. Além disto, tais mudanças impactaram a atuação das FAR, externa e internamente. No primeiro caso, ocorre uma diminuição de sua capacidade bélica com a interrupção de fornecimento de material militar, reduzindo substancialmente seu arsenal e a capacidade de intervenção em conflitos regionais ao redor do planeta, como demonstra Moloeznik (2013)17; isto conduziu ao repatriamento das tropas do país e a modificação do perfil de intervenção cubana que, inclusive por outras razões, passa a se orientar pela negociação e moderação. como apontaremos adiante. No que se refere a atuação interna, as FAR participam ativamente das transições cubana (econômica e política), tornando-se um ator fundamental para o futuro da ilha caribenha, pois como afirma González Mederos: “Las FAR, como gran conglomerado militar – económico – político, será una pieza clave en el futuro de Cuba. La institución nace luego de la derrota del ejército constitucional de Fulgencio Batista. La exitosa transformación del Ejército Rebelde en las Fuerzas Armadas Revolucionarias, bajo el mando del Raúl Castro, fue una clara garantía para la posibilidad de instaurar un nuevo régimen político en Cuba, más allá del aparato institucional de la segunda república (1933-1958). Los mismos criterios de rigor y de milimétrica organización que utilizó Raúl Castro para desplegar, en una amplísima región, el Segundo Frente Oriental, fueron utilizados luego para dar consistencia a la institución castrense revolucionaria”. (GONZÁLEZ MEDEROS, 2013, p. 1). Tal processo se desenvolve da seguinte forma. Entre 1989 e 1991, o país repatriou as tropas que combatiam no exterior e que, segundo Raul Castro, conduziram um total aproximado de 300 mil cubanos em lutas na África, principalmente, Ásia e América Latina ao longo dos anos 70 e 80, representando cerca de 25% da população18. Em setembro de 1989, foi completado o Segundo MOLOEZNIK (2013) alguns indicadores ilustram esta diminuição do poder bélico: em 1992 Cuba possuia um efetivo de 175 mil militares e 135 mil reservistas, em 2012 eram 49 mil e 39 mil, respectivamente; ainda, possuia 2 submarinos classe Foxtrot e 16 dragaminas, entre outras embarcações, em 2012 eram 0 submarinos e 2 dragaminas; finalmente, o país possuía 80 MIGs 21, 70 MIGs 23 e 6 MIGs 29 que diminuiram para 0 MIGs 21, 28 MIGs 23 e 7 MIGs 29 em 2012. 18 Segundo Dominguez (1998), Cuba havia atuado, civil ou militarmente, nos seguintes países: Chile, Peru, Panamá, Nicarágua, Jamaica, Guianas, Granada, Suriname, Argélia, Líbia, Etiópia, Uganda, Tanzânia, Seichelhes, Zâmbia, Gana, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola, Zimbábue, Congo, Nigéria, Benin, Burkina Fasso, Madagascar, 17 142 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br processo de retirada da Etiópia; em março de 1990, ocorreu a volta dos militares da Nicarágua; em maio de 1991, retornaram as tropas de Angola; e entre 1990 e 1991 retornaram tropas e assessores militares cubanos de vários outros países. Em 1992, o país anunciou que havia deixado de desenvolver apoio militar a movimentos revolucionários que buscavam derrubar governos em outros países, recolhendo, quase que totalmente, suas tropas no exterior devido a dificuldades de financiamento e aos empecilhos que isto poderia gerar na necessidade de aproximação com outras nações e a comunidade internacional. Além disto, o país deixou de receber armamento gratuito da Rússia, diminuindo a frequência e o alcance de seus exercícios militares. Tal postura, também contribuiu para que Cuba adquirisse um papel relevante em certos temas. Teve um papel útil e importante nos processos de pacificação da América Central, primeiro em El Salvador, em 1992, e depois na Guatemala, em 1996. Também apoiou o processo de pacificação na Colômbia durante o governo de Andrés Pastrana. Já em janeiro de 2002, o país sediou uma Cúpula de Paz em que participaram os representantes do Exército de Libertação Nacional (ELN), do governo colombiano e da sociedade civil para acelerar as negociações para encerrar o conflito armado no país. Segundo Dominguez (2003), Cuba não foi apenas a anfitriã, mas sim a promotora desta negociação, como tem procurado envolver as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC)19. Entre 1989 e 1995, o total de gastos militares e de segurança interna foi cortado em cerca de 45%, diminuindo seu efetivo a aproximadamente 65 mil homens. Para facilitar esta redução, e compensar as reduzidas pensões, o governo incentivou o emprego de ex-oficiais em companhias semiprivadas, principalmente na rede hoteleira (DOMINGUEZ, 2004)20. Apesar disto, as FAR tornaram um ator relevante. Isto ocorre pela desmilitarização da atuação externa do país, com o retorno, já assinalado, das tropas cubanas estacionadas na África e na América Latina, e a afirmação de uma política pacífica e construtiva em relação aos conflitos em que o país participou em décadas anteriores. Os motivos de tal retirada são de ordem política. Desenvolver uma imagem pacífica e não belicista e gerar um novo tipo de relacionamento diplomático, em que se destacam as questões sociais, como também de ordem econômica, e a dificuldade de sustentar um contingente relativamente elevado de soldados em regiões distantes, gerava um custo elevado que não podia mais contar com o apoio soviético (DOMINGUEZ, 1998). Desta forma, o exército cubano, o mais experiente e qualificado da América Latina, se incorpora aos novos objetivos da política externa do país e também assume um maior compromisso nos assuntos internos do país, principalmente na execução de serviços básicos e na oferta de mão de obra qualificada e confiável no desenvolvimento econômico do país, com o deslocamento de militares para funções políticas e econômicas neste período de recuperação. Isto porque, devido ao colapso soviético, a nova Lei de Defesa Nacional de 1994 determinou que a corporação deveria suprir suas próprias necessidades. Sendo assim, as FAR passaram a produzir quase que a totalidade dos alimentos que necessitam, inclusive com a entrega de Burindí, Guiné Equatorial, Guiné, Guiné Bissao, Cabo Verde, Serra Leoa, Máli, Iêmen do Sul, Síria, Iraque, Vietnam, Laos y Camboja. 19 Atualmente (2014), as negociações de paz entre as FARC e o governo colombiano se realizam em Havana. 20 Em 1994, ocorreu um processo de reforma das forças armadas cubanas redefinindo seu papel internamente. Desta forma, as FAR passaram a atuar intensamente no processo de reformas do país. No ano de 2005, o exército cubano controlava 322 empresas, algumas entre as maiores e mais rentáveis do país, sendo responsável por 20% dos assalariados e 89% das exportações da ilha (CAROIT, 2006). 143 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br excedentes, ocupando desta forma, terras ociosas e contribuindo para que a importação de alimentos, que compõe grande parte da pauta de exportações do país, não aumentasse. Tal atuação reforçou a importância das FAR como ator político fundamental nos processos políticos e econômicos que o país enfrenta nesta primeira década do século XXI. Desta forma, como reconhece Alzugaray: “Por seu lado, as Forças Armadas Revolucionários (FAR) e a sua importante instituição irmã, o Ministério do Interior, constituem a mais eficaz e prestigiadas das instituições criadas pela liderança histórica do país. A sua origem popular, a sua constante vinculação aos problemas da população, a sua contribuição histórica para a defesa do país e a libertação de outros povos, e o seu pragmatismo econômico demonstrado pela introdução do aperfeiçoamento empresarial nas suas indústrias, fazem-na gozar de uma confiança significativa em amplos setores da sociedade. As altas patentes militares acumulam uma tradição de heroísmo, pragmatismo, solvência e profissionalismo pouco usuais na América Latina e Caraíbas” (ALZUGARAY TRETO, 2007, pg. 93). Desta forma, as FAR têm atuado em duas frentes internas fundamentais, como ator político e econômico. No primeiro caso, considerando o apoio militar desenvolvido por Cuba a inúmeras lutas de libertação nacional ou ao desenvolvimento da revolução em diversos cantos do planeta, os militares cubanos membros da FAR possuem um expressivo peso na política interna e desempenham papéis importantes no desenvolvimento da política externa do país. Já há algum tempo, Dominguez (2004) apontava que a maioria dos oficias militares cubanos eram membros do PCC, dois eram membros-chave do Conselho de Ministros (Raul Castro e Abelardo Colomé) e representavam, em 1997, 17% do Comitê Central do PCC. Desde então, e com a ascensão de Raúl Castro, tal presença e atuação política tem se intensificando. Desta forma, a participação política dos militares cubanos foi impulsionada, tanto que, em 2009, Habel informava que: “Mientras que se esperaba la promoción de Carlos Lage como número dos, es Machado Ventura quien, bajo la sorpresa general, fue elegido vicepresidente del Consejo de Estado en el 2008, lo que –en caso de incapacidad de Raúl Castro– le convierte en su sucesor oficial según la Constitución cubana. Esta decisión imprevista anunciaba la exclusión de Carlos Lage. Esta alianza entre la alta nomenclatura del PCC y los militares «históricos» forma hoy el núcleo duro de la dirección del país. (...) Hay seis militares sobre veintitrés en la Oficina Política. Los comandantes y los generales representan el 26% del Consejo de Estado. Además de la promoción de varios militares durante la remodelación ministerial de marzo del 2009, el coronel Armando Emilio Pérez, uno de los responsables Del 144 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br «perfeccionamiento de las empresas», fue nombrado en abril como viceministro de Economía” (HABEL, 2009, p. 97-98). Tal processo se consolidou com a realização do VI Congresso do Partido Comunista de Cuba, em abril de 2011, pois como afirma Gonzáles Mederos: “De los 15 miembros del Buró Político elegidos en el VI Congreso del PCC, 10 fueron militares. Con la muerte del general Julio Casas Regueiro ahora son nueve. Dos tercios del máximo órgano de poder del país corresponde a personas vinculadas a las FAR, incluyendo a cuatro de sus generales más importantes, a quienes corresponderá, dentro de muy poco tiempo, tomar decisiones cruciales sobre el destino de Cuba: Leopoldo Cintra Frías (ministro de las FAR y una leyenda viva de las guerras africanas); Abelardo Colomé Ibarra (ministro del Interior, quien alcanzó los grados de comandante, con apenas 20 años, en el Segundo Frente Oriental); Álvaro López Miera (viceministro primero de las FAR, jefe de su Estado Mayor, muy cercano y querido por Raúl Castro, pues siendo casi un niño se incorporó a las filas del Segundo Frente), y Ramón Espinosa Martín (viceministro de las FAR, muy respetado por la organización, casi de relojería suiza, que supo imprimirle al Ejército Oriental, bajo su mando durante muchos años)” (GONZÁLES MEDEROS, 2013, p. 2). Desta forma, torna-se evidente a importância política das FAR como ator político fundamental no contexto contemporâneo cubano, tanto pela presença nas principais instituições políticas do país, como pela direção intelectual que os militares parecem exercer. Também sua homogeneidade e solidez, a experiência e o papel desempenhado pelos militares na atuação em missões internacionalistas, em que se destacaram na promoção dos ideais revolucionários, são elementos importantes que conferem as FAR tal importância. No entanto, a principal atuação das FAR refere-se a sua atuação econômica e a contribuição na reconstrução econômica do país. Os militares cubanos, considerando os desafios dos anos 90, procuraram, além de produzirem os meios necessários a sua sobrevivência, se inserir nos diversos setores da economia cubana, desde fazendas exportadoras de cítricos até no setor de turismo. Desta forma, como aponta Caroit (2006): Hoje as FAR controlam 322 empresas cubanas, que empregam 20% dos assalariados da ilha e são responsáveis por 89% das exportações. Instalado na sede do Ministério das Forças Armadas, O GAESA (Grupo de Administración Empresarial S. A.) agrupa empresas controladas pelos militares - tais como Gaviota (turismo e transportes), Cubanacan (turismo), Almacenes Universal (zonas francas) ou Sasa (autopeças). Outras empresas importantes, tais como a Habanos (charutos) e a Cimex, holding cujo faturamento passa de 800 milhões de euros, também se situam na esfera militar. Esses empreendimentos são administrados por uma nova geração 145 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br de oficiais, formados em escolas de administração europeias (CAROIT, 2006, p. A15). Desta forma, os militares cubanos emergiram como gestores competentes que contribuíram para o processo de retomada econômica do país, atuando num setor fundamental, o turismo, e áreas que se destacam pela relevância que possuem na economia cubana. Tal experiência tem sido aproveitada por Raúl Castro que, contanto com os militares cubanos, tem promovido uma série de reformas para promover o desenvolvimento econômico do país através do processo denominado de “atualização do modelo”. Trata-se de um conjunto de reformas cujo objetivo é a tentativa de conciliar as conquistas revolucionárias com a necessidade de aprimoramento econômico num contexto globalizado. Sendo assim, podemos constatar que, no que se refere as FAR, vem ocorrendo uma modificação de seu perfil que, sem deixar de ocupar-se com a defesa do país e dos ideais revolucionários com ênfase no nacionalismo, passaram a atuar em setores que estão diretamente ligados ao processo de reinserção e recuperação econômica de Cuba, o que reforça sua importância política, seja no cenário doméstico, seja no desenvolvimento da política externa do país21. Desta forma, as FAR emergiram como uma força política e econômica fundamental para o futuro do país e a compreensão de sua atuação pode nos dar, em grande medida, uma visão adequada sobre os destinos de Cuba e de sua revolução. Conclusão A presença dos militares na política é uma constante na história latino-americana. No caso cubano, tal presença também se fez presente e, após a vitória revolucionária, adquiriu novos contornos. A excepcionalidade cubana pode ser destacada pelo perfil popular e revolucionário de tais forças, reconstruídas nos anos 60 com base nas prioridades e nos processos de transformação do país. Desta forma, as FAR passaram a atuar na defesa do país e na política de promoção de revolução em outros lugares, destacadamente na África e América Latina. Desta forma, entre os anos 60 e 80, o apoio soviético propiciou a profissionalização e apoio material envolvimento em diversos conflitos que as tornaram uma das forças mais preparadas, experientes e organizadas da região. Além disto, a contribuição no processo socialista do país contrastava com os golpes promovidos pelos militares latino-americanos no período mencionado. Com o fim do bloco soviético e os desafios que isto impôs a Revolução Cubana, em termos de crise econômica e questionamento político, as FAR passaram por um processo de transformação e adquiriram um papel fundamental na Cuba contemporânea. Tal processo atingiu profundamente os militares cubanos provocando, por um lado, a diminuição de sua Certamente isto influencia qualquer cenário de transição no país, devido à importância que as FAR adquiriram ao longo da década. 21 146 INTELLECTOR Ano XI Volume XII Nº 24 Janeiro/Junho 2016 Rio de Janeiro ISSN 1807-1260 www.revistaintellector.cenegri.org.br capacidade bélica e o repatriamento de tropas mas, por outro, impulsionou sua atuação no cenário doméstico e sua ascensão como ator político e econômico nos destinos do país. Neste novo cenário, as FAR passaram a atuar no âmbito interno, contribuindo para a recuperação econômica do país, atuando na produção dos recursos necessários (produção de alimentos e peças de reposição básica) á sua manutenção e, principalmente, como força empresarial que atua, com profissionalismo, em setores econômicos fundamentais, como o turismo, dirigindo inúmeras empresas a ele relacionadas, possibilitando a recuperação, embora lenta, da economia cubana. Além disto, emergiram como ator político fundamental no processo de transição cubana, com a ocupação das principais instituições políticas do país e a participação nos debates sobre a atualização do modelo cubano. Em suma, as FAR são, hoje, uma das instituições mais importantes do país e sua atuação política e economicamente parece determinante para o futuro da Revolução Cubana. Bibliografia ALMENDRA, C. C. A situação econômica cubana diante da queda do Leste Europeu. In: COGGIOLA, O. 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